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Copyright © por Laura Vitelli, 2023.

Capa: Horus Design


Revisão: Silvia Revisio
Leitura Crítica: Ana Paula Ferreira
Diagramação: Laura Vitelli
Ilustrações: Gabriela Gois Santos e Tacyla Priscila

Nenhuma parte dessa publicação pode ser reproduzida, distribuída ou


transmitida por qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia,
gravação ou outros métodos eletrônicos ou mecânicos, sem a prévia
autorização da autora.
Esse é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares, negócios,
eventos e incidentes são ou os produtos da imaginação da autora ou usados
de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas,
ou eventos reais é mera coincidência.
As cidades fictícias utilizadas neste livro foram criadas pela autora e NÃO
É autorizado o uso do nome das mesmas.

OVERJOY – O RETORNO DE JOY SAROYAN ©


Laura Vitelli

1ª Edição 2023.

Produzido no Brasil.
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(EM PARCERIA COM OUTRAS AUTORAS)

Efeito Rebote
Sumário
Nota da Autora
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Epílogo
Agradecimentos
OVERJOY surgiu, originalmente, em 2014.
Faz tempo, né?
Eu não era a mesma mulher. Na verdade, eu era uma garota, uma
adolescente, uma jovem que adorava séries e filmes policiais, mas sentia
falta de ver uma mulher forte como protagonista de um gênero
predominantemente dominado por heróis masculinos.
Então, Joy Saroyan nasceu. E com ela, um universo de possibilidades.
Uma história complexa. Diversos personagens com personalidades
diferentes. Segredos, intrigas, dramas, mistérios. Tramas complexas demais
para uma garota de 16 anos desenvolver.
Mas a Lau de 2014 tentou. Ela se escreveu, deu voz a esses personagens
do jeito que podia.
Entretanto, lá no passado, eu já sabia que não era a hora da Joy vir para o
mundo.
Em 2020, tentei de novo. Dessa vez, o livro foi para o Wattpad.
Conquistou fãs que me ajudaram a construir um enredo ainda mais forte e
me deram gás para terminar a trilogia. Porém, mesmo concluindo os três
livros, eu ainda não sentia que o livro tinha potencial o suficiente para
chegar a Amazon.
Escrevi diversos outros. Publiquei, me arrisquei, conquistei um público.
E enfim voltei a minha essência, para a primeira história que surgiu na
minha mente. Joy foi ouvida. Ganhou a tão sonhada voz e uma história que
faz jus a sua magnitude.
Esse livro não é simples. Não é uma história para você ler em uma
sentada e esquecer. OVERJOY é repleto de coisas escondidas nas
entrelinhas, momentos de tensão e mistérios que você vai se ver louco para
desvendar.
Lembre-se de que essa história vive na minha mente há anos. Imagine
conviver quase 10 anos com esses personagens. Agora imagine o quanto
eles me contaram, quantos segredos eu tenho guardado... Só cabe em três
livros, certo?
Como já disse acima, não é um livro único, então não espere uma
conclusão para todas as pautas. As respostas virão na hora certa durante o
segundo e terceiro livro.
Gosto de imaginar que você já chegou aqui sabendo que esse é um
DARK ROMANCE, portanto, trata de temas que não são exatamente
éticos, que vão contra coisas que consideramos corretas. Esse livro contém
cenas explícitas de sexo, tortura, assassinato, retrata relações abusivas,
traições e tem menções a estupro (sem cenas gráficas). Se você não se sentir
confortável com algum desses temas, sugiro que não prossiga a leitura. Sua
saúde mental deve sempre vir em primeiro lugar.
Não quero me prolongar mais, porque espero que você esteja tão ansioso
para ler essa história quanto eu estava para jogá-la no mundo.
Joy Saroyan é a personagem mais complexa e cheia de camadas que já
escrevi. Esse livro é o mais desafiador que já escrevi. E essa história batalha
por um espaço no meu coração, de igual para igual, com Outro Verão Com
Você (meu romance de verão dramático, leia se quiser chorar).
Agora, OVERJOY também é de vocês. Sou grata todos os dias por ter a
oportunidade de compartilhar minha primeira ideia com o mundo depois de
tanto tempo. A Lau de 16 anos está realizada.
Espero que se apaixonem por esse universo insano.

Com amor (e dessa vez com muito sangue),


Lau <3
Para todas as garotas que sonhavam com uma heroína, com uma mulher
forte que te inspirasse, assim como os heróis tanto inspiraram os garotos.
Essa é para vocês.
Acendo meu cigarro com o isqueiro que acabei de roubar. O plano de
hoje não incluía fumar trancada em um banheiro, mas a vítima da noite é
tão repugnante que precisei de um alívio.
Na primeira tragada, nada acontece. Na segunda, jogo mais fumaça para
cima e começo a sentir os efeitos da nicotina. Na terceira, já me sinto
melhor. Na quarta, estou pronta para voltar à missão de hoje.
Enquanto termino o cigarro, procuro por um detector de fumaça, coisa
que eu deveria ter feito antes de acendê-lo. Não há nenhum, é óbvio. Estou
no meio do nada, nos confins da Carolina do Norte, em um lugar onde
ninguém jamais se preocuparia com uma besteira dessas.
Com o cigarro na boca, ajeito meu vestido rosa, indecente demais para os
meus padrões. Odeio mostrar tanto minhas pernas, odeio ter que subir o
vestido o tempo todo, porque não tenho seios grandes o suficiente para
sustentar o modelo tomara-que-caia, odeio o tecido que cola em cada parte
da minha cintura. Esse estilo não me agrada, mas é um mal necessário.
Quando uma missão é dada para mim — ou quando eu mesmo crio alguma
—, faço qualquer coisa para cumpri-la, é certo que não irei falhar.
Apago o cigarro na pia, jogo a bituca fora. Bagunço um pouco o cabelo,
dou uma última conferida na minha arma e sorrio com crueldade, sabendo
que chegou a hora de riscar mais um nome da minha lista.
Tan Yankle, 59 anos, acusado de estuprar uma garota de 13 anos.
Absolvido por falta de provas. Sua ficha também inclui assédio sexual,
violência doméstica e porte de drogas. A maior pena que recebeu foram
algumas horas de trabalho comunitário.
Deixar um homem desses andando por aí, livre, apenas esperando o
momento certo para fazer a próxima vítima não é algo que eu consiga
aceitar. A forma como a justiça funciona é uma piada.
E se a justiça não cumpre seu papel, eu vou garantir que esse desgraçado
seja punido.
Saio do banheiro e desfilo pelo bar, deixando minha real personalidade
ofuscada, abraçando meu disfarce em prol de um bem maior. Volto para a
mesa que estou dividindo com Tan e puxo uma cadeira para me sentar. Ele
não deixa que eu complete o movimento, me puxa pela cintura e me coloca
sentada em seu colo.
— Você demorou, docinho — sussurra contra meu ouvido e eu agradeço,
mentalmente, meus anos de treinamento.
Aturar um homem desses é tão difícil quanto levar chicotadas. E eu posso
dizer isso com certeza porque já recebi várias.
Deixo que ele beije meu pescoço, que passe a mão nojenta nas minhas
pernas. Passo por essa tortura com um sorriso sedutor nos lábios, rio de suas
piadas idiotas, faço carinho nos fios ralos do seu cabelo.
Depois de quatro anos fazendo o que faço, me acostumei a ser
objetificada. Isso não torna a situação menos repugnante, mas, a essa altura,
não me importo mais com nada. Boa parte do que eu amava, ruiu. O que me
resta é essa vida. Pelo menos sou útil de alguma forma. Pelo menos faço o
bem, ainda que de um jeito um tanto peculiar.
— O que acha de irmos para um lugar mais... privado? — murmuro no
ouvido de Tan, enquanto uso a unha do meu dedo indicador para acariciar
seu peito.
O idiota sorri. Seus dentes são amarelados, seu rosto redondo, a
aparência suja. O pior é seu pau pequeno raspando na minha bunda. Se eu
tivesse mais tempo, cortaria fora e colocaria em uma caixinha, para deixar
de presente na porta da delegacia local.
Seria no mínimo intrigante para esses bostas que não conseguem resolver
porra nenhuma.
Tan se levanta e estende a mão para me conduzir para fora do bar.
Através do meu melhor olhar lascivo, inverto nossas posições e, sem que
ele perceba, sou eu que comando a ação, que escolho o beco para onde
vamos.
Um lugar escuro, isolado, longe o suficiente do bar para que só eu possa
aproveitar seus gritos de desespero. Se eu pudesse, o torturaria por horas e o
faria se arrepender de suas ações. Porém, graças a minha falta de tempo,
terei que ser rápida.
Deixo que ele me pressione contra a parede. Exponho meu pescoço para
que ele faça o que quiser, enquanto espero o momento certo. Seus lábios
tentam subir do pescoço para a boca, mas não permito. Gosto de colocar um
certo limite em minhas missões. Beijos na boca estão fora de cogitação.
Tan coloca a mão em um dos meus seios. Solto um gemido, fingindo que
estou com tesão, quando no fundo sinto o mais puro desgosto. Preciso
acabar com essa merda logo.
Pegar minha arma passa pela minha cabeça, mas antes que eu possa
concluir a ação, escuto uma sirene. Estudei a região por semanas, analisei
cada horário, cada rua, cada esquina, até encontrar um lugar isolado, para
que eu pudesse cumprir meu objetivo. A polícia nunca vem até aqui.
Que caralho!
Meus planos terão que mudar.
Parece que serei uma donzela em perigo, um papel que normalmente não
gosto de desempenhar. Prefiro eu mesma ver a vida deixando os olhos das
pessoas que elimino.
— Tan, chega — peço, com a voz mais vitimizada que consigo emitir.
— Ah, docinho, agora que você está aqui, não temos como voltar atrás.
— Suas mãos agarram minha cintura com força, deixando claro que não
será tão fácil escapar. — Você vai ser uma putinha bem obediente, como
tem sido a noite toda.
Putinha? Sério? Ele não tem nenhuma ideia melhor?
Piso com meu salto no meio do seu pé e empurro seu peito com força,
surpreendendo-o. Saio correndo, gritando por socorro, esperando que a
porra da viatura me note. Se eles vão estragar minha missão, que pelo
menos peguem esse crápula em flagrante.
Não tenho tempo de chegar até a calçada. As mãos de Tan agarram meu
cabelo e ele me puxa para trás com força. Por sorte, consigo permanecer em
pé.
Ele me pressiona na parede, dessa vez de costas para ele, e bate a minha
cabeça no concreto. A dor faz com que eu fique tonta, o que abre espaço
para ele subir meu vestido. Uma de suas mãos agarra minha bunda e aperta
a carne. O toque é possessivo, deixa claro que estou completamente fodida.
Já passei por maus bocados. Já fiquei próxima de muitas situações
perigosas. E tenho orgulho em dizer que sou mestra em manter a calma.
Enquanto ele pensa em concluir sua ação, eu já estou com o cotovelo em
seu nariz. O baque é tão forte que ele cambaleia para trás. Aproveito o
espaço para fechar o punho e dar mais três socos seguidos em seu rosto.
Ainda uso o tempo que ele demora para se recompor para ajeitar meu
vestido, porque me recuso a perder a classe.
— Sua desgraçada! Quebrou meu nariz! — reclama, segurando o nariz
ensanguentado.
— Jura? — Faço um beicinho triste, ironizando a situação.
Minha atitude parece irritar Tan. Escuto a sirene cada vez mais perto e sei
que precisarei segurá-lo para ganhar tempo. Nós nos encaramos por alguns
segundos, eu o desafio para que venha para cima de mim e tente me pegar.
Estou preparada para levar um empurrão, um tapa ou até alguns socos, mas
Tan me surpreende ao segurar meus cabelos e me lançar para longe. A soma
de sua força com esses malditos saltos faz com que eu perca o equilíbrio.
Estou tentando a todo custo poupar sua vida e ele me trata desse jeito?
Filho da puta. Chega de ser boazinha.
Rolo para o lado para me levantar, os saltos não facilitam minha vida,
mas consigo ficar de pé. O problema é que Tan já me espera com seus
punhos fechados. Ele tem pelo menos o dobro do meu tamanho. Deve pesar
uns 30kg a mais. Os socos que dá no meu estômago quase me fazem
vomitar.
Em um ato espontâneo, abraço minha barriga, o que dá espaço para que
ele me empurre novamente contra a parede. O baque que minhas costas
sofrem fazem uma dor irradiar por todo o meu corpo. As mãos dele vão
direto para o meu pescoço. Começo a sufocar.
Fodeu.
Não posso me desesperar.
Não posso morrer.
Preciso recorrer a minha última opção.
Eu não queria usar a saída mais óbvia. Entrei em uma briga com esse
nojento porque, se eu o matar aqui, agora, não terei tempo para esconder o
corpo, e a única saída dessa porra de beco é a rua onde a polícia irá passar
em segundos. Me esconder está fora de cogitação. Morrer também.
Que se foda. Arranjo uma forma de fugir depois.
Faço um esforço hercúleo para alcançar a pequena arma em meu coldre,
uma Colt 1911 já destravada para eventuais emergências. Praticamente não
consigo respirar, mas uso meu resto de consciência para ser rápida e
sorrateira.
Esboço um sorriso vitorioso quando consigo segurar a arma e Tan fica
confuso, sem entender o motivo da minha felicidade.
Miro a arma em sua cabeça no ângulo perfeito. Antes que ele possa
perceber o que estou fazendo, aperto o gatilho. Um único disparo.
O suficiente para tirar a vida dele.
O suficiente para chamar a atenção dos policiais.
O suficiente para me levar direto para a cadeia.
Odeio policiais e delegacias em geral, mas essa consegue se superar. O
lugar cheira a mofo, as paredes têm um tom cinza sujo, impessoal, e ainda
por cima têm infiltrações. O chão é tão sujo, que já vi até um rato passeando
pelo corredor. Era de se imaginar que a delegacia fosse precária, afinal,
estou no meio do nada. Duvido que existam ocorrências chegando, sou
literalmente a única pessoa presa. Não que haja muito espaço para mais,
existem apenas três celas por aqui, prontas para abrigar algum outro
criminoso.
Porque, no momento, é isso o que eu sou. Uma criminosa. Chique.
Meu pequeno espaço tem uma cama horrorosa (se é que dá para chamar
esse pedaço de concreto com um colchão finíssimo de cama), uma pia e
uma privada. Fui obrigada a tirar meu vestido, então, se combinarmos o
macacão laranja que eu uso com o ambiente, posso fazer parte do elenco de
Orange Is The New Black.
A piada com uma série que eu nem mesmo assisti deixa óbvio que estou
começando a enlouquecer.
Eu preciso escapar desse lugar. O ócio não combina comigo.
A saída mais óbvia seria ligar para alguém do meu passado, porém,
prefiro explorar outras opções antes de decidir qualquer coisa. Se eu avisar
sobre meu paradeiro, é certo que vão me obrigar a voltar e todo o meu
trabalho dos últimos quatro anos será jogado fora.
Fugi daquele lugar por um motivo.
Passo o olhar pela cela, outra vez tentando buscar uma forma de me
libertar. A pequena janela é alta demais, eu até conseguiria alcançá-la com
algum esforço, mas a presença das grades impede que essa tentativa ocorra.
A única outra opção é sair pela entrada, porém, eu teria que roubar as
chaves de algum guarda e conhecer bem demais a delegacia para saber por
onde posso escapar sem que ninguém me veja. Todos os planos são
complicados e, considerando que essa é uma delegacia minúscula, eles não
devem manter os presos aqui por muito tempo. É bem provável que abram
um processo contra mim e me transfiram para um presídio enquanto o
julgamento está em andamento.
Ou seja, preciso escapar antes disso, ou vou me foder ainda mais. Se
alguém descobrir quem eu sou de verdade, o estrago vai ser grande.
Canso de andar de um lado para o outro e deito na cama dura. É
desconfortável pra cacete e olha que já me meti em roubadas insanas.
Dormi em lugares duvidosos e com companhias mais duvidosas ainda.
Porém, minha própria companhia me assusta mais do que qualquer outra
experiência do passado.
Não há nada para fazer nessa cela, exceto olhar para o teto. Sem ter com
o que me distrair, me torno refém da minha mente. Estar presa em minha
cabeça é algo que tento evitar com frequência. Penso nas lembranças que
insistem em me atingir de tempos em tempos. Nas lembranças e no cigarro.
Como eu queria um cigarro...
Fecho os olhos para tentar dormir, mas já sei que não vou conseguir
desligar meus pensamentos. Tenho costume de dormir com a arma embaixo
do travesseiro e, com ela longe, o desconforto da cama e minha mente
perturbada, nunca terei a chance de descansar.
Nunca tive, desde aquele dia.
O dia em que perdi minha inocência.
Eu tinha por volta de doze anos quando descobri que toda minha vida era
uma mentira. Me lembro de quase todos os detalhes. Da saia plissada do
meu uniforme do colégio, manchada com o leite que eu havia tomado no
café da manhã. Do machucado que eu tinha no joelho, por ter caído na aula
de educação física, quando tentei ganhar uma competição de corrida contra
um dos meus amigos. Do All-Star preto de cano alto surrado que eu usava
nos pés. Da música que tocava na rádio. Do barulho estrondoso que fez meu
mundo virar de cabeça para baixo. Do meu último suspiro de liberdade.

doze anos antes

“— Alex, você não consegue escolher uma estação? Que saco, quero
ouvir uma música até o final! — reclamei, irritada com sua falta de senso.
Aproveitei para chutar o banco do passageiro, onde ela estava, mas Alex
não se deu ao trabalho de olhar para mim. Só bufou e continuou mudando
a estação do rádio, nunca achando uma que a deixasse satisfeita.
Cruzei os braços, desejando que minha irmã desaparecesse, só para que
eu pudesse tomar o controle da trilha sonora. Era uma preocupação boba,
mas que parecia de grande importância para uma jovem que só tinha como
responsabilidade passar de ano no colégio.
— Será que vocês não conseguem encontrar uma rádio que toque algo
que as duas gostem? Escutem uma música inteira, depois procurem por
outra. — O tom da minha mãe deixava claro o quanto ela estava cansada
das nossas brigas sem fim.
Alex tinha a mania de querer me tirar do sério e me rebaixar a qualquer
custo, apenas por eu ser mais nova. No auge dos meus doze anos, não via
escolha a não ser deixar. Eu não era durona. Bater de frente com ela não
me parecia uma boa ideia, então, minha mãe sempre acabava intervindo na
situação, para tentar me ajudar.
Eu sorri quando Alex parou de trocar as estações e deixou que o mais
novo hit da Britney Spears tocasse no rádio.
Ainda estava sorrindo e cantando quando ouvi o primeiro estrondo. A
princípio, não entendi o que o barulho representava. Mas quando o ritmo
dos estrondos aumentou e a lataria do carro começou a ser atingida, eu
entendi que o barulho vinha de tiros. Eu não tinha noção de que aquilo
podia acontecer na vida real. Achava que era uma coisa de filme. Perceber
que aquilo estava acontecendo com minha família me pareceu uma
loucura.
Olhei para trás e vi, através do vidro traseiro, que um carro preto nos
perseguia. Três homens armados estavam pendurados nas janelas, as
armas enormes apontadas para nós. Abaixei a cabeça para tentar me
proteger, como via no cinema, mas não foi o suficiente para evitar que eu
fosse atingida. Uma das balas destruiu a janela ao meu lado e um pequeno
pedaço de vidro perfurou minha pele.
A dor era insuportável. Queimava. Ardia. Matava a infância feliz que eu
tinha de pouquinho em pouquinho.
— Mãe... dói... — choraminguei, tocando meu braço, ficando ainda mais
assustada quando percebi que o sangue escorria até os meus dedos.
Ela não me respondeu, eu achava que nem sequer tinha me ouvido. Foi
só então que ergui a cabeça e olhei para minha mãe. Seu semblante não
mostrava a mulher carinhosa que me defendia de Alex. Não mostrava a
mãe que me dava beijos de boa noite e me contava histórias para dormir.
Não mostrava a mãe que me dava os melhores abraços do mundo.
Mostrava fúria, misturada com uma certa familiaridade, como se aquela
fosse uma cena que acontecesse constantemente na sua vida.
Mamãe acelerava pela estrada vazia com uma maestria impressionante,
como se já tivesse feito aquilo incontáveis vezes. A adrenalina não permitiu
que eu fizesse nenhuma pergunta, pelo menos não naquele momento, mas
as dúvidas sobre o porquê de aquilo estar acontecendo tomavam minha
mente.
Minha mãe era só uma advogada. Nós morávamos no subúrbio.
Tínhamos uma vida normal. Por que alguém iria nos perseguir? Por que
alguém atiraria contra nós?
O lugar onde estávamos era pacato demais. A pequena estrada que
ligava Pennetown, a cidade onde morávamos, a Sinclair, a cidade onde
estudávamos, ficava no meio de plantações de trigo. Não havia nada, nem
ninguém.
E não havia saída, a não ser acelerar.
Minha mãe tentava desviar dos tiros jogando o carro para a pista
oposta, correndo o risco de sofrermos uma colisão perigosa, só para
amenizar o impacto dos disparos. Não adiantou muito, os tiros não
paravam de nos atingir. A lataria do carro parecia resistir bem, mas uma
hora ou outra o veículo que nos perseguia poderia nos alcançar.
Faziam apenas alguns minutos que os tiros haviam começado, porém,
pareciam horas. Eu estava suando, meu braço não parava de sangrar,
minha mente não conseguia compreender o que estava acontecendo.
Apesar do meu desespero, mamãe parecia focada em resolver a situação.
— Alex, preciso que você dirija! — minha mãe ordenou com rapidez,
alternando seu olhar entre os espelhos, a estrada e Alex.
Minha irmã arregalou os olhos, em completo pânico. Ela tinha quinze
anos, ainda não tinha carteira de motorista, muito menos sabia dirigir.
— Mãe, o papai me levou para dirigir duas vezes. Eu não...
— Não importa, Alex! Troque de lugar comigo agora! — A voz
desesperada da mulher que sempre víamos como exemplo de plenitude fez
Alex agir.
Minha mãe diminuiu a velocidade para que Alex pudesse assumir seu
lugar. A troca foi feita com cuidado, minha mãe não soltou o volante, para
não nos desestabilizar totalmente.
— Pise no acelerador com força e deixe a direção parada! — mamãe
ordenou e tirou um molho de chaves de dentro da bolsa, que estava apoiada
no chão do carro.
Tudo aconteceu muito rápido. Ela foi habilidosa em abrir um
compartimento secreto, que ficava embaixo do banco do passageiro, e
puxar um colete, provavelmente a prova de balas, de lá. Enquanto o vestia,
entregou uma chave para mim e apontou para o meu banco.
— Abra e pegue a maior arma que encontrar.
Engoli em seco quando a ouvi, confusa com a imagem daquela mulher,
que não era nada como a mãe que eu conhecia. Não demorei para reagir,
entretanto, porque sabia que estávamos em uma situação complicada.
Graças a minha baixa estatura e magreza, consegui me abaixar no vão
entre os bancos da frente e o de trás, e abri o pequeno cadeado que eu
sequer havia reparado que existia. Embaixo do banco onde eu me sentava
todos os dias, estava um arsenal de armas e apetrechos que eu só via em
filmes policiais.
Aquela foi a primeira vez que eu vi uma arma de perto. A primeira vez
em que segurei uma em minhas mãos. E não tive um sentimento bom. Não
foi amor à primeira vista. Foi pavor.
A arma era pesada, mas consegui entregá-la para minha mãe. No tempo
em que fiquei entretida com seu arsenal secreto, ela havia aberto o teto
solar que nunca usávamos. Mamãe destravou a arma, ficou em pé dentro
do carro, posicionando seu tronco para fora, através do teto solar.
Alex não podia olhar para mim, estava focada demais em manter o carro
andando em linha reta, para poder me consolar. Mesmo com todo seu
esforço, o pneu cantava, o barulho do contato com o asfalto beirava o
insuportável.
Tudo o que eu queria era um consolo, uma companhia, alguém para me
explicar o que diabos estava acontecendo. Contudo, aquela não era uma
possibilidade, porque Alex tampouco sabia o significado de tudo aquilo.
Tive que engolir o choro, a dor, o desespero. Tive que assistir minha mãe
amorosa matar quem nos perseguia. Tive que vê-la agir como uma
assassina.
Antes de ela começar a atirar, achei que eu iria ficar ainda mais
assustada. Mas o que eu senti ali, olhando a mulher que eu mais amava no
mundo, atirar, foi admiração. Ela parecia tão bela, tão poderosa, tão forte.
Parecia estar no controle.
Eu não olhei para trás para ver os corpos dos homens que ela havia
matado, mas, rapidamente, soube que ela tinha resolvido a situação.
Mamãe fechou o teto solar, travou sua arma e ordenou que Alex freasse.
— Vá para o banco de trás e dê uma olhada no braço da sua irmã. — Me
surpreendi com seu pedido, não achei que ela tivesse me escutado em meio
à confusão.
Alex obedeceu e se sentou ao meu lado. Entreguei meu braço para que
ela visse a situação, mas nós não fazíamos ideia do que fazer. Trocamos um
olhar preocupado, ambas chocadas com o que tinha acabado de acontecer.
Nada daquilo fazia sentido para nós.
Minha mãe percebeu que estávamos quietas demais, então colocou a
arma apoiada no banco do passageiro, tirou seu colete e rasgou um pedaço
de sua camisa, entregando-o para Alex.
— Enrole no braço dela, para estancar o sangramento — aconselhou,
sinalizando com a cabeça para que a filha mais velha a obedecesse. Alex
ficou parada, eu também. Apenas a olhávamos, buscando respostas para as
mil perguntas que pairavam em nossas mentes. Mamãe suspirou e nos fitou
com seus olhos escuros e carinhosos. Foi a última vez que ela nos lançou
um olhar amoroso. A última vez que realmente agiu como uma mãe. — Vou
explicar tudo, mas primeiro, preciso que me prometam que isso vai ficar
entre nós. Ninguém pode saber do que vou revelar para vocês.
— Nem o papai? — perguntei, buscando saber se ele também estava
envolvido naquela loucura.
Minha mãe se apressou em negar com a cabeça.
— Especialmente o seu pai. Esse assunto ficará sempre entre nós três.
Entenderam? Preciso saber se posso contar com vocês.
Não havia uma forma de dizer não. Seu tom era impositor, a voz já
estava começando a mudar, a postura foi ficando mais dura, mais firme.
Nós concordamos, ouvimos sua história e tudo, absolutamente tudo,
mudou.”

Minha mente ligada faz meus olhos se abrirem quando um barulho ecoa
pelo corredor. Imediatamente me sento na cama, ficando tonta com o
movimento brusco. Estou com fome, em abstinência de nicotina e com a
cabeça perturbada graças às lembranças tatuadas em minha memória.
Quando recupero a totalidade da minha consciência, olho para o policial
branquelo do turno atual. Ele me encara com desprezo, deve ter escutado de
seus colegas que matei um pobre homem a sangue frio.
— Você tem uma visita — anuncia e eu me levanto, revirando os olhos
quando tenho que colocar meus braços para fora da cela. Ele me algema e
ordena que eu volte a me sentar na cama, enquanto espero pela tal visita.
Um homem engravatado aparece. O cabelo loiro está penteado para o
lado, a pele não tem uma mancha ou ruga sequer. Chuto que não deve ter
mais do que trinta anos. Não preciso olhar para a maleta de segunda mão
que carrega para ter certeza de que é um advogado que trabalha para o
governo.
Ele entra na cela com certo receio, parando na parede oposta à cama,
fitando o policial para se certificar de que ele não vai sair da porta da cela.
Pelo jeito, está com medo de mim.
— Ahn... — Arranha a garganta, um tanto atrapalhado. Não resisto e faço
uma careta de desprezo antes que ele sequer comece a falar. — Sou Michael
Larry. Vou representar seu caso.
O coitadinho nem consegue disfarçar o quanto está nervoso com a
situação. Ao julgar o modo como agarra a maleta, o jeito com que libera
suor e respira de forma pausada, imagino que nunca tenha defendido um
preso antes.
— É um prazer, Mike — brinco de forma sarcástica e apoio as costas na
parede, mantendo as pernas estendidas e cruzando meus pés, me mostrando
o mais fechada possível.
Um advogado recém-formado não vai conseguir me tirar daqui. É
provável que nem um advogado pomposo consiga. Não estou carregando
uma acusação, fui pega em flagrante cometendo um assassinato. As coisas
não serão fáceis para mim.
— Por favor, me chame de Sr. Larry — pede e eu dou risada. Essa é uma
tentativa de parecer sério?
— Sem problemas, Mike. — Não o obedeço por motivos óbvios.
Ainda faço questão de abrir meu melhor sorriso irônico, deixando
Michael mais e mais desconfortável. Para o seu bem, é melhor que suma do
meu caminho.
O advogado não desiste, entretanto. Apoia a pasta no chão e puxa um
caderno e uma caneta de dentro.
— Preciso que me conte os detalhes do que aconteceu. Também necessito
dos seus dados, essa delegacia é antiga e não tem um sistema tão moderno.
Enquanto não puxam seu histórico, você pode me adiantar algumas coisas,
assim já agilizamos o processo.
Então eles ainda não descobriram quem eu sou. Interessante. Preciso
usar essa vantagem.
— Saí com o Tan, achei que ele fosse um cara legal, mas não era. Ele
tentou me agarrar em um beco escuro, me apavorei e o matei. Se a polícia
tivesse sido mais rápida, eu não precisaria fazer isso. Uma moça indefesa
como eu, em um lugar desses... não havia outro jeito. Você sabe como são
os dias de hoje — conto a história com um esboço de sorriso no rosto. Não
adianta negar o assassinato, os policiais assistiram essa parte da cena. O
melhor que posso fazer é tentar levar a situação com humor e afastar
Michael Larry da busca pela minha identidade.
Ele fica sem reação quando me escuta. Sua boca se abre levemente, deve
estar se lamentando por ter caído justamente com o meu caso.
— Olha, se você agiu mesmo por legítima defesa, consigo construir um
caso.
Suas palavras me dão a esperança que eu precisava. Se bancar a mocinha
inocente pode me ajudar a sair daqui, é a isso que vou me agarrar.
— Ah, Sr. Larry. Ele me encurralou e ia me estuprar. O que mais eu
poderia fazer? — Faço a melhor expressão sofrida que consigo. Até encho
meus olhos de lágrimas, para dar mais veracidade à atuação.
Mike se comove, dá para ver que criou uma certa compaixão pela minha
situação.
— Prometo que vou tentar construir um bom caso para te tirar daqui, ok?
— Ele esboça um meio sorriso, saindo da cela com uma expressão
completamente diferente da expressão que exibia quando entrou.
Até o próprio policial que tem me vigiado parece comovido. Permaneço
sentada mesmo depois que o advogado sai, com a cabeça abaixada, como se
estivesse mesmo sofrendo pelo que passei.
O que esses idiotas não conseguem ver é que um sorriso enorme toma
conta do meu rosto.
Se Mike conseguir cumprir sua promessa, não precisarei voltar para
aquele maldito lugar. Me parece a saída perfeita.
Mais uma vez, eu sonho.
Nesta noite, as imagens são mais nebulosas. Estou na agência, andando
pelos largos corredores, buscando por uma coisa que nunca encontro. Saio
de um andar, pego o elevador e vou para o outro, mas sempre parece que
estou vendo o mesmo lugar. Os corredores são iguais. Eu sigo sem
encontrar o que procuro. Nem mesmo sei o que procuro.
Sinto que estou em uma busca constante, infinita, presa no lugar que me
ensinou tudo o que sei, mas que quebrou tudo o que eu era.
De repente, a vontade de escapar é maior do que a de buscar por
respostas. Eu corro pelos corredores, entro no elevador novamente e aperto
o botão do térreo. O problema é que quando chego ao andar, não vejo uma
saída, não vejo a luz do dia. Só vejo mais um corredor, igual a todos os
outros.
Corro, corro e corro, mas não há fim. Estou presa.
Ajoelho no chão quando sinto que não tenho mais fôlego para continuar a
correr. Meus pulmões queimam. A frustração que sinto é tamanha, que
grito. Sei que estou sonhando, tenho consciência de que tudo acontece
apenas dentro da minha mente, mas ainda assim, não consigo escapar, não
consigo fazer com que essa angústia acabe.
Quero acordar, meus olhos não abrem.
Quero gritar, nenhum som sai.
Quero escapar, não há saída.
Nunca houve, Joy. A agência é o seu destino. Você sabe disso.
A voz que ecoa em minha mente, dessa vez, não é minha. É dela.
Acordo sobressaltada e escuto um zumbido no ouvido que me faz colocar
a mão na cabeça. Tateio a cama dura para me certificar de que estou mesmo
acordada. Reconheço a cela que se tornou meu lar, o que não me alivia em
nada. Estou tão presa aqui, quanto estava no sonho.
Em uma rápida olhada para o chão, vejo que há uma bandeja com um
pão, aparentando estar velho, e um copo de água. Devo ter perdido o
horário do café da manhã, nem sequer percebi quando entregaram a comida
para mim.
Ontem foi um dia estressante e consegui dormir a noite inteira, coisa que
raramente faço. Porém, mesmo com as horas de sono, ainda me sinto
cansada. A verdade é que eu nunca consigo relaxar por completo. Posso
estar dormindo, mas minha mente nunca está vazia. Sempre estou
sonhando, arquitetando algum plano ou atenta com o que acontece à minha
volta. Preciso estar sempre em alerta para não acabar morta.
Faço um esforço e me obrigo a levantar da cama para me alimentar. Pego
a bandeja, cheiro o pão e, ao constatar que ele não parece estragado, decido
comê-lo. Meu estômago começa a roncar assim que dou a primeira
mordida. Não me lembro quando foi a última vez que comi. Às vezes me
afundo nas missões e esqueço de fazer o básico. Comer, ir ao banheiro,
tomar banho.
Mas de fumar, eu nunca esqueço.
Será que se eu pedisse com carinho, algum policial arranjaria um cigarro
para mim? Já que eles se comoveram com meu caso, podem também se
comover com minha abstinência. De repente, em meu papel de mocinha
inocente, consigo até um passeio para o lado de fora para dar algumas
tragadas. Vou esperar um policial aparecer para ver se tenho alguma chance.
Termino de comer em poucos minutos, tomo a água e deixo a bandeja
próxima a cela, para que alguém venha buscar. Não há mais nada para fazer,
a não ser aguardar que Mike apareça com boas notícias.
Levanto, sento, deito, ando pela cela. Estou prestes a arranhar a parede de
ansiedade, quando escuto passos ao longe. Deve ser Mike. Caminho até as
grades, segurando-as para tentar olhar para o lado de fora.
Não consigo esconder minha felicidade quando vejo Michael Larry se
aproximar com um policial a tiracolo. Mordo a língua para não parecer
muito eufórica e levantar suspeitas. É melhor que eu não me mostre tão
desesperada para sair daqui.
Mike troca um olhar com o policial e noto que há uma tensão diferente
no ar. Fico receosa, com medo de que o advogado tenha descoberto alguma
coisa comprometedora.
O ritual de colocar as algemas é feito e eu me sento na cama, esperando
que Michael entre na cela. Ele se coloca à minha frente, no mesmo lugar de
ontem. Reparo que, além da maleta, ele também carrega inúmeras folhas de
papel. Sua expressão não é tão amigável, meu querido advogado está bravo
comigo, o que automaticamente me coloca na defensiva. O que quer que ele
diga, não será bom para mim.
Ele com certeza descobriu alguma coisa.
— Bom dia, Sr. Larry. Você parece mal-humorado — comento, tentando
me manter no papel de boa moça até que eu saiba o que de fato está
acontecendo.
O advogado leva a mão livre ao rosto, passando-a perto da boca. Ele não
sabe como me dizer o que descobriu. É algo ruim. Bom, não dá para nada
ser bom na situação em que estou.
— É o seguinte... — Mike inspira fundo e se aproxima, praticamente
arremessando a papelada em minhas mãos. — Existem treze identidades
que batem com as suas digitais. Treze! Como você conseguiu fazer uma
coisa dessas? Treze identidades! — grita, inconformado com o meu bom
trabalho.
Fiquei solta no mundo durante quatro anos, trabalhando para inúmeras
pessoas diferentes, matando em diversas partes do país. Como manter meu
nome? Impossível. As identidades foram bem utilizadas, mas não vou dizer
isso para Mike. Ele já parece bem perturbado com a novidade que recebeu.
Eu sabia que iria me foder se conseguissem me encontrar no sistema. O
que me resta é levar a situação com sarcasmo. Os momentos de princesinha
acabaram. Me prestar a esse papel não faz mais sentido.
— Adoro esse número — digo, afinal, não é mentira.
Eu nasci dia treze. É um número especial.
Mike fica paralisado, com a boca aberta, quando me escuta. Eu o encaro
com as sobrancelhas erguidas e um esboço de sorriso no rosto, esperando
para ver o que vai fazer.
Ele dá alguns passos para trás, voltando para perto de sua preciosa
parede, balançando a cabeça em negação, como se estivesse indignado
comigo. Vê-lo desconcertado é bem divertido.
— Você tem noção de quantos anos de cadeia uma acusação de falsidade
ideológica vai te dar? — questiona, sem dúvidas achando que não estou sã.
— É menos ou mais do que uma acusação de assassinato? — Minha
pergunta é carregada de ironia e descaso e vem acompanhada de um sorriso
completamente tranquilo.
Diante da minha reação, Mike parece prestes a bater a cabeça na parede.
Ou me bater. Ou sair correndo. Ou gritar comigo para ver se consegue
colocar juízo na minha cabeça. Talvez todas as opções juntas. Ele deve me
achar insana. E não está errado.
— Parece que quanto mais tempo você passa aqui, mais crimes
descobrem que você cometeu — diz, fazendo uma alegação correta pela
primeira vez. Ele não tem ideia do que pode encontrar se souber onde
procurar. — Quem é você? — questiona, perdido em meio a essa história
complicada.
Pobre Mike. Espero, de verdade, que esse não seja seu primeiro caso
criminal. Não quero traumatizar o coitado. Vai que ele desiste da profissão
por minha causa.
Dou um sorrisinho sarcástico ao pensar na melhor resposta que posso dar.
— Alguém com quem você não deveria se meter. — Sou, mais uma vez,
honesta. Não uso um tom frio, nem grosseiro. Tento me manter linear e
deixar os sorrisos sarcásticos de lado para que ele entenda que esse é um
alerta. — Mike, todos os presos têm direito a uma ligação, certo? — indago,
um pouco mais simpática.
A alternativa que me deu esperanças não é mais uma possibilidade. Vou
precisar recorrer às pessoas do meu passado. A uma pessoa, em específico.
— Sim, você tem direito — ele responde com má vontade, claramente
insatisfeito com a interrupção. Não há sentido em discutir minhas
identidades ou o assassinato que cometi.
Não mais.
— Ótimo. Quero fazer minha ligação — anuncio e me levanto, deixando
claro que isso irá acontecer agora.
Cada minuto que passo nesse lugar traz um novo risco. Se eles
descobrirem quem eu sou de fato, terei um problema que vai muito além
dessa delegacia. Tenho inimigos para todo o lado, tanto no meu passado na
agência, quanto na minha vida no crime. Há muito em jogo. Preciso de uma
solução rápida. Não posso perder tempo.
Mike me encara com a boca levemente aberta, ainda não se conformou
com a minha mudança de comportamento, com o fato de eu não aparentar
ter remorso algum do que fiz. A realidade em que estou imersa em nada se
assemelha com a vida que ele deve levar.
— Mike, por favor — peço com a voz um pouco mais carinhosa,
apontando com a cabeça para as grades que me separam da liberdade.
O advogado ainda hesita, fica óbvio que ele não quer fazer o que solicito,
mas, por fim, sai da cela e conversa com o policial que está de guarda,
explicando a ele a situação. Mike não pode negar meus direitos, muito
menos esse policial estúpido, contudo, dá para ver que nenhum dos dois
tem muita vontade de me ajudar. O diálogo demora, me deixando mais
impaciente.
— Eu sei dos meus direitos, viu? Vocês não podem me impedir de fazer
essa ligação.
Os dois me encaram e eu levanto as sobrancelhas para tentar apressá-los.
Não funciona, a conversa ainda demora mais um pouco, fazendo com que
meu coração dispare, tamanha a ansiedade que sinto.
Cada segundo importa.
A cela está entreaberta graças ao diálogo. O espaço é pequeno, mas eu
acho que conseguiria passar, se tivesse tempo. Imagino exatamente a cena:
uma passagem meteórica pela fresta, um soco no rosto de Mike,
nocauteando-o na hora, uma cotovelada no nariz do guarda, seguida de um
furto à sua arma e um tiro em sua perna, para desestabilizá-lo. A delegacia
inteira viria atrás de mim em segundos, mas o treinamento da polícia não
seria páreo para o meu. Eu acho. Considerando que fiquei quatro anos
afastada, sem treinar o suficiente... é, talvez esse plano não seja dos
melhores. O risco de vida é alto. Não ligo de morrer, mas uma morte dessas
seria motivo de piada no inferno.
E é definitivamente para lá que eu vou.
— Senhorita? — Mike pergunta, me tirando do meu devaneio. — O
policial Jenkins vai nos acompanhar na ligação.
Respiro aliviada quando a permissão é concedida. O guarda abre mais a
cela para que eu passe, segurando em meu antebraço com força, para me
conduzir até o telefone. Seu toque aperta minha pele, o olhar de nojo que
me lança durante o caminho me incomoda, traz um desconforto ainda maior
para uma situação que já é uma bosta.
Aproveito o percurso para analisar a planta do lugar onde estou. Fora as
celas vizinhas à minha — todas vazias — há duas salas fechadas e um
banheiro. Não vejo a entrada, mas sei que não é muito longe de onde
estamos. O policial me conduz a um outro corredor, direto para uma sala de
interrogatório. Há apenas uma mesa e duas cadeiras no cômodo, mas ele
não permite que eu sente. O homem praticamente me lança contra a parede,
para que eu me aproxime do telefone. Preciso apoiar as mãos nela para não
me machucar.
Fuzilo o policial, tendo que controlar minha vontade de cortar seu pau
fora. Se ele soubesse quantas vezes eu já fiz isso, não ficaria me afrontando
dessa forma.
— Você tem dois minutos — anuncia, grosseiro.
Quando eu acho que me livrei do filho da puta, ele dá alguns passos para
trás e permanece no cômodo. Vejo que Mike aparece, fica próximo à porta,
os braços na frente do corpo, segurando a maleta enquanto me espera. A
presença dele me traz um certo conforto, entendo que está aqui para se
certificar de que eu usufrua do meu direito como cidadã.
Aceno com a cabeça para ele, agradecendo a ajuda, e me viro para o
telefone. É um aparelho antigo, que nem deve mais ser fabricado. Combina
com essa cidadezinha de merda, com essa delegacia presa no tempo.
Aproximo a mão devagar, pegando o telefone enquanto solto um longo
suspiro.
Teclo os números com rapidez, o som é quase uma melodia, uma música
que vai me livrar do problema em que me meti.
Levo o aparelho à orelha e espero Luke me atender. Penso na nossa
história, em todos os momentos bons que passamos juntos, e rezo para que
ele se apegue a eles, e não ao modo como fui embora. Não sou religiosa,
nunca fui, nem mesmo acredito em nada disso, mas nesse instante, suplico
para qualquer pessoa que queira me ajudar. Luke tem que atender. Luke
precisa me tirar daqui. Luke não pode me odiar a ponto de recusar meu
pedido.
O telefone chama, chama e chama.
Mas ele não atende.
Engulo a vontade de quebrar essa porra de telefone. Coloco-o de volta na
base com certa brutalidade, tentando absorver o que acabou de acontecer.
Luke não atendeu a ligação. Não quis me ajudar. Será que seu número
mudou? Será que não me suporta a ponto de rejeitar uma ligação
desesperada? Pensando bem, como ele vai adivinhar que sou eu? Ninguém
aqui sabe meu nome. A única informação que ele tem é que estão ligando
da cadeia.
Preciso tentar de novo. Essa é minha única chance.
Pego o aparelho novamente, mas o policial surge ao meu lado e segura
meu antebraço, me impedindo de completar o movimento. Encaro o homem
com um desespero latente no olhar, ele sequer se comove.
— Por favor, Jenkins. Deixe-a tentar de novo. Só mais uma vez — Mike
pede, me pegando de surpresa por sua intervenção.
O policial assente devagar, não sem antes apertar meu braço com mais
força, freando o movimento segundos antes de deixar marcas. Minha
vontade é cuspir na cara dele, mas não vou gastar minha energia com
alguém que não vale a pena.
Preciso me focar em Luke.
Disco seu número outra vez. Novamente, imploro para que ele me
atenda. A ligação toca, toca, toca... O pânico me consome. Não sei o que
farei se não conseguir contato com ele. É o único número que nunca
apaguei da mente. É a única pessoa que talvez me salvaria. É o único que
talvez não me odeie tanto.
— Alô? Quem é? — as duas perguntas vêm seguidas, feitas pela voz
suave que tanto me acalentou anos atrás.
A voz que me contou segredos, que sussurrou putarias no meu ouvido,
que disse que me amava incontáveis vezes.
Abaixo a cabeça, sentindo meus olhos se encherem de lágrimas. Meu
coração, o pobre músculo que eu jurava ter parado de funcionar, dói.
Sinto tanto a sua falta, Luke.
Eu não queria ter feito o que fiz.
Mas não havia escolha.
— Sou eu — é o que, na realidade, tenho coragem de dizer.
Não podemos falar muito, não podemos citar nomes, não podemos dar
qualquer indício de quem somos.
Há um silêncio do outro lado da linha. Ouço um breve som de respiração,
se eu bem o conheço, Luke deve estar surtando por ter notícias minhas
depois de tanto tempo.
— Onde você está? — o questionamento sai embargado, é nítido que
Luke está abalado.
Liguei para ele conscientemente, me preparei para o baque de ouvir sua
voz outra vez. Ele sequer imaginou que teria notícias minhas logo hoje.
Luke deve estar trabalhando. Deve estar no meu inferno pessoal, no lugar
onde cresci.
Naquela maldita agência.
— Fui presa em Birghem, na Carolina do Norte. Preciso da sua ajuda. —
Dessa vez, não tenho vergonha de pedir.
Luke vem do meu mundo, sabe que é estritamente necessário que eu saia
daqui antes que descubram quem eu sou, antes que encontrem coisas
estranhas demais sobre mim.
Joy Saroyan é basicamente um fantasma. Ela não pode ser descoberta. Eu
não posso ser descoberta.
— Qual a delegacia? Estou indo para aí. — Luke não hesita, não faz mais
perguntas, entende que o tempo é curto e que cada minuto importa.
Passo as informações necessárias e não nos despedimos. Simplesmente
desligo com a certeza de que ele está vindo me resgatar. Vou reencontrar
Lucas Carter depois de quatro anos sem sequer saber como ele estava. Vou
ficar frente a frente com o meu ex-namorado, meu parceiro, com o meu
primeiro amor.
Por favor, que ele não me odeie. Só preciso que ele não me odeie.
Estou há quase dois dias nesse lugar. Não fui transferida, nenhum
superior veio conversar comigo, Mike não apareceu mais, chuto que até
desistiu do meu caso.
Meu destino está, literalmente, nas mãos do homem que eu amei e
abandonei.
Luke me conheceu em uma fase menos corrompida, mas ainda
tremendamente perturbada. Eu já sobrevivia a torturas, sabia atirar melhor
do que todos e não me esquivava de nenhuma briga. Ele se apaixonou pelo
problema que eu era. Luke sempre foi certinho demais. Talvez seja por isso
que combinávamos. Eu era a errada, ele era o exemplo.
O casal perfeito.
Até eu ir embora e não sermos mais nada.
Será que Luke virá mesmo me resgatar?
Depois de tudo o que eu fiz, será que ainda há alguma parte dele que me
ama? Ou agora teremos uma relação de puro ódio?
Diversas dúvidas pairam em minha mente inquieta. É melhor pensar em
Luke do que nas torturas dilacerantes que sofri na infância, então, de certa
forma, curto esse momento. Ando de um lado para o outro, inquieta.
O relógio da parede fora da cela me mostra quando uma hora se passa.
Duas horas.
Três horas.
Quatro horas.
Onde diabos está Luke?
Se ele desistir de me resgatar, como farei para sair daqui?
Sou praticamente um segredo nacional ambulante. Ele seria estúpido o
suficiente para negar meu pedido?
— Ei, garota — um policial solta, acabando com meu devaneio. — Você
tem uma visita.
Minha única reação é levantar abruptamente. Sorrio para o policial, sem
mostrar meus dentes, me sentindo vitoriosa por estar finalmente saindo
dessa prisão tenebrosa.
— Uma visita não vai te salvar — o homem alerta, seu semblante está
preocupado, ainda tentando compreender por que tenho as atitudes que
tenho.
Ele não sabe de nada.
— Veremos — respondo dando de ombros, já apontando com a cabeça
para fora da cela.
Não quero mais passar um minuto sequer nesse lugar.
Depois de me algemar, o policial me segura pelo braço para que eu saia
da cela e, assim como seu amigo do dia anterior, me aperta com força. Se
ele acha que vai me amedrontar, eu lamento. Um apertinho no braço não
arranca caretas de mim. Ele terá que fazer coisa melhor se quiser me fazer
sofrer.
Vamos até o corredor do dia anterior e sou levada na direção de uma das
salas de interrogatório. Percebo que há um vidro do lado de fora e logo
tenho certeza de que eu e Luke seremos observados, possivelmente até
ouvidos.
Ainda bem que nos conhecemos bem o suficiente para conversar em
códigos.
O policial abre a porta para que eu possa entrar na sala. Estou tão focada
no fato de que irei sair daqui que não paro para pensar em Luke. Só me dou
conta de que o estou vendo depois de ficarmos quatro anos sem nos
encontrarmos, quando ficamos frente a frente. Ele está em pé no canto da
sala, andando de um lado para o outro, exalando impaciência. Quando
percebe que há outras pessoas no mesmo recinto, que estamos respirando o
mesmo ar depois de tanto tempo, ele fica estático.
Eu também paraliso, sem saber lidar com as batidas desenfreadas do meu
coração. Não fazia ideia de que ele ainda podia bater desse jeito, que eu
ainda sabia sentir.
Luke está idêntico. O cabelo castanho está penteado para trás, com
alguns fios rebeldes escapando, dando um ar sexy, de um cara certinho que
sabe ser despojado. A barba, que ele não tinha antes, agora cobre parte do
seu rosto. Ele não está usando seus habituais ternos, fez questão de vir com
uma calça jeans e uma camiseta escura, o mais neutro possível, para que
ninguém desconfie que ele tem um trabalho importante. Os olhos castanhos
estão focados diretamente nos meus. Eu não desvio o contato, não consigo
parar de encará-lo, tenho que fazer um esforço enorme para não sair
correndo e abraçá-lo.
Entretanto, Luke não parece pensar o mesmo. Não trocamos uma palavra
sequer, mas sinto que ele quer se manter distante. É de se esperar, visto tudo
o que fiz. Mesmo assim, sua rejeição dói. Ele é uma das únicas pessoas no
mundo que tem o poder de me ferir.
Para não mergulhar nessa ferida, me apego ao fato de que ele se apressou
para vir até aqui. Sei que não foi somente por minha causa, o fato de eu
saber muito sobre a agência tem um grande peso, mas, mesmo que eu me
iluda, prefiro pensar que, se fosse qualquer outra pessoa, ele não teria vindo
tão rápido.
O policial leva meu braço para trás do meu corpo para me guiar até a
cadeira. O movimento dói, não é nada insuportável, mas também não é
agradável. Fico irritada pela agressividade desnecessária desses filhos da
puta, cheia de vontade de dar um chute no meio de suas pernas. Espero que
Luke tenha alguma reação diante do modo como o homem me joga na
cadeira, mas ele não reage.
Ajeito minha postura, tentando arrumar o cabelo, mesmo com as mãos
algemadas. Enquanto isso, o policial se retira da sala, mas mantém a porta
aberta e permanece logo ali, pronto para escutar a conversa. Troco mais um
olhar com Luke, que entende que teremos que ser cautelosos ao extremo.
Ele puxa a cadeira e se senta à minha frente. Agora, há apenas uma mesa
nos separando. Minha mente maliciosa não deixa de imaginar o quanto
seria gostoso se ele, ao invés de olhar para mim com essa cara feia, me
fodesse em cima dessa mesa. Eu poderia ficar com as pernas abertas para
ele, apenas recebendo suas estocadas fortes, enquanto gememos alto e
curtimos o espaço apertado e proibido. As algemas nem precisariam ser
tiradas. Poderíamos brincar com elas. Consigo pensar em inúmeras
utilidades para esse lindo acessório.
— Oi — ele fala, sua voz me trazendo de volta para a realidade.
É reconfortante ouvir uma pessoa conhecida, depois de tanto tempo
afastada da minha antiga vida.
— Oi.
O silêncio recai sobre nós. Temos muito a dizer, mas não podemos falar
nada, não aqui. Há apenas uma coisa que preciso que ele faça.
— Ouvi dizer que você está sendo chamada de “a garota das treze
identidades”. É uma bela nomeação. Combina com você. — Luke me
surpreende ao começar o assunto.
Ao menos nesse quesito, estamos alinhados. Vamos falar somente sobre a
minha situação.
— Estou adorando a atenção e o tratamento que estão me dando —
ironizo. — Mas preciso sair daqui. — Minha afirmação exala desespero.
Quero mostrar a Luke que estou com uma corda no pescoço, prestes a ser
enforcada.
Uma hora ou outra, esses policiais estúpidos vão descobrir coisas que não
devem. Se eles souberem meu verdadeiro nome e encontrarem arquivos
sigilosos por ordens do governo, vou me tornar valiosa. Não duvido que
queiram me usar para conseguir alguma coisa. O que mais existe, nesse
mundo, é gente podre e corrupta. Me manter nessa prisão no meio do nada é
um risco de segurança nacional.
— Eu sei. — Luke não diz mais nada. Fico olhando para ele com as
sobrancelhas erguidas, esperando que desenvolva o assunto. — Mas não
posso te ajudar.
— Como assim?
— Não tenho autoridade.
Sua resposta me deixa desconfiada. Eu costumava saber quando Luke
estava mentindo, mas agora não sei mais dizer. Passamos muito tempo
distantes, ele parece diferente, não consigo ter certeza se está sendo honesto
ou não. O que concluo é que, definitivamente, sua resposta é estranha.
Mesmo quatro anos atrás, quando eu ainda estava na agência, estávamos em
um nível elevado. Tínhamos autoridade para fazer inúmeras coisas. Se Luke
continuou firme em sua carreira, deve estar em um nível ainda mais alto.
Ele não é um agente qualquer.
— Isso não faz sentido. — Minha resposta não o surpreende.
Conheço a agência e suas particularidades bem mais do que ele.
— Ela é a única com autoridade suficiente para te tirar daqui.
Sua frase me fere mais do que um tiro e olha que já levei vários. Um
arrepio percorre minha espinha e domina minha mente. Pensar nela me
deixa completamente deturpada e Luke tem consciência disso. Ele me
conhece, sabe de todos os problemas que tenho com ela. Não entendo por
que está fazendo isso comigo, logo agora que estou suplicando por ajuda.
— Então por que você veio até aqui? Por que ela não apareceu de uma
vez? — questiono, querendo entender seu plano.
Luke é um estrategista. Ele sempre tem um plano.
— Ela ainda não sabe. Eu preferi vir primeiro e verificar a veracidade
dos fatos.
— Duvidou de mim? Acha que eu te ligaria, depois de quatro anos sem
aparecer, se não fosse uma emergência?
— Não acho mais nada. Agora, trabalho somente com fatos
comprovados.
Sua expressão de desdém me deixa irritada. Entendo que o feri
profundamente e blá-blá-blá. Mas precisa desse showzinho todo? Estou na
prisão, porra!
Ele não percebe que é necessário que eu saia dessa bosta de lugar o mais
rápido possível? Acha que é uma boa ideia ficar jogando comigo?
— Tá, que seja. Você já comprovou sua teoria. Dê um jeito nisso. —
Mostro minhas algemas, afogando qualquer sentimento bom que eu tive a
respeito de Luke.
Ele está sendo um cuzão teimoso.
— O controle dessa situação não é seu.
— É seu? — rebato, irritada.
Luke nem altera sua expressão.
— Não. É dela.
Quando acho que a situação vai melhorar, me fodo ainda mais. Eu
gostaria de dizer que prefiro ficar aqui a voltar para o controle dela, mas
não posso. Sou razoavelmente racional quando preciso. Me manter nessa
merda de gaiola é uma péssima ideia. Alguém vai acabar descobrindo que
estou aqui. E esse alguém não vai me deixar sair desse lugar com vida.
— Então fale com ela! — Bato as duas mãos na mesa com força,
esperando que Luke se assuste com minha fúria, como fazia anos atrás.
Ele costumava me temer e me respeitar. Era o cara que me acalmava, que
controlava as loucuras que eu tentava fazer. Em outros tempos, teria pulado
da cadeira ao me ver olhando para ele dessa forma tão incisiva.
Hoje, entretanto, ele não se move. Apenas esboça um tenebroso sorriso
vencedor.
— É ótimo te ver desesperada.
Suas palavras fazem o fogo dentro de mim triplicar. Luke tem um rosto
lindo, mas eu não me importaria de socá-lo. Chutaria sua cara com a maior
facilidade do mundo.
Infelizmente, estou algemada e tem um policial fiscalizando nossa
conversa. Terei que parecer uma mocinha calma.
— Vai se foder! — falo olhando diretamente em seus olhos, tentando
consumi-lo com minha fúria. Luke não se abala, o que só amplifica minha
irritação. — Não acredito que você veio até aqui só para me dizer que não
pode me ajudar.
Deixo minha indignação clara, caso ele ainda não tenha compreendido.
— Não foi bem assim. Eu vim para te avisar que só ela poderia te ajudar.
— Distorce a situação. O rosto bonzinho que eu conheci quando ainda era
uma jovem em treinamento volta a aparecer por alguns segundos.
Porém, tão rápido quanto veio, sua expressão se vai. Ele volta a parecer
pleno e intocável, como se tivesse virado uma chave.
Cadê o Luke que conheço?
Aquele garoto não falaria assim comigo, não me olharia dessa forma tão
fria. Muito menos se levantaria no meio do nosso diálogo, sinalizando que
essa conversa chegou ao fim.
— Espera, você vai embora assim, do nada? — pergunto, indignada. —
Não vai sequer me dizer o que acontece agora? Quanto tempo vou ter que
esperar?
Ele vai simplesmente me deixar apodrecer nesse lugar?
— Não, não vou te dizer nada — fala com uma tranquilidade
perturbadora. Luke fica em pé à minha frente, com a mesa ainda nos
separando, me olhando de cima. Ele quer se sentir superior, precisa
demonstrar que, nessa situação, está acima de mim. Homens e suas sempre
necessárias afirmações de poder. — E sim, vou simplesmente embora. —
Apoia as duas mãos na mesa, fazendo questão de deixar seu rosto próximo
ao meu. — Exatamente do jeito que você fez.
Respiro fundo quando o escuto. Nosso contato visual dura alguns
segundos. Temos uma troca desafiadora, cheia de mágoa e revolta. Dá para
ver que Luke me odeia. Seu corpo me repele. Seu semblante está fechado
para mim. Seu coração, então, deve me achar um demônio.
Isso me mata por dentro? Sim. Tenho sentimentos por ele e pelo que
vivemos, não sou uma rocha sem por cento do tempo. Porém, jamais vou
abaixar a cabeça para um homem. Jamais vou permitir que ele me veja
fraquejar.
Mantenho o contato com firmeza, poderia ficar o dia inteiro o encarando,
piscando somente quando necessário. Luke pode ter achado que venceu só
por ter me estressado, mas, assim como ele, eu também mudei. Estou muito
mais forte agora. Mais fria. Mais impassível. Mais inconsequente. Mais
surpreendente.
Duvido que ele teria coragem de me enfrentar desse jeito, se
estivéssemos em outro ambiente.
Rosno para ele, ameaçando levantar e avançar para batalharmos de fato,
esperando que ele se assuste.
O maldito não pisca.
Seus movimentos são novos e não consigo manipulá-lo como antes. É
desconcertante dividir o controle dessa situação com outra pessoa. É
perturbador não o conhecer mais. É destruidor saber que ele percebe minha
irritação com sua falta de previsibilidade. É um saco ser ainda mais foda do
que eu era, e não conseguir batê-lo.
— Alguém entrará em contato em breve. Enquanto isso, tente manter sua
boquinha linda fechada, entendeu? — murmura para mim, o rosto mais
próximo do que deveria.
Nossas respirações, por pouco, não se entrelaçam.
Eu não me mexo, não paro de encará-lo até que saia da sala e avise o
policial que a visita terminou. Ele vai embora sem sequer olhar para trás.
Assim que tenho certeza de que Luke não está mais me vendo, forço
meus punhos contra as algemas. Sei que não vou conseguir me soltar, mas
gosto da sensação do metal tentando rasgar minha pele.
A dor me traz lembranças horrorosas. Momentos tenebrosos que eu
gostaria de esquecer, mas não posso. Foram essas dores que me deram
minhas cicatrizes. Foram essas dores que me deixaram forte. Foram essas
dores que me tornaram a mulher que sou hoje. E a causadora de todas essas
dores, foi ela.
No minuto em que minha mãe aparecer nessa prisão, terei que voltar. Ela
não me dará escolha.
Estou presa nessa delegacia, mas estarei tão presa quanto na agência.
Meus dias de liberdade, definitivamente, chegaram ao fim.
Já ouvi uma coisa ou outra sobre a Síndrome de Estocolmo. Você é
violentado, abusado e até torturado (no meu maravilhoso caso), e acaba
criando um laço emocional com seu agressor.
Acredito que seja assim que eu me sinta a respeito da minha mãe. Ao
mesmo tempo que sinto pavor só de pensar que vamos nos ver em breve,
sinto alívio. Ela foi a pessoa que mais me machucou, mas também foi a
pessoa que mais me deu amor, ainda que de uma forma completamente
perturbada. E bem distante, diga-se de passagem.
Nossa relação é a definição de complicada. Eu sou fria com ela, ela é fria
comigo. Nós duas juntas somos, literalmente, gelo. A dinâmica mãe e filha
saudável e calorosa acabou aos meus doze anos, quando fomos atacadas
naquele carro. Desde então, estamos presas dentro de um globo de neve,
daqueles que crianças felizes chacoalham quando veem.
Eu nunca chacoalhei um globo de neve.
Mal consigo dormir durante a noite, consumida pela ansiedade, me
perguntando como vai ser encontrar minha mãe depois de quatro anos sem
vê-la. O resto dos sentimentos bons que tínhamos uma pela outra se
deteriorou um pouco antes da minha fuga por causa das coisas que ela me
disse. Não sei o que será de nós agora e essa dúvida me deixa inquieta.
Odeio não saber o que esperar.
Odeio estar me perguntando se ela acha que eu valho tão a pena a ponto
de mostrar as caras em uma delegacia.
Odeio imaginar o quanto ela vai barganhar para me fazer voltar à
agência.
Odeio saber que vou aceitar qualquer coisa, porque preciso urgentemente
sair desse lugar.
Sei lá a que horas da madrugada, desisto de dormir. Reviro na maldita
cama dura, com uma dificuldade extrema de lidar com a angústia que cresce
em meu peito. Nada me distrai nessa cela. Não há nada que acabe com essa
dor emocional que me consome.
Me sinto fraca. Impotente. Sem controle.
Não há nada que eu odeie mais do que uma mistura dessas três
sensações.
Quando quero aliviar minha cabeça, fumo um cigarro, mas a nicotina não
nasce em concreto, infelizmente, então essa não é uma opção.
Durante meu tempo na agência, eu costumava bater em um saco de
pancadas para relaxar. Ou em alguém.
A ideia me parece tenebrosa. Perigosa. Insana. Do jeitinho que eu gosto.
Me sento na cama, abro um sorriso sarcástico para mim mesma e começo
a pensar em como posso irritar o policial que está vigiando minha cela. Dou
uma olhada discreta para trás e percebo que é Jenkins que está de pé,
próximo à parede oposta a grade. Já nos conhecemos e ele já não gosta de
mim.
Excelente.
Levanto de forma nada discreta, fazendo questão de praticamente pular
para fora da cama. O movimento chama a atenção do policial Jenkins, que
acreditava que eu estava dormindo.
— Oi, querido. Tendo uma boa noite? — pergunto, irônica, pronta para
irritá-lo com minhas palavras.
E também com minhas atitudes.
— Volte a dormir, garota — responde, revirando os olhos diante da forma
como ando pela cela.
Arrastando meus pés pelo concreto, acabando com a paz da madrugada
na delegacia.
— Não estou com sono.
Conforme falo, me aproximo mais das grades. Dou um chute nelas só
para fazer graça. Percebo que o barulho do meu calçado em contato com o
metal das grades faz Jenkins dar um pequeno pulo. É discreto, mas dá para
ver seus ombros se movendo levemente, seus pés perdendo um pouco de
contato com o chão.
Chuto a grade mais uma vez, agora usando o dobro de força. Ele cerra os
punhos, começando a ficar nervoso.
— Não importa. Durma — exige, o tom de voz mais grosseiro, a feição
começando a perder a paciência.
Ele não entende por que estou fazendo isso. Não sabe o quanto minha
cabeça é perturbada, o quanto eu sinto uma necessidade insana de matar, de
sentir dor, de ver alguém me temer.
A dor te torna mais forte, é o que ela sempre dizia para mim.
— Vai me obrigar?
— Se precisar, sim.
— Acha que conseguiria me vencer? — jogo a ideia no ar, esperando que
ele morda a isca.
— Acho que você deveria ficar quieta — rebate com a paciência cada
vez menor.
— Não estou com vontade. E eu sou o tipo de mulher que faz somente o
que quer. — Sorrio para ele, mostrando meus dentes perfeitamente
alinhados e brancos.
Sei que sou bonita, posso até ser sedutora e encantadora quando estou
com vontade, mas Jenkins parece imune às minhas táticas maliciosas. Olho
para sua mão esquerda em busca da confirmação que eu precisava.
Ele é um homem apaixonado. Minha noite só melhora.
— Me diga, Jenkins. Como é defender um estuprador?
O policial franze a testa e transfere o peso de uma perna para a outra.
Desconforto. Ótimo.
— Do que está falando, garota?
— Você e seus amigos estão me tratando mal por causa do que eu fiz
com o Tan. Quero entender por quê. — Faço um biquinho com os lábios.
Jenkins não gosta de mim. Já entendeu que sou cínica. Ele é o melhor
oponente que eu poderia querer.
— Estamos no meio da madrugada.
— Não tenho mais nada para fazer. Nem você. — Vou me aproximando
da grade devagar, até que eu esteja agarrando-as. É o mais próximo que
consigo ficar de Jenkins.
— Justiça com as próprias mãos nunca é a melhor saída — responde,
cruzando os braços, se fechando cada vez mais para essa conversa.
Que chato. Terei que jogar baixo.
— Eu acho uma saída bem inteligente.
— É por isso que você está atrás dessas grades e eu estou aqui fora.
Sua rebatida me faz erguer as sobrancelhas. Levo as duas mãos para fora
das grades da cela e as uno para bater palmas, aplaudindo-o pela primeira
resposta inteligente do dia.
Agora podemos conversar como seres humanos capacitados.
— Ah, mas eu não acho que cometi um erro de julgamento tão grande.
Imagine um homem que estuprou uma criança, assediou inúmeras outras
mulheres, talvez tenha até violentado algumas delas, andando solto por aí
por incompetência da polícia. — Tento fazê-lo enxergar a situação pelos
meus olhos. É uma jogada para deixá-lo irritado, mas não deixa de ser
verdade.
Não me arrependo nem por um segundo de ter matado Tan. Ele mereceu.
Eu faria de novo. Gostaria de ter seguido meu plano original e feito pior,
inclusive. Um cara como ele merecia umas doses de tortura no estilo Joy.
— Não é você quem decide o que acontece com ele. As leis existem por
um motivo. — Jenkins segue firme em sua teoria. Percebo, entretanto, que
está ficando cada vez mais incomodado com minhas palavras.
Ele perde a postura perfeita. Coloca o peso do corpo em uma das pernas.
Segura no passador do cinto do uniforme. Move a língua pela boca.
E eu só continuo.
— Pense comigo, Jenkins. — Olho no fundo dos seus olhos, me
preparando para dar minha melhor cartada. — E se a sua mulher fosse a
pessoa atacada por ele?
Ele prende o ar, chocado por eu ter citado a esposa que sequer conheço.
O ser humano é limitado, esquece que acessórios como uma aliança
entregam coisas demais sobre você.
— Não coloque minha mulher no meio desse assunto. — A compostura
de Jenkins se vai. Ele se aproxima da grade, mas ainda fica longe de mim o
suficiente para que eu não consiga tocá-lo, mesmo com os braços para fora
da cela. — Estou falando sério, volte a dormir. — Aponta o dedo em riste
para mim, achando que vai me intimidar.
Mas sou eu que dito o ritmo dessa conversa.
— Pense no Tan com as garras nojentas nela. Puxando o cabelo dela.
Beijando a boca dela. Fazendo com que ela implore por socorro — falo de
forma pausada, usando meu rosto para fazer expressões teatrais e deixá-lo
ainda mais repugnado.
— Cale a boca — pede, já mais próximo de mim, quase ao meu alcance.
Não posso parar agora.
Agarro as grades e fixo meu olhar diretamente no seu.
— Tocando no corpo dela.
— Garota...
Ele está me pedindo para parar. Dizendo que se eu avançar mais um
pouco, não vai mais hesitar. Seus punhos estão cerrados, sua vontade de
partir para cima de mim não para de crescer.
— Levando as mãos dele para os seios dela... — Minha voz soa forte,
mas carregada de podridão.
A cena que recito é horrenda e eu jamais desejaria que sua esposa de fato
passasse por isso. Porém, confesso que ver Jenkins perdendo a linha me
diverte e muito. Ele vai surtar em três, dois, um...
— Cala a porra da sua boca!
O policial se aproxima como um raio. Quando vejo, suas mãos estão no
meu macacão, me puxando para cima através da grade. Meu peito está
colado no metal, meus pés não encostam mais no chão.
A adrenalina me faz abrir um largo sorriso.
— Vai me bater? — questiono, doida para que ele responda sim. —
Porque se quer tentar, abra essa porra de cela e vamos ter uma briga justa.
Faço questão de lançar meu olhar mais alucinado. A oferta está no ar. Só
espero que esse trouxa aceite. Seu rosto vai ficar lindo quando se tornar
meu saco de pancadas.
Jenkins está com as narinas tremendo, os olhos castanhos transbordando
raiva. Suas mãos fortes não me soltam de forma alguma. Eu o irritei o
suficiente para que ele gaste toda a força muscular do seu braço me
segurando.
— Nunca. — A resposta vem acompanhada de um cuspe.
Esse imbecil acabou de cuspir na minha cara?
— Cuzão de merda! — xingo e levo uma das mãos direto para o seu
pescoço.
Jenkins não vê o movimento chegando e cai na minha. Aperto no lugar
certo, usando a força certa, vendo-o perder o ar aos poucos. A sensação de
desespero que toma seu olhar me faz soltar uma risadinha. O problema é
que esse policial de quinta categoria aproveita a vantagem que tem sobre
mim. Através da pegada em meu macacão, ele consegue controlar meu
corpo. A jogada é rápida, o policial me levanta com mais força e bate minha
testa direto na grade. A pancada é forte e faz com que eu diminua a força
que aplico em seu pescoço, mas não me desestabiliza.
Eu dou risada pela tentativa, sempre deixando minha personalidade
sarcástica atrapalhar o foco dos momentos sérios.
Minha mãe sempre dizia que esse é meu pior defeito.
É nela que estou pensando quando Jenkins leva minha cabeça de
encontro a grade mais uma vez.
De repente, minha mão se afasta de seu pescoço. Sinto que estou
perdendo a consciência, mas, antes que eu possa pensar em reagir, tudo fica
escuro.
Abro os olhos devagar quando escuto um barulho conhecido. Parece o
som das botas de salto da minha mãe. Ela sempre gostou de usá-las no dia a
dia, eram quase sua marca registrada. Um modelo preto fechado, com um
cano que vai até a altura do tornozelo e um salto quadrado e baixo para
promover o conforto que um trabalho como o nosso necessita. O quadrado
também ajuda servindo de esconderijo para alguns objetos. Uma dose de
veneno no pé direito, uma faca pequena e afiada no esquerdo. Nunca se
sabe quando se pode precisar de uma arma secreta, foi o que ela me disse
uma vez, em uma de nossas inúmeras lições.
Eu gravei cada uma delas em minha alma, em minha pele, em minha
memória.
E minha memória é boa o suficiente para ter certeza de que as botas que
estou vendo são as de Brenda Saroyan.
Ela não podia ter chegado em um momento pior. Depois de quatro anos
sem me ver, o que minha mãe encontra é uma garota magra, deitada no
chão da cela. Sério, aquele filho da puta do Jenkins vai pagar por ter me
deixado dessa forma. Tudo bem que fui que o provoquei, mas ele não
precisava ter agido desse jeito. Sua covardia não permitiu que me
enfrentasse de frente em uma briga justa. Se tivesse aberto aquela cela, o
final dessa história seria bem diferente. Jenkins ficou com medo de perder a
luta para uma mulher, é fato.
Estou com uma dor de cabeça do caralho e tenho certeza de que há
alguma marca na minha testa que denuncia que andei me aventurando. Meu
corpo dói um pouco pelo baque que levei ao cair no chão com tudo. Ainda
não estou totalmente recuperada da minha briga com Tan. Devo ter
hematomas em lugares inimagináveis, mas, como minha querida mamãe me
ensinou, não posso parar, fraquejar ou permitir que a dor me vença.
Esfrego meus olhos para acordar de vez e apoio as mãos no chão para me
levantar. Não faço careta, apesar de sentir que um trator passou por cima do
meu corpo, deu ré e estacionou em cima da minha cabeça. Tento me
mostrar forte, porque fraquejar diante de Brenda não é uma opção.
Agora que estou de pé, consigo de fato vê-la. No auge dos seus cinquenta
anos, ela está sempre linda, sempre impecável, sempre plena demais para o
peso que carrega nos ombros graças ao seu cargo.
Brenda Saroyan exala poder. Quando chega em qualquer ambiente,
intimida qualquer um com sua beleza, elegância e confiança. Apesar da
iluminação baixa, consigo ver as ondas perfeitas do seu cabelo preto. O
terninho do mesmo tom está alinhado, a bolsa na frente do corpo traz um ar
ainda mais refinado para o visual. Não deixo de reparar que ela está usando
óculos escuros, um detalhe que não consigo deixar passar.
— Acha que consegue esconder seu rosto só por causa desses óculos?
Para mim, é uma completa idiotice achar que isso muda alguma coisa. É
igual o Superman colocar óculos de grau e ninguém mais reconhecê-lo.
Minha mãe não parece surpresa ao perceber que a primeira frase que
dirigi a ela foi uma provocação. A cada dez frases que saem da minha boca,
pelo menos oito são tentativas de tirá-la do sério.
— Você sabe porque estou assim. Ou pelo menos sabia. — Sim, sei. As
câmeras. Ela tenta evitá-las a todo custo, tem o costume de ficar olhando
para baixo o máximo de tempo possível, sempre cobrindo seus olhos, as
vezes até a cabeça, e estudando a angulação das câmeras dos lugares
públicos onde frequenta, para que possa passar a maior parte do tempo no
ponto cego. O melhor, para nós, é sempre viver nas sombras. — Talvez o
tempo fora tenha apagado algumas coisas da sua mente.
— Acho que o tempo fora me fez selecionar as memórias importantes —
rebato, bem mais carinhosa do que sou normalmente.
Odeio ser peão de Brenda, mas é o que temos para hoje. Fuga da prisão
vence o orgulho por um a zero.
— Temos um assunto importante para tratar. Quanto menos tempo eu
passar aqui, melhor — fala, indo direto ao ponto, a voz firme e forte, como
se eu não tivesse jogado indireta nenhuma em seu colo.
— Sempre pensando em você, é claro. — Não resisto e penso em voz
alta.
Se Brenda estremeceu com minha frase, não demonstra. Pelo contrário,
faz questão de me afrontar erguendo o braço e balançando a chave da cela
na minha frente. Encaro o objeto e a olho com desdém, tentando disfarçar
que, por dentro, estou desesperada.
Brenda sabe que tem controle sobre mim e odeio ser controlada. Mas
ainda tenho uma chance de tentar barganhar alguma coisa usando meu
inestimável valor.
— O que você disse a eles? — pergunto, tentando entender como ela
conseguiu, literalmente, carregar minha liberdade em suas mãos.
— Que você trabalha para o governo e estava em uma missão disfarçada.
Demoramos para te localizar, mas agora te encontramos e você não pode
mais permanecer nessa delegacia.
Sua explicação me faz abrir um sorriso sarcástico.
— Revelou sua identidade supersecreta só para me salvar?
— O diretor do FBI me devia um favor — explica e eu não me
surpreendo. — Ele ligou para a delegacia e enviou um pedido judicial de
liberação.
— Então você não sujou suas mãos — constato apenas para deixar minha
percepção escancarada.
Brenda sempre resolve as situações contornando-as.
— Lembre do que te ensinei, querida. É sempre mais favorável ter
pessoas que fazem o trabalho sujo por você. — O tom irônico de sua voz é
tão parecido com o meu que me causa um arrepio.
Todo mundo que nos conhece de verdade diz que somos extremamente
parecidas. Esse pensamento sempre me perturbou, mas, nos últimos anos,
guardei essa teoria no fundo da minha mente para me preservar. Agora, com
ela aqui à minha frente, volto a relembrar as coisas que já vivemos. As
memórias fazem com que eu me feche. Não gosto de ter similaridades com
Brenda.
— Eu lembro de tudo, fique tranquila.
Inclusive das sessões de tortura as quais me submeteu para me fortalecer.
Das inúmeras vezes que me fez agredir minha irmã. Das grosserias que
gritou para mim quando tudo aconteceu com Ethan.
— Quer sair ou não quer? — pergunta, enfática, deixando claro que não
há espaço para discutirmos mais nada.
— Você vai me levar de volta? — Vou direto ao ponto que mais me
interessa.
Quero saber o que ela planejou.
— Acha que vou te tirar daqui para que se jogue no mundo de novo?
Pense bem.
— Eu sei muito, não se esqueça disso. Posso destruir seu império
rapidinho. — Tento usar a única arma que tenho contra ela, imaginando
que, possivelmente, consigo uma vantagem para fazer alguma exigência.
Me deixar solta não é uma jogada inteligente.
— E como você faria isso? Ninguém confia em você dentro desse lugar.
A marca na sua testa te entrega. — Se aproxima da cela e aperta exatamente
o lugar onde está doendo. Não tenho nenhuma reação à sua atitude, sequer
me mexo. Apenas a encaro, buscando ver se há alguma chance de eu vencer
essa batalha.
Apesar dos óculos escuros, consigo dizer, por sua expressão, que não há
nada que eu diga que a convença a me conceder o tipo de liberdade que
quero.
Pelo menos eu tentei.
— Eu volto, mas só se você me restabelecer em minha antiga posição. —
Tento barganhar um pequeno detalhe que fará toda diferença no meu
retorno.
Nem fodendo que ficarei em um nível mais baixo que Luke. Ele se
tornou um filho da puta e vai me infernizar pelo que fiz. Se eu for sua
subordinada, estarei na merda.
— O poder em um acordo está em quem tem algo que o outro quer. —
Ela mostra a chave para provar seu argumento. — Você não tem nada que
eu queira, logo...
Essa maldita chave está causando em nossa discussão. Brenda detém o
poder, sabe disso e está fazendo questão de esfregar na minha cara que
venceu.
— O que você quer que eu faça, então? — Ela sabe que eu me refiro à
agência.
Eu amava o trabalho. O que aconteceu conosco fez com que eu fugisse,
sim, mas isso nunca diminuiu meu gosto pela adrenalina, por resolver casos
e derrubar gente que não presta. Não é à toa que eu passei os últimos anos
fazendo o que fiz. É triste saber que vou voltar em sei lá que posição.
— Só volte — responde, parecendo querer encerrar o assunto o mais
rápido possível.
— Para fazer o quê, exatamente? — insisto. Se Brenda me deixar
responsável por cuidar de burocracias, vou surtar.
— Não temos tempo para discutir detalhes. Qual parte do “precisamos
sair daqui o mais rápido possível”, você não entendeu?
O desespero está nítido para quem quiser ver. Seu corpo está inquieto, ela
não para de olhar para a saída de forma discreta, mostrando para onde quer
ir. Brenda não quer passar mais um segundo sequer nesse lugar.
— Eu te fiz uma pergunta importante. Não vou voltar para ser seu
capacho.
— Quer sair ou não quer? — rebate, levantando as chaves mais uma vez,
bruta e decidida. Meu espaço para barganhar acabou.
Ergo as mãos, me rendendo. Eu perdi essa batalha, não tenho como
argumentar contra a mulher que, além de me conhecer a vida toda e ter me
ensinado tudo o que sei, ainda está com as chaves da minha cela. Minhas
opções acabaram. É hora de sair desse maldito lugar e enfrentar as pessoas
do meu passado.
— Abre essa porra logo. Não aguento mais olhar para o concreto.

Brenda não consegue facilitar nada, então, no momento em que entro em


seu carro, começa a reclamar sobre a roupa que uso. Eu estava na prisão,
usando um macacão horrendo que tive que devolver. Tudo o que me sobrou
foi o vestidinho que eu usava no dia em que matei Tan. É totalmente
indecente e inapropriado para o horário? Para as pessoas mais
conservadoras, sim. Eu estou pouco me lixando.
O problema é que minha cara mãe valoriza muito sua posição na agência
e não quer que ninguém fale sobre mim. Eu entendo, realmente as fofocas
correm em uma velocidade impressionante naquele lugar. Não é a melhor
coisa — para mim e para ela — que eu apareça por lá vestida dessa forma, a
essa hora da manhã.
Apesar de concordar com sua proposta, não gostei da ideia que deu para
resolver essa situação. Brenda me fez revelar onde eu estava ficando
durante minha fuga. Estamos, neste momento, recolhendo os pertences
importantes do meu apartamento provisório.
Me mudei diversas vezes nesses últimos anos. Vivi em apartamentos
alugados, invadi alguns lugares, até mesmo fiquei em mansões de pessoas
que trabalham com coisas que a agência abomina. Minha mãe não tem ideia
de onde me meti, das coisas que vi e fiz para tentar desvendar o mistério
que nos assola desde o dia fatídico em que nosso mundo ruiu. Esse
apartamento, pelo menos, não é tão ruim. Está sujo e bagunçado, mas é
razoável.
— Quantas armas você tem guardadas? — Brenda pergunta quando
termino de reunir todos os brinquedinhos que eu mantinha no apartamento.
A mesa redonda e simples que tenho na sala está cheia de acessórios
divertidos que adquiri ao longo dos anos por meios nada legalizados.
— Cinco. A sexta ficou com a polícia. — O que é uma tristeza, eu
adorava aquela arma. Era pequena e mortal. Igual a mim. — Tenho também
nove facas e algumas doses de veneno espalhadas.
— Pelo jeito você se divertiu bastante — Brenda comenta, erguendo as
sobrancelhas com claro rancor.
Às vezes, eu não a entendo.
É nítido que ela odeia o fato de ter me perdido durante tantos anos.
Porém, nunca consigo decifrar se é a ausência da sua filha ou da sua agente
que a incomoda.
— Você sentiu minha falta? — questiono, buscando uma resposta para as
perguntas que faço dentro da minha mente.
Brenda é pega de surpresa.
Agora que estamos no apartamento, ela tirou os óculos escuros, me
dando a visão perfeita de seus olhos castanhos. No quesito aparência, somos
opostas. Ela tem o corpo mais curvilíneo, apesar de ter a mesma altura que
eu. Seu cabelo é preto e ondulado, o meu tem um tom castanho claro e é
liso, não consigo deixá-lo cacheado nem se eu fizer muito esforço. Os olhos
dela são escuros e os meus, verdes. Entretanto, quando se trata da nossa
personalidade e postura, somos assustadoramente parecidas. Teimosas,
orgulhosas e afrontosas.
— Você sentiu a minha? — ela devolve, astuta como sempre.
Eu gostaria muito que essa resposta fosse simples. Na maior parte do
tempo, adorei estar longe dela e poder fazer o que diabos eu quisesse. Mas
sempre existe aquele momento em que até mesmo uma pessoa
descompensada como eu sente falta da própria mãe. Ainda que essa mãe
tenha feito o que a minha fez.
— Não. — É o que resolvo responder.
Adquiri uma mania de não facilitar nada para ela. Dizer que eu revivo as
memórias boas que temos juntas em algumas noites me sentencia como
fraca e emocionada. Brenda vai julgar e não estou com humor para ser
rotulada de algo que não sou.
— É recíproco — diz, curta e grossa.
— Que bom.
— Ótimo.
A ironia em nossas respostas rápidas deixa óbvio que sentimos, sim, falta
uma da outra. Mas ela não vai admitir, eu muito menos, e vamos continuar
com esse abismo entre nós.
— Já pegou tudo? Tenho uma reunião daqui a pouco, temos que pegar a
estrada. — Brenda confere seu relógio de pulso, um modelo dourado que
chama atenção em meio a tanto preto, com bastante impaciência.
— Claro que você tem uma reunião. — Reviro os olhos com ironia e saio
andando pelo apartamento para conferir se esqueci alguma coisa.
Todas as coisas que eu trouxe da minha antiga casa, quando fugi, foram
descartadas. A única coisa que sobrou foi uma foto, e é ela que começo a
procurar pelo quarto minúsculo onde dormi nos últimos meses. O colchão
está jogado no chão com uma roupa de cama bagunçada. As roupas, que eu
mantinha espalhadas pelo quarto, já foram guardadas em uma mochila. Essa
foto é o único item que denuncia que Joy Saroyan já esteve nesse ambiente.
Levanto o colchão, procuro pelo pequeno rasgo que fiz e puxo a foto de
dentro do estofado. Não me dou ao trabalho de olhá-la, conheço muito bem
a pose que cada membro da minha família fez para que essa fotografia fosse
tirada. Tenho apego a ela não só porque meus pais e irmãos estão nela, mas
porque essa foto foi tirada antes do ataque ao nosso carro, antes de mim e
Alex sermos obrigadas a treinar e nos tornarmos agentes. Nossos sorrisos
são verdadeiros. Somos inocentes. Genuínas. Coisas que jamais voltaremos
a ser.
Estou com a foto na mão quando volto à sala. Percebo que minha mãe
guardou as armas dentro da mochila e agora está usando minhas camisetas
para proteger as facas. Eu me coloco ao lado dela e começo a ajudar para
que possamos sair logo daqui. Preciso apoiar a foto na mesa para ter minhas
duas mãos livres. A imagem faz Brenda parar o que estava fazendo e me
encarar.
— Por que você estava com essa foto? Me diz que não a deixou nesse
apartamento imundo! — Seu tom é mais ríspido, diferente do irônico e seco
que ela usava antes.
Deixei a mamãe brava. Ops.
— Porque me lembra de quando eu era feliz — retruco com todo o
rancor que sinto pelo que ela nos fez passar.
Brenda não altera a expressão.
— Não devia ter deixado algo que revela quem você é perdido nesse
lugar que qualquer um consegue invadir.
Seu sermão é ignorado por mim com muito sucesso. Fico a encarando
por alguns segundos só para provocar, mas depois volto a embrulhar as
facas como se esse diálogo não tivesse acontecido. Brenda deve ter uma
pedra no lugar do coração. Não é possível que ela não se comova ao ver
nossa família dessa forma. Não é possível que ela não sinta culpa pelo que
nos fez passar.
— Você vai para a agência com essa roupa? — indaga com desgosto
outra vez, ainda preocupada com o modo como me apresento.
Olho para minha camiseta azul-marinho e minha calça jeans. Não é meu
melhor visual, os tênis simples e surrados também não ajudam nesse
quesito, mas é o que tenho no momento. Andar glamurosa, quando você
quer passar despercebida, não é uma boa ideia.
— A não ser que você empreste seu cartão e me leve para comprar
outras, sim, vou com essa roupa.
— Para isso, eu preciso confiar em você. — O esboço de um sorriso
irônico que surge em seu rosto fechado me mostra que isso está bem longe
de acontecer.
Terminamos de arrumar as facas e colocamos tudo na mochila. Fecho o
zíper, passo a alça pelas costas e dou uma última olhada no apartamento.
Não tenho apego nenhum a esse lugar, mas não posso negar que esses
últimos meses foram proveitosos. Eu estava sozinha por aí, curtindo minha
liberdade, fazendo o que eu bem entendia, finalmente começando a aceitar
que eu não conseguiria desvendar o mistério que nos cercou quatro anos
atrás.
Agora, tudo acabou. Chegou a hora de Joy Saroyan voltar a usar sua
própria identidade.
— Precisamos limpar suas digitais desse lugar — minha mãe diz, me
trazendo de volta à minha antiga realidade.
Me esconder de câmeras. Treinar loucamente. Cuidar de casos
mirabolantes. Tomar cuidado com todos que me olham e gravam meu rosto.
Viver nas sombras, mesmo trabalhando para o lado “bom”.
Pelo menos uma coisa não mudou. Vou continuar podendo eliminar e
torturar alguns idiotas.
— Podemos colocar fogo — sugiro, pegando o isqueiro que resgatei no
meu quarto. Também encontrei um maço de cigarros, mas não vou fumar
até estar longe de Brenda.
— E chamar atenção? — indaga, querendo fazer parecer que estou sendo
uma idiota por sugerir algo assim. — A equipe da agência virá até aqui —
define, sem dar espaço para que eu diga qualquer outra coisa.
Respiro fundo quando a assisto colocar seus óculos novamente e sair do
apartamento. Aproveito esses últimos segundos para dar meu último suspiro
de liberdade.
A partir de agora, sou novamente Joy Saroyan, agente secreta da
ANDOS, filha da diretora e membro da equipe mais promissora da agência.
E essa identidade, apesar de ser a única verdadeira, nunca será minha
favorita.
No segundo em que desço do carro, noto a magnitude do prédio da
agência. Eu passava mais tempo aqui do que na minha casa, mas nem
sequer reparava no quanto o complexo é grande.
Para chegar na ANDOS, é preciso pegar uma estrada secundária que
pouca gente conhece. Em tese, estamos em Row Fair, Virginia, mas a
cidade de fato fica um pouco distante de onde trabalhamos. O governo fez
questão de deixar um perímetro de sei lá quantos quilômetros sem
absolutamente nada, a não ser a agência. Toda a civilização fica afastada o
suficiente para não saber o que fazemos nesses prédios. Mas isso não
significa que eles não desconfiem que há algo estranho acontecendo.
A ANDOS, sigla para a Agência Nacional de Operações Secretas, foi
criada em 1947 com o objetivo de fazer o que as outras agências não têm
liberdade para fazer. O FBI, a CIA e o Serviço Secreto são conhecidos pelo
público e, de certa forma, seguem a lei. Quando resolvem um caso, levam
os suspeitos a julgamento para que eles sejam condenados. Há muito
acontecendo por baixo dos panos de todas as agências, fato, mas aqui na
ANDOS a brincadeira é um pouco mais perigosa.
Como o nome já diz, nossas operações são secretas, logo, não precisamos
de juízes, prisões e inúmeros processos. Nós fazemos as nossas próprias
regras. Quando as outras agências não conseguem solucionar casos porque
não podem infringir leis, nós entramos em ação. Quando alguém do alto
escalão do governo quer ver alguém morto, nós vamos lá e executamos a
sentença. Quando precisam de informações de alguém perigoso, nós a
conseguimos, não importa o custo. Qualquer trabalho sujo feito em prol do
governo é nossa responsabilidade.
Em resumo, nós temos liberdade para sermos os juízes e decretarmos a
sentença que quisermos. E é isso que sempre tornou esse jogo muito
divertido.
Apesar dos boatos, nenhum civil tem a comprovação de que ANDOS
realmente existe. Ninguém fica sabendo do que fazemos por aqui. A única
pessoa a quem minha mãe se reporta é a Campbell, o Presidente do país.
Ele recebe atualizações sobre o que fazemos semanalmente e, de vez em
quando, nos dá missões que precisamos cumprir com urgência. Tem sido
assim desde que a agência foi criada.
O prédio de Row Fair, onde estamos, é a sede da ANDOS. Há alguns
outros complexos menores espalhados pelo país, mas todos os agentes
precisam se reportar a uma única pessoa.
Brenda Saroyan. Minha mãe. Diretora da ANDOS há mais de vinte e
cinco anos. Famosa por ser a pessoa mais impiedosa e cruel que já passou
pelo cargo.
Acho que agora fica claro porque minha vida é do jeito que é.
Brenda não espera por mim. Começa a andar na direção do prédio
principal, esperando que eu a siga. Demoro alguns segundos contemplando
o lugar onde praticamente morei durante boa parte da minha vida.
O complexo é composto por três prédios. Os dois menores têm apenas
doze andares. Um deles serve como um hospital, feito para que possamos
tratar lesões, fazer operações ou até ter um acompanhamento psicológico
para manter nossa sanidade no meio dessa loucura. O outro, que fica mais
próximo do prédio principal, é destinado ao treinamento de recrutas. É lá
que eles moram e treinam durante o processo de entrada na agência.
Por fim, temos o maior de todos, o prédio principal, majestoso com seus
trinta andares envidraçados com um vidro escuro que torna impossível ver o
que acontece no interior do prédio. Esse sim é o local onde os agentes ficam
e trabalham. É onde fazemos nossos treinamentos, estudamos casos,
criamos estratégias, fazemos reuniões.
E é direto para lá que Brenda está indo.
As portas automáticas se abrem no minuto em que ela se aproxima. O
prédio, por dentro, é todo branco e moderno. A recepção é larga, mas só há
uma funcionária para nos atender. Os outros presentes são seguranças que
estão aqui para garantir que os agentes não sejam perturbados em seus
horários de trabalho. Assim que avistam Brenda, eles abaixam a cabeça
para cumprimentá-la. Minha mãe está tão acostumada com o gesto que os
ignora, mas eu faço questão de retribuir pelo menos com um meio sorriso.
É estranho estar aqui de novo. Tudo parece no mesmo lugar, mas eu me
sinto diferente. Não conheço mais todos os seguranças, ninguém sabe
direito quem eu sou. As catracas foram trocadas, o sistema de identificação
agora é feito por meio de uma leitura de pupilas, digitais e finalizada com o
acesso da credencial. O sistema ficou mais duro, buscando evitar uma
invasão. Eu sei muito bem que Brenda foi a autora de toda essa mudança.
Ela já era paranoica, mas depois do que aconteceu antes de eu ir embora,
ficou dez vezes mais.
Aproveito enquanto ela passa pela catraca para olhar o enorme símbolo
no chão. A ANDOS usa uma serpente como insígnia. O círculo no chão tem
o nome da agência escrito na borda preta, e a serpente pintada de vermelho
sangue, com o fundo branco. Ela está mostrando parte da língua, seus olhos
são perigosos, dando a ideia de que pode acabar com qualquer um que fique
em seu caminho.
Combina muito com a vibração desse lugar.
— Ela está comigo — Brenda avisa aos seguranças e à recepcionista.
— Precisamos de um documento dela, Sra. Diretora — a mulher
responde, nitidamente intimidada, querendo cumprir o protocolo na hora
errada.
Brenda me olha e eu nego com a cabeça. Não tenho nada comigo. Todos
os meus documentos ficaram em nossa antiga casa. Em minha fuga, preferi
me tornar outra pessoa. Era mais seguro.
— Eu já disse que ela está comigo. — Brenda repete sem sequer alterar o
tom de voz.
Sua expressão está fechada, sua postura séria, seu olhar dizendo para a
mulher que é melhor obedecê-la, ou enfrentará consequências. Além da
faca e do veneno que carrega na bota, Brenda tem uma arma dentro da
bolsa, uma na cintura — aparente para quem quiser ver — e provavelmente
outra em sua perna. Eu não brincaria com ela.
Se eu já sou cruel, Brenda é dez vezes pior.
A mulher, inteligente, libera a minha entrada. Sigo Brenda até os
elevadores e não resisto em fazer uma piadinha enquanto esperamos para
subir.
— Aposto que ela vai se demitir antes do dia acabar.
Brenda vira a cabeça para me encarar. Seu olhar não é nada amigável.
— Foi só uma brincadeira. Não é como se ela fosse mesmo se demitir por
sua causa. Talvez se demita, mas, bom, se ela fizer isso vai morrer do
mesmo jeito, porque ninguém sai da ANDOS vivo, né? — Percebo que só
estou piorando a situação quando ela ergue levemente as sobrancelhas. Para
a minha sorte, o elevador chega nessa mesma hora e aponto para dentro
dele. — Vamos subir! — digo com uma empolgação esquisita,
desconfortável com minha própria tagarelice.
É assim que uma pessoa nervosa age? Eu estou nervosa por estar de
volta? Consigo sentir algo assim?
Brenda me ignora e entra no elevador primeiro, apertando o botão do
vigésimo quinto andar. A melhor solução seria ficar quieta para parar de
falar merda, mas não consigo me conter.
— Sua sala não é no vigésimo oitavo? — pergunto, buscando entender
como as coisas estão funcionando agora.
— Sim. — Sua resposta é seca, ela sequer olha para mim. Apenas clica
no botão do vigésimo oitavo e se posiciona no fundo do elevador.
Lembro que ela me disse que teria uma reunião e logo compreendo o
cenário.
— Ah, você está me dispensando, claro.
— Eu dirijo esse lugar, Joy. Não tenho tempo de ser sua babá —
responde com a rispidez habitual e abre a bolsa para pegar seu celular.
Faço questão de ficar no lado oposto da caixa metálica, bem longe dela.
— Que delicada — murmuro para mim mesma, mas em um tom alto o
suficiente para que ela escute.
Vejo que seus dedos param de digitar durante alguns segundos. Adoro a
sensação de feri-la, de incomodá-la com meus comentários ácidos. Sinto
que é uma forma de acertar as contas entre nós.
O elevador sobe com rapidez, mas nem sua velocidade alta faz esse
momento ser menos desagradável. Não tenho uma relação boa com Brenda
há anos. Ficar sozinha com ela por muito tempo me deixa angustiada.
Tenho para mim que temos isso em comum. Nós não ficamos confortáveis
uma com a outra. Ela tem seu celular para se distrair, mas eu não tenho
nada. Preciso ficar encarando o visor que mostra os números crescendo,
demorando para chegar em meu destino final. Bato os dedos contra o metal
do elevador, odiando estar parada, odiando estar neste lugar, odiando não
saber o que vai acontecer daqui para frente.
Odiando não estar no controle.
— A sala do Luke é no vigésimo quinto andar — Brenda solta de
repente, erguendo seu olhar na minha direção.
O movimento dos meus dedos é freado no mesmo momento.
— Sério? Vai me obrigar a enfrentá-lo?
Ela dá de ombros, ainda segurando o celular, doida para voltar a digitar
suas mensagens, ler seus e-mails e ignorar a presença de sua filha.
— Você pediu ajuda para ele. Deve ao menos agradecer por ele ter me
contatado. Caso contrário, você ainda estaria na prisão. — Brenda tenta
bancar a voz da razão, mas acaba me dando a munição perfeita para mostrar
minha insatisfação.
— Você se engana se acha que não vivo em uma prisão.
Brenda suspira ao ouvir minha resposta.
— Você irá conviver com o Luke todos os dias. Se resolva com ele —
ordena, claramente cansada de me aturar.
Não vou mais discutir sobre esse assunto. Vou até a sala de Luke avisar
que voltei e agradecer a ajuda. A ideia não é ruim, vai servir para que eu
possa entender exatamente como ele se sente ao meu respeito. Vamos ver se
meu querido ex continua com a marra que mostrou na delegacia, agora que
estamos em um ambiente onde posso atacá-lo de igual para igual.
— O que eu farei o dia todo? Você não me disse qual vai ser minha
posição, se vou poder pegar algum caso, torturar alguém ainda hoje...
— Joy!
— Brenda? — devolvo com desdém. — Só quero saber o que você quer
de mim. Ficar parada me deixa estressada e você não vai querer que eu te
arrume problemas no meu primeiro dia de volta, vai? — Pensar que a única
coisa que tenho para fazer hoje é possivelmente brigar com Luke Carter não
me agrada. Preciso preencher o resto dos minutos do dia ou vou pirar.
— Tenho coisas demais para fazer hoje. Me encontre na minha sala no
final da tarde e conversamos sobre isso — Brenda fala com a rispidez de
sempre, voltando a focar sua atenção no celular.
Quando o vigésimo quinto andar chega, eu saio do elevador sem olhar
para trás, certa de que Brenda não irá se dar o trabalho de desejar que eu
tenha um bom dia.
Com minha mochila nas costas e a roupa simples, chamo atenção. Os
agentes costumam vir arrumados, seja usando ternos, camisas sociais ou
saltos. A cada passo que dou pelo corredor, me sinto julgada. Deve ter no
máximo dez pessoas trabalhando nas cabines, mas todas deixam o
computador de lado para me encarar. Percebo, pelo olhar chocado de
algumas, que me reconhecem do meu tempo como agente. Ninguém fala
nada, mas eu tenho certeza de que, no minuto em que eu virar as costas, vão
começar a espalhar que estou de volta.
Passo pelo grupo de agentes com a cabeça erguida e marcho rumo a parte
mais reservada do andar. Quatro anos atrás, minha equipe ficava nesses
cubículos compartilhados. Agora, foram promovidos e tem suas próprias
salas, uma ao lado da outra, ou seja, é a equipe que comanda esse andar.
Seus nomes estão gravados em placas de vidro que ficam penduradas nas
portas. Vou passando por cada uma e lendo os nomes das cinco pessoas que
eram como uma família para mim.
Zoey de La Rosa.
Nathan Starffey.
Lucinda Cassidy.
Noah Starffey.
Lucas Carter.
Paro na frente da última porta do lado esquerdo do corredor. Ao lado
direito, há uma porta sem nome, que seria destinada ao sexto agente da
equipe. Eu.
Eles não me substituíram, um detalhe que me enche de esperança. De
fato, achar alguém como eu é praticamente impossível. Entretanto, Zoey,
Lucy, Nate e Noah devem me odiar tanto quanto Luke. Eu os deixei sem me
despedir. Eu fui embora sem dar explicações. Eu passei quatro anos sem dar
notícias. Mereço o gelo que eles com certeza vão me dar.
Se eu quiser voltar para a posição onde estava, terei que batalhar.
Bato duas vezes na porta de Luke, afogando toda a dor dentro de mim
para enfrentá-lo. Tenho uma mochila repleta de roupas e armas. Poderia
fugir de novo e me virar da mesma forma que fiz nos últimos anos. Porém,
de uma forma perturbada e insana, como tudo na minha vida, não sinto
vontade de fugir. Eu me rendi ao pedido de Brenda com facilidade porque,
além de estar na merda e não ter outra opção, no fundo, já estava cansada de
levar aquela vida. Fui criada nessa agência, me tornei quem eu sou dentro
desse complexo. Eu amo e odeio esse lugar na mesma proporção. A relação
que tenho com a agência é quase tão complicada quanto a relação que tenho
com minha mãe. Por muito tempo, ter uma carreira na ANDOS era tudo o
que eu desejava para mim. E a sensação de inveja que consome meu peito é
impossível de ser freada.
Conheci os membros da minha antiga equipe no treinamento de recrutas.
Treinamos juntos, entramos na agência juntos e agora eles têm salas
exclusivas e eu estou com um tênis surrado e armas que comprei de
mafiosos. Sem um lar, sem dinheiro, sem dignidade. É impossível não
sentir que perdi alguma coisa. Que minha vida parou e a deles, não. Quando
eu estava fora, tentava não pensar no que estava perdendo. Agora que estou
aqui a realidade me atinge com força. Não há como fugir desse sentimento.
Bato novamente na porta, tentando a todo custo fazer com que Luke me
receba o mais rápido possível. Minha mente precisa parar de trabalhar.
— Entra! — ele grita, deve estar achando que algum dos agentes de
níveis mais baixos, que trabalham nos cubículos, está vindo informar de
alguma novidade.
Mal sabe ele que é a personificação do seu inferno pessoal que bate à sua
porta.
— Sentiu minha falta? — Entro de forma brusca, escancarando a porta,
fitando-o com meu melhor sorriso sarcástico.
Luke paralisa no lugar, parece até prender a respiração só por ter me
visto. Ele está usando uma camisa azul marinho com os primeiros botões
abertos. Seu rostinho de bom moço está mais fechado, mas ele continua
com essa aura de quem faz tudo certo, sempre age conforme o protocolo e
acata todas as decisões da diretora. Apesar do rostinho, ele era um animal
delicioso na cama. Ainda me lembro das pauladas que me dava, das
maluquices que testamos juntos.
Talvez, agora que ele me odeia, o sexo seja ainda melhor.
— Parece que você viu um fantasma — comento enquanto fecho a porta
atrás de mim, tentando eliminar da cabeça as imagens do meu ex nu.
A sala de Luke não é tão grande quanto a de Brenda, mas seu espaço foi
suficiente para dividi-la em dois ambientes. Na primeira parte, há dois
sofás, um encostado em cada parede, separados por uma mesa de centro de
vidro, onde alguns livros estão apoiados. Mais ao fundo, está a mesa onde
ele está. Seu notebook está aberto à sua frente, um outro computador da
agência está ao seu lado direito, e uma papelada enorme está alinhada à sua
esquerda.
— É porque eu meio que vi. — Pela primeira vez desde que cheguei, ele
fala. Junto com as palavras, movimenta o tronco para trás, apoiando as
costas na cadeira, como se quisesse se manter afastado de mim.
A tentação deve ser grande.
Luke Carter é bonito demais para o seu próprio bem. Ele é um gostoso do
cacete, está sempre arrumado, agora tem uma sala... A mesma vontade que
eu tenho de brigar com ele, tenho de trepar. É difícil esquecer do seu
primeiro namorado, do único cara que conseguiu penetrar a fortaleza que
você criou em volta do seu coração.
— Bela sala. O upgrade foi grande — elogio, sem saber lidar com a
inveja e o tesão que me consomem.
Eu gostaria muito de estar onde ele está. Sinto que eu mereço. Sempre fui
melhor do que ele. Melhor do que todos eles, na verdade.
— É, as coisas mudaram um pouco por aqui — responde com uma
neutralidade que não me agrada.
Prefiro Luke brigando comigo do que me tratando dessa forma.
— Parabéns. Sei o quanto você batalhou por um lugar.
Não minto, estou mesmo feliz por ele ter atingido essa posição. Luke
sempre foi responsável, se dedicou muito no treinamento de recrutas,
tentava se destacar como um agente quando iniciamos oficialmente na
agência. Claro que ser meu parceiro o ajudou, mas ele também merece um
crédito.
— O que você quer, Joy? — questiona, avançando seu tronco para mais
perto da mesa. Ele apoia os cotovelos no vidro e une as mãos, me
encarando com um olhar de julgamento.
— Vim te avisar que voltei. E também agradecer a ajuda, ainda que você
tenha sido um pouco filho da puta. — Apimento um pouco as coisas,
tentando ver se consigo outra reação de Luke.
Não aguento que ele me trate com indiferença.
— Aprendi com você — rebate, esboçando um sorrisinho sarcástico que
quase se assemelha ao meu. — Agora me diga, por que realmente veio na
minha sala?
— Já disse. Para agradecer.
— Te conheço há anos, Joy. Você não é grata a nada e nem a ninguém.
Brenda mandou?
Seu questionamento e seu sutil ataque me irritam. Eu gostava mais de ver
Luke latindo para mim e fazendo tudo o que eu mandava.
— Acha que não sou capaz de engolir meu orgulho e agradecer alguém?
Ainda que esse alguém não tenha, de fato, feito nada — constato,
gesticulando para tentar convencê-lo de que estou certa.
Jamais vou admitir que Brenda me coagiu a vir até aqui.
— Você é a pessoa mais egoísta que eu conheço. Então, não, não acho
que é capaz — debocha, me afrontando de um jeito que eu nunca vi antes.
— Ganhou uma sala e ficou metido?
— Minha namorada desapareceu e passei quatro anos desesperado sem
saber onde ela estava. Sabe como é, esse tipo de acontecimento meio que
muda uma pessoa. — Dá de ombros em deboche, o desgosto por mim
transbordando em seus olhos castanhos.
— Desesperado? Não precisava de tanto. Eu sei me cuidar.
Minha rebatida faz Luke franzir o cenho. Vejo a irritação tomar conta de
seu rosto, até mesmo suas mãos parecem se apertar mais uma contra a
outra. Eu o feri e sinto muito por isso, mas não havia outra escolha. A falta
de arrependimento que demonstro parece irritar Luke, porque ele se levanta
da cadeira bruscamente e aponta o dedo indicador para o meu rosto.
— Você é uma cínica do caralho, Saroyan. — Me chamar de cínica é
quase um elogio. — Passei anos me perguntando se você estava viva ou
morta, porra! — Ele achou mesmo que eu estaria morta? — Parece que
você não consegue pensar nos outros! — Eu fiz essa porra pensando nos
outros, que parte ele não entendeu? — Não tem ideia do que fez com
nossos amigos, com a sua mãe, comigo!
É engraçado como as pessoas enxergam as situações de formas
diferentes. Todos eles devem ter achado minha fuga insana. Mas nenhum
deles estava na minha pele. Era a única escolha.
— Eu não podia ficar aqui.
Luke abaixa o dedo, mas continua irritado, negando com a cabeça.
— Podia, mas não quis. Ficou com medo de enfrentar a verdade, de lidar
com a culpa...
Dou um passo à frente quando escuto suas palavras. Não gosto do
caminho que ele está seguindo.
— Para de falar sobre isso, Carter — demando sem nenhuma delicadeza,
erguendo o mesmo dedo que ele ergueu para mim para enfatizar minhas
palavras.
Luke me encara com uma brutalidade diferente, me deixando, mais uma
vez, incomodada com as mudanças em sua personalidade. Nunca achei que
ele fosse páreo para mim, mas ele claramente não é mais o mesmo homem
que um dia chamei de namorado, o homem com quem dividi a cama e
uma parte da minha vida, então acho bem sábio da minha parte ter
algumas dúvidas sobre o que ele é capaz agora.
— Você não conseguiu salvar seu irmão e nem vai. Precisa aceitar essa
merda e seguir em frente.
Suas palavras são como repetidas facadas em meu peito. Ele não
precisava ter citado Ethan. Qualquer assunto relacionado ao meu irmão faz
com que eu me abale e Luke sabe disso. Se ele foi baixo o suficiente para
citá-lo, vou ser baixa o suficiente para elevar essa discussão.
— Não vou ficar ouvindo sermãozinho de você. — Me aproximo a
passos lentos e calculados, chegando até sua mesa. Coloco as mãos no
vidro, deixando nossos rostos próximos demais. — Você acha que quatro
anos aqui e uma sala legal te fazem ser alguém, Carter? Você é tão
substituível para a agência como qualquer outro. E vou te dar um único
aviso: cite Ethan mais uma vez, e eu arranco a sua língua. E se você sabe
algo sobre mim é que eu não blefo.
Luke lança um sorriso maldoso para mim.
— Chega a ser engraçado. Você sempre falou, julgou e mostrou o seu
desgosto pela forma como a sua mãe é sanguinária e sem escrúpulos, mas
você é exatamente como ela.
Sem pensar, ergo minha mão aberta e dou um tapa forte em seu rosto.
Luke não estava esperando o movimento, muito menos a força que sai de
minhas mãos. O impacto faz com que ele olhe para o lado e leve sua própria
mão até a região da bochecha, tentando neutralizar a dor.
Nós nunca tivemos uma relação de desavenças. Nunca trocamos ofensas,
nunca nos atacamos, nunca fomos grosseiros um com o outro. E nunca
partimos para a violência quando discutíamos.
Acabei de cruzar um limite em nossa relação. Tive uma reação que não
pode ser desfeita.
Que se foda. Ele que começou quando citou Ethan.
— Sai da minha sala — ordena com a voz forte, apontando para a porta
atrás de mim. — Não olhe para mim, não fale comigo e não tente voltar a
ser minha parceira.
Dou uma risada carregada de escárnio.
— Acha que eu quero? — rebato, mantendo meus olhos fixos nos dele.
— Você não sabe trabalhar sem mim.
— Engraçado que eu me virei super bem nesses últimos anos sem você.
No entanto, você não estaria sentado atrás dessa mesa com toda essa pose
se não fosse por mim, Carter.
O peito de Luke sobe e desce com velocidade. Eu não tenho freio,
poderia passar horas e horas discutindo com ele e ainda arranjaria
argumentos. Ele pode me atacar o quanto quiser. Vou sempre ter uma
resposta que o desestabiliza.
— Vai embora, Joy. Some da minha frente ou eu vou...
Seus olhos se perdem nos meus. Eu o desafio, o provoco, o incito a ser
sua pior versão. Mas, mesmo com toda essa vibração caótica entre nós,
ainda sinto nossos corpos se atraírem. Ainda há conexão. Ainda há tesão.
Ainda há uma vontade imensa de relembrarmos os velhos tempos.
Apoio as mãos na mesa novamente, voltando a ficar com meu rosto
muito próximo ao dele. Nossas respirações se misturam. Nosso contato
visual não cessa. Nosso magnetismo ainda está aqui. Forte. Intenso.
Perturbadoramente perigoso.
— Me matar? Me beijar?
Minhas perguntas deixam o clima ainda mais tenso. Os sentimentos de
Luke estão confusos, dá para perceber. Porém, apesar de seu rancor ser
grande, ele ainda assim nunca conseguiria se igualar a mim.
— Nós dois sabemos que você não é capaz de me enfrentar — reforço o
que essa discussão já mostrou.
Meu antigo parceiro e ex-namorado sabe que estou certa. Ele jamais
levantaria a mão para mim da forma que levantei para ele. Luke sabe que,
em uma situação extrema, eu seria capaz de matá-lo. Mas ele nunca foi e
nunca será capaz do mesmo. Luke tem um coração bondoso que bate forte
em seu peito. Eu não.
Ele pode me afrontar o quanto quiser, porém, sempre vou vencer.
— Sai. Agora — ele fala de forma pausada, sem tirar o olhar do meu.
— Eu vou, Luke — cedo, tirando as mãos da mesa e dando alguns passos
para trás, começando a me afastar. — Mas não ache que vai se livrar de
mim tão fácil. Estou de volta. E vim para ficar.
Minha afirmação deixa Luke estático, olhando para mim com a expressão
mais neutra que seu rosto consegue manter.
Saio de sua sala com a sensação de que, uma hora ou outra, nós dois
vamos acabar cedendo e usufruindo desse tesão acumulado. Ele pode me
odiar o quanto quiser, mas a atração entre nós é inevitável, sempre foi.
Com a missão de anunciar minha volta concluída, entro no elevador e
aperto o botão que me levará à cobertura.
Preciso desesperadamente de um cigarro.
Jogo meu grampeador na parede no minuto em que Joy sai da sala. Um
pedaço da tinta fica lascada e o objeto cai destruído no chão, tamanha a
força que uso. Se eu tivesse coragem o suficiente para revidar, não
precisaria descontar minhas frustrações em objetos aleatórios que estão no
meu caminho.
No dia em que eu a visitei na prisão, a vítima foi um porta-retrato onde
havia uma foto de nossa equipe. A imagem, tirada seis anos atrás, retratou
nosso primeiro dia oficial como agentes. Nosso primeiro dia como equipe.
Éramos o time dos sonhos, seis pessoas que se completavam e se
equilibravam de uma maneira única. Vivemos dois anos resolvendo
qualquer caso que chegasse a nós, subindo de nível na agência, ganhando
mais e mais reconhecimento.
Até que ela se foi e deixou um buraco na minha vida profissional e
pessoal.
É por isso que dizem que não é recomendado se envolver com pessoas do
seu trabalho. Quando as coisas dão errado, todos os âmbitos da sua vida
ficam bagunçados, você perde o rumo de inúmeras formas diferentes.
Joy era minha parceria. Eu era o cérebro, ela era a executora. O
estrategista e a atiradora. Formávamos uma dupla e tanto dentro e fora do
trabalho. Tínhamos um relacionamento gostoso, uma coisa real e pacífica
em meio à insanidade da agência. Mas a garota que me fez enxergar o
mundo de outra forma não é a mulher que deu um tapa no meu rosto.
Quatro anos é muito tempo. Tempo o suficiente para trazer uma escuridão
ainda maior para nossos olhos. Joy mudou. Eu também mudei. E mudei por
causa dela.
Joy foi embora da forma mais egoísta possível. Simplesmente
desapareceu sem deixar vestígios e nos deixou preocupados, procurando
por ela, com medo de que tivesse tido o mesmo destino que seu irmão. Eu
sofri por não saber se ela estava viva, passei dias e noites tentando refazer
seus passos, até que Brenda me disse para desistir. Me lembro exatamente
de suas palavras, quando colocou a mão no meu ombro durante uma
madrugada em que eu procurava por sua filha nas proximidades da agência.
“Se a Joy não quiser ser encontrada, ela não será.”
Brenda estava certa.
Em sigilo, eu tentei encontrá-la por mais alguns meses, mas, por fim,
desisti e aceitei que a história que vivemos tinha ficado para trás. Nós não
somos o tipo de pessoa que merece ter um amor. Nossas vidas são instáveis.
Nossas rotinas são perigosas. Nosso relacionamento nos tornava fracos. E
eu não posso ser fraco. Não com minhas atividades dentro e fora da
agência.
Se Joy Saroyan significa fraqueza, preciso me manter longe dela.
Porque se eu ficar por perto, cairei em seus encantos. Ela é uma maldita.
A própria rainha do inferno. Quando me deu aquele tapa ardido no rosto, eu
quis beijá-la. Esse é o tamanho do problema que Joy causa na minha vida.
Não sei como vou fazer para ficar longe dela agora que voltaremos a
conviver todos os dias, mas darei um jeito. Estou determinado a não ceder
de forma alguma, então volto minha concentração para os relatórios que
estava estudando antes da diaba aparecer na minha sala.
Estou prestes a finalizar a leitura de ao menos um deles, quando meu
celular começa a vibrar. É um lembrete de que a reunião que Zoey
convocou começa em cinco minutos.
Respiro fundo e fecho meu notebook com força, sem conseguir controlar
minha irritação ao lembrar desse encontro. Zoey está trabalhando no mesmo
caso que eu e com certeza não tem nada pertinente para compartilhar sobre
ele. Ela quer mesmo é me colocar contra a parede e me perguntar o que sei
sobre Joy. À essa altura do dia, as fofocas já se espalharam e toda a agência
sabe que a filha da diretora está de volta.
Coloco meu celular no bolso assim que me levanto. Não deixo de reparar
que Joy empurrou sem querer uma parte dos papéis que estavam na minha
mesa quando apoiou as mãos no vidro. Reviro os olhos enquanto alinho-os
novamente, odiando a bagunça que ela consegue causar até com folhas de
papel.
Caminho pelo corredor com raiva, atravessando os cubículos dos nossos
agentes auxiliares para chegar ao lado oposto do corredor, onde a nossa sala
de reuniões se localiza. O ambiente é envidraçado, permitindo que eu note a
presença de Zoey e Lucy.
As duas piores pessoas para se encontrar sozinho.
— Meninas — cumprimento-as com a cabeça, fechando a porta com
delicadeza atrás de mim.
Quando me viro para encará-las, recebo olhares duros que me prendem
no lugar onde estou.
Lucy está sentada no móvel dos fundos da sala, com as pernas
balançando no ar devido à sua altura. O cabelo loiro está bagunçado, o
corpo magro inclinado para frente, os olhos azuis me encarando de forma
direta. Ela, pelo menos, é mais sutil do que sua amiga e não parece que vai
me esfaquear a qualquer momento.
Zoey está em pé no lado oposto da sala, escorada em uma parede, me
fuzilando com seus olhos castanhos. Não duvido que ela tire uma das facas
que eu sei que guarda nas mangas de sua jaqueta e atire entre meus olhos.
Eu entendo suas reações, afinal, as duas eram as melhores amigas de Joy
antes dela ir embora.
— É verdade que ela voltou? — Zoey questiona, seus braços estão
cruzados, ela aparenta estar extremamente brava comigo.
Não vou comprar essa briga.
— Nunca começamos uma reunião sem a equipe completa. Hoje não será
o dia em que isso mudará — respondo, andando pela sala para me
posicionar o mais longe possível dela.
No móvel dos fundos, onde Lucy está sentada, há uma máquina de café e
é até ela que vou. Pego um copo descartável, coloco uma cápsula e espero
enquanto meu café é preparado. Sinto que as duas estão fitando cada
movimento que faço e me esforço para não virar para trás. Não quero dar
abertura para que elas façam novos questionamentos. Sei muito bem como
Zoey e Lucy podem ser insistentes quando querem.
O único som da sala vem da máquina de café, então consigo ouvir
quando a porta se abre novamente, anunciando que não estou mais sozinho
com elas. Segundos depois, meu café está pronto e posso virar de frente em
segurança.
Vejo que Nathan e Noah chegaram juntos, uma coisa rara. Os irmãos
Starffey podem ser gêmeos e trabalhar na mesma equipe, mas são
extremamente diferentes. Enquanto Nate é um cara mais autoritário, às
vezes até mandão, e lidera nossa equipe, Noah é mais sensível, simpático e
não gosta tanto de colocar a mão na massa — ou seja, fazer algumas
cabeças rolarem. Apesar das personalidades opostas, no quesito aparência,
os dois são idênticos: brancos, com um cabelo preto curto e alinhado, olhos
azuis claros e muitos músculos, provenientes do tempo que passamos na
academia treinando.
— Agora a equipe está completa — solta Zoey, me alfinetando sem
sequer disfarçar.
Nate olha para mim, me perguntando o que está acontecendo, mas nego
com a cabeça, pedindo que ele deixe para lá. É melhor não incitar uma
discussão entre os dois tão cedo. Por mais que namorem há anos, Nate e
Zoey sempre fazem questão de brigar um com o outro na nossa frente. É
uma situação constrangedora que eu gosto de tentar evitar.
— Bom, Zoey, você pediu a reunião, você começa a falar. O que está
acontecendo? — pergunta Nathan, se fingindo de desentendido.
É impossível que ele não tenha escutado os boatos que inundam os
corredores.
Zoey se distancia da parede, permitindo que consigamos enxergar seu
rosto. Sua aproximação é lenta, demora até que ela chegue na ponta da
mesa. Nate está próximo a mim e Noah, como sempre, se juntou a Lucy,
sua parceira, e está escorado na parede ao lado dela.
— Estão dizendo que a Joy está de volta. Quero saber o que o Luke sabe
sobre isso e porque escondeu da gente que ela entrou em contato. — Zoey é
direta em direcionar a conversa para mim.
A equipe inteira me encara em busca de respostas. Coço a cabeça, uma
velha mania que tenho quando não sei ao certo o que responder. As quatro
pessoas que estão nessa sala junto comigo — exceto Nate, na maior parte
do tempo — se preocupam com Joy. Nós sofremos juntos quando ela foi
embora, ainda que eu tenha ficado pior, por causa da profundidade da nossa
relação. Eles merecem a verdade.
— Ela me ligou da prisão dois dias atrás e pediu ajuda. Era impossível
mantê-la naquele lugar. — Tento justificar meu próprio ato para evitar ser
julgado. Todos têm consciência de que Joy sabe coisas demais.
— O que ela fez para ser presa? — indaga Lucy, curiosa. Ela ainda está
sentada em cima da mesa, com as mãos embaixo das coxas, balançando
suas pernas no ar.
Sempre agitada, sempre com a mente distante, sempre magra demais. Joy
não vai deixá-la em paz quando vir como a amiga está.
— Assassinato — conto.
Nate tenta segurar sua risada, mas não consegue e um som estranho
acaba saindo. Nós o encaramos, ele ergue a mão para pedir desculpa. Deve
estar adorando ouvir que Joy foi parar na prisão.
— Você a resgatou e não nos disse nada por dois dias? — Zoey continua
seu interrogatório, agora com as mãos apoiadas na mesa comprida, o olhar
ainda mais desafiador.
Ela não vai me dar sossego tão cedo.
— Eu contei a Brenda e pedi que ela fosse resgatar a filha.
— Você poderia ter tirado ela de lá, tem autoridade de sobra para isso —
constata Lucy.
— Sim, eu poderia.
— E por que não fez? Por que não interveio por ela? — Lucy questiona,
os braços cruzados, mostrando sua irritação.
— Porque só a Brenda conseguiria trazê-la de volta — Zoey completa o
que eu iria dizer, compreendendo meu raciocínio. — Foi um bom plano —
admite, baixando um pouco a guarda.
Nós somos amigos e eu a amo, mas quando se trata de Joy, ela se torna
uma leoa. Mesmo depois de tudo o que aconteceu, Zoey ainda defende a
amiga com unhas, dentes e facas.
— Ela voltou a ser uma agente, então? — Nathan pergunta, as
sobrancelhas escuras estão erguidas em um desgosto nítido.
— Não sei ao certo. Eu a vi rapidamente e não tive vontade de fazer
muitas perguntas. — Meus amigos acompanharam o quanto mudei e
compreendem que ter Joy de volta, apesar de me aliviar, também me
machuca.
Passei anos desejando que ela voltasse, mas esse sentimento se foi faz
tempo.
— Duvido que Brenda não restitua a posição da própria filha — diz
Lucy, se debruçando na mesa para servir um pouco de café para si mesma,
como se ela não estivesse agitada o suficiente.
— Brenda pode ser dura quando quer — Nate fala em uma tentativa de
trazer esperança para si mesmo.
A diretora da ANDOS é uma das pessoas mais imprevisíveis que
conheço. Não dá para saber como ela vai agir.
— Seria bom se ela a trouxesse de volta. Estamos trabalhando com um
agente a menos há mais de um ano. Luke precisa de uma parceira. — A fala
de Zoey é mais pacífica, ela até se distanciou da mesa, parece ter se
acalmado ao ter certeza de que Joy está mesmo entre nós.
— Pirou? Essa garota não volta para minha equipe nem fodendo! — Nate
se exalta, levantando um dos braços para gesticular e mostrar sua
indignação com as palavras da namorada.
— Nossa equipe, Nathan — ela enfatiza, corrigindo-o.
— Ela abandonou o Luke, Zoey. Feriu nosso amigo. — Nate aponta para
mim. — Você realmente não enxerga o quanto a Joy pode nos prejudicar?
Ela não é leal a nada, nem a ninguém.
A tensão entre os dois é tamanha que o silêncio se torna desconfortável.
Eu olho para Lucy e Noah, esperando que eles digam alguma coisa para
dissolver esse clima péssimo. Como sempre, a dupla fica no muro, sem
querer interceder.
— Estamos nos precipitando. A Joy pisou nessa agência hoje. Não vai
voltar a trabalhar em um estalar de dedos. — Tento ser racional e acalmar
os ânimos de Zoey e Nate.
Meu amigo me olha com escárnio e não precisa abrir a boca para eu
saber o que está pensando. Ele acha que me torno um idiota quando se trata
de Joy. Entendo seu instinto de proteção, Nathan acompanhou meu
sofrimento de perto e tem raiva de Joy por tudo o que aconteceu. Mas eu
não estou defendendo sua volta à equipe, estou apenas constatando que as
coisas não andarão tão rápido. Até porque, apesar de saber que eu e Joy
trabalhamos muito bem juntos, jamais voltaria a ser parceiro dela. É exigir
demais da minha sanidade.
— No minuto em que ela voltar à ativa, vou convocar uma votação para
decidir o retorno dela à equipe — Zoey diz, piorando o que eu estava
tentando consertar.
— Que poder você tem para convocar uma votação? — Nate rebate,
direcionando seu olhar feroz e autoritário para a namorada.
— Você não é um monarca absoluto, Starffey. — Zoey se aproxima,
ficando a menos de um metro de distância dele. Apesar de ser mais baixa,
ela ergue a cabeça e o enfrenta de igual para igual. — Se a maioria quiser a
Joy na equipe, ela vai voltar.
— Tente trazer sua amiguinha de volta, Zoey. Estou ansioso para ver
você falhar — retruca, triplicando a tensão entre os dois.
A noite de sexo vai ser boa.
Noah arranha a garganta, tentando mostrar ao casal que ainda estamos
aqui. Eles se envolvem tanto em si mesmos, que esquecem o mundo à volta.
Zoey percebe o sinal e sorri sem mostrar os dentes para Nate, enfatizando
que essa batalha ainda não terminou. Ela volta a nos encarar e posso jurar
que sua pele negra, de repente, ficou mais brilhante. É quase como se brigar
com o namorado a rejuvenescesse.
— A Joy é o sexto membro dessa equipe e sempre vai ser. Ela esteve
com a gente desde o início e irá cobrir nossa maior fraqueza no momento.
Precisamos de uma atiradora tão fria e impecável quanto ela. — Zoey
discursa em prol da amiga, acreditando firmemente que Brenda irá restituir
sua posição em breve.
Eu também acredito que ela vá, mas confesso que preferiria que nossa
diretora demorasse para tomar uma decisão. Se a votação que Zoey tanto
quer fazer de fato acontecer, teremos um grande atrito na equipe. Tenho
certeza de que ela e Lucy votarão a favor de Joy. Nate vai votar contra,
Noah talvez siga o irmão, nunca sei ao certo o que ele quer. Há grandes
chances do meu voto ser o de desempate, e, independentemente de qual
lado escolher, gerarei uma briga com pelo menos metade da equipe.
— Impecável? — Nate questiona, mas basta um olhar de Zoey para que
resolva não comprar uma nova briga. Acho que a cota de hoje já se
encerrou. — Temos trabalho de verdade para fazer. Vamos voltar para as
nossas salas e esquecer dessa pauta por enquanto.
Zoey ameaça abrir a boca, mas por fim desiste, aceitando a trégua
momentânea. Nathan ainda é nosso líder e tem a palavra final. Se ele
declarou que a reunião está encerrada, temos que acatar e ponto.
Sua namorada é a primeira a sair da sala, não sem antes lançar uma
fuzilada transbordando tesão e ódio para ele. Noah e Lucy vão em seguida,
ela acena de forma discreta para nós dois, Noah sequer nos encara. Estranho
o fato de ele não ter aberto a boca durante a reunião, mas resolvo não
perguntar o que está pensando. Ele também era próximo de Joy, deve estar
apenas chocado com seu retorno.
Dou um tapinha no ombro de Nate antes de passar por ele, me
direcionando à porta, doido para me trancar na minha sala e mergulhar em
relatórios para, de fato, cumprir o que ele pediu. Esquecer a pauta Joy
Saroyan.
Porém, nunca posso ser cem por cento feliz. Nathan segura meu braço
quando já estou quase na porta, me obrigando a olhá-lo.
— Como você está? — pergunta, usando um tom de voz diferente do
qual usava na reunião.
Suspiro, me soltando do seu toque ao entender que não vou escapar dessa
conversa. Nate é meu melhor amigo desde o treinamento de recrutas. Ele
conhece todos os detalhes do meu relacionamento com Joy.
— Como um cara que reencontrou a ex-namorada depois de tanto tempo
deveria estar? — devolvo.
— Se a namorada fosse boa para ele, deveria estar agradecido. Mas nós
dois sabemos que aquele furacão humano está bem longe de ser seu par
ideal.
Dou risada, me divertindo com seu desprezo por ela.
— Estou feliz por ela estar viva e bem, mas é difícil encará-la sem
nenhum rancor — explico um pouco do que sinto, imaginando que Nate vai
entender.
— Ela te destruiu, Luke.
— Eu sei.
— Mas mesmo assim, você ainda a ama. — Sua pontuação me pega de
surpresa. Não respondo. Meu cérebro não consegue processar uma rebatida
rápida, então prefiro ficar calado. — Espero que não esteja cogitando tê-la
como parceira novamente.
Nate está preocupado comigo, mas também está preocupado com meu
voto. Ele não quer Joy de volta e tem dúvidas sobre meu posicionamento.
Eu também tenho dúvidas.
Em um momento de raiva, depois de ter levado um tapa, falei a Joy que
ela não deveria tentar ser minha parceira. Também falei que ela não sabia
trabalhar sem mim, mas a verdade é que eu, apesar de ter me virado nos
últimos anos, sempre trabalhei melhor com ela.
— O fato de você não ter uma resposta concreta me preocupa — meu
amigo constata, pegando no meu ponto fraco.
— Nate, é tudo recente demais. Joy me ligou há poucos dias. Ainda estou
absorvendo a ideia de vê-la novamente. — Tento me explicar, mas a
confusão dentro de mim só me leva a terrenos mais complicados.
Como explicar que a odeio e a amo ao mesmo tempo? Que a ideia de
trabalhar com ela me enlouquece, mas cria uma expectativa que há tempo
não sinto? Que quero fodê-la e matá-la na mesma proporção?
— Essa menina é instável e não te merece — ele continua, firme em me
fazer absorver todo o ódio e deixar o amor de lado.
Seria muito bom se fosse fácil assim.
— Eu sei.
— Então fique longe dela — conclui, simples, entendendo que esse é o
único caminho possível para que eu não caia nas garras de Joy outra vez.
— Esse é o plano — afirmo e Nate devolve o toque amigável em meu
ombro, declarando o fim dessa conversa.
Tentei passar certa confiança para que ele não se preocupe, mas a
verdade é que eu mesmo não confio tanto assim em mim. Não sei se
consigo me manter longe dos encantos de Joy Saroyan por muito tempo.
Ela é um veneno que eu adoro provar.
Uma Joy com tédio é uma Joy que faz besteiras. Por sorte, estou em um
ambiente controlado e a dose de caos é um pouco menor. Em algumas horas
na agência, eu só me infiltrei na academia para treinar, consegui afiar
minhas facas e fumei três cigarros. Eu poderia ter fumado o maço inteiro,
então considero que tenho a situação sob controle. Também não sei quando
terei dinheiro para comprar outro, logo foi uma decisão sábia. Melhor fumar
pouco do que não fumar nada.
Se não fosse pela credencial que roubei de uma agente para fazer tudo
isso acontecer, seria um dia pouco emocionante. Em minha defesa, grande
parte dos andares precisa de uma credencial para ser acessado. Eu não tinha
nada para fazer se não perambular, então precisei cometer um pequeno
furto.
Pelas próximas horas, serei Susan Hoffman, a pobre agente que caiu no
meu papo e não percebeu que eu estava puxando a credencial presa em seu
bolso. Agradeço ao meu tempo fora — e às minhas amigas ladras — por me
ensinarem a roubar sem ser notada.
Aproveito que a hora do almoço está chegando para entrar no elevador e
usar a credencial furtada para liberar o acesso do -1. O primeiro piso do
subsolo fica mais vazio nesse horário, poucos agentes querem fazer um
treino de tiro um pouco antes de comer, o que torna esse o momento
perfeito para o meu retorno triunfal.
Ainda me lembro da primeira vez que atirei. Minha mãe dizia que eu não
podia atirar até completar quinze anos, mas eu nunca fui conhecida por ser
uma garota obediente.

dez anos antes

“O -1 parecia um parque de diversões. Eu treinava desde os meus doze


anos, mas, mesmo dois anos depois, com quatorze, minha mãe ainda não
permitia que eu tocasse em uma arma. Seu impedimento servia como
incentivo para me deixar ainda mais curiosa. Todos os dias, depois do
nosso treino de combate corpo a corpo, eu seguia Kyle até seu andar
favorito.
Ele era parceiro da minha mãe e nos ajudava com os treinos quando ela
estava ocupada demais. Eu gostava da companhia dele porque Kyle era
bem mais bondoso do que Brenda. Ele tentava impedir que nos
machucássemos muito, me freava quando eu extrapolava e repreendia Alex
quando ela era malvada comigo.
Apesar de trabalhar diretamente com minha mãe, Kyle ficava afastado
dela. Sua sala era no -1 e ele ajudava com os treinamentos de tiro, tanto
para os novos agentes, quanto para os antigos.
Todos os dias, eu o observava ensinar outras pessoas a atirar com mais
precisão. Escondida atrás de uma pilastra, trocando de esconderijo quando
necessário, eu movimentava meu braço, tentando copiar suas orientações.
A expectativa para começar essa parte do treinamento me consumia. Eu
queria ser boa e já chegar no primeiro dia sabendo como se segurava uma
arma. Eu queria ser melhor do que Alex.
Melhor do que todo mundo.
Depois de semanas o seguindo, percebi que Kyle me notou. Ele não falou
nada, mas trocamos um olhar discreto enquanto ele ensinava um dos
agentes. Eu imaginei que ele fosse me dedurar, mas o parceiro da minha
mãe mostrou que estava do meu lado e omitiu essa informação dela.
Depois daquele dia, ele dizia as orientações em voz alta, chuto que até
dava informações que os agentes já sabiam, só para que eu escutasse.
Postura. Firmeza. Inspirar, respirar e só depois atirar. Nunca soltar o
gatilho de imediato. Eu gravava cada uma das dicas para poder aplicar
quando tivesse a chance. Ansiava e ansiava por mais e mais conhecimento.
Até que um dia, depois de semanas absorvendo um conteúdo teórico
indireto, cheguei no -1 e encontrei o espaço vazio.
— Onde estão os agentes? — Não me contive e perguntei. Apesar de
nunca termos nos falado, Kyle sabia que eu apareceria ali.
— Dispensei todos. O espaço é nosso pela próxima hora — revelou,
abrindo seu sorriso mais amoroso.
Comecei a pular no lugar, animada para aplicar o conhecimento que eu
havia adquirido. Kyle pediu que eu me acalmasse, seus olhos verdes eram
tão carinhosos e convidativos, que eu obedecia sem pestanejar. Eu sentia,
pela forma como ele me olhava, que se importava comigo.
Era a primeira vez que alguém gostava mais de mim do que de Alex.
Kyle me levou até uma sala onde as armas ficavam. Todos os modelos
estavam ali, desde os maiores e mais ameaçadores, até os pequenos, feitos
para serem usados em situações menos extremas.
— Separei uma para você — ele disse, me entregando uma arma
pequena e prateada. — É uma Sig Sauer — explicou, citando cada
especificação do objeto que se tornaria meu fiel companheiro nos próximos
anos.
Quando minhas mãos tocaram a arma, algo pareceu se encaixar. Eu
esperei muito por aquele momento, estava ansiosa para aprender, para ser
a melhor em alguma coisa. Kyle me guiou até a área de treinamento
enquanto me contava sua história. Ele era o atirador de sua equipe,
quando trabalhava em campo, e recebeu diversas medalhas por sua
precisão impecável nas missões.
Kyle me inspirava de uma forma que ninguém nunca havia inspirado
antes. Eu o admirava, queria ser como ele. Decidi, naquele momento, que
seria a melhor atiradora que a ANDOS já tinha visto.
Nós nos posicionamos de frente para um alvo de curta distância, ele
dizia que era o melhor tipo de alvo para que eu começasse a treinar. Kyle
ficou atrás de mim, alinhou o meu ombro, me mostrou como se segurava
uma arma e pediu que eu tentasse apertar o gatilho.
Com suas orientações delicadas, levei meu dedo ao gatilho e o
posicionei. Devagar, fui apertando-o, até que o disparo aconteceu. Fui para
trás com o impacto, fazendo com que a bala atingisse o teto.
Olhei para Kyle em completo desespero, com medo de que ele me
achasse ruim e desistisse de me ensinar.
— Vamos de novo. Dessa vez, trave seu abdômen. O centro do seu corpo
precisa estar forte para que consiga absorver o impacto do tiro.
Assenti rapidamente, agradecendo por Kyle ser legal e gostar tanto de
mim. Eu era sortuda por ter alguém como ele para me ajudar. Decepcioná-
lo não era uma opção.
Passei a próxima hora atirando sem parar, com Kyle corrigindo meus
movimentos. No final, ele disse que eu tinha talento e combinamos de
treinar pelo menos duas vezes na semana.
Alguns meses depois, eu já conseguia ter uma precisão perfeita usando
armas menores. Estávamos começando a aumentar os tamanhos, mas eu só
tinha quatorze anos e ainda não conseguia segurá-las da forma correta.
Para não me desanimar, Kyle repetia:
— Se mantenha nas menores por enquanto. Elas são pequenas e letais,
como você.
E eu sorria.
Entretanto, nossa alegria durou pouco. Em uma tarde, estávamos tão
imersos no treinamento, que demoramos para perceber que Brenda nos
observava. Quando estabelecemos contato visual com ela, minha mãe
cruzou os braços e fechou o cenho de uma forma que eu nunca tinha visto.
— Kyle, vamos conversar imediatamente — falou, autoritária, não dando
espaço para que ele se explicasse.
— Mãe... — Tentei dizer alguma coisa, mas seu olhar me calou na
mesma hora.
Observei enquanto os dois entravam na pequena sala de Kyle para
discutir. Como a curiosa que eu era, fui até lá na ponta dos pés e me
posicionei abaixo da única janela, em um lugar onde eles não podiam me
ver.
— O que você pensa que está fazendo? — Brenda gritou, eu imaginei que
estava gesticulando com os braços bem abertos, como ela fazia quando
estava brava.
— A Joy tem me seguido até aqui há algum tempo. Ela queria muito
aprender a atirar...
— Foda-se o que ela quer, Kyle! Você não pode simplesmente passar um
tempo com a minha filha e ensiná-la a fazer o que você gosta!
Um silêncio pairou entre os dois depois de que ela levantou a voz. Eu me
encolhi ainda mais, chateada por ter sido a causa da discussão.
— Me desculpe, me exaltei e não pensei antes de falar — disse Brenda.
Eu não entendi por que ela estava pedindo desculpas.
— A Joy está sedenta para aprender. Ela tem talento, Brenda. — Kyle
falava de forma suave, apaziguando a briga entre os dois.
Respirei aliviada, só percebendo que eu estava tensa quando soltei o ar
dos meus pulmões e relaxei os ombros.
— Ela é tão nova — minha mãe comentou, calma.
— Nova para atirar, mas não para espancar a própria irmã?
A frase de Kyle fez meus olhos se encherem de lágrimas. Eu não queria
bater em Alex, mas Brenda me obrigava. Nós tínhamos que treinar uma
com a outra porque todos os outros agentes eram fortes demais e podiam
nos machucar. Ela me batia, eu batia nela. Nossa relação era horrível, mas
os treinos não podiam parar.
Eu precisava me tornar forte.
Kyle estava certo. Não fazia sentido que ela me impedisse de fazer o que
eu mais queria.
Um momento de silêncio tomou o ambiente. Comecei a ficar nervosa,
achando que minha mãe me proibiria de treinar e afastaria Kyle de mim.
Porém, assim como eu e ele, Brenda percebeu que não tinha por que me
fazer parar.
— Tudo bem. Mas ela só pode treinar com você e com armas pequenas.
— Sem problemas, nós já estávamos treinando dessa forma.
Esbocei um sorriso ao perceber que continuaríamos treinando juntos.
Bater na minha irmã não me deixava feliz, mas a sensação de atirar era
inexplicável. Eu me sentia forte, me sentia no controle, me sentia,
finalmente, parte de alguma coisa.
— Ela tem talento mesmo? — Brenda perguntou e eu me empertiguei
novamente, doida para escutar a resposta de Kyle.
— Sim. E muito.”
Passo a credencial de Susan na porta de ferro do -1. O lugar é isolado
acusticamente para que não atrapalhe os outros andares, e fechado como
uma fortaleza para que, no caso de uma invasão, não roubem nossas armas
e munições. A luz fica verde, permitindo minha entrada, e empurro a porta
com o ombro, ganhando visão do meu lugar favorito da agência.
Avisto os poucos agentes que estão espalhados pelas cabines de tiro.
Mais ao fundo, vejo as salas direcionadas às simulações, onde eu treinei até
que ficasse boa o suficiente para trabalhar em campo. Esse lugar continua o
mesmo. Parece ser um dos únicos que não mudou nada.
O conforto que essa constatação me traz é inexplicável. Sou arrebatada
pela sensação de lar. De pertencimento. Aqui no -1, eu me sinto em casa.
Esse foi o lugar da agência onde sempre fiquei bem, onde eu vinha
espairecer, onde aprendi a fazer o que eu mais gosto, onde minha jornada
como atiradora começou.
Um pouco à minha esquerda, está o lugar onde dei meu primeiro tiro.
Mais à frente, a coluna onde eu me escondia quando vinha observar Kyle.
Ando até ela, tocando no concreto, procurando pela marca pequena que eu
fiz com uma faca. Encontro o “J.S.” em minha letra da adolescência,
tateando seu contorno, me lembrando do encanto que eu senti quando
passei a frequentar esse lugar com mais afinco. Revivo os sentimentos bons.
A confiança que adquiri em mim mesma. A sensação de saber que era boa
em alguma coisa. Foi no -1, neste mesmo lugar em que piso agora, que me
encontrei. Onde descobri quem era Joy Saroyan.
Ando precisando me lembrar mais dela, de quem eu era, de quem eu sou.
— Ouvi pelos corredores que você tinha voltado, mas não tive tempo de
descobrir se era verdade. Pensei comigo mesmo “Se Joy estiver mesmo por
aqui, virá até mim”.
A voz amorosa e familiar de Kyle arranca um sorriso sincero que há
tempos não surge em meu rosto. Me viro para encará-lo, vendo, a alguns
passos de distância, o homem que ajudou a formar a pessoa que sou. Os
anos que passamos longe não fizeram mal a Kyle. Ele continua bonitão.
O cabelo está quase totalmente grisalho, algumas rugas que não existiam
antes se apossaram de sua face, mas seus olhos verdes continuam lindos,
seu sorriso segue sendo o mais acolhedor que já vi. O corpo é tão malhado,
que ele acabaria com vários garotos com metade de sua idade sem fazer
muito esforço.
— Kyle!
— Vem cá, minha pequena! — Ele abre os braços, me convidando para
me aproximar.
Dou passos rápidos em sua direção, jogando meu corpo contra o seu.
Kyle me envolve em seus braços, seu aperto forte gritando para mim que
ele nunca mais me deixará escapar.
Esse é o primeiro abraço que recebo desde que voltei.
— Estou tão feliz em te ver — ele diz quando nos separamos.
— Você parece ser o único — falo, deixando minha tristeza nítida.
Luke me tratou mal, Brenda, como sempre, nem quis saber de mim.
Ninguém me deu afeto. E ainda reclamam que eu sou uma pedra de gelo.
Kyle continua segurando minhas mãos, checando como estou. Ele me
conheceu em minha melhor forma. Eu treinava desde os doze anos, fazia
musculação, lutava, praticava treinos funcionais e exercícios práticos de
tiro. Meu corpo magro era cheio de músculos que não consegui manter
durante minha fuga. Nem sempre eu me alimentava da melhor forma, não
tinha lugares para treinar. Tentei me manter forte fazendo flexões de braço
dentro de casa, mas não consegui permanecer da mesma forma. Estou mais
magra, com o rosto mais abatido, cheia de cicatrizes pelo corpo.
Inclusive a maldita marca na testa que recebi hoje de manhã, onde Kyle
está tocando nesse momento, com seu cenho franzido, tentando entender o
que aconteceu. Eu nego com a cabeça para pedir que deixe isso para lá. É
melhor nos focarmos apenas nesse reencontro e esquecer o que ficou para
trás.
— Todo mundo sentiu sua falta, Joy. Dê um tempo a eles. A ferida é
profunda, mas vai cicatrizar. — Ele levanta uma das sobrancelhas, exalando
sabedoria.
Gostaria de acreditar cem por cento na sua teoria, mas não consigo.
Tenho medo de que essa ferida seja do tipo que infecciona, se espalha pelo
corpo e nunca cicatriza.
— É, talvez — respondo para não me mostrar totalmente desanimada e
preocupar Kyle.
Ele leva a mão até a ponta do meu cabelo castanho claro, um gesto
carinhoso que mostra o quanto ele aprecia estar próximo de mim.
— Como está se sentindo em seu retorno?
Suspiro, chateada por ele ser o único que se deu o trabalho de perguntar
como eu estou. Demoro alguns segundos para conseguir reunir tudo o que
sinto e falar em voz alta.
— Confusa. Perdida. Invejosa. Minha equipe inteira parece ter evoluído e
eu fiquei para trás.
— Você não ficou para trás, Joy. Só... evoluiu de maneira diferente. Isso
não é necessariamente ruim.
Suas palavras trazem o conforto que eu preciso nesse momento. Meus
últimos anos foram conturbados e caóticos, mas não dá para negar que
aprendi e muito. Eu evoluí como pessoa, consegui enxergar o mundo fora
desse complexo bonito, vi exatamente como o submundo funciona, adquiri
conhecimentos que nenhum agente tem.
— Você sempre sabe o que dizer. — Agradeço do meu jeito, absorvendo
seu conselho para tentar me sentir um pouco melhor.
— Eu tento. — Dá de ombros, humilde. Um sorriso maroto surge em seu
rosto e sei que Kyle vai me fazer o convite que eu tanto quero receber. —
Acho que você precisa relaxar.
— Ah, é por isso que eu vim até aqui. — Retribuo o sorriso, animada
com a possibilidade de treinar no meu lugar favorito de novo.
— Não foi para me ver? — ele pergunta, me provocando, e eu bato em
seu ombro de leve.
— Isso também — admito. — E aí, posso usar uma cabine?
Kyle olha para o lugar onde indiquei, há vários espaços vagos, apenas
esperando por mim.
— Você tem sorte que sou o responsável por tudo o que acontece no -1,
pequena. — Ouvir o apelido que ele me deu na infância mexe comigo.
Sinto que preciso ser menos durona ao lado de Kyle. Ele não me julga.
Apenas quer o meu bem. — Pode fazer o que você quiser.
— Ótimo. Você está muito ocupado? Preciso de um adversário à altura.
E Kyle Fletcher é o único agente na ANDOS inteira que tem capacidade
para me vencer. Além de ser competitivo e perfeccionista como eu.
— Para você, nunca estou ocupado — responde, virando de costas e
sinalizando para que eu o siga.
Estar aqui, segurar uma arma boa e atirar ao lado de Kyle fazem com que
eu me sinta, pela primeira vez no dia, feliz.
Kyle me venceu duas vezes, o parceiro de Brenda quase nunca erra e
acertou o centro do alvo tantas vezes que eu desisti de tentar competir.
Esses anos sem um treino específico fizeram com que minhas habilidades
diminuíssem. Ainda assim, venço qualquer agente dessa porra de lugar.
Continuo boa, mas preciso trabalhar para me igualar novamente à Kyle. Ou
até, quem sabe, ultrapassá-lo.
Eu poderia passar a tarde toda treinando com ele, mas meu braço já
estava pedindo por um tempo e Kyle disse que tinha coisas para fazer.
Tenho certeza de que inventou uma desculpa porque viu que eu estava
cansada. Ele é assim, nunca gosta de me ver sofrer.
Tão diferente de Brenda...
Hesitei em vir até o refeitório comer alguma coisa. Passei o dia todo sem
nada no estômago, coisa que não é tão anormal para mim, e estava bem.
Entretanto, depois desse treino, minha barriga já está roncando. Me sinto
fraca, e é só por isso que me rendi e resolvi entrar nesse maldito lugar.
O refeitório é um antro de fofoca. É o lugar onde os agentes relaxam, o
único momento do dia em que podem ser pessoas normais e esquecer que
estão tentando caçar bandidos para assassinar. Eu sabia que receberia muita
atenção no minuto em que pisasse por aqui. Vários olhares se dirigem a
mim enquanto me sirvo, até mesmo quando estou de costas, me sinto
observada.
Minha vontade era subir em uma das mesas e gritar bem alto: “Estou de
volta, sim, parabéns por terem notado. Querem olhar, olhem direito,
porra!”. Esse tipo de discurso sempre faz as pessoas se espantarem e
desistirem de incomodar. Entretanto, sei que Brenda ficaria louca se eu
tivesse uma atitude dessas. Ela não gosta que nenhum Saroyan chame muita
atenção.
Eu falho nessa missão boa parte das vezes.
Com minha bandeja em mãos, procuro por um lugar. Costumava sentar
com minha equipe, mas essa não é mais uma opção. Visto a forma como me
olham, também não quero sentar com qualquer outra equipe. Prefiro ficar
sozinha do que ser julgada.
Encontro uma mesa vaga em um dos cantos e é para lá que me direciono.
Quando estou no meio do caminho, sinto alguém apoiar as duas mãos nos
meus ombros, como se quisesse pular nas minhas costas. Seguro a bandeja
com firmeza para não derrubar minha comida e me viro para ver quem é
corajoso o suficiente para me abordar quando não estou vendo nada.
Assim que percebo que é Zoey de La Rosa que está na minha frente,
minha expressão raivosa suaviza. Ela está com um sorriso largo aberto,
reação que acabo imitando.
— Joy Saroyan, da próxima vez que for desaparecer, pelo menos me
avise antes para eu não achar que você está morta!
Seu tom de voz bravo, mas de uma forma brincalhona, me faz ter certeza
de que pelo menos um membro da equipe não me odeia.
— Acha que alguém consegue me matar? — devolvo com meu jeito
habitual, fazendo Zoey sorrir mais ainda.
Ela abre seus braços e entendo o convite. Seguro a bandeja em uma das
mãos para que eu possa ter um braço livre para envolvê-la. Fecho os olhos
com a fraternidade presente nesse gesto.
Após nos soltarmos, ela me diz que está comendo em uma mesa e que
parou apenas para vir atrás de mim. Resolvo segui-la, aceitando a forma
familiar e amena com a qual ela me recebe.
Zoey está ainda mais bonita do que antes. Dá para ver em suas roupas
que ela amadureceu. Antes, minha amiga costumava ter um estilo mais
simples, ainda que colocasse uma coisa mais sensual aqui e ali. Agora,
Zoey está com uma calça social marrom, que combina com sua pele negra,
uma camisa creme e uma jaqueta do mesmo tom da calça. Seu cabelo
crespo está com tranças e aproveito o caminho até à mesa para dizer o
quanto amei o novo visual.
— Estamos aqui. — O fato de Zoey falar no plural me chama atenção.
Assim que tenho a visão da mesa, sinto meu coração disparar, pois era
exatamente ali que nossa equipe se sentava anos atrás. Tínhamos lugares
fixos, gostávamos da rotina de sempre saber onde iríamos nos posicionar. É
incrível como o tempo passa, mas os hábitos não mudam. Zoey se direciona
para seu lugar habitual, que era ao lado de Nate, de frente para mim. Lucy
também está sentada à mesa, no lugar que, teoricamente, era ao meu lado.
Sinto um alívio enorme ao perceber que Luke, Nate e Noah não estão por
aqui.
— Se não é a fugitiva mais procurada desse lugar — Lucy brinca, se
levantando em um pulo para jogar os braços em meu ombro, me
envolvendo em um abraço apertado.
Lucy Cassidy sempre foi mais baixa e magra do que eu, porém, quando
aperto seu corpo, percebo que suas costelas estão saltadas. Até os ossos do
rosto parecem mais aparentes.
Em segundos, consigo perceber que há algo de errado com ela. Contudo,
esse é nosso reencontro, não é hora para levantar qualquer pauta que gere
uma desavença.
— Eu senti falta de vocês — confesso enquanto me sento no lugar que
sempre pertenceu a mim.
— Nós também, Joy — fala Zoey.
— E muito — completa Lucy.
Estendo meus dois braços, um para frente, o outro para o meu lado
esquerdo, para que as duas consigam segurar minhas mãos.
— Estou aqui agora.
Trocamos sorrisos aliviados, retomando a cumplicidade que só amigas de
anos conseguem ter.
Conheci Lucy durante minha adolescência. Seu pai e sua mãe trabalham
na ANDOS e foram membros da equipe da minha mãe, quando ela atuava
em campo. Ambos ficaram possessos quando descobriram que Brenda tinha
colocado as duas filhas para treinar sem dizer nada a eles.
Lucy é um ano mais velha que eu, mas nos demos bem no segundo em
que ela passou a frequentar os treinamentos. Quando chegou a hora de
irmos para o treinamento de recrutas oficial — uma exigência da minha
mãe, já que ela não podia simplesmente nos transformar em agentes sem
que passássemos por essa formalidade — acabamos dividindo nosso quarto
com Zoey. Nossa afinidade não foi imediata, mas, depois de alguns meses
vivendo juntas e trabalhando em prol de um mesmo objetivo, nos tornamos
inseparáveis.
Foi nesse mesmo treinamento que os irmãos Starffey e Luke entraram no
nosso caminho. A conexão que nós seis tínhamos era tamanha, que eu
acreditava que precisávamos nos encontrar. Eu tinha certeza de que o
destino queria que formássemos aquela equipe.
Bem, tinha. Até eu estragar tudo e desestabilizar todo mundo.
— Então, quatro anos é muito tempo. Me atualizem das fofocas — peço,
mostrando a elas que não quero que nada mude, que estou aberta a
retomarmos nossa amizade de onde paramos.
Zoey e Lucy sempre foram tagarelas. Aproveito a vontade das duas em
falar para sanar minha própria fome.
Enquanto devoro a comida, Zoey revela que tentou morar com Nate e
não deu certo. Eles namoram há sei lá quantos anos e são um casal de
merda. Amo Zoey, a considero minha melhor amiga, mas seu
relacionamento com esse imbecil de quinta categoria nunca me desceu.
Nathan Starffey é um puta de um egocêntrico que deve ter um pau de cinco
centímetros. Minha amiga é uma mulher empoderada demais para ficar com
um cara que vive nos anos cinquenta. Porém, por algum motivo bizarro,
essa criatura resolveu se apaixonar por Nate. Vai entender.
— Já pensou que esse pode ser um sinal de que vocês não são para ser?
— pergunto, deixando meu filtro de lado.
Zoey me conhece bem e esperava um comentário do tipo, então apenas
revira os olhos.
— Esquece isso, Joy. Eu e o Nate não conseguimos manter distância.
Somos magnéticos.
O brilho em seus olhos castanhos transborda o amor que ela sente pelo
babaca.
Eu entendo. Também senti isso com Luke, anos atrás.
Com Luke e com outro cara que nenhuma delas sequer pode sonhar que
eu tive uma relação. Se alguém dessa agência souber, estou deserdada para
todo o sempre.
— Agora nós moramos juntas, é bem mais divertido — conta Lucy,
balançando os ombros de forma agitada, me causando, outra vez, um
estranhamento. As pupilas dela parecem dilatadas demais, é quase como se
ela tivesse ingerido cafeína em excesso.
Olho para Zoey, esperando para ver se ela me encara de volta, mas minha
amiga está focada na loira. Parece até fazer esforço para não me fitar,
porque sabe que estou tentando entender o que está acontecendo com Lucy.
É um segredo? Eles não querem que eu saiba que há algo errado? O que
mais eu perdi?
— Isso com certeza não deve prestar — comento, arrancando risadas das
duas.
Nós já aprontamos muito em nossa juventude. O treinamento de recrutas
nos rendeu histórias para uma vida.
— Ah, qual é, a Zoey é praticamente casada. Eu precisava mesmo de
uma amiga solteira para se jogar no mundo comigo — Lucy brinca, mas
não consigo dar risada.
Um clima constrangedor paira na mesa quando ela percebe que fiquei
estranha. Passei anos acostumada a ser solteira, mas agora que estou aqui,
essa nomeação me causa desconforto. Teoricamente, eu nunca terminei com
Luke. Desde que me tornei agente de forma oficial, estamos juntos.
— Desculpe, eu não quis dizer que você está solteira, não quis impor
nada — a loira gesticula, se atrapalhando para falar, por alguns segundos,
sendo a adolescente estabanada que conheci.
Seguro em seu braço para que ela se acalme.
— Eu passei quatro anos fora, fui embora sem avisar ninguém. O Luke
jamais me esperaria por todo esse tempo. Nosso término era inevitável. —
Apesar de ele, de fato, nunca ter acontecido.
Minhas amigas trocam um olhar curioso.
— O que foi? — questiono, tentando entender o que estou perdendo.
— O Luke não é mais o mesmo — diz Zoey, cautelosa de uma forma que
não precisa ser.
Essa história toda dói, mas não me fere profundamente. Sou calejada em
todos os quesitos da vida.
— Eu percebi.
— Não vimos ele com ninguém nos últimos anos. Quando você sumiu,
Luke ficou... — Lucy pausa, sem saber ao certo como continuar. —
Perdido.
— Ele não te superou. — Zoey usa uma seriedade diferente para falar. É
como se ela estivesse me dando um alerta. — Precisou mudar para ver se
tentava te esquecer, mas não conseguiu.
Sou bem inesquecível. Entendo.
— Pelo tamanho do ódio que ele mostrou ter por mim, não acredito que
isso seja verdade — falo, imaginando que elas já sabem que me encontrei
com Luke.
Nenhuma das duas pareceu surpresa por me ver. Conheço minha equipe
bem o suficiente para saber que houve uma conversa sobre o meu retorno.
— A linha entre ódio e amor é tênue, amiga. Lembre-se disso — Zoey
pontua e eu sei que fala por experiência própria.
Ela e Nate vivem em guerra.
— Nós não vamos voltar. Esqueçam — afirmo, certa de que ele jamais
vai querer. Podemos foder gostoso, mas namorar de novo? Sem chance. —
E o resto da equipe? Por que só vocês duas estão almoçando?
— Noah normalmente vem, mas acabou se enrolando em uma pesquisa e
não quis interromper a linha de raciocínio. Ele está cheio de teorias sobre
nosso novo caso — Lucy fala sobre o parceiro e melhor amigo com o
mesmo entusiasmo de antes. Ela confiava nele de olhos fechados. Espero
que isso ainda se mantenha. Assim, posso tentar convencê-lo a revelar o
que diabos está acontecendo com ela.
— Nate e Luke foram treinar, querem descontar as frustrações no ringue.
— Zoey revira os olhos, fica claro que odeia a forma que os dois
encontraram para descarregar a mente. — Nós raramente almoçamos todos
juntos, essa é a verdade.
É triste saber disso. É mais triste ainda saber que tudo aconteceu por
minha culpa.
— Mas agora você voltou, talvez as coisas mudem. Luke não tem uma
parceira, nossa equipe está sem uma atiradora. — A fala de Lucy é
carregada de esperança.
— Nate é bom, mas não é páreo para você.
— Se você, que é namorada dele, está dizendo isso, quem sou eu para
negar? — Dou de ombros, me gabando por meu óbvio talento.
Aquele trouxa do Starffey jamais chegaria aos meus pés. Ele é o líder da
equipe e pode ser bom em comandar e nos direcionar, mas é bem mediano
atirando. Até eu, com quinze anos, atirava melhor.
— Joy sendo Joy — comenta Lucy, dando risada.
Eu acompanho, trocando novos olhares com as duas, adorando esse
momento entre nós.
— Achei que vocês não iam querer sequer conversar comigo. Obrigada
por não me odiarem. Sei que não é uma decisão fácil. — Acrescento um
tom de brincadeira, mas elas sabem que digo essas palavras com
sinceridade.
Esperei tudo, menos que elas me recebessem bem.
— Nós ficamos putas com você, Joy. Mas também entendemos que você
precisava sair daqui e tentar desvendar as coisas por si mesma. — Zoey usa
seu conhecimento sobre mim e sua maturidade para constatar o que estou
tentando fazer todo mundo enxergar.
Se eu ficasse aqui, enlouqueceria e nunca teria paz. Naquela época, eu
não conseguia descansar. Precisava descobrir o que tinha acontecido,
porque eu tinha falhado.
O problema foi que eu não descobri absolutamente nada.
— E te amamos demais para te ver depois de tanto tempo e não querer
um abraço — Lucy acrescenta e esboço um sorriso singelo.
— Ah, como eu quero você de volta na equipe! As coisas precisam voltar
ao que eram! — Zoey reclama, fazendo um biquinho com os lábios.
— É, não sei se isso vai acontecer.
A verdade é que as coisas nunca vão voltar ao que eram antes. Todos nós
mudamos, é impossível que voltemos para o passado.
Meu retorno à equipe talvez seja uma possibilidade, mas precisarei me
esforçar muito para convencer Brenda a retomar minha posição. Ela vai me
fazer pagar pelo meu sumiço e rastejar para recuperar o que perdi. Odeio
jogar seu jogo, mas, dessa vez, não terei escolha.
Se eu quiser me sentir parte desse lugar de novo e continuar triunfando
em algo que sei que sou boa, terei que me submeter a ela.
A operação Joy Saroyan fazendo tudo o que a mamãe quer precisa
começar agora.
vinte e seis anos antes

“— B, precisamos agir agora — Kyle sussurrou na hora mais errada


possível.
Olhei para o lado na mesma hora, encarando-o de uma forma que fazia
todo mundo se calar. Eu era temida por todos. Odiada pela maioria. Vista
como o próprio diabo por muitos. Mas Kyle não me via assim. Nunca viu.
Diante do meu olhar feroz, ele esboçava um sorrisinho e ria.
— Querido, sou sua chefe agora. Demoro o tempo que eu achar
necessário. — Meu tom autoritário veio acompanhado de um riso da minha
parte.
Ficar séria perto dele era um desafio.
— Tudo bem, diretora. Mas se demorar, vamos ser pegos — Kyle apontou
com a cabeça para o homem que tínhamos vindo sequestrar. Ele estava em
um lugar perfeito para o abate.
— Atire. — Dei a ordem e Kyle rapidamente fez o necessário. Atirou
contra a perna do homem, vendo-o cair no chão, imobilizado pelo veneno
paralisante que existia na bala.
— Viu? Deveria confiar mais em mim — ele afirmou, travando a arma e
apoiando-a em seu ombro.
Kyle sempre era bonito, mas quando exalava confiança, ficava ainda
mais. Eu odiava o que ele fazia com meu coração. Eu sabia que ele também
odiava o que eu fazia com o dele.
— Confio em você sempre, am... — Paralisei a frase no meio, tensa por
ter quase o chamado da mesma forma de antes.
Nós não éramos mais aqueles jovens.
Trocamos um olhar dolorido, ambos sofrendo, mas sabendo que não
havia outro caminho. Era difícil me manter tão distante dele. Era difícil ter
sido obrigada a diminuir meu número de missões para que não nos
víssemos com tanta frequência. Era difícil encontrá-lo nos corredores e
precisar fingir que nunca fomos nada além de parceiros.
Se para mim estava difícil, para Kyle era ainda pior. Ele parecia querer
me dizer alguma coisa, mas mudou de ideia ao encarar a enorme aliança
dourada na minha mão esquerda.”

Passei um terço do dia presa em reuniões. O outro terço foi destinado ao


resgate de Joy e, neste último, estou focada em tentar apagar incêndios nas
agências de outros estados.
Sou uma mulher controladora por natureza. Para mim, não é fácil
observar agentes fazendo merda do outro lado do país e não poder chamá-
los em minha sala para que tenham a punição correta. Preciso recorrer aos
subdiretores, que não são tão impiedosos quanto eu.
Na posição em que estou, não posso ter pena ou compaixão por alguém.
Um trabalho mal feito pode custar a vida de muitas pessoas. Nessa agência,
erros não são aceitos.
Todos podem me chamar de fria, sanguinária, diabólica... que seja. Não
me importo. Só eu sei o que é estar nessa posição. Só eu entendo o
significado desse trabalho. Só eu carrego esse fardo nas costas. Ninguém
entende minhas atitudes, mas também ninguém nunca me pergunta se estou
bem, se gosto do que faço, se sou feliz.
A maioria dos agentes me vê como uma rocha inquebrável, não como
uma humana que também tem sentimentos.
Estar no topo é gratificante, mas extremamente solitário.
— Diretora — Ingrid, minha secretária, me chama pelo telefone da nossa
linha interna. — O agente Fletcher está aqui.
O anúncio me faz suspirar em alívio. Fecho o notebook
momentaneamente, sentindo que mereço esse momento de paz em meio ao
caos.
Não fui justa ao afirmar que ninguém pergunta se estou bem. Há uma
pessoa que faz isso sempre que tem a oportunidade.
— Brenda, com licença, te atrapalho? — Kyle pergunta, educado,
abrindo a porta apenas o suficiente para que eu veja seu rosto.
— Você sabe que não precisa pedir licença. — Faço um sinal para que
ele entre e aproveito para empurrar meu notebook para o lado, abrindo
espaço para que eu apoie minhas pernas na mesa.
Cruzo os pés, balançando minhas botas de salto enquanto vejo Kyle se
aproximar devagar, não sem antes dar uma checada nas minhas coxas,
aparentes por causa da posição em que estou.
Um sorriso malicioso se forma em minha boca. Quando ele não retribui o
gesto, percebo que há algo errado.
— O que aconteceu?
— Nada demais. — Kyle apoia as duas mãos na cintura, olhando
rapidamente para o lado, antes de voltar a me fitar.
Nós nos conhecemos há quase trinta anos. Ele acha que me engana?
— Pare de besteira. Não sou boba. Você me chamou de Brenda, pediu
licença para entrar na minha sala... — Tiro minhas pernas da mesa,
entendendo que o clima descontraído não vai prevalecer hoje.
Kyle foi meu parceiro — e ainda é, quando eu raramente saio para
alguma missão — minha vida toda. Ele só me chama pelo meu nome
quando algo o incomoda.
— A Joy veio me ver — revela, erguendo os olhos verdes para encontrar
os meus.
Engulo em seco, me perguntando por que eu pensei que teria um
momento de paz. Joy está de volta. Os momentos de paz acabaram.
— Imaginei que ela pudesse ir até o -1. É o lugar favorito dela —
respondo com certo tato, sabendo que estou pisando em ovos nessa
situação.
— Por que não me contou? — O questionamento vem depressa e me
deixa desconfortável.
É difícil falar sobre Joy com Kyle.
Suspiro, pensando muito bem antes de abrir a boca.
— As coisas aconteceram rapidamente — explico que Luke recebeu uma
ligação dela e logo veio me avisar, contando que tinha dito a ela que só eu
poderia resgatá-la. A princípio, não gostei da ideia. Me expor é algo que
não me agrada, mas eu entendi que, naquele momento, precisava fazer esse
sacrifício. Joy não voltaria se eu não fosse até ela. Minha filha não se
deixaria convencer por qualquer um. Sou a única pessoa que ainda tem um
certo poder sobre ela.
— Uma mensagem seria o suficiente e tenho certeza de que você tinha
tempo para me enviar uma. Gostaria que você tivesse me falado, B. Não foi
legal ouvir uma notícia dessas pelos corredores.
Kyle pode estar revoltado comigo, mas é sempre sereno. Ele nunca se
exalta ou tem atitudes extremas. Essa é uma característica que aprecio.
Porém, vendo por outro lado, também é uma característica que o deixa,
muitas vezes, passivo demais. E pessoas passivas demais, quando
explodem, tendem a fazer estragos.
— Eu errei. Devia ter te contado — falo, simplesmente, tentando
encerrar o assunto.
Ele assente, aceitando meu pedido de desculpas oculto. Dá mais alguns
passos, parando logo em frente à minha mesa. Sua figura alta e potente não
me intimida, pelo contrário. Eu gosto de vê-lo de baixo, de admirar sua
beleza de outro ângulo. Estamos velhos, mas ele continua tão bonito quanto
era em nossa juventude. Particularmente, eu acho que ele está ainda melhor.
Os cabelos brancos são um charme extra.
— A Joy está diferente. Ela está machucada. Por dentro e por fora. —
Sua análise me faz recostar na cadeira, pensativa.
Deixei Joy sozinha o dia todo não só porque eu estava ocupada, mas
porque precisava pensar no que farei com ela. Nosso reencontro me deixou
perturbada. Não só por ela estar diferente — mais magra, cheia de
cicatrizes, com o rosto exibindo nítido cansaço —, mas porque ainda não
me esqueci do nosso último encontro, do momento em que nossa relação
estremeceu de vez.
— Eu notei — respondo, seca, mostrando a ele que não quero dar
continuidade a esse assunto.
Entendo a preocupação dele, Kyle quer sempre tentar proteger Joy com
todas as forças, mas, dessa vez, não há nada que possamos fazer. Ela já é
adulta, tem vinte e quatro anos, e precisa curar as próprias feridas sozinha.
Eu tenho outros problemas para resolver.
O silêncio traz um clima ruim entre mim e Kyle. Trocamos um olhar
diferente, ele parece constrangido; eu estou incomodada com o rumo da
conversa. Sequer me lembro qual foi a última vez que nos estranhamos
desse jeito. Em geral, não temos brigas. Há apenas duas pautas que
estremecem nossa relação.
E uma delas é Joy.
— Desculpe se fui invasivo, eu só...
Ergo a mão para que ele pare de falar.
— Você não foi invasivo, só está preocupado.
— Mesmo assim, me desculpe. Sei que não posso e... — Kyle para a
frase no ar. Olhamos um para o outro ao mesmo tempo. Decidimos, juntos,
não cruzar essa linha. Se citarmos esse assunto, é certo que vamos brigar.
— Preciso voltar ao trabalho — anuncia, apontando para a porta com o
polegar.
Kyle vira de costas antes que eu tenha a chance de responder. Suas costas
curvadas e o olhar baixo me dizem que se chateou com nossa conversa.
Também não estou feliz. Não era bem isso que eu tinha imaginado quando
sua visita foi anunciada.
Por mais que eu esteja frustrada, não sou a pessoa que mais sofreu nessa
situação.
— Kyle. — Chamo com delicadeza e ele se vira parcialmente, me
encarando por cima do ombro. — Você não precisa se desculpar por tudo o
tempo todo.
Meu parceiro esboça um meio sorriso e afirma com a cabeça, entendendo
o que quero dizer. Ainda que eu odeie essa história toda, ele está no seu
direito.
Kyle segue seu caminho, eu permaneço estática, mas com a cabeça
revivendo cenas de um passado que odeio relembrar.
Penso no quanto feri todas as pessoas que amo.
Kyle.
Joy.
Alex.
Ethan.
Bryan.
Na verdade, penso, sou eu que devo desculpas.
A todos eles.

Tenho uma habilidade incrível de me desligar da vida pessoal e me focar


na profissional. Durante o resto do dia, esqueço que Kyle esteve aqui, que o
assunto conturbado entre nós foi quase citado. Me concentro no que precisa
ser feito, no que nasci para fazer.
Se eu não tivesse um marido me esperando em casa, sem dúvida passaria
mais algumas horas trancada dentro da minha sala. Tenho pendências a
resolver e trabalhar me distrai da minha lista de problemas pessoais. Porém,
essa não é a minha realidade. Preciso voltar para casa.
Desligo meus computadores, pego meu celular, deixo a chave do carro
em minha mão e apoio a bolsa no antebraço. Confiro se não deixei nada
comprometedor para trás e, quando me certifico de que está tudo certo, vou
em direção à porta.
Estou prestes a abri-la quando alguém é mais rápido.
Paro bruscamente e levo a mão para a arma presa em minha cintura.
Entretanto, logo percebo que o furacão invadindo a sala é minha filha.
— Joy.
Eu quase havia me esquecido da presença dela.
— Você pediu que eu viesse até sua sala no final da tarde. Aqui estou —
diz, dando de ombros da forma cínica e sarcástica que sempre faz.
Não sei de quem ela herdou esse humor ácido.
— Do que você precisa? — pergunto, checando meu relógio e
percebendo que estou quase extrapolando meu toque de recolher. É assim
que nomeio minha ida para casa, o momento em que eu deixo de ser Brenda
Saroyan, a diretora, e incorporo Brenda Fisher, a esposa.
Bryan vai começar a me ligar se eu não aparecer.
— Ir para casa. Estou cansada de andar sem rumo pela agência. Você
precisa me dar uma função. É um desperdício me deixar parada. — Joy
desembesta a falar e eu travo.
Tenho anos de experiência, mas, mesmo assim, Joy, vez ou outra, ainda
consegue me deixar desconcertada. Eu não só havia me esquecido de sua
presença, como eliminei da minha mente a possibilidade de ela querer ir
para casa. Coloco a culpa em ter ido buscá-la com pressa, preocupada em
vê-la escapar de novo. Eu jamais cometeria um erro desses. Costumo ter um
plano estipulado para tudo.
Terei que contornar essa falha e não há outra forma de fazer isso a não
ser contar a ela parte da verdade.
— Você não pode ir para casa — solto, fitando-a para que perceba minha
seriedade.
— Por que não? — Joy cruza os braços, marrenta e questionadora como
sempre.
Ela não consegue me dar uma folga. Tenho sorte de pelo menos Alex ser
mais passiva. Eu não aguentaria duas filhas como Joy.
— Ainda não contei ao Bryan que você voltou — falo com cautela,
tentando fingir que não há nada demais nessa frase.
— Vamos contar agora, papai vai gostar de me ver. — Aponta para a
porta, achando que essa é a solução para esse problema.
Joy acredita que ele é pequeno, mas não faz ideia de sua magnitude.
— Melhor não. Ele sofreu muito quando você desapareceu. — Minhas
palavras não parecem acalmá-la. Joy está olhando levemente para o lado, do
jeito que faz quando está desvendando algum mistério. Preciso cortar essa
linha de raciocínio antes que ela pense demais. — Vou cuidar disso o mais
breve possível, apenas tenha um pouco de paciência.
Joy não parece convencida, mas, depois de revirar os olhos, resolve
recuar, acreditando nas informações que revelo a ela. Uma hora ou outra, a
verdade virá à tona. Mas, enquanto eu puder segurá-la, irei.
— Por mais que eu goste do sofá da sua sala, não estou com muita
vontade de dormir nele. Não foi por isso que você me tirou da prisão.
— Não fique repetindo que estava presa, esqueça essa história. As
paredes têm ouvidos, você sabe como a agência funciona. — Aproveito
para repreendê-la, Joy fala demais e as pessoas não sabem ficar quietas e
guardar segredos. É melhor que poucos descubram que ela estava presa.
Joy bufa e escuto seu pé bater repetidamente contra o chão. Ela não é
nada paciente.
— Tá, mas onde eu vou dormir? Não tenho documentos, dinheiro, carro
— vai pontuando cada item com um de seus dedos.
Abro minha bolsa, procuro pela carteira e pego todos os dólares que
tenho. Não é muito, mas dá para ela se virar. Entrego o dinheiro em sua
mão e ela me encara com o cenho franzido.
— Sério? Me resgatou para me deixar sem ter onde dormir? —
questiona, ainda incomodada com esse detalhe.
— Você tem vários amigos aqui, não tem? Peça um favor para algum
deles. — Dou a pior ideia do mundo, sabendo que Joy ficará irritada.
Preciso que ela recue para que não tente fazer nenhuma besteira. Jogar a dor
que ela causou em sua equipe me parece a melhor arma.
Joy paralisa, posso quase ver sua garganta se movendo, seu coração
batendo um pouco mais rápido.
— Quem garante que não vou fugir de novo? — indaga, traiçoeira.
As coisas nunca podem ser fáceis com ela. Sempre tenho que criar as
melhores respostas, desenvolver inúmeras saídas e pensar em infinitas
possibilidades. Minha filha não cansa de me mostrar que seu treinamento
deu certo. Ela é boa.
Mas eu sou melhor.
Dou um passo para mais perto dela, cruzando meus braços da mesma
forma, espelhando sua linguagem corporal. Nossos rostos ficam próximos,
mas Joy não se esquiva, não se apavora com a pequena distância entre nós.
— Você percebeu tudo o que perdeu. Não vai fugir de novo.
Estou convicta de que ela não será corajosa o suficiente para voltar a essa
vida solta que tentou levar. Quando Joy fugiu, não fiz esforço em procurá-
la, deixei que ficasse livre e se virasse, para que pudesse ficar com a
consciência tranquila e entender o que eu mesma já tinha entendido.
Nós nunca vamos encontrar Ethan.
Sinceramente, acho que ela já chegou a essa conclusão faz tempo. Porém,
não teve coragem de voltar por vontade própria por vergonha do que tinha
feito. A forma com que ela foi embora foi completamente errada, mas eu
não a julgo. Entendo por que fez o que fez. Eu faria o mesmo se estivesse
em sua situação. O problema é que eu enxergo isso, mas seus amigos não.
Sua equipe inteira evoluiu na vida pessoal e profissional. Se eu bem
conheço a filha que tenho, ela está se corroendo por dentro por ver o
sucesso das pessoas que estavam no mesmo patamar dela. Joy vai batalhar
para recuperar o tempo perdido. Não tenho dúvida.
— Tire essa noite para decidir qual é meu novo cargo. Preciso voltar à
ativa. Não vou ficar andando sem rumo pela agência todos os dias. — Seu
tom de ordem quase me faz gargalhar.
Não o faço, entretanto, porque sinto meu celular vibrar em minha mão.
Mantenho meu olhar no de Joy para que ela não perceba que há alguém me
ligando. Ela conhece a rotina, sabe que Bryan se incomoda se não chego em
casa até um certo horário. Não tenho uma boa justificativa para esses
atrasos, então prefiro evitá-los.
— Esteja na minha sala às nove horas. — Meneio a cabeça para ela e
olho para a porta, perguntando, sem dizer nada, se vai me deixar ir.
Joy dá um passo para o lado e se afasta, mas, antes que eu saia, me
lembro de um detalhe importante que não posso deixar passar.
— Suas armas. Preciso que as descarte naquela caixa. — Aponto para a
caixa de plástico que já deixei separada embaixo da minha mesa.
— Não vou passar uma noite toda desprotegida — rebate, indignada.
Respiro fundo, cansada dessa conversa. Já tive doses demais de Joy hoje.
— Essas armas não são da agência, querida. Não posso deixar que você
ande com elas. — Aproveito e vou até a caixa, pegando-a para que Joy
coloque cada arma dentro dela na minha frente.
Ao perceber que não vou ceder, ela tira a mochila das costas e vai
jogando as armas onde pedi. Confiro o número para ver se ela não deixou
nada passar e coloco a caixa no lugar. Amanhã, darei um jeito de destruí-
las.
— Quer minhas facas também? Talvez as poucas roupas que eu trouxe?
— pergunta, irônica.
— As facas estão limpas?
Eu tenho certeza de que Joy as usou para torturar ou matar alguém.
— Claro, Brenda. Você me ensinou direitinho.
Seu sarcasmo me faz erguer uma das sobrancelhas e negar com a cabeça.
— Boa noite — desejo e tento passar por ela de novo, mas Joy não se
move.
Paro antes que nossos ombros se toquem. É estranho dizer isso, mas,
fisicamente, nós nos repelimos. Faz anos que não nos tocamos. Ela sempre
faz questão de se manter longe de mim e eu acabei decidindo respeitar essa
vontade. Entendo todos os porquês de suas decisões.
— Não consigo dormir sem uma arma por perto. — Sua fala me causa
certo estranhamento. Ela tem inúmeras facas na bolsa, pode matar quem
quiser e como quiser. Não entendo por que precisa especificamente de uma
arma, mas, visto a obsessão que ela tem pelo objeto e o perigo que de fato
corre, resolvo concordar.
De qualquer forma, minhas armas ficam no meu carro durante à noite,
então não é como se eu fosse usá-las. Não posso permitir que Bryan as
encontre.
Tiro a arma que está na minha cintura e entrego a Joy.
— Feliz?
— Muito. Agora sim, boa noite.
Ela dá um passo para o lado e aponta para fora, permitindo que eu saia.
Dou uma última olhada para ela, ainda sem acreditar que está aqui, depois
de tantos anos. Joy é minha filha. Por mais que nossas desavenças sejam
inúmeras, senti falta dela. Acredito que ela também tenha sentido a minha,
apesar de nunca admitir.
Nosso contato cessa quando ela ajeita a mochila nas costas novamente.
Aproveito para sair da sala, sentindo meu celular vibrar outra vez. Espero
que Joy saia para que eu feche a porta, porque eu jamais a deixaria lá dentro
sozinha.
Aceno para Ingrid e vejo que minha secretária começa a conversar com
Joy, dizendo que está feliz por vê-la. Uso essa deixa para disparar pelo
corredor, deslizando o dedo pela tela para atender a ligação antes que Bryan
comece a ficar preocupado.
— Onde você está? — indaga assim que atendo, a voz desesperada,
claramente ofegante.
— Peguei um pouco de trânsito, mas já estou chegando. Fique tranquilo.
Disparo mais algumas palavras de conforto e espero até que Bryan se
acalme para poder desligar. Quando entro no meu carro, tiro cinco segundos
para respirar fundo e restabelecer minha energia.
Viver uma vida dupla é cansativo. Já pensei diversas vezes em parar com
essa farsa, mas, depois do que aconteceu com Ethan e Joy, fiquei sem
opções.
Bryan se tornou um homem preocupado, paranoico e sofrido. Ele não é
mais a pessoa forte que eu conheci. Não posso deixá-lo, nem agora, nem
nunca. Então, incorporo Brenda Fisher, a personagem que eu mesma criei, e
sigo em frente.
Com o dinheiro que minha mãe me deu eu poderia ir para qualquer lugar.
Um motel, uma pousada ou até fugir de novo. As opções são inúmeras,
porém, meu maldito coração renascido me trouxe para o lugar mais
inusitado possível.
Encontrei um morador aleatório entrando no prédio, dei um sorriso
carinhoso para ele, pedindo que segurasse a porta, e ele o fez de bom grado,
mesmo que nunca tivesse me visto na vida. Um inocente estúpido que não
conhece os perigos da vida real. Eu poderia entrar nesse prédio e assaltar
todos os apartamentos com uma facilidade impressionante.
Minha carinha de anjo ajuda, mas o bom coração é a causa da
vulnerabilidade do ser humano. É por isso que as pessoas se fodem. Por
sorte, aprendi muito cedo que é preciso de malícia para sobreviver.
Luke poderia me deixar na rua se eu interfonasse, mas agora que estou na
porta de seu apartamento, fica mais difícil ele me dispensar. É tarde da noite
e sua pobre ex-namorada está sem um lugar para dormir. Por mais que
esteja descontando seu ódio em mim, Luke é uma dessas pessoas que tem
um bom coração. Isso não é algo que você simplesmente muda.
Pressiono o dedo na campainha por alguns segundos, querendo chamar
atenção. O barulho deve estar insuportável do lado de dentro, porque, em
poucos segundos, a porta é aberta.
Luke aparece com uma arma apontada para mim.
— Que indelicado — reclamo, fazendo uma careta de desprezo por sua
atitude.
Até parece que ele atiraria em mim.
Ele não parece surpreso por me ver, o que me leva a imaginar que
instalou alguma câmera em sua porta.
— Como você conseguiu meu endereço? — questiona, irritado, o dedo
próximo demais do gatilho.
Sigo indiferente, mas uso esse breve momento para checar seu abdômen
delicioso. Luke é bonito com qualquer roupa, mas ele fica um pedaço de
pecado sem camisa. Com uma arma na mão e essa cara de bravo, minha
mente vai longe.
— Responde, porra! — insiste, balançando a arma na minha direção.
Como se isso fosse me assustar.
— Achei que você iria perguntar o que vim fazer aqui.
— É minha próxima pergunta.
— Ingrid — respondo, apenas.
A secretária da minha mãe estava com muitas saudades de mim. Dei dez
minutos de atualizações da minha vida para ela e a mulher já estava na
minha mão de novo. Sequer questionou quando eu pedi o endereço de
Luke.
— Preciso de um lugar para dormir — revelo, já adiantando a resposta da
outra pergunta.
Luke solta uma gargalhada sarcástica, finalmente desistindo de me
ameaçar e guardando a arma na cintura.
Sem camisa, com a barba por fazer e armado. Alguém me amarra antes
que eu pule em cima dele.
— Não. Sem chance alguma, esqueça — repete a mesma informação de
várias formas diferentes, adorando enfatizar o quanto despreza minha
presença.
Na verdade, finge desprezar.
— Nem se eu apontar minha arma para você e te obrigar? Sinto que seria
justo, para equilibrar as coisas. — Dou de ombros, esboçando um
sorrisinho.
— Você me deu um tapa. Estamos quites. — Sua resposta carrega um
tom de sarcasmo diferente.
Luke se tornou um bom oponente.
— Agora posso entrar? — pergunto, apontando para dentro de seu
apartamento.
Ele olha para cima, pensando por alguns segundos, mas logo nega com a
cabeça, debochado, e começa a fechar a porta.
Eu a seguro antes que ele complete o movimento.
Com minha mão espalmada na porta e a dele segurando no batente,
travamos um embate. Luke está adorando me enfrentar com seu olhar,
entretanto, se esquece de que sou melhor do que ele nesse jogo.
— Posso ficar a noite inteira te encarando, Carter. Que tal simplesmente
facilitar as coisas e me deixar entrar?
— Também posso, Saroyan. Não sou mais o mocinho bobo que você
manipulou.
Reviro os olhos com lentidão, enfatizando o quanto estou sem paciência
para essa brincadeira.
— Se você precisa ficar afirmando o tempo todo que não é mais o garoto
bom, talvez haja algo de errado.
Luke sequer altera a expressão, mas eu sei que meu comentário o
incomodou. No fundo, ele é só um good boy tentando ser o bad boy.
— Eu não entendo porque, com tantas opções, você tinha que vir justo ao
meu apartamento. Te disse que queria distância, que parte não entendeu? —
indaga, deixando seus sentimentos confusos transparecerem.
Entendo que essa é uma chance de termos uma trégua e resolvo agarrá-la.
Preciso de uma cama e Luke tem uma.
— Eu entendi, mas não aceitei. É impossível ficarmos longe um do outro.
Ele me ignora e dá um passo à frente, ainda com a mão agarrada à porta.
— Você não respondeu. Por que a minha casa?
Ele quer arrancar uma verdade de mim. Entender o que aconteceu com os
sentimentos que eu tinha por ele. As coisas não evaporam em um passe de
mágica quando se tem uma conexão como a que a gente tinha. Fui embora
por priorizar outras coisas, isso não significa que o amor acabou.
— Porque, no momento, você é o lar mais próximo que tenho.
Fixo meu olhar no seu para que ele veja que não estou mentindo. Luke
sempre foi meu ponto de paz. Gosto de acreditar que também fui o seu, mas
hoje, percebo que estou bem longe disso. Sou apenas seu caos particular.
Apesar da leitura que faço, Luke abre a porta e permite que eu entre.
Durante seu movimento, ele olha para baixo, como se estivesse
envergonhado por não conseguir manter a pose de durão por muito tempo.
Resolvo não prolongar o assunto, apenas aceito que ele cedeu e observo o
lugar que agora ele chama de lar. A primeira coisa que reparo é na
organização extrema dos cômodos que estão no meu campo de visão. Há
uma sala pequena ao meu lado direito, com dois sofás, uma poltrona e uma
televisão. Logo atrás de um dos sofás, há uma mesa de jantar de seis lugares
e uma porta de vidro que dá acesso à varanda. É inevitável, acabo abrindo
um sorriso lateral quando vejo que há um espaço aberto onde posso fumar.
Depois do dia de hoje, estou precisando.
— Eu estava fazendo o jantar — Luke explica quando meus olhos param
na cozinha.
Há apenas um balcão que a separa da sala. Uma panela está no fogo, uma
tábua contém alguns legumes em cima e uma faca ao lado.
— Você cozinha agora? — Não resisto e pergunto, me surpreendendo
com minha própria curiosidade.
Luke foi ríspido comigo em nossos últimos encontros, mas agora que me
deu uma pequena abertura, consigo perceber que sinto uma curiosidade
enorme a respeito do que ele fez nos últimos anos.
Imagino que seja recíproco.
— Cozinho, sim. É uma boa distração. — A resposta é crua, fechada.
Não há permissão para que eu siga neste tópico.
Estou prestes a reclamar que ele é um chato, quando Luke volta para sua
posição atrás do balcão, joga um pano de prato no ombro e pega a faca para
picar seus legumes.
Eu não sabia que ver um homem cozinhando era tão sexy.
— Será que posso tomar um banho enquanto você termina? — indago,
sentindo que ele precisa de um momento sozinho.
E estou desesperada por um banho.
Luke assente e sai de trás do balcão para me guiar até seu quarto. Ele não
fala nada, criando uma tensão desconfortável entre nós.
Quase me arrependo de ter vindo até aqui, mas então lembro que Brenda
me dispensou e fiquei me sentindo um lixo. Odiei a forma como ela me
descartou. Odeio que temos que esconder nossas vidas do meu pai. Bryan
não merecia ser deixado no escuro. Terei que inventar uma história muito
boa para explicar por que desapareci por quatro anos.
Eu devia ter pensado nisso antes de fugir.
Luke me guia até seu quarto, percebo que só há duas portas no corredor,
uma onde entramos e a outra logo à frente, que chuto ser o banheiro.
Quando entro no ambiente, noto que tudo grita que ele é um virginiano. A
cama de casal está perfeitamente arrumada, até a dobra do lençol está feita.
As duas mesas de cabeceira, em lados opostos da cama, contêm um abajur e
um livro em cada. Os objetos estão dispostos da mesma forma, quase como
se Luke tivesse medido as distâncias para deixá-los exatamente iguais.
A organização excessiva me dá aflição. Se eu ficasse uma hora nesse
quarto, bagunçaria tudo.
— Precisa de mais alguma coisa? — Luke pergunta ao me entregar uma
toalha que pegou em seu armário.
Está dobrada de uma forma tão reta que me pergunto quanto tempo ele
demorou para fazer isso.
— Uma camiseta. — Meu pedido faz Luke erguer as sobrancelhas. — Se
não for abusar, claro.
Ele abre outro armário, puxando outro item bem dobrado. Me entrega a
camiseta preta, colocando-a em cima da toalha que já está nos meus braços.
Outro momento de tensão paira entre nós. Trocamos olhares breves, mas
nunca mantemos o contato, com medo de deixarmos os sentimentos que
ainda fazem moradia entre nós aflorarem.
— Bom, eu vou... — Aponto para o banheiro, andando para trás até me
distanciar dele de vez.
Entro no pequeno espaço e fecho a porta com rapidez. Apoio as costas na
superfície de madeira, aproveitando esse raro momento a sós para respirar.
Eu sabia que seria difícil voltar, mas não imaginei que doeria tanto. Sinto
o que restou do meu coração estraçalhar dentro do peito. Preciso de um
alívio, preciso da nicotina, mas não posso fumar agora.
Cerro meus punhos, me concentrando para não pegar o cigarro e acendê-
lo aqui mesmo. Provavelmente eu acionaria o alarme de incêndio do prédio.
A confusão seria o máximo, mas Luke com certeza não gostaria e só estou
aqui hoje porque ele resolveu me dar uma chance.
Não vou desperdiçá-la.
Apoio a mochila na privada, tiro minhas roupas e entro no chuveiro.
A sensação da água quente queimando minha pele é deliciosa. Sinto que
ela limpa parte dos meus machucados internos. Aproveito o momento para
me reerguer e recolher meus próprios cacos. Não sou inquebrável, mas
tenho uma grande habilidade de me curar sozinha. Toda vez que sou ferida,
ergo a cabeça e fico ainda mais forte.
Passo a mão pela cicatriz grande que tenho no ombro direito, proveniente
da maior confusão onde já me meti. Gosto de tocá-la quando preciso de um
incentivo, me lembrando do quanto batalhei para me reerguer.
Eu fui forte. Sou forte. Me tornarei ainda mais forte.
Fico no chuveiro até Luke aparecer na porta e gritar que o jantar está
pronto. Do jeito que ele é controlador, deve ter ficado puto por eu ter
demorado tanto no banho, mas foda-se, eu precisava desse momento. Os
últimos dias foram caóticos demais.
Depois de me enxugar, visto sua camiseta e guardo as roupas que usei
hoje na mochila. Tenho mais algumas guardadas, mas nenhuma no padrão
da agência. Se eu quiser convencer minha mãe a restituir minha posição,
precisarei fazer umas comprinhas. Entretanto, para isso acontecer, ela
precisa confiar em mim.
Deixo minha mochila em um canto do quarto de Luke e volto para a sala.
Fico triste quando percebo que ele colocou uma camiseta. Jantar olhando
para seu tanquinho me parecia uma ótima ideia.
— O cheiro está bom — comento, admirando o prato bonito que ele
montou.
Estou prestes a me sentar quando percebo que ele não para de me
encarar. Olho para mim mesma, tentando ver se há alguma sujeira ou
cicatriz muito aparente. Não demoro para fazer as contas e entender que
Luke está encarando minhas pernas. Estou usando sua camiseta.
E somente a camiseta.
— Você já me viu com menos roupa, gato. — Pisco para ele, adorando
saber que ainda lhe causo esse tipo de reação.
Puxo a cadeira para me sentar e começo a devorar a comida que ele
serviu para mim. Luke ainda está paralisado, tentando se recuperar da visão
magnífica que concedi a ele. Se soubesse que estou sem calcinha, iria ter
um ataque cardíaco. Para sua sorte — ou azar, dependendo do ponto de
vista —, sua camiseta vai até o meio das minhas coxas e cobre o paraíso
que tenho no meio das pernas.
— Não entendo como você consegue ser assim mesmo depois de tudo —
solta de repente, como se não aguentasse mais guardar isso dentro de si.
— Assim como? — questiono, mas não paro de comer.
Ele é que é trouxa de deixar de se alimentar para falar baboseira.
— Você simplesmente aparece no meu apartamento, veste minha
camiseta, desfila como se viesse aqui sempre.
— Te incomoda? Ou te faz relembrar coisas que você não quer
relembrar? — provoco, cutucando-o no lugar certo.
Luke nega com a cabeça, desviando o olhar do meu rapidamente, para
logo em seguida voltar a me encarar.
— É difícil relembrar de algo que eu nem mesmo esqueci.
Sua frase me faz mastigar mais devagar. Não posso negar, me abalo
quando ele diz esse tipo de coisa.
Eu também não esqueci.
Mas isso não significa que eu queira retomar. Muita coisa aconteceu nos
últimos anos. Coisas das quais Luke nem sonha.
Resolvo não responder, apenas sigo comendo, encarando-o para que
entenda que meu silêncio é a melhor escolha para esse momento.
Porém, Luke e eu, com certeza, não estamos na mesma página.
— O que aconteceu com a sua testa? — questiona, desistindo de me
deixar comer em paz.
No espelho do banheiro, consegui ver que a vermelhidão ainda se faz
presente. Um galo já se formou, mas tive sorte de não ter cortado a pele.
— Um guarda imbecil bateu minha cabeça na grade da cela — conto,
soltando um riso incrédulo, ainda inconformada com a covardia do homem.
Se aquela fosse uma batalha justa, eu jamais perderia.
— Por quê?
— Eu estava com vontade de brigar. Ele não quis me enfrentar de frente.
— Então você causou isso?
— Pode se dizer que sim.
Luke parece inconformado, deve estar me achando ainda mais maluca do
que eu já era.
— Quantas brigas como essa você já arrumou?
Desisto de comer, irritada com o rumo dessa conversa. Conheço Luke.
Ele nunca faz perguntas aleatórias. Em sua mente, deve ter criado um
formulário para conseguir juntar as peças do quebra-cabeça que constituiu
meus últimos anos.
— Várias.
— Essa foi sua atividade durante seu tempo fora? Brigar, matar?
— E por um acaso eu sei fazer outra coisa? — rebato, resolvendo trazer
meu cinismo para esse diálogo insuportável.
Quero só ver onde ele vai chegar.
Luke nega com a cabeça e passa uma das mãos no rosto, frustrado ao
ouvir minhas respostas.
— Por que matou aquele cara? — questiona, me tornando seu objeto de
estudo e querendo desvendar meu caso.
— Ele não era bom.
— Quis bancar a justiceira, então? — Sua pergunta soa quase como uma
confirmação.
— Se você já sabe a resposta, por que fez a pergunta?
— Por que você precisa ser tão difícil? — Luke bate sua mão espalmada
na mesa. O barulho não me afeta, mas vê-lo revoltado me preocupa. Ainda
bem que, pelo menos, ele deixou sua arma na bancada da cozinha. As
ameaças do dia foram encerradas. — Não pode simplesmente ser honesta e
revelar a verdade? — fala outra vez, tentando a todo custo me fazer abrir a
boca.
— Não quero falar sobre isso, Luke. — Soo mais séria, tentando fazê-lo
perceber que esse é um assunto proibido.
Luke, entretanto, continua. Ele sempre diz que sou teimosa, mas
consegue ser tanto quanto, quando quer.
— Algum dia nós vamos conseguir falar sobre isso? Você foi embora
sem dar nenhuma satisfação. Quatro anos depois, de repente, me liga e diz
que foi presa por assassinar um homem qualquer.
— Os motivos que me fizeram ir embora não estão relacionados a você
— reforço, sem alterar minha expressão.
— Eu sei disso, porra! — Luke dá outro tapa na mesa, eu não pisco. —
Mas um aviso teria sido bom!
— Não havia tempo.
— E também não havia consideração da sua parte.
— Ah, cala essa boca! — Me exalto, porque essa é uma afirmação que
me recuso a aceitar. Dizer que o que havia entre nós não era verdadeiro é
uma canalhice. — Até parece! Meu coração era seu, idiota! Mas a nossa
vida não é simples. Não dá para colocar um amor acima do que precisamos
fazer.
E Luke parece ter uma séria dificuldade de entender isso.
— Eu podia ter te ajudado. Você podia ter me levado com você — diz,
seu rancor se misturando com à sua tristeza, criando uma confusão em seu
olhar.
— Você iria?
Luke coloca os olhos nos meus. O silêncio é tanto, que consigo ouvir
nossas respirações ofegantes. A tensão entre nós é palpável, deixa o ar
pesado.
— Eu iria para qualquer lugar com você, Joy.
Não desvio meu olhar, mas há algo dentro de mim gritando para que eu
me afaste. Dar corda para esse sentimento só irá piorar as coisas.
— Sua emoção vence a razão toda vez, Luke. A vida que eu vivi não
combina com você.
— A vida misteriosa que te levou para uma cela?
— A vida que permitiu que eu sobrevivesse até hoje.
Minha rebatida faz Luke passar a mão no rosto, irritado. Quando termina,
gesticula, apontando para mim.
— Por que você tinha que voltar justo agora que eu estava te superando?
Minha vida voltou aos trilhos e você chegou para bagunçar tudo de novo!
A emoção em sua fala me mostra que precisarei ser um pouco mais fria
em relação a esse assunto ou Luke não irá parar.
— Não tive escolha. Era uma prisão ou outra.
— Sempre existem escolhas. Você quis voltar. Percebeu o quanto nos
feriu, o quanto perdeu ficando longe. Tomou consciência de que não
conseguimos desvendar todos os mistérios do mundo!
— Fico repetindo que não quero falar sobre esse assunto, mas você
continua insistindo — reclamo, perdendo a paciência.
Preciso desenhar para que ele entenda?
— Como evitar o assunto que te levou a fugir, Joy? Isso tem me
atormentado há anos! — Mais uma vez, Luke gesticula. O problema é que,
dessa vez, resolvo deixar a frieza um pouco de lado para mostrar o quanto
ele está sendo egoísta.
— Ficou atormentado só porque sua namoradinha te deixou? — pergunto
e apoio as mãos na mesa, me levantando. — Que tal ter seu irmão
sequestrado sob a sua guarda? Acha que isso te atormentaria também? —
Olho diretamente para ele, meu cenho fechado, minha expressão exalando
ódio.
Eu odeio que ele fale de Ethan. Meu irmão era só uma criança. Luke é a
porra de um homem! Ele acha que eu vou ficar com pena porque sofreu por
mim?
— Não quis diminuir sua dor. Só quero mostrar que também doeu em
mim — Luke explica, sabe que esse é um tópico delicado e que pegou em
um ponto que me tira do sério.
— Foda-se que doeu em você, Luke! Lamento que você tenha sofrido,
mas eu precisava priorizar Ethan. E se eu tivesse que escolher de novo, faria
exatamente a mesma coisa.
Luke assente devagar, mas consigo ver que não gostou do que eu disse.
Ele gostaria que eu me lamentasse, pedisse desculpas e implorasse por
perdão, assim, ficaria com a consciência limpa para poder desenterrar os
sentimentos que tem por mim.
Eu não era apenas sua namorada. Luke me considerava sua família. Para
um garoto órfão que só conviveu com o abandono, ter sido deixado
novamente, justo pela garota que jurava amá-lo, foi dilacerante. Ele se
fechou e mudou para se proteger, mas, diante de mim, volta a ser o garoto
que eu conheci. Eu não quero que ele seja essa pessoa. Prefiro que tenha
rancor, que me odeie, que me procure apenas se quiser foder.
O melhor, para nós dois, é manter nossos corações fechados.
Depois de uma última fuzilada em Luke, saio da mesa, vou até o quarto,
pego meu maço e meu isqueiro. Passo por ele sem olhá-lo e me fecho na
varanda.
Encarando as luzes da cidade, acendo meu cigarro. Trago uma boa
quantidade de fumaça para soltá-la devagar, sentindo o alívio que só a
nicotina consegue espalhar pelo meu corpo. A cada tragada, me sinto mais
entorpecida. Termino um cigarro e emendo em outro, sentindo que mereço,
depois de tantas horas sem fumar.
Escuto alguns sons estranhos vindos do apartamento e me viro para ver o
que está acontecendo. Luke está agachado no meio da sala, recolhendo
pedaços quebrados de um prato. Está na cara que ele acabou de arremessá-
lo na parede.
Eu fumo, ele destrói coisas. Cada um de nós tem uma forma de se aliviar.
Depois de unir todos os cacos em uma pá, Luke fica de pé. No mesmo
instante, nossos olhares se cruzam. Apenas trago meu cigarro, seguindo
com o que eu já estava fazendo.
O olhar de Luke não engana, é impossível de disfarçar. Ele me deseja,
mas também me repele. Gostaria de vir até aqui e me agarrar. Também
gostaria de vir aqui e me empurrar da varanda, para que meu corpo se
espatifasse no meio da rua.
Balançando a cabeça, com dificuldade de lidar com a dualidade da nossa
relação, Luke some pelo apartamento. Quando volta, está com outra roupa,
dentre elas um moletom. Olhando para mim uma última vez, ele veste o
capuz, pega a chave de seu carro e sai do apartamento.
Eu não sei para onde ele vai e nem tenho vontade de saber. No momento,
tudo o que eu quero é acabar com esse maço e ir dormir.
Como Luke não está, me deito em sua cama e me forço a descansar.
Não é segredo que tenho dificuldade para dormir. O cansaço pode
consumir cada parte de mim, que ainda assim não conseguirei pegar no
sono de imediato. Não posso dizer que simplesmente fecho os olhos e
durmo, mas admito que estou mais relaxada do que o normal. Sinto o cheio
de Luke na fronha e de alguma forma isso me acalma. Faz com que eu me
permita relaxar. Sinto que ninguém pode me atingir aqui.
Já é madrugada quando ele volta.
Acordo quando o escuto entrar e chego a agarrar a arma que Brenda me
emprestou, posicionada discretamente embaixo do travesseiro. Assim que
confirmo que é Luke mesmo, baixo a guarda e fecho os olhos para me
forçar a dormir de novo.
Entretanto, pelo canto do olho, vejo quando ele limpa as mãos sujas de
sangue na pia do banheiro e me pergunto se errei em meu julgamento.
Será que Luke realmente deixou os dias de bom moço para trás?
Eu estaria mentindo se dissesse que não formei algumas teorias sobre o
paradeiro de Luke. Fiquei curiosa para saber onde ele foi e o que aprontou
para chegar com as mãos cheias de sangue no meio da madrugada. Torturar
alguém? Matar alguém? Dar umas porradas em alguém?
Independentemente do que tenha sido, é fato que não foi a serviço da
agência. Luke era um dos agentes mais certinhos, nunca fazia nada fora do
cronograma, a não ser que eu o coagisse. Se está usando suas habilidades
para se aliviar, vou ter certeza de que realmente mudou.
Apesar da minha curiosidade, não pergunto nada. Quando acordamos,
sequer conversamos. O diálogo que tivemos ontem à noite aconteceria uma
hora ou outra, mas nos desgastou. Nossa relação está calejada. Temos
opiniões divergentes e nenhum de nós parece disposto a ceder.
O melhor para nós, agora, é o silêncio.
Ainda que seja estranho dividir a cama, o carro e o elevador com ele e
não dizer nada.
Precisei relembrar os seguranças e a recepcionista da agência de que
estou com Brenda, para que liberassem minha entrada. A credencial de
Susan Hoffman, apesar de me ajudar a acessar os andares, não me colocaria
para dentro do prédio principal.
Estou com as costas apoiadas de um lado do elevador, Luke está
exatamente do lado oposto, mas não mantemos nenhum contato visual. O
tempo passa devagar, os números no visor vão crescendo pouco a pouco, é
quase tão irritante quanto o momento que passei ontem, nesse mesmo lugar,
com Brenda.
Faço esforço para me manter olhando para baixo, penso até em abrir
minha mochila só para fingir que tenho algo para fazer, para evitar que meu
maldito olhar se atraia para o dele.
Entretanto, como sempre, nosso magnetismo é inevitável. Nós cansamos
de nos evitar.
Luke me encara com soberba, eu lhe devolvo um olhar debochado. Há
uma pergunta pairando no ar.
Quem será o primeiro a quebrar o silêncio?
Estamos irritados um com o outro. Ele guarda rancor pelo que fiz. Eu
estou brava pelo que ele disse. Ainda assim, o tesão está aqui. Não sei
explicar por que sinto uma necessidade tão grande de provocá-lo, de mantê-
lo atento a mim.
— Gravou bem minha imagem desfilando só de camiseta pelo seu
apartamento? — Não me aguento e incito o caos.
Luke se esforça, mas eu vejo que sua boca quer formar um sorrisinho.
— E você, guardou bem a imagem do meu abdômen? Porque você não o
verá de novo tão cedo. — Ele perde a neutralidade, movendo as
sobrancelhas para me provocar.
— Será que não?
Luke nega com a cabeça, inconformado com minha audácia. Sua mão vai
até a alça da bolsa transversal, e percebo que os nós de seus dedos estão
machucados. Foi uma briga, então.
Ele nota que estou encarando, mas não se mexe. Quer que eu pergunte o
que aconteceu, porém, não vou dar esse gostinho de vitória a ele. Prefiro me
manter nesse jogo perigoso de encaradas infinitas.
O visor do elevador mostra que já estamos no décimo andar.
Décimo primeiro.
Décimo segundo.
Décimo terceiro.
E nenhum de nós dois pisca.
Eu adoro que Luke se tornou um bom oponente. Torna nossa brincadeira
bem mais divertida. Ganhar o tempo todo é legal, mas vencer uma pessoa
que é páreo para você é muito melhor.
Se Luke não fosse tão observador, poderíamos ficar nesse jogo o dia
todo.
— A Brenda já te deu uma credencial? — pergunta, desviando o olhar
para a credencial presa no passante da minha calça jeans.
— Sim — respondo sem hesitar.
É óbvio que Luke não acredita. Apareci na agência apenas ontem, não é
tempo o suficiente para Brenda ter restituído minha posição. Fora que ele
me conhece. Sabe que minha cabeça funciona de um jeito um tanto quanto
peculiar.
Me preparo para um questionamento, mas Luke resolve me abordar de
outra forma. Ele se aproxima rapidamente, levando suas mãos para minha
cintura. Meu tempo de reação acompanha sua velocidade, porém, mesmo
que eu evite que ele me prense na parede, não consigo evitar seu toque.
Tento inverter nossas posições, mas Luke implica bastante força,
querendo me empurrar para trás. Uma de suas mãos tenta pegar a credencial
e dou uma cotovelada em seu antebraço para impedi-lo. Ele nem reage,
apenas aproveita o momento para fazer o queria e me prensar contra a porra
do elevador.
Ele deixa meus braços flexionados na altura do meu ombro, prensando-os
com ambas as mãos, impedindo que eu freie seus movimentos. O modo
como me olha é feroz, primitivo, possessivo. Luke sente que poderia fazer o
que quisesse comigo. Essa falsa ilusão de controle faz algo queimar dentro
dele.
Eu deixo que pense o que quiser. Poderia dar um chute em suas bolas e
fazê-lo me soltar em um piscar de olhos, mas não é isso que quero.
Gosto dessa proximidade. Desse calor que sinto em minha boceta. Desse
olhar raivoso que Luke exibe. O olhar de quem rasgaria todas as minhas
roupas sem hesitar.
Ele desvia o olhar para minha boca por uma fração de segundo. Eu a abro
por instinto, meu corpo reagindo ao seu de forma automática. Estamos tão
próximos, que consigo sentir o coração de Luke batendo mais forte,
reagindo a tensão desse momento.
Retomamos nosso contato visual e percebo que Luke de fato queria me
beijar, mas hesitou, pensou e resolveu não cair nas minhas garras de novo.
A perda é dele.
Lentamente, Luke solta uma das minhas mãos. Ele desce a sua a
milímetros de distância do meu corpo. Sinto o calor de sua palma próximo a
minha pele, mas nunca de fato a tocando. Quando chega perto do cós da
minha calça e alcança a credencial, minha boceta chora de tristeza.
Amo sexo. Uma vida feliz, para mim, é uma vida com sexo todos os dias.
Deve fazer duas semanas que não transo. Estou enlouquecida de tesão a um
ponto que poderia implorar para Luke me comer aqui nesse elevador,
mesmo com vários seguranças nos observando pelas câmeras. Eu até
convidaria algum deles para se juntar a nós, se Luke não fosse tão careta.
O momento de tensão dura pouco. Assim que consegue o que quer, ele se
afasta, dando passos largos para trás, a expressão sendo tomada por
repugnância.
É impressionante como vamos de oito a oitenta em uma fração de
segundo.
— Susan Hoffman. — Lê o nome impresso na credencial e me fuzila
com repressão. — Sério? Precisava roubar uma agente?
— Se ela é estúpida o suficiente para ser roubada dentro da própria
agência, não deveria estar aqui — rebato com o sarcasmo de sempre.
Foi só um pequeno furto. Não é necessário criar uma crise.
— Você não tem limites — constata e eu assinto, concordando. — Conte
para Brenda o que fez ou eu mesmo vou te dedurar.
— Vai me mandar para a sala da diretora? — brinco, dobrando os lábios
para baixo para fazer um biquinho infantil, zombando de sua intimidação.
Luke aperta o botão do vigésimo oitavo andar no momento em que
chegamos no vigésimo quinto.
— Não. Você já é grandinha para ir até lá sozinha. — Luke vai saindo do
elevador de costas, mas para na porta, segurando-a para que não se feche.
— Ache outro lugar para passar a noite. Você não é bem-vinda na minha
casa. — Ele joga a credencial na minha direção e eu a pego no ar com uma
das mãos.
Ergo as sobrancelhas, mostrando que estou impressionada com sua
atitude dura. Quase o aplaudo, mas resolvo que seria ironia demais para o
momento.
Luke encara meu deboche com desgosto, me fitando de cima a baixo com
um olhar carregado de desprezo. Mas eu sei que por trás dessa pose toda
existe um grande sentimento de atração do qual, provavelmente, nunca
vamos conseguir nos livrar.
Aceno para ele enquanto a porta vai se fechando, mantendo um sorriso
malicioso no rosto até o contato entre nós cessar.
Espero o elevador subir mais três andares e desço no vigésimo oitavo.
Combinei com Brenda de encontrá-la pela manhã e, por enquanto, serei
uma mulher de palavra. Ela pode me conceder algo que quero.
O corredor é branco como todos os outros, porém, as salas de reunião,
localizadas à esquerda do elevador, são as maiores de toda a agência. A sala
da minha mãe fica no centro e a do vice-diretor, James Masterson, mais ao
fundo.
Bato na porta de vidro que separa o corredor da antessala, onde Ingrid
está sentada atrás do computador. Ela libera minha entrada com um botão
em sua mesa e a cumprimento com um sorriso amigável. A mulher é
secretária da minha mãe desde que comecei a frequentar a agência, doze
anos atrás. Temos certa intimidade, então fico papeando com ela até Brenda
chegar.
Olho para o relógio na parede, vendo que já são nove e trinta.
— Você está atrasada — constato, dando o melhor bom dia que ela
poderia receber.
Uma provocação exclusiva de Joy Saroyan.
— Ainda bem que eu sou a chefe — rebate, a frieza e o escárnio tomando
conta de seu rosto.
Brenda está mais mal-humorada do que o normal bem no dia que preciso
dela. Que caralho!
Ela passa por Ingrid e apenas a cumprimenta com a cabeça, parece não
ter vontade de gastar suas palavras. A porta de sua sala fica logo à frente e
é, literalmente, uma fortaleza. Não há nenhuma janela para o lado de dentro
da agência, para que ninguém consiga ver o que acontece na sala da
diretora, apenas uma porta enorme. Brenda passa sua credencial na tela,
digita uma senha e sua sala se abre.
Permaneço jogada no sofá, aguardando até que ela me chame, certa de
que ficaria puta caso eu a seguisse. Troco um olhar com Ingrid, que
compreende o mesmo que eu. Hoje não é um dia para brincadeiras.
— Joy — ela chama com a voz mais alta e eu me levanto na hora.
Fecho a porta de sua sala quando entro, vendo que Brenda já está
posicionada em sua cadeira. Eu adorava me sentar nela quando era mais
nova e fingir que eu era a diretora. Naquela época, me parecia um lugar
confortável de se estar. Doce ilusão.
— Contou para o papai que eu voltei? — pergunto, me aproximando da
mesa, mas ainda mantendo uma distância segura para o caso de Brenda se
exaltar.
— Não — responde, simplesmente.
Assinto, sem conseguir decifrar sua expressão. Já estou vendo que terei
que arranjar outro lugar para dormir esta noite.
— Pensou no que vou fazer? — faço outra pergunta, esperando que ela
tenha uma resposta para essa.
— Sim. — Levanto as sobrancelhas, pedindo que desenvolva o assunto.
— Tenho uma reunião com o Presidente Campbell em breve. À tarde, te
darei uma função.
Me contento para não revirar os olhos.
Boazinha, Joy, boazinha.
— E o que farei até lá?
— Vá para a academia. Você está precisando.
Brenda é tão delicada. Dá gosto de ver.
— Sim, senhora diretora, estou mesmo precisando treinar. Tanto meu
corpo, quanto minha mira. — Se quiser se tornar meu alvo algum dia
desses, é a resposta que fica presa na ponta da minha língua.
— Ótimo. Então use a credencial que você roubou e se divirta.
Um leve arrepio percorre minha espinha quando a escuto. Ops. Fui
flagrada.
— Luke te contou? Que rápido.
— Luke sabe?
Seu questionamento já deixa óbvio que ele não falou nada.
— Como você descobriu?
— Acha que eu não sei do que acontece dentro da minha agência? — Sua
resposta me cala. Brenda é foda. No sentido bom e ruim da palavra. —
Devolva a credencial da agente Hoffman.
Ela desvia o olhar para sua mesa, indicando onde devo deixá-la. Tiro a
credencial do bolso e a coloco na mesa com certa agressividade,
perguntando-a, com meu olhar, se está satisfeita.
Brenda não reage.
— Eu precisava de uma credencial para andar pela agência — explico
minha atitude mesmo que ela não pergunte.
— Por que não pediu?
— Estou pedindo agora. Preciso de uma credencial, mamãe querida —
ironizo, perdendo um pouco o controle que eu estava tentando manter.
É difícil demais ser passiva perto dela.
Brenda me encara com desdém. Quando uno as mãos na frente do corpo
e abro um meio sorriso meigo, ela cede e alcança sua bolsa, tirando de lá
uma credencial e um celular. Ela apoia os dois na mesa, sinalizando com a
cabeça para que eu pegue.
— É uma credencial provisória. Quando você cumprir o que eu te pedir,
te dou uma oficial — explica e eu noto que só há meu nome, minha foto e o
símbolo da ANDOS na credencial. Nenhum nível, nenhuma equipe.
Terei que batalhar para conseguir chegar aonde quero.
— E isso? — Balanço o celular, tentando assimilar se entendi direito.
Brenda está me presenteando? Já é Natal?
— Preciso me comunicar com você. Meu número atual já está gravado.
Te mandarei uma mensagem com o local onde iremos nos encontrar à tarde.
— Ela é simples e prática, encerrando o assunto.
Assinto, escolhendo não responder para não falar besteira. Agradeço pelo
celular com a cabeça, prendo minha credencial nova na calça e resolvo
deixá-la trabalhar. Aproveito e peço para deixar minha mochila em sua sala,
cansada de andar com ela para cima e para baixo. Brenda libera sem nem
olhar para mim, já focada em seu computador.
Fora de sua sala, com meu celular novinho no bolso, resolvo fazer o que
Brenda sugeriu. Estou mesmo precisando treinar.
Uma hora e meia de musculação. Tiros de corrida. Quase uma hora
batendo no saco de pancadas. E para finalizar, um treino de tiro com uma A
K 47 para retomar a mira perfeita com armas maiores. Depois de acabar
com as balas de borracha que peguei quando cheguei, resolvo que é hora de
dar um descanso para o meu corpo.
Esse ritmo era normal para mim, quatro anos atrás. Agora, me canso com
mais facilidade, não consigo manter a mesma energia de antes durante a
sessão. Se eu quiser voltar a ser a melhor agente dessa porra, preciso treinar
incansavelmente.
— Lembre-se que as pausas fazem parte do treino — Kyle diz quando
aparece ao meu lado com uma garrafa de água.
— Eu sei. Vou descansar um pouco — concordo, aproveitando para
assisti-lo trabalhar.
Sempre gostei de ver Kyle agindo no -1. Escorada em uma parede, como
eu ficava quando era criança, vejo meu mentor corrigindo, auxiliando e
desafiando agentes. Kyle sempre foi o melhor no que faz e é um ótimo
professor, isso não dá para negar. Porém, não entendo por que alguém tão
bom quanto ele ficou preso no subsolo da agência boa parte da carreira. Ele
tem muito talento, mas parou de trabalhar em campo cedo demais.
— Alguns comportamentos não mudam mesmo. — Escuto uma voz
conhecida e me viro, percebendo que Zoey está por aqui.
É uma pena que ela não esteja sozinha. A minha antiga equipe inteira
está vestida de preto, usando o uniforme de treino: uma camiseta com o
logo da ANDOS nas costas e no peitoral, uma calça preta leve; o modelo
das meninas é colado no corpo, para evitar que nos atrapalhe e botas de
cano médio sem salto, com alguns compartimentos para guardarmos
utensílios.
Olho para meu tênis surrado, para a calça de moletom cinza — a única
peça que eu tinha que não era jeans — e a camiseta preta simples. Eu
preciso de um banho de loja urgente.
— Vim treinar — respondo, jogando a garrafa de água vazia no lixo e me
aproximando do grupo.
Todos eles permanecem de um lado e eu, do outro.
É estranho estarmos dividindo o mesmo ambiente depois de tanto tempo.
Me sinto excluída, de fora da dinâmica que eles têm agora. Zoey e Lucy,
apesar de me quererem bem, também estão apreensivas, sem saber como os
meninos irão reagir.
Luke está de braços cruzados, a expressão fechada, apenas assistindo o
desenrolar da cena.
Os irmãos Starffey estão lado a lado, coisa que já é estranha, porque os
dois nunca se deram bem. Olho primeiro para Noah, o único que gosto, e
espero para ver como ele vai reagir.
— Não sei se te abraço ou te soco, sua filha da puta! — Noah usa um
tom de brincadeira e abre um sorriso largo, me convidando para abraçá-lo.
Aceito a recepção sem reclamar, agradecendo por ter tido a mesma
reação das meninas. Noah era como um quarto membro do nosso trio.
Quando não estava puxando o saco de Nate ao tentar andar com ele e Luke,
Noah se juntava a nós. Ele é um fofo, talvez seja o menos corrompido de
todo o grupo, apesar de também carregar suas próprias feridas.
A verdade é que nós somos seis fodidos.
— É bom te ver, Noah — sussurro em seu ouvido enquanto nos
abraçamos.
O momento fraterno perde um pouco de seu brilho quando sinto Noah
hesitar brevemente em seu toque. Seu ânimo por me ver depois de tanto
tempo fez com que se esquecesse do que me revelou um pouco antes da
minha fuga. Percebo, fitando seus olhos azuis quando nos separamos, que
ele está apreensivo, com medo de eu contar seu segredo para o mundo.
Aceno com a cabeça discretamente para tentar dizer a ele que pode
confiar em mim. Entretanto, não acho que Noah tenha aceitado muito bem,
porque esboça um sorriso minúsculo e se coloca ao lado de Lucy, como se
ela pudesse protegê-lo. A loira me olha e nós três compartilhamos um
diálogo silencioso. Eles estão receosos, preocupados com a minha lealdade.
Eu jamais revelaria o que ele me contou para o resto da equipe, mas
entendo por que eles pensam o contrário.
Parece que Zoey é a única que não tem nada contra mim.
— Eu gostaria de dizer que é bom te ver, mas eu estaria mentindo. — O
tom de superioridade só pode vir de uma pessoa.
Desvio o olhar de Lucy e Noah para encarar o líder da equipe.
Nathan Starffey, o maior cuzão de todos os tempos.
— Bom saber que você continua sendo um filho da puta arrogante —
devolvo, porque entre nós dois, não existe filtro ou politicagem.
Ele não me suporta, eu o suporto menos ainda.
— Bom saber que você continua uma vadia manipuladora.
Gargalho quando o escuto, adorando a criatividade. Nathan está com a
mesma expressão sabichona de quatro anos atrás. Ele se acha o dono do
mundo, sempre quer passar por cima de todo mundo e comanda como se a
opinião de ninguém mais importasse. Nós nunca nos gostamos, mas a
relação de respeito acabou quando Brenda, na hora de escolher alguém para
liderar nossa equipe, o escolheu ao invés de mim.
Entendo que eu não era responsável e sensata para o cargo, mas ter
escolhido Nate foi quase uma ofensa. Ele simplesmente não consegue
esquecer que me venceu.
— Sabe o que é bom mesmo? — indago, dando dois passos para frente
para ficar mais próxima a ele. Grudo meu olhar no seu, encarando suas
pupilas azuis tempestuosas. — Estar de volta e saber que se eu me esforçar
só um pouquinho, consigo não só recuperar meu lugar na equipe, quanto
também tirar você do seu.
Nate se aproxima ainda mais e o vejo cerrar os punhos, ameaçando
levantá-los.
— Quer brigar comigo? Porque eu adoraria quebrar a sua cara de novo
— provoco, ansiosa para revivermos o passado.
Já quebrei o nariz dele, o idiota já quase deslocou meu ombro. Nate e eu
só temos duas coisas em comum: vontade de liderar e sede por violência.
— Não me atice, Joy. Se eu fosse você, pensaria duas vezes antes de me
provocar. Você era boa naquela época, mas quatro anos sem treinar com
certeza te tornaram mais fraca e patética — responde e eu tenho a certeza
de que ele adoraria se eu socasse sua cara e incitasse uma briga entre nós.
Assim, ele poderia dizer para todo mundo que eu me descontrolei e ele
precisou se defender. Nate se aproxima mais ainda, se é que isso é possível,
e eu sei que dará sua cartada final. — Eu não quero ser responsável por
matar a filhinha da diretora.
— Ei, chega disso. — Zoey interrompe nosso diálogo, levando sua mão
ao peitoral de Nathan para afastá-lo de mim. Ela alterna seu olhar repressor
entre nós dois, irritada com nosso reencontro farpado. — Viemos até aqui
treinar, temos um horário agendado com o Kyle. Não temos tempo para
briguinhas.
Ergo as mãos, me rendendo, mostrando que não irei continuar. Nate não
vale a pena.
— Joy, vamos fazer uma simulação. Quer participar? — Zoey pergunta,
as tranças estão presas em um coque, ela está toda preparada para uma das
atividades mais divertidas para os agentes.
— Nem fodendo! — Nate se intromete, gesticulando para mostrar sua
insatisfação com o convite.
Sorrio ao vê-lo perder a linha.
— Eu adoraria.
— Você não vai participar — ele tenta me bloquear novamente.
Estou prestes a perguntar o que vai fazer para me impedir, quando sinto
uma mão em meu ombro. O toque é familiar e carinhoso, coisa que só um
homem da ANDOS consegue ser.
— Ainda bem que eu sou o responsável pelo -1 — diz Kyle, usando seu
poder para colocar Nate em seu devido lugar. — Joy, se quiser participar,
será bem-vinda. É sempre melhor fazer a simulação com seis pessoas — ele
fala olhando para mim, piscando com um dos olhos.
Meu sorriso só aumenta.
— Estávamos bem com cinco. — Nate tenta outra vez, mas é ignorado.
Entendo o silêncio do resto da equipe como uma aceitação.
— Estou dentro. — Esqueço do meu cansaço, consumida pela animação
de fazer algo que eu amava e, de quebra, irritar Nathan.
Kyle nos direciona para os fundos do -1, onde a área de simulação está.
Temos alguns cenários montados, mas minha antiga equipe escolheu uma
simulação em realidade virtual para hoje. Kyle nos reúne para explicar
como será a dinâmica, avisando que a simulação só acaba quando um time
dizimar o outro. Ele diz que irá nos dividir em dois grupos e já fico
preocupada, imaginando que vou me foder. Metade da equipe me odeia, há
grandes chances de eu cair com alguém que não está me suportando.
— Zoey, Lucy e Noah, vocês são um time. Luke, Joy e Nate são outro.
— Você gosta de brincar com o perigo, né? — Não resisto e indago,
soltando um riso sarcástico.
Os olhares que Luke e Nate me lançam transbordam rancor. Sem dúvida
formaremos um time interessante.
Vestimos os coletes, colocamos os óculos da realidade virtual e pegamos
nossas armas. As balas são de borracha, mas, ainda assim, machucam.
Ninguém quer perder, muito menos levar um tiro desses. As simulações
sempre se tornam competições nada amigáveis.
O grupo de Zoey, Lucy e Noah se posiciona do lado oposto ao nosso. O
lugar é espaçoso e a tecnologia faz sua mágica quando vestimos os óculos.
O cenário é escuro, demora até que eu consiga entender onde estamos.
— Túneis subterrâneos — Luke conclui ao mesmo tempo que eu.
Nós nos encaramos, incomodados por estarmos falando juntos.
— Vão na frente e me cubram. Acabo com qualquer um que aparecer e
vencemos. — Ofereço uma estratégia, pensando no número de balas que
temos. Os tiros precisam ser certeiros.
— Você era uma atiradora, agora é só uma agente aposentada — Nate
responde, querendo a todo custo me derrubar.
— Somos um time ou não somos? Entrei nessa porra para ganhar.
Estou pouco me fodendo se ele gosta de mim ou não. Sempre tivemos
que trabalhar juntos, agora não é diferente.
— Infelizmente, somos — murmura Luke, tão chato quanto o amigo.
— Trabalhar com você é uma tortura, mas perder uma simulação é ainda
pior. Vamos vencer essa merda — Nate cede e decide deixar seus problemas
comigo de lado.
Me recuso a perder.
— Vamos nos dividir e cobrir o maior território possível. — Luke faz um
sinal com os dedos, indicando para onde temos que ir.
Há três túneis se abrindo à nossa frente. Luke vai para o da direita, fico
com o meio e Nate com o da esquerda. Em missões normais, costumamos
usar comunicadores, mas a ideia da simulação é nos desafiar e nos fazer
buscar estratégias diferentes, então estamos cada um por si.
Caminhar sem fazer barulho algum se assemelha a uma dança. Vou
cruzando uma perna na frente da outra, mantendo uma caminhada ritmada,
nem muito rápida, nem muito lenta. Distribuo o peso pelos pés para que
ninguém escute meus passos.
Não sei onde esse túnel vai dar, não faço ideia se o outro time tem o
mesmo acesso que nós. Tudo o que sei é que preciso concluir esse percurso
sem ser notada.
Um tiro é disparado. É o primeiro da simulação e eu não faço ideia de
quem apertou o gatilho. Escuto uma troca, e se há alguém revidando, é
porque não foi atingido.
Nesse jogo, quem leva um tiro, está fora.
Caminho com mais velocidade, ainda mantendo meus passos silenciosos,
me perguntando se Nate ou Luke precisam da minha ajuda.
— Nathan, você está fora — Kyle anuncia para todos nós, controlando o
andamento da simulação.
Xingo sua burrice mentalmente. Agora somos só eu e Luke.
Escuto, ao longe, outra pessoa caminhando. Há alguém perto de mim. As
paredes do túnel imaginário não permitem que eu veja quem é, mas rezo
para que seja qualquer pessoa do outro time. Preciso revidar para nos
igualarmos novamente.
Os passos parecem cada vez mais próximos. Alguns deles soam
estranhos. A pessoa bate o pé no chão uma vez, dá um passo, bate mais
duas vezes. Outro passo. Outra batida. Passo. Duas batidas.
Não demoro para entender que Luke está me passando uma mensagem
por Código Morse. O recado é claro. Há alguém à minha esquerda.
Acelero o passo, desistindo do silêncio para partir para o ataque.
Mantenho a arma engatilhada, a mão esquerda já posicionada. O túnel vai
chegando ao fim e eu vou sentindo a adrenalina tomar conta das minhas
veias.
Pode ser somente uma simulação, mas a sensação de estar em campo
novamente me traz um sentimento de pertencimento. Eu adoro essa porra.
Sinto que há alguém perto de mim. A pessoa que atingiu Nate está
próxima e preparada para me pegar.
Mas não se eu pegar primeiro.
Não hesito, não checo duas vezes. Confio na informação que meu antigo
parceiro me deu e, assim que o túnel chega ao fim, me viro para a esquerda
e encontro Zoey com a arma apontada para mim.
Estou feliz por ter sido ela que atingiu Nate. Ele merece ser abatido por
mulheres em qualquer oportunidade.
Zoey não merece, mas teve o azar de dar de cara comigo. Até lamentaria
por ela, se não quisesse tanto ganhar.
Aperto o gatilho, atingindo-a diretamente no peito. Minha amiga me
encara com um olhar raivoso, mas não diz nada, respeitando o fato de a
simulação ainda estar em curso. Levo minha mão aberta a testa, fazendo um
sinal de despedida para ela.
— Zoey, você está fora — Kyle anuncia e tudo fica igual.
Chegou a hora de encontrar Luke e vencer essa porra.
Uso o Código Morse para mostrar onde estou, pedindo que ele se
aproxime. Permaneço com a arma empunhada, preparada para qualquer
ataque repentino. Escuto alguém se aproximando e, como não tenho certeza
de que é Luke, fico com o dedo grudado no gatilho.
Ele parece ter tido a mesma estratégia, porque aparece com a arma
apontada para mim. Nós apenas nos olhamos. Com essa única troca, ele me
parabeniza por ter abatido Zoey e sinaliza para continuarmos seguindo em
frente. Dessa vez, juntos.
Nossos passos são ritmados. Andamos com as costas grudadas, ele com a
arma apontada para frente do túnel, eu para trás, cobrindo qualquer forma
de ataque.
No meio do caminho, trocamos de lugar e passo a tomar a dianteira. Nós
conhecemos cada movimento um do outro, podemos passar uma missão
inteira sem conversarmos e ainda assim vamos nos entender.
Somos incríveis como parceiros. E essa constatação é uma bosta, porque
destrói tudo o que vínhamos tentando fazer. Não vamos conseguir nos
manter separados. Minha volta à equipe vai me fazer ser parceira de Luke
novamente.
É um fato.
Paro quando sinto que há alguém por perto. Não escuto nada, é apenas
uma intuição.
Luke vira o rosto para me olhar, tentando entender por que parei. Aponto
com a cabeça para o lado onde imagino que a pessoa esteja. Se bem
conheço Lucy e Noah, eles devem estar juntos.
É hora de encerrar esse jogo.
Sinalizo para que Luke se posicione para o ataque. Ele se aproxima de
uma parede do túnel, eu vou pelo lado oposto, me preparando para atingir
qualquer um que apareça na minha frente.
Quando chegamos na última curva, trocamos um último olhar,
assentimos e seguimos em frente.
Lucy e Noah estão com as armas empunhadas, mas fomos tão silenciosos
que eles são pegos de surpresa. Atinjo Noah com três disparos, Luke acaba
com Lucy usando apenas dois.
Fim de jogo.
— Lucy e Noah estão fora. Luke, Joy e Nate, parabéns, vocês venceram.
Solto um grito comemorativo, adorando a sensação que ganhar me
transmite.
Me viro para Luke e quase pulo em seu colo para abraçá-lo. No último
segundo, me lembro de que passamos quatro anos sem nenhum contato,
depois de eu tê-lo abandonado, e que seu rancor por mim grita em doze
línguas diferentes, e desisto.
Apenas esboço um meio sorriso. Luke, entretanto, não sorri de volta. Ele
está apreensivo, sem dúvida preocupado, porque sabe que não iremos
escapar.
A partir do momento que eu fizer o que Brenda pediu, seremos parceiros
novamente.
Controlar simulações sempre gera entretenimento. Gosto de ver os
agentes trabalhando com o que tem, se dedicando para vencer, buscando a
melhor forma de dizimar o outro time. Também adoro o momento em que
tudo acaba, porque posso dividir meu conhecimento dando feedbacks para
cada um deles.
Ser responsável pelo -1 me deixa, de certa forma, restrito. Há muito
tempo, eu me importava por minha carreira ter se tornado limitada. Hoje,
não ligo. Toda vez que um agente diz que aplicou minhas dicas e teve
sucesso, fico satisfeito. Toda vez que alguém me agradece pela ajuda que
dei, me sinto importante. Toda vez que uma simulação termina e vejo pares
de olhos brilhando em expectativa para ouvir o que vou dizer, percebo que,
no fim das contas, vim parar no lugar certo.
Sou ótimo fazendo, mas sou excelente ensinando.
No momento em que Joy e seus antigos amigos vão embora, eu me
permito tirar um tempo para relaxar.
Já passei dos cinquenta anos, estou nessa agência há quase trinta, mereço
uma folga.
Ainda que essa folga não seja exatamente um tempo em que eu descanso.
Dentro do elevador, me pego imaginando onde ela está. Ir até sua sala
não me parece a melhor das ideias. Sua agenda é ocupada, imagino que
esteja em algum outro lugar da agência ou em alguma reunião.
No fim das contas, resolvo ir até o vigésimo oitavo andar e procurá-la.
Talvez eu me coloque em um papel submisso — acho que rendido é a
palavra que os jovens usam hoje em dia —, mas não consigo ficar longe
dela.
Há algo que sempre me atrai na direção de Brenda. Algo que me faz
encontrar seu olhar no meio da multidão, que me faz rastreá-la em meio a
trinta andares, que faz meu corpo sempre querer estar próximo ao seu.
Ninguém nunca mexeu comigo como ela mexe.
Percebo que uma reunião acabou de se encerrar quando chego ao andar
da diretoria. Cumprimento David, o vice-diretor atual, quando o vejo saindo
de uma das salas. Sigo nessa mesma direção, imaginando que Brenda ainda
está lá.
Fico alguns segundos parado na porta, apenas observando a mulher que
domina cada pedaço do meu coração. Eu o entreguei para ela há muito
tempo. E apesar das feridas profundas que ela me causou, eu faria tudo de
novo.
Seus cabelos pretos caem em seus ombros como ondas. Ela está com um
arquivo em mãos, a cabeça abaixada, focada totalmente no que lê. Eu adoro
vê-la trabalhar, seu rosto fica ainda mais bonito quando ela está
concentrada.
— Como adivinhou que eu estaria desocupada? — Brenda pergunta sem
sequer levantar o olhar para mim, sentindo que estou aqui.
— Eu sempre adivinho.
Minha resposta faz com que ela feche o arquivo e desvie sua atenção para
o meu rosto.
Trocamos aquele olhar que só nós dois sabemos o que significa.
— Em vinte minutos no nosso lugar? — ela fala, esboçando um pequeno
sorriso malicioso.
Eu a fito de cima a baixo, vendo o quanto está gostosa. Sua camisa, por
baixo do blazer, está com os primeiros botões abertos e arrisco dizer que,
por baixo, ela não veste nada além de um sutiã — de renda e preto, sua
marca registrada. A calça social marca seus quadris, deixando sua bunda
ainda mais deliciosa. Seus olhos castanhos exalam malícia, vontade, tesão.
Os mesmos sentimentos que os meus exibem.
— Em vinte minutos no nosso lugar — afirmo, resolvendo sair da sala
antes que eu a empurre em cima da mesa.
Ela me olha uma última vez, balançando levemente a cabeça, entendendo
exatamente o que se passa em minha mente.
Nenhuma outra pessoa no mundo me desvenda como ela.
Brenda conhece cada parte minha. Eu conheço cada parte dela.
Somos duas metades que precisavam se encontrar, mas não estavam
destinadas a ficar juntas.
O certo era mantermos distância. Era que eu saísse dessa agência e nunca
mais ouvisse o nome dela. Porém, não consigo. Sinto uma necessidade
visceral de mantê-la em minha vida.
Prefiro ter Brenda dessa forma, a viver longe dela.
Brenda me mandou uma mensagem pedindo que eu a encontrasse no
estacionamento. Imediatamente interrompi minha conversa com Zoey para
obedecê-la, passei o dia todo esperando por esse momento. Depois da
simulação com minha antiga equipe, estou decidida a agarrar qualquer
oportunidade que ela me der. Quero ser parte do grupo outra vez. Eu não
sou uma mulher que consegue se sentir inferior. Vou me igualar a eles. Vou
superá-los. Doa a quem doer, goste quem gostar.
Joy Saroyan voltou, bebês.
Com a arma da diretora presa em minha cintura, desço todos os andares
da agência para chegar ao térreo, onde o estacionamento aberto se localiza.
Existem inúmeros veículos estacionados e Brenda não me deu qualquer
informação além de “vá até mim”. Ando procurando pela SUV preta que
ela costumava usar, a mesma na qual andei quando retornei da prisão.
Porém, esse é um dos carros padrões da agência, tornando a missão de
encontrá-la um tanto mais difícil.
Uma lanterna piscando é o sinal que eu precisava para achar o veículo. O
vidro do carro é escuro, mas consigo ver a silhueta de Brenda dentro dele.
Quando me aproximo, ela destrava as portas para que eu entre. Mal me
sento no banco e a diretora já arremessa uma pasta de arquivos no meu
colo.
— Boa tarde para você também — ironizo, encantada com a recepção.
— Você tem quarenta minutos para ler tudo. — Brenda determina e já dá
partida no carro, saindo em velocidade pelo estacionamento, sem se dar ao
luxo de perder tempo.
— Aonde vamos?
Minha mãe olha rapidamente para mim. Durante os segundos que
passamos nos encarando, percebo o que seu olhar significa.
É quase como se houvesse sombras dançando em suas pupilas.
— Ao Navio.

oito anos antes

“Uma menina de dezesseis anos que já empunhava armas, treinava para


ser uma atiradora e sabia lutar melhor do que agentes muito mais velhos,
achava que estava preparada para tudo. Eu tinha uma falsa ideia de que
era capaz de suportar qualquer coisa, que era imbatível.
Até o dia em que conheci o Navio.
Minha mãe não me contou para onde estava me levando. Até então, eu
não sabia da existência da parte mais obscura da agência.
Do local onde as piores coisas aconteciam.
Um navio atracado na baía de Sinclair, uma das cidades mais próximas
à agência, aparentemente abandonado, era palco das maiores atrocidades
da ANDOS. Era o local onde, de fato, conseguíamos informações. Não
pelos interrogatórios convencionais, mas sim por tortura.
— Por que a Alex não veio? — foi a primeira coisa que perguntei,
quando descemos do carro e eu avistei o Navio.
Estava de dia, mas, ainda assim, o lugar me transmitia medo.
— Ela não está pronta — Brenda respondeu, sinalizando para que eu a
seguisse.
Mesmo apavorada com o que estava prestes a acontecer, abri um sorriso
convencido. Alex não tinha sido convidada porque eu era melhor do que
ela. Porque eu estava pronta.
Ou pelo menos achava que estava.
As portas do Navio se abriram para que a diretora entrasse. Ela me
apresentou Connie, a agente que era responsável por cuidar do lugar, e as
duas me conduziram em um tour, me explicando o que acontecia ali.
Nas missões de captura, os bandidos eram levados direto para lá. Aquele
era só um momento transitório, uma pré-morte, elas explicaram. As
pessoas que ficavam presas ali morriam por revelarem seus segredos ou
por tentarem escondê-los. A sentença já estava dada, bastava eles
decidirem se queriam perder a vida de forma rápida ou dolorosamente
lenta.
Nunca fui uma adolescente comum, mas, naquela época, eu ainda tinha
uma pequena — talvez minúscula — parte que se mantinha pura.
Nos corredores escuros do Navio, eu me corrompi de vez. Deixei as
sombras entrarem. Permiti que minha mente fosse dominada por elas.
— Joy, você vem comigo. — Minha mãe indicou uma das salas,
liberando Connie para que ela voltasse ao trabalho.
Engoli em seco quando percebi que havia um homem dentro da sala. Ele
estava jogado no chão, pendurado pelos braços, os punhos acorrentados na
parede. As correntes que evitavam sua fuga eram grossas, me levando a
compreender que o homem era forte.
Entretanto, havia sangue por todo o lado. Em seu rosto. Em seu peito nu.
Em seus pés descalços. No chão e nas paredes da sala.
O cheiro era podre.
— Está vendo esse homem? — Brenda questionou, apenas o indicando
com seu olhar. — Estuprou doze mulheres. Tinha um esquema de sequestros
relâmpagos e fingia ser um motorista de táxi para pegá-las.
A história fez meu sangue ferver. Naquele momento, eu não me lamentei
por ele. Pelo contrário. Acreditei que seu estado era merecido.
— Ele tinha um capanga que também queríamos pegar. Um agente fez
com que revelasse seu nome. Esse homem se tornou uma figura inútil
agora, está ocupando uma de nossas salas à toa — Brenda falou mais do
que o normal, parecendo gostar de estar ali, de estar vendo aquele homem
sofrer.
Eu estava começando a descobrir que também gostava.
— O que você faria com ele? — murmurou perto do meu ouvido, a voz
mais sombria, combinando com o ambiente onde estávamos. — Como
tiraria sua vida? Como o faria se arrepender do que fez? Como o faria
implorar para você parar?
Minha mente formou inúmeras possibilidades. Por alguns segundos, o
pensamento me assustou. Logo percebi que não precisava freá-los. Eu
estava treinando para me tornar uma agente e aquilo fazia parte do meu
mundo.
Fora que ele merecia.
Merecia muito.
— Doze facas. Uma em cada parte de seu corpo, uma para cada mulher
que ele estuprou. Vou torcê-las dentro dele até que o imbecil ensope esse
chão de sangue.
Quando as palavras saíram da minha boca, eu nem mesmo acreditei.
Brenda, por outro lado, abriu um sorriso soturno.
— Ele é seu.
Entendi sua permissão como um aval para que eu matasse pela primeira
vez.
Uma pessoa normal poderia correr, negar, se assustar. Eu mesma estava
com medo quando entrei no Navio. Mas naquele momento, depois de saber
o que o homem tinha feito, depois de saber que ele não tinha mais nada a
oferecer ao mundo, eu simplesmente soube que queria fazer aquilo, que
precisava matá-lo.
Meus olhos encontraram os de Brenda e eu me vi em sua escuridão.
Espelhei sua crueldade. Resolvi ser tão impiedosa quanto imaginei que ela
seria.
Minha mãe abriu uma caixa cheia de utensílios e me mostrou tudo o que
havia ali, prometeu que me ensinaria a utilizar todos. Peguei as facas que
eu precisava, sorrindo para ela, ansiosa para aprender mais sobre a arte
da tortura.
O homem não estava mais em condições de falar, quando me aproximei.
Contudo, eu vi em seu rosto o deboche por estar diante de uma garotinha.
Eu era magra, alta, tinha um rosto bonito. Minha mãe dizia que eu tinha
a aparência perfeita para derrotar quem eu quisesse, que ninguém nunca ia
esperar um golpe vindo de mim.
Usei essa vantagem para começar a sessão.
Peguei uma das facas e arremessei na mão esquerda do homem,
perfurando sua palma, fincando-a na parede.
Ele gritou de dor.
Meu sorriso aumentou.
Lancei outra faca, dessa vez em seu antebraço. Eu era cuidadosa com os
movimentos, lembrando de todas as aulas de anatomia que minha mãe
tinha me dado, me ensinando onde eu podia atirar para matar, onde eu
podia atirar para imobilizar.
Ainda era cedo para aquele homem morrer. Eu precisava de tempo para
decidir onde arremessaria cada faca. Queria vê-lo sofrer, queria ouvir os
berros guturais que soltaria.
Fui lançando uma por uma, paciente, cuidadosa, trabalhando meu
ataque final com calma. Filetes de sangue saiam de seu corpo e iam direto
para o chão. Eu estava tão próxima a ele, que minhas botas começaram a
ficar vermelhas. Vez ou outra, a faca rasgava sua pele com tanta força, que
respingava sangue em meu rosto.
Não me importei.
Continuei seguindo em frente com meu plano, até que uma única faca
sobrasse em minha mão. O homem já não conseguia mais erguer a cabeça,
eu chutava que estava quase morto. Era hora da minha cartada final, do
grand finale.
— Homens como você não merecem terminar a vida inteiros. Isso é pelas
garotas que você marcou para sempre, seu merda!
Ergui a última faca com as duas mãos, levando-a acima da minha
cabeça para poder aumentar minha força. Com um único movimento,
esfaqueei suas bolas.
Ele estava fraco, mas arranjou forças para me fitar. Seus olhos
transbordavam desespero. Ao invés de desviar, eu permaneci encarando,
assistindo enquanto a vida, aos poucos, sumia de seu corpo.
Quando ele enfraqueceu de vez, observei o caos que eu mesma tinha
criado. Admirei o quanto as facadas tinham sido precisas, o quanto meu
golpe final tinha sido poético. Aquele era o primeiro homem que eu havia
matado, mas ali, tive certeza de que faria de novo, de que queria fazer de
novo.
— Agora sim, o seu treinamento começa — disse Brenda, parando ao
meu lado, também olhando a cena. Eu nunca sabia se ela estava contente
ou não com o que eu fazia.
— Estou pronta — afirmei, validando o que ela compreendeu antes de
mim, passando naquele teste.
Brenda assentiu e disse que nós voltaríamos lá no dia seguinte.
Achei que iríamos torturar outra pessoa, que ela iria me ensinar novas
técnicas, me mostrar formas de fazer alguém abrir o bico. Nunca me
passou pela cabeça que minha própria mãe me amarraria em uma cadeira
e daria chicotadas em mim. Fui pega de surpresa e destruí a fortaleza que
eu tinha construído no dia anterior.
Eu não era forte porra nenhuma. Matava sem problemas, mas me
afundava em lágrimas quando sentia o couro quase cortar minha pele.
Ainda mais com minha própria mãe sendo a executora.
— Pare, por favor, pare! — implorei, sentindo meu rosto úmido, tomado
pelas lágrimas. — Por que está fazendo isso?
Minha pergunta era sincera, Brenda nem ao menos avisou que iria me
torturar.
Ela apoiou as duas mãos nos braços da cadeira onde eu estava
amarrada, deixando seu rosto próximo ao meu. Seu olhar exalava raiva,
ela estava brava por me ver fraquejar daquela forma.
— Não te criei para ser uma garotinha que chora. — Suas palavras
duras me fizeram engolir um pouco o choro. Era difícil freá-lo por
completo, mas eu estava me esforçando a, pelo menos, diminuí-lo. — É
provável que você seja capturada algum dia, Joy. Precisa aprender a
suportar esse tipo de dor e se manter de boca fechada. Se abri-la, pode
comprometer a agência. É isso que você quer?
— Não — respondi, soluçando.
— Eu perguntei se é isso que você quer. Responda como uma mulher,
como a agente que estou te treinando para ser.
— Não — repeti, deixando minha voz mais forte, intimidada pelo olhar
repressor que ela me lançava.
Brenda me encarou. Eu pude ver que não queria seguir em frente, mas
que o faria.
Pela agência, ela fazia tudo.
Até mesmo dar um tapa ardido na minha cara.
A força me fez virar o rosto. Eu estava com as mãos amarradas e tive
que resistir ao impulso de tocar na minha pele dolorida.
— Qual o seu nome? — indagou, o rosto colado ao meu, sua respiração
ofegante batalhando contra a minha.
— Joy... — Outro tapa atingiu meu rosto.
— Estúpida! — xingou, me batendo outra vez.
E outra.
E outra.
E outra.
— Qual o seu nome? — perguntou de novo, até que fiquei em silêncio. —
Para quem você trabalha? — permaneci quieta, mas mesmo assim, ela me
bateu.
Daquela vez, com o chicote.
Suportar a sessão era difícil, mas sabia que Brenda só me deixaria sair
quando eu aprendesse a ficar calada. Permanecemos naquele ritmo por
horas, até que ela decidiu que eu já estava machucada demais para um
mesmo dia.
Quando eu me curasse, voltaríamos ali, foi o que ela disse.
E Brenda não era uma pessoa que descumpria promessas.
Nós nos trancávamos em uma das salas do Navio pelo menos uma vez
por semana. Todos ali sabiam o que ela fazia, mas não diziam nada. Só nós
duas ficávamos lá dentro. Só Brenda tinha permissão para me tocar.
Durante um ano, eu fui torturada por ela. A cada semana, ela criava
uma coisa diferente. Toda vez que eu não resistia, era punida.
Aos poucos, os hematomas foram diminuindo. Meu corpo foi se
acostumando com aquilo e eu não sentia mais a mesma dor de antes. Os
tapas de Brenda ficaram sem graça. O chicote fazia cócegas na minha pele.
Aprendi a controlar minha respiração para não sufocar caso tentassem me
enforcar. Desenvolvi uma habilidade de não sentir dor com cortes
pequenos.
De uma forma estranha e perturbada, passei a me divertir nas sessões, a
ansiar pela próxima invenção de Brenda.
Eu queria desafiá-la. Queria que quebrasse a cabeça tentando achar
uma forma de me fazer abrir a boca. Depois de um ano, eu aprendi que
provocar e tentar revidar era a melhor forma de escapar de uma situação
daquela. Tirar Brenda do sério se tornou meu hobby favorito.
Até que ela decidiu que nosso treinamento tinha chegado ao fim. Me
lembro exatamente do dia em que minha mãe resolveu parar. Ela prendeu
minhas mãos com correntes, me deixou praticamente pendurada pelos
braços, e a única reação que consegui esboçar foi um sorriso.
Sombrio, nefasto e repleto de escuridão.
Assim como o dela.
— Me entregue o seu pior — foi o que eu pedi, antes de começarmos
nossa última e mais tenebrosa sessão juntas.”

Quando pulo para fora do carro e observo o Navio, percebo que algumas
coisas nunca mudam. Ele continua grandioso e macabro, exatamente da
forma que me lembro.
Brenda não fala nada, apenas tranca o carro e segue na direção da
entrada, esperando que eu a siga. Meu corpo tem uma reação estranha a
esse lugar. Sinto que fico mais forte no minuto em que passo pela porta de
ferro.
Fraquejar dentro do Navio nunca é uma opção, seja você a executora da
sentença ou a torturada. Eu já estive em ambas as posições mais vezes do
que consigo contar.
Minha mãe me lança um olhar conforme andamos pelo corredor, sem
dúvida lembrando das mesmas coisas que eu. Entretanto, remorso não é
algo visto em suas pupilas. Ela não gostava de me torturar, mas fez o que
era necessário para me tornar o monstro que eu sou.
— Connie — a diretora cumprimenta a responsável pelo Navio, que se
aproxima para nos receber.
Ela é negra, tem o cabelo raspado, os olhos escuros como o ambiente em
que estamos. Connie é da geração de Brenda e é uma de suas pessoas de
confiança. Os ouvidos, olhos e mãos da diretora dentro do Navio.
— Diretora, está tudo pronto para você — avisa, educada e singela como
sempre. — Joy, é bom vê-la novamente. — Me cumprimenta com um breve
sorriso, ao qual eu retribuo.
Não estou com vontade de falar nada, contudo.
Brenda pediu que eu deixasse o arquivo com as informações do homem
que eu vim torturar dentro do carro. Estou repetindo-as em minha mente
para não as esquecer.
Marlon. Vinte e poucos anos. Parte de uma máfia ainda desconhecida.
Resistente a todas as torturas às quais foi submetido. Sem família. Sem
vínculos. Um resto de tatuagem no corpo, impossível de ser identificado. O
maldito praticamente arrancou um pedaço da própria pele quando foi
capturado, para que não reconhecêssemos o desenho. Já foi torturado por
Elizabeth e David, os pais de Lucy, dois dos maiores agentes da ANDOS. O
cara é valioso. Não sei o que ele fez para chegar até aqui, mas estou pouco
me lixando. Vou fazer o que precisa ser feito.
— Obrigada, Connie. Assumirei daqui. — Brenda estende a mão para
que a mulher lhe entregue uma chave.
Percebo que é pesada, grossa e está enferrujada.
Marlon está sendo mantido nas salas do porão do Navio. Um local mais
isolado, livre da visão de grande parte dos agentes, aberto apenas quando a
diretora ordena.
Brenda segue pelos corredores até chegarmos ao elevador. É uma
máquina antiga, apenas fechada por grades. Conforme descemos,
conseguimos enxergar cada um dos andares, escutar cada um dos gritos.
— Você está quieta — diz Brenda, quebrando o silêncio gelado entre nós.
— Quer que eu diga o quê? — rebato, levantando as sobrancelhas.
Já entendi que vou torturar um cara até fazê-lo falar. Brenda está
apostando fichas em mim, depositando essa missão em minhas mãos. Para
que ela confie em mim novamente, preciso cumprir o que me foi proposto.
É um acordo simples.
— Descubra para quem ele trabalha. Quando obter a informação, conte
somente a mim. Ninguém pode saber sobre isso, entendeu? — A mensagem
de Brenda é fria e clara.
Essa é uma missão secreta.
— Entendido — respondo, transmitindo tranquilidade, quando, por
dentro, repasso todas as técnicas que ela já me ensinou.
Não entendo o que a leva a crer que eu terei sucesso, mas tenho para mim
que esse é o momento em que a aprendiz supera a mestra. Ela está
apostando que minha determinação me impedirá de falhar. E ela está certa.
O elevador para no último andar do Navio. Há apenas um segurança
fiscalizando o corredor, um homem que com certeza tem a confiança de
Connie e Brenda. Ele avança para abrir a porta de ferro, sem exibir qualquer
expressão.
Encaro Brenda uma última vez, vendo-a tão impassível quanto o homem.
Porém, em seu olhar, consigo perceber que há uma preocupação, um alerta.
Ela precisa que eu consiga a informação. Essa missão não é qualquer uma.
Marlon é a peça de um quebra-cabeça que eu ainda não tenho permissão
para conhecer.
— Faça o seu pior. — É a última coisa que ela diz, antes que o segurança
feche a grade e eu a veja subir novamente para a superfície.
Espero até que ela suma da minha visão para contemplar o corredor à
minha frente. As paredes estão com uma aparência enferrujada. Há uma
única lâmpada fraca iluminando o ambiente. De tempos em tempos, ela
pisca.
Exatamente como piscava quando eu era uma adolescente e passava
horas presa nesse lugar.
As salas estão todas vazias, exceto pela última. O segurança me leva até a
caixa onde nossos instrumentos estão. Pego um garrote e uma faca. Ele me
fita, com certeza se perguntando como conseguirei alguma coisa somente
com isso. O homem não me conhece, não sabe do que sou capaz.
— Você é forte. Venha comigo — ordeno, sinalizando para que me siga
até a sala onde Marlon está.
Não sei o que ele fez, mas finjo que é apenas mais um nome na minha
lista, apenas mais um filho da puta que cometeu alguma atrocidade.
O imbecil está ensanguentado, deitado no chão em posição fetal, usando
apenas calças. Dá para ver que está aqui há dias pela saliência em suas
costelas, pelo sangue seco que domina o chão da cela.
Ordeno que o segurança me ajude a levantá-lo. Marlon nos xinga e tenta
se debater, mas está fraco, não é páreo para nossa força.
Ele não vai durar muito, Elizabeth e David acabaram com ele. Preciso ser
rápida e precisa.
Prendo seus punhos e tornozelos na parede. Com a ajuda do segurança,
Marlon fica pendurado pelas extremidades, as pernas e braços abertos, a
cabeça caída, tamanha a dor que ele deve sentir em seu corpo.
Dispenso o segurança, imaginando que ele não quer ficar para ver o que
vou fazer com nosso prisioneiro.
— Eu não vou falar nada, vadia! — Marlon ergue a cabeça por um
momento, cuspindo sangue na minha direção.
Olho para o lugar onde as gotas caíram no chão, indignada com o quanto
sua mira é péssima.
— Há algumas coisas que eu odeio na vida, Marlon — começo a falar,
girando a faca entre os dedos. — Quer saber quais? — Ele me olha com
repugnância, mas há um certo desespero em suas pupilas. É a esse
desespero que eu me apego. — Injustiças. Gente fraca. Homens. Ah, como
eu odeio homens! — Solto uma risada irônica, me aproximando dele,
ficando próxima o suficiente para usar minha faca para erguer seu queixo.
— Homens estão no meu Top 1 de coisas mais odiadas, mas há algo sobre
os homens que eu adoro. — Marlon engole em seco, tentando me desafiar
com seu olhar. Pelo jeito, não aprendeu nada com as últimas duas pessoas
que vieram o torturar. — Homens têm uma fraqueza.
Mantenho a faca em seu queixo e, com minha mão livre, torço suas
bolas.
O grito que ele dá deve estar sendo ouvido na sede da agência.
— Sua puta! Desgraçada! — Se debate, virando o rosto com tanta força,
que acaba se cortando com a minha faca.
Gotas de sangue voam em meu rosto. Eu nem me mexo. Sempre achei
que o sangue me deixava mais intimidadora.
— Você quer ir para o inferno com ou sem pau? — Aperto suas bolas
com mais força, a faca se aproximando mais de seu pescoço, obrigando-o a
olhar para mim. Vejo lágrimas escapando pelos seus olhos. Fraco. — Para
quem você trabalha, Marlon?
— Nunca. Vou. Dizer — fala pausadamente, mostrando os dentes
ensanguentados, tentando me amedrontar.
— Sem o pau, então? Certo.
Tiro minha faca de seu pescoço, guardando-a de volta no bolso. Pego o
garrote, puxando as duas pontas na frente de Marlon, para que ele perceba o
que estou prestes a fazer.
— Não, não. — Se debate novamente, mas agora não há volta.
Abaixo sua calça de uma vez. Seu pau está encolhido. Talvez já tenha
sido mediano um dia, mas agora é tão pequeno, que dá dó.
— Isso tudo é medo, Marlon? — abro um sorriso repleto de escárnio.
— Sua vadia maluca! — ele xinga, eu apenas o encaro, amarrando o
garrote no seu pau.
— O corpo humano é perfeito, sabia? Quando você prende uma área, ele
para de levar sangue até lá. Não é incrível? — Aperto um pouco mais o nó.
Sinto que meus olhos brilham quando o vejo urrar de dor. — Normalmente,
o garrote não é usado por mais do que um minuto. Então, se você quiser
manter o seu pau até o fim dessa conversa, sugiro que comece a falar.
Marlon se debate e tenta escapar das algemas, mas não adianta. Ele só se
machuca mais. Não há escapatória. Eu venci.
— Eu... eu.... não... sei quem é o chefe — gagueja.
— Resposta errada.
Uso minhas duas mãos para apertar o nó mais uma vez. O pequeno pau
está ficando branquinho.
— CARALHO! — Marlon berra, é um grito gutural, que vem do fundo
de sua alma. Aperto de novo, fazendo-o chegar ao limite. — Para, para, por
favor, para! — implora, sem ver outra saída.
— Para quem você trabalha?
— Eu já disse que não sei o nome do chefe!
O garrote esmaga seu pau outra vez.
— Alguma coisa você sabe, Marlon. Quem era seu contato? Quem te
pagava? — mudo as perguntas, buscando outra saída. Ele está desesperado,
com certeza me diria o nome do seu chefe se soubesse.
— Richard O’Conell. Ele era o cara com o dinheiro e as informações,
mas não dava as ordens.
Sua resposta me faz afrouxar um pouco o garrote.
Richard O’Conell é o Chefe de Gabinete na Casa Branca, trabalha
diretamente com o Presidente, justo o único cara que tem poder sobre
minha mãe.
Isso só fica mais interessante.
— Você sabe alguma coisa sobre quem dá as ordens? — questiono, mas
Marlon parece hesitante em responder. Para surpreendê-lo, pego minha faca
e corto um pedaço da cabeça do seu pau. Sangue começa a jorrar para todo
o lado, mas pouco me importo. Esse idiota vai morrer agora ou mais tarde,
pelas mãos de outra pessoa. — Pense direitinho na resposta.
— Eles chamam a pessoa de Coruja. Eu não sei nada além disso, eu juro.
— Jura pelo seu pau? — pergunto, segurando o garrote com uma mão, a
faca com a outra.
— Juro, eu juro, por favor, eu juro. É tudo o que eu sei. — O pobrezinho
começa a chorar de desespero.
Depois dizem que as mulheres são o sexo frágil.
— Obrigada pela sua cooperação, Marlon — agradeço, dando dois
tapinhas carinhosos no seu pobre pauzinho.
Limpo minha faca nos restos da sua calça e guardo de volta no bolso.
Dou um último sorriso cínico para Marlon e me dirijo a porta, ansiosa para
contar a Brenda o que eu descobri. Quero analisar sua reação quando souber
que alguém relacionado ao Presidente está, aparentemente, envolvido com
uma máfia.
— Ei, espera, você vai me deixar amarrado? E com essa porra
esmagando meu pau? — Marlon pergunta, indignado.
Ele ainda tinha alguma esperança?
— Aqui se faz, aqui se paga, meu amor. Você demorou muito para abrir a
boca.
Aceno para ele, que solta mais um berro, desesperado por passar os
últimos minutos de sua vida sofrendo dessa forma.
Ele pode se vingar de mim quando estivermos no inferno.
Agora, eu vou relaxar fumando um cigarro bem longe daqui.
Minha alegria dura pouco. Depois de limpar o sangue do meu rosto e das
minhas mãos, vejo que há uma mensagem de Brenda no meu celular
dizendo que vai conversar comigo somente amanhã, e que mandou um
motorista para me buscar. O homem entrega minha mochila e me deixa na
porta da agência, mais uma vez sem ter onde dormir.
Brenda vai pagar por me fazer passar por esse perrengue.
Penso em chamar um táxi e tentar ir para o apartamento de Luke, mesmo
que ele tenha me dito que não sou bem-vinda em sua casa. Tenho certeza de
que foi a fúria do momento que o fez proferir essas infames palavras. Ele
não teria coragem de me deixar dormindo na rua.
Ou talvez teria, não sei mais dizer. Sua versão esquentadinha ainda não é
muito familiar para mim.
— Está perdida? — Uma SUV preta, como todas as outras do
estacionamento, para à minha frente. Zoey apoia o braço na janela, sorrindo
para mim.
Percebo que Lucy está no banco do passageiro. Minha amiga esboça um
sorriso esquisito, com certeza pensando em seu parceiro. A recepção
calorosa que ela me deu ontem evaporou no minuto em que compreendeu
que eu sabia o segredo de Noah.
— Perdida, não. Abandonada e sem um lugar para ir, sim — admito a
verdade, abraçando a oportunidade que a vida me deu.
Que se dane a cara feia de Lucy. Elas são minha única saída.
— Vamos tomar uma, topa? — indaga, apontando para o banco de trás do
veículo com a cabeça.
Não hesito, apenas dou de ombros, abro a porta e entro no carro.
Passamos o caminho conversando amenidades. Zoey fala sobre a
simulação que fizemos mais cedo e o quanto isso ajudou todos a
perceberem que faço falta na equipe. Eu não sei em que momento os outros
membros do time falaram isso para ela, mas resolvo aceitar, porque sei que
é verdade. Eles são bons, mas comigo se tornam imbatíveis.
Lucy pergunta onde eu estive o resto do dia, e eu sei que não é apenas
uma curiosidade de amiga, e sim uma tentativa de me rastrear. Ela é a nossa
musa da tecnologia, ótima em encontrar quem quer que seja. Não duvido
que tenha tentado me achar nos últimos anos. Lucy só não conseguiu
porque crescemos juntas e conheço todos os seus truques.
— Brenda me pediu um favor — revelo, mas não conto detalhes.
O nome da minha mãe é uma ótima arma quando quero calar a boca de
alguém.
— É questão de tempo até que ela te coloque de volta na equipe — Zoey
constata enquanto estaciona o carro na frente do Black Sea, o bar mais
próximo à agência.
— É isso que espero.
— Os últimos parceiros do Luke foram péssimos — diz Lucy, fingindo
normalidade por causa da presença de Zoey.
— Conhecidos? — pergunto, curiosa por descobrir que Luke teve outros
parceiros durante esse tempo.
— Ninguém relevante. Todos desistiram de trabalhar com ele —
responde Zoey, quando já estamos fora do carro e entrando no bar.
Saber que Luke não conseguiu se dar bem com nenhum outro parceiro é
estranhamente reconfortante.
O sino denuncia nossa entrada, mas ninguém nos encara. As pessoas de
Row Fair já aprenderam a ser discretas. O Black Sea fica próximo o
suficiente para que os agentes da ANDOS frequentem o lugar com certa
regularidade. Logo, nesse ambiente, os civis e os agentes convivem em paz.
Há um acordo de discrição pairando no ar. Ninguém sabe ao certo quem
trabalha na ANDOS, mas eles têm suas desconfianças. Três mulheres gatas
e com um andar poderoso como o nosso, definitivamente, chamam atenção.
Porém, podemos ser jovens bonitas procurando uma diversão ou agentes
secretas relaxando depois de um dia de trabalho.
Nenhum deles jamais saberá a verdade, e preferem se manter distantes a
arriscar serem mortos. Quando se mora em uma cidade como essa, ou você
fica quieto ou acaba com a sua vida.
— Noah está ali — Lucy indica a mesa mais ao fundo, onde seu parceiro
está sentado, com um gorro preto enfiado na cabeça.
Que ótimo disfarce.
Nós nos aproximamos, não sem antes pedir uma rodada de cervejas
gigantescas para nos hidratarmos.
Percebo que Noah está um tanto desconfortável com minha presença.
Apesar de entender, odeio que ele se sinta assim. Não era o tipo de relação
que tínhamos.
Espero até que Lucy e Zoey resolvam ir pegar mais bebidas para fitar
Noah diretamente.
— Minha boca é um túmulo — falo, sabendo que ele não tem pulso
suficiente para iniciar a conversa que tanto quer ter.
Vejo o pomo de adão de Noah subir e descer, indicando seu desconforto
com o assunto.
— Esse segredo precisa permanecer um segredo, Joy. Eu ainda...
Levanto a mão para que ele pare de falar.
— Não precisa se justificar. Pode confiar em mim igual sempre confiou.
— Tento passar alguma credibilidade, mas, pelo que vejo nos olhos azuis de
Noah, não funciona.
Minha má fama me precede.
— Como posso confiar em alguém que não sei se ainda conheço? — Sua
pergunta me fere, entretanto, não deixo nada transparecer em meu rosto. —
Você passou quatro anos fora. Ninguém nem sabe onde você esteve.
— Arrumando encrenca, com toda certeza — Zoey brinca quando volta à
mesa, distribuindo canecas abastecidas de cerveja.
Eu me calo, mas solto uma risada para evitar que alguém perceba a
tensão entre mim e Noah.
Quando penso em quanto tempo fiquei longe deles, fico chateada. Tive
meus motivos, mas isso não significa que a distância tenha doído menos.
Sou humana.
E já percebi que terei que batalhar se quiser ganhar a confiança de Noah
de volta.
— Aproveite que estamos só nós, longe da agência, e nos conte um
pouco das suas aventuras — Lucy incita, parecendo animada, mas eu sei
que está doida para arranjar algo para usar contra mim.
Ela bebe um gole de sua cerveja, me encarando por cima da caneca,
esperando para ver o que vou responder.
— Não foi tão emocionante quanto parece. — Dou de ombros, dando
uma longa golada em minha própria cerveja, adorando o sabor amargo do
álcool contra a minha língua. — Tentei desvendar um mistério, falhei, e
depois decidi me virar fazendo a única coisa que eu sei fazer. — Resolvo
entregar um pouco da verdade, sabendo que, se eu não disser nada, os
questionamentos não vão parar.
— Matar, sequestrar, arrancar informações sobre qualquer coisa que você
queira descobrir? — Noah indaga, certeiro.
— Exatamente. — Levanto minha caneca para ele, brindando em
homenagem ao seu belo conhecimento.
— Brincou de justiceira? — Lucy questiona, os olhos azuis me
devorando, ansiosos para me verem cair.
Que sua mãe me desculpe, mas Lucy virou uma filha da puta.
— Pode se dizer que sim. Era divertido. — Mantenho minha resposta
sarcástica, sem me afetar com as indagações de Lucy. Se eu mostrar
qualquer fraqueza, ela vai achar uma brecha para tentar me controlar.
Mas nós duas passamos boa parte da adolescência juntas. Fomos
treinadas por nossos pais, que são colegas há anos. Seu treinamento foi
mais suave do que o meu — Liz e David não torturaram a própria filha —
porém, Lucy é boa. Articulada, esperta, maliciosa quando precisa.
— Alguém te pagava? — indaga com mais transparência, transbordando
rancor em sua expressão.
— Lucy! — Zoey repreende a pergunta invasiva da amiga, negando com
a cabeça para mostrar sua indignação.
— Joy é nossa amiga, ficou desaparecida por anos. Só estou tentando me
atualizar. — A loira se justifica como se seu comportamento pudesse ser
resumido a apenas curiosidade.
Além do fato de nos conhecer, Zoey é esperta o suficiente para não
comprar um teatrinho desses. Ela alterna o olhar entre mim e Lucy, sabendo
que há algo acontecendo. Por sorte, eu e Noah fomos discretos e ela não
consegue encaixá-lo nessa equação.
Esse segredo não pode ser vazado para Zoey de forma alguma.
— Ninguém pagava, Lucy. Eu estava apenas tentando contribuir para um
mundo melhor, ainda que de uma forma um tanto nebulosa. — Entrego a
eles meu melhor sorriso debochado. Zoey e Noah soltam um leve riso, com
certeza pensando no quanto isso é minha cara.
Em compensação, Lucy não se comove. Ela apoia os antebraços na mesa
de madeira, a pele tão pálida, que contrasta com o tom escuro.
— Como arranjou dinheiro para sobreviver? — Lança mais um
questionamento.
Estou começando a ficar sem paciência.
— Trabalhos normais. Restaurantes, cafés e bares.
Lucy não parece satisfeita com a resposta. Preciso tomar cuidado com
ela. Se minha antiga amiga quiser dedicar uma parte de seu tempo para
desvendar meu passado, poderei ter problemas.
— Você disse que falhou em descobrir o mistério do sequestro do seu
irmão. Imagino que isso tenha sido há anos. Por que não voltou antes? Por
que agora? — A próxima pergunta pega em um ponto delicado.
Investiguei o caso de Ethan por alguns meses, até perceber que estava em
um beco sem saída. Quando o período acabou, eu estava mergulhada no
submundo, envolvida até o pescoço com gente que eu não deveria me
envolver. Voltar deixou de ser uma possibilidade. Não só para não
comprometer a agência, mas também porque eu sabia que seria julgada por
duzentas encarnações se soubessem onde eu andei, com quem eu andei.
Esse é um segredo que pretendo levar comigo para o túmulo.
— Estava cansada dessa vida — respondo com um ar mais sensível,
ferido, tentando comovê-los.
Os três sabem que tenho problemas com minha mãe, que minha relação
com a ANDOS é complicada, que passei por coisas diabólicas para me
tornar a pessoa que sou hoje.
— Vamos parar com o interrogatório? — pede Zoey, enfática.
Ela leva uma mão para cima da minha, que está apoiada no estofado do
banco. Seu toque firme me mostra que ela está me apoiando, sentindo
compaixão pela minha dor fingida.
Eu não tinha dúvida de que ela me defenderia.
— Nem Brenda me fez tantas perguntas — falo, ainda mantendo o tom
suave.
Por fora, sofrendo. Por dentro, sorrindo. Sempre.
— Ela te falou alguma coisa sobre voltar para a nossa equipe? — Noah
pergunta, aceitando meu pedido silencioso de encerrarmos qualquer assunto
relacionado a minha fuga.
— Falou, sim. É provável que aconteça.
Mas não antes de eu fazer inúmeras perguntas a ela amanhã. Essa história
de O’Conell estar envolvido com uma máfia é estranha demais. Algo nessa
história não me cheira bem.
— Nate vai pirar. — Noah ri, balançando a cabeça e pegando sua caneca
para beber.
— Como se eu me importasse. — Seguro minha própria caneca,
arrancando risadas dele e de Zoey.
Lucy permanece imóvel, recostando o tronco no banco, apenas
observando a conversa.
Zoey fala sobre Nathan, Noah dá seus próprios pitacos no relacionamento
do irmão, até Lucy volta a participar do diálogo, quando percebe que o
assunto é importante para a nossa amiga.
Passamos mais algumas horas no bar. Quando o relógio marca uma da
manhã, Zoey anuncia que é hora de irmos embora. Todos concordam e nós
seguimos juntos para fora do Black Sea. Noah se despede, entra em seu
carro e vai embora.
O momento constrangedor nomeado como “onde vou dormir” me atinge
de novo. Pretendo, discretamente, me convidar para ficar no sofá de Zoey e
Lucy. Não tenho muita escolha.
— Te deixo na sua casa? — minha amiga pergunta, segurando a chave do
carro entre os dedos.
— Na verdade, não. Brenda ainda não contou para o meu pai que voltei,
a situação na família está um pouco confusa — explico, focando meu olhar
no de Zoey, esperando que o convite seja feito.
A lealdade sempre foi sua melhor característica.
— Fique com a gente, não tem problema. Temos um quarto sobrando
mesmo. — Dá de ombros, fitando Lucy para ver o que ela acha.
A loira hesita por alguns segundos, mas, quando vira para mim, abre um
sorriso falso, montado para deixar claro que ela seguirá o ditado “mantenha
seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda”.
— Pode ficar por quanto tempo quiser, Joy. Vamos adorar receber você.

O apartamento das minhas amigas fica em um bairro afastado do centro


de Row Fair. Elas me explicam que vários agentes moram na região, por ser
um local próximo à agência. O lugar tem três quartos, uma sala ampla, uma
cozinha americana e uma varanda enorme, dando a ideia de que o ambiente
é ainda maior do que de fato é.
Zoey me empresta um pijama, me dá um cobertor e um travesseiro para
que eu durma na sala. Nenhuma das duas me convida para ir até seus
quartos, me levando a entender que nossa relação está longe do patamar de
antes.
Vestida com a calça xadrez vermelha e a camiseta branca de Zoey, vou
até a varanda. Acendo um cigarro, tragando com calma, deixando que a
nicotina faça seu trabalho e me relaxe.
Perto de Nova York, local onde passei boa parte dos últimos anos, as
luzes de Row Fair são sem graça. Sinto falta da cidade que nunca dorme, de
seus mistérios, dos inúmeros desgraçados andando soltos que eu conseguia
eliminar, dos meus amigos. Minha segunda equipe, como eu os chamava
secretamente.
É uma pena que eles precisem ficar no passado.
Trago profundamente e vou soltando a fumaça devagar, olhando para
cima, encarando o céu nublado. Reflito sobre o rumo que minha vida
tomou. Meu futuro parecia traçado, até o sequestro de Ethan acontecer. Tive
que deixar minha equipe para trás, me reergui, encontrei outro grupo para
pertencer, e então também tive que deixá-los. Agora estou aqui, novamente
no lugar onde me tornei quem sou, tentando reconquistar o território que
perdi.
— Desde quando você fuma? — a pergunta me tira do devaneio.
Era de se esperar que Lucy viesse atrás de mim.
— Faz algum tempo — respondo sem olhar para trás. — Quer? —
ofereço, apenas mostrando meu cigarro pela metade.
Em poucos segundos, Lucy aparece ao meu lado, aceitando a oferta.
Nunca a vi fumar, mas essa sem dúvida não é sua primeira vez. Minha
amiga costumava ser certinha, evitava a todo custo quebrar as duras regras
que eram impostas a nós. Essa não é mais sua realidade.
Lucy está com os fios loiros presos em um coque desordenado. Seu corpo
está coberto por uma camisola preta que vai até o meio das coxas. Acabo
reparando que elas estão mais finas do que o normal.
Apesar da pose afrontosa, Lucy não está bem. Levanto a hipótese de estar
vivendo um momento de rebeldia tardio, uma adolescência na era jovem
adulta. Não há muitas coisas que explicam sua magreza. Duvido que seja
algum distúrbio de imagem, Lucy nunca teve problemas com isso. Duvido
que seja alguma doença, caso contrário Zoey estaria a tratando com cautela.
Pelo olhar que vi em minha amiga, entendi que o problema de Lucy a
incomoda e a preocupa, mas sua causa não é conhecida. Zoey sabe mais do
que eu, porém, não sabe tudo.
— Diga o que quer, Lucy. Nós duas sabemos que você não veio até aqui
só para dividir um cigarro comigo. — Faço um sinal para que ela me
devolva o cigarro.
Lucy dá mais um trago, olhando direto para mim, e só então consigo
voltar a fumar.
— Se abrir a boca sobre o segredo de Noah, vou fazer questão de passar
todas as horas do dia rastreando seu passado — ela usa um tom ameaçador,
espremendo os olhos para tentar me amedrontar. — Vou descobrir tudo o
que você fez nesses anos que ficou fora. Imagine só sua querida mãe
recebendo relatórios e mais relatórios de todas as suas atividades ilegais.
Nós duas sabemos que você não seria capaz de ficar apenas procurando seu
irmão, não é?
Lucy leu a situação com perfeição. É uma merda que ela tenha essa
vontade de desenterrar meu passado. Uma mulher determinada consegue
fazer grandes estragos. Não posso deixar que perceba o quanto me
preocupo com sua intenção de me expor.
— Não esperava isso de você.
— Foram quatro anos, Joy. Muita coisa mudou.
— Quem garante que você vai conseguir encontrar alguma coisa? —
devolvo, tragando o cigarro, esboçando uma tranquilidade que não existe
dentro de mim.
— Sou a melhor no que faço. Não me teste. — Lucy deixa a voz mais
linear, mais ameaçadora.
Apesar de não estar em um bom momento, ela consegue virar uma leoa
quando o assunto está relacionado ao seu melhor amigo. Mesmo que a
ameaça seja direcionada a mim, gosto de vê-la mais forte.
— Prefere ameaçar me expor, do que ameaçar me matar? — indago,
soltando a fumaça rapidamente, quase baforando em seu rosto.
Lucy não se mexe. Seu rosto se camufla a fumaça, desaparecendo na
escuridão por alguns segundos.
— A morte é suave demais para você. Assistir sua queda me parece
mais... divertido. — Ela dá um passo para mais perto de mim, acabando
com meu espaço pessoal. — É essa a palavra que você costuma usar
quando tortura alguém, não é?
Sinto um arrepio na espinha quando a escuto. Ela jogou baixo.
— Me importo com o Noah, Lucy. — Apago o cigarro no parapeito da
varanda e jogo a bituca na direção da rua, enquanto olho para ela. — Esse
segredo não é meu para contar.
Estou séria, mostrando a ela que não estou brincando. Não tenho
interesse nenhum em revelar isso a alguém.
— Você pode ser amiga dele, mas Noah é meu parceiro, meu melhor
amigo, minha alma gêmea, a pessoa mais importante da minha vida. —
Aponta para o próprio peito para enfatizar suas palavras.
— Você mata e morre por ele — concluo, porque compreendo o que
Noah significa para ela.
— É o lema, é o juramento que fiz quando me tornei parceira dele.
Lucy se exalta um pouco. Noah é seu ponto fraco. Ela é capaz de tudo
por ele, até ameaçar uma de suas melhores amigas.
— Fique tranquila. Não vou te dar trabalho. Me rastrear seria difícil
demais até para uma gênia da computação como você. — Trago um tom
mais sarcástico para o diálogo, querendo encerrar essa conversa.
Se continuarmos nesse ritmo, vou precisar acender outro cigarro.
— O tempo passou, amiga. Estou muito melhor do que você se lembra —
afirma com o rosto perto do meu, confiante com suas habilidades como
nunca antes.
Abro meu melhor sorriso. Aquele carregado de escárnio que amedronta
qualquer um.
— Eu também, Lucy.
— Que bom — responde rapidamente. — Então estamos entendidas?
— Sim. Pode voltar a abrir sorrisinhos falsos para mim. — Sou
afrontosa, querendo investigar como nossa relação será daqui para frente.
Eu gostaria de ter Lucy novamente em minha vida. Sua amizade sempre
foi importante para mim.
— Estou feliz porque você voltou, Joy. — Percebo que o sentimento é
recíproco. Ela se importa comigo. A questão é que coloca o bem-estar de
Noah acima de tudo. — Minhas reações não foram falsas. Quero continuar
sendo sua amiga, mas se pisar na bola...
— Vou ser exposta — completo a frase por ela.
Aproveito para assentir devagar, mostrando que entendi. Não pretendo
dar com a língua nos dentes, também não quero que Lucy me investigue. É
melhor que os acontecimentos dos últimos anos fiquem onde estão. No
passado.
— Boa noite, Joy. — Lucy dá as costas para mim e volta para o
apartamento. No último segundo, ela se vira e esboça um sorriso.
Entendo que está tudo bem entre nós. Se eu ficar quieta, ela não me
atinge. Esse é o acordo.
Eu deveria dormir agora, mas estou agitada, cheia de coisas na cabeça.
Resolvo acender outro cigarro, fazendo uma concha com as mãos para que
o vento não apague. Trago com força e deixo o cigarro na boca, enquanto
brinco com o isqueiro. Passo o dedo no metal para gerar fogo, vendo a
chama dançando à minha frente, tendo a noite fechada como seu pano de
fundo.
Imaginei que meu retorno seria emocionante, mas não tanto. Muita coisa
já aconteceu e eu ainda nem retornei para a equipe.
Amanhã vou conversar com Brenda e enfim voltar à ativa. Fiz o que ela
pediu, dei o meu melhor para fazer Marlon falar. Preciso ser recompensada.
Levo minha mão para perto do fogo, tentando esquentá-la, tentando ver
se minha resistência ainda existe. Vou aproximando minha pele da parte
mais intensa da chama, retornando somente quando sinto que não vou
aguentar mais.
Meu limiar de dor parece ter se mantido. Ainda estou resistente ao calor.
Ainda estou resistente a tudo.
Assim que estaciono, Alex solta o cinto e vira o tronco na minha direção.
Às vezes, me assusto com o quanto minha filha mais velha se parece
comigo. Alexandra tem vinte e sete anos agora e, no quesito aparência, é
quase meu clone. Seus cabelos pretos são volumosos e ondulados como os
meus. Nossos olhos têm o mesmo tom, nossos corpos têm as mesmas
curvas.
Apesar da semelhança por fora, somos completamente diferentes por
dentro.
— Você precisa contar a verdade a ela, mãe. — Alex tem a voz suave,
mesmo que o assunto não a agrade.
Todos os dias, me sinto grata por ela não ter se corrompido como Joy. Por
ela não ter se tornado como eu.
— Na hora certa — respondo, alcançando um batom nude na minha
bolsa e usando o espelho do carro para aplicá-lo.
— Vai ser pior se ela descobrir por conta própria. — Alex tenta de novo.
Sua indignação com essa pauta é válida, entretanto, não quero que ela se
intrometa. Seria pedir para complicar ainda mais um cenário que já está
fadado ao caos.
— Agradeço a preocupação, mas deixe que eu cuido desse problema —
respondo com a voz mais grosseira, esfregando um lábio no outro para
espalhar o batom, enquanto a encaro.
Alex percebe que quero encerrar o assunto e suspira, se rendendo de
forma fácil, como o habitual.
— Vou trabalhar — anuncia, abrindo a porta e colocando a bolsa em seu
ombro.
— Esteja aqui às cinco horas para irmos embora. Não se atrase —
recomendo. Minha filha sabe que Bryan não gosta que cheguemos tarde.
Alex assente, fechando a porta com cautela e saindo calma pelo
estacionamento. Ela anda devagar, como se pudesse prolongar o seu tempo
do lado de fora do prédio principal. É o claro comportamento de alguém
que odeia o que faz.
Sua infelicidade não me agrada, entretanto, não existe uma escolha. A
ANDOS faz parte da vida dos Saroyan.
Guardo o batom na bolsa, pego meu celular e digito uma mensagem para
o número novo de Joy, pedindo que venha me encontrar. Começo a verificar
meus e-mails, olho minha agenda para ver se há alguma brecha para que eu
possa encontrar Kyle. É automático que minha mente tente buscar uma
forma de me aproximar dele. Não preciso pensar que quero vê-lo, é algo
quase natural, enraizado dentro de mim.
Ainda que não seja certo para os padrões morais comuns.
Duas batidas no vidro chamam minha atenção. Levanto a cabeça ao
mesmo tempo que levo a mão até a pistola em minha cintura. Percebo que
Joy está parada ao lado da porta do passageiro, acenando para mim com um
sorriso irônico, esperando que eu destrave a porta para ela.
Libero a entrada do carro e Joy se senta ao meu lado, exatamente onde
sua irmã estava minutos atrás. As duas ainda não se viram desde que Joy
voltou, sequer comentei sobre Alex com ela. Aprendi muito cedo que
mantê-las distantes é a melhor escolha. Joy é afrontosa e sem limites, Alex
não aguenta ouvir nada e gosta de acabar com a mais nova para fazê-la se
sentir inferior.
As duas não se gostam. Não tiro minha culpa, sei que tive participação
nisso quando comecei a fazê-las se enfrentarem como oponentes. Contudo,
não é só isso que causa a inimizade das minhas filhas. Elas são diferentes
demais.
— O que descobriu? — pergunto quando Joy fecha a porta.
— A expressão “bom dia” não existe no seu vocabulário?
— Não — respondo com indiferença, pouco me importando com
formalidades. Joy é a primeira a chegar com piadinhas e não cumprimentar.
Ela não tem direito de reclamar de coisa alguma.
Joy assente, debochada. Eu sigo a encarando, esperando que responda
minha pergunta. Ela não entende a seriedade desse caso. Não faz ideia do
quanto Marlon é importante.
— Ele resistiu muito, mas revelou que Richard O’Conell tem
participação nos negócios — simplesmente solta como se isso não fosse
nada demais.
Não consigo esconder minha surpresa.
— O’Conell? O Chefe do Gabinete? — Minha testa se franze quando
começo a pensar.
Richard trabalha diretamente com o Presidente Campbell, o único
homem que me dá ordens. Me pergunto se Campbell sabe do envolvimento
de seu braço direito em negócios sujos. Questiono minha própria percepção
sobre esse caso, me encho de indagações e possibilidades.
Alguém quer nos manter distantes dessa máfia. Por quê?
— Curioso, não? — Joy ergue apenas uma de suas sobrancelhas. É
visível que está interessada no caso.
Isso porque ela não sabe absolutamente nada sobre ele. Se entendesse
todas as entrelinhas e conexões, não pararia até ver essa maldita máfia
queimar.
— Definitivamente — concordo. — E sobre o chefão? Quem, de fato,
comanda as operações?
Essa é uma informação preciosa que eu gostaria muito de ter.
— Você não vai me contar nada sobre esse caso? Marlon trabalhava para
alguma máfia? De qual região? Como ele foi pego? Por que esse caso é tão
sigiloso assim? — Joy dispara, flexionando uma das pernas para ficar de
frente para mim.
— Responda à pergunta que talvez eu te entregue alguma coisa.
Minha filha solta um riso irônico, desviando o olhar para o vidro do
carro, parecendo decidir se cede ao meu pedido ou não. Estamos em uma
batalha por controle, ambas querendo assumir as rédeas dessa conversa,
buscando conseguir o que queremos.
— Ele disse que se referem à pessoa como Coruja, mas que não sabe
nada além disso. Eu o forcei até o limite — revela, voltando a olhar para
mim, exalando raiva ao constatar o que eu sempre soube.
Joy nunca irá me vencer.
— Hm. — É o que respondo, processando a informação em minha
mente.
Preciso marcar uma reunião urgente com os Serpentes.
— Cumpri minha parte do combinado. Agora é sua vez de cumprir a sua
— diz Joy, mantendo a expressão impassível.
— Tecnicamente, você não descobriu para quem ele trabalha.
— Descobri mais do que qualquer outro agente. Posso continuar
ajudando na investigação, se quiser — oferece, certa de que sua habilidade
pode ser útil no caso. Não duvido disso, foi por isso que a chamei para
torturar Marlon. Joy é impiedosa, assim como eu.
Ela está curiosa. Mas não posso permitir que descubra nada agora. Não
quando eu mesma não sei onde ela se meteu nos últimos anos.
Joy pode ser nossa salvação ou nossa ruína. Não há meio termo.
— Não — respondo, deixando claro que a quero afastada neste caso
apenas com meu olhar. — Grande parte da equipe não vai gostar do seu
retorno. — Mudo de assunto, migrando para um território seguro, do qual
eu tenho pleno controle.
— Vou conquistá-los de volta — afirma com uma confiança admirável.
Se eu tivesse sumido do jeito que ela fez, não estaria me achando tanto.
Confiro meu relógio, percebendo que já passei tempo demais dentro do
carro. É imprescindível que eu vá para a minha sala ou vou atrasar todo o
cronograma do dia.
Pego minha bolsa e a coloco em meu colo, procurando pelo envelope que
montei ontem. Estendo-o na direção de Joy, que alterna entre olhar para o
envelope e me encarar, desconfiada.
— Sua credencial oficial e o cartão onde vai receber parte do salário
estão no envelope. O resto, vou te dar em dinheiro, você sabe como
funciona. — explico, insistindo para que ela o segure. Joy abre
rapidamente para conferir o conteúdo. — Já deixei uma quantia inicial no
cartão para você se virar. Aproveite e abasteça esse guarda-roupa. Se vista
como uma agente do seu nível.
Levo meu olhar para sua calça jeans surrada e rasgada no joelho. O par
de tênis nos pés também não ajuda, muito menos o moletom cinza que
colocou por cima de alguma camiseta simples.
— Sim, Diretora — ela responde com ironia, sem dúvida irritada com
minha insistência em relação ao seu visual.
Não posso permitir que minha filha ande dessa forma. Tenho uma
imagem a zelar.
— Devolva minha arma. Kyle terá uma nova para você no -1. Fique lá
hoje e treine. Vou fazer uma reunião com sua equipe para anunciar seu
retorno. A partir de amanhã, você passa a trabalhar com eles — determino,
porque Joy precisa disso. Deixei que ficasse solta por quase dois dias, agora
chega.
— Perfeito — aceita sem reclamar, me deixando desconfiada. — Agora
vai me entregar alguma coisa sobre o caso do Marlon? Passei horas
torturando o homem. Mereço entender o que está acontecendo.
Claro que ela não deixaria essa história de lado.
— É um assunto confidencial.
— Ah, para! Você tem poder para fazer o que quiser dentro dessa
agência, Brenda. Arrisco até dizer que pode fazer o que quiser no país
inteiro usando o nome da ANDOS.
Eu até posso, mas não quero. Guardo essa resposta para mim para não
arrumar outra discussão com ela.
— Não te pedi sigilo por besteira, Joy. Esse é um assunto confidencial.
Vai continuar insistindo ou vai entender o que isso significa? — Lanço meu
olhar mais intimidador na sua direção, para que entenda que é hora de
deixar essa história para trás e calar a boca.
Joy engole em seco, dá para ver que está com raiva da minha falta de
cooperação. Não sei por que ela achou que conseguiria arrancar alguma
coisa de mim. Eu só revelo meus segredos quando me convém. Precisei
dela para torturar Marlon e agora essa missão acabou. Não tenho interesse
em mantê-la por dentro desse caso, pelo menos não por enquanto.
Há muita coisa em jogo.
Minha expressão autoritária cumpre o papel de afastá-la. Joy balança a
cabeça devagar, compreendendo que esse diálogo chegou ao fim. Ela
prende a credencial nova no passante da calça, enfia o cartão de crédito
dentro de um dos bolsos e abre a porta para sair do carro.
— Treino, arma nova, compras. Vou cumprir todos os deveres do dia
como uma garotinha obediente, mamãe — ironiza, com um sorriso maldoso
exibido nos lábios.
Antes de sair, ela tira a arma da cintura e a arremessa no banco sem dó. O
olhar de escárnio que me lança não deveria me afetar, entretanto, me
entristece. Joy é difícil, sempre foi. Entendo seus receios a meu respeito e
aceito a distância que coloca entre nós. Mas confesso que vê-la me chamar
de mãe somente para me provocar me causa uma sensação de
arrependimento.
Se eu pudesse, voltaria no tempo e não permitiria que ela e Alex
treinassem. Porém, se isso acontecesse, possivelmente elas teriam o mesmo
destino de Ethan.
Não importa para qual lado vou, sempre pareço estar no caminho errado.

Depois de ter uma reunião com o Presidente via chamada de vídeo,


receber atualizações dos subdiretores e almoçar com Kyle, finalmente reúno
a antiga equipe de Joy na sala de reuniões.
Nenhum deles parece muito feliz em encerrar seu dia de trabalho
conversando comigo. As caretas que fazem quando começo a revelar a
pauta da reunião são impagáveis.
Seis anos atrás, quando fizeram parte do treinamento de recrutas,
enxerguei o potencial de cada um e resolvi uni-los. Essa é uma das equipes
mais promissoras que tenho na agência, arrisco dizer que são tão bons
quanto os integrantes da minha equipe, os Big Six, eram. Os seis membros
se completam, tem uma ótima sincronia e não desistem até cumprirem a
missão que foi estipulada.
O único problema da equipe 641 — numeração de referência que quase
ninguém usa — são suas divergências.
Já perdi a conta de quantas vezes tive que lidar com as briguinhas
internas que eles têm. Com a volta de Joy, a tendência é que isso piore. Ela
arruma problemas onde quer que vá.
— Atualizem a Joy dos casos, treinem mais vezes em equipe para
pegarem o ritmo novamente — recomendo, passando o olhar por cada um
deles.
Não me dei ao trabalho de sentar, resolvi ficar em pé e posicionada na
ponta da mesa. Como todos estão sentados, querendo ou não, fico mais alta,
em um lugar de superioridade.
— Não concordo com isso. Acha justo simplesmente promover sua filha
ao nosso nível, depois de ela ficar quatro anos sem atuar como agente?
Batalhamos duro para chegar aonde estamos — Nathan argumenta, como
previsto.
— Nada nessa vida é justo, Nathan.
Ele mantém o olhar no meu e me dá a certeza de que isso não acabou. Eu
sabia que enfrentaria a resistência de alguns deles, então me preparei para
despejar certas ameaças, de repente convidá-los para um passeio no Navio
ou para uma morte rápida na Plataforma, local do Navio onde executamos
prisioneiros e traidores.
Entretanto, para minha surpresa, Nate é o único que se opõe. Pelo menos,
o único a fazer isso publicamente. Zoey abriu um meio sorriso quando
anunciei a volta de Joy, agora está olhando para o lado, como se estivesse
cansada da teimosia do namorado. Lucy e Noah estão quietos, esboçaram
poucas reações, provavelmente já estavam esperando que isso acontecesse.
Minha maior preocupação era Luke. O garoto sereno que ele era quando
chegou à agência morreu quando Joy o deixou. Ele se tornou um homem
fechado, muitas vezes rabugento, rancoroso. Quando me contou que Joy
havia ligado e informado que estava na prisão, eu vi o conflito em seus
olhos, a raiva misturada com amor.
Agora, entretanto, não vejo nada.
— Ela não é uma agente que se encaixe na nossa formação atual. Não é
tão responsável, não amadureceu, não viveu o que nós vivemos nas
missões. — Nathan gesticula, algo que me mostra o quanto está tenso.
Ele se sente ameaçado pela presença de Joy. Sabe que, apesar dos
defeitos, ela é competente. É a agente mais completa desse grupo, talvez até
a mais completa de toda a ANDOS.
Para calá-lo de vez, resolvo apoiar as mãos na mesa, deixando meu
tronco mais à frente, meu rosto mais próximo ao dele, ainda em uma
posição mais alta, mostrando que estou em outro patamar, muito longe do
qual ele está.
— Nathan, eu gosto de você como líder, mas posso desgostar em um
estalar de dedos. — Faço o que digo, estalando os dedos bem na frente do
seu rosto. O barulho é tão alto que Nate fecha os olhos por alguns segundos.
A ameaça funciona, porque não há nada que Nathan Starffey valorize
mais do que sua posição na agência. Faço um sinal com a cabeça para ele,
mostrando que permanecer em silêncio é sua melhor escolha. Nate não
gosta, mas assente com relutância.
— Alguém mais gostaria de emitir opinião sobre o assunto? — pergunto,
voltando à posição na ponta da mesa. Eles mal respiram e escolhem seguir
o caminho certo. O silêncio. — Reunião encerrada.
O anúncio vem seguido de uma movimentação. Nate é o primeiro a sair,
tão irritado que sequer olha na minha direção. Zoey vem em seguida,
tocando em meu ombro antes de sair, se desculpando pelo comportamento
de um homem que claramente não é maduro o suficiente para estar com ela.
Os pais de Lucy fazem parte do meu ciclo de amigos e a conheço a vida
toda, o que faz com que ela sorria para mim. Noah, simpático e educado de
uma forma que o irmão não é, copia o gesto da parceira.
E então somos apenas eu e Luke na sala.
— Sei que isso não será fácil para você, mas não havia outra escolha —
falo quando vejo ele se levantar, ainda com a expressão indiferente.
Tenho um carinho grande por Luke, não só por ele ter sido meu genro por
alguns anos. Eu realmente gosto de seu trabalho, da pessoa que ele é.
— Eu entendo. Esse é o lugar dela. — Luke anda até mim, as duas mãos
dentro dos bolsos da calça preta, a postura desencanada demais para quem
acabou de saber que terá que trabalhar com a ex-namorada. — Pretende
colocá-la na outra equipe também? — pergunta em um sussurro,
respeitando o sigilo do assunto.
— Por enquanto, não.
— Ela vai passar tempo demais com a gente, Brenda. É a Joy. Ela vai
descobrir. — Seu tom é preocupado, e não no sentido bom. A frase soa
como um alerta.
Tenho a leve sensação de que ele quer ferrá-la.
— Não descarto a possibilidade de recrutá-la. Mas agora não. Preciso de
mais tempo para voltar a confiar nela totalmente. — Sou honesta, porque
essa é a verdade.
— Está com medo de ela ter se corrompido? — Um meio sorriso
maldoso surge em seu rosto, como se estivesse gostando da minha
desconfiança.
— Não — respondo mais para defendê-la do que por acreditar nisso.
Os últimos anos da vida dela são um borrão para mim. Não sei com quem
Joy se envolveu, as alianças que teve que firmar para se manter viva. Todos
nós sabemos muito bem que, para sobreviver nesse mundo, é preciso ter
aliados.
Pretendo descobrir com quem ela se meteu, mas sei que agora não é o
momento. Joy jamais me contaria por livre e espontânea vontade. Preciso
ser cautelosa, ganhar sua confiança, unir as peças do quebra-cabeça pouco a
pouco.
— Joy é capaz de qualquer coisa, Brenda. Precisamos manter os olhos
abertos.
Não gosto do tom que ele usa, da escuridão que ele deixou entrar.
Luke não é esse homem.
— Meus olhos sempre estão abertos — afirmo, encarando-o com
seriedade, mostrando que essa é uma condição que se aplica a todos os
agentes, inclusive a ele. — Se quiser conversar sobre o retorno da parceria,
estou à disposição. — Mudo para um tom mais tranquilo, imaginando que
Luke absorveu o recado.
Ele é esperto. Sabe que não pode brincar com fogo.
— Obrigado, Brenda, mas estou bem. Tenho certeza de que farei um
ótimo trabalho ao lado de Joy. — Sorri, ainda sem mostrar seus dentes, me
deixando desconfiada de qual é sua real intenção.
Fazer essa parceria dar certo para manter sua imagem de bom agente ou
se vingar de Joy?
A resposta para essa pergunta, infelizmente, só terei com o tempo.
Os nós dos meus dedos estão arrebentados graças a noite de ontem.
Tentei esconder as marcas com maquiagem, mas não tive o sucesso
esperado. Um olhar mais atento nota que me meti em alguma briga há
pouco tempo. Por sorte, meu trabalho evita que pessoas estranhem esse tipo
de machucado.
Ninguém faz perguntas, então não preciso inventar respostas.
Meu rosto está intacto e não consigo esconder o sorrisinho que surge
quando penso na grana que ganhei acabando com o idiota que achou que
poderia me vencer.
Ainda estou sorrindo quando uso minha credencial para entrar na minha
sala. Só desfaço a expressão quando vejo que Joy Saroyan está sentada no
meu sofá. Paraliso durante alguns segundos, notando o quanto está
diferente.
Nos últimos dias, Joy andou desarrumada, carregando uma mochila
surrada para cima e para baixo. Hoje, entretanto, ela se parece com a Joy
que eu conheço. Com a Joy que eu amei.
O cabelo castanho claro está jogado para um lado, os fios lisos caindo
pelos ombros. A jaqueta de couro tem um zíper dourado e, em conjunto
com seu coturno de saltos, traz o ar dark para o visual. Joy odeia ser óbvia e
sempre alegou que sua cor favorita é rosa. Por causa disso, usa uma
camiseta rosa e justa, com um decote em V que permite uma visão
tentadora dos seus seios. A maldita ainda está com uma calça preta grudada
em suas coxas torneadas.
Não consigo evitar olhá-las. É impossível, visto que Joy está com os pés
apoiados na minha mesa de centro. Sua pose faz parecer que essa sala é sua.
Resolvo que a melhor forma de lidar com essa situação é ficar de boca
fechada. Me aproximo dela e olho em seus olhos enquanto empurro suas
pernas para fora da minha mesa. Faço questão de tocar em seus coturnos,
para que minha mente não lembre do quanto eu gostava de tocar em suas
pernas.
Joy permanece me encarando até o momento em que vou até minha mesa
e apoio a maleta no chão, tirando o notebook de dentro dela para começar a
trabalhar.
Seu olhar ainda está no meu quando volta a apoiar os pés cruzados na
mesa de vidro.
Quero parecer indiferente, mas não consigo. Como não esboçar uma
reação quando ela me afronta dessa forma?
— Já pensou em ir para sua sala? — pergunto, sem conseguir conter o
fogo que cresce dentro de mim, a necessidade de travar mais uma batalha
contra ela, mesmo sabendo que é exatamente isso que ela quer.
— Ainda não tenho uma. Brenda disse que eu poderia ficar na sua.
— Brenda só pode ter enlouquecido.
Joy solta um riso contido e ácido.
— Se ela ouvir você dizendo isso, vai te dar uma passagem de primeira
classe direto para a Plataforma.
A maldade em seu sorriso deixa nítido o quanto gosta de usar Brenda
para vencer uma discussão. Nenhum agente brinca com a Plataforma
porque sabem exatamente o que acontece por lá.
Mais uma vez tento optar pela indiferença e ser um cara racional. Ligo
meu computador para logar na rede da ANDOS e começar a trabalhar.
Enquanto digito minha senha, vejo que Joy se levantou e está se
aproximando de forma sorrateira.
Eu juro que não sei como lidar com ela. Se mostro meu rancor, ela se
aproveita. Se tento comprometê-la com nossa chefe, que por acaso é sua
mãe, me prejudico. Se deixo as memórias do nosso passado entrarem, sou
consumido pelo tesão que ainda sinto.
E também pela tristeza de não termos vivido o que poderíamos.
— Me informe sobre o caso em que está trabalhando — ela pede em um
tom de ordem que eu não suporto ouvir.
Joy sempre teve uma mania insuportável de achar que era a líder da
equipe. Seus conflitos com Nate se originaram nesse período. Eu tinha o
hábito de defendê-la, de obedecer às suas ordens. Não mais.
— Pra quê? Achar que voltei a ter uma parceira e depois ela desaparecer
de novo? — Percebo por sua expressão que atingi um ponto delicado. Era
essa a intenção. Joy está em pé à minha frente, a mesa é a única coisa que
nos separa. Fitando seus olhos diretamente, eu resolvo dizer a verdade e
parar de tentar encontrar a maneira certa de lidar com ela. — Não confio em
você, amor.
A forma carinhosa pela qual eu costumava chamá-la, agora carrega um
tom irônico. Meu sorriso está impregnado pelo mesmo escárnio que domina
o dela.
— Já disse que não vou sumir de novo — afirma, apoiando as duas mãos
na mesa, o tronco inclinando para frente, o decote permitindo que eu veja
parte de seus seios.
Resolvo tacar o foda-se e olhar para os peitos dela. Consigo ver que está
com um sutiã preto com alças finas de renda, perfeitas para serem rasgadas
pelos meus dentes.
— Você só faz o que te convém — falo, voltando a olhá-la nos olhos,
sabendo que vou irritá-la por não ter caído em sua jogada sedutora. — Algo
não estava dando certo no seu trabalho de justiceira. Se tudo estivesse bem,
você arrumaria um jeito de continuar longe daqui — constato, querendo a
todo custo jogar o desaparecimento em sua cara.
Joy não altera a expressão, segue sorrindo da forma sarcástica que adora,
sabendo que venceu. Entrei em seu jogo.
— O passado te machuca tanto que você não consegue parar de falar
sobre ele?
— Fez tantas coisas sujas no seu tempo fora que não consegue falar sobre
elas? — devolvo, me levantando para ficar no mesmo patamar que ela.
Apoio as mãos na mesa, nossos dedos ficando a centímetros de distância.
— Você também agia assim com meus substitutos? Por isso todos te
deixaram?
— Não. Esse tratamento é exclusivo para você.
— Me sinto lisonjeada. Sabe por quê? — Joy leva o dedo indicador para
o meu queixo, levantando-o para que eu me foque ainda mais em seus
olhos. Estou tão mergulhado em seu encanto, que permito o toque, deixo
que minha pele experimente a sensação de ser tocada por ela novamente. —
Para você, sou inesquecível.
A temperatura está amena ao lado de fora, mas aqui, dentro dessa sala,
estamos no próprio inferno.
— Inesquecível? — Dou risada, levando minha mão ao seu braço,
afastando seu toque de mim. — Se eu fosse lembrar de alguma coisa, Joy,
seria do seu sumiço repentino.
— E não da forma que eu te chupava? Do jeito que você me fodia? Do
quanto nós éramos bons juntos?
Consigo ver que seus sentimentos se misturam da mesma forma que os
meus. Nosso passado é uma memória forte, o amor que vivemos não pode
ser esquecido, assim como a dor que ela me causou, a raiva que ela sente de
mim, o rancor que sinto por ela, a atração que ainda sentimos um pelo
outro.
— Foi por isso que implorou a Brenda para voltar a ser minha parceira?
Estava com saudades?
— Claro, chorei todos os dias em que estive longe de você.
— Por cima ou por baixo?
Minha rebatida a surpreende.
Joy esfrega um lábio no outro e fita meu corpo, intrigada com a malícia
em minha voz. Ela não é boba, muito pelo contrário, e logo percebe que
isso só faz parte do jogo, da provocação que ela mesma incitou.
— Você terá que me informar dos casos, Carter. Somos parceiros agora.
— O tom de voz é mais sério. Joy afasta as mãos da mesa, declarando que
nosso momento acabou.
Mas eu ainda tenho alguns questionamentos.
— O que você fez para Brenda te colocar na equipe? — pergunto o que
está em minha cabeça desde ontem.
A diretora foi inflexível durante a reunião. Simplesmente restituiu a
posição de Joy e nos obrigou a aceitar.
— Essa é uma informação confidencial.
A resposta só me faz ter a certeza de que há algo sujo envolvido. Gosto
muito de Brenda, é por causa dela que vim para a ANDOS e serei grato a
ela pelo resto da minha vida, porém, não concordo com todas as suas
atitudes. A diretora é a mulher mais cruel e sem escrúpulos que eu já
conheci. Uma pessoa que torturou a própria filha é capaz de tudo.
— Ela encomendou uma morte sigilosa? Uma sessão de tortura estilo
Joy? — indago, imaginando que esses são os cenários mais prováveis. Joy
fecha o cenho, me dando a certeza de que acertei. — Não entendo por que
você não admite que adora estar nesse papel. — Aproveito para cutucá-la.
Pequenas doses de feridas, usando todo o conhecimento que só eu tenho
sobre ela, são a melhor forma de vingança.
— O caso, Luke. Foque no que importa — pede, incomodada.
Joy finalmente percebeu que me tornei um oponente à sua altura.
Estou considerando insistir no assunto, quando a porta do escritório é
aberta abruptamente. Joy está um pouco mais distante, mas eu ainda estou
com as mãos na mesa, o corpo inclinado na direção dela. Está na cara que
estávamos tendo uma conversa repleta de tensão. E é justo Nathan que está
na porta.
— O que está acontecendo aqui? — pergunta, olhando direto para mim,
ignorando a presença dela.
— Uma conversa entre parceiros, Nathan — Joy responde de costas para
ele, se virando devagar, até terem contato visual.
Ele assente, mas dá para ver, pela forma como levanta as sobrancelhas,
que não gostou de nos encontrar tão próximos, nitidamente deixando o
trabalho de lado para manter uma discussão.
Tensão domina o ambiente. Eu odeio me ferrar no trabalho e Nate, apesar
de ser meu melhor amigo, ainda é meu líder. Ele não hesitaria em acabar
comigo se eu saísse da linha.
— Alguma atualização? — questiono, voltando ao tom profissional.
— Sim. Venham para a sala de reuniões. Agora — ordena, grosseiro.
— Nossa! Nem um “bem-vinda de volta à equipe?” — Joy pergunta,
provocando-o na hora errada.
Nate a encara com desprezo e eu já até sei o que se passa em sua mente.
Estamos lidando com a segurança do nosso país e Joy está preocupada com
boas-vindas.
— Mesmo se eu tivesse concordado com a sua volta, não perderia tempo
com isso — Nate responde, focando seu olhar no dela. Quando termina de
tentar intimidá-la, vira para mim. — Vamos.
Assinto, fechando meu notebook, pegando o celular e colocando-o no
bolso. Joy fica parada, esperando que eu termine de me ajeitar para irmos
juntos.
Exatamente como nos velhos tempos.
Sei que, em sua mente, ela está xingando Nate. Joy só não solta um
comentário ácido em voz alta, como fazia antes, porque sacou que eu me
tornei ainda mais próximo de Nathan.
Seguimos juntos pelo corredor, passando pelos agentes de níveis mais
baixos com a cabeça erguida, desfilando juntos, exalando poder juntos. É
inevitável, todo o andar se vira para olhar para nós, entendendo que ela está
de volta, que nós somos um time novamente.
Joy me fita no mesmo momento em que a olho. Trocamos um sorriso
orgulhoso, esquecendo, por alguns segundos, de todos os sentimentos
bagunçados que existem entre nós.
O momento dura pouco, mas a faísca está lá.
Forte. Intensa. Quente. Talvez até mais forte do que já foi um dia.
Ainda com meu olhar no dela, abro a porta da sala de reuniões, fazendo
um sinal para que ela entre antes de mim. Joy odeia cavalheirismos, mas, ao
invés de reclamar, passa desfilando, mexendo sua bunda deliciosa na minha
frente.
Se eu fosse um cara que não se importa com seu orgulho, a puxaria para
um banheiro agora mesmo.
— O avião pousou, estão iniciando o procedimento de abertura de portas.
— A frase de Lucy faz com que eu saia do encanto de Joy e volte para a
realidade.
Nate está andando de um lado para o outro enquanto fala ao telefone.
Noah está em um computador, Lucy no outro. Zoey está mexendo no
quadro onde montamos o esquema para o ataque que estávamos planejando.
É direto para lá que Joy vai.
Ela toca nos fios vermelhos que ligam uma imagem à outra, passa um
tempo lendo os nomes escritos em cima das fotos, tenta compreender o que
estamos tentando fazer.
— Terrorista? — a pergunta vem direcionada a mim.
— Sim. Estamos investigando há semanas. Descobrimos que Aymar
Zead foi responsável pelo ataque em Washington. Foram três bombas ao
mesmo tempo, em três zonas diferentes, atingindo escolas de ensino básico
— explico, apontando para as fotos, imaginando que Joy ouviu falar sobre
esse ataque. — O Presidente passou o caso para nós porque quer a execução
de Aymar. Vai servir como um recado. “Não brinquem com nossas
crianças”.
— A ordem mudou, Brenda quer que tragamos ele para o Navio — Zoey
conta, suspirando, nitidamente odiando a nova determinação. — Senti falta
de te ver nessa sala — ela diz, apoiando uma mão no ombro de Joy. Minha
parceira segura a mão da amiga, agradecendo-a com o olhar.
— O helicóptero está a caminho — revela Nate, fazendo com que nós
três nos viremos para ele. — Lucy?
Ela não tira os olhos da tela, digitando rapidamente.
— Estou com os olhos no aeroporto, quatro pessoas e dois carros estão
na pista, esperando quem quer que esteja naquele avião — informa Noah.
— É Aymar, eu tenho certeza. Estou acompanhando esse voo desde
ontem, meu informante garantiu que foi ele que entrou no avião — Lucy
fala, sem olhar para ninguém.
É bem nítido que passou a noite toda cuidando desse caso. Nessas horas,
eu adoro ser péssimo com tecnologia.
Nate vai até Lucy e faz um sinal para Zoey se aproximar. Os dois olham
a tela da loira e de seu parceiro, analisando cada imagem.
— Viu, é ele! — Lucy se exalta, batendo uma única palma forte para
comemorar.
— Zoey, vá direto ao heliponto e informe o piloto do nosso trajeto. Noah,
você vem comigo pegar os equipamentos. Lucy, organize uma tela remota
para irmos monitorando Aymar e nos encontre no heliponto — Nate
determina, ativando o modo operação.
— E eu? — pergunta Joy, se colocando à frente de Nate de braços
cruzados, impedindo que ele saia da sala.
— Chegou agora e já acha que vai participar? Você fica, Saroyan. —
Seus olhos carregam um tom de vingança que com certeza a alimentam.
Joy parece prestes a subir em seu pescoço.
— Vai deixar sua melhor atiradora para trás? — afronta.
— Não ouviu? Vamos apenas pegar o cara. Não matar. A equipe não
precisa dos seus serviços. — Ele pisca para ela e empurra seu ombro de
leve, ordenando que dê licença.
Joy se afasta, mas eu sei que está prestes a explodir. Ela só se controla
porque a operação precisa acontecer imediatamente.
— Estou com você e o Noah? — pergunto quando percebo que Noah já
deixou seu notebook com Zoey e está se juntando ao irmão para irem ao -1
se equipar.
Meu melhor amigo olha para mim com confusão.
— Se a sua parceira não vai, você também fica — determina, com um ar
vingativo que me deixa puto.
— Estou trabalhando nesse caso há semanas — reclamo, abrindo meus
braços, inconformado com o que estou ouvindo.
Nate dá de ombros, cagando para minha indignação. Ele segue seu
caminho e sai com Noah sem olhar para trás.
Sinto um sentimento perturbador crescendo dentro de mim. Nate está
fazendo essa merda só porque eu não me opus a volta de Joy, porque eu
tenho a porra de um amor pelo meu emprego e não quis afrontar a diretora.
Ele é um mimadinho que sempre teve tudo, mas eu não. A ANDOS é tudo o
que eu tenho.
Saio da sala antes que eu exploda alguma coisa na frente de todo mundo.
Vou até meu escritório e bato a porta, irritado com Nate, com Joy, com
Brenda, com a injustiça de não poder concluir um caso por causa de quem é
minha parceira. Dou um soco na parede, pouco me fodendo para os meus
dedos já machucados.
Eu arrebentaria esse concreto se pudesse. Bateria mais e mais, se não
fosse pela presença da causadora do caos.
Joy está dentro da minha sala, me olhando com as sobrancelhas erguidas,
parecendo se divertir às custas do meu ataque de raiva. Ela me seguiu até
aqui para que? Rir da minha cara?
— Isso é culpa sua! — Aponto o dedo para o seu rosto, me aproximando
dela.
Joy fecha a porta atrás de si, mas não consegue se mexer por conta da
proximidade.
Entretanto, continua com um riso preso no rosto, acabando com o
controle que eu estava tentando manter.
Em segundos, puxo uma faca pequena da manga da minha camisa com
uma mão e pressiono Joy contra a parede com a outra. Levo a lâmina direto
em seu pescoço. Um movimento e eu a faço jorrar sangue até inundar essa
sala.
— Ser irritadinho faz parte da sua nova personalidade? — pergunta, seus
malditos olhos verdes focando diretamente nos meus.
— Ele me tirou do caso por sua causa.
— E eu que estou sendo ameaçada? — questiona, fazendo uma careta
confusa, ainda que esteja se divertindo com a cena.
— Você entrou na porra do meu caminho de novo, Saroyan. Por que não
foi para outra equipe? Por que não foi cuidar de qualquer outro setor? —
jogo as indagações no ar, aumentando a pressão da faca contra sua pele.
— Era voltar a ser sua parceira ou nada.
— Não sei por que tem tanta necessidade de ficar perto de mim.
— Eu não tenho — responde de prontidão. — Mas precisava trabalhar
com alguém que fosse quase tão bom quanto eu.
— Quase?
Sinto minha raiva diminuir quando a escuto. Afasto a faca de um contato
direto com sua pele, permitindo que ela consiga se mover sem morrer. No
entanto, permaneço com minha mão segurando a sua, meu corpo
pressionando o seu.
— Sim. Você é bom, Luke, mas ninguém se iguala a mim.
Solto uma risada irônica quando a escuto.
— Seu ego ainda vai te matar, Saroyan.
— Você devia falar isso para o Nate, não para mim. Ele me dispensou
como se eu não fosse a melhor atiradora da agência.
— Era uma missão de captura. Nate sabe que você adora derramar
sangue, não fazia sentido te levar.
De certa forma, concordo com a decisão dele de deixar Joy para trás. Ela
sempre foi impulsiva, muitas vezes não cumpria o que foi estipulado,
conseguia se envolver em situações complicadas em um piscar de olhos.
— Por mais que eu adore acabar com a vida desses desgraçados, consigo
me controlar, Carter.
Eu não acredito em sua frase. Conheço Joy. Ela tem um sério problema
quando a missão requer controle. Sempre tive que ser seu equilíbrio, a
pessoa que colocava razão em sua mente perturbada.
Por mais que eu goste de tê-la como parceira, Joy me trará dor de cabeça.
Vou ter que me redimir com Nate para que ele não fique me excluindo das
missões por causa dela. Eu não aceito ser tirado do meu trabalho dessa
forma.
— Vai ter que provar isso para o Nate ou ele vai continuar nos
dispensando — alerto.
— Nathan não consegue brincar comigo por muito tempo. Deixe Brenda
ficar sabendo disso que ele recua rapidinho. Agora, dá para tirar essa faca
de perto de mim? Já entendi que você está com raiva. O recado está dado.
Faço o que ela pediu e me afasto, guardando a faca no suporte escondido
na minha camisa. Joy distancia as costas da parede, mas permanece à minha
frente.
— Sua mania de usar Brenda o tempo todo não vai te levar a lugar
nenhum. Bem que a Alex disse que você gosta de ser protegida por ela —
solto propositalmente, sabendo que esse assunto a irrita.
— Desde quando você é próximo da Alex? — questiona, o cenho
fechado apenas de ouvir o nome da irmã ser citado.
— Começamos a conversar depois que você desapareceu — revelo,
percebendo que encontrei uma ótima forma de fazê-la pagar.
Nate me excluiu por causa da presença dela. Isso não pode ficar assim.
— A falar mal de mim, você quis dizer — corrige, se mordendo de raiva
por saber que fiquei amigo de Alex.
Ela não está errada. Nós falamos mal dela. Mas não vou entregar tanto.
Quero intrigá-la para fazê-la ir atrás da irmã. Joy é possessiva. Está odiando
saber que Alexandra se aproximou de alguém que era “dela”.
— Depende do ponto de vista — respondo. — Vocês já se viram?
— Não. Mas talvez seja a hora de Alex receber uma visitinha. — Joy
morde minha isca e se deixa consumir pela raiva que tem da irmã.
Há muito tempo atrás, quando nos tornamos parceiros, eu jurei que
protegeria Joy com minha vida, força e integridade. Nós dissemos que
daríamos a vida um pelo outro, se fosse preciso. Agora eu só quero que ela
tenha um gostinho de sofrimento, que descubra uma coisa que eu sei que
vai feri-la, que sinta a dor de perder alguém que significa seu mundo.
— Ela trabalha no nono andar — conto, permanecendo impassível até
Joy sair da sala, determinada a cobrar a irmã.
Quando ela não consegue mais me ver, sorrio.
onze anos antes

“Alex era uma vaca. Nunca tivemos uma relação boa, mas eu ainda
tinha uma consideração por ela. Até deixava que usasse meu Xbox quando
eu estava estudando.
Agora queria que ela se fodesse.
Minha mãe dizia que eu ainda não tinha idade para usar palavras desse
tipo, mas, bem, que se foda.
Havia várias coisas que eu não deveria estar fazendo e estava.
— Mais forte, Alex! Vai deixar uma garota mais nova te vencer? —
Mamãe a desafiou e minha irmã a obedeceu.
Tomei um gancho de direita na bochecha. O golpe doeu, todos doíam,
mas eu não podia fazer caretas de dor ou minha mãe brigava comigo.
Quando qualquer uma de nós reclamava ou chorava, ela dizia “você é
fraca, sua irmã está te superando”.
Ouvir essa mesma frase durante meses terminou de destruir nossa
relação.
Eu olhava para Alex e não via nada além de uma oponente. Alguém que
eu precisava vencer, que eu precisava superar. Eu seria a melhor. Não
havia outra opção.
Alex ameaçou dar um soco em meu estômago, mas segurei seu punho
antes que ela completasse a ação. Ela era três anos mais velha, já tinha
dezesseis, e era mais forte do que eu. Minha mãe repetia que isso não
significava nada, que era a técnica e a inteligência que me fariam vencer.
Foi a isso que me apeguei para virar o jogo.
Empurrei seu punho com força e, com a outra mão, segurei seu outro
punho. Usei minha leveza para saltar e enlaçar minhas pernas em seus
joelhos, fazendo-a cair no chão. O baque do seu corpo contra o tatame foi
alto, sinal de que eu tinha usado a quantidade certa de força.
Cruzei seus braços e permaneci sentada em cima de seu corpo,
prendendo-a com minhas coxas. Alex se debateu, mas não conseguiu se
livrar do meu toque.
Eu tinha ganho. De novo.
— Saia de cima de mim, sua pirralha nojenta! — gritou, as bochechas
corando, vermelhas de tanta raiva.
— Tente me tirar. Vamos ver se consegue — provoquei, apertando seus
braços com mais força, gostando de vê-la sofrer para me vencer.
Levantei o olhar para conferir a reação da minha mãe. A aprovação dela
era a única coisa que importava.
A distração fez com que Alex soltasse uma das mãos. Ela a levou direto
para o meu pescoço, me apertando e empurrando para trás até que eu a
tivesse soltado. Minha irmã ficou de pé e deu um chute na minha barriga,
fazendo com que eu caísse de bunda no chão.
Ela gargalhou quando viu a queda. Riu da minha cara. Zombou de mim
como se eu não tivesse acabado com ela diversas vezes.
— Não conte vitória antes da hora — mamãe aconselhou, os braços
cruzados, o olhar impassível diante da minha derrota.
Ela estava decepcionada. Eu me sentia péssima, inferior, medíocre. Tudo
o que tinha sido a vida toda. Treinar para me tornar uma agente não estava
me ajudando. Eu continuava fraca.
— Vai se levantar e agir ou ficar se lamentando? — minha mãe
perguntou, e só então vi que estava parada à minha frente, sinalizando com
a cabeça para que eu saísse daquele chão.
Alex seguia com um riso no rosto, certa de que eu não conseguiria
vencê-la.
Ela não devia ter me subestimado.
Apoiei as mãos no chão e impulsionei minhas pernas para trás, para que
eu conseguisse me levantar em um único pulo. Corri até Alex com raiva,
erguendo meu punho, pronta para arrancar aquele sorriso ordinário de seu
rosto.
Sua tentativa de me frear segurando em meu antebraço foi falha. Eu já
estava com meu braço esquerdo pronto para atingi-la. O golpe foi direto na
lateral do seu rosto, fazendo-a se virar e soltar o toque do meu outro braço.
Aproveitei a liberdade para dar uma cotovelada direto em seu nariz.
Vi sangue escorrer em seu rosto. A sensação de vê-la sangrar me deixou
satisfeita. Me trouxe uma sensação de dever cumprido. Uma certeza de que
eu não deixaria ninguém duvidar de mim.
— Dê risada agora! — gritei, atingindo seu rosto de novo. — Ria! Tente
rir de mim! — repeti, dessa vez batendo em sua barriga, fazendo-a cuspir
sangue na minha direção.
Seus olhos transbordavam desespero. Ela estava com medo de mim.
Aquilo me fez sorrir.
Com mais um golpe, a derrubei no chão. Montei em cima dela para
continuar, mas, quando ergui meu punho, alguém me segurou.
Era minha mãe.
— Chega — pediu, séria.
Assenti, compreendendo que eu estava passando dos limites. Nem me dei
conta de que minha irmã estava tão mal. Por mim, eu a socaria até que
desmaiasse.
Mas, como tinha amor à minha vida e respeito pela minha mãe, me
afastei, não sem antes contemplar o rosto de Alex ensanguentado.
Ela mereceu.
Passei a mão em meu rosto para limpar o sangue. Minha mãe ordenou
que ela fosse se lavar e perguntou se estava muito dolorida. Alex estava tão
brava comigo que saiu andando sem responder o questionamento de nossa
mãe.
Quando a vi batendo os pés para sair da sala de treinamento, esbocei um
sorriso repleto de escárnio.
Só um dos muitos que passei a abrir a partir daquele dia.”
O ataque de raiva de Luke trouxe uma coisa boa para o meu dia. Visitar
minha querida irmã me pareceu interessante. Graças à idiotice de Nathan,
não tenho nada para fazer. Ficar ociosa com Luke não me pareceu a melhor
opção, mas provocar Alex me parece uma ótima.
Enquanto desço até o nono andar, pelas escadas para poder recuperar
meu condicionamento físico, penso no momento em que Luke enfiou a faca
em meu pescoço. Talvez seja perturbador admitir isso, mesmo que
mentalmente, mas adorei sentir a lâmina fria contra minha pele, a sensação
de poder morrer a qualquer minuto, de sentir o ódio transbordando do corpo
dele, de ter a certeza de que o tesão e o rancor se misturam da forma mais
conturbada possível.
Esse sim foi um momento digno de Luke e Joy.
Quente. Perigoso. No limite.
Eu simplesmente amei.
Abro a porta que separa as escadas do corredor do nono andar e me
preparo para ver Alex. Não gostei de saber que ela se aproximou de Luke
porque imagino o tipo de coisa que deve ter dito.
“Joy é insana”.
“Você nunca devia ter se envolvido com ela”.
“Minha irmã é doente”.
Ela não está exatamente errada, mas não deve abrir a boca para falar com
pessoas que fazem parte da minha vida. Preciso de Alex e sua inveja bem
longe de mim.
Levo as mãos para os cabelos, soltando mais os fios, chamando a atenção
dos agentes que perambulam pelo andar. Todos sabem quem eu sou e se
intimidam com minha confiança. Sempre desfilei pela ANDOS como se eu
fosse dona do lugar, porque eu meio que sou.
Escolhi o dia certo para vir atrás de Alex. Fiz compras, estou estilosa
como sempre fui, com uma credencial oficial e de volta a uma das equipes
mais prestigiadas da agência.
É um dia de glória no mundinho Joy Saroyan.
Pergunto a um agente aleatório onde minha irmã está e ele me informa
que Alex agora tem uma sala. Ser filha da diretora realmente tem seus
privilégios. Alex jamais teria um lugar em uma equipe se não fosse por seu
sangue, ela não é boa o suficiente para isso. Brenda, pelo menos, teve
consciência e a colocou no nono andar.
Todo mundo da ANDOS sabe que os andares não servem somente para
dividir o prédio, mas também ditam os níveis de aptidão de cada time. As
equipes mais importantes, como a minha, ficam em andares mais altos,
próximos ao andar da diretoria. As que cuidam de casos menores e mais
fáceis, ficam nos andares mais baixos.
Pobre Alex. Sempre inferior a mim.
Paro em frente à sua porta, onde uma plaquinha de vídeo tem seu nome
gravado. Brenda precisa me arranjar uma sala o mais rápido possível. Se
minha irmã descobrir que tem algo que eu não tenho, vai tentar me ferrar.
Estou com a mão erguida, prestes a bater, quando Alex abre a porta
abruptamente.
Ela respira fundo ao me ver. Eu esboço um sorrisinho que me é típico,
fitando-a de cima a baixo. Alexandra está com o cabelo preto preso em um
rabo de cavalo, consigo perceber que está mais curto do que usava antes.
Sua calça social preta não combina com o blazer azul, mas respeito sua
tentativa de tentar se assemelhar a Brenda.
— Joy.
— Alex.
Em nossas vozes, o desgosto transborda.
— Quanto tempo, irmãzinha — provoco, esboçando uma expressão
angelical que é obviamente fingida.
— Aproveitou seu tempo fora? — ela pergunta, tentando produzir um
tom irônico.
— Ah, foi ótimo conhecer o mundo real e sair das asas da mamãe por um
tempo — falo como se eu estivesse encontrando uma velha amiga, e não
alguém que desprezo. — Não que você saiba como é isso.
Minha indireta faz Alex revirar os olhos. Ela se afasta da porta, dando as
costas para mim. Entendo que é um convite para continuarmos essa
conversa farpada dentro de sua sala. Minha irmã sempre foi a filhinha
perfeita e obediente. Mesmo aos vinte e sete anos, ainda se recusa a quebrar
as regras da mamãe e se comportar mal na frente de outros agentes.
Quando estamos somente nós duas, ela volta a se virar na minha direção.
Seus olhos castanhos transbordam a raiva que eu tanto gosto de ver em suas
íris.
— Nossa vida não combina com religião alguma, mas só eu sei o quanto
rezei para você estar morta.
Sua confissão me faz erguer as sobrancelhas e sorrir ainda mais.
— Seu desejo quase se tornou realidade diversas vezes, irmãzinha. Mas
acontece que sou boa no que faço. Raras pessoas conseguem me atingir.
— Ainda egocêntrica, que surpresa! — ironiza, apoiando a mão no peito
para fingir emoção.
— Não, apenas consciente da realidade — corrijo, erguendo meu dedo
indicador para enfatizar as palavras.
Alex nega com a cabeça, irritada comigo. Ela nunca teve paciência para
minha personalidade. Não é à toa que temos essa ótima relação.
— Por que veio até aqui? Qual o sentido em me procurar? — indaga,
chateada por eu ter perturbado sua paz.
Eu queria dizer que lamento, mas estaria mentindo.
— Ah, Alex, eu senti sua falta — me aproximo dela, Alex dá um passo
para trás. Eu dou mais um para frente, ela resolve ficar parada. Levo meus
dedos ao seu cabelo, tocando nos fios grossos, tão diferentes dos meus. —
Brenda tem uma alma muito caridosa. Até te deu uma sala! E um lugar em
uma equipe, o que é muito mais do que você merece. Seus colegas não se
incomodam por você nunca acertar um tiro?
Por mais que tenha se esforçado, Alexandra não tem um talento natural
como o meu. Ela sofreu nos treinamentos, vomitou quando Brenda pediu
que tentasse torturar alguém, não aguentou a mesma dose de dor que eu
aguentei quando a nossa mãe me torturou para me preparar. Se fosse
qualquer outra agente tentando entrar na ANDOS através do treinamento de
recrutas, Alex já estaria morta.
— Uma vez vadia, sempre vadia. — Afasta minha mão do seu cabelo,
começando a ficar irritadinha.
É saboroso tirá-la do sério.
— Obrigada pela nomeação. É sempre uma honra ser elogiada por você.
Alex revira os olhos diante do meu cinismo.
— Por que voltar? As coisas estavam tão tranquilas sem você.
— Uma vida tranquila é uma vida chata. A emoção faz tudo valer a pena.
— Você é insana.
Eu sabia que ela diria algo do tipo.
Solto uma risada alta, sarcástica, desdenhosa.
— Já imaginou como vai ser a reação do papai quando ele descobrir que
sua garotinha insana está de volta? — provoco, com meu melhor
argumento, citando a maior de nossas desavenças.
A disputa pelo amor do nosso pai.
Alex costumava explodir quando ouvia qualquer coisa relacionada a ele.
Entretanto, agora parece não se abalar. Muito pelo contrário. Seus olhos
estão convencidos, está na cara que acabei de perder o controle desse
diálogo.
Ela sabe de algo que não sei.
— Ele não vai descobrir — afirma, esboçando um sorriso lateral perverso
que Alex só reserva para mim.
— Do que você está falando? — Cruzo os braços, nervosa, sentindo que
não vou gostar nem um pouco dessa revelação.
— Sabe, eu insisti para que a mamãe te contasse, porque imaginei que
você iria sofrer se descobrisse de repente. Pensei que você pudesse ter
mudado, Joy. Fiquei com pena de você. — Ela leva a mão para o meu
cabelo, tocando em meus fios da mesma forma que fiz com os dela. Odeio
que tenham pena de mim e Alex sabe. — Mas agora que vi que você está
até pior, me arrependo de ter sequer me preocupado.
— Dispenso sua preocupação. Diga o que quer dizer. Acabe logo com
isso — peço, sem controle da minha ansiedade.
Se é sobre meu pai, preciso saber.
— Ainda bem que você voltou para sua equipe, porque para casa, você
não vai.
Reviro os olhos, cansada do joguinho de Alex. Seguro o punho da mão
que usava para tocar em meu cabelo, freando seu movimento. Aperto o osso
com força, enquanto a encaro diretamente.
— Explique — ordeno, forçando meus dedos mais e mais, vendo o
semblante de Alex ser tomado por dor.
— Me solta — pede, mas eu não me mexo. Estamos nos encarando com
ferocidade, há tanta rivalidade em nosso olhar, que parecemos crianças
novamente. — Joy, me solta e eu falo — repete e a sinto tremer sob seu
toque.
Bom saber que ela ainda é a mesma fracote de sempre. Largo seu punho
de repente, vendo-a puxá-lo na sua direção, acariciando a região que agora
tem diversas marcas dos meus dedos.
Alex me lança um olhar baixo, o mesmo maldito olhar amedrontado que
ela me lançava quando éramos adolescentes e eu socava sua cara.
— Papai acha que você morreu.
A revelação me causa estranhamento.
— O quê? — pergunto, desmontando minha pose bruta, permitindo que a
fragilidade entre dentro de mim.
— Ah, você não conhece a mamãe? Ela sempre precisa inventar uma
história para proteger a agência.
— Alex... — ameaço, esperando que ela entenda que é bom que explique
essa porra direito.
— Você foi embora logo depois do Ethan ser sequestrado, Joy. A mamãe
não conseguia encontrá-lo e sabia que você não queria ser encontrada, então
inventou uma história ridícula de que vocês tinham sido raptados
aleatoriamente por um sequestrador misterioso que a polícia falhou em
descobrir quem era. Ela até forjou uma ligação em que a polícia revelava
que tinha encontrado os corpos de vocês. Houve um funeral e tudo. Foi um
teatro digno de Brenda Saroyan.
O mundo parece estar girando. As paredes se fecham contra mim, me
deixando sufocada, sem ar. Eu sinto como se fosse quebrar a qualquer
momento. Como se parte do meu coração tivesse sido arrancada de dentro
do meu peito.
Meu pai é uma das pessoas que mais amo no mundo. Ele é o único que
continuou me dando amor, mesmo depois que minha vida virou de cabeça
para baixo. Bryan sentiu que eu mudei, que fiquei mais fria e distante, mas
não se importou, nem me encheu de perguntas. Acho que ele apenas
acreditou que era uma fase, uma rebeldia repentina.
Ele acha que estou morta. Meu pai acha que eu morri.
Brenda... Ah, Brenda. Ela vai pagar por isso.
— Joy? — Alex pergunta, o cenho franzido, preocupada com meu
silêncio, com minha respiração encurtada. Ela tenta me tocar, mas a afasto.
— Não encoste em mim — peço, brava, ferida, sentindo como se o chão
tivesse escapado dos meus pés.
Minha mãe não tinha o direito de fazer isso. E se ela acha que vai sair
ilesa, está bem enganada.
— Onde você vai? — Alex pergunta quando começo a marchar até a
porta.
Lanço a ela meu olhar mais raivoso, engolindo a dor que consome meu
peito.
— Acertar as contas.
Transformo meu caminhar poderoso em uma marcha revoltada. O
controle me parece uma lembrança distante. Eu permito que o sentimento
de raiva entre, para que o da dor possa se camuflar. Pensar na revelação de
Alex faz o que restou do meu coração dilacerar.
Não sei o que se passou na cabeça de Brenda quando tomou essa decisão
horrorosa, mas estou prestes a descobrir.
Fui até sua sala, porém, para me dar mais trabalho, ela não estava lá.
Ingrid me informou que a diretora tinha uma rotina cheia fazendo reuniões
com algumas equipes. Ela não soube — ou talvez não quis — me dizer
onde Brenda estava naquele momento. Minha revolta está palpável, então é
natural que ela tenha recuado para proteger a chefe.
Mas ninguém pode protegê-la de mim. Eu não vou descansar até
encontrá-la.
Passo de andar em andar, caminhando com afinco, procurando por ela
como se eu estivesse atrás de uma das minhas vítimas. Vou subindo pelas
escadas, correndo pelos degraus, me forçando a não pensar no porquê estou
tão determinada. Entretanto, é inevitável. Por mais que eu evite, estou
sozinha nas escadas de emergência da agência enquanto transito pelos
andares.
Nesses momentos, só penso em Bryan. Em seu sorriso meigo e fácil. Em
sua vontade de cozinhar pizza para nós toda sexta. Em sua forma de tentar
apaziguar as diferenças entre mim e Alex. Em seu modo carinhoso de me
tratar.
Eu sinto a falta dele. Sinto tanto que dói.
Esse sentimento me machuca da mesma forma que me dá forças para
continuar buscando por Brenda.
Minhas pernas estão queimando pela velocidade que implico. Não paro
para descansar ou tomar fôlego. Apenas continuo, continuo e continuo.
Estou no vigésimo terceiro andar quando a encontro vagando pelos
corredores. Kyle está ao seu lado, falando alguma coisa. Brenda solta uma
risadinha, apoiando a mão em seu ombro, descontraída demais para estar
falando coisas da agência.
Sei que minha mãe e meu mentor tem uma grande intimidade, mas nunca
os vi tão próximos. Eu até tentaria descobrir o que essa cena significa, se
não tivesse um assunto mais importante para resolver.
Vou arrancar essa felicidade de seu rosto de uma vez só.
— O que diabos você estava pensando? — Já chego gritando, chamando
a atenção do andar inteiro.
A risada de Brenda cessa, dando lugar ao olhar repressor e a expressão
séria da mulher dura que eu tão bem conheço.
— Joy. — Apenas recita meu nome, sabendo que entenderei o recado.
Ela quer que eu me acalme. A diretora odeia que os outros agentes nos
vejam em momentos de conflito, sensibilidade, fragilidade. Brenda Saroyan
precisa sempre ser a diretora perfeita e suas filhas, exemplos a serem
seguidos.
Faço questão de mandar essa norma de conduta para os ares.
— Responda, Brenda. O que diabos estava pensando quando disse ao
meu pai que eu morri? — repito com uma frase mais elaborada, explicando
exatamente qual é o assunto que vim tratar.
Brenda paralisa.
Se respirar não fosse necessário para a sobrevivência, ela com certeza
perderia o ar.
Kyle passa a mão no rosto, terminando o movimento puxando alguns fios
de seu cabelo esbranquiçado. Por sua reação, tenho a certeza de que já sabia
dessa história de merda.
— Se eu não te conhecesse, até me surpreenderia. Mas você é capaz de
qualquer coisa, não é? — Me aproximo dela, respirando perto de seu rosto,
esperando que ela sinta toda a minha fúria.
Em seus olhos, vejo um lampejo de incômodo. É leve, mas está lá. Eu
estou a atingindo.
— Não vamos ter essa conversa aqui — responde, fingindo plenitude.
Ela desvia o olhar para os agentes que passam por nós, pedindo que eu me
cale.
Quero que suas vontades se fodam, assim como eu estou me fodendo por
não poder voltar para minha casa.
— Vamos ter essa conversa onde eu quiser — devolvo, olhando
fixamente em seus olhos, mostrando o tamanho da minha determinação.
— Perder a razão é o pior erro que um agente pode cometer. — Sua
liçãozinha não poderia ter vindo em uma hora pior.
— Como não perder a razão descobrindo que sua própria mãe forjou sua
morte? — Abro os braços, falando mais alto, rezando para que todos os
agentes dessa porra de andar me escutem e vejam quem a diretora
realmente é.
Uma mulher sem escrúpulo algum.
— As coisas não são tão simples quanto você pensa. Tente se colocar no
meu lugar...
— Você por acaso se colocou no meu? — rebato, inconformada por estar
ouvindo essa merda.
Sei que estou me exaltando e que Brenda não vai abrir o jogo enquanto
estivermos no meio do corredor. Pela expressão irritada em seu rosto e o
modo como cruza os braços, entendo que, se eu quiser ter respostas, terei
que ceder.
— Por que não entramos na sala de reuniões? — Kyle sugere, apontando
para a porta envidraçada no fundo do corredor.
Eu não espero que Brenda diga nada. Apenas sigo até a sala, em busca
das minhas respostas.
No momento em que Kyle fecha a porta, eu viro na direção dela,
cruzando meus braços para pedir explicações. Nada do que ela diga vai me
fazer achar que esse foi um bom caminho, mas eu quero entender por que
sua mente brilhante resolveu seguir por um lado tão destruidor.
— Comece a falar — peço, em um tom de ordem que Brenda não
aguenta ouvir. Ela adora ser sempre a pessoa mais autoritária na sala.
Porém, sabe a merda que fez e resolve me obedecer.
— O Bryan ficou destruído quando o Ethan sumiu. Como se a situação
não fosse difícil o suficiente, você fez o favor de desaparecer também. Ele
quis contatar a polícia, mover o mundo para tentar encontrá-los. Eu tive que
usar minha influência e me expor para encerrar as buscas, porque eu mesma
queria cuidar disso. Mas eu não encontrei nada, Joy, assim como você
também não encontrou. Tive que fazer um acordo com a polícia local, fingir
que eles haviam encontrado os corpos e que vocês estavam mortos. —
Consigo sentir a dor em sua voz quando toca no assunto que mais fere
nossa família.
Mas isso não muda nada.
— E declarar minha morte pareceu a melhor saída?
Brenda suspira, apoiando as mãos na mesa, os olhos focados nos meus.
— Ele precisava de um fechamento para poder começar a superar.
Sua fala dá a entender que ela fez isso somente por ele, mas eu sei que
não é o caso. Brenda não é nada altruísta.
— Não era mais simples contar a verdade? — pergunto, mesmo já
sabendo a resposta.
Quero que ela admita na minha cara.
— Eu não podia. Não posso.
A resposta faz algo ferver dentro de mim. A raiva me consome como se
eu estivesse em chamas.
— Você não cansa de colocar a agência acima de tudo? Até acima da sua
própria família? — questiono, aumentando o tom de voz, gesticulando, me
exaltando ainda mais do que me exaltei no corredor.
— Joy... — Kyle tenta vir até mim, percebendo que estou prestes a perder
a linha.
Eu o encaro para pedir que se afaste, mas Brenda é mais rápida. Ela ergue
a mão, sem olhar para trás, freando o movimento do parceiro.
— Fique fora disso — pede a Kyle, mas mantém seu olhar focado em
mim. — Tem ideia do tipo de perigo que Bryan enfrentaria se soubesse da
existência da ANDOS?
— O mesmo tipo de perigo que suas duas filhas correm desde o dia em
que descobriram sua verdadeira identidade.
— Eu nunca quis que isso acontecesse — reforça o que já nos disse
inúmeras vezes.
O sonho de Brenda era que fôssemos os Fisher, uma família suburbana
comum. Mas ela teve que revelar o lado Saroyan, seu verdadeiro
sobrenome, e expor a mim e a Alex quem realmente era, quando aquele
maldito ataque aconteceu.
— Pelo menos concordamos em alguma coisa — digo a verdade mais
dura que carrego dentro de mim.
Posso gostar do que faço, posso ser boa e ter herdado todo o talento de
Brenda, mas a verdade é que, se eu pudesse escolher, teria escolhido uma
vida normal. Essa é uma realidade completamente distante e irreal para
mim agora, porém, se a possibilidade de voltar no tempo fosse verdadeira,
eu resolveria não ter ido à escola naquele dia, para não estar presente
quando o ataque acontecesse.
— O Bryan não pode saber a verdade, Joy — Brenda fala com um tom
mais suave, imaginando o que se passa na minha cabeça.
— Então é isso? Não vou poder mais conviver com o meu pai? —
questiono, sentindo a dor me consumir outra vez.
Encarar a tristeza dos olhos de Brenda faz com que eu queira chorar. Mas
eu me recuso a derramar lágrimas na frente dela.
— Eu não gosto dessa situação, mas não há outra escolha — responde,
racional, impassível, direta como sempre é.
Mais uma vez, o mundo desaba sob os meus pés. Não posso mais
conviver com meu pai. Minha própria mãe arrancou esse direito de mim.
Receber o amor de Bryan não é mais uma possibilidade. Ele acha que não
estou mais aqui. Se lembra de mim apenas como a garotinha que pedia colo
quando estava com medo. Da menina que pedia dinheiro para comprar um
sorvete e sempre trazia um para ele. Da adolescente rebelde que começou a
se afastar graças ao segredo que carregava, mas que ainda achava um
tempinho para demonstrar seu amor para ele. Para o meu pai, eu sou apenas
uma memória. Para mim, ele é uma grande saudade.
Brenda dá alguns passos para trás, respeitando que eu tenha meu
momento para sofrer. Viro de costas para ela, odiando que me veja
transparecer tantas emoções.
Como aceitar tudo isso? Abaixar a cabeça não é do meu feitio. Brenda
fez algo absurdo. Mentiu sobre a minha vida para o meu pai. Fez com que
ele chorasse minha morte, mesmo sabendo que eu estava viva. Como pôde
ser fria o suficiente para vê-lo sofrer dessa forma? Para ter causado toda
essa dor?
Entendo que ele não pode ser exposto a ANDOS, mas deve haver uma
forma de contornar essa situação. Me recuso a viver o resto da vida longe
dele. Preciso fazer algo a respeito disso. Preciso contar a ele a verdade.
Viro novamente para Brenda, que não se mexeu. Marcho até ela, ficando
à sua frente, o mais próxima que nossa relação permite, para que enxergue a
potência do meu olhar.
— Eu nunca vou te perdoar por isso — afirmo, convicta. Não há nada
que Brenda diga ou faça que me fará mudar de ideia.
Para minha sorte, ela entende meu posicionamento e resolve não discutir.
Eu declaro essa conversa encerrada, saindo da sala de reuniões com um
único objetivo em mente.
Desatar o nó que Brenda criou.

Balanço a chave em minhas mãos enquanto caminho até o carro de Luke.


Minha fuga pode ter tornado minha vida um caos, mas pelo menos me
ensinou coisas úteis. Graças as amigas que fiz em Nova York, me tornei
uma ótima ladra.
Em cinco minutos de conversa, consegui roubar a chave do carro de
Luke. Ele perguntou como tinha sido a visita a Alex, eu usei toda a minha
habilidade para disfarçar o que realmente estava sentindo, o distraí e pronto,
estou motorizada.
Aperto o alarme quando encontro o veículo parado na mesma vaga que
estava alguns dias atrás, quando eu dormi em sua casa. Luke é tão
previsível que me dá pena.
— Onde pensa que vai? — a pergunta faz com que eu pare no lugar e
feche os olhos. Estava fácil demais para ser verdade. — Achou que eu não
perceberia seu furto?
Me viro com o sorriso mais cínico que consigo exibir. Para mim, sempre
foi muito fácil agir dessa forma. Contudo, depois da revelação de hoje,
estou tendo que me esforçar para manter essa pose.
— É um empréstimo — corrijo, tentando manter o tom engraçadinho,
ainda que eu saiba que meu sorriso não carrega a mesma animação de
sempre.
É difícil manter o brilho quando seu mundo desaba.
— Devolva. — Luke faz um sinal com a mão, pedindo que eu o obedeça.
— Preciso do carro. Vou devolver intacto, não se preocupe. — Engulo
em seco, irritada por esse flagra. Luke está atrasando meu plano.
— Devolva — pede de novo, insistindo em ser chato na hora errada.
— Luke, preciso do carro. É importante. — Uso uma voz mais séria para
tentar convencê-lo sem maiores explicações.
— Onde você vai?
Reviro os olhos quando escuto o questionamento. Que atraso de vida!
— Resolver um assunto pessoal. Não é da sua conta.
— Se vai usar meu carro, é da minha conta.
Não aguento mais segurar as emoções e bufo, puxando os cabelos para
trás, transtornada com essa merda de dia. Quando eu acho que as coisas
estão calmas, a vida vem e me dá uma rasteira.
— Só me deixe usar o carro, Luke. — Tento uma última vez, mostrando
a ele o quanto estou necessitada.
Seu semblante muda completamente. Luke parece preocupado, sua testa
até forma vincos, enquanto tenta se aproximar de mim.
— O que aconteceu?
— Já disse que não é da sua conta. — Assim que falo, percebo algo
estranho em sua linguagem corporal. Luke move a boca um pouco para
dentro, mas o resto de sua expressão parece travada demais, é como se ele
estivesse se controlando em excesso, querendo esconder alguma coisa. Seu
queixo está apontado para cima, mas seu olhar desvia vez ou outra para
baixo. Culpa. — Você sabia. — Arrisco a hipótese, me lembrando da raiva
que vi em seu olhar quando Nate o tirou da missão por minha causa.
— Sabia do quê? — indaga, se fazendo de desentendido.
— Filho da puta! — xingo, batendo na lataria do carro com a mão
espalmada para não dar outro tapa em sua cara.
E olha que ele merecia.
— Joy...
— Não, não vem com essa! Você me fez ir até a Alex porque sabia que
eu iria irritá-la e ela acabaria me contando a verdade! — acuso, entendendo
perfeitamente a situação.
— Quer que eu me desculpe? — questiona como o babaca rancoroso que
se tornou, deixando a máscara cair sem hesitar.
— Quero que você saia da porra da minha frente, Luke, ou vou passar
por cima de você com seu amado carro!
Abro a porta do motorista, mas antes que eu possa entrar, Luke surge
como um raio. Uma de suas mãos impede que a porta se feche, a outra
segura meu antebraço. Eu olho para seu toque, depois volto a encará-lo,
deixando claro que, se continuar encostando em mim, vou partir para cima
dele.
Luke me solta, sabe que a ameaça não é em vão. Porém, ainda não
permite que eu entre em seu carro.
— Você tinha o direito de saber — fala como se isso fosse apaziguar sua
atitude.
Ele não está arrependido, mas se sente culpado.
— Como você soube? — pergunto. Em outros tempos, eu adorava sua
intimidade com minha família. Hoje, odeio.
— Alex me contou assim que aconteceu. Achei uma péssima ideia.
— Você me fez descobrir essa merda e agora quer ficar do meu lado?
Virou hipócrita? — Vejo seu pomo de adão subir e descer quando engole
em seco. O idiota não tem uma resposta boa para me dar porque sabe que
estou certa. — Saia da minha frente.
— Não dirija desse jeito.
Seu olhar preocupado me traz uma grande vontade de vomitar.
— Já que foi por sua causa que eu descobri essa porra, me deixe usar o
carro! — Puxo a porta com mais força para abri-la, Luke também amplifica
sua força, e nada muda. Ele ainda não me deixa entrar. — Vai se foder! —
xingo, irritada, resolvendo soltar a porta e encontrar outro meio de
transporte.
— Você está transtornada, Joy. Pode causar um acidente. — Franzo a
testa na sua direção, exibindo uma careta de desprezo por estar ouvindo
essa baboseira. — Deixa que eu dirijo.
Dou risada, inconformada com o tamanho da sua culpa. Luke
definitivamente não sabe jogar no time dos malvados.
— Vai ser meu motorista? Vou poder ir para onde diabos eu quiser? —
indago, querendo deixar esse acordo mais justo.
Luke fecha os olhos e balança com a cabeça, indignado.
— Só entre no carro, Saroyan.

Pennetown fica a uma hora de distância de Row Fair. A estrada é minha


velha conhecida, dos tempos em que eu transitava entre as cidades para
treinar na agência. Row Fair é mais desenvolvido, mesmo que a agência
seja no meio do nada. Pennetown já é uma cidade residencial, repleta de
pequenos comércios, áreas arborizadas, parques e parquinhos. É um lugar
tranquilo, onde as grandes franquias não conseguiram entrar, por causa do
tradicionalismo das famílias.
Ah, se eles soubessem que a diretora de uma organização secreta criada
para eliminar e torturar pessoas reside em sua preciosa cidade...
Passo o trajeto todo em silêncio, pensando em meu pai. Luke respeita
meu momento e não diz nada até estacionarmos na frente da casa onde eu
cresci. Do único lugar que já chamei de lar.
A pintura branca é igual a de todas as outras da rua. O bairro é calmo,
silencioso, nunca teve um caso sequer de violência, a não ser naquela noite.
É estranho estar de volta ao lugar onde tudo aconteceu. As lembranças de
correr e brincar no gramado são ofuscadas pelas memórias das sirenes, da
presença de todos os grandes agentes da ANDOS, do meu desespero ao
perceber que os sequestradores de Ethan tinham sido bons o suficiente para
não conseguirmos encontrá-los.
Apoio a mão em meu peito, sentindo meu coração se apertar. Nesse único
momento, me permito ser frágil, ser humana e deixar algumas lágrimas
escaparem. Elas umedecem minhas bochechas, levam parte da minha
maquiagem embora.
Tento ser uma rocha, mas tudo o que diz respeito à minha família, me
afeta.
Especialmente quando a culpa para todo esse caos é minha.
— Quero contar a ele, mas ao mesmo tempo, sei que não posso contar —
reflito em voz alta, precisando dividir meus pensamentos com alguém.
Olho para Luke, escolhendo, nesse momento, deixar o rancor e o ódio de
lado. Ele assente, entendendo que entraremos em uma trégua momentânea.
Eu preciso da paz que ele sempre me transmitiu.
— Qualquer história que você inventasse, o deixaria desconfiado. Não há
como explicar um desaparecimento de quatro anos sem dizer que você
fugiu. — Luke, racional e calmo, fala o que eu mesma já estou pensando.
— Se ele souber sobre a ANDOS, vai ganhar um alvo em suas costas.
Luke apoia a cabeça no encosto do carro, ainda me fitando diretamente.
Os olhos castanhos não carregam mais raiva, e sim o mesmo brilho
amoroso de quatro anos atrás. É estranho ver esse traço em suas pupilas.
Estranho e familiar.
— Nós dois sabemos bem como é viver nessa vida. Não o envolva no
nosso mundo.
Concordo com a cabeça, absorvendo a serenidade que ele me transmite.
Bryan precisa ser protegido, não arremessado em um universo que não
conhece. Não há uma forma de apagar o que Brenda fez sem revelar a
verdade.
— Terei que aprender a viver sem ele. Vai ser difícil. Doloroso. Triste.
Mas é a única escolha — concluo, suspirando e levando as mãos aos meus
olhos para secar as lágrimas.
— Se tem alguém que consegue se reerguer, é você.
Sua frase me faz soltar uma risada sarcástica.
— Para me reerguer, eu precisava cair.
Luke sorri ao me ouvir. Ele fica lindo quando impede que a raiva
consuma seus pensamentos. Adoro sua versão esquentadinho, mas também
gosto de vê-lo assim, tão próximo do Luke que eu conheci.
Do meu Luke.
— Continuo brava com Brenda. Se ela não fosse quem é, eu a torturaria
até sentir que ela entendeu o tamanho da dor que causou em mim.
Meu comentário sádico faz Luke erguer as sobrancelhas, entendendo que
os momentos de melancolia ficaram para trás. Não há sentido em sofrer por
uma coisa que não posso mudar. Vou continuar triste por não estar perto do
meu pai, mas a distância é melhor do que a verdade.
— Você pode usar essa raiva de outra forma — sugere, aparentemente,
deixando o rancor ainda de lado.
— O que você sugere? — pergunto, resolvendo aproveitar nossa trégua.
Não sei quanto tempo vai durar.
— Tenho uma ideia.
Amaldiçoo o imbecil que resolveu ter a maldita ideia de treinar com Joy.
No caso, eu. Repreendo também meu maldito pau por não conseguir se
conter e querer se mostrar para ela o tempo inteiro.
Não que Joy seja inocente nessa equação. Depois de um dia em que
transitamos entre ameaças e lágrimas — uma coisa rara —, estamos
terminando nossa tarde no ringue. A ideia foi minha e assumo a culpa por
isso, mas Joy não está facilitando.
Quando chegamos a agência, ela foi se trocar e apareceu com um shorts
minúsculo que gruda em sua bunda e deixa as pernas torneadas expostas. A
calcinha está enfiada no cu, empinando ainda mais a bunda que um dia eu já
tive a oportunidade de comer. Minha parceira amada ainda resolveu tirar a
camiseta no meio do treino e agora exibe seu abdômen malhado em um top
indecente. O decote deixa seus seios saltando para fora.
Como essa luta pode ser justa?
— Você costumava revidar melhor — Joy me provoca enquanto distribui
uma sequência de jabs[1].
Apesar de ter ficado anos sem o treinamento da agência, ela ainda é uma
bela oponente.
Mantenho a guarda alta, tentando evitar que ela consiga me atingir. Os
punhos cerrados batem no meu antebraço, mas nunca chegam ao meu rosto.
Eu espero até que ela diminua o ritmo para contra-atacar, lançando um
cruzado direto no seu ombro. Joy não demora para reagir e devolve uma
sequência de ganchos.
A velocidade de seus golpes me impressiona. Vejo a fúria acumulada
transbordar em seu olhar, trazendo todo o sentimento que ela havia
guardado para a superfície.
— Desconte tudo, Saroyan — incentivo, escolhendo não tentar interferir
em seus golpes. Nós estamos aqui para que ela tenha o momento que
precisa. — Se permita sentir. Se liberte — repito mais palavras
motivacionais, tendo que andar para trás para aguentar suas pancadas.
Joy é forte pra cacete. Por isso que é gostosa desse jeito. Parece que fica
ainda mais deliciosa quando está focada em acabar comigo.
Percebo que sua energia está acabando e rebato alguns golpes, dando um
tempo para que ela descanse, esperando que minha iniciativa de ataque faça
com que se sinta mais estimulada.
Lanço um gancho em sua costela que faz Joy curvar um pouco as costas.
A ferocidade em seu olhar me mostra que o golpe doeu.
— Revidei bem o suficiente? Ou quer mais? — indago, meus olhos
presos nos dela, enquanto lanço mais golpes em seu corpo, dessa vez nos
braços, onde ela aguenta tranquilamente.
— Você me conhece há anos, Luke. Ainda não aprendeu que nunca é o
suficiente?
Sua provocação faz meu pau acordar de novo. Joy se aproveita da minha
distração para erguer a perna e chutar minhas costelas, revidando à altura.
Perco o ar por alguns instantes, o suficiente para que ela volte a disparar
socos contra mim. Não tenho tempo de montar a guarda, então não vejo
escolha a não ser segurá-la pelos antebraços para que pare de me socar.
Joy é tão rápida que minha freada bruta faz com que seu corpo quase cole
ao meu. Nossos quadris estão separados por uma distância imperceptível.
Pelo sorrisinho malicioso que exibe, tenho bastante certeza de que ela sente
a protuberância do meu pau.
Ela leva seu olhar para os meus lábios, é como se estivesse se
perguntando o que eu faria se me beijasse. Neste momento, eu infelizmente
me renderia. Deixaria todos os meus princípios de lado, engoliria qualquer
ódio e qualquer rancor, só para sentir a boca dela na minha, para sentir sua
boceta engolindo meu pau nesse ringue.
Quando acho que Joy está prestes a tomar uma atitude, ela flexiona os
joelhos, pega impulso e enlaça minhas pernas com as suas. Não é um
movimento que exige força, e sim técnica, e isso Joy tem de sobra. Ela me
derruba de costas no chão com facilidade.
E para dificultar, senta em cima do meu quadril, me prendendo no chão
com seus joelhos. Agora sua maldita boceta está roçando direto no meu
pau. Se não fosse pelo tecido das nossas roupas, eu poderia estar dentro
dela.
— Facilmente manipulável, como sempre. — Joy revira os olhos,
sabichona, se achando a vencedora só por ter me distraído com sua beleza.
— Vai dizer que não gosta de ver como eu me sinto quando você está
perto? — provoco, levando as mãos para seus quadris, a poucos centímetros
de sua bunda.
Ela morde o lábio inferior, movimentando-se um pouco, deixando meu
pau sofrer. O coitado está tão duro, que poderia rasgar minha bermuda.
— Não tenho medo de admitir minhas vontades. — Joy segura meus
braços, tirando-os de seus quadris, conduzindo-os até que estejam
encostados no chão, acima da minha cabeça. Ela inclina o tronco para
frente, deixando os peitos a centímetros do meu. Sua boca vai direto para
minha orelha, sussurrando com a voz mais sexy que consegue produzir: —
Até que você fodia direitinho.
Seu jeito afrontoso é o combustível que eu precisava para inverter as
coisas. Ela acha que baixei a guarda, que estou envolvido em seu encanto.
Não sabe o quanto eu estou controlado, o quanto eu também posso
manipulá-la.
Aproveito a sensualidade que nos consome e me solto do toque de Joy,
colocando minhas mãos em seus quadris, rapidamente invertendo nossas
posições. Seguro seus braços da mesma forma que fez comigo. Pressiono
seu quadril com a mesma intensidade que pressionou o meu. Eu tenho
certeza de que ela sente a cabeça do meu pau, de que sua boceta está
babando por mim.
Inclino meu tronco para frente, exatamente como ela fez. Levo a boca à
sua orelha, fazendo questão de respirar com o nariz ali, próximo a um lugar
que ela adorava que eu mordesse. Minha respiração quente faz Joy se
arrepiar.
— Consegue admitir que sua bocetinha está molhada para mim?
Assisto seu peito subir e descer, a respiração entrecortada, o coração
batendo forte, acompanhando o ritmo do momento.
Não resisto e fito seu corpo suado, admirando os gominhos do abdômen,
os seus seios fartos e úmidos pela intensidade do nosso treino. Ela devolve
o mesmo olhar, encarando meu abdômen, me admirando da mesma forma
que eu a admiro.
Seus olhos dizem mais do que palavras poderiam. Sempre tive uma coisa
com seus olhos. É através deles que Joy expressa o que realmente sente. A
lascívia predomina cada parte de suas pupilas.
Tenho certeza de que espelho sua expressão, de que estamos sentindo o
mesmo, de que essa conexão e esse tesão não são unilaterais.
— O que está acontecendo aqui? — A voz de Nathan Starffey destrói
nossa bolha de luxúria.
Em segundos, estamos de pé, um ao lado do outro, fingindo que nada
aconteceu.
— Um treino — respondo de bate pronto.
Nate está do lado de fora do ringue, um pouco mais baixo do que nós.
Entretanto, nem essa diferença de altura consegue esconder minha ereção.
Conheço meu amigo bem o suficiente para saber que suas sobrancelhas
erguidas são um sinal para me mostrar que entendeu exatamente o que
acabou de acontecer.
— E a missão? — Joy pergunta, cruzando os braços, montando uma pose
afrontosa, deixando clara sua insatisfação com o que aconteceu mais cedo.
Ela parece ter se recuperado do nosso momento bem mais rápido do que
eu.
— Concluída. — Nate responde de forma sucinta. Reparo que ele está
com um curativo no supercílio e algumas marcas no braço, provenientes de
algum confronto durante a operação.
Joy assente devagar, sem alterar a expressão. Eu sei que por dentro, ela
ainda está irritada, assim como eu, por ter sido deixada de fora.
Um silêncio constrangedor paira no ar. Nate sabe que estávamos tendo
um momento, nós dois sabemos que ele sabe, e o pior, sabemos o quanto
ele julga. Joy pode não se importar, mas eu me importo. Nathan não é só
meu líder, o cara é meu melhor amigo, o considero parte da minha família.
Sua opinião é relevante para mim.
— Aymar foi para o Navio? — ela questiona.
— Sim. Lucy e Noah ficarão responsáveis pelo turno da noite, vocês dois
podem assumir pela manhã. Queremos saber se ele tem amigos para
eliminar de vez a ameaça — Nate explica.
— Agora vai nos incluir? — Joy rebate de forma irônica.
— De tortura você entende, Saroyan.
A resposta de Nathan é o fim da linha para Joy. Ela sai do ringue sem
olhar para mim, parando ao lado dele para fitá-lo.
— Da próxima vez, sou eu quem aperta o gatilho — afirma, deixando
claro que não ficará de fora novamente. — Estaremos no Navio pela
manhã.
Joy sai da sala de treinamento rebolando no maldito shortinho. Mesmo
que o momento seja tenso e que Nate esteja puto, não resisto e acabo dando
uma olhada em sua bunda.
Quando vejo, meu amigo já está no ringue comigo, apontando o dedo
para mim, deixando nossos rostos próximos, para que eu veja a irritação em
seu olhar.
— Olha o que você está fazendo com si mesmo, Luke. Babando por essa
vaca por causa de uma roupinha curta, tão distraído que nem me viu
chegando! — repreende, abaixando seu dedo, mas ainda furioso.
— Nós só estávamos treinando — minto.
Qualquer um que nos visse conseguiria dizer que o momento estava
longe de ser apenas um treino.
— Caia na dela de novo, se afunde na loucura dessa mulher e perca tudo
o que conquistou nos últimos anos! Quando você cair, vou sentir prazer em
dizer “eu te avisei”. — Nate se exalta, temperamental como sempre.
Seu ódio por Joy e seu senso de proteção em cima de mim o tornam
parcial nessa situação.
— Você foi um babaca orgulhoso e me tirou da missão. Eu não tinha o
que fazer, precisei ocupar a cabeça. — Dou mais uma desculpa, dessa vez,
pelo menos usando algo que de fato aconteceu e me incomodou.
Nathan não agiu corretamente. Ele se deixou cegar pelos sentimentos e
esqueceu da razão.
— Joy precisava ser colocada no lugar. Agora ela entendeu quem manda.
— Você podia ter comprometido a missão — digo, esperando que isso
sirva como um alerta. Sair em campo com dois agentes a menos é uma
estupidez sem tamanho.
— Mas eu não comprometi. O plano era sólido e deu certo.
— Não vamos aceitar esse tipo de ordem outra vez. Somos parte da
equipe. — Aponto para mim para enfatizar o que estou dizendo.
Nate ri quando me escuta.
— Sim, senhor, vou acatar todas as suas ordens. — A risada pela ironia
cessa e ele volta a expressão séria. — Luke, você perde toda a sua
inteligência perto dessa mulher. Ficou gastando energia nesse treino
sabendo que nós temos luta essa noite!
Paraliso no lugar, chocado por ter me esquecido de algo que é tão
importante para mim. Passei o dia tão focado nos problemas de Joy, tanto
com nossa equipe, quanto com sua família, que me esqueci do
compromisso.
Nate balança a cabeça quando percebe que estou retomando à
consciência.
Sinto rancor de Joy por um motivo. Estou tentando me manter afastado
dela por um motivo. Deixei a guarda baixa porque ela estava fragilizada,
mas esse momento passou. Nós somos parceiros de trabalho e nada mais. A
trégua súbita acabou.
Não posso me deixar envolver por Joy. Ela é perversa. E eu me recuso a
ser o mesmo tolo que caía aos seus pés.
— Mantenha a luta. Estou preparado.

Eu amo escutar a plateia gritando meu nome. No Silver Fight, eu sou


Mad Tyson, uma singela homenagem a Mike Tyson, um homem que
sempre admirei. Sou um dos melhores lutadores da casa, temido pelos
oponentes, invicto há incontáveis meses. Também sou o cara no qual a
plateia mais aposta.
Estou concentrado em destruir meu oponente, mas não deixo de notar a
quantidade de grana que passa pelas mãos dos funcionários de Walter, o
dono do lugar. Fãs sedentos gritam meu nome e me incentivam a ser ainda
mais cruel, apostando todo o seu dinheiro em minha vitória.
Os berros são incentivo para que eu acelere meus golpes e entregue o
show que a plateia merece. Não é só sobre a luta, é sobre um espetáculo,
um momento em que eles podem sentir que fazem parte de algo especial.
Levo o punho ao queixo do meu adversário, socando-o por baixo,
fazendo seu rosto virar para o lado e gotas de sangue voarem. Ele até perde
um dente, tamanha a força que impliquei. O idiota tenta revidar, mas eu sou
mais forte, experiente, treinado. Seus golpes não me atingem, ele não
consegue me machucar.
Chuto suas costelas, aproveito que está sem ar e disparo jabs em seu
rosto, buscando por mais sangue, mais uma prova de que sou imbatível.
Termino com um gancho em seu maxilar, vendo seu corpo cair no chão,
levantando a poeira do tatame.
O homem está desacordado e uma poça vermelha domina o ringue. Sei
que ele não está morto, eu nunca entro nessas lutas para matar, mas vai ficar
machucado por várias semanas. Ninguém vem checá-lo, apenas deixam que
ele fique lá, como um troféu, a comprovação da minha vitória.
— Mad Tyson, mais uma vez, é o campeão da noite! — O locutor
anuncia, entrando no ringue para erguer meu braço.
Eu aceno para os fãs enlouquecidos e bato uma luva na outra quando o
homem me solta, exibindo minha feição mais insana, deixando o rosto
louco como meu codinome.
Sou ovacionado quando saio do ringue, várias pessoas batem no meu
ombro e me parabenizam, falam o quanto eu sou foda e o quanto fiz com
que enchessem seus bolsos.
Mal sabem eles que quem mais ganha com essa merda, sou eu. Meu
espetáculo é valorizado por Walter, ele sabe que minha presença traz um
grande público para o Silver Fight, e tudo o que ele quer é ter a casa cheia.
As pessoas apostam muito quando estou no ringue, são fissurados pela
dupla “Mad”, como eles chamam eu e Nate.
Meu amigo ficou fora da rodada essa noite, mas está me esperando no
balcão do bar com uma cerveja. Aviso que vou até o vestiário me trocar e
tirar as luvas, e poucos minutos depois apareço de banho tomado e com
outra roupa para reabastecer minhas energias.
Nathan usa o nome Mad Jones quando luta, homenageando Jon Jones,
um dos lutadores que ele mais admira. Meu amigo foi o cara que me trouxe
para esse mundo quatro anos atrás, quando eu percebi que Joy não voltaria.
Nate frequenta o Silver Fight há anos, começou nessa porque precisava de
grana, continuou pela adrenalina, pelo momento que tem para descarregar o
estresse. Aqui, ele não é o líder do 641, agente secreto da ANDOS e
namorado da Zoey. Ele é só um lutador fodido querendo dinheiro e
prestígio. Foi dessa forma que Nate me convenceu a começar a participar
das batalhas. Nossa vida é totalmente regida pela ANDOS, esse é o único
momento em que podemos ser apenas dois jovens fazendo merda.
Gosto de estar aqui, sinto uma certa responsabilidade com a reputação
que eu e Nate temos, é prazeroso manter um show para o público e confesso
que adoro o dinheiro. Mas isso não apaga o pavor que sinto de alguém da
agência descobrir o que fazemos nas madrugadas.
— Boa luta — Nate elogia, me entregando a long neck gelada.
Puxo a banqueta ao seu lado para me sentar. Levo minha garrafa na
direção da sua para brindarmos e aproveito para beber um gole e falar:
— Nunca mais pense que uma mulher conseguiria me distrair.
Nathan assente repetidamente quando me escuta, parece até
impressionado pelas minhas palavras.
— Que se fodam as mulheres — diz Nate, erguendo sua garrafa para me
propor outro brinde.
Pela tristeza em seus olhos, imagino que tenha brigado com Zoey. Visto
que os dois foram em uma missão juntos, tenho certeza de que ele a tentou
impedir de fazer alguma coisa e Zoey surtou.
Independentemente do que seja, bato minha garrafa contra a dele,
curtindo o barulho do vidro contra vidro, das conversas das pessoas, do
rock alto que toca nas caixas de som. Eu adoro esse lugar, o cheiro de
dinheiro, suor e sangue que ele tem. Jamais abriria mão disso por uma
garota.
— Que se fodam as mulheres — repito, tomando um longo gole da
cerveja, apreciando cada gota de liberdade, sabendo que meu tempo aqui é
curto e, por isso, precisa ser muito bem aproveitado.
Essa luta não foi só para cumprir com meu compromisso, também serviu
para calar a boca do meu amigo. Eu já fui fraco e me deixei levar por Joy,
mas não sou mais esse cara. Nate sabe disso. Eu sei disso. Ou pelo menos
acho que sei. Provei a mim mesmo que consigo esquecê-la em prol de algo
que gosto de fazer. Eu vim até aqui, não vim? Venci a luta. Tirei minha ex
da minha mente.
Quem você enganar, Luke? Já está pensando nela de novo.
Minha voz interior grita e me forço a focar na cerveja, na conversa com
meu amigo, no clima do ambiente que é meu lugar de alívio.
O problema é que a voz não é silenciada. Meus pensamentos não cessam,
mesmo com meus esforços.
Joy ainda está na minha mente a todo momento.
Permiti que Joy me ignorasse nos últimos dias. Entendi que precisava de
um momento introspectivo e distante para tentar compreender minhas
ações. Ela ficou brava, e com razão, quando ficou sabendo o que eu fiz.
Não foi a melhor das atitudes e tenho plena consciência disso. Diferente
do que Joy supôs, demorou até que eu decidisse forjar sua morte. A decisão
foi complicada, mas alguma coisa precisava ser feita. Bryan estava curioso
demais, usando sua energia para tentar descobrir quem havia sequestrado
seus filhos. Por sorte, Joy não demorou para fugir e eu consegui criar uma
história que pudesse associar seu sumiço ao de Ethan. Me expus demais
para desenvolver todo o cenário, mas fiz o que cogitei ser a melhor
alternativa.
Bryan sofreu — e ainda sofre todos os dias — mas pelo menos teve um
fechamento. Tenho a tranquilidade de que ele não vai voltar a tentar
investigar o que aconteceu. Se eu não tivesse encontrado uma forma de
declarar a morte de Joy e Ethan, meu marido passaria o resto de seus dias
procurando por respostas.
E é o que dizem por aí: quem procura, acha.
Ajeito meus óculos escuros, desviando o olhar para os lados por trás das
lentes, me certificando de que ninguém me seguiu até aqui. Reparo que Joy
está descendo de um táxi, usando uma jaqueta de couro e coturnos baixos,
bem mais arrumada do que nas últimas vezes em que a encontrei. Assim
como eu, está usando óculos escuros, mesmo que o sol não tenha dado as
caras. Ela costuma ser resistente quanto aos disfarces, mas, visto que
estamos em Pennetown e alguém pode reconhecê-la, Joy deixou a teimosia
de lado.
Em silêncio, minha filha se senta ao meu lado no banco de madeira. Nós
duas permanecemos com as mãos nos bolsos, a expressão fechada, olhando
para as crianças que brincam no parquinho.
— É sádico da sua parte ter me pedido para vir a esse lugar. — Joy
quebra o gelo.
— Sádico ou inteligente? — indago, virando meu rosto para assistir sua
reação à minha resposta. Joy me encara de volta, erguendo as sobrancelhas.
Não precisamos de mais palavras para que o contexto da situação fique
exposto.
Quando Joy era pequena, eu costumava trazê-la nesse parquinho. Ele fica
no centro de uma praça, tem brinquedos coloridos e partes cobertas de areia
para que as crianças possam se sujar, conhecer texturas, explorar coisas
novas. É claro que esse não é o único motivo que me trazia a esse local. O
parquinho fica a uma distância considerável da casa onde moro, em um
bairro com poucos residentes e muita visão periférica. De onde estou
sentada, consigo enxergar todos os cruzamentos e me preparar caso alguém
tente me atingir. Poucas famílias frequentam o lugar, o que também me
ajuda. Quanto menos exposição, melhor.
Mas não foi pensando apenas nisso que escolhi esse lugar para ter meu
encontro com Joy. Ela se lembra de vir a esse parquinho, tem boas
memórias dos momentos que passamos juntas aqui, o que a deixa mais
suscetível a essa conversa.
Joy é esperta o suficiente para perceber as intenções por trás do meu
convite. Ela desgosta da ideia, porque sabe que funciona. Sua sensibilidade
quando se trata de assuntos familiares a deixa mais maleável.
— Se me chamou aqui buscando perdão, esqueça — Joy fala, a voz
carregada de rancor, os olhos focados em duas crianças que estão brincando
juntas. Um menino e uma menina. Ela é claramente mais velha e está
ditando todas as regras.
Exatamente como Joy fazia com Ethan.
— Não é curioso como a personalidade é moldada desde a infância? —
jogo a frase no ar, reflexiva, ao mesmo tempo querendo deixar Joy mais e
mais sensível.
Ela suspira, entendendo exatamente o que estou tentando fazer.
— Me fez vir até aqui em um sábado de manhã para bater papo furado?
Sua rebatida deixa claro o quanto está incomodada. Joy sempre quer ir
direto ao assunto e eu sei muito bem o porquê. A necessidade de afastar as
pessoas de sua vida pessoal nunca foi um segredo.
— Pedi para que viesse me encontrar para conversarmos em um lugar
neutro. — Vou direto ao ponto. Rodear o assunto não vai funcionar.
— Não vou te perdoar — afirma novamente, com o mesmo tom grosseiro
que usou no dia em que me abordou na agência.
Minha vontade de colocá-la em seu devido lugar por esse deslize é
intensa. Porém, sei que só irei piorar a situação. Estamos em uma
circunstância delicada.
— Não estou te pedindo perdão.
— O que quer, então? — questiona, retomando contato visual comigo.
— Me certificar de que você entendeu a gravidade da situação.
— Seu segredo está a salvo, Brenda. Não se preocupe.
Ela parece certa disso, mas eu não confio em sua solidez. Joy ficou brava
demais quando soube do que eu fiz. Sem dúvida está mais calma agora,
porém, não tenho nenhuma garantia de que essa paz irá durar.
Preciso cutucá-la um pouco mais.
— Você pede que eu não me preocupe, mas é irresponsável o suficiente
para ir até a nossa casa com Luke.
Ela se move no banco quando me escuta, chocada por ter sido flagrada.
— Como? — indaga, puxando os lábios para dentro, um claro sinal de
que se sente culpada por ter sido pega.
— Já te disse que sei de tudo, Joy. Tenho olhos em todos os lugares.
Ela solta um riso irônico, negando com a cabeça.
— Mas não conseguiu descobrir o que aconteceu com Ethan.
— Você também não conseguiu — rebato na mesma hora, sem sequer
pensar.
Se ela quer jogar baixo, vou descer em seu nível.
— Pelo menos tentei mais do que você — devolve, a vontade de discutir
comigo exalando por seus poros.
— Eu entendo o que significa a palavra “limite”, querida. Fiz tudo o que
estava ao meu alcance. Minha consciência está limpa.
É claro que essa não é toda a verdade, mas eu jamais deixaria qualquer
fraqueza transparecer em meu rosto, especialmente na frente de uma pessoa
astuta como Joy.
— Está querendo me culpar de novo? Acha que já não disse o suficiente?
— Sua resposta me faz franzir a testa.
Tentei mostrar a ela que aceitei a conclusão desse caso e que não me
sentia culpada por ter parado de procurar, sequer pensei nela quando citei
minha consciência.
— Não, Joy. Eu não te culpo — afirmo, a voz mais serena, para que ela
não exploda.
— Você sempre me culpou, Brenda.
Não consigo enxergar seus olhos, mas, se eu pudesse, tenho certeza de
que veria apenas dor. Quando descobri que Ethan tinha desaparecido sob a
custódia de Joy, descontei toda a minha raiva e frustração em cima dela.
Cometi o pecado de perder a razão. Tenho para mim que meu deslize
contribuiu para sua fuga.
— Deixe o passado no passado — peço, evitando que tenhamos uma
conversa ainda mais difícil. Me arrependo de tê-la culpado, mas a situação
me fez agir dessa forma. Perdi o controle.
— Se Ethan tivesse treinado com a gente... — ela solta, amargurada,
ainda carregando um peso enorme em seus ombros.
Não deixei que esse acontecimento me consumisse, mas Joy sucumbiu a
culpa e deixou que isso ditasse sua vida.
— Do que adianta pensar dessa forma? O que está feito, está feito. —
Tento colocar um pouco de consciência em sua mente.
— As coisas poderiam ser diferentes — insiste, permitindo que a culpa
domine suas falas e pensamentos.
Preciso frear essa conversa ou não vamos chegar a lugar algum.
— Não apareça mais perto da minha casa. Bryan não pode te ver —
determino, ainda irritada por sua imprudência.
Monitoro as câmeras da residência o dia todo. Sempre tive um sistema de
segurança forte — que foi invadido no dia do sequestro de Ethan —, mas
agora vivemos em uma fortaleza controlada por mim. Recebi uma
notificação detectando um movimento na frente da casa e percebi na hora
que Joy estava estacionada na frente, com Luke dirigindo seu carro. Não sei
como ela o convenceu a irem até lá, mas não gostei. Preciso dar um basta
antes que ela faça de novo.
— Sua casa? — enfatiza, irritada. — Ainda não sei como você teve
coragem de fazer uma coisa dessas. De mentir para o seu marido! — ela se
exalta, falando mais alto do que deveria. Algumas mães que estão sentadas
do outro lado do parquinho olham para nós.
Sinto minhas bochechas queimarem de irritação. Os momentos de
imaturidade de Joy me fazem querer retomar a Brenda que a treinou, a
mulher que lhe dava chicotadas para deixá-la mais forte. Ela merecia umas
belas pauladas por se comportar dessa forma.
— Pense na situação em que eu estava, Joy. Pense em como eu poderia
justificar aquele cenário para o Bryan. Dois filhos desaparecidos, uma
confusão dentro da nossa casa, equipes entrando e saindo todos os dias —
explico com uma voz baixa, fitando Joy com autoridade, para que ela
perceba que é nesse tom que vamos conversar.
— Imagino que tenha sido caótico, mas isso não justifica nada. Você
podia ter inventado outra história, ter dito que eu estava tirando um tempo
para mim. — Ela claramente inventa qualquer coisa só para seguir com o
assunto.
— Ah, claro. Um tempo que durou quatro anos, em que você sumiu e
terminou na prisão! — falo com mais grosseria, vendo se ela entende o
absurdo que está dizendo.
— Eu não sumi. Só estive em outro lugar.
— Nem vou entrar no mérito de onde você esteve e com quem se
envolveu durante esse tempo. — Ergo a mão, brava por estar permitindo
que ela me tire do sério. Joy acaba com a minha paz de espírito. — Só
quero que entenda que precisa se manter afastada de Bryan. Isso é para o
bem dele — reforço a última parte, ciente de que Joy o ama profundamente
e se preocupa com sua segurança.
Por sua expressão, entendo que não vai tentar entrar em contato com ele.
Ela sabe que não há saída.
— Um dia você vai perceber que colocar o trabalho acima da sua família
não é a melhor opção. — Tenta me dar uma lição, me enfrentando com o
peito aberto, me fitando diretamente.
Joy, às vezes, perde a noção do perigo.
— E um dia você vai entender que em uma posição como a minha, não
há outra opção.
A força das minhas palavras faz com que Joy recue. Eu noto o momento
em que percebe que não consegue me retrucar. Seu corpo se move para
longe, os punhos fecham no bolso do casaco em uma tentativa de controlar
a raiva que a consome. Continuo a encarando, analisando se preciso falar
mais alguma coisa ou se já cumpri minha meta de fazer com que ela
compreenda a gravidade da situação.
Chego à conclusão de que não terei que me preocupar quando Joy se
levanta, lançando um olhar rancoroso para cima de mim. Ela pode me odiar,
mas tem noção de que precisa se manter distante de Bryan. Nossa relação
ficará ainda mais estremecida, entretanto, não existe uma escolha.
Esse assunto está encerrado.

Eu poderia ir para casa e abrir uma garrafa de vinho, mas não estou com
humor para beber sozinha. Alex saiu com amigos da agência, Bryan foi
jogar cartas na casa de um amigo e acha que estou em um bar com colegas
de trabalho. Tenho mais algumas horas de liberdade, uma coisa rara em
minha vida.
Quando saio do parquinho que tanto fez parte da história de Joy, só
consigo pensar que preciso retomar meu equilíbrio. Ela me tira do sério. E
só há uma pessoa no mundo que consegue me transmitir a sensação de paz.
Toco a campainha sem saber o que esperar. Tenho a chave, mas costumo
usá-la apenas quando nossos encontros são combinados. Kyle não faz ideia
de que estou na sua porta.
Demora alguns segundos até que ele venha me atender. Escuto as travas
eletrônicas sendo desativadas e o barulho da chave abrindo a fechadura. Ele
tem câmeras no corredor e na porta, então já está sorrindo quando ficamos
frente a frente.
— Que surpresa boa — comenta, sexy como só ele consegue ser.
Está frio lá fora, mas Kyle está sem camisa, mostrando o peitoral largo e
forte, cheio de pelos brancos, com um aspecto masculino, meio homem das
cavernas, que eu adoro.
— Digo o mesmo. — Fito seu corpo, deixando minhas intenções bem
claras.
Kyle abre um sorrisinho malicioso sensual e permite minha entrada.
Deixo minha bolsa na mesa localizada ao lado da porta, desabotoo meu
casaco e levo minhas mãos para a gola para poder tirá-lo. Antes que eu
possa terminar o movimento, ele aparece atrás de mim e me ajuda,
completando a ação por mim. Seus dedos tocam meus braços no processo.
Estou com a pele coberta por uma camisa de mangas compridas, mas sua
lentidão faz com que eu sinta o arrepio proveniente do seu calor.
Ao fim do movimento, Kyle afasta meu cabelo e deixa um beijo em meu
pescoço. Olho para ele quando seus lábios se afastam da minha pele,
permitindo que meu desejo transborde e consuma cada parte do meu ser.
— Vinho? — sussurra próximo ao meu ouvido.
Sorrio com sua leitura perfeita.
— Por favor.
Ele vai até a cozinha e eu aproveito para tirar meus saltos, deixando-os
próximos à porta. O apartamento de Kyle é grande e discreto. Tem poucas
janelas, uma decoração em uma tonalidade bege e impessoal, não há
nenhuma foto que entregue que ele mora nesse lugar. Apesar disso, eu sinto
seu cheiro em todos os cômodos, reparo nos pequenos detalhes que
entregam que essa é sua residência. A cozinha organizada, o quarto mais
bagunçado, os pequenos itens que remetem às viagens que fizemos juntos
quando éramos mais novos. Uma Torre Eiffel, uma miniatura da Sagrada
Família, um pequeno Taj Mahal.
Me lembro exatamente do momento em que compramos cada um desses
itens. Nossa vida era tão fácil, tão descomplicada.
— Vai me dizer o que te aflige ou terei que adivinhar? — indaga,
posicionando duas taças na bancada de sua cozinha. Ele abre o vinho,
servindo a quantidade que sabe que gosto de beber.
— Hoje, terei que me manter misteriosa. — Brindamos antes de
tomarmos um gole do vinho.
Kyle não tira o olhar do meu enquanto bebe.
— Sempre me disseram que sou ótimo em desvendar mistérios — diz,
arrancando uma risada leve do meu rosto.
— Quem foi a mulher brilhante que chegou a essa conclusão? —
provoco, bebendo mais uma golada do meu vinho, sentindo o álcool aliviar
todo o meu estresse.
O álcool e Kyle.
— É uma mulher bem confiante. Não sinto a necessidade de reforçar isso
a ela, nem de bajulá-la. — Enquanto fala, ele vai se aproximando, até parar
ao meu lado, colocar suas mãos em minha cintura e grudar nossos corpos.
— Ela já é bajulada o suficiente — respondo, rindo, sentindo que fiz a
escolha certa de vir até aqui.
Termino meu vinho em uma longa golada, apoiando a taça na bancada
com força, para que Kyle entenda que o diálogo acabou. Levo meus braços
para o seu pescoço, envolvendo-o no meu corpo, trazendo sua boca para a
minha.
Quando nos beijamos, esqueço da realidade.
Não sou a diretora da ANDOS, a esposa de Bryan, a mãe de Alex, Joy e
Ethan.
Sou a Brenda de Kyle. A jovem despreocupada, ousada, apaixonada.
Suas mãos vão para minha bunda e ele aperta a carne com força,
grudando nossos quadris o suficiente para que eu sinta o seu pau duro. A
euforia da batalha das nossas línguas me obriga a ir andando para trás,
trazendo-o junto comigo, desviando dos móveis como se estivéssemos
dançando.
Direciono nosso momento até sua cama, porque, bem, conheço o
caminho.
Quando sinto o colchão atrás das minhas pernas, me abaixo devagar, sem
desgrudar meus lábios de Kyle, mas levando minhas mãos para a superfície,
sentindo onde estou me deitando. Ele apoia os joelhos no colchão, ficando
por cima de mim, se afastando para levar suas mãos aos botões da minha
camisa.
Assisto quando o homem potente que eu tanto amo tira as minhas roupas.
Kyle vai tocando meu corpo, esbarrando a ponta dos dedos nos meus seios,
em qualquer parte da minha pele, sempre que tem a oportunidade.
Quando minha camisa já está no chão, ele para e me contempla, como
sempre faz quando transamos.
— Nunca me canso dessa visão — murmura, os olhos verdes exalando
paixão.
Levanto meu tronco para poder puxá-lo para mais um beijo, querendo
aproveitar cada segundo que tenho ao lado dele.
Kyle leva as mãos ao fecho do meu sutiã, usando minha posição para
libertar meus seios. Sem soltar meus lábios, ele pressiona meus peitos,
usando a força certa, a força que me estimula e que eu gosto.
Sou conduzida de volta ao colchão, em poucos segundos minha saia já
está no chão, Kyle já tirou sua calça e estamos apenas com nossas roupas
íntimas.
Sua boca vai para o meu pescoço, chupando minha pele, distribuindo
beijos e carícias que me incitam a gemer.
— Kyle — sussurro, abraçando suas costas, mantendo seu peito colado
ao meu.
Os beijos vão descendo até meus seios. Ele mordisca os mamilos, aperta
ambos enquanto seu quadril se movimenta na direção do meu, em uma
fricção insuportavelmente boa.
Não tenho o corpo que eu tinha quando nos conhecemos, mas Kyle
continua me lançando o mesmo olhar de trinta anos atrás. Eu o encaro com
a mesma paixão, mas carrego um peso diferente nos ombros. Olhá-lo não é
tão fácil quanto era. Pensar na nossa história e no que eu fiz a ele acaba
comigo.
É por isso que prefiro me manter beijando-o. Puxo seu rosto novamente
contra o meu, nossos lábios se encontrando, mantendo um ritmo encaixado,
único.
Kyle leva uma das mãos à minha coxa, levantando-a para deixar nossos
quadris mais encaixados. Em meio aos beijos, ao suor, ao amor confuso e
conturbado que temos, encontro a paz que eu precisava, a sensação que
somente Kyle Fletcher consegue me transmitir.
Amor é leveza. Eu só me sinto leve com Kyle.
Inverto nossas posições, raspando meu quadril no seu, excitando-o mais,
sentindo seu comprimento através da cueca.
— Tira essa calcinha, B., ou vou rasgá-la — ele ameaça, levando as mãos
às laterais da calcinha, louco com a minha dança sensual.
Aceito a provocação e aumento meus movimentos, apoiando minhas
mãos em seu peitoral para deixar a cena ainda mais sensual. Meus peitos
estão balançando, meus cabelos caindo em meu ombro nu como ondas, os
olhos focados na luxúria exibida no rosto de Kyle.
— Você pediu, depois não reclame — ele fala antes de me empurrar na
cama, invertendo nossas posições de novo.
Uma de suas mãos vai direto para minha intimidade. Ele me toca com
lentidão, enlouquecendo cada pedacinho do meu corpo, transmitindo uma
sensação que não consigo explicar em palavras.
— Rasgue, Kyle — ordeno, desesperada para senti-lo.
Meu parceiro leva a boca até uma das laterais e rasga o tecido com os
dentes. Depois de fazer o mesmo do outro lado, ele arranca o que sobrou da
calcinha e cheira o lugar onde minha lubrificação escorria.
— Deliciosa como sempre — analisa, jogando o tecido longe, afastando
minhas pernas para poder me dar prazer.
Kyle me devora com a boca até que eu esteja à beira de um colapso. Ele
quer que eu implore, eu sei que quer, e hoje não tenho tempo para
joguinhos.
— Me fode do jeito que só você sabe, amor — peço, jogando baixo,
usando a nomeação do passado para fazê-lo agir com mais rapidez.
Kyle dá mais uma lambida em meu clitóris antes de descer da cama para
tirar sua cueca. Ele se senta próximo a cabeceira e sinaliza com o dedo para
que eu me aproxime. Apoio os joelhos no colchão, segurando seu pau para
guiá-lo para dentro de mim, do jeito que eu sei que ele gosta.
Vou sentando devagar até que ele esteja todo dentro de mim. Nesse
momento, paro e contemplo seu lindo rosto. Toco em sua boca, em suas
bochechas, em seu cabelo, admirando cada traço, apaixonada pelo homem
que se tornou.
O sentimento bom sempre vem atrelado a um que me derruba.
Acompanhei seu amadurecimento, mas não da forma que eu gostaria, não
da forma que deveria ter sido.
— Não pense demais, B. — pede, levando uma das mãos para o meu
rosto.
Trocamos o olhar doloroso que só nós dois entendemos o que significa.
Movo meus quadris para cima e para baixo, tentando me focar no sexo,
na luxúria, no tesão e não no preço que paguei pelas escolhas que fiz.
É difícil, eu sempre fui uma boa agente, impecável em qualquer disfarce,
mas Kyle consegue me ler com perfeição e derruba minhas barreiras com
uma facilidade que apenas concedo a ele.
Nossas transas são sempre uma confusão de arrependimentos, paixões e
perguntas. A todo momento, nos perguntamos “e se?”, mesmo que
estejamos conscientes de que nunca vamos mudar o passado.
Kyle muda nossa posição, passa a me foder estando em cima de mim,
depois de lado, em todos os ângulos que podemos, até estarmos cansados
demais para continuar. Seguimos na cama por mais alguns minutos,
olhando um para o outro, sabendo que em breve terei que ir embora e voltar
para a minha vida.
Os olhares transmitem o que sentimos e nunca podemos verbalizar.
A frase “eu te amo” está engasgada, entalada em nossas gargantas, em
prisão perpétua dentro de nossas bocas desde que eu fiz a escolha que nos
arruinou.
A escolha pela qual me arrependo, mas que para sempre carregarei
comigo.
Faz uma semana que Alex revelou o segredo de Brenda. Ainda me sinto
quebrada e magoada, mas entendi que não posso fazer nada para melhorar
essa situação. Eu fui embora, não pensei no que poderia acontecer com meu
pai, muito menos no que Brenda diria para ele. Também tenho certa
responsabilidade nessa bagunça e preciso lidar com isso.
No dia em que tudo aconteceu, compreendi que Bryan não podia saber a
verdade, mas segui brava com Brenda. Passei os últimos dias bem, até
minha querida mãe me chamar para conversar no parquinho que frequentei
durante a infância. Ela jogou baixo para tentar me amolecer, porém, não
funcionou. Continuo sem vontade alguma de perdoá-la.
Por sua causa, tive que ficar o final de semana inteiro sozinha, ao invés
de me aconchegar nos braços do meu pai, uma das únicas pessoas das quais
senti falta durante meu tempo fora. Zoey e Lucy me abrigaram oficialmente
quando contei a elas o que Brenda tinha feito, o que pelo menos ajudou para
que eu não ficasse sem teto. Aproveitei que Zoey foi para a casa de Nate e
Lucy foi dormir sei lá onde, para mobiliar e arrumar meu quarto.
Joy Saroyan passando o final de semana em lojas de departamento,
comprando uma cama, cobertas e itens decorativos.
Eu definitivamente cheguei no fundo do poço.
Chego na agência na segunda-feira sedenta. Do fundo do meu coração,
eu só quero poder acabar com alguém ainda hoje. Estou cansada de ficar no
tédio, preciso de um pouco de ação para me sentir bem. A vida pacata e
comum não é para mim.
— Se não é a garota mais infernal dessa agência. — Ouço uma
brincadeira atrás de mim e me viro para ver quem está me abordando de
forma tão íntima.
Estou na entrada da agência, já passei pelo scanner de retina e estou
colocando a credencial na bolsa de couro preta que comprei no final de
semana. Reparo que é James Masterson e seu filho, Mason, que me chama.
— Vice-diretor. É uma honra te ver. — Sorrio, esperando que os dois
passem pelas catracas para me cumprimentarem.
James faz parte do Big Six, como é popularmente conhecida a equipe
composta por ele, Brenda, Kyle, Liz, David e Christian Mayflower. Os seis
são os agentes ativos mais antigos da ANDOS e são conhecidos pela
excelência em campo.
Alguns dizem que o Big Six é a melhor equipe de todos os tempos,
apesar de não trabalharem tanto juntos, por causa de seus cargos, e eu
acredito fielmente nisso. Minha equipe tem potencial de ser tão boa quanto
a deles, se pararmos de brigar por bobeira e travar disputas internas. O que
faz os seis grandes agentes serem bons não são apenas suas habilidades
individuais, e sim o quanto são entrosados como um grupo. Eles se
comunicam, se completam, se veem como uma família mesmo agora,
quando não saem mais para tantas operações.
Sempre tive um contato próximo com esses agentes, principalmente com
James, que é braço direito de Brenda há anos na diretoria. Mas esse não é o
único motivo pelo qual sou próxima da família Masterson.
— Sentimos sua falta, Joy — ele diz quando para à minha frente, me
cumprimentando com um rápido abraço.
Quando se afasta, tenho a visão de Mason, seu filho mais novo, que tem a
mesma idade que Ethan teria agora.
— Uau, Mase, você cresceu! — comento, chocada pelo garotinho que eu
conheci ser quase um homem.
— Já fiz dezesseis — afirma, orgulhoso, e se aproxima para me dar um
abraço apertado. — Nunca tive a oportunidade de dizer que sinto muito
pelo que aconteceu com Ethan — ele murmura contra meu ouvido.
Suspiro quando o escuto, me soltando do abraço para poder encará-lo.
Mason e Ethan estudaram na mesma escola boa parte da vida e eram bons
amigos. Diferente de Brenda, James resolveu treinar seu filho desde que ele
era uma criança. Mason aprendeu a andar nos corredores da ANDOS e
sempre soube da verdadeira vida do pai, coisa que não podia contar a Ethan,
para respeitar as vontades da diretora. Meu irmão era vendado por todas as
pessoas que estavam à sua volta.
— Obrigada, Mason. Ele gostava muito de você — digo no passado,
porque seria inocente da minha parte não supor que meu irmão está
possivelmente morto.
— Sinto saudades dele. — O filho de James olha para baixo, triste, e
recebe um carinho nas costas de seu pai, que nunca deixou de lhe dar amor,
mesmo o treinando para ser um agente impiedoso.
A resposta “Eu também sinto todos os dias” fica entalada na minha
garganta.
Me pergunto como meu irmão estaria hoje em dia. Seus cabelos
continuariam mais compridinhos, do jeito que ele gostava de usar? Ele seria
forte? Conseguiria ultrapassar minha altura? Teria mantido o brilho em seus
olhos, se por acaso descobrisse que sua mãe e irmãs não eram quem diziam
ser? São muitas perguntas para nenhuma resposta.
Brenda não estava errada quando concluiu que eu vivo apegada ao
passado. É difícil superar uma história que não teve um fechamento
concreto.
— Vai subir? — James pergunta, me tirando da minha fantasia,
sinalizando para o elevador. Assinto, sorrindo e seguindo os Masterson até
o local. — Vou treinar Mason antes de começar a trabalhar — conta,
lançando um olhar orgulhoso para o filho.
— Espero você no treinamento de recrutas daqui dois anos. Os filhos dos
Big Six precisam ser os melhores, lembre-se disso — brinco, mas no fundo
estou falando a verdade.
A cobrança é muito maior. Eu passei por isso quando estive no
treinamento, Alex e Lucy também. E Natasha Masterson, a filha mais velha
de James, a primeira e única mulher por quem eu já me apaixonei, a mulher
que fez com que eu descobrisse que sou bissexual. Nós éramos próximas
durante um momento de nossas vidas, mas ela nunca terminou o
treinamento da ANDOS e acabou migrando para o FBI antes de ter a
chance de se tornar uma agente de fato.
— Ah, eu me lembro todos os dias. — Mason ri, mas eu sei que está
nervoso, não há como não ficar.
— E a sua irmã? — pergunto, curiosa para saber como Nat anda. Aperto
o botão para chamar o elevador para esconder o sorrisinho safado que exibo
quando me lembro de nossas escapadas durante os treinamentos que
tínhamos na adolescência.
— FBI. Se mudou para Nova York uns dois anos atrás — o garoto fala,
me contando apenas o que eu já sei.
Tive um infeliz encontro com Natasha durante meu tempo trabalhando
com minha segunda equipe, ao lado de pessoas que a agência abomina e
vive tentando eliminar.
Vamos dizer que prefiro que ela se mantenha em Nova York e não
resolva aparecer por aqui. A coisa poderia ficar feia para mim.
— Que bom — respondo a Mason no momento em que o elevador chega,
aproveitando para entrar e apertar o botão do vigésimo quinto andar. —
Você vai para a diretoria? — pergunto para James para que eu possa acionar
o botão do seu andar.
Ele leva uma das mãos ao cabelo grisalho, demorando para focar os olhos
azuis em mim. Noto que Mason está olhando para os números do elevador,
tentando parecer distraído. Estranho.
— Não sou mais vice-diretor — revela e minhas sobrancelhas se unem
no mesmo momento.
— Como assim? Por quê?
A ANDOS é conservadora, Brenda está no poder há anos e James sempre
foi seu vice. Sei que estou fora faz tempo, mas, para tirarem James, algo
aconteceu.
— Políticas. — Dá de ombros como se isso não fosse nada, como se
perder a segunda posição de maior prestígio dentro da agência não o
incomodasse.
Meu cu que não incomoda!
— Brenda concordou com isso? — questiono, mantendo certa cautela,
analisando o terreno para ver o que conseguirei descobrir.
James não é um agente qualquer.
— Brenda obedece às ordens que recebe, Joy. Mas nós continuamos
amigos, não se preocupe.
Eu definitivamente não me preocupo. Só desconfio do teor dessa história.
Minha mãe pode ter contato direto com o Presidente e ser obrigada a acatar
alguns de seus pedidos, mas ela sempre teve uma voz ativa e brigou pelas
coisas nas quais acredita. Ela não permitiria que James fosse tirado da
jogada se não houvesse um bom motivo.
Pelo menos uma coisa para movimentar meu dia.
— Você está em qual andar agora? — pergunto, fingindo que deixei essa
história de lado, porque conheço James Masterson muito bem.
Ele iria correndo conversar com Brenda se achasse que desconfiei de
alguma coisa.
— Décimo quarto.
Aperto o botão do seu andar, falando sobre amenidades para distraí-lo,
enquanto minha mente trabalha. Preciso descobrir por que James foi vetado
para ter mais peças desse quebra-cabeça. Sinto o cheiro de mistério pedindo
para ser desvendado.
James e Mason descem juntos e eu sigo no elevador até o vigésimo
quinto, indo direto para a sala de Luke.
Já trabalhamos no mesmo ambiente durante alguns dias depois que nosso
momento no treino de luta aconteceu. Torturamos o cara que nossa equipe
capturou na operação, conseguimos a informação que precisávamos,
trabalhamos em uma parceria de trabalho impecável. Entretanto, Luke não
disse nada e resolveu fingir normalidade, brigando comigo o tempo todo,
fingindo que eu não senti seu pau duro, que ele não falou a palavra
“bocetinha” com o rosto a centímetros do meu. Ainda pretendo confrontá-lo
sobre essa cena, mas, pelo menos hoje, não estou a fim de comprar essa
briga.
Estou mais interessada na emoção que investigar minha mãe e seus
colegas pode me trazer.
— Bom dia, Carter — cumprimento enquanto entro na sala, deixo meu
casaco no cabideiro ao lado da porta e jogo a bolsa no sofá.
Luke não move a cabeça, apenas levanta o olhar para mostrar o quanto
despreza meu senso de organização.
— Bom dia, Saroyan.
— Alguma novidade interessante? — pergunto, me jogando no sofá,
apoiando os pés na mesa do jeito que sei que ele odeia.
Luke retirou todos os enfeites do lugar para que eu não quebrasse nada.
Já entendeu que não vou sair da sua sala tão cedo.
— Estou trabalhando há — confere o relógio de punho — quarenta
minutos, mais ou menos, no caso que Nate nos passou no final da semana.
— Não deixo de notar a reclamação sutil em relação ao meu atraso.
— Ah, o da máfia? Achei chato — resmungo, porque odeio essa
investigação passiva para tentar descobrir como andam os negócios de
máfias que o Presidente se recusa a eliminar, por causa do movimento que
trazem ao submundo do país.
Luke me encara com um olhar estoico. Ele é tão responsável que me
irrita.
— Sabe o que é mais legal? — questiono, me levantando do sofá ao
entender que essa é a hora perfeita para abordá-lo. Afasto os itens de sua
mesa para me sentar no vidro, com as pernas viradas em sua direção, soltas
bem ao lado de onde está sentado. — Acabei de descobrir que James
Masterson não é mais vice-diretor. Isso me intrigou. Quer me contar o que
aconteceu?
Luke não exibe expressão nenhuma quando falo. Ou ele já se acostumou
com esse fato ou está tentando se controlar para não exibir nada em seu
rosto, porque sabe o quanto sou boa em analisar linguagem corporal.
Mal sabe ele que o silêncio diz muito mais do que palavras.
— Foram questões políticas, nada demais. — Dá de ombros da mesma
forma desencanada que James.
Meu parceiro acabou de comprovar que há algo nessa história que eu não
estou vendo. Estou prestes a perguntar o que diabos aconteceu nos últimos
anos para essa mudança ter sido permitida, quando o telefone da agência
toca.
Tomamos um susto, porém, Luke aproveita a interrupção e desvia o olhar
do meu para atender.
Droga, perdi minha oportunidade.
— Agente Carter. Sim, estou com ela. — Olha para mim e eu tento
perguntar quem está falando de mim. Ele levanta o dedo indicador, pedindo
que eu espere. — Estamos indo aí imediatamente. — Luke desliga, o
semblante mudando por completo.
— O que foi?
— Reunião de emergência no vigésimo nono — revela, se levantando e
pegando seu paletó na cadeira.
Trocamos um olhar, ambos compreendendo que a emoção do nosso dia
acabou de ser multiplicada por cem. O vigésimo nono andar da agência é
usado somente quando alguma figura importante do governo vem até aqui,
seja para uma visita ou para que possamos resolver alguma situação
urgente. Pelo tom da ligação e a rapidez com que nos locomovemos, chego
à conclusão de que algo aconteceu.
Não demora para que cheguemos ao andar mais reservado do prédio.
Diferente dos outros, sua pintura tem um tom mais escuro, as janelas são
mais discretas e há uma saída exclusiva que leva direto ao heliponto, tudo
para que as pessoas que frequentam esse lugar fiquem ainda mais
camufladas. Anunciar uma crise nunca é uma boa ideia. Nossa política é
sempre agir com a maior discrição possível.
O andar não está cheio, mas conto pelo menos meia dúzia de agentes do
Serviço Secreto posicionados em lugares estratégicos. Um deles nos aborda,
porém, Brenda sinaliza para que nos deixe passar. Esse andar contém
apenas uma sala gigantesca de reuniões com tudo o que precisamos para
poder investigar algum caso sigiloso, entretanto, não é lá que a diretora está.
— Agora que estão todos aqui, vou informá-los do que aconteceu — ela
fala assim que Luke e eu nos aproximamos do grupo.
O restante da nossa equipe já está no corredor, apenas esperando por nós.
O clima de tensão domina o ar.
Em uma rápida olhada, vejo que o Vice-Presidente, Marcus Woody, está
dentro da sala de reuniões, andando de um lado para o outro, nitidamente
nervoso com alguma coisa. David, pai de Lucy, está tentando conversar
com o VP, mas o homem não se concentra o suficiente a ponto de olhar para
ele. Presumo que, depois da saída de James, David se tornou o vice-diretor
da agência. É a escolha mais óbvia e explicaria sua presença nessa reunião
emergencial.
— O filho do VP foi sequestrado durante a madrugada, algumas horas
atrás. — Brenda olha discretamente para mim assim que termina de falar.
Minha respiração parece ficar presa nos pulmões, posso jurar que o
famigerado vigésimo nono andar se tornou pequeno. — Ele tem cinco anos.
— A informação extra termina de me quebrar.
Dou um passo discreto para o lado para poder me escorar na parede.
Luke, vendo meu abalo, segura em meu antebraço e ajuda a me manter em
pé. Ele não olha para mim, segue prestando atenção em Brenda para que
ninguém perceba o déjà-vu que estou tendo, mas ainda assim, está evitando
que eu desabe.
— É crucial que o encontremos o mais rápido possível. Crianças são
mais fáceis de serem vendidas e perdidas.
— Algum pedido de resgate? — Noah pergunta.
O ar ainda parece rarefeito, mas consigo controlar melhor minha
respiração. Estou tensa e mil pensamentos diferentes tentam me dominar.
Entretanto, uso toda a minha força mental para bloquear os sentimentos e
deixar apenas a razão entrar. Aos poucos, me solto do braço de Luke e
consigo me reerguer sozinha.
— Nada. Mas antes que um pedido seja feito, quero essa criança de volta
em sua casa — Brenda determina e nos direciona para diferentes tarefas.
Lucy e Noah partem para a parte tecnológica, recebendo ajuda de alguns
agentes do Serviço Secreto para terem acesso ao sistema de segurança da
casa do VP. Zoey vai colher depoimentos dos agentes que estavam vigiando
a residência durante à noite, e Nate e Luke entram na sala de reuniões para
conversarem com o VP.
Ameaço segui-los, mas Brenda segura meu braço, me impedindo de
seguir em frente.
— Tem certeza de que consegue lidar com esse caso? — questiona, os
olhos tão perturbados e feridos quanto os meus.
— Tem certeza de que você consegue lidar com esse caso? — devolvo,
porque, afinal, foi ela quem perdeu a cabeça quando Ethan foi tirado de nós.
— Não tenho escolha.
— Eu também não.
Olho para o meu braço, pedindo, em silêncio, para que me solte. Posso
não estar cem por cento bem com essa situação, mas jamais deixaria um
caso por causa disso. Vou encontrar esse garoto e trazê-lo de volta para
casa.
Me recuso a deixar que essa história termine da mesma forma que a de
Ethan terminou.
Uma hora depois, ainda estamos na mesma posição, tentando arrancar
informações úteis do VP. Eu não conhecia Marcus Woody, só o vi pela
televisão, e admito que o cara é tão babaca quanto imaginei. Homens em
posições de poder, normalmente, são. Ele está nos dizendo tudo o que
consegue, porém, seu estado catatônico o impede de se lembrar de detalhes
importantes que podem ser cruciais para descobrirmos o paradeiro de seu
filho.
— Sua equipe diz não ter ouvido nada, ninguém da sua família acordou,
não houve barulho algum. Ainda assim, você diz confiar em todos os
agentes do Serviço Secreto que trabalham para você. — Nate mais uma vez
expõe os fatos que já apuramos. O VP está tendo dificuldades de aceitar que
possivelmente tem um traidor em sua equipe, teimosia que pode custar a
vida de seu filho.
— O acesso à sua casa não é simples, senhor. Foi um sequestro limpo.
Alguém da sua equipe permitiu a entrada do sequestrador. — Luke reforça
o que estamos tentando lhe explicar.
Alguns minutos atrás, Lucy descobriu que as imagens de todas as
câmeras do lugar foram deletadas no momento em que o sequestro
aconteceu, o que só comprova nossa teoria de que existe um traidor dentro
da equipe de segurança.
E é exatamente por esse motivo que o Presidente nos designou para esse
caso. Não dá para confiar no Serviço Secreto nesse momento.
— Eu já disse que confio em cada um que trabalha comigo! — O VP
fala, meio gritando, meio tremendo.
— Você quer achar seu filho ou não? — questiono, perdendo a paciência.
— É claro que quero. — Ele abre os braços, como se perguntasse se sou
idiota por indagar uma coisa dessas.
— Então colabore e comece a pensar em quem andou irritando nos
últimos tempos. Se não falar por livre e espontânea vontade, iremos
arrancar a informação de outra forma — ameaço, sem ter medo de quem
esse cuzão é.
Estamos falando da vida de uma criança.
Nathan me lança um olhar repressor, se controlando para não me dar uma
bronca na frente do Vice-Presidente do país.
— Irrito muitas pessoas, garota — ele responde, conseguindo me colocar
nessa lista.
— Comece a nomeá-los — peço, dando alguns passos na direção dele. —
E não me chame de garota. Eu sou uma mulher. E nesse momento,
represento a única esperança de você ver seu filho de novo. — Coloco o
homem em seu devido lugar. Trabalhamos para o governo, mas isso não lhe
dá o direito de dizer o que quiser.
Dessa vez, Luke e Nate ficam quietos. Por suas expressões, percebo que
concordam comigo.
O VP suspira, sua testa está suando, o rosto exalando tensão. Eu o
entendo, já senti essa mesma sensação. Ter alguém que você ama arrancado
de você à força dói de uma maneira inimaginável. Mas se ele não colaborar,
não conseguiremos nada.
— Você tem alguma desavença com alguém da Casa Branca? — Nate
pergunta e espremo os olhos, desconfiada do teor desse questionamento.
— Várias pessoas. Mas isso é perfeitamente normal. Acha que alguém do
governo sequestrou o meu filho? Por quê? — O VP indaga, confuso com o
caminho que Nathan está tomando.
Antes que meu líder possa responder, Brenda, que até então estava quieta
no fundo da sala, sentada ao lado de David, se manifesta:
— Você tem algum problema com Richard O’Conell?
Me surpreendo quando escuto o nome que eu mesma arranquei de
Marlon, o suposto mafioso que minha mãe me pediu para torturar.
Entretanto, pareço ser a única surpresa. Luke, Nate e David não alteram a
expressão.
Se eu já estava desconfiada de que há algo acontecendo nos bastidores,
agora tenho certeza. Mas o quê? Porque eles sabem dessa informação? É o
que pergunto a mim mesma.
— Richard? O Chefe de Gabinete? — O VP questiona, tão perdido
quanto eu.
— Sim, Woody. — Brenda o chama de uma forma mais íntima, é como
se estivesse pedindo que confie nela.
O homem passa a mão nos cabelos, ainda desnorteado.
— Não gosto do cara, nunca achei que fosse uma boa escolha para o
cargo onde está. Temos opiniões bem diferentes, acabo sempre contra ele
quando temos que tomar alguma decisão, mas O’Conell é da confiança do
Presidente Campbell. — O que ele conta faz um sinal de alerta gritar na
mente de todos nós. Vejo que, discretamente, Brenda troca um olhar com
David. — Achei que estávamos atrás de bandidos, mafiosos, traficantes...
por que estamos nos preocupando com as pessoas da Casa Branca?
— Só levantamos uma hipótese, senhor. Fique tranquilo — diz Nathan,
mas não confio no tom de sua voz.
Especialmente quando todos eles sabem de algo que não sei.
Encaro Luke, buscando informações em seus olhos. Ele me conhece há
anos e compreende que estou desconfiada. Mas essa não é a hora, nem o
lugar para falarmos sobre isso.
— Achei uma coisa — Lucy grita, chamando a atenção para si. Ela está
sentada atrás de um dos grandes computadores da sala, e espelha sua tela no
enorme painel que há à frente de sua mesa. — Consegui acesso às câmeras
de todas as ruas do bairro onde o VP mora e encontrei um carro suspeito
que transita nos horários em que acreditamos que o garoto desapareceu. —
Ela mostra as imagens enquanto todos nos aglomeramos à sua volta.
— Rastreamos o veículo, mas ele foi abandonado em um posto de
gasolina a trinta quilômetros de distância dali — Noah dá continuidade,
mostrando outras imagens que comprovam a descoberta. — Outro carro
saiu no mesmo horário. Esse mesmo carro foi trocado mais duas vezes e, no
meio do caminho, outro veículo passou a acompanhá-lo na estrada.
— Onde estão os carros? Vá direto ao ponto, não temos tempo — Brenda
ordena.
— A caminho do litoral de Washington, estou rastreando em tempo real,
hackeando todas as câmeras no caminho — Lucy mostra a confusão em sua
tela preta, ela não para de digitar um segundo sequer, para poder continuar
acompanhando o veículo.
— Vamos abordar esse carro imediatamente. Quero a equipe toda na
missão. David, chame dois helicópteros agora — Brenda dispara,
apontando para o seu vice-diretor. David pega seu celular e sai da sala na
mesma hora, indo fazer a ligação. — Descubram quem está no comando e
tragam para o Navio. O resto, eliminem.
Sua ordem é clara e sucinta. Minha equipe apenas assente e se prepara
para a nossa primeira missão juntos desde a minha volta.
Eu não poderia pedir por um dia melhor.
Estou tentando me manter frio e impassível, mas me controlar fica difícil
quando vejo a escuridão tomar conta dos olhos de Joy. Divido minha
concentração entre tentar decifrá-la e evitar que nosso carro capote. A cada
segundo, descumpro uma lei de trânsito diferente. Ando na contramão,
passo nos faróis vermelhos, rio do limite de velocidade.
Assim que descemos dos helicópteros, uma equipe da agência local nos
esperava com reforços e dois carros para que pudéssemos perseguir o
suposto sequestrador. Nate, Zoey e Noah estão no carro à nossa frente, meu
amigo e líder parece a porra de um piloto atrás da merda do volante e
costura o trânsito sem dó. Para segui-lo, piso no acelerador e mantenho as
duas mãos no volante, agindo apenas de forma reativa.
A ação do nosso trabalho é sem dúvida a parte mais legal, a adrenalina
sempre invade minha corrente sanguínea e me deixa eufórico para cumprir
a missão que nos foi dada. Entretanto, hoje, especificamente, estou
preocupado com o que as sombras nas pupilas claras da minha parceira
podem significar.
Tenho a ignorado nos últimos dias, falando apenas sobre o trabalho,
fingindo que nosso momento no ringue nunca aconteceu. O melhor para
mim é me manter longe dela e eu sei disso. Esqueci da minha própria luta
por causa dela, porra. É óbvio que Joy é uma distração perigosa.
O problema é que não consigo deixar de me importar com ela.
Esse caso toca diretamente em sua ferida. O sequestro de seu irmão é
uma das poucas coisas capazes de desestabilizá-la. Ethan já era mais velho
do que o filho do VP, se bem me lembro tinha doze anos quando foi levado,
mas a história é similar em todos os outros aspectos. O filho de alguém
poderoso sequestrado dentro de sua própria casa.
Por sorte, conseguimos uma forma de localizá-lo em poucas horas, foi até
fácil, comparado ao caso de Ethan.
Não gosto de soltar teorias infundadas, mas confesso que a possibilidade
de os dois casos estarem interligados passou pela minha cabeça. O
pensamento logo foi embora, porque, apesar do modus operandi ser
parecido, Ethan foi levado há quatro anos. Não faria sentido, a não ser que...
Não. Estou vendo ligações que não existem. O filho do VP pode ter sido
sequestrado por diversas pessoas, ele tem inúmeros inimigos poderosos,
assim como Brenda.
— Luke, eles estão acelerando, aumente essa velocidade! — Lucy
comanda do banco de trás, monitorando os carros dos sequestradores
através de um pequeno computador.
Eu também acompanho a trajetória pelo painel central do carro. O
veículo de Nate está marcado logo à minha frente, os nossos alvos ainda
estão a algumas ruas de distância. Entendo o pedido de Lucy quando o
mapa vai se ampliando, porque nossa distância está se ampliando.
— Que merda, porra! — xingo, batendo na direção quando não consigo
costurar outros carros da maneira que gostaria.
Tenho que mudar a estratégia para conseguir acompanhar Nate e jogo o
carro para a pista contrária da estrada, andando na contramão por alguns
metros, voltando para a pista correta somente quando quase colido com
outro carro.
A adrenalina segue comandando minhas veias, Lucy solta um gritinho do
banco de trás, tão eufórica quanto eu. Olho para o lado para ver a reação de
Joy, mas ela sequer pisca. A AK-47 está em suas mãos, ela apoia a arma no
colo, porém, mantém o dedo indicador no gatilho, pronta para atacar.
Sua falta de emoção me deixa ainda mais preocupado.
— Joy? — Ela desvia os olhos para mim sem sequer mover a cabeça. —
Você está bem?
— Me deixe pegar o cara que ficarei — responde, destravando a arma
para provar seu ponto.
Como o esperado, ela vai usar esse caso para descontar a raiva pelo que
aconteceu com seu irmão. Decido que não vou sair do lado dela durante a
operação, porque conheço minha parceira e sei muito bem qual é sua maior
dificuldade.
Controle.
— Merda, eles estão saindo da estrada — Lucy alerta, e vejo pelo
monitor que os carros estão pegando um acesso à esquerda rumo a cidade.
Mudo de pista para ficar mais próximo ao acesso, vendo que Nathan está
fazendo o mesmo.
— Noah, diga ao Nate para seguir à esquerda — Lucy se comunica com
o parceiro através do ponto em seu ouvido. — Luke, acelere e saia no
próximo acesso à direita.
— O que? Quer que eu me distancie do alvo? — questiono, confuso com
a ordem, sem sair de onde estou.
— Só me obedeça, porra! Não confia em mim? — a loira devolve,
irritada, agitada pela responsabilidade que tem em mãos e não pelas
substâncias externas que tem mania de usar. Agradeço por ter se mantido
sóbria pelo menos hoje, caso contrário nossa missão poderia ser
comprometida.
Não respondo, apenas mudo de pista, acelerando o máximo que consigo e
a obedeço, pegando o próximo aceso à direita. Fico completamente longe
do alvo, por um momento, sinto que estou indo pelo lado oposto e que Lucy
está fazendo a maior cagada do século.
— Cassidy, que diabos? Vamos perdê-los!
— Vire à esquerda — ela segue me dando orientações sem sentido.
— Estamos andando em círculos — reclamo, mas obedeço.
— Direita — orienta, ignorando minhas reivindicações.
— Lucy!
— Cala a boca, Carter! Ela está nos fazendo cercá-lo! — Joy berra,
engatilhando a arma mais uma vez, completamente puta comigo.
Caralho, como eu não percebi?
— Vamos encontrá-los na próxima rua, vire à direita agora e pise no
acelerador com a maior força que puder — Lucy orienta, vejo que fechou
seu notebook e está pegando uma arma em seu coldre, pronta para atacar.
Agora que conheço seu plano, tenho confiança para obedecê-la sem
pestanejar. Enfio o pé no acelerador, cruzando a avenida movimentada em
segundos, chegando em uma ruazinha no mesmo momento que nossos
alvos tentam cruzá-la. Nathan está logo atrás deles, impedindo que fujam
pelo outro lado, eu estou com o carro atravessado, impedindo que saiam
pela frente. Os filhos da puta estão encurralados.
— Eu disse para confiar em mim, Carter — diz Lucy, e eu pisco para ela,
mostrando que nunca mais duvidarei de sua palavra.
Em sincronia, nós três descemos do carro, equipados com nossos coletes
a prova de bala e armados até os dentes. Nate, Zoey e Noah fazem o mesmo
no outro veículo e os homens ficam sem escolha. Ou descem dos carros ou
estão mortos.
Como tem amor à vida, as portas dos veículos começam a abrir e quatro
homens aparecem com as mãos para cima, indicando que se renderam. Eles
estão vestidos de preto, apenas um está com uma jaqueta de couro, peça
normalmente usada por membros de máfias, mas não há nada que denuncie
a qual grupo pertencem.
— Cadê o garoto? — Nathan questiona com um berro, a arma
empunhada na direção de um deles.
— Não sabemos de nada disso — um deles responde.
— Vocês pegaram os caras errados — outro completa.
Não acredito nessa baboseira. Lucy foi minuciosa ao encontrá-los.
Parece que não sou o único descrente, porque Joy dá um tiro nos pneus
frontais de ambos os carros, já dizendo que não vão escapar.
— Se continuar mentindo, o próximo vai ser na testa de um de vocês —
ameaça, a voz firme, sem um pingo de hesitação.
É bom que esses caras não sejam burros e duvidem da palavra dela.
— Nós não temos...
Sempre tem que existir um burro, porra!
Joy não espera que ele complete a frase. Apenas atira no meio de sua
testa, como prometido.
O corpo do homem cai no chão em um baque. Seus olhos estão abertos, o
sangue escorrendo do buraco no meio de sua testa e formando uma poça à
sua volta.
— Vão começar a falar ou querem ter seus miolos explodidos? — Nate
pergunta, e ao ver o receio dos homens, atira no pé de um deles.
O cara urra de dor, mas Nathan não permite que ele se abaixe para tentar
estancar o sangramento ou fazer qualquer outra coisa para amenizar seu
sofrimento. Com um movimento de cabeça, ordena que seu irmão vá até o
homem. Noah o segura pela gola da jaqueta de couro, levantando-o do chão
com apenas uma das mãos.
— Nós não estamos com o garoto, eu juro — o homem fala, chorando de
tanta dor.
Homens que trabalham para o submundo não duram muito, por isso estão
constantemente sendo substituídos. Para esse imbecil chorar desse jeito por
causa de um tiro no pé, é porque deve ser novato na gangue. Típico.
— Onde ele está? — Zoey questiona, pegando duas facas em sua cintura,
apontando-as para o homem.
— Eu não sei. Nós só estávamos responsáveis por distrair vocês —
responde em meio às lágrimas, todo amedrontado.
Minha equipe troca um olhar que diz o óbvio. Esse idiota não vai nos
ajudar. E se não vai ser útil, pode servir de lição.
Nate assente para Noah, dando o sinal para que ele faça o seu melhor
para apagá-lo. Noah não é tão frio e violento como eu e Nate, mas faz o seu
trabalho. Ele permite que o cara apoie os pés no chão novamente. Quando o
trouxa acha que vai escapar dessa ileso, Noah quebra o seu pescoço.
Agora só nos restam dois.
— Vão ser inúteis ou vão abrir a maldita boca e colaborar? — Joy
indaga, nós já mostramos do que somos capazes, os dois estão cientes do
destino que terão se não nos derem o que queremos.
Estamos com pouco tempo, cada segundo é crucial para recuperarmos o
garoto. Penso em atirar na perna de um deles para mandar um recado, mas
Zoey é mais rápida. Ela lança uma faca no ombro de um deles, a lâmina
entra direto no músculo e se finca ali. O homem leva a mão ao ferimento,
mas não tira a faca dali, sabendo que pode sangrar até a morte se o fizer.
Zoey aproveita sua distração e lança outra faca, dessa vez no ombro oposto.
O sorrisinho em seus lábios é maldoso, imagino que ela esteja adorando que
conseguiu lançar as facas de forma simétrica, minha amiga sempre diz que
adora mandar recados com classe. Zoey é adepta a frase “não perder a pose
jamais”.
Enquanto seu amigo sofre com as facas fincadas nos ombros, o único
homem ileso nos olha com crescente desespero. Esse é o imbecil que vai
abrir a boca. Ele já tem incentivo o suficiente.
— Levaram o garoto para as docas. Vão embarcá-lo em um navio para a
América do Sul em poucos minutos.
A revelação que tanto queríamos aparece.
Em um movimento rápido, atiro no homem esfaqueado, livrando-o de
seu sofrimento. O outro mantém as mãos atrás da cabeça, nervoso com seu
destino, com certeza se perguntando se há uma chance de ser poupado por
ter aberto a boca.
— Noah, Zoey, aguardem a equipe da agência chegar para recolher esses
corpos e depois venham até as docas — Nate ordena, jogando a chave do
carro para o irmão. — Façam o que quiser com ele. — Aponta para o
homem que nos revelou o paradeiro do garoto. Chuto que ele estará morto
em menos de cinco minutos. — O resto de vocês, comigo.
Entro no carro novamente, Joy se joga ao meu lado, Lucy e Nate no
banco de trás. Saio de ré, manobrando o carro para voltar à avenida e seguir
caminho até as docas. Lucy pega o notebook novamente para nos guiar e
me vejo mais uma vez costurando o trânsito.
No caminho, reabastecemos nossas armas e enchemos nossos coldres
com mais munição. As pistolas são substituídas por armas de maior calibre,
prontas para eliminar todos que cruzarem nosso caminho.
— Esse garoto precisa voltar sem nenhum arranhão, ouviram? — Nate dá
o último comando antes de descermos do carro.
Estaciono nas docas de qualquer jeito, nós quatro saltamos para fora do
veículo, mas paramos assim que notamos a magnitude do lugar. Inúmeros
containers estão espalhados, há pelo menos meia dúzia de navios atracados
e dezenas de pessoas.
Com civis na missão, a coisa fica muito mais complicada.
— Vamos nos separar — sugiro.
— Não, tenho uma ideia melhor. — Lucy volta para o carro depois de
falar, tira o seu notebook de lá, apoia na capota e começa a digitar. — Deve
haver uma parte mais reservada nessas docas, algum lugar sem tantos civis.
— Nenhum sequestrador é idiota a ponto de se infiltrar em meio a tantas
pessoas para tentar embarcar — fala Joy.
— Bingo! — comemora Lucy, nos indicando no mapa um lugar a direita
das docas. — Aqui diz que essa entrada é reservada a entrada e saída de
itens valiosos.
— Ou seja, uma ótima cobertura para negócios ilegais — conclui Joy. —
Vamos matar esses desgraçados! — Ela empunha a arma e nos
posicionamos de novo, agora indo para o lugar certo.
Nate avisa Zoey e Noah da nossa localização e eles relatam que já estão a
caminho. Não sabemos quantos homens enfrentaremos, então qualquer
reforço é bem-vindo.
Usamos os containers espalhados pelo lugar para nos esconder e mapear
nossos inimigos. Nos alternamos para checar quantos são e onde estão.
— Dois de guarda ao sul. Três ao norte — informa Nathan.
Chega a vez de Joy de fazer a contagem e ela olha direto para a saída
para o oceano. Quando volta a nos encarar, percebo que está se controlando
para não transparecer nenhuma emoção.
— Eu vi o garoto. Estão o arrastando para dentro de um barco pequeno,
provavelmente na direção do navio que está atracado mais longe. Há pelo
menos oito homens com ele.
O garoto tinha que ser visto justo por ela? Puta merda.
— Precisamos agir agora — afirmo, sabendo que Joy não precisa de um
consolo, e sim de ação. Se demorarmos mais e eles entrarem nesse barco,
fodeu.
— Noah e Zoey chegaram, eles vão pegar os guardas no norte — conta
Lucy, se comunicando com seu parceiro pelo ponto em seu ouvido.
— Eu e o Luke vamos pegar o garoto — Joy afirma e, sem sequer ouvir a
resposta de Nathan, sai em disparada na direção do barco.
Sem ter outra escolha, a sigo, sabendo que nossa equipe nos dará
retaguarda pelos fundos eliminando os guardas sem serem notados.
Minha ideia era ser discreto para evitar um caos generalizado, mas minha
parceira parece estar pensando justamente o contrário. Enquanto se
aproxima, já mata dois caras com tiros na cabeça. Os outros homens
percebem que estão sendo atacados e apontam suas armas contra nós dois.
Joy está esperando a retaliação, mas eu não estou a fim de levar um tiro,
então a puxo pelo colete para que possamos nos proteger atrás de um dos
containers.
Tiros ecoam para todos os lados, é fato que nossos amigos também foram
descobertos e estão travando uma batalha contra os alvos. Eu odeio quando
saímos da estratégia, odeio essa sensação de não saber se meus
companheiros de equipe estão vencendo ou perdendo, se algum deles está
ferido ou morto.
— Porra, Luke, eu estava com outros dois na mira! — Joy reclama
enquanto escoramos nossas costas no container, escutando o barulho das
balas atingindo a estrutura.
— Você ia acabar levando um tiro. Precisa pensar antes de agir, Saroyan!
— A afirmação soa como uma bronca porque, no fundo, sei que ela merece.
Joy está sendo imprudente, não consegue enxergar que a proximidade do
caso com sua vida pessoal está interferindo em seu julgamento.
— Temos que atacar ou eles vão sumir com o garoto, caralho! Pense um
pouco, porra! — Ela me empurra, apoia a arma no ombro e se posiciona
para sair do nosso esconderijo.
Filha da puta! Vou ser obrigado a segui-la.
Uso o outro lado do container, rezando para que nossa conexão em
campo esteja tão afiada quanto antes. Ao mesmo tempo, nós dois saímos e
armamos fogo contra os homens. Joy atira no peito de um deles, outro
aponta sua arma para ela, mas consigo pegá-lo, atingindo-o com dois
disparos no pescoço. Reparo que o garotinho está sendo segurado por um
homem, suas mãozinhas estão algemadas e ele chora de desespero enquanto
assiste o desenrolar de seu resgate. Esse garoto nunca vai esquecer das
cenas que está presenciando, nunca vai apagar o desespero que sentiu por
ser levado de sua família. Por causa desses idiotas, estará traumatizado para
o resto da vida.
Apenas quatro homens nos separam do garoto. Nós estamos com as
armas apontadas para eles, eles com suas armas apontadas para nós. Mas
ninguém atira, sabendo que a retaliação vai ser imediata. Eu e Joy vamos
nos aproximando passo a passo, como se estivéssemos em uma dança
perfeitamente coreografada. Se bem a conheço, está querendo matar todo
mundo para pegar o menino, mesmo que isso signifique perder sua própria
vida. Eu já penso diferente. Antes de partirmos para o ataque, podemos
tentar um meio-campo.
— Soltem o garoto e deixamos vocês escaparem — ofereço, me
mostrando aberto a negociar.
Os três homens mais à frente desviam o olhar para o que está segurando
o garotinho. Presumo que ele seja o chefe.
— Não — responde, indo pelo caminho que eu não gostaria de seguir.
Agora, é guerra.
Dois homens atiram contra Joy, mas ela é uma especialista, uma atiradora
nata, treinada para fugir desse tipo de situação. Ela desvia dos tiros com
maestria, virando o tronco para que algumas balas peguem em seu colete,
outras passem batida. De um jeito bizarro, ela arranja um ângulo para atirar
na perna de um deles.
Aproveito que o homem está desestabilizado e o ataco. Bato com a arma
em sua cabeça, mas o filho da puta é mais treinado do que os homens que
encurralamos mais cedo. Ele ri quando recebe a pancada e devolve um soco
pesado em meu rosto. O gosto de sangue inunda minha boca, mas não deixo
que a dor me consuma. Esqueço de sua existência e me anestesio para o
bem da missão.
Levo meu punho fechado ao queixo do homem, atingindo-o por baixo,
fazendo sua cabeça ir com tudo para trás.
— Pro lado! — Joy grita e entendo seu comando na hora, me afastando
para que ela atinja o babaca na cabeça, eliminando-o de vez.
Enquanto me ajuda, outro homem se aproxima, dando uma cotovelada
em sua testa, cortando o supercílio na hora. Me prontifico a ajudá-la, mas
não consigo, porque outro se aproxima para brigar comigo. Percebo que o
garotinho se debate nos braços do chefe, que tenta arrastá-lo para dentro do
barco. Para nossa sorte, ele não consegue sair imediatamente, porque a
embarcação está presa por uma corda grossa que precisa ser desenrolada
com certa paciência. Com o filho do VP se movendo desse jeito, o homem
não conseguirá fazer o que precisa. Isso nos dá algum tempo de vantagem.
A briga com o cara é boa, ele tem um soco forte e reage rápido, mas não
é páreo para mim. Seu rosto está protegido pela guarda, então levo meu
punho direto para a boca de seu estômago, sabendo que o baque deixará o
homem desestabilizado. Quando ele cambaleia, me preparo para o golpe
final, atirando em seu peito.
— Luke! — minha parceira grita e me viro para vê-la sendo segurada
pelo colete, os pés longe do chão.
Faço um sinal com a cabeça e, em pura sincronia, Joy chuta o saco do
cara, fazendo com que ele a solte. Ela cai no chão e eu tenho o espaço
perfeito para matá-lo.
— O mar! — avisa quando me aproximo, estendendo a mão para ajudá-la
a se levantar.
Pelo menos vinte homens se aproximam em jet-skis, vindos do navio que
Joy apontou como o local para onde o menino estava sendo levado.
— Ajuda emergencial na saída! — falo pelo comunicador em meu
ouvido, rezando para que nossos amigos estejam livres para nos auxiliar.
— Vou pegar o garoto — Joy anuncia, aceitando minha ajuda,
recuperando sua arma no chão e correndo na direção do chefe.
Um tiroteio infernal começa quando os homens nos jet-skis estão a uma
distância boa para atirarem. Revido alguns disparos, mas fico sem munição
e acabo voltando a me proteger no container para me reabastecer. Odeio
deixar Joy sozinha, mas não tenho escolha, alguém precisa ir atrás do chefe
antes que ele suba naquele maldito barco.
Quando saio do esconderijo, o resto da equipe já se aproximou e
batalham contra nossos inimigos, que já estacionaram seus jet-skis para nos
atacar. Mato dois caras antes de perceber que Joy está brigando com três ao
mesmo tempo, e que o chefe amarrou o menino em uma viga de madeira no
píer. Com as mãos livres, ele consegue, aos poucos, desatar a corda de
marinheiro que mantém o barco atracado.
Deixo o resto da equipe cuidando dos homens, ignorando os barulhos dos
disparos, o sangue que vejo em seus rostos e que escorre direto para o mar.
Corro até Joy, vendo que ela está machucada, mas, como sempre, resistindo
e batalhando. Enquanto bate em um, ela usa o outro para atacar o terceiro,
quando ele tenta golpeá-la, ela puxa o homem pelo braço para que ele seja
atingido no lugar dela.
Quando estou próximo o suficiente, atiro em um dos caras, vendo seu
corpo cair na água, devido à proximidade com o mar. Joy está chutando a
barriga de um, quando outro puxa seu cabelo, arrastando-as pelos fios. Ela
solta um berro misturando dor e raiva, tentando atacá-lo.
Nesse momento, seus olhos se encontram com os meus e ela abre um
sorrisinho, sabendo que agora terá uma briga justa.
Ela agarra o tornozelo do homem que a segura pelo cabelo, derrubando-o
no chão. Joy tenta prendê-lo no lugar, mas o outro vem por trás dela e a
ataca com uma coronhada. Sem se abalar, minha parceira fica de pé,
entrando em um combate corpo a corpo com o cara. Sabendo que estou por
perto, ela dá um mata-leão no homem, afastando a cabeça o suficiente para
que eu o atinja.
Quando o solta, Joy suspira, ofegante pela batalha que acabou de
enfrentar.
— Vá atrás do chefe! — comando quando vou para cima do homem que
ela derrubou no chão, o último que preciso destruir antes de chegar no
garoto.
Tudo acontece muito rápido. Destruo o homem em poucos segundos e
estou pronto para resgatar o menino, quando vejo que Joy está montada em
cima do chefe, desferindo incontáveis socos em seu rosto. Vejo o sangue
jorrar do corpo do homem, sujando o cabelo, o rosto e a roupa de Joy.
— Joy! — chamo, me aproximando, tentando fazer com que pare. —
Precisamos dele vivo! Joy! — chamo de novo, mas ela não olha para mim.
Quando me aproximo o suficiente, consigo ver que seus olhos estão
vazios. O homem já está morto, mas ela continua batendo, desfigurando seu
rosto, descontando toda a raiva que guarda por nunca ter concluído o caso
de seu irmão.
— Joy! — Minha última tentativa é falha. Seguro em seu ombro,
empurrando-a de cima do homem para tentar trazê-la para a realidade.
Minha parceira me encara com raiva quando cai sentada no píer. Aponto
com a cabeça para o chefe, e quando ela toma consciência do que fez, os
olhos passam a transbordar pânico.
— Luke... eu... — tenta falar, mas não consegue, em choque por ter
perdido completamente o controle. Em sua expressão, decifro uma certa
dúvida. Parece que ela viu algo que a surpreendeu.
— Luke, Joy! Que porra? — Nate questiona, se aproximando da cena na
mesma hora.
Se ele tivesse chegado segundos antes, teria flagrado Joy exterminando o
homem sem dó.
Encaro minha parceira em busca de uma resposta. Espero que ela
responda, mas, como o esperado, Joy fica atônita, ainda se recuperando do
baque. Respiro fundo, voltando a olhar para Nate, notando que nossa equipe
inteira está atrás dele, aguardando explicações. Os homens que vieram nos
atacar estão todos mortos. Não restou ninguém para entendermos porque
levaram o filho do VP. O garoto ainda está amarrado, chorando
copiosamente, apavorado com as imagens que nunca sairão de sua mente.
— Alguém me responda agora! — Nathan insiste, usando sua voz mais
intimidadora, montando a pose de líder.
Eu não tenho escolha. Preciso justificar a cena que eles estão vendo com
coerência. Preciso explicar o que aconteceu. Preciso ser honesto.
— Ele veio para cima dela. Éramos nós ou ele.
Eu menti para protegê-la.
Menti para o meu melhor amigo, para o meu líder, para a minha equipe
inteira.
Fiz algo que não faz parte da minha índole, algo que não tenho o costume
de fazer, por causa dela.
Esse é o tamanho do poder que essa mulher tem sobre mim.
Posso tentar evitar, mas meu ponto fraco é ela. Sempre vai ser. Eu faria
de tudo por Joy. E isso é assustador pra caralho. Mais assustador ainda, é
me dar conta de que eu estava me enganando.
Disse a mim mesmo diversas vezes que eu não era o mesmo cara porque
não cairia na dela de novo. De fato, não sou o mesmo de quatro anos atrás.
Mudei e mudei muito. Aprendi com sua ausência, me priorizei, dei mais
valor para o meu trabalho. Entretanto, meu amor por ela ainda está vivo.
Meu sangue ferve quando estamos perto, eu fico quente por inteiro, me
arrepio, tenho uma necessidade visceral de protegê-la.
Joy era mais do que minha namorada e sabe disso. Eu a via como uma
família e sou o tipo de homem que protege sua família, que protege seu
amor. Constatar que minha paixão segue existindo não é fácil, não me
agrada. Na verdade, faz com que eu sinta que perco o controle, porque
meus sentimentos por ela fazem exatamente isso.
Me fazem perder o controle.
Cair aos seus pés.
Fazer o que ela precisa que eu faça para ficar bem, independentemente
das minhas crenças. Sinto medo dessa ação involuntária da minha mente.
Eu me apavoro, porque ainda não confio totalmente nela. Não quero me
entregar, com medo de que ela vá me deixar outra vez. Preciso me manter
duro, fechado, arisco. Não vai ser fácil, mas, depois dessa reflexão, sinto
que é o necessário.
— Aí! — ela reclama enquanto passo o algodão por sua pele branca,
limpando o sangue seco.
Assim que a missão acabou e uma equipe local chegou para dar um jeito
nos corpos, pegamos os helicópteros e voltamos para a sede da ANDOS.
Ninguém falou durante a viagem, Nate não comentou mais nada, nem
cobrou por mais detalhes. Apesar da conclusão da missão ter sido um
sucesso — o filho do VP já está de volta em sua casa —, não conseguimos
descobrir quem foi o mandante do sequestro. Todos os corpos serão
analisados, vamos investigar a vida de cada homem que matamos na
operação, mas o processo seria muito mais rápido e conclusivo se
tivéssemos um chefão para torturar e colher informações. Essa falha não
será perdoada por Brenda.
— Se reclamar mais uma vez, deixo você limpar seus ferimentos sozinha
— falo, irritado com a falta de cooperação de Joy.
— Eu devia ter ido ao hospital — rebate, tão mal-humorada quanto eu.
— Devia mesmo.
Joy está cheia de hematomas nos braços, ganhou um corte grande na
perna por causa de uma faca, um corte no supercílio — que estou limpando
— e um olho arroxeado. Todos os membros da equipe estão doloridos, mas
ela sem dúvida foi a que mais se machucou.
— Não acredito que você perdeu o controle daquele jeito — resmungo,
cansado de me manter em silêncio. O que aconteceu hoje poderia nos
comprometer, poderia nos custar nossos empregos, até mesmo nossas vidas.
Se Joy não fosse filha de Brenda, nossa punição seria duríssima. — Tive
que limpar sua barra, tive que mentir por você! — continuo, querendo que
ela justifique, que ela me diga o que diabos aconteceu.
— É isso que parceiros fazem — responde sem muita emoção.
Joy segue impassível, presa dentro de sua perigosa e brilhante mente.
Tenho a leve sensação de que ela não está afastada apenas por ter deixado a
raiva consumir seu corpo. Minha parceira é uma máquina mortífera, sempre
matou sem pestanejar, sem sequer piscar. Essa situação foi pessoal, sim,
mas minha intuição me diz que há algo que não estou vendo.
— Não, não é isso que parceiros fazem. Parceiros se protegem — corrijo,
apoiando o algodão que usava para limpar sua pele na mesa de centro.
Estamos no meu escritório, sentados no meu sofá, com poucos
centímetros nos separando.
Estendo a mão para pegar um curativo na caixa de primeiros socorros.
— Então, você me protegeu — Joy fala enquanto me fita, uma doçura
fingida transbordando em seu olhar.
Grudo o curativo com calma, protegendo o corte da forma mais delicada
que consigo. Quando o movimento leve termina, me dou o direito de
explodir.
— Não desse jeito! Isso compromete nosso trabalho — alerto, porque
Joy não parece enxergar a magnitude do que fez. — O que aconteceu lá?
— Um homem morreu — responde com sarcasmo, virando o rosto todo
para me encarar, para me mostrar que não tem medo de usar seu jeito
irônico para me fazer recuar.
Mas eu a conheço. Cada traço de sua personalidade é conhecido por
mim. Eu sei lidar com ela, sei interpretá-la, sei como cutucá-la até que fique
perto do limite e solte alguma informação importante.
— Joy, pelo amor de Deus, admita que você perdeu o controle! — Passo
as duas mãos no rosto, mostrando minha frustração com esse deslize.
Joy levanta as duas sobrancelhas, nada abalada com o quanto me
importei com sua situação, nada grata pela ajuda que eu dei. Não sei por
que eu esperei o contrário.
— Igual você admite que sentiu tesão por mim durante nossa luta? —
joga no meio da conversa, me deixando boquiaberto.
Eu não acredito que ela citou o momento que tivemos naquele maldito
ringue. A cada frase, Joy só comprova o quanto é ardilosa. Ela quer me
incomodar, quer que eu entre na sua só para poder discutir algo que, em
tese, é minha culpa. Fui eu que escolhi fingir que nada aconteceu,
justamente com medo de cair em suas garras de novo.
Não posso deixar o Luke bondoso dar as caras. Preciso que a versão mais
dura que construí nos últimos anos assuma as rédeas desse diálogo.
Deixar Joy no controle é a pior ideia do mundo.
— Não misture as coisas! Isso não está relacionado ao que está
acontecendo aqui. Estamos falando de trabalho, não da vida pessoal. —
Diminuo a distância de nossos rostos, encarando-a diretamente, tentando
transmitir a mesma impassibilidade que ela demonstra.
Joy compra a briga e se aproxima um pouco mais.
As pontas dos nossos narizes quase se encostam.
Sinto sua respiração se misturar à minha.
Seus olhos vão direto para os meus.
Por alguns segundos, caio no seu encanto, fico tentado a provar seu
veneno, me deixo hipnotizar pelo verde de seus olhos.
— Quando se trata de nós, as coisas estão sempre interligadas — sussurra
com sua voz mais sexy, arrepiando cada pedacinho do meu corpo.
É um truque, Luke. Ela é uma serpente, uma víbora, uma encantadora de
homens. Vai te convencer a pedir desculpas no final desse diálogo, sem
você ter feito nada.
— Não, não estão — respondo, retomando o controle do meu corpo ao
relembrar tudo o que essa mulher já me fez. — Joy, você perdeu totalmente
o controle. Você espancou até a morte um cara que nós devíamos trazer para
o Navio!
Joy recua quando percebe que não cai na dela.
— Nada aconteceu, Luke. Ele foi para cima de mim, não foi isso que
você disse? — Muda completamente a voz, a postura, o modo como me
olha.
— Quer acreditar na mentira até que se torne verdade? — retruco. Ela
apenas dá de ombros, aparentando descaso. Mas eu sei que há mais do que
ela está mostrando. Preciso insistir até que ela se irrite. — Você se lembrou
do Ethan? Quis se vingar daquele homem como se ele tivesse sequestrado
seu irmão?
— Você realmente não tem amor a sua língua.
— Você está escondendo alguma coisa.
— Não, não estou.
— Você sempre teve um problema com controle, mas nunca desse jeito.
Joy me encara, quieta, apenas esperando para ver o quão longe eu vou.
— Fala pra mim, Joy, confia em mim! — peço, tentando uma abordagem
mais amigável. Quando ela não responde, cerro os punhos, sentindo meu
corpo queimar de irritação. — Eu sei que você está escondendo alguma
coisa! — Me exalto, praticamente gritando com ela.
— Igual vocês todos estão escondendo algo de mim? — responde sem
perder a postura, plena, impassível. Exatamente como Brenda.
Sua rebatida me desestabiliza e ela sabe. Tento disfarçar, mas nós dois
sabemos que não há como negar. Nós estamos mesmo escondendo um
segredo dela. Um segredo grandioso, perigoso e que precisa se manter nas
sombras.
O problema é que Joy não vai permitir que isso aconteça.
Ainda estou formulando uma resposta quando Noah bate à nossa porta
para avisar que Brenda já nos aguarda na sala de reuniões. Quando me viro
para encarar Joy, ela já está de pé, e passa por mim com um olhar de
superioridade, de quem sabe que venceu.
Joy irá expor os Serpentes sem dó se descobrir o que estamos fazendo em
suas costas. Nesse momento, o ditado “mantenha seus inimigos por perto”
me parece corretíssimo. Se não trouxermos Joy para o nosso lado, ela irá
nos destruir.

Como o esperado, Brenda nos destrói.


O Vice-Presidente ficou agradecido por ter seu filho de volta, mas está
puto por não termos descoberto quem foi o responsável pelo sequestro. Se a
pessoa não foi desmascarada e punida, pode atacar de novo. Foi isso que
Brenda deixou bem claro durante a reunião.
Apesar das poucas e grosseiras palavras, a diretora não tomou nenhuma
providência mais drástica, com certeza por causa da presença de Joy na
equipe. Ela sabe que a filha fez merda, acho provável que a puna de outra
forma, porque esse sempre foi o modus operandi de Brenda. Eu não
acredito nem por um segundo que uma mulher como ela vai deixar um
acontecimento desses passar ileso.
Joy é a primeira a sair da sala quando a mãe declara o fim da reunião. Os
outros da equipe a seguem, todos de cabeça baixa, prontos para passarem o
resto do dia procurando qualquer informação útil sobre os homens que
eliminamos.
De propósito, fico por último. Há algo que preciso dizer a Brenda sem
ninguém mais ouvir.
A diretora, como se estivesse sentindo que quero falar com ela, fecha a
porta da sala e vem na minha direção. Me levanto para ficarmos frente a
frente, em um ângulo em que ninguém do lado de fora consiga ler nossos
lábios.
— Chegou a hora — falo, sabendo que ela vai me entender.
— Por quê?
Brenda não parece surpresa. Desde que Joy voltou, nós sabíamos que isso
iria acontecer. Era questão de tempo.
— Joy está muito desconfiada. E eu acho que ela não está nos contando
alguma coisa. — Uno os dois assuntos em uma só frase. Minha parceira
sabe que há algo rolando nos bastidores e é exatamente por isso que não nos
revela o que quer que tenha visto no homem que matou. — Minha intuição
me diz que ela está escondendo algo importante. Não vou descansar até
descobrir o quê.
Brenda assente, discreta e objetiva.
— Vou convocar uma votação. Avise a equipe. Quero vocês no bunker às
duas horas da manhã — determina, me deixando sozinho no mesmo
segundo.
Quando ela sai, respiro fundo pela primeira vez no dia. Estamos cansados
e machucados da missão, tudo o que eu não queria para o dia de hoje era me
enfiar em uma reunião durante a madrugada, mas não há uma opção.
Chegou a hora de Joy conhecer os Serpentes.
Entrar na ANDOS foi a coisa mais perturbada — e também a mais certa
— que já fiz na vida. Sempre tive um apreço pela justiça, cheguei até a
entrar para a polícia, onde aprendi boa parte do que sei, mas logo minha
vida virou de cabeça para baixo. Eu cometi um deslize, descobri a
existência da ANDOS e fiz tudo o que eu podia para me tornar uma agente.
Escolhi viver no perigo e permanecerei assim até o resto dos meus dias.
Gosto das missões, da adrenalina, da sensação de estar lutando por uma
coisa que importa, de estar salvando vidas, mesmo que muitas pessoas
nunca saibam disso. A recompensa não importa, desde que minha
consciência esteja limpa. Se fizer justiça, fico bem. Mesmo que essa justiça
seja definida através de uma ação que não combina com os princípios da
religiosa família De La Rosa.
Matar não é algo que me agrada. Enxergo esse ato apenas como um meio
para conquistar nossos objetivos, e é isso que mantenho em mente quando
preciso apertar o gatilho. Não é fácil, eu ainda me sinto culpada e peço
perdão a Deus por ter cometido um pecado como esse. A sensação não dura
muito, entretanto, porque Deus não estava lá para me proteger quando eu
mais precisei.
E se não fosse por aquele único acontecimento, eu jamais teria que tirar a
vida de alguém.
Por mais que eu, agora, aprecie o perigo, e tenha me enfiado nessa
agência por livre e espontânea vontade, acho esses encontros na madrugada
uma loucura.
O bunker onde os Serpentes fazem suas reuniões fica afastado da
agência, é um lugar que Lucy monitora dia e noite, mas, ainda assim, tenho
receio de alguém nos descobrir e explodir o lugar, destruindo nossos corpos
até ficarmos irreconhecíveis.
É uma tese louca, mas, visto o meio em que vivemos, é extremamente
provável.
— Sentem-se — Brenda ordena, se posicionando na ponta da mesa, o
lugar de poder que ocupa independentemente de onde esteja.
O bunker é bem mais escuro do que a agência. As paredes são cinza,
estão lascadas e mereciam uma nova mão de tinta. O ambiente não tem
janelas, afinal, estamos no subsolo de um prédio abandonado. Estamos
trabalhando por baixo dos panos há alguns meses, então conseguimos, pelo
menos, equipar o lugar. Montamos uma área tecnológica com diversos
computadores para Lucy fazer sua mágica, um ambiente para guardarmos
armas e munições, até mesmo uma espécie de sala, onde espalhamos sofás
para podermos descansar, quando passamos horas por aqui. No centro do
espaço, temos a mesa de reuniões onde bolamos estratégias, nos
atualizamos das últimas descobertas e discutimos sobre todo e qualquer
assunto.
Juntar o Big Six com o 641 — a equipe mais velha e considerada a
melhor dos tempos e a nossa, considerada uma das melhores atualmente —
não foi uma ideia muito genial. Brenda queria apenas agentes fenomenais
em seu time secreto, eu entendo, mas ela se esqueceu dos egos inflados da
maioria dos membros das duas equipes.
De um lado da mesa, temos Nathan, meu digníssimo namorado, que faz
de tudo para tentar se manter no poder. Ele, como líder do 641, acha que
manda em alguma coisa. Lucy, Noah, Luke e eu estamos sentados ao seu
lado, mas nossos egos não chegam aos pés do ego de Nate. A única que tem
uma autoestima no nível de Nate, é Joy. E ela não faz parte do grupo.
Ainda.
Do lado oposto, temos Christian Mayflower, David Cassidy, Elizabeth
Cassidy, James Masterson, Brenda Saroyan e Kyle Fletcher, os maiores
agentes que a ANDOS já viu. É uma honra trabalhar em conjunto com o
Big Six, porém, não é fácil aturá-los. Com exceção de Kyle, com quem
temos intimidade, por ser mais acessível, os outros gostam de manter uma
pose inatingível, é como se nada no mundo pudesse abalá-los. Eles são
foda, sabem disso e gostam que nós saibamos também.
— Ouvi que o resgaste do filho do VP foi meio conturbado — Christian
comenta, lançando um olhar afrontoso para Nathan.
Suspiro, trocando um breve olhar com Lucy, nós duas sabendo que esse
tipo de conversa nunca acaba bem.
— O garoto voltou para casa, Mayflower. O resgaste pode ter sido
conturbado, mas qual missão não é? Acho que você passou muito tempo
fora das operações, não deve se lembrar de todos os riscos envolvidos —
Nate rebate sem dó, ignorando completamente o fato de que Christian é um
dos maiores agentes de todos os tempos.
A cada dia, me surpreendo com a capacidade que meu namorado tem de
passar por cima dos outros. Ele acaba com todo mundo que tenta afrontá-lo,
a despeito de quem essa pessoa seja.
— Foram muitos anos de experiência, Nathan. Eu me lembro de cada um
deles — Christian rebate, piscando com um dos olhos verdes, sem se
intimidar pela atitude do mais novo.
O sorriso vencedor que o membro do Big Six abre faz Nathan fechar a
cara. Olho para Lucy de novo, que nega com a cabeça, com certeza
pensando no quanto os dois são idiotas por sempre ficarem nessa maldita
briguinha de ego.
Christian Mayflower pode ser charmoso — ele é um bonitão de
cinquenta e poucos anos, com o cabelo ainda loiro, poucos fios grisalhos
espalhados, uma barba malfeita e um corpo malhado — mas é tão babaca e
infantil quanto Nathan.
— Crianças, parem de discutir. Temos um assunto importante para tratar.
— Brenda cessa a provocação, compartilhando da mesma opinião que
tenho.
Homens nunca crescem.
— Sou todo ouvidos, diretora — responde Nathan, ironizando sem medo
de brincar com o perigo.
Brenda ergue uma das sobrancelhas de forma intimidadora. É o suficiente
para calar a boca de Nate. Ele até se encolhe na cadeira ao meu lado,
constrangido por ter respondido nossa chefe sem pensar.
Com um sorriso vitorioso que é quase imperceptível, Brenda apoia as
mãos na mesa, pose que normalmente usa quando está prestes a trazer a
pauta do dia.
— Primeiro, obrigada por terem vindo. Sei o quanto é sacrificante
deixarem suas casas no meio da madrugada para essas reuniões — agradece
com um aceno de cabeça, passando o olhar para cada um de nós, para que
nos sintamos vistos.
Brenda Saroyan é uma das mulheres que mais admiro no mundo. Ela
pode ser sanguinária, fria e violenta como as más línguas falam, mas, para
mim, isso não importa. O modo como demonstra poder, seu
empoderamento e sua luta silenciosa para trazer a equidade no nosso meio
de trabalho são características que fazem a diferença para todas as
mulheres. Brenda é uma força da natureza. Ela inspira ao mesmo tempo que
intimida, sem nunca perder a classe.
— Estamos nessa até o final, Brenda — Liz a responde, trocando um
breve olhar amigável com a diretora.
Brenda raramente deixa alguém entrar em sua vida, mas ela e Liz, mãe de
Lucy, sempre pareceram bem próximas. Chuto que Elizabeth é sua única
amiga.
— A pauta de hoje é simples. Como vocês sabem, Joy está de volta. — A
exposição do assunto do dia causa murmurinhos na mesa. Vejo Nate se
contorcendo de raiva na cadeira, xingando baixinho para que ninguém o
escute. Eu abro um sorriso de lado, adorando que finalmente poderemos
revelar essa parte do nosso trabalho à minha amiga. Esconder os Serpentes
de Joy beira o impossível, ainda mais dividindo o teto com ela. — Ela tem
desconfiado de que estamos escondendo algo. Andou fazendo perguntas
para James e Luke, e está somando as coisas.
— Ela não ficou convencida quando eu disse que minha saída estava
relacionada a política — comenta James.
— Não duvido que Joy nos desmascare em dias — Noah se manifesta e
eu concordo.
Se estiver mesmo desconfiada, nada vai freá-la.
— Só porque sua filha fez perguntas, temos que aceitá-la no grupo? —
Nate indaga, apoiando um dos cotovelos na mesa, se virando de frente para
Brenda, desafiando-a com seu olhar.
Seu silêncio estava bom demais para ser verdade.
A diretora deve estar se mordendo de raiva por dentro, mas, por fora,
mantém a pose impassível.
— Não falei nada sobre aceitação, Starffey. Para decidir se vamos ou não
incluir Joy nos Serpentes, iremos votar. — O anúncio de Brenda é esperado.
Entretanto, isso não significa que Nathan está feliz.
Não sei por que ele achou que a diretora não colocaria a própria filha no
grupo secreto que reuniu, ainda mais quando essa filha é Joy, uma versão
mais insana de Brenda.
— Acho justo. Se for a vontade da maioria, ela entra — exponho minha
opinião, recebendo um olhar de julgamento de Nate.
Já vi que teremos outra noite de brigas.
— E você acha justo você votar, Brenda? — Meu namorado questiona,
aparentemente com vontade de ser levado à Plataforma para morrer.
— Não, não acho. Na verdade, vou me abster da votação. — A decisão
da diretora pega a todos de surpresa.
Noto que Kyle esboça um leve sorriso, discreto, mas suficiente para
despertar minha curiosidade. O que explica essa serenidade quando o clima
de tensão impera no ambiente?
— Antes de iniciarmos, quero que tenham em mente que Joy pode ser
útil à equipe. Ela nos ajudou a obter a informação de Marlon, entregando a
pista mais importante que já tivemos. — A diretora discursa em prol da
filha, nos lembrando do quanto ela nos ajudou sem saber. Imaginar que
Richard O’Conell está envolvido nesse caos é uma loucura.
— Joy pode nos destruir em um piscar de olhos — Luke joga a frase no
ar, o tom de voz preocupado, sabendo que a parceira irá até o inferno para
desvendar o mistério dentro de sua própria equipe.
Brenda assente devagar, concordando com Luke. Ele é parceiro de Joy,
ela é mãe dela. Os dois a conhecem tão bem quanto eu, tem noção de que
Joy é capaz de tudo. Mantê-la ao nosso lado é uma decisão inteligente.
— Vamos começar? — a diretora pergunta e logo direciona seu olhar
para Nathan.
— Não, obviamente. — Ele balança a cabeça com uma careta debochada.
A diretora não reage, apenas passa para o próximo membro da nossa
equipe.
— Noah? — Brenda pergunta ao meu cunhado, que respira fundo,
hesitando demais para o meu gosto.
Estou contando com seu voto.
— Sim — responde apenas, tentando não chamar atenção para si.
Nate nega com a cabeça, incapaz de assistir à essa votação sem reagir.
— Lucy?
Olho para minha amiga, em dúvida sobre sua posição. Ela e Joy travaram
algum tipo de atrito de origem desconhecida nos últimos dias. Eu não
entendi o que aconteceu, tampouco me atrevi a perguntar.
— Eu voto não. — Lucy não olha para o lado quando responde.
Sorte a dela, porque eu a fuzilaria sem dó nem piedade. Joy é nossa
amiga, sempre foi. Elas se conhecem desde a adolescência. Como Lucy
pode votar contra sua entrada?
Estamos com 2x1 agora. Vai ser uma votação apertada.
— Luke? — Brenda direciona a pergunta para o ex-namorado da filha.
Sinto a tensão consumir todo o ar da sala. Luke engole em seco, seu
pomo de adão se movendo com uma lentidão irritante.
— Sim. Meu voto é sim — afirma duas vezes, murmurando as palavras
com sacrifício.
— Puta que pariu — Nate xinga mais alto do que deveria.
— Guarde sua língua dentro da boca, Starffey — Brenda o repreende no
mesmo momento. Ele pede desculpas erguendo a mão, sem coragem de
emitir novas palavras. Aproveito o breve segundo em que a diretora demora
para me chamar, para fuzilá-lo, deixando bem claro que seu comportamento
está me deixando insatisfeita. — Zoey?
— Sim, é claro que sim. — Não hesito e uso o momento para encarar
Lucy e Nate, ansiosa para mandar um belo recado aos dois. — Depois de
tudo o que nós enfrentamos juntos, de toda a nossa história com Joy, é
vergonhoso que vocês votem não. Estou ansiosa para ver a cara de vocês
quando Joy começar a trazer bons resultados para os Serpentes.
Lucy e Nate não se movem, sequer piscam. Nenhum dos dois parece
muito abalado com minhas palavras. Porém, quando Nate ficar sozinho
comigo, sei que iremos discutir.
— É a vez de vocês. — Brenda se vira para a outra metade da mesa, se
dirigindo a sua antiga equipe. — Kyle?
— Sim. — Seu voto é rápido, sem grandes justificativas.
— Zero surpresas — sussurra Nate, soltando um riso baixinho. Por sorte,
sou a única que escuta.
Se a diretora o pega fazendo piadinha com sua relação com o parceiro
querido, ele está fodido.
Brenda segue a votação, James, Liz, David e Christian votam a favor de
Joy. O último, inclusive, faz questão de dizer seu voto olhando diretamente
para Nate.
Ninguém fica surpreso que o Big Six inteiro votou a favor de Joy. Eles
são leais a Brenda e respeitam o juramento que fizeram quando se tornaram
uma equipe, coisa que a minha nunca fez. Nós tínhamos que nos apoiar e
sermos fiéis uns aos outros independentemente da situação, mas ainda
precisamos evoluir muito para atingir esse patamar de maturidade.
— Bom, a votação está concluída. A Joy passa a fazer parte dessa equipe
na próxima reunião — Brenda define, evitando dar qualquer brecha para
discussões. — Zoey, Lucy, vocês moram com a Joy. Está sob
responsabilidade de vocês trazê-la até aqui no nosso próximo encontro. —
Direciona a tarefa a nós duas. Assinto, compreendendo que terei uma
missão árdua. Para trazer Joy até aqui sem causar alvoroços, só se for
dopada. Até que não é má ideia. — Nos vemos amanhã. Dispensados.
O grupo todo se levanta, arrastando as cadeiras para trás, causando um
barulho nada agradável no bunker. Despedidas não são feitas, nunca são,
mas faço questão de pelo menos acenar para Brenda.
Minha equipe se desmembra em segundos. Luke vai para o seu carro,
Noah e Lucy resolvem sair para fazer um lanche da madrugada, e eu e Nate
entramos no meu carro.
Meu namorado mal espera que eu entre para encher o saco. Quando
minha bunda encosta no banco do motorista, ele já está se atropelando para
dizer:
— Você não cansa de proteger sua amiguinha?
— Você não cansa de ser um imbecil? — devolvo na hora, virando meu
tronco para encará-lo.
Nossos olhares ferozes se enfrentam. Conosco, é sempre assim. Estamos
juntos desde o treinamento de recrutas e nunca tivemos um relacionamento
tranquilo.
— É inacreditável o quanto você a protege. A garota vazou, foi embora
sem olhar para trás e você fica preocupada em defendê-la! Ainda ficou
fazendo discursinho durante a reunião, minimizando meu voto só para se
sentir a sabichona! — Nate gesticula, os olhos azuis ganhando uma
escuridão que costuma tomá-los quando brigamos.
Ele tem uma capacidade incrível de me irritar em segundos, de trazer o
meu pior para a superfície. Sinto algo ferver dentro de mim quando ele me
enfrenta dessa forma.
— Isso te incomoda tanto, Nathan. Por quê? Se sente ameaçado por Joy?
Tem medo de que ela roube seu cargo? — Vou direto em sua ferida,
sabendo que esse é o exato motivo pela desavença dos dois.
É assim desde que nos conhecemos.
Nate solta um riso sarcástico, olhando para frente rapidamente, antes de
voltar a me encarar.
— Acha que aquela menina tem capacidade de liderar alguma coisa?
— Acho — respondo, afrontando-o, meu olhar focado direto no seu.
Nós nos encaramos por um tempo. Eu vejo a raiva crescendo dentro de
Nate, a batalha que trava dentro de si, a vontade de me beijar e gritar
comigo oscilando.
— Admita que se sente intimidado por ela. Admita que essa sua raiva
toda é insegurança. Admita, Nathan! — peço, porque odeio o quanto ele
precisa ser o fodão o tempo todo. Nate é o tipo de cara que não assume suas
fraquezas. Ele se acha perfeito e faz questão de que os outros achem
também. Eu sou a única que enxerga suas imperfeições e ainda joga em sua
cara.
— Cala a boca, Zoey.
— O que você disse? — rebato, inconformada com o que eu ouvi.
Nathan não foge do meu olhar. Ele se inclina mais para perto de mim,
levando uma das mãos para o meu rosto, tocando na pele da minha
bochecha, me admirando de uma forma doentia, carinhosa, tóxica, repleta
de um tesão perigoso que nós não sabemos controlar.
— Eu disse para calar a boca, linda. — Segura em meu queixo com seus
dedos, me obrigando a fitá-lo. — Nunca mais fale coisas assim para mim.
Odeio quando ele me prende dessa forma. A sensação de estar
encurralada me traz memórias que prefiro manter enterradas. Por mais que
eu saiba que Nate nunca agiria contra minha vontade, nossa relação
problemática perturba minha paz.
— Me solta — ordeno e ele se afasta na hora, mas não desmonta a pose
marrenta. — Nunca mais me segure dessa forma, Nathan.
— Desculpa, Z. — pede, tomando consciência e se lembrando do meu
passado. Porém, sei que não está cem por cento arrependido. A irritação
ainda o consome por completo. O temperamento de Nate é extremamente
problemático.
— Você perde a cabeça com coisas bestas. Se incomoda com a Joy, quer
afrontar o Christian, quase bateu boca com a Brenda — cito algumas
atitudes, tentando mostrar a Nathan que Joy não é seu problema. Se por
acaso ele afundar, será por conta de suas próprias ações.
— O Christian é um merdinha — fala com desprezo evidente. —
Respeito a Brenda, você sabe, mas não aguento os privilégios que ela dá
para a filha. Joy passa quatro anos fora e de repente volta para a nossa
equipe, entra nos Serpentes, se torna uma de nós? E o que nós fizemos nos
últimos anos? Nosso trabalho duro não valeu de nada?
— Entendo que você não acha justo, mas pense que a Joy já treinava
muito antes de nós sequer sabermos que a ANDOS existia. — Tento
justificar, mesmo sabendo que não vai adiantar.
No fundo, minha frase só confirma o que nós dois, no fundo, sabemos.
Joy é a agente mais completa e tem conexões com a chefia. Ela sempre vai
ser uma ameaça para Nate.
— Foda-se, Zoey! Ela não estava aqui agora. Não é justo, porra! Eu sabia
que essa merda ia acontecer. — Ele se exalta, balançando a cabeça em
negação.
— Chega de ficar bravinho por causa dela, Nate. A Joy tem seus
privilégios, sim, mas é uma boa agente — reforço, sentindo necessidade de
defendê-la.
— Por isso votou sim e ainda fez aquele discursinho motivador?
Sua indagação carregada de ironia me tira do sério. Estou tentando ajudá-
lo a enxergar seu próprio defeito, para poder, quem sabe, evoluir e ser uma
pessoa mais segura, e ele me provoca dessa forma? É isso que recebo por
tentar ajudar?
— Achou que eu votaria não? — Viro meu corpo, erguendo as
sobrancelhas com braveza, expondo como estou me sentindo.
— Não, você sempre puxou o saco dela.
— Puxei o saco? — questiono, sem acreditar no que ele está dizendo. —
Se escute, Nathan. Admiro a Joy por tudo o que ela fez por mim, pela ajuda
que me deu quando entrei. Você deveria saber disso. Viveu cada momento
com a gente.
Joy foi essencial na minha formação como agente. Ela foi minha mentora
durante o treinamento de recrutas, quando nós iniciamos nossa amizade e
também quando eu iniciei minha relação com Nate.
— Luke é outro burro. Não acredito que ele votou a favor dela! —
desabafa, soltando um riso maldoso e sarcástico.
— Já te disse para parar de cuidar da vida dele. — Reviro os olhos,
irritada com esse maldito bromance entre os dois.
— Ele é meu melhor amigo, cacete. Somos família. — Bate no peito com
a mão espalmada, mostrando o significado que isso tem para ele. Luke
nunca conheceu a família, Nate perdeu os pais há muitos anos. A relação
que construíram vai muito além de um laço de amizade, mas isso não
significa que seja inteiramente saudável. — Fiquei ao lado dele quando a
puta da Joy foi embora e agora ele está lá, correndo atrás dela igual
cachorrinho!
Fico boquiaberta quando o escuto. Seguro no volante, olhando para a rua
vazia e escura à minha frente enquanto tento pensar no que fazer.
— Você não tem jeito — falo, negando com a cabeça.
— O quê?
A pergunta soa quase como um “o que foi que eu fiz?”. Nathan sequer
percebe o quanto suas palavras e atitudes ferem outras pessoas.
— Sai do meu carro — ordeno, destravando as portas para sinalizar que é
hora de ele sumir da minha frente.
— Por que isso, Zoey? Vamos para casa. — Ele puxa meu braço e volto a
olhá-lo. Sua cara de arrependido não me convence. — Vamos trepar, linda.
— Faz carinho com o polegar na minha pele, tentando me incitar.
Em alguns dias, eu caio nessa e resolvemos nossas desavenças na cama.
Mas hoje não estou com vontade de varrer os problemas para baixo do
tapete só para ter uma noite quente.
— Não, Nate. — Me solto do seu toque, saindo de seu controle. —Você
não admite nada, me manda calar a boca, chama minha melhor amiga de
puta. Seu filtro parece não existir! — gesticulo para enfatizar como me
sinto.
Não gosto dessas atitudes e não vou deixar esse tipo de coisa passar.
— E por isso vai me deixar no meio da rua? — indaga, outra vez
querendo me fazer sentir pena dele.
— Ligue para o seu irmão. Ele com certeza vai adorar vir te buscar. —
Giro a chave na ignição, pisando no acelerador para Nate perceber que
estou com pressa. — A porta. Saia.
— Porra, Zoey, para de ser cuzona! — resmunga Nate, negando com a
cabeça, sempre querendo jogar a culpa em mim.
— Quando você virar homem e conseguir enxergar as coisas, eu paro.
Tenha uma boa noite.
Minha resposta curta e grossa não deixa espaço para que Nate continue
tentando me convencer. Ele sabe que quando defino o fim de nossas brigas,
não volto atrás. Se não terminamos em sexo, nos enfiamos em uma
desavença mais longa que, no futuro, com certeza vai terminar com sexo.
Conheço nosso relacionamento, vivo esse caos há mais de seis anos. Tudo
sempre termina da mesma forma.
Nossa relação nasceu nas brigas. Nós não nos gostávamos no treinamento
de recrutas. Éramos como cão e gato, discutindo por tudo, competindo entre
si. Até que fomos pareados e descobrimos que funcionávamos bem juntos,
que nossa química transbordava. Começamos a transar, não conseguíamos
controlar nosso tesão, assim como não conseguimos hoje. A atração entre
nós é magnética, fogosa, fervente. Consome minhas veias, me faz esquecer
da razão, do motivo pelo qual estamos discutindo.
Isso não significa que eu não tenha momentos de lucidez. Hoje foi um
exemplo claro.
No entanto, esses momentos não são tão recorrentes. O normal, para nós,
é “resolver” tudo na cama. Traduzindo: ignorar os problemas, transar e ficar
bem depois, fingindo que nada nunca aconteceu, nunca cortando o nó pela
raiz. Nós deixamos o problema se repetir porque nunca conseguimos
resolvê-lo.
Nesse namoro não há paz, somente guerra.
Chego em casa me sentindo mal. As brigas com Nate acabam comigo e
não posso desabafar com ninguém a respeito delas. Ligar para os meus pais
ou para minha irmã está fora de cogitação, não só porque eles não sabem
sobre meu namoro com Nate, mas também porque não fazem ideia de que
sou uma agente secreta. Como vou explicar que meus problemas com meu
namorado estão diretamente ligados ao meu trabalho na ANDOS? Eles
acham que sou uma psicóloga, minha profissão de formação, e que atendo
pacientes em um consultório particular.
Minha família mora na Flórida, a muitas horas de distância de Row Fair,
odeiam andar de avião e nunca vieram me visitar, sou sempre eu que vou
até eles. É fácil manter uma vida secreta dessa forma. Estou acostumada a
fingir ser quem não sou em todos os âmbitos da minha vida.
Guardar tudo para mim é horrível, minha cabeça não para, fico cheia de
dúvidas, sempre me perguntando se vale a pena continuar em uma relação
assim. O problema é que não me vejo sem Nathan, ele é o único que
imagino ao meu lado no futuro. Temos inúmeras coisas para resolver, mas
nos amamos. E o amor é o suficiente para manter nossa relação viva.
O amor é o suficiente para tudo.
— Chegou tarde.
Uma voz sombria me assusta. Apoio a mão no peito, sobressaltada,
sentindo meu coração disparar de pavor. Levo a outra mão a uma das facas
que mantenho guardada em um compartimento na manga do meu casaco.
Entretanto, não preciso usá-la porque a sala do apartamento deixa de ficar
completamente escura quando Joy acende o abajur ao seu lado. Ela está
sentada na ponta do sofá, vestida com um moletom e uma calça, usando
preto da cabeça aos pés, tragando seu cigarro com uma calma perturbadora.
Seu olhar desconfiado recai direto sobre mim.
— Você está fumando na sala? Por que não foi na varanda? O cheiro
dessa merda vai infestar o apartamento! — reclamo, indo até a varanda para
abrir um pouco a porta de vidro.
Uso o frescor do vento frio para respirar fundo. Joy não irá me deixar
escapar ilesa. Ela sabe, é óbvio que sabe, e irá tentar arrancar informação do
lado que considera mais maleável. Sou sua melhor amiga, me importo com
ela, estou lutando para que retome a carreira de onde parou.
Joy acha que posso abrir o bico, mas não vou. Devo lealdade aos
Serpentes e já tenho um plano para levá-la até o grupo. Dessa vez, terei que
me esquivar e ser a maestra dessa conversa.
Volto para perto dela, me sentando no braço do outro sofá, mantendo o
cenho fechado, ainda incomodada com o fato de ela estar fumando em
nossa sala.
— Eu estava sozinha, aproveitei para fumar. — Dá de ombros,
desencanada, aproveitando minha insatisfação com seu cigarro para iniciar
o assunto que tanto quer abordar. Eu sei como Joy trabalha. Ela vai tentar
me manipular para que eu entregue a informação que quer sem sequer
perceber. — Acordei no meio da noite e percebi que minhas amigas não
estavam em casa. Fiquei preocupada. Foi muito estranho, não acha? Uma
coincidência perfeita demais.
— Eu estava com o Nate — respondo de bate pronto, expondo nada além
da verdade.
— Lucy também estava com o Nate? — ela devolve de imediato,
tragando o cigarro e logo depois soltando a fumaça lentamente.
— Não sei onde ela está. — Minto, sabendo que estou cometendo um
erro terrível.
Não se mente para uma desconfiada. Ainda mais quando essa
desconfiada é Joy. Ela é ótima em detectar inconsistências.
Minha amiga assente devagar, dando tragadas seguidas no cigarro, a
fumaça dominando o ar ao seu redor. Tusso, odiando que meu apartamento
vai ficar com cheiro de cigarro e que não posso sequer discutir sobre isso,
por causa da desconfiança de Joy. Mudar muito de assunto vai fazê-la
entender que estou me esquivando porque tenho algo a esconder.
— Nate sempre teve um controle estranho sobre você, mas agora a coisa
parece ter piorado. Ele te liga no meio da madrugada querendo te comer e
você aceita? Achei que era mais forte do que isso, amiga — Joy me
provoca, dando uma última tragada no cigarro antes de apagá-lo no
cinzeiro. A bituca fica ali, soltando um restinho de fumaça, até se apagar
totalmente.
Engolir em seco dói. É como se a faca que está no meu casaco estivesse
enfiada na minha garganta, cortando as gotas de saliva quando elas tentam
descer pela região.
Joy está usando seus conhecimentos sobre mim para tentar me atingir. Eu
jurei nunca mais ser submissa a um homem, nunca mais agir contra minha
vontade por causa de um homem, e ensinei a Joy que tínhamos que ter
controle do nosso corpo, das nossas escolhas, que nunca poderíamos
abaixar a cabeça e deixar que nossos companheiros nos dessem ordens. Ela
quer me fazer acreditar que acha que mudei, quer que eu sinta um toque de
desprezo em sua voz, crente de que eu irei me incomodar, porque me
importo com a opinião dela.
— Eu queria isso, Joy. Não fale sobre o que não sabe — rebato com certa
força na voz, odiando que ela use isso para me atingir.
Minha amiga dá de ombros, apoiando as mãos no sofá para se levantar,
declarando o fim dessa conversa. Se Joy que encerrar o assunto, é porque
compreendeu que não direi nada.
Ela anda até mim, o rosto ficando centímetros acima do meu, o sorrisinho
macabro que tanto gosta de abrir tomando sua face.
— Se ele te incomodar muito, me avise. Sou ótima em esconder corpos.
— O comentário me causa um arrepio na espinha. Joy não está brincando.
Assim como eu a defenderia com tudo o que tenho, Joy iria até o inferno
por mim.
— Não será necessário, mas agradeço. É bom saber que você sempre está
na retaguarda.
— Estou, Z. — Apoia a mão esquerda em meu ombro, os olhos se
encontrando com os meus. — Mas isso não significa que não esteja de olho
em você.
Joy pisca com um dos olhos, se afastando devagar, fazendo questão de
olhar para trás a cada passo, como se quisesse se certificar de que eu
absorvi o recado.
Somente quando escuto a porta do seu quarto se fechar que volto a
respirar normalmente. Joy está na minha cola. Ela sabe que há algo
acontecendo e tem certeza de que estou envolvida. O plano que tenho em
mente precisa entrar em curso amanhã. Não dá para adiar.
Rezando para que Joy tenha ido dormir, mas atenta caso ela faça algum
barulho, pego meu celular e ligo para Lucy. Para variar, minha amiga não
me atende. Aperto o botão vermelho que desliga a chamada com força,
irritada por ela ainda não estar aqui, mesmo sabendo que temos uma missão
importante para planejar.
Mando uma mensagem para Noah perguntando se eles ainda estão juntos
e meu cunhado logo responde que não, alegando que deixou Lucy em nosso
apartamento mais de uma hora atrás. Ele me pergunta se acho que ela está
usando drogas de novo e respondo que sim, porque temos que encarar os
fatos. Lucy não é a mesma há anos.
Desisto de dormir e resolvo que vou esperar por ela acordada. Noah se
oferece para vir me fazer companhia, mas digo que está tudo bem, peço que
descanse para recompor as energias e estar pronto para o trabalho amanhã.
Noah expõe o quanto está preocupado com a parceira, mas, assim como eu,
tem consciência de que não há o que fazer. Nós já tentamos e falhamos.
Uma hora se passa. Duas, quase três. Estou me esforçando para ficar
acordada, mas meus olhos imploram para se fechar. Tenho que estar na
agência às nove, já são cinco da manhã. Eu vou matar Lucy pela sua falta
de noção, por me fazer planejar essa emboscada sozinha.
Já falei com um dos fornecedores da ANDOS e pedi que arranjasse uma
dose de Boa Noite, Cinderela. Combinei o horário de retirada, fechei minha
agenda na agência para que ninguém marcasse uma reunião nesse
momento, decidi o que vou usar de isca para convencer Joy a ficar em
nosso apartamento à noite e nada de Lucy aparecer.
Vou precisar dela para fazer esse plano funcionar e essa filha da puta
some! Estou prestes a ir dormir e desistir de esperar, quando a loira abre a
porta do apartamento. O movimento é abrupto, ela quase cai para dentro,
tropeçando nos próprios pés. O cabelo loiro está solto, bagunçado e um
tanto molhado. Ela ri sozinha, mas coloca a mão na boca para abafar o som.
O resto de consciência deve tê-la lembrado de que mora com duas de suas
amigas e que não pode acordá-las, caso contrário terá que responder
perguntas.
Não deixo que feche a porta. Me levanto rápido, puxando-a pelo
antebraço. Lucy arregala os olhos quando percebe que estou acordada,
assistindo seu estado deplorável.
— Zoey. — A lamúria em sua voz é triste.
Levo o dedo indicador aos lábios, pedindo que fique em silêncio,
apontando com a cabeça para o quarto de Joy para que entenda o porquê.
Guio minha amiga até a escada de incêndio do prédio, fechando a porta de
nossa casa, para que possamos conversar a sós, sem correr o risco de Joy
escutar.
Solto seu braço com brutalidade quando nos posicionamos nas escadas
de emergência. Lucy se escora na parede e precisa colocar umas das mãos
no corrimão para não cair. Seu corpo está curvado, ela tem vergonha de que
eu a veja dopada desse jeito. Os olhos azuis, normalmente lindos, marrentos
e brilhantes, estão perdidos.
— Você usou sabendo que temos uma missão amanhã, idiota? — Pego
pesado porque já estou cansada de ser boazinha.
Essa fase já passou faz tempo.
— Eu não...
— Ah, me poupe! Vai negar para quê? Eu já sei que se encheu de pó! —
Corto sua fala, exausta dessa porra.
— Zoey, eu só cheirei uma carreirinha, juro. — Lucy tenta se aproximar,
mas não consegue andar direito e solta uma risada com seu próprio
desequilíbrio.
É lamentável vê-la assim. Não consigo aceitar que minha amiga se
tornou essa pessoa.
— Por que você continua com isso, Lucy? Por quê? — questiono,
cruzando meus braços, me controlando para não deixar que as lágrimas
formadas em meus olhos escapem.
— Eu vi os dois de novo, Zoey. Vi meus pais juntos depois da reunião e
só... precisava apagar aquilo da mente.
— Resolveu?
— Não. Nunca resolve.
Lucy se sente culpada por suas atitudes. Não se sente forte o suficiente
para mudar, para batalhar contra o vício que lhe consome. Eu tenho pena
dela. Tento ajudar, ficar ao seu lado e incentivá-la a parar, mas Lucy não
quer. Enquanto ela não tiver vontade de vencer, irá continuar perdendo.
— Vou te ajudar a tomar um banho e vamos dormir. Amanhã é um dia
importante, Joy não será uma vítima fácil. Preciso saber que posso contar
com você e para isso você precisa se manter sóbria. — Determino o que irá
acontecer agora, porque Lucy não tem capacidade de nada.
Ela apenas assente e aceita que eu me aproxime, colocando seu braço em
meu ombro para que eu possa levá-la ao apartamento. Ajudo-a no chuveiro,
pedindo que pare de rir quando a euforia começa, enxugando suas lágrimas
quando a consciência vai retomando e ela percebe que cheirou outra vez.
Fico abraçando seu corpo até que ela caia no sono, repetindo que tudo vai
ficar bem, mesmo que eu não acredite nas minhas próprias palavras.
Observando Lucy a distância, enquanto escoro meu ombro na soleira da
porta, vejo o quanto está frágil. Seu corpo magro está encolhido na cama, o
rosto mostra mais ossos do que deveria, ela perdeu boa parte de seus
músculos e de sua reserva de gordura. Se continuar nesse ritmo, não vai
aguentar a intensidade física das missões. A ANDOS é a vida de Lucy, a
única que ela conhece. Se por acaso perder seu cargo de agente, perde o
sentido de sua vida.
Ela acha que tem motivos para continuar usando, que precisa disso para
se manter sã. Mas não há uma justificativa plausível para um declínio
desses. Não existe problema no mundo que uma carreirinha de cocaína
possa resolver. Enquanto Lucy arranjar desculpas, continuará nesse ciclo.
Tenho medo de que ela afunde antes de conseguir forças para nadar até a
superfície, de que se afogue para sempre e nunca mais volte a ser a garota
que eu conheci.
Com os olhos cheios de lágrimas, vou para a cama, a cabeça ainda mais
agitada do que estava quando eu cheguei. Estou preocupada com Lucy,
ansiosa para dopar Joy, com medo de que o plano dê errado e ela perceba,
me perguntando se Nate irá fingir que tudo está bem amanhã, para que
possamos ter uma rodada intensa de sexo.
Expulsei meu namorado do carro porque estava irritada com ele, mas o
sentimento passou. Eu preciso de Nate, do seu amor, do seu pau, da sua
boca pronta para me satisfazer. Quero transar com ele, preciso transar com
ele, porque só isso irá frear a enxurrada de pensamentos que me toma.
Quando finalmente caio no sono, é meu namorado que está na minha
mente. Imagino Nathan me fodendo em todas as posições que gostamos,
dando tapas no meu rosto, me deixando tão acabada que minhas pernas mal
funcionam no dia seguinte.
É disso que eu preciso. De escape. De alívio. De uma guerra que eu
posso controlar. De sexo. De Nate. De sexo com Nate. Quando estou com
ele, todas as outras pessoas deixam de existir. Nós somos suficientes um
para o outro, brigamos, nos resolvemos, transamos, conversamos sobre
todos os assuntos possíveis. Apesar de tudo, ele é meu oxigênio. Eu não me
imagino sem ele. Gosto de quem sou ao lado dele, mesmo que ele me deixe
enlouquecida.
Nate é complicado. Não é a pessoa que a Zoey racional deveria ter para
si. Ele é errado para mim. Acredito que seja por causa disso que eu o
escolha todos os dias. Eu sempre gostei do caos, do segredo, do erro, de
fazer o que, em tese, não era bom para mim. Meus pais diziam que eu devia
ter uma carreira padrão, um marido delicado e uma casa em um bairro
tranquilo. Me tornei uma agente secreta, namoro Nathan, moro com duas
mulheres que conseguem ser ainda mais perigosas do que eu. Vivo na
adrenalina. Corro risco de morrer todos os dias. E é isso que me faz ter
apreço a vida.
Nate me tira do sério. Nosso relacionamento nunca é monótono ou
passivo. A indiferença passa longe de nós dois, somos intensos em tudo o
que fazemos, seja esbanjando amor ou brigando até quase sair no tapa. Eu
não aguento ficar longe dele e da dinâmica que temos.
Por isso, me levanto, coloco a lingerie que ele adora, visto um sobretudo
e decido surpreendê-lo com uma noite avassaladora.
Nate deve estar necessitado do meu calor, assim como eu estou
necessitada do dele.
Para ser um bom agente, é necessário desconfiar de tudo e todos. Confiar
cegamente em alguém é o pior erro que um agente pode cometer. Sou
fechada por natureza, ensinada a ser impassível diante de situações adversas
desde a infância, criada em meio a regras restritas, basicamente vivendo
minha vida baseada em um manual de como ser uma boa agente.
Eu sei que há algo errado não apenas pelos fatos, mas porque minha
intuição grita que todos à minha volta estão escondendo alguma coisa.
Agora tenho a certeza de que minhas amigas também estão metidas nesse
mistério.
Luke está receoso demais comigo. Desde que discutimos ontem, após a
missão, ele mal dirigiu a palavra a mim. Durante nosso dia de trabalho,
alegou que tinha relatórios para preencher, colocou os fones de ouvido e se
isolou. Eu poderia provocá-lo e jogar os fones longe, mas não me dei ao
trabalho. Ele quer me evitar, então que me evite.
De um jeito ou de outro, irei descobrir o que está acontecendo.
Resolvi ficar em casa essa noite. Tenho um plano óbvio, quase infantil.
Vou fingir que estou em sono profundo e me levantar quando escutar as
meninas saindo. Segui-las será fácil, sou uma mestra em me locomover sem
que percebam minha presença. Quando menos esperarem, sairei das
sombras e descobrirei qual é o maldito segredo que esse povo esconde.
Lucy está no quarto desde que chegou da agência, e eu na cozinha,
devorando um pacote de Batata Chips, apenas aguardando o momento certo
para dar o bote. Não preciso esperar muito, porque escuto a porta do
apartamento bater com força e vejo Zoey bufando. Ela arremessa uma bolsa
pequena e brilhante no sofá e só então percebe minha presença.
Ergo as sobrancelhas para ela, esboçando um sorrisinho enquanto devoro
mais uma batata. Ofereço o tubo a ela e Zoey não demora para apoiar os
antebraços na ilha da cozinha, parando à minha frente.
Desço meus olhos por seu corpo, notando que seu visual condiz com uma
saída noturna. Zoey está com saltos bege que fazem um lindo contraste com
o tom retinto da sua pele. O cropped preto é brilhante e decotado, a saia,
também preta, é curtíssima. Ambas as peças não deixam muito para
imaginação.
— Nossa, você está uma delícia! — comento, fazendo um biquinho com
os lábios, quase flertando com ela.
Zoey não esboça muita emoção. Com uma batatinha nas mãos e os
cotovelos apoiados na ilha, ela suspira, a expressão derrotada, bem diferente
da mulher empoderada que conheço.
— Pelo menos alguém soube apreciar minha beleza.
— Problemas no paraíso? Ou devo dizer inferno? — Levanto uma das
sobrancelhas com malícia, imaginando que Nate estará envolvido na pauta
de hoje.
Minha amiga mastiga a batata com raiva, o barulho de seus dentes
triturando-a consumindo o ambiente.
— Nós íamos jantar. Quando chegamos ao restaurante, Nate começou a
reclamar da minha roupa, falou que tinha muita gente olhando para minhas
pernas. O imbecil teve a audácia de dizer que eu deveria me cobrir mais! —
Bate na mesa, soltando um riso irônico, tamanha sua irritação.
Eu apenas devoro mais uma batatinha, adorando o caos.
— Ainda não entendo por que você continua com ele.
— Eu o amo, Joy. — A veracidade em suas palavras me preocupa. Dá
para sentir o quanto é perdidamente apaixonada por esse imbecil de quinta
categoria.
— O amor não basta, Z.
— O amor é um conceito mais complicado do que você imagina. —
Lucy se intromete na conversa, saindo de seu quarto e se unindo a nós. Ela
apoia as mãos na ilha de mármore, usando a força de seus braços para se
sentar no local. Estendo o tubo de batatinhas, Lucy pega um punhado e o
devolve.
— E o que você entende sobre isso? — rebato, afinal de contas, nunca vi
minha amiga ter um relacionamento sério ou se permitir se apaixonar por
alguém.
Desde que Liz e David se divorciaram, ela perdeu a fé no amor. Seus pais
eram um casal daqueles grudadinhos que fazem tudo juntos e se olham de
um jeito amoroso que chega a dar inveja.
Lucy paralisa quando me escuta, talvez por saber que estou pensando no
antigo casamento de seus pais, talvez por ter, de fato, se apaixonado por
alguém em minha ausência.
Mais segredos.
— Só estou dizendo que nada é preto no branco. Ninguém é cem por
cento bom ou ruim, o amor não é tão simples. Uma relação amorosa tem
muitas nuances. — Sua constatação faz sentido, mas só serve para me
deixar ainda mais desconfiada. — Você devia saber disso. — Olha para
mim, parecendo inofensiva, mas querendo me tornar o centro dessa
conversa para fugir de perguntas. Lucy pode estar com o cabelo loiro preso,
deixando seu rosto angelical à mostra, mas eu sei do que ela é feita por
dentro.
Nós duas fomos criadas no mesmo mundo.
— Estou sentindo uma tensão entre você e o Luke — comenta Zoey,
entrando na onda da amiga.
— Sempre há tensão — respondo, pegando as duas últimas batatas e
devorando-as em segundos. Zoey dá alguns passos para o lado e abre o lixo,
sinalizando para que eu arremesse o tubo dentro do lugar. Sem muito
esforço, angulo o tubo e faço o lançamento, acertando em cheio. Minha
amiga esboça um sorrisinho, se aproximando novamente logo depois. —
Mas a grande questão é que Luke não fará nada a respeito disso.
— Acha que o ódio vai falar mais alto? — indaga Zoey.
A verdade é que eu não faço ideia do que está acontecendo entre mim e
Luke. Nada e tudo seria uma boa resposta.
— Não sei. Sinto que ele se deixa levar quando temos momentos bons e
logo depois se sente culpado por isso. É como se ele precisasse lembrar a si
mesmo de que me odeia, de que uma recaída o deixaria ferido novamente.
— Reúno meus pensamentos em uma única frase, surpreendendo a mim
mesma pela constatação.
Em outros tempos, nós já teríamos trepado em algum canto da agência.
Ainda temos a mesma química de antes, mas Luke freia nossos momentos
sempre que tem a oportunidade.
— Luke precisa de tempo para te perdoar — diz Lucy, agindo como a
voz da razão, papel que ela normalmente não desempenha.
— Mas a questão é: você quer se envolver com ele de novo ou quer só
uma transa boa? — Zoey questiona, me deixando mais pensativa do que eu
gostaria.
Estou de volta há pouco tempo, ainda estou me acostumando com essa
realidade. Não consigo esquecer Luke, ao mesmo tempo que não quero um
relacionamento sério neste momento.
O amor não é simples.
— Eu quero uma taça de vinho — defino, decidindo que não quero
continuar nessa conversa.
Meus planos para essa noite não constituíam em bebedeira, mas já que
Zoey e Lucy aparentemente não irão sair, pelo menos podemos nos divertir.
Vou deixar para brincar de desvendar mistérios amanhã.
— Uh, adorei a ideia! Também estou precisando! — fala Zoey,
empolgada. — Eu pego o vinho. Joy, pegue as taças. Lucy, peça uma pizza
e pegue a caixinha de som.
Nós assentimos e nos dividimos em nossas funções. Ajudo Zoey a abrir a
garrafa e conecto meu celular ao bluetooth da caixa de som enquanto ela
nos serve. Lucy encerra a ligação com a pizzaria e se aproxima novamente
para pegar sua taça.
— Um brinde ao renascimento do nosso trio — fala a loira, sorrindo de
uma forma sincera, trazendo de volta à tona as memórias da garota jovem e
inocente que conheci em minha adolescência.
Lucy mudou, mas, no fundo, ainda é a mesma.
— Fazia tempo que não tínhamos um momento só nosso — comento,
verdadeiramente emocionada. Não dá para negar, eu senti falta delas.
— Por causa de quem? — Zoey provoca e damos risada. Empurro seu
ombro de brincadeira, erguendo minha taça para propor um brinde.
Com os vidros batendo uns nos outros, damos início à noite das garotas.
O momento inesperado acaba se tornando um dos melhores dos últimos
meses, talvez dos últimos anos. Por alguns minutos, me esqueço de que sou
Joy Saroyan, uma agente secreta, assassina e filha da diretora, e sou apenas
uma garota normal de vinte e quatro anos.
Zoey e Lucy entram na mesma vibração. Nós comemos a pizza com a
mão. Fofocamos sobre todas as pessoas que conhecemos. Bebemos três
garrafas de vinho. Dançamos em pé no sofá da sala, cantando o refrão de
Psycho Killer a plenos pulmões.
Faço uma dancinha com meus ombros, imitando a batida da música,
tomando cuidado para não derrubar vinho no sofá.
— Psycho Killer, qu'est-ce que c'est?
Fa, fa, fa, fa, fa, fa, fa, fa, fa, far better
Run, run, run, run, run, run, run away
Oh, oh, oh — cantamos em uníssono, dançando do jeito mais espontâneo
possível.
Usamos as taças de microfone, eu até viro a minha, tomando todo o
vinho restante de uma vez só para poder pular à vontade. O som da guitarra
no final da música me faz jogar o cabelo e me libertar de vez. Nós três
descemos do sofá, dançando juntas no centro da sala, nos encaixando
perfeitamente no papel de jovens normais que dividem o apartamento.
Se não fossem as três armas apoiadas na mesa de centro, qualquer pessoa
facilmente cairia em nossa fantasia.
A música termina e leva embora todo o encanto. Pelo menos a sensação
do momento continua. Foi gostoso espairecer, ter alguns minutos de
calmaria em uma vida tão repleta de caos.
— Precisamos dançar assim mais vezes. — Zoey expressa o que nós três
estamos pensando.
Cada uma se joga em um sofá, rindo de leve, sorrindo, apegadas ao
momento gostoso que tivemos. Nessa posição, me sinto um pouco tonta.
— O mundo está girando — falo, uma sensação esquisita tomando meu
corpo.
— Acho que você bebeu demais — Lucy responde, rindo de mim.
Minha tontura me faz achar que ela está de cabeça para baixo.
— Não, não bebi. Não fico bêbada com tanta facilidade. — Uso o resto
de consciência para chegar a essa conclusão. Bebi algumas taças de vinho,
talvez até uma garrafa, mas isso não me derruba. A sensação que tenho não
é a mesma de quando estou embriagada de álcool. Eu sinto que estou
perdendo a consciência de pouco em pouco. Percebo que Zoey voltou a
dançar. Não. Zoey está sentada? É Lucy dançando? Ninguém está
dançando? Estou lembrando de minutos atrás ou inventando uma cena? É
uma alucinação. Tem que ser uma alucinação. — Parece que estou drogada
— concluo, tentando resistir, batalhando contra o efeito esquisito que me
domina. — Por que estou assim? Foi você? — pergunto a Lucy, mas não
consigo me levantar do sofá. Meu corpo não responde ao meu cérebro.
— Eu? Por que eu? — Sua resposta vem seguida de uma risadinha
cínica. — Pergunte para a sua melhor amiga.
Lucy se levanta, eu acho, e Zoey também. As duas ficam de pé à minha
frente, rindo da minha desordem mental. Eu não sei o que está acontecendo,
mas não consigo descobrir. Não tenho forças. Meus olhos estão pesados.
Meus pensamentos estão comprometidos. Tudo está ficando borrado.
Escuro. Silencioso.
— Boa noite, Cinderela. — É a última coisa que escuto antes de apagar
completamente.
Meus olhos estão pesados. Sinto uma dificuldade além do normal para
abri-los. O corpo parece dolorido, mesmo que eu já esteja um pouco mais
recuperada dos hematomas da missão. Vou me mexendo devagar,
retomando a consciência aos poucos, seguindo o ritmo lento que meu corpo
me pede para ter.
Quando finalmente abro os olhos, vejo Zoey à minha frente. Flashes
parciais da noite que tivemos voltam para minha mente. Essa filha da puta
me drogou!
— Tome uma água, Joy — ela oferece, estendendo um copo para mim, os
olhos escuros preocupados como se ela mesma não tivesse causado essa
merda.
— Não quero água nenhuma. — Arranjo forças do além para levantar e
bater no copo que ela me oferece. O líquido se espalha pelo chão frio.
Reparo que ele é tão cinza quanto as paredes. Onde diabos eu estou? —
Porque me drogou, caralho? — questiono com ferocidade, levando a mão
para minha cintura para pegar minha arma. Tateio toda a circunferência,
mas percebo que ela não está lá. Meu coração dispara, o ar entra nos meus
pulmões com mais dificuldade. Eu não fico desprotegida. Preciso pelo
menos ver uma arma perto de mim para me sentir segura.
— Eu disse que ela iria querer pegar a arma e me ameaçar — Zoey fala
olhando para trás, tendo o pensamento mais correto do dia. Eu facilmente
atiraria nela para me vingar.
Sigo seu olhar, percebendo que não é só minha amiga que está neste
lugar desconhecido. Lucy está em pé ao lado de Noah, a poucos metros de
nós. Vejo Luke escorado na parede, segurando um copo de café. Mais ao
longe, perto de uma mesa comprida, está Nathan. Quando vejo que Kyle
está sentado no sofá onde eu estava desacordada, as peças do quebra-cabeça
começam a se encaixar e me acalmo.
— Joy, as meninas apenas estavam cumprindo ordens minhas. Não foi
nada pessoal. — A imponente voz de Brenda ressoa no corredor.
Vejo minha mãe se aproximar do ambiente onde estamos, vestindo uma
calça social, camisa e as famosas botas de salto, hoje em um modelo
marrom. Ela está com o cabelo parcialmente preso, o visual bem mais
casual do que o usado na agência.
— Brenda — falo seu nome apenas para me certificar de que o que estou
vendo é real.
David, Liz, James e Christian também estão espalhados pelo local. As
duas maiores equipes da agência reunidas.
— Te enganar é difícil. Imaginamos que para evitar resistência, tínhamos
que te trazer apagada — Zoey explica e eu me sinto estúpida por ter curtido
tanto nossa noite juntas. Meu intuito inicial era segui-las, mas abri mão das
minhas desconfianças para curtir um momento gostoso que há tempos não
tínhamos.
— Nunca mais me dope, Zoey — ordeno, inconformada com essa ideia.
Entendo que sou difícil, não costumo confiar em pedidos que não tenham
um bom motivo para serem feitos. Ela ergue os braços, assentindo devagar,
mas eu sei que no fundo não vai acatar meu pedido. Se Brenda ordenar, ela
não vai hesitar em obedecê-la. — Agora me contem o que diabos está
acontecendo aqui. Por que eu tive que ser dopada?
— Vamos para um lugar mais sério. Temos muito o que conversar. —
Brenda faz um sinal para que a sigam na direção da mesa de reuniões.
Durante o pequeno percurso, percebo onde estamos. É uma espécie de
bunker, possivelmente subterrâneo. O ambiente é único, mas dividido em
pequenos setores. Acordei em uma espécie de sala, onde diversos sofás
estão dispostos de forma aconchegante. Reparei que há um ambiente para
comer e se servir de café, como Luke estava fazendo. Fora as partes
comuns, reparo na tecnologia avançada que Lucy deve ter trazido aqui para
baixo. É um sistema complexo, que ela possivelmente demorou muito
tempo para desenvolver. Algumas telas estão desligadas, mas a central está
acesa, um mapa dos Estados Unidos está à mostra para quem quiser ver,
com pequenos pontinhos marcados, que se alternam ao longo dos dias. Por
último, mas eu diria que o ponto mais importante, é uma parede gigantesca
coberta por um quadro de cortiça. Diversas imagens estão dispostas, assim
como matérias de jornais, presas por alfinetes com a cabeça vermelha. A
linha que liga uma coisa na outra também é vermelha.
Cor de sangue. Conceitual.
— Sente-se, Joy. — Brenda aponta um lugar da mesa para mim. Todos os
outros agentes se posicionam como se tivessem um lugar marcado. Acabo,
para o meu azar, sentada ao lado de Luke. — Quer uma água? Sem
derrubar, de preferência? — oferece e eu aceito. Ela obriga Zoey a pegar
um novo copo e, dessa vez, tomo tudo, precisando me refrescar.
Quando termino, apoio o copo na mesa com delicadeza e direciono meu
olhar para Brenda.
— Comece a falar.
— Muitas coisas aconteceram na sua ausência. Essas coisas nos
obrigaram a trabalhar de uma forma diferente. Então, seja bem-vinda aos
Serpentes. — Brenda abre os braços, apontando para os amigos que a
cercam.
Levanto as sobrancelhas, achando graça do nome. O símbolo da ANDOS
tem uma serpente no centro.
— Que criativo — ironizo, fazendo graça.
Ninguém ri.
Me calo e arrasto o corpo na cadeira em uma tentativa de me esconder
rapidamente. Logo volto a posição, entrelaçando os dedos e apoiando os
cotovelos na mesa, pronta para escutá-los.
— A primeira coisa que você deve saber é que esse é um grupo secreto.
Ninguém fora dessa sala pode ter conhecimento do que acontece aqui.
Entendido? — Brenda pergunta e eu assinto, porque já imaginava. Era de se
esperar, visto o mistério todo que cerca cada pessoa sentada nessa mesa. —
James.
Ela passa a palavra ao amigo, ele se ajeita na cadeira, suspirando antes de
se virar para mim.
— Durante o tempo em que você ficou fora, Brenda me designou um
caso. Era algo sigiloso, um terreno ainda desconhecido, e ela preferiu que o
controle ficasse nas mãos de alguém que confiasse. — Ele troca um breve
olhar com a diretora, que não esboça nenhuma expressão. — Uma nova
máfia estava ameaçando todas as outras. Querendo tomar territórios,
vendendo mercadorias onde não deveriam, afrontando os líderes
sequestrando pessoas de seus convívios. A paz no submundo estava por um
triz e uma guerra entre máfias não era o que o governo queria. Enviei dois
agentes para se infiltrarem no lugar, assim nós poderíamos entender como a
operação funciona, quais são seus próximos passos e o mais importante:
quem é o chefe. — Um esboço de sorriso surge em meu rosto. Agora
entendi por que Brenda pediu que eu torturasse Marlon. — Depois de
meses, eles nos descobriram. Mataram um dos nossos agentes, torturaram o
outro quase até a morte, mas desistiram de apagá-lo porque acharam mais
interessante devolvê-lo com uma mensagem. Pediram que nós ficássemos
longe, caso contrário nos destruiriam.
— Quando me reportei ao Presidente Campbell com atualizações do
caso, ele pediu que nos afastássemos. — A revelação de Brenda me faz
fechar os olhos por um momento, minha mente tentando compreender o
emaranhado de informações. O Presidente gosta de manter a paz com certas
máfias. É bom para o governo ter aliados no submundo, grupos para os
quais eles fazem vista grossa. Mas uma máfia que quer concorrer com as
outras não se encaixa no tratado de paz que o governo gosta de manter.
— Ele também ordenou que Brenda me tirasse do cargo de vice-diretor
por saber demais — James conta com grande pesar. Ele ama o cargo, ama a
agência, dedicou a vida inteira a ANDOS. Com certeza tornou a missão de
desvendar essa máfia o centro de sua vida.
— Ninguém mata um dos nossos agentes e nos ameaça e sai impune —
Brenda declara. Abaixar a cabeça para essa máfia desconhecida é mostrar
para o submundo que temos uma fraqueza. Isso não pode acontecer de
forma alguma. É como assinar uma sentença de morte. Ficar mal com o
Presidente também não é uma boa, mas para ele tê-los protegido dessa
forma, é porque está envolvido.
— Vocês capturaram Marlon como retaliação e me usaram para descobrir
que Richard O’Conell também está envolvido — constato para confirmar o
que já sei.
Estive ajudando os Serpentes sem ter consciência disso.
— Estamos batalhando para arranjar mais informações da Tempestade
Noturna — David é quem fala, revelando o nome da tal máfia misteriosa.
Ao escutar o nome familiar, sinto o sangue correr pelo meu corpo com
mais facilidade. Tento me manter plena e inabalável, torcendo para que
ninguém perceba como realmente me sinto. Brenda é uma águia, tenho
medo de ela notar algo diferente em mim.
Quais as chances da minha antiga equipe estar batalhando contra a
mesma máfia que minha segunda equipe tentava destruir?
— Cogitamos a possibilidade de eles estarem envolvidos com o
sequestro do filho do VP, de terem orquestrado tudo para nos mostrar que
estão por perto e que podem fazer o que quiser — Luke conta, os olhos
castanhos pairando diretamente nos meus.
— É por isso que queríamos um dos sequestradores vivos — Nate
acrescenta para me cutucar.
Ignoro, porque tenho consciência de que fiz besteira e perdi as
estribeiras. A história era pessoal demais. Mas a questão que realmente
importa aqui é que Luke desconfia de que estou escondendo alguma coisa.
E eu, de fato, estou. Não posso revelar meu passado com a Tempestade
Noturna, mas posso contar o que vi durante a operação.
— O homem que eu matei, aparentemente quem mandava ali, tinha uma
tatuagem. Uma coruja no antebraço. No lugar dos olhos, havia raios. O
formato era muito parecido com o pedaço de pele que Marlon arrancou do
próprio antebraço — revelo o que vi quando espanquei o cara até a morte.
Aqueles minutos são como borrões em minha mente. Eu simplesmente
olhei para o filho do VP e imaginei Ethan em seu lugar, assustado, gritando,
desesperado para ser salvo. Senti uma necessidade insana de apagar a
existência do babaca que tinha ousado sequestrar um garotinho inocente.
Não consegui controlar meu lado assassino. Eu queria ver sangue. Queria
ver dor. Queria assistir a vida escapando de seus olhos de camarote. Queria
ser a responsável por ter mandado o homem para o inferno. Não pensei na
operação, nas informações que precisávamos, na ordem que eu tinha
recebido. Eu queria a morte. Vingança. Retribuição.
A tatuagem é uma lembrança sólida na minha mente, mas o resto foi
apagado. Deixei minha escuridão me dominar e perdi a consciência. Fui
uma Joy macabra e inconsequente, um lado que eu prefiro manter
adormecido.
— Marlon disse que chamam o chefão de Coruja. Faria sentido —
comenta Liz, uma pessoa que eu não via há tempos. Lucy está cada dia
mais parecida com ela. As duas têm os mesmos cabelos loiros ondulados,
os olhos são do mesmo tom, os rostos são extremamente parecidos. A única
coisa que as diferencia, além da idade, é o estilo. Lucy é despojada, usa
cores mais escuras e roupas mais informais. Elizabeth, assim como Brenda,
mantém uma certa classe e vive arrumada, usando combinações mais
refinadas, por causa de sua posição de prestígio. Todos conhecem e
admiram os Big Six.
— Vamos partir do princípio de que as coisas estão interligadas. O
sequestro pode ter sido orquestrado como uma forma de mandar um recado.
Se essa teoria for verdade, temos que manter os olhos abertos e redobrar a
atenção — David sugere, o tom obscuro amedrontando o ambiente.
— A Tempestade Noturna já mostrou que é capaz de tudo — diz James,
os olhos perdidos nos acontecimentos do passado, provavelmente pensando
nos agentes disfarçados que mandou para lá, na missão falha, no cargo que
perdeu. — Mais de uma vez — ele acrescenta.
— Não sou uma agente que gosta de ficar parada esperando as coisas
acontecerem e acho que vocês também não. Precisamos decidir nossos
próximos passos. Sugestões? — Brenda deixa claro que iremos agir. Não há
como ficar de braços cruzados aguardando o momento em que a
Tempestade Noturna irá nos surpreender.
— Seguir O’Conell. Sabemos que ele está envolvido, é nossa melhor
chance de conseguir alguma informação — Nate dá a ideia.
— Posso rastreá-lo online e ficar responsável por seguir seus passos. —
Lucy se oferece, ela é nossa mestra de tecnologia, é óbvio que se
voluntariaria para essa função.
— Ótimo, mais ideias? — pede Brenda.
— Marlon ainda está vivo, não? — David pergunta e, para minha
surpresa, Brenda assente. — Acho que vale fazermos uma nova visitinha a
ele. — O sorriso malicioso que o pai de Lucy exibe deixa nítido o quanto
estava apreciando torturar o homem.
Marlon é resistente. Eu o admiro por ainda estar respirando depois de ter
passado alguns minutos comigo. Ele realizou um feito que poucos homens
conseguem: sobreviveu nas minhas mãos.
Não cometerei esse erro novamente.
— Joy, você obteve bons resultados com ele. Tente arrancar mais
informações a respeito de Richard. Marlon tem medo de você porque sabe
do que você é capaz. Use isso a seu favor. — Brenda deixa a
responsabilidade comigo e até inflo meu peito, orgulhosa de mim mesma
por ser tão talentosa torturando outros seres humanos.
A grandiosa diretora me escolheu, preferiu que eu fizesse seu trabalhinho
sujo, e não seus amigos poderosos. Estou me sentindo muito valorizada.
— Posso matá-lo quando conseguir o que quero? — indago por que
dessa vez quero ir até o fim.
É muito sem graça parar antes da hora.
— Se achar que ele não pode contribuir com mais nada, pode — Brenda
libera e noto uma nuance de desaprovação em seu olhar. Ela me ensinou a
ser assim e agora acha ruim? Sai fora! — Leve Luke com você.
Sua última ordem me faz calar a boca. Olho para Luke rapidamente e ele
tem a mesma ideia. Nós nos encaramos, ambos odiando a determinação da
nossa chefe. Estamos estremecidos desde a operação, ele ainda não superou
meu surto e eu estava brava com os segredos que ele escondia. Agora que
sei o que está acontecendo, podemos tentar ter uma conversa decente.
Somos parceiros, precisamos nos dar minimamente bem.
— Conte comigo, Brenda — fala Luke, sem hesitar perto da chefinha
querida que tanto ama bajular.
— Assim que algum de vocês tiver algo concreto, convoquem uma nova
reunião. — Minha mãe olha para Lucy, depois para mim e Luke,
transmitindo seu recado com clareza. — Dispensados.
O barulho de cadeiras sendo arrastadas para trás consome o ambiente. As
despedidas são breves, ninguém fica de papo furado. James, Liz e David
são os primeiros a ir embora, seguidos por Kyle, que vai alguns minutos
depois. Minha equipe resolve tomar um café antes de sair e resolvo
acompanhá-los, mesmo que estejamos no meio da madrugada. Pelo que me
contaram, todos os encontros dos Serpentes são em horários alternativos, ou
seja, em horários que deveríamos estar dormindo.
— Pequena Saroyan. — A repugnante voz de Christian Mayflower soa
no meu ouvido. Estou de costas, me servindo de café no ambiente
improvisado, enquanto meus amigos conversam nos sofás. Ele esperou que
eu ficasse sozinha para me abordar. Como eu odeio esse homem.
— Mayflower — cumprimento de forma seca, me virando de frente para
ele, já irritada por seu quadril estar próximo demais do meu. — Não
conhece o conceito de espaço pessoal? — indago, erguendo as sobrancelhas
para ele, minha feição mostrando o quanto essa cena não me agrada.
Christian ergue as mãos e dá alguns passos para trás. A pose de rendido e
o sorrisinho brincalhão e malicioso não me agradam. Esse homem é falso,
manipulador e um assediador de primeira. Eu nunca gostei dele, mas depois
que fiquei mais velha, passei a sonhar com o dia em que eu cortaria seu pau
fora.
— Só vim dizer que é bom te ver. Estou feliz com a sua volta. Você está
ainda mais linda. — O comentário poderia ser inocente, se viesse de
qualquer outra pessoa.
— Obrigada pelos elogios, querido — ironizo e o burro cai na minha,
achando que estou sendo boazinha pela primeira vez na vida. — Sabe o que
fiquei fazendo nos últimos anos? — Ele nega, ainda achando que venceu.
Vou arrancar esse sorrisinho nojento do seu rosto agora. Dou alguns passos
para frente, me posicionando com o corpo próximo ao seu, fingindo que ele
é mais uma das vítimas que eu eliminava em meus tempos de justiceira. —
Matando homens que faziam mal para mulheres. Estupradores. Valentões.
Assediadores — enfatizo a última palavra para deixar bem claro que ele se
encaixa nesse grupo.
— Ah, pequena Saroyan, não faça isso. Um homem não pode elogiar
uma mulher bonita que já é considerado assediador? Essa geração de hoje
não aguenta brincadeira nenhuma! — Nega com a cabeça, virando a
conversa de uma forma que só ele sabe fazer.
Não vale a pena discutir.
— Mantenha distância que ficaremos bem. — Dou dois tapinhas em seu
ombro, ignorando suas lamentações, e saio de perto.
Antes que eu possa voltar para a sala, escuto o barulho das botas de salto
que tão bem conheço se aproximando. Me viro para ver Brenda chegar
devagar, pisando forte para chamar minha atenção. Ela faz um sinal com o
dedo indicador, pedindo que eu me aproxime. Nós duas encostamos os
quadris na bancada do café, optando por ficar lado a lado, sem grande
contato visual.
— Estava conversando com Christian? — ela pergunta e eu solto um riso
irônico.
— Ele estava me atormentando, como sempre. Não sei por que o chamou
para esse grupo.
— Ele é um bom agente.
— E um babaca — complemento.
Mayflower tem uma carreira impecável, mas isso não apaga suas
atitudes.
Brenda me fita antes de desviar o olhar para o amigo, que está se
despedindo da minha equipe. De longe, ele até parece um cara legal. O
problema é que não consegue ficar perto de uma mulher sem dar em cima
dela.
— Esse grupo é sigiloso ao extremo. Ninguém pode sequer cogitar que
os Serpentes existem — ela fala, séria, enterrando, como sempre, o assunto
“Mayflower assediador”. Brenda não é do tipo que deixa situações como
essa passarem. Tenho para mim que Christian sabe algum podre da minha
mãe. Ela prefere mantê-lo por perto, nunca o pune por seus erros, mesmo
que sua própria filha reclame do quanto ele é inconveniente.
— Sei disso. Não vou abrir o bico. — Entro no assunto que ela quer
manter, desistindo de continuar falando sobre seu amigo.
— Estou falando sério, Joy. Preciso que você realmente compreenda que
esse assunto não pode sair desse bunker.
— Está duvidando da minha lealdade, Brenda? — devolvo, cruzando
meus braços, virando o rosto para encará-la.
— Eu preciso? — rebate.
Sinto que poderíamos ficar nesse jogo o dia todo. Ela me lançando
perguntas, eu provocando, ela provocando de volta.
— Não. Estou quase ofendida por você achar que precisa me questionar a
respeito disso. — Apoio uma mão no peito, teatral.
Brenda revira os olhos, irritada com a encenação.
— Você não me engana, Joy. — Ela se move devagar até parar na minha
frente. Seus olhos escuros, vez ou outra, tem uma capacidade insana de me
amedrontar. — Percebi a tensão dominar seu rosto quando o nome
“Tempestade Noturna” surgiu. Você os conhece, não é? Não tente mentir
para mim. Eu te conheço como ninguém. — Me mantenho estática, mesmo
sabendo que não adianta. Brenda me ensinou toda as táticas que sei. — Não
sei como eles cruzaram seu caminho, mas tenho certeza de que não vou
gostar se descobrir.
— É fácil. Não descubra. — Não resisto e respondo.
Brenda esboça um minúsculo sorriso lateral que não consigo identificar o
significado. Ela quer descobrir? Não quer? Já descobriu?
— Fique de boca fechada. Se qualquer informação vazar, saberei que foi
você. — Ameaça, querendo me amedrontar.
— E vai fazer o quê? — retruco. Não posso abaixar a cabeça para Brenda
ou ela irá arrancar o que quiser de mim.
— Não queira descobrir. — É a última resposta que dá antes de se
afastar, sem se preocupar em me dar boa noite ou me oferecer uma carona.
Gelada como sempre.
Termino de tomar o café e jogo o copo descartável no lixo, pronta para
voltar ao meu grupo. Quando olho para a sala, percebo que nenhum deles
está lá. Os filhos da puta me deixaram e foram embora sem avisar?
Resmungo para mim mesma e procuro pelo meu celular. Vim até aqui
desacordada e minhas amigas, pelo jeito, não pensaram em me deixar
equipada para o caso de eu precisar ir embora sozinha. Não estou com meu
celular, não tenho dinheiro e estamos no meio da madrugada.
Odeio sair desprotegida, mas resolvo confiar nas minhas habilidades de
luta e ir para casa caminhando. Saio do bunker, arrastando a porta de ferro
para fechá-la, percebendo que há um sistema eletrônico de reconhecimento
de retina para acessar o local.
No minuto em que piso na rua, esfrego meus braços para suportar o frio.
Olho para os lados para tentar reconhecer onde estou. A região não me
parece familiar e está escuro demais para que eu enxergue alguma placa. A
única luz vem dos faróis de um carro preto. Reconheço o veículo na mesma
hora que Luke abre a porta e sai de dentro dele, dando a volta até parar
próximo a mim, apoiando o quadril na lataria e cruzando as pernas.
— Ficou me esperando? — indago, me surpreendendo com a atitude.
Luke dá de ombros, enfiando as mãos no bolso da jaqueta de couro. A
noite está tão gelada, que eu fico com inveja por estar aquecido. Não
consigo parar de esfregar as mãos nos braços, rezando para que essa
conversa acabe rápido para que eu entre no carro e esquente o corpo.
— Todo mundo queria ir embora, mas você estava conversando com
Brenda. Me ofereci para ficar e te dar uma carona — explica, deixando o
velho e amoroso Luke tomar conta.
— Que gracinha. Cansou de me odiar?
Luke solta um riso gostoso, seus dentes brancos e alinhados ficam à
mostra e, cacete, como ele fica lindo sorrindo.
— Chegou o momento de conversarmos sobre as coisas, Saroyan. Topa
uma cerveja e uma caminhada?
Olho para Luke com orgulho, surpresa pela atitude. Estou farta da relação
farpada que estamos tendo. Eu gostava mais quando trabalhávamos juntos e
conseguíamos conversar sobre qualquer assunto. Não tenho certeza se Luke
está disposto a deixar seu rancor de lado, mas resolvo que ele merece o
benefício da dúvida.
— Claro.
Ele assente e se vira para abrir a porta do carro para mim. Agradeço com
um sorriso, passando por ele com uma proximidade esquisita para o
momento. Quando me sento no banco do passageiro, ele leva as mãos para
a jaqueta de couro, tirando-a. No processo, sua camiseta acaba subindo e
ganho uma visão privilegiada de seu abdômen marcado.
Luke não fala nada, só entrega a jaqueta para mim. Trocamos um olhar
que diz muito, sem dizer nada. Teremos o resto da noite para conversar.
Na noite escura e fria de Row Fair, caminho ao lado da mulher que é meu
inferno pessoal declarado. Joy se embrulha na minha jaqueta de couro, os
cabelos castanhos esvoaçantes, a expressão tensa com a conversa que sabe
que teremos. Agora que as cartas estão na mesa, nós dois baixamos um
pouco a guarda. Ainda estamos longe do nosso normal, mas já é um
progresso.
— Finalmente descobri seu segredo — ela solta e olha de relance para
mim, um pequeno sorriso lateral convencido se esboçando em seus lábios.
— Não descobriu exatamente — revelo e Joy fica confusa. — Eu disse a
Brenda que era hora de contar tudo a você.
Ela assente devagar, agora compreendendo como tudo aconteceu.
— Caso contrário eu acabaria desvendando o mistério — conclui o
raciocínio, consciente do tamanho do problema que causaria. Ela sabe que é
traiçoeira e inteligente, estava na nossa cola e presente em todos os
momentos que tínhamos em equipe. Não dava mais para esperar.
Por outro lado, fico preocupado com sua entrada nos Serpentes. Esse é o
jogo mais perigoso em que já entramos. É literalmente uma situação de tudo
ou nada, de vida ou morte. Se formos descobertos antes de acabar com a
Tempestade Noturna, estaremos mortos. E essa morte não será rápida,
muito menos indolor. Eles vão querer nos fazer pagar por tentar destruir o
império que estão tentando erguer. Os mafiosos são cruéis quando se
sentem ameaçados.
— Estamos brincando com fogo, Joy — alerto, porque quero que ela
esteja consciente de onde está se metendo.
Com seu sorriso mais perverso estampado, Joy bebe um gole de sua
garrafa de cerveja, olhando para mim por cima do vidro, antes de estar com
a boca livre para falar:
— Ainda bem que gosto de me queimar.
Dou risada, incapaz de resistir.
Não sei por que achei que ela teria um problema com isso. Se tem uma
coisa de que essa mulher gosta, é de estar em situações de perigo. As
respostas ardilosas e rápidas nunca deixam de me surpreender. Ela sempre
consegue se reinventar, inovar nas provocadas, nas indiretas, nas rebatidas
ácidas. Faz parte do seu charme. O mesmo charme que me fez cair aos seus
pés tantos anos atrás. O mesmo charme que ainda me conquista, mexe
comigo, destrói toda a proteção que eu criei à minha volta.
Como superar alguém que segue sendo a dona do seu coração, mesmo
depois de tê-lo destruído?
— Obrigada por ter me acobertado na missão. — Joy traz um assunto
inesperado à tona, aproveitando o silêncio e a solidão que a escuridão nos
traz. Não achei que voltaríamos a falar sobre sua falha na operação. — Os
meus nervos estavam à flor da pele naquele dia, mas agradeço por ter ficado
ao meu lado.
A Joy do passado jamais teria maturidade para admitir uma coisa dessas.
Passaria a vida toda negando, só para não demonstrar fraqueza. Fico
positivamente surpreso ao vê-la se permitir ser vulnerável. Até chego a me
perguntar se estou sendo privilegiado por ver um lado de Joy Saroyan que
ninguém mais enxerga.
— É o que parceiros fazem, não é? — rebato, me referindo a conversa
que tivemos quando cuidei de seus ferimentos. Estávamos irritados um com
o outro, ela pelos segredos que eu escondia, eu por ter mentido a toda a
chefia da agência por causa dela. Agora, nesse momento mais calmo, vejo
que ela tinha razão. Precisamos cuidar um do outro.
Joy espreme os olhos, parando de andar, me obrigando a frear também.
— Você está sendo bem contraditório, Lucas Carter.
— Você mexe com o meu equilíbrio, Joy Saroyan.
As rebatidas imediatas, tão caraterísticas do nosso relacionamento do
passado, carregam o ar de uma sensação familiar. Trocamos um olhar que
me transporta até quatro anos atrás. Antes de todo o caos, de todo o rancor,
de toda a dor. O sorrisinho de Joy me faz entender que ela está sentindo a
mesma coisa, presa no mesmo momento gostoso e leve do nosso passado.
— Não foi a primeira vez que perdi o controle. Eu simplesmente apago,
deixo a escuridão me consumir e sou violenta ao extremo — Joy desabafa e
eu noto um receio em seu olhar. É difícil lidar com um comportamento
incerto. Ela nunca sabe quando vai se perder dentro de si mesma.
— Você foi criada para ser uma máquina. — Tento consolá-la. Sua
juventude foi caótica e problemática, não dá para sair ilesa.
— Esses apagões me preocupam.
— Bom, se precisar, estarei ao seu lado para te trazer de volta à realidade.
Joy bebe um grande gole de sua cerveja, virando-a até que o líquido
acabe. Ela dá uma conferida na garrafa, se certificando de que não há mais
nada, e a arremessa na calçada, sem virar a cabeça para ver os cacos de
vidro se espalhando.
Sua expressão vulnerável vai embora, quebrando todo o encanto do breve
momento sincero que tivemos.
— O que é isso, Luke?
— Isso o quê?
— Essa fofura esquisita! Você me odiava até duas horas atrás. Brigou
comigo por ter matado aquele cara, me levou até minha irmã só para me ver
sofrer, quase esfaqueou meu pescoço!
— Já disse que meus sentimentos são complicados.
Não tenho uma explicação para o que sinto. Eu quero odiá-la, mas como
fazer isso se tudo o que sinto é uma grande vontade de tê-la de volta? De
provar seu gosto, nem que seja somente mais uma vez? Não sei o que fazer
com a confusão que ela causa dentro de mim.
— E eu tenho que lidar com suas alterações de humor? — indaga,
irritada, e sou eu que viro minha cerveja para terminá-la.
Mas, diferente dela, não gosto de fazer estragos. Dou alguns passos até a
lixeira mais próxima e arremesso a garrafa ali.
— Não, você não tem. Podemos encontrar uma maneira mais agradável
de conviver. — Faço esforço para colocar meus pés no chão, usando a
técnica de lembrar de tudo o que me fez no passado, para não cair na dela
no futuro.
Preciso me manter neutro e esquecer das coisas boas que vivemos.
— Uau! Sinto um progresso vindo.
— Somos parceiros, você está enfurnada na minha sala... fica difícil se
manter longe.
— E você adora a proximidade. — Joy me provoca, sabe que estou na
beira do precipício, por pouco não mergulhando no abismo perigoso que ela
é.
— O que acha de uma trégua? — ofereço, me esforçando para manter
minha feição impassível, controlando os sentimentos que estão loucos para
aflorar dentro de mim.
Pense nas lutas.
Ela poderia acabar com sua glória como Mad Tyson.
Lembre-se do quanto você evoluiu sozinho.
Ela te abandonou assim como seus pais, repito para mim mesmo.
— Só aceito se admitir que seu tesão por mim transbordou no dia em que
treinamos juntos. — Joy mais uma vez sorri de forma provocativa, doida
para atiçar fogo.
Eu reviro os olhos, retirando o que disse sobre ela estar mais madura.
— Você adora se iludir, não é?
— Admita — pede, dando um passo para mais perto de mim. — Eu
admiti que perdi o controle. É sua vez de ceder.
Os olhos poderosos e incisivos me carregam para seu encanto. Mais uma
vez, percebo o quanto ela se assemelha à imagem da serpente desenhada na
insígnia da ANDOS. Ela é capaz de convencer qualquer um a fazer o que
quer.
Eu odeio seu poder absoluto sobre mim.
— Meu tesão por você transbordou, Joy. Mas eu não vou permitir que
essa excitação me consuma. Não posso. — Entrego o que ela quer, mas
mantenho minha dignidade e mostro que não cairei na sua de novo.
— É proibido se sentir atraído por mim? — A rebatida vem carregada de
algumas linhas de expressão diferentes. Está claro que Joy se incomoda
com isso.
— Sempre vou me sentir atraído por você. — Sou honesto, mas continuo
firme no esforço de manter meus pés no chão. — Porém, não farei nada
com esse sentimento. Durante seu tempo fora, eu finalmente entendi que
preciso me priorizar. Se eu não fizer isso, ninguém vai fazer por mim.
Valorizar a mim mesmo foi uma das muitas coisas que aprendi no tempo
em que ela ficou fora. Joy era o centro do meu universo. Hoje, me coloquei
nessa posição, entendi que preciso priorizar as coisas que gosto e quero para
mim.
No fundo, sei que isso não significa que preciso exclui-la da minha vida.
Só tenho medo de voltar a ser o garoto inocente e submisso de antes.
— Gosto dessa sua versão. Combina mais com o homem que você é.
Outra vez, Joy me pega de surpresa e me faz perceber o quanto nós
éramos jovens, talvez imaturos demais para viver uma paixão tão intensa
quanto a que tínhamos. Eu mudei, mas ela também mudou.
— Demorou para que eu te superasse, Joy. Às vezes, ainda sinto que as
coisas não tiveram um fim. — Sou sincero, cedendo como ela me pediu,
mesmo que uma voz dentro da minha mente grite que estou fazendo merda.
— É porque elas não tiveram. Nós nunca realmente terminamos —
constata com pesar. — Ei, tenho uma ideia. — O anúncio vem seguido de
uma expressão iluminada. — Olha para mim — pede, de alguma forma,
achando um jeito de se aproximar ainda mais de mim. Nossos peitos estão
colados agora. — Luke, estou terminando com você.
— Já faz quatro anos.
— Termine comigo também. Assim podemos encerrar logo esse ciclo.
Seu pedido é engraçado, seu ânimo excessivo mais ainda. Fazia tempo
que eu não a via tão leve.
— Joy, eu termino com você. — Mergulho em sua ideia, sentindo que
precisamos fazer isso para, de fato, declarar nossa trégua.
Não estou deixando tudo para trás. Nunca vou esquecer da dor que senti
quando ela me deixou. Eu sou um homem que só conhece o abandono e
achei que com Joy as coisas seriam diferentes. Porém, também vejo o
quanto cresci sem ela, o quanto sou grato por ela estar de volta e,
principalmente, por ela estar bem, seguindo em frente depois da tragédia
que lhe assolou. Eu cresci sem ela, me desenvolvi, foquei em mim. Joy
entendeu que me abalou e espero que não cometa a loucura de fugir outra
vez.
Uma vez eu ouvi dizer que o melhor, para superar algo difícil, era não
deixar que isso te afetasse, perdoar as pessoas que te fizeram mal para que o
rancor e a raiva saíssem do seu peito. Agora é hora de deixar o rancor um
pouco de lado. É hora de fechar um ciclo para iniciar outro.
— Meu Deus, estou solteira, que emoção! — comemora fazendo uma
dancinha cômica.
Até parece que isso mudou alguma coisa em sua vida.
— Há quanto tempo exatamente você se declarou solteira? — questiono,
como sempre curioso para saber o que aconteceu nos anos em que ficamos
separados. Sei que nunca vou ter ciência de tudo, mas gostaria de pelo
menos alguma informação. Ficar no escuro não me agrada.
— Muitas perguntas para um mesmo dia, Carter.
Joy pisca com um dos olhos e começa a andar para trás, ameaçando
voltar para nossa caminhada.
— Ah não, não fuja. — Puxo seu antebraço. O movimento é rápido e
bruto, o que acaba deixando nossos peitos colados.
Essa proximidade nunca é uma boa ideia. Sempre vem carregada de
sentimentos, sendo “tesão” o protagonista deles. Seu olhar provocativo e o
fato de não tentar se desvencilhar do meu toque me diz que gosta dessa
proximidade tanto quanto eu.
— Quer saber para quantos caras eu dei? Acha que eu me lembro? —
afronta, doida para que eu me contorça de ciúmes.
— Eu me lembro de cada uma das mulheres que passaram na minha
cama — falo de forma pausada, rebatendo na mesma moeda.
— Bom para você.
Joy tenta se afastar de mim, mas aperto ainda mais seu braço, impedindo
que escape.
— Foi só sexo?
— Por que isso te interessa?
— Quero saber se algum outro cara conseguiu fazer amor com você ou se
continuo sendo o único.
Estou mergulhando em um terreno perigoso, eu sei. Mas não sou capaz
de resistir a Joy quando ela está tão perto de mim. Assim como no dia em
que lutamos, eu sinto o calor do seu corpo se unir ao meu. Sinto sua
respiração no meu rosto, se entrelaçando com a minha. Sinto o que faço
com seu coração, que erra as batidas quando está perto de mim.
— Prefiro ser fodida — responde com o queixo erguido, teimosa e
orgulhosa até o fim de seus dias.
— Então a honra ainda é minha. Ótimo. — Abro um sorriso convencido,
desviando meu olhar para o seu corpo delicioso junto ao meu.
Saudades de meter na bocetinha gostosa dessa mulher.
— O que está fazendo, Luke? — Joy encontra um resto de consciência
para perguntar. — Próximo desse jeito, me dizendo essas coisas, logo
depois de afirmar que não fará nada com o que sente por mim.
— Eu não estou fazendo nada. — Minha primeira reação é negar, mesmo
que eu saiba que estou sendo contraditório.
A culpa pelo meu comportamento é toda dela.
— Não?
— Não.
— Você tem um jeito engraçado de não fazer nada. — Joy se esquiva do
meu toque, mas não se distancia.
O problema é que agora nossas peles não se encostam mais. E a falta que
isso me faz é preocupante.
— Tenho? — indago, seguindo na missão de me fazer desentendido.
— Tem. E continua sem coragem de admitir o quanto me quer. — O
sorriso malicioso fixado em seu rosto mostra que sabe que venceu.
— Não quero — reforço para continuar o jogo, resistindo o máximo que
posso, mesmo sabendo que já estou completamente rendido.
— Se eu te beijar agora, vai se esquivar? — indaga, levando os olhos
sedutores direto para os meus. — Ninguém está olhando. Ninguém precisa
saber que você cedeu. Ninguém vai te achar fraco por ter se rendido a mim
de novo.
— Jamais me renderei a você.
— Vai repetir a mentira até que se torne verdade? — parafraseia o que eu
disse a ela depois da missão.
— Por que você é assim? — Jogo a pergunta ao universo.
— Irresistível? Enigmática? Forte o suficiente para me manter a
centímetros de você e não fazer nada?
Sua rebatida só piora as coisas, porque eu sei que ela pode perder a
cabeça em missões, mas não por um homem, não por amor. Já eu estou me
perguntando se o gosto da sua língua é o mesmo. Se a minha jaqueta de
couro vai ficar com seu cheiro. Se ela vai corresponder ao beijo que estou
prestes a roubar de sua boca.
— Porra de mulher! — xingo, antes de agarrar sua cintura e trazê-la para
perto de mim.
Nossos narizes se encostam, os lábios ficam próximos demais para o
nosso próprio bem. Dou adeus a minha sanidade, porque não dá para se
manter são perto de uma mulher como Joy Saroyan.
Ela destrói corações. Consome almas. Toma conta de cada pensamento
da minha mente. Me faz sucumbir ao desejo e ao pecado de querer tê-la de
novo.
Só mais uma vez, digo a mim mesmo.
Só para me despedir.
Joy me olha como se estivesse esperando por minha atitude, querendo
ver se terei coragem de fazer o que ela quer. Essa maldita quer que eu a
beije. Quer, assim como eu, usufruir do tesão avassalador que sentimos.
Costumo ser um cara racional, mas tocando em sua cintura, com seus
lábios ao meu alcance, jogo a razão para os ares e faço o que eu devia ter
feito desde o nosso reencontro.
Eu a beijo com toda a saudade dentro de mim.
Com todo o ódio, o rancor, a dor.
Mas também com todas as memórias do nosso amor.
Joy me responde na mesma intensidade, a língua entrando em sincronia
com a minha, se movimentando com familiaridade, fogo, desespero. Seus
braços agarram meu pescoço, ela me puxa para mais perto, acabando com
qualquer mísero espaço que havia entre nós.
Estou sem fôlego, sentindo que ela roubou todo o ar do meu corpo para
si. Com o calor entre nós aumentando, levo as duas mãos para sua bunda,
agarrando a carne com força, fazendo seu quadril roçar no meu. Joy deve
estar sentindo meu pau duro, porque se esfrega contra mim, a fricção
levando a última gota da minha sanidade embora.
Essa mulher é minha perdição e minha salvação.
Sentir o que seu corpo faz com o meu novamente me traz a certeza de
que seu poder sobre mim é absoluto. Gosto de imaginar que também tenho
um poder sobre ela, porque Joy não é de se entregar fácil. Ela me tem na
mão, eu a tenho na mão. É um jogo perigoso, um amor arriscado, uma
luxúria inesgotável.
Nós não deveríamos mergulhar um no outro de novo. Somos destrutivos.
Confusos. Caóticos. Incontroláveis. E é essa tenebrosa falta de controle que
nos impede de nos manter distantes. O magnetismo entre nós é insano,
impossível de resistir.
Entretanto, no fundo, eu sei que nós iremos nos arrepender desse beijo,
que esse momento irá embora tão rápido quanto veio, mas que voltará ainda
mais forte quando tivermos outra recaída.
Por mais que eu tente evitar, uma vida ao lado de Joy Saroyan é uma vida
regada a tentação.
E eu sou um homem que odeia não ter o que quer.
Segredos são poderosos. Mortais. Sombrios. Podem destruir as pessoas à
sua volta ou até você mesmo. Eu estive nas duas posições. A pessoa que é
destruída por um segredo escondido por terceiros e a pessoa que se
autodestrói por ter que esconder um segredo.
Não consigo entender por que ainda estou fazendo isso, porque não abro
o jogo. Quero mais do que tudo contar a verdade, mas não existe uma forma
de fazer isso sem revelar o que faço enquanto eles dormem.
Meu celular vibra e me perco, em dúvida sobre onde deixei o aparelho.
Estou dentro do meu carro há mais de trinta minutos. Ou vinte. Ou
quarenta. Não sei dizer. Entrei, cheirei e fiquei.
Acabo encontrando o aparelho jogado no banco do passageiro, eu sequer
percebi que tinha tirado o celular do bolso. Vejo que há uma mensagem dele
me chamando para ir ao motel.
Ele quer me comer, mas eu não quero ir. Nunca quero, mas me enfiei
nessa por livre e espontânea vontade e agora tenho que lidar com minhas
péssimas escolhas.
Fora que ele tem pó e o meu acabou.
Ligo o veículo e o painel parece estranho, quase como se fosse um
desenho animado. O velocímetro me lembra o sol do Teletubbies. Imagino
que Laa-Laa, Po, Dipsy e Tinky-Winky estão acenando para mim no painel.
“É hora de dar tchau”, eles repetem várias e várias vezes. Dou risada da
fofura da cena, sempre amei os Teletubbies, era meu desenho favorito
quando eu era criança. Meus pais me colocavam sentada no sofá com um
balde de pipoca enquanto faziam as tarefas domésticas e eu ficava lá por
horas, só me divertindo com o desenho.
Era uma época boa, fácil, simples. Liz e David já eram parte do Big Six,
mas eu não fazia ideia. Meus pais estavam juntos, se amavam, e eu
admirava o quanto eram felizes.
Mas aí eles estragaram tudo. Se divorciaram justo na minha adolescência,
quando eu estava tentando descobrir quem eu era, enquanto treinava para
fazer parte da ANDOS. Parece até que eles fizeram de propósito, que
queriam ferrar com cada pedacinho do meu psicológico.
E agora eu estou aqui, sozinha na noite escura, tentando me lembrar
como engatar a primeira marcha.
Agradeço por ser madrugada e não ter ninguém na rua, caso contrário eu
teria matado alguém. Dirigir drogada não é muito prudente e costumo tentar
evitar ao máximo. Porém, preciso voltar para casa depois do encontro.
Não sei como chego ao motel, mas consigo perceber que estaciono o
carro da forma mais torta possível.
Desço do veículo, tranco a porta e enfio as duas mãos no bolso frontal do
casaco de moletom. Está escuro, já é madrugada, e o frio do outono não
perdoa. Puxo o capuz para me proteger do vento e também para esconder
meu rosto. Tenho sorte de que sou a única da equipe capaz de hackear as
câmeras públicas e privadas da cidade para rastrear alguém. Se algum deles
fosse minimamente capaz de lidar com a tecnologia, eu poderia me ferrar.
Não que esse motel sujo tenha alguma câmera, mas as ruas da cidade têm.
Noah e Zoey já desconfiam de mim faz tempo, Joy indo no mesmo
caminho.
A cada dia, me afundo mais e mais. Sinto que ainda vai chegar um
momento em que não vou conseguir encontrar a superfície. Existem coisas
demais me puxando para baixo.
Subo as escadas cambaleando, sabendo que ele está no quarto de sempre.
Christian Mayflower abre a porta e ri quando percebe que estou drogada.
— Cheirou de novo, minha linda? — pergunta retoricamente, me
segurando pelo antebraço para me puxar para dentro do quarto.
Eu não reajo. Apenas deixo que ele me prense contra a parede e leve seus
lábios finos ao meu pescoço. Christian segura meus antebraços, me
mantendo sob seu controle, me fazendo sua presa, submissa às suas
vontades.
Eu só penso no quanto quero sair daqui. Tenho uma arma na cintura, era
só pegar, destravar e dar um tiro no meio da barriga dele. Mas eu não
consigo me mover, não consigo impedir que ele continue.
— Christian, hoje não — suplico como sempre faço.
— Você veio aqui para isso, amorzinho. Não vai me deixar passar
vontade, vai? — pergunta, ardiloso, sem me soltar, sem dar espaço para que
eu me mova.
Deixo que ele me jogue na cama. Deixo que ele tire minha roupa. Deixo
que ele me foda enquanto eu olho para o teto, me perguntando se estou
mesmo permitindo alguma coisa. Eu disse não e ele continuou. Mas eu
também não fiz um grande esforço para me afastar. Estou sob o efeito de
drogas, então posso usar isso como desculpa para dizer que estou mais
maleável.
O problema é que já estive nessa situação sóbria e também não consegui
me afastar.
As coisas começaram boas. Christian é proibido. Vinte e cinco anos mais
velho. Amigo dos meus pais. Me conhece desde criança. É casado. Trabalha
no mesmo lugar que eu. É superior a mim. Um quadro quente, perigoso,
perfeito para uma garota tentando ser rebelde.
Ele sempre gostou de dar em cima das meninas mais novas da agência.
Deve ter comido várias delas. Mas comigo foi diferente. Ou pelo menos é
isso que digo para mim mesma para tentar me justificar. Eu me aproximei.
Correspondi às suas investidas. Paguei um boquete para ele no banheiro da
agência. Fiz de tudo para ser a garota pervertida que ele queria que eu fosse.
Mas nunca fui eu. Nunca fui Lucy Cassidy. Sempre um personagem, uma
ilusão criada para me afastar dos meus próprios problemas, para me
encaixar perfeitamente na fantasia de um homem obcecado em transar com
garotas mais novas.
Ele começou a ousar. Eu comecei a achar que era demais para mim.
Christian não me deixou escapar, sempre arranjava uma forma de me
convencer a não interromper nossos encontros. O papel de garota rebelde
foi pesando. Sair desse relacionamento ficou ainda mais difícil.
Estou presa em um ciclo que eu mesma criei. Fui atrás de Christian, não
consegui sair da relação, permito que ele faça o que quiser e aguento tudo
calada. Sempre sofrendo em silêncio, me apoiando em um pó branco que
me traz doses diárias de uma felicidade irreal e inatingível.
Não vou conseguir sair dessa relação sozinha. Não vou me livrar dele
sozinha. Eu não sou capaz de nada sozinha. Nunca fui, nunca serei. Contar
para Noah, Zoey, Joy ou até para os meus pais está fora de cogitação.
O que me resta é aguentar. Sentir menos a cada dia. Usar mais cocaína a
cada dia para sobreviver.
Depois do que eu fiz, mereço ficar presa a Christian. Mereço que ele
tome meu corpo do jeito que quiser. Mereço que ele anule minhas vontades.
Mereço odiar sexo. Mereço não sentir prazer. Mereço olhar para o teto e
apenas esperar ele acabar. Mereço sentir a vida saindo do meu corpo pouco
a pouco, até que uma hora não reste mais nada.
Eu não esperava que terminaria a noite em que fui dopada me agarrando
com Luke na calçada. Não que eu esteja reclamando, foi uma surpresa boa.
Meu ex ainda sabe o que está fazendo, é um gostoso e tem uma pegada
forte do jeito que eu gosto. Fora que nossas provocações me excitam e
jogam a expectativa lá para cima. Eu adoro quando ele age como um ser
primitivo, obcecado em saber se foi o único que conseguiu fazer amor
comigo. Essa possessividade é sexy.
E por incrível que pareça, fui honesta. Não costumo misturar sentimentos
com sexo. Até mesmo com Darius, o homem com quem me envolvi no meu
tempo fora, que teve a incrível capacidade de mexer comigo, era só luxúria.
Com Luke sempre foi tudo. Tesão, amor, carinho, loucura. O pacote
completo.
Meus sentimentos por ele estão vivíssimos. Sempre estiveram, mas fiz
um ótimo trabalho mantendo-os afundados nos últimos anos. Eu acho que
até teria caído em tentação mais facilmente no meu retorno, se Luke não
estivesse tão rancoroso. Ele me irritou e eu sou do tipo que gosta de ter paz
e muito sexo na relação. Minha vida já é caótica demais. Não preciso de um
homem chato atrapalhando meu caminho.
Depois de uma noite mal dormida, obviamente chego atrasada na
agência. Atravesso o corredor do vigésimo quinto andar com a jaqueta de
Luke pendurada nos braços. Um sorrisinho vitorioso não sai do meu rosto,
não só pelo beijo e pelos planos maquiavélicos que criei para provocar
Luke, mas também por ter, finalmente, descoberto o que todo mundo
escondia de mim.
Adoro um bom mistério para desvendar e o comando da Tempestade
Noturna me parece desafiador o suficiente para me entreter. A curiosidade
de entender mais sobre essa nova máfia grita dentro de mim. Meu passado
com eles não é muito simples, tampouco pode ser revelado para os meus
amigos, mas será útil em nossa investigação. Terei que ser discreta e fingir
que estou descobrindo as informações agora, entretanto, isso não é nada que
eu não tenha feito antes. Derrubar esses malditos precisa ser minha
prioridade. Não gosto desses caras. Eles estavam mexendo com minha
segunda equipe, querendo derrubar um império consolidado há muito
tempo. Ainda não consegui entender qual é a da Tempestade Noturna, mas
com certeza suas motivações são fortes ou eles não estariam provocando
tantas pessoas poderosas do submundo.
Mesmo dormindo poucas horas, estou eufórica com nossa nova missão e
pronta para torturar Marlon mais tarde. Esse tipo de coisa me alegra e
coloca um sorriso estilo Coringa no meu rosto.
Pela primeira vez em muito tempo, me sinto animada e esperançosa. É
até estranho me sentir minimamente feliz. Sou tão paranoica, que vejo essa
alegria como um presságio para coisas ruins. Nada bom dura muito tempo
na minha vida.
Abro a porta da sala de Luke sem bater, tacando o foda-se para
formalidades. Ele está sentado atrás de sua mesa, para variar. O notebook
está aberto à sua frente e seus dedos teclam de forma frenética antes de me
verem.
— Quando você vai ter a própria sala? — indaga, esboçando um
sorrisinho maroto delicioso.
Essa carinha de homem certinho que vira um diabo na cama faz minha
boceta acordar na hora.
— Gosto mais de ficar na sua. — Fecho a porta atrás de mim, querendo
privacidade. Dou a volta em sua mesa e me sento ao lado do notebook,
colocando minha bunda próxima a sua mão, meu corpo ao alcance do seu,
bem à sua frente. — Vamos falar sobre o beijo? — Sou direta, sem
paciência para rodeios.
Quero saber se vou curar minha seca hoje ou se meus próprios dedos
terão que fazer o serviço. Luke me deixou com um fogo que precisa ser
contido.
— Foi um beijo de despedida para oficializar nosso término. Nada além.
— Ele tenta jogar um balde de água fria em mim ao parecer indiferente,
mas eu sei ler suas expressões.
Luke Carter nunca conseguirá ser indiferente a mim. Não por muito
tempo.
— Você está com dificuldade de admitir o quanto me quer, eu entendo.
— Inclino meu tronco para segurar sua gravata, puxando-o para mais perto
de mim. Luke deixa, gosta da proximidade, do modo como eu o controlo.
Meus olhos estão mais altos que os seus, preciso olhar para baixo para
encará-lo, o que me coloca em uma posição de poder. Além disso, afasto
minhas pernas para que ele fique preso entre elas. — Quando quiser me
comer do jeito que eu gosto, me avise.
Mantenho nosso contato visual por alguns segundos, vendo seus olhos
escuros pegarem fogo. Tenho um plano muito sólido para enlouquecê-lo até
que ele me dê o que eu quero.
Assim como eu, Luke odeia não conseguir o que quer e sei que, no
fundo, temos as mesmas vontades. O problema é que sua versão
revoltadinha acha que precisa ficar se fazendo de difícil para cima de mim,
fingindo que ceder é um absurdo só porque há grandes chances de eu
quebrar seu coração de novo. Ele precisa abrir os olhos e enxergar os
benefícios de se envolver comigo. Sexo o tempo inteiro, insaciedade, zero
pudor. Nós já nos conhecemos na cama, é tudo tão mais fácil.
Solto sua gravata quando percebo que causei o efeito desejado. Luke
ajeita a peça enquanto se afasta, se esforçando para apagar o brilho que o
tomou. Ele tenta manter a expressão neutra, mas não consegue enganar nem
a si mesmo.
— Sabe do que me dei conta? — pergunta, retomando nosso contato
visual, me pegando de surpresa. — Seu aniversário está chegando.
O assunto me faz soltar uma risada. Espertinho.
— E daí? Não gosto de aniversários, você sabe disso.
E é exatamente por isso que ele trouxe essa merda à tona.
Nunca fui fã de ficar mais velha, não pela idade em si, mas porque festas
me irritam. Balões, bolos coloridos, gente falsa fingindo simpatia só para
receber um convite, pessoas folgadas brotando do chão com presentes ruins.
Parei de comemorar meu aniversário depois que entrei na agência. Até
tentei fazer uma festinha de treze anos, o primeiro aniversário depois do
ponto de virada da minha vida, mas eu já não enxergava as coisas da mesma
forma. Passei a ter dificuldade de socializar com as pessoas da minha idade
e fiquei imaginando como poderia atirar em cada uma das convidadas só
para que elas calassem a boca. Naquele dia, pedi para minha mãe para
nunca mais ter uma festa. Ela disse que eu iria me arrepender da decisão,
mas isso nunca aconteceu. Na verdade, o ódio só aumentou.
A data treze de novembro, nos últimos anos, ganhou significados ainda
mais apocalípticos, mas o que na minha vida não é?
— Não acha que depois de quatro anos longe, você deveria, ao menos,
marcar alguma coisa com as pessoas que ficaram sofrendo nessa data por
estarem longe de você? — Luke sugere, pegando no meu ponto fraco para
tentar causar algum tipo de comoção.
— Vai ficar usando minha fuga por quanto tempo?
Ele solta um riso inconformado, sabendo que estou me esquivando ao
agir na defensiva. Entendo seu ponto, seria legal da minha parte fazer uma
comemoração com as pessoas que gostam de mim, mas, bem, quem disse
que sou legal?
— Vai continuar odiando o dia que você nasceu por quanto tempo? Nós
dois sabemos que isso não é só sobre festas, e sim sobre comemorar uma
vida que pode acabar a qualquer momento. Uma vida que você, bem lá no
fundo, não acredita que vale a pena. — A resposta de Luke me deixa
incomodada e ele tem consciência disso. É exatamente por esse motivo que
me analisou com tanto afinco.
Tá, talvez exista um motivo maior por trás do meu ódio por aniversários,
mas como as pessoas querem que eu goste de uma data comemorativa que
só me lembra do quanto a vida é curta? De que podem estar cantando
parabéns por mim em um dia e chorando no meu caixão no outro?
Meu pai acha que estou morta, mas não quero morrer de verdade. Nem
imagino a quantidade de trabalho comunitário que eu teria que fazer no
inferno para ter uma mínima chance de reencarnar.
— Sua análise foi uma graça, mas não muda nada. Continuo odiando
aniversários.
— Você precisa criar memórias boas para ofuscar as ruins — Luke
constata e eu já sei que vai começar a planejar alguma coisa.
— Não invente. — Aponto o dedo para o seu rosto, acusando-o sem dó.
— Não estou fazendo nada. — Ergue as mãos para mostrar sua
inocência.
— Ainda — completo por ele, espremendo meus olhos em sua direção.
Luke já inventou um jantar romântico, uma noite de filmes no drive-in da
cidade vizinha, uma invasão a um parque de diversões durante a
madrugada. Quando namorávamos, ele estava empenhado em trazer uma
certa normalidade para nossa vida. Não vou admitir para ele, mas esses
foram meus melhores aniversários. Ter alguém lutando para me ver feliz
nesse dia fez com que eu me sentisse amada.
Mas meus últimos quatro aniversários foram sangrentos e solitários. As
memórias ruins estão prevalecendo, não tem jeito.
Luke dá de ombros como se não fosse fazer nada, mas eu sei que vai.
Agora só resta esperar a famigerada data para ver sua invenção. Espero que
envolva sexo. Estou precisando.
— O que você está fazendo? — pergunto quando ele volta a digitar em
seu notebook.
— Relatórios sobre a missão do filho do VP. A nossa função depois da
operação, aquela parte burocrática que você nunca faz, lembra? — Olha
para mim para responder, em uma tentativa falha de criar um peso na minha
consciência.
— Por que vou fazer se tenho você para fazer por mim? — Desço da
mesa, concluindo que é melhor deixá-lo trabalhar nessa chatice e me
preparar para nossa aventura do dia.
— Você é a pior parceira da história — Luke brinca, leve e risonho de um
jeito que só alguém que beijou uma gata como eu consegue ficar.
Ah, como os homens são bobos.
— Estarei fumando no terraço. A hora que terminar o que quer que esteja
fazendo, me mande uma mensagem e vamos juntos para o Navio — instruo
nossos próximos passos, animada por pelo menos ter uma dose de
adrenalina me esperando à tarde.
— Pode deixar, Saroyan. — Leva a mão à testa e bate continência para
mim, todo engraçadinho.
Estou quase saindo da sala, quando me lembro de que ainda estou com
sua jaqueta pendurada no braço. Para aproveitar o clima e manter o plano
provocação em ação, ando até sua mesa e arremesso a jaqueta em sua
direção. Luke a agarra sem esforço e me encara, praticamente pedindo que
eu o provoque.
— Aproveite enquanto meu cheiro ainda está nela. — Pisco para ele
antes de sair, imaginando que vai me obedecer e enfiar o nariz no tecido no
segundo em que eu virar as costas.
Uma vez rendido, sempre rendido.

Estou no meu terceiro cigarro quando Lucy aparece no terraço. Para a


sorte dela, a nicotina me deixa calma e me impede de subir em seu pescoço
por ter ajudado Zoey a me dopar. Apesar de ter sido ordem de Brenda e por
um motivo razoavelmente plausível, não gostei. Perder a consciência e
apagar completamente me deixa desconfortável.
— Invadindo meu espaço de paz? — questiono, dando uma tragada.
Lucy está com um moletom preto grande, que cobre boa parte das suas
pernas. Seu corpo pequeno está consumido pela quantidade excessiva de
tecido. A calça jeans e os coturnos de couro não combinam com o visual
dos agentes mais consolidados. O rosto cansado e exalando ressaca, muito
menos.
— Esse é um espaço público — responde, se posicionando perto de mim
no parapeito.
O terraço fica no trigésimo andar. Em tese, é o lugar que usamos como
heliponto. Porém, no dia a dia, quando não temos nenhuma missão
mirabolante para resolver, é um ambiente aberto e arborizado onde
podemos ter um momento ao ar livre. Há bancos espalhados pelo espaço de
concreto, assim como algumas plantas e até uma mesa comprida, coberta
por um telhado de madeira vazado e decorado com folhas. Eu não sei quem
teve a ideia de deixar esse lugar tão bonitinho, porque algo assim,
definitivamente, não combina com a ANDOS.
— O que você quer? — indago, oferecendo meu cigarro a ela.
A versão rebelde de Lucy aceita sem pestanejar.
— Já foram torturar o Marlon?
— Achei que não devíamos falar sobre esse assunto dentro da agência —
rebato, pedindo o cigarro de volta para que eu possa tragar.
— Quem vai nos escutar no telhado?
A curiosidade de Lucy me intriga. Ela não é boba, sabe que eu desconfio
até da minha sombra. É estranho que esteja perguntando sobre uma tarefa
que não foi designada a ela.
— Nós vamos daqui a pouco. Por que o interesse? — pergunto como
quem não quer nada, mesmo tendo a certeza de que Lucy não será sincera.
— Só estou perguntando. Daqui a pouco vou para o bunker começar o
rastreamento — conta para desviar o assunto, fingindo que essa é uma
conversa normal entre amiguinhas.
Ela não me engana. Eu percebo o quanto está arisca, distante, sofrendo
em silêncio por alguma coisa. Ainda não consegui descobrir o que é, mas
tenho certeza de que se eu prestar atenção por algum tempo, vou desvendar
o mistério. Tenho algumas teorias, mas nenhuma concreta. Preciso observar
por mais tempo para chegar a alguma conclusão.
— Quer mais um? — pergunto, mostrando o maço de cigarros, tirando
um para entregar a ela. Lucy assente e, dessa vez, decido que quero fumar
um sozinha. Dou um para ela, pego outro para mim, e acendo os dois com
meu isqueiro.
Nós duas paramos lado a lado, com os antebraços apoiados no parapeito
do terraço, observando o céu acinzentado. O dia está nublado, o sol não deu
as caras. É o clima perfeito para um passeio ao Navio.
— Pretende matar o Marlon? — Encaro Lucy de forma fatal,
inconformada por ela estar sendo tão óbvia.
— Tem algo que você quer me dizer, Cassidy?
Seguro o cigarro entre os dedos, a fumaça sai da ponta e se une ao céu
cinza, a paisagem combinando com meu cenho fechado.
Lucy dá uma tragada despreocupada, fingindo costume. Não sei se ela é
uma atriz muito ruim ou se quer que eu desconfie de alguma coisa. Sua
obviedade é tanta, que parece estar pedindo para eu descobrir seus
segredinhos.
— Quando te ameaço, você acha ruim. Quando puxo assunto e sou legal,
você continua achando ruim. Achei que iríamos retomar nossa amizade. —
Sua resposta cínica me faz abrir um sorrisinho.
Ela definitivamente está querendo que eu fique desconfiada. Me pergunto
se não veio até aqui propositalmente, sabendo que eu estaria sozinha e que
teria uma oportunidade de falar comigo.
— Estou dividindo meu cigarro com você. Isso é um sinal de amizade. —
Trago mais uma vez, a mente a mais de cem quilômetros por hora. — Se
Marlon não for mais útil, sim, vou eliminá-lo. Foi a ordem de Brenda. E eu
sou uma garota que cumpre ordens.
— Aham — Lucy responde, dando risada com ironia, parecendo mais
leve depois de ouvir meus planos.
Ela quer Marlon morto. Quer tanto a ponto de vir atrás de mim no
telhado só para se certificar de que isso irá acontecer.
Interessante. Muito, muito interessante.

Não consigo parar de pensar nas perguntas estranhas de Lucy.


Minha mente trabalha tentando desvendar esse enigma. Conheço Lucy
desde que éramos adolescentes. Esse comportamento desleixado e forçado
não combina com ela. Já estivemos sobre pressão inúmeras vezes, já a vi
diante de desafios e também já a vi nervosa. E a garota que eu vi hoje
estava nitidamente nervosa.
O que mais me intriga, dentre tudo, é o fato de ela escancarar que há algo
de errado acontecendo. Existe um motivo para Lucy querer que eu descubra
seu segredo. Tenho praticamente certeza de que não vou gostar do que irei
descobrir.
Preciso manter meus olhos bem abertos perto dela, observar cada um de
seus passos, manter meus ouvidos atentos. Necessito descobrir o que a
abalou dessa forma.
— O que fez com Marlon da última vez? — Luke me tira do devaneio,
levantando as duas sobrancelhas, me pedindo para voltar à realidade.
Temos uma tarefa importante para executar.
— Ameacei tirar a vida do seu pau.
— Criativo — comenta, esboçando um sorriso orgulhoso. — Teremos
que inovar dessa vez. Ideias?
— Várias. E você?
— Também.
Deixo o mistério de Lucy em silêncio para me focar no que precisamos
fazer e diversas ideias macabras surgem em minha mente. Pela escuridão
nos olhos de Luke, tenho a confirmação de que entrou no modo torturador e
assassino. Exatamente o homem que eu preciso ao meu lado.
Saímos do elevador antigo do Navio, cumprimentando o segurança que
faz a ronda do andar onde Marlon está sendo mantido. Luke abre a porta da
sala para mim, cavalheiro como se estivéssemos entrando em um
restaurante para jantar, e não prestes a torturar um homem até a morte.
Estamos trocando sorrisos e olhares o tempo inteiro. Qualquer momento
de ação em que estamos juntos leva nossa mente ao passado. Começamos
nessa vida juntos, aprendemos a trabalhar juntos, ficamos bons juntos. Não
evoluímos na agência ao mesmo tempo porque fui embora, mas ganhamos
uma nova chance graças ao destino — e ao meu deslize sendo presa. É
gostoso mergulhar na adrenalina ao lado de Luke. A tensão entre nós, unida
à sensação de perigo e poder que eu tanto amo, me consome por completo.
Sou a minha versão mais confiante, mais maldosa e mais cruel quando
estou ao lado dele.
Assisto Luke sufocar Marlon com um saco, enquanto jogo refrigerante no
seu rosto. O homem está arrebentado, como era de se esperar para alguém
que está sendo torturado há dias, e não vai durar muito. Colocamos Marlon
sentado e amarramos seu braço com cordas grossas que vão arrancar sua
pele se tentar escapar. Estamos alternando entre sufocá-lo e deixar que
respire um pouco, para ver se desiste de resistir e nos conta logo o que
queremos saber.
— Marlon, quanto mais rápido abrir a boca, mais rápido seu sofrimento
acaba — falo o óbvio, soando amigável, para que ele veja que estou
tentando ajudar.
— Pela milésima vez, onde você teve contato com Richard O’Conell?
Onde ele costuma fazer os negócios? — Luke pergunta, parado atrás do
homem, com uma faca recém-afiada grudada em seu pescoço.
Marlon está sendo ameaçado por Luke, mas não para de olhar para mim.
Seu rosto está um horror, o fedor do sangue seco acumulado irrita minhas
narinas, os restos de sua roupa mal cobrem o corpo. Ele está cansado de
resistir, sabe que não vai sair daqui vivo e que o melhor que pode fazer é
abrir a boca para não prolongar mais as coisas.
— Vai ser rápido? — pergunta, os olhos ansiosos para dar fim a esse
sofrimento.
— Depende da qualidade da sua informação. Seja bonzinho que eu
também serei. — Pego a arma em minha cintura e aponto para sua testa.
Um tiro na cabeça é uma forma rápida e indolor de tirar a vida de alguém.
Abro o sorriso mais angelical que consigo, mostrando a ele que sua
colaboração resultará em um belo prêmio.
— O’Conell costuma se reunir para falar sobre seus negócios sujos no
Clube Nix. É um clube de strip em Alexandria. — Luke aperta a faca no
pescoço de Marlon. Lentamente, ele vai rasgando sua pele, fazendo-o sofrer
uma última vez para ver se não solta alguma outra informação. — Eu juro
que é tudo o que eu sei. Sou só um entregador de mercadorias, não fazia
parte dos negócios grandes, eu juro. Por favor, eu juro. — Os olhos
marejados e a expressão desesperada são de dar pena.
Coitadinho. Os últimos dias de sua vida não foram nada fáceis.
— Obrigada pelos seus serviços, Marlon. Os Serpentes vão sempre
lembrar da sua contribuição. — Com uma despedida digna, trazendo
confusão para o rosto do homem, que não faz ideia do que estou falando,
aperto o gatilho. Só para garantir, dou três disparos direto no centro de sua
testa. A cabeça sem vida pende para frente e Marlon finalmente tem sua
paz.
Que o inferno o receba bem.
Troco um breve olhar com Luke, que limpa sua faca nos restos da roupa
do homem. Nós dois compartilhamos do mesmo pensamento.
Teremos que fazer uma visitinha ao Clube Nix.
A parte chata de estar em um grupo, é ter que levar as informações
descobertas para uma reunião, para só então agir. Por mim, eu já viajaria até
Alexandria, mas, além do fato de não termos encontrado muitas
informações sobre o Clube Nix, Luke me explicou que há todo um
protocolo para esse tipo de missão acontecer. Achei que os Serpentes
seriam menos burocráticos do que a ANDOS, porém, com Brenda no
comando de ambos, a organização reina. Fora que ela jamais deixaria que
seus subordinados saíssem sem sua autorização.
É a segunda noite seguida que vamos para o bunker. Hoje, nem o café
está me salvando. Tive que apelar para o energético para ficar acordada.
Não costumo dormir bem normalmente, mas não dormir nada me destrói.
Entretanto, pareço ser a única agente que se sente um zumbi. Os outros
estão plenos, tomando seus cafés e conversando como se não fosse duas da
manhã.
— Você se acostuma — Luke sussurra, como se lesse minha mente.
Agora que faço oficialmente parte do grupo, me apossei da cadeira ao
lado dele. Todos os parceiros sentam lado a lado na área de reuniões, não
podemos fazer diferente.
— Encerrem as conversinhas e vamos focar no que interessa — Brenda
ordena, autoritária. É a única de todos nós que não segura alguma bebida
para se manter acordada. Minha mãe consegue ser superior até na sua
capacidade de ficar sem dormir. — Luke e Joy convocaram a reunião
porque tem novidades. A palavra é de vocês. — Aponta para nós e se senta,
apoiando os braços na cadeira, a postura digna do cargo que ocupa.
Troco um olhar com Luke para sinalizar que ele pode começar a falar.
— O’Conell frequenta um clube de strip chamado Clube Nix. É lá que
faz negócios com seus contatos na Tempestade Noturna. Tentei procurar
informações sobre, mas não encontrei muita coisa — explica. Assim que
saímos do Navio, tentamos achar o endereço e entender mais sobre o clube,
porém, foi complicado. Precisávamos de Lucy e de sua inteligência
tecnológica para desvendar os enigmas que foram colocados no nosso
caminho.
— É um lugar selecionado e discreto. As pessoas que frequentam
precisam estar em uma lista, não é qualquer um que pode entrar. — David,
surpreendentemente, mostra que tem um conhecimento maior do que o
nosso sobre o tal clube.
— E como você sabe disso? — Liz pergunta, espremendo os olhos na
direção do ex-marido, obviamente infeliz com seu conhecimento sobre um
clube de strip.
— Vocês não são mais casados, por que ter ciúmes? — Lucy questiona,
afrontando a mãe sem piedade na frente de todos.
O divórcio de Liz e David é coisa antiga, me surpreende que Lucy ainda
se incomode com isso. Achei que ela tinha superado, mas esse momento
“casos de família” me mostra que estou enganada. Algumas brigas
realmente não têm fim.
Com a maturidade de muito tempo vivendo em um mundo arisco,
Elizabeth ignora o comentário da filha, apenas lançando um olhar
reprovador que Brenda com certeza também me lançaria, caso eu fizesse
algo do tipo. David nega com a cabeça discretamente, decepcionado com a
atitude infantil de Lucy, mas logo volta a falar, preferindo focar no que
viemos resolver.
— Tenho contatos por lá, conheço pessoas que frequentam. Posso colocar
alguns de nós para dentro.
— Ótimo, faça isso. Joy e Luke podem ir. — Brenda define e eu esboço
um sorriso malicioso, pensando na diversão da missão, nos momentos que
passarei sozinha com Luke.
— Temos apenas um problema — David diz, chamando a atenção de
volta para si. — É um clube restrito a homens. As mulheres só podem
entrar para trabalhar.
— Que machismo do caralho! — Zoey reclama e nega com a cabeça,
indignada.
— Consegue me colocar para trabalhar? — pergunto, porque me recuso a
estar fora dessa missão. Eu ajudei a descobrir a informação, quero perseguir
as pistas até o fim.
— Acredito que sim — responde David, dando de ombros, indicando que
provavelmente isso não será um problema.
— Quero ver essa merda de perto. Consegue me colocar também? —
Zoey se oferece. Sei que ela adora um bom disfarce, mas me surpreendo
com sua coragem de passar por cima de Brenda e pedir para entrar na
missão. Minha mãe, entretanto, não parece incomodada. Deve ter gostado
da proatividade.
— Farei o meu melhor. — O pai de Lucy pega seu celular, mostrando-o
para a equipe, indicando que irá se ausentar para mexer seus pauzinhos e
nos colocar dentro do clube.
— Que palhaçada é essa? Como assim você vai trabalhar disfarçada em
clube de strip? Tá louca? — Nate questiona Zoey com um tom de
autoridade, gesticulando em excesso, revoltadinho.
Reviro os olhos e não resisto, um riso acaba surgindo em meu rosto. Eu
amo quando ele tenta bancar o machista controlador para cima dela.
— Não, não estou louca. Esse é meu trabalho e eu decido o que faço,
Nathan. — A resposta de Zoey é rude e expressa o pensamento que todas as
mulheres presentes possuem.
Se algum homem dessa sala acha que tem chance de nos controlar, está
bem enganado.
— Tem noção da hostilidade desses lugares? Dos homens que vão ficar te
olhando, tocando em você? Sinto nojo só de imaginar, Zoey! Isso não é
machismo ou sei lá que merda vocês pregam! É preocupação. — Ele tenta
se defender e vejo que Luke, James e David estão concordando com o que o
amigo diz. Christian está fazendo uma careta, provavelmente cansado do
assunto, e Noah, bem, Noah está do nosso lado nessa.
— Quero fazer parte da missão, Nathan. Namorar comigo não te dá
direito de sabotar meu trabalho e dizer o que faço ou não faço. — Zoey se
impõe, firme como uma rocha, sem nunca ceder aos caprichos
conservadores desse imbecil.
— Você não vai e ponto — Nate insiste na babaquice e eu gargalho, me
divertindo com suas bochechas coradas e o nervosismo iminente em seus
poros.
Conheço Zoey e sei que ela está odiando essa exposição toda. Seus
problemas com Nate são do conhecimento de boa parte das pessoas
presentes, mas existe uma grande diferença entre saber que as brigas
acontecem e presenciar uma delas. É desconfortável para a maioria dos
seres humanos estar no meio de uma discussão íntima como essa. Eu
confesso que estou adorando.
— Continue se impondo para cima de mim que eu corto fora o seu
precioso pau no meio da noite — ela ameaça, a irritação exalando em seus
olhos.
— Você não teria coragem — Nathan rebate, crente de que está certo
nessa situação.
— Mas eu teria — comento, minha imaginação fértil já pensando no
quanto seria divertido torturá-lo. Tenho técnicas que Nate iria adorar.
— Alguém te chamou para a conversa? — o idiota pergunta, me
desafiando com o olhar.
— Vocês três, parem imediatamente. — Brenda, que estava quieta
demais para seus padrões, levanta a voz e fica de pé. — O 641 inteiro irá na
missão. Zoey e Joy se ofereceram para trabalhar, então podem ir. Tanto
nesse grupo, quanto na agência, o livre arbítrio precisa ser respeitado. Se
alguém tiver alguma opinião sobre isso e abrir a boca, irá para um passeio
no Navio. — Ela se vira para Nate, apoiando uma das mãos na cintura, o
queixo erguido, o peito inflado, a pose gritando que é um mulherão da porra
e que está prestes a pisoteá-lo com suas botas de salto. — Enquanto eu
reinar, não haverá espaço para machismo.
Com poucas palavras e a entonação certa, Brenda acaba com a discussão.
Nate tem que engolir a resposta, porque contrariá-la o deixaria em uma
situação ainda pior. Zoey o encara com ódio, mas, quando olha para
Brenda, vejo a admiração transbordar em seu olhar. Elas trocam um aceno
de cabeça cúmplice, minha amiga agradecendo em silêncio pela intervenção
e tentativa de conscientização.
Amo esse lado de Brenda e, assim como Zoey, a admiro por não abaixar
sua cabeça e exalar poder com naturalidade, como se tivesse nascido com
um brilho diferente.
A mulher que chamo de mãe é um fenômeno para todo mundo, mas, por
conta de nosso histórico problemático, não consigo venerá-la por completo.
As lembranças do que fez comigo estão tatuadas no meu corpo e na minha
mente. Para mim, ela sempre será a mulher que roubou minha infância e me
apresentou a escuridão que, ao longo dos anos, me consumiu
completamente.
Estou presa nas sombras por causa dela.

Quando chega a hora de irmos embora, Nate convida Zoey para ir à casa
dele e, com uma gargalhada alta e irônica, ela recusa. Ele fica puto, o que
deixa minha amiga mais puta ainda. Para Nathan, toda a discussão que
tiveram na reunião não teve importância. Zoey fica brava quando ele finge
que nada aconteceu, e é exatamente isso que estamos discutindo dentro de
seu carro.
— Ele quer bancar o maduro, mas é um frouxo que não assume a
responsabilidade pelas coisas que diz! — Zoey explode, se permitindo
perder um pouco as estribeiras agora que estamos apenas entre amigas.
— Sigo sem entender por que você continua com ele — digo a mesma
frase de sempre, isso é algo que de fato nunca entra na minha cabeça.
— Brenda colocou um basta na situação e você vai na missão, amiga —
Lucy fala e eu me viro para o banco de trás, erguendo as sobrancelhas para
ela. — O quê?
— Vai passar pano para macho? Só porque a Brenda “resolveu” o
impasse? — Faço aspas com as mãos.
Lucy olha para o lado, parecendo desconfortável.
— Só quis dizer que as coisas acabaram bem. — Tenta se justificar, mas
não adianta. Já estou com uma péssima impressão de suas opiniões.
Viro de volta para frente, vendo Zoey segurar o volante com as duas
mãos, os nós dos dedos brancos, tamanha a força que ela aplica.
— Ei — chamo e ela me encara, os olhos escuros carregados de uma
raiva que eu odeio ver em sua expressão. — Você é a pessoa certa nessa
situação.
Zoey acena com a cabeça e eu estendo minha mão para segurar a dela,
mostrando meu apoio.
— Nathan é maravilhoso em muitos quesitos. — Franzo o rosto quando a
escuto. Zoey solta um riso quando nota minha expressão. — Ele é, Joy.
Caso contrário, eu não estaria com ele. — Assinto com desgosto. Eu sei que
isso é verdade, porque Zoey é um mulherão foda e não se contentaria com
pouco. Mas não apaga nada do que Nate faz ou fala. — O problema é que
às vezes eu sinto que ele se irrita com a minha liberdade e se incomoda com
minha independência. E eu me pergunto até quando ele vai aturar uma
mulher como eu, até quando eu vou aturar seus surtos. Sinto que estamos
sempre próximos do fim. Esse pensamento me quebra porque eu até poderia
viver sozinha, mas prefiro viver ao lado dele.
As palavras de Zoey são fortes, tocantes e me fazem refletir sobre
inúmeras coisas. Lembro da conversa que tivemos em nosso apartamento
outro dia, quando Lucy afirmou que o amor não é tão simples. A história de
Zoey e Nate é a prova disso, a minha com Luke também. Se tudo fosse
fácil, nós estaríamos juntos e felizes, mas as memórias de nosso passado
ainda o ferem. Se tudo fosse fácil, Nate não seria machista e daria a
liberdade que Zoey precisa.
Raramente vejo minha amiga fraquejar, entretanto, hoje, seus olhos estão
marejados e ela se controla para não desabar. Aperto sua mão com força
para que veja que está tudo bem chorar e libertar toda mágoa dentro de si.
Zoey me agradece com um sorriso, mas eu sei que não vai se permitir sofrer
por causa disso.
— Não preciso de lágrimas, preciso dormir — diz, soltando uma risada
seguida de um bocejo. Vê-la bocejar me dá vontade de fazer o mesmo.
— É, terei que concordar. Precisamos dormir.
Nós duas rimos e olhamos para Lucy, esperando que ela nos acompanhe.
Contudo, nossa amiga está com os olhos vidrados no celular, alheia à nossa
conversa.
— Tudo bem aí? — Zoey pergunta, trocando um olhar discreto comigo.
A estranheza de Lucy é notada por nós duas. Quando ela ergue a cabeça,
com uma expressão distante, bem diferente da que estampava quando
entramos no carro, entendemos que há algo de errado.
— Meu pai mandou uma mensagem querendo conversar. Ele quer que eu
durma na casa dele, provavelmente vai querer falar sobre a provocada que
dei na minha mãe. Sabe como é, aqueles dois se protegem até o fim. — Dá
uma risadinha que demonstra o quanto sua explicação foi uma mentira
deslavada.
Quem fala demais, normalmente, não está dizendo a verdade.
— Posso te deixar lá — Zoey oferece e já dá partida no carro.
— Não, não. — Lucy gesticula, o desespero me deixando mais
desconfiada. — Ele vai vir me buscar aqui.
Troco outro olhar com Zoey.
David foi embora um pouco antes de nós. Qual a chance de vir buscar a
filha por que quer conversar com ela no meio da madrugada?
— Podemos ficar com você enquanto ele não chega — é minha vez de
oferecer alguma coisa, tentando ver o quão longe sua mentira chega.
— Vocês querem dormir. Podem ir. Consigo me cuidar. — A loira leva a
mão para a cintura, a saliência mostra que há uma arma ali, mas isso não me
deixa mais tranquila.
Antes que possamos continuar discutindo, Lucy se despede, abre a porta
e caminha de volta para a entrada do bunker. Permanecemos estacionadas
por alguns segundos, ambas olhando para nossa amiga e se perguntando o
que diabos está acontecendo com ela.
É somente quando Zoey dá partida e nos afastamos do campo visual de
Lucy, que temos coragem de verbalizar nossos pensamentos.
— Quando isso começou? — questiono, tentando preencher os espaços
em branco que os últimos anos deixaram.
— Lucy está estranha há mais de um ano.
A revelação de Zoey me deixa pensativa. Já vi Lucy passar por poucas e
boas, mas ela nunca se afundou dessa forma.
— Ela está usando de novo? — Vou direto para o assunto mais cruel, do
qual ninguém gosta de conversar.
Eu presenciei o vício de Lucy, assisti minha amiga mergulhar nessa
merda de pouquinho em pouquinho, até que estivesse completamente
afundada.
Zoey passa a mão no volante, diminuindo um pouco a velocidade do
carro, prolongando essa conversa tão importante, que já deveríamos ter tido.
— Ela voltou a usar quando pegou David e Liz na cama. — A revelação
me faz abrir a boca, tamanho o choque. Odeio que Lucy teve uma recaída,
mas adoro os casos de família da agência. O entretenimento é de alta
qualidade. — Não é da minha conta, mas parece que eles estão tendo um
caso. Lucy está perturbada com isso, já que a separação foi o gatilho para
tudo desandar na vida dela.
— Acha que esse é o único motivo para ela ter voltado a usar? — indago,
jogando uma hipótese no ar, esperando que Zoey esteja tendo as mesmas
impressões que eu.
— Não, não acho. Pode ter sido o pontapé inicial, mas não é o que faz ela
continuar.
— Tenho a teoria de que os problemas de Lucy são muito mais
complexos do que enxergamos — constato, me perguntando se devo revelar
a Zoey a conversa que tive com nossa amiga no telhado da agência. Em
poucos segundos, decido que é melhor termos essa conversa de vez e
exponho nosso diálogo, certa de que Zoey, assim como eu, só quer o melhor
para Lucy. — Ela perguntou se eu iria matar o Marlon. Estava toda
estranha, querendo informações que, em tese, não fazem grande diferença
para o trabalho dela. Fora que, quando questionei por que estava me
perguntando, se esquivou e jogou nossa amizade na conversa para tentar
fazer com que eu me sentisse culpada.
— Ela queria Marlon morto? Isso não faz o menor sentido. — Ela nega
com a cabeça, os pensamentos a mil depois da revelação que acabei de
fazer.
— Só faria se ela quisesse evitar que ele revelasse alguma coisa. Para
essa teoria estar certa, Lucy teria que estar envolvida com a Tempestade
Noturna — digo a hipótese perturbadora em voz alta enquanto Zoey
manobra o carro em nossa garagem.
— Você acabou de dizer que ela parecia querer que você desconfiasse. Se
estivesse envolvida com uma máfia, com certeza iria esconder até a morte.
Lucy não é boba.
— É isso que me intriga e me leva a pensar em uma outra possibilidade...
— Jogo a frase no ar, esperando que Zoey entenda meu raciocínio.
— Lucy estar sendo ameaçada.
A constatação vem no segundo em que Zoey puxa o freio de mão e
desliga o carro. Ficamos um tempo em silêncio, apenas refletindo e
pensando no que podemos fazer para ajudá-la.
Tenho para mim que a segunda teoria tem mais chance de estar certa,
porém, não podemos perguntar nada a Lucy sem ter certeza absoluta. Tudo
o que nos resta, nesse momento, é observar para entendermos o panorama
completo da situação. Se Lucy está sendo coagida a fazer algo que não quer,
a Tempestade Noturna está ainda mais perto do que imaginamos. O fato de
terem uma forma de ameaçar uma agente inteligente como ela também me
preocupa, e significa que Lucy está escondendo algum podre de nós.
Foi bom conversar com Zoey sobre Lucy para alinhar o que sabemos,
porém, infelizmente, ainda não podemos agir. Precisamos esperar, analisar e
atacar na hora certa, ou nossa amiga poderá escapar. Uma pessoa abalada
como ela não cede facilmente, muito menos aceita ajuda. Para não a
perdemos, precisamos ser pacientes e delicadas, duas virtudes que eu com
certeza não tenho.
Para mim, a melhor forma de combater a dor, é com mais dor.
Depois de um dia inteiro sendo ignorado, desisto de tentar esperar por um
retorno de Zoey e, em um único telefonema, consigo uma vaga no round
dessa noite.
Vou até o quarto de Noah para avisá-lo que vou sair, mas meu irmão não
está. Imagino que esteja com Lucy, como quase toda noite, ou que tenha
arranjado alguma puta para comer. Odeio que ele não me avise do seu
paradeiro, mas, com tanta coisa me estressando no dia de hoje, resolvo
relevar sua falta de consideração. Ele sabe que sou paranoico em saber onde
ele está, então prefiro presumir que está com Lucy e esqueceu de me avisar.
Enquanto dirijo, digito uma mensagem para Luke e passo em seu
apartamento para buscá-lo. Escondido embaixo de um moletom escuro,
meu amigo entra no carro, batendo a porta com força, tirando o capuz com
brutalidade, já mostrando como está seu humor.
— Você é louco, porra? — Luke se exalta e eu faço uma careta. Não
estou com a menor vontade de brigar. Pelo menos, não usando palavras.
— Relaxa.
— Relaxa? Nós temos um acordo, Nate! Cada um luta em uma noite,
para o outro ficar de guarda e evitar qualquer merda. O que deu na sua
cabeça para se enfiar no ringue na mesma noite que eu?
É difícil ver Luke bravo, principalmente comigo. Entendo que quebrei
um combinado nosso, mas foi por uma causa nobre.
— Preciso desestressar, cara! Não trepo há dois dias, a cuzona da Zoey
não me responde. Se eu não quebrar a cara de alguém, vou pirar. — Aponto
para minha cabeça. Entrei nessa com Luke para ter um momento de alívio,
longe da minha posição de líder, das responsabilidades que tenho com meu
irmão, com meu trabalho. Quando estou no ringue, não preciso cuidar de
ninguém além de mim mesmo.
— Vou ligar para o Walter e me retirar das lutas de hoje. — Pega seu
celular, mas o impeço de desbloquear o aparelho, roubando-o para mim. —
Que porra?
— Ele vai surtar se você sair em cima da hora. As apostas já devem estar
rolando. — Aperto o botão para acender a tela do seu celular, mostrando o
horário. Luke suspira, incomodado porque sabe que estou certo. — Vai ficar
tudo bem. Nós não vamos perder.
— E na final? Vamos lutar um contra o outro? — ele pergunta e eu sorrio
para descontrair o clima.
— A dupla “Mad” batalhando frente a frente. Imagina o quanto vamos
embolsar! — Me empolgo, jogando o celular de volta para ele e esfregando
uma mão na outra, pensando no dinheiro. Ter uma grana guardada nunca
faz mal. Eu sei muito bem o que é passar perrengue e não quero nunca
mais.
— Vai ser a única vez, entendeu? O combinado não pode mudar.
— E não vai. Um luta, um cuida — afirmo, sério.
Luke assente devagar. A expressão irritada vai aos poucos se
transformando em um riso. Vou me deixando levar por ele, até que
estejamos os dois rindo, animados com a noite louca que teremos pela
frente.
— Vou adorar arrebentar sua cara na final — ele se gaba e eu gargalho.
Só pode ser zoeira.
— Quem disse que você vai vencer, bonitão? Estou pronto para acabar
com a sua raça!
— Que o melhor vença, Starffey. — Luke pisca para mim e finalmente
dou partida no carro, agora com tudo resolvido e uma nova meta traçada
para a noite.
Vencer meu melhor amigo.
Assim como Luke, eu amo a gritaria que nos envolve quando estamos no
ringue. Tanto quando estou dentro, usando meus punhos, quando estou fora,
apenas observando meu amigo acabar com qualquer marmanjo, é essa
gritaria que me estimula, que me faz continuar frequentando o Silver Fight.
Walter deve ter espalhado que a dupla “Mad” lutaria hoje à noite, porque
o lugar está mais lotado do que o normal. Ele nos colocou em chaves
diferentes para que batalhássemos somente na final, fazendo as pessoas
apostarem mais e mais dinheiro e permanecerem mais tempo no galpão
enchendo a cara. Não dá para negar que Walter é um visionário.
Como o esperado, detono todos os idiotas da minha chave e enfrento
Luke na final. Enquanto uma das funcionárias, com uma roupa minúscula e
indecente, nos apresenta para o público, deixando-os ainda mais eufóricos
por nos ver batalhando, em um momento raro e inédito, troco olhares com
Luke. Estamos tendo um breve diálogo silencioso para decidir como será o
curso dessa luta. Em tese, a briga só acaba quando um dos oponentes fica
desacordado. Nós não podemos levar a luta até esse ponto, não só porque
somos amigos e não gostaríamos de arrebentar a cara um do outro, mas
porque temos que trabalhar amanhã. Não dá para explicar os hematomas
sem ter uma missão como justificativa.
— De um lado, aplausos para o nosso campeão, invicto há mais de vinte
lutas, Mad Tyson! — a mulher chama a plateia para gritar o codinome de
Luke, apontando para ele.
Meu amigo acena para todos, batendo a luva uma na outra enquanto me
lança um olhar sanguinário. Ele move a cabeça para o lado e aponta para
mim, me levando a entender que quer que a vitória seja minha.
Teremos que fazer um belo teatro.
— Do outro, o oponente mais desafiador, o invencível Mad Jones! — Ela
aponta para mim e eu aceno para as pessoas, fazendo o mesmo ritual de
Luke.
Nós nos posicionamos no centro do ringue, prontos para nos enfrentar. A
mulher se afasta, fazendo um sinal para que os homens do lado de fora
soem o sino de início.
A euforia dos espectadores aumenta ainda mais quando temos o aval para
iniciar a luta. Estralo o pescoço, focando o olhar em Luke, tentando
amedrontá-lo com certo sarcasmo, uma postura louca que a plateia adora.
Quando acho que Luke vai fazer o mesmo, ele dá um soco direto na
minha bochecha. O movimento me pega de surpresa e me deixa puto na
hora. Fito meu amigo com braveza, mostrando que não gostei da atitude.
— É uma luta. Siga no jogo — diz, me lançando uma sequência de socos
que, dessa vez, consigo defender.
Não tenho tempo para pensar. Luke é um oponente ágil e forte, tão bem
treinado quanto eu. Arrisco dizer que não existe um melhor entre nós,
somos igualmente bons. Se estivéssemos em uma briga de verdade, eu
poderia vencer hoje, ele amanhã. A vitória seria alternada e equilibrada,
assim como nossas habilidades.
Aproveito alguns segundos em que Luke diminui o ritmo, para investir
contra ele. Até agora, a vantagem é sua, mas, se for para eu vencer, a plateia
precisa acreditar que estou mais forte.
Alterno entre golpes em seu queixo, braço e costelas. Não quero
machucá-lo demais, então não exagero na força. Estamos dando nosso
melhor para dar um bom show, mas as pessoas querem mais sangue, pedem
por mais agressividade.
Enquanto desfiro golpes na direção do rosto de Luke, ele mantém a
guarda alta. Nossos olhares se cruzam e eu já peço desculpas
antecipadamente pelo que terei que fazer. Meu amigo mostra o mesmo, e
responde meus socos com uma cotovelada em meu queixo.
Sinto o sangue preencher minha boca. Meus dentes doem, esse filho da
puta não perdoou na força. Não sou vingativo, mas preciso vencer essa
merda. É o combinado.
Volto a golpeá-lo, e aproveito que está atento com seu rosto, para dar um
chute em suas costelas. A força não é suficiente para fazê-lo perder o ar,
mas Luke faz um bom teatro fingindo que sim. Ele segura a lateral do
corpo, demorando para puxar o ar, e eu ergo as mãos para o alto, fazendo a
plateia enlouquecer.
Meu amigo abre um sorriso perturbador ao notar minha atitude. Me
preparo, porque sei que Luke vai vir para cima para nosso grand finale. Em
uma corrida rápida, ele leva as duas mãos ao meu ombro e me empurra até
que minhas costas batam nas cordas do ringue. O elástico me impede de
cair, preciso me segurar para não voar direto na plateia.
— Cuzão! — reclamo, cuspindo sangue no chão, próximo ao seu pé.
Uso o impulso do elástico para revidar. Disparo golpes na direção de
Luke, acertando um em seu olho que tenho certeza de que irá ficar roxo. Lá
se vai nossa tentativa de esconder o lado clandestino de nossas vidas.
Em momentos normais, eu estaria extremamente preocupado com esse
deslize. Mas no meio dessa batalha, com a adrenalina consumindo minhas
veias, eu não penso em nada, a não ser na vitória. Luke, assim como eu,
sequer se lembra do que deixamos no mundo lá fora.
Aqui, somos a dupla “Mad”. Loucos por sangue, pela adrenalina, pela
vitória.
A plateia grita quando eu enlouqueço, enchendo Luke de porrada. Ele
revida, me segura pelos ombros, tenta me derrubar, mas sou quem acaba o
derrubando. O impacto das costas do meu amigo batendo no chão levanta
os espectadores. Eles gritam quando prendo Luke no chão e fecho meu
punho, erguendo-o, prestes a acabar com ele. Antes que eu possa completar
o movimento, Luke inverte nossas posições. Não deixo que ele me prenda
no chão e nós rolamos pelo ringue, batalhando até o último segundo,
entregando o melhor espetáculo que o Silver Fight já viu.
Percebo que Luke diminui a força, o que entendo como um sinal para a
finalização. Fico por cima dele de novo, prendendo-o, e dou o soco final
que eu tanto queria. Não abuso para não apagá-lo, mas Luke faz um ótimo
teatro virando o rosto e fechando os olhos, declarando sua derrota.
Eu me levanto, batendo com as luvas no peito, chamando mais a plateia,
pedindo que me ovacionem. A gritaria aumenta a euforia dentro de mim.
Sou consumido pelo sentimento de paz e relaxamento que lutar me
transmite.
Esqueço tudo o que eu sentia, porque aqui eu sou o cara.
Aqui, nada me abala, nada me afeta, não há ninguém que consiga me
atingir.

Estaciono minha bela BMW azul na garagem de casa. Depois de tomar


várias cervejas com Luke, levei meu amigo de volta ao seu apartamento
para cuidar de seus ferimentos e descansar. Não sei como vou desligar
minha mente depois de uma noite dessas. Nem uma boa punheta vai apagar
a adrenalina dentro de mim.
Abro a porta dando risada, feliz da vida. Eu saí daqui uma merda, mas
agora estou flutuando. As pancadas e o álcool fizeram um bem danado para
mim.
— Onde você estava?
A voz feminina que domina meus sonhos ecoa pela sala.
Paraliso, fechando a porta com cuidado, pensando na desculpa que irei
inventar para justificar meu estado. Meu cabelo está suado, os fios pretos
grudados na testa. A roupa está amassada, cheia de gotas de sangue
respingadas na bermuda. O rosto tem alguns cortes que eu pretendia limpar
quando chegasse.
Zoey vai me matar.
Apareço em sua frente, vendo que minha mulher está sentada no sofá,
uma perna cruzada em cima da outra, em uma pose poderosa que é uma
delícia.
Ela está com uma calça escura e justa, uma camiseta que é muito maior
do que seu corpo, e que reconheço como minha. Imagino que a pele negra
esteja cheirosa, porque Zoey é viciada em hidratantes e perfumes. Eu adoro
passar horas beijando cada pedaço de sua pele, reconhecendo todos os
cheiros, me tornando um mestre em seus gostos. Ela é tão bonita, que quase
faz com que eu me arrependa de ter lutado. Eu devia ter ido atrás dela, ter
batido na porta de seu apartamento, tê-la empurrado contra uma parede e a
fodido do jeitinho que ela gosta.
— Senti sua falta, linda. — Não resisto e me aproximo, estendendo
minha mão para que ela a pegue e se junte a mim.
Zoey se levanta, mas ignora meu gesto completamente.
— Você está arrebentado! Estava lutando de novo? — a pergunta soa
como uma faca torcida dentro do meu peito.
Ela sabe que gosto de lutar e reprova o ato. Da última vez que me
flagrou, eu prometi que nunca mais iria, disse a ela que concordava com seu
receio, que realmente era perigoso e arriscado. Mas a verdade é que eu
nunca parei. Não consigo parar. Gosto demais de ser o Mad Jones, de
acabar com qualquer um que tente batalhar contra mim.
— Amor, eu juro que foi só hoje. Fiquei puto com a nossa briga, você
não me atendia, precisei espairecer.
— Está me culpando pelo seu vício suicida? — questiona, cruzando os
braços, os olhos castanhos mortalmente grudados nos meus.
— Jamais, Zoey. Não foi isso que eu quis dizer.
— Eu vim até aqui fazer as pazes com você, mesmo estando certa,
porque não aguentava mais ficar longe. Engoli a raiva que eu sentia pelas
merdas que você disse na frente dos nossos colegas, só porque queria te
ver! E você estava onde? Lutando! — Zoey gesticula, perdendo a paciência,
andando de um lado para o outro, nervosa.
— Zoey, linda... — Tento segurá-la, mas ela recusa meu toque.
— Você não faz questão, né? Não está nem aí para minha dor, para o
quanto me feriu. Fica sempre esperando que eu corra atrás de você para
resolver as coisas, porque eu sou uma trouxa e sempre vou, mesmo com
seus comportamentos tóxicos, com suas falas machistas, com as suas
tentativas de reprimir minhas ideias...
— Eu não faço isso.
— Ah, Nathan, se enxergue! Você quer controlar todo mundo! Quer que
Noah seja do jeito que você quer, que a equipe se comporte da maneira que
você acha correta, que eu seja uma mulher recatada e obediente...
Não aguento mais ouvi-la. Suas palavras são duras e verdadeiras, e
admitir isso, até mesmo para mim, é perturbador. Para calá-la, seguro seu
rosto, trazendo a boca para perto da minha. Silencio Zoey com um beijo
avassalador, enquanto ela bate em meu braço, tentando me obrigar a soltá-
la, mas jamais separando nossos lábios.
A tensão entre nós é grande, sempre nos consome, faz com que os
problemas fiquem em segundo plano, assim como as verdades doloridas
que, por mim, nunca deveriam ser ditas em voz alta.
Zoey relaxa em meus braços, leva os seus para o meu pescoço e me puxa
com força, intensificando nosso beijo, matando as saudades que a fizeram
vir até aqui.
Não acho que essa seja a maneira certa de resolver uma discussão dessas,
mas é a única maneira que conheço. Esse impasse existe entre nós há anos e
nunca conseguimos resolvê-lo. Eu tenho um problema de controle, sei
disso. Mas também não sei se quero mudar, se cavar as dores do meu
passado é uma coisa que estou disposto a fazer.
Prefiro passar a noite dentro da mulher que eu amo, apagando todas as
brigas acaloradas, resolvendo todos os nossos problemas com uma noite
insana de sexo, usando essa energia na cama, como deve ser.
Kyle não queria me deixar ir embora. Ficou pedindo que eu ficasse mais
e mais e eu me distraí com seus beijos, com a expectativa de transarmos de
novo, de mergulhar no prazer que só ele me proporciona.
Extrapolei no horário e dirigi com uma sirene policial ligada no capô do
carro para chegar em casa o mais rápido possível. Mesmo com essa medida
desesperada, Bryan fica bravo comigo. Na verdade, não sei se bravo é a
palavra certa. Ele fica triste, distante e arisco. Me responde com grosseria e
diz que vai dormir, porque já está cansado de tanto me esperar.
Eu me sento para jantar com a cara fechada. Estou sozinha na enorme
mesa que temos na sala, em um lugar onde, anos atrás, toda a minha família
se reunia. Joy zombava de Ethan, os dois se provocavam e riam tanto, que
contagiavam todos nós. Alex ficava brava com o escândalo dos seus irmãos
e eles a incluíam na brincadeira, amolecendo o coração frio da mais velha.
Eu trocava olhares com Bryan, nós dois felizes pela família que
construímos. Por dentro, eu também pensava que esses momentos eram
como uma espécie de presente para mim, para que eu tivesse a ilusão de que
não estraguei a vida das minhas filhas por completo. Ainda havia felicidade.
Ainda havia motivos para sorrir.
Mas agora há somente a solidão. Uma mesa vazia. Uma sala escura. Uma
noite quase completamente silenciosa, se não fosse pela presença de Alex.
— Não precisa se esconder. Se quer me dizer alguma coisa, diga — falo
olhando para frente, mesmo sabendo que ela está atrás de mim.
Seus passos e sua respiração não são tão sorrateiros quanto ela pensa.
Obediente, ela para no lugar mais próximo a mim, permanecendo de pé,
mas segurando na cadeira, como se a madeira fosse ajudá-la a se manter
firme nessa conversa. Em seus olhos, vejo que está irritada e já até sei o
porquê.
— Uma hora ou outra, suas escapadas vão te gerar problemas.
Quase gargalho com sua fala. Ela não faz ideia.
— Eu estava trabalhando, Alex — respondo com cinismo, terminando de
comer e cruzando meus talheres. Aproveito para limpar a boca com o
guardanapo de pano que Bryan faz questão de usar para o jantar. O que
restava do meu batom sai, deixando marcas vermelhas no tecido branco.
— É isso que você diz a si mesma para dormir à noite?
Alex está desconfiada. Não nego que dou motivos para isso, mas ela não
tem noção da complexidade dessa história.
— Você acha que sabe o que está acontecendo, mas não tem dimensão de
nada. — Me levanto da mesa, pegando meu prato para levá-lo até a
cozinha.
Escuto Alex vindo atrás de mim, marchando com uma raiva irritante.
Coloco o prato na pia e ligo a torneira, lavando-o com calma, tentando ver
se meu gelo faz com que ela vá embora.
— Eu tenho, sim — afirma, a voz se esforçando para se manter convicta,
tentando disfarçar a garotinha assustada que mora dentro de si.
Não respondo até que a louça esteja lavada. Depois de enxugar minhas
mãos em um pano de prato, me viro em sua direção, mantendo minha
expressão carregada de frieza.
— Ah é? Então me diga, Alex. Me conte o que está acontecendo — peço,
sem medo do rumo dessa conversa.
Minha filha mais velha não tem coragem de me enfrentar. Vejo na
linguagem do seu corpo, no modo como engole, na forma como suas
pálpebras abrem e fecham. Ela não vai ter culhão para me acusar de nada.
Vai desviar o assunto, como sempre faz.
— O papai sofre com a sua ausência. Ele passou o dia inteiro chateado
porque o aniversário da Joy está chegando, me perguntou onde você estava
diversas vezes, e eu não soube responder. Você demorou tanto, que ele
cansou de esperar seu consolo.
Suas palavras me ferem mais do que se ela cogitasse que estou traindo
seu pai. Todo e qualquer assunto que relaciona Joy e Bryan me abala.
— Vou conversar com ele quando for para o quarto e darei o conforto que
ele precisa. — Mantenho a expressão séria, impedindo que veja o quanto
estou mexida. Com passos lentos e discretos, bem diferentes dos dela, paro
à sua frente, um pouco mais para a sua direita, nossos ombros quase se
encostando. — Não te cobrei por ter revelado a Joy, sem minha autorização,
que Bryan acha que ela morreu. Logo, você não tem direito algum de me
cobrar de alguma coisa. Entendeu? — Deixo a parte fofa e delicada de
nossa conversa para trás. Para despistá-la, escancaro um fato que, com
certeza, a faz se sentir culpada.
Alex não gosta dessa mentira, estava insistindo para que eu contasse a
Joy, mas acabou expondo os fatos porque não aguentou a provocação da
irmã. Odeio constatar isso, mas Alex tem uma mente fraca e cai facilmente
na lábia de qualquer um que seja minimamente manipulador.
E eu e Joy somos muito manipuladoras.
— Sim, mãe. Entendi — responde com a voz baixa, perdendo toda a
confiança que tentava demonstrar segundos atrás.
— Durma bem — desejo, dando um beijo rápido em sua bochecha e
seguindo para as escadas, a caminho do meu quarto.
Quando abro a porta, vejo Bryan deitado de lado, as cobertas cobrindo
todo o seu corpo, deixando apenas parte de seu rosto para fora. Respiro
fundo, adquirindo coragem antes de andar até a cama. Subo no colchão e
vou me arrastando por ele até envolver meus braços nas costas do meu
marido. Deixo um beijo carinhoso em seu rosto e ele abre os olhos, notando
minha presença.
— Você demorou — fala com pesar, mas não se vira na minha direção,
como o habitual.
— As coisas estavam uma loucura no escritório. Não consegui escapar.
— Uso a desculpa mais esfarrapada, a única em que Bryan sempre acredita.
Para ele, sou uma das advogadas mais dedicadas de um escritório que, na
verdade, nem existe.
— Entendo. Quando for assim, me avise. Às vezes, minha cabeça acaba
criando algumas teorias...
— Só me enrolei no trabalho, Bryan. Nem vi a hora passar.
Sinto meu coração bater mais forte, um sinal claro de que estou
mentindo.
— Não fiquei bem hoje. Dia treze está chegando. A Joy faria vinte e
cinco anos. — O choro entalado em sua garganta fica óbvio pelo tom de sua
fala.
Suspiro, abraçando-o com mais força, não só para mostrar que estou aqui
por ele, mas para que ele ache que também preciso de seu conforto.
— Onde quer que ela esteja, tenho certeza de que está feliz. — A frase
clichê soa amarga na minha boca.
Não gosto dessa mentira, ter que lidar com ela é uma merda e me dá um
trabalho que eu poderia evitar, se revelasse a verdade. Seria mais fácil e
menos doloroso para todo mundo. Mas não é uma perspectiva realista.
Bryan finalmente se vira, o rosto ficando próximo ao meu. Ele me puxa
para que eu me aninhe em seus braços. Mesmo a contragosto, eu aceito.
— Já perdi dois filhos, Brenda. Não posso perder você também.
Fico atônita quando o escuto.
Por fora, finjo que está tudo bem e envolvo meus braços em seu pescoço
para abraçá-lo, escondendo minhas feições do seu campo de visão.
Eu odeio quando ele fala desse jeito. Me sinto responsável por cuidar de
seus sentimentos e tenho que reprimir os meus para fazer isso. Esse não é
um problema de hoje, faz anos que estamos no mesmo patamar, mas o
sumiço de Joy e Ethan, seguido pela declaração de morte de ambos, acabou
com ele. E eu entendo, entendo mesmo. Bryan é apegado aos filhos, não faz
ideia do que realmente acontece na minha vida, para ele tudo isso é uma
loucura. Me compadeço com sua dor, mas me sinto presa a ela. Sou refém
de sua tristeza, do peso que coloca em meus ombros. A única forma de me
libertar, seria colocando-o em perigo, coisa que jurei jamais fazer de novo.
Prefiro que ele sofra, mas continue vivendo.
Prefiro não viver o que eu quero e protegê-lo.
Já machuquei pessoas demais nessa vida.
Minha mãe pediu que eu jantasse na casa dela. Depois de um dia pesado
de trabalho, em que passei boa parte das horas com a cara enfiada em uma
tela de computador, tudo o que eu queria era me deitar na minha cama,
fechar os olhos e não conversar com ninguém. Até cheguei a recusar seu
convite, mas ela logo veio com um papo de que eu nunca arrumava tempo
para vê-la fora da agência — o que não é mentira — e eu cedi.
Entrar na casa em que cresci se tornou um martírio há muito tempo. O
lugar que antes era meu refúgio passou a ser meu inferno particular depois
que peguei meus pais trepando na cama que costumavam dividir antes do
divórcio. Antes de brigarem por mim, de tentarem me jogar um contra o
outro, de destruírem minha infância me obrigando a treinar para me tornar
uma agente.
Quando acordei hoje de manhã, jurei para mim mesma que ficaria limpa.
Me mantive firme na missão até ouvir minha mãe dizer que queria
conversar comigo sobre sua relação com meu pai. Os dois estão tentando se
entender, tendo encontros, passando mais tempo juntos, como se fossem
duas pessoas que acabaram de se conhecer, e não um casal que passou por
um divórcio infernal e destruiu o psicológico da filha.
Não consigo ficar feliz por eles. Pode ser horrível da minha parte, mas
queria que os dois ficassem sozinhos para sempre.
Ouvir minha mãe contando sobre aquilo com um brilho nos olhos,
sorridente e carinhosa, mansa como ela nunca é, me deixou perturbada.
Tive que descumprir a promessa que fiz a mim mesma.
Como não tinha nada comigo, recorri a Christian. Ele é meu fornecedor,
quando não tenho tempo de comprar de outra pessoa. Eu não queria vê-lo
hoje. Não quero vê-lo nunca. Mas ele tinha o que eu queria e foi só por isso
que eu fui encontrá-lo. O problema é que nada nessa vida é de graça.
Ele começou a me beijar. Tentei afastá-lo, disse que não estava com
cabeça. Christian não me ouviu. Falou que eu ficaria relaxada enquanto
arrancava minha camiseta. E quando resisti em tirá-la, ele a rasgou com
força, mordeu o lábio com malícia, como se aquilo fosse sexy, e não
perturbadoramente abusivo.
Dei o que ele queria. Entreguei meu corpo em troca de pó.
São onze horas da noite e sinto que o mundo inteiro está contra mim.
Ando na rua desnorteada, tentando esconder a camiseta rasgada com meu
casaco de moletom. Meu corpo dói pela força que Christian implicou, ele
gosta de coisas mais violentas e brutas e não perdoa nem quando eu choro.
Não sei o que estou fazendo da minha vida, mas pouco me importo.
Estou querendo chorar com o pensamento, porém, acabo gargalhando
sozinha. Uma agente secreta, em tese, é forte, invencível, tem condição de
se defender como ninguém. A realidade é diferente. Existem mulheres
como esse estereótipo, mas não me encaixo nele. Sou uma viciada. Uma
mulher frágil que não tem coragem de sair de uma relação ruim, que
procura seu abusador para fugir de sua realidade.
Será que se eu sumisse, alguém se importaria? Alguém sentiria minha
falta?
Noah me vem à mente quando me faço essa pergunta. Ele sempre diz que
sou o amor de sua vida, não de forma platônica, mas no sentido de que
nossas almas se conversam, de que somos um encaixe perfeito. Eu sentiria
falta dele. Morreria de saudades do seu sorriso, das brincadeiras bobas, do
espírito fofoqueiro, de ser usada como desculpa para suas escapadas. Ele
sofreria muito sem mim. Ninguém o conhece como eu, ninguém sabe de
sua verdade, do segredo que carrega dentro de si.
Bem, Joy sabe. Mas ela é instável, complicada, nunca dá para entender o
que realmente quer e a quem é leal. Eu sou leal a Noah. Ele também é leal a
mim e a parceria que temos.
Como ele reagiria se soubesse que você está usando de novo? Isso se ele
já não desconfiar...
Se souber que seduziu o amigo dos seus pais e que se enfiou em um
relacionamento perturbador, o que vai pensar?
O diabinho que mora dentro da minha mente deixa meu coração
apertado.
Se eu perder Noah, o que vai me restar?
Com um raciocínio para lá de incoerente, uso minha digital para abrir a
porta do prédio onde moro. Me atrapalho com o elevador e sinto uma
dificuldade extrema de colocar a chave na fechadura. Quando finalmente
consigo entrar e percebo que Zoey e Joy não estão nas áreas comuns do
apartamento, suspiro de alívio. Apoio as costas na porta quando a fecho,
olhando para os lados mais uma vez só para me certificar de que elas não
estão escondidas, apenas esperando que eu chegue para me flagrar.
Depois de alguns segundos de silêncio, ando devagar até meu quarto,
evitando fazer barulho para não acordá-las. Me jogo na cama assim que
tenho a oportunidade. Na posição que estou, permaneço. Com a barriga
para baixo e a cabeça virada para o lado no travesseiro, não estou tão
confortável, mas não tenho força para me mexer.
Eu só existo. Sobrevivo porque meu corpo continua respirando. Porque
meu coração segue batendo no peito, ainda que eu o sinta cada vez mais
abalado.
— Lucy? Lucy? Lucy? — Ouço meu nome repetidas vezes. Não sei dizer
se estou dormindo, mas sinto mãos sacudindo meu corpo.
Demoro para conseguir abrir os olhos. Nem sequer percebi que estavam
fechados. Quando a luz invade minhas pupilas, noto que Zoey está à minha
frente, o semblante assustado.
— Sua doida, achei que tinha morrido! — Leva as duas mãos até a
cabeça, desesperada por sei lá qual motivo.
— Só porque eu deitei na cama?
— Você mal respirava, Lucy. — Zoey cruza os braços, afastada. Eu sei
no que está pensando. Que eu não morri hoje, mas posso morrer se
continuar com essas merdas. Imagino que sinta medo por mim, que se
apavore com a ideia de me encontrar morta.
Seria tão pavoroso assim?
— O que você quer? — pergunto, irritada, me sentando na cama e
colocando as pernas para fora.
— Por que suas roupas estão desse jeito? — Zoey não me responde. Pelo
contrário, me lança uma pergunta que eu não quero responder.
Puxo meu moletom para me cobrir, envergonhada pela percepção dela.
— Não é da sua conta.
— Não é da minha conta? — Zoey rebate como se isso fosse um absurdo.
Sua postura irritada se transforma em uma mais calma quando percebe que
estou encolhida, querendo a todo custo ser absorvida pelo colchão para não
ter que enfrentar essa conversa. — Lucy, o que está acontecendo? O que
quer que seja, você pode me contar.
Ela está me dando abertura. Oferecendo ajuda. Zoey é uma pessoa em
que confio, uma pessoa que amo e que considero uma das minhas melhores
amigas.
Chego a abrir a boca, mas nada sai. Fui óbvia com Joy para que ela
tentasse descobrir as coisas por conta própria, porque não consigo pedir
ajuda, não consigo contar o que está acontecendo, não com a seriedade que
o assunto merece. Espero que ela tenha ficado desconfiada o suficiente para
tentar me desvendar, caso contrário nunca sairei dessa. Não consigo falar
sobre isso em voz alta. Simplesmente não sai.
— Nada, Z. Eu só tive um dia difícil, saí com um cara de um aplicativo
para relaxar e as coisas ficaram loucas, sabe como é. — Abro um sorriso
fingido, carregado de malícia.
— Ah, adoro! — Zoey bate palminhas, a preocupação se esvaindo de seu
rosto. Fico impressionada com a facilidade na qual cai na minha mentira.
Ou pelo menos finge cair. — E se não fosse tão tarde, eu iria querer saber
todos os detalhes sórdidos! Mas vim aqui porque temos um assunto
importante para conversar.
— Qual? — Ergo uma das sobrancelhas, curiosa, me sentindo uma merda
agora que o efeito do pó diminuiu.
— O aniversário da Joy está chegando. Luke quer planejar uma festinha!
— Ele é um rendido. — Reviro os olhos. Esse cu doce de Luke está com
os dias contados.
— Ele é! E nós vamos ajudar a planejar tudo e enfim esses dois vão se
render a essa faísca irritante!
Dou risada, concordando com tudo. A tensão de Luke e Joy está nos
enlouquecendo.
Zoey se senta ao meu lado na cama e conversamos sobre todos os
detalhes da festa que Luke quer planejar. Por alguns minutos, esqueço da
minha realidade fodida, do vício, da ameaça, do relacionamento com
Christian. Me concentro nas minhas amizades, em coisas verdadeiras que
me fazem sentir que a vida vale a pena. Passo a imaginar que Zoey e Joy
também sentiriam minha falta, caso eu me fosse. Nate e Luke
provavelmente também. Meus pais, ainda que nossa relação seja péssima.
Sou importante para eles. Sou importante para o mundo, ainda que eu não
me sinta assim diversas vezes.
Preciso me agarrar a isso e acreditar que Joy vai dar um jeito de
desvendar pelo menos parte do que está acontecendo comigo antes que seja
tarde demais.
Não é segredo para ninguém que amo missões. Essa, em particular, me
chamou atenção desde o princípio por se parecer com o trabalho que eu
fazia em meu tempo fora. Me disfarçar e seduzir homens para obter o que
eu quero. Saber que estou prestes a assumir esse papel faz uma euforia
tomar conta de mim. A adrenalina pela missão me anima, mas não é só isso
que me deixa excitada.
Luke está me encarando enquanto me arrumo para a noite de trabalho no
Clube Nix. Nossa equipe alugou quartos em um motel próximo ao clube
para que pudéssemos nos arrumar. Buscamos as vestimentas agora há pouco
e cada dupla de parceiros foi para um quarto.
Nate e Zoey estão estranhos um com o outro, mas seguiram juntos sem
reclamar, com certeza vão resolver qualquer desavença que tiverem com
uma rapidinha. Noah e Lucy são sempre grudados, então também pouco se
importaram.
Imaginei que Luke fosse relutar em dividir o espaço comigo, mas não foi
o caso. Ele se trocou no banheiro e se transformou no bad boy gostoso que
eu sempre tive certeza de que poderia se tornar. A calça preta é larga e há
algumas correntes prateadas presas em seu cinto. A camiseta branca é
simples e justa, levando minha imaginação para longe, imaginando como
ela grudaria em seus gominhos se ele ficasse molhado. A jaqueta de couro
foi adicionada para acabar comigo, e o cabelo castanho bagunçadinho para
fazer minha mente trabalhar mais um pouco. Eu poderia deixar seus fios
desordenados desse jeito, se eu os agarrasse enquanto me chupa.
Desde que voltei à agência, não transei com ninguém. Meus dedos são
uma ótima companhia e me satisfazem quando eu preciso, mas nada se
compara ao calor humano, a um pau grande e grosso encontrando espaço
dentro de você, a outra pessoa lambendo e chupando seu clitóris.
— Por que você está parada? — Luke questiona e eu volto a realidade.
Estou na frente do espelho, terminando de fechar o corpete que preciso
vestir. Além dele, estou usando um shorts curto, que poderia ser
considerado uma calcinha em muitos países, de tão enfiado no meu cu.
Pela minha expressão, Luke deve ter entendido que estou pensando em
sexo. Seu sorrisinho lateral malicioso não mente. Ele está sentado em uma
poltrona, eu praticamente sem roupa à sua frente. Se ficássemos mais dez
minutos aqui, com certeza acabaríamos trepando.
Não dá para resistir a uma transa quando você sabe que ela é boa.
Solto meus cabelos para finalizar o look. Tentei fazer cachos nas pontas e
mantive os fios presos para tentar fazer o penteado durar por algum tempo.
Tenho certeza de que em breve estará liso de novo, mas, nesse momento,
contemplo minha beleza. Me assusto com a plenitude da minha feição, com
o sorriso que consigo esboçar para mim mesma.
Foram quatro anos de fuga que, no fundo, eram de culpa. Eu não me
permitia ser feliz porque não achava que merecia. Ainda não acho
totalmente, mas sinto que as peças voltaram a se encaixar, que eu voltei
para o lugar ao qual pertenço. Mesmo que eu tenha adorado conviver com
minha segunda equipe e os considere amigos para uma vida toda, a agência
é a minha casa. Demorei para voltar para esse patamar, estive relutante em
retornar por muito tempo. Mas agora percebo que a vida que eu levava já
não fazia mais sentido.
— É raro que eu pare e me olhe. Estava me contemplando um pouco —
respondo, me virando para sorrir para ele.
Luke retribui, a expressão serena se distinguindo do seu visual.
— Você está linda.
— Gostou? — Dou uma voltinha, parando de costas para ele e olhando
em sua direção por cima do ombro, só para que veja o tamanho da minha
bunda.
Aposto um milhão de dólares que seu pau deu algum sinal de vida.
Luke não responde. Ele se levanta, pega o robe de cetim preto que eu
trouxe para não passar tanto frio ao sair do motel, e para atrás de mim.
Percebo o que ele quer fazer e solto meus braços, deixando que me guie.
Devagar, Luke coloca meu braço esquerdo na manga do robe. Eu o ajudo,
movendo meu corpo quando ele precisa que eu mova, entendendo seus
gestos, antecipando qual será seu próximo movimento. Quando vai cobrir
meu braço direito, raspa os dedos em minha pele enquanto sobe o robe,
causando um arrepio em todo o meu corpo. Suas duas mãos ajeitam o cetim
nos meus ombros, amplificando a sensação de excitação que eu já estava
sentindo.
Para me deixar ainda mais sedenta, Luke vai descendo as mãos por cada
um dos meus braços, as palmas escorregando pelo cetim, as pontas dos
dedos me tocando, deixando sua marca em cada pedacinho da minha pele.
Suas mãos ficam próximas das minhas, mas ele nunca me toca.
Nós nos encaramos pelo espelho, ambos sabendo que a linha tênue entre
o amor e o rancor está mais entrelaçada do que nunca. Estamos na beira do
precipício, cansados de reprimir as emoções, de frear a tensão sexual
absurda que nos consome toda maldita vez que estamos no mesmo
ambiente.
— Promete que vai se cuidar?
— Você se importa? — devolvo, os olhos ainda fixados nos seus através
do nosso reflexo.
— Sempre vou me importar. — Sua mão desce mais um pouco, os dedos
chegando a tocar minhas palmas, nossas peles finalmente tendo o contato
que tanto suplicaram.
Minha respiração está encurtada. O corpo responde a essa mera conexão,
implorando por mais. Luke percebe, consegue me ler como ninguém, mas
decide não avançar. Devagar, ele afasta nossas mãos, quebrando o contato,
se agarrando ao último fio do seu autocontrole.
Na penumbra do quarto, não deixo de reparar nas cicatrizes que adornam
seu rosto. O olho está definitivamente maquiado, cobrindo um hematoma.
Há cicatrizes antigas, outras novas, chuto que adquiridas nos últimos dias.
As mãos estão com os nós machucados, como já vi outras vezes.
— Onde conseguiu os machucados?
Apesar de ter se afastado, Luke ainda está perto o suficiente para que eu
sinta sua respiração alterar o ritmo.
— Missões. — A resposta vaga é nitidamente mentirosa. Luke esconde
algo, assim como todas as pessoas à minha volta.
— Voltamos a ter segredos?
— Nunca paramos.
Ele não está errado. Também escondo muitas coisas. Não revelei o que de
fato aconteceu nos últimos anos, não compartilhei detalhes sobre a vida
sombria que levei e nem pretendo. Pelo jeito, Luke também não pretende
me contar o que anda aprontando em suas horas vagas.
— Se precisar de mim, estarei por perto — fala, dando mais alguns
passos para trás, o rosto aos poucos se distanciando do meu no espelho.
Fecho meu robe, respiro fundo e deixo esse momento sensual e
misterioso para trás.
Tenho uma missão a cumprir.

Já frequentei diversos clubes de strip e consigo afirmar que o Clube Nix é


diferenciado. O público é estritamente selecionado. Dá para perceber pelos
carros em que chegam, pelos relógios caros em seus pulsos e pelos preços
do cardápio.
O ambiente é separado em pequenos quadrados abertos, onde há sempre
uma mulher dançando em um palco central, bancos de couro formando o
quadrado e pequenas mesas onde os clientes podem apoiar suas bebidas.
David conseguiu que o dono do lugar designasse Zoey e eu para o
mesmo ambiente. Ela preferiu ficar no palco, performando no pole dance,
enquanto eu faço o serviço de garçonete e escuto as conversas de Richard
O’Conell. Ele chegou meia hora atrás e nós duas nos posicionamos, sendo
cordiais, sorridentes e sedutoras para deixá-lo confortável.
O Chefe do Gabinete da Casa Branca passou o tempo todo bebericando
seu whisky, apenas observando Zoey e pedindo que eu enchesse seu copo
quando a bebida acabava. Minha amiga está maravilhosa dançando, eu
mesma estou babando em seu corpo definido, nas mágicas que faz no pole,
na leveza com que se move pelo palco circular.
— Se você gostar, podemos fazer uma festinha a três. — Me abaixo para
sussurrar no ouvido de O’Conell, a voz tremulando em malícia, carregada
de um teor sexual que faria qualquer cliente babaca querer partir para uma
sala privada imediatamente.
Mas é claro que nossa missão não pode ser simples.
— Estou esperando um amigo — ele responde sem olhar para mim e
toma mais um gole do seu whisky.
— Essa doeu — Noah fala através do comunicador.
Ele e Lucy estão dentro de uma van, estacionada a alguns metros de
distância da entrada do clube, escutando tudo o que falamos. Não só eles,
como Luke e Nate, que também usam comunicadores. Os dois estão
sentados em uma mesa perto da nossa, nos encarando mais do que deviam.
Aproveito que O’Conell está distraído para fitar Luke com braveza,
apontando levemente a cabeça para Nathan. A cara do namorado de Zoey
está fechada, ele não consegue parar de encará-la, com certeza morrendo
por dentro por ver a namorada dançar dessa forma para outro homem. Eu
não queria que Nate entrasse no clube. Por mim, ele devia ter ficado na van,
mas o idiota é orgulhoso e quis vir a todo custo. Meu olhar deixa bem claro
para Luke que, se não controlar seu amigo, vou torturar ambos com minhas
próprias mãos. Nate não pode colocar a missão em risco por causa de seus
ciúmes.
Luke assente devagar, mostrando que entendeu o recado. Volto a olhar
para o quadrado onde estou, percebendo que Richard não está mais
encarando Zoey. Ele agora está focado em um homem que caminha na
nossa direção.
— Paul. — Cumprimenta quando ele se aproxima, mas não se move para
tocá-lo. A recepção seca deixa nítido que não são amigos. O tal Paul está
aqui unicamente para falar sobre negócios.
— Richard, meu caro! Como vai? — Ele é mais receptivo, é provável
que esteja no controle ou que tenha feito algo que O’Conell não gostou.
Troco um breve olhar com Zoey, imagino que minha amiga esteja
notando as mesmas coisas que eu.
— Essas duas eu nunca vi. Que delícia. — O convidado de Richard
comenta, me chamando com seu dedo indicador. Eu paro ao seu lado e ele,
por ter acabado de se sentar, fica com o rosto na direção das minhas pernas.
Uma de suas mãos vai direto para minha coxa e ele acaricia minha pele,
apertando a carne e finalizando com um leve tapa na minha bunda. —
Gostosa, me traga um whisky. — Pisca para mim, um sorriso nojento aberto
nos lábios agora que se certificou de que sou do seu agrado.
— Claro — respondo com educação, mantendo a expressão sedutora,
ainda que por dentro, eu queira levá-lo para o Navio.
Me afasto devagar, desfilando até a garrafa, empinando a bunda quando
me abaixo, entendendo que Paul será um alvo mais fácil. Preciso me manter
próxima aos dois para entender o que vieram conversar.
— Se esse cara tocar em você de novo, eu... — Luke fala pelo
comunicador e paraliso, incrédula com o que estou ouvindo. Toda a equipe
está compartilhando a mesma linha. Ele está mesmo dando uma de Nate?
— Vai continuar quieto no seu lugar ou vai se retirar do clube. —
Aproveito que estou de costas para respondê-lo. Quando me viro, percebo
que está se contorcendo no banco, o rosto vermelho de raiva, permanecendo
sentado porque sabe que arranjará uma briga comigo se me atrapalhar.
Luke está com ciúmes. Inacreditável.
Levo o copo de vidro a Paul, mas, antes de entregá-lo, tomo um gole e
deixo meu batom marcado no copo. Ele ri com a atitude, encantado,
totalmente entregue a mim.
— Adorável, meu anjo — diz, pegando o copo e erguendo-o na minha
direção em agradecimento.
Dou alguns passos para trás, mas permaneço na visão dos dois, me
afastando o suficiente para deixar que apreciem o show de Zoey.
— Consegui o reconhecimento facial — Lucy avisa. É bom saber que,
apesar de seus óbvios problemas, minha amiga ainda é capaz de entender
meus sinais e agir em prol da missão. — Paul Huskey é procurado por
sequestro e tráfico humano.
— Bem conveniente — sussurro, ainda mais interessada no encontro que
se desenrola à minha frente.
Richard veio sem seus agentes do Serviço Secreto, mas está com dois
seguranças particulares, provavelmente seus confidentes na parte obscura
de sua vida. Os homens sequer hesitaram perto de Paul, até mesmo o
cumprimentaram, o que me leva a crer que a relação dos dois não é nova.
— Essa outra garota também é maravilhosa. Escolheu bem, Richard —
Paul comenta, assistindo Zoey com um olhar perturbador.
Não vou me dar ao trabalho de olhar para Nathan. Espero que ele e Luke
estejam se controlando.
— Vocês passaram dos limites — O’Conell fala, largando seu copo de
whisky com força na mesa ao seu lado. Gotas da bebida se espalham,
tamanha a brutalidade. — Sequestrar o filho do Woody! O que estavam
pensando?
A irritação de Richard chama minha atenção. Será que ele não sabia? O
Vice-Presidente disse que não tinha uma boa relação com o Chefe de
Gabinete, mas é bom saber que ainda resta uma humanidade nele e que se
sente mal pelo sequestro do garoto.
— Não íamos fazer nada. Só precisávamos passar a mensagem — Paul
responde, incomodado com a contestação de Richard.
— Qual?
Paul bufa, se virando para o comparsa, o semblante carregado de
irritação. Eles definitivamente não são amigos.
— Nós estamos nos fortalecendo.
Olho para Zoey, que está ouvindo o mesmo que eu. Os Serpentes
estavam certos.
— Se fortaleçam de uma forma que não me entregue. Woody não gosta
de mim e chegou a me perguntar se eu tinha armado contra ele.
— Não é culpa minha se você dá motivos para o cara desconfiar de você.
— Esse “cara” — faz aspas com as mãos — é o Vice-Presidente desse
país. Quer mesmo brigar com um peixe grande como ele?
— Eu não quero nada, Richard. É a Coruja que manda.
O nome faz com que eu sinta um arrepio estranho no corpo. Não é a
primeira vez que escuto esse nome, mas é a primeira vez que ouço alguém
se referir ao chefe como uma mulher.
— Então passe a ela o recado. Se continuar incomodando pessoas
poderosas, vai ser derrubada — Richard rebate e eu me aproximo dos dois
para abastecer seu copo, querendo analisar cada detalhe de suas expressões.
— Você não está em posição de exigir nada. Se quer que seu segredo
permaneça intacto, vai continuar fazendo o que mandamos de boca fechada.
— A ameaça de Paul deixa Richard atônito e calado. Ele não está nessa
porque quer, e sim porque está sendo coagido. Esse caso só fica mais e mais
intrigante. — Agora, vamos para uma sala privada. Temos um assunto
importante a tratar e quero ver essas duas sem roupa. — Paul aponta para
mim e Zoey, se levanta, pega seu copo e vem na minha direção.
O contato de David diz que eles podiam nos tocar apenas se
permitíssemos. Já vi que para Paul o contato é importante, então engato
meu braço no seu para irmos juntos até a sala privada. Zoey se mantém
mais distante de Richard, não só porque ele está emburrado, mas porque ela
não está confortável. Minha amiga disfarça bem, quem não a conhece até
compra seu disfarce, porém, eu sei que ela está pensando na quantidade de
mulheres que trabalham aqui e não tem capacidade de se defenderem, no
caso de um ataque. Zoey pode ser ótima em disfarces, mas não é uma
mestra em usar seu corpo, como eu.
Para mim, estar em um ambiente como esse, agindo dessa forma, é banal.
Não me importo, porque estou aqui por um motivo e vou até o fim para
obter a informação que preciso.
— Vai dançar para mim, gostosa? — Paul sussurra enquanto caminhamos
e claramente não tem respeito algum à regra de não tocar as garotas, porque
leva a mão para minha bunda de novo.
Deixo que ele aperte a carne mais uma vez antes de puxar seu braço para
longe de mim.
— Só me toque quando eu permitir, ok? — digo com uma voz sedutora,
me fazendo de difícil de um jeito que homens imbecis como ele adoram.
Paul ergue as mãos, se rendendo e abre a porta da sala privada para mim.
Quando olho para trás, vejo que Zoey não está mais com Richard.
— Cadê a outra? Eu a queria também — Paul reclama.
— Mandei procurar um cliente que esteja com cabeça para dar a atenção
que ela merece. — Richard fecha a porta da sala e vai para o sofá, mal-
humorado.
— Você fica bem sozinha? — Luke pergunta, preocupado, mas não tenho
como respondê-lo. — Diga “treze” se quiser que eu a resgate.
Fico em silêncio e agradeço mentalmente a retaguarda. Estou em uma
sala privada, mesmo o lugar sendo monitorado, os homens que aqui entram
têm liberdade de fazerem todo o tipo de coisa. Sei me cuidar, mas é bom
saber que existe alguém zelando por mim.
Paul e Richard sentam lado a lado, mantendo uma distância considerável.
Há outra garrafa de whisky nessa sala à disposição dos clientes, então
aproveito o momento para servi-los.
— Por que me chamou aqui? — Richard questiona, impaciente.
— Calma. Não seja tão apressado. — Paul agradece o copo que lhe
entrego, Richard mal olha para mim. — Meu amor, dance para nós. E se
quiser, vá tirando a roupa. No seu tempo, quantas peças quiser. Sinta-se à
vontade.
Sorrio sensualmente e paro no centro da sala, me preparando para uma
performance inesquecível. Enquanto rebolo, toco meu corpo e entro no
ritmo da música, mantenho meu ouvido atento aos dois.
— Paul. Preciso voltar para casa — Richard insiste e eu estranho seu
comentário.
Ele não ligou para mim ou para Zoey, não se insinuou para cima de nós
ou tentou nos tocar. Um homem fiel a esposa? Raridade.
Mantenho meu olhar no de Paul, ameaçando tirar meu corpete, mas logo
recuando, deixando-o com ainda mais vontade. Acabei colocando uma
peruca com fios pretos antes de entrar no clube, seguindo um pedido de
Lucy, para evitar que nos reconhecessem com facilidade, e é com ela que
brinco durante a dança.
Paul suspira, se preparando para começar a falar, chateado pela pressa de
Richard.
— Preciso que me arranje dois convites para o baile anual da Casa
Branca. — Faz o pedido, ainda sorrindo para mim, encantado com minha
beleza.
— Sem chance — Richard recusa de imediato, mas com apenas um
olhar, Paul o cala. O que quer que ele tenha contra o Chefe do Gabinete, é
grande o suficiente para fazê-lo abaixar a cabeça. — Qual o plano?
Paul tamborila os dedos nas coxas, olhando para Richard com repulsa.
Percebo que seu pau está duro e que ele acha que seu comparsa está
atrapalhando seu momento de prazer.
— Você não é confiável, Richard. Não estou autorizado a compartilhar
nada.
— Não posso ser responsável por causar uma crise nacional.
— Em prol da nossa relação de longa data, aceite as condições que estou
te dando. É melhor que não saiba de nada e obedeça aos comandos da
Coruja. Você sabe do que ela é capaz.
Relação de longa data. Eles já se conheciam antes da Tempestade
Noturna surgir?
Paul é somente um pau mandado, mas talvez não esteja sendo ameaçado,
como Richard.
A Coruja é uma mulher. Pelo tom de Paul e pelo recuo de Richard,
imagino que seja cruel, daquelas que te destrói, se acha que você está
remando em uma direção diferente da dela.
Assim como Brenda.
Viro de costas para os dois, ouvindo quando Richard concorda e passa os
dados do baile para Paul. Sussurro “treze” no comunicador, dando a missão
como concluída. Em poucos minutos, Luke aparece na sala, alegando que é
um dos gerentes e precisa de mim para uma emergência. Eu me despeço de
Paul e Richard com um aceno sarcástico, carregado de sensualidade e
maldade.
Antes que eu possa sair da sala, no último segundo que me separa da
porta, noto algo diferente no rosto de Paul. Ele espreme os olhos na minha
direção, escaneia meu rosto com lentidão, quase como se estivesse me
reconhecendo.
Meu coração dispara no peito, assustada com sua reação, preocupada que
sua ligação ao submundo se entrelace com a minha.
Espero que minha impressão esteja errada e que ele não me conheça,
caso contrário, posso ter colocado todo o trabalho dos Serpentes a perder.
Escolhemos a mesa mais ao fundo do Black Sea para comemorar o
sucesso da missão. Voltamos de Alexandria de helicóptero, passamos em
nossas respectivas casas para trocar de roupa e viemos direto para o bar. A
equipe inteira está agitada pela adrenalina da noite, falando sem parar,
empolgados pelos bons resultados que tivemos.
— O Big Six que se cuide, porque nós estamos arrebentando! — Noah
diz, já levemente embriagado depois de três rodadas de shots
comemorativos de tequila.
— Só estamos nessa missão por causa deles — fala Zoey, a maior fã do
Big Six.
— É uma honra ter agentes tão importantes depositando a confiança na
nossa equipe. Podemos ser tão poderosos quanto eles algum dia —
acrescenta Nate.
— Seremos mais — Joy corrige e sua ambição faz Noah, Lucy e Zoey
soltarem gritinhos comemorativos.
Nathan bebe sua cerveja, encarando sua obstinação como uma afronta.
Contudo, ele não diz nada porque, na missão de hoje, Joy brilhou.
Posso ter me contorcido no banco enquanto via outro homem tocá-la,
mas isso não apaga seu bom trabalho. Ela fez o que muitos de nós não
temos coragem e frieza suficiente para fazer. Joy tem uma capacidade
indescritível de se focar no que precisa descobrir, anulando o mundo à sua
volta para atingir seu objetivo. É uma qualidade um tanto perturbadora, mas
ainda assim, admirável.
— Sabe o que falta na nossa equipe? O que precisamos para chegar no
patamar do Big Six? — Joy levanta a pauta outra vez, a feição séria,
distante da postura brincalhona do resto de nós. — Confiar no talento do
outro. Deixar as relações pessoais de fora das missões. Entender que isso é
um trabalho, não a realidade — ela fala as primeiras frases olhando para
Nate, contudo, na última, transfere seu olhar para mim.
Era questão de tempo até que citasse minha breve crise durante a missão.
Me arrependo de ter atrapalhado, mas não consegui me controlar. Eu me
importo com ela. Odeio que um homem que não seja eu a toque,
independentemente do cenário.
— Espera, deixa eu ver se entendi. — Nate ergue o dedo indicador
rapidamente, teatral. — Se preocupar é um defeito? Zelar por vocês é um
defeito?
— Não é apenas uma preocupação e todos nós sabemos disso — ela
rebate, trazendo à tona um assunto que eu jurava que estava encerrado. Não
sei por que fui tão inocente.
— É uma tentativa de controle — Zoey completa o raciocínio da amiga,
focando no namorado, que exala raiva em cada parte de seu corpo.
— Brenda já deixou claro que essas atitudes não passarão. Não
precisamos discutir sobre o assunto — Lucy fala e vejo em seus olhos o
desespero de transformarem um momento de comemoração em mais uma
discussão.
— Você pode estar incomodada, mas essa atitude demonstra cuidado —
Nate direciona suas palavras a Zoey.
Agora, ela parece tão brava quanto ele.
— Disfarce sua possessividade da forma que quiser — Joy se intromete,
jogando mais lenha na fogueira.
Zoey e Nate se encaram com ferocidade, tendo mais um momento de
tensão, divididos entre se matarem ou transarem.
— E eu achando que teríamos uma noite de paz — comenta Noah,
desolado. Ele e Lucy brindam, bebendo suas cervejas enquanto se afundam
nas cadeiras do bar.
— Enquanto Nate liderar, não haverá paz — Joy provoca mais uma vez.
— Enquanto você fizer parte dessa equipe e incitar o caos, não haverá
paz mesmo! — Nate rebate com mais irritação, perdendo um pouco a
classe, perdendo para a plenitude de Joy.
— Vou ao banheiro — Zoey anuncia, arrastando sua cadeira com força
para trás. A repressão de Nate no dia da reunião dos Serpentes ainda é um
assunto que a incomoda, e os olhares que ele lançou a ela durante a missão
devem ter apenas piorado a situação. Eu não duvido que, sem a freada de
Joy, nós dois teríamos nos levantado e acabado com a raça daquele Paul.
Meu amigo encara Joy durante alguns segundos, como se dissesse “está
vendo o que você fez?”. Quando termina o momento de afronta, se levanta
e vai atrás de Zoey, batendo na porta do banheiro onde ela entrou.
— Será que vão quebrar a pia, a privada ou derrubar a porta? — Noah
indaga, arrancando uma risadinha de Lucy.
Não seria a primeira vez para nenhuma das alternativas.
Noah e Lucy relembram esses momentos entre si. Alheio a conversa
íntima dos dois, mudo meu foco para minha parceira. Não entendi por que
ela está com essa cara, sendo que a missão foi um sucesso.
Depois de minutos a encarando, Joy me fita de volta. Sustentamos o
olhar um no outro por mais tempo do que deveríamos. Piscamos pouco, nos
mantemos longe de qualquer conversa que aconteça no bar, focamos apenas
na batalha que travamos.
— Tá, chegou a hora de me mandar — Noah anuncia alto, dando uma
última golada para matar sua cerveja, deixando a caneca de vidro na mesa.
— Carona? — pergunta a parceira.
— Sim, por favor. — Lucy se levanta atrás dele, os dois mal nos
cumprimentam, compreendendo que estamos em um jogo só nosso.
— Comece a falar, Saroyan. — Dou abertura, abrindo os braços para ela,
mostrando que quero ouvi-la.
Joy encosta na cadeira, a postura firme, a fisionomia fechada, o coração
com certeza retumbando para fora do peito, tamanha a irritação que a
consome.
— Você me perdoou? — Estranho a pergunta, mas nem tenho tempo de
responder, porque ela logo acrescenta: — Porque uma pessoa rancorosa não
sente ciúme da outra.
Dou uma risada irônica quando a escuto. Joy tem um jeito peculiar de
expor seu raciocínio.
— Não foi ciúmes.
— Foi preocupação, assim como a do seu amigo? — devolve, rápida e
arisca.
— Eu não sou louco de dizer o que você pode ou não fazer. Só não gostei
de ver aquele nojento tocando em você.
— Queria estar no lugar dele?
— Não foi isso que eu disse.
— Admitir é difícil assim?
Me incomodo com seu discurso diretivo. Joy está me encurralando. Por
trás dos olhos irritados, vejo que carrega malícia. Engulo em seco, dividido
entre a razão e o tesão, como sempre estou quando fico frente a frente com
ela.
Meu inferno pessoal. Minha garota.
— É difícil pra cacete, Saroyan — confesso, os dedos das minhas mãos
se fechando, tamanho o controle que tenho que manter. — Foi uma tortura
assistir você com aqueles velhos do caralho. Eu queria matá-los por
ousarem tentar te tocar, por te olharem daquele jeito.
— Eles podem olhar, mas nunca vão me ter.
— Não quero que olhem.
— A escolha não é sua. E se não fizer nada a respeito disso — aponta
para nós dois —, também não vai me ter.
— Quem disse que eu te quero? — rebato, exausto desse joguinho,
prestes a jogar tudo para os ares.
— Suas atitudes. Seu corpo. Seus olhos. Os olhos não mentem, Luke. —
Joy segue estática, perfeitamente confortável em sua posição manipuladora.
Ela destrói meu autocontrole. Pega em suas mãos, esmaga e ainda pisa
em cima. Eu me lembro do nosso beijo, da discussão que tivemos antes de
nos entregarmos, tão parecida com essa. Seu gosto ainda parece estar na
minha língua. Nunca me esqueço do sabor de Joy Saroyan. Estou
completamente envenenado por ela mais uma vez.
Em um movimento abrupto, me levanto e empurro a cadeira para trás.
Fitando Joy, viro de costas e saio do bar, marchando pela rua escura,
sabendo que é questão de tempo até que ela venha atrás de mim.
Eu sei o que Joy quer. Sexo. Tenho segundos para decidir se vou ceder ou
se sigo firme no jogo. Ela não vai querer nada sério, e eu não sei se consigo
apenas trepar com ela e deixar os sentimentos de lado. Nós temos uma
história.
— Luke! Que porra é essa? — Joy aparece atrás de mim gritando.
Ela deve estar achando que não vai conseguir o que quer. O certo seria
negar e continuar lutando contra essa atração fatal que só tenho com ela. Eu
poderia controlar meu tesão, mas estou farto de não fazer o que quero.
Paro de andar e me viro em sua direção. Penso em abandonar o rancor e
o ódio que ainda residem dentro de mim, porém, decido agarrá-los.
Analiso seu corpo de cima a baixo, penso no quanto a odeio e a amo. O
quanto ela é gostosa, dona de pernas torneadas, peitos pequenos e uma boca
apaixonante. Joy está ainda mais linda essa noite, brilhando depois de ter
concluído a missão.
Com o olhar travado no dela, eu anuncio o que estou prestes a fazer. Ela
abre um sorriso vitorioso, carregado da malícia enraizada dentro dela. Meu
pau já dá sinais de vida só pela expectativa do que está prestes a acontecer.
Estamos na calçada do restaurante, mas estou pouco me fodendo. Com
passos largos em sua direção, agarro sua cintura e a puxo para mim. Joy já
estava esperando pela atitude e se solta em meus braços, deixando que eu a
possua.
— Você é minha — afirmo, levando uma das mãos até os fios soltos de
seu cabelo, colocando-os atrás de sua orelha.
— Sou? — provoca, mordendo o lábio inferior de leve, o olhar safado
acabando comigo.
— Você é minha, Saroyan — afirmo outra vez, convicto do que estou
dizendo. — Sempre foi e sempre será minha.
Ela ainda está sorrindo quando a beijo. Diferente do nosso primeiro,
agora não estou apenas com saudades. Estou necessitado do seu calor, de
sentir sua língua contra a minha, de mergulhar em sua garganta e em cada
parte de seu corpo. Joy parece sentir o mesmo, porque se agarra a mim com
força, as unhas raspando em minhas costas, só não deixando marcas porque
estou de camiseta.
Levo uma das mãos para sua bunda, exatamente onde aquele nojento a
tocou. Aperto com a força que ela gosta, levantando-a levemente do chão,
seu quadril entrando em uma fricção alucinante com o meu.
Preciso fodê-la. Meu apartamento é perto, mas não tanto, e o dela tem
Lucy. Tento pensar em uma solução, entretanto, enquanto estou pensando,
Joy está me empurrando para o beco mais próximo. É tarde da noite e não
há quase ninguém na rua. Mesmo assim, é estranho e proibido transar na
rua. Não que ela esteja se importando. Não que eu tenha autocontrole
suficiente para levá-la a outro lugar.
— Vai hesitar agora? — Joy pergunta, apoiando as costas na parede, os
seios arqueados na minha direção, a cara de safada destruindo todas as
respostas negativas que eu poderia dar.
Ela quer me zombar, sabe que o Luke de antes não gostava de coisas tão
erradas e sujas. Mas o Luke de agora a fará lembrar de seu pau até amanhã.
Não respondo com palavras, não preciso delas quando tenho fogo
crescendo dentro de mim.
Ando até Joy com passos largos e firmes, levando suas duas mãos acima
de sua cabeça, prendendo-a. Reivindico seus lábios, assim como vou
reivindicar seu corpo inteiro daqui a pouco.
Já beijei muitas mulheres, mas nenhuma tem um beijo como o dela. O
encaixe não é o mesmo, a sincronia não é a mesma. Temos uma conexão
diferente, uma ligação que não dá para ser explicada.
Levo meus lábios ao seu rosto, beijando seu queixo, sua bochecha,
atingindo suas orelhas e dando uma mordidinha no lábio inferior que a faz
gemer e tentar escapar do meu controle. Não deixo e a mantenho em
minhas rédeas, obedecendo meu comando.
Distribuo beijos em seu pescoço, sentindo-a se arrepiar, o corpo se
arqueando, implorando por mais. Deixo um chupão como lembrança,
querendo que ela esteja marcada por mim, para que todo mundo veja que é
minha. Volto a dar atenção para seus lábios e solto suas mãos para prendê-la
pelos seus seios. Seguro-a contra a parede pelos dois. São pequenos, mas
preenchem minhas mãos e, se bem me lembro, tem os mamilos rosados
mais lindos que eu já vi.
— Tenho um pedido — sussurro contra sua boca, nossas respirações
ofegantes se misturando.
— É indecente?
— Rasgar sua calcinha é indecente para você? — A provocação faz Joy
me lançar um olhar impressionado.
— Não. É certo.
Seguro seu queixo para beijá-la, não me canso dos seus lábios, dos
nossos gostos se misturando. Estou louco para chupar sua bocetinha, para
fazê-la gozar inúmeras vezes em uma mesma noite, para fodê-la em todas
as posições e em todos os lugares que já fantasiei. Mas não há tempo,
privacidade ou controle para isso. Essa noite, só preciso estar dentro dela.
Joy está tão desesperada quanto eu, porque uma de suas mãos acaricia
meu pau por cima da calça. Solto um gemido contra seus lábios, perturbado
pelo contato, imaginando que delícia seria encher sua boca de porra.
Ela desabotoa meu cinto, encontra minha cueca e continua me tocando.
Quase me deixo levar por ela, mas no último segundo afasto sua mão.
— Quem manda hoje sou eu — afirmo, vendo um sorriso dominar seu
rosto.
Joy ergue as mãos em rendição, permitindo que eu faça o que eu quiser.
Ela está de saia, o que facilita minha vida. Levanto o tecido até que sua
calcinha esteja à mostra. É um modelo rendado e minúsculo cor- de-rosa,
sua cor favorita, porque minha garota não gosta de ser óbvia.
Com meu olhar focado no seu, esfrego os dedos no tecido da calcinha,
sentindo a renda molhada, a bocetinha pingando por mim.
— Luke — geme, apoiando a cabeça na parede e olhando para cima,
delirando com o contato.
— O que você quer, Saroyan? Me diga o que quer. Alto e claro — peço,
aumentando a fricção dos meus dedos, vendo-a se contorcer cada vez mais
pelo contato.
Joy abre os olhos e me encara, a respiração encurtada, dominada pelo
tesão.
— Me fode com força, Carter.
— Eu não ouvi direito — provoco apertando seu clitóris por cima da
calcinha.
— Me fode com força, do jeito que só você sabe.
— Pede com mais carinho. — Sigo provocando, deixando-a no limite
quando levo uma mão para cada lateral de sua calcinha.
— Por favor, me fode. Agora. Eu preciso. Eu imploro.
— Como é bom ver Joy Saroyan implorar por alguma coisa.
— Não se acostuma — rebate, conseguindo soltar um riso sarcástico que
abala meu coração.
Fique quieto, maldito. Agora é hora de pensar com o pau.
Rasgo sua calcinha com uma puxada bruta. Coloco o que sobrou do
tecido no bolso da minha calça, onde pego minha carteira e o pacote de
camisinha. Joy arranca o papel laminado da minha mão antes que eu possa
concluir a abertura, e rasga com os dentes, o tempo todo olhando para mim.
Para facilitar as coisas, tiro o cinto, abaixo a calça e deixo que ela
desenrole o preservativo pelo meu pau. Joy não consegue se conter e raspa
suas unhas na minha carne, tentando me fazer enlouquecer, como se eu
pudesse perder mais um pouco do meu rumo.
Agarro uma de suas pernas e enrosco em meu quadril, deixando-a mais
aberta para mim. Encontro seu lábio, pedindo por mais um beijo enquanto
me posiciono em sua entrada apertada. Vou deslizando para dentro com
calma, sentindo-a se alargar conforme entro.
A sensação de estar fodendo Joy de novo é inexplicável. Preciso abrir os
olhos para acreditar que isso está mesmo acontecendo, que ela está à minha
frente, arreganhada para mim. Ela parece ter a mesma ideia, porque nossos
olhares se encontram. É impossível deixar os sentimentos de lado. Não
consigo esquecer do quanto a amei. Éramos certos juntos, ainda somos,
apesar de toda a confusão que nos cerca.
Saio quase totalmente, para meter de novo, penetrando fundo, sentindo
que meu pau se acomoda melhor a cada estocada. Quero deixar sua boceta
com o formato do meu pau novamente. Quero que ela volte a ser meu
encaixe perfeito.
Acelero mais, levando a mão livre para um de seus seios, enquanto
agarro sua coxa com a outra. O movimento rápido faz nossos quadris
baterem, causando mais barulho do que gostaríamos. Ouço algumas vozes
passando pela rua e a sensação de possivelmente ser pego me deixa mais
excitado.
— Quietinha — peço, mas Joy não obedece e geme mais alto, me
obrigando a calar sua boca com um beijo.
Quando acho que vai se acalmar e afasto nossos lábios, ela geme de
novo. Querendo uma solução melhor, saio de dentro dela e a viro de costas
para mim, grudando seu peito na parede. Afasto suas pernas e levo dois
dedos para sua boceta, espalhando a lubrificação, brincando um pouco com
seu clitóris.
Levanto uma de suas pernas, seguro meu pau e guio para dentro dela,
agora com sua bunda gostosa sufocando minhas bolas. Uma das minhas
mãos vai para sua boca, calando-a de vez.
— Eu disse que era para ficar quietinha.
Joy é um caralho, porque morde meus dedos, me obrigando a me afastar.
— Vou gemer do jeito que eu quiser — rebate, a voz trêmula, consumida
pelo tesão, pela velocidade com que entro e saio de dentro dela.
Sua teimosia me faz fodê-la ainda mais rápido. Estou quase no meu
limite, me controlando apenas porque sei que ela ainda não está lá. Enlaço
sua cintura para levar uma das mãos ao seu clitóris. Acelero o toque na sua
região mais sensível, levando-a até o precipício comigo.
Joy começa a tremer e gritar. Ligo o foda-se para qualquer pessoa que
passe na rua, porque essa mulher é incontrolável. Ela aperta meu pau com
suas contrações deliciosas e eu espero até que seus espasmos cessem para
ter meu prazer. A mão que estava em seu clitóris, levo para sua bunda,
deixando um tapa ardido antes de passar a usá-la como apoio.
Meto o mais rápido que posso, desesperado para ter meu alívio e me
juntar a ela. A esporrada vem forte e sem aviso, dominando cada um dos
meus pensamentos, diminuindo meu ritmo, até que eu esteja paralisado,
tentando me recuperar de um orgasmo avassalador.
Saio de dentro da boceta de Joy, sentindo falta do contato no segundo em
que nos afastamos. Ela ajeita a saia no lugar, se cobrindo antes de virar para
frente, ainda com as costas na parede, disponível para mim.
O momento foi de prazer, mas o sorriso que abrimos um para o outro não
está relacionado só com a parte carnal.
O retorno de Joy Saroyan trouxe caos para minha vida, entretanto,
também trouxe de volta um sentimento que eu me esforcei para manter
adormecido.
O amor que sinto por Joy ainda reside dentro de mim. Ainda é forte,
intenso e avassalador, assim como ela. Mas também é perigoso, fatal e
mexe com o equilíbrio que trabalhei para manter nos últimos anos. Esses
sentimentos me deixam apavorado, com medo do futuro, com a cabeça
trabalhando a mil quilômetros por hora, me perguntando se estou fazendo a
escolha certa ao me envolver com ela de novo.
É difícil saber com certeza. Na verdade, é impossível saber com certeza.
E eu não sei se estou disposto a arriscar meu coração dessa forma uma
segunda vez, sabendo como nossa história terminou da primeira.
Meu aniversário será daqui alguns dias e eu não poderia ter ganhado um
presente melhor. Ser fodida por Luke depois de meses de abstinência trouxe
uma energia diferente para mim. Não é à toa que as pessoas que não
transam são mal-humoradas.
Estou radiante. Sorrindo pelos corredores da agência enquanto lembro da
mão de Luke na minha bunda, do seu pau afundado em mim, das putarias
que falou no meu ouvido. Usar seus ciúmes para provocá-lo teve um
resultado ainda melhor do que o esperado. Nós já estávamos no limite há
algum tempo, mas ele estava relutante demais em deixar a atração tomar
conta de sua mente.
Não sei o que será de nós agora e confesso que estou ansiosa para
descobrir. Um relacionamento sério não é algo que eu almeje no momento,
mas uma foda fixa seria incrível. Algo despreocupado, sem compromisso,
sem cobrança.
O melhor tipo de relação do mundo.
Entro em sua sala e não o encontro. Entretanto, vejo que a maleta está no
lugar de sempre, o que indica que já chegou. Largo minha bolsa em uma
das poltronas e volto para o elevador, indo para o andar onde ele com
certeza está.
Infelizmente, no início do expediente, vários agentes vão treinar, então
não consigo tirar uma casquinha do corpo escultural de Luke. Ele está
batendo em um dos sacos pendurados no teto da sala de treinamento,
trabalhando seus golpes, tão focado em contrair seu abdômen que seus
gominhos estão mais marcados. O suor deixa sua pele brilhando, gotas
escorrem pelos fios castanhos do cabelo, molhando seus ombros. Reparo
que morde os lábios, tamanha a concentração.
Contemplo sua gostosura por um tempo, até resolver que é hora de
anunciar minha presença. Alguns agentes já me viram e me
cumprimentaram, é questão de minutos até que Luke repare em mim e eu
perca minha vantagem.
Ando pelo espaço até estar à sua frente, logo atrás do saco de pancadas.
No momento em que me vê, erra um dos golpes, acertando o ar, ao invés do
saco. Não consigo controlar o sorrisinho que se forma em meu rosto quando
se desconcentra por minha causa.
— É bom saber que consigo abalar seu mundo em qualquer lugar.
Luke não ri do comentário, sequer sorri para mim. Ele parece emburrado.
E eu achando que tínhamos tido algum progresso.
— Joy.
— Luke.
— Ontem à noite foi um erro — fala com pressa, sinto que estava
pensando sobre isso enquanto trabalhava seus golpes, apenas se preparando
para essa conversa, sabendo que eu iria procurá-lo.
— Um erro? — repito, tentando me certificar de que entendi e que ele
está de fato dizendo isso. Luke não responde. Dá mais alguns soco no saco
de pancadas, fazendo uma sequência de golpes no rosto e no queixo do
“oponente”. — Não parecia um erro quando você falava coisas sujas no
meu ouvido. — Desvio do saco de pancadas para me aproximar dele. Fico à
sua frente, plena, vestida com minha melhor camisa branca, com os
primeiros botões abertos, quase mostrando meu sutiã, em cima dos meus
coturnos de salto, que me deixam com uma altura próxima a dele.
Ele não tem escolha, a não ser parar de socar e olhar para mim. Se
continuar, vai me atingir e Luke não permitiria que isso acontecesse.
Luke segura o saco para que ele pare de se mexer. Olha para mim e eu
noto a confusão em suas pupilas.
— Mas foi. — O pomo de adão se movimenta quando engole em seco.
Sua dificuldade de se entregar está começando a me irritar.
— Foi um erro me beijar, foi um erro transar comigo... Você está errando
muito ultimamente — constato, irônica.
— Joy, estou falando sério.
— Eu também. Você age e depois fica choramingando. Por que não
admite que gostou? Que fez tudo isso porque queria?
Luke fecha os olhos, travando mais uma batalha dentro de si. Não
entendo por que é tão difícil.
— Naquele momento, eu queria. Mas isso — aponta para nós dois — não
pode mais acontecer.
— Quem você quer enganar? É óbvio que vai acontecer.
Luke não me responde. Ele é decepcionante o suficiente para voltar a
bater em seu saco de pancadas e me ignorar. Não se pode elogiar um cara
por foder bem que ele vai lá e age como uma criança.
— Estarei no -1 treinando tiros. Se precisar da minha ajuda com seus
relatórios chatos, me chame — aviso, virando de costas e o deixando
sozinho com seus pensamentos bagunçados.
Machuquei Luke a ponto de ele não conseguir se entregar e ainda se
culpar quando faz o que quer? Seu coração foi tão destruído por mim, que
não consegue admitir que manter distância é uma tortura?
Espero que ele use esse momento introspectivo para organizar seus
pensamentos e tomar uma maldita decisão. Quero manter uma relação
casual com ele, mas, se for para ele ficar se arrependendo toda vez, estou
fora. Não preciso de mais complicação na minha vida. Não tenho espaço
para esse tipo de drama, mesmo que sinta saudades da relação que
tínhamos.
Eu gostava de namorar. Bom, de namorar com Luke, para ser mais
específica. Tínhamos uma relação deliciosa e que era ideal para a vida da
Joy do passado. Mas, assim como Luke mudou e se encheu de cicatrizes
profundas depois da minha fuga, eu mudei. Estou carregando uma carga
ainda maior nos ombros, fiz coisas que vão ainda mais além do que
fazemos na agência, tive decepções ainda maiores do que as da minha
infância. Meu coração ficou calejado. O de Luke também. Eu entendo seus
receios. Juro que entendo. Contudo, essa reação que ele teve, carregada de
rejeição e arrependimento, me incomoda, acaba com a leveza da nossa
relação, a parte que mais me faz bem. Estou com raiva, frustrada,
decepcionada.
Queria viver uma relação gostosa e despreocupada uma vez na vida.
É pedir muito?
Agilizei meu discurso na reunião com os Serpentes para encerrá-la o
mais rápido possível. O 641 reportou todos os detalhes da missão no Clube
Nix, nos informando sobre a possibilidade de um ataque no baile anual da
Casa Branca. Em minha próxima reunião com o Presidente Campbell,
pedirei convites para nós, assim poderemos monitorar as atividades de Paul
Huskey e evitar que uma catástrofe aconteça.
Libero os agentes para que tenham uma boa noite de sono, mas eu
mesma não sei se conseguirei dormir. A cada dia que passa, Bryan está mais
abalado. Conforme o aniversário de Joy se aproxima, ele se afunda ainda
mais em sua dor, me fazendo contestar todas as minhas decisões. Todos os
dias, tenho que me lembrar de que nossa família é pequena perto da
agência. Cuido do nosso país, da segurança de milhões de pessoas,
inclusive de Bryan. Meu marido não teria capacidade de sobreviver a esse
mundo.
Liz e David vão embora juntos, James diz que precisa voltar para casa
porque não gosta de deixar Mason sozinho por tanto tempo com a
Tempestade Noturna à solta, Christian avisa que vai beber e encontrar
alguma mulher. Os agentes mais novos se sentam em nossa sala
improvisada e conversam entre si, como fazem em quase todo final de
reunião.
Aproveito que nenhum deles quer minha companhia para ter um
momento a sós com uma bela xícara de café. Beberico cada gole com
calma, relaxando enquanto ainda posso. Quando chego em casa, preciso
montar a pose de boa esposa, um papel que me desgasta um pouco mais
todos os dias.
Joy, vendo que estou sozinha e quieta, se afasta dos amigos para vir me
atormentar. Nós não temos conversado muito, mas eu sei que ela está bem.
Dá para ver em seu rosto o quanto sentia falta da agência, dos amigos e das
missões.
— Não vai me parabenizar pelo meu ótimo trabalho? — pergunta,
desesperada por um elogio.
Eu a encaro segurando o riso, sabendo que quer atenção.
— Você só fez o que eu mandei.
— Mas fiz maravilhosamente bem — corrige, tão orgulhosa, que eu não
sei como ainda implora por um elogio.
— Parabéns, Joy. Você foi impecável, como sempre.
Nós duas nos viramos para Kyle, que se aproxima entregando o que ela
quer. Joy sorri de orelha a orelha quando vê seu mentor.
— Obrigada, Kyle. Está vendo, Brenda, não é difícil — fala olhando para
mim, provocativa.
Seus amigos começam a se movimentar para ir embora e vejo que Luke a
procura com o olhar. Os dois se encaram por alguns segundos, mas Joy
desvia, voltando para nós.
— Estão juntos de novo? — indago, curiosa.
Minha filha suspira e olha para baixo, negando com a cabeça.
— Não oficialmente. — A resposta é vaga, mas eu sei muito bem o que
quer dizer. — Preciso ir, senão vou perder minha carona. — Ela bate
continência para mim e deixa um beijo na bochecha de Kyle, acelerando o
passo até Zoey e Lucy, que estão aguardando.
Kyle não perde tempo e se coloca ao meu lado. As mãos estão nos bolsos
da calça escura, forçando uma postura descontraída que é bem diferente do
que ele de fato sente por dentro.
— “Não oficialmente” significa que eles estão transando — constata,
incomodado.
— Ela é adulta.
— Mesmo sendo adulta, quis um elogio seu e não recebeu.
O retorno ao assunto anterior me deixa intrigada.
— Você a elogiou e ela sabe que fez um bom trabalho.
— Mas ela queria que você a elogiasse, B — reforça e fico em silêncio,
refletindo sobre sua constatação.
Joy já é orgulhosa, tem plena convicção de que é boa. Ela precisa mesmo
que eu fique dizendo? A minha aprovação é tão importante assim?
Enquanto penso sobre o que disse, Kyle vai se aproximando
sorrateiramente. Eu finjo que não percebo, até que seus dedos roçam os
meus. O mero contato de nossas mãos já me transmite uma eletricidade,
mas não posso permitir que o sentimento se alastre. Preciso voltar para
casa. Me afasto com naturalidade, virando para lavar rapidamente a xícara
que usei. Devolvo-a no armário, me perguntando como vou despistar Kyle.
O bunker está vazio, essa seria a oportunidade perfeita para passarmos um
tempo juntos.
Ele me olha com esperança e eu odeio quebrá-la.
— Vamos? — indago, sem esperar que ele responda.
Vou apagando as luzes, pego minha bolsa e saio do lugar, deixando Kyle
com a responsabilidade de fechar a porta. Aproveito a vantagem para
apertar o passo e chegar logo ao meu carro, mas não adianta. Fugir
sorrateiramente nunca é a melhor das ideias.
— Me seguindo? Sério? — pergunto, segurando a chave do carro na
mão, ainda me mantendo de costas para ele.
— Você está fugindo. Não me deu escolha. — A resposta vem carregada
de dor.
Tenho uma habilidade incrível de ferir todos os homens da minha vida.
Sem opções, me viro para Kyle, tentando me manter firme, mesmo que
seja praticamente impossível sustentar um disfarce na frente do homem que
amo.
— Você está me evitando há dias — diz, magoado, buscando entender o
que está acontecendo.
— As coisas não estão fáceis em casa — confesso.
De tempos em tempos, preciso me afastar e esperar que as coisas se
estabilizem. Kyle respeita o espaço que peço, mas isso não significa que ele
goste. Estamos nessa há muitos anos. Quanto mais o tempo passa, mais
desgastada fica nossa relação.
— Te conheço, Brenda, e conheço nossas limitações. Você pode me dizer
quando precisa de um tempo. Não precisa se esquivar de mim. — O “amor”
fica preso em sua garganta. A frase fica incompleta sem o apelido
carinhoso, mas Kyle não parece ter muita vontade de dizê-lo nesse
momento.
— Bryan está triste com o aniversário da Joy e... — acabo desabafando
por sentir conforto com a presença dele, mas logo freio minhas palavras,
porque não é justo que eu fale sobre meu marido com ele. — Só me dê um
tempo.
Kyle assente devagar, desviando o olhar para o lado, decepcionado.
Odeio vê-lo assim por minha causa, mas não há escolha.
— Me procure quando quiser — diz, se aproximando para deixar um
beijo no canto da minha boca. Qualquer contato entre nossas peles me faz
incendiar, mas não posso permitir que esse fogo se alastre.
Nós nos olhamos por um breve e doloroso momento, ambos sofrendo
com a realidade em que estamos presos. Destravo o alarme do meu carro,
Kyle abre a porta para mim, esperando que eu entre para fechá-la com
delicadeza. Trocamos outro olhar ferido, separados por um vidro e inúmeras
escolhas erradas. Ele se afasta devagar, interrompendo nosso contato
somente quando chega até seu próprio carro, dá partida e vai embora,
fugindo antes que eu possa vê-lo desmontar.
A sensação de me distanciar de Kyle me dilacera. É como se ele levasse
metade do meu coração consigo cada vez que peço para nos afastarmos. E
eu fico vazia, até podermos nos encontrar outra vez.
Lágrimas insistem em inundar meus olhos. Não gosto de chorar, mas
estou sozinha, então permito que as lágrimas venham. Choro de raiva,
externalizando tudo o que sinto socando o volante com raiva. O ataque
deixa meus olhos mais molhados e a maquiagem preta escorre por minhas
bochechas. Eu amaldiçoo minha imagem pelo retrovisor do carro, brava
comigo mesma por tudo o que causei no passado e continuo causando no
presente.
Meus problemas são sempre os mesmos porque nunca consigo resolvê-
los. Na verdade, eles só pioram, e eu só me afundo mais e mais. Me
mantenho presa em uma relação em que não quero estar, machuco quem eu
amo e acabo com o que ainda resta do meu coração.
Mas Brenda Saroyan não pode sofrer, fraquejar ou se abalar. Precisa ser
forte, indestrutível e inabalável.
Meu tempo de surto acaba. Limpo a maquiagem borrada, engulo essa
porcaria de choro e volto a ser a rainha do gelo que eu sou. Não adianta
espernear, não adianta chorar, só erguer a cabeça e seguir em frente. Essa é
minha vida. Essa é a mulher que preciso ser.
três anos e meio antes

“Era o primeiro aniversário que passaria completamente sozinha. Por


mais que eu não gostasse da data, a solidão tornava tudo mais
melancólico. O céu estava escuro, era um dia nublado e chuvoso de
novembro. Um dia triste.
Levantei da cama revisando mentalmente o itinerário do dia. Tentei me
concentrar no trabalho que encontrei para conseguir algum dinheiro, nas
pistas que tinha para seguir, que possivelmente iriam me levar ao meu
irmão, mas minha concentração foi pelos ares quando comecei a pensar
nas pessoas que tinha deixado para trás. Me perguntei se algum deles se
lembrava que eu estava fazendo aniversário naquele dia. Quando a
resposta que me veio à mente foi “sim”, fui atrás do meu cigarro. Não me
importei que havia acabado de acordar, só acendi um, abri uma das janelas
para não acionar o alarme de incêndio do prédio e fumei.
Mais calma depois da dose de nicotina, vesti uma calça jeans, uma
camiseta larga para esconder a arma que coloquei dentro da calça, e uma
jaqueta de couro. Caminhei até a cafeteria em que trabalhava meio período
com um rock pesado estourando nos fones de ouvido. Entrei pelos fundos,
deixei minha mochila em um dos armários e troquei a jaqueta pelo avental
verde horroroso que nos obrigavam a usar. Conferi as horas em meu
relógio, já contando os minutos para sair dali.
Fui para o balcão de atendimento odiando ter que me separar do meu
fone e ouvir as pessoas conversando. Mesmo mais irritada do que o
normal, forcei um sorriso para os clientes para conseguir gorjetas maiores.
Se algum dos meus amigos da agência me visse nesse papel, iria chorar de
rir. Era ridículo ver uma pessoa com a minha capacidade atrás de um
caixa, mas eu não fazia nada por acaso. Trabalhar lá fazia parte do plano.
Era um lugar sem câmeras, onde eu conseguia um bom salário e furtos
fáceis. Já havia roubado o caixa mais vezes do que conseguia contar.
— Elise.
O nome ainda soava estranho aos meus ouvidos. Elise Sanders era uma
garota vinda do interior buscando uma vida melhor na cidade grande. Era
tímida, não gostava de se misturar e tinha certa fobia social, o que me
ajudava a me manter longe de todos os meus colegas de trabalho.
Kelsey, entretanto, não respeitava meus limites. Ela não via minha
grosseria como um sinal para ficar longe, e sim como um incentivo para
tentar se aproximar cada vez mais.
Infelizmente, a cafeteria estava em um momento de baixo fluxo, me
impedindo de arranjar uma boa desculpa para não conversar com ela.
— Olá Kelsey — respondi forçando um sorriso.
— Ok, vou soar muito intrometida, mas acabei mexendo na sua ficha e vi
que hoje é seu aniversário! — Uniu as mãos, os olhos escuros brilhando em
empolgação.
Maldita ideia de manter minha data de nascimento. Terei que me lembrar
de inventar uma nova quando assumir a próxima identidade.
— Não gosto de aniversários — falei com mais seriedade, tentando
afastá-la.
Kelsey não entendeu o recado. Ela abriu uma das geladeiras que ficavam
atrás do balcão e me estendeu um cupcake. Uma única vela brilhante
estava no meio do bolinho cor-de-rosa. Confetes coloridos enfeitavam o
chantilly. Era o cupcake mais feio que eu já havia visto na vida.
Minha colega ainda fez o favor de pegar um isqueiro no bolso do avental
e acender a vela. Ela começou a cantar parabéns e eu queria muito não
gostar dela e destruir seus miolos. Mas o gesto foi bonitinho e ela nunca
havia feito mal para mim. Muito pelo contrário. Eu desconfiava que sabia
dos meus pequenos furtos e não dizia ao nosso chefe.
— Assopre e faça um pedido — pediu, me obrigando a segurar o maldito
bolinho.
Suspirei, engolindo a irritação para fechar os olhos e pensar em alguma
coisa que eu gostaria. “Encontrar meu irmão” foi a única coisa que me
veio à mente. Apaguei a vela com uma assoprada, mas não funcionou. Tive
que assoprar diversas vezes até que ela se apagasse totalmente.
Um mau presságio.
— Então, quais os planos para hoje? — Kelsey perguntou, tirando o
bolinho das minhas mãos e apoiando-o na parte interna do balcão, onde
ninguém conseguia vê-lo. Ela pegou dois garfos e estendeu um para mim.
— Nenhum — respondi, seca, aceitando um dos garfos que ela ofereceu.
Kelsey cortou o cupcake no meio e começou a comer sua parte.
— Não vai sair com nenhum cara?
— Não.
— Nenhuma garota?
— Não.
— Família?
— Não.
Dei um grande garfada no cupcake, comendo quase minha parte inteira
de uma vez só, para ver se ela calava a boca.
— Ora, então vamos sair! Te levo para beber em algum lugar legal! Vai
ser bom para você conhecer a cidade.
A oferta não soou nada tentadora. Eu estava em Baltimore há algum
tempo, seguindo uma possível pista do paradeiro de Ethan. Fiz o caminho
que em tese os sequestradores poderiam ter feito e a última parada seria na
cidade. Porém, o rastro esfriou e eu odiava admitir, mas estava perdida. Os
sequestradores eram bons. Era como se tivessem orquestrado toda a rota
para me despistar. Eu já sabia que a busca seria difícil, não era à toa que
Brenda havia deixado a investigação de lado. Ela seguiu as mesmas pistas
que eu e chegou à conclusão de que não havia mais o que fazer. As
possibilidades estavam esgotadas, mas eu não queria desistir. Me recusava
a admitir a derrota.
Era culpa minha que Ethan estava nessa situação. Eu precisava fazer de
tudo para encontrá-lo.
— Não posso — respondi a Kelsey, terminando de comer meu cupcake e
me virando para jogar o garfo que usei na pia.
Ela veio atrás de mim, parando ao meu lado como um maldito parasita.
— Só hoje, por favor! Você merece sair um pouco, só te vejo trabalhando
e trabalhando. Um descanso alcóolico no seu aniversário não fará mal!
Pensei durante alguns segundos, analisando se aquilo era uma boa. Eu
não me divertia há meses. Mal dormia. Mal descansava. Só respirava
porque precisava disso para sobreviver.
— Vamos. Eu topo — falei, me arrependendo no segundo em que Kelsey
começou a dar pulinhos animados. Seria uma noite longa.

Minha colega de trabalho era mais legal do que eu imaginava. Nós


dançamos, bebemos tequila, vodka, gin, rum, experimentando boa parte do
cardápio do bar de segunda linha em que ela havia me levado. O lugar
tinha um clima de faroeste, todos os móveis eram de madeira e a decoração
fazia homenagem aos Baltimore Ravens, time de futebol americano local.
Eles não estavam jogando naquela noite, então o bar estava vazio. Apenas
três mesas estavam ocupadas, e eu e Kelsey nos sentávamos no balcão. Ela
flertava com o bartender de tempos em tempos e eu dava risada, adorando
o clima descontraído. Ser jovem de novo era estranho, mas reconfortante.
Eu era nova demais para carregar toda aquela dor no peito, para sentir
culpa por estar me divertindo.
A noite estava gostosa. Eu conseguia sorrir, me desligar um pouco da
minha realidade.
Mas minha vida nunca foi conhecida por ser simples. Eu era um imã de
caos e destruição.
Em meio a risos e sorrisos, me deixei levar. Fiquei distraída a ponto de
não olhar para trás quando o sino da porta anunciou a entrada de novas
pessoas. Eu só notei que tínhamos companhia quando Kelsey arregalou os
olhos, assustada. Pensei em me virar para ver quem havia entrado, mas o
barulho de três armas sendo engatilhadas me impediu. Se eu me mexesse,
estava morta.
Me perguntei quem eu poderia ter irritado. Eu não estava causando
tanto assim para alguém vir atrás de mim. Poderia ser alguém da agência,
mas eu achava difícil. Estava prestes a perguntar o que queriam, quando
um dos homens veio até Kelsey.
— Não, por favor, não. Dickson, não — ela suplicou, mas o tal Dickson
não a ouviu. Ele a segurou pelos cabelos e levou sua cara na direção do
balcão.
Kelsey olhou para mim com desespero, presa entre as mãos do homem e
a madeira, o rosto virado de lado apenas para que ela pudesse respirar.
— Eu te disse que te pegaria se viesse aqui de novo. — A voz do homem
era cruel, possessiva. — Esse é o cuzão que tem te comido? — Apontou a
arma para o bartender, que estava com as mãos erguidas, apavorado com a
cena medonha que ocorria à sua frente.
Em uma rápida olhada à minha volta, vi que os outros dois homens
armados haviam retirado os outros clientes do local. Eles não queriam
testemunhas. Provavelmente eram conhecidos na região ou alguém já teria
chamado a polícia. Nenhum dos homens parecia com pressa. Estavam
tranquilos, no controle. Era certo que faziam parte de alguma gangue ou
máfia.
— Dick, por favor, eu não vim aqui por isso — Kelsey falou. Em
resposta, ele apertou ainda mais seu rosto contra o balcão, fazendo-a gritar
de dor.
Era difícil assistir a cena sem fazer nada. Eu precisava agir, mas ainda
não podia. Precisava de uma brecha.
— Cale a boca, puta — xingou, cuspindo no rosto dela. — Acha que
pode me trair e sair ilesa?
Algo se contorcia dentro de mim. Kelsey era uma boa garota. Ela estava
flertando com o bartender, era verdade. Mas, mesmo se namorasse
Dickson, isso não justificava a violência, a ameaça absurda que estava
sofrendo.
— Nós não... — O bartender tentou falar, porém, se calou quando a
arma de Dick foi apontada na direção da sua cabeça.
— Você comeu a mulher de um homem como eu. Não tem a chance de se
defender. É xeque-mate. — Dickson levou o dedo ao gatilho. Não tive tempo
para reagir, nem fiz esforço para tal. O bartender caiu no chão depois do
disparo, os olhos abertos, a testa perfurada no centro, sangrando.
Kelsey começou a chorar desesperadamente.
O que eu vi era suficiente para entender que aquele era um homem
machista e manipulador que cobrava uma traição com sangue. Ele iria
matá-la se eu não reagisse. Era isso que estava prestes a fazer quando eu
segurei o copo de vidro à minha frente e quebrei na sua cabeça. Com a
outra mão, alcancei a arma em minha cintura. Tudo foi muito rápido. Me
joguei no chão para não ser baleada e me virei para atirar nos outros
homens. Não consegui atingi-los, mas vi que Dickson estava com a cabeça
sangrando, os olhos surpresos e sedentos de raiva.
Nenhum deles estava entendendo por que a amiga de Kelsey tinha uma
arma.
Puxei minha amiga pelo braço, derrubando uma das mesas para usá-la
de escudo. Rezei para que os homens descarregassem seus cartuchos
tentando nos acertar. No momento em que estivessem quase sem munição,
eu os pegaria.
— Quem é você? — Kelsey perguntou, assustada.
— Melhor você não saber — respondi, agarrada a minha arma, sentindo
meu coração disparado dentro do peito. — Está envolvida com bandidos?
— Não. Namorei Dickson durante anos. Quando ele entrou na máfia,
terminei tudo, mas ele não quis me largar. Me agrediu diversas vezes, me
perseguiu. Cheguei a denunciar para a polícia, mas todo mundo aqui é
comprado.
Assenti devagar, triste por ver uma garota doce como Kelsey metida com
um cara desses. Senti pena pelo que havia passado e me agarrei em sua dor
para acertar as contas.
— Fique aqui — pedi, rolando para o lado, saindo da proteção da mesa
para ter um panorama do posicionamento dos homens. Calculei os ângulos
que precisava mirar para atingi-los, me protegendo com uma mesa do lado
oposto ao de Kelsey.
Contei mais alguns disparos, somando-os com o que já havia contado
anteriormente, imaginando que estava perto da hora de recarregarem. Eu
não tinha muitas balas comigo, então precisava ser certeira.
Com a arma empunhada, derrubei um deles. Dickson e o outro tentaram
me atingir, mas suas balas acabaram, me dando a vantagem que eu
precisava. Mirei no capanga, contudo, não consegui apertar o gatilho antes
de ser derrubada por Dickson. Ele me prensou no chão e agarrou meu
braço com tanta força, que conseguiu tirar a arma das minhas mãos. A
sensação de estar perdendo uma batalha me fez explodir de raiva. Dei uma
joelhada nas bolas de Dickson, aproveitando seu lapso de dor para sair do
seu controle.
Seu comparsa estava quieto porque não se atreveria a tentar me atingir
com seu patrão montado em cima de mim. Agora que eu havia me
libertado, ele apontou sua arma, pronto para acabar comigo. Por um
segundo, achei que havia atingido o fim da linha. Era isso. A morte viria do
jeito mais idiota possível, no dia do meu aniversário, pelas mãos de homens
que não eram meus inimigos. Bom, não eram até aquele momento.
Eu poderia ter reagido, pulado em cima dele, tentado me esquivar do
tiro. Mas não o fiz. Fiquei parada, aceitando meu destino, sem ver um bom
motivo para lutar. Vi o dedo do homem tocar no gatilho. A arma estava
prestes a ser acionada, a morte estava prestes a ser minha.
Entretanto, algumas pessoas gostam de ter o complexo de salvadoras.
Kelsey era uma dessas pessoas. Eu a ajudei e ela sentiu que precisava
retribuir. Salvei sua vida e ela, saindo do esconderijo e atingindo o homem
com uma garrafa de whisky, salvou a minha.
O tempo entre aceitar a morte e voltar a batalhar pela vida foi curto.
Abaixei para pegar minha arma, mirando no homem desnorteado pela
pancada da garrafa, atingindo seu peito. Virei para acabar com Dickson,
mas o babaca já estava recuperado, de pé, e havia apertado seu gatilho.
A cena pareceu em câmera lenta, mas durou segundos. Kelsey foi
atingida na cabeça, o corpo caindo no chão sem vida. Olhei para Dickson,
o homem que havia tirado sua paz e seu sorriso, e soube exatamente o que
eu precisava fazer.
Parti para cima dele com todo o meu conhecimento. Não o atingi com
um tiro a princípio, porque eu queria que batalhasse, que tentasse me
vencer. Dei um chute em sua barriga, derrubando-o no balcão de madeira.
Ele tentou apontar sua arma para mim, mas atirei em sua mão e ele foi
obrigado a soltá-la.
— Acha legal perturbar uma mulher que não é mais sua namorada? —
indaguei, me aproximando um pouco mais, pressionando seu corpo contra
o balcão. — Na verdade, mesmo ela sendo sua namorada, isso não é certo.
— Segurei seus cabelos, levando sua cabeça para a bancada, posicionando
sua cara da mesma forma que ele havia posicionado a de Kelsey. — Está
vendo o que você fez? A vida que tirou só porque seu orgulho foi ferido? —
Fiz com que olhasse para o corpo de Kelsey. Eu não a conhecia tão bem,
mas lamentava sua morte. Contudo, diferente da maioria das pessoas, eu
usava isso como combustível para me fortalecer.
— Você não sabe com quem está se metendo, garota — respondeu,
tentando se soltar, mas não obtendo sucesso.
Eu virei seu rosto para que me olhasse. Abri meu sorriso mais
perturbado, a expressão que não usava há tempos, mas que combinava tão
bem com a minha persona.
— Digo o mesmo, garoto — ironizei e me preparei para o grand finale.
Guardei minha arma no bolso de trás da calça e peguei a faca que
guardava ali. Com uma mão, segurei o pescoço de Dickson. Com a outra,
fui fazendo um corte em sua bochecha. Primeiro de um lado, com bastante
calma, rasgando profundamente sua pele. Depois, do outro, me deliciando
com seus gritos. Levei a faca para seu peito, cortando a camiseta junto com
a pele, formando um X apenas por diversão. Soltei uma gargalhada irônica
quando ameacei cortar seu pescoço e ele começou a se debater em minha
mão.
— Com medo da morte, querido? — perguntei, aprofundando o corte
centímetro por centímetro, logo acima de onde minha mão estava.
O sangue foi preenchendo seu corpo, o balcão e minhas mãos. Fazia
tempo que eu não sentia o cheiro de ferro amadeirado que só sangue fresco
tinha. Inspirei fundo, mostrando a ele o quanto gostava daquilo, o quanto
ele tinha sido azarado, ao ter seu caminho cruzado com o meu.
Terminei o corte com calma, ainda sorrindo quando ele deu seu suspiro
final. Soltei seu corpo quando me certifiquei de que estava morto e deixei
que despencasse no chão. Dei dois passos para trás para me afastar,
respirando fundo, perdendo o sorriso ao olhar para Kelsey. Vi os outros
dois homens caídos, o bartender morto atrás do bar, a confusão de mesas
jogadas, paredes perfuradas e garrafas quebradas.
Procurei por algum sistema de segurança e vi duas câmeras. Aquilo era
uma merda para mim. Cinco corpos, um bar destruído, uma única
sobrevivente. Ninguém sabia quem eu era, mas poderiam me achar se eu
não fosse cuidadosa.
“Nunca deixe evidências para trás. Queime tudo, se for necessário. O
fogo é a melhor forma de se apagar um rastro.”
A voz de Brenda ecoou em meu ouvido e eu soube exatamente o que
fazer.
Com a frieza que minha mãe havia me ensinado percorrendo meu
sangue, recolhi a arma de todos os homens, colocando-as na minha
cintura, porque poderiam ser úteis em algum momento. Quando fui pegar a
de Dickson, vi a parte de um desenho em seu antebraço. Puxei a manga
para ver a imagem completa. Uma coruja com raios no lugar de seus olhos.
Curioso, pensei.
Peguei sua arma, olhando uma última vez para trás antes de me
posicionar perto da porta. Tirei o isqueiro do bolso da frente, onde sempre
o guardava, acionei e aproximei do chão, fazendo o fogo começar a se
alastrar. Com a quantidade de álcool espalhada no chão, não iria demorar
para tudo ser destruído.
Eu me afastei o suficiente para assistir o bar queimar, levando consigo
cada evidência do que havia acontecido naquela noite. Quando tive certeza
de que tudo estava acabado, voltei para o apartamento que havia alugado,
recolhi minhas coisas e fui embora. Não podia ficar ali depois de ter
assassinado três membros de uma máfia.
Peguei o primeiro ônibus que encontrei, rumo a cidade onde daria
continuidade ao que havia iniciado.
Quantas garotas se envolviam com homens como Dickson sem saber
quem realmente eram seus parceiros? Quantas mulheres eram ameaçadas,
violentadas e mortas todos os dias por motivos banais? Kelsey era só uma
vítima, não conseguia se defender, não tinha ninguém para lutar por ela.
Tentei salvá-la e falhei, mas eu poderia salvar outras, poderia usar meu
talento para eliminar algumas pessoas ruins do mundo.
Eu não tinha nada a perder. Não podia voltar. Aceitar que o caso de
Ethan havia atingido seu limite era a escolha óbvia. Eu poderia fazer o
bem de uma forma diferente.
Sorrindo, animada com a jornada que eu poderia ter pela frente, não me
dei conta de que havia mexido com gente perigosa, de que aquela maldita
coruja significava muito mais do que aparentava e que aquele sangrento
aniversário iria me atormentar por anos e anos.”
Minhas mãos estão cheias de sangue. Sempre estão. Eu odeio quando
tenho noites profundas de sono. Os sonhos me atingem e perco a
oportunidade de escolha. A cada um, estou matando alguém diferente.
Escuto minha consciência dizendo que é por uma boa causa, mas quando
vejo, é alguém que amo que está nas minhas mãos.
Esta noite, foi Luke. Eu o torturo, revoltada por ter dito que se
arrependeu de ter transado comigo. Quero gritar para minha versão do
sonho e pedir que pare, mas a voz nunca sai. Eu nunca consigo colocar
juízo em sua cabeça e dizer que aquilo é errado, que não posso matá-lo por
estar confuso. Entro em desespero, mas repito a mim mesma que é só um
sonho e uma hora irá acabar.
Ouço vozes conhecidas me puxando de volta. Meu sonho vai ficando
desfocado, pouco a pouco se esvaindo da minha mente. Retomo a
consciência e abro os olhos devagar, me acostumando com a claridade.
Escuto alguém mexendo na minha porta e fico em alerta. Pego minha arma
embaixo do travesseiro, empunhando-a no momento em que a porta se abre
e Zoey e Lucy entram cantando parabéns, segurando um bolo com uma vela
do número vinte e cinco.
— Cacete, abaixa isso! — pede Zoey, cessando o canto abruptamente.
— Eu disse que invadir o quarto dela não era uma boa ideia — diz Lucy,
parando de bater palmas e desmontando o sorriso.
Quem vê essas duas segurando um bolo e cantando parabéns não imagina
que matam qualquer bandido sem hesitar.
Devolvo a arma para seu lugar debaixo do travesseiro, sento de uma
maneira mais comportada na cama e gesticulo para as duas.
— Pronto, podem continuar.
— Você acabou com o clima — reclama Zoey. Quando levanto uma das
sobrancelhas para ela, minha amiga se rende e anda até mim com o bolo.
Assopro a vela, optando por não fazer nenhum pedido, porque sei que
essa baboseira nunca dá certo.
— Felizes? — pergunto, me certificando de que já posso desmontar a
máscara de aniversariante animada.
— Sabemos que não gosta do seu aniversário, mas quisemos comemorar
mesmo assim. Sentimos falta de passar esse dia ao seu lado — Lucy fala
com uma doçura esquisita.
— Você me ama ou me odeia? Nunca consigo acompanhar.
A loira anda até minha cama, pega uma das almofadas que joguei para
longe no meio da noite e a usa para bater em mim. Começo a gargalhar, me
divertindo com sua reação. Quando ela para, ainda permaneço com as mãos
erguidas, esperando que ataque de novo. Lucy ameaça e eu já me preparo
para me proteger, entretanto, não preciso, porque ela joga almofada de volta
na cama e cessa a brincadeira.
— Eu disse que te amo, Joy. Temos nossas diferenças e eu te ameacei,
sim, mas foi por uma causa nobre. Sei que você entende — Lucy justifica e
eu assinto, porque entendo completamente.
Temos um carinho enorme uma pela outra por toda a nossa história e isso
não é algo que simplesmente podemos apagar. Acredito que seja por isso
que ela tenha deixado óbvio para mim que está envolvida em alguma
merda. Lucy confia que vou ajudá-la a sair dessa. É o que pretendo fazer
assim que conseguir tempo para entender o que está acontecendo.
— Espera, você a ameaçou? — Zoey pergunta, confusa com a cena que
se desenrola entre nós.
— História para outro momento — falo, rezando para que Zoey nunca
mais cite o assunto.
Minha amiga está com o cabelo crespo preso em um coque grosso, o que
faz com que eu preste mais atenção nos lindos traços de seu rosto.
— Espero que esse bolo tenha deixado seu dia um pouco mais colorido.
— Zoey dá de ombros, estendendo o bolo cheio de confetes na minha
direção.
Eu o pego e faço esforço para não deixar que o arrepio em minha espinha
se alastre. Esse bolo me lembra de um certo cupcake que fez meu mundo
virar de cabeça para baixo, quatro aniversários atrás.
— Deixou. E vai ser um belo café da manhã — digo, levantando as
sobrancelhas, animada com a ideia de ingerir muito açúcar no meio da
semana. — Obrigada pelo gesto. Vocês significam muito para mim. Exceto
quando me dopam — acrescento a última parte para provocar. Lucy dá
risada, Zoey revira os olhos.
— Ainda não superou? — Zoey pergunta com desdém.
— Nunca vou superar. Agora vamos devorar esse bolo. Preciso de
energia para sobreviver a mais um aniversário.

Agora que tenho o uniforme de treino da ANDOS, uma sensação de


pertencimento me consome. Vestindo a camiseta preta com a insígnia da
agência — o desenho da serpente vermelha — e atirando em um dos boxes
do -1, me sinto eu mesma.
Transitar por diferentes identidades fez com que a minha se perdesse,
ofuscada em meio a tantos disfarces. Desde que voltei, Joy Saroyan se
reergueu. Tomou conta do corpo que é seu, retomou seus treinamentos,
ficou mais forte, usou o que aprendeu nos anos fora para ser uma agente
ainda mais completa. As outras identidades adormeceram para que eu
pudesse ser eu novamente. E a sensação, por incrível que pareça, é ótima.
Pego a outra arma que estou usando para treinar, agora deixando uma em
cada mão, treinando uma pontaria dupla, atirando em dois alvos diferentes.
Me abaixo, levanto, fico de lado, treino em todos os ângulos, exatamente
como Kyle me ensinou. Viro de costas, juntando as duas armas no peito,
para logo depois me virar e mirar em alvos mais distantes, reproduzindo um
cenário de um possível ataque em minhas costas. Sou destra, mas depois de
uma lesão grave no ombro direito, aprendi a atirar com a mão esquerda. Me
tornei excepcional com ambas as mãos, porém, meu ombro operado não
aguenta o tranco, então acabo usando mais o lado esquerdo. Sentindo
algumas fisgadas no local da lesão, desisto de segurar duas armas e coloco
uma delas no apoio do box.
Com a arma empunhada na mão esquerda, usando a direita apenas como
apoio, dou disparos seguidos, alternando os alvos, mas nunca errando.
É hora do almoço e o -1 está vazio, então me surpreendo quando vejo o
alvo da cabine ao meu lado ser posicionado. Não consigo ver quem está
atirando por causa da divisória, mas depois de dez disparos impecáveis que
formam um círculo perfeito no alvo, tenho certeza de que Kyle está
tentando chamar minha atenção.
Coloco as duas armas de treino no coldre e saio do box, parando atrás do
espaço ao lado, onde vejo meu mentor segurando sua arma. Não demora
para que ele me note e sorria ao ver que seu plano deu certo.
— A aniversariante veio treinar e nem me avisou? — pergunta, fingindo
braveza enquanto guarda a própria arma no coldre.
— A aniversariante precisava da dose de terapia diária — respondo
revirando os olhos, fingindo que estou incomodada com sua carência.
— Um abraço de parabéns? — indaga, abrindo seus braços, me
convidando para me aproximar.
Como uma criança correndo na direção de uma pessoa que admira, eu
aceito seu carinho. Envolvo os braços em sua cintura enquanto ele abraça
minhas costas. Seu cheiro me acalma e faz com que um sorriso sincero
surja em meu rosto. Kyle me traz uma sensação de paz diferente, que sinto
com pouquíssimas pessoas. Ele me acalenta, me protege, sente um carinho
tão grande por mim, quanto sinto por ele.
— Feliz vida, pequena — sussurra e segura em meu rosto, dando um
beijo em minha testa, seus olhos transbordando o amor mais puro e sincero
que já recebi.
— Obrigada, Kyle.
— Tenho um presente — anuncia, me soltando e disparando na direção
da sua sala.
Entendo que é para segui-lo, então atravessamos o -1 até chegarmos no
espaço envidraçado que funciona como seu escritório. As cortinas
normalmente estão fechadas, evitando que os agentes fiquem observando o
que ele faz lá dentro. Kyle abre a porta para entrarmos e vai até seu armário.
A sala é menor do que a de Luke, mas consegue ter mais coisas. Os
armários tomam conta de duas paredes, repletos de arquivos dos
treinamentos de tiro dos últimos anos. Kyle não é nada adepto à tecnologia,
mas pelo menos tem um computador em cima de sua mesa. Não consigo
ver onde ele mexe, a porta do armário está aberta e impede a visão, e eu
tampouco faço esforço para dar um passo para o lado para tentar observá-lo.
Quero que o presente seja uma surpresa.
Escuto uma exclamação animada e sei que ele encontrou o que
procurava. Depois de fechar o armário, Kyle se aproxima com as mãos atrás
das costas, escondendo alguma coisa.
— Mandei fazer especialmente para você — conta, me entregando uma
caixinha azul de veludo.
Curiosa, pego a caixinha e abro, sem conseguir esboçar uma reação
quando vejo o que há dentro. É uma pulseira prateada com um pingente de
arma. O modelo é delicado e fino, mas tem um traçado estiloso e um
elemento que é considerado perigoso para muitos.
— Achei que combinaria com você — explica, meio sem jeito, tentando
decifrar se gostei ou não.
Tenho que controlar as lágrimas que querem escapar dos meus olhos.
— É o presente mais lindo que já ganhei — falo antes de jogar meus
braços em seu pescoço, abraçando-o mais uma vez.
Sinto Kyle sorrir o mesmo tanto que sorrio. Eu amo nossa relação, a
liberdade e a proximidade que tenho com ele. Podemos não ser família, mas
o amo como se fosse sangue do meu sangue. A nossa conexão é intensa
demais.
Quando nos separamos, peço que ele me ajude e coloco a pulseira,
decidindo que só vou tirá-la quando for para missões.
— Programou alguma coisa para hoje? — ele pergunta, acariciando meu
braço.
— Não. Só Lucy e Zoey me deram parabéns, duvido que alguém mais se
lembre — falo com desdém, porque não sou nem louca de anunciar para o
mundo que hoje é meu aniversário.
— Ninguém falou com você porque não querem e não se lembram ou
porque você se escondeu aqui a manhã inteira e não deu oportunidade para
ninguém, além delas, te parabenizar? — Kyle ergue as sobrancelhas
grisalhas, pegando direto na ferida.
— Eu te amo e te odeio ao mesmo tempo — confesso, abalada com suas
palavras.
— Aproveite seu dia, pequena. Pelo menos hoje, tente sorrir mais, se
permita. Você merece uma folga tanto aqui — toca na minha cabeça —
quanto aqui — e no meu coração.
Fico tocada com o que diz, porque esse é o meu sonho. Ter um dia mais
leve, longe da turbulência que nunca tem fim. Eu queria ser capaz de me
desligar dessa forma, mas ainda não evoluí tanto assim.
— Você me fez sorrir, Kyle. Obrigada — agradeço, abraçando-o de novo
só porque posso e quero.
Ele me incentiva a curtir o dia mais uma vez e eu digo que preciso voltar
ao trabalho. É mentira, quero apenas fugir da conversa difícil, e tenho para
mim que Kyle percebe. Depois de um rápido banho, coloco uma roupa mais
arrumada e vou para o vigésimo quinto andar. Nenhum dos membros da
minha equipe me procurou hoje durante o expediente e já passa da hora do
almoço, o que é, no mínimo, esquisito.
Resolvo que não vou avisar que estou subindo e simplesmente apareço
no nosso andar. Alguma coisa me diz que eles estão aprontando alguma,
mas, quando vejo que os cinco estão dentro da sala de reuniões, suspiro em
alívio.
Abro a porta sem bater e todos ficam em silêncio, olhando para mim.
Sinto que interrompi alguma coisa e logo imagino que não é relacionado a
trabalho. Eles não precisam mais esconder os Serpentes de mim, estamos no
mesmo time na agência e fora dela. Não faz sentido que estejam falando
sobre um caso, o que me leva, novamente, a pensar que estão tramando
alguma.
— Aniversariante! — Noah se levanta, vindo na minha direção, me
envolvendo em um abraço caloroso e cheio de desejos positivos para meu
novo ciclo.
Nate vem me cumprimentar em seguida, mas não me abraça, graças a
Deus, porque acabei de tomar banho e não quero ser infectada por sua
inveja.
Lucy e Zoey já falaram comigo mais cedo, o único que ainda não me
disse nada foi Luke. Ele está sentado mais ao fundo da sala, acredito que
era a pessoa falando quando entrei. Nossa última conversa enquanto ele
treinava seus golpes não acabou muito bem. Luke sabe que estou de saco
cheio de suas incertezas.
Mesmo com o clima estranho entre nós, ele se levanta e abre os braços
para me parabenizar. Deixo que me envolva, agradecendo por receber
carinho de mais uma pessoa que amo em um dia que é tão difícil para mim.
Costumo preferir me isolar, mas confesso que as palavras de Kyle me
incomodaram porque foram verdadeiras. Eu preciso de pessoas à minha
volta para que esse dia seja mais leve.
— Parabéns, Saroyan — Luke murmura no meu ouvido, a rouquidão da
voz me arrepiando, mexendo com partes adormecidas do meu coração.
Não dizemos mais nada e nem precisamos, nosso abraço já tem
significado o suficiente. Eu passaria o dia inteiro com meu corpo colado ao
dele, se Nate não nos chamasse para falar sobre um caso novo que Brenda
nos deu para trabalhar na agência. Mesmo que estejamos mapeando a
Tempestade Noturna, o que já nos deixa bastante ocupados, precisamos de
uma função dentro da ANDOS. Não dá para deixar uma equipe como a
nossa sem grandes trabalhos ou as pessoas irão começar a desconfiar.
Quando me sento na mesa de reuniões, o assunto parece retomar de onde
parou e percebo que eles de fato estavam falando sobre trabalho. Parece que
não há nenhum plano mirabolante para o meu aniversário.
Normalmente, eu agradeceria, porém, dessa vez, um sentimento estranho
toma conta de mim. Criei uma expectativa de que eles estavam planejando
alguma comemoração e agora que percebi que não há nada acontecendo,
fico chateada. Talvez seja melhor assim, mas, depois de quatro anos
vivendo outras vidas, cercada por estranhos, no fundo, eu queria comemorar
a retomada da minha vida.
Assim que fui morar com Zoey e Lucy, criamos um grupo no aplicativo
de mensagens para nos falarmos. No dia a dia, quando o expediente acaba,
nos encontramos no corredor do nosso andar para irmos embora. Hoje,
entretanto, Lucy pediu que eu a encontrasse no terraço porque quer falar
comigo em particular sobre um assunto. A mensagem foi enviada no
privado, o que me deixou desconfiada, com medo de ela ter feito alguma
merda.
Já nos encontramos por lá antes, contudo, enquanto subo para o andar
mais alto da agência, tenho a certeza de que eu estava errada e eles estão,
sim, planejando algo para mim. Passamos a tarde toda falando sobre o novo
caso em que iremos trabalhar e até esqueci de que era meu aniversário.
Quando a porta do elevador se abre, a lembrança fica mais vívida do que
nunca. Escuto alguns murmurinhos vindo do terraço e me preparo para
fingir que estou surpresa. Subo os degraus que levam até a entrada e
empurro a porta de ferro, me preparando psicologicamente para ser o centro
das atenções.
Espero que batam palmas, gritem e cantem parabéns, mas não é isso que
acontece. Assim que piso no telhado, algumas pessoas sorriem para mim,
outras já vem me cumprimentar. Ninguém faz escândalo ou me deixa
desconfortável, apenas compartilham seus desejos e voltam a curtir a festa.
É final da tarde e o céu está alaranjado, lindo como há tempos não vejo.
O terraço está decorado com varais de luzes amarelas, a mesa embaixo do
telhado de plantas está cheia de comida, alguns coolers estão espalhados
pelo chão, provavelmente abrigando cervejas. Vejo diversos rostos
conhecidos espalhados pelo lugar, conversando em pequenos grupos perto
das plantas, alguns sentados nos bancos.
Depois de uma rodada de cumprimentos, procuro por Zoey e Lucy. Vejo
que Nate, Noah e Luke estão conversando em uma rodinha, e não demora
para que eu ache as duas reabastecendo as comidas da mesa. Vou até lá e
paro à frente delas com as mãos na cintura, aderindo a uma feição brava.
— Sério? Uma festa? — questiono e elas trocam um olhar. Com certeza
já imaginavam que eu iria contestar.
— Em nossa defesa, só ajudamos a planejar, mas não tivemos a ideia —
diz Lucy, erguendo as mãos em rendição. É bom vê-la sóbria, curtindo o
momento como fazíamos anos atrás.
— Quem teve? — pergunto apenas para ter certeza, porque a resposta eu
já sei.
— O amor da sua vida. — Zoey olha para Luke, que permanece
conversando com Noah e Nate. Eu e Lucy a acompanhamos e os meninos,
espertos como são, percebem que estão sendo observados. Esboço um
sorriso para Luke enquanto trocamos um olhar, agradecendo à distância
pelo gesto. Era óbvio que ele não deixaria meu aniversário passar em
branco, principalmente depois de quatro anos sem comemorar a data.
Volto a olhar para minhas amigas. As duas erguem as sobrancelhas,
implorando para que eu vá até ele. Não contei que transamos, ninguém sabe
do momento que tivemos no beco, mas quem nos conhece bem sabe que há
algo acontecendo. Talvez não entendam a dimensão, porém, nosso
magnetismo é claro para quem quiser ver.
Suspiro para Zoey e Lucy e aceno com a cabeça, indicando que vou até
ele. Luke pode tentar me atingir com palavras ao dizer que somos um erro,
mas eu sei o que ele sente por dentro. O que nós dois sentimos. Ele está
com medo de se entregar de novo e eu entendo. Entretanto, sua
preocupação em fazer essa festa e comemorar meu aniversário de uma
forma que me faria gostar desse dia, como ele fazia quando namorávamos,
me mostra que estou certa. Estamos profundamente envolvidos, como
sempre estivemos.
Luke percebe que estou indo em sua direção, mas, antes que eu possa
chegar até ele, sou interceptada por Alex.
Não vejo minha irmã desde o dia em que ela me contou a bomba de que
nosso pai acha que estou morta. Confesso que não pensei mais em sua
existência e ela com certeza não deve ter pensado na minha. Sequer entendo
o que veio fazer na minha festa.
— Mamãe me obrigou a vir — confessa antes que eu pergunte, sabendo
exatamente o que estou pensando.
— Eu jamais imaginei que viria por boa vontade — respondo, o pavio
curto, sem paciência para seus joguinhos. Estou tendo um aniversário
razoável. Alex não pode estragá-lo.
— Ainda está brava por eu ter te contado a verdade?
— Você adorou me atingir daquele jeito, nem tente fingir que não.
— Te contei em um momento de raiva, mas não gosto dessa história. Já
tinha cobrado a mamãe para te contar, porém, ela estava decidindo qual
seria a melhor forma de fazer isso.
— Eu iria surtar de qualquer jeito — admito. Não é a forma como
descobri que importa, e sim o que eu descobri.
Um silêncio constrangedor paira entre mim e Alex. Nós não temos
assunto para conversar e nos sentimos desconfortáveis na presença da outra.
É uma relação estranha, nada natural.
— Que bom ver vocês juntas de novo. — Brenda aparece ao nosso lado,
parando entre mim e Alex.
Eu não tinha notado sua presença na festa e minha mãe não é de passar
despercebida, então chuto que acabou de chegar. Em uma rápida olhada à
minha volta, avisto Kyle conversando com Liz, e James e David tomando
uma cerveja sentados em um dos bancos. Christian Babaca Mayflower não
está em nenhum lugar, para minha sorte.
— Você é a única que acha — responde Alex, deixando suas garras
transparecem na frente da mamãe querida, uma coisa rara.
— Pela primeira vez na vida, terei que concordar com você, irmãzinha.
— Sorrio para ela com ironia e Alex revira os olhos, irritada comigo.
Um clima estranho consome o ar. Nós três não ficamos no mesmo
ambiente há anos. Sendo honesta, até antes da minha partida, não ficávamos
juntas.
Sentindo o mesmo que eu, Alex suspira.
— Já cumpri meu dever, apareci na festa e desejei parabéns. — Finge um
sorriso para Brenda. — Agora vou dar o fora. — O sorriso se desfaz quando
me encara.
Espelho sua expressão de desgosto, me sentindo aliviada quando ela vai
embora. Por algum motivo, quando Brenda se coloca à minha frente, noto
que também está feliz pela saída da filha mais velha.
— Feliz aniversário — deseja, seca.
— Obrigada.
— Espero que tenha gostado da festa.
— Você sabia?
— Acha que fariam uma festa no meu terraço, no meu lugar, sem eu
saber?
— É meu lugar também — corrijo, nada intimidada diante do poder de
suas palavras.
Brenda me apresentou o terraço, é fato, mas aderi ao espaço como “meu”
pela paz que me traz, pela sensação de alívio que tenho quando venho
fumar aqui no meio do dia.
— Não, é meu — devolve, mas vejo que está apenas querendo me
provocar.
Como estou de bom humor, resolvo dar o braço a torcer.
— Nosso — defino, recebendo um quase sorriso como resposta.
E se Brenda está ameaçando sorrir, significa que ganhei alguns
pontinhos.
— Tenho um presente — anuncia e me entrega a caixa retangular que
estava escondendo atrás das costas.
Estranho não só o fato de ela me dar um presente, mas de ser uma placa
de vidro com o meu nome gravado.
— Uma placa? — questiono, buscando entender o significado do que
carrego em mãos.
Brenda não dá ponto sem nó.
— Para você colocar na sua nova sala — explica, me deixando
boquiaberta.
Por essa eu não esperava.
— Sério?
— Sim. Está mobiliada, pronta para uso.
A resposta é direta e fria, mas o acontecimento me traz uma sensação de
reconhecimento incrível. Desde que entrei na agência, sonho em ter uma
sala só minha. Apenas os melhores e mais valiosos agentes têm esse
privilégio.
— Meu Deus! Obrigada! — agradeço, alegre demais para ser controlada.
Sorrindo à toa, acabo abraçando Brenda, sem pensar demais no que estou
fazendo. Quando a consciência bate e ela, sem reação, não me abraça de
volta, me afasto. Nós nos encaramos, as duas sem saber como reagir ao que
acabou de acontecer. — Desculpa, isso foi esquisito.
— Não deveria ser — Brenda diz, os olhos castanhos emitindo uma
tristeza que ela raramente deixa transparecer.
— Mas sempre é — rebato.
Nosso afastamento dói. Tanto em mim, quanto nela. Minha mãe não
costuma exibir grandes reações, mas, hoje, se eu pudesse definir, diria que
ela está sem energia alguma. Tenho para mim que não é só por causa da
nossa relação gelada.
Gostaria que fossemos mais próximas para que eu pudesse perguntar o
que está acontecendo e tentar ajudá-la. Nossas diferenças são inúmeras,
nosso passado é perturbador, mas ela ainda é minha mãe. E hoje estou
emotiva, ciente de que tenho um coração, com vontade de entender o que a
aflige. Apesar disso, não pergunto nada. As palavras não saem e tampouco
quero forçá-las.
— Curta a festa — deseja, ameaçando tocar em meu ombro, mas
desistindo no meio do movimento. Ela vai se afastando, vira de costas e
segue na direção de David e James. Antes que possa se afastar por
completo, ela para, como se lembrasse de alguma coisa. Ao se virar, olha
para mim de novo, o mesmo leve sorriso se esboçando em seu rosto. —
Estou feliz por você estar aqui.
A frase é curta, mas me abala. Não consigo imaginar o quanto sofreu em
minha ausência. Os últimos anos me ensinaram muito, porém, não foram
fáceis. Ainda que não me arrependa, eu também sofri.
Brenda se afasta e meu coração fica apertado, coisa que raramente sinto
quando estamos juntas. Diálogos emocionais não são comuns para nossa
relação. Sentir qualquer emoção, de forma geral, não é algo comum em
nossa relação.
A sensibilidade de um dia difícil, tanto para mim quanto para ela, mexe
com o equilíbrio que tentamos manter desde o dia em que nossa relação
passou a esfriar.
Durante toda a noite, ela me encara e eu encaro, uma sempre procura pela
outra, com um magnetismo que temos há tempos, mas raramente deixamos
tomar conta. Há muitas coisas não ditas entre nós, entretanto, não vou até
ela e Brenda não vem até mim. Somos teimosas e orgulhosas, duvido que
algum dia tenhamos coragem de conversar sobre as nuances complicadas da
nossa relação.
Ela passa boa parte da noite conversando com os membros do Big Six.
Percebo que fica sozinha com Kyle em um momento, mas logo vai embora,
deixando o terraço sem me cumprimentar. Sigo na festa até que quase todos
os convidados tenham ido embora. Minha equipe permanece bebendo com
outros agentes, boa parte deles já está alcoolizado e não percebe quando
saio de fininho, sem qualquer intenção de retornar.
Gostei do dia que tive, aproveitei a festa e ofusquei as lembranças mais
dolorosas, mas isso não significa que eu esteja cem por cento bem.
Entro no elevador e respiro, apoiando a cabeça no espelho, finalmente
sozinha. Minha bateria social não é mais a mesma de quatro anos atrás, é
fato. Fecho os olhos e só abro quando chego ao vigésimo quinto andar.
Estou cansada e louca para dormir e me despedir do dia treze de novembro.
Contudo, a curiosidade para ver minha nova sala se sobressai em relação ao
cansaço.
Paro em frente a última porta do lado direito do corredor. À esquerda,
está a porta de Luke, logo em frente à minha. Levanto a placa que minha
mãe me deu, pendurando-a em seu lugar. Encaro o nome “Joy Saroyan”
gravado no vidro e um sorriso natural surge em meu rosto. Minha vida teve
diversos percalços, mas agora sinto que finalmente encontrei um bom
caminho. Tenho orgulho de onde estou, mesmo com as partes mais
sombrias do meu ser.
Ansiosa, abro a porta, paralisando quando noto a beleza da sala.
Fechando a porta atrás de mim, admiro cada pedacinho do espaço que vou
começar a chamar de meu. A distribuição é parecida com a da sala de Luke.
Dois sofás estão de frente um para o outro, com uma mesa de centro entre
eles. Na parede oposta à janela, há uma mesa com um único vaso de flor.
Chuto que sejam lírios rosados. Ando até minha mesa, já equipada com um
notebook, um computador ligado à rede da agência e diversos itens de
papelaria.
A sala é incrível, mas um único item, em especial, chama minha atenção.
A cadeira que minha mãe comprou para mim é idêntica a dela. Me jogo no
estofado, usando as rodinhas para girar no lugar, admirada por Brenda saber
que eu gosto tanto de sua cadeira. Jamais imaginei que ela tinha reparado
nesse detalhe. A constatação me faz sorrir ainda mais.
São sempre os detalhes que fazem a diferença.
Quando estou de costas, curtindo o primeiro momento em minha nova
sala, escuto a porta se abrindo. Não preciso me virar para saber quem é.
Mesmo assim, faço questão de usar meus pés para girar a cadeira e ficar
frente a frente com Luke. Aproveito para apoiar os pés em minha mesa,
coisa que ele odeia que eu faça na dele.
— Parece que você finalmente se livrou de mim. — Abro os braços e
aponto para a sala.
Luke solta uma risadinha gostosa. Ele está todo casual, com uma
camiseta escura larga, uma calça preta e tênis brancos, quebrando o lado
sombrio do visual. Os cabelos estão mais bagunçados do que o normal,
diminuindo o ar de agente perfeito que ele exala.
— Quem disse que eu queria me livrar de você? — rebate, colocando as
mãos nos bolsos, descontraído, me deixando ainda mais atraída por ele.
— Suas atitudes. Suas palavras. Suas reclamações. — Vou pontuando
cada item com um dos meus dedos.
— Já disse que sinto coisas complicadas.
— Também disse que isso — aponto para nós dois — não podia mais
acontecer. Mas aqui está você, vindo atrás de mim depois de planejar uma
festa para comemorar o meu aniversário.
Exponho os fatos, cansada dos joguinhos, das recaídas seguidas de
arrependimentos. Não sou uma mulher indecisa e não posso ter um homem
indeciso ao meu lado. Ou Luke me quer, ou não quer.
— Você é a única que consegue abalar meu coração, Saroyan — admite,
se aproximando devagar, até que esteja parado na frente da minha mesa. Já
estivemos nessa posição antes, mas era ele que sentava na cadeira, que se
mantinha no lugar de maior poder.
— E por que isso é algo ruim?
— Porque você já o destruiu uma vez.
A dor que consome seus olhos faz com que eu me levante. Fico frente a
frente com ele, a mesa sendo a única coisa que nos separa. Meus olhos
encontram os seus propositalmente, esperando que ele sinta a minha
sinceridade.
— Sinto muito pela dor que te causei, Luke. Mas não acho que remoer o
passado seja o caminho. Eu te quero, você me quer. Estou aqui, você
também. Nossos sentimentos ainda estão tão vivos quanto há quatro anos
atrás.
— Qual é a sua sugestão? Esquecer de tudo?
— Aprender com os erros e olhar para frente.
— Quais são suas intenções? — indaga, me testando, investigando o
quanto estou disposta a me abrir.
— Não posso garantir que vou querer me comprometer. Podemos ir com
calma.
— Não sei se consigo ir com calma com você. — A frase sai carregada
de uma malícia que me arrepia.
De repente, terminar o dia do meu aniversário estreando a mesa do meu
escritório não me parece uma má ideia.
— Pelo menos no quesito relacionamento, você consegue. Agora no
sentido sexo... — Dou a volta na mesa, parando na frente dele, puxando-o
pela barra da camiseta até que nossos corpos estejam próximos o suficiente
para se tocarem. — Eu dispenso a calma.
Luke abre um sorrisinho lateral, permitindo que seu tesão por mim
domine seu corpo e mente.
— Você destrói meu autocontrole — resmunga me agarrando pela bunda,
levando uma mão em cada nádega.
— Sou muito perigosa.
— Deveria ser presa — murmura brincando e eu rio.
— Já fui, mas meu ex rancoroso não quis me resgatar.
— Posso te prender de novo, para então te salvar. O que acha?
— O papel de donzela indefesa não combina comigo, mas, se for para
você me perdoar de vez, eu aceito.
Trago a pauta à tona, querendo conclui-la. Já estou na agência há meses,
não tenho intenção nenhuma de fugir de novo, ainda mais agora que me
consolidei, mostrei meu valor e ganhei minha própria sala. Luke precisa
entender isso de uma vez por todas.
— Eu te perdoo, Joy. Mas preciso que me prometa uma coisa. —
Assinto, pedindo que continue falando. — Não quebre meu coração de
novo — Luke pede, seus olhos castanhos ficando menos doloridos ao citar
o assunto que tanto o machuca.
Essa não é uma promessa fácil de se fazer. Porém, vejo que é importante
para ele, quase como um seguro para o seu coração.
— Darei o meu melhor. — Levo os braços ao seu pescoço, puxando-o
para perto de mim. — Também quero que me prometa uma coisa. — Luke
concorda, apertando meu corpo contra o seu, me aquecendo e me
confortando em seus braços. — Não se arrependa disso amanhã.
— Estou com medo, Joy. — Ele tira uma das mãos da minha bunda e a
leva para meu cabelo, colocando uma mecha atrás da orelha. — Mas a
vontade que tenho de você supera qualquer medo.
Reviro os olhos diante do teor meloso da frase.
— Espero que a vontade de me foder nessa mesa também supere.
Luke ri com minha frase suja. Me surpreendo quando ele dá um tapa na
minha bunda, abrindo um sorrisinho sagaz em seguida.
— É seu aniversário, Saroyan. Vou te foder até você me implorar para
parar.
— Uau, Carter. Primeiro, você faz uma festa surpresa para mim, agora
promete uma noite dessas. As expectativas estão bem altas. Espero que
consiga atendê-las — desafio, apimentando o momento.
Sem que eu espere, Luke me vira e me empurra contra a mesa. Meu peito
vai de encontro ao vidro, tento apoiar as mãos para ver o que ele vai
aprontar, mas ele leva a mão às minhas costas, impedindo que eu me
movimente. Rendida, sabendo que a submissão vai me gerar prazer, encosto
a bochecha no vidro, ficando em uma posição confortável, sentindo quando
Luke abaixa o zíper da minha calça e começa a puxá-la para baixo.
— Caralho, Saroyan. Você é uma desgraçada — reclama quando vê
minha calcinha preta fio-dental dividindo as nádegas. — Quero ver sua
boceta, mas como vou me livrar dessa belezinha? — Passa o dedo indicador
pelo fio da calcinha, demorando mais quando passa pelo meu cu.
Espero que ele coma minha bunda em breve.
— Curta e depois tire, Carter.
— É uma ordem? — pergunta, dando um tapa ardido na minha bunda.
— Sim. É meu aniversário, amor. — Apoio as mãos na mesa para me
virar, primeiro me sentando na mesa para arrancar a blusa. Depois, levando
as mãos atrás do sutiã para tirá-lo. Arremesso todas as roupas no chão,
ficando apenas com a calcinha. Aperto meus mamilos olhando para Luke,
que baba na cena. Devagar, vou me deitando, abrindo minhas pernas,
deixando bem claro o que quero. — Me chupa, Carter.
Ele sorri, se enfiando entre minhas pernas, colocando o tronco por cima
do meu antes de me obedecer.
— Seu desejo é uma ordem.
Os lábios tomam os meus, dessa vez com uma energia diferente, entregue
de uma forma que não estava dias atrás. Acredito que ainda teremos nossos
problemas, mas Luke está mais leve, finalmente entendendo que não estou
aqui para brincar. Retornei para minha vida para ficar.
Agarro seu pescoço com uma mão, com a outra abraço suas costas,
puxando seu peito contra o meu, mostrando que o quero sempre perto.
Nossos lábios se envolvem, encontram a sincronia um do outro, nosso beijo
se encaixando como nenhum outro encaixou. Sinto seu quadril roçando no
meu, me deixando mais molhada, quase escorrendo na mesa de tanto tesão.
Começo a me esfregar de volta, erguendo o quadril, ansiando por alívio.
Luke me conhece há muito tempo e entende bem o que quero. Ele leva a
mão entre nós, tocando na minha boceta por cima da calcinha. A carícia faz
minha excitação chegar no ápice. Devoro seus lábios, faminta, desesperada.
— Calma, Saroyan — pede quando mordo sua boca, por pouco não o
fazendo sangrar.
— Eu disse que dispensava a calma — retruco, ameaçando levar minha
própria mão à boceta, ansiosa para me livrar dessa tortura.
Luke me freia no meio do caminho, segura meu antebraço e me empurra
de volta à mesa. Ele vai se afastando de mim, descendo da mesa, se
preparando para me entregar o que quero. Antes de se afastar de vez, segura
meus seios com as mãos, mostrando suas saudades dando um beijo em cada
um. Um arrepio percorre meu corpo e ele percebe, tirando um tempo para
chupar meus mamilos, ainda segurando-os, se vangloriando por encaixarem
perfeitamente em suas mãos.
Deixando meus seios molhados e eriçados para trás, Luke vai beijando
minha barriga, lambe meu umbigo, amplificando meu tesão, esvaziando
minha mente. Eu só penso nele. Na sua língua. No seu pau.
Finalmente, seus beijos chegam na minha calcinha e ele beija a região,
acabando com a última gota do meu controle. Solto um gemido alto quando
suas mãos vão para as laterais da calcinha e ele começa a descê-la devagar,
contemplando meu corpo, admirando cada pedacinho de pele que vai se
expondo. Jogando a calcinha para longe, ele me olha com um desejo
lascivo.
— Senti tanta falta dessa boceta lisinha — declara, tocando na pele
branca, ameaçando sentir a umidade entre minhas pernas.
— Me mostre o quanto sentiu, Luke. — Agarro meus próprios seios,
preparada para ser dominada pelo prazer.
Meu ex adora controlar as coisas no sexo e está sofrendo por ter cedido o
controle a mim esta noite. Percebo que gostaria de me deixar sofrendo até
que eu implorasse por um oral decente. Luke é bonzinho na vida e
malvadinho na cama, do jeito que eu gosto.
As mãos afastam meus joelhos com brutalidade, me deixando aberta,
pronta para ele. Com um sorriso safado no rosto, ele cai de boca na minha
boceta. Não me controlo e grito, certa de que alguém irá nos ouvir no
segundo em que sair do elevador. Luke parece não se importar, porque
lambe meu clitóris, prendendo-o entre os dentes por alguns segundos,
fazendo com que meus gemidos fiquem ainda piores.
Que se foda o resto do mundo. É meu aniversário e quero gozar.
— Tão gostosa — diz enquanto se afasta, lambendo dois de seus dedos.
Ele nem hesita, apenas termina de lubrificá-los com a minha umidade e
enfia os dois dentro de mim. Com movimentos de vai e vem rápidos, porém
controlados, aperto ainda mais meus mamilos, sentindo que estou perto de
atingir o paraíso. Luke leva a língua para o meu clitóris de novo, chupando-
o com vontade, destruindo cada gotinha da minha sanidade.
Estou prestes a gozar quando sinto seu outro dedo indicador brincar com
a entrada do meu cu. Grito de prazer quando ele enfia a pontinha dentro,
metendo nas minhas duas entradas, me dando o melhor presente de
aniversário que eu poderia receber: uma gozada intensa.
Luke não para até que eu esteja completamente amolecida, tentando me
recuperar do orgasmo maravilhoso que ele acabou de me conceder. Se
afastando devagar e tirando os dedos de dentro de mim, não sem antes
lamber meu gozo, Luke tira a camiseta, finalmente deixando o peitoral
definido exposto. Sinto um vazio quando ele se afasta e já me vejo ansiosa
pelo preenchimento do seu pau.
Meu antigo melhor amigo está marcado pela calça, ansioso para vir ao
meu encontro. Assisto Luke desabotoá-la enquanto olha para mim, a
malícia evidente em cada movimento que faz. Me sento na mesa, ainda com
as pernas afastadas, sentindo o fogo me consumir outra vez. Levo uma das
mãos para minha boceta, tocando em meu clitóris, me mantendo
molhadinha para ficar pronta para ele.
Luke fica de cueca à minha frente, a pontinha do pau babou no tecido,
desesperada para ser liberta.
— Quer tirar? — pergunta, abrindo os braços, ficando à minha mercê.
Mas o dia de hoje não é sobre ele.
— Não vou me ajoelhar para você. Tire e venha me comer — ordeno,
intensificando o toque em minha boceta, quase gozando sozinha, pelo tanto
que ele demora.
Luke desce a cueca com pressa, se recusando a me assistir chegar ao meu
ápice sozinha. Sorrindo como o safado que é, ele pega uma camisinha na
carteira, cobre o pau e vem na minha direção. Suas mãos vão para minhas
duas coxas, me puxando até que eu esteja na beirada da mesa. Seguro seu
pau, assumindo o controle, colocando-o dentro de mim. Seu quadril passa a
avançar na direção do meu, me torturando ao enfiar a cabeça e depois tirar,
voltando arremetendo tudo.
O sexo começa lento, mas acelera quando ele leva minhas duas pernas
para seu ombro. A penetração fica mais funda, eu o sinto em cada parte do
meu corpo, me abrindo por dentro.
Luke cumpre sua promessa e não para de me foder. Ele me faz deitar na
mesa de novo, me comendo por trás, enquanto deixa sua mão marcada na
minha bunda. Vamos para o sofá e quico em seu colo, com ele agarrando
meus seios, deixando mais um lugar marcado, territorial de um jeito
delicioso que só ele tem.
Para fechar, decido que quero ser fodida de quatro. Me levanto do seu
colo e seguro em sua mão, indicando que me siga. Dou um beijo molhado e
gostoso em sua boca, o contato soando como um aviso de que ele pode
parar de se segurar e gozar.
Apoio os joelhos e as mãos na mesa de centro, a bunda na posição
perfeita para que ele me coma até dizer chega. Luke afasta as nádegas para
encontrar minha entrada. Desesperado e consumido pelo tesão, ele mete de
uma vez, minha garganta ecoando um grito como resposta.
As estocadas são firmes, profundas e delirantes. Eu me entrego
completamente, afastando qualquer memória ruim da mente, me apegando a
esse momento excitante que estou vivendo. Derreto mais uma vez, incapaz
de aguentar mais uma rodada. Luke dá mais algumas estocadas e geme alto
pela primeira vez no dia, esporrando na camisinha, só parando de meter
quando seu pau fica mole.
Viro de frente, sentando na mesa, esgotada. Luke me estende sua mão e
aceito a ajuda para me levantar. Nós dois damos risada quando vemos a
bagunça da sala. Minha mesa de centro está com as marcas das minhas
mãos e joelhos, a mesa do computador bagunçada, o sofá amassado, a sala
exalando cheiro de sexo.
— Estou tão feliz por isso ter acontecido na sua sala — ele fala e eu
empurro seu peito, rindo mais ainda.
Luke tira a camisinha, dá um nó e joga no lixo. Depois de colocar sua
cueca, ele joga a calcinha na minha direção e estende sua mão, me
convidando para ir até o sofá. Ele se deita, o tronco apoiado na lateral do
sofá, na posição perfeita para que eu me encaixe entre suas pernas. Seu
braço envolve meu corpo, eu apoio a cabeça em seu peito, relaxada como
há muito tempo não fico.
Posso negar ou tentar me esquivar, mas o fato é que sempre fui
apaixonada por Luke. O sentimento não foi embora nos últimos quatro anos
e tenho para mim que nunca irá. Ele conseguiu quebrar barreiras dentro de
mim, atingiu meu coração de uma forma que ninguém mais conseguiu.
Penso em Darius, o homem com quem me envolvi em meus anos fora, e me
dou conta de que meus sentimentos por ele nunca chegaram perto do que
sinto por Luke. Eu o amei, mas o que tenho com Lucas Carter é
avassalador. Nós nos entendemos, vivemos no mesmo mundo,
compartilhamos a mesma paixão insana pela adrenalina. Luke é sinônimo
de lar, pertencimento, segurança, amor.
— Obrigada por hoje — agradeço, sentindo que preciso. Graças a ele,
sorri mais do que o esperado em um dia que desgosto.
— Você merece se sentir bem no seu dia — diz, deixando um beijo
amoroso na minha cabeça. — Feliz aniversário, Saroyan.
As emoções me consomem de um jeito fora do normal desde o momento
em que me levantei da cama. Percebi que Bryan não estava ao meu lado e o
encontrei chorando no antigo quarto de Joy. Tive que consolá-lo e entregar
minha melhor atuação para chorar também. Durante seu momento de
tristeza, meu marido me implorou para ficar, sentindo que a cada dia está
me perdendo mais e mais. Eu repeti a ele que não vou deixá-lo, mesmo que
essa seja a coisa que mais quero fazer.
Estou esgotada. De uma forma intensa, que nunca vivenciei antes. Bryan
consome meu emocional. Sem perceber, sua chantagem psicológica me
deixa presa, com medo de agir do jeito que quero e acabar com sua vida.
Ele se sente miserável, tem tido problemas no trabalho, chora todos os dias.
Como posso deixar um homem que claramente precisa da minha ajuda?
Hoje tomei coragem de sugerir que procure uma terapia para superar o
luto, porque isso está o consumindo. Ele me disse que nada tiraria sua dor e
que não entendia como eu poderia me manter tão fria diante do assunto.
Alex assistiu parte da discussão — estávamos na cozinha — e me olhou
feio o dia inteiro.
Confesso que só fui a festa da Joy porque Luke insistiu muito. Ele veio
pedir minha autorização para fazer o evento no terraço há mais de uma
semana e foi categórico ao dizer que fazia questão da minha presença. Não
gosto de me misturar com outros agentes em atividades casuais, mas Joy é
minha filha, passei seus últimos quatro aniversários longe dela, e senti que
precisava ir.
A importância da data fez com que eu corresse com a preparação de sua
sala. Eu já havia comprado alguns móveis e pensado na distribuição, mas a
finalização só aconteceu uma noite antes da festa. Mandei fazer a placa com
seu nome, arrumei a caixa para que ela demorasse para descobrir o que era,
e quase chorei diante de sua reação.
O momento que tivemos foi emocional demais. Ela me abraçou. Joy me
abraçou. Eu sequer me lembrava da última vez que nossos corpos tinham se
tocado. Deve ter sido quando ela tinha doze anos e ainda não me odiava por
ter tornado sua vida um inferno.
A festa está no fim. James já foi embora para ficar com o filho, Liz e
David disseram que estão na última cerveja e também irão. Estamos em
uma roda conversando. Kyle está relembrando uma de nossas aventuras do
passado e arrancando risadas do nosso casal de amigos — ou ex-casal,
nunca sei ao certo como nomear.
Gostaria de estar participando mais da conversa, mas tudo o que faço é
dar eventuais risadas contidas. Normalmente, sou mais ativa e acrescento
comentários, afinal, eles são os únicos amigos que tenho. Entretanto, esta
noite, eu só penso no sofrimento de Bryan. Penso em como vai ser quando
eu chegar em casa. Confiro o relógio, percebendo que estou extrapolando
no horário, mas não me mexo, porque não quero ir embora e voltar para
aquele antro de tristeza. Pego mais uma cerveja repetindo que é a última,
bebendo muito mais do que o normal para tentar afogar as emoções que
tentam me dominar.
Olho para Joy o tempo inteiro. Me pergunto se devo arrastá-la daqui e
levá-la para casa, para que Bryan pare de sofrer. Então, me lembro de que
não fui capaz de encontrar Ethan, de que meu conhecimento e habilidade
não foi páreo para a maldita pessoa que o raptou. Levar somente um filho
para casa não é suficiente. Bryan vai continuar sofrendo. Joy poderia ajudar
por um tempo, mas sei que ele não ficaria completamente feliz. Eu iria
expor minha vida secreta para nada, iria colocá-lo em perigo para nada.
O caminho em que estou é o único possível.
— Lembra desse dia, Brenda? — Liz pergunta em uma tentativa de me
trazer de volta a conversa.
Somos amigas há mais tempo do que consigo me lembrar. Ela percebe
que estou aérea, David e Kyle também, mas nenhum deles tem coragem de
perguntar o que está acontecendo.
— Lembro, claro — respondo com um riso fingido, me esforçando para
prestar atenção no diálogo que meus amigos mantêm.
Não demora para que Liz e David anunciem que precisam descansar. Os
dois vão embora juntos, como nos velhos tempos. É bom vê-los tentando de
novo. É bom ver que pelo menos um casal do nosso grupo de amigos tem a
oportunidade de ter uma segunda chance.
— É difícil te resgatar quando você se fecha no seu mundo — Kyle
sussurra no meu ouvido.
A proximidade de sua boca me causa um arrepio dolorido, distante da
sensação maliciosa habitual. Encará-lo me fere um pouco mais, a decisão de
não o tocar me destrói. Sinto falta do seu corpo, do seu carinho, do seu
beijo. Mas não posso admitir, não posso fraquejar.
— Meu mundo é um lugar conturbado. Ninguém consegue me resgatar.
— A frase soa mais sombria do que eu pretendia.
Kyle ergue as sobrancelhas grisalhas, o rosto é consumido por marcas de
expressão adquiridas ao longo de vários anos de uma relação caótica com
uma mulher, teoricamente, indisponível.
— Eu faria tudo para te resgatar, se você permitisse. — A resposta de
Kyle me machuca um pouco mais.
Torturo pessoas fisicamente e o mundo faz questão de me devolver a
tortura na forma psicológica.
— Adorei o presente que deu a Joy. — Mudo de assunto, evitando falar
sobre mim.
Kyle força um meio sorriso lateral.
— Como descobriu que fui eu?
— Quem mais daria um presente desses a ela? — devolvo, sincera na
admiração que sinto pelo gesto. O pingente de arma combina perfeitamente
com Joy.
Kyle concorda, feliz por eu ter notado, triste por todo o contexto que
envolve esse presente.
— A placa foi um belo toque — comenta, afinal acompanhou boa parte
do processo de preparação da sala de Joy.
— Você estava me observando? — a pergunta sai sem esforço, meus
olhos ficam carregados de provocação, minha mente se desliga da realidade
durante míseros segundos.
— Sempre, B.
A resposta me deixa sem fôlego. Em tempos melhores, com um único
olhar, eu o convidaria até minha sala. Nós teríamos uma noite maravilhosa
de sexo, conversaríamos sobre todo e qualquer assunto, curtiríamos um ao
outro até que eu precisasse ir embora. Mas não hoje. Não com toda a
vibração caótica da minha vida.
— Preciso ir — digo a frase de sempre, o decepciono como faço desde
que entramos nesse ciclo interminável de amor e dor.
Kyle não responde. Não há a necessidade de mais diálogo, de insistir no
que sabemos que não dará certo.
Eu sou dele e ele é meu, mas nós nunca poderemos ser nós.

Chego em casa e me escoro na porta, fechando os olhos, esgotada com o


dia que tive, me preparando psicologicamente para ver Bryan, no fundo
rezando para que ele já tenha ido dormir. Nem todo o álcool do mundo é
capaz de tirar essa sensação horrível que me consome.
A casa está escura, a energia desligada, assim como a minha. Caminho
até a sala, percebendo que há um único feixe de luz ali. Imagino que seja
Bryan me aguardando, chego a me preparar para usar uma das mil
desculpas que tenho na manga, mas, na verdade, não é meu marido, e sim
minha filha que me aguarda.
Alex está sentada em uma das poltronas, com os cabelos escuros presos
em um coque bagunçado. O pijama xadrez amarrotado me diz que estava
em sua cama até pouco tempo atrás.
— Não precisava me esperar acordada. Sei o caminho de casa — falo,
irônica, me aproximando, mas optando por permanecer de pé.
Alex fica em silêncio, pensativa, enquanto tamborila os dedos no braço
da poltrona. Suspiro, aguardando o sermão que ela vai tentar me dar.
— Papai passou o dia todo trancado no quarto da Joy, chorando. E nós
estávamos lá, curtindo a festa dela — constata, incomodada, finalmente
firmando contato visual comigo. — Isso não te corrói por dentro?
— É uma situação horrível, mas não há escolha — rebato, mas sei que as
coisas não ficarão assim. Alex está insistindo muito no assunto. Tenho
medo de que ela abra o bico, apesar de supor que não teria coragem para tal.
— Você não tem coração? Precisa se manter fria em todas as situações?
Não é possível que não sinta nada! — se exalta, gesticulando e falando mais
alto do que deveria.
Eu me mantenho quieta, mas olho para as escadas, mandando o recado
em silêncio. É bom que Alex se acalme ou Bryan pode aparecer aqui.
— Sinto diversas coisas, Alexandra. Porém, sou uma pessoa racional. —
Uso seu nome completo, a expressão impassível mostrando que não estou
para brincadeiras.
— Sua razão está ferindo o homem que você ama. Não, espera — ela
ergue o dedo indicador, como se estivesse lembrando de alguma coisa. —
Você não o ama.
Meu autocontrole já foi testado várias vezes em um único dia. Eu não
acredito que Alex disse uma coisa dessas.
— Querida — uso minha voz mais irônica para chamá-la, resolvendo que
preciso atacar ou perderei a batalha. Ando até ficar de frente para sua
poltrona, apoiando as mãos nos braços para deixar meu rosto próximo ao
dela. — Admiro a tentativa de me enfrentar, mas sua forma de me
desestabilizar é falha, assim como boa parte das coisas que você faz. —
Alex prende a respiração, abalada com minhas palavras. Não gosto de fazê-
la se sentir assim, mas não há outra escolha. — Se fosse um pouco mais
competente e atuasse mais em campo, com missões realmente perigosas e
arriscadas, entenderia que não há chance alguma de Bryan saber a verdade.
Sua irmã entendeu isso e não insistiu no assunto. Por que você não
consegue fazer o mesmo? — A pergunta sai com uma entonação de quem já
sabe a resposta, porque eu de fato sei.
Alex não é uma boa agente. Ela sempre foi mediana. Eu a teria cortado
facilmente no treinamento de recrutas, se não fosse minha filha. Seu
desenvolvimento durante os treinos não foi bom. Joy acabava com ela em
um piscar de olhos. Minha filha mais velha sabe disso, a comparação com a
irmã mais nova sempre a feriu. A estratégia de machucá-la para que se cale
é baixa, do tipo que nunca gosto de usar. Mas ela não me deu escolha.
— Eu consigo — fala, chorosa, fraquejando diante da minha força, sem
confiança o suficiente para batalhar contra mim.
— Então pare de me perturbar com esse assunto. Essa escolha não é a
melhor, mas é a mais segura para o seu pai. Entenda, de uma vez por todas,
que arriscamos nossas vidas todos os dias e o levaríamos para o mesmo
caminho. Melhor um homem triste, do que morto. — Sou dura e cruel,
decidida a dar um ponto final nessa cobrança. Não consigo lidar com mais
uma filha que me enfrenta. — Não concorda? — questiono apenas para
obrigá-la a me responder.
Parece que um gato comeu sua língua. E o gato fui eu.
Alex assente devagar quando ergo as sobrancelhas, pedindo por uma
resposta. Ela está assustada, abalada com minhas palavras sinceras, sem
filtro algum. Tive que apelar para afastá-la e, pela expressão de derrota em
seu rosto, acredito que deu certo.
Eu me afasto da poltrona, arrumando o terninho, abrindo um sorriso
largo, sem mostrar meus dentes, mudando a expressão completamente. Com
meus olhos menos raivosos e me sentindo mais aliviada por ter vencido a
batalha, deixo Alex sozinha com seus pensamentos. Espero que ela absorva
minhas palavras e faça bom uso dos meus conselhos. Aliviei seu
treinamento a vida inteira, não fiz metade das atrocidades que fiz com Joy,
mas ainda assim, minha filha mais velha tem um respeito enorme por mim.
E o principal, tem amor a sua vida.
Deixo que ela permaneça na sala e vou até meu quarto. Bryan não está
deitado em nossa cama. Nem preciso pensar, a constatação de que ele está
no quarto de Joy vem fácil. Para minha sorte, ele está dormindo na cama,
deitado sobre o colchão descoberto.
Encaixotamos as coisas de Joy, tiramos todos os itens do caminho, mas
Bryan continua achando conforto em meio às coisas antigas da filha. O
quarto de Ethan, diferentemente do dela, é uma cena do crime e permanece
intocado. Nós nunca vamos até lá, o quarto de Joy é o único que resta a
Bryan.
Fico com pena de sua figura encolhida na cama e vou rapidamente ao
nosso quarto, pegando uma coberta para aquecê-lo. Admiro sua beleza por
alguns segundos, me lembrando de como ele era na juventude, triste pelas
feridas da vida o terem consumido a ponto de ter transformado sua
aparência. Bryan agora é um cara constantemente arisco, dramático,
sofrido, com linhas de expressões marcadas.
Eu sou a causa de toda a sua dor. A sua, a de Kyle, a minha própria. E o
pior é que jamais conseguirei reverter tudo o que fiz. É tarde demais.

A agência está escura e vazia. Apenas um grupo de seguranças, que não


deixam de ser agentes, fazem a ronda noturna, se certificando de que tudo
está em seu devido lugar. Eles estavam cientes de que uma festa estava
acontecendo no terraço, então, as rondas estão mais espaçadas. Mesmo se
não estivessem e um deles, por acaso, me barrasse, ao mostrar minha
credencial, eles me liberariam para fazer o que diabos eu quisesse.
Ser membro do Big Six tem suas vantagens.
Não era minha intenção terminar essa noite me embriagando de whisky
dentro da minha sala, mas o abalo que Brenda gerou em minhas estruturas
foi grandioso demais para que eu simplesmente fosse para o meu
apartamento dormir. O dia treze de novembro já é difícil. Sempre foi.
Contudo, esse ano, eu estava esperançoso, crente de que teríamos um
momento mais agradável. De fato, o tempo que passei com Joy foi valioso,
seu sorriso ao ver o meu presente significou o mundo para mim.
Mesmo agradecido pela oportunidade de tê-la de volta, não consigo me
sentir totalmente bem, porque a mulher que amo não está bem.
Não é a primeira vez que Brenda se isola emocionalmente por conta da
pressão psicológica de Bryan. Ele sabe como fazê-la se sentir mal por suas
escolhas. Brenda pode achar que ele é o elo fraco da relação, mas eu tenho
para mim que Bryan sente que está a perdendo e usa de sua dor para
prendê-la. Pode ser intencional ou não, porém, nunca gostei desse homem e
nem vou gostar.
Sirvo mais uma dose de whisky, observando a escuridão do -1. Muitos
teriam medo de permanecer no subsolo da agência à noite, mas, desde que
Brenda me deu essa função, aprendi a apreciar o silêncio e a solidão do
andar. Os agentes só vêm até aqui para treinar, passam poucas horas do seu
dia na minha presença, o que me concedeu a liberdade de guardar alguns
itens extremamente valiosos em minha sala.
Se isolar tem seus benefícios.
Com o copo na mão, perambulo pela sala e paro em frente ao meu
armário. Sou antiquado, admito, e me recuso a digitar todos os arquivos que
tenho guardado. Não só por não acreditar na segurança da tecnologia, mas
também porque ter armários cheios de papéis tem suas vantagens. Ninguém
se dá ao trabalho de efetivamente olhá-los ou de tentar mexer na minha
bagunça.
Abro a porta e agacho, afastando a caixa que esconde o fundo falso. Tiro
do bolso o molho de chaves que sempre carrego comigo e seleciono a
correta. Destravo a fechadura do fundo falso, levantando a parte da
prateleira que tive que cortar para criar o esconderijo. Pego a caixa que
abriga grandes memórias da minha vida e decido terminar esse dia
esvaziando a garrafa de whisky e revisitando minhas lembranças mais
dolorosas.
Estou flutuando. Alegre como há muito tempo não fico, animada de um
jeito que deixa os outros agentes do vigésimo quinto andar desconfiados.
Minha vida sexual voltou a ser ativa, não tive um aniversário de merda,
Luke me perdoou, estou em uma ótima fase da minha carreira na ANDOS.
A maior parte das coisas parece estar no lugar, o que me felicita o mesmo
tanto que me preocupa. Momentos de paz não duram muito na minha vida.
Estar radiante é um mau presságio.
Ontem, depois de Luke cumprir a promessa de me foder até que eu
pedisse um descanso, ele me levou em casa e nós trepamos no carro.
Inconsequentes? Sim. Enlouquecidos de tesão? Sim também. Foram anos
acumulando uma vontade que nunca parou de crescer. Está difícil de
controlar.
Brinco com o pingente da minha pulseira enquanto vou até minha nova
sala. Assim que deitei na cama, contemplei o presente de Kyle, apaixonada
por cada detalhe da peça. Temos uma relação muito próxima, quase
paternal, o que me levou a pensar no meu pai. Brenda e Alex não
comentaram mais nada sobre Bryan. Minha irmã aceitou a determinação da
nossa mãe e eu preferi seguir calada para não me machucar. Entretanto, foi
difícil não imaginar o que meu pai estava fazendo no dia do meu
aniversário. Me perguntei se ele estava triste, se ainda vivia em luto ou se
tinha superado o suficiente para ter um dia comum.
Minha relação com meu pai era boa, mas, por sempre ter disputado seu
amor com minha irmã, muitas vezes, acreditei que ela era sua preferida.
Agora, Alex é sua única filha. Prefiro acreditar que ele passou o dia treze
rindo ao lado dela, do que imaginá-lo chorando por mim.
Abro a porta da minha nova e bela sala com as emoções bagunçadas.
Assim que vejo Luke sentado na minha cadeira, com os pés apoiados na
minha mesa da mesma forma que eu fazia na sala dele, quando ainda não
tinha a minha, guardo a preocupação com meu pai em um canto escondido
da mente.
— O jogo virou? — questiono, jogando minha bolsa em um dos sofás,
me aproximando até me sentar no colo dele. Abraço seu pescoço e ele
segura minhas pernas, posicionadas para fora da cadeira.
— Achei que seria de bom grado te esperar aqui.
— Assim eu veria que você cumpriu a promessa e não se arrependeu? —
indago, mesmo sabendo a resposta.
— Não vou mais me arrepender de você.
As palavras amorosas me acalentam. Transfiro uma das mãos para seu
rosto, tocando em cada traço, contemplando sua beleza, as pequenas
cicatrizes, os detalhes que o fazem ser quem é. Brinco com alguns fios de
seu cabelo, bagunçando-os um pouco, deixando do jeito que eu gosto. Luke
assiste a cena com um sorriso bobo estampado nos lábios. Sua boca me
convida para me aproximar.
Sem hesitar, uno nossos lábios em um beijo delicado, mais carinhoso do
que os últimos que demos em nossos momentos de prazer. O amor que ele
transmite através de suas palmas, enquanto acaricia minhas costas, me
deixa preocupada. O modo apaixonado como ele fecha os olhos, também.
Intensifico nosso beijo, levando uma das mãos para baixo de sua camiseta,
sentindo o abdômen malhado, ameaçando levar a mão para seu pau. Luke
impede o contato no meio do caminho. Cesso o beijo, encarando-o com
uma careta, tentando entender por que me parou.
Nós nos olhamos e eu percebo que ele notou minha hesitação. Pedi para
deixarmos as coisas casuais e irmos devagar, mas esse é um pedido difícil, e
eu entendo. Temos uma história, nunca conseguiremos manter uma relação
simples. Apesar disso, ainda estou me curando, voltando a ser quem eu sou,
me encontrando em meio ao meu passado na agência, a minha fuga sombria
e ao momento atual. Sinto que vivi muito, mesmo com pouco tempo de
vida.
— Não fuja do sentimento gritante e inevitável que há entre nós — pede,
entendendo que estou receosa em derreter meu coração de gelo outra vez.
— Você pediu que eu não tivesse medo de me envolver, estou pedindo que
não tenha medo de sentir.
Suspiro, tentando relaxar e apenas deixar as coisas acontecerem. Eu
conheço Luke, ele também me conhece. Anos se passaram, mas nossa
essência continua a mesma. Ele não vai me pressionar a avançar em uma
relação, vai me apoiar no meu momento de reconstrução e
autoconhecimento, como sempre fez.
— Não vou fugir. Aprendi minha lição — acrescento a última frase para
descontrair o momento.
Luke ri, as maçãs do rosto se movimentando graças a felicidade genuína
que o consome. Ele é tão gato, que não consigo resistir. Agarro seu pescoço
de novo para beijá-lo. Luke corresponde com intensidade, a mão apertando
minha bunda, nossos corpos implorando para se aproximarem. Eu já penso
em tirar minha calça, abaixar sua cueca e enfiar seu pau dentro de mim.
Imagino que depois de quicar em seu colo, ele poderia me virar, eu apoiaria
as mãos na mesa e sentaria com a bunda de frente para ele.
— Joy — Luke sussurra meu nome, tentando separar nossos lábios.
Tento mantê-los grudados, me esfregando em seu pau intensamente,
querendo tornar minha fantasia realidade. — Saroyan, não podemos ficar
transando na agência — diz, me dando um selinho antes de me afastar.
Resmungo, chateada, porém consciente de que é a escolha certa. Eu
estava frenética e doidinha para transar, mas esse é nosso ambiente de
trabalho. Precisamos ser bonzinhos.
— A vida é dura e triste — resmungo, apoiando a testa em seu peito,
dramática.
Luke dá risada, fazendo carinho nas minhas costas.
— Temos reunião no bunker hoje. — Volto a olhá-lo quando cita o
encontro dos Serpentes que temos à meia noite. — Se quiser, pode ir para
minha casa depois.
— Não vai apontar a arma para minha cabeça?
— Não.
— Não vai ameaçar esfaquear meu pescoço?
— Só se isso te excitar.
Abro um sorriso perigoso quando o escuto.
— Gosto dessa ideia — brinco, fazendo-o rir mais uma vez.
Eu também rio. Ele continua rindo. Nós usamos os momentos de ódio
para zombar um do outro, nos envolvendo em um mar de risadas, amor,
leveza.
A calmaria só faz parte da minha vida quando estou com ele.

Qualquer um que perca dez segundos olhando para mim e Luke,


perceberá que estamos transando. Assim que chegamos no bunker, nos
posicionamos em rodas de conversa diferentes, mas não paramos de nos
encarar. Eu não o cumprimentei, ele tampouco passou perto de mim, mas a
tensão entre nós é palpável. Os olhares maliciosos e ansiosos que trocamos
exalam calor e são o significado puro de tensão sexual.
Notei que Brenda me fitou vez ou outra, deve ter percebido que estou
feliz demais e imaginado que é por causa de Luke. Ela pode não admitir,
mas sempre gostou dele e torceu por nós. Ele me equilibra, traz uma
racionalidade para a minha impulsividade. Somos ótimos juntos.
Esboço um sorriso para ela, assentindo para confirmar sua teoria. Brenda
força uma resposta sorridente, consigo ver que está feliz por mim, mas não
feliz por ela. Há algo a corroendo, a afundando cada dia mais.
— Sentem-se, precisamos começar logo, para terminar logo — ordena,
mais grosseira do que o normal. Ela está desesperada para voltar para
casa, é o que concluo. — Por que Lucy e Christian não chegaram? Onde
eles estão? — questiona, olhando para a minha equipe, depois para o Big
Six.
Cheguei aqui com Zoey. Nós estávamos em casa descansando, até a hora
da reunião. Lucy saiu assim que chegamos da agência e disse que tinha
algumas coisas para fazer, mas que nos encontraria no bunker assim que
terminasse. Fiquei desconfiada, porém, não dividi minhas impressões com
Zoey.
— Fiz uma pergunta. — Brenda não muda a expressão, mas sua voz
carrega um alerta.
— Não sei — Noah é o primeiro a responder.
A diretora olha para mim e Zoey e nós duas negamos com a cabeça. Ela
não se dá ao trabalho de perguntar a Liz e David, porque sabe dos atritos de
Lucy com seus pais.
— Descubra — Brenda ordena a Noah, que se levanta de imediato e vai
até os computadores da parceira.
Fico tensa dos pés à cabeça, preocupada com seu paradeiro. Lucy não
faltaria em uma reunião importante se estivesse consciente. Troco um
rápido olhar com Zoey, que aparentemente está pensando o mesmo.
— James, sabe do Christian? — A diretora pergunta ao amigo.
Ele está prestes a abrir a boca para responder, quando o babaca arrasta a
porta do bunker, chamando a atenção para si.
— Não precisa chorar de saudades, Brenda. Eu cheguei. — Abre os
braços, sorrindo como se sua presença fosse a mais importante do mundo.
Se eu pudesse, arrancaria o sorriso do seu rosto com uma das minhas
facas.
— Atrasos não são tolerados, Mayflower. Com tanto tempo de agência,
trabalhando na minha equipe, devia saber disso. — A bronca de Brenda não
causa muito efeito em seu “amigo”.
— Só diga o que precisa dizer — ele responde com um descaso perigoso,
se sentando ao lado de Kyle, a dois lugares de distância de Brenda.
Um erro de principiante para um agente com anos e anos de trabalho.
Christian ainda está com um riso egocêntrico no rosto, quando Brenda,
tão rápida que ninguém, exceto eu, percebe, lança uma faca na direção de
sua orelha. A lâmina passa raspando na carne, tirando um filete de sangue,
fincando na parede atrás dele.
— Fale dessa forma comigo de novo e não vou errar — ameaça e eu rezo
para que ele fale alguma babaquice e Brenda arranque sua orelha fora. Seria
espetacular.
Uma pena que esse imbecil se torna um fracote quando é ameaçado pela
chefona.
A sala é tomada por um silêncio sepulcral. Mal escuto a respiração do
resto dos Serpentes, pois todo mundo a prendeu diante da insubordinação
de Christian. Eu, por outro lado, estou sorrindo à toa, girando minha cadeira
de um lado para o outro, admirando a cara de merda desse cuzão.
— O Presidente Campbell liberou convites para o baile anual da Casa
Branca — Brenda anuncia, voltando à pauta que viemos conversar,
ignorando que Lucy ainda não chegou. Em uma rápida olhada, vejo que
Noah digita no computador da parceira, tentando encontrá-la. — Ele ficou
receoso com nossa presença, mas expliquei que os melhores agentes da
ANDOS gostariam de prestigiar o evento e prestar as homenagens a ele. É
um baile que exige traje social completo. Estejam prontos para estar à altura
de um evento como esse.
— Eu vou? — James pergunta, seu receio dá para ser sentido a uma
distância considerável.
— Melhor não — Brenda responde, suspirando, chateada com essa
merda de história. O Presidente pediu para tirá-lo do cargo de vice-diretor,
não há chance alguma de dividir o mesmo ambiente que ele. — Nós
estaremos lá unicamente para observar a movimentação de Paul Huskey e
Richard O’Conell. Usaremos os comunicadores para segui-los pelo salão
em turnos e evitar que sejamos pegos. Precisamos estar atentos a todas as
conversas e prevenir um desastre, caso sintamos que algo está prestes a
acontecer.
— Então, não vamos atacar? — questiono.
— Não. Ainda estamos na fase de entender a Tempestade Noturna.
Enquanto não soubermos quem comanda a máfia, não atacaremos —
Brenda determina e eu assinto, concordando com a decisão. — Um detalhe
importante — fala, chamando a atenção. — O Presidente exigiu que
nenhum de nós leve armas.
— Tá brincando!? — rebato, indignada.
Brenda estende a mão, pedindo que eu me acalme.
— Eu disse a ele que nenhum agente sai desarmado, então ele liberou
armas de pequeno porte. Por favor, não levem nada além disso. Não
queremos problemas com o governo. Não agora.
Sinto um alívio ao ouvir que pelo menos não precisarei me arriscar.
Brenda avisa as datas e horários que iremos sair, pedindo para marcarmos
o evento nas agendas. Ela pede que nós falemos com Lucy e peçamos a ela
um mapa completo do salão onde a festa acontecerá. Antes de sermos
dispensados, exige que encontremos Lucy. Para minha surpresa, Noah se
levanta e diz que achou a amiga e já conversou com ela. Sua mentira
deslavada é que Lucy voltou para casa para se trocar e pegou no sono.
Ninguém acredita na besteira que ele fala, mas Brenda nos dispensa, se
dando por satisfeita, deixando que esse problema seja resolvido por nós.
Liz e David se aproximam do parceiro da filha e começam a questioná-
lo, mas Noah jura que o que falou é verdade. Espero que os dois insistam no
assunto até desmascará-lo, mas o esgotamento no rosto dos pais de Lucy é
nítido. Eles sabem que a filha os evita ao máximo e prefere que fiquem o
mais longe possível.
A escolha que fazem é se afastar e obedecê-la quando, para mim, deviam
fazer justamente o contrário.
— Vamos? — Luke murmura em meu ouvido, a voz sexy me lembrando
do encontro que havíamos marcado.
— Me dá um minuto — respondo e me afasto, indo até Noah. Zoey,
vendo a movimentação, deixa Nate para trás e também se aproxima. — O
que você realmente descobriu?
Noah alterna o olhar entre mim e Zoey, deixando a preocupação
transparecer em seus olhos azuis.
— Porra nenhuma! — confessa, os dedos das mãos se fechando, uma
gota de suor escorrendo na testa. Peço com meu olhar que se controle,
porque Luke e Nate ainda estão no bunker e podem vê-lo. — Ela está com o
celular desligado, não consigo rastrear e não sou um gênio como ela!
— Nós vamos dar um jeito — diz Zoey. — Precisamos dispensar os
meninos. — Minha amiga me encara, na mesma hora se afastando para
falar com Nate.
Suspiro, triste por ver minha noite de sexo louco ser trocada por uma
missão inesperada. Eu gostaria muito de relaxar ao lado de Luke, mas o
paradeiro de Lucy é mais importante. Desaparecimentos parecem cercar
minha vida e me recuso a perder outra pessoa.
— Está tudo bem? — ele pergunta quando paro à sua frente.
— Sim, mas Lucy precisa da gente. É uma emergência de garotas —
explico, fingindo uma expressão plena.
— E o Noah vai junto? — Aponta para o gêmeo de seu melhor amigo.
Engulo em seco, quase dizendo o que não devo.
— Ele é o melhor amigo dela. — Dou de ombros, desencanada.
Luke coça a cabeça, dá para ver que não está compreendendo a situação
muito bem. Sigo sorrindo, mantendo a atuação impecável para que ele não
desconfie da nossa preocupação.
— Bom, fica para a próxima. Mas se resolverem rápido essa...
emergência, me ligue. — Ele deixa um beijo em minha bochecha, o olhar
perdido em meio ao cenário que expus.
Quando se deitar na cama e repensar em todos os detalhes desse diálogo
e da noite de hoje, é certo que irá perceber que foi enganado. Por hora, me
contento com sua aceitação. Depois que tudo estiver resolvido, posso abrir
parcialmente o jogo para ele.
— Eu sabia que vocês iam acabar voltando — Zoey comenta, sorrindo de
orelha a orelha, os olhos encantados com o que vê.
— Nós não voltamos — respondo de bate pronto.
— Estamos recomeçando — Luke completa, mas abraça minha cintura,
me puxando para perto e deixando outro beijo no meu rosto.
Noah esboça um sorriso para a cena, é a reação mais forte que consegue
ter, visto toda a situação com Lucy. O filho da puta do seu irmão, nos
encara com desgosto e nega com a cabeça.
— Vou dar o fora — anuncia, pegando seu casaco na cadeira em que
estava sentado, beijando a namorada rapidamente e se dirigindo à saída do
bunker.
— O ar até ficou mais leve — comento, arrancando uma risada de Luke.
Aproveitando que seu melhor amigo controlador nos deixou em paz, ele
me beija na boca, sua língua me invadindo em um contato intenso, que me
faz querer matar Lucy. Quando nos separamos, ele pisca para mim da forma
mais sexy possível, enviando lembranças direto para minha boceta.
— Apaixonadinha, venha para cá! — Zoey chama quando me vê
observando Luke ir embora.
Reviro os olhos, respiro fundo para segurar meu fogo e me aproximo de
Noah e Zoey. O clima descontraído se vai, porque precisamos focar no que
importa.
— Novidades? — pergunto, observando as telas dos computadores sem
entender absolutamente nada.
— Deve existir uma forma de rastrear um celular desligado, mas eu não
conheço. A Lucy que é a nossa hacker. Eu não sei metade do que ela sabe.
— Noah nega com a cabeça, a respiração encurtada devido ao desespero
que sente por não saber onde a amiga está.
Há uma teoria se formando em minha mente, mas ainda não quero
compartilhá-la.
— Meus conhecimentos são limitados — Zoey lamenta, depois olha para
mim. — E os seus? Não adquiriu nenhuma habilidade nova nos últimos
anos?
Nego com a cabeça, triste por não ter o número de Quinn gravado. Ela
fazia alguns trabalhos para minha segunda equipe. Para Darius. Para o
submundo onde estive metida nos tais últimos anos.
— Qual o plano? — Noah pergunta, olhando para mim, esperando que eu
dite nossos próximos passos.
Zoey, para ajudar, também me encara, aguardando a decisão. Parece que
terei que tomar as rédeas da missão improvisada.
— Lucy esteve em casa antes de sair. Vamos invadir as câmeras do
prédio e seguir seus passos. Não é garantido, mas é a melhor opção que
temos — determino, pensando rápido.
Noah começa a digitar, tentando fazer o que digo. Ele é lento demais,
atrapalhando o andamento do plano. Se Lucy estivesse aqui, iria querer
matá-lo.
— Sei que não falamos sobre o elefante na sala, mas já pararam para
pensar que ela pode estar drogada em algum lugar? Ou até ter tido uma
overdose? — Zoey levanta a hipótese que eu também tenho em mente.
— Lucy abusa sempre, não é agora que ela vai se ferrar — Noah
responde, sem querer crer no que está à sua frente.
— Mas uma hora ela vai — falo.
Noah nega com a cabeça e segue digitando.
— Preciso contar uma coisa a vocês — anuncia Zoey, fazendo Noah
parar de digitar para encará-la. Sinto um frio na barriga e cruzo os braços,
me preparando para o que virá. — Um dia, Lucy chegou em casa cheirada.
Eu queria falar com ela sobre a festa da Joy, então entrei no seu quarto e
tomei um puta susto quando a vi. Achei que tinha morrido, sei lá. Mas essa
não foi a pior parte. As roupas dela estavam rasgadas, parecia que alguém a
tinha agredido ou algo pior... Quando perguntei o que tinha acontecido, ela
disse que tinha saído com um cara de um aplicativo e as coisas ficaram
intensas. Fingi acreditar, mas a mentira estava óbvia.
Prendo a respiração por alguns segundos, pensativa. Eu já tinha
levantado a hipótese em minha mente e a informação de Zoey só a torna
mais possível.
— Além de abusar do pó, ela está em uma relação abusiva? Sério? —
Noah questiona, outra vez com dificuldade de enxergar o que está à sua
frente.
— Ei, o que é aquilo na tela? É o celular da Lucy? — pergunto,
apontando para uma luz verde que pisca em um dos monitores.
Noah e Zoey desviam o foco para a tela, nosso amigo digita algumas
coisas e bate uma palma comemorativa.
— Ela ligou o celular. Lucy está bem, está viva! — Se empolga, dando
um soquinho no ar.
— Não vamos vibrar antes da hora. Onde ela está? — indago, tentando
colocar racionalidade na emoção do parceiro dela.
— Em um motel na beira da estrada — revela, a animação diminuindo, o
pomo de adão se mexendo enquanto engole em seco.
— Ótimo. Vamos descobrir quem é o puto que tem abusado da nossa
amiga — falo, já pensando em inúmeras formas de me divertir.
Isso se o tal cara estiver lá.
Quando duas pessoas precisam estar em um mesmo lugar, na mesma
hora, e não aparecem, o normal é desconfiar que estejam juntas. Em um
primeiro momento, quando Brenda constatou que Christian e Lucy não
estavam na reunião, eu não me importei, achei que fosse apenas uma
coincidência. Entretanto, quando ele chegou sorridente, com os fios de
cabelo levemente úmidos, imaginei que pudesse estar com alguma mulher
antes de chegar, por isso a demora. Logo minha mente pensou em Lucy.
Christian é bonito, um garanhão de primeira que consegue levar várias
mulheres a sua cama jogando charme e dizendo as coisas certas. Ele pode
ser um babaca nojento, mas sabe conquistar uma pessoa. O que mais me
impressiona é que Lucy o conhece e sabe da índole do amigo dos nossos
pais.
Seus motivos me são desconhecidos, apesar de eu imaginar que estão
relacionados à postura rebelde que aderiu no tempo em que fiquei fora.
Drogas, roupas escuras, pegar o amigo dos pais. Típico de quem quer
chamar atenção.
O problema é que, se eu estiver certa, então Christian Mayflower é ainda
pior do que imaginei. E eu definitivamente não vou permitir que saia dessa
ileso.
Zoey dirigiu como se estivesse em uma corrida para que chegássemos
logo ao motel de quinta categoria em que Lucy está. Fica no meio da
estrada que liga Row Fair a Pennetown, longe o suficiente para que Lucy e
Christian se atrasassem, isolado o suficiente para que ninguém os
reconhecesse.
Descemos do carro e batemos cada uma das portas com força,
desesperados para chegar até Lucy. Noah mantém o rastreamento pelo
celular e nos diz que estamos no lugar certo.
Corremos até à recepção, um lugar minúsculo com metade das paredes
de vidro. Há apenas duas cadeiras grudadas no vidro e um balcão para a
recepcionista. A mulher, que deve ter uma idade próxima à da minha mãe,
apesar de aparentar mais, se assusta com nossa entrada brutal.
— Estamos procurando uma pessoa. Loira, olhos claros, sempre anda de
preto, tem essa altura aqui — Noah aponta para seu ombro.
— Não posso dar informações de hóspedes — a mulher responde e
começa a organizar algumas fichas, ignorando nossa presença.
Imbecil.
— Tem câmeras de segurança aqui? — questiono e ela me encara com
desconfiança. — Precisamos muito achar nossa amiga. Acreditamos que ela
esteja em um relacionamento ruim e o cara a trouxe para esse motel —
explico com um pouco mais de graciosidade, tentando conquistá-la.
A mulher pensa, mas vejo que a amoleci ao citar o tipo de relação em que
Lucy possivelmente está inserida.
— Uma loira chegou aqui no final da tarde, está no quarto quarenta e
dois. É a única coisa que posso dizer.
Olho para Zoey e Noah, indicando que podem ir atrás de Lucy. Eu ainda
quero ter uma conversinha com essa querida recepcionista.
— Você não respondeu minha pergunta. Tem câmeras aqui? Gostaria
muito de descobrir quem é o cara com quem minha amiga está saindo. —
Me aproximo do balcão, mas ainda mantenho uma certa distância,
esperando a hora certa para atacar.
— Não, moça, não temos. E não posso te dar mais nenhuma informação.
— Mexe no computador de novo, querendo me fazer de trouxa.
Motéis baratos na beira da estrada são uma merda, mas tem suas
vantagens.
Saco minha arma, apontando-a direto para a testa da mulher. Ela arregala
os olhos e distancia as mãos do teclado, chocada com a atitude.
— Não atire. Eu juro que vou te dizer tudo o que quiser — implora.
— Ah, agora você quer colaborar? — Dou risada, passando o dedo pelo
gatilho para apavorá-la.
— Por favor. — Ela fecha os olhos, desesperada, com medo de que eu
avance.
— Vocês pelo menos registram o nome dos hóspedes ou seu motel é tão
lixo que nem isso vocês fazem? — a pergunta soa agressiva, da forma que
essa conversa vai ser conduzida a partir de agora.
— Fazemos, fazemos — repete, começando a suar, as bochechas
ruborizando, tamanho o choque.
— Quero o nome dele. Agora.
A mulher se atrapalha, mexendo em cadernos, procurando pelo registro.
Um motel sem câmeras e antiquado é perfeito para esconder uma relação
proibida.
— Aqui. — Apoia o caderno na mesa, apontando para o registro do
quarto quarenta e dois.
Rebecca Monray e Daniel Jasper entraram no quarto no final da tarde.
Foi pago em dinheiro e assinado por ele. Rasgo o pedaço do papel onde
estão os nomes e coloco no meu bolso.
Lucy não foi muito inteligente, quem a conhece sabe que seu nome do
meio é Rebecca e que o nome de solteira de sua mãe é Monray. Agora
Daniel Jasper é curioso. Preciso de um computador da agência
urgentemente.
— Obrigada pela colaboração, querida. Você ganhou a chance de viver
mais um dia — digo com sarcasmo, fazendo-a suspirar de alívio. — Mas
coloque câmeras nessa porra. Não deve ser caro e vai evitar que tenha
problemas como esse. — Mostro minha arma, brincando com ela na frente
do seu rosto. — Tenha uma boa vida nesse lugar miserável — desejo,
coloco a arma de volta na calça e saio para o estacionamento.
Não demora para que eu veja Zoey e Noah carregando uma Lucy meio
acordada nos ombros. Ela está com uma calça jeans, o botão está
arrebentado, o zíper mal fecha. Noto que Noah está apenas de camiseta e
seu casaco agora cobre boa parte do corpo de Lucy.
Corro para me aproximar, agora percebendo que há um hematoma em
seu rosto e outros no pescoço. Nem imagino como deve estar seu corpo.
— Encontraram alguma coisa? — pergunto, pensando na parte prática da
situação.
— Não vasculhamos nada — responde Zoey, séria, olhando para a
amiga.
Eles priorizaram o resgate de Lucy.
— Eu vou até lá — anuncio, mas antes que eu possa me mexer, Lucy se
debate nos braços dos nossos amigos, obrigando-os a soltá-la.
— Você não vai — enfatiza, as pupilas dilatadas em nítida euforia.
— Não era você que queria que eu desvendasse seu mistério? É isso que
estou fazendo! — Me exalto, irritada pela reação defensiva dela.
— Não, não, não! Sai! — Ela me empurra e eu perco o equilíbrio, mas
não caio. Fraca desse jeito, ela não me derruba.
— Lucy, olha para mim! — Seguro em seu rosto, obrigando-a a me olhar.
— Sou eu, porra! Estou aqui para cuidar de você. Nós estamos. — Mostro
nossos amigos, tentando acalmá-la.
Lucy empurra meu braço, se afastando e correndo na direção de Noah.
— Não quero você. — Olha feio para mim. — Nem você. — E repete o
mesmo ato com Zoey. — Quero só o Noah.
— Lucy... — Zoey tenta falar com ela, mas a loira está com o rosto
enfiado no peito de Noah, pedindo que ele a proteja.
Encaramos nosso amigo, buscando entender o que ele deseja fazer.
— Zoey, tire Nate da nossa casa. Vou levar Lucy para lá — pede,
acariciando as costas da parceira, que se fecha cada vez mais, escondendo o
rosto como se estivesse envergonhada.
Ela não quer que eu e Zoey a vejamos vulnerável.
Noah prefere pedir um táxi ao usar nossa carona, compreendendo que
Lucy precisa de espaço para se recuperar. Assisto aos dois indo embora ao
lado de Zoey, nós duas odiando o que acabou de acontecer.
— Ela foi embora, vamos revirar aquele quarto — anuncio, ameaçando
dar um passo para as escadas. Zoey segura meu braço, pedindo que eu pare.
— Lucy deixou bem claro que não quer que nós duas vasculhemos o
quarto — alerta e eu solto um riso irônico.
— E você vai obedecer? Precisamos descobrir quem é esse filho da puta!
Nem que eu tenha que revirar o lixo atrás da camisinha que ele usou!
Zoey ergue as sobrancelhas, enojada.
— Não gosto da ideia, mas quero acabar com essa história de uma vez
por todas, então vamos nessa. — Dá de ombros, mesmo insatisfeita. —
Mas, que fique claro, não vou revirar lixo nenhum. — Aponta o dedo para
mim, séria.
Dou risada.
— Deixe o trabalho sujo comigo. Estou acostumada.

São três horas da manhã. Eu e Zoey passamos a madrugada revirando o


quarto onde Lucy se encontrou com o tal Daniel Jasper — não que eu tenha
acreditado que esse nome seja verdadeiro — e não encontramos nada
significativo.
Sem o kit da agência e uma equipe especializada, fica difícil de encontrar
algum vestígio de que Daniel, na verdade, é Christian. Nada no quarto me
ajuda a acusá-lo e duvido que Lucy revele a verdade. Pegá-lo no flagra seria
a melhor opção, mas Mayflower não é bobo, muito pelo contrário, e sabe
disfarçar suas sujeiras melhor do que ninguém.
Assim que Noah e Lucy saíram, Zoey ligou para Nate e pediu que ele
fosse até o apartamento que dividimos. Como o trouxa que ele é, foi
correndo, achando que teria uma noite avassaladora de sexo. Não que essa
possibilidade não exista, acho que, inclusive, Zoey está se divertindo
sabendo que poderá ficar sozinha com o namorado.
E estou feliz por ter arranjado a desculpa perfeita para ir até a casa de
Luke.
Ele vem me receber na porta do prédio, trajando um conjunto de
moletom cinza, a calça deixando seu pau grosso marcado, me fazendo babar
em instantes.
— Só você é louca o suficiente para vir aqui às três da manhã — zomba,
negando com a cabeça, segurando a porta para que eu entre.
— E só você é louco o suficiente para aceitar — retruco, parando na
frente dele, apenas esperando que tome uma atitude.
Luke não decepciona. Ele me olha de cima a baixo, agarra minha cintura
e cola nossos corpos. A boca me recebe, a língua me invade, o calor em
meu peito transborda. Eu lembro outra vez que tenho um coração. Luke é o
único capaz de fazê-lo bater desse jeito.
Sua mão se entrelaça na minha, nossos dedos raspando um no outro. Ele
sinaliza para que eu me mova e seguimos até o apartamento. Nos beijamos
no elevador, no hall de entrada, na porta do apartamento. Demora até que
Luke tenha coragem de se separar de mim para podermos entrar.
Tomo o controle e prenso seu corpo na porta, agora dentro do
apartamento, sozinhos, sem a possibilidade de sermos pegos. Devoro sua
boca, deslizando as mãos para baixo do seu moletom, sentindo seu
abdômen, percebendo que não está com nada além do moletom. Me afasto,
segurando na barra para ajudá-lo a expor seu peitoral. Apoio as mãos em
seus ombros, lambendo seu pescoço, deixando beijos pelo seu corpo, até
chegar na altura do seu pau.
Ajoelho no chão, jogando meu cabelo para trás, expondo meu rosto. Faço
um carinho provocativo no volume de sua calça, encarando-o com um olhar
lascivo.
Luke morde os lábios, o tesão tomando seu rosto e cada linha de sua
expressão.
— Vou poder foder sua boca suja, Saroyan? — provoca, me lançando um
olhar desafiador.
— Temporariamente — aviso como as coisas serão, determinando o
ritmo da nossa noite.
Ele segura no elástico de sua calça, empurrando-a para baixo de uma só
vez, libertando meu novo melhor amigo. Depois de chutá-la para longe,
envolve a própria mão em seu pau, se masturbando enquanto encara meu
olhar sedento.
— Abre a boquinha — pede, mas não obedeço.
— Quero te chupar do meu jeito.
— E eu quero foder sua boca do meu.
O embate entre nós me deixa ainda mais excitada. Há uma competição
pairando no ar. Um de nós terá que ceder para o outro vencer e não somos
pessoas que desistem das batalhas facilmente.
Luke segue batendo uma, deixando claro que pode ter seu prazer sem
mim. Filho da puta. Ele sabe que eu faria muito melhor.
Se ele quer uma guerra, é isso que terá.
Arranco minha blusa e meu sutiã, libertando meus seios, tocando-os em
sua frente, apertando um contra o outro, certa de que ele imagina como
seria ter seu pau ali. Luke acelera os movimentos, vejo sua respiração
entrecortada e tenho a certeza de que estou o atingindo no lugar certo.
Para deixar o clima fervendo, lambo um dos meus dedos, abro o zíper da
calça e começo a brincar com meu clitóris. Meu gemido não é discreto, sei
onde devo me tocar para derreter mais rápido. Deslizo o dedo para dentro,
depois voltando para o clitóris, acrescentando outro dedo porque só um não
me sacia. Decido que quero gozar, destruindo o Luke por sua
masculinidade, pela imposição idiota de que a mulher só pode chegar ao
orgasmo com a ajuda de um parceiro.
Os gemidos o enlouquecem. Jogo a cabeça para trás, mostrando o quanto
eu estou enlouquecida enquanto me embebedo de prazer. Com a mão livre,
seguro um dos meus seios, pressionando-o no momento em que chego ao
meu ápice, gozando em meus dedos.
Encaro Luke quando tiro os dedos da boceta e levo direto para minha
boca, provando meu gosto.
— Você é o único idiota que não quer provar também.
Ele respira fundo e diminui o ritmo, erguendo as mãos, se rendendo a
mim.
Eu gosto de homens obedientes.
Envolvo seu pau com minha mão gozada, melando-o com minha saliva e
meu gozo ao mesmo tempo. Abocanho seu comprimento, a língua
brincando com sua glande enquanto o mantenho dentro da minha boca.
Luke fecha os olhos e cerra os punhos, se controlando para não mover os
quadris e acelerar.
Tomo o controle por mais um tempo, até olhá-lo, indicando que pode me
foder com mais velocidade. Ele foi um bom menino, merece alguns
segundos de vitória.
Luke agarra meus cabelos com força, o quadril fodendo minha boca de
um lado, a mão me empurrando para mais perto do outro. Tenho que
controlar a respiração para não sufocar, mas adoro a sensação de ser
dominada, com a mesma intensidade que amo dominar.
Ele me dá poucas folgas, seu autocontrole escapando pelos seus dedos,
sendo entregues a mim. Deixo que ele acelere o ritmo para finalmente
atingir seu ápice, gritando enquanto goza na minha boca. Tento engolir
tudo, mas a hora que ele afasta o pau, um pouco do líquido escorre pelo
meu queixo. Limpo com o dedão, lambendo o que escorreu, para que cada
gota de seu prazer seja minha.
Mesmo ofegante, com o peito suado subindo e descendo em um ritmo
mais veloz, Luke estende a mão para me ajudar a levantar. Apoio as mãos
em seu peito, deixando um beijo em seus lábios, antes de apontar para o
banheiro, indicando que me encontre lá.
Tomamos banho juntos e ele me empresta uma camiseta para que eu
possa dormir com mais conforto. Reparo que é a mesma que me emprestou
no dia em que dormi aqui, o meu primeiro dia de volta à agência, quando
ele me recebeu da pior forma possível e discutiu comigo na mesa de jantar.
Agora, estamos abraçados, embaixo das cobertas, nos recuperando do
êxtase que o sexo nos proporcionou.
— Vai me contar o que aconteceu com a Lucy? — questiona, fazendo
carinho no meu braço.
Não me surpreendo por ele ter notado minha mentira.
— História longa e complicada.
— Não tenho pressa para dormir. Teremos poucas horas de sono de
qualquer jeito.
Suspiro, pensando como posso começar. Não quero entregar coisas
demais, com medo de invadir a privacidade de Lucy, mas preciso de uma
opinião. Luke é um estrategista, ótimo em juntar peças de um quebra-
cabeça.
Então, exponho tudo, desde seu abuso com as drogas — coisa que ele já
sabia — até o relacionamento perturbado e minha desconfiança de que
Christian é seu parceiro.
— Ele é um velho. E amigo da sua mãe. Dos pais dela! — ressalta,
fazendo uma careta, achando a situação absurda.
— Muita gente gosta de homens mais velhos, não é algo incomum.
— Não acha nojento? — pergunta, preocupado.
— Acho, principalmente se tratando do Mayflower. Mas não dá para
descartar a possibilidade só pela diferença de idade e a proximidade com
nossos pais — constato, séria. — Opiniões?
— É possível, bem possível. Precisamos encontrar tudo sobre a
identidade falsa que ele usou. Ver se já usou em outro lugar, tentar ligá-la a
Christian de alguma forma.
— É nossa única pista. Lucy não vai abrir o bico. Teremos que descobrir
a informação de outra forma.
— Amanhã começamos a trabalhar nisso.
— Amanhã — confirmo.
Luke me olha sorrindo, mesmo diante do assunto pesado. Faço uma
careta, sem entender o motivo da alegria.
— Senti falta de discutir casos com você. Não há outra pessoa no mundo
que me entenda como você entende.
Espelho sua expressão, entendendo muito bem o que quer dizer. O que
temos é diferente. Tanto na conexão do trabalho, quanto fora dele.
— Os melhores parceiros, sempre — falo.
— Sempre — afirma, me abraçando mais, beijando minha testa antes de
apagar a luz, anunciando que iremos dormir.
Quando estou ao lado de Luke, sinto uma paz que não consigo explicar.
Não fico ansiosa para fumar, meu passado fica preso em uma caixinha,
escondido dentro da minha mente. Eu durmo tranquila, descansando como
há muito tempo não faço. Não tenho sonhos macabros. Não me imagino
matando ninguém. Não revivo memórias duras da infância.
Eu só durmo.
Olhar para Lucy desacordada em minha cama é pior do que receber um
tiro. Não que eu tenha recebido muitos. Minha frequência em campo não é
das melhores, graças a proteção excessiva do meu irmão. Entendo o receio
de Nate, sou sua única família e ele quer que eu me mantenha vivo.
Entretanto, me sinto constantemente desvalorizado na agência, desenvolvi
um complexo de inferioridade gigantesco e não acredito mais no meu
potencial.
Tremo toda vez que seguro uma arma, hesito em momentos que não devo
hesitar, acabo me ferindo de forma desnecessária, o que faz Nate ficar mais
preocupado, evitando me colocar nas missões e piorando a situação.
Estou preso nesse ciclo desde que entramos na agência. Para ser honesto,
desde que nossos pais morreram assassinados quando trabalhavam para a
polícia. Crescemos neste mundo, aprendemos a nos defender cedo, e fomos
convidados a participar do treinamento de recrutas da ANDOS enquanto
estávamos treinando para ingressar na polícia.
A sede de ver bandidos mortos perdura dentro de nós dois desde que nos
conhecemos por gente. Nate deixou que isso o consumisse, juntamente com
a responsabilidade de cuidar de mim. Ele é apenas alguns minutos mais
velho, mas, como sempre gosta de repetir, é o mais velho independente de
qualquer coisa.
Eu tinha uma sede tão grande quanto a dele quando entrei na ANDOS.
Ao longo dos anos, essa vingança desnecessária foi diminuindo sua
importância. Muitas coisas aconteceram na minha vida, fui abalado de
diversas formas diferentes, fui obrigado a ser quem não sou.
Ainda sou.
Em meio à turbulência do treinamento de recrutas, em momentos
terríveis da minha história, em que estava de luto pela morte dos meus pais
e ansioso para colocar a mão em alguns bandidos filhos da puta, conheci
Lucy. Meu anjo no inferno. Meu porto seguro. Minha âncora.
Não preciso estar apaixonado por ela para saber que é minha alma
gêmea. Nós temos uma relação diferente, uma sincronia absoluta, um amor
que surgiu no momento em que nos vimos pela primeira vez. Nate é minha
família de sangue, mas Lucy sabe de coisas que ele nem sonha. Com ela,
posso ser eu mesmo.
Vê-la machucada no corpo e na mente me corrói. Suas lágrimas são
como um veneno que intoxica meu corpo. Eu sinto sua dor em minha pele.
Prefiro sofrer a assisti-la sofrendo. Mas meu anjo se perdeu. Abraçou a
escuridão dentro de si e se afundou dentro de si mesma.
Tento resgatá-la desde que se perdeu, contudo, tive que aceitar, muito
tempo atrás, que nem tudo está ao meu alcance.
Faço carinho nos traços perfeitos de Lucy, triste por ver seu rosto tão
abatido e magro, por seus ombros estarem mais ossudos do que o normal.
Aproveitando que está apagada, subo a manga de seu casaco, encontrando
um hematoma ou outro. Sinto meu coração retumbar dentro do peito,
abalado com o que estou vendo.
Lucy começa a se mexer. Quando penso em cobrir seu braço para que
não perceba que andei bisbilhotando, é tarde demais. Ela já percebeu o que
eu vi.
— Não se atreva a dizer nada — ameaça, ajeitando o casaco para se
cobrir, puxando a coberta da minha cama com a mesma finalidade.
— Como não vou dizer? — rebato, ainda sentado na cama, com as pernas
para fora, os braços envolvidos no corpo dela.
A respiração de Lucy está mais intensa, dá para ver a preocupação
tomando conta, o medo de ser pega consumindo sua mente.
— Noah, nossa relação é a coisa mais importante que eu tenho. Não
estrague. — Aponta para o próprio peito, os olhos claros desesperados com
a possível cobrança que virá.
Lucy me conhece e sabe como me deixar mexido. Ela é o meu mundo e
eu sou o dela. Em geral, tentamos não julgar a escolha do outro. Não
brigamos ou discutimos, optamos sempre por ter momentos bons juntos.
Entretanto, as amizades não foram feitas para ser um mar de rosas. Às
vezes, precisamos de alguns espinhos.
— Para nossa relação continuar existindo, você precisa estar viva — falo,
duro, encarando-a com o olhar mais bravo que tenho para entregar. Lucy
engole em seco, odiando minha reação. — Acha que não sei do seu vício?
Acha que nunca reparei no quanto se droga? No quanto cheira essas
merdas?
— Noah... — As lágrimas começam a se formar em seu rosto, a máscara
vai caindo aos poucos ao perceber que sei do seu segredo. Ou, pelo menos,
de um de seus segredos.
— Se você tentar negar, eu juro que te expulso dessa casa. — Sou duro,
porque essa conversa pede por um tom mais bruto. Lucy precisa sentir o
quanto estou bravo. Quero que ela se abale com a minha reação para que
pense duas vezes quando quiser usar aquelas porras.
Lucy enxuga os olhos e se encolhe mais na cama, querendo sumir a todo
custo.
— Eu fico bem — admite, olhando para o nada, sem coragem de falar
enquanto me encara. — Cheirar me faz... — Pausa, pensativa, ainda fitando
o vazio, ainda vazia — esquecer da realidade — completa.
— A sua realidade é tão horrorosa assim? — rebato na hora. — É por
causa do cara que estava com você no motel? — Lucy hesita ao ouvir o
tópico.
Quem dera só as drogas fossem seu problema.
— Vocês estão imaginando coisa.
— Imaginando? — questiono, inconformado. — Você faltou em uma
reunião dos Serpentes! Brenda ficou puta, me pediu para te rastrear, e
demorei pra cacete para te encontrar porque você estava em um motel com
um cara! E ainda por cima, um cara que claramente não te trata do jeito que
você merece!
— E o que eu mereço, Noah?
— Alguém que te coloque em um pedestal, Lucy. — Uso seu nome,
falando na mesma entonação que ela usa.
Lucy está na defensiva. Esse é um assunto delicado, sobre o qual ela
claramente não quer conversar. Não entendo em que momento minha amiga
se perdeu dessa maneira.
— Você não sabe nada sobre amor, muito menos sobre relacionamentos
— devolve, ríspida.
— Está defendendo o cara?
— Não estou fazendo nada. — Exagera no tom de voz e eu levanto as
sobrancelhas, inconformado por ela estar falando dessa forma comigo. Justo
comigo! — As coisas só não são tão simples. — Abaixa o tom quando
percebe que não gostei do quanto se exaltou.
— Por quê?
— Porque não são.
Suspiro, exausto dessa conversa. Se ela fosse qualquer outra pessoa, eu
deixaria para lá, mas estamos falando de Lucy. Ela é tudo para mim.
— Quem é o cara? — questiono de novo, sério.
— Não vou dizer.
— Eu conheço?
— Pare de fazer perguntas.
— É da agência?
— Noah! — Ela bate as mãos no corpo e puxa a coberta para cobrir seu
rosto.
Segundos depois, eu a descubro, voltando a encarar sua feição irritada.
— Responda alguma coisa, caralho! — xingo, segurando o edredom para
que ela não tente puxá-lo de novo.
Como o esperado, Lucy trava uma batalha contra mim para se cobrir.
Contudo, com o corpo fraco do jeito que está, não consegue me abalar.
— Eu não quero! — Desiste de mexer nas cobertas, cruzando os braços
como a boa birrenta que é.
— Implorou para que eu te trouxesse aqui, disse que precisava de mim, e
agora se afasta desse jeito? Me deixe te ajudar!
— Eu te escolhi porque Zoey e Joy são duas enxeridas!
Abro a boca, chocado, e balanço a cabeça, compreendendo sua linha de
pensamento.
— E eu sou o passivo que nunca faz perguntas, não é? Que respeita seu
espaço, te deixa fazer o que você quer, assiste você definhar e não fala
nada? — pergunto, imaginando que é exatamente isso que se passou em sua
mente.
Só mais uma que me acha um fracote.
— Não é isso — Lucy nega com a cabeça, dá para ver que ficou abalada
por me deixar magoado.
— Sou seu melhor amigo, a sua pessoa. — Aponto para meu peito. —
Estou estendendo minha mão para te ajudar. Vou fazer o que tiver ao meu
alcance para te fazer sair dessa. Mas preciso entender o que está
acontecendo. Lucy!
Mostro que, independentemente de sua atitude defensiva, continuarei
aqui. Ela pode tentar me afastar, mas não deixarei que escape, não quando
precisa tanto de mim.
— Não tenho conserto — diz, apática.
— Ei, não diga isso. — Levo uma das mãos para seu rosto, fazendo
carinho na pele branca. — Todo mundo tem — afirmo. — Vou lutar por
você para sempre. Não foi isso que juramos um para o outro?
— Foi — responde baixo, ferida.
— Estou cumprindo minha parte.
Lucy suspira diante do que digo. Tiro minha mão do seu rosto para
entrelaçá-la à sua, mostrando meu apoio incondicional.
— Não quero ir para a reabilitação — fala, se rendendo um pouco pelo
menos no quesito “cocaína”.
— Você precisa parar de usar essas merdas, não temos muita escolha.
— Não vou deixar a agência para me tratar.
Mais uma vez, Lucy mostra o quanto seu trabalho é significativo. Ela
precisa permanecer na ANDOS para poder se curar. Posso usar isso como
incentivo para que finalmente tente ficar limpa. Se continuar nesse
caminho, perdida, tenho certeza de que Brenda irá dar uma advertência ou
até cortá-la da equipe. A diretora não brinca em serviço. Mesmo que Lucy
seja filha de seus melhores amigos, ela precisa entregar resultados para a
agência. Faltar em uma reunião, como fez hoje, cai muito mal perante
Brenda.
— Tem uma ala médica gigantesca por lá, sabia? — Uso um tom mais
brincalhão, já pensando em levá-la amanhã mesmo.
— Jura? Nunca percebi! — ironiza, entrando na minha vibração.
Rimos juntos, o clima se descontraindo, ficando mais próximo do que é
normalmente. Aproveito o bom momento para tentar arrancar o nome do
homem que está a machucando.
— Lucy, você precisa se desintoxicar de todas as drogas da sua vida.
Esse cara é com certeza uma delas.
Ela fecha a cara de novo.
— Você não o conhece.
— Porque você não me conta quem é! — Me exalto, dizendo o óbvio.
Lucy solta minha mão, voltando a colocá-la embaixo das cobertas. — Não
me diz o que ele faz com você! Te bate? Te força a fazer alguma coisa que
você não quer? — Pelo olhar que me lança, percebo que estou certo. — Me
diz quem é o cara — insisto. Não saber está me corroendo por dentro.
— Não. Você vai fazer merda.
— Sim, vou matá-lo — afirmo com convicção. Mesmo não sendo o mais
sanguinário do grupo, não sou santo. Cuido do que é meu.
— Noah!
— Ninguém toca em você.
— Não pode fazer isso. Vai recair em você...
Sua fala me faz franzir a testa.
— Por quê? Ele é da agência, então? — questiono para confirmar, mas
estou certo de que esse filho da puta é um conhecido.
— Noah — Lucy diz meu nome com seriedade, me alertando para parar,
como se eu fosse obedecer.
— Fala, caralho!
— Eu não quero! É um segredo!
— Mas não deveria ser.
— O seu também não deveria, mas eu não saio por aí gritando que você é
gay! Respeite meu silêncio.
Paraliso, chocado por ela ter dito isso em voz alta. Meu coração dispara,
pensando em Nate, mas logo me lembro de que ele está na casa de Zoey.
— Estou tentando te ajudar, não me enfie na conversa e nem tente me
ofender para que eu fique bravo com você e recue. Não vou a lugar algum
— reafirmo, ainda me sentindo abalado. Lucy nunca usou meu segredo para
vencer uma discussão. Ela sabe que essa é uma pauta complicada para mim.
— Não vai dizer? Mesmo?
— Não posso — confirma, seguindo no mesmo silêncio doentio.
— O que você está escondendo, Lucy? Está encobrindo um cara que te
agride? — indago por que não consigo engolir essa merda.
— É complicado. Não é só isso. Eu...
Para no meio da frase, me deixando ainda mais instigado.
O que diabos ela está escondendo tanto?
São mesmo só as drogas e o caso com um homem misterioso?
Por que insiste tanto em não soltar o nome dele?
— Lucy... — falo seu nome em tom de cobrança.
— Vou embora. É melhor. — Joga as cobertas para o lado, ameaçando se
levantar e fugir do assunto.
— Está no meio da madrugada, sem chance de você ir sozinha. Fique na
cama — insisto, impedindo que se levante ao bloquear a passagem com
meu braço.
Lucy me encara, os olhos confusos, passando por um turbilhão de
sentimentos. Ela não quer ir, não de verdade. Só está com medo de acabar
cedendo e me contar a verdade.
— Eu fico, mas só se as perguntas acabarem — propõe.
— Elas podem acabar por hoje. Mas amanhã é um novo dia. — Resolvo
ceder para que ela não vá. Sei que precisa de mim essa noite.
Entretanto, as perguntas não vão parar. Eu não vou descansar até
descobrir o que apagou a luz do meu raio de sol.
Sou uma rainha presa dentro do meu próprio castelo. Passei o final de
semana inteiro dentro de casa a pedido de Bryan, que estava choroso e
carente, ainda sofrendo por causa de Joy. Alex nos fez companhia em
alguns momentos, mas ela tem a própria vida, não consegue ficar presente o
tempo inteiro. Nem quero que ela fique. A responsabilidade de lidar com a
tristeza de Bryan é minha.
Depois de dois dias sem sentir a luz do sol, uso o momento em que desço
do carro, no estacionamento da agência, para absorver os raios solares e
respirar ar puro. A sensação de sufocamento ainda está presente,
principalmente porque terei que voltar para casa em algum momento.
Eu gostaria de nunca mais pisar naquele lugar. De esquecer as memórias
de Ethan sendo raptado dentro de seu próprio quarto. De apagar as
lembranças do meu sistema falhando, da minha busca falhando, da minha
falha como um todo. De eliminar minha briga com Joy, a discussão que a
fez ir embora, porque eu a culpei, alegando que não tinha fiscalizado o
irmão da forma que deveria. Como se ela pudesse evitar. Como se eu não
tivesse sido a culpada. Sua similaridade comigo me fez acusá-la. Despejei
tudo o que eu achava que alguém deveria me dizer em cima dela. Fui uma
das causas da sua fuga. Me compliquei ainda mais. Me prendi ainda mais.
Não consigo respirar.
Batendo meus saltos contra o chão, não hesito em entrar na agência e ir
para o único lugar onde sei que terei algum alívio. Ficar sofrendo no
estacionamento não é do meu feitio.
Entro no elevador, aperto o botão do -1 e desligo meu celular, suplicando
por paz. Quando a porta se abre, me apresso, conferindo no relógio que
estou adiantada. A maioria dos agentes ainda não chegou. O andar está
inteiramente vazio, exceto pela sala que é meu destino final.
Não bato na porta, não penso que Kyle pode não estar, porque ele sempre
está. Conheço sua rotina, seus hábitos, manias. Eu o conheço tanto que
presumo que estará em pé, tomando seu café, com o quadril escorado no
móvel que considera seu bar. Ele gosta de esticar as pernas depois de passar
a noite toda deitado. Gosta de pensar nos afazeres do dia e em mim
enquanto faz seu desjejum. Sempre se pergunta se vou aparecer em algum
momento ou se passará o dia todo sem me ver, mesmo que nós trabalhemos
no mesmo prédio.
— Me deixe adivinhar, está pensando em mim? — pergunto quando
entro na sala, permanecendo perto da porta, segurando a maçaneta, até que
ele me olhe.
O sorriso que surge em seu rosto faz o ar voltar para os meus pulmões.
— Sempre estou, B.
Fecho a porta atrás de mim, deixo minha bolsa em uma das cadeiras e
tiro meus saltos. Apoio o quadril na mesa dele, me posicionando à sua
frente. Kyle apoia sua xícara de café na mesa e vira de costas para fazer um
para mim. Coloca a cápsula na máquina, posiciona outra xícara e, enquanto
espera pelo café ficar pronto, me encara. Ele tenta descobrir o quanto estou
aberta, rapidamente notando que preciso dele. A máquina avisa que o café
ficou pronto. Kyle me entrega a xícara, mas não a solta em minha mão.
Nossos dedos se encostam, o toque é mínimo, mas já faz com que eu me
sinta completa.
— Você não está bem — constata.
— Não, não estou.
Ele faz um carinho leve na minha mão, a ponta dos dedos encostando no
dorso, nossas peles em um contato puro e singelo. Olho para nossas mãos,
depois para seu rosto, nossos olhos se encontrando. Kyle acena com a
cabeça para o café, indicando que eu assuma o controle da xícara. Dá
passos para trás e volta para sua posição, pegando seu próprio café.
Bebo um gole ao mesmo tempo que ele.
— Bryan continua sofrendo? — O nome do meu marido sai engasgado
de sua boca, tóxico como um veneno.
— Continua. — Sou seca porque não quero seguir no assunto.
Kyle toma seu café novamente, mas eu sei que as perguntas não vão
parar por aí.
— Ele não vai melhorar — constata o óbvio.
— Não vai — confirmo e ele me olha por cima da xícara, as sobrancelhas
erguidas dizendo muito mais do que palavras. — Não fale nada.
— Você sabe o que penso. — Dá de ombros, dando a golada final em seu
café, apoiando a xícara no bar improvisado. Aproveita que está com as
mãos livres e cruza os braços. Sua camisa cinza é justa, o movimento faz
com que os bíceps saltem e o peitoral quase rasgue o tecido.
— Bryan perdeu muito.
— E usa isso para te prender — Kyle expõe a teoria que repete há anos.
Ele tem para si que Bryan não é tão inocente quanto parece. Que ele sabe
que eu tenho uma relação com outro homem e quero me divorciar. Kyle
acredita que ele encontrou a desculpa perfeita para me manter ao seu lado,
usando seu sofrimento com o desaparecimento de Ethan e Joy para que eu
me sinta culpada em deixá-lo.
Gostaria de dizer que não acredito em sua teoria, mas eu seria boba se
não cogitasse a possibilidade. Tenho motivos para tal.

dezoito anos antes

Naquela noite, como em inúmeras outras, cheguei mais tarde do que


deveria. Minha relação com Kyle, antes estremecida, havia atingido seu
ápice novamente. Foram anos e anos de idas e vindas, desentendimentos e
conflitos, mas ele finalmente tinha entendido meus motivos e concordado
que a melhor escolha que eu poderia ter feito era aquela. O afastamento
era necessário. O segredo também.
Com a diminuição das brigas, nosso amor teve espaço para florescer.
Estávamos no ápice da paixão. Do reencontro. Revivendo as memórias
depois de mais um longo tempo longe.
Éramos assim há anos. Tivemos uma longa relação que eu fiz o favor de
estragar. Vivemos uma paixão proibida. Fomos obrigados a nos distanciar
por sermos descuidados. Aquela era o quê? Nossa terceira chance? Eu não
sabia mais dizer, mas estava vivendo cada dia intensamente, matando as
saudades do meu grande amor.
Não era certo para ninguém, exceto nós dois.
Eu tive plena consciência disso quando abri a porta de casa e meu
sorriso grandioso se perdeu. Bryan estava sentado na ponta da mesa de
jantar, lugar que eu normalmente ocupava, tomando uma taça de vinho,
mais cheia do que o comum. A garrafa ao seu lado estava metade cheia,
indicando que já estava ali há horas, se embriagando enquanto sua esposa
estava fora.
— Você chegou tarde. — Sua expressão brava e fechada deixou claro que
eu estava em apuros.
Tirei o sorriso do rosto e caminhei até ele com calma, colocando minha
mente no lugar, esquecendo da noite perfeita que havia vivido para me
concentrar no problema que tinha para resolver.
— Eu sei. Tive que cuidar de uma papelada na última hora — menti,
fingindo casualidade, fazendo algo que era comum para mim todos os dias.
Aquela vida, a mulher de Bryan, Brenda Fisher, era uma mentira.
— Toda vez que você chega tarde, repete a mesma coisa.
— Porque é a verdade. Tenho prazos a cumprir — falei com certa
irritação, esperando que aquilo o fizesse recuar. — As meninas foram
dormir? — Eu imaginava que sim, visto o silêncio da casa.
Bryan bebeu seu vinho outra vez, virando a taça na boca até que não
restasse nenhuma gota. Apoiou o vidro na mesa, quase quebrando a taça
que ganhamos no casamento, tamanha a força que aplicou.
Me esforcei para dar um pulinho para trás e fingir que estava assustada.
— Você está tendo um caso? — A pergunta veio como um raio, me
atingindo em cheio.
Por dentro, paralisei. Pensei que aquela poderia ser minha chance. A
hora perfeita para responder que sim, estava tendo um caso e não
aguentava mais aquele casamento. Bryan ficaria com raiva, eu teria o
divórcio e poderia ser livre.
Essa era a realidade dos meus sonhos, mas não a realidade que eu podia
abraçar. Pensei em Joy, no auge dos seus sete anos, e Alex, com seus
recém-completados dez, e imaginei que tipo de vida poderia dar a elas sem
Bryan. Ele era minha única âncora no mundo “normal”. A diretora da
ANDOS não teria condições de prover um padrão de normalidade para
suas filhas.
— Claro que não, Bryan — gargalhei diante da ideia. — Existem coisas
do meu trabalho que não posso deixar para depois, é só isso — afirmei, me
aproximando mais, até ter espaço para me sentar em seu colo. Fiz carinho
em seu cabelo e puxei seu queixo, obrigando-o a olhar para mim.
Atuar fazia parte do meu dia a dia, tanto ali, como na ANDOS. Eu
precisava ser a esposa e a diretora perfeita. Era fácil beijar Bryan. Não
pensava muito sobre isso. Eu o amava, de um jeito ou de outro, e ficava
chateada quando estava mal por minha causa. A questão era que eu nunca
o amaria como amava Kyle porque nossa conexão era diferente, porque
Kyle era diferente.
Eu tinha sorte de que Bryan era fácil de manipular. Ele acreditou na
minha história, me pediu para tentar resolver minhas pendências ao longo
do dia, para que tivéssemos uma noite em família. Resmunguei para mim
mesma ao pensar que teria que diminuir os encontros que haviam acabado
de retornar. Kyle estava de volta à minha vida há pouquíssimo tempo e já
teríamos que nos afastar de novo.
Aquele era o preço a ser pago por uma infância comum para minhas
filhas. Eu poderia enfrentar.
Uni meus lábios aos de Bryan, devorando-o de uma forma que eu não
queria, mas precisava.
Tenho bastante certeza de que foi naquela maldita noite que concebemos
Ethan e eu me prendi ainda mais.

— Não vamos falar sobre isso — peço, querendo encerrar o assunto de


uma só vez.
As memórias me perturbam, relembrar dos meus planos e do que eu
gostaria que minhas filhas tivessem tido me fere. Uma vida na ANDOS não
era algo que eu desejava para elas. Pensar que passei tanto tempo presa a
Bryan, tentando evitar que Joy e Alex entrassem nessa vida, para tudo dar
errado depois, me deixa revoltada. Sinto que perdi tempo, que desperdicei a
oportunidade de ter uma vida inteira ao lado de Kyle.
Eu entendo o ponto dele, tenho consciência de que Bryan tem suas
desconfianças e isso não é de hoje. Meu marido já me manipulou e eu
deixei por causa dos meus filhos, da segurança que eu tinha de que, com ele
ao meu lado, nós teríamos uma vida normal. Hoje, Bryan está destruído e
tenho medo de deixá-lo e acabar de vez com sua vida. Talvez, o mais
sensato, seria me afastar e prevenir que alguém o atinja. Entretanto, se eu o
fizesse, como Bryan ficaria? Ele aguentaria perder mais uma pessoa que
ama?
— Quero seu bem — Kyle fala, a voz suave, a paixão transbordando em
seus espetaculares olhos verdes.
Eu sei que está pensando em mim. Ele foi o único, a vida toda, que
pensou. Eu mesma me deixei de lado inúmeras vezes, mas Kyle não. Ele
me priorizou. Ele quer que eu seja feliz. E sabe que só serei se estiver ao
seu lado.
Apoio a xícara de café em sua mesa, um sinal de que estou disposta a ter
uma recaída.
Kyle entende o recado no mesmo segundo. Nossos corpos se encontram
no meio da sala, um desesperado pelo outro, sentindo uma necessidade
visceral de fazer cada segundo desse encontro valer a pena.
— Me ame do jeito que só você sabe — peço, precisando do seu
acalento, da sua presença física, do toque e do beijo que faz todos os
sofrimentos valerem a pena. Minha vida não é simples, nossa relação teve
idas e vindas, e foi mais turbulenta do que calma, mas eu viveria tudo
novamente se soubesse que nosso amor perduraria por tanto tempo.
Meu coração bate por ele da mesma forma que batia quando eu era uma
jovem de dezoito anos com poucas preocupações na vida.
E vai bater por ele até o meu último suspiro.
Passei o final de semana sendo fodida por Luke e já estou com saudades.
Cozinhamos juntos, arranjamos tempo para ver um filme de comédia
romântica — o diabo que me livre de assistir filmes de ação ou qualquer
coisa em que eu precise raciocinar — e dormi em sua casa mais uma vez.
Estamos muito casalzinho. É até estranho que eu esteja curtindo tanto
esse momento. Não que eu seja contra a monogamia, afinal, já tive um
relacionamento sério com Luke, mas essa não era a minha intenção agora.
Estou tentando não pensar muito sobre isso para não surtar e tem
funcionado. Me sinto livre, leve e solta.
E para começar a semana da melhor forma, marquei com Luke de nos
encontrarmos no -1 para uma simulação em dupla. Preciso de um pouco de
ação antes da parte burocrática do dia começar.
Aproximo minha credencial da entrada, quase flutuando para dentro do
meu andar favorito, de tão calma que estou. Ainda é cedo e não há nenhum
outro agente treinando. Alongo um pouco os braços, aquecendo-os para
começar o treino, evitando que meu ombro mande lembranças da cirurgia
que já fiz. Luke deve estar chegando, penso em pegar uma arma de treino
para começar, mas, por fim, decido ir até a sala de Kyle. Ele nunca chega
atrasado, já deve estar por aqui.
Dou o primeiro passo na direção de sua sala quando vejo Brenda saindo
de lá. Estranho a cena. Nunca vejo minha mãe no -1, que dirá à essa hora da
manhã.
No momento em que me nota, seus olhos ameaçam se arregalar, as linhas
de expressão ameaçam transparecer surpresa, mas Brenda não deixa que seu
corpo reaja. Seu autocontrole sempre foi de dar inveja. Ela tem uma
habilidade única de produzir neutralidade.
— A diretora vindo treinar logo no início da semana? — questiono,
cruzando os braços.
— Não que eu te deva satisfação, mas não, não vim treinar. Precisava
discutir um assunto com Kyle. — Se explica mais do que o normal, ainda
que use um tom de deboche.
Me pergunto se há algo acontecendo. Alguma complicação em uma
missão? Novidades da Tempestade Noturna? Uma informação nova que
Brenda só compartilharia com seu parceiro?
— E você? Fugindo das burocracias e deixando todos os relatórios nas
mãos do Luke? — questiona, me provocando para que o foco desvie de si
mesma.
Vou entrar na onda dela, mas também guardarei o que vi no fundo da
minha mente. Essa cena não é do tipo que se apaga, e sim que se guarda na
memória para uso futuro.
— Fazia tempo que você não pegava no meu pé. Estava gentil demais
para seus padrões — provoco de volta, sem de fato responder o óbvio.
Nunca fiz e nunca vou fazer esses malditos relatórios. Luke é organizado e
tem paciência para dar satisfações a Brenda. Eu sou boa matando. A
parceira perfeita.
— Não seja por isso. Quer fazer uma visitinha ao Navio? — oferece com
um sorriso macabro no rosto.
Claro que ela iria me provocar com isso. Brenda trabalhou muito para
que eu me tornasse imune às suas torturas.
— Melhor deixarmos para outro dia. Meu parceiro já deve estar
chegando — recuso com mais deboche do que ela usou anteriormente.
Quando acho que Brenda vai se distanciar e ir para sua sala, ela
permanece parada, me analisando da cabeça aos pés.
— Algum problema? — indago, incomodada.
— Nenhum. — Ela se aproxima de mim, parando ao meu lado, nossos
ombros quase se encostando. — Luke faz bem para você. — Brenda abre
um meio sorriso e segue seu caminho, me deixando parada, com uma careta
no rosto, tentando entender o que está acontecendo em sua vida para que
esteja tão sentimental assim.
Se minha mãe já notou que eu fico bem quando estou com Luke, nunca
demonstrou. Carinho não é com ela, muito menos percepções maternais.
Pelo menos, não de forma aparente.
Balançando a cabeça para tirar Brenda Saroyan da mente, vou ao meu
destino original, a sala de Kyle. A porta está entreaberta e a empurro um
pouco mais, tendo a visão de Kyle agachado, abrindo com uma chave o que
aparenta ser um fundo falso em seu armário.
Bato na porta devagar para que ele não se assuste, mas a ideia não dá
muito certo. Kyle vira para mim rapidamente, a mão apoiada no peito de
uma forma que me leva a imaginar que seu coração disparou.
— Joy... — Ele tranca a fechadura que acabou de destrancar e pega uma
caixa de arquivos do chão, posicionando-a em cima do tal fundo falso. Os
movimentos são rápidos, nervosos, tensos.
— O que você estava aprontando? — pergunto, cruzando os braços e me
apoiando na soleira da porta. Meu tom não é acusatório ou bravo, e sim
curioso.
Kyle se levanta do chão, esfregando as mãos na calça preta, ainda no
mesmo estado de nervosismo.
— Esqueça que você viu isso. É algo privado, heranças de família, essas
coisas. Não quero que ninguém saiba — pede, receoso como raramente
fica.
Não sei muito sobre a família de Kyle, mas se ele trouxe itens pessoais
para a agência, com o risco de Brenda descobrir, é porque não deve poder
armazená-los em casa. Minha mãe nunca repreendeu Kyle, ela sempre
parece relevar qualquer coisa que ele faz — eu, na verdade, nunca o vi fazer
uma besteira muito grande —, mas Brenda é volátil e age conforme seus
interesses naquele determinado momento. Se Kyle está arriscando levar
uma bronca da chefe, é porque deve ser algo importante. Me importo com
ele a ponto de obedecer a todos os seus pedidos.
— Esquecer o quê? Eu não vi nada. — Mostro a ele que esse assunto já
está enterrado.
Kyle agradece com um aceno de cabeça. Sua feição preocupada vai aos
poucos sumindo, dando lugar ao habitual sorriso.
— A simulação já está pronta, apenas esperando por vocês — avisa. —
Luke fez questão de vir aqui pessoalmente me dizer que iria treinar com
você hoje de manhã. — Ergue as sobrancelhas, provocativo com nossa
paixonite.
— Nem comece. — Aponto o dedo indicador para o seu rosto,
implorando para que fique quieto.
— Esse garoto é apaixonado por você — constata o óbvio.
— Esse “garoto” tem vinte e seis anos. — Faço aspas com as mãos,
respondendo sem de fato responder.
Eu sei que Luke é apaixonado por mim. E tenho consciência de que
também sou apaixonada por ele. Acho que todos os agentes do prédio
sabem que temos uma relação diferente.
— Para mim, ele é um garoto e sempre vai ser — Kyle fala como um
verdadeiro pai orgulhoso de sua prole. Ele adora todos os membros da
minha equipe e sempre nos tratou como suas crias. Tenho uma conexão
mais forte com ele porque nos conhecemos há muito tempo, mas Kyle
também é próximo de Luke.
— Fico feliz que você aprove. É importante para mim. — Abro um
sorriso mais doce, que raramente consigo colocar no rosto, porque Kyle
merece. Ele sempre cuidou de mim e esteve presente. Gosto de saber que
ele acha minha relação com Luke boa e saudável.
— Você é importante para mim, pequena — murmura, as palavras saem
meio engasgadas, um tanto emotivas demais para o momento. Ele percebe
que notei seu abalo e gesticula, pedindo que eu ignore. — Vá treinar. Se
divirta. — Sinaliza para fora da sala, a expressão ainda abalada por sei lá
que motivo.
Hesito em sair, mas Kyle sinaliza para que eu vá. Antes de obedecê-lo,
balanço meu braço e mostro que estou usando a pulseira que me deu. Não
quero mais tirá-la. Prometi a mim mesma que só tirarei quando tivermos
uma missão.
Ele abre um sorriso gigante diante do meu gesto, seus dentes brancos e
alinhados aparecendo, os olhos verdes brilhando.
Depois de me certificar de que Kyle melhorou, saio de sua sala e volto
para o mundo dos agentes. Já há um movimento maior no -1, alguns agentes
gostam de treinar antes do expediente, assim como eu. Deixo os estandes de
tiro para ir até os simuladores. Reparo que Luke já está ali, vestindo seu
colete, pronto para começar.
Ele está testando uma arma de treino, destravando-a e checando seu
estado, antes de posicioná-la em seu coldre. Quando percebe que estou
parada observando, me devora com o olhar.
— Gosta da visão? — pergunta, abrindo os braços, os bíceps se
contraindo e quase rasgando a camiseta.
— Prefiro sem nada.
— Mais tarde — responde, me entregando meu colete, para que eu me
prepare para nosso treino.
Não nos beijamos, sequer nos tocamos, porque não precisamos. Nosso
fogo já é palpável. Não há necessidade de um cumprimento para consolidar
nada. Somente pelos olhares, conseguimos nos entender.

Depois de uma simulação deliciosa e estimulante, eu e Luke falamos para


Nate que iríamos atrás de informações sobre Paul Huskey a pedido de
Brenda. Dar satisfação para o líder da equipe não é algo que me agrade,
entretanto, não há escolha, visto que ele nos procuraria para falar sobre o
caso em que estamos trabalhando. Quando descobrisse que demos uma
fugidinha, ficaria puto. É melhor que ache que estamos fazendo um trabalho
para os Serpentes, do que investigando quem é Daniel Jasper.
Mapeamos todos os motéis de Row Fair, Sinclair e Pennetown antes de
sair da agência. Com todos os endereços em mãos, paramos de um em um,
ameaçando pessoas desconhecidas, usando distintivos falsos do FBI para
tentar obrigá-los a falar e desviar a atenção de quem realmente somos.
Sendo honesta, não foi complicado arrancar informações dos
recepcionistas. Pessoas inocentes tendem a ficar mais amigáveis quando
você aponta uma arma para suas testas.
Não fiquei surpresa quando descobrimos que Daniel Jasper e Rebecca
Monray se encontraram em pelo menos uma dúzia desses motéis. Há
registros de diversos encontros semanais, com todos os pagamentos feitos
em dinheiro. O engraçado é que nenhum desses estabelecimentos possui
câmeras de segurança.
“Daniel” foi muito esperto.
Mas eu sou mais.
Câmeras registram imagens, assim como nossa memória. Escolhi os
motéis em que havia mais registros de reserva e perguntei a todas as
camareiras se já viram Christian. Levei uma foto de Nathan, uma de James
e uma de Christian para que os funcionários não fossem tendenciosos, e
perguntei qual deles já tinham visto por ali. Todos apontaram para a foto de
Christian.
Eu te peguei, sugar daddy de quinta categoria.
— Quando você fica quieta demais, começo a ficar com medo — diz
Luke, chamando minha atenção de volta para si.
Estamos dentro do carro, na porta do meu prédio, terminando nossos
cafés e curtindo a companhia um do outro antes que eu volte para casa.
Prometi a Zoey e Lucy que teríamos uma noite das garotas hoje. Estamos
precisando conversar e deixar o que aconteceu naquele motel para trás. Já
combinei com Zoey que trataremos Lucy com normalidade, pelo menos por
enquanto.
— Estou pensativa — revelo, lembrando de todas as mulheres que
conheci nos últimos anos que estavam em um relacionamento abusivo.
— Quais os próximos passos? — pergunta, virando seu tronco na minha
direção, flexionando o joelho para que a posição fique confortável.
Luke entrega o comando da nossa “missão” em minhas mãos. Eu não
queria enfiá-lo nessa história, mas queria usar sua mente brilhante. É
gostoso compartilhar os detalhes de uma missão com alguém. Mais
intrigante ainda é pensar no que iremos fazer, construir planos de ação,
analisar todas as entrelinhas e chegar às conclusões juntos. Percebo, agora,
o quanto senti falta de trabalhar com um parceiro. Não, não só com um
parceiro. Com Luke.
— Esperar — anuncio, suspirando. — Lucy precisa querer ajuda para se
libertar completamente. Se não partir dela, não vai ser eficaz.
Ela pode, inclusive, ficar com raiva de mim por ter investigado a
identidade de seu abusador sem seu consentimento. Preciso de mais tempo
para decidir como agir. A hora certa vai chegar. E enquanto não chega,
tento entender como Christian Mayflower está relacionado ao pedido que
Lucy me fez no terraço da agência. Ela deixou claro que queria Marlon
morto. Christian a estava ameaçando? Ainda está? Ele está jogando contra
os Serpentes? Existem muitas questões em aberto no caso de Lucy. Preciso
de mais tempo para analisá-las.
— Em outros tempos, você ignoraria as vontades de Lucy e a protegeria
a qualquer custo — Luke conclui e não entendo se seu comentário é uma
crítica ou um elogio. Quando esboça um sorrisinho, entendo que apreciou
minha atitude. — Você amadureceu, Saroyan.
— É isso o que acontece quando a vida te derruba — respondo, sincera,
pensando nos últimos anos. Desde o sequestro de Ethan, não sou mais a
mesma.
— O que importa é que você se levantou.
Encaro Luke com uma careta.
— Que papo motivacional de merda! — reclamo e nós dois damos
risada.
— Jante comigo amanhã — pede do nada, entrelaçando nossas mãos.
— Está me chamando para um encontro?
— Pode ter certeza que sim.
Sua convicção me faz abrir um sorriso altivo.
— O quão arrumada preciso estar? — pergunto, sem negar, sem hesitar,
sem ter qualquer dúvida.
Comprei uma camisa social nova para levar Joy para jantar. Sou um cara
básico e resolvi apostar no certo. Estou de preto da cabeça aos pés, com os
primeiros botões da camisa abertos, calçando um tênis casual. Deixei meu
cabelo bagunçado propositalmente, do jeito que Joy mais gosta.
Estou arrumando a dobra da manga quando ela aparece na entrada do
prédio. Paro tudo o que estou fazendo e desencosto do carro, alucinado com
a visão da mulher que abala meu coração.
Joy está descendo as escadas como se estivesse em um desfile. O vestido
vermelho brilhante é sexy, vulgar, tentador. O decote é acentuado, os seios
pequenos parecem até maiores do que são. As alças finas expõem os
ombros fortes e a cicatriz que tem em um deles. O modelo é justo, marca
sua cintura fina. O tecido só vai até o meio das coxas, mostrando o quanto
são torneadas conforme ela se movimenta. Percebo que usa saltos pretos,
presos em seu tornozelo por uma tira.
O cabelo está jogado para trás, dividido no meio e atrás de sua orelha,
deixando seu rosto exposto. A maquiagem está mais carregada do que
normalmente. A sombra vermelha combina com o tom do vestido, o
delineador marca seus olhos, destacando o tom verde.
— A maquiagem está incrível, eu sei. Zoey quem fez — conta, chegando
no último degrau da escada.
Estendo a mão para ajudá-la a descer, ajustando o toque para sua cintura,
quando está perto o suficiente.
— Você está incrível como um todo, Saroyan. É a mulher mais bonita
que eu já vi.
Consigo sentir que se arrepia ao ouvir minhas palavras. Sua boca
vermelha se entreabre levemente, muito mais sexy do que o normal. Eu
gostaria de pular o jantar e fodê-la no meu carro agora mesmo, mas esse
visual não pode ser desperdiçado. Preciso desfilar por aí com essa gostosa
do meu lado.
— Eu trouxe uma coisinha para você — sussurro, puxando o item do
meu bolso de trás, mostrando a Joy.
Ela franze a testa quando percebe o que é.
— Uma rosa? — questiona, sem fazer esforço em disfarçar a careta.
Eu sei bem no que está pensando. Joy não teria capacidade de manter
uma flor viva. E nem gostaria de ganhar uma rosa de verdade.
— É de plástico — explico, arrancando um sorriso dela, seguido de uma
risada deliciosa.
— Você realmente pensou em tudo.
— Te conheço. — Dou de ombros, oferecendo a flor a ela.
Joy a segura pelo cabo, levando na direção do nariz para fingir cheirá-la.
Seu olhar encontra o meu, por cima da rosa, e eu desisto de tentar me
controlar. Envolvo sua cintura e a puxo na minha direção, beijando-a com
todo o amor que floresce em meu peito.
Talvez, algum dia, eu me lembre do medo que senti quando ela retornou
para minha vida. O receio que tive de me envolver, apavorado com a
possibilidade de ser abandonado de novo. Mas agora, com ela nos meus
braços todos os dias, com nossa convivência no trabalho e na cama, eu não
me sinto mais tão apreensivo. Eu percebo que posso me entregar, que posso
devolver meu coração a ela, porque, assim como a flor de plástico, meu
amor por Joy Saroyan é eterno.
Sempre foi.
Sempre será.
E ela está aqui. Jurou que não vai embora, que não vai me deixar.
Joy será eternamente minha.
— Quero essa garrafa de vinho — Joy pede para o garçom, apontando
para a opção mais cara do cardápio. Assim que ele computa o pedido e sai,
ela me encara com um sorriso perverso. — Já que você está pagando,
resolvi aproveitar.
— Eu nunca disse que estava pagando — devolvo apenas pelo prazer de
retrucá-la.
— Não? Me lembro muito bem de te ouvir dizendo que bancaria todos os
meus luxos. — Ela apoia o dedo indicador na bochecha, pensativa. — Você
sussurrou isso no meu ouvido quando chegamos da Grécia no nosso jatinho,
hoje de manhã.
Espremo os olhos, tentando entender o que ela quer fazer.
— E que viagem maravilhosa, não? Não vejo a hora da próxima.
Podemos já escolher o destino — respondo, entrando em sua brincadeira.
O garçom volta com a garrafa e nos serve com elegância. Percebo que
fica de olho na conversa, o que estimula Joy a inventar mais coisas. Ela cita
que sou CEO de uma empresa de tecnologia e que não trabalha, fica apenas
em casa cuidando dos nossos dois cachorros. Nosso roteiro de viagens fica
extenso, ela finge que somos experientes e chama o garçom para perguntar
se a sobremesa do cardápio se assemelha a que comemos na França. O
homem fica entretido com nosso teatrinho, ele cai como o inocente que é e
ainda conta para o chef de cozinha que há um casal importante jantando no
restaurante. O homem vem nos cumprimentar e oferece outro vinho, dessa
vez por conta da casa.
Já estou meio bêbado, Joy nem se fala. Minha parceira não para de falar
besteiras. Sorte que é treinada o suficiente para não revelar quem é de
verdade.
É estranho sair para jantar em um lugar sofisticado, mas ter uma arma
dentro da minha calça e facas presas nos meus tornozelos. Joy nunca sai
desarmada, então imagino que esteja carregando uma de porte pequeno em
sua bolsa, outra presa em sua coxa, como costuma fazer. O chef que
conversa conosco sequer desconfia de que fazemos parte da agência secreta
que é tão falada pela cidade.
Saímos do restaurante cambaleando, rindo à toa. Joy se pendura no meu
ombro, relembrando todas as invenções brilhantes que teve durante o jantar.
— Você é um mestre do TI agora, casado com uma esposa troféu que
cuida de dois poodles e ajuda instituições de caridade — gargalha, se
divertindo com a realidade alternativa que criou.
A risada não dura muito, entretanto, porque uma certa melancolia atinge
sua expressão. Ela não precisa falar para que eu entenda o que se passa em
sua mente. Joy nunca teve a chance de ter uma vida dessas.
Inverto nossos braços, agora passando o meu por cima do seu ombro,
para deixá-la próxima a mim enquanto andamos até o carro. Ela aceita o
aconchego, apoiando a cabeça em meu ombro.
Eu entendo o sentimento que a atinge, mas não vivo em sua realidade,
nunca vou senti-lo na minha pele. Fui convidado a entrar na agência por
Brenda quando estava nas fases iniciais do treinamento para o exército. Até
hoje não sei porque ela me escolheu, mas, para um órfão como eu, quando
alguém te oferece moradia, alimento e um emprego com um salário alto,
você simplesmente aceita. Eu já estava assinando uma sentença de morte
entrando no exército, a ANDOS não seria nada diferente.
— Não quero. Por favor. — Nós dois estacionamos, ouvindo uma voz
feminina não muito longe. Joy me encara, o olhar melancólico vai embora e
ela liga sua versão alerta. — Me deixe ir. Preciso ir para casa. Meu pai está
me esperando. — A pessoa suplica, chorosa. Começamos a andar devagar,
imaginando que o som vem da rua onde deixamos meu carro. A cada passo,
tenho mais certeza de que a voz vem de uma garota nova. — Me solta!
Socorro! — As palavras se tornam gritos e não hesitamos.
Dobramos a esquina, finalmente tendo a visão do que está acontecendo.
Uma garota que não deve ter mais de dezoito anos, está sendo arrastada por
um marmanjo de vinte e poucos anos para dentro do seu carro.
Não penso, apenas reajo. Vou para cima do garoto, empurrando a garota e
dando um murro na cara dele para que a solte.
— Que caralho! — o garoto berra, levando a mão ao seu rosto, sem
entender o que está acontecendo. A menina só chora mais, se encolhendo a
uma certa distância.
— Algum problema por aqui? — pergunto, segurando-o pela gola da
camiseta, deixando seus pés balançando no ar.
— Não, senhor — ele responde, sério, os olhos apavorados. Vejo que está
com um moletom da universidade local. Um babaquinha de merda.
— Mulheres não pedem por socorro à toa. Nós aguentamos muita merda
calada, meu caro jovem. Se ela está gritando, é porque há um problema —
Joy constata, assumindo a postura sombria que tanto lhe é familiar. Ela se
aproxima da garota, dá uma olhada nela, que a encara assustada, mas não
faz nada. Ao se certificar de que a menina não tem ferimentos graves, para
ao meu lado, olhando para o garoto. — Isso pode acontecer de duas formas
— anuncia, usando uma das mãos para mostrar dois dedos. Ela abaixa um,
deixando apenas o indicador levantado. — Você continua perturbando essa
garota e te faço engolir seu pau. — Ela levanta o dedo médio, a escuridão
tomando conta de cada parte do seu ser. — Ou você nunca mais a procura e
sai daqui vivo. E aí, qual vai ser? Não é uma escolha difícil — ironiza e,
querendo causar na nossa vida, levanta a barra do vestido e mostra que tem
uma arma.
O pânico no olhar do garoto triplica.
Eu a lanço um olhar de reprovação por sua atitude. Joy percebe e cobre a
arma. Não podemos chamar uma atenção desnecessária para nós. Passamos
o dia de ontem ameaçando pessoas pela cidade e agora estamos nos
metendo na vida de dois jovens aleatórios. Não podemos arcar com o risco
de Brenda descobrir sobre nossas escapadas.
— Me deixa ir, Derek. Por favor. Nós não temos mais nada — a garota
pede, chorando, a maquiagem preta escorrendo pelo seu rosto branco.
— Olha, não sei quem vocês são, mas não devem se envolver com os
problemas de outro casal — o jovem fala, corajoso no momento errado.
Joy revira os olhos, a impaciência a corroendo por dentro. Percebo, por
sua linguagem corporal, que vai avançar para cima do cara. Faço um sinal
com a cabeça para que a garota suma daqui. O recado já está dado, ele não
vai procurá-la, não depois de encontrar comigo e com a Rainha do Inferno.
— Isso é para aprender que não é não, moleque. — Fecho meu punho e
dou uma paulada em seu rosto. O nariz começa a sangrar e seus olhos se
enchem de lágrimas.
Estou prestes a desferir outro soco, quando Joy segura meu braço,
sinalizando que é a vez dela de se divertir. Solto o garoto, mas nós dois o
cercamos, evitando que fuja. Ele não parecia ter tanto medo de mim, mas
Joy o apavora. Vejo sua calça ficar molhada de xixi quando ela o encara
com seu olhar mais perverso.
— Por favor, deixe meu pau em paz — implora, chorando, tremendo, as
mãos erguidas na frente do corpo para impedir que ela se aproxime.
Mal sabe ele que não dá para frear essa mulher.

A boa notícia é que o garoto saiu com o pau intacto. Bom, não
totalmente, porque Joy pisou em suas bolas de salto alto. Imagino que não
tenha sido muito agradável, mas ele pelo menos aprendeu a lição. Não
duvido que vá fazer isso de novo, porém, é certo que vai se lembrar de Joy.
Sua ameaça foi inesquecível.
— Nós não conseguimos ter uma noite normal — constato, rindo de leve.
Joy está com a cabeça apoiada no meu abdômen, usando apenas minha
camiseta, deitada de barriga para cima na minha cama. Faço carinho em seu
cabelo, observando a bagunça do quarto. Estou apenas de cueca, minha
camisa está jogada no chão, a calça deve ter ficado na sala. O vestido de Joy
está perto da porta de entrada do apartamento, porque precisei despi-la
antes de chegarmos no quarto. A euforia da noite nos consumiu e transamos
na sala. Depois no quarto. E no banheiro.
— Nosso jantar precisava de uma adrenalina — responde, sem tanto
humor. — É impressionante como atraio o caos.
— Não sei se atrair o caos é o termo correto. Acho que nós só não
conseguimos ignorar algumas coisas que aparecem na nossa frente, como
pessoas normais.
Joy fica em silêncio, pensando demais. Não a pressiono, apenas enrolo
seus fios de cabelo nos meus dedos, mostrando que estou aqui, esperando
que fique pronta para falar.
— Sim, mas eu atraio o caos, Luke. Aonde quer que eu vá, o caos está
atrás de mim.
Sua frase me deixa intrigado.
— Está falando sobre seu tempo fora? — Ela fica quieta de novo. — Se
não quiser responder, tudo bem. Mas eu gostaria de saber o que você fez,
por onde passou. Não para jogar na sua cara, até porque já superamos essa
fase. Quero apenas preencher a lacuna que esses anos deixaram.
Joy segue olhando para cima. Suas mãos estão entrelaçadas em cima de
sua barriga. Ela tamborila os dedos em nítido nervosismo. Já tentei
questionar sobre os últimos quatro anos, mas não obtive sucesso.
Entretanto, isso foi meses atrás, quando ela havia acabado de voltar e meu
ódio ainda falava mais alto. Agora, estamos em uma relação, que, no fundo,
de casual não tem nada. Temos sentimentos um pelo outro e Joy sabe que
não estou perguntando por que quero brigar, e sim porque quero apenas
saber.
— Eu passaria semanas contando cada detalhe e não faria diferença,
então vou resumir. — Quando fala, eu já sei que não entregará tudo. Parte
de mim se frustra, outra parte fica feliz por pelo menos obter alguma coisa.
— Assim que fugi, procurei por Ethan. Foram meses tentando rastreá-lo,
mas não deu certo. Descobri que Brenda não tinha desistido por falta de
vontade, e sim porque era um beco sem saída. Mas eu não podia voltar, não
com a culpa que eu sentia. Eu já estava saturada quando conheci uma
garota. — Gelo com sua frase, pensando que vai dizer que se apaixonou e
viveu uma história de amor com essa tal garota. — Nós trabalhávamos
juntas. Um dia, saímos para beber e descobri que ela estava envolvida com
um cara perigoso. Ele tentou matá-la, eu revidei. A noite foi uma bagunça
generalizada e minha amiga não saiu com vida.
— Sinto muito.
— Isso me despertou uma vontade de fazer justiça por aqueles que não
podiam se defender. Ela não tinha condições de brigar com aquele cara.
Fiquei me perguntando quantas mulheres passavam pelo mesmo. Fui indo
de cidade em cidade, conhecendo pessoas, hackeando a delegacia local para
encontrar denúncias de casos de estupro, assédio e abuso. Descobri um
número absurdo de ocorrências que eram fechadas por falta de provas.
Comecei a ir atrás daqueles homens para fazê-los pagar. Não foi bonito. —
Na última frase, olha para mim, fazendo uma cara engraçada.
Estou prestes a perguntar como ela hackeou a delegacia se não é boa
nisso, quando resolvo deixar para lá. Estamos em um bom momento, ela
está se abrindo, vou correr o risco de vê-la se fechar de novo se eu
pressionar demais.
— Quantos paus você cortou? — pergunto, intrigado.
Um sorriso lateral repleto de escárnio se forma em seu rosto.
— Impossível de ser contabilizado.
Como resposta, levo as mãos à frente da minha cueca, protegendo meu
precioso pau. Joy bate no meu braço, revirando os olhos pela brincadeira.
— E você seguiu nisso até ser presa? — indago, desconfiado.
Quatro anos apenas matando abusadores? Joy Saroyan se entedia
facilmente. Não consigo imaginá-la fazendo a exata mesma coisa por tanto
tempo.
— Basicamente sim. — A resposta vaga me faz ter certeza de que estou
certo.
Joy não me contou nem metade da história.
Não é possível que ela tenha ficado sozinha.
Não é possível que ela não tenha chamado a atenção das máfias locais
assassinando tantos homens.
Não é possível que ela tenha passado quatro anos apenas bancando a
justiceira.
Joy está escondendo a maior, e talvez mais obscura, parte dessa história.
A falta de conhecimento me corrói por dentro.
Tenho para mim que sua história é ainda mais perturbadora do que
imagino.
Estou tentando não pensar na falta de confiança de Luke diante da minha
resposta. Imaginei que ele iria tentar descobrir o que fiz nos últimos anos
novamente, mas uma parte de mim estava esperançosa de ele se apegar ao
momento bom que estamos vivendo e esquecer a lacuna em nossa relação.
Fui inocente e quis fingir que vivia em um conto de fadas, quando na
verdade durmo ao lado de um homem que me perdoou, mas no fundo ainda
guarda rancor do meu abandono.
Decidi entregar alguma coisa para que ele se sentisse respondido, mas
Luke é esperto e logo compreendeu que não contei a história inteira. Alguns
dias já se passaram e ele não me pressionou para dizer mais, entretanto, esse
momento irá chegar. Luke está apenas esperando a hora certa de me
encurralar. Mal sabe ele que não vou abrir a boca nem sob tortura. Se ficar
sabendo de tudo, não vai me olhar do mesmo jeito, porque fiz algo que é
considerado uma das maiores traições da agência. Me envolvi com o outro
lado.
O assunto não vai ser mais citado por mim e espero que não seja tão cedo
por ele. Nos próximos dias, quero focar minha energia na missão que temos
a cumprir.
Chegamos em Washington na noite de ontem. Estamos hospedados em
um hotel próximo à Casa Branca, onde diversas figuras importantes do
governo do nosso país e do mundo também estão alocados. Se misturar não
era a primeira escolha de Brenda, que sempre prefere discrição, mas o
Presidente Campbell insistiu que ela ficasse nesse hotel, para que tivesse
toda a segurança e o conforto necessário. Como se nós precisássemos.
Estamos evitando conversar uns com os outros. Brenda não quer que as
pessoas vejam que somos um grupo grande, muito menos que percebam
que somos agentes da ANDOS, um mito para grande parte das pessoas que
irão ao baile.
Ajustamos os comunicadores em nossos quartos antes de sairmos rumo a
nossa próxima missão. Luke enlaça o braço no meu e desfilamos juntos
pelo hotel, cumprimentando pessoas de todo o mundo pelo caminho até a
entrada, onde um carro do Serviço Secreto nos espera. Ao longe, vejo Nate
e Zoey entrando em outro carro. Lucy e Noah já foram há alguns minutos,
Brenda e Kyle avisaram que já estão lá, e Liz e David estão logo atrás de
nós. Como James não veio, Christian optou por também ficar. Uma pena.
Eu estava doida para lançar um olhar ameaçador para ele.
Ajeito meu vestido rosa quando saímos do carro, logo em frente à Casa
Branca. Há um perímetro de segurança gigantesco criado pelo Serviço
Secreto, envolvendo nosso hotel e toda a propriedade da residência do
Presidente, para que ninguém tente nos incomodar. Troco um olhar com
Luke enquanto entramos no majestoso local.
— Você está espetacular — ele sussurra quando paramos na fila da
entrada.
— Você também não está nada mal. — Pisco para ele, sem conseguir
conter meu sorriso. Estou sorrindo muito ultimamente.
Luke está com um smoking preto feito sob medida. A gravata borboleta
azul faz oposição ao meu vestido rosa. Seu cabelo está arrumadinho,
penteado para trás de um jeito elegante e sério, que não deixa de ser
sensual. Ele está um gato. Nós dois estamos, na verdade. Algumas pessoas
até nos encaram, espremendo os olhos para tentar nos reconhecer, achando
que somos famosos ou qualquer baboseira do tipo.
Ignoramos todos os olhares e seguimos para o salão onde o baile está
acontecendo. Mesas estão posicionadas nas laterais, no centro há uma pista
de dança, onde alguns casais se divertem ao som do DJ. Reparo que há uma
escadaria à minha direita. Algumas pessoas circulam no andar superior, que
é aberto como um mezanino. Noto algumas portas fechadas, locais perfeitos
para reuniões secretas. O governo é traiçoeiro. Um evento como esse é
ótimo para fazer acordos sem todo o alvoroço de uma reunião oficial.
Também é ótimo para que um homem com alto cargo político converse com
um bandido sem que percebam.
— O’Conell está com a esposa no mezanino — Liz anuncia no
comunicador.
Olho para cima ao mesmo tempo que Luke. Vemos Elizabeth e David no
fundo do mezanino, conversando e bebendo uma taça de champagne,
aparentemente distraídos. Contudo, a mãe da Lucy faz um breve
movimento com a cabeça, apontando para Richard O’Conell, posicionado
mais à frente, também bebendo com sua esposa.
— Topa uma dança? — Luke pergunta e eu faço uma careta. — Sei que
estamos no meio de algo, mas Liz e David vão ficar de guarda por agora.
Vamos usar esse tempo para nós dois.
A ideia não me agrada. Distrações no meio de missões não são bem-
vindas. Mas Luke está com a mão estendida na minha direção, os olhos
repletos de esperança de que eu aceite o convite. “Bust Your Windows”, da
Jazmine Sullivan, uma música que amo, e que tem a batida perfeita para
uma dança a dois, começa a tocar. É quase como se o universo estivesse me
dizendo para aceitar.
Sou desconfiada por natureza, algo que considero uma qualidade e um
defeito ao mesmo tempo. Isso me ajuda a sobreviver, mas me priva de viver
momentos bons. E estou cansada de perder momentos bons.
— Me mostre suas habilidades, Carter — aceito o convite, prometendo a
mim mesma que manterei os olhos abertos e os ouvidos atentos.
Luke me conduz ao centro da pista de dança. Uma de suas mãos vai para
a minha cintura, a outra segura na minha. Levo meu braço para seu ombro,
estufo o peito e fixo meu olhar no seu. Travamos uma conexão tão poderosa
que não escuto nada além da música. Não vejo ninguém à minha volta.
Somos só nós dois na pista de dança. Apenas Joy e Luke.
Andamos para trás, usando alguns passos do tango, sincronizados como
se dançássemos juntos todos os dias. Ele segura uma das minhas mãos para
o alto, me girando até que eu volte para seus braços. Não é fácil me
equilibrar nesses saltos rosa nude — escolhidos nesse tom para não
brigarem com o vestido — mas o momento parece tão perfeito que isso se
torna irrelevante.
Volto para seus braços, dessa vez com mais proximidade, compartilhando
o mesmo ar, os corações seguindo a mesma batida. Luke envolve minha
cintura e joga meu corpo para o lado. Caio em seus braços, mas não tiro o
olhar do seu, confiando que ele não vai me deixar atingir o chão.
Ele me levanta, envolve minha cintura e une nossas mãos outra vez.
Seguimos rodopiando pelo salão até que ele me gire e me mantenha com as
costas em seu peito. Luke une nossos braços na frente do meu corpo e leva
sua boca ao meu pescoço, deixando um beijo que me arrepia. Sinto seu pau
duro raspando em minha bunda, fazendo minha mente ter ideias que não
deveria. Pelo menos, não nesse momento.
— Esse vestido está me matando — sussurra em meu ouvido, a voz doce
e sexy me fazendo delirar da cabeça aos pés.
— Vai fazer algo a respeito disso ou continuar reclamando? — rebato e
recebo um aperto na bunda como resposta. No meio do Baile Anual da Casa
Branca.
— Me siga — murmura, me dando um beijo na bochecha antes de dar
nossa dança como encerrada.
Com nossas mãos entrelaçadas, Luke me guia para o mezanino. Estou
com um sorriso travesso no rosto enquanto mexemos em todas as
maçanetas, procurando por uma sala aberta. Escuto alguém falando no
comunicador. Tento me concentrar para escutar, mas achamos um lugar
vazio, entramos e Luke me prensa contra a porta. Começamos a nos agarrar,
sua boca me invade, nossas línguas travam uma batalha intensa e complexa.
Não escuto mais nada.
Não faço ideia de onde estamos, mas me parece um escritório e nós dois
temos um ótimo histórico com escritórios. Enquanto nos beijamos, vamos
andando até a mesa de madeira, próxima a uma estante de livros. É ali que
Luke pressiona meu quadril, se encaixando entre minhas pernas, segurando
em uma das minhas coxas, aproveitando a abertura do vestido para tocar em
minha pele. Minha arma fica aparente, presa por uma cinta. Uma das mãos
dele vai para mesa, fazendo com que seu corpo fique ainda mais próximo
do meu. Seguro em seu pescoço, encarando-o antes de devorá-lo outra vez.
É impossível explicar o que seu beijo faz comigo. Nenhuma lei da física
consegue explicar a atração que temos um pelo outro. Aposto que ninguém
saberia explicar como uma garota fria como eu se apaixonou por alguém
como ele. Eu também não consigo explicar.
Nosso amor é inexplicavelmente forte. O suficiente para me fazer
esquecer de tudo e focar somente nele. O suficiente para que façamos algo
terrivelmente perigoso e proibido juntos, no pior momento possível.
— Eu vou te comer aqui nessa mesa, Saroyan. E vai ser agora — Luke
murmura, ofegante em meio a intensidade entre nós dois.
Levo minhas mãos para minha calcinha, arrastando o tecido pela coxa,
até conseguir segurá-la com dois dedos. Luke arranca a peça da minha mão
e guarda no bolso de dentro do paletó. Ele volta a me beijar, me prensando
contra a mesa, sua mão se aproximando da minha boceta encharcada. Os
dedos brincam com meu clitóris, os movimentos circulares me fazem
gemer. O barulho do gemido se mistura ao nosso beijo, ao som da fricção
de seus dedos contra minha umidade. É a trilha sonora mais suja e deliciosa
da vida.
Luke introduz um dos dedos em mim, entrando e saindo com força,
abrindo espaço para seu pau grosso. Ele movimenta com uma velocidade
insana, querendo me fazer gozar logo, sabendo que temos pouco tempo.
Com essa intensidade toda, não demora para que eu chegue ao meu ápice.
Luke está com a cara fechada, malvado do jeitinho que eu curto. Ele tira
as mãos da minha boceta e vai abrir sua calça, puxando o zíper para baixo e
o pau para fora. Afasto as pernas e o encaro com luxúria, em um claro sinal
para que me foda logo.
Ele morde o lábio inferior, o sorrisinho safado tomando conta da
expressão quando me coloca sentada na mesa e empurra meus joelhos para
fora. Sei que Luke gosta quando posiciono seu pau na minha entrada, então
seguro seu membro e raspo a cabecinha no clitóris, unindo sua lubrificação
com a minha. Ele me encara com um olhar inconformado. Nunca deixo de
surpreendê-lo.
Posiciono seu pau na minha boceta e seu quadril arremete na direção do
meu, me penetrando fundo. Ele faz um movimento de vai e vem constante,
forte, entrando todo e saindo quase por completo antes de meter de novo.
Agarro seu pescoço para sustentar meu peso. Sua boca vai para o meu
pescoço, chupando minha pele com força, com certeza deixando marcas.
Jogo os cabelos para trás, gemendo diante de sua atitude.
Os beijos vão para o meu rosto. Para meus peitos. Para minha boca.
Estamos descontrolados. Eu sinto que Luke está próximo. Eu estou perto de
atingir o meu ápice de novo.
Até que escuto alguém gritar no meu ouvido. Não é qualquer pessoa. Não
é qualquer grito. Brenda está me chamando. Dizendo meu nome como dizia
quando eu fazia algo de errado no treinamento.
Volto para a realidade. É como se um botão fosse ligado dentro de mim,
fazendo com que eu perceba a merda que estou fazendo.
Luke se afasta, ouvindo o mesmo que eu. Seu pau fica mole no mesmo
instante.
— Joy Saroyan e Lucas Carter, o que pensam que estão fazendo? Onde
vocês estão? Acham que podem simplesmente desaparecer no meio de uma
missão? — Brenda está irritada. Muito irritada.
Luke fecha as calças na hora e joga minha calcinha de volta para mim.
Nós nos vestimos em silêncio, trocando olhares constrangidos, ambos sem
entender como nos desligamos do mundo dessa forma. Esse trabalho é
importante demais para nós.
— Respondam alguma coisa ou eu vou procurá-los por cada canto dessa
mansão. E vocês não vão gostar do que farei quando encontrá-los —
Brenda ameaça, a voz mais trêmula do que o normal, o nervosismo
tomando conta da sua postura perfeita.
— Estávamos seguindo uma pista — respondo tocando no meu
comunicador, dando de ombros quando Luke franze a testa, sem entender
como tive coragem de mentir.
— Conta outra, Joy! — Brenda rebate, nada calma.
— Ahn, desculpa interromper — Lucy diz, atravessando a conversa. Toda
a equipe está na mesma linha de comunicação. Todos ouviram a bronca que
minha mãe nos deu. Que lindo. — Huskey subiu para a sala onde O’Conell
entrou. A reunião vai começar.
Fico atenta quando escuto a informação. Eu nem sabia que Paul Huskey
já estava na festa. Tesão do caralho!
— Alguém perto do mezanino? — Nathan pergunta.
Olho para Luke e ele assente, me dando o sinal que eu precisava.
— Eu e o Luke estamos. Qual o plano? — indago.
— Lucy — Brenda apenas fala o nome da garota. Imagino que minha
amiga vai entender o recado. — O Presidente está se aproximando de mim.
Cuidem disso. Não vou responder, mas me mantenham atualizada.
— Joy, Luke, onde vocês estão? — Lucy pergunta. Estou perdida sobre o
posicionamento de todos eles.
— Em uma das salas do mezanino. Terceira porta à direita — Luke
responde.
Há um breve momento de silêncio, enquanto aguardamos por instruções.
— Nós somos loucos — falo para Luke, dando risada, ainda abismada
que tivemos coragem de transar em uma sala da Casa Branca.
— Completamente pirados. É você que me deixa assim — constata,
brincalhão.
— Você também não me deixa nada sã, Carter — retruco, lançando um
olhar travesso, o fogo voltando a queimar entre nós.
— Huskey e O’Conell estão a duas salas de distância de vocês. O prédio
é antigo, usem os dutos do ar-condicionado para chegar até lá. Vou guiá-
los — Lucy define o plano e respondo que estamos a caminho.
Abro um sorriso convencido para Luke. Nós fazemos merda, mas ainda
assim salvamos o dia.
— Não me olhe assim, Saroyan. Preciso trabalhar. — Passa a mão no
meu rosto, tentando me impedir de sorrir, mas não consegue.
O sorriso não sai do meu rosto.
O duto do ar-condicionado é maior do que eu imaginava. Consigo
caminhar confortavelmente de quatro, sem sequer encostar meu corpo nas
laterais ou no teto. Luke, por outro lado, não teve tanta sorte. Ele é mais alto
e mais forte. Está todo entalado e se movimentando mais devagar do que
uma tartaruga.
— Queremos chegar a tempo da conversa, Carter. Anda logo!
— Experimente ter o meu tamanho, Saroyan, e veja se é fácil!
— Lucy, estamos perto? — pergunto pelo comunicador, rezando para que
a resposta seja sim, caso contrário colocaremos tudo a perder.
Huskey e O’Conell já devem estar conversando há tempos.
— Virem no próximo duto a direita. Em algum lugar dele, fica a saída de
ar para a sala onde eles estão — Lucy orienta e obedeço no mesmo
momento.
Acelero o ritmo, determinada a cumprir a missão que me foi proposta.
Nossa equipe está contando com a gente.
Luke fica um pouco para trás, mas também acelera, sabendo que
precisamos ser bem-sucedidos para limpar nossa barra.
Começo a escutar vozes a uma distância próxima. Vou diminuindo o
ritmo para não fazer barulho, evitando que sejamos descobertos. Encontro a
abertura para a sala que Lucy disse que existia. Me posiciono de um lado
para que Luke possa se posicionar do outro. A grade é grossa e não
conseguimos ver muito bem a silhueta e o rosto das pessoas que estão ali.
Mas, pelas vozes, tenho certeza de que estamos no lugar certo.
— Você não está se comportando muito bem, Richard — diz Paul, o
mesmo tom desencanado do dia em que nos conhecemos no Clube Nix.
— Porque vocês estão passando dos limites! — ele rebate, irritado.
Olho para Luke e nós dois temos a mesma certeza. Richard é só um peão
nessa história. E se não colaborar, será eliminado do tabuleiro.
— Vamos sequestrar o filho do Presidente quer você queira ou não. — A
voz de uma mulher que nunca ouvi reverbera pela sala. — Você pode
colaborar ou ter seu segredo revelado. A escolha é sua.
— Não me ameace — fala Richard e acho que vejo seu dedo apontado na
cara da tal mulher.
— Já imagino as manchetes “Chefe do Gabinete fez acordo com
sequestrador para substituir seu filho, morto no parto. Richard O’Conell não
quis que a pobre esposa sofresse e resolveu pagar por um bebê e fingir que
é seu.” Os tabloides vão adorar. Imagine o quanto vai bombar no Twitter!
— Paul dá risada, se divertindo com a desgraça de Richard.
Minha boca abriu e não quer mais fechar. Ter uma mulher no meio dos
dois é interessante, mas saber do segredo de O’Conell é ainda mais. Ele fez
negócios com Huskey e comprou uma criança para substituir a sua. Essa
história só fica melhor.
— Não façam isso. O Presidente Campbell é querido pelo povo. As
pessoas vão surtar com as notícias! A equipe dele é forte, o Serviço
Secreto... — Richard está argumentando quando escuto uma arma ser
destravada. — Se acalme.
— Não se pede calma para uma mulher armada — a tal mulher responde
com uma entonação parecida com a que Brenda sempre usa.
É a entonação de uma mulher no comando. Ela é a Coruja. E ela está
prestes a matar Richard O’Conell.
Começo a mexer na grade do ar, tentando abri-la.
— Joy... — Luke sussurra meu nome, mas não deixo que me impeça.
Continuo forçando a grade, conseguindo algum resultado quando ela
começa a se movimentar.
Sem ver outra escolha, ele me ajuda. Sua força extra faz com que
consigamos abrir a entrada. Não penso muito, só ajo.
Deixar a Coruja escapar sem ver quem ela é não é uma opção.
Luke desce primeiro, enfiando as pernas pelo espaço, se segurando pelos
braços até que consiga ângulo para atingir o chão. Assim que o trio coloca
os olhos nele, uma confusão começa. Desço logo em seguida, quase caindo
por causa dos malditos saltos que resolvi usar. Teremos que sair daqui em
disparada e manter a classe, então não poderei me dar ao luxo de tirá-los.
Pego a arma em minha perna, empunhando-a, entrando na confusão. Há
seguranças espalhados pela sala, talvez de Huskey, talvez de Richard, talvez
da própria Coruja. Eles partem para cima de mim e de Luke, pelo menos
quatro homens encurralando cada um de nós.
Atiro em um, recebo um soco de outro. Fico puta com a possibilidade de
estragar minha maquiagem e devolvo a gentileza golpeando seu rosto com o
cotovelo. Enquanto acabo com seu nariz, atiro em outro homem,
derrubando mais um no chão.
Um dos restantes me encara sedento. O outro está segurando o nariz que
acabei de quebrar. Parto para cima do que está menos debilitado. Trocamos
socos, ele tenta me segurar, mas não deixo. Levo uma porrada dolorida na
costela, perdendo a vantagem por alguns segundos, o suficiente para que ele
me derrube.
Caio com tudo no chão, o baque da cabeça contra o piso me deixa
inconsciente por alguns segundos. As imagens que vejo flutuam pela minha
mente. Reparo que Luke está somente usando os punhos e já derrubou dois
homens. Seu rosto está cheio de sangue, o smoking perfeito também. Paul
está assistindo a cena de um sofá, rindo enquanto toma seu whisky. Richard
está encostado em uma parede, apavorado, sem entender quem somos.
Procuro pela Coruja. Levo um soco no olho. Outro na costela. Consigo
achá-la. Ela está com um vestido preto simples. O cabelo é escuro. Levo
mais um soco. Ela está de costas, guarda a arma no que parece ser um
espaço entre os seios e sai da sala correndo. Um dos homens que está
brigando com Luke resolve segui-la. Levo um chute.
Eu queria pegá-la, mas preciso revidar ou vou acabar me machucando
demais.
Seguro o homem por seu terno, usando técnica, e não força, para inverter
nossas posições. Sinto sangue escorrer do meu nariz, pingando no rosto do
idiota. Meto a porrada no seu rosto, mas não consigo dar continuidade
porque seu amigo me puxa pelos cabelos. Sou arrastada pelo chão, jogada
perto de Richard. Ele me encara com os olhos arregalados, chocado pela
cena que se desenrola à sua frente, ainda sem compreender quem somos.
Tenho poucas balas restantes, mas vou ser obrigada a desperdiçar uma
com o imbecil que teve a audácia de me arremessar como se eu fosse um
saco de batatas. Ele chega a apontar a arma para mim, entretanto, é um
lento do caralho e não consegue me atingir antes que eu estoure seus
miolos. Mais um para conta.
Me levanto e avanço na direção do homem que batalhava comigo no
chão. Ele já está de pé, o rosto medonho, completamente tomado por
sangue. Nós nos encaramos. Eu sou o predador. Ele é minha presa. Minha
arma está em mãos e penso em usá-la, mas não quero desperdiçar as últimas
balas, quando posso resolver as coisas de outra forma.
O homem corre na minha direção como um brutamonte. É uma jogada
imbecil, porque estou parada e posso fazer o que quiser com ele. Posiciono
meu braço de uma forma que ele seja freado, com meu golpe, consigo
derrubá-lo no chão outra vez. Sua velocidade contribui para que caia,
batendo a cabeça com força, da mesma forma que fez comigo.
Paro à sua frente e piso em suas bolas com meu salto. Eu sempre quis
fazer isso. É como um sonho realizado.
— Por favor. Ah! — O homem grita. É lento, doloroso. Quase chego a
ter pena. Mas meu coração não é tão bondoso assim.
Afundo ainda mais o salto, ele passa a urrar.
— Você tem sorte que não quero estragar esse sapato. Caso contrário,
tudo seria muito pior. — Mantenho meu pé em seu saco e pego a faca que
estava escondida no meu sutiã. Aproximo a lâmina do seu pescoço,
inclinando o tronco para frente. — A morte é mais suave do que batalhar
contra mim. Prometo — brinco, rasgando sua garganta até que a vida suma
de seu corpo. Somando seu rosto sangrento, aos olhos que permaneceram
abertos, a cena parece pertencer a um verdadeiro filme de terror.
Limpo a faca em sua roupa, dessa vez guardando-a na cinta presa à
minha perna. Me afasto do homem a tempo de ver Huskey tentando
escapar. Luke ainda está em uma batalha, tudo acontece muito rápido. Saio
correndo na direção da porta, puxando Huskey pelo braço para que não
fuja.
Eu não sei por que vou até ele.
É arriscado para mim. Para o meu segredo.
Mas perdê-lo de vista sem entender todos os planos envolvendo o filho
do Presidente e sem descobrir quem é a Coruja não é prudente.
Entretanto, Paul Huskey me encara. Os olhos me analisam e me
reconhecem.
— Você estava no Clube Nix, agora está aqui — pontua,
surpreendentemente perceptivo. Ele já sabia quem eu era desde o primeiro
dia em que nos vimos. — O que Darius Black quer?
A pergunta me arrepia da cabeça aos pés. E não é um arrepio bom.
— Não trabalho para ele — respondo a verdade, apesar de omitir um
pequeno detalhe.
Não trabalho mais para ele.
— Ninguém para de trabalhar para o chefão de Nova York e sai vivo —
constata, se mostrando um grande conhecedor de um mundo que um dia fiz
parte.
— Eu parei. — Dou de ombros uma única vez, encarando-o diretamente
para que sinta o perigo que represento.
— Tem algo errado nessa história — pontua, desconfiado. Ele aproxima
o rosto do meu, quase cuspindo na minha cara. — Você era a putinha dele,
não era?
O modo como se refere a mim me deixa revoltada. Quero acabar com
esse desgraçado, mas não posso. Ele é nossa única ligação com a Coruja,
com o comando da Tempestade Noturna.
Aperto seu braço, impedindo-o de escapar.
— Me diga quem é a Coruja.
Paul gargalha.
— Acha que sou marinheiro de primeira viagem, garota? Acha que não
sei que seu amigo ali não sabe do seu envolvimento com a máfia? — fala a
última palavra com o rosto colado ao meu. — Me deixe ir e não revelo tudo
o que você fez, justiceira.
Merda. Merda. Merda. Merda. Só... merda.
Solto seu braço, abrindo mão de concluir a missão para me proteger. Eu
me odeio por isso, mas não há escolha. Por mais que eu me importe em
pegar a Tempestade Noturna, esse é só o meu trabalho. A minha reputação
perante a todos os Serpentes vale muito mais do que essa informação.
— Suma da minha frente e nunca mais relacione o nome de Black ao
meu — ordeno, soltando-o de uma vez.
— Boa garota. — Paul sorri e vai embora porque eu o deixei escapar.
Quando sai pela porta, dezenas de agentes do Serviço Secreto invadem a
sala. Há mais uma confusão generalizada, Luke tenta batalhar contra eles,
eu também, e Paul é um filho da mãe e consegue escapar. Imagino que
estejam protegendo Richard, porém, quando percebo, ele também está
tentando escapar.
Enquanto luto contra agentes com o dobro do meu tamanho, começo a
pensar. O’Conell estava na reunião, assim como Paul. Ele estava com a
Coruja. Ele possivelmente sabe quem ela é. E se não souber, pode nos
ajudar a descobrir, porque pelo menos ficou frente a frente com a mulher.
Richard está sendo ameaçado, logo podemos arranjar um jeito de fazê-lo vir
para o nosso lado. Oferecemos proteção em troca de informações sobre a
Tempestade Noturna. Qualquer coisa que ele puder entregar, é melhor do
que o que temos.
Luke já derrubou alguns homens e está controlando a batalha da forma
que pode. Em meio a troca de socos, pressiono o comunicador e chamo por
reforços. Não explico o caos em que nós nos metemos porque não convém.
Quando chegarem, teremos que encerrar essa briga e explicar para o
Serviço Secreto que estamos do mesmo lado.
Deixo Luke sozinho com todos os homens, tendo fé de que ele irá ser
capaz de segurá-los. Saio em disparada atrás de Richard, que abre uma
porta que eu não havia notado antes, no meio da sala. Óbvio que ele
conhece outra saída.
Sigo seu caminho, abrindo a mesma porta, seguindo-o por dentro dos
quartos. Ele não para de correr, não me escuta quando eu chamo, mesmo
que eu berre que quero ajudá-lo. Não posso deixar que saia desse quarto
porque estaremos em público, o que julgo que é exatamente o que ele quer
fazer.
Tenho uma ideia péssima, mas que julgo ser melhor do que apenas deixá-
lo voltar para a festa como se nada tivesse acontecido. Preciso de
informações.
Pego minha arma e miro em sua perna, em um lugar nada fatal e pouco
doloroso. Meu dedo está no gatilho. Estou prestes a dispará-lo. Mas por um
segundo, por uma mísera fração de segundo, sou derrubada por Luke.
— Joy! — ele grita meu nome no instante em que aperto o gatilho.
Tudo é muito rápido. Enquanto estou caindo, com Luke pesando em
minhas costas, a bala vai na direção de O’Conell. Porém, a minha mira
perfeita foi destruída com o empurrão de Luke. Ele fez o ângulo mudar para
cima. A bala entra direto na cabeça de Richard.
Richard O’Conell está morto.
Eu acabei de assassinar o Chefe de Gabinete dentro da Casa Branca.
O relógio diz que estou trancada dentro da sala de Brenda há trinta
minutos, mas meu corpo sente outra coisa. Parece que estou presa aqui há
horas. Ando de um lado para o outro, esvazio uma garrafa de água que
estava em sua mesa e bebo três xícaras de café.
A cafeína pode até ter contribuído para meu estado agitado, mas não é
sua causa.
As repercussões do que aconteceu no Baile Anual da Casa Branca ainda
estão recaindo sobre mim. Na verdade, sobre a ANDOS como um todo,
principalmente Brenda.
Dois homens sabiam da identidade da Coruja. Um deles sabe do meu
passado e não pode ser usado. O outro, o único maleável, está morto. Seria
de muita utilidade saber quem é essa maldita mulher agora. Assim,
poderíamos ir atrás dela e justificar toda essa maluquice para o Presidente.
Como isso está fora de cogitação, estamos ferrados.
Assim que Richard foi morto, trancamos as salas e chamamos por ajuda.
Não troquei uma palavra com Luke, que estava em choque com toda a cena.
Estou com raiva de sua atitude, de não ter confiado de que eu estava
fazendo a coisa certa. E ele estava catatônico, desesperado porque
contribuiu para que o Chefe do Gabinete fosse assassinado. O problema é
que ele me atrapalhou, mas não foi quem puxou o gatilho.
Liz e David foram os primeiros a chegar na cena. O que temos de idade,
eles têm de experiência, então nenhum dos dois se assustou. O resto da
equipe chegou logo depois, exceto Brenda, que estava se resolvendo com o
Serviço Secreto. Não sei que merda ela inventou, mas tudo ficou bem, pelo
menos até ela descobrir o corpo de Richard.
Nesse momento, o caos se instalou. Não porque Brenda saiu gritando e
me xingando, mas por seu silêncio. Ela apenas fez algumas ligações e pediu
que toda a minha equipe saísse de lá. Apenas Kyle, Liz e David ficaram
para trás, imagino que para arrumar a bagunça e tentar adulterar a cena.
Conheço minha mãe. Ela não vai deixar que isso recaia na agência.
Contudo, o Presidente vai exigir explicações, portanto, ela precisa de uma
história.
Passei a noite em claro, rolando na cama, pensando em Paul, na merda
que é ter alguém como ele sabendo tanto sobre mim. Também pensei na
Coruja e em seu tom ameaçador de voz. Depois, O’Conell me veio à mente.
Seu filho que não terá mais um pai. O filho que Paul Huskey arrancou de
outra família para ser o dele. Sua esposa, a quem claramente ele amava. O
segredo que ele está levando para o túmulo consigo.
Um homem do governo que trabalhava para os bandidos, que poderia ser
de grande utilidade, se fosse convencido da maneira certa.
Nós desperdiçamos uma oportunidade de ouro. Não, nós não. Eu. Luke.
Maldito e desconfiado Luke.
Cansada de andar e esgotada mentalmente, vou até uma parede e a soco
com toda a raiva dentro de mim. Acabo com os nós dos meus dedos, que
ainda estão esfolados das lutas no baile, mas não estou nem aí. Preciso
depositar um pouco dos meus sentimentos nessa parede para ficar mais
leve.
Quando termino, apoio a testa na parede, me concentrando na minha
respiração, tentando fazer meu coração bater mais devagar, voltar para um
ritmo menos eufórico.
Escuto a porta se abrindo devagar, em seguida se fechando outra vez.
Desencosto a cabeça da parede, mas continuo escorada nela, me preparando
para o que está por vir.
Mesmo que o mundo esteja ruindo sob seus pés, Brenda está glamurosa
como o habitual. Hoje, usa calças pantalona pretas e uma camisa social
branca, com os primeiros botões abertos, deixando um colar de pérolas à
mostra. Os pés estão calçados com uma bota arredondada, o salto grosso
fazendo com que ela fique muito mais alta e intimidadora do que realmente
é.
— Diga minha sentença — peço, já que não adianta negar.
— Isso aqui não é um julgamento. Não haverá sentença nenhuma —
responde, se aproximando de sua mesa para deixar uma pasta de arquivos
ali.
— Por que me deixou trancada então? — Minha rebatida não é muito
educada, refletindo todo o nervosismo que sinto por dentro.
Brenda me olha feio. Preciso ficar mais boazinha ou vou me ferrar.
— Estava consertando a bagunça que você fez — enfatiza, me culpando
com vontade, trazendo memórias desagradáveis para minha mente. Ethan.
Sequestro. Nossa casa. Minha culpa. Foi minha culpa. Sempre vai ser
minha culpa.
Engulo em seco, doida para dizer a ela que Luke teve participação e
desviou o percurso da minha bala, que a culpa, dessa vez, não foi
completamente minha. Entretanto, não posso, porque ele me protegeu
durante o resgate do filho do Vice-Presidente, quando estraguei tudo
batendo no chefe até a morte. Pelo menos, depois descobrimos que o cara,
no fim, trabalhava para Huskey, que foi de fato o responsável pelo
sequestro.
— Quais foram as soluções? — pergunto, séria, tentando não
transparecer a dor que começa a consumir meu peito. Lembrar de Ethan
sempre me abala.
Brenda apoia uma mão na cintura, a outra em sua mesa, olhando para
mim com uma expressão neutra demais para um momento como esse.
— Primeiro, menti para o Serviço Secreto para despistá-los. Disse que
estávamos ali a pedido de O’Conell, que estava desconfiado de um homem
com quem fazia negócios.
— Paul — completo, entendendo o raciocínio.
— Exato. Expliquei que a situação ficou complicada e que estavam
prestes a matá-lo, então vocês interviram e batalharam duro para tentar
mantê-lo vivo, porém, Richard escapou e havia um homem esperando-o na
outra sala. Um funcionário de Huskey que estava de retaguarda. Ele o
matou sem dó porque O’Conell não queria cumprir com seu pedido.
Inventei que ele não me contou a origem dos negócios para não me
complicar mais.
— Foi uma boa saída.
— A única que eu tinha — Brenda rebate com certo desgosto em sua
voz.
Gostaria de dar essa conversa por encerrada, mas, infelizmente, não
posso. Preciso enfrentar as consequências de ter apertado aquele gatilho, de
ter invadido a sala sem autorização de ninguém, de ter matado sei lá
quantos homens que trabalhavam para a Tempestade Noturna.
— Você está brava? — faço uma pergunta óbvia, abaixando um pouco a
cabeça, montando a expressão mais dramática que consigo, para que ela
veja que eu me arrependi.
Brenda nega com a cabeça, odiando meu disfarce.
— Não consigo dimensionar meus sentimentos em palavras — fala com
certa rispidez, olhando para minha cara de cachorrinho arrependido, ficando
cada vez mais irritada. Ela solta a mão da mesa e da cintura e dá dois passos
na minha direção. Tento ir para trás e me afastar, mas a parede me impede.
— Onde você estava com a cabeça? — a pergunta ainda sai em um tom
linear, mas dá para ver que ela está prestes a explodir.
E ver Brenda Saroyan explodir não é nada legal. Ser o motivo que a fez
explodir muito menos.
— Eu não... — tento falar, mas sou impedida quando ela se aproxima
ainda mais.
Estamos a menos de um metro uma da outra. Não nos encostamos. Ela
não chega perto. Eu me recuso a me aproximar. Estávamos indo bem, mas
eu fiz tudo desandar. Brenda vai me fazer pagar por isso.
— Eu permiti que fossem armados na missão para se sentirem
confortáveis, não para matarem alguém! Fiz isso pensando em você, Joy!
— grita, perdendo a postura, o rosto ficando ruborizado de raiva, algumas
gotas de suor escorrendo em sua testa.
— Não faz sentido levar uma arma para uma missão se você não vai usar,
não é? — retruco, petulante, recebendo um olhar de ódio. — Juro que não
queria matá-lo.
— Então logo você, que tem a mira mais perfeita da agência, não queria
matar O’Conell, mas atirou na cabeça dele?
Silêncio. Silêncio. Silêncio.
Brenda sabe que a história não é só essa. Deve imaginar que sofri
interferência de terceiros. Mas eu não vou abrir a boca. Ela não vai insistir.
Se quero assumir a responsabilidade, o problema é somente meu.
Minha mãe se afasta, virando de costas para ir até sua mesa. Se senta na
cadeira que tanto amo, o rosto com menos expressões, os olhos mostrando
milhares delas. Ela sabe que estou protegendo alguém, provavelmente
Luke. Acha honroso da minha parte, mas também burro. Toda a equipe sabe
que fui eu quem puxou o gatilho. Elizabeth. David. Kyle. Noah. Zoey.
Lucy. Nathan. Ele com certeza vai esfregar o acontecimento na minha cara.
— Você está suspensa das missões — diz, apenas.
— Vai me deixar presa com burocracias? Tudo bem. — Dou de ombros,
aceitando meu destino.
É o melhor que eu poderia pedir.
— Tem mais.
— Lá vamos nós. — Suspiro, resolvendo me sentar à sua frente para
ouvir o resto.
— Para salvar sua pele, tive que dizer ao Presidente que você, minha
filha querida e uma das melhores agentes da ANDOS, escutou Paul Huskey
dizer que iria sequestrar o filho do Presidente, assim como fez com o filho
do Vice. Também disse que você mesma se ofereceu para protegê-lo. Ele
adorou, ficou admirado por sua atitude honrosa. — Sua voz sai um tanto
irônica.
Faço uma careta ao entender o cenário. Brenda fez com que eu saísse
dessa história como a salvadora. O Presidente Campbell deve estar achando
que eu sou uma cópia da minha mãe, sempre preocupada com o bem-estar
do nosso país.
— O que você quer que eu faça exatamente?
— Vá para Nova York e se aproxime do garoto. William estuda na
Universidade de Columbia. Você vai se infiltrar e se certificar de que ele
não seja raptado.
Paraliso quando escuto o destino. Nova York.
— Por quanto tempo?
— Quanto eu quiser. — Brenda esboça um sorriso controlador.
Meu destino está nas mãos dela.
— Entendi. — Levanto as sobrancelhas, nada feliz com essa situação.
Logo agora que eu estava estabilizada...
— Você parte amanhã de manhã — anuncia e respiro fundo, apoiando as
mãos na cadeira para me levantar.
— Vou avisar as meninas, Noah e Luke e arrumar minhas coisas.
— Não. — Estou prestes a sair da cadeira quando a escuto. Paro no lugar
e volto a me sentar. — Você não vai avisar ninguém. Essa missão fica entre
nós.
— Você está mandando eu ficar de babá do filho do Presidente, mas não
permite que eu conte para os meus amigos e meu... — engulo em seco, sem
saber como nomeá-lo — Luke, para eles acharem que eu fugi de novo só
porque as coisas ficaram difíceis? Sério que vai fazer isso? Essa é a sua
vingança por eu ter descumprido uma mísera regra?
— Preciso que as coisas esfriem, Joy. Se você permanecer aqui, isso não
vai acontecer. — Fico calada, porque sei que ela está certa. — Amanhã vou
te dar uma mala com todos os itens que precisar e um telefone para se
comunicar comigo. Vou entrar em contato todos os dias. Agora me dê o seu
celular.
Estende a mão, esperando que eu a obedeça.
— Você está passando do limite — constato, cruzando os braços e me
levantando para enfim sumir dessa sala.
— Entregue — ordena, os olhos castanhos vidrados em mim. Ela está me
avisando que é melhor obedecê-la. Mesmo a contragosto, enfio a mão no
bolso da calça e coloco o celular na mão dela de forma bruta. Brenda apoia
o aparelho na mesa, se dando por satisfeita. — Você vai gostar de Nova
York. É uma ótima cidade para conhecer — fala com um sorriso ridículo no
rosto, quase como se precisasse se convencer de que essa é uma boa ideia.
Pensando no que aconteceu e na missão que comprometi, me afastar é, de
fato, a melhor opção. Mas levando em conta meus amigos, a confiança que
batalhei para reconquistar, minha relação com Luke... Essa é a pior ideia do
mundo. Brenda vai colocar tudo a perder e todos vão achar que é minha
culpa. Vou, novamente, sair como a vilã dessa história.
Entretanto, se eu ficar, vou comprometer algo muito maior do que a
confiança dos meus amigos. Nossa missão é importante. Destruir a
Tempestade Noturna é crucial. Terei que priorizar a agência, os Serpentes e
o meu trabalho. Terei que agir como Brenda e fazer algo que sempre julguei
que ela fizesse.
Mas eu não sou como ela. Pelo menos, não cem por cento. Preciso, pelo
menos, ficar frente a frente com Luke uma última vez antes de partir de
novo.
Eu não devia estar aqui.
Brenda deixou claro que avisar Luke ou qualquer outro membro da
minha equipe está fora de cogitação, mas eu preciso falar com ele.
Nós não tivemos oportunidade de dialogar depois do que aconteceu. Eu
não entendi sua atitude, fiquei revoltada por ter me interrompido e quero
tirar isso a limpo.
Depois de deixar uma mala de roupas pronta no meu apartamento —
escondida embaixo da cama para que Zoey e Lucy não a notem — venho
para o prédio de Luke. Bato duas vezes em sua porta, pensando em como
vou começar essa conversa. Minha cabeça está uma bagunça, ora pensando
no que aconteceu no baile, ora voltando para o passado, relembrando todas
as memórias com as pessoas que deixei em Nova York. Parte de mim está
feliz pela oportunidade de revê-los. A outra parte está apavorada. Vamos
dizer que não sou exatamente bem-vista por lá.
Escuto a porta ser destrancada e me foco no mundo real novamente ao
ver Luke. Ele está, felizmente, vestido. A expressão fechada se assemelha
com a minha.
Toda a paz entre nós se foi.
— Que porra você fez? — Empurro seu peito enquanto entro no
apartamento. Fecho a porta atrás de mim com um chute, irritada. Luke nem
se mexe. — Onde estava com a cabeça? Não confia em mim? — lanço mais
perguntas, querendo resolver essa merda logo.
Não posso ir embora por sei lá quanto tempo sem saber por que me
impediu daquele jeito.
— Joy... — fala meu nome de forma afastada, como se quisesse me
acalmar, mas ao mesmo tempo discutir comigo. Vejo que assumiu a pose de
bad boy rancoroso de novo.
— Você não confia em mim? — repito a pergunta, olhando direto em
seus olhos.
Luke está bravo. Eu também estou.
— Como vou confiar em alguém que não me conta a verdade? — Joga
na minha cara sem dó. Não me atinjo. Estava só esperando pelo momento
em que ele traria esse assunto de novo. — Você deixou um bandido escapar
na minha frente! Por quê? Por que deixou Paul escapar? — Engulo em
seco, incomodada por ele ter percebido isso. Tento ao máximo disfarçar
minha reação para que não insista no assunto. — Eu vi! Não tem como você
negar. — Aponta o dedo para minha cara, esbravejando. — Você quis
invadir aquela cena, para no fim apontar sua arma para Richard e libertar
Huskey! Não dá para entender qual é a sua! — Passa a mão pelo cabelo, se
afastando de mim, me olhando de uma forma que nunca olhou.
Seus olhos transbordam decepção.
— Qual é a minha? Está brincando com a minha cara? — Agora sou eu
quem esbravejo. Posso até ter libertado Huskey por interesse próprio, mas
invadi aquela sala pensando em desvendar os segredos da Tempestade
Noturna. Sei como a situação se parece, mas fiz quase tudo em prol dos
Serpentes. — Eu ia atirar na perna dele, imbecil! Impedir que ele
continuasse correndo e se distanciando. Você atrapalhou tudo! — Aponto o
dedo para seu rosto da forma que ele fez no meu. Me aproximo para acusá-
lo, nos deixando mais próximos do que o considerado seguro. — A
atiradora perfeita errando um tiro! O que acha que as pessoas pensaram?
Que Brenda pensou? — Aponto para minha cabeça, tocando nela repetidas
vezes para tentar colocar alguma consciência na mente de Luke.
Ele está pensando tanto nos meus segredos, que se esqueceu do meu
talento, do peso que carrego em meus ombros por ser quem eu sou.
Ninguém, em sã consciência, acredita que errei um tiro desses. Toda a nossa
equipe deve achar que matei Richard de propósito. E eu não terei sequer a
oportunidade de me defender.
— Você contou para alguém? — ele pergunta, preocupado.
Dou um passo para trás, irritada por ele só ter percebido esse problema
agora.
— Claro que não! Eu sou leal, Luke. — Uso a última frase apenas para
cutucá-lo. — Nós somos parceiros, porra! Preciso que você confie em mim,
nas minhas decisões e nas minhas atitudes. Preciso que saiba que eu sei o
que estou fazendo. — Falo com mais calma, disposta a fazê-lo entender
meu lado para que possamos superar esse acontecimento.
Entretanto, Luke não parece disposto a colaborar.
— Você não me diz a verdade.
Bufo, puxando meu cabelo e dando alguns passos para trás, ficando de
lado para ele.
— Pelo amor de Deus! — gesticulo, voltando a ficar irritada por,
novamente, ele bater nessa tecla.
— Porque deixou o Huskey escapar? Vocês já se conheciam da sua vida
antiga? Eu sei que não ficou só fazendo justiça para as mulheres indefesas
— Luke dispara. Dá para ver que está com isso engasgado há tempos.
— É melhor que você não saiba — repito a verdade que enraizei dentro
de mim.
Não quero ser julgada. Não quero compartilhar todas as sujeiras nas
quais me meti. Não quero que ninguém do meu convívio saiba sobre meu
envolvimento com o submundo.
— Porra! — Vejo, pelo modo como cerra seus punhos, que Luke quer
extravasar a irritação. Ele ameaça socar a parede, mas desiste de última
hora e apoia as mãos no balcão da cozinha, ficando de costas para mim.
— Isso é para te proteger, Luke.
Minha frase faz com que ele desista de se controlar. Ele bate as duas
mãos no granito com força, se virando na minha direção, caminhando até
que esteja com o rosto colado no meu. Me olha de cima, querendo me
intimidar, mas eu o encaro de volta.
— Eu não quero ser protegido! — grita na porra da minha cara.
— Você não entende o que está me pedindo! — Uso o mesmo tom,
avançando para cima dele da mesma forma que avançou para cima de mim.
— Você não entende o quanto isso me incomoda?
— É para o seu bem! — reforço, nossos narizes estão quase se
encostando, tamanha a proximidade.
Estamos cada vez mais perto. Essa conversa está cada vez mais perigosa.
— Não preciso ser protegido, Saroyan!
Dou risada quando o escuto.
— Você não sabe do que está falando.
— Quem é você? O que aconteceu com você?
— Coisas que você não entenderia, Carter.
— Porque você não me deixa entender! — Perde as estribeiras de novo.
Agora, nossos peitos estão praticamente colados. Eu sinto sua respiração
ofegante se misturar com a minha.
— Você não nasceu nesse mundo, não entende de boa parte dele — falo,
nivelando a discussão.
— Vai jogar isso na minha cara?
— Você está jogando várias coisas na minha.
— Não te reconheço mais.
— Ótimo, porque não sou a mesma pessoa.
— Eu também não sou.
O diálogo rápido faz com que a temperatura da sala aumente. Eu sabia
que ficar perto desse jeito seria um perigo. Não importa se o sentimento
entre nós seja amor ou ódio. Sempre há um sentimento. Uma faísca. Um
calor. Um tesão fatal que nos domina completamente.
Luke olha para minha boca. Eu levanto o olhar para o seu. Quando me
encara, declaramos o fim da discussão. Ainda estamos com raiva. Mas isso
só fará o sexo ser ainda melhor.
Para mim, ainda terá gosto de despedida.
Suas mãos vão para meu cabelo. Ele me segura com força, unindo nossas
bocas com uma brutalidade que me deixa em chamas. Em resposta, também
puxo seu cabelo, eliminando qualquer espaço que ainda restava entre nós.
Nossos corpos conversam, entrando em uma sincronia absoluta enquanto
andamos na direção do quarto. O caminho não é longo, mas nossa vontade
nos consome de tal forma, que paramos de andar quando chegamos ao
corredor. Luke me empurra contra a parede com brutalidade e fica me
olhando como se eu fosse a última gota de água do planeta.
— Estou tentando decidir o que fazer com você. Seu comportamento não
tem estado muito bom — a fala carrega malícia, usando nossa discussão
para apimentar as coisas.
— Você também não tem sido um garoto bonzinho, Carter — retruco,
mordendo o lábio inferior, cheia de expectativa para o que virá.
— Mas você sempre é mais malvada do que eu, Saroyan. — Ele arranca
a camisa, mostrando seu belo abdômen para mim.
Preciso de um babador urgente.
Luke se aproxima a passos lentos, me encurralando na parede, segurando
meu braço com uma mão, um dos meus seios com a outra. Ele cheira meu
pescoço, a respiração quente me arrepiando. Quando vejo que sua boca está
próxima ao meu ouvido, já me derreto.
— E você gosta de ser malvada. Não gosta? — sussurra com a voz rouca,
umedecendo ainda mais minha boceta.
Esse homem pode ter cagado com a minha estabilidade, pode ser um
chato perguntando inúmeras vezes sobre meu passado, pode adorar ser
metódico como o bom virginiano que é, mas ele sabe foder como ninguém,
sabe como esquentar o clima como ninguém.
Eu também sei. É por isso que nossos momentos são inesquecíveis.
Avanço para cima de Luke, mordendo seu lábio gostoso com força,
levando minhas mãos para seu peitoral firme e definido até empurrá-lo
contra a parede oposta. Transformo a mordida em um beijo, descendo a
mão por seu abdômen enquanto ele toca meu corpo.
Somos uma confusão de toques e saliva.
Levo a mão para sua calça, abrindo o zíper sem descolar nossas bocas.
Nos afastamos momentaneamente para que ele possa abaixá-la e aproveito
para tirar a minha também. Luke está apenas de cueca, e eu ainda de blusa.
Incomodado com a discrepância entre nós, ele joga toda a minha roupa no
chão, me deixando apenas de calcinha.
Voltamos a nos beijar, agora com menos tecido, com menos barreiras
entre nós. Pensando no tempo em que vamos ficar separados, resolvo que
preciso aproveitar todos os segundos dessa transa. Esfrego meu quadril no
seu, arranjando uma forma de deixar sua perna próxima ao meu clitóris para
que eu sinta mais prazer. Vendo minha necessidade, Luke leva a mão para
minha boceta, me provocando por cima do tecido antes de enfiar a mão por
baixo dele, me encontrando encharcada.
Os dedos brincam com a minha umidade, eu gemo em seus lábios,
decidindo retribuir. Passo a mão em seu pau por cima da cueca, fazendo
movimentos para cima e para baixo, deixando-o tão louco por mim, quanto
estou por ele.
Luke me faz gozar no corredor. Quando já estamos cansados de ficar de
pé, ele aperta meus seios com força, melando-os com meu gozo, e sugere
irmos até o quarto. Viro de costas, chamando-o com o dedo indicador, a
expressão mais safada dominando meu rosto.
Ele vem atrás de mim na hora, me encoxando, o pau duro roçando na
minha bunda. Aperta minhas nádegas, depois dá um tapinha em cada uma,
me fazendo dar risada. Finjo que vou fugir dele e me jogo na cama.
Aproveito a pose para tirar minha calcinha da forma mais sexy que consigo,
arremessando-a em sua direção. Luke a pega com um sorrisinho, mas logo
dispensa a peça. Ela, de fato, é indispensável.
Sua cueca também.
Luke a arranca antes de subir na cama de joelhos, se masturbando
enquanto me encara deitada, o cabelo esparramado por seu travesseiro. Ele
desliza pela cama com os joelhos, até chegar perto de mim e posicionar um
joelho de cada lado do meu corpo. Seu pau fica raspando na minha barriga
enquanto ele monta em cima de mim. Nossas bocas se encontram quando
ele se inclina para frente, se esfregando no meu corpo.
O beijo molhado é substituído pelo seu pau. Luke leva o membro até a
minha boca, eu lambo a pontinha, vou chupando aos poucos, enquanto ele
se enfia para dentro de mim.
— Me deixa babado, Saroyan — ordena, se enfiando mais dentro da
minha boca.
Quase fico sem ar, asfixiada pelo seu pau grosso. Luke vai até o meu
limite e tira só para enfiar de novo. Adoro a sensação de impotência, de não
saber o que esperar. Luke só me surpreende quando tira seu pau da minha
boca e o posiciona no meio dos meus seios.
Rapidamente entendo o que quer fazer e aperto os peitos, formando o
espaço perfeito para que ele movimente seu pau.
Minha boceta está latejando de tesão enquanto Luke fode meus peitos.
Mas eu quero mais. Consigo sentir que ele também quer.
Luke se afasta apenas o suficiente para alcançar sua mesa de cabeceira.
De lá, tira um tubo de lubrificante. No mesmo momento, abro um sorriso
que está longe de ser puritano, entendendo o que ele quer fazer.
Primeiro, Luke leva as mãos para minha boceta, me tocando de novo, me
fazendo gozar de novo. Enquanto estou relaxada, fico de quatro, porque sei
que é a hora certa para agirmos.
Ele me lambuza com o lubrificante. Espalha enquanto acaricia minhas
nádegas, derrapando um dedo molhado no meu cu sem que eu perceba.
Já fiz isso antes, várias vezes, para ser honesta, e adoro. Porém, dar o cu
precisa ser ocasional para não cair na mesmice.
Luke não diz que sou “apertadinha” ou qualquer porra do gênero porque
sabe o quanto acho broxante. Alguma mulher gosta dessa merda? Ser
apertada significa que vai doer. Os homens precisam pensar um pouco antes
de falar.
Graças a Deus, meu homem não fala, apenas age. Acrescenta mais um
dedo em meu cu, me fazendo gemer com os movimentos de vai e vem. Um
terceiro dedo acompanha a brincadeira, abrindo espaço, me deixa
preparada, babando, sedenta.
Gemo alto, implorando para que ele me foda de uma vez. Luke está tão
desesperado para gozar quanto eu, logo substitui os dedos pela cabecinha
do seu pau. Não me contraio, relaxo, esperando pela arremetida. Ele vai
devagar, entrando pouco a pouco, até que seu quadril esteja batendo na
minha bunda.
Empino o rabo ainda mais, esperando que ele se movimente. Luke
demora e olho para trás, vendo que está envolvido em seu prazer, preso nas
memórias do nosso passado, lembrando de todas as vezes que fizemos isso
antes. Começo a me mover, levando a bunda para frente e para trás para
trazê-lo de volta.
Luke passa a agir, tomando o controle, segurando na minha bunda
enquanto fode meu cu com gosto. Seus tapas ocasionais marcam minha
pele, algo territorial, primitivo, controlador de um jeito que aceito e ainda
gosto.
O prazer que sinto é bom, mas se torna inexplicável quando Luke leva
um dedo ao meu clitóris.
— Quero você gritando meu nome quando gozar, ouviu? — murmura, a
voz sensual me incentivando a rebolar mais.
Luke coordena os movimentos do dedo com o pau, me estimulando em
ambas as entradas. O prazer em dobro consome minha mente. Não penso
em nada, a não ser no sexo, no nosso momento, em mim e Luke. Nós dois.
Juntos. Sendo um só.
— Caralho, Carter — xingo quando o orgasmo vem, consumida por uma
sensação forte que só ele pode me proporcionar.
Ele mete sem parar até que esteja satisfeito, até que esporre dentro do
meu cu e deixe o líquido escorrendo para fora dele.
Essa foi a transa mais suja, raivosa e gostosa que já tivemos.
Me jogo na cama, pouco me importando de melecar seu lençol, porque
não aguento me mover no momento. Luke, igualmente esgotado, se deita ao
meu lado. Nós dois estamos ofegantes, com as respirações entrecortadas, o
coração batendo mais forte.
Resolvo olhá-lo no mesmo momento que ele também me olha. Sorrimos
um para o outro, depois damos risada pela coincidência. Luke me puxa para
seus braços e me aconchego em seu peito. Faço carinho perto de seu
coração, querendo dizer inúmeras coisas, mas sem coragem para abrir a
boca.
Ainda estou puta com ele. Ainda o amo. Porém, mais uma vez, precisarei
ir embora em segredo. Não por escolha própria, mas por necessidade. Seu
erro, nosso erro, pode me custar muito se eu não obedecer a Brenda.
Luke talvez fique destruído e me odeie de novo, mas, nessa nossa vida,
estar em uma relação amorosa é uma loucura que nem sempre dá certo e
raramente fica em primeiro lugar.
Aproveito a última noite ao lado dele, sentindo seu cheiro, guardando o
ritmo das batidas de seu coração na memória. Pela manhã, observo sua
calmaria dormindo, feliz por ainda guardar certa pureza dentro de si e
conseguir relaxar dessa forma.
Pego um papel em sua cozinha e resolvo que, dessa vez, pelo menos, vou
escrever uma breve despedida.
“Lembre-se de que meu coração é seu.
E de que você é meu.
Volto logo,
J.S.”
Deixo um beijo no papel, marcando-o com o batom que acabei de passar.
Sinto um aperto enorme no peito por deixá-lo de novo, mas não há escolha.
Preciso enfrentar as consequências do que fizemos naquele baile.
E de brinde, ainda ficar frente a frente com a parte mais obscura do meu
passado.
O taxista está ouvindo “New York, New York” do Frank Sinatra. Ele
cantarola junto com a letra, enfatizando o nome da cidade, olhando para
mim quando o faz, querendo compartilhar sua paixão com o lugar que
nunca dorme.
Eu dou risada, tentando descontrair o clima, mesmo que esteja apreensiva
por estar de volta.
Observo a cidade iluminada e caótica pela janela. O trânsito permite que
eu perceba os detalhes que nunca notei quando estive aqui pela primeira
vez. Anos atrás, cheguei com pressa, procurando por um lugar para ficar,
onde pudesse me esconder da máfia que estava me perseguindo depois de
descobrir que eu havia matado um de seus homens.
A Tempestade Noturna.
— Primeira vez na cidade? — O homem pergunta, sorrindo
amigavelmente.
— Não — respondo de forma sucinta, ajeitando meus óculos escuros, me
certificando de que o chapéu está cobrindo meu rosto da forma que deve.
Ninguém pode me reconhecer.
— Tome cuidado com a bandidagem. As coisas estão cada vez mais
perigosas por aqui — alerta de uma forma tão inocente, que chega a ser
fofa.
Coitado. Mal sabe ele que o maior perigo acabou de chegar.
— Obrigada por avisar. Tomarei muito cuidado — enfatizo, dizendo a
mais pura verdade.
Precisarei tomar cuidado com cada movimento. Me manter o máximo
possível dentro da Universidade atrás do filho do Presidente, evitando andar
pelas ruas sem um disfarce para não ser pega pelas pessoas erradas. Fingir
ser uma estudante de direito e ser babá de um mauricinho não estava nos
meus planos, mas é o que tenho por agora.
Aproveito o momento ocioso para entrar no Instagram. Crio uma conta
fake para entrar no perfil de William Campbell, o garoto que vou proteger.
Imagino que seja um otário, nerd e engomadinho, mas, quando vejo suas
fotos, percebo que ele é bonitão. Gostoso, forte, adora postar fotos
treinando na academia e fazendo simulações de julgamentos de terno. Eu
perderia uma meia hora com ele, fácil.
Suspiro, bloqueando o celular e voltando a olhar para a cidade,
declarando o fim da minha busca. Em breve, me doarei exclusivamente a
William. Por agora, posso pensar no passado e em todas as formas que ele
se entrelaça com meu presente.
A Tempestade Noturna tem uma base gigante por aqui, mas Black
também tem. O comando, na verdade, é todo dele.
Brenda não fazia ideia de que Nova York foi o lugar onde mais fiquei nos
últimos quatro anos quando me designou para essa missão.
O lugar onde conheci Darius Black e minha segunda equipe.
Onde me tornei a primeira-dama do submundo e fiz coisas que nenhuma
mãe gostaria que a filha fizesse.
Onde fui protegida por um homem que boa parte do país considera o
próprio diabo.
Onde me tornei ainda mais insana e perigosa, digna de ocupar o lugar ao
lado dele ou até de derrubá-lo. Eu poderia ter sentado em seu trono, se tudo
não tivesse dado errado. Se a Tempestade Noturna não se intrometesse. Se
eu não precisasse ir embora para não prejudicar os negócios de Darius. Se
eu não tivesse sido presa, quase que propositalmente, para poder retomar a
minha antiga vida e voltar para a proteção da ANDOS, porque se tivesse
ficado, estaria enterrada a sete palmos abaixo da terra.
É engraçado que justo agora, quando estou tentando andar nos trilhos,
estabilizada na agência e relativamente resolvida com Luke, uma coisa
dessas acontece e sou mandada para o lugar do qual também tive que fugir.
Graças a colisão do meu passado com o presente, meu tempo em Nova
York tem tudo para ser caótico.
Estou com esse pensamento em mente quando meu celular vibra. Acho
estranho, porque Brenda acabou de me dar o aparelho e ninguém, exceto
ela, tem esse número. Imagino que esteja perguntando se cheguei bem,
porém, logo me lembro que é de Brenda que estamos falando. Ela jamais
teria tal preocupação.
Curiosa, desbloqueio a tela para ler a mensagem.
Desconhecido: Está de volta e não me avisou?
Congelo, sentindo meu coração disparar dentro do peito. Olho para fora
do carro, procurando para ver se alguém me observa, mas encontro apenas
o trânsito, as ruas, o caos.
Outra mensagem chega.
Desconhecido: Estou sempre de olho em você.
Darius.
É ele. Só pode ser. Eu sinto.
Engulo em seco, arrependida por ter permitido que Darius me conhecesse
a ponto de conseguir prever meus pensamentos e atitudes.
Essas mensagens só provam o que eu já sabia. Ele tem olhos em todo
lugar. Ele está me vigiando. Ele virá atrás de mim.
Nossa história ainda não acabou.

FIM DO LIVRO 1

VEJO VOCÊS EM

REENJOY – A DESCOBERTA DE JOY SAROYAN


Sobrou algum fôlego para ler os agradecimentos? Porque, depois dessa
montanha russa de emoções, se manter respirando é uma vitória.
Espero que você tenha curtido a primeira parte da jornada da Joy. Esse
livro não foi fácil de ser escrito. Foi trabalhoso, precisou de anos de
maturação, leituras críticas e mil revisões, para enfim chegar nessa versão.
Mas eu não me arrependo dela. Estou orgulhosa do que consegui criar e de
ter finalmente permitido que a Joy tivesse uma história digna de sua
magnitude.
Ela é minha mocinha mais complexa. Tenho um certo favoritismo por sua
história (estamos juntas faz tempo), mas confesso que meu fraco, mesmo, é
o romance proibido entre Brenda e Kyle. O romance que te fez sofrer agora
e te fará sofrer muito mais nos próximos livros. Esse é só o começo da
jornada pelo universo da ANDOS. Nossos agentes ainda têm muito a
contar.
Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, minha assessora. Lari, ter te
encontrado foi o maior presente de 2023. Sem você, eu teria enlouquecido
nesse lançamento. Obrigada por existir, por me ouvir, me acalmar e ser essa
parceira incrível. Amo trabalhar com você.
Agradeço também às minhas betas e amigas: Beatriz Garcia, Fernanda
Martins e Camila Moura, que tanto opinaram e deixaram esse livro ainda
melhor (esse epílogo só existe graças a elas). Também deixo um
agradecimento especial a Fernanda Freitas, que segurou na minha mãozinha
e revisou comigo os primeiros capítulos do livro para “pesar um pouco mais
a mão”, como ela mesma diz.
Finalizo agradecendo as duas pessoas responsáveis pela finalização desse
livro: Silvia, minha revisora maravilhosa e perfeita; e Ana Paula, que fez a
leitura crítica e deu outra cara para alguns pontos chave da história.
E a você, leitor, espero que esse universo tenha te conquistado. Espero
que esteja cheio de dúvidas e ansioso para ver Joy em ação em Nova York.
Nos vemos em breve!

Com amor,

Lau <3
[1]
Soco lançado com a mão que está à frente da guarda.

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