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Obras publicadas da autora

TRILOGIA SOUL DANCER


Todos Os Nossos Passos #1
Encontrando Nossa Sincronia #2
No Nosso Ritmo

SPIN-OFFS DO UNIVERSO SOUL DANCER


Mesmo Compasso
Batidas Descompassadas

LIVROS ÚNICOS
Outro Verão Com Você

SÉRIE GAROTAS EM QUADRA


Efeito Rebote
TÍTULO: Efeito Rebote – Garotas em Quadra 2
AUTORA: Laura Vitelli
PREPARAÇÃO E REVISÃO DE TEXTO: Silvia
Revisio
DIAGRAMAÇÃO: Laura Vitelli
CAPA: Larissa Chagas
ILUSTRAÇÃO: Gabriela Gois
Copyright © 2022 Laura Vitelli
Todos os direitos reservados.

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autorização da autora.

Esse é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares, eventos e


incidentes são ou os produtos da imaginação da autora, ou usados de forma
fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, é mera
coincidência.

As cidades fictícias, universidades, locais, bem como o time de basquete da


série foram criados pela autora e NÃO É autorizado o uso das mesmas por
terceiros.
Notas da Autora
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Epílogo
Prólogo
Agradecimentos
Olá, raposinhas!
Acho que no segundo livro da série, já posso chamar vocês
dessa forma, não é?
Às vezes eu ainda não acredito que Garotas em Quadra está no
mundo. Essa série nasceu no coração de cinco autoras em uma
mera conversa, por causa de uma vontade em comum que
tínhamos de ver mais mulheres atletas sendo protagonistas de
romances. Hoje, essa série ganha seu segundo volume. Nossa
capitã, Leah, ganha sua história.
Reforçando o recado que a Bia deu em O Último Lance: não
espere um livro revolucionário. Esse é um romance clichê. É uma
história previsível. É uma história com acontecimentos felizes. A
dose de drama, dessa vez (rs), é leve. A ideia de Efeito Rebote (e
da série em geral), é fazer você se desligar do mundo por algumas
horas, é fazer você se apaixonar pela amizade das meninas, é fazer
você rir com as provocações dos casais. É um livro gostoso, com
aquela vibe sessão da tarde que a gente tanto ama!
Não espere uma resolução para todas as questões abordadas
nessa história. Efeito Rebote ainda é o segundo livro da série, então
várias questões relacionadas as outras personagens não serão
resolvidas agora. Ainda temos mais três livros pela frente. Alex,
Abby e Scout estão no forno, apenas esperando o momento de
contarem as histórias delas para vocês. Se você ainda não leu O
Último Lance, primeiro livro da série, escrito pela Beatriz Garcia,
sugiro que leia para um melhor entendimento do universo. As
histórias são independentes, porém, fazem menções grandes sobre
a outra.
Ah, uma dica de amiga: fiquem atentos a todas as pistas
espalhadas pelo livro. Vocês já descobrirão muitas coisas sobre
nossas próximas raposas!
Agora um recado importante e essencial em qualquer nota de
autora: GATILHOS! Efeito Rebote fala sobre relacionamentos
abusivos e alcoolismo. Os assuntos foram abordados de forma leve
e não há cenas gráficas de nenhum tipo de abuso. Porém, se
qualquer um desses assuntos pode se tornar um gatilho para você,
não prossiga com a leitura. Sua saúde mental sempre vem em
primeiro lugar.
Lembrando que o livro é recomendado para maiores de 18 anos
por conter cenas de sexo explícito.
Sem mais delongas, eu espero que você se apaixone por esse
universo mais uma vez. Com Leah e Kahel, as risadas estão
garantidas. O coração quentinho também.
Mas não se esqueça: a série é sobre ELAS! (VAI RED FOX, VAI!)
Aproveite a leitura!
Um beijo,

Lau.
Para todas as garotas que sonhavam em ver um grupo de mulheres
atletas protagonizando uma série.
Essa é para vocês.
Agora eu gostaria que nunca tivéssemos nos conhecido
Porque você é muito difícil de esquecer

Lie To Me – 5 Seconds of Summer

Há um ditado que diz que tudo que vai, volta.


Foi mais ou menos assim comigo e com Kahel. Eu o odiei e
agora é ele quem me odeia. Mesmo depois de eu ter me
apaixonado por ele. Mesmo depois de ele ter me convencido a me
abrir, de ter derrubado meus muros, de ter se infiltrado na fortaleza
que construí em volta do meu coração.
Ele fodeu com tudo. Simplesmente com tudo.
Eu deveria estar focada no jogo, deveria estar focada no meu
time, deveria estar focada em pegar os rebotes dos nossos
adversários. O problema é que o significado de rebote, para mim,
nesse momento, mudou. Não estou pensando em tentar resgatar as
bolas que não entram na cesta, e sim na porra de efeito rebote que
estou sofrendo.
Eu tinha um problema. Achei que tinha resolvido o problema. O
problema voltou dez vezes pior. E agora se amplificou de uma forma
incontrolável. E é culpa dele. E também minha.
Eu sei que estou fodida. Sei que errei. Mas será que meu erro é
tão condenável assim? Será que se eu contar a verdadeira história,
Kahel vai entender? Será que mereço uma segunda chance? Será
que ele vai deixar meu futuro ser prejudicado por causa de um único
deslize?
— James! — Alex grita e aponta para o cronômetro.
Vinte e quatro segundos.
Vinte e três segundos.
Vinte e dois segundos.
Falta pouco tempo para acabar o jogo. A pressão não me ajuda a
tomar uma decisão. Estou parada no meio da quadra, batendo a
bola no chão, só sentindo que estou no mundo real quando, a cada
batida, a bola faz um breve contato com a minha mão.
Olho para minhas colegas de time, posicionadas e batalhando
contra nossas adversárias em uma marcação individual. Elas estão
me olhando com expectativa, esperando que eu tome a decisão e
inicie nossa jogada. Em dias normais, eu já teria passado a bola
para uma delas e estaríamos próximas de pontuar.
Mas hoje não é um dia normal.
Sei disso desde o momento em que o time rival fez a última cesta
e recuperamos a posse de bola. Alex se posicionou para iniciarmos
o ataque e, antes que pudesse passar a bola para mim, eu vi.
Kahel entrou na arquibancada atrasado, diferente do habitual, e
se posicionou logo atrás do nosso banco. Mesmo com inúmeras
pessoas à sua volta, meu olhar encontrou o dele. Desenvolvemos
um magnetismo forte, mas não foi por isso que fui atraída em sua
direção, pelo menos não hoje.
Eu o olhei porque queria descobrir se revelou meu segredo.
E com apenas um olhar, descobri que a resposta é sim.
A bola quica outra vez e o cronômetro chega aos dezoito
segundos. Estou suando, meu coração disparado, meu senso de
direção bagunçado. Não consigo pensar em armar uma boa jogada,
não consigo fazer a porra do meu papel, tudo por causa de um
único erro, tudo por causa dele e da sua incapacidade de manter a
boca fechada.
Minha atenção se desvia para a entrada da quadra e vejo o
treinador do time masculino marchando para perto da nossa
treinadora. Ele puxa o braço dela, sussurra algo em seu ouvido e ela
me encara.
É isso.
Estou perdida.
Quinze segundos.
Quatorze.
Treze.
Quico a bola uma última vez e a seguro, tentando colocar minha
cabeça no lugar. Agora, não posso mais voltar a batê-la. Preciso
tomar uma decisão. Meu time precisa de mim. Nós precisamos
ganhar esse jogo.
Eu não posso ser a pessoa que coloca tudo a perder.
Doze.
Onze.
Dez.
E eu passo a bola.
Você tem que colocar a cabeça no jogo
Nós temos que colocar nossa cabeça no jogo

Get’cha Head In The Game

Algum tempo antes


É a vez da minha equipe no exercício de ataque-defesa três
contra três que estamos fazendo. Já atacamos, agora é nossa vez
de defender. Jo e Bree se posicionam mais perto da cesta, eu perto
da linha dos três pontos, os braços erguidos na frente do corpo para
tentar segurar Abby, a caloura que tem dado duro para mostrar seu
talento. Ela é boa e tem potencial para sair do banco de reservas
algum dia, porém, hoje, se ferrou. Está fazendo parte do trio de Mia,
a garota que se tornou a mais fominha do time depois de ter virado
titular.
— Passa essa bola, Mia — comando, mesmo que, nesse
momento, ela seja minha adversária.
Óbvio que a filha da puta não me ouve. Dribla Bree, esbarra no
meu ombro com uma força desnecessária — que com certeza seria
considerada uma falta de ataque — e acerta a cesta, não sendo
páreo nem para a altura de Jo.
— Não precisei, capitã. — Mia se vira para mim, irônica, os
braços abertos para mostrar uma superioridade ridícula.
Às vezes, tenho vontade de enfiar uma maçã em sua boca. Eu
juro que ela não era assim. Mia mal falava, mas desde que assumiu
a posição como titular, tem sido a jogadora mais insuportável com
quem tenho o desprazer de dividir a quadra.
Reviro os olhos e não respondo. Vou para o banco e deixo que
ela se divirta defendendo o próximo trio. Pego minha garrafa de
água e jogo um pouco no rosto antes de beber. As outras meninas
do meu trio se sentam no chão e fazem um sinal para que eu me
junte a elas. Nego com a cabeça, apontando para a quadra,
mostrando que vou ficar focada em observar as outras garotas
realizando o exercício.
Sou capitã do time de basquete feminino da KSU, a Kingston
State University, desde o semestre passado, quando a nossa antiga
capitã se formou. Ela mesma me escolheu para assumir seu posto e
eu me senti obrigada a aceitar. Boa parte do time titular das Red Fox
se formou ano passado, então estamos jogando com um time
novato, ou seja, não tão entrosado em quadra. É exatamente por
isso que estamos tendo problemas.
Vejo Mia mais uma vez tentando jogar sozinha e aborrecendo as
outras jogadoras. A treinadora está na lateral da quadra, analisando
tudo com uma feição desapontada, tão frustrada quanto eu.
Perdemos alguns jogos no final da temporada regular, o que nos
rendeu um lugar não tão bom no torneio das conferências. Isso me
chateia demais, sou competitiva como todas as outras meninas do
time. Quero ganhar, porra. E ficar sentada não vai me fazer ganhar,
então resolvo me levantar e me aproximar dela para tentar resolver
a situação.
— Não gosto da Mia como titular. Ela joga bem, mas precisa
aprender a passar a bola — comento com educação, vendo quando
a jogadora consegue roubar a bola do time que está realizando o
ataque e parte para o outro lado da quadra em disparada, sem nem
olhar para o lado. De novo. Que menina do cacete!
— Ela é a melhor reserva que temos, Leah. — A treinadora Hale
rebate.
— Eu sei, mas só... vou tentar falar com ela. — Assumo o
problema para mim, como tenho feito desde que me tornei capitã.
Simplesmente não consigo ver as coisas dando errado e ficar de
braços cruzados.
A treinadora apoia a mão em meu ombro antes de sair e se
aproximar de outras garotas, dando um feedback sobre suas
atuações no último exercício.
Eu suspiro e ajeito meu rabo de cavalo antes de me aproximar de
Mia, que agora terminou seu exercício e está parada na lateral da
quadra, ao lado de Abby.
— Mia. — Apenas chamo seu nome. Não preciso dizer mais
nada. Ela me conhece, sabe que eu jamais deixaria sua atitude
passar.
Abby se afasta quando nota minha expressão e vai se sentar no
banco. Mia olha para mim com o desprezo de sempre e eu volto a
pensar na maçã enfiada em sua goela.
— Diga, capitã. — A forma como se refere a minha posição me
deixa louca. Quase grito para que Scout venha dar um soco na cara
dela.
— As Red Fox são um time. Quando estamos em quadra,
precisamos trabalhar como um time. Trabalho em equipe significa
passar a bola quando necessário, porque todo mundo aqui tem um
objetivo em comum. Queremos ganhar nossos jogos. — Dou um
sermão, ainda que use um tom neutro. Eu não costumo me exceder,
a não ser que seja muito necessário. E com essas patricinhas de
merda, normalmente não é. É só apertar um pouco, que elas
cedem.
— Eu não precisava passar a bola naquele momento. Mas fica
tranquila, capitã. Sei jogar.
— Se você não soubesse, nem estaria no time. A questão não é
essa, Mia, e você sabe. Não se finja de trouxa. Não pra mim. —
Aumento um pouco minha voz, perdendo a paciência. Dou um
passo para mais perto dela, assumindo uma Leah que não é minha
versão favorita. — O banco nem esfriou e você já está querendo
voltar pra lá?
Mia engole em seco, sentindo o baque. Ela se tornou titular há
pouco tempo, quando Sarah, uma das nossas melhores jogadoras e
uma das minhas antigas companheiras de casa, deixou o time para
estudar em uma universidade da Ivy League. A treinadora teve que
escolher a melhor reserva para assumir o seu lugar e Mia pareceu
uma boa opção. E ela é. O problema é seu ego inflado e sua
incapacidade de ser subordinada a alguém.
— Vou melhorar — afirma, o semblante preocupado, percebendo,
finalmente, a porra do seu lugar.
Forço um meio sorriso para ela antes de me distanciar. Não gosto
de ser grosseira ou malvada, ainda que algumas pessoas mereçam
um pouco mais de agressividade. Eu guardo essa parte da minha
personalidade a sete-chaves, então, quando percebo que a
treinadora Hale está me olhando, volto a parar ao lado dela com um
meio sorriso amigável.
— Você é uma boa garota, Leah — ela comenta, me dando um
sorriso maternal que tem me acalentado de uma forma inexplicável
nos últimos tempos.
Quem dera eu tivesse isso em casa.
— Obrigada — agradeço e encaro a quadra, vendo quando os
próximos trios começam a fazer o exercício.
— Vou precisar de um favor seu — a treinadora anuncia e eu
aceno com a cabeça, indicando que continue. — É tradição que a
capitã do time feminino e o capitão do time masculino se unam para
arrecadar dinheiro para a próxima temporada.
Resmungo ao ouvir as palavras “capitã” e “capitão” na mesma
frase. Não pode ser. Justo com o carma da minha vida?
— Sei que você e o Kahel não se dão muito bem — ela fala e eu
quase dou risada.
— Não, a gente se ama — ironizo e a treinadora ergue uma
sobrancelha, desacostumada com esse lado meu. — Posso deixar
nossas diferenças de lado em prol do trabalho. — Soo mais
profissional, de um jeito que combina mais comigo.
— Nós temos uma meta a atingir, Leah. Sei que é chato usar seu
tempo livre para isso, mas o departamento esportivo da KSU não
tem tanto dinheiro assim. Essa arrecadação nos dá o suporte que
precisamos para chegar ao March Madness. E é isso que você mais
quer, não é?
Madison Hale sabe mexer comigo, quando quer. Ela tem
consciência que sou doida para jogar o March Madness, como é
conhecida a fase principal do campeonato de basquete universitário
americano. As Red Fox nunca conseguiram chegar tão longe, seria
um sonho ser a capitã que lidera o time até lá.
O problema é que para viver esse sonho, preciso conviver com
meu pior pesadelo.
Estou prestes a abrir a boca para dizer à treinadora que estou
disposta a tudo pelo time, quando um grito ecoa pela quadra. Me
viro na hora, imaginando quem é a autora do berro.
— Cacete, garota, você não sabe o significado de passar a bola?
Tô gritando que tô livre, porra! — Scout aponta o dedo na cara de
Mia e se aproxima dela de uma forma, no mínimo, perigosa.
E vindo de Scout, sei que preciso me preocupar.
A treinadora corre na direção delas, empurrando Mia para que se
afaste de Scout. Vou logo atrás, marchando com firmeza, puxando o
braço de Scout para levá-la até o canto da quadra. Moro com ela há
algum tempo e sei como lidar com seus ataques de raiva. Bem,
quando eles não são direcionados a mim.
— Para de me puxar, caralho! — reclama do meu toque e tenta
se desvencilhar, mas eu não deixo. Sou tão forte quanto ela.
— Olha a boca, Halstead! — repreendo e ela faz uma careta,
levemente mais calma. Scout não costuma surtar comigo.
— Essa filha da puta é uma fominha! — Gesticula em excesso e
tenta, outra vez, voltar para a quadra.
Acho que se eu a soltasse, Scout iria socar Mia. Literalmente.
— É, ela é uma filha da puta, mas eu já conversei com ela e
preciso que você se acalme — peço e quando vejo que ela não vai
me obedecer, seguro suas bochechas e a obrigo a olhar para mim.
— Se acalma, Scout — reforço, colocando meus olhos nos dela.
Eu não diria que somos amigas, mas ela é a garota com quem
tenho mais proximidade, dentre todas do time. Sei que ela é tão
fodida quanto eu e acho que é isso que mais nos atrai uma para a
outra.
— É bom essa metidinha ficar esperta. Se me pegar em um dia
ruim... — Scout fecha o cenho e quase dou risada. Ela está com o
cabelo castanho preso em um coque bagunçado, os olhos escuros
exalam raiva, a pele branca está ruborizada graças ao estresse, é a
própria imagem do caos.
— Se ela causar de novo, a gente chuta a canela dela no meio do
jogo e finge que foi acidente. — Dou a ideia, curtindo essa linha de
pensamento mais sombria.
— Ou colocamos o pé pra ela tropeçar e cair de boca no chão. —
Scout morde o lábio inferior e tenho certeza de que está imaginando
a cena em sua mente.
— Vamos voltar, esquentadinha. — Scout me empurra assim que
me ouve e sua força quase me faz tropeçar. — Cacete, não fiz nada
pra você! — reclamo, irritada.
— Hoje, não. — Scout passa por mim correndo, com o humor um
pouco melhor e um sorriso travesso nos lábios.
Nego com a cabeça e corro atrás dela, me unindo ao resto das
garotas do time.
A treinadora nos reúne em um círculo para avisar que iremos
fazer um jogo para finalizar o treino. Ela pede que eu comande um
time e Scout, o outro. Escolhemos nossas jogadoras, dividindo as
titulares para que fique mais equilibrado, e vestimos os coletes para
nos diferenciarmos.
Vamos para o centro da quadra, organizando nossas posições no
círculo central, e Jo se prepara para disputar a bola ao alto para o
meu time. Antes que a treinadora possa iniciar a partida, Jo sussurra
algo no ouvido dela. A mulher assente e a vejo correr para perto do
seu celular. “Get’cha Head In The Game” do High School Musical
começa a tocar nas caixas de som da quadra e o time todo cai na
risada.
Jo volta para a quadra saltitando e dá de ombros, as palmas das
mãos viradas para cima.
— É um clássico — justifica sua escolha e é impossível discordar.
Essa menina é uma máquina musical. Sempre pede para
treinarmos ao som de alguma coisa e, apesar de não ser a maior
adepta a isso, concordo que estimula o time. As garotas estão
sorrindo igual bobas e cantando a música baixinho. Até eu me rendo
e começo a cantar, apesar de sinalizar apontando para meus olhos
e para a quadra, para que tenham foco.
Quando estamos em quadra, o jogo precisa ser a prioridade.
O apito soa, a bola vai ao ar e a partida se inicia.
Posso ter uma vida de merda, ter dificuldade de fazer amizades e
um comportamento um tanto chato na maior parte do tempo, mas
quando estou jogando, o mundo parece mais belo. As cicatrizes que
carrego, pelo menos nesses preciosos minutos, se curam. Eu sorrio
de verdade, uma coisa rara para quem coleciona esboços falsos de
uma alegria que não faz parte do meu ser. Foco na minha equipe,
nas regras, no jogo. Posso estar sendo clichê pra cacete, mas é o
basquete que me salva todos os dias. Me mantenho de pé pela
minha irmã, porém, é o esporte que traz o melhor de mim.
E o melhor de mim é sempre em quadra.
— James! — Alex, uma das titulares que escolhi para o meu time,
sinaliza que está livre.
Passo a bola para ela, seguro outras jogadoras para que consiga
arremessar e ela fura a defesa e realiza uma bandeja perfeita.
— Boa, garota! — Elogio quando ela passa por mim e tocamos
nossos punhos fechados.
O treino se encerra pouco depois e o time dispersa para os
vestiários. Todas me cumprimentam antes de ir embora. Não por
gostarem de mim, mas sim por eu ser a capitã. Mesmo Jo, Alex,
Abby e Scout, as garotas com quem eu moro, mal trocam duas
palavras comigo. Não posso retirar minha culpa, também não faço
questão de manter uma grande interação com elas. Sou solitária
desde que me conheço por gente. Faz parte de quem eu sou. Estou
tentando me aproximar delas, quando interagem comigo, mas não é
tão fácil quanto parece.
É triste como a mágica do jogo vai embora assim que o apito soa.
Pego minha garrafa de água e minha toalhinha, enxugando o
suor e andando na direção do vestiário. Enquanto passo a toalha
pelo rosto, vejo uma figura se materializar à minha frente.
— Princesa! Já soube da novidade?
Tenho vontade de vomitar assim que o escuto.
Eu juro que não sou rancorosa. Ou pelo menos tento não ser,
com a maioria das pessoas. Mas Kahel Williams desperta minha
pior versão. Toda vez que o vejo, penso em gastar meu réu primário.
Ele é irritante. O atleta estereotipado dos livros e filmes em carne e
osso. Sua pele negra é clara, o cabelo castanho e crespo raspado
nas laterais e mais comprido em cima. Ele usa um brinco de cruz
brilhante, que com certeza é caro, em uma das orelhas. Kahel se
acha, tem o maior ego que eu já vi e é um mimadinho de merda que
não sabe se colocar no próprio lugar.
Para o meu desgosto, ele está na minha frente, e não consigo
ignorá-lo. Eu gostaria de sair andando e deixar Kahel e seu
sorrisinho de cafajeste sozinhos, mas não posso, porque me
comprometi com a treinadora, e não sou de dar para trás.
Sou capitã e tenho que agir como uma. Mesmo que eu vá
sacrificar a minha paz para passar um tempo com o cara mais
insuportável da KSU.
— Infelizmente já. — Cruzo os braços e fecho a cara, como
sempre faço quando estou na presença dele.
Kahel continua sorrindo. É um maldito sorriso irritante que ele sai
distribuindo pelo campus, que oferece para toda garota e garoto que
leva para a cama. Ele é assim, social, simpático, alegre, amado
pelos alunos e professores. Sendo honesta, não sei o que eles
veem nele.
Eu não consigo enxergar nada além de um garoto rico que não
quer nada com a vida, vivendo na onda do sucesso do pai e
atormentando quem cruza seu caminho. Nesse momento, eu sou
essa pessoa. E pelo jeito com que seus lábios se curvam, sei que
vai me provocar. Ele sempre provoca. Sempre precisa se achar
superior. Sempre precisa me encher o saco. Sempre precisa se
autoafirmar. Fico só esperando a merda que vai sair da sua boca.
Não é tão sério, garota, por que esses pés estão frios?
Nós estamos apenas começando, não fique com receio
Cake By The Ocean – DNCE

Leah James está parada à minha frente com o olhar mais mortal
que eu já vi. A capitã das Red Fox se declarou minha arqui-inimiga e
não faço ideia do porquê. Só vou na dela porque, cara, como é
gostoso provocá-la.
— Talvez, nesse tempo que vamos passar juntos, eu possa te
ensinar algumas coisas sobre como liderar um time à vitória, coisa
que você, aparentemente, ainda não aprendeu — provoco apenas
pelo prazer de vê-la corar. Leah tem uma pele branca demais, fica
vermelha com facilidade, é só eu parar na sua frente, que ela se
irrita e vira um pimentão.
Vejo que está se controlando para não retrucar, querendo sair
dessa conversa como a pessoa madura e centrada que não
respondeu minha provocação porque é evoluída demais para brigar
com alguém tão imaturo quanto eu. Mas ela não se aguenta. É só
esperar que a ruivinha mostra sua ira.
— Boa parte do time se formou, Williams. Estamos jogando com
novatas, tentando se adequar à nova titular. Você, como um capitão
e jogador experiente, deveria entender que alguns times passam por
problemas. Ou seus preciosos meninos só te dão alegria? — ela
dispara, jogando a pergunta em cima de mim, os braços ainda
cruzados sobre o peito, na defensiva.
É verdade que os Red Tigers, como o time de basquete
masculino é chamado, não é perfeito. Mas estamos em um patamar
melhor que o delas, por motivos óbvios. Nosso jogo é muito mais
entrosado, muito superior, principalmente, porque eu sou o capitão.
Os caras me amam.
— Não existe perfeição, princesa. Mas você sabe, somos um
time mais tradicional, conhecido por aí — provoco mais um pouco,
só para ver suas narinas tremerem, sua feição ficar ainda mais
irritada.
Parece que ela vai explodir.
— O que você está tentando insinuar? Que são melhores? Que o
fato de vocês serem homens, automaticamente, os torna melhores?
— Leah dá um passo à frente e eu coço a cabeça, olhando para os
lados, em busca de alguém para me resgatar dessa conversa.
Estou em um terreno perigoso. É hora de recuar, antes que a
esquentadinha pegue fogo.
— Você tem uma mania irritante de colocar palavras na minha
boca, James. Não precisamos entrar em nenhuma discussão
feminista. — Tento sair dessa situação, mas acho que só me afundo
ainda mais.
Leah é boa em discutir. Já brigamos vezes o suficiente para que
eu tenha a consciência de que nunca é bom cutucar suas feridas.
Porém, por algum motivo, eu sempre esqueço desse detalhe
quando estamos frente a frente. Acabo falando besteira e depois me
arrependo, lembro que ela é do tipo irritada e juro para mim mesmo
que nunca mais vou provocá-la. Mas eu sempre provoco.
Acho que o fato de sermos tão diferentes desperta algo em mim.
Enquanto sou simpático, aberto, amigo da faculdade toda e sociável
até demais, Leah é fechada e extremamente rancorosa. Nunca a
vejo sorrindo, acho que nunca sequer vi seus dentes. Ela ainda é do
tipo certinha, odeia quando fazemos festas no meio dos
campeonatos e enche a porra do saco quando temos que fazer
qualquer coisa juntos, por causa das nossas posições de liderança.
Não posso negar que a garota é bonita. Tem um cabelo ruivo que
vai até a cintura, uma pele pálida cheia de sardinhas, olhos verdes e
um corpo forte, graças ao esporte. Ela ainda é alta, deve ter em
torno de 1,70m, o que facilitaria minha vida, se a gente se pegasse.
Mas eu nunca, em sã consciência, beijaria essa insuportável.
Trabalhar com ela já vai ser tortura suficiente.
— Olha aqui, Williams — Leah se aproxima ainda mais e vou
andando para trás, até que não consigo mais me mover, graças ao
banco na lateral da quadra, que bate na minha panturrilha. — As
Red Fox estão dando duro pra se destacar. Realmente, vocês são
privilegiados, porque sempre tem mais oportunidades dentro do
esporte, pelo simples fato de serem homens. — Leah olha no fundo
dos meus olhos e meu corpo quase treme. A capitã consegue
intimidar quando quer. — Mas não venha falar que meu time é
inferior ao seu só porque vocês ficaram com o vice-campeonato. Os
Tigers não fizeram mais do que a obrigação, já que são um time
super tradicional, certo? — ela me alfineta com gosto, os olhos
verdes parecendo duas lanças apontadas para mim. Um esboço de
sorriso carregado de sarcasmo se forma em seu rosto. — Quem
sabe ano que vem vocês não ganham. Deve ser cansativo ficar
sempre em segundo lugar.
Agora ela pegou no meu ponto fraco. Ok, os Red Tigers não são
perfeitos. Temos um bom histórico, sempre ficamos em posições
boas no torneio das conferências, mas nunca nos classificamos em
primeiro lugar. O basquete americano, até no nível universitário,
requer um time afiado, com jogadores impecáveis. Passamos
praticamente o ano todo nos dedicando a treinar e tentar participar
do March Madness. Começamos o ano letivo jogando amistosos,
depois a temporada regular, que nos classifica para o torneio das
conferências, que antecede o March Madness, parte principal do
campeonato. É necessário um time bom pra caralho para chegar até
essa última fase, e os Red Tigers já tiveram momentos ruins. Esse
ano, o time está cheio de caras fodas, mas não conseguimos vencer
a final da temporada regular, ou seja, precisamos melhorar muito
para chegar ao nosso objetivo final e nos classificar para o March
Madness.
Demoro para retrucar Leah e ela fica me olhando com uma
expressão convencida, certa de que venceu. Mas não vou deixar
barato. Me recuso a perder. Faço questão de desafiá-la com o olhar,
de intimidá-la com a minha encarada. Começo a dar um passo à
frente, fazendo com que ela seja obrigada a dar um para trás, para
não nos batermos. Nossas peles se repelem, temos uma
necessidade gigantesca de ficarmos sempre longe um do outro.
Toda vez que um se aproxima, o outro tenta escapar. É só mais um
sinal de que realmente não nos gostamos, nem nossos corpos se
dão bem.
Estou prestes a abrir a boca para retrucá-la, quando sinto uma
mão pesada, que só pode pertencer a uma pessoa, em meu ombro.
— Ao invés de discutir, vocês deveriam estar parabenizando um
ao outro pelo bom desempenho no primeiro semestre! — Mav, um
dos meus melhores amigos, dono da mão gigantesca, fala.
— Cara, acha mesmo que esses dois vão se parabenizar? Onde
você esteve no último ano? — Sebastian rebate, parando ao meu
outro lado, apoiando o cotovelo em meu ombro.
A tensão entre mim e Leah se dissipa na hora. Ainda bem. Não
sei se eu conseguiria contra-argumentar à sua altura. A interrupção
dos caras com quem eu moro foi muito bem-vinda.
— Seb, Mav. — Leah cumprimenta os dois com um esboço de
sorriso, colocando uma grande distância entre nós. Quando ela se
afasta, sinto que consigo até respirar melhor.
— Nós estávamos no meio de algo importante. — Alterno o olhar
de um para o outro, fazendo questão de sair por cima dessa
discussão, fingindo que estou triste por ela ter acabado.
— Não seja por isso, continuem. Vamos adorar assistir — diz
Mav, dando um passo para o lado, ficando entre mim e Leah.
Seu olhar de expectativa me faz querer dar um murro em seu
rosto. Levanto as sobrancelhas para que entenda que não estou
realmente querendo seguir com essa discussão, mas Mav é lento
demais quando se trata de sinais. O cara é bom na quadra e nas
aulas do preparatório para medicina. Qualquer coisa que envolva a
leitura da reação de seres humanos está fora da sua alçada.
— Não, já tínhamos terminado — diz Leah e eu me empertigo,
surpreso por ela ter intervindo. — O Kahel ficou sem palavras. Ele é
do tipo que não aguenta ouvir umas verdades, não é, príncipe? — A
capitã das Fox me encara com um esboço de sorriso convencido, os
lábios formando uma expressão de claro deboche, a voz
exagerando na entonação ao devolver o apelido que adoro usar
para zombar dela.
Estava bom demais para ser verdade.
Respiro fundo e resolvo ignorar o que acabei de ouvir. Discutir só
vai piorar minha situação. A melhor coisa é mudar de assunto e me
colocar no papel de condutor desse diálogo.
— Que horas são, Seb? — pergunto ao meu amigo, que confere
rapidamente em seu relógio de pulso, sem entender o caminho que
estou seguindo. Essa vai ser boa.
— 17h36.
Assinto devagar e aponto o dedo indicador para o teto, fingindo
que estou me lembrando de alguma coisa.
— Bom, o horário de quadra do time feminino acabou, então... o
que você ainda está fazendo aqui? — falo para Leah com meu
melhor tom de deboche. Se ela quer me tratar desse jeito, vai ser
tratada na mesma moeda.
A ruiva solta um riso irônico, balançando a cabeça em negação
como se não estivesse acreditando no que está ouvindo. Na
verdade, sua expressão está mais para “sempre esperei que ele
fosse falar algo do tipo”. Com a quantidade de vezes que já
discutimos, ela deveria estar acostumada. Eu sempre arranjo uma
forma de sair por cima.
A capitã esquentadinha passa por nós carregando suas coisas,
claramente irritada, quase esbarrando no meu ombro quando segue
na direção dos vestiários, sem sequer virar para rebater.
Dessa vez, eu venci.
Porém, infelizmente, minha consciência me alerta de que tenho
um dever como capitão, então preciso de uma pequena ajuda dela,
mesmo que isso custe o grand finale perfeito que promovi em nossa
discussão.
— Ei, James! — grito e ela se vira, cruzando os braços outra vez,
a pose ainda mais marrenta do que antes. — Preciso do seu
número, pra podermos combinar as reuniões. Sabe como é, ainda
temos que trabalhar juntos.
Leah assente devagar e desvia o olhar para Sebastian, ignorando
totalmente a minha presença.
— Pede pro seu amigo.
Então, ela sai andando e eu fico sem entender o que diabos quis
dizer com isso. Olho para Seb e ele coça a cabeça, como se tivesse
sido pego no flagra.
— O que foi? — indago, fazendo uma careta para Mav quando o
escuto dando risada. — Por que você tá rindo? Tem algo rolando
que eu não sei? — pergunto para os dois, confuso com a interação
que acabei de presenciar.
— É que você e a Leah se odeiam — Sebastian diz e eu não
entendo o que diabos isso tem a ver.
— Obrigado por me dizer o óbvio — interrompo, mas consigo ver
que Seb quer me dizer mais alguma coisa.
— Então, quando ela precisa saber algo sobre o time masculino
ou quer, sei lá, desejar boa sorte pra gente ou combinar os horários
em que vamos usar a quadra nos treinos extras, ela fala comigo.
Sua justificativa me faz franzir a testa. Eu sou a porra do capitão
e ela quer falar sobre o time com o Sebastian? Quer decidir coisas
sobre o meu time com outra pessoa?
— Você esqueceu de contar que vocês ficaram — Mav solta e,
cara, se eu estivesse bebendo água, cuspiria na cara dele.
— Oi? — questiono, sem esconder meu semblante inconformado.
— Sua boca tocou na de Leah James? — O nojo em minha voz está
nítido. Sebastian só pode estar brincando.
— Acho que é assim que se beija — comenta Mav e eu ergo
minha mão para que ele pare de falar.
Seb solta um riso nervoso, ele sabe que não me dou bem com
Leah desde que ela entrou na KSU e que condeno qualquer tipo de
interação com ela que não envolva farpas. Como um dos meus
melhores amigos pode ter tido coragem de ficar com ela?
— Foi em uma festa, mais de um ano atrás. Rolou só uma vez,
cara. Ela é fechada, não deu em nada. Relaxa. — Seb apoia a mão
em meu ombro, se abaixando um pouco para falar comigo, já que o
cara é pelo menos dez centímetros mais alto que eu.
Eu ainda não acredito que ele beijou Leah e não me contou. É
um absurdo. Inacreditável. Desleal em níveis extremos.
Me solto do toque de Seb, ainda chocado com essa revelação, e
vejo que o treinador entrou em quadra e está reunindo os garotos
para começarmos a aquecer. Chega de falar sobre a que não deve
ser nomeada. Tenho um treino para liderar.
— Só me mande o número dela — peço e continuo negando com
a cabeça, enquanto Seb e Mav gargalham. Eles acham nosso ódio
divertidíssimo.
Beijar Leah. Meu Deus. Que loucura. Ela é tão controladora,
resmungona, irritante, do tipo que milita sobre tudo e não aguenta
que uma vírgula esteja errada. Como beijar alguém tão insuportável
assim?
Nem quero imaginar como será quando efetivamente
começarmos a trabalhar juntos para planejar a arrecadação de
dinheiro. Se já brigamos em encontros esporádicos, imagine em
inúmeros encontros forçados. Apesar de supor que vamos causar
um estrago na vida um do outro, espero, de verdade, que saiamos
ilesos dessa convivência forçada. Acho difícil de acontecer, mas,
sou um cara que gosta de acreditar em milagres.
E só um milagre para fazer Leah James parar de me odiar.
Não há lugar que eu não possa ir
Minha mente está confusa, mas
meu coração está pesado, isso é perceptível?

Same Mistake – James Blunt

Tenho um defeito muito grande chamado “me importar demais


com tudo”. Com o time, com as jogadoras, com as minhas notas,
com meu futuro, com a minha irmã. Sei que muita gente me acha
maníaca por controle, mas eu só gosto de ter tudo planejado e bem
estruturado para que nada dê errado.
Não tive pais que fizeram tudo por mim, então tive que encontrar
minha própria forma de fazer a vida dar certo. E essa forma consiste
em sempre organizar cada mínimo detalhe do que preciso fazer.
Quando saio do treino, às quartas-feiras, pego os dois ônibus que
percorrem o caminho entre a KSU e minha antiga casa. O difícil
acesso ao bairro onde cresci atrapalha a rotina louca que mantenho
todos os dias e não permite que eu venha checar minha irmã com
tanta frequência, mas é o que tenho no momento. Não possuo um
carro, muito menos dinheiro para comprar um e pegar um táxi não
cabe no meu bolso, então a opção que tenho é perder quase uma
hora do meu dia para chegar ao lugar de onde fugi.
O bairro em que minha mãe e irmã moram é um dos mais pobres
da cidade, afastado de todo o centro comercial, das boas
universidades e das mansões dos ricos. Ninguém olha para esse
lado de Kingston Beach, ninguém sequer se lembra que as pessoas
daqui existem. Eu poderia tentar lutar para mudar a realidade de
todos, porém, tenho meus pés bem grudados no chão e sei que não
tenho poder para fazer a mentalidade de uma sociedade inteira
mudar. A única coisa que pude e fiz questão de fazer, foi sair desse
lugar assim que tive a oportunidade.
Vi minha mãe e meu pai lutarem por problemas financeiros a vida
toda e sabia que não queria isso para mim. Durante o colégio,
estudei como uma louca para ter as melhores notas e conseguir ser
aprovada em uma universidade. Pesquisei sobre os programas
esportivos que davam as melhores bolsas, me empenhei ainda mais
no basquete e fui aprovada com uma bolsa integral. Dei um primeiro
passo para mudar a história da minha família, para tirá-los desse
lugar que leva pessoas boas para os piores caminhos. Se eu tivesse
ficado aqui, me perderia.
As ruas são feias, sujas, medonhas. Sei muito bem o que
acontece em cada um dos becos escuros, já fui a garota boazinha
que andava com os garotos errados achando que estava fazendo
algo certo com a vida. Tenho arrependimentos gigantes, mas agora
sei muito bem qual é meu caminho.
Paro na frente da escola de Hailey e logo vejo minha irmã
sentada na escada, me esperando. Ela é uma versão mais nova
minha. Tem as mesmas sardinhas espalhadas pela pele pálida, o
cabelo ruivo um pouco mais curto, mas do mesmo tom, que ela vive
prendendo em duas tranças, os mesmos olhos verdes, ainda que os
dela tenham um brilho leve, de quem não carrega o mundo sobre
seus ombros.
— Estava com saudades! — ela diz quando pula para me
abraçar, ficando na ponta dos pés para conseguir passar os braços
em meu pescoço, por causa da nossa diferença de altura.
Dou um beijo em seu cabelo e me afasto para checá-la.
— Como vai a escola? Teve alguma prova? — pergunto e faço
sinal para irmos andando. Não posso voltar tão tarde para casa, é
perigoso demais caminhar sozinha por esses lados à noite.
— Leah, não sou mais um bebê! — Ela revira os olhos,
resmungando como faz toda vez que pergunto sobre sua rotina
escolar.
Se minha mãe não dá a mínima para a educação da filha, eu dou.
Quero que Hailey tenha um futuro, e nossa única alternativa é
batalhar muito por um. Ela precisa estar ciente disso desde cedo.
— Eu sei, Hales. Confio em você, só quero saber se está tudo
certo. — Faço um carinho em seu cabelo enquanto caminhamos.
— Tive uma prova de literatura no final da semana passada, tirei
a nota máxima — conta com um sorriso orgulhoso e eu fecho meu
punho para cumprimentá-la. — E você, como vão os treinos?
— Estamos meio abaladas com as derrotas, nos classificamos
em quarto lugar, o que não é muito bom pra nós. Sei lá, sinto que as
Red Fox ainda não atingiram o potencial máximo. Somos boas em
quadra, mas falta alguma coisa. A Sarah ter saído complicou nosso
entrosamento.
Hailey não é dos esportes, muito pelo contrário, mas ela adora
saber sobre os jogos e entende tudo de basquete, já que é um dos
meus assuntos favoritos. Ela se esforçou para aprender e agora é
fã, até assiste alguns jogos da NBA comigo.
— Você sente falta dela — pontua e eu assinto.
Paramos na frente de uma faixa de pedestres e coloco a mão na
frente do seu corpo, para que espere o carro passar para
atravessar. Seguimos caminho enquanto reflito sobre uma das
únicas pessoas que eu consegui chamar de amiga.
Sarah me acolheu quando cheguei na KSU. Ela era animada,
receptiva, divertida, mas não invasiva demais, sempre respeitava o
meu espaço e não fazia perguntas que eu não queria responder. Foi
ideia dela que nós deixássemos os alojamentos da faculdade para
alugarmos uma casa, que se tornaria a residência oficial de uma
parte das jogadoras do time. Ela era o elo que ligava Alex, Scout, Jo
e eu. Nós nos falávamos por intermédio dela, e quando Sarah
conseguiu uma vaga em uma universidade melhor e nos deixou,
tudo desmoronou. Tínhamos pouco tempo de convivência e não
dava para simplesmente virarmos melhores amigas de um dia para
o outro, ainda mais tendo pessoas como eu e Scout no grupo.
— Sarah era uma boa companhia e tornava nossa convivência
em casa um pouco mais fácil. Fora que ela era muito boa em
quadra, diferente da garota que a tem substituído. Mas já perdi a
paciência com ela no treino de hoje, não quero mais falar sobre isso.
Só de pensar em Mia, me irrito, então prefiro evitar o assunto.
— E as suas amigas? — Hailey questiona enquanto entramos no
supermercado.
Viro de costas para pegar um carrinho e volto para o lado dela
com uma expressão estranha.
— Que amigas?
— As que moram com você — rebate como se fosse óbvio.
— Para quem estava reclamando dos meus questionamentos,
você tem feito muitos.
Hailey revira os olhos e pega um pacote de bolacha na prateleira.
Nego com a cabeça e ela bufa, mas não contesta.
— Nós nos vemos uma vez por semana, as fofocas precisam ser
atualizadas!
Rio do seu tom de voz e pego algumas bolachas integrais para
que ela fique feliz. Quando estamos saindo do corredor, pego uma
bolacha doce que sei que ela ama e lanço uma piscadela cúmplice,
cedendo pelo menos um pouco. Se eu deixar, Hailey vive a base de
bolacha recheada.
— Elas não são bem minhas amigas, Hales. — Minha irmã me
olha feio enquanto entramos na área das frutas, ela acha que sou
chata demais em relação a isso, que eu devia considerá-las minhas
amigas há tempos. No meu coração, até considero, apesar da
minha mente sempre tentar me alertar de que me aproximar é um
erro. — Jo está namorando, só quer saber de transar com o
Anthony. — Me rendo e acabo contando. Hailey não vai me deixar
em paz a não ser que eu a entregue alguma coisa.
— Eles são fofos. Amo histórias de melhores amigos que se
apaixonam! — Hailey dá um giro com um saco de laranjas na mão,
colocando o pacote no carrinho quando termina o movimento.
A pivô das Red Fox, Joanne Hudson, viveu um clichê com o
melhor amigo no semestre passado. Ele sempre foi apaixonado por
ela, mas ela nunca se abriu o suficiente para perceber que sentia o
mesmo. No fim, quando Anthony foi fazer um intercâmbio em outro
país, os sentimentos de Jo entraram em conflito e, bem, é uma
história longa. Os dois percorreram um belo caminho para chegar
aonde estão. Daria um bom romance. “A jogadora de basquete
pegadora que se apaixona pelo melhor amigo nerd”. Eu leria.
— Alex está sempre com um livro na cara. Ela é fofa, mas sei lá,
não sei se temos muito em comum — continuo falando sobre as
garotas com quem moro, atualizando-a da forma que pediu. —
Scout está sendo Scout, temos uma relação meio estranha. Às
vezes, temos momentos legais juntas, mas são dias e dias. E
Abby... ainda não sei qual é a dela. Ela usa tanto rosa quanto a
Regina George. Para ela não é só nas quartas que se deve usar
rosa, e sim todos os dias.
Hailey gargalha com o que eu conto. Jo, Alex, Scout e eu
estamos no segundo ano, mas Abby é caloura, ainda está se
encontrando na faculdade e no time. Ela veio morar conosco alguns
meses atrás, logo após a saída de Sarah. Não tivemos tempo ou
vontade de conversar muito. Sinto que, na nossa casa, cada uma
vive no seu próprio mundinho.
— Abby me lembra você — comento, porque essa é uma das
únicas coisas que já consegui definir sobre ela.
— Por quê? — Hailey pergunta e sinaliza que já pegou todas as
frutas que precisávamos.
— Ela parece... — penso um pouco enquanto vamos para outro
corredor. — Precisar de mim.
É estranho dizer isso porque nem a conheço tão bem assim, mas
sei lá, sinto que Abby sempre me olha de um jeito diferente. Quando
estamos nos treinos, ela é umas jogadoras mais atentas às minhas
dicas. Valorizo esse tipo de comportamento no time.
— Bom, eu preciso muito de você — Hailey diz e coloca alguns
sucos no carrinho, o sorrisinho que eu tanto amo ver em seu rosto
dando as caras.
Fiquei receosa quando fui para a faculdade exatamente por isso.
Meu pai morreu há algum tempo e minha mãe não é nada confiável
por milhares de motivos, então eu e Hailey fomos a âncora uma da
outra durante toda a vida. Ela já tem quinze anos e sabe se cuidar,
mas ainda faço questão de falar sobre suas notas, de perguntar se
anda tirando fotos, seu hobby favorito, de me certificar que ela não
coma só porcarias. Passo quantas horas for preciso dentro de um
ônibus para fazer as compras do mês, para que não falte nada na
casa dela.
— Te amo, Hales — digo por que, com ela, não tenho dificuldade
nenhuma de me expressar, de me abrir, de deixá-la entrar. Minha
irmã conhece cada uma das minhas cicatrizes, dividiu inúmeras
dores comigo, ainda que eu tenha pegado a maior parte da carga
emocional para mim.
Se for para alguém da família ter o psicológico fodido, que seja
eu.
Meu celular vibra quando voltamos a andar. Pego o aparelho
dentro da calça esportiva, onde o escondi. Vejo que um número
desconhecido me mandou mensagem e, curiosa, desbloqueio a tela
para poder lê-la.
Desconhecido: Oi, princesa. Já salva meu número como
“Príncipe”. E coloque corações do lado. Laranja, de preferência. É
minha cor favorita.
É automático, assim que leio, meus olhos se reviram e eu bufo.
Kahel consegue ser insuportável até por mensagem.
Leah: Salvei como “Pesadelo” e coloquei um coração do lado,
mas é aquele quebrado. Espero que esteja do seu agrado.
Faço exatamente o que digitei, e estou prestes a guardar o
celular, quando uma nova mensagem chega.
Pesadelo: Ai, essa doeu, princesa! Tudo o que eu fiz, até agora,
foi ser gentil com você.
Gentil? Até parece!
Ignoro e bloqueio a tela, mas não dou dois passos, e outra
mensagem chega.
Pesadelo: Você não é legal o suficiente pra manter uma
brincadeira por tanto tempo, então vamos ao que interessa:
podemos nos encontrar amanhã pra primeira reunião? Quero
resolver esse negócio logo. Quanto menos tempo passarmos juntos,
melhor.
Solto um riso irônico quando leio. Kahel sempre age conforme o
esperado. Fico louca para retrucá-lo, mas tenho tentado evitar o
comportamento infantil que assumo quando estamos lado a lado.
Parecemos duas crianças de oito anos brigando.
Leah: Eu trabalho amanhã.
Pesadelo: Tenho certeza de que alguma hora livre para me
encontrar você tem.
Leah: Diferente de você, não tenho pais pra me sustentar. Tenho
que estudar, trabalhar e treinar amanhã. Não dá. Sem chance.
Pesadelo: Já vi que isso vai ser bem fácil.
Leah: Podemos nos encontrar no sábado.
Pesadelo: Nem fodendo. Tem festa sexta. Não vou ter cabeça pra
isso.
Festa. Claro.
Leah: Domingo, então.
Pesadelo: Domingo estou com a minha família. É tradição, não
dá.
Leah: Já vi que isso vai ser bem fácil. Vamos combinar na
segunda. Eu dou um jeito.
Bloqueio o celular e desligo o volume, não quero mais conversar
com Kahel, pelo menos não agora. Quando a treinadora Hale me
contou sobre a arrecadação, imaginei que teríamos problemas, e vi,
com essa breve conversa, que eu estava certa. Nós não nos damos
bem, todo mundo sabe. Não tenho paciência para ele. Estou vendo
que eu terei que me sacrificar para fazer isso dar certo, como
sempre faço.
Guardo o celular na calça e ergo a cabeça, vendo que Hailey está
parada na minha frente com as sobrancelhas erguidas.
— O que? — indago, sem entender sua reação.
— Quem era?
— Nas mensagens? O capitão dos Tigers.
Minha irmã abre a boca, o semblante mudando para um animado
por algum motivo desconhecido.
— Aquele que você considera a pior pessoa que já pisou na
Terra? — Hailey questiona e eu faço sinal para que siga em frente,
precisamos terminar as compras logo para que eu possa ir embora.
— Você queria uma fofoca, então, receba essa: vamos ter que
trabalhar juntos para planejar uma forma de arrecadar dinheiro para
os times — conto de uma forma exagerada porque sei que Hailey
vai adorar o acontecimento.
— Ah, é agora que vocês se apaixonam!
— Pelo amor de Deus, Hales! — jogo um saco pequeno de feijão
na direção dela, minha irmã quase não consegue pegar, mas
quando agarra o saco, não consegue parar de rir.
— Você sabe que tô brincando, acho que você colocaria veneno
na própria boca só pra poder arranjar uma forma de matá-lo com um
beijo.
Abro um sorriso de lado quando escuto a ideia. Não seria nada
ruim.
— Mas, falando sobre relacionamentos... — Hailey volta a falar e
eu franzo a testa na hora em que compreendo a linha de raciocínio
que ela vai seguir. — Você não namora com ninguém desde o Axel.
Suspiro ao ouvi-la falar sobre o cara que quase me tirou do
caminho certo. Entendo a preocupação de Hailey, ela quer me ver
feliz e sabe que vivo em função do trabalho, da faculdade e do
basquete, mas um namoro não é uma prioridade na minha vida
nesse momento.
— Não tenho tempo pra isso, Hales. — Dou a resposta padrão,
fácil, que não engloba toda a verdade. — Agora vamos. Preciso
deixar essas compras na sua casa e voltar pra minha. — Faço um
carinho na ponta da sua trança quando paramos lado a lado.
Hailey assente a contragosto. Sei que, no fundo, ela queria que
eu vivesse um conto de fadas, mas não é assim que as coisas
funcionam na vida real. Prefiro não estragar sua pureza e esmagar
suas esperanças em relação ao amor, porém, por experiência
própria, tenho consciência de que namoros são romantizados
demais. Não é tão bonito assim.
— Se não são as irmãs James, justo as garotas com quem eu
queria encontrar! — Uma voz carregada de um ânimo esquisito
corta meu pensamento.
No corredor do mercado, um dos caras mais perigosos da região
está parado. Ele não está sozinho, trouxe dois capangas, para se
certificar de que iria intimidar duas jovens fazendo suas compras.
Olho para os lados e vejo que não há ninguém perto de nós, mais
um sinal de que ele realmente nos emboscou.
Jeff King é um agiota um tanto perigoso da região. Infelizmente,
por conta dos vícios da minha mãe, o conheço bem.
— O que você quer? — Vou direto ao ponto, segurando a mão de
Hailey, que está com cara de pânico.
O homem ajeita seu bigode branco, a careca brilha sob a meia
luz do mercado e suas roupas escuras fazem com que combine com
o ambiente. Se Scout estivesse aqui, iria adorar a semelhança que a
cena tem com um filme de suspense.
— Diga a sua mãe que o tempo está acabando — solta, abrindo
um dos seus sorrisos estilo “Coringa”, carregado de sarcasmo. Ele
não se aproxima de nós, mas sua distância é suficiente para fazer
minhas mãos tremerem. Hailey fortalece nosso contato, estamos
ambas nervosas com esse encontro inesperado, porém, não
podemos fraquejar na frente dele. — E minha paciência também. —
A última frase é mais dura, define que o tom dessa conversa não foi
amigável.
Jeff sai do corredor tão rápido quanto entrou, os capangas vão
nos fitando até perderem contato visual conosco. Seus olhares são
intimidantes, deixam claro que essa não é a primeira vez que falam
sobre esse assunto. O problema é que eu e Hailey não fazemos
ideia do que está acontecendo. Bom, eu até tenho. Se fomos
cobradas por Jeff King, só pode ser algo relacionado a dinheiro.
Viro para Hailey e, antes de soltar sua mão, faço a pergunta que
também deve estar passando por sua mente.
— O que a mamãe aprontou dessa vez?
Este homem disse: É terrível
Que alguém tão bonito deva se preocupar

This Charming Man – The Smiths

Jogo meu telefone no sofá assim que percebo que Leah não vai
me responder. Tenho certeza de que ela me acha um idiota por não
querer encontrar com ela por causa de uma festa e tenho mais
certeza ainda de que achou meu domingo em família uma completa
baboseira. Eu queria resolver esse assunto logo e voltar a esbarrar
com Leah apenas nos treinos ou em raras festas. Porém, se
continuarmos nesse ritmo, estou vendo que vamos demorar meio
século para resolver tudo.
Aperto rapidamente os botões do controle do videogame, fazendo
várias caretas enquanto tento acabar com nossos adversários.
Estou jogando com Seb e Mav desde que jantamos, horas atrás. É o
que fazemos quase todas as noites durante a semana, após os
treinos, quando não temos nenhuma festa ou quando nenhum de
nós resolve arranjar alguém pra transar.
Conheci Sebastian Torres e Louis Maverick — que odeia seu
nome e faz questão de ser chamado de Mav o tempo todo — no
nosso primeiro ano de faculdade. Os Red Tigers são entrosados,
mas o negócio entre mim, Seb e Mav é diferente, nós simplesmente
nos completamos e desenvolvemos uma conexão tão grande, que já
no ano de calouros alugamos uma casa e fomos morar juntos.
Estamos no terceiro ano e ainda somos inseparáveis. Cada um
tem suas manias, mas aprendemos a conviver muito bem um com o
outro. Sebastian é meu maior parceiro em quadra, atua como ala-
armador e tem 1,90m de altura, cabelo castanho e uma pele
levemente bronzeada, por passarmos tempo demais em quadras ao
ar livre. Maverick é nosso pivô, ele chama atenção por onde vai com
seu 1,96m e ainda é inteligente pra cacete e um gato. Tem uma
mania de ficar jogando o cabelo castanho para o lado e conquista
todos os caras que quer quando sorri.
— Vai Kahel, vai! — Seb grita, me incentivando a atacar, nós três
não tiramos o olho da tela, concentrados demais em ganhar a
partida.
Somos competitivos em absolutamente tudo. Até no videogame,
queremos sempre vencer.
— Porra, Mav! — grito, a adrenalina corre nas minhas veias com
o final do jogo.
Quando vejo, estamos os três de pé, berrando para fechar a
partida. No momento em que ganhamos, começamos a pular e nos
abraçar, comemorando a vitória como se tivéssemos vencido o
March Madness.
— Porque vocês estão jogando, se tem uma pilha enorme de
louça suja na cozinha? — A voz de Miranda faz nosso abraço
cessar. Quando ela chega, ficamos quase em posição de
continência.
Minha melhor amiga é a quarta moradora da nossa casa, que
apelidamos carinhosamente como “Casa do Vale”. O nome veio do
fato de que três de nós pertencem a comunidade LGBTQIAP+. Eu
sou bi, Miranda é lésbica e Mav é gay. Sebastian só mora com a
gente para ser a cota hétero. Sabe como é, inclusão é importante.
— Desculpa, a gente se distraiu com o jogo — responde Seb,
fazendo um biquinho amoroso para tentar convencê-la.
— Mentira, você quis jogar e falou pra gente deixar a louça pra
depois. — Mav nos entrega de bandeja. Ele sempre entrega,
quando Miranda aparece do nada e nos pega no flagra.
— Vocês vão levantar agora e vão arrumar aquele caos! — ela
ordena e aponta para a cozinha.
Dou risada ao ver a reação submissa de Sebastian e Maverick.
Eles nem tentam argumentar com ela.
— Eu disse que a gente devia arrumar porque ela podia chegar a
qualquer momento. — Cruzo os braços e dou de ombros, conheço
Miranda muito bem, era óbvio que ela teria essa reação quando
visse a bagunça que deixamos.
O diálogo nem continua, Seb e Mav vão andando de cabeça
baixa até a cozinha, pedindo desculpas quando passam pela única
mulher da casa.
Assim que eles saem, Miranda começa a gargalhar. Ela empurra
meu peito para que eu sente no sofá e se senta ao meu lado,
esticando as pernas no meu colo.
— Oi! — Me cumprimenta direito, o mau humor se dissipando tão
rápido quanto apareceu.
Miranda Wick cresceu no mesmo condomínio que eu. Seus pais
são advogados fodas e ricaços da região, grandes amigos dos meus
pais. Nós passamos a infância toda juntos e o sonho das nossas
famílias era que nos casássemos. Realmente somos almas gêmeas,
conectados de uma forma que muitos casais não são, mas nunca
nos interessamos um pelo outro amorosamente.
— Tá irritada por quê? A transa não foi boa? — pergunto e apoio
o cotovelo no encosto do sofá, segurando minha cabeça para
escutá-la.
Miranda tem um rosto redondo e uma pele branca que ruboriza
quando algo não sai como planejado. Conheço bem suas
expressões, sei lê-la como ninguém.
— Foi. É só que a menina não é assumida. — Ela me encara e
vejo em seus olhos cor de mel o quanto isso a fere. — E você sabe
como é pra mim.
Miranda se assumiu muito nova, antes mesmo de eu sequer
imaginar que era bissexual. Seus pais demoraram muito a aceitar,
foi uma fase complicada da vida dela, tão complicada que Miranda
tem um grande problema em se relacionar com pessoas que ainda
não saíram do armário. É um gatilho gigante para ela ter que
esconder o amor que sente. Graças a Deus, hoje em dia, ela tem
uma relação incrível com os pais.
— Eu queria levá-la comigo em uma festa da fraternidade do time
de futebol americano e ela disse que não podia ser vista comigo.
O tom de voz cabisbaixo de Miranda me mata, odeio ver minha
amiga chateada. Me aproximo dela no sofá, brincando com as
pontas onduladas do seu cabelo loiro, que vai até a altura dos
ombros.
— Eu sei como isso é foda — digo e ela assente, sabe bem que
eu já passei pelo mesmo, quando me envolvi com garotos que ainda
estavam no armário. — Mas chega de ficar pra baixo! — Bato uma
palma alta, que faz Miranda me empurrar de leve. — Quer jogar? —
Aponto com a cabeça para a TV.
Odeio momentos tristes, sempre que alguém fica chateado perto
de mim, eu logo desvio o foco e passo a tentar promover diversão.
Miranda pega um dos controles que os meninos estavam usando
e começamos uma nova partida. Eu diria que, dentre nós quatro, ela
é a melhor jogadora.
— Então, o que rolou hoje? Como foi o dia do grande Kahel
Williams? — ela zomba, me fitando de relance, logo voltando o foco
para a batalha que enfrentamos no videogame.
— As aulas foram mornas, como sempre.
— Você precisa achar um rumo pra sua vida, cara — diz e eu até
fecho os olhos por um momento, sensível com o assunto.
Não sei muito bem o que quero fazer no futuro. Eu tinha um
objetivo bem definido, porém, de uns tempos para cá, estou em
dúvida sobre o que realmente quero. Mas tudo bem. Tenho tempo
para decidir.
— Um dia eu acho, prometo. — Miranda me encara quando
escuta minha resposta, ela acha que estou só adiando a decisão
porque não quero tomá-la, mas a coisa é mais complicada do que
parece. E ainda tenho mais de um ano de faculdade. Vai dar certo.
— A novidade mais intrigante do dia é que terei que trabalhar com a
Leah, capitã das Fox, pra arrecadar dinheiro pro time.
— Hm, ela é bonitinha! — Miranda levanta as sobrancelhas
repetidamente e eu faço uma careta.
— Não, credo! Jamais! Não vou investir em uma garota que só
sabe dar ordem nos outros.
— Eu tô falando pra mim, não pra você. — Mordo o lábio inferior
quando a escuto. Me defendi antes mesmo de saber suas reais
intenções. — Respondeu desse jeito porque tá interessado?
Miranda esbarra seu ombro no meu e me desconcentro no jogo,
fazendo uma rápida besteira, que logo tenho que consertar.
— Nunca, Miranda. Primeiro o Sebastian dá uns beijos nela,
agora você falando que ela é bonitinha... pelo amor de Deus, ela me
odeia! Vocês não podem ficar com ela.
Miranda pausa o jogo, solta o controle no sofá e vira de volta para
mim. Faço uma careta para mostrar que não entendi por que parou
o jogo.
— Então nós estamos no jardim da infância, somos um grupinho
de amigos e ela faz parte do grupinho rival, logo nós não podemos
ter nenhum tipo de relação com ela, porque seria uma traição. É
isso mesmo?
Miranda faz minha rixa com Leah parecer infantil. Tá, é mesmo
infantil, eu admito. Mas não tem como ficar quieto diante das coisas
que ela diz. E das que ela não diz também.
— Eu só não gosto dela. — Tento me defender, apesar de saber
que será em vão.
Ela balança a cabeça devagar, aposto que está formulando
algum tipo de rebatida.
— Interessante. Você sempre a provoca, enche o saco dela. Você
não faz isso com as pessoas das quais não gosta.
Suspiro, já vendo que não vou sair dessa conversa ileso.
— Claro que faço.
— Não, você não faz. — Miranda nega com o dedo indicador,
levando-o para perto do meu rosto para enfatizar sua constatação.
Ela não está errada, realmente não sou de me aproximar de
quem não gosto. As coisas são diferentes com Leah. Mas foi porque
ela começou.
— Miranda, isso é coisa da sua cabeça. A Leah me provoca, eu
só provoco de volta.
— Não era o contrário?
Cacete de menina. Às vezes odeio que ela me conheça tão bem.
— Vamos jogar. — Pego o seu controle e coloco na sua mão.
Miranda fica me olhando com uma expressão de quem sabe que
estou enrolando. Eu não quero falar sobre Leah, muito menos tentar
ficar identificando que tipo de relação nós temos. Ela não gosta de
mim, brigamos quando nos vemos e é só. Não há nada mais.
— Cara, vocês estão jogando? — Mav pergunta, voltando da
cozinha no minuto em que o jogo volta a rodar. Pauso novamente na
mesma hora.
— Seu folgado do caralho, tinha que ter lavado a louça com a
gente! — grita Seb, puto, caminhando até parar na frente da
televisão.
Maverick se aproxima também e fica ao lado dele, tampando toda
a visão da tela.
— Eu sou o capitão, meninos. Não podia sujar minhas mãos —
falo e me apoio no encosto do sofá, cruzando as mãos atrás da
cabeça em uma pose de superioridade.
Miranda, Mav e Sebastian me olham como se quisessem me
matar.
— Ah, cala a boca! — diz Mav.
— Você só fala merda, Kahel. — Seb entra na onda e me mostra
o dedo do meio.
— Ei, crianças, parem de brigar — pede Miranda, como sempre,
apaziguando nossas brigas. Depois reclamamos que as pessoas
dizem que os homens demoram a amadurecer. Somos três
moleques no corpo de gigantes. — Que tal irmos pra festa do time
de futebol? Preciso me animar um pouco e tenho certeza de que um
pouco de tequila vai resolver o problema — minha amiga sugere e
as expressões feias vão embora, dando lugar para uma coleção de
sorrisos.
Falou festa, falou Kahel Williams.
— Opa, não precisa pedir duas vezes! — digo e pulo do sofá na
hora, pronto para tomar quantas tequilas Miranda quiser.

Eu simplesmente amo festas, amo sair, amo frequentar bares,


amo socializar e conversar com as mais diversas pessoas. Assim
que piso na fraternidade do time de futebol americano, gritos ecoam
pela casa e os meninos vêm até nós comemorando nossa presença.
Saio cumprimentando todo mundo, o lugar está abarrotado de
gente, principalmente atletas dos mais variados esportes. O
departamento esportivo da KSU tem crescido cada vez mais nos
últimos anos. Antes, a universidade tinha mais tradição com o
basquete masculino e o vôlei feminino, mas agora tem investido em
novos atletas e tido ótimos resultados. Não somos uma faculdade
tão grande, então tenho orgulho de dizer que sei o nome de cada
atleta que está nessa casa.
Cresci com um pai jogador profissional, passei minha infância
frequentando eventos e fui ensinado a sempre ser simpático,
educado, a aprender o nome das pessoas, para que elas se sintam
especiais. Acabei gostando de socializar e, bom, não há muitas
coisas em que sou bom na vida, então ser político e simpático é um
orgulho para mim.
— Ei, olha quem está ali — Miranda sussurra e olho para onde
ela aponta com a cabeça.
Romeo, o babacão que foi expulso do time de futebol americano,
está dando em cima de uma garota, ela está colada na parede
sorrindo à toa e ele com a mão acima da cabeça dela. Quando se
afasta um pouco, consigo ver que a menina em questão é Malia,
irmã mais nova de Sebastian.
— Eu vou matar esse desgraçado! — diz Seb, ameaçando andar
na direção dos dois.
Seguro seu peito na hora, impedindo que uma merda gigantesca
aconteça.
— Deixa quieto, Seb. A Malia vai ficar puta se você intervir —
aviso, Sebastian é muito controlador com a irmã.
— Que se foda! Esse Romeo é um pedaço de mau caminho
ambulante! — reclama, irritado, e eu concordo, não há como negar.
O cara é uma persona non grata para todos os atletas da faculdade.
Até pouco tempo atrás, Romeo era só mais um jogador popular do
time de futebol americano, indiferente. De um semestre para
outro, virou um grande babaca. Agora ninguém gosta dele.
No meu caso, em especial, tudo começou com uma implicância
desnecessária da parte dele, meses atrás. Estávamos em uma festa
e eu queria dar uns amassos com um cara dentro do banheiro.
Romeo estava parado como um segurança na porta do lugar e não
me deixou entrar. Tentei argumentar com ele, afinal nós nos
conhecíamos, e soltei um “Sou o capitão dos Tigers, libere esse
banheiro logo”. Meu momento egocêntrico rendeu uma retrucada
dele. Romeo disse “Se toca, você é o capitão, mas não é rei de
porra nenhuma”. Eu estava irritado nesse dia e acho que ele
também, porque saímos no soco logo depois dessa frase. A briga foi
rápida, outras pessoas que estavam na festa impediram que
fossemos mais longe. Saí de lá com o nariz sangrando e com um
ódio mortal de Romeo Ballard por ter falado comigo dessa forma. Na
minha opinião, quem se acha o rei do mundo é ele. Tenho vontade
de continuar nossa briga desde aquele dia, mas alguém sempre me
segura. Uma pena.
— Vamos beber, a Miranda queria tequila — Mav fala e vai
empurrando Sebastian e eu para longe da confusão.
— É, deixa ele pra lá antes que dê merda — ela concorda e os
três vão seguindo para a cozinha.
Demoro para segui-los, porque sinto que alguém está me
encarando. Quando olho para a multidão, vejo que é Joshua
Thompson, capitão do time de futebol americano, e única pessoa
que ainda anda com Romeo. Não sei como, já que Josh é gente boa
e faz parte do time dos bonzinhos.
Faço um sinal com a cabeça para que ele tire seu amiguinho bad
boy de perto de Malia ou teremos problemas. Não quero esse cara
se envolvendo com uma garota que conheço. Ela é boa demais para
ele.
Depois de me certificar de que Josh puxou o amigo para longe de
Malia, vou para a cozinha, onde sou recebido por parte dos Tigers.
— Capitão! — eles gritam e eu cumprimento um por um, dando
tapinhas amigáveis em suas costas.
— Ei, não fiquem bêbados! No máximo duas cervejas pra cada,
amanhã quero todo mundo rendendo em quadra! Se o desempenho
de vocês estiver uma bosta, vão pagar suicídio[1], entenderam? —
aviso, cumprindo meu papel, preocupado com nosso rendimento na
temporada. Se quisermos chegar no March Madness, precisamos
melhorar.
— Sim, senhor! Agora vamos nos divertir um pouco! — diz Mav,
me entregando uma garrafa de cerveja.
— Cadê a tequila? — Miranda pergunta e os caras comemoram,
ela anda tanto conosco, que é praticamente a mascote dos Red
Tigers.
— Tragam uma tequila pra Smurf! — ordeno e logo uma garrafa
está na minha mão. Miranda é pequena em comparação ao time, e
uma pessoa de 1,62m perto de basqueteiros gigantes vira um
Smurf. Ainda bem que Miranda não liga, ela entra na onda,
inclusive, no Halloween do ano passado, se fantasiou de Smurf só
para fazer jus ao apelido. — Tigers, cadê o coro? — peço, enquanto
Miranda abre a boca para receber um shot de tequila.
— Smurf! Smurf! Smurf! — os meninos me obedecem na hora,
gritando ainda mais quando viro a garrafa na direção da boca de
Miranda.
No fim das contas, começo a jogar tequila na boca dos jogadores
e todo mundo acaba tomando muito mais do que duas cervejas.
Não, você não sabe como é
Quando nada parece estar bem
Você não sabe como é
Ser como eu

Welcome to My Life – Simple Plan

Estou tão irritada que, cada vez que guardo um item, bato a porta
do armário. Hailey pula quando o faço, ela não para de me fitar de
canto de olho, receosa, porque sabe que estou prestes a explodir.
Chegamos com as compras poucos minutos atrás, mas eu não
disse uma palavra sequer. Assim que entramos, dei de cara com a
minha mãe sentada na mesa da cozinha e optei por ficar quieta.
Seria de bom grado que ela tivesse nos ajudado nas compras ou
pelo menos se oferecido para pagar uma parte, já que estou
abastecendo a sua geladeira, mas não, minha mãe estava ocupada
demais tomando uma cerveja para mover um dedo sequer. Ela não
perguntou como vai a faculdade, se preciso de alguma coisa, se
estou bem. Só disse “que ótimo, você fez compras”, e avisou que
iria tomar um banho.
Eu não sei por que me surpreendo. Minha mãe nunca foi a mãe
do ano, ela sempre teve seus problemas, mas as coisas não eram
tão feias assim antes do meu pai morrer. Tive que aprender a me
virar sozinha e, pior, a cuidar de uma adolescente e de uma casa
onde nem moro, porque ela parece incapaz de fazer qualquer coisa
que não seja encher a cara e nos afundar em mais dívidas.
Se eu não estivesse tão determinada a tirar Hailey desse buraco,
já teria voltado para casa para poder organizar melhor a rotina dela
e tentar evitar que minha mãe faça mais besteiras. Porém, se quero
ter dinheiro, preciso ter uma formação e um bom emprego, e para
garantir essa estabilidade, preciso gerenciar as coisas de longe e
engolir algumas merdas da mulher que me deu à luz.
— Vocês já guardaram tudo? — minha mãe pergunta quando
volta para a cozinha e eu juro que tento me controlar.
Até aperto um saco de arroz para aliviar o estresse, mas não
adianta.
— Óbvio — respondo da forma mais seca que consigo.
Hailey me fita, nervosa. Ela odeia quando nós brigamos. Minha
mãe é do tipo que grita e eu retruco, acostumada com o modo como
ela lida com as minhas cobranças. Hailey é um pouco mais sensível,
sempre tentei deixá-la afastada desse lado da nossa mãe, mas
minha irmãzinha cresceu e sabe exatamente a razão dos nossos
problemas.
— O que aconteceu dessa vez, Leah? Jogou mal? — minha mãe
pergunta e consigo perceber, pela língua enrolada, que está um
pouco alterada.
Minha irmã olha para mim mais uma vez, implorando para que eu
não compre a briga. Peço desculpas com meu olhar, porque será
impossível deixar essa passar.
— Vai pro seu quarto, Hales. — Não preciso pedir duas vezes.
Hailey sai do cômodo de cabeça baixa, chateada com a situação
de merda que vivemos. Espero que ela coloque um fone de ouvido e
não escute nossa discussão.
Suspiro e me viro para finalmente encarar minha mãe. Ela está
sentada novamente, os pés estão apoiados na cadeira à sua frente,
o cabelo ruivo, um pouco mais escuro que o meu, está enrolado em
uma toalha. Seus olhos verdes não têm o mesmo brilho que os
meus e os de Hailey. Herdamos a característica dela, mas Beverly
está tão magra e com olheiras tão fundas que parece apagada.
Eu odeio brigar quando ela está sob o efeito do álcool. Sei que
Beverly não está bêbada, já a vi cambalear, cair, desmaiar, já tive
que enfiá-la no chuveiro, já segurei seu cabelo para que vomitasse
mais vezes do que consigo me lembrar. Ela está alegrinha. Não é o
pior dos cenários, mas nunca dá para saber se ela está no humor
“bêbada briguenta” ou “bêbada alegre demais para levar qualquer
coisa a sério”. É sempre oito ou oitenta.
— Jeff King nos abordou no mercado. — Já solto o assunto que
interessa, encostando o quadril na bancada da pia, enquanto a
encaro com os braços cruzados.
Minha mãe solta um riso, desentendida.
— Ah, é? — pergunta, toda engraçadinha, e eu fico ainda mais
puta.
Preferia que ela gritasse comigo. Preferia discutir de verdade,
colocar as cartas na mesa e resolver essa porra de vez.
Estou esgotada das besteiras dela, do seu comportamento
irresponsável, de ter que sempre resolver tudo e ser uma irmã, um
pai e uma mãe para Hailey.
Dou passos largos até a mesa onde ela está e apoio as mãos
com força na madeira. Sou alta, meus braços são fortes por causa
do basquete, faço um barulho do cacete se quiser. Minha mãe se
sobressalta, a risada vai embora do seu rosto quando percebe a
ferocidade no meu.
— Não se faça de boba, mãe! — grito, ainda debruçada para
frente, mantendo a mesa entre nós, só por segurança. — Já sei que
você está devendo. Agora quero saber quanto.
— Leah... — ela tenta se livrar outra vez, mas seu semblante
muda, percebendo que não há saída.
— Você sabe que pegar dinheiro emprestado com esse cara é o
mesmo que assinar uma sentença! Depois de tantos anos morando
nessa merda de lugar, ainda não aprendeu como as coisas
funcionam? — Uso um tom mais grosseiro, não é possível que ela
não saiba o óbvio.
Todo mundo que mora nesse lado de Kingston Beach sabe o que
Jeff King faz. Ele pega pessoas fragilizadas, viciadas, endividadas,
as ajuda e, depois, fode com suas vidas até que o paguem de volta.
Minha mãe já fez muita merda, já pegou dinheiro com nossos
vizinhos, já roubou minhas economias, mas um agiota ultrapassa
todos os limites.
— Eu estava devendo para tanta gente, Leah. Precisava pagar
uma dívida no bar, alguns colegas do trabalho... — Ela começa a
fungar, a risada indo embora e dando lugar para as lágrimas. Da
piada para o drama. Lá vamos nós. — Eu peguei um pouco de
dinheiro do salão e precisava devolver.
— Do salão? — questiono, indignada.
Minha mãe pula de emprego em emprego, todo mundo a
conhece na região e sabe que não é flor que se cheire. Ela está há
alguns meses trabalhando na recepção de um salão de cabeleireiro
e dizia adorar a função. Aparentemente, nem isso a impede de fazer
cagada.
— Eu estava desesperada. — As lágrimas caem com mais
velocidade, ela começa a chorar descontroladamente e eu recuo,
tirando, finalmente, as mãos da mesa.
Sinto pena dela. Pena por estar se afundando novamente, por
não usar a morte do meu pai como lição, por ser tão dependente a
ponto de colocar seu sustento em risco só para manter o vício.
Procuro nas gavetas da cozinha por um bloquinho, arranco uma
folha dele e estendo o papel e uma caneta na direção dela.
— Anote quanto deve. Vou dar um jeito — ordeno, um tanto mais
calma, mas ainda irritada.
Minha mãe encara a folha por alguns segundos e a vejo engolir
em seco, antes de me fitar.
— Leah, é muita coisa.
Ah, agora ela sente remorso? Agora está preocupada com isso?
— Só escreva. Eu vou dar um jeito.
Sempre dou.
É muita grana. É simplesmente muita grana. Nem se eu
trabalhasse vinte e quatro horas por dia durante o próximo mês,
conseguiria pagar essa dívida. Sei que King cobra juros a cada
semana de atraso, então preciso de uma solução rápida, ou esse
valor aumenta e fico ainda mais fodida.
Não sei há quanto tempo minha mãe pediu dinheiro para ele. Ela
não quis me dar tantos detalhes, mas, se King já chegou no ponto
de ir ameaçar suas filhas, é certo de que não é algo muito recente.
O que significa que ela voltou a piorar há mais tempo do que
imagino.
Chego na toca das raposas, nome que Joanne carinhosamente
deu à nossa casa, irritada ao extremo. Eu tento me controlar perto
das garotas do time, mas, às vezes, é difícil. Minha mãe me tira do
sério, acaba com qualquer postura que eu tente manter. Sou a
capitã, não gosto de ser mal-educada ou grossa com as meninas,
mas quando vejo Scout comendo na cozinha, Abby fazendo as
unhas em um sofá e Jo e Alex papeando no outro, não consigo
cumprimentá-las. Só afundo meu boné na cabeça e subo as
escadas correndo.
Sei que elas acompanham meus passos e não compreendem por
que tanta irritação. Imagino que até falem alguma coisa sobre mim
ou tentem teorizar o que está acontecendo. Nunca demonstro nada,
então elas nunca vão conseguir adivinhar.
Assim que entro no meu quarto, agradeço aos céus por não
morar mais no alojamento estudantil ou na minha antiga casa. É um
alívio poder ter meu próprio quarto, um lugar onde posso me isolar
de todos os problemas que coleciono.
Viro o boné rosa bebê que quase nunca tiro da cabeça para trás
e enfio o rosto no travesseiro. Aperto-o com força e, com a porta
trancada, em um ambiente onde me sinto segura, grito. O
travesseiro abafa o som, para que ninguém perceba que estou tão
na merda a ponto de ter que apelar para um alívio físico.
Meu grito é de puro desespero. Grito pela irresponsabilidade da
minha mãe, por seu maldito vício, por não cumprir seu papel. Grito
pela morte do meu pai, que fez tudo ser mais difícil do que já era.
Grito pelo peso que coloco nos meus ombros, pelo meu trabalho
exaustivo, pela faculdade, pelo título de capitã, pela maldita
arrecadação que terei que planejar ao lado de Kahel Maldito
Williams. Grito até precisar parar porque minha garganta dói.
Mas não choro. Nunca choro. Não posso me deixar fraquejar de
modo algum.
Se eu desmoronar, como o resto do mundo vai permanecer de
pé?
— Leah? — Ouço Joanne me chamando através da porta, mas
não respondo. Tivemos uma breve aproximação no semestre
passado, por conta de todos os rolos entre ela e Anthony, seu
melhor amigo e agora namorado, mas não quero que ela me faça
perguntas. Talvez, se eu fingir que estou dormindo ou ocupada, ela
vá embora. — Você está chateada por causa do treino de hoje? Sei
que não fui muito bem na temporada e que estava distraída por
causa do Anthony. Pode ter sido culpa minha a gente ter perdido
aquele jogo. Ai meu Deus, Leah. Não fique brava comigo. Eu estou
focada agora. Juro que estou. Vou dar o meu melhor em todos os
jogos da conferência, eu...
— Jo! — Tiro o rosto do travesseiro para gritar seu nome.
Quando Joanne dispara desse jeito, é preciso interromper. — Não
estou nem pensando em basquete nesse momento. — Controlo
meu tom de voz para não a assustar. — E não foi só você que jogou
mal. Estávamos fora de sincronia de uma forma geral — acrescento
a última parte para fazê-la se sentir melhor.
Joanne Hudson é uma excelente pivô. Com seu 1,82m, seu lindo
cabelo loiro e seu sorriso fácil, ela conquista qualquer um. Não é à
toa que Jo era a maior pegadora do campus antes de namorar com
Anthony. Gosto dela, apesar de, nesse momento, querer socá-la por
ter interrompido meu momento de liberdade.
— Você quer que eu vá embora? — ela pergunta, a voz mais
baixa. Mesmo com a minha tentativa de disfarçar, percebeu que não
estou a fim de papo.
— Só preciso de um tempo — falo com mais calma e já imagino o
biquinho de tristeza que Jo deve estar fazendo com os lábios.
— Tudo bem. Se quiser alguma coisa, dê um grito bem alto que
venho te resgatar na hora e trago a Wendy junto comigo!
Solto uma risada leve, sem acreditar que Jo citou o polvo de
pelúcia que roubou de uma festa no passado e conseguiu arrancar
um pequeno sorriso meu. Às vezes, é tão difícil esboçar essa mera
reação de felicidade, que me surpreendo quando acontece. E o
mais importante, valorizo a pessoa que a causou.
— Obrigada, Jo — agradeço, não só por ela ter me feito sorrir um
pouco, mas também por se importar o suficiente para vir até aqui ver
como estou.
Escuto seus passos caminhando para longe e aproveito a
calmaria para enfiar meus fones de ouvido e colocar o bom e velho
The Rolling Stones para tocar. Passo horas ouvindo a discografia,
“Heaven”, a música favorita do meu pai, é a escolhida para ficar no
repeat.
Memórias gostosas de quando a vida não me dava tantos tapas
me atingem. Meu pai era um cara tatuado, rockeiro e skatista. Ele
me levava para as pistas desde criança, eu era um pontinho ruivo
minúsculo que se destacava na multidão por minhas habilidades no
skate. “Tão pequena, mas tão grandiosa”, era o que papai
sussurrava no meu ouvido, quando eu descia alguma pista difícil
sem cair. Ele me recompensava com sorvetes de menta e
chocolate, nossa combinação favorita. Enquanto comíamos,
dividíamos o fone de ouvido para escutar as bandas que ele mais
gostava. Eu tinha que decorar as letras e cantar para ele depois,
para que se certificasse de que eu estava absorvendo tudo de bom
que a música tinha a me oferecer.
Meu pai tinha muitos defeitos e acabava ficando tão ausente
quanto minha mãe por causa de seus vícios, mas quando ele estava
lá, ele realmente era um pai presente.
Eu sinto tanto a sua falta, que dói, pai. Por que você tinha que ir?
Pergunto para o céu, esperando, de alguma forma, que ele me
escute.
Meu momento dramático se vai quando escuto alguém
esmurrando a porta. Arranco os fones do ouvido, assustada, e me
levanto abruptamente, andando até a porta.
— Quem é? — indago, apesar de imaginar.
Das quatro garotas com quem moro, só uma iria esmurrar minha
porta como se estivesse batendo em um saco de pancadas.
— Quem você acha?
E só pela rebatida, tenho a confirmação de que é Scout.
— Não tô com vontade de discutir — aviso, porque minha relação
com Scout Halstead é a mais estranha possível. Às vezes, brigamos
e disputamos em quadra como se fossemos de times opostos. Às
vezes, sentamos no sofá e assistimos documentários policiais e
filmes de terror em silêncio. Ela é a Fox mais parecida comigo,
consigo dizer, mesmo sem termos conversado sobre isso, que sua
vida não foi fácil e que ela carrega tantas cicatrizes quanto eu.
— Só vim te trazer comida.
Ergo as sobrancelhas, me perguntando se ouvi a coisa certa.
— Você? — questiono, nunca vi Scout fazer algo fofo para
alguém.
— Foi ideia da Alex. Ela achou que você poderia estar com fome,
te fez um prato de comida e veio trazer, mas você não atendeu a
porta. Ela disse que te chamou e bateu. Eu tenho certeza de que
foram toques tão fortes quanto os de uma criança, por isso você não
ouviu.
Balanço a cabeça em negação ao escutá-la, Alex é o tipo de
pessoa que está constantemente arremessando girassóis felizes
nas pessoas e Scout é a pessoa que queima esses girassóis só
com seu olhar mortal. Quando as duas interagem, é o máximo.
Suspiro e meu estômago, decidindo não ficar do meu lado,
resolve roncar. A última vez que comi foi logo depois do treino. Não
tive vontade alguma de me alimentar quando estava na casa da
minha mãe, o que não é nada saudável para minha vida de atleta.
Abro a porta, vencida pela fome, e encontro Scout debruçada no
batente. O cabelo castanho está preso em um rabo de cavalo e ela
está com um pijama todo preto, a calça cheia de caveiras
desenhadas. Quando me vê, estende o prato de comida na minha
direção.
— Fale obrigada pra Alex — digo enquanto cheiro o prato de
macarrão com frango que ela fez para mim. Parece maravilhoso.
Scout me fita de cima a baixo, a careta de “cago para a vida” está
estampada no seu rosto, como sempre. Levanto as sobrancelhas,
sinalizando para que ela diga o que quer dizer.
— O que rolou? — questiona e sei que é porque realmente quer
saber, caso contrário nem teria se dado o trabalho de perguntar.
— Problemas familiares — respondo, sucinta, não quero me
prolongar nesse assunto, não com as garotas do time. Prefiro que
elas saibam o menos possível sobre mim.
— Ah.
Sua resposta me faz soltar um riso irônico. Scout sendo Scout.
— Se não vai ajudar... — Faço um sinal com a cabeça para o
corredor, indicando que quero ficar sozinha. Com ela, pelo menos,
não preciso me controlar tanto.
Scout assente devagar e se solta do batente, dando um tapinha
amigável no meu ombro, antes de sair andando e gritar: — Boa
noite!
Fecho a porta do quarto assim que ela sai. Agradeço por Scout
não fazer mais perguntas, imagino que minha colega de time não
queira resolver os problemas dos outros e eu tampouco quero falar
sobre os meus.
Sento na minha escrivaninha e começo a comer. O alimento faz
minha cabeça voltar a funcionar e passo a pensar em como arranjar
tanto dinheiro em tão pouco tempo. Preciso pagar King o mais
rápido que conseguir, tenho medo do que ele pode fazer caso eu
não pague. Hailey ainda é nova, não tem tanta malícia quanto eu e
pode, de repente, ser abordada por algum capanga dele. Eu não
estou mais naquele bairro, mas minha irmã ainda caminha por
aquelas ruas todos os dias.
Axel é uma opção. Meu ex-namorado não é exatamente o cara
que eu procuraria para me salvar, mas estou em desespero e sei
que ele tem o que preciso.
Dinheiro.
Axel pode ser um problema por si só, mas entre resolver o
problema da minha mãe e ter que lidar com ele, prefiro lidar com
ele.
Melhor dever para o meu ex problemático do que para um agiota
poderoso.
Todo mundo quer ser meu inimigo
Poupe a simpatia
Todo mundo quer ser meu inimigo
Ah, que triste

Enemy – Imagine Dragons (with JID)

Os últimos dias foram exaustivos. Minha rotina consiste em


acordar extremamente cedo para treinar, assistir às minhas aulas,
fazer algum tipo de treino físico à tarde e trabalhar. Mal tenho tempo
para estudar e curso engenharia civil, logo acabo sempre enrolada
nas matérias, que estão ficando cada vez mais difíceis. Isso me
frustra, gosto de ser uma boa aluna e manter notas altas, mas no
primeiro ano de faculdade, passei raspando e, nesse, tenho tido
ainda mais dificuldade.
A meia-hora que eu teria livre entre o treino de musculação e o
meu trabalho seria sagrada. Entretanto, graças à maravilhosa
invenção da treinadora Hale, terei que utilizar esse tempo para
respirar o mesmo ar que Kahel Williams.
O babaca me evitou o final de semana todo, mas hoje ressurgiu
interessado em combinar nossa primeira reunião. Eu disse que tinha
apenas meia-hora, só que Kahel é tão irresponsável que não
compreendeu que precisava chegar no horário. Enquanto espero
em uma das mesas do jardim do campus, procuro pelas redes
sociais de Axel, mandando uma mensagem para ele, pedindo que
venha me encontrar mais tarde. Preciso resolver isso ainda essa
semana. Também preciso fazer um trabalho, estudar para duas
provas e me certificar de que ninguém brigue nos treinos.
E Kahel está me fazendo perder tempo.
Apoio as mãos na mesa para me levantar, jogo minha bolsa de
couro no ombro, mas não dou um passo sequer, porque avisto o
capitão dos Tigers andando na minha direção.
Não, andando não é a palavra certa. Kahel é o tipo de cara que
desfila. Ele anda com o peito aberto, a postura de quem não tem
nenhuma preocupação, exceto o basquete. Sua camisa florida está
com os primeiros botões abertos, mostrando o peitoral definido e ele
ainda usa chinelos e uma bermuda desleixada.
O contraste com o meu coturno sem salto, meia arrastão e
jaqueta jeans fica um tanto engraçado.
— Oi, princesa! — Kahel abre um dos sorrisos gigantes que
costuma carregar aonde quer que vá.
Eu aproveito que estou de pé e resolvo que preciso deixar bem
claro como essa parceria vai funcionar. Faço um sinal com a cabeça
para que ele se sente, minha expressão deixa claro que não estou
nada alegre com sua presença.
Uma das coisas que mais me irrita em Kahel é que não importa
meu semblante, ele sempre mantém o sorriso no rosto. Agora não é
um tão amigável, é mais um sarcástico, certo de que vai ouvir algo
que não vai gostar.
— Antes disso começar — aponto para nós dois — Precisamos
estabelecer algumas regras.
— Você ainda não respondeu meu oi — rebate e eu
simplesmente ignoro.
— Primeiro, nada de apelidos. — Ergo meu dedo indicador, para
sinalizar que estou só começando.
— Mas eu gosto de te chamar de princesa — retruca outra vez e
percebo que isso vai ser mais difícil do que imaginei.
— Mas eu não gosto. — Sou firme, não dou brecha alguma para
que ele responda. — Regra número dois. — Levanto meu dedo do
meio. — Você precisa chegar no horário nas nossas reuniões.
Ele confere as horas em seu relógio caro, a testa franzida em
indignação.
— Foram sete minutos, esquentadinha.
— Eu trabalho, estudo engenharia, jogo basquete e ainda sou
capitã do time. Não tenho tempo de sobra como você, mimadinho.
Todo minuto importa.
Percebo quando ele assente devagar, a boca se contorcendo de
um jeito que deixa claro que não está gostando do que está
ouvindo.
— Mais alguma regra? — questiona, agora me desafiando, um
sorriso lateral e irritante estampado no rosto.
— Sim, regra número três. — Volto a subir os dedos, dessa vez
acrescentando o anelar. — Nós não vamos perder o foco, não
podemos desviar o assunto e falar sobre nossas vidas pessoais.
— Você quer saber alguma coisa da minha vida pessoal?
Eu juro que não sei por que ele ainda pergunta.
— Não. — Sou curta e grossa.
— Então acho que não teremos problema com isso.
Kahel cruza a perna, entrelaça os dedos atrás da cabeça, a
postura egocêntrica irritante quase me tirando do sério.
— Estamos entendidos? — indago, mas não espero que
responda. Me sento, abro a bolsa e pego um caderno, para poder
anotar a pauta da reunião. — Vamos ao que interessa.
— Nossa, ruiva, veio preparada — comenta dando uma risadinha
irônica.
Eu apenas o fuzilo, sem me dar o trabalho de erguer a cabeça.
— Você já está descumprindo a regra número um.
— Ué, achei que você só não gostasse do “princesa”.
— Não, eu falei sobre apelidos em geral, você que não escutou
direito.
Kahel começa a gargalhar, solta as pernas e apoia os antebraços
na mesa, se aproximando de mim.
— Você está descumprindo a regra número três e saindo do foco.
O sorriso espertinho que ele abre, como se tivesse me vencido
em uma batalha que não existe, me deixa completamente
transtornada.
— Isso vai ser muito, muito difícil — comento o que se passa na
minha mente, sem conseguir esconder minha indignação.
Kahel continua sorrindo, e ainda se arruma na cadeira, querendo
se aproximar mais e mais.
— Vamos fazer uma brincadeira! — Reviro os olhos e bufo, me
jogando no encosto, inconformada com o rumo dessa conversa. —
Vamos falar sobre as coisas que não gostamos um no outro, e aí
resolvemos nossas diferenças e seguimos em frente em paz!
Fico em dúvida se está me zoando, mas Kahel parece sério,
ainda que com sua aura alegrinha de sempre. Nem minha revirada
de olhos faz com que ele se intimide.
— Tá, eu começo. — Dá de ombros e me fita diretamente, um
sorriso, agora de quem sabe que está no controle da situação,
fixado em seu rosto. — Você é irritante.
— E você é um mimadinho de merda — entro na sua, porque,
sinceramente, sinto que não vamos sair do lugar. E talvez seja bom,
quase terapêutico, falar umas verdades na cara dele. Me inclino
para frente, apoiando os antebraços na mesa assim como ele, para
desafiá-lo de igual para igual.
— Você devia ser um pouco menos certinha e chata com as
coisas.
— E você devia ser menos liberal, parar de encher a cara do time
inteiro no meio da semana... — percebo que ele fica puto quando
cito essa parte, mas nem ligo, ele merece ouvir só pelas coisas que
está dizendo sobre mim. — E ser menos feliz.
Assim que termino de falar, percebo que me expressei mal. Não
era bem isso que eu queria dizer.
— Feliz? A minha felicidade te incomoda? — questiona,
indignado.
— É uma felicidade excessiva. Imagino que na sua cabeça os
seus divertidamente estejam dançando, festejando e pulando em
cima de uma gelatina verde vinte e quatro horas por dia.
Kahel inclina a cabeça para o lado e eu me encolho, não acredito
que acabei de ser espontânea nesse nível. Simplesmente falei o
que sempre pensei a seu respeito.
— Oi? Divertidamente? Essa fantasia foi estranhamente
específica — ele questiona, ainda inconformado, e eu começo a
corar.
Por que sempre tenho que corar?
— É, tipo o filme que mostra os bonequinhos que ficam na sua
cabeça, controlando sua mente. — Faço um sinal com as mãos,
balançando os dedos acima da cabeça, e acho que só pioro a
situação.
Kahel começa a gargalhar. Ele até chora de tanto rir da minha
cara. Que merda, por que não fiquei quieta e continuei rebatendo
com grosserias?
— Você tá citando um filme da Pixar? — pergunta e gargalha
ainda mais.
— É um filme super inteligente. — E um dos meus favoritos, mas
não vou dizer isso em voz alta.
— Meu Deus, não acredito que você assiste desenho! Achei que
ficasse de mau humor o dia inteiro!
— Eu assisto de tudo, babaca. — Cruzo os braços de novo,
constrangida com esse diálogo.
— E os seus divertidamente são como? Todos vermelhinhos e
sempre com a cabeça pegando fogo? — rebate, se divertindo às
minhas custas.
Não me dou ao trabalho de responder. Pego meu celular e vejo
que nossa primeira reunião foi por água abaixo porque ficamos
discutindo como duas crianças do ensino fundamental.
— Somando seu atraso, com essa conversa inútil, perdemos
vinte minutos, ou seja, quase a reunião inteira.
— Você que começou com essa história de regras! — Tenta virar
o jogo, como sempre, mas não deixo. Sou tão boa jogadora quanto
ele.
Me levanto, passo a bolsa no ombro outra vez, pronta para ir
embora.
— Vamos marcar uma reunião no domingo, não tem treino e eu
não trabalho, então tenho mais tempo livre.
— Já disse que não posso aos domingos, tenho almoço de
família.
Hora do ataque.
— Você não está comprometido com a sua função de capitão,
Williams? — jogo a pergunta em cima dele, sabendo que ficará
irritado.
— Venha no almoço. — O contra-ataque vem mais rápido do que
imagino.
— Nem fodendo.
— Você não está comprometida com sua função de capitã,
James? — devolve com sarcasmo, voltando a sorrir.
Ele sabe que pegou na ferida, que não aceito escutar que não
sou uma boa capitã, quando faço muito mais do que ele pelo meu
time.
— Preciso ir vestida de alguma forma específica, mimadinho?
Seu castelo exige vestidos e saltos? — Pego Kahel de surpresa ao
aceitar o convite. Nem eu acredito que estou fazendo isso, mas não
vou deixá-lo vencer. Passar meu domingo não só com Kahel, mas
com sua família toda, definitivamente não estava nos meus planos.
— Não, princesa. Venha como quiser.
Não me dou o trabalho de rebater o apelido. Preciso ir trabalhar e
perder mais tempo com ele não é algo que me interesse.
— Me mande o endereço da sua mansão por mensagem. — Sou
irônica e nem fico para ouvir a resposta.
Tenho mais o que fazer.

A Small Snack, lanchonete em que trabalho, fica próxima ao


campus, em uma distância que consigo chegar a pé sem me cansar.
Faço turnos quase toda noite e pego pelo menos algum no final de
semana, para poder ganhar uma renda extra e pagar o aluguel da
toca das raposas com um pouco mais de folga.
Depois de treinar duas vezes no dia, assistir minhas aulas e
aturar Kahel, estou esgotada. Para ajudar, a lanchonete ficou lotada
durante horas e eu tive que me desdobrar para atender todos os
clientes.
Já são quase dez horas da noite e não me aguento mais em pé.
Entretanto, tenho mais uma hora de trabalho, então serei obrigada a
aguentar. Por sorte, boa parte dos estudantes e trabalhadores que
vieram comer depois de suas atividades já foram para casa. Agora,
restam apenas três mesas ocupadas, que um dos meus colegas
está atendendo.
— Você precisa diminuir o ritmo, Leah — Sloan, minha dupla no
trabalho, comenta quando para ao meu lado, me entregando o
pedido de uma das mesas.
Pego dois copos e os posiciono embaixo da máquina de
refrigerante, apertando os botões com as duas mãos para servi-los.
— Preciso jogar basquete para manter a bolsa na faculdade,
preciso do trabalho para pagar minhas contas e preciso estudar
para tentar ter dinheiro no futuro — solto de uma vez, ao mesmo
tempo que os copos ficam cheios. Coloco-os na bandeja apoiada na
bancada, erguendo a cabeça para fitar Sloan. — Então,
infelizmente, não dá pra diminuir o ritmo.
Minha colega nega com a cabeça, sabe que não tem jeito, estou
sempre a 400km/h.
— Pelo menos descanse um pouco, deixa que eu cuido das
coisas — ela afirma e pega a bandeja, piscando para mim antes de
servir os refrigerantes para os clientes.
Sloan Ono sonha em viver da música, mas, no momento, assim
como eu, precisa de dinheiro, então trabalha servindo mesas. Ela
tem origem japonesa, os olhos são angulados e escuros, o cabelo
liso está comprido e pintado com um tom de rosa bebê que é a cara
dela. Sloan usa roupas coloridas 24h por dia, ela é uma pessoa
realmente autêntica. Sua voz é uma das mais lindas que já ouvi,
quando estamos só nós duas, arrumando o estoque ou limpando a
cozinha, ela me presenteia com algumas canções. Sloan torna
minha jornada de trabalho menos maçante, agradeço demais por tê-
la comigo nesse momento do dia.
Aproveito os minutos de folga para me esconder atrás do caixa e
dar uma olhada no meu celular, que está dentro do meu bolso há
horas. Deixei o aparelho silenciado para não me distrair, então,
quando desbloqueio a tela, vejo as diversas notificações que me
esperam. Há algumas mensagens no grupo da toca das raposas
discutindo o menu do jantar, outra no grupo das Red Fox,
combinando os horários de treino de amanhã, outra de Hailey me
desejando boa noite. Noto também algumas notificações do
Instagram e abro a aplicativo, vendo que Axel respondeu minha
mensagem aceitando o encontro.
Fico nervosa no mesmo momento. Preciso resolver esse assunto,
mas não esperava que ele fosse mesmo topar me ver. Axel não é
nada ativo na rede social, ele só a tem para dizer que tem, mas não
há postagem alguma. Não nos falamos desde que entrei na KSU,
quase dois anos atrás. Antes disso, já tínhamos terminado, porque
eu percebi que nosso relacionamento era tudo, menos saudável.
Sabe aquela história da garota inocente que se apaixona pelo
garoto mais velho e com aparência de malvado no primeiro minuto
em que ele dá bola pra ela? É, eu fui essa garota.
Axel Norman tinha dezenove anos. Eu, quatorze. Ele era
conhecido pelo bairro porque vendia drogas. Seu ponto era na pista
de skate comunitária, local que eu frequentava com afinco. Axel
sempre me olhava, até que começou a puxar papo comigo, a me
desafiar a descer rampas maiores junto com ele. Eu achava o
máximo que um garoto mais velho estava se dando ao trabalho de
tentar me conquistar. Também achava que estava no controle. Mas
eu era só uma menina e ele sabia muito bem como me manipular.
Quase me ferrei por causa dele, quando me pediu para levar uma
encomenda para um garoto que estudava na mesma escola que eu.
Fui sua mula mais vezes do que consigo me lembrar, até que uma
professora da escola me pegou com um pacote de maconha que
nem era meu, e ameaçou me denunciar. Eu chorei, expliquei a
situação, disse que só estava ajudando meu belo namorado. Ela
abriu meus olhos, foi a pessoa que me fez acreditar que eu poderia
ter um futuro melhor, que ser a garota do traficante não era para
mim.
Axel, obviamente, não gostou da minha postura mais firme e
tivemos brigas feias. A questão é que ele nunca parou de vir atrás
de mim, até eu sair do bairro e vir para KSU tentar mudar minha
vida. Eu o esnobei todas as vezes e agora estou aqui, vendo
quando estaciona seu Sedan preto nas vagas da lanchonete.
Caralho. Ele veio mesmo.
— Uau, quem é o dono do carrão? — Sloan pergunta do outro
lado do balcão.
Suspiro e desamarro o avental que estava cobrindo minha calça
jeans. Ajeito meu casaco, fechando o zíper até que nada fique
exposto, para não dar nenhuma ideia errada a ele.
— Consegue me cobrir por uns cinco minutos? — peço, sem
respondê-la diretamente.
Sloan ergue as sobrancelhas, esboçando um sorriso espertinho,
como se eu estivesse indo ficar com um garoto dentro do carro, no
meio do meu horário de trabalho. Mal sabe ela que tive que recorrer
a ajuda de um cara tóxico, só para proteger minha família.
Saio da lanchonete respirando com calma, até engulo em seco
quando paro ao lado da porta do passageiro, pensando se vou
mesmo fazer isso. Eu gostaria de ter outra opção, gostaria mesmo,
mas, no momento, não vejo nenhuma.
Abro a porta e pulo para dentro do carro. Fico atenta se Axel não
vai me trancar aqui junto com ele, mas ele não faz nada. Só me
encara com seu jeito de sempre, como se tivesse perdido seu maior
troféu, como se eu fosse um bem material do qual ele foi obrigado a
abrir mão.
Aproveito que está me olhando para retribuir a fitada. Ele raspou
o cabelo e parece ter feito ainda mais tatuagens. Seus braços e seu
peito já eram cobertos, agora os desenhos subiram para o pescoço.
Ele cheira a perigo. E não é um perigo bom.
— Senti sua falta, baby. — É a primeira coisa que diz,
estendendo a mão para tentar tocar no meu rosto, ato que impeço
na mesma hora. Ele recua com um meio sorriso triste. — Fiquei
surpreso com a sua mensagem. Achei que nunca mais falaria
comigo.
Eu não queria falar, é o que tenho vontade de responder, mas
não posso, porque preciso dele.
— Desculpe aparecer assim. Preciso muito de ajuda e sei que
posso confiar em você — falo de forma pausada, me forçando a,
pelo menos, fazer uma expressão minimamente esperançosa.
Não posso enganá-lo demais, porém, também não posso dizer o
que realmente sinto sobre ele, caso contrário ele não me dará o que
preciso. Nesse momento, esquecer tudo o que aconteceu entre nós
é necessário. Ele me usou, agora preciso usá-lo. Nada mais justo.
— Eu faria qualquer coisa por você, Leah. — Em seus olhos
verdes, vejo nitidamente a paixão obsessiva que tem por mim. Só
não recuo porque não tenho outra opção.
Me viro no banco, dobrando minha perna para ficar de frente para
ele. Sua proximidade me causa arrepios e me lembra de cenas
desagradáveis de um passado que faço esforço para esquecer. Axel
Norman estragou toda e qualquer experiência romântica para mim.
E aqui estou eu, implorando pela ajuda dele.
— Minha mãe está tendo problemas de novo — começo a falar,
ele conhece minha história e já viu minha mãe em seus piores
momentos. — Ela estava devendo e pegou dinheiro emprestado
com Jeff King.
Axel passa a mão pela cabeça, nem ele, que é um dos traficantes
mais respeitados do meu antigo bairro, costuma se meter com King.
— Cacete! Sua mãe ultrapassou todos os limites! — Ele bate no
volante e dou um pulo no banco.
— Eu sei — murmuro, engolindo em seco.
— É muito dinheiro? — questiona, o tom preocupado, sabendo
que minha mãe se enfiou em uma roubada das grandes.
Apenas assinto. Não preciso dar maiores explicações, ele
conhece Jeff King, tem ciência de como seu trabalho funciona.
— Eu não pediria sua ajuda se não precisasse muito, Axel.
Prometo que vou pagar de volta cada centavo. Só preciso de tempo.
— Devo estar parecendo desesperada, mas, bem, realmente estou.
— Não precisa se preocupar com isso. — Nega com a cabeça,
porém, faço questão de pagar, não posso ter uma dívida com um
cara que quero manter o mais longe possível de mim. — Me dê seu
celular, vou salvar meu número e você me manda o valor. Posso te
entregar o dinheiro pessoalmente no final de semana. Podemos sair
pra jantar.
A última parte quase me faz resmungar, mas não falo nada, só
concordo. Não estou em posição para reclamar. Desbloqueio meu
celular e entrego a ele. Axel digita seu número rapidamente e me
devolve.
— Tem um tal de “Pesadelo” te mandando um “oi, princesa”.
Namorado novo? — questiona e eu suspiro, cheia de vontade de
mandar Axel e Kahel para o inferno juntos, de mãos dadas.
— Não, um colega do basquete — respondo de forma educada,
quando no fundo queria dizer “nós não namoramos mais, pare de ter
um ciúme obsessivo por mim”. — Preciso voltar pra lanchonete. —
Aponto para o local amarelo à nossa frente. — Obrigada mesmo
pela ajuda.
— Fique tranquila, baby. — Axel leva sua mão para minha coxa.
Ele não me aperta, mas só de estar encostando em mim, sinto um
mal-estar. — Faço qualquer coisa por você.
Sua frase me assusta, porque eu realmente tenho certeza de que
ele faria coisas inimagináveis só para me ter de volta. E eu acabei
de pedir um favor gigantesco para ele. Caralho. Tenho que sair
daqui.
Tiro sua mão da minha coxa, forço um meio sorriso e saio do
carro rapidamente, voltando para dentro da lanchonete.
Depois de Axel sair do estacionamento e desaparecer do meu
campo de visão, me permito respirar de forma apropriada e começo
a pensar sobre o que acabou de acontecer. Pedi uma quantidade
bizarra de dinheiro emprestada para Axel Norman, o cara que quase
me arruinou.
Tenho a sensação de que acabei de tomar a pior decisão da
minha vida.
Porque aqui estou eu
Estou dando tudo o que posso
Mas tudo o que você faz é estragar as coisas

Naked – James Arthur

Nunca tomei tanto esporro na vida quanto nos últimos dias.


Desde que fui à festa do time de futebol e embebedei os Tigers, o
treinador Morrow tem pegado no meu pé. Ele me conhece desde
criança, jogou com o meu pai quando estavam no ensino médio,
então acaba me cobrando mais e se decepcionando com a minha
postura com uma facilidade impressionante.
Sei que não sou perfeito. Tenho meus defeitos e minhas atitudes
imaturas, as vezes acabo esquecendo das responsabilidades e foco
apenas na diversão, mas é só porque preciso de um alívio. Sou
jovem, o momento que tenho para curtir é agora. Não estou
cometendo nenhum crime.
Todo domingo venho à casa dos meus pais e passamos o dia
juntos. Somos uma família unida, porém, com rotinas exaustivas,
então acabamos não conseguindo nos ver durante a semana. O
intuito desses encontros é colocar o papo em dia, mas por conta do
que aconteceu nessa semana, até meu pai está me dando esporro.
— Filho, só estou dizendo que, por ser capitão, você pode ter
uma postura um pouco melhor. Tudo o que você faz dita o que os
outros farão.
Tenho que respirar fundo e repetir para mim mesmo que meu pai
só quer ajudar. Jordan Williams é um ex-jogador da NBA que
coleciona mais fãs do que boa parte dos atletas atuais. Meu pai é
um cara simpático, fez sua carreira ser respeitada por sempre
manter uma imagem impecável. Tenho orgulho de dizer que não foi
fingimento, meu pai é o homem que admiro e que quero ser algum
dia. Não que eu ache que isso seja possível. Chegar aos pés dele é
um desafio que não me sinto capaz de cumprir.
— Pai, eu só tirei um momento e acabei ultrapassando o limite.
Sei que fiz merda, mas o treinador já tem me cobrado o suficiente.
Ele para de cortar os legumes que está picando para
acompanhar as carnes do churrasco e apoia a mão em meu ombro.
Seus olhos castanhos idênticos aos meus me fitam com ternura.
— Não é uma cobrança, Kahel. Quero apenas te guiar e te fazer
entender qual é o melhor caminho a seguir.
Suspiro, chateado. Não gosto de decepcionar o meu pai. Ele
sempre tenta me ajudar e me apoiar em tudo, mas de alguma forma,
quase todas as vezes, faço alguma merda e perco alguns pontos
com ele.
— Eu sei, pai. Você é o melhor. — Apoio a cabeça em seu
ombro, carinhoso, para mostrar o quanto o amo.
A campainha da casa toca e peço licença para ir atender. Leah
James será nossa convidada bem hoje, em um dia que não estou
nada animado para retrucar suas indiretas. Acabei, inclusive,
convidando meus amigos para virem para que eu pudesse ficar
menos tempo sozinho com ela.
Quando abro a porta, percebo que posso achar Leah
insuportável, mas consigo reconhecer sua beleza. Tudo nela é
natural. Nada de maquiagem no rosto, deixando as sardas à mostra.
O cabelo ruivo todo solto e um pouco frisado, com o boné rosa
virado para trás posicionado na cabeça. A calça jeans rasgada, um
tênis de basquete nos pés e uma camiseta larga com a frase “o
lugar das garotas é em quadra” compõem seu visual honesto,
simples, estiloso e bonito.
Que esse elogio fique entre nós, porque jamais direi isso a ela.
— Princesa! Queria dizer que é ótimo te ver, mas eu estaria
mentindo — brinco, segurando a porta com meu braço estendido,
fazendo uma pose mesquinha que sei que irá enlouquecê-la.
Leah bufa e cruza os braços, pegando a bolsa de couro preta que
é sua fiel companheira, para colocá-la no ombro.
— Vamos logo com isso. — Vai entrando como se fosse a dona
da casa e eu quase tenho que correr para segui-la.
Meus pais moram em um dos bairros mais exclusivos de
Kingston Beach, próximo à praia. A casa é enorme, tem oito quartos
no andar de cima e uma estrutura gigante no andar de baixo.
— Quando chamei sua casa de mansão, não imaginei que seria
realmente desse jeito — ela comenta enquanto vai andando pelo
hall de entrada.
O lugar é antigo, então há muitas partes de madeira, que dão um
ar rústico para o ambiente. Tomo a frente da caminhada e mostro
para Leah nossa sala de estar, de TV e de jantar. Damos uma
passada na cozinha, que não tem nenhum empregado hoje, porque
domingo é dia da família Williams cozinhar. Por fim, levo Leah até a
área externa.
— Você tem uma quadra em casa! — afirma, chocada, e dou
risada.
— Meu pai jogou na NBA, o cara é fissurado por basquete.
A quadra fica nos fundos da casa, para chegar até ela, é preciso
passar pelo jardim, onde a área de churrasqueira e a piscina ficam.
Essa é minha parte favorita, passei a infância toda correndo de um
lado para o outro, aprendendo a nadar nessa piscina, a jogar
basquete nessa quadra.
— Leah! — Sebastian joga os braços para cima quando a vê e já
recebe uma careta de desgosto da minha parte.
— Não sabia que vocês também vinham — ela comenta e me dá
uma fitada fatal. Fica claro que não gostou de eu ter convidado
meus amigos.
Nosso momento de paz se vai tão rápido quanto veio.
— Nunca recusamos comida de graça — diz Mav, dando de
ombros.
Eu e Leah nos aproximamos da rodinha deles, ela cumprimenta
os meninos e Miranda, que faz questão de me dar uma piscadinha
quando está dando um breve abraço em Leah. Minha melhor amiga
pode ser insuportável quando encana com uma coisa.
— Como está sendo trabalhar com o Kahel? Aposto que vocês
têm diálogos ótimos! — fala Miranda e eu espremo os olhos na
direção dela, tentando ordenar que pare.
Pena que não há chance alguma dessa teimosa me ouvir.
— Ah, uma diversão sem tamanho. Estamos progredindo muito e
concordando em tudo, não é, Williams? — Leah pergunta, seu tom
irônico me diz que ela está com um humor melhor hoje, menos
irritada, com mais vontade de me encher o saco.
— Nós até teríamos progredido, se não fosse sua vida super
difícil, não é, James? — devolvo, parado ao seu lado, unindo
minhas mãos para passar uma boa imagem.
Não funciona, Leah me encara com o olhar mortal que sempre
direciona a mim e percebo que meus amigos estão segurando a
risada diante da nossa interação.
— Kahel, traga sua nova amiga para nos conhecer! — minha
mãe grita da churrasqueira, falando a pior besteira do século.
— Você não avisou sua mãe que somos tudo, menos amigos? —
Leah questiona, parece que fica ofendida com o título de “amiga”.
Ela faz de tudo para me manter no setor inimigo. Impressionante.
— Não, mas posso dizer agora. — Puxo-a pelo braço e a arrasto
até perto dos meus pais. Paramos na frente deles e ela se solta do
meu toque com brutalidade, resmungando. — Mãe, pai, essa é a
Leah, capitã do time de basquete feminino e minha inimiga mortal.
— Meus pais arregalam os olhos quando me escutam, sem
entender nada. — Leah, esse é o meu pai, Jordan, e minha mãe,
Karen. Se quiser uma foto com ele, tire agora, porque pode ter
certeza de que você nunca voltará a pisar nessa casa. — Aproveito
para acrescentar a última parte e cutucá-la um pouco mais. Não
estou em um bom dia.
— Kahel! — Minha mãe me repreende, não faz ideia das coisas
que eu e Leah já falamos um para o outro.
— Não se preocupe, Sra. Williams, estou acostumada com o
jeitinho peculiar do seu filho. — Ela estende a mão para
cumprimentar minha mãe, fingindo que é simpática, quando no
fundo é a garota mais cara fechada das Red Fox. — Tenho certeza
de que você deu o seu melhor para educá-lo. É uma pena que não
tenha dado certo.
Solto um único riso sarcástico ao ouvi-la.
— Essa foi boa, James. Quer um prêmio? — questiono, antes
que ela possa se aproximar do meu pai.
— Não quero nada que venha de você — rebate, educadíssima.
Falsa.
— Tem certeza? Porque tenho algo incrível pra te oferecer. —
Agarro seus ombros e ameaço jogá-la na piscina. Quase completo o
movimento, mas vejo a expressão de pânico em seu olhar e desisto.
— Você é um idiota, cacete! — Ela começa a bater no meu braço,
suas mãos são pesadas, Leah, definitivamente, não é uma mulher
fraca.
— Eu não ia te jogar, era só pra dar um sustinho — brinco, mas
não é totalmente verdade.
Eu meio que adoraria vê-la precisando da minha ajuda para sair
da piscina e não fazer nada a respeito.
Quando digo que Leah desperta o pior de mim, não é brincadeira.
— Nunca mais faça isso, entendeu? — ela ordena, do seu jeito
impositor de sempre e eu assinto, com medo de morrer.
Leah cruza os braços e praticamente dá as costas para mim.
Coloco as mãos nos bolsos da minha bermuda colorida e viro o
suficiente para não ter que olhar na cara dela.
— As crianças já pararam de brigar? — minha mãe pergunta,
vejo uma risadinha meiga surgindo em seus lábios, se divertindo
com a nossa demonstração de “afeto”.
— Vocês sempre são assim um com o outro? — indaga meu pai,
apontando para mim e para ela.
— Sim — respondemos juntos e, quando me viro para fitá-la,
Leah tem a mesma ideia. Nosso olhar dura exatos dois segundos,
porque nós dois nos viramos, bufando pela coincidência.
Reparo que Leah se aproxima do meu pai, estendendo a mão
para cumprimentá-lo, já que não tinha conseguido antes, por causa
da nossa discussão.
— Sr. Williams, me desculpe, mas, apesar de não gostar do seu
filho, você é um ícone para mim — ela fala e meu pai gargalha.
— Obrigado, querida. É ótimo conhecer outra jogadora, as Red
Fox estão fazendo uma boa campanha esse ano.
Sou vencido pela simpatia do meu pai e acabo dando uma
espiada na cena. Leah está com cara de boba na frente dele. Uau.
Ela é uma pessoa normal e consegue admirar um ex-jogador foda
como ele. Estou surpreso. Achei que ela não gostasse de ninguém.
— Não estamos tão bem assim, mas lutaremos para melhorar. As
Red Fox são tudo para mim. — A firmeza na voz de Leah deixa
claro que ela não está brincando, realmente, o time de basquete
feminino da KSU é importante demais para ela.
— Gosto da forma como você fala sobre sua equipe, garota.
Quem sabe não vou assistir algum dos jogos de vocês? — Meu pai,
sendo meu pai, sempre se convidando para tudo. E ainda elogiando
Leah por sua postura de capitã. Que absurdo!
Não duvido que ele realmente apareça em um jogo das Red Fox.
Pensa em um cara que ama atenção. Ele também gosta de assistir
ao jogo, é óbvio, mas o mais legal, para ele, é ser bajulado pelas
pessoas que o encontram pelo ginásio.
— Seria uma honra, Sr. Williams. — Leah... sorri? Acho que é um
sorriso. Ainda não está mostrando os dentes, mas a boca se mexeu
e a boca dela nunca se mexe, a não ser que seja para fazer uma
careta para mim.
— Não vai apresentar sua irmã, Kahel? — Lilly chega por trás de
mim, abraçando meus ombros, e puxo sua mão para que pare ao
meu lado e eu possa dar um beijo em seu rosto.
— Leah, essa é a Lilly, minha irmã. — Apresento as duas e Lilly
me solta para estender a mão para Leah.
— Quem briga com o meu irmão merece meu respeito — ela diz
e Leah dá risada, olhando direto para mim.
— Adorei ela! — comenta, apontando para Lilly, e eu balanço a
cabeça em negação.
Primeiro, Sebastian ficou com ela. Depois, Miranda falou que ela
é bonita. Então, meu pai disse que poderia ir ao jogo dela. E agora
Lilly está distribuindo sorrisos para ela. Eles não podem gostar de
Leah James. Isso é errado de incontáveis formas diferentes.
Leah começa a papear com a minha irmã, minha mãe se mete na
conversa e descobre que Leah faz engenharia. Minha mãe tem uma
empresa de construção, também é engenheira, e Lilly trabalha com
ela, na administração. Elas engatam em uma conversa animada e
eu fico de lado, apenas observando.
Os Williams são muito diferentes uns dos outros não só na
profissão — meu pai foi atleta e ama esportes, minha mãe é uma
engenheira que odeia se movimentar — mas também pela
aparência. Sou filho de um casal inter-racial, meu pai é negro, sua
pele tem um tom mais escuro que a minha, e mamãe é branca. Ele
é alto, tem quase dois metros, e ela 1,65m, o que faz com que
sempre tenha que ficar na ponta dos pés para beijá-lo.
Os dois têm um casamento incrível, do tipo que eu quero ter no
futuro, se achar alguém com quem valha a pena dividir a vida. Até o
momento, nunca achei alguém decente nem para namorar, que dirá
casar. Tenho padrões de exigência altos demais.
— O papo está ótimo, meninas, mas eu e o Kahel realmente
precisamos nos reunir — Leah me tira do meu devaneio e assinto
quando vejo que ela espera minha confirmação.
— Fique para almoçar, querida. Faço questão que coma conosco!
— diz minha mãe, solícita.
— Eu realmente não posso, Sra. Williams, mas obrigada. — Leah
recusa e cumprimenta meus pais, dizendo que adorou conhecê-los.
Nem vou contestar o fato de ela não poder ficar para comer. É até
melhor, assim, quando ela for embora, posso realmente curtir o dia.
Faço um sinal para que me siga para dentro da casa, quando
passo pelos meus amigos, faço uma careta para eles, que me
desejam sorte, fazendo Leah bufar e me ultrapassar. Quase corro
para alcançá-la e quando consigo, sussurro em seu ouvido: —
Brigando comigo na frente dos meus pais, que feio, capitã.
Ela para abruptamente e não tenho tempo de frear, quando vejo,
Leah já está virada para mim. Seu olhar enfrenta o meu e, caralho,
estamos a centímetros um do outro. Essa proximidade causa uma
coisa estranha dentro de mim. Leah me desafia, me instiga, não se
intimida com o olhar fatal que lanço na direção dela.
— Quando você abre a boca, não consigo me controlar. É mais
forte do que eu — rebate e minha cabeça vai longe, pensando em
todos os sentidos que essa frase poderia ter, se ela fosse outra
pessoa.
— Estou mexendo tanto assim com você? — questiono, sem
conseguir segurar meu lado conquistador, que quer continuar essa
provocação.
— Nunca, capitão — enfatiza minha posição, um sorriso malvado
surgindo em seus lábios.
Leah dá as costas para mim, o cabelo ruivo se movimenta, tão
comprido que quase bate na minha cara. Acabo rindo do modo
revoltado como ela anda, do quanto é marrenta, até na hora de
apoiar sua bolsa em cima da mesa de jantar.
— Fique à vontade. — Aponto para a sala, irônico, enquanto ela
já se acomoda, puxando uma cadeira para se sentar.
Resolvo ficar na sua frente, com a mesa me protegendo de
qualquer discussão eventual. Leah abre sua bolsa para pegar o
caderninho que também trouxe na outra reunião, mas interrompe o
movimento pela metade, olhando para o móvel onde inúmeros
retratos da minha família estão.
Sua expressão perde um pouco a força, algo ali a incomoda, só
não sei dizer o que.
— Tudo bem? — pergunto, tirando-a do devaneio, fazendo com
que complete o movimento e coloque o caderninho à sua frente.
— Estava só olhando as fotos, sua família parece bem unida —
comenta, a voz fraquejando por algum motivo que ainda me é
desconhecido.
— É, nós fazemos muita coisa juntos. Essas fotos são de
momentos especiais, o último jogo do meu pai na NBA, meu
primeiro troféu, o dia em que ele adotou minha irmã... — Leah me
encara, sem entender a última parte. — Lilly não é filha biológica do
meu pai. Ela é fruto de outro relacionamento da minha mãe, o pai
biológico dela não quis assumir a filha, quando soube que ela tinha
Síndrome de Down. — Esse é um assunto que traz dores enormes
para minha família, Lilly precisou de muita terapia para aprender a
lidar com o sentimento de rejeição que cresceu dentro dela por
causa do babaca que não quis assumir sua paternidade. — Quando
meus pais se conheceram, ela já tinha dois anos. Minha mãe conta
que Lilly nunca chegou perto de uma bola, até ver meu pai jogando
basquete. Então, ela passou a andar com uma bola embaixo do
braço o tempo todo. Ele a criou como sua filha e algum tempo
depois, Lilly fez questão de que ele a adotasse, porque queria
carregar o sobrenome dele. Foi um dos dias mais importantes da
minha vida.
Meus olhos se enchem de lágrimas ao lembrar da felicidade de
toda a família Williams no dia em que Lilly finalmente pode espalhar
para o mundo que era filha de Jordan porque ele a tinha escolhido.
— Minha família é tudo pra mim. — Não sei por que digo isso,
acho que simplesmente falo porque é o que sinto, eu viveria em
uma ilha deserta com meu pai, minha mãe e Lilly o resto da minha
vida, se fosse preciso. Nós nos damos muito bem.
Vejo Leah com os olhos marejados, fico até surpreso pelo seu
coração de pedra se emocionar com essa história. Ela se mexe na
cadeira quando nota que estou a encarando, percebo que o assunto
passa a ser desconfortável para ela, pelo modo como seu
semblante muda. Leah transitou da emoção para o afastamento em
segundos. É como se tivesse colocado um tijolo em cima de
qualquer coisa que esteja sentindo.
— Vamos nos focar na arrecadação — fala, certeira e direta,
acabando com o momento. Não tenho escolha a não ser aceitar. —
Pensei em fazermos uma venda de garagem. As Fox e os Tigers
podem contribuir com coisas para vender. Não vamos gastar nada,
só ganhar.
— Leah, você percebe que essa é uma arrecadação para ajudar
a bancar nossos uniformes, além de hotéis e transporte quando
jogamos fora de casa? — Ela assente, mas acho que realmente não
compreendeu o que estou dizendo. — Uma venda de garagem não
vai nos dar a grana que precisamos.
Leah solta o corpo na cadeira, cruzando os braços, levantando a
bandeira da discórdia.
— Qual a sua grande ideia então, bonitão?
Ah, Leah, você pede para ser zombada.
— Obrigado pelo elogio, princesa. Bom saber que pelo menos
suas consultas com o oftalmologista estão em dia. — Ela mostra o
dedo do meio no segundo em que paro de falar. Só solto um riso,
nada surpreso. — Nossa melhor opção é um baile. Chamamos
pessoas influentes dispostas a ajudar e investir nos times de
basquete da KSU.
— Como vamos pagar por um baile, Kahel? — rebate, como
imaginei que iria.
— Cobramos pelos convites para já ter um dinheiro de entrada e
depois cobrimos os gastos com as doações. Acredite, ricos adoram
esse tipo de evento, principalmente se saírem na mídia doando seu
precioso dinheiro para apoiar algum esporte. Fica bem para a
imagem deles e ótimo para o nosso bolso. É a ideia perfeita!
E uma ideia que me empolga, porque adoro planejar festas. Fora
que conheço muita gente influente, graças ao meu pai, e lotaria
esse evento com a maior facilidade. Tenho certeza de que ele ficará
orgulhoso se eu fizer um bom trabalho.
A parte difícil é convencer Leah a topar.
— Não sei, Kahel, essa ideia me deixa insegura. Se as pessoas
não doarem o dinheiro que precisamos, ficaremos com uma dívida.
Dever nunca é uma boa.
— Nós não vamos dever pra ninguém, Leah. Estou te falando
que vai dar certo. Confie em mim — peço, porém, sei que estou
pedindo algo impossível.
Leah James jamais confiaria em alguém que considera um
mimadinho irresponsável.
— Vou pensar sobre o assunto, mas já adianto que estou
inclinada a dizer não.
A mera possibilidade de não fazermos o baile me deixa chateado.
Gosto muito da ideia, realmente acho que é nossa melhor opção.
Leah não entende a magnitude da tarefa que nos foi passada.
— Sei que você gosta de tomar as rédeas das situações, porém,
nesse caso, imploro que me escute. Sei do que estou falando.
Tenho mais experiência com esse tipo de coisa.
Leah me fuzila com seu olhar mortal de sempre, ela não me dá
os créditos que mereço. Não posso culpá-la, a imagem que mostro
para ela, desde que nos conhecemos, é de ser um atleta festeiro,
pegador, rico, um clichê ambulante. Mas tenho vários lados e ela
não conhece nem metade deles.
— Vamos, Leah, não seja chata! Temos um plano incrível em
mãos, só preciso da sua colaboração para executá-lo! — apelo,
unindo minhas mãos e fazendo meu melhor biquinho para ver se a
convenço.
Leah nem liga para o meu esforço. Muito pelo contrário, fecha
ainda mais a cara e simplesmente se levanta.
— Tenho um compromisso, então preciso ir — anuncia, fechando
seu caderno, em que anotou algumas coisas que falamos, e
guardando-o de volta na bolsa. — Prometo ser menos chata da
próxima vez que nos encontrarmos.
— Ah, Leah, qual é! — respondo, incrédulo por ela ter se irritado
com isso.
É verdade que eu não deveria estar surpreso, afinal, ela se irrita
até com o ar que eu respiro. Entretanto, achei que estávamos
chegando em algum lugar.
— Combinamos outra reunião durante a semana. Obrigada por
ter me recebido na sua casa. — Leah joga a bolsa no ombro, vira as
costas e sai andando em direção a porta, sem sequer esperar que
eu vá abri-la para ela.
Fico sentado por um tempo, refletindo sobre o que acabou de
acontecer. Não acho que a ofendi, passamos tempo demais
discutindo e já falei coisas piores para ela. Leah sabe que estou
certo, ela só gosta de fazer as coisas do jeito dela e dane-se o que o
resto do mundo quer. Eu não a conheço bem o suficiente para dizer
o que a fez ir embora desse jeito, mas que seja, não importa.
Vou aproveitar que me livrei dela e curtir o domingo.
E enquanto eu tento trilhar o meu caminho
Para este mundo normal
Eu aprenderei a sobreviver

Ordinary Wolrd – Duran Duran

Há tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo em minha vida,


que não consigo me concentrar nas aulas. Com minha falta de
tempo para estudar, preciso focar 100% no professor, ou não
consigo me recuperar depois. O problema é que minha cabeça está
a mil.
Ontem, na casa de Kahel, senti um aperto no peito ao ver o
quanto sua família é feliz. Passei o dia todo tensa porque sabia que
teria que me encontrar com Axel quando saísse dali, e as emoções
que me atingiram ao ouvir as histórias dos Williams quase me
fizeram desabar. Fiquei me perguntando por que tenho uma família
fodida, porque não fui escolhida para ter uma mãe que não me dá
dor de cabeça, porque tenho que passar por tanta coisa. Minha
cabeça estava uma confusão e tudo piorou ainda mais quando fui
ao jantar.
Não deixei que Axel me buscasse, não queria que ele visse a
casa de Kahel ou a minha própria, para não colocar ninguém que
não esteja relacionado a essa história em perigo. Encontrei com ele
em um restaurante no centro da cidade, longe o suficiente do seu
bairro e da KSU, para que não fossemos vistos.
Imaginei que ele não me deixaria simplesmente pegar o dinheiro
e ir embora e Axel atendeu minhas expectativas. Ficou puxando
assunto a noite toda, tentando me sondar a respeito da minha vida,
do basquete, dos estudos e o pior, dos meus interesses amorosos.
Disse a ele a verdade, que estou ocupada demais tentando
equilibrar minhas obrigações para namorar. Ele não acreditou,
repetiu que eu era linda demais para não ter ninguém interessado
por mim.
Eu entendi o que ele queria fazer e me mantive firme no meu
discurso. Axel é possessivo. Nem sei o que ele seria capaz de fazer
se me visse com alguém.
Por sorte, um de seus funcionários ligou para ele e disse que
estavam tendo um problema com um carregamento, então Axel
precisou ir embora mais cedo, não sem antes me oferecer uma
carona até minha casa, que recusei de bom grado.
Escondi o dinheiro que ele me emprestou em uma caixa e afirmei
para mim mesma que vou pagá-lo mensalmente até eliminar essa
dívida. Terei que driblá-lo, mas Axel é tão obcecado por mim que
acredito conseguir executar essa tarefa com facilidade.
Agora, só preciso pagar esse maldito agiota e tudo ficará bem.
— Turma, vocês têm meia hora para resolver o exercício. — O Sr.
Turner anuncia e eu entro em pânico.
Copiei o exercício no meu caderno, estou com minha calculadora
a postos, mas nem sei por onde começar. Sou ótima com números,
sempre fui um gênio das exatas, até apresentei um trabalho
estudando a angulação dos arremessos no basquete para unir as
duas coisas que tanto amo quando estava na escola. O problema é
que o nível da faculdade é outro e não me dedico o suficiente para
ter facilidade.
— Ei, precisa de ajuda? Você está com uma cara de pânico —
Sebastian pergunta, o amigo de Kahel está sentado ao meu lado
hoje.
Ele cursa engenharia mecânica, eu curso civil, e acabamos nos
esbarrando em diversas aulas. Há alunos de todas as vertentes da
engenharia, de arquitetura e até de economia em nossas turmas.
— Estou um pouco perdida, confesso — admito, aceitando o
apoio que ele está me oferecendo. — Tem muita coisa na minha
cabeça — completo.
Sebastian Torres é um cara simpático. Conversamos bastante
durante as aulas e quando nos esbarramos nas quadras. Até achei
que poderia ter algum interesse por ele, mas quando ficamos, não
senti absolutamente nada. Acho que ele também não, porque nunca
mais nos insinuamos um para o outro. Meu coração não deve mais
saber como se apaixonar, depois do baque que levou de Axel.
— O Kahel está te dando trabalho? — Seb pergunta, pelo sorriso
que abre, imagino que já esteja se divertindo porque sabe qual será
minha resposta.
— Até que não. Ele só me irrita uns 90% do tempo que estamos
juntos. Poderia ser pior.
Dou de ombros, tentando colocar um pouco de humor na
situação. Kahel me tira do sério, é verdade, mas devo admitir que
ele está pelo menos tentando se envolver na arrecadação.
— Te prometo que o Kahel é um cara legal, Leah. — Faço uma
careta quando o escuto, o que faz Seb continuar rindo. — É sério!
Ele tem essa pose de “eu sou o capitão intocável”, mas tem um
coração enorme. O Kahel é a alma dos Tigers.
Eu não duvido, ele é realmente amado por todos e imagino que
deva ter alguma qualidade, eu só não as conheci ainda.
— Lamento muito pelos Tigers. — Não dou o braço a torcer.
Admito que ver Kahel com sua família e ouvir a história de sua
irmã me comoveu, mas nós nunca somos legais um com o outro,
realmente não acho que exista a possibilidade de uma amizade
entre nós.
Sebastian percebe que não vou ceder, então começa a me
explicar o exercício, me atualizando sobre a matéria que perdi por
causa dos meus devaneios. Somos interrompidos quando a porta da
sala se abre bruscamente. Todo mundo se vira para ver quem é e
ninguém se surpreende ao ver Romeo, o garoto problema que foi
expulso do time de futebol americano.
O pior é que ele se aproxima de nós, com sua pose de bad boy, o
cabelo penteado para trás.
— O que está rolando? É um teste surpresa? — sua pergunta
soa desesperada, não o conheço muito bem, só sei que sua
reputação não anda nada boa.
— Não. Só estamos fazendo um exercício. Deve ter um lugar pra
você ali no fundo — Seb responde com frieza, apontando para o
fundo da sala, deixando claro que Romeo não pode ficar perto de
nós.
Fico com pena quando o vejo subindo as escadas do auditório
com a cabeça baixa. Sinto que, talvez, as pessoas o julguem
demais. Romeo fez merda, eu sei, mas as segundas chances estão
aí para nos mostrar que as pessoas podem mudar.
Sebastian chama minha atenção de volta para o exercício, e
deixo a hipotética história de Romeo de lado, para me focar na
minha.

Estamos descansando depois de uma rodada intensa de treino


tático. Treinamos diversas jogadas que a treinadora Hale quer usar
no torneio das conferências. Ela está ansiosa para nos darmos bem,
acha que temos potencial, mas pouco tempo para trabalharmos uma
melhoria.
— O Anthony fez um negócio com a língua, juro, ninguém nunca
tinha feito algo desse tipo e olha que já transei com muita gente —
Jo conta sem pudor algum, de pé, bebendo água, enquanto eu e
Alex estamos estiradas no chão da quadra.
— Não vejo a necessidade de sabermos disso — comenta Alex,
fazendo uma careta de nojo.
Ela é minha melhor dupla em quadra, mas também posso dizer
que nos enquadramos no mesmo time: o grupo das encalhadas.
Alexandra Coleman é quase tão alta quanto Jo e atua como ala, me
auxiliando nas laterais da quadra, iniciando as jogadas junto comigo.
Sua pele negra é clara, os olhos castanhos, e os cabelos compridos
e cacheados estão presos em um coque desgrenhado graças ao
esforço que acabamos de fazer.
— Jo adora falar sobre sexo. Acho autêntico, apesar de ser um
pouco nojento — pontuo, o jeito de Joanne Hudson é muito peculiar,
mas eu gosto, nunca conheci ninguém com uma atitude assim. Jo é
simplesmente Jo, sem máscaras, sem disfarces.
— E nós vivemos uma vida sexual agitada através dela — Alex
brinca e nós rimos.
Acabamos nos aproximando um pouco mais no semestre
passado, quando Jo estava sofrendo por Anthony. Fomos em
algumas festas juntas e tivemos boas conversas, aprendi uma coisa
ou outra sobre a vida delas, mas nunca compartilhei nada sobre a
minha. Me sinto mal por ser tão fechada, às vezes gostaria que
fosse mais fácil me abrir. Porém, não há muito sobre o meu passado
que seja bonito para dividir.
— Vocês deveriam ter as próprias experiências pra compartilhar
comigo! — Jo joga os braços para cima, empolgada. — Leah, você
já tem seu próprio enemies to lovers em curso, está no caminho
certo!
Reviro os olhos quando a escuto, ela e Alex enfiaram essa merda
na cabeça algum tempo atrás, quando me viram brigar com Kahel
no meio de uma festa.
— Vocês dois estão passando bastante tempo juntos, podem
começar a se enxergar de uma forma diferente e vão se apaixonar
aos poucos! — Alex une as mãos no coração, essa menina vive em
um livro de romance 24 horas por dia.
Nem se eu quisesse, me envolveria com Kahel. Ele é todo
perfeitinho, tem a vida moldada e o futuro certo. Eu sou exatamente
o tipo de garota que ele deve evitar.
— E você, Alex? Como vai seu crush? — desvio o assunto para
ela, doida para tirar o foco de mim.
Alex tem uma quedinha por Joshua Thompson, o astro do time de
futebol americano. Ele é bem bonito e parece um cara legal, pelo
que já ouvi falar.
— Não vai. Não tenho coragem de chegar perto dele. Josh não
sabe que eu existo. No melhor dos cenários, ele lembra de mim
como a menina que caiu da esteira no semestre passado. — Ela
enrola um cacho do seu cabelo na ponta do dedo indicador
enquanto fala, Alex é uma leitora ávida de romances, mas não sei
se já viveu algum. Sinto que ela tem pouca ou nenhuma
experiência.
— Querida, só você tem o poder de mudar isso! — Jo aconselha
e bate com o dedo indicador no nariz de Alex.
Me sinto confortável perto delas e queria muito, muito, poder
dividir um pouco das angústias que tenho sentido. Queria desabafar
sobre o alcoolismo da minha mãe, contar que tive que recorrer ao
meu ex, que terei que arranjar uma coragem absurda para ir atrás
do agiota para quem minha mãe deve e que não faço ideia de como
vou fazer isso sozinha. Tenho tanto guardado, mas simplesmente
não consigo dividir nada com ninguém. Não sei o que me bloqueia.
Se é medo de julgamento, se é costume de puxar tudo sempre para
mim, se é receio de perdê-las, caso descubram minhas origens.
Um apito faz qualquer lamentação sumir da minha mente.
— Red Fox, chega de descanso! Em quadra, já! Formem duplas,
quero que trabalhem sequências de passes pelas laterais e
finalizem com uma bandeja! — a treinadora explica rapidamente o
exercício que já sabemos de cor.
Jo resmunga, deitando no chão e fingindo que está na neve,
balançando os braços e as pernas, mas Alex logo se levanta e
estende a mão para que a amiga se levante também. Em outros
tempos, elas formariam uma dupla e nem perguntariam nada para
mim, mas hoje, somos uma espécie de trio, então as duas me
encaram, esperando que eu diga o que quero fazer.
Olho para a quadra, procurando alguém que esteja sozinha, e
vejo Abby sentada, amarrando seu cadarço, um tanto isolada do
resto do time.
— Podem fazer juntas, vou com a Abby — aviso, piscando para
as duas e correndo até Abby, voltando a aquecer meu corpo.
Paro à sua frente e a loira ergue a cabeça, seus olhos azuis
mostram que está incerta sobre minha presença aqui.
— Quer ser minha dupla? — pergunto e os olhos de Abby
brilham.
— Claro, Leah! Vai ser uma honra! — Ela abre um sorriso largo e
vamos juntas até o cesto de bolas para pegar uma para nós.
Começamos a trocar alguns passes, alternando entre o picado e
o de peito. Abby Miller é o que eu chamo de “patricinha do
basquete”. Usa roupas caras, acabou de ganhar um carro caro, ama
rosa e não deixa de ter um acessório dessa cor nem quando está
treinando. O uniforme das Red Fox é branco e vermelho, então
normalmente usamos alguma meia branca ou preta. Abby, nos
treinos, sempre usa uma rosa, não há como ela não se destacar.
Passo a bola para ela uma última vez, Abby está correndo na
linha externa da quadra, então é ela que começa fazendo a bandeja.
Sua passada é boa, Abby tem pernas fortes e uma boa impulsão,
mesmo sendo a mais baixa de nós. Ela acaba errando a cesta e
olha para mim como se pedisse desculpas.
Pego o rebote e me posiciono na linha externa do outro lado da
quadra, para voltarmos ao exercício. Vejo algumas outras garotas
conversando, mas Abby não abre a boca, continua me olhando
como se esperasse algo de mim, o que, mais uma vez, me lembra
da minha irmã. Sinto que meu papel como capitã, nesse momento,
pode ser útil para alguma coisa. Adoro falar com as jogadoras,
desde que elas estejam dispostas a ouvir.
— Errar faz parte do jogo — começo pelo óbvio, às vezes, acho
que Abby se cobra demais para acertar o tempo todo.
Ela passa a bola para mim com velocidade, me preparo para
fazer a bandeja, dando passos largos e saltando, usando a tabela
para que a bola entre na cesta. Eu mesma pego o rebote e dou a
bola na mão de Abby. Nós duas ficamos segurando a bola,
enquanto ela me fita diretamente.
— Você raramente erra — rebate.
— Ah, eu erro, Abby. Mais do que você pode imaginar. — Dentro
e fora das quadras, mas esse não é o ponto dessa conversa.
Faço um sinal com a cabeça para continuarmos o exercício.
— Tá, você pode até errar, mas é uma jogadora excepcional.
— Agradeço o elogio. Você também é, só precisa acreditar no
seu talento. E amadurecer aqui — aponto para minha cabeça —
para poder brilhar ali — aponto para o centro da quadra. — Se você
não fosse boa, Abby, não faria parte das Red Fox. Coloque mais fé
em você!
Passo a bola para ela com velocidade, Abby agarra o passe com
força, entra no movimento da bandeja com muito impulso e, cacete,
é absurdo o quanto ela voa. Mesmo com sua altura, chega perto da
cesta e dá uma deixadinha perfeita que faz a bola entrar.
— Uhu! — comemora, dando um soquinho no ar, e eu pego a
bola, segurando-a em meu braço.
— Viu? Confiança é a chave do sucesso. — Pisco para ela e
Abby me agradece com um belo sorriso.
Eu adoro fazer discursos emocionais, adoro cuidar das garotas
do time e vê-las melhorar por causa de algo que falei. O basquete é
importante demais para mim, se não fosse por esse esporte, eu não
seria metade do que sou hoje.
Continuo treinando com Abby, nós duas erramos e acertamos,
vamos conversando sobre o jogo, pontuando coisas que podemos
melhorar. O treino acaba pouco tempo depois, as meninas vão
tagarelando para o vestiário, mas eu fico por último, arremessando
um pouco mais, para aliviar o estresse.
Vou até a linha dos três pontos, me desafiando um pouco mais,
querendo fazer meus braços ficarem esgotados. Acerto uma bola
incrível, que é ovacionada por uma salva de palmas. Olho para o
lado e vejo que Scout está sentada no banco das jogadoras, as
pernas abertas, literalmente largada.
— Tá me esperando? — pergunto, certa de que a resposta será
um “não”.
Ela dá de ombros, o cabelo castanho está solto, grudando no
suor do seu rosto.
— Você está muito amiguinha da ex-pegadora, da Miss Sunshine
e da Barbie — comenta e sou obrigada a soltar um riso, só Scout
para apelidar Jo, Alex e Abby desse jeito.
Largo a bola que estava usando no cesto e me sento ao lado de
Scout.
— Isso é ciúmes? — questiono, é engraçado pensar em Scout
Halstead sentindo algo do tipo, quando ela nem mesmo me
considera sua amiga.
Ela bufa.
— Claro que não.
— Sei que nós duas competimos pra ver quem é mais fechada,
mas você devia dar uma chance para as meninas, elas são legais —
comento, porque, diferente de mim, Scout nem tenta se aproximar.
Eu sofro por ser como sou, ela parece gostar de se manter isolada.
— A única ocasião em que aceito receber ordens suas é em
quadra, e mesmo assim não gosto — rebate, com seu jeito mal-
humorado, me provocando.
— Você gosta, senão iria querer bater em mim — constato, Scout
é esquentada e já quase ameaçou bater em uma garota ou outra
que a irritou.
Ela ergue as sobrancelhas escuras, concordando, sem usar
palavras.
— Você está estranha esses dias — diz Scout, me fitando
diretamente.
Apoio as mãos no coração para zombá-la.
— Scout Halstead está se importando comigo? Meu Deus, estou
até emocionada! — brinco e ela me responde com um chute na
minha canela. — Ai! — reclamo, dando um tapinha em seu braço
com o dorso da mão. Posso jurar que Scout dá um meio sorriso.
— Desembucha, James. Aproveite esse momento raro. — Ela se
zomba, conhece a si mesma muito bem.
Suspiro, me perguntando o que posso dizer, sem entregar
demais.
— As coisas na minha casa são complicadas. Estou com uns
problemas.
Scout faz uma careta, fica óbvio que não dei nenhuma
informação relevante a ela porque estou tentando me esconder.
— Ok. Se não quiser falar, não fala, mas eu acho que você
sabe tão bem quanto eu que, dentre todas as Fox, eu
provavelmente sou a única que consegue entender seja lá que
merda está rolando com você.
Sua insistência mexe comigo. Scout não está errada, as meninas
têm uma vida mais estável que nós, sei que ela também tem uma
rotina complicada. Nunca conversamos sobre nossas famílias, mas
tenho para mim que ela é tão ferrada quanto eu. E talvez seja a
única com quem posso dividir uma parte da história que tem tirado
meu sono.
— Ok, vou te contar algumas coisas, mas saiba que preciso da
sua ajuda — adianto, rezando para que Scout não me deixe na
mão.
— Abre o jogo, James. — Ela faz um sinal para que eu continue,
fico surpresa pela abertura e resolvo que preciso aproveitar.
Posso confiar em Scout.
— É um assunto complicado...
Atacando, defendendo
Até que não haja mais nada que valha a pena ganhar
Seu orgulho e meu orgulho
Não desperdice meu tempo

Don’t Wanna Fight – Alabama Shakes

Paro no meio da quadra, apoiando as mãos nos joelhos e


inclinando o tronco para tentar respirar. Porra, acho que é o treino
mais difícil que já fiz na vida. O treinador Morrow nos fez treinar
arremessos incansavelmente, depois montou pequenos grupos para
treinarmos jogadas e agora nos fez pagar suicídio, a penitência que
está nas nossas costas desde a festa em que bebemos demais.
Tudo bem que eu incentivei o time a farrear e que há vídeos
meus jogando tequila na boca de todos os jogadores, mas acho que
já aprendemos a lição. Ficamos de ressaca, o treino foi uma merda,
perdemos o dia porque estávamos estragados. Foi errado, vamos
tentar evitar repetir o feito. Digo tentar, porque nunca se sabe.
Somos universitários. Vai que aparece uma oportunidade de uma
festa imperdível?
— Williams! Está parado por quê? — o berro do treinador faz com
que eu volte a correr na hora. — Vai fazer duas séries a mais por ter
descansado! — ordena e eu resmungo, as vezes não sei se ele me
ama ou me odeia, se quer me fazer pagar pelos meus erros e me
fazer aprender uma lição ou se só é sádico e gosta de me ver sofrer.
Os garotos começam a acabar suas séries e vão se unindo em
grupos para alongar o corpo, eu continuo correndo sem parar,
tentando manter minha mente focada, coisa que tem sido difícil
ultimamente.
Costumo ser o cara que mais corre no time, para compensar
minha altura. Não sou o maior, mas sou o mais ágil, o que pontua
mais nos jogos e faz mais assistências. Meu pai me ensinou, desde
criança, que eu devia trabalhar em ser o melhor no que eu podia
fazer, e deixar que os outros fizessem as funções que não
desempenho muito bem. Jogar em equipe é manter o equilíbrio
entre os jogadores, é ter cinco titulares com especialidades
diferentes. Sempre gostei dessa linha de raciocínio, mas, hoje, não
consigo manter meu desempenho nem na área em que sou bom.
Correr está me deixando esgotado. Talvez tenha sido o resquício
dos excessos do final de semana, já que, após o almoço na casa do
meu pai, eu, Seb, Mav e Miranda fomos para o Koala’s, bar
universitário mais badalado da região, e ficamos lá até o lugar
fechar. Não bebi tanto quanto na festa, mas, ainda assim, bebi. E
agora até uma tartaruga venceria de mim nessa corrida.
— Vai, capitão! — um dos garotos do time grita.
— Acelera isso aí, Williams! — Maverick acompanha e uma onda
de zoação começa.
Os berros são incentivo para que eu vá até o limite. Quando
termino, os Tigers me aplaudem e me vangloriam, como sempre
fazem, com tudo o que faço. Eu deixo que me achem o maioral
enquanto ainda estão me vendo, mas, assim que seguem rumo ao
vestiário, me deito no chão, completamente exausto. Todos os
músculos do meu corpo doem. Sinto que não consigo mais respirar.
— Levanta daí, garoto. — A voz do treinador me assusta, jurava
que estava sozinho e que poderia ter meu momento de paz.
Fico de pé e ajeito a bermuda do time, como se nada tivesse
acontecido. Se tem uma coisa que odeio, é que alguém me veja
fraquejar.
— Você sabe que acredito em você, não sabe? — Ele apoia uma
mão na minha bochecha suada e assinto, apesar de não ter tanta
certeza. — E que minhas broncas são para te ajudar?
— De novo essa história? — rebato, cansado dessa merda. — Já
falei que sinto muito por ter feito todo mundo encher a cara! Sei que
tenho que dar o exemplo e blá blá blá, mas os caras são adultos,
eles quiseram beber até cair e foi isso o que fizeram!
Quando termino de falar, sinto que exagerei, mas que se foda.
Faz quase uma semana que essa história está me rondando.
Chega.
— Kahel, você me disse, quando entrou nessa faculdade, que
queria seguir os passos do seu pai. Sua técnica é impecável, mas
você não tem a cabeça de um atleta profissional. Quanto antes
entender que precisa amadurecer para chegar aonde você quer,
mais fácil será seu caminho.
Engulo em seco enquanto o escuto, sentindo o baque de suas
palavras.
Desde que me conheço por gente, quero ser draftado e ir para a
NBA. Passei a infância vangloriando meu pai, vendo-o ser
premiado, ganhar campeonatos importantes e ser um líder para o
seu time. Entrei na KSU com a ideia fixa de ser como ele, porém,
hoje em dia, não sei mais se quero essa vida para mim. Eu teria que
abrir mão de muita coisa para entrar na rotina exaustiva de um
atleta profissional e, sei lá, sinto que não é para mim.
— E se eu tiver mudado de ideia? — rebato o treinador, percebo
que ele fica surpreso quando me escuta, até eu fico surpreso por
estar dizendo isso em voz alta.
— Então, tudo bem. Porém, certifique-se de estar mudando de
ideia pelos motivos certos, e não por querer fugir de
responsabilidades.
— Eu não fujo de responsabilidades. Faço tudo o que você me
pede, treinador. — Não resisto e preciso retrucar na hora. Ele franze
a testa, duvidando do que digo. — Ok, quase tudo — admito, porque
sei que falho aqui e ali. — Mas minha mudança de perspectiva não
está ligada a isso, fique tranquilo. Estou só pensando no que quero
para mim.
O treinador assente devagar, parece não acreditar no que estou
dizendo. Ele dá dois tapinhas amigáveis no meu ombro, esboçando
um meio sorriso paternal.
— Seu pai estará orgulhoso de qualquer caminho que escolher,
Kahel. Só pense com carinho para não se arrepender.
Sua frase me toca mais do que ele deve sequer imaginar.
Porque, no fundo, tudo isso gira em torno do meu pai, do seu talento
e da sua carreira. Jordan Williams foi um jogador inesquecível. E
quem eu seria, se escolhesse esse caminho? O filho do Jordan? O
garoto que tentou seguir os passos do pai, mas não foi metade do
que o mais velho foi? Não sei se quero viver com essa pressão em
cima de mim. Como o treinador mesmo disse, não me sinto maduro
o suficiente para lidar com isso.
— Obrigado, treinador Morrow — agradeço, nesse momento,
acreditando que ele me ama.
— Garoto, me agradeça quando vocês estiverem no March
Madness — brinca, deixando sua vontade exposta.
Dou risada, assentindo em concordância. Tudo o que mais quero,
para esse ano, é chegar no March Madness. Os Tigers têm
potencial para isso, porém, ainda precisamos mandar bem no
torneio das conferências para nos classificarmos. O que significa
que não podemos ter um desempenho de merda nos treinos, logo,
não podemos encher o rabo de cerveja e querer vir jogar no dia
seguinte.
O choque de responsabilidade me atinge porque, caralho, se eu
quiser estar entre os melhores do país, preciso me empenhar para
isso. Já não basta ter perdido a final da temporada regular, o que
me deixou tremendamente infeliz e com o ego ferido. Odeio perder.
— Chegaremos ao March Madness, treinador. Não há escolha. —
Soo determinado e percebo o quanto devo estar soando indeciso,
uma hora fico bravo pela cobrança, na outra abraço meu papel de
capitão. É uma confusão constante dentro de mim.
— Antes de eu ir, como vai seu trabalho com a capitã das Red
Fox? — sua pergunta me faz soltar uma risadinha irônica.
— Ela é um pouco complicada. — É tudo o que eu tenho a dizer.
Leah mal respondeu minhas mensagens essa semana. Ela é
atarefada demais e está constantemente ocupada, é uma bosta.
— Bom, o importante é que você faça sua parte. Essa
arrecadação é essencial para o basquete da KSU, é o que vai
garantir que tenhamos conforto no ano que vem — reforça o que eu
já sei de cor.
Não somos times tão grandes assim e o departamento esportivo
não tem a grana que precisamos para nos manter no campeonato,
então, convencer Leah a aceitar minha ideia de fazermos um baile
precisa ser minha prioridade.
— Pode deixar, treinador. Não vou decepcioná-lo — falo o que
ele quer ouvir, sabendo que preciso obter sucesso nessa
empreitada para não só cumprir o que nos foi proposto, mas para
limpar minha imagem de arruaceiro e irresponsável, para o caso de
eu querer, um dia, ser draftado.

Depois de tomar um banho e estar perfumado dos pés à cabeça,


dirijo até a Small Snack, lanchonete onde Leah trabalha. Nem a
avisei que estava vindo, imaginei que a ruiva não fosse me
responder. Duvido que ela pegue no celular quando está no
trabalho. Leah é muito certinha para isso.
O sino da porta denuncia a minha entrada e aproveito para dar
uma olhada no local. As mesas são todas próximas às janelas e em
um formato típico de lanchonetes, com dois bancos sendo
separados por uma mesa. Há poucos lugares ocupados, mas todos
estão repletos de universitários. Uma garota de cabelo rosa está
atendendo uma mesa, contudo, é pelo cabelo ruivo de Leah que
procuro.
Olho para o balcão e vejo que Leah está lá, contabilizando um
maço de dinheiro. Eu deveria me locomover e ir até ela, mas algo
me prende no lugar. Demoro alguns segundos para perceber que é
o fato de eu finalmente vê-la. Leah costuma usar o cabelo todo
solto, só tira o boné da cabeça para treinar, sempre parece querer
se cobrir. Nesse momento, Leah está com o cabelo preso em um
coque bagunçado. Alguns fios mais curtos caem em seu rosto,
dando um toque descontraído para o visual. Sua expressão sempre
se mostra fechada para mim, porém, ela não sabe que estou aqui,
então sua feição está diferente. Ela está concentrada em contar o
dinheiro, até morde um pouco o lábio inferior, como se isso a
ajudasse a manter o foco.
Quando parece terminar sua função, Leah bate o maço de
dinheiro no balcão para ajeitá-lo e esboça um sorrisinho. Ela sorri.
Não parece um gesto de alegria, e sim de alívio, mas ainda assim,
traz uma visão completamente nova de Leah James. Uma visão que
me fez permanecer parado na porta até agora.
O problema é que a capitã marrenta nota que há alguém a
encarando. E quando vê que sou eu, volta a ser a garota que
conheço.
— O que está fazendo aqui? — pergunta, recolhendo o maço de
dinheiro com certo desespero e guardando-o atrás do balcão,
provavelmente devolvendo para o caixa da lanchonete.
Suspiro antes de me aproximar, tomando coragem para enfrentar
a fera. Leah vai ficar doida por eu ter vindo até a lanchonete.
Puxo o banco à sua frente e me sento, apoiando os antebraços
no balcão e abrindo um sorriso amigável. Leah cruza os braços e se
fecha na mesma hora. Estamos caminhando para um ótimo lugar,
como sempre.
— Você está muito atarefada, então vim até você! — falo com
certa empolgação, que não é transmitida para ela. — Podemos
voltar a falar sobre a arrecadação, decidir qual ideia vamos usar... —
Minha voz fraqueja quando percebo que Leah não está na mesma
vibração que eu.
Tomo um susto quando ela apoia as duas mãos com força no
balcão, fazendo com que eu quase caia do banco. Seus olhos
verdes furiosos deixam claro que preciso tomar cuidado com o que
vou dizer.
— Estou trabalhando, seu sem noção! Não posso simplesmente
parar e conversar com você! Tenho clientes pra atender!
Eu sabia que ela ficaria puta. Acho que estou começando a
compreendê-la. Já vim com a solução perfeita em mente.
— Você pode conversar com seus clientes, não pode? —
pergunto, fazendo minha melhor expressão de garoto travesso, uma
que eu sei que ela odeia.
Leah respira fundo e bufa quando solta o ar, olhando para baixo,
provavelmente, pedindo ao Diabo que me busque e me leve direto
para o inferno. Quando olha de volta para mim, percebo que está se
controlando para ela mesma não me mandar para o inferno.
— Sim, posso conversar com os clientes. — Ela exibe certa
relutância, mas dá a resposta que quero ouvir.
— Ótimo. Então quero um milkshake, princesa. — Assim que
escuta o apelido, me olha feio. — Um milkshake de chocolate, por
favor, minha querida Leah. — Mudo meu discurso. A fuzilada de
Leah não muda.
Ela vira de costas para mim para ir preparar o tal milkshake.
Reparo que está de calça jeans e regata, por baixo do avental roxo
da Small Snack. Eu sempre a vejo com camisas largas ou com os
shorts do uniforme do time, então me surpreendo quando meus
olhos vão direto para sua bunda empinada. Imaginei que Leah
tivesse um corpão, mas essa calça justa está... Não, Kahel. É Leah
James. Ela não gosta de você, é rabugenta e controladora.
O alerta de perigo da minha mente me faz olhar para a cabeça
dela. De agora em diante, ficarei focado em seu cabelo ruivo. É
melhor.
Não demora para que Leah se vire de volta para mim, agora com
um copo gigante em mãos.
— O grande capitão toma milkshake de chocolate no meio da
semana? — ela pergunta quando pousa a taça à minha frente.
— Para você ver como estou empenhado nessa arrecadação. —
Puxo o copo para mim e posiciono minha boca no canudo, dando
um longo gole no milkshake. Meu cérebro quase congela, preciso
empurrar o copo para longe na hora e apoiar as mãos na cabeça.
— Você é imaturo até tomando um milkshake. — Leah nega com
a cabeça, eu nem consigo retrucar, de tão prejudicado que estou.
Demora alguns segundos até que eu volte ao normal, tempo em
que Leah fica me encarando com seu melhor olhar de desprezo. Ela
tem uma variedade incrível de encaradas. Impressionante.
— Sobreviveu? — questiona, cheia de ironia.
Assinto devagar, organizando minhas ideias para enfim falarmos
sobre o que interessa.
— Andei pensando sobre o que conversamos no domingo. Acho
que podemos encontrar um equilíbrio para nossos projetos. — Trago
o assunto à tona, pensei nisso quando estava no chuveiro, o melhor
lugar do mundo para se pensar.
— Sou toda ouvidos.
— Podemos fazer as duas coisas. — Leah arregala os olhos
quando me escuta. — Começamos com a venda de garagem e com
o dinheiro que arrecadarmos, investimos no baile. Dessa forma, nós
dois saímos felizes e você se sente mais segura. Vamos encarar a
verdade, Leah, nós jamais entraríamos em um acordo.
— É, nós não entraríamos — admite, seus lábios formando um
leve sorrisinho.
— Então, o que acha? — pergunto, querendo seu aval para
podermos, enfim, continuar planejando essa merda. — Quanto
antes tirarmos isso da frente, melhor. Quero me focar no
campeonato.
O torneio das conferências começa em duas semanas e
precisamos arrasar para chegar ao March Madness. Será um
período tenso, não quero mais preocupações. Imagino que Leah irá
me entender, é óbvio que ela quer que as Red Fox tenham o melhor
desempenho possível.
Leah tamborila os dedos no balcão, pensativa, alternando o olhar
do teto para mim. Fico em dúvida se está demorando para decidir
porque realmente é uma pessoa difícil de se convencer ou porque
quer se fazer de difícil para mim. De alguma forma, tenho a
convicção de que ela gosta de complicar as coisas, quando eu estou
envolvido.
— Ok, vamos dizer que eu concorde com essa ideia. Teríamos
que começar o mais rápido possível, falar com os times ainda essa
semana...
— Espera, estou ouvindo direito? Leah James está topando
minha proposta? — indago, apoiando a mão no peito, para
dramatizar minha atuação.
Leah não consegue evitar. Ela revira os olhos, mas o sorrisinho
divertido não sai do seu rosto.
— Sim, Kahel, estou dentro. Vamos fazer as duas coisas.
Levanto do banco quando a escuto, improvisando uma dancinha
comemorativa. Faço uma tentativa de moonwalk e ondulo meus
braços, espalhando minha felicidade por aí. Leah só fica negando
com a cabeça, até apoia a mão na testa, inconformada com o que
estou fazendo.
Me jogo de volta no banco, tomando mais um gole do milkshake,
agora sem sentir que meus neurônios foram morar no castelo da
Elsa.
— Nós vamos arrasar, James! — Estendo a mão em um high-five
para que ela me cumprimente, mas Leah só fica me olhando com as
sobrancelhas erguidas. — Vai, princesa! Só uma vez! — insisto, até
que resolvo me debruçar no balcão para puxar seu braço.
Leah se esquiva do meu toque, mas vê que não há escapatória e
retribui o cumprimento com má vontade. Só para envergonhá-la,
jogo meus braços para cima e solto um grito comemorativo.
— Quem é o animado? — A garota de cabelo rosa, colega de
trabalho de Leah, pergunta quando aparece ao meu lado.
Não a conheço, então imagino que não estude na KSU. Todos os
alunos sabem quem eu sou.
— Kahel Williams, é um prazer te conhecer. — Estendo minha
mão para cumprimentá-la, lançando meu melhor olhar galanteador,
meu sorriso mais simpático.
— Sloan Ono. É definitivamente um prazer — responde, me
encarando de forma maliciosa, afetada pelo meu charme. Ninguém
nunca resiste.
Ouço Leah bufar atrás do balcão, é certo que está irritada por eu
ter brincado com sua amiga. Aproveito a deixa para passar o braço
no ombro de Sloan, nos posicionando de frente para Leah.
— Doeu concordar comigo, capitã? — pergunto, focando meu
olhar galanteador, dessa vez, em Leah.
Ela revira os olhos, cansada do assunto, de mim, da situação em
geral. Aparentemente, há alguém que resiste ao meu charme. E
claro que esse alguém seria Leah James.
— Foi um sacrifício enorme. — Seu tom sarcástico me
surpreende, ela mantém a expressão séria, mas brinca comigo da
mesma forma que brinco com ela.
— Sloan, você está gravando esse momento histórico? Leah
James acabou de ceder e concordar com o meu plano. — Aponto o
dedo indicador para o meu peito, enfatizando o acontecimento.
Sloan dá risada, Leah revira os olhos pela centésima vez no
diálogo.
Solto a garota do cabelo rosa para me aproximar de Leah outra
vez, erguendo minha mão para que façamos um novo high-five.
Leah não parece muito disposta, mas sabe que não vai escapar,
que sou insistente e que consigo sempre o que quero. Tocamos
nossas palmas de novo, ela revira os olhos de novo, Sloan gargalha
de novo, deve estar achando nossa relação o máximo.
Pego minha carteira e jogo uma nota no balcão, para pagar meu
milkshake.
— Já vai? Que pena! — Leah diz, a voz carregada de ironia, um
biquinho triste e fingido se esboçando em seus lábios.
— Não chore de saudades, princesa. — Vou me afastando
devagar, apontando para ela antes de abrir a porta. — Falamos com
os times juntos, na sexta-feira, logo depois do treino. O que acha?
— Sexta-feira. Estarei lá — concorda e eu mais uma vez a
zombo, apoiando minha mão no peito para mostrar que estou
emocionado. — Vai embora, Kahel — pede, mas sinto que, no
fundo, quer dar risada da minha reação.
Acho que estou quase amolecendo o coração de pedra de Leah.
Viro de costas para abrir a porta e fazer o que ela pediu, mas
escuto quando Sloan pergunta a ela: — Uau, quanta química! O que
tá rolando entre vocês?
Paro o movimento só para poder escutar a resposta de Leah.
— Química? Entre mim e Kahel? — ela solta uma risada áspera.
— Nossa, nada nunca aconteceria entre nós. — Apenas de ouvi-la,
consigo perceber que Leah sente um certo nojo só de pensar nesse
cenário.
Abro a porta e desço os degraus do restaurante, me afastando da
conversa para não acharem que escutei alguma coisa. Não sei por
que, mas só quando estou no meu carro, que percebo ter ficado
triste por Leah ter falado de mim dessa forma, como se a hipótese
de um amor entre nós fosse algo totalmente impensável.
Ninguém vai prejudicá-la
Ninguém vai ficar no seu caminho
Ninguém vai barrar você
Nada vai ficar no seu caminho

Heaven – The Rolling Stones

— Estou me sentindo dentro de um filme policial.


— Ainda há tempo de recuar.
— E perder toda a diversão? Jamais! — Scout me puxa para
dentro do restaurante antes que eu tenha a chance de responder.
Ela parece até estar animada com o fato de estarmos prestes a nos
reunir com um agiota.
Adiei minha visita a Jeff King, mesmo depois de ter dito a ele que
eu tinha o dinheiro para pagar a dívida da minha mãe. Fiquei com
medo de encontrá-lo sozinha, assustada com o que ele poderia
fazer comigo, preocupada com a possibilidade de ele aumentar a
dívida de última hora, achando que eu cairia facilmente na sua lábia
por ser apenas uma jovem. Não quis pedir para Axel vir comigo, ter
pedido dinheiro a ele já ultrapassou mais limites do que eu gostaria.
Então, quando Scout me perguntou o que estava acontecendo e
praticamente ofereceu ajuda, fui contra todos os meus princípios e
aceitei.
Axel me passou o número que King usa para fazer negócios e
combinamos esse encontro, em um restaurante chinês perdido no
meio do nada. Mesmo estando de dia, o lugar é muito escuro em
seu interior, graças às paredes pintadas de vinho. Escolhemos uma
mesa mais ao fundo, isolada o suficiente para que ninguém escute
nossa conversa.
Não contei à Scout detalhes sórdidos sobre minha vida, só disse
que precisava pagar uma dívida da minha mãe. Porém, depois que
uma garçonete vem nos atender, sei que é minha última
oportunidade de esclarecer as coisas. Se King comentar alguma
coisa sobre os vícios da minha mãe, vou ter que me explicar de
qualquer forma. Melhor abrir o jogo agora.
Espero até que Scout termine de pedir sua água, para me virar
de frente para ela.
— Olha, sei que essa é uma situação tensa...
— Imagina! Encontro agiotas todas as terças e quintas — ironiza.
Scout se faz de durona, mas está se cagando tanto quanto eu.
— Acho que você precisa saber o real motivo que nos trouxe aqui
— introduzo o assunto, antes que eu perca a coragem.
— Sua mãe tem uma dívida, não é? — ela devolve e a garçonete
aparece com sua água. Eu não tenho forças para beber ou comer
no momento, estou tão nervosa que chego a ficar enjoada.
— Sim, mas eu não te disse por que ela tem uma dívida. — Scout
assente quando me ouve, sinalizando para que eu continue. —
Minha mãe é alcoólatra — revelo de uma vez. Se eu pensar muito,
vou recuar. — Ela tem lutado com o vício há muito tempo, passa
longos meses sóbria, mas tem uma recaída aqui e ali. Desde que
meu pai morreu, as coisas desandaram e as recaídas se tornaram
um estado constante. — Olho para minhas próprias mãos, nervosa
por falar de algo tão pessoal. — Minha mãe precisava pagar
algumas pessoas e não tinha a grana, então recorreu ao King. O
problema é que ele é barra pesada, se você estourar o prazo que
ele te deu inicialmente, King te persegue e faz da sua vida um
inferno.
Scout assente devagar, parece compreender a situação. Fico
com medo de ela recuar ou se assustar, mas minha amiga — colega
de time, que seja — nem se mexe.
— Ele já estava no estágio da perseguição? — questiona,
realmente parecendo curiosa.
— Sim. Chegou a ir atrás de mim e da minha irmã dentro de um
supermercado, mas não passou disso. E estou aqui para me
certificar de que não passe. — Dou dois tapinhas na minha bolsa,
onde guardo o dinheiro que Axel me emprestou.
O mesmo dinheiro que Kahel me viu contando ontem. Quando
percebi que ele tinha entrado na Small Snack, quase tive um treco.
Não é normal ver alguém com tanto dinheiro em mãos e Kahel é
curioso, fiquei com medo de que ele perguntasse alguma coisa e eu
não soubesse disfarçar. Por sorte, escondi o maço na minha bolsa,
que estava atrás do caixa, e ele não conseguiu saber ao certo de
onde vinha o dinheiro.
— Se esse tal de King tentar qualquer coisa, posso socar a cara
dele — Scout oferece, é impressionante o quanto ela gosta de dizer
que vai bater nas pessoas. Nunca a vi efetivamente cumprir o que
diz, mas não duvido que o faça.
— Você sabe lutar de verdade ou é só pose? — indago,
agradecendo por ela não ter feito mais perguntas sobre a minha
família. Por algum motivo, tenho para mim que Scout não aprofunda
o assunto por respeito a mim, porque sabe que é um tópico dolorido,
e não porque não se importa. Na verdade, só o fato de ela estar
aqui já mostra que se importa.
— Faço muay-thai. Posso acabar com ele — afirma, e a
convicção em sua voz quase me convence. Quase.
Espremo os olhos na direção dela, que logo percebe que não
comprei sua tranquilidade.
— Seria idiotice não estar com medo desse tipo de gente, mas,
haja o que houver, não deixe que ele saiba disso — ela fala e
consigo entender um pouco mais suas reações. Scout parece
entender de situações desse tipo, o que é algo, definitivamente,
curioso.
Eu gostaria de questioná-la sobre isso, mas não vou. É melhor
mudar de assunto.
— Não sabia que você lutava muay-thai — digo, acho que nunca
nem a ouvi comentar sobre isso.
Scout dá de ombros.
— Tem muita coisa que você não sabe sobre mim — devolve e
seus olhos castanhos se perdem no horizonte, trazendo um ar
sombrio para a conversa.
Scout tem uma aura meio dark. Seu visual condiz perfeitamente
com o que afirmo, já que a ala-pivô das Red Fox usa coturnos, uma
calça preta colada ao corpo, camiseta branca e jaqueta de couro. O
que sei sobre ela se resume a ser uma jogadora de basquete
incrível, estudar economia e ter um namorado que nunca levou para
a toca das raposas. Fora isso, Scout é um completo mistério.
— Um dia, se você se sentir segura o suficiente para deixar que
eu te conheça de verdade, estarei aqui. — Esbarro no ombro dela
de leve quando falo, me colocando à disposição, sentindo que
podemos dar esse passo em nossa amizade.
Scout espreme os olhos na minha direção, mas lá no fundo, bem
lá no fundo, sinto que ela absorve o que digo. Tenho certeza de que
ela tem muito a contar.
Ouvimos passos firmes se aproximando, tirando toda a paz do
nosso diálogo. Seguro a mão de Scout no momento em que encaro
King. Ela me fita quando nossas peles se tocam, o ato é
completamente inesperado, eu sei. Porém, ao notar meu semblante,
ela percebe que estou terrivelmente assustada, precisando do seu
amparo.
— King. — Arranjo forças para cumprimentá-lo.
O mais velho mexe em seu bigode branco e abre um sorriso
sarcástico. Vejo que ele trouxe mais dois capangas, como sempre.
Os homens permanecem em pé quando King se senta.
— Você foi rápida, pequena James. — Não gosto da forma como
ele pronuncia meu sobrenome.
Na verdade, não suporto Jeff King de maneira alguma. Meu pai já
pegou dinheiro emprestado com ele uma vez. Era uma quantia
menor e papai conseguiu sair da situação, mas ele não está mais
entre nós. No momento atual, me sinto vulnerável e sozinha, mesmo
que Scout esteja aqui ao meu lado. Querendo ou não, o problema é
somente meu.
— Trouxe a quantia que você pediu — anuncio, soltando a mão
de Scout para pegar minha bolsa. O maço de dinheiro está gelado
contra minha palma, tão frio quanto eu preciso ser nesse momento.
King estende a mão para receber sua grana, eu ameaço entregá-la,
mas recuo, surpreendendo-o.
Lembro de ter por volta de dez anos quando meu pai precisou
lidar com King. Ele nos abordou no meio da rua, quando estávamos
voltando da pista de skate. Meu pai me escondeu atrás do seu
corpo, em uma tentativa falha de me proteger. King o cobrou, os
dois discutiram sobre a quantia e prazos de pagamento, e meu pai
afirmou que o pagaria no dia seguinte. Fiquei impressionada com
sua frieza, já que ele era um homem doce na maior parte do tempo.
Perguntei como conseguia agir assim e meu pai me disse “Você não
pode mostrar fraqueza em situações como essa, Leah. Mesmo que
esteja com medo, mesmo que se sinta inferior, você precisa fingir
estar confiante e tomar as rédeas da conversa.”
É a essa frase que me apego para fazer o que preciso fazer.
— Vou te entregar o dinheiro, conforme combinado. Mas vou
precisar que você me prometa uma coisa, King — falo com a voz
firme, mantendo minha aparência plena, ainda que meu coração
esteja disparado.
— Garota... — ele me interrompe, mas não deixo que continue.
Apoio as duas mãos na mesa com força, seus capangas até
ficam em alerta.
— Se minha mãe te pedir dinheiro de novo, você não vai dar.
King solta uma risada, definitivamente, não me levando a sério.
— Eu faço o que os meus clientes querem, pequena James.
Imaginei que ele não cederia tão facilmente. Jogo o dinheiro na
sua direção, pronta para usar outro argumento.
— Pegue. Coloquei uma quantia extra para te incentivar.
King divide o dinheiro entre seus capangas, eles conversam entre
si enquanto conferem a quantia, sinalizando para King quando
terminam.
— Não costumo ser subornado. Admiro sua coragem — diz, mas
eu sei que ainda não me leva a sério.
Terei que apelar.
— Esse dinheiro extra veio diretamente das mãos de Axel
Norman. Não sei se você sabe, mas nós já namoramos e ainda
temos um carinho enorme um pelo outro. — Uma grande e
tenebrosa mentira, mas que se foda. — Axel não ficaria feliz se você
descumprisse meu pedido. — Faço um biquinho com os lábios,
fingindo tristeza, quando no fundo, quero sumir daqui.
Eu odeio o fato de King não me respeitar. Odeio que sua
expressão mude, quando cito o nome de Axel. Não só por ele ser
um traficante conhecido, mas por ser a porra de um homem.
— Ok, pequena James. Você venceu. Tentarei evitar ao máximo
fazer negócios com a sua mãe novamente. Satisfeita? — pergunta,
abrindo outro sorriso sinistro.
— Estaremos satisfeitas quando você sumir da nossa frente —
diz Scout e eu a encaro, chocada por ter se manifestado dessa
forma, depois de tanto tempo em silêncio.
Ela se mantém impassível, as sobrancelhas erguidas, o cabelo
parcialmente preso, os olhos escuros encarando King diretamente.
Scout Halstead colocando medo nos marmanjos, senhoras e
senhores!
King não se afeta, entretanto, acho que ele não nos daria crédito
nem se viéssemos para esse encontro armadas. Ele se levanta com
a maior calma do mundo, fazendo uma reverência para nós antes
de sair, levando o dinheiro que peguei emprestado de Axel consigo.
É só quando ele já está na rua que sinto o ar voltando para os
meus pulmões.
— Que merda foi essa! — Scout se manifesta. — Estávamos
presas em um episódio de Blindspot? Ou era só um documentário
de baixo orçamento sobre a criminalidade dos bairros mais pobres
dos Estados Unidos?
Acabo rindo do seu comentário completamente sem filtro. A
risada emenda em uma reflexão consciente. Enfrentei Jeff King,
paguei a dívida da minha mãe, agi de uma forma que nunca tinha
agido antes.
— Acho que vou vomitar — solto quando sinto meu estômago
revirar.
— Se for vomitar, que seja longe de mim — Scout fala e já se
levanta, se sentando à minha frente, para colocar uma distância
entre nós.
— Só estou nervosa, não foi um momento muito agradável.
— Mas você mostrou para o que veio, capitã! Gostei da atitude!
— elogia, com uma animação bizarra. Só Scout para estar desse
jeito depois de uma conversa dessas. — A propósito, quem é Axel?
Você falou que namoraram... — questiona e eu respiro fundo.
— É, ele é meu ex.
Scout esboça um meio sorriso lateral malicioso, deve estar
imaginando coisas que não chegam nem perto da verdade.
— Garoto problema? Usa jaqueta de couro?
— Muito problema. Nós não gostamos dele. Não mais. — Corto o
barato de Scout, ela não é tão fanfiqueira quanto Alex, mas não
quero que tenha qualquer ideia errada a respeito de mim e Axel.
Quero distância dele.
— Ok, já vi que a história é complicada. Vai me contar? —
indaga, firme, interessada demais na minha vida para alguém que
não me fazia perguntas até algumas semanas atrás.
— Vou. Mas vamos para um lugar menos esquisito, por favor —
peço, fazendo uma careta para o ambiente escuro, ansiosa para sair
do lugar onde tive que agir contra todos os meus princípios.
Só espero ter resolvido esse problema de vez. Já tenho muito
com o que me preocupar com minha vida universitária. Não há
tempo para regredir e voltar para esse lugar.
Aproveitei que estava na região e liguei para Hailey. Ela estava
saindo da escola e pediu que nos encontrássemos na pista de skate
onde meu pai costumava me levar. Minha irmã deve ter sentido que
eu estava abalada, sua percepção sobre meus sentimentos é
sempre muito afiada.
Não contei a ela que vim até aqui para pagar a dívida da nossa
mãe, mas sei que Hailey imagina. Mesmo que eu tente ao máximo
mantê-la longe das complicações da nossa progenitora, Hales
acaba envolvida. Quando se tem uma mãe alcoólatra, é impossível
não se envolver.
Ainda assim, me orgulho de dizer que consegui fazer Hailey ter
um coração menos quebrado do que o meu. Ela é uma garota
ferida, sem dúvidas mais madura do que as outras pessoas da sua
idade por conta de nossa vida conturbada. Porém, minha irmãzinha
ainda sorri naturalmente.
Hailey está com suas habituais tranças no cabelo, um macacão
jeans e sua câmera fotográfica pendurada no pescoço. Ela está se
posicionando nos lugares mais inusitados da pista, buscando o
melhor ângulo para fotografar os skatistas. Desde pequena, Hailey
gosta de tirar fotos. É um hobby que acredito ter grande
possibilidade de virar uma profissão, então a incentivo sempre que
posso. Juntei dinheiro durante o ano passado inteiro para comprar
uma câmera decente para ela. Quando dei o presente, minha irmã
ficou com uma expressão tão boba, tão encantada, tão feliz. E é só
com isso que me importo. Com ela sendo feliz.
— Então, no fim das contas, você viveu um relacionamento
abusivo — Scout conclui e eu desvio o olhar de Hailey para encará-
la.
Agora, minha amiga está de óculos escuros, nós duas sentadas
em um banco da pista, encostado à grade. Passei a última hora
contando sobre minha história com Axel, dividindo detalhes que eu
nunca tinha dividido com ninguém. Scout se soltou na conversa, eu
me soltei, foi como se nós, pelo menos nesse tempo, quebrássemos
todas as nossas barreiras. Sei que foi coisa do momento, mas não
ligo. Eu não sabia que precisava tanto falar sobre essa história em
voz alta até Scout começar a me questionar.
— Demorei muito para perceber que ele não fazia bem para mim,
que as coisas que ele me induzia a fazer não eram saudáveis. Me
desapegar foi complicado. — E também dolorosamente cruel. Axel
fez da minha vida um inferno. Por isso eu não queria ir atrás dele.
Mas agora já foi. Não há como voltar atrás.
— É por isso que você nunca fica com ninguém? — pergunta,
direta e reta.
Franzo a testa para ela, nós duas desviamos o olhar quando um
garoto faz uma manobra perto demais da gente. As pessoas que
frequentam essa pista sabem o que estão fazendo.
— Eu fico com alguns caras. Só sou discreta. Não tenho tempo
para ficar correndo atrás de homem. — Dou várias justificativas,
mas, no fundo, sei que Scout está certa. Axel gerou em mim um
certo trauma de relacionamentos. Eu não transei com ninguém
depois dele. Nem sei se gosto de sexo.
— Leah, nós moramos com Joanne Hudson. Ela, sim, fica com
alguns, no caso muitos, caras. Bom, ficava, antes de namorar o
nerd. — Enquanto Scout se corrige, dou risada, porque Jo levava
para casa um cara diferente por noite. Só nós sabemos o tanto de
vezes que ouvimos essa garota gemer. — Mas, enfim, o ponto aqui
é que você não pega ninguém e eu tenho certeza de que é por
causa desse babaca.
— E você, que nunca nem nos apresentou seu namorado? Qual
o problema com ele? — questiono, tentando desviar o foco.
Scout faz uma careta e bufa, ela não para de perguntar sobre
mim, mas quando retribuo as perguntas, sempre se esquiva.
— Eu não sou o assunto do dia — retruca e eu posso quase
afirmar com certeza que há algo envolvendo seu namorado
misterioso.
— Ei, meninas, olhem aqui! — Hailey corta nosso diálogo, me
salvando de ter que responder Scout.
Ela aponta a câmera para nós, sinalizando para que façamos
uma pose. Olho para Scout para ver sua reação e ela acaba me
olhando no mesmo momento.
— Fiquem desse jeito! — Hailey pede e continuamos paradas, as
duas com a cara fechada, do nosso jeitinho habitual, fazendo jus a
imagem que entregamos para os outros. — Agora deem um sorriso,
pelo amor de Deus! — Rimos do pedido dela, até dou uma ajeitada
no meu cabelo, para que fique melhor na foto. — Cacete, ficou linda!
Hailey corre até nós, quase esbarrando nos skatistas, só para
poder nos mostrar as fotos. Ela agacha ao nosso lado e vai
passando as imagens. Dá para ver nitidamente a versão que todo
mundo enxerga, das garotas mais marrentas e mal-humoradas das
Red Fox, e a versão que, no fundo, é a verdadeira: as garotas
quebradas demais para distribuírem sorrisos, que precisam fazer um
esforço enorme para permitirem que a alegria entre, de tão
acostumadas que estão com a dor.
Troco um olhar rápido com Scout e esboçamos sorrisos
amigáveis uma para a outra. Chego à conclusão de que, a partir de
hoje, vamos nos aproximar um pouco mais, vamos deixar que a
outra entre pelo menos um pouquinho. Scout me entende. Acho que
também entendo Scout, até onde ela me permite. Posso chamá-la
de amiga, posso contar com ela, posso confiar nela.
Hailey apoia uma mão no meu joelho, apontando com a cabeça
para a pista. Sei o que ela quer e me adianto em negar.
— Por favor, Leah! Faz tanto tempo que não te vejo andar de
skate! — Ela dobra o lábio inferior, une as mãos, faz a expressão
mais triste que consegue.
Scout olha para mim com certa surpresa.
— Você anda de skate? Agora seu estilo faz sentido! — Aponta
para minhas roupas e eu sou obrigada a concordar.
Minha camiseta preta é larga, a calça jeans rasgada, o Vans
surrado, o boné rosa quase sempre está virado para trás. Faço jus
ao estereótipo do estilo skatista.
— Ela não anda, ela arrasa! Você precisa ver, Scout! — A
empolgação de Hailey é uma graça, mas o skate não é mais algo
presente na minha vida.
— Não exagere, Hales — peço e logo viro para Scout. — Ela está
fazendo propaganda enganosa.
— Não estou não! — Hailey se defende, para minha tristeza, ela
é tão marrenta e insistente quanto eu, não vai desistir enquanto não
me vir em cima de um skate. — Vou arranjar um skate para você! —
anuncia e sai andando pela pista, minha irmã conhece vários
garotos que estão aqui, boa parte estuda na mesma escola que ela.
Não demora para que ela retorne com um skate em mãos,
entregando-o para mim. Respiro fundo quando seguro a tábua.
Passo a mão pela lixa, dou uma olhada no rolamento, no desenho
da parte de trás. Sinto saudades do passado. Do meu pai. Do meu
antigo skate.
As saudades também fazem uma lembrança desagradável voltar
à minha mente. A memória do dia em que me tornei inimiga de
Kahel Williams, do dia em que meu ódio por ele floresceu, do dia em
que parei de andar de skate. Balanço a cabeça para levar o
pensamento para longe. Faz tempo que não treino minhas
habilidades, preciso me concentrar para não cair e me ralar inteira.
O basquete é minha prioridade e não posso me machucar. Meu time
conta comigo.
— Vai, Leah! — Hailey grita quando me posiciono em um half [2]
menor, o único que vou conseguir descer.
Eu costumava dominar essa pista. Andava em qualquer tipo de
rampa, descia em alta velocidade sem medo algum. Mas então meu
pai morreu. Minha vida ficou ainda mais difícil do que já era. Sumi
desse bairro. Foquei em buscar um futuro melhor. Tudo mudou.
Quando posiciono meu pé esquerdo na parte de trás do skate,
empinando-o, olho para baixo, analisando a altura que terei que
descer. Um frio na barriga — arrisco dizer que até um certo medo —
me impede de descer de imediato. Era mais fácil quando eu era
mais nova e não sabia que a vida poderia ser tão complicada. Eu
simplesmente dropava[3] e não pensava em mais nada. Sinto
vontade de ser essa garota menos encanada, livre, sem tanta
preocupação nos ombros. Mas não dá. Essa é a minha vida agora.
Coloco o pé direito na parte da frente do skate, enfim iniciando o
drop. Sinto a tábua tremer um pouco sob meus pés, não estou tão
firme quanto antes. O esforço que faço para me focar somente nos
movimentos e esquecer todos os meus problemas é insano.
Flexiono bem os joelhos quando chego no outro lado do half, faço
uma manobra simples, apenas viro o skate para retornar. Pego um
pouco mais de velocidade e abuso um pouco mais, me abaixando
para colocar a mão na borda, fazendo força com as minhas pernas
para que o skate perca o contato com a rampa por alguns
segundos. Esses instantes que passo no ar são os melhores do
meu dia.
É impressionante como o esporte me faz bem. Seja nas quadras
ou nas pistas, esse é um momento em que me sinto feliz. Na
verdade, acredito que seja o único momento do dia em que me sinto
feliz.
Brinco mais um pouco no half, até me arrisco a tentar umas
manobras fora da rampa, mas logo o pôr do sol me alerta que é
hora de ir embora.
Devolvo o skate para seu dono, ajeito o boné na cabeça,
arrumando os fios que ficaram bagunçados por causa dos
movimentos bruscos. O som de aplausos chama minha atenção.
Um sorriso tímido se forma em meus lábios quando vejo Scout e
Hailey me aplaudindo. Minha amiga só bate palmas, fazendo uma
expressão impressionada. Já minha irmã grita, parando de aplaudir
para colocar as mãos ao lado da boca e gritar ainda mais alto.
— Quando ela disse que você arrasava, não estava brincando —
Scout diz quando me aproximo.
Sento no banco ao seu lado, minhas energias renovadas graças
ao momento de reconexão com o skate.
— Não é pra tanto — devolvo, não me acho tão boa assim. O
skate sempre foi mais uma diversão, é no basquete que me garanto
de verdade.
— Claro que é! Você é foda, Leah! — fala Hailey, os olhos verdes
brilhando de tanta admiração que sente por mim. É por causa dessa
admiração que eu sigo em frente. — Tirei várias fotos suas. Quer
ver?
Assinto e Hailey mostra o visor de sua câmera. Nas imagens,
estou sorrindo, concentrada, despreocupada. Me ver assim é algo
tão raro, que até estranho.
— Ficaram lindas, Hales — elogio, fazendo um carinho em seu
cabelo. Hailey é absurdamente talentosa. — Agora, vamos, preciso
te levar para casa — anuncio e ela assente devagar, sabe que não
posso ficar e que é mais seguro que ela vá para casa.
A caminhada não é longa e Hailey monopoliza a conversa, nos
contando algumas fofocas sobre alguns colegas da escola. Escuto
tudo o que minha irmã diz e comento uma coisa ou outra, mas, no
fundo, estou perdida em pensamentos. À essa hora, normalmente,
minha mãe já está em casa. Quando nos encontramos pela última
vez, eu disse a ela que daria um jeito de pagar sua dívida. Hoje,
preciso implorar que nunca mais nos coloque em uma situação
dessas.
A conversa cessa quando chegamos à casa da minha mãe. É um
lugar simples, que não está bem cuidado e poderia fazer bom uso
de uma reforma. Encaro Scout para analisar sua reação diante da
realidade do meu passado, mas ela não fala nada, tampouco parece
surpresa. Pelo olhar de cumplicidade que me lança, compreendo
que ela veio de um lugar similar, que seu passado é tão conturbado
quanto o meu.
— Você espera aqui? — pergunto, não quero que ela conheça
minha mãe, não dá para saber se Beverly estará sóbria ou não.
Scout assente e se senta em um dos degraus da varanda,
enfiando as mãos nos bolsos da jaqueta de couro.
Conduzo Hailey para dentro da casa. A luz da sala me indica que
minha mãe está vendo TV. Ótimo. Só espero que não exista uma
garrafa envolvida.
— Vá tomar um banho e fazer seu dever de casa — ordeno,
apontando para a direção do seu quarto.
Hailey suspira, a felicidade que, há alguns minutos, nos
consumia, desapareceu em um passe de mágica. É só pisar dentro
dessa casa que nosso brilho se apaga.
— Não grite com ela, por favor — pede, o semblante triste graças
a nossa relação familiar conturbada.
— Vou me controlar — afirmo, rezando para que eu consiga
cumprir essa promessa. Nem sempre é fácil.
Dou um beijo na testa de Hailey e espero até escutar a porta do
seu quarto se fechando para me aproximar da minha mãe. Ela está
sentada no sofá, de pijama, gargalhando enquanto assiste algum
episódio antigo de Friends. Há uma taça de vinho vazia na mesa de
centro.
Enquanto eu pagava seu agiota, ela assistia um seriado.
Como não gritar?
— Mãe. — Apenas anuncio minha chegada, só para ver sua
reação.
Ela quase pula para fora do sofá quando me vê.
— Leah. Não sabia que vinha hoje. Não é quarta-feira.
— É, troquei minha folga essa semana — conto, já pensando no
que ela deve fazer quando não estou aqui para fiscalizar.
Minha mãe passa a mão no cabelo, tentando arrumá-lo, e acaba
olhando de relance para a taça de vinho no processo. Ela nem
consegue disfarçar.
— Vai ficar para jantar? — pergunta, tentando desviar meu foco.
Caminho com brutalidade até ficar na frente dela. Sento na mesa
de centro, pegando a taça de vinho.
— Quantas? — indago, balançando a taça na frente dela.
Minha mãe arranca a taça da minha mão, colocando-a na
mesinha ao lado do sofá.
— Uma, Leah, estou só relaxando. — Solto um riso irônico
quando a escuto. — Juro. Não estou descontrolada.
— Hoje, mãe! Hoje você não está descontrolada. — Perco minha
paciência e me levanto, preciso andar de um lado para o outro para
não surtar e descumprir o que Hailey me pediu. Minha mãe me tira
do sério não só por suas atitudes, mas pelo quanto ela se faz de
desentendida. Chega a ser cínico. — Paguei Jeff King — anuncio
para pegá-la de surpresa.
Minha mãe até gruda as costas no sofá, olhando para os lados.
— Você não precisava ter feito isso — fala e fico a um triz de
gritar.
— Não? Queria que eu fizesse o quê? Esperasse ele machucar
você ou Hailey para tomar uma atitude? — devolvo, irritada.
— Onde você arrumou o dinheiro? — questiona, desviando o
assunto.
Cruzo os braços, na defensiva. Não quero dizer a ela que pedi a
Axel.
— Não te interessa. Paguei a dívida, resolvi o problema. Agora,
você, por favor, trate de não me arranjar outro! — despejo tudo o
que quero dizer de uma vez. Preciso sair desse lugar.
— Leah...
— Mãe, não discuta. Só me prometa que não vai mais pedir
dinheiro para o King. Se estiver com problemas, me ligue, peça para
mim, mas não para ele.
Eu prefiro alimentar o vício dela do que estar endividada com um
cara desses.
— Ok, eu prometo — concorda, a cabeça baixa, o semblante
derrotado.
Odeio essa situação, odeio ter que agir como a adulta da casa,
mas não há outra escolha.
Desejo uma boa noite para minha mãe e vou embora batendo a
porta, irritada demais para o meu próprio bem.
Scout se levanta assim que me vê.
— As coisas não foram muito boas? — indaga, fazendo uma
careta para mim, sabendo que a resposta é um grande não.
— Nunca são.
Faço um sinal para irmos embora, precisamos chegar no ponto
de ônibus ainda na luz do dia.
— Você nunca pensou em colocá-la na reabilitação? — A
pergunta de Scout é pertinente, eu sei, mas não é simples assim.
— Minha mãe já fez parte de diversos grupos para alcoólatras,
nada nunca funcionou. É um caso perdido.
E eu, sinceramente, não tenho energia para gastar com isso.
Preciso viver minha vida.
Me diga o que você quer
Diga-me o que você precisa
Um pouco de açúcar
Um pouco de manteiga
É a receita perfeita!
Work This Out – High School Musical 2

Depois de chegar em casa e tomar o banho mais longo da minha


vida, para limpar todas as impurezas dos acontecimentos do dia, me
junto à Scout na cozinha. Ela está fazendo pipoca para nós
jantarmos. Jo não está em casa e Abby e Alex estão em seus
respectivos quartos, então nada de comida saudável hoje.
Pego meu celular pela primeira vez em horas, vendo que há
algumas mensagens de Kahel.
Pesadelo: Oi, princesa! Já avisei aos Tigers que faremos um
anúncio importante amanhã.
A empolgação de sua mensagem me faz soltar um leve riso.
Leah: Essa animação toda tem algum motivo especial?
Pesadelo: Uma ruiva muito mal-humorada concordou comigo
pela primeira vez na vida.
Franzo a testa para a mensagem, com dificuldade de acreditar
que estou mesmo lendo isso. Kahel tem mudado um pouco sua
postura comigo. Ele ainda me enche o saco e é literalmente o cara
mais inconveniente do planeta, mas, por algum motivo bizarro, tem
me feito rir.
Leah: Só concordei em prol do meu time. Sou Red Fox 4life[4]!
Pesadelo: Uau, você é tão boa capitã! O torneio das conferências
está chegando... vão ganhar dessa vez?
Leah: Estamos trabalhando pra isso. E vocês, vão ficar no
segundo lugar pra sempre?
Pesadelo: Essa doeu no fundo do meu peito, princesa. Você está
me saindo melhor do que a encomenda.
Leah: Eu sou muito mais do que você imagina, mimadinho.
Pesadelo: Cuidado com as suas brincadeiras. Posso começar a
interpretá-las de uma forma diferente.
Isso foi um... flerte? Independentemente se foi ou não, vou me
esquivar.
Leah: Hahaha, esqueça isso. Nos vemos amanhã depois do
treino. Não beba todas, por favor. Preciso de você atento.
Pesadelo: Sim, capitã, fique tranquila. Não vou fazer mais nada
do tipo. Tenho uma reputação a zelar.
Leah: Reputação? Que reputação? De Mister Simpatia? Ou de
conquistador?
Pesadelo: De melhor capitão que a KSU já viu.
Leah: Está falando só dos times masculinos, certo?
Pesadelo: Não, de todos.
Leah: Quando acho que estou te odiando menos, você vai lá e
estraga tudo.
Pesadelo: Só estou constatando fatos.
— Leah! — o grito de Scout faz com que eu quase derrube o
celular no chão. Ela está com o balde de pipoca em mãos, parada
no vão que separa a cozinha da sala. — Estou te chamando há um
século!
Olho para o celular, depois de volta para ela, percebendo que
passei esse tempo todo trocando mensagens com Kahel sem nem
me dar conta do que estava fazendo. Discutir com ele me tirou
completamente da realidade.
Depois que concordei com seu plano para a arrecadação, ele não
parece mais tão disposto a me cutucar o tempo inteiro. Estamos
com brigas mais suaves, até me diverti com algumas coisas que
dissemos um para o outro. Estou achando, inclusive, que vamos
conseguir finalizar essa arrecadação sem nos matarmos.
— Foi mal, precisei responder umas mensagens do Kahel —
conto, todos os jogadores sabem que estamos trabalhando juntos.
Scout pega um punhado de pipoca e coloca na boca, erguendo
as sobrancelhas.
— Do Kahel, é? — questiona e eu já entendo seu tom.
— Você, a Alex e a Jo combinaram de me encher o saco por
causa dele? — Coloco as outras Fox na conversa exatamente para
cutucar Scout.
— Claro que não! Acha que eu combino alguma coisa com elas?
As duas são piradas! — Scout revira os olhos, como se isso nunca
fosse uma possibilidade.
Dou risada do jeito dela e sinalizo para irmos para a sala. Nós
nos sentamos no sofá, bem longe uma da outra, com o balde de
pipoca apoiado entre nós. Nem sequer combinamos de ver um
filme, é comum, na nossa amizade esquisita, simplesmente sentar
no sofá e assistir alguma coisa. Somos fãs de séries policiais,
documentários de crimes reais e filmes de terror. Só conteúdos
leves, para combinar com nossas vidas.
— Ei, Halstead — chamo, antes que ela possa dar o play em
Hush, o filme da noite. — Obrigada por ter me acompanhado na
empreitada de hoje. Significou muito para mim.
Scout esboça um pequeno sorriso.
— De nada, James. Estou aqui para servir a capitã — brinca,
levando a mão à testa para bater continência.
— Agora podemos admitir que somos amigas? — questiono,
buscando pegar no pé dela só mais um pouquinho.
Scout me fita com seu olhar lateral que exala desprezo.
— Não — responde, simplesmente, e coloca play no filme.
Solto uma risada tímida e vejo um novo sorrisinho surgir no rosto
de Scout. Nós definitivamente somos amigas.
O filme começa e a história é completamente bizarra, do jeito que
gostamos. Uma mulher surda que mora no meio do nada tem a casa
invadida por um serial killer e não consegue pedir socorro. Estou
com os olhos arregalados do tanto que a história me empolga.
Passamos quarenta minutos em silêncio, só comendo pipoca,
obcecadas pela história. Porém, na toca das raposas, não é comum
termos tanta paz nos lugares que dividimos.
Escuto Joanne chegando, provavelmente estava com Anthony, e
ela logo aparece na sala. A loira larga a mochila em uma das
poltronas e se aproxima de nós com uma rapidez impressionante.
Quando vejo, ela está sentada entre mim e Scout. Por sorte, o balde
de pipoca está nas mãos de Scout nesse momento, caso contrário,
Jo teria feito um estrago.
— Por que você está se sentando aí? — Scout pergunta com
uma careta, o espaço entre nós não era grande o suficiente para
abrigar toda a altura de Jo. Com a presença dela, nossos ombros
ficam grudados.
— Achei que vocês tinham guardado o lugar para mim — ela
responde, um sorriso largo e travesso formado em seus lábios.
— E por que nós faríamos isso? — Scout rebate.
— Scout! — repreendo-a, agradecendo por Jo levar tudo na
brincadeira. Se mais uma das garotas fosse esquentada, teríamos
sérios problemas.
— Porque vocês me amam! — diz Jo, encostando a cabeça no
meu ombro momentaneamente. — O que estamos assistindo? —
pergunta, parecendo uma criança, de tão empolgada.
— Hush — respondo, já perdi todo o foco do filme, graças a
presença alegrinha de Joanne.
Voltamos a olhar a tela no momento em que uma cena tensa
acontece. Jo toma um susto e solta um gritinho, se encolhendo no
sofá, os olhos arregalados de tanta tensão.
Dou risada. Scout bufa.
— Podemos ver uma comédia romântica? Não gostei desse
filme. — Jo aponta para a tela.
— Não. Nós já estávamos assistindo, você que se intrometeu —
Scout rebate, tentando se mexer no sofá, para se distanciar de Jo.
O problema é que é impossível, ela já está no limite de espaço. Ou
atura Joanne ou se muda.
O biquinho que Jo faz é digno de uma criança de quatro anos.
— Vamos mudar para uma comédia romântica — anuncio,
ficando do lado de Jo. Scout me lança um olhar indignado. — É
mais democrático.
— Odeio o quanto você é política — Scout reclama, abraçando o
balde de pipoca para monopolizá-lo. Ela quase vira a cara para nós.
E pelo olhar de Jo, sei que ela está se divertindo às custas da
nossa colega mal-humorada.
— Então, vamos de “Juntos Pelo Acaso”? “De Repente é Amor?”
ou “Apimentadas”? São tantas opções! — Jo cita alguns filmes que
gosta e que eu também amo. Adoro um suspense, adoro um terror,
mas me derreto com dramas e comédias românticas de qualidade.
— Vou chamar a Alex! — ela anuncia, pegando seu celular para
mandar uma mensagem para a amiga.
Menos de dois minutos depois, Alex aparece, com um pijama
cheio de cupcakes desenhados e meias coloridas nos pés,
praticamente saltitando pela sala.
— Pronto, só faltava o raio de sol! — Scout resmunga mais uma
vez e Alex faz questão de sentar ao lado dela, no braço do sofá.
— Falaram comédia romântica, falaram Alex Coleman! — brinca,
e ela e Jo se cumprimentam com um high five. Scout fica presa no
meio do toque, é uma das cenas mais divertidas que já presenciei
entre elas.
— Ei, está faltando uma! — aviso, meu momento a sós com
Scout já se foi para todo sempre, então é melhor reunimos todas as
raposas da casa.
— Verdade! — Jo concorda, mas, quando acho que ela vai pegar
o celular e mandar uma mensagem para Abby, a loira coloca as
mãos ao lado da boca e berra: — ABBY! VAMOS ASSISTIR UM
FILME, VEM PRA CÁ!
Tenho até que tampar os ouvidos para sobreviver ao timbre de
Jo.
— Puta que pariu! Vocês arruinaram minha noite tranquila! —
Scout reclama, mas não consegue sair do lugar, ela está
literalmente espremida entre Alex e Jo.
— Ah, para! Você reclama, mas adorou jogar tequila pong com a
gente no semestre passado! — Alex pontua, lembrando do
momento desabafo que tivemos brincando de tequila pong, nossa
própria versão do beer pong[5].
— E cuidar de mim bêbada! — Jo acrescenta e coloca o rosto
perto do de Scout, que empurra a loira pelos ombros.
— Cheguei! — Abby anuncia sua entrada, posando com uma
mão na cintura, a outra com a palma virada para cima. Essa pose,
em conjunto com o pijama rosa de seda que ela usa, condiz
exatamente com quem ela é.
— Que alegria, o circo está completo — Scout ironiza, bufando
pela centésima vez.
Abby faz questão de se jogar no sofá ao meu lado. Somos cinco
garotas altas e fortes espremidas em um sofá para três.
— Então, qual vai ser o filme? — Abby pergunta, virando para
nos olhar.
— Ainda estamos escolhendo — respondo.
Abby abre um sorriso travesso, as maçãs do rosto saltando
graças a sua expressão.
— Que tal uma maratona do maior clássico já feito pelo homem?
— Franzimos a testa, ninguém sabe ao certo a qual franquia ela se
refere. — High School Musical!
Jo e Alex soltam gritinhos estridentes, até eu comemoro, nós
todas começamos a assentir loucamente, porque High School
Musical é simplesmente inesquecível.
— Vocês querem ver um filme de criança? — Scout rebate, ainda
com a careta presa ao seu rosto.
— Não fale assim de High School Musical! É um filme épico! —
Abby defende, por sua expressão, acho que ela sustentaria uma
discussão sobre o filme por horas.
— E nós queremos dançar! — Jo acrescenta.
— Você não gosta? — pergunto para Scout. HSM é clássico em
um nível absurdo. Até eu gosto. Não tem como alguém não gostar.
As garotas a encaram, na expectativa por uma resposta. Scout
mostra certa relutância em responder, nos deixando um tanto
confusas quando olha para baixo, abraçando o balde de pipoca com
mais força.
— Eu nunca assisti.
O que Scout admite faz um murmúrio de comoção coletivo
acontecer. Abby até levanta do sofá, de tão chocada.
— Você nunca assistiu aos melhores filmes da Disney? —
pergunta, realmente inconformada de uma forma que chega a ser
cômica.
Scout nega com a cabeça. Percebo que, por algum motivo, isso
ser um absurdo para nós a fere.
— Bom, temos uma chance de consertar isso — diz Alex.
— Sim! Vamos maratonar os três filmes e ensinar Scout a ser
uma Wildcat! — Abby bate palmas animadas, voltando a se sentar
ao meu lado e tomando posse do controle remoto, para procurar o
filme no serviço de streaming.
— Não quero ver todos os filmes! — Scout reclama, mas, se não
quisesse mesmo, já teria ido para o seu quarto. No momento, ela só
quer ser marrenta. — Você está de acordo com isso? — pergunta
para mim, que, normalmente, sou o equilíbrio da casa.
Mas é de High School Musical que estamos falando. Scout
precisa assistir. Não há uma opção.
— Os filmes têm basquete. Você vai gostar. — Estendo o braço
para dar um tapinha amigável em sua coxa, mostrando que estou
totalmente dentro da ideia das meninas.
As Red Fox farão uma maratona de High School Musical!
Algumas horas e muita cantoria depois, finalizamos os três filmes.
Foi uma delícia relembrar as músicas, até arriscamos dançar a
coreografia de “We’re All In This Together”, que Abby e Alex sabiam
de cor. Scout ficou sentada, óbvio, mas flagrei alguns momentos em
que sua perna balançou no ritmo da música. É impossível não ser
contagiado pelo espírito desse filme.
Por isso que, quando o terceiro filme acaba — com Jo, Alex e
Abby soltando algumas lágrimas na cena da formatura — ficamos
de pé e encurralamos Scout no sofá. Ela está de braços cruzados, a
expressão fechada, sabe que vamos interrogá-la sobre o filme.
— Me diz que você prefere a Sharpay — Abby implora, as mãos
unidas, um biquinho formado nos lábios.
— E alguém prefere a Gabriela? — Scout rebate e Abby bate
uma palma comemorativa.
— Ei, eu gosto dela! — Alex entra na conversa. Ela tem uma vibe
meio Gabriela, estudiosa e boazinha.
— Agora, a hora da verdade — diz Jo, toda séria. — Você gostou
dos filmes?
Nós quatro encaramos Scout com expectativa, até parece que
estamos esperando uma revelação bombástica. Só pela nossa
reação, Scout demora para responder. Ela tem um temperamento
difícil, mas também não gosta de ser fácil. Se puder complicar, ela
complica.
— Não odiei. — É o que responde, com um tom levemente
otimista.
Essas duas palavras são suficientes para fazer nós quatro
gritarmos. Abby joga os braços para o céu, comemorando, Alex e Jo
começam a cantar “Work This Out” e reproduzir a coreografia. Abby
entra na dança, até eu tento acompanhar os passos, mas sou
péssima dançando.
Por alguns segundos, a toca das raposas é pura harmonia.
Brincamos com Scout, começamos a dançar em volta dela, Jo
quase se senta no seu colo para fazer graça. Distribuímos
gargalhadas, Scout acaba dando risada, não dá para não se divertir
com a animação das meninas.
O problema é que nós não somos íntimas a esse ponto. Toda vez
que temos um momento legal e sincero, uma de nós se afasta e
quebra todo o encanto.
— Chega, cansei! — diz Scout, apoiando as mãos no sofá para
se levantar.
As meninas ficam sem entender sua reação, mas talvez eu
compreenda. Elas estavam se aproximando demais, ganhando
espaço, até poderiam achar que estavam adquirindo liberdade. Para
mim, é nítido que Scout não quer que ultrapassemos um certo limite
de intimidade. Eu compreendo a atitude. Ela já deve ter sido tão
machucada quanto eu, talvez até mais.
Se aproximar significa se apegar. Deixar as pessoas entrarem
significa criar uma conexão. Tudo isso culmina em dor, quando a
pessoa em questão nos decepciona ou vai embora.
— Que tal pedirmos algo pra comer? — Jo oferece, Abby e Alex
rapidamente assentem.
As três olham para mim em busca de uma resposta.
Eu quero ficar, mas então me lembro de tudo que já tive que fazer
no dia de hoje. Negociar com um agiota, ver minha mãe alcoólatra,
cuidar da minha irmã para que ela não tenha um coração tão
quebrado quanto o meu. Estou esgotada emocionalmente e não
quero ser um peso para as meninas, não quero que elas façam
perguntas demais ou que achem que há algo de errado comigo.
Elas são boas demais para lidarem com a minha bagunça.
— Preciso estudar, mas comam vocês! — Tento fingir
empolgação na voz, contudo, o dia de hoje foi difícil. O filme foi uma
boa distração, porém, agora, preciso enfrentar a realidade.
...
Sentada na minha escrivaninha, faço contas com a calculadora,
anotando em meu caderno o quanto devo para Axel, pensando em
quantas horas terei que trabalhar para poder pagá-lo. Tento
organizar uma rotina em que trabalho mais, entretanto, vinte e
quatro horas não são suficientes para que eu faça tudo o que tenho
que fazer.
Enfio as mãos no meu cabelo molhado, apoiando os cotovelos na
mesa, tentando buscar uma saída. Estar em dívida com Axel não
me agrada, sei que ele vai me cobrar em algum momento. Meu ex
não me emprestou esse dinheiro só para me ajudar, ele tem um
interesse: me controlar. Não tenho dúvidas de que Axel virá atrás de
mim se eu demorar para pagar. Ele é mais maleável que King, mas
já tivemos um relacionamento de merda em que ele me manipulava
como um fantoche. Mudei e amadureci, porém, não quero ter que
lidar com ele de novo. Preciso de dinheiro.
— Leah? — Levanto a cabeça e vejo que Jo está com o rosto na
fresta da porta.
Eu nem notei que não tinha trancado o quarto.
— Oi, Jo.
— Eu trouxe duas fatias de pizza pra você. — Ela estende o prato
na minha direção, abrindo mais a porta para poder me entregar.
Sorrio diante do ato. Comemos pipoca demais enquanto
assistíamos aos filmes, mas eu já estou com fome de novo.
— Obrigada. Pode entrar, se quiser, fica à vontade. — Me
arrependo de ter sido educada no mesmo momento.
Jo não é do tipo que escuta uma frase dessas e diz que está
bem. Ela entende que é uma deixa para realmente se sentir à
vontade, então deita de bruços na minha cama, apoiando os
cotovelos no colchão, balançando as pernas no ar.
— Você não tinha que estudar de verdade, tinha? — questiona,
certeira.
Deixo o prato apoiado na escrivaninha e alterno entre comer a
pizza e ficar de frente para Joanne.
— Eu tinha coisas para fazer. Ainda tenho, na verdade. — Eu
também teria que estudar, mas não há tempo para tudo. Meus olhos
já estão quase se fechando, de tão cansada que estou.
Jo assente devagar, o cabelo loiro está caindo no seu rosto,
então ela assopra uma mecha para longe. Seus olhos castanhos me
fitam diretamente e percebo que ela vai me fazer alguma pergunta
mirabolante.
— Por que você se afasta tanto da gente?
Suspiro quando a escuto, tenho certeza de que Jo percebeu meu
comportamento, caso contrário não teria vindo até aqui para me
questionar. Eu gosto de todas as meninas, mas sempre que
começamos a nos aproximar demais, me esquivo.
— Existem coisas na minha vida que não quero expor para vocês
— revelo a verdade. Joanne costuma ser uma pessoa transparente,
exceto quando precisou admitir que amava Anthony. Isso demorou
horrores.
— Mas expõe para Scout — Jo rebate, levantando as
sobrancelhas.
— Ela não sabe de muita coisa. — Não nego, é fato que Scout e
eu nos aproximamos um pouco mais, mas é só porque compreendi
que ela não me julgaria, nem teria receio se visse a parte mais
conturbada da minha vida.
Jo muda de posição, rolando na cama até ficar sentada, com as
pernas para fora do colchão, um pouco mais próxima de mim. Ela
costuma ser mais brincalhona, mas quando fica séria, normalmente,
é porque precisa dizer algo bem importante.
— Eu também tinha dificuldades de me abrir, de me apegar. —
Olha para as unhas, distraída. Os pais de Jo tiveram um divórcio
complicado, passaram anos competindo um com o outro através
dela. A relação entre eles foi o que fez Jo ter um certo receio em
manter um namoro sério com alguém. Demorou até que ela
conseguisse abraçar os sentimentos que tinha pelo melhor amigo.
— Mas vocês me ajudaram quando tivemos aquele momento de
desabafo com o polvo Wendy. Foi libertador. Talvez você deva
tentar.
Esse dia foi, de longe, um dos melhores momentos do semestre
passado. Jo se abriu muito conosco e agora o polvo de pelúcia que
roubou quando estava bêbada se tornou nossa mascote. Wendy é
um daqueles bichinhos dupla-face, que pode ter dois humores. Ela
fica em um móvel na sala, olhando para nós com sua cara triste ou
feliz, dependendo de quem mexeu nela pela última vez.
— Quem sabe um dia. — Dou de ombros, mas mantenho a
oportunidade em aberto.
Eu gostaria de poder desabafar com elas. De não ter medo de
contar tudo e perder as únicas amigas que eu já tive. Amigas. Será
que posso chamar as garotas com quem moro dessa forma?
— Bom, vou deixar você terminar suas coisas — fala Jo, seu
recado já está dado, a missão de me fazer refletir foi cumprida.
Quando ela está prestes a sair, segura no batente da porta e olha
para mim. — Leah, você sabe que pode contar comigo, não sabe?
Esboço um sorriso ao escutá-la. Jo é uma pessoa excepcional.
— Eu sei, Hudson. Também estou aqui por você.
— Sei disso, capitã. — Ela pisca para mim antes de sair,
deixando claro que seu título de amiga pode ser concedido com
tranquilidade.
Volto a comer minha pizza e organizar minhas finanças, agora um
pouco mais leve, tentando absorver toda a energia boa que troquei
com as Fox, para poder esquecer o que aconteceu hoje.
Me rendo a essa vida fácil
Adeus para minhas esperanças e sonhos
Começo a gostar dos meus inimigos

Feel It Still – Sofia Carson

Estamos terminando o treino quando as Red Fox entram na


quadra. Elas se dirigem a arquibancada devagar, sussurrando entre
si, enquanto nos assistem. Todas estão suadas e com roupas de
treino, pelo que Leah me falou, tinham um treino de fortalecimento
na academia antes de virem nos encontrar para falarmos sobre a
arrecadação.
Uma das garotas do time, Bree, me manda um beijo. Já
transamos uma vez e ela vive me chamando para repetirmos o feito,
mas não costumo sair duas vezes com a mesma pessoa, a não ser
que valha muito a pena. E também tem o fato de que acabei indo
para a cama com o irmão dela sem ela saber. Às vezes, eu complico
minha vida amorosa de uma forma surreal.
— Williams! — Seb grita e passa a bola para mim, estou em uma
boa posição, fica fácil para furar o garrafão e enfiar a bola na cesta.
Os garotos comemoram quando acerto, dando tapinhas nas
minhas costas, elogiando o quanto voo alto, mesmo não sendo o
maior cara do time. O treinador encerra o treino enquanto ainda
estou cercado, ele sabe que eu e Leah falaremos com os times,
então deixa a quadra livre para nós.
Falo para os garotos dispersarem, agradecendo-os no processo.
Se tem uma coisa que amo, é ser o centro das atenções e os Tigers
adoram alimentar meu ego, que já é inflado demais para o meu
próprio bem.
Olho para a arquibancada e vejo que Leah está próxima das
garotas com quem divide a casa, Jo está tomando a frente da
conversa, gesticulando enquanto conta alguma coisa. A ruiva
marrenta parece não prestar atenção no que a amiga diz, porque
está me encarando com os braços cruzados, a cabeça balançando
em negação. Deve estar pensando no quanto me acho o dono do
mundo. Porém, diferente das outras vezes que me lançou olhares
desse tipo, hoje, Leah parece estar se divertindo com isso. Há uma
espécie de sorriso em seu rosto.
Trocamos algumas mensagens nos dias em que não nos vimos e
fiquei impressionado por termos conversado tanto. E mais
impressionado ainda por eu ter gostado de falar com ela. Leah tem
rebatidas boas, a capitã das Fox não facilita para mim e sempre
tenho que usar minhas melhores ideias para retrucá-la. Gosto de
discutir, de me sentir estimulado, e Leah James é uma pessoa que
me desafia.
Sinto que ela não me odeia tanto assim. Não mais. Eu também
não a odeio tanto quanto imaginava. Talvez eu até esteja
aprendendo a gostar dela.
A gostar da minha inimiga. Loucura.
Faço um sinal com a mão para chamá-la, meu time já está se
acomodando nas arquibancadas e as Red Fox estão começando a
entrosar com eles de forma orgânica, então podemos ter uma breve
conversa antes de efetivamente anunciarmos nossas ideias.
Leah avisa as amigas que irá se afastar e pega o caderninho em
que anotou tudo sobre nossas reuniões em sua bolsa. Ela desce a
arquibancada saltando pelos degraus, o cabelo ruivo está preso em
um rabo de cavalo alto, as leves ondas batendo nas suas costas. O
pior de tudo é que meus olhos vão direto para os shorts preto, curto
e justo que ela usa. Quando fui à Small Snack, durante seu turno de
trabalho, olhei para sua bunda. Agora, estou fitando suas coxas
torneadas por mais tempo do que deveria.
Os shorts de basquete escondem demais o corpo maravilhoso
que ela tem.
E é completamente errado eu estar pensando dessa forma.
Leah James, Kahel, ainda é Leah James.
Ela salta o último degrau da arquibancada, seu jeito moleca, meio
malandra, é tão... autêntico.
— E aí, capitão? Estava gostando da atenção? — pergunta, se
referindo ao meu time, e aproveito a deixa para me focar somente
em seu rosto.
O problema é que ela está corada, o cabelo um pouco suado, os
olhos sem maquiagem alguma, sua expressão totalmente limpa e
sincera.
Se até seu rosto está chamando minha atenção, o que diabos
vou fazer? Conversar com ela olhando para o teto?
Preciso de uma força mental insana para continuar com o
diálogo.
— Sempre, princesa. Eu adoro ser bajulado.
E mereço ser, na maior parte do tempo.
Leah revira os olhos quando me escuta.
— Seu amor-próprio é invejável — comenta, com um tom leve de
desprezo.
— Preciso me amar para poder ser amado. — Dou uma
filosofada e Leah levanta as sobrancelhas.
— Uau, que profundo. Estou impressionada.
Não sei se sua comoção é verdadeira ou não, mas vou fingir,
para minha satisfação própria, que ela está me achando o máximo
nesse momento.
— Preparado para anunciarmos nosso grande plano? —
questiona e eu assinto. Em um ato automático, quase intuitivo,
coloco as mãos no bolso da bermuda, para manter uma pose casual
e despojada, que minhas conquistas normalmente adoram.
Óbvio que Leah nem sequer repara que estou usando a carta
“capitão despojado que promete te virar do avesso”. Mudo para uma
postura mais séria, brigando com a minha mente.
Nada de tentar algo com Leah, Kahel. É território proibido. Você
achava que beijá-la era uma loucura até alguns dias atrás. Pare de
ver coisas onde não há.
— Sim, nasci pronto — respondo, recebendo um revirar de olhos
como resposta. Aproveito a deixa para contar a ela sobre algo que
andei pensando nos últimos dias. — Antes de irmos falar com os
times, queria expor mais uma ideia que tive — começo e Leah
concorda, dando a deixa para que eu continue. — Pensei em
fazermos uma festa após a venda de garagem. Quem comprar
algum item, recebe um convite para ir.
— Claro que você tinha que enfiar mais uma festa na equação —
resmunga, cruzando os braços e se fechando outra vez. — Não vou
fazer uma festa na minha casa.
— Fazemos a venda na sua casa e a festa na minha, não tem
problema. — Rapidamente me adianto em oferecer nossa
residência, Miranda, Mav e Seb são tão festeiros quanto eu e
adoram receber gente. — E antes que você me acuse de novo,
achei que seria uma boa forma de atrairmos pessoas para
comprarem. Atletas gostosos vendendo coisas e oferecendo uma
festa depois? Te garanto que é sucesso absoluto!
Leah respira fundo, mas dá o braço a torcer.
— Tá, vamos fazer essa porcaria de festa. Vejo se algumas das
meninas tem interesse em ajudar a organizar — oferece e eu abro
os braços, as mãos espalmadas para o céu, para mostrar a ela que
tudo fica bem mais fácil quando trabalhamos em conjunto, sem
discutirmos sem parar.
— Ótimo, princesa! Sinto que estamos chegando em um bom
lugar. — Abro um sorriso honesto, estou realmente com vontade de
fazer tudo certo sem arranjar mais brigas com Leah.
— É. Talvez. — Dá de ombros e olha de relance para os times,
que ainda conversam na arquibancada. — Vamos nessa? —
pergunta, apontando para eles com a cabeça.
Me posiciono ao lado dela para nos dirigirmos às nossas
respectivas equipes. Todo mundo está falando sem parar e eu já me
preparo para ter que gritar pedindo silêncio.
— Red Fox! — Leah nem precisa aumentar a voz. É só ela dizer
o nome do time que todas as garotas se viram para ouvi-la falar.
Fico verdadeiramente impressionado com o quanto ela impõe
autoridade e respeito sem precisar se exceder de alguma forma. Até
os Tigers cessam as conversas paralelas diante do poder que ela
exala.
Aprumo minha postura quando vejo que ela vai começar a revelar
nossos planos.
— Como vocês sabem, eu e o Kahel fomos convocados para
organizar a arrecadação anual do departamento de basquete.
Tivemos algumas ideias e gostaríamos de compartilhar com vocês,
porque esses planos só serão colocados em prática com o auxílio
das Fox e dos Tigers. — Nossos times estão compenetrados no
assunto, Leah é muito boa falando, ela tem um magnetismo e um
senso de liderança incrível. Será que sou bom assim? Duvido. — A
primeira parte da arrecadação será feita em uma venda de garagem
na minha casa. Vamos precisar que vocês ajudem trazendo itens
que não usam mais e que estejam em boas condições para
vendermos.
Ela me olha, nem precisa falar para que eu entenda que é minha
vez de discursar. Engulo em seco, um tanto acuado diante do poder
absoluto que ela exala.
— Quem comprar algum item receberá um convite pra ir em uma
festa na minha casa! — Abro os braços, chamando os garotos para
gritarem e eles comemoram. Leah me fita com certa impaciência.
Sinto que ela está cansada do meu espírito festeiro, que acha que
sou só isso. Faço um sinal para que o time pare de gritar, não tenho
a autoridade absoluta dela e demora um pouco para que me
obedeçam. — A outra parte da arrecadação será em um baile de
gala. É essencial que todos vocês venham e nos ajudem a
conseguir o maior número de doações possíveis.
— Vamos ter que usar terno? — o babaca do Mav pergunta.
— Pelo menos em um dia, vamos manter uma boa imagem, por
favor — Leah rebate e os dois times fazem um coro para zombar de
Maverick. — Fox, Tigers, essa arrecadação não é só uma tradição,
também é o que vai nos garantir uma boa temporada no ano que
vem. Precisamos muito da ajuda de vocês.
Sinto que a fala de Leah requer um complemento. Não penso
muito, apenas respiro fundo e me espelho na postura e na
maturidade dela.
— Podemos contar com vocês? — pergunto, mas só recebo
alguns acenos em concordância como resposta. — Eu não ouvi
direito. Red Fox, Red Tigers, seus capitães podem contar com
vocês? — estimulo que respondam, aumentando meu tom de voz,
chamando-os com meus braços.
Uma gritaria começa, alguns dos garotos e garotas até levantam
para bater palmas e mostrar seu apoio. Olho para Leah e vejo que
ela está esboçando um leve sorriso, envolvida pelo clima das
nossas equipes. Pisco para ela e, para minha surpresa, recebo uma
encarada orgulhosa e um aceno de cabeça. É um movimento leve,
mas vindo de Leah, já equivale a uma comemoração eufórica.
— Ei, já que estamos todos aqui, que tal um jogo? — Joanne
sugere, ela está em pé, é impossível não a encarar com sua altura
toda.
— Os capitães que mandam! — diz Sebastian e nossos times
esperam por nossa decisão.
Olho para Leah, deixando a situação na mão dela, afinal, por
mim, poderíamos jogar o dia inteiro. Ela que costuma empatar
nossas decisões.
— Por que não? Vamos nessa! — ela concorda e a quadra toda
comemora.
Aparentemente, Leah James está em um bom dia.
Reunimos nossos times e dividimos as equipes, mesclando os
meninos e as meninas, para ficar mais equilibrado. Leah acaba na
equipe oposta à minha, alegando que não vai conseguir jogar ao
meu lado de tanto que sou insuportável. Em outros tempos, eu
entenderia essa colocação como uma ofensa. Hoje, até dou risada e
entendo como uma brincadeira.
Sebastian e Joanne colocam uma playlist para rodar, é uma
mistura de pop com rap, o estilo de música que considero “o som do
basquete”.
Começo a brincar com Alex, uma das garotas que mora com
Leah e que está no meu time. Ela me acompanha em uma dancinha
improvisada, imitando um rapper. Outras pessoas começam a
cantar enquanto nos posicionamos em volta do círculo da quadra,
para que o jogo seja iniciado. O clima gostoso que se instala me
mostra que esse será um momento memorável, daqueles que você
relembra quando se senta para tomar uma cerveja com os amigos,
anos depois de ter acontecido.
— Os capitães deviam disputar a bola ao alto — Joanne fala, ela
é a pivô das Fox e, por ser a mais alta, é sempre a garota que salta.
— É, Kahel, você devia saltar pro nosso time — complementa
Alex e passo a desconfiar de que as duas estão tramando alguma.
Os olhares perversos que trocam me dizem que estou tendo uma
leitura perfeita da situação.
Leah resmunga um pouco com Jo, mas a loira a empurra até o
meio da quadra com um sorrisinho malicioso no rosto.
Nossos times se posicionam no círculo do centro e eu, de frente
para Leah. A linha que marca o meio da quadra é a única coisa que
nos separa. Estamos literalmente colados, nossas testas quase se
batendo, nossas expressões sedentas por vitória batalhando.
— Acha que vai conseguir ganhar de mim, princesa? — provoco,
lançando meu melhor sorriso lateral.
— Ah, eu tenho certeza, capitão — sua resposta carrega um tom
forte de sarcasmo.
O modo como ela me encara, como se pudesse me matar
apenas com o poder de seu olhar, me deixa desconcertado. Leah
tem uma vibração diferente. Ela é feroz, determinada, correta. Uma
força da natureza, no sentido puro da expressão. É impossível
desviar o olhar quando ela me encara desse jeito, como se fosse me
devorar vivo.
Maverick se posiciona para lançar a bola ao alto, mas Leah e eu
não conseguimos parar de nos fitar, tamanha a magnitude do
desafio entre nós. Ele pergunta se estamos prontos e nem
respondemos, fica nítido que estamos sedentos para começar a
jogar.
A bola vai ao alto e eu posso jurar que o mundo fica em câmera
lenta. O óbvio seria que eu tocasse a bola primeiro. Sou mais alto,
conhecido pela minha impulsão espetacular.
O problema é que Leah abre um sorrisinho para mim. Um tipo de
sorriso que ela nunca deu. Um sorriso feroz, mas ainda um tanto
contido. Um sorriso que faz com que eu me distraia e perca a
disputa.
Ela toca na bola e faz com que ela caia direto na mão de Max,
um dos Tigers que está em seu time. Antes que Leah comece a
correr para entrar no jogo, nossos olhares se encontram e eu
percebo que fui enganado. A capitã das Fox, minha arqui-inimiga-
possível-nova-amiga, é mais esperta do que eu pensava. Nunca
imaginei que Leah James agiria com malícia, que jogaria comigo
dessa forma. Também nunca imaginei que gostaria de ser enganado
por ela.
Deve ter algo de errado comigo. Não é possível que eu esteja
realmente gostando disso.
— Williams! — Alex grita do fundo da quadra, ela está batendo
bola, sinalizando para que eu faça meu papel e arme a nossa
jogada.
Leah me distraiu, mas agora chega. Meu foco é no jogo. Sempre
tem que ser no jogo.
Recebo a bola de Alex, faço um sinal para que ela entre no
garrafão e se prepare para possivelmente receber a bola. Nossos
adversários se posicionam para se defenderem e, claro, é Leah
quem se aproxima de mim. Jogamos na mesma posição, ela está
me provocando, era óbvio que tentaria ferrar com o meu jogo. Mas
se ela acha que vou deixar, está bem enganada.
Vou com força para cima dela, Leah tenta me segurar, nossos
corpos se esbarram, porém, é impossível conter minha jogada. Furo
o garrafão e faço questão de dar o melhor salto que consigo,
enterrando a bola na cesta. Me penduro no aro só para fazer graça
e os meninos que estão no meu time comemoram a jogada.
O jogo de basquete é rápido, a equipe oposta já pega o rebote e
se posiciona no fundo da quadra para iniciar uma nova jogada. Faço
questão de me posicionar o mais rápido que posso, estendo meus
braços, preparado para segurar a esquentadinha.
Leah vai trocando passes com Jo, mas quando para na minha
frente, é a capitã que está com a posse de bola. Ela me fita com um
olhar poderoso, está sedenta pela vitória. É quase o mesmo olhar
que estampo sempre que jogo.
Achei que eu e Leah éramos completamente diferentes. Porém,
nunca estive em quadra com ela, vendo-a jogar com tanta
proximidade. É a primeira vez que tenho a chance de batalhar
contra Leah e devo dizer que estou impressionado.
Tento segurá-la, consigo prender seu corpo por algum tempo,
mas ela logo consegue desviar de mim, driblando a bola com um
giro, correndo na direção da cesta. Seu salto é impecável, ela solta
a bola dentro da cesta como se não estivesse fazendo esforço
nenhum.
Quando aterrissa no chão, depois do arremesso, faz questão de
me encarar e dar de ombros. Em um diálogo silencioso, mostro a
ela o quanto estou admirado com suas habilidades. Leah me
devolve um olhar que praticamente diz “você ainda duvidava?”.
Batalhamos o tempo todo, em cada jogada, é ela quem está no
meu caminho, sou eu quem estou no caminho dela. A partida se
mantém equilibrada, porém, é a equipe dela que leva a melhor, por
seis pontos de diferença.
Quando Leah acerta a bola da vitória, em uma cesta insana de
três pontos, seu time faz uma rodinha comemorativa em volta dela.
A capitã das Fox dá um soquinho no ar de felicidade e eu acabo
perdendo o fôlego. Leah está sorrindo. Não o sorriso meia boca que
dá normalmente, mas um sorriso de verdade, de quem está
sentindo uma felicidade genuína.
Sempre tive a sensação de que ela era uma pessoa que não se
divertia, que era chata demais para permitir isso a si mesma. Agora,
não sei, tenho uma impressão diferente. Leah tem algo pesado
sobre si, mas hoje, nessa quadra, está leve. Seu sorriso e a
quantidade de abraços que distribui comprovam o que penso.
Como os bons anfitriões que somos, esperamos até nossos
jogadores irem embora para pegarmos nossas coisas. Minha
mochila está em um dos bancos da quadra, a dela na arquibancada.
Há um silêncio constrangedor entre nós, toda a ferocidade que ela
exibiu na quadra se foi e Leah voltou a ser a marrenta de sempre.
Quando ela desce as arquibancadas, se aproximando de mim
devagar, abro um breve sorriso para me mostrar aberto a conversar.
— O jogo foi ótimo. Nosso discurso também, acho que os times
estão engajados e prontos para ajudar. — Suas palavras são
otimistas, contudo, a forma com que fala é distanciada, parece até
que está conversando com nossos treinadores.
— É, vamos fazer tudo dar certo. — Logo após minha resposta,
Leah agarra a alça da bolsa esportiva e olha para a saída da
quadra, um claro sinal de que quer sair daqui. — Você joga muito
bem. — Não sei por que continuo puxando assunto. Talvez para
elogiá-la, porque realmente me surpreendi com seu talento. Ou
talvez eu só esteja me enganando. Sou um cara social, mas só
arranjo motivos para manter conversas longas quando quero levar
alguém para a cama.
— Como achou que eu tinha me tornado capitã? — rebate, o jeito
espertinho voltando a tomar conta.
— Eu sabia que você jogava bem, Leah, mas não que era tão
boa assim. Você é aquele tipo de jogadora que faz todo mundo
achar que basquete é um jogo fácil. Se eu não conhecesse o
esporte, iria tratar de conhecer só para tentar sentir as mesmas
coisas que você transmitia na sua expressão.
Leah paralisa, consigo ver o quanto está chocada pelas minhas
palavras bonitas. O que posso dizer? Quando quero, sou ótimo com
discursos.
— Obrigada, Kahel — agradece e eu sorrio, acenando para dizer
que não há de que. — Espere, você não está me zombando, está?
Seu questionamento me faz revirar levemente os olhos.
— Não, princesa. Nunca falei tão sério. — E mesmo assim, ela
continua tendo dificuldades de acreditar em mim. — Como começou
a jogar? — Me mostro interessado, em partes porque realmente
quero saber, em partes porque estou curioso sobre ela, em partes
porque quero provar que sou um cara legal, e não o babaca que ela
pensa que sou.
Leah percebe que não vou deixá-la ir com tanta facilidade e
coloca a bolsa no banco de reservas. Aproveito e me sento,
sinalizando para que ela faça o mesmo. Ficamos distantes, mas
ainda assim, frente a frente.
— Eu vim de um bairro pobre, porém, sempre tive vontade de
mudar de vida. Já tinha jogado basquete nas quadras comunitárias,
mas nunca nada sério. Uma professora me viu jogando nas aulas de
educação física da escola e me convidou para fazer parte do time,
disse que estava precisando de garotas. No começo, neguei.
Então... — ela para durante um segundo, parece estar sendo
consumida por algum pensamento ruim. — Tive momentos
complicados no colégio. Uma professora abriu meus olhos e disse
que eu poderia ter um futuro se conseguisse uma bolsa através do
esporte. Tudo o que eu queria era a oportunidade de um futuro
melhor e o basquete me deu isso.
— Você não começou a jogar porque gostava? — questiono, é
difícil, para mim, entender a realidade dela. Nós viemos de mundos
muito diferentes.
— Comecei a levar o esporte a sério porque queria usá-lo para
melhorar minha vida, mas sempre gostei de basquete. Quando
estou em quadra eu só...
— Se sente você? Se sente livre? Como se fosse imbatível? —
completo por ela de forma automática.
Leah me lança um olhar surpreso.
— Sim, exatamente. — O brilho em suas íris verdes é algo que
eu nunca havia visto. Nessa conversa, em um dos nossos primeiros
diálogos civilizados, sinto que Leah está mostrando quem realmente
é. Não sua versão irritada que me provocava sem parar, mas uma
versão mais real, mais crua. — Você também é muito bom, Kahel.
Dá para ver de onde puxou o talento.
Sua última frase me faz engolir em seco. Não gosto quando falam
coisas desse tipo. Preciso desviar o assunto.
— Para quem me fez cumprir uma regra de não falarmos sobre
nossas vidas pessoais, você está bem interessada em conversar.
— Em minha defesa, você que começou.
Soltamos uma risada juntos, o barulho ecoa pela quadra vazia,
mas cessa logo depois. Ainda é um pouco estranho conversar com
Leah sem tentarmos nos destruir a cada frase.
— É, meu pai é ótimo mesmo. Ele me ensinou tudo o que sabe
— respondo de uma forma mais sucinta, acabo mais concordando
com ela do que qualquer outra coisa.
— Você não se acha bom?
Fito Leah diretamente assim que a escuto. Até cinco minutos
atrás, ela mal queria conversar, agora está cheia de perguntas.
— Não é isso. Sei que jogo bem, mas nunca vou ser como ele. —
Sou honesto. Apesar de não admitir isso para meus colegas de
time, porque preciso manter minha imagem, tenho consciência de
que nunca chegarei aos pés do meu pai.
— Quem disse? — Leah rebate com uma careta inconformada.
— Todo mundo — respondo sem pensar, mesmo sendo uma
mentira gigantesca.
— Quem é todo mundo?
— O treinador Morrow. — É o primeiro nome que me vem à
mente. Ele é o único que já teve coragem de falar algumas poucas e
boas na minha cara. Meu pai também tenta, mas sempre que
reclamo da cobrança, ele recua, com medo de me pressionar
demais. Meu avô era um cara intimidador que colocava todo o peso
do mundo nos ombros do meu pai. Jordan não quer fazer o mesmo
comigo.
— O que ele disse, exatamente? — indaga Leah, imersa na
minha história, mostrando um interesse genuíno em saber mais
sobre mim.
— Ele vive me dando bronca por causa das festas, das noitadas,
das bebedeiras. Fico parecendo uma lesma quando estou de
ressaca — solto uma risadinha quando conto, lembrando de todas
as ocasiões em que quase morri durante os treinos graças ao tanto
de vezes que o treinador me fez correr. Naquele momento,
entretanto, não achei nada engraçado.
E Leah também não parece achar, o que faz minha risada cessar.
— Então o treinador Morrow não criticou seu talento, e sim sua
indisciplina — constata e não tenho como negar.
— Bom, sim. Ele sempre pega pesado comigo porque expressei
minha vontade de ser um jogador profissional quando era calouro.
Leah assente devagar, o rosto branco e cheio de sardas está
todo suado, o cabelo ruivo grudando no seu pescoço, o semblante
confuso, perdida em algum raciocínio que ainda não compartilhou
comigo.
— Kahel, se você quer ser draftado, precisa levar o esporte a
sério. — Claro que a garota certinha diria o óbvio.
— Eu levo a sério! Mas também quero viver a vida universitária,
esse é um momento único! — devolvo, sou um defensor de
aproveitar o tempo que estamos vivendo, nunca mais vou ter a
chance de ser um estudante.
Leah assente devagar, a expressão travando uma batalha árdua.
— Concordo que esse é um momento único, mas acho que tudo
na vida precisa de um equilíbrio.
— Falou a garota que só pensa em trabalhar, estudar e jogar —
retruco sem pensar.
Ops.
Leah suspira, claramente infeliz com o que acabei de dizer. Ela
se levanta do banco, jogando a bolsa no ombro, pronta para ir
embora. Lá se vai nosso primeiro momento de paz desde que nos
conhecemos.
— Espera, desculpe... — Me levanto, tentando me explicar, mas
Leah ergue a mão para que eu pare.
— Não discordo de você. Minha vida não é nada equilibrada.
Realmente só trabalho, estudo e jogo. Mas o ponto não era esse. O
ponto, Kahel, é que você está dando desculpas esfarrapadas para
justificar um comportamento que acontece por um único motivo.
— E qual seria esse motivo? — questiono, cruzando os braços,
desafiando-a por estar dando uma de sabichona para cima de mim.
Leah não se abala. Isso me irrita, porque no fundo, eu queria
intimidá-la para que não me analisasse. Tenho certeza de que não
vou gostar do que estou prestes a ouvir.
— Você tem medo.
E com essa frase, Leah vira de costas e sai da quadra sem olhar
para trás.
Fico estático, travado como uma estátua, mais afetado do que eu
gostaria.
Será que tenho mesmo medo? Medo do que? De fracassar? De
não me igualar ao meu pai? De decepcionar minha família, meu
time, meu treinador, a mim mesmo? É por isso que tenho os
comportamentos que tenho?
Caralho.
Acho que voltei a odiar Leah.
A gente anda por aí
Às vezes parece que
Estamos em uma montanha russa

Hard Times Come Easy – Richie Sambora

As duas últimas semanas passaram como um furacão. Com o


tanto de coisas que faço em um único dia, nem vejo a hora passar,
até sinto falta de mais tempo para poder realizar minhas tarefas com
calma. Tenho dormido cada vez menos graças às provas, que
começaram há alguns dias. Amo o curso que escolhi, mas existem
matérias que exigem muito tempo de estudo.
E tempo é uma coisa que não tenho.
Combinei com Kahel de nos encontrarmos pelo menos uma vez
por semana para terminarmos de organizar a venda de garagem,
que acontecerá um pouco depois do nosso segundo jogo do torneio
das conferências, mas tenho sido péssima no quesito “espaço na
agenda”. Sorte que ele tem entendido e está praticamente iniciando
as preparações para o baile sozinho.
Desde a nossa conversa na quadra, não tocamos mais em
assuntos da vida pessoal. Temos mantido uma relação cordial, mas
sinto que toquei em seu ponto fraco quando conversamos sobre sua
carreira profissional. Confesso que foi muito difícil, para mim, uma
pessoa que tem que batalhar para tudo, ouvir um jovem como ele
dizendo que só quer viver sua vida universitária. Eu entendo e não o
culpo, acho que temos que ser jovens e que esse é o momento de
fazer algumas merdas e nos divertir, mas também temos
responsabilidades, porque o que construirmos agora, irá ditar nosso
futuro.
E eu realmente acho que Kahel não entende isso. Ele vive em um
mundo muito diferente do meu. Não posso culpá-lo, sei disso,
porém, meu complexo de salvadora grita para que eu coloque algum
juízo na cabeça dele. Se ele fosse qualquer outra pessoa, eu já teria
tentado, mas não somos nada próximos e tenho coisa demais com o
que me preocupar.
A estreia do Red Fox Basketball no torneio das conferências é
hoje. Tive que pedir folga no trabalho porque não chegaria a tempo
do meu turno e acabamos perdendo boa parte das aulas para ir ao
ginásio da faculdade adversária. Jogar fora de casa é sempre um
desafio, ainda mais na estreia, porém, o torneio é organizado de
uma forma que os times mais fracos jogam contra os mais fortes.
Nossas rivais não são tão boas, ficaram em uma das piores
posições na temporada regular.
Isso só aumenta a pressão sobre a nossa equipe.
— Meninas! — a treinadora Hale chama nossa atenção quando
entra no vestiário. O time todo para de conversar de imediato. — A
pressão da estreia não é fácil, ainda mais vindo de uma temporada
complicada, mas acredito que podemos terminar o dia de hoje
vitoriosas. Preciso que vocês esqueçam o que está do lado de fora
desse ginásio e se concentrem somente na quadra! — Assentimos
em uníssono. Vejo pelo canto do olho que Jo abaixa a cabeça, deve
estar achando que a indireta foi para ela. Bato em sua perna com a
minha e nego com a cabeça. Joanne entende meu comando e volta
a erguer o olhar. — Capitã, quer dizer algumas palavras? — a
treinadora Hale lança a responsabilidade para mim e fico de pé.
Adoro essa parte do papel de capitã, motivar e incentivar outros é
algo que faço muito bem.
— Nós treinamos duro para chegar até aqui, abdicamos de
compromissos da nossa vida estudantil e pessoal, porque temos um
objetivo em comum. — Faço uma pausa dramática, olhando para
minhas colegas de time. — Queremos chegar ao March Madness e
fazer uma campanha nunca vista no basquete feminino da KSU.
Para isso, precisamos ganhar esse jogo e todos que vierem. — As
meninas fazem caretas de desespero, torneios mata-mata são
sempre caóticos. Se não estivermos em um bom dia ou nos
perdermos em algum jogo, estamos fora. — Então, Red Fox, vamos
ganhar! — dou um grito de incentivo e as meninas batem os pés,
dão tapas nos armários, fazem um barulho absurdo.
A treinadora ordena que é hora de fazermos o grito de guerra e
irmos para a quadra. As garotas terminam de arrumar os cabelos e
os uniformes com rapidez, ansiosas para entrarem em quadra. Hoje,
estamos com nosso uniforme branco. Os detalhes são em vermelho,
inclusive o número 17, estampado logo abaixo do “James”, na parte
de trás da minha regata.
Fazemos um círculo no centro do vestiário, unindo nossas mãos.
O silêncio toma o lugar, conseguimos ouvir a gritaria da quadra,
esperando por nós, aumentando nossa expectativa.
A treinadora Hale olha para mim, fazendo um sinal para que eu
conduza nosso grito de guerra.
— No três! — aumento o tom de voz e troco um olhar com as
Fox. A sede de vitória está estampada no rosto de todas. — Um,
dois, três, Red Fox!
— Vai, Red Fox! — elas repetem e jogamos nossas mãos para
cima, prontas para o jogo.
Entrar em quadra sempre me traz uma sensação boa. Aqui eu
não sou a filha de uma alcoólatra, a garota que perdeu o pai, que
trabalha como louca para poder se sustentar, que se vira em
inúmeros papéis e abdica das coisas que mais gosta em prol de um
futuro que planejou há muito tempo. Sou só Leah James, capitã e
armadora do time. Meu único foco é o jogo, é ganhar.
Hoje, as Red Fox sairão sorrindo dessa quadra.
O terceiro quarto acaba e eu me jogo no banco, derrotada. O
outro time é mais fraco, as meninas têm menos precisão nos
arremessos, não tem uma defesa tão forte. Era para estarmos
ganhando esse jogo de lavada.
— Que merda está acontecendo? — a treinadora Hale pergunta,
as mãos apoiadas na cintura, uma delas segurando a prancheta
com as jogadas que supostamente tínhamos que fazer.
Troco um olhar com Scout, Alex e Jo, minhas companheiras de
quadra. Nosso entrosamento é bom, mas sentimos falta de uma
quinta jogadora que se encaixe no nosso esquema de jogo. Mia está
como titular e até que se saiu bem na temporada regular, porém,
agora, está causando, assim como causou nos treinos.
Quero reclamar e dizer a treinadora que Mia está atrapalhando,
mas já fiz isso nos primeiros dez minutos de jogo, ela colocou outra
no lugar de Mia e tomamos uns seis pontos seguidos. Então,
chegamos à conclusão de que, mesmo com seus erros, é melhor
deixá-la no time.
— Estamos dois pontos na frente e temos dez minutos de jogo,
Fox! Dez minutos! Quero marcação individual, jogadas precisas e
seguras. Sem inventar moda, entenderam? — Nós assentimos, não
há espaço para discordar, já precisamos voltar para a quadra.
A treinadora Hale está irritada e com razão. É o primeiro jogo,
contra um time mais fraco, que está bem atrás na classificação final.
Não é possível que não venceremos. Esse placar apertado precisa
mudar.
O tempo acaba e nós nos levantamos, prontas para voltar à
quadra. A posse de bola é nossa, mas antes que eu possa caminhar
até o fundo da quadra para recebê-la, Scout segura meu braço.
— Essa porra de menina está fodendo com o nosso jogo, James!
Precisamos dar um jeito nela ou vamos tomar um pau desse time
ridículo! — Se a treinadora, que normalmente é calma, está irritada,
Scout está uma fera.
Eu entendo. Mia está fominha demais, a posição de titular
realmente subiu à sua cabeça e ela só quer saber de tentar fazer as
jogadas sozinha. Já perdi a conta de quantas vezes ela perdeu a
bola por não a passar.
— Eu tenho uma ideia, mas não queria usá-la — digo, odiando
ter que fazer o que estou pretendendo.
— Quero ganhar, James. Você não quer? — Scout rebate e eu
assinto, não dá para negar.
— Vamos anular a Mia. Só passe a bola pra ela se for muito
necessário.
Meu pensamento é até contraditório, mas, se diminuirmos o
número de vezes que ela consegue a posse de bola, diminuímos o
número de vezes em que ela é egoísta. Melhor jogarmos em quatro,
do que ela em uma.
— O feitiço virou contra a feiticeira — Scout concorda, exibindo
um sorriso malvado.
— Avise a Jo — peço e Scout corre para se posicionar próxima a
nossa pivô. Vejo quando conta a ela nosso plano, Jo faz uma careta,
mas depois concorda.
Alex se junta a mim para iniciarmos a jogada e peço a ela que
arranje algo para fazer para enrolarmos o início do jogo. Ela finge
que o cabelo se soltou do elástico e começa a arrumá-lo. Seus
cachos são volumosos, demora até que consiga ajeitar um coque,
tempo suficiente para que eu diga a ela o que vamos fazer.
Com minhas amigas alinhadas, aceno para o árbitro, indicando
que podemos começar o último quarto do jogo. Passo a bola para
Alex e partimos em uma velocidade reduzida, estudando nossas
adversárias. Alex passa a bola para mim e vejo Mia fazendo um
sinal, dizendo que está livre. Ela está mesmo, mas foda-se.
Vou para cima de uma das nossas rivais, driblo a bola por baixo
das pernas, emendando o movimento em um giro, e arremesso. A
bola não cai, mas Jo e toda a sua altura conseguem resgatar o
rebote e fazer o ponto.
— Boa! — Parabenizo Jo, que pisca para mim, antes de
corrermos para o outro lado da quadra.
Uma das garotas do time adversário se atrapalha com o olhar
feroz de Scout e nossa amiga consegue roubar a bola. Ela sai em
disparada, Alex é a mais próxima e a acompanha, a velocidade das
duas é bizarra, elas praticamente fazem o ponto sozinhas, sem
ninguém para segurá-las.
— Vai porra! — grita Scout e ela e Alex se cumprimentam com
animação.
Nosso jogo passa a andar, mas Mia começa a ficar irritada. Ela
tenta interceptar nossas jogadas e faz algumas besteiras que nos
custam alguns pontos perdidos. A treinadora precisa conversar com
essa menina o mais breve possível. Não dá para continuarmos com
uma titular que não pensa no time.
Abrimos uma diferença boa, no último minuto, já estamos quinze
pontos à frente. A treinadora Hale parou de roer as unhas, mas nós
não diminuímos o ritmo frenético, queremos abrir o máximo de
pontos que conseguirmos.
Nos últimos segundos, fico segurando a bola, trocando-a com
Scout e Alex, rodeando a linha dos três pontos, enrolando para que
o outro time não consiga mais a posse de bola. Quando vejo que
faltam três segundos para a partida encerrar, arrisco e tento um
chute de três.
Faço os pontos e o jogo se encerra com uma vitória: 84 a 66 para
as Red Fox. Avançamos para a segunda fase do campeonato.
— Vamos beber, cacete! — Jo grita, enquanto pulamos e
comemoramos no meio da quadra.

Não sou de frequentar festas. Eu gosto, assim como a maioria


dos jovens, mas não é uma coisa que cabe na minha rotina, então
acabo deixando esse luxo de lado.
As poucas vezes em que frequentei festas universitárias, foi por
insistência de Joanne, a mesma pessoa que me arrastou para a
festa de hoje, que acontece na casa de um grupo de meninas do
time de vôlei.
Eu, Jo, Alex, Scout e Abby estamos na cozinha, formando uma
rodinha, papeando sobre o jogo de hoje.
— Usamos uma tática baixa, mas funcionou — diz Alex, que se
incomodou com o fato de termos anulado Mia no jogo. Eu também
não gostei, mas momentos de desespero requerem medidas
emergenciais.
— Miss Sunshine, sei que para você é um martírio quebrar as
regras, porém, a vida é assim. Temos que fazer coisas erradas de
vez em quando. — Scout apoia a mão no ombro de Alex,
zombando-a na maior cara de pau.
— Eu consigo quebrar as regras — Alex devolve, ajeitando o
blazer colorido que usa, toda sem graça. — Só me senti um pouco
malvada.
— Uhum — Scout murmura e começa a dar uma risada
sarcástica, enquanto bebe um gole de sua cerveja.
Alex olha para mim, Abby e Jo, buscando nossa opinião, e é
impossível discordarmos. Mesmo sem querer, soltamos risadinhas
que entregam nossas opiniões. Ela cruza os braços, fingindo estar
chateada, mas pelo que conheço de Alex, imagino que nunca ficaria
brava por algo assim.
Continuamos conversando sobre o jogo em um clima ótimo, Abby
dá sua opinião sobre os problemas que tivemos hoje e fico muito
feliz por vê-la participando, por estarmos entrosadas, pelo menos
nesse breve momento. Podemos não ser as melhores amigas do
mundo e desabafar sobre nossos problemas pessoais, mas só de
ficarmos juntas na festa, sinto que estamos dando um grande
passo.
Querendo ou não, somos cinco pessoas muito diferentes em
personalidade, estilo, mentalidade. O basquete nos une, óbvio, mas
temos um abismo de diferença. Eu vim de um lugar tenebroso,
batalhei para chegar aonde cheguei e tenho uma vida um tanto
caótica, além de ter problemas em confiar demais nas pessoas. Alex
é super-romântica e falante, seus pais têm um casamento lindo e
ela sonha em viver um romance de livros. Jo era uma pegadora de
primeira antes de namorar com Anthony e passou o rodo na
faculdade inteira. Abby é a típica patricinha que faz leves
escândalos quando qualquer coisa acontece, que ainda está
tentando encontrar seu lugar no time. E Scout é Scout. Mal-
humorada, sarcástica e reservada.
Além de tudo, só nos vestimos de forma parecida quando
estamos com o uniforme das Fox. Enquanto eu sou a rainha do
jeans e das roupas esportivas, Abby anda de rosa quase vinte e
quatro horas por dia e, nesse momento, está, pasmem, de rosa. Seu
vestido de alcinhas tem um tom claro e é tão curto que deixa boa
parte de suas coxas torneadas à mostra. Ela ainda está com um
salto enorme, não sei como consegue ficar em pé nesse negócio.
Alex está com um blazer colorido em cima da camiseta lisa e
branca, adoro o estilo meio street dela. Scout, por outro lado, adora
uma pegada dark e está com uma saia de couro preta e uma regata
vermelha soltinha. Jo vira de costas para mostrar como a bunda fica
linda na calça branca e justa que comprou — ela é do tipo que se
alterna entre blusas de bandas e cropped.
— Quem quer ver se está durinha? — Jo pergunta, apontando
para sua bunda, convidando-nos para apalpá-la.
Se eu não a conhecesse, estaria abismada com o pedido, mas é
Joanne. Estou acostumada.
Ninguém se manifesta, Scout só bufa e sai para pegar mais
cerveja, Abby e eu permanecemos rindo.
— Vem, Alex! — Jo puxa a amiga pelo antebraço e faz com que
ela toque em sua bunda.
É uma cena bizarra, e é óbvio que bem nesse momento, alguns
garotos do time de futebol americano entram na cozinha. Joshua
Thompson, o crush de Alex, está entre eles.
— A festa começou e vocês nem chamaram, garotas? — Romeo,
o ex-jogador de futebol que tem algumas aulas comigo, pergunta.
— Sai fora, babaca! — Uma voz que tenho conhecido bem
ultimamente reverbera pela cozinha.
Quando vejo, Kahel está na frente de Romeo, desafiando-o. Ele
nem deve saber o que está acontecendo e já chegou querendo
arrumar problema.
— Briga de macho, adoro! — grita Jo, voltando à postura normal.
— Fique quieta, Jo! Meu Deus, nunca vou ter uma chance com o
Joshua desse jeito — Alex sussurra, escondendo o rosto com as
palmas das mãos, de tão envergonhada que está.
Tenho que me segurar para não rir da cena. Abby também,
porque fica com o copo próximo a boca, mordendo a bordinha sem
beber nada, para esconder sua risada.
— Só estou brincando, Williams. Fique na sua — Romeo
responde e, cacete, dá um empurrãozinho no ombro de Kahel.
O capitão dos Tigers dá um passo à frente, quase partindo para
cima de Romeo. Vejo que ele está sozinho então me apresso em
segurar seu braço, para que não faça nenhuma besteira. Joshua faz
o mesmo com Romeo, que parece estar se divertindo com a
situação.
— Vamos sair daqui — ordeno, puxando Kahel para fora da
cozinha.
Ele não para quieto, fica bufando e encarando Romeo durante
nosso percurso até o jardim dos fundos. Quase parece um pinscher
irritado. Só solto seu braço quando saímos do campo de visão de
Romeo.
— O que deu em você? — pergunto, assistindo Kahel andar de
um lado para o outro.
— Aquele cara não presta e estava enchendo o saco de vocês.
Só fui ajudar — justifica, seus olhos castanhos estão consumidos
pela raiva.
— Nós não precisávamos de ajuda. Sabemos nos cuidar —
rebato, passei a porra da minha vida toda saindo de situações muito
piores do que essa.
Kahel anda na minha direção, passando a mão no cabelo escuro,
a expressão ainda mais perturbada, graças ao que falei.
— Se eu achar que vocês estão em uma roubada, vou ajudar
sim, James. Prefiro me arrepender de me meter em uma briga do
que ver qualquer garota sofrendo nas mãos de um babaca!
Por algum motivo, sinto que Kahel não está só nos defendendo
porque tem uma rixa com Romeo. Há algo pessoal escondido em
seu olhar.
Antes que eu tenha a chance de perguntar o que, Joanne
aparece na varanda, arrastando Anthony consigo. O namorado deve
ter acabado de chegar na festa.
— Aí estão vocês! Nós vamos jogar verdade ou desafio. Querem
vir? — pergunta como se nada tivesse acabado de acontecer,
porque Jo é um tanto sem noção.
— Não estamos mais no colégio, Jo — respondo, sinto que
participar de uma brincadeira dessas é quase como comprar um
ingresso para o caos.
— Ah, Leah, por favor! Todo mundo vai jogar. — Ela faz um
biquinho pedinte com os lábios.
— Até vocês dois? — indaga Kahel, entrando na conversa.
— Claro! — Jo dá um beijinho na bochecha de Anthony, que cora
com o ato.
Eles são tão, mas tão diferentes. Jo é extrovertida, expansiva,
sempre quer se mostrar, falar com todo mundo. Anthony é um nerd
tímido, usa óculos e está sempre com camisetas esquisitonas de
animes. Minha amiga o envergonha metade do tempo, mas sinto
que Anthony gosta. Ele é rendido demais por ela, topa qualquer
coisa que Jo inventar.
— E se alguém desafiar o Anthony a beijar outra pessoa? —
Kahel provoca, mas Jo nem se afeta.
— Nós só vamos escolher verdade, não é, amor? — ela pergunta
para Anthony, abrindo um sorriso largo que só ela sabe fazer. — E
ninguém seria corajoso o suficiente para pedir para Anthony beijar
outra.
O namorado de Jo espelha seu sorriso abobalhado, o modo
como ele a encara é encantador, respeitoso, apaixonado. Ninguém
nunca olhou para mim dessa forma, com tanto desejo. Me pergunto
como deve ser ter alguém tão rendido assim por você.
— Podemos fazer o que você quiser, linda — ele responde
puxando-a pela cintura, dando um rápido beijo em seus lábios.
Kahel me olha com uma careta de nojo. Não compartilho do
mesmo sentimento. Acho os dois fofos.
— E aí, nós vamos? — Ele faz um sinal, apontando para dentro
da casa e eu me pergunto em que momento eu e Kahel nos
tornamos “nós”.
— Eu vou, agora se você vai, eu já não sei. — Me aproximo dele
e dou dois tapinhas no seu peito. — Ah, e não existe um “nós”. —
Aproveito para reforçar, já eliminando qualquer ideia que sua mente
tenha formado.
Kahel ergue as mãos em rendição, fugindo de qualquer culpa.
Reviro os olhos e sigo Jo e Anthony para dentro da casa. Os dois
fofocam durante o caminho, Joanne chega até a me olhar vez ou
outra, fazendo com que eu tenha certeza de que sou o tópico da
conversa. Ela encanou com essa história de me empurrar para cima
de Kahel e de ver coisa onde não tem. Tenho até medo do que a
maluquinha da minha amiga pode fazer.
Vários garotos do time de basquete estão sentados em círculo na
sala, vejo que as meninas do time de vôlei, donas da casa, também
vão participar da brincadeira, assim como as garotas que moram
comigo. Me sento junto à Scout, que está ao lado de Abby, para
minha completa surpresa.
— Você vai jogar? — questiono e recebo um olhar revoltado de
Scout como resposta.
— Não por vontade própria.
— Ela vai jogar para fazer companhia para mim! — diz Abby,
enlaçando o braço no de Scout.
Dou uma risada contida com a cena, Abby parece ter pegado
Scout para cristo, é impressionante como adora encher o saco dela.
— Vamos começar essa porra! — Miranda, a melhor amiga de
Kahel, chega com uma garrafa vazia, posicionando-a no meio da
roda. Ela se senta no colo dele, agarrando seu pescoço, enquanto
ele abraça sua cintura. Dá para ver que Miranda está um pouco
alcoolizada, assim como boa parte dos meninos do time. Ver gente
bêbada não me agrada nem um pouco.
— Eu começo! — Sebastian anuncia, se levantando para girar a
garrafa. A parte traseira aponta para Scout e o bico para ele. É Seb
quem terá que respondê-la.
— Verdade ou desafio, Torres? — ela pergunta a ele, nitidamente
com má vontade de participar desse jogo.
— Desafio, Docinho.
O apelido que ele usa faz Jo ficar boquiaberta de animação e se
manifestar: — Meu Deus, me diz que você está se referindo às
Meninas Super Poderosas?
— Acertou em cheio, Lindinha! — Sebastian aponta para ela e Jo
aplaude em comemoração, adorando o novo apelido que Scout
acaba de ganhar.
Nossa amiga, entretanto, a ignora.
— Te desafio a beijar a Abby. Com língua e tudo, por favor. — Ela
lança para Sebastian, a expressão nem sequer se altera, mesmo
depois de ele tê-la zombado na cara dura.
Abby encara Scout com os olhos arregalados. Está nítido que ela
não esperava ser incluída no desafio, mas Scout é do tipo vingativa.
Não dá para mexer com ela.
A roda toda começa a gritar e Abby se levanta para andar até
Seb. Ele a agarra pela cintura, Abby tem que ficar na ponta dos pés
para conseguir beijá-lo. Os dois acabam se empolgando e se
agarrando mais do que o tempo necessário. Entendo, Seb beija bem
mesmo.
— Arrumem um quarto! — Mav grita e bem na hora os dois se
separam.
Abby volta para o seu lugar saltitando, não tenho dúvidas de que,
no fim das contas, adorou o desafio. Scout balança a cabeça em
negação, provavelmente achou que a caloura não aproveitaria o
momento e ficaria brava com ela por ter proposto o beijo.
— Boa, Abby! — Estendo minha mão para que ela me
cumprimente, mostrando que adorei a cena.
O jogo segue e Miranda escolhe verdade, perguntam a ela se
realmente sua amizade com Kahel é só uma amizade e a garota
grita para quem quiser ouvir: — Se eu fosse hétero, a primeira
pessoa em quem eu sentaria, seria o Kahel. Quem sabe em outra
vida! — Dá de ombros e ele dá risada da resposta dela, puxando
seu rosto para dar um beijo em sua bochecha.
Esboço um sorriso com a cena, a amizade deles é fofa de se
assistir, mesmo ele sendo quem é.
A garrafa é girada outra vez e Kahel fica com a missão de
responder. Olho para a outra ponta da garrafa e percebo que é Jo
quem irá fazer as perguntas. O sorrisinho malicioso em seu rosto
mostra que minha amiga está planejando coisas indevidas. Só
espero que Kahel não escolha...
— Quero desafio, Hudson — fala com uma convicção insana.
Qual o problema dele? É óbvio que Jo vai inventar algo
desagradável. Está estampado na cara dela!
— Fique dez minutos trancado com a Leah dentro do armário, no
escuro. — Assim que o desafio é lançado, a roda inteira cora em
comemoração.
Claro que Joanne me incluiria nessa merda.
— Vai capitão! — Miranda e Mav batem no ombro de Kahel
enquanto ele se levanta, parece até que vamos nos pegar dentro do
armário.
Por que eu fui aceitar entrar nessa merda de jogo? É isso que
acontece quando tento ser social.
— Vai capitã! — Alex e Jo, sentadas lado a lado, batem palmas
para me incentivar, Joanne faz Anthony entrar na dela, obrigando-o
a se juntar ao coro.
Abby e Scout me empurram para que eu levante e, a contragosto,
fico frente a frente com Kahel.
— Animada para os nossos dez minutos no paraíso, princesa? —
provoca, até parece que está feliz com essa merda de invenção.
— Eram só sete, na brincadeira original — rebato e os gritos
mudam para um uivo. Tenho a impressão de que eles estão se
divertindo às custas das nossas provocações.
— Então hoje é seu dia de sorte, capitã, porque acabou de
ganhar três minutos extras comigo. — Mais um coro é declamado e
Kahel abre os braços, se vangloriando por sua réplica.
Depois do que conversamos na quadra, descobri que ele só faz
isso porque precisa provar aos outros que é o melhor, de tão
inseguro que é. Entendo o motivo e toda a história por trás do
sentimento, mas não torna o ato menos irritante.
Saio batendo os pés na direção do tal armário, que fica em uma
das paredes da sala. Abro a porta e vejo que o lugar é minúsculo,
sem iluminação e está lotado de tralha. Me posiciono em um dos
cantos, Kahel entra e fecha a porta.
Está um completo breu.
— Acabei de perceber que não te parabenizei pela vitória de
hoje, James — ele começa a falar literalmente um segundo depois
de se posicionar à minha frente.
— Obrigada — respondo, seca.
— Não vai me parabenizar pela minha vitória? Os Tigers deram
um pau no outro time! — Se vangloria, virando a conversa para si
mesmo, como sempre faz.
— Vocês não fizeram mais do que a obrigação — devolvo, o
adversário deles era um time muito mais fraco, só um azar muito
grande para perderem.
— Nossa, que grossa! Ficou bravinha com a provocação do
desafio? — Ele usa um tom de zoação que odeio. O pior é que
Kahel sabe que odeio, e é exatamente por isso que fala dessa
forma.
— Estou acostumada com as suas besteiras. Só não entendi por
que ficou tão animado em ficar preso comigo — jogo no ar, tentando
compreender qual é a dele.
— Achei que seria uma boa oportunidade para conversarmos.
— Ah, é? Engraçado, você ficou irritado com a babaquice do
Romeo, mas foi tão babaca quanto ele alimentando a imaginação
das pessoas em relação a esse desafio.
Kahel solta uma risadinha.
— Eu estava brincando, Leah, diferente daquele cara, que estava
fazendo na maldade. — Em sua voz, percebo o quanto ainda está
incomodado com a situação com Romeo.
Estamos no escuro, não dá para ver sua expressão, só enxergo
sua silhueta, por causa da luz que entra pelas frestas da porta. É o
momento perfeito para questionar o porquê desse seu
descontentamento.
— Sinto que esse seu estresse pelo que o Romeo disse tem um
motivo maior.
— E você quer saber qual é?
— Vamos ficar aqui por dez minutos, não temos o que fazer, a
não ser conversar.
— Terei que discordar de você, princesa. Acho que temos
diversas possibilidades.
Mesmo sem vê-lo, posso sentir seu sorrisinho de cafajeste.
Babaca.
— Não, obrigada. — Me apresso em negar para que Kahel pare
com essas gracinhas. — O máximo que você terá de mim é um
diálogo sincero, talvez com um xingamento aqui e ali.
Kahel solta um riso irônico, imagino que esteja mexendo no
cabelo crespo, pelo movimento do seu braço.
— Miranda costumava ser assim como você, ficava brava quando
eu intervinha por ela. Quando estávamos no colégio, um cara tentou
ficar com ela em uma festa. Miranda disse que não, mas ele não
desistiu. Ficou enchendo o saco dela, não deixou que ela se
desvencilhasse do seu toque. Eu vi a cena de longe, achei que era
melhor deixá-la se virar, como ela sempre me pedia. No fim das
contas, ele a agrediu verbalmente quando descobriu que ela é
lésbica e Miranda teve que gritar por socorro. Quebrei o nariz do
cara e fiquei fora de alguns jogos por causa da agressão, mas faria
tudo de novo. Ninguém mexe com a minha Smurf.
As palavras de Kahel me fazem conhecer um outro lado dele. Já
entendi que é um garoto família, que se cobra demais para se
igualar ao pai e, agora, descobri que é um leão quando se trata de
proteger os outros.
— Ainda bem que Miranda tem você. — Soo doce, diferente de
como ajo com ele em dias normais.
— Eu que preciso agradecer por tê-la. Miranda é única na minha
vida.
Sorrio com o amor que sinto em sua voz. Kahel ainda é o garoto
mimadinho e insuportável que eu conheci, mas agora consigo ver
que há muito que não sei a seu respeito. Outra vez, me lembro da
conversa sentimental que tivemos na quadra, que terminou com
uma insinuação invasiva da minha parte.
— Desculpe por ter praticamente te dado um sermão no dia em
que falamos com os times. Tenho um problema sério de querer
consertar os problemas dos outros, de me importar demais com
todo mundo que está à minha volta.
— Você se importa comigo? — Kahel pergunta, um tom animado
e um tanto engraçadinho tomando conta de sua voz.
— Não somos amiguinhos, se é o que você está pensando. Só
sou o tipo de pessoa que quer ter o controle de tudo. Quando vejo
alguém que tem dúvidas sobre o futuro, que está assustado com
alguma coisa, já logo quero resolver o problema.
Nunca tive espaço na minha vida para ter medo, acho que é por
isso que essa situação de Kahel me incomodou tanto. Se eu não
fizer o que preciso, não pago minhas contas, não me formo na
faculdade e não consigo dar uma vida melhor para minha irmã. No
meu plano, não há espaço para erros.
— Você me fez refletir sobre mim mesmo, James. Não se
desculpe.
— De nada, então. — Dou de ombros, mesmo que ele não possa
ver, e Kahel acaba rindo.
— Quem diria que nós estaríamos presos em um armário sem
nos matar! Antes de começarmos a trabalhar juntos, eu teria certeza
de que você traria uma faca para tentar me assassinar aqui mesmo.
— Sério? É disso que você pensa que sou capaz? — Começo a
gargalhar, imaginando a cena digna de um dos filmes de terror que
assisto.
— Ah, não, princesa. Tenho certeza de que você é capaz de
muito mais. — Sua frase não carrega só o ar de gracinha com que
estamos conduzindo essa conversa. Carrega segundas intenções.
Nunca sei se Kahel está brincando, se não consegue não agir
como um conquistador ou se realmente está querendo tentar
alguma coisa comigo.
Também não tenho tempo de perguntar ou tentar entender,
porque a porta se abre e Miranda e Sebastian nos puxam para
voltar a brincadeira.
Lute contra o medo
Levante-se do chão
Vou fazer você acreditar

The Fear – The Score

Acordo no meio da madrugada com o meu celular vibrando


loucamente. Sinto uma dificuldade gigantesca de abrir os olhos e
entender o que está acontecendo. Não cheguei em casa tão tarde,
mas tenho o sono pesado, meu corpo já está condicionado a apagar
quando deito na cama. Tenho poucas horas de sono, é essencial
que cada uma seja muito bem aproveitada.
Me remexo devagar, tateando a mesa de cabeceira para procurar
o celular. Consigo achá-lo, mas estou tão sonolenta que quase o
derrubo no chão. Resmungo comigo mesma e, com muita
dificuldade, olho o visor.
São três horas da manhã e minha irmã está me ligando.
— Hales! O que foi? — pergunto enquanto sento na cama
abruptamente, perdendo o sono na hora.
Hailey só me ligaria no meio da noite se algo ruim tivesse
acontecido.
— A mamãe chegou em casa muito bêbada, Leah. Tentei colocá-
la no chuveiro como você ensinou, mas ela é pesada e eu...
— Estou indo aí. — Nem deixo que Hailey termine de falar.
Me levanto da cama, jogando os lençóis para o lado, correndo
pelo quarto para achar uma roupa. Tiro meu pijama e, em segundos,
já estou vestindo um moletom das Red Fox e um shorts velho.
Desço as escadas da casa correndo, sem me preocupar com a
possibilidade de acordar algumas das meninas. Tivemos jogo hoje e
depois passamos a noite em uma festa. Está todo mundo
desmaiado.
Estou quase saindo de casa quando me lembro que estamos no
meio da madrugada. Não há nenhum ônibus passando esse horário.
Pego meu celular e procuro pelo aplicativo do Uber, mas não
encontro nenhum motorista disponível para fazer a viagem até o
bairro mais pesado da cidade.
Fico sem saber o que fazer, até que uma ideia me ocorre. Olho
para as chaves do carro de Abby, dispostas em uma das mesas da
entrada e rezo para que ela não se importe com esse pequeno
empréstimo.

Nunca tive um carro e sou uma péssima motorista. Treinei muito


pouco, sou insegura dirigindo e faço inúmeras besteiras. Consegui
chegar até a casa da minha mãe viva, mas só porque não havia
nenhum outro carro na rua.
Estaciono o pobre veículo, que sofreu tantos nas minhas mãos
nos últimos minutos, de qualquer jeito. Saio em disparada até a
casa e bato na porta com certa ferocidade.
Não é a primeira vez que preciso socorrer minha mãe. Na
verdade, deve ser a milésima. Tenho cuidado de suas bebedeiras
desde que me conheço por gente. E nos últimos anos, após a morte
do meu pai, tudo só piorou.
Hailey abre a porta abruptamente, seu rosto jovem está
aterrorizado. Ela só tem quinze anos, como pode lidar com a visão
da própria mãe se ferindo desse jeito?
— Estou aqui agora, Hales. Eu cheguei. — Puxo-a para um
abraço e sinto quando solta a tensão do corpo, começando a chorar.
Tenho que respirar fundo para não desabar. Tudo o que eu queria
era chorar junto com ela e lamentar pelo que temos que passar, mas
tenho que socorrer minha mãe.
— Pegue um copo de água e me encontre no banheiro, ok? —
peço, dando um beijo carinhoso em sua testa.
Hailey assente sem contestar, enxugando as próprias lágrimas
com o antebraço e partindo em direção à cozinha. Ela tenta
permanecer forte, assim como eu, mas se permite desabar, coisa
que raramente faço. Me sinto uma merda por ver minha irmã ser tão
quebrada quanto eu fui. Queria poder fazer mais por ela. Um dia,
vou fazer. Preciso fazer.
Sigo para o quarto da minha mãe, abrindo a porta sem muita
delicadeza. Quando a vejo no chão, com as pernas flexionadas e o
rosto encostado no piso, um cheiro de vômito me atinge, e percebo
que ela está em seu pior estado.
Caminho devagar até ela, mexendo em seu corpo para ver se
acorda. Minha mãe só resmunga, nada consciente. Ela não é uma
pessoa leve, mas sou forte e não há escolha a não ser movê-la.
Manobro seu corpo até que esteja com um braço no meu ombro.
Seguro sua cintura com firmeza e vou andando com dificuldade até
o banheiro.
Coloco-a sentada no chão do box e começo a tirar suas roupas, o
fedor me deixa enjoada demais. Escuto Hailey chegando e me viro
para olhá-la. Minha irmã deixa o copo de água na pia e ameaça se
aproximar, mas nego com a cabeça.
— Só coloque as roupas dela para lavar e limpe o que der do
quarto. Depois, pode ir dormir.
— Você acha que vou dormir com a mamãe passando mal desse
jeito? — Aponta para a mulher caída em meus braços, a feição
inconformada por eu ter sequer cogitado isso.
Suspiro, porque seria tão, tão mais fácil se ela só me
obedecesse. Mas Hailey não vai sair daqui. Minha irmã está
consciente de todos os problemas que cercam nossa família e sabe
que quando algo assim acontece, o ideal é nos reunirmos para
resolver. Eu queria que fosse diferente, protegê-la sempre é meu
maior objetivo e se ela aceitasse, eu a deixaria longe de situações
como essa sempre.
— Me ajude com ela, então — peço, cedendo à vontade de
Hailey.
Minha irmã se aproxima e oriento o que precisa fazer. Ela me
auxilia tirando a roupa da nossa mãe, o trabalho fica muito mais fácil
e logo conseguimos colocá-la embaixo do chuveiro. Minha mãe
acorda, mas ainda está bêbada demais para sintonizar o que está
acontecendo. Eu e Hailey a limpamos, damos água, vestimos e
colocamos na cama. É uma cena horrível, um trabalho que filhas
nunca deveriam ter que fazer pelas mães. Ver a mulher que me deu
a vida dessa forma, fragilizada e afundada em seu vício, me faz
perder um pouco o brilho.
Conviver com um familiar alcoólatra não é brincadeira. É uma
coisa que te destrói pouco a pouco, até que você esteja tão
mergulhado nos problemas da pessoa que praticamente vive em
função dela.
Demoramos pelo menos duas horas para limpar toda a bagunça
do quarto. Minha mãe está tão chapada que não escuta nossa
movimentação. Limpamos o chão vomitado, lavamos suas roupas,
recolhemos uma garrafa de bebida que encontramos vazia.
Quando terminamos, estamos exaustas. Preciso voltar para casa
porque tenho aula em algumas horas, mas tiro mais alguns minutos
para dar colo à minha irmã. Hailey está com a cabeça apoiada em
mim, o cabelo ruivo está solto como ela quase nunca usa,
levemente ondulado por estar sempre preso em suas habituais
tranças.
— Eu queria que tivéssemos uma família normal — minha irmã
desabafa e assinto, quase rindo de forma irônica.
— Talvez na próxima vida. — Não posso entregar falsas
esperanças a ela.
Hailey se levanta, sentando ao meu lado. Sua figura é tão
pequena, parece tão frágil.
— E se nós tentássemos colocar a mamãe na reabilitação de
novo? Ou fazê-la voltar às reuniões?
Faço um carinho leve em sua bochecha, segurando-a para que
preste atenção no que vou dizer.
— Não temos mais o papai para ajudá-la a se reerguer ou para
cuidar de você enquanto ela se cura. Ela não vai ficar sóbria sem
ele, muito menos seguir o tratamento. Você sabe como são as
coisas, Hales.
Minha irmã fica triste, mas sabe que estou falando a mais pura
verdade. Já tentamos de tudo e mais um pouco com ela e nunca
deu certo. Quando meu pai ainda estava vivo, as coisas eram
melhores, mas nunca foram totalmente resolvidas. E eu não acho
que serão.
Puxo Hailey para que ela se encoste em mim, tentando entregar
o carinho que não recebemos através do meu toque.
Eu queria ter esperanças, queria acreditar que as coisas vão
melhorar, contudo, a vida já me derrubou tanto, que não tenho fé em
mais nada.

A força do meu corpo sendo forçado para frente me desperta


brutalmente. Sinto minha cabeça latejar e toco na testa para ver se
não me cortei. Demora até que eu me situe na cena. Lembro de ter
ficado na casa da minha mãe até Hailey dormir no meu colo. Eu a
acordei só para levá-la a cama e peguei o caminho para casa.
São seis da manhã e o carro de Abby está com a frente colada
em um poste, o que significa que dormi no volante. Não me lembro
da cena, estava tão apagada que não faço ideia de como isso
aconteceu.
Desço do carro para ver o estrago e, graças a Deus, não é dos
piores. O capô amassou um pouco e vai precisar ser trocado, mas
podia ter sido muito pior. A grande questão é que Abby não sabe
que peguei seu carro emprestado e vou ter que voltar para a casa
com a notícia de que não só o roubei temporariamente, como dormi
no volante e bati.
Estou tão cansada que minha mente nem consegue procurar
muitas soluções, só entro de volta no carro, dou ré e retomo meu
caminho.
Passo o percurso todo pensando em como vou sobreviver às
aulas, aos treinos e ao trabalho sem ter dormido. Ainda por cima,
combinei uma rápida reunião com Kahel logo após o treino da tarde,
para discutirmos sobre o baile.
Estaciono na garagem da toca das raposas, deixando esses
problemas para mais tarde. No momento, preciso me explicar para
Abby. Estamos nos conhecendo melhor e vou chegar logo com uma
notícia dessas. Não é um bom começo de amizade, definitivamente.
Entro na casa achando que vou ter um tempo para tomar um
banho e me recompor, mas todas as garotas já estão na sala. Alex,
Jo e Scout estão sentadas no sofá, uma com uma careta mais feia
do que a outra, enquanto olham para Abby, que está andando de
um lado para o outro.
— Eu nunca vou ser feliz sem a Baby. Esse carro é como uma
filha para mim! — resmunga, chorosa, batendo as mãos nas coxas
como só uma patricinha faria.
Arranho a garganta para chamar atenção e as garotas olham
para mim. Abby corre na minha direção e segura meus braços, os
olhos claros tomados pelo desespero.
— Leah, me diz que você estava com a Baby, que minha filha
está segura!
— Eu estava, sim.
— Ah, graças a Deus! — Abby me solta e puxa o cabelo loiro
para trás, aliviada. Poucos segundos depois, volta a olhar para mim,
parecendo lembrar de alguma coisa. — Por que você pegou meu
carro sem me dizer?
Fecho os olhos por um momento, está na cara que estou
abalada, nem se eu fosse a melhor atriz do mundo, conseguiria
esconder minha frustração.
— Me desculpe, Abby. Tive uma emergência familiar. Não faria
nada do tipo se não fosse muito necessário — justifico, com medo
de ela achar que sou o tipo de amiga que empresta as coisas dos
outros sem pedir.
— Leah, você está bem? — Alex pergunta, se levantando e vindo
na nossa direção, querendo analisar meu rosto de perto.
Não há nenhuma marca do acidente, mas é nítido que algo
aconteceu.
— Eu bati o carro — revelo e Abby começa a chorar
desesperadamente, se jogando em Alex, agarrando o pescoço da
nossa amiga para buscar consolo.
Jo e Scout também se levantam, se aproximando de nós, mas
enquanto a namorada de Anthony chega perto de mim para ver
como estou, Scout se mantém um pouco mais distante.
— O que aconteceu, Leah? — Joanne pergunta, o cenho está
franzido, dá para ver que está preocupada comigo.
As quatro me encaram e eu quase revelo tudo. Por pouco não
conto que tive que resgatar minha mãe bêbada, que esse é um
problema recorrente na minha vida. No fim, recuo e desisto, como
sempre faço.
— Dormi no volante e bati em um poste — conto só o básico, o
que acaba arrancando mais lágrimas de Abby.
— A Baby nunca tinha sido batida antes — choraminga, ainda
agarrada a Alex. — Mas o importante é que você não se machucou.
Graças a Deus não foi nada forte e a Baby tem um ótimo sistema de
segurança.
— É, eu estou bem. Não aconteceu nada, foi só o susto. Me
desculpe mesmo, Abby — digo, envergonhada até o último fio de
cabelo. — Prometo que vou pagar pelo conserto.
Abby se desgruda de Alex, enxugando os olhos com as mãos,
focando novamente em mim.
— Não precisa, Leah.
Entendo a atitude dela, as Fox não sabem de toda a minha
história, mas devem imaginar que não tenho o mesmo privilégio que
elas.
— Eu faço questão — reforço, porque não vou deixar que ela
pague pelo meu erro.
— Eu jamais aceitaria, é sério. É meu carro — Abby afirma, mas
não vou ceder.
— Abby, vou pagar e ponto. Eu peguei emprestado, eu bati, eu
pago pelo conserto. — Soo um pouco mais dura, encerrando de vez
essa conversa. — Agora vamos tomar café da manhã, temos treino
de musculação daqui a pouco.
Ninguém faz mais perguntas, fica claro que o assunto acabou e
que não quero discutir o que me levou a pegar o carro de Abby
emprestado. Jo e Alex vão para a cozinha preparar o café, Scout diz
que vai tirar um cochilo no sofá enquanto elas trabalham — já que a
louça vai ser dela — e peço para Abby me esperar, porque já quero
pagá-la agora.
Vou até o meu quarto rapidamente, abrindo uma das gavetas da
minha escrivaninha e pegando a caixa onde tenho guardado
algumas gorjetas. A ideia era usar o dinheiro para pagar uma
parcela da dívida com Axel, mas o carro de Abby, no momento,
precisa ser minha prioridade. Meu ex-namorado pode aguardar mais
um pouco. Ele mesmo disse que estava tudo bem, que eu poderia
pagar quando pudesse.
Volto para a sala e entrego as notas na mão dela.
— Leah...
— Não fale nada, só aceite, por favor. Não sei quanto vai ser o
conserto, mas espero que essa quantia cubra. Se não cobrir, arranjo
um jeito de te dar a diferença. — peço, implorando com meu olhar,
para que veja o quanto preciso de sua cooperação. — Me desculpe
mais uma vez. Prometo que não pegarei mais seu carro.
— Tudo bem, Leah, de verdade. Eu cubro o resto, não se
preocupe com isso. O que importa é que você está bem. — Abby
me dá um rápido abraço, esboçando um sorriso que me faz ter
certeza de que nossa relação permanece intacta.
Jo e Alex anunciam que a comida já está pronta e meu estômago
ronca, implorando por alimento. Estou cansada, com os reflexos
péssimos e o raciocínio mais lento que alguém de ressaca
treinando, mas não há o que fazer.
Tenho um dia longo pela frente.
É um sinal humano
Quando as coisas dão errado
Quando o cheiro dela perdura
E a tentação é forte
Cold Heart – Elton John, Dua Lipa e PNAU

Passei a semana toda planejando o baile que faremos para


arrecadar dinheiro. Cabulei algumas aulas para me reunir com o
departamento esportivo da faculdade, com alguns fornecedores e
com meu pai, para que ele me passasse os contatos de pessoas
influentes que podem nos ajudar com as doações. Ele pareceu bem
feliz com o meu empenho, sinto que essa arrecadação fará com que
ele me enxergue como um jovem que tem responsabilidade.
Confesso que isso me deu mais combustível ainda para continuar
me esforçando em fazer meu melhor trabalho. E o esforço ainda
valeu mais a pena por conta da expressão de Leah. A reação dela
ao ver meu trabalho está impagável. Se a capitã das Fox achou que
só ela conseguia organizar as coisas direito, está muito enganada.
— A KSU concordou em nos emprestar o salão de gala? —
questiona, abismada. O salão só é usado em eventos especiais da
faculdade, é raro que deixem o departamento esportivo organizar
algo no lugar. — E você arranjou o contato desses caras? —
pergunta, olhando para a lista que entreguei a ela.
— Ainda não os convidei, mas é nosso próximo passo. A
propósito, Lilly me ajudou a esboçar uma ideia de convite. — Pego
na minha pasta a folha em que minha irmã desenhou e estendo-a
para que Leah a segure.
O plano é que o convite seja branco e tenha a rede da cesta
desenhada ao fundo de uma forma transparente, para que não
atrapalhe as informações escritas. Os símbolos das Red Fox e dos
Red Tigers estão dispostos cada um em um canto, na parte superior
do papel. Abaixo, está o texto convidando para o baile, explicando
que será um evento para arrecadar dinheiro para ambos os times.
Leah está abismada, os olhos não desgrudam da folha,
passeando pelas informações. Quando levanta a cabeça, abre um
sorriso e tenho, pela primeira vez, a visão de seus dentes brancos.
Alguns são tortos, porém, acho que esse é um detalhe charmoso.
Uma imperfeição em meio a imagem perfeita que ela tenta manter.
Leah já é bonita normalmente, mas quando sorri de forma genuína,
fica ainda mais. E eu não deveria estar reparando tanto em uma
garota que nem me dá bola. O problema é que é inevitável. Quando
vejo, já estou pensando no que não devo.
— Estou impressionada, Williams — admite e sou eu quem
sorrio, parece até que venci um campeonato, de tão alegre que fico.
— Você fez um trabalho incrível.
Leah James está me elogiando. A garota mais certinha e
exigente das Red Fox, que alegava me odiar até ontem, que as
vezes eu ainda acho que me odeia um pouco, me elogiando.
Surreal.
— Nós fazemos uma boa dupla, princesa. — Pisco para ela, meu
lado conquistador não se aguenta, preciso aproveitar todas as
brechas que aparecem.
Leah já se acostumou com o meu jeito, então só nega com a
cabeça e volta a falar sobre o trabalho que estamos fazendo juntos.
A venda de garagem irá acontecer em alguns dias e ela ficou
responsável por organizar os itens que nossos colegas de time vão
levar para contribuir com a venda. Leah acaba bocejando no meio
da fala, mas logo volta a explicar o que tem planejado como se nada
tivesse acontecido. Observo que seus olhos verdes estão fundos, as
olheiras escuras, o rosto exala cansaço.
Quando ela boceja uma segunda vez, resolvo perguntar: — Você
não quer descansar um pouco? — ofereço, apontando para minha
cama, onde Leah está sentada.
Viemos fazer a reunião no meu quarto para termos mais
privacidade, já que, quando chegamos, Miranda estava assistindo
um filme na sala. Estou sentado na escrivaninha, um pouco distante
de Leah, tentando não sufocá-la, evitando uma briga.
— Não — responde de forma direta, mas emenda a fala em outro
bocejo.
— Você precisa trabalhar depois, descanse um pouco — insisto,
nossa reunião tem um prazo de validade, Leah tem que estar na
Small Snack daqui uma hora.
A ruiva me fuzila, é a típica pessoa que odeia receber ordens,
principalmente vindas de mim.
— Vamos continuar, precisamos usar esse tempo.
Como é teimosa, puta merda.
— Você vai pelo menos jantar antes de ir pro trabalho? —
questiono, essa menina parece uma máquina, já treinou, assistiu
suas aulas e ainda vai trabalhar. Não sei que horas ela descansa.
Bom, visto sua aparência, chego à conclusão de que não
descansa.
— Não vai dar tempo — responde com sinceridade e inclino
minha cabeça para o lado, lançando-a um olhar desconfiado.
— Vou pedir alguma coisa pra nós — anuncio, sem dar espaço
para que ela conteste.
Mas Leah sempre arranja uma brecha.
— Não precisa. Temos muito o que resolver...
— Eu vou pedir, princesa. Enquanto a comida não chega, a gente
trabalha. Depois, você vai comer. Não dá para ir trabalhar sem nada
no estômago.
Sou incisivo, então Leah fica quieta. Só não retruca porque sabe
que eu estou certo. O ritmo de sua rotina é insano.
Continuamos trabalhando até a comida chegar. A venda de
garagem está toda organizada e só faltam detalhes para que o baile
termine de ser planejado. Estou ansioso para que os dois eventos
aconteçam logo, nós cumpramos a missão e voltemos a focar
totalmente no campeonato.
Desço para pegar a comida, percebendo que Miranda saiu, e
quando volto para o quarto, vejo que Leah está dormindo na minha
cama. Ela foi vencida pelo cansaço, dá para ver que deitou de
qualquer jeito, deve ter decidido apenas encostar um pouco as
costas e acabou pegando no sono.
Coloco a comida na escrivaninha e me sento, observando
enquanto ela dorme. Sempre achei Leah bonita. Porém, seu rosto
normalmente está fechado, ela passa boa parte do tempo com um
semblante irritado e preocupado. Mas agora, aqui, dormindo na
minha cama, está serena, livre de qualquer preocupação, relaxada,
ainda mais linda.
Me levanto e procuro por uma coberta em meu armário. Está
começando a esfriar e Leah pode ficar com frio. Cubro seu corpo
com delicadeza, afofando a coberta, deixando minhas mãos por
tempo demais em seus ombros.
Sinto vontade de acariciar seu rosto, de ver se sua pele branca é
tão macia quanto parece. De acariciar seu cabelo, de enfiar meus
dedos nos fios ruivos...
Não tento controlar minha mente dessa vez. Deixo que meus
pensamentos fluam e, como imaginado, eles me levam para um
caminho perigoso. Penso em como seria se eu estivesse deitado ao
lado dela. Se eu abraçasse sua cintura. Se a gente estivesse se
beijando...
Será que seria tão ruim assim me envolver com ela? Só uma
ficada. Um beijo. Um momento para matar minha curiosidade. Uma
única vez.
Só uma.
Assim, elimino Leah de vez dos meus pensamentos.
É o que sempre faço. Fico curioso, beijo, transo, o encanto acaba
e eu sigo minha vida.
Dá certo com todos e todas. Vai dar certo com Leah também. Isso
se ela me permitir avançar, se me permitir adentrar suas barreiras,
se me permitir tocá-la do jeito que tanto tenho imaginado.

Leah abre os olhos devagar, se espreguiçando de uma forma


fofa. Demora até que ela sintonize e entenda onde está. Quando
percebe minha figura, franze a testa e se sobressalta, procurando
pelo celular no colchão. Quando acha o aparelho e vê as horas, o ar
relaxado vai embora e traz de volta a garota que eu conheço.
Tudo o que é bom dura pouco.
— Estou uma hora atrasada pro trabalho! Por que não me
acordou? — questiona, se levantando abruptamente, pegando sua
bolsa, arremessada em um canto do quarto. — Não acredito que caí
no sono! — resmunga consigo mesma, batendo na própria testa. —
Preciso ir! — anuncia, mas me levanto e não deixo que ela saia pela
porta.
— Sloan ligou perguntando por você, eu disse que você tinha
pegado no sono — começo a contar, informando-a sobre o que
aconteceu.
Leah arregala os olhos.
— Como assim? — questiona, indignada por eu ter tomado essa
decisão por ela.
— Está caindo o mundo lá fora. — Aponto para a janela no
momento em que um trovão ressoa. Leah dá um pulinho para o
lado, assustada com o barulho. — Começou a chover logo depois
que você dormiu. Sloan disse que não tinha movimento na
lanchonete, ninguém estava conseguindo chegar até lá, então ela te
cobriu com seu chefe, falou para ele que você tinha ficado presa na
faculdade.
— Eu realmente precisava das gorjetas de hoje. — Sinto a dor
em sua voz e meu coração se aperta ao ver sua expressão.
Minha vontade é abraçá-la e dizer que vai ficar tudo bem, só para
tentar fazer com que o sorriso volte para o seu rosto. O mundo
parecia mais belo quando ela estava sorrindo.
— Mas também precisava descansar — rebato, tentando fazê-la
enxergar um outro lado da situação.
Leah cruza os braços, novamente se fechando para mim. Com
ela, é sempre um passo para frente, três para trás.
— Isso tudo não é problema seu, Kahel. Devia ter me chamado e
deixado que eu decidisse por mim mesma.
— Bom, agora já foi! — Dou de ombros, ela continua me olhando
feio. Voltamos à estaca zero.
— Vou embora. — Ameaça sair pela porta, mas eu a seguro de
novo.
— Leah, tentar ir para qualquer lugar agora é loucura. Está
chovendo demais.
— Vou pedir um táxi.
— Acha mesmo que alguém vai topar uma corrida com uma
chuva dessas? Fique aqui. Depois eu te levo pra casa. — Tento
colocar um pouco de juízo na cabeça dela. Moramos em uma
cidade litorânea com altos volumes de chuva. Kingston Beach fica
um caos em noites como essa.
Leah continua emburrada, não está levando nada do que eu digo
a sério.
— Vamos comer, que tal? Coloquei nosso jantar na geladeira —
sugiro com um sorriso amigável, a feição simpática que ela tanto
gosta de reclamar que tenho.
A ruiva revira os olhos, mas coloca sua bolsa de volta no chão e
me segue até a cozinha, se rendendo ao meu pedido, sabendo que
tenho razão.
Esquento nossas comidas enquanto ela se senta e fita cada
canto do lugar. É tudo muito arrumado, graças a presença de
Miranda.
— Cadê seus amigos? — ela pergunta.
Abro o armário e pego uma garrafa de vinho.
— Os meninos ficaram presos na faculdade, Miranda tinha
acabado de sair pra encontrar uma garota quando começou a
chover. Todo mundo está alojado em algum lugar. — Coloco a
garrafa na mesa, vou até um armário e balanço uma taça para ela.
— Quer vinho?
— Não bebo.
Assinto e pego somente uma taça, decidindo levar um copo
normal para ela.
— Quer um suco, então? Temos de laranja ou uva — ofereço,
abrindo a porta da geladeira para que ela escolha o sabor.
— Laranja.
Trago o suco até a mesa e sirvo seu copo. Abro o vinho e
também me sirvo, em seguida colocando nossos jantares na mesa.
São marmitas de salada com frango, imaginei que a senhorita capitã
não gostaria de sair da dieta no meio da semana.
Leah está me fitando com um olhar estranho, acompanhando
cada movimento que faço. Deve estar impressionada com o meu
cavalheirismo. Se ela acha que sou um babaca, está bem
enganada. Sou um bom garoto, só tenho um jeito engraçado de
demonstrar.
— Algum motivo específico para não beber? — pergunto
enquanto me sento na frente dela, terminando de ajeitar nossos
talheres, fazendo o foco da conversa voltar para ela.
Leah se mexe na cadeira, dá para ver que não está confortável
com a pergunta.
— Não gosto — responde com certa frieza, deixando claro que
não há abertura para que eu faça um novo questionamento.
Ela começa a comer e um silêncio estranho se instala entre nós.
Não temos intimidade alguma, sabemos pouco sobre o outro e
ainda por cima, não temos paciência para a personalidade um do
outro. Estou me acostumando com o jeito dela, mas ainda me irrito
com o quanto é certinha. Porém, sabe Deus quantas horas vamos
ficar presos nessa casa. Precisamos falar sobre alguma coisa.
— Por que você trabalha tanto? — indago entre uma garfada e
outra.
Leah para o talher no caminho até a boca e ao invés de comer,
apoia o garfo no prato. Sua expressão revoltada me diz que não
está nada feliz com o rumo do nosso diálogo.
— Quando essas reuniões começaram, estabeleci regras,
lembra?
Algum tempo atrás, esse tom espertinho de Leah me irritava.
Hoje, é quase um combustível para que eu entregue minha melhor
réplica.
— Essas regras foram quebradas faz tempo, capitã. Não lembra
que te contei sobre minhas possíveis ambições para o futuro, que
você me contou como começou a jogar? — refresco sua memória.
Sei que Leah gostou das nossas conversas sinceras e só está
querendo ser a garota marrenta de sempre.
— Falamos sobre basquete, Kahel. É bem diferente de adentrar
em assuntos pessoais.
Fico impressionado com o quanto ela é receosa. Para agir assim,
Leah já deve ter se machucado muito.
Até paro de comer para poder encará-la de forma que sinta a
veracidade das minhas palavras.
— Entendo que você tenha dificuldade de se abrir, mas sei lá, às
vezes é bom deixar as pessoas entrarem um pouquinho. Não estou
fazendo perguntas porque quero jogar algo na sua cara, só estou
tentando puxar assunto, buscando te conhecer melhor.
Leah franze a testa e se aproxima um pouco da mesa para
questionar: — E por que você gostaria de me conhecer melhor?
Espelho seu ato, encostando meu peito à mesa, entrelaçando
minhas mãos.
— Porque você me surpreendeu, princesa. — Abro meu melhor
sorriso quando termino de falar.
Leah volta a encostar o tronco na cadeira, se afastando de mim
outra vez. Sinto uma vontade louca de puxá-la de volta. Sua
proximidade estava me agradando, mas nem meus melhores
sorrisos são capazes de fazê-la retribuir o sentimento.
— Eu? O que posso ter feito pra surpreender logo você, o Sr.
Intocável? — O desprezo em sua voz é combustível para que eu
decida abrir meu coração. Descobri muito sobre Leah James nesse
tempo que trabalhamos juntos. Muito mais do que ela deve
imaginar.
— Está na cara que você não tem uma vida fácil, Leah. Mas
ainda assim, dá tudo de si para o seu time. Tem uma liderança
invejável, todo mundo te respeita de uma forma absurda, porque
você não só se impõe, mas também se importa. Consigo perceber
que você enxerga muito além da vitória, que quer que cada uma das
jogadoras dê seu melhor e se sinta feliz após um jogo,
independentemente do resultado. Sua rotina é intensa, mas ainda
assim, você arranjou um tempo para essa arrecadação e tem
cumprido sua tarefa de forma incrível. — Não tiro os olhos dela por
um segundo sequer. Consigo ver que Leah está prendendo o ar,
chocada por eu estar dizendo tudo isso. Mas ainda não terminei. —
Seu coração é fechado a sete-chaves, é nítido. Contudo, mesmo
com tantas barreiras, você abraça o mundo. Até tirou um tempo
para me analisar e me fazer enxergar coisas que sempre estiveram
lá, mas que eu nunca quis ver.
A última parte faz Leah respirar fundo. Pode ser bizarro dizer
isso, porém, sinto quando ela derruba seu muro, quando percebe
que não quero seu mal, que estou sendo sincero.
— Não tenho pais para me sustentarem — solta, a voz muito
mais calma, a expressão me dizendo que está me dando a abertura
que pedi.
— E onde estão seus pais? — pergunto, dando continuidade a
conversa, mais feliz do que eu deveria estar por tê-la convencido a
simplesmente falar comigo.
A verdade é que minha inimizade com Leah surgiu por causa
dela. A capitã das Fox decidiu que me odiava e eu fui na dela.
Retruquei suas reclamações, passei a sempre querer provocá-la.
Uma coisa foi levando a outra e chegamos ao patamar em que não
conseguíamos nos ver sem discutir. Foi assim até precisarmos agir
juntos. Até eu descobrir que Leah tem sim todos os defeitos que eu
enxergava antes, mas também tem qualidades excepcionais. Posso
ter começado a percebê-las depois de ficar intrigado com seu corpo,
contudo, isso não diminui o impacto que senti ao conhecer um
pouco do que há por trás de sua fortaleza.
— Meu pai morreu — conta e, apenas com meu olhar, ela já sabe
que quero perguntar por quê. — Câncer, um pouco antes de eu
entrar na KSU. E minha mãe tem as próprias contas para pagar,
precisa criar minha irmã. É necessário que eu me vire sozinha.
Caraca. A vida dela é ainda mais difícil do que pensei. Não me
imagino em sua situação, eu com certeza não tenho a menor noção
do que faria.
— Você se vira muito bem, princesa. Com mais descanso na
rotina, tudo ficaria perfeito. — Trago um pouco de humor ao
momento, algo que combina mais comigo, só para arrancar um leve
riso dela.
E funciona. É um riso contido, mas ainda um riso. E o melhor, um
riso causado por mim, em uma conversa honesta entre nós.
— Eu gostaria, mas não é tão simples. Preciso trabalhar muitas
horas pra tirar uma boa grana.
— Nunca pensou em procurar um estágio na sua área? Deve
pagar melhor do que ser garçonete.
— Nem todos. E existe todo um processo burocrático de seletivas
e entrevistas, não tenho tempo para participar.
— Pense que seria como um investimento no seu futuro.
Leah desvia o olhar para o teto, pensativa.
— É, não é uma má ideia. Pode ser um plano para daqui a um
tempo.
Voltamos a comer, mais à vontade um com o outro. Me sinto
pleno por tê-la ajudado de alguma forma, espero de verdade que se
empenhe em achar um emprego em sua área. De repente, posso
até ver com a minha mãe se não há uma vaga para Leah em sua
empresa.
— Meu pai ficou feliz com meu empenho na organização do baile.
— Sinto vontade de compartilhar e simplesmente compartilho. Leah
já compreendeu a relação que tenho com ele, então apenas
assente, lançando um olhar sabichão para mim.
— E você gosta de agradá-lo.
— Muito. Quero que ele tenha orgulho de mim.
— Mas ao mesmo tempo, não quer que ele tenha orgulho
demais, para não o decepcionar caso você não seja draftado?
Viro a faca na minha direção, fingindo que vou enfiá-la no
coração, arrancando mais uma risada de Leah. Esse é um assunto
difícil para mim, mas quando falo sobre meu futuro com ela, me
sinto um pouco mais à vontade, tendo criatividade até para brincar
com a situação.
— Você devia fazer psicologia, princesa. — Porque, para me
analisar desse jeito, só sendo muito boa em ler pessoas. Ou em me
ler, talvez.
Fico me perguntando se Leah presta tanta atenção em mim
quanto presto nela. Tenho quase certeza de que a resposta é não.
— Jamais. Gosto de números — responde com convicção e
cruza os talheres no prato, mostrando que acabou de comer.
— Por isso escolheu engenharia? — pergunto enquanto me
levanto, pegando seu prato e o meu, andando até a pia.
— Você e suas perguntas. — Estou de costas, ligando a água
para poder lavar a louça, mas tiro um momento para me virar e a
flagro revirando os olhos. Eu poderia apostar que ela estaria
fazendo exatamente isso, mesmo sem ver. — Não, eu escolhi
porque era uma área que poderia me dar um bom dinheiro no futuro.
Só quando entrei na faculdade que consegui realmente entender do
que o curso se tratava.
— E você gosta? — questiono, alternando entre lavar a louça e
conversar com ela.
— Ah, não é a paixão da minha vida, mas não sou iludida a ponto
de achar que isso exista. Eu quero trabalhar para poder viver bem.
— Percebo, por sua voz, que ela está se aproximando.
Quando vejo, Leah está ao meu lado e me entrega seu copo e
minha taça, para que eu possa lavá-los.
— Você tem uma visão engraçada sobre as coisas. Meus pais
sempre disseram que eu deveria escolher um trabalho que me
fizesse feliz todos os dias — falo, esperando que Leah vá voltar
para a mesa e se afastar de mim, mas ela não o faz.
Permanece ao meu lado, com o quadril encostado na pia, as
mãos segurando no granito, as longas pernas perto demais dos
meus olhos para que eu consiga evitar olhá-la.
— Meus pais sempre me disseram que eu deveria arranjar um
trabalho para poder sobreviver, que qualquer coisa serviria, desde
que eu tivesse comida na mesa. A escolha de fazer faculdade e
querer muito além disso foram unicamente minhas. — Eu a fito com
admiração, terminando de apoiar as louças limpas no escorredor,
buscando um pano de prato para enxugar minhas mãos. — O que
foi?
— Nada. É só que me impressiono cada vez mais com você —
respondo e jogo o pano para longe. Quando o faço, acabo dando
um passo para mais perto dela.
Propositalmente.
Ou não. Ou sim. Não sei mais dizer.
Acabamos ficando perto demais, Leah está de lado para mim, o
rosto ao meu alcance. A boca ao meu alcance.
— Pare com isso, Kahel — pede, mas não se afasta.
Será que estou perdendo a cabeça ou Leah James está focando
seu olhar nos meus lábios?
— Com o quê? — Me faço de bobo, a melhor e mais velha tática
já usada.
— Você tem mania de flertar com todo mundo, mas não quero
que flerte comigo. — É incisiva, mas eu nem sei se ela mesma
acredita no que diz.
— Quem disse que estou flertando? Não posso só estar
verdadeiramente impressionado com você? — Viro de frente para a
pia, ficando ao lado de Leah, mas ainda olhando para ela.
— Kahel Williams é o tipo de cara que usa frases como essas
para fisgar a próxima vítima. Não pense que não sei o que está
fazendo. — Leah nega com a cabeça, toda sabichona, como
sempre. Ela pode até ser esperta, mas não é imune ao meu
encanto, como imaginei que fosse.
Se eu a beijasse agora, se agarrasse sua cintura e a colocasse
em cima da pia, duvido que recuaria.
— E se eu estiver fazendo? E se eu avançar? O que você faria,
capitã? — Uso meu tom mais sexy, meus olhos focados totalmente
nela, meu tronco inclinado para frente, dizendo exatamente o que
quero.
Leah abre um pouco a boca, os olhos não desviam dos meus, ela
está tão presa, tão envolvida, tão perdida quanto eu. Não sei de
onde essa atração entre nós surgiu ou se ela sempre esteve aqui,
camuflada de indiretas e brigas sem noção.
Chego a levantar minha mão para puxar seu rosto para perto do
meu, mas não consigo completar o movimento. Um trovão ecoa pelo
céu e Leah se assusta, pulando para trás, destruindo nosso
momento. Ela abraça o próprio corpo e quase ofereço um casaco a
ela. Porém, ao fitá-la mais uma vez, percebo que não está se
abraçando porque está com frio, e sim porque está assustada.
— Você tem medo? — pergunto, deixando de lado o fato de que
quase nos beijamos, para tentar ajudá-la.
Leah já está a pelo menos dois passos de distância de mim.
— Odeio tempestades — conta, olhando para fora, pela janela da
cozinha. Ainda está caindo o mundo.
— Algum motivo específico? — indago e Leah não tira o olhar da
janela, como se quisesse ignorar a pergunta. — Qual é, capitã! Se
não conversarmos, vamos nos focar no barulho da chuva. E acho
melhor que você foque só em mim, se não quiser se assustar.
Leah respira fundo, tentando se acalmar. É quase irônico que
logo ela tenha medo da chuva.
— No bairro onde eu morava, muitas casas ficavam destruídas
com as chuvas. Já ficamos presos em casa por dias quando
algumas ruas alagavam. Passávamos dias e dias sem luz. Eu não
podia fazer minhas lições à noite, era obrigada a ver meus pais...
Outro trovão ecoa pelo céu, fazendo Leah pular de novo. Seguro
em suas mãos, puxando-a até que fique à minha frente, deixando de
olhar pela janela, para me encarar.
— Ei, só foque em mim, princesa. Só em mim — peço,
balançando a cabeça para que ela me imite e assinta.
Leah está com as mãos geladas. Suas unhas são curtas e não
tem nenhum esmalte. A pele branca, em contraste com a minha
negra, parece pálida demais. Seu semblante está assustado de uma
forma que eu nunca a vi ficar. A capitã das Fox está vulnerável. A
garota que abraça todo mundo, é quem está precisando de um
abraço.
— Eu costumava agarrar minha irmãzinha, Hailey, quando chovia
demais. Ela achava que eu a estava protegendo, mas a verdade é
que eu queria um conforto e Hales é a única pessoa no mundo que
consegue realmente me acalmar.
Sorrio quando a escuto contando sobre a irmã. O amor que Leah
tem por ela é palpável.
— Vocês parecem ter uma boa relação.
— Eu a amo mais do que tudo nesse mundo. Tudo o que faço é
por ela. Se busco por um futuro, é para tirá-la daquele lugar horrível
— diz, determinada como normalmente é. Parece que estou
conseguindo fazê-la parar de pensar no que acontece do lado de
fora.
— E você vai conseguir, Leah. — Encorajo-a e aproveito nossas
mãos entrelaçadas para fazer um carinho com meu dedão em sua
palma.
Ela não reclama, nem recua.
— Me fale sobre a Lilly. Vocês também parecem próximos —
pede, me surpreendendo ao perguntar sobre a minha irmã.
— Até somos, e eu a amo com todo o meu coração, mas Lilly é
muito independente. Sempre foi. Ela está muito focada no trabalho,
é mais velha que eu, então há uma grande diferença do que
estamos fazendo com nossas vidas.
— Quem é a pessoa mais especial do mundo pra você? — lança
outra pergunta, dando um aperto em minhas mãos, que deixa claro
que precisa que eu mantenha essa conversa acontecendo.
— Miranda. — Não preciso pensar muito para responder. — Ela é
meu alicerce. Se não fosse por ela, eu já teria feito muito mais
merda do que já fiz. Eu era ainda mais inconsequente na
adolescência. — Dou risada de mim mesmo quando lembro dessa
época. Não que eu seja muito responsável agora, mas estou me
esforçando para melhorar. No colégio, eu não queria nada com
nada.
— Me conte algumas histórias engraçadas. Preciso me distrair —
Leah pede, as mãos já estão um pouco mais quentes, ela parece
um pouco mais calma. E o melhor é que está com um sorrisinho fixo
no rosto.
— E se focar em mim? — pergunto apenas para me certificar de
que ela se soltou mesmo, de que não estou vendo coisa onde não
há.
Leah assente devagar, dando outro aperto na minha mão, que
me diz muito mais do que preciso. É quase um agradecimento
silencioso.
— Sim. E focar em você — afirma e eu disparo a falar.
Conto sobre as memórias mais impactantes de uma fase
complicada da minha vida. Exponho as partes divertidas, mas
também as dolorosas. Foi no colégio que eu me assumi bissexual.
O capitão do time de basquete, um dos caras mais populares da
escola, que carregava uma fama de pegador e deixava todas as
meninas derretidas, também gostava de homens. Eu sempre fui
muito convicto de quem eu era, mas não posso negar, foi um
período difícil. Nem todo mundo me aceitou, alguns amigos se
afastaram de mim. Minha família e Miranda me apoiaram quando eu
precisei e fizeram com que eu construísse a confiança que tenho
hoje. Na faculdade, tudo foi mais fácil, já cheguei na KSU afirmando
minha sexualidade, mostrando quem eu realmente sou e fui
abraçado pelos meus colegas de time.
Leah escuta minhas histórias do passado com atenção, vejo que
se comove em alguns momentos, se surpreendendo comigo, assim
como me surpreendi com ela.
O papo flui de forma espontânea. Emendamos um assunto no
outro, até nos mudamos da cozinha para o sofá, para ficarmos mais
confortáveis. A conversa só termina quando o celular de Leah vibra.
— É a Jo, querendo saber onde eu estou. Já são onze horas! —
revela, surpresa.
Eu mesmo fico boquiaberto. Passamos a tarde e a noite toda
juntos e não nos matamos. É um verdadeiro recorde para nós.
— Nem vi o tempo passar — comento.
— Nem eu. Mas agora preciso ir. — Leah esboça um sorriso
triste, como se estivesse chateada por ter que encerrar nossa
conversa. Eu também estou, porém, entendo que ela deve ir para
casa e dormir. Amanhã temos treino logo cedo e no final de semana
mais um jogo do campeonato.
— Eu te levo — rapidamente ofereço, já me levantando.
Leah me encara com o cenho franzido, a expressão pacífica indo
embora do seu rosto.
— Você bebeu, Kahel.
— Só uma taça de vinho, horas atrás. Estou ótimo. — Abro os
braços e dou uma voltinha, para que ela comprove o que digo.
— Ainda assim, bebeu. — Leah não cede e não faço ideia do
porquê. Ela contou que não bebe, então não deve ter noção de que
uma taça de vinho não faz nada com alguém. — Vou pedir um táxi.
— Pega o celular e começa a digitar, mas pego seu aparelho e a
impeço. — Ei, que merda é essa?
— Não vou deixar você entrar em um táxi sozinha a essa hora
quando tenho um carro na garagem!
Leah faz uma careta para mim, dá para ver que não está
gostando da minha superproteção, mas eu não estou nem aí.
— Eu me viro há muito tempo, Kahel. Não preciso que cuide de
mim — resmunga e se levanta para tentar pegar seu celular.
Escondo o aparelho atrás do corpo, obrigando-a a ter que me
abraçar para tentar pegá-lo. — Para de ser infantil! — reclama,
desistindo de resgatar seu celular.
— Vou te levar, Leah — reafirmo, recebendo uma longa
resmungada como resposta.
— Tá, podemos ir no seu carro, mas eu vou dirigindo. — Sua
contraproposta não me agrada nenhum pouco.
— Você quer dirigir o meu carro? — pergunto para me certificar
de que ouvi direito.
Ela cruza os braços, fechando a cara de novo para mim. Mais
uma vez, voltamos à estaca zero.
— Se você faz tanta questão de me acompanhar até em casa,
essa é a minha condição. Eu dirijo ou nada feito.
Leah está determinada, não há nada no mundo que faça essa
mulher ser convencida. Entre imaginá-la em um táxi sozinha ou
dirigindo meu carro, prefiro tê-la comigo.

Eu retiro o que eu disse. Talvez tivesse sido melhor pegar um táxi


com ela, para não ter que presenciar meu carro sendo conduzido
pela pior motorista de Kingston Beach.
Leah estaciona de qualquer jeito na frente de sua casa, longe
demais do meio-fio. Ela ainda dá um tranco no carro quando freia.
Fico em silêncio, tentando fazer meu coração voltar a bater
normalmente. Eu achei que ia morrer pelo menos umas cinco vezes
durante o percurso. E olha que passamos quinze minutos dentro do
carro.
— Você tá bem? — ela pergunta, enquanto solta o cinto de
segurança.
Finalmente desvio o olhar da rua para ela, meu queixo deve estar
caído, de tão frustrado que estou.
— Você é uma ótima jogadora de basquete, Leah, mas uma
péssima motorista. — Jogo um elogio antes da verdade, para evitar
uma briga.
Para minha completa surpresa, Leah começa a gargalhar. Ela ri
de uma forma que nunca a vi rir antes. Lágrimas até escapam dos
seus olhos, tamanha a diversão.
— Eu sei. Não tenho muita prática — admite, rindo de si mesma.
— É, deu para perceber. — Também rio, mas não tanto quanto
ela. Ainda estou abalado. — E mesmo assim quis dirigir meu carro
— digo, inconformado.
As risadas de Leah cessam e ela fita o volante, perdida em
pensamentos.
— Desculpe. Posso ter soado chata, mas não ando com ninguém
que tenha bebido, não importa a quantidade.
Ela só me encara quando termina a frase. Percebo, pela
profundidade de seu olhar, que há muito envolvido em sua condição.
Não é só uma frescura. Existe uma história.
— Preciso ir, mas obrigada pela noite e pelas conversas —
agradece e eu perco a deixa para questionar sua fala anterior. — Foi
legal.
— É, foi legal — concordo, não sei mais o que dizer.
Tivemos ótimos momentos juntos, criamos uma conexão, quase
nos beijamos, porra! Como classificar tudo isso somente com um
“legal”? Sinto que foi muito mais, porém, Leah não está aberta a
estender o assunto e eu não faço ideia de como expressar meus
sentimentos.
— Nos vemos amanhã, Kahel — ela diz, antes de abrir a porta e
descer do carro.
Assisto enquanto anda até sua casa, a bunda perfeita e redonda,
a primeira coisa que notei nela, se movendo de uma forma
absurdamente sensual. Tenho vontade de correr até ela e tentar
beijá-la, mas não o faço. Apesar de querer muito, não sei como ela
iria reagir. Ainda carrego algumas dúvidas em relação a nós dois.
Sinto uma certa atração por ela e estou cansado de tentar reprimi-la
só porque ela declarou ódio eterno por mim quando nos
conhecemos. Eu acho que Leah também sente algo, mas não sabe
lidar com a situação, assim como eu.
Nossa noite foi ótima, é fato, porém, não faço ideia de como
estará nossa relação amanhã.
Parece que toda vez
Que eu estou com você Eu perco minha cabeça
In Too Deep – Sum 41

Ainda não consegui compreender o que aconteceu entre mim e


Kahel ontem. Eu já havia reparado que ele tinha me lançado uma
indireta ou outra, mas não achei que fosse nada sério. Ele é do tipo
pegador, faz parte de sua personalidade dar em cima das pessoas.
Porém, quando estávamos em sua casa, as coisas mudaram. Eu
senti verdade em suas palavras quando falou aquelas coisas sobre
mim. Deixei meus muros caírem. Me abri com um cara que eu não
suportava até algum tempo atrás. Quis beijá-lo. Beijar Kahel
Williams. Algo de muito errado deve estar acontecendo comigo. Não
é normal se sentir atraída pelo seu inimigo.
— Preciso de um café gigante pra acordar! — diz Alex,
tagarelando sobre o fato de ter ficado tão presa em um livro que não
conseguia parar de ler até terminar, o que a levou a dormir tarde.
— Aproveite e me conte sobre esse livro novo! Quero saber se as
cenas quentes valem a pena. — Jo balança os ombros de
brincadeira, arrancando uma risada de todas nós. Bem, exceto de
Scout. Ela só olha feio para Jo.
— Vou precisar de uns dois cafés pra aturar essa conversa —
resmunga Scout, saindo do carro empurrada por Jo.
Viemos de carona com Abby para o treino. São aproximadamente
seis horas da manhã e precisamos estar em quadra em meia-hora.
Dormi pouco, mas devo admitir que foi uma das melhores noites de
sono que tive nos últimos tempos. Estava me sentindo relaxada,
tudo porque passei horas do meu dia sem me preocupar com nada,
apenas falando amenidades e compartilhando experiências de vida
com Kahel.
Com Kahel.
Caralho, o que está acontecendo com a minha vida?
— Você está meio aérea — comenta Abby, depois que as garotas
já estão fora do carro, pegando suas bolsas no porta-malas. — Se
for por causa da batida, não estou brava, juro. A Baby já está
perfeita de novo.
Abby faz um carinho no volante, dando amor para o seu carro,
fazendo um biquinho com os lábios enquanto o acaricia.
— Não tem nada a ver com o carro, fique tranquila. — Até
porque, Abby foi legal demais diante de toda a situação “roubei seu
carro e ainda bati em um poste”. — Estou com muita coisa na
cabeça — entrego algo a ela só para que não fique chateada.
Abby assente devagar e percebo que ela queria mais
informações. Eu gostaria de conversar com alguma das meninas
sobre a minha situação com Kahel, mas não sei nem por onde
começar a descrever a bagunça que de repente se instalou entre
nós.
— Se precisar desabafar, você sabe onde me encontrar. — Abby
se mostra disposta a me ouvir, esboçando um sorriso meigo, antes
de abrir a porta para descer do carro.
Faço o mesmo e pego minha bolsa com Jo, nós cinco
começamos a caminhar na direção do refeitório, para pegar o tal
café que elas tanto querem.
— Espero que eu consiga jogar um pouco mais na próxima
partida. Fiquei tão feliz nos minutos que joguei na última! — Abby
comenta enquanto andamos, balançando as mãos no alto de tanta
animação.
— Você vai jogar, com certeza. — Coloco a mão em seu ombro
quando termino de falar, apoiando-a. Abby tem um potencial enorme
dentro do time.
— Só espero que aquela insuportável da Mia não atrapalhe de
novo — fala Scout e as meninas entram na dela, reclamando sobre
nossa quinta titular.
Estou prestes a interferir e dizer que Mia não era assim, que foi a
posição que fez seu ego inflar, e que tenho fé de que existe uma
possibilidade de reverter esse quadro, quando, em uma breve
olhada para o estacionamento, o vejo. Ah, não, porra!
— Meninas, lembrei que tenho que fazer uma ligação importante.
— Chamo a atenção para mim e mostro meu celular, tentando não
demonstrar nada em minha expressão, para que elas não
desconfiem das minhas reais intenções. — Já alcanço vocês.
Elas concordam e continuam andando, batendo papo entre si.
Espero até que saiam da minha visão para me virar e ir na direção
de Axel. Eu nem acredito que ele teve a audácia de vir até a KSU.
Seu carro está estacionado em uma das vagas destinadas aos
alunos e ele está com sua habitual jaqueta de couro, hoje usando
uma touca preta e com um cigarro na boca.
— Axel, o que está fazendo aqui? — pergunto quando paro a sua
frente, agarrando a alça da minha bolsa de treino.
— Você não responde minhas mensagens. Voltou a me ignorar
como se eu não tivesse acabado de te ajudar. — Seu tom é frio e
me causa um arrepio horroroso.
Eu não o respondi porque bloqueei seu número. Ainda pretendo
pagá-lo, mas não queria que Axel ficasse me perseguindo. Ele é do
tipo que te torna refém, quando você vê, está sendo obrigada a
respondê-lo o dia inteiro. Minha tática funcionou por um tempo, mas
agora ele está aqui em carne e osso, então acho que não fui tão
eficaz quanto pensei.
— Desculpa, estou enrolada com a faculdade e o campeonato.
Tem muita coisa acontecendo no momento. — Uso a melhor
desculpa que consigo encontrar, porém, com Axel, isso não
funciona.
Ele dá um passo para mais perto de mim, dando uma tragada no
cigarro, baforando para o lado, fazendo questão de olhar para mim
enquanto o faz. Tento não encará-lo demais, para evitar dar
qualquer ideia errada à sua mente perturbada.
— Chegou a hora de você começar a me pagar, Leah — anuncia
e bate o dedo indicador no cigarro para tirar as cinzas.
Engulo em seco, me esforçando para não perder a postura. Eu
estava juntando dinheiro para pagá-lo, mas acabei dando tudo a
Abby, para bancar o conserto do carro. Agora não tenho nada.
— Tive um imprevisto. Preciso de um pouco mais de tempo. —
Sou honesta, não há muito o que fazer. Mal consigo pagar minhas
contas.
Axel assente devagar, formando um bico de desdém com os
lábios. Dá outra tragada no cigarro, dessa vez baforando na minha
cara, soltando parte da fumaça pelo nariz. Tusso quando inalo o
aroma horroroso do cigarro.
— Se você não tiver dinheiro, pode me pagar com outros
serviços. — Cruzo os braços quando o escuto, tenho certeza de que
nada bom vai sair de sua boca. — Eu gostaria muito de ampliar
meus negócios e vender na KSU. Você poderia me ajudar.
Ele está mesmo sugerindo que a capitã de um dos times
esportivos venda drogas na faculdade?
— Eu vou conseguir o dinheiro, Axel — afirmo, mesmo sem saber
quanto tempo vai demorar para isso acontecer. Do jeito que as
coisas estão, será muito.
Axel joga a bituca de cigarro no chão, pisando nela com violência,
me encarando diretamente enquanto o faz. Eu sabia que teria
problemas me envolvendo com ele de novo. Tinha virado a página
do nosso relacionamento, mas busquei sua ajuda e agora estou
pagando por isso.
— Sabe o que é engraçado, Leah? — questiona, dando um
passo para mais perto de mim. Recuo, indo para trás, mas ele
continua vindo, então paro, sem ter para onde ir. Estou encurralada.
— Você some por anos, aparece querendo dinheiro e agora não
quer me dar nem uma ajudinha. Eu não gosto disso, baby. Nossa
relação não era assim.
Claro que não. Eu fazia tudo o que ele queria, não tinha
maturidade para tomar minhas próprias decisões ou para enxergar
que estava em um relacionamento de merda.
— Algum problema por aqui? — A voz da pessoa que me fez
companhia no dia de ontem faz Axel recuar e se distanciar de mim.
Sinto alívio pelo espaço e desespero por saber que Kahel está
aqui. Se ele agir como agiu com Romeo na festa, vai dar merda.
— Nenhum, amigo. Estávamos só tendo uma conversa amigável.
— Axel responde, erguendo os braços em rendição.
Kahel é alto e forte, ele tem um porte de jogador, e poderia
derrubar Axel, se estivesse inspirado. Mas meu ex também é um
cara grande e gosta de jogar sujo. Uma briga entre eles não
acabaria bem.
— Ah, é? Não parecia — Kahel rebate e para ao meu lado,
fazendo questão de passar o braço em meu ombro e me puxar
contra seu corpo.
O que ele está tentando fazer? Ser territorial? Fingir que há algo
entre nós para intimidá-lo?
Axel alterna o olhar entre nós dois, conhecendo-o como conheço,
sei que não está gostando nem um pouco de me ver nos braços de
outro.
— Não vai me apresentar para o seu amigo, Leah? — indaga
Kahel, me abraçando com ainda mais força.
Eu entendo seu instinto protetor, compreendi toda a história de
Miranda e os porquês de ele agir como age, mas puta que pariu,
agora não era hora de ele ter aparecido. Axel vai ficar mais bravo
ainda.
— Esse é o Axel. — Aponto para ele com má vontade, tentando
ver se Kahel se toca e some daqui.
— Sou o ex dela — Axel revela enfiando as mãos nos bolsos da
jaqueta e lançando um olhar feio para Kahel.
— Faz sentido — Kahel rebate e fita Axel de cima a baixo,
deixando claro seu desgosto com a aparência e o modo que ele se
porta.
Axel abre um sorriso malicioso que é presságio para merda. Vou
arrastar Kahel daqui agora. Ele não sabe onde está se metendo.
— O papo estava ótimo, mas preciso ir pro ginásio ou vou me
atrasar pro treino — anuncio, mas nem isso faz o contato visual dos
dois se quebrar. — Nós vamos nos falando, Axel. — Nosso assunto
está longe de terminar, infelizmente.
— Vou aguardar ansioso, baby. — Me lança um beijo nojento,
olha feio para Kahel de novo e sai caminhando na direção do seu
carro.
Seguro no braço de Kahel e vou levando-o para longe do
estacionamento. Quando chegamos em um lugar mais tranquilo,
solto-o com certa brutalidade, mostrando minha irritação.
— Onde diabos você estava com a cabeça? Acha que pode
enfrentar qualquer um assim, do nada?
— Não foi do nada! O cara é seu ex! Tá na cara que não é uma
pessoa legal!
Bufo quando o escuto, percebendo que Kahel não vai entender
meu lado, a não ser que eu conte a história completa. E isso não é
algo que está dentro dos meus planos. Confusões entre alcoólatras,
agiotas e traficantes não fazem parte da sua realidade.
— Só não faça mais coisas desse tipo! — finalizo a conversa e
saio andando na direção do ginásio.
Escuto os passos de Kahel vindo atrás de mim e acelero o passo.
A questão é que não adianta, ele é mais alto e acaba me
alcançando com rapidez.
— Você precisava ver a sua cara, enquanto conversava com ele!
Não tinha como não me preocupar! — justifica, tentando a todo
custo me fazer parar de andar.
Mas eu não paro, atravesso o corredor na direção do vestiário
feminino e faço Kahel continuar atrás de mim. Ele não vai poder
entrar no vestiário, então essa conversa vai ter que ser finalizada.
— Kahel, você não devia ter interferido. Não sabe quem ele é,
não sabe do que estávamos falando e já foi se metendo! — Bato
nas coxas, irritada. — Essa sua mania de querer proteger todo
mundo não agrada sempre. Você acaba se metendo onde não é
chamado — digo e abro a porta do vestiário com as costas,
fechando-a na cara de Kahel.
O lugar ainda está vazio, deve faltar algum tempo para o treino
começar. Mal termino de colocar minha bolsa no banco e escuto a
porta se abrindo. Kahel acabou de entrar no vestiário feminino.
Porra, que merda de garoto!
— Você não pode estar aqui! — Já logo me adianto em
repreendê-lo.
— Nossa conversa não terminou. — Aponta para mim e para ele.
— Terminou, sim. Eu já disse o que precisava dizer.
— Mas eu, não — Kahel rebate e tenho vontade de socar sua
cara. Ele está com uma camiseta dos Tigers, os meninos têm treino
físico na academia, enquanto usamos a quadra. — Ele claramente
estava te perturbando. Só quis ajudar.
Odeio o fato de ele tentar se colocar como o bom moço. Entendo
que achou que seria uma boa ideia, mas não foi. Agora Axel não vai
me deixar em paz, além de me cobrar a dívida, ficará me
perguntando sobre Kahel, achando que estamos juntos.
— Eu não precisava de ajuda — retruco, seca, esperando que
dessa vez Kahel recue.
Mas ele é tão teimoso quanto eu. Não sei como tive vontade de
beijá-lo ontem. Hoje, quero dar um murro e destruir seu rosto
perfeito.
— Você pode admitir que precisa, princesa. Não vai doer, não vai
te fazer fraca.
Ele está falando sério?
— Kahel, você não tem ideia de onde está se metendo! Esse
cara não é do tipo que você brinca! Ainda mais você, que é um
mimadinho de merda! — Aponto para ele, consumida pela irritação
que me causa.
— Eu daria um pau naquele cara e você sabe disso! — Continua
se vangloriando, achando que está certo, que é o fodão da
faculdade.
— Não é essa a questão! O ponto é que você não tem que se
meter nos meus problemas! — Aumento meu tom de voz, cansada
dessa discussão. Kahel não está com vontade de concordar comigo
e não vou ceder estando certa.
— Eu estava tentando ajudar, cacete! Por que você não pode
ficar agradecida por eu ter te salvado daquele merda? — Kahel
acompanha meu timbre, estamos literalmente gritando no meio do
vestiário feminino.
— Porque eu não pedi por ajuda!
— Bom, eu ajudei mesmo assim. Não podia deixar você lá,
acuada e enfrentando um cara daqueles!
Kahel perdeu a noção do perigo. Acuada? Sério?
— A situação estava sob controle! Não entendo por que você se
achou no direito de interferir, sendo que nós nem amigos somos! —
Quando falo a última frase, Kahel paralisa e solta um riso sarcástico.
Está tão puto quanto eu.
— Não? E toda a conversa que tivemos ontem? Não significou
nada?
— Claro que significou, mas ainda estamos bem longe de termos
uma amizade. E isso não muda o fato de que você não tinha o
direito de se meter na minha vida sem saber o que está
acontecendo! — grito e gesticulo ao mesmo tempo. Espero, de
verdade, que nenhuma das Fox apareça aqui agora.
— Então me conte o que está acontecendo, Leah! Explique por
que seu ex-namorado estava te encurralando daquele jeito. O cara é
problema? Está te enchendo o saco? O que ele queria?
Kahel me enche de perguntas e eu perco de vez a paciência.
Puxo meu cabelo para trás, ando de um lado para o outro, até parar
à sua frente. Nós dois estamos agitados por causa da discussão,
meu coração está com os batimentos acelerados, minha cabeça
tomada por um turbilhão de pensamentos.
— Por que você se importa? — jogo o questionamento na sua
cara, não entendo qual é o motivo de tanta preocupação, de tanta
necessidade de me ajudar, de tanto interesse em saber o que
acontece na minha vida.
Lanço um olhar mortal para ele, Kahel rebate na mesma
intensidade. Nós poderíamos estar em um ringue nesse momento.
Poderíamos estar disputando uma bola ao alto. Somos rivais no
sentido cru da palavra. Acreditamos em verdades opostas. Nossas
diferenças estão mais explícitas do que nunca.
O problema é que a tensão entre nós triplicou. A mistura das
conversas sinceras que tivemos, dos momentos de aproximação,
com as confusões e as brigas, causaram um rebuliço na nossa
relação. Queremos nos matar e nos beijar, tudo ao mesmo tempo.
Nossas respirações estão entrecortadas e dominam o som do
vestiário. Kahel demora para me responder, me deixando na
expectativa, justo no ápice da conversa. Espero por uma réplica,
mas ela nunca vem. O que eu recebo, é totalmente surpreendente.
Kahel se aproxima tão rápido que não tenho tempo de reagir.
Suas mãos agarram meu rosto, nos aproximando com uma
velocidade absurda. Eu poderia empurrá-lo, poderia fazer tantas e
tantas coisas para evitar esse beijo, mas não faço nada.
Na verdade, faço. Agarro seu pescoço para que nossa
proximidade chegue mais rápido, para que nossos lábios não
desgrudem. Quando nossos corpos colam, é como se toda a tensão
entre nós se dissipasse. Eu sinto como se fogos de artifício
estivessem explodindo dentro de mim. É um misto de euforia, tesão,
loucura. Uma sensação de “porque diabos estou fazendo isso?”,
misturada com uma sensação de “porque não fiz isso antes?”.
Os lábios de Kahel são macios, mas me devoram. Não é um beijo
romântico, é um beijo forte, quente, sensual. Nenhum de nós está
pensando, porque se estivéssemos, já teríamos cessado nosso
contato.
Minha vontade de me distanciar é nula. E a dele também, porque
nossas línguas continuam se enroscando. Kahel enfia uma mão em
meu cabelo, bagunçando-o, me trazendo para ainda mais perto. A
outra mão vai para minha cintura e ele quase me tira do chão com a
força que aplica em seu toque. Me agarro ainda mais ao seu
pescoço e sinto uma vontade imensa de subir em seu colo. Sinto
vontade de várias e várias coisas. Nesse momento, eu faria tudo o
que ele quisesse, tudo o que nossos corpos mandassem, mesmo
que isso não seja comum para mim. Nunca me senti tão atraída
desse jeito por alguém. O que estou sentindo por Kahel é
avassalador.
O barulho de vozes femininas toma minha consciência e, pela
primeira vez desde que nossos lábios se encostaram, tenho noção
do que estou fazendo.
Beijando Kahel Williams no meio do vestiário feminino.
Nós nos soltamos no mesmo momento, como se ele também
tivesse percebido que ultrapassamos os limites. Nossa relação era
de puro ódio. Como fomos parar nesse beijo?
As vozes aumentam e Kahel vai andando para trás, pronto para
sair daqui. Ele me encara o tempo todo, ainda ofegante, o cabelo
bagunçado, a boca inchada de tanto se encontrar com a minha.
Nem imagino como minha imagem está, mas não tenho tempo para
me arrumar agora.
Kahel sai no momento em que as meninas começam a entrar,
elas o cumprimentam, porém, ficam sussurrando entre si, se
perguntando por que o capitão dos Tigers estava dentro do vestiário
feminino junto comigo.
Elas começam a se arrumar para o treino e eu fico parada, ainda
tentando compreender o que aconteceu. Não sei como vou me
concentrar no basquete depois de ter beijado Kahel Williams. É
simplesmente surreal. Ele é insuportável. Mimado. Imaturo. Um cara
que eu não suporto. Meu pior pesadelo em pessoa.
Como nossas bocas se encostaram? Como fiquei tão atraída por
ele? Como vamos continuar convivendo depois de nos agarrarmos
desse jeito?
O que acabou de acontecer com a minha vida?
Você tem uma lógica que eu nunca consigo descobrir
Se eu pudesse te abraçar, eu nunca te derrubaria
Mas eu nunca sei exatamente onde te encontrar

Find You – Nick Jonas

A endorfina que corre em minhas veias me deixa eufórico. Nunca


me canso de ouvir a arquibancada toda gritando meu nome
enquanto parto para o ataque, torcendo para que eu faça mais uma
cesta e leve nosso time a vitória. Driblo o garoto que tenta me
marcar, giro com a bola na mão e a enterro na cesta, fazendo mais
dois pontos para os Tigers.
Mav e Seb chegam perto de mim para comemorarmos, os outros
jogadores do banco se levantam, aplaudindo o nosso show. Aponto
para a arquibancada, dedicando os pontos à plateia, que me
ovaciona mais e mais.
A sensação de estar voando em quadra é a melhor que existe.
Estou jogando bem pra cacete hoje, o que estimulou o time todo a
entrar em harmonia. Os Tigers estão imbatíveis. Me sentir assim faz
com que minha mente crie a imagem de um futuro como esse. Em
quadra, com um time foda da NBA, sendo adorado por todos,
fazendo a diferença para o esporte e para minha equipe.
Imagino meu pai na arquibancada, torcendo por mim.
Esse é um futuro que eu gostaria de viver. Porém, é um futuro
que não me sinto capaz de viver. Sou bom para o nível universitário,
mas será que banco um jogo profissional? Será que só vou
conseguir espaço em um time graças ao meu sobrenome? Será que
vou aguentar a pressão?
Você tem medo, Kahel.
As palavras de Leah ecoam em meus pensamentos no último
tempo e perduram até que eu esteja sentado em uma mesa do
Koala’s, brindando a vitória esmagadora com meus amigos.
Não é só nossa conversa que se repete em minha mente. A
imagem da capitã perfeitinha das Red Fox descabelada depois de
ter me beijado se fixou em minha imaginação. Eu ainda não acredito
que realmente nos pegamos no vestiário feminino, depois de
gritarmos um com o outro.
Foi surreal.
Foi sexy.
Me deixou com um gosto de quero mais.
E se tem uma coisa que odeio, é passar vontade.
— Kahel! Volte pro planeta, por favor! — pede Miranda,
esbarrando no meu ombro.
Seb, Mav e ela estão me encarando com as sobrancelhas
erguidas, sem entender por que estou ausente depois de levar
nosso time à vitória. Em dias normais, eu estaria em cima da mesa,
com uma garrafa na mão, dançando e embebedando todos à minha
volta.
Mas hoje não é um dia normal.
— Eu beijei a Leah — revelo, virando o resto da minha cerveja
em seguida.
Meus amigos ficam em silêncio. Parece até que eu acabei de
contar que engravidei uma garota ou que estou morrendo. Faço um
sinal com a cabeça para que eles digam alguma coisa. Essa falta de
reação não me agrada.
— Você... beijou a Leah? E solta isso assim, do nada? — Mav
pergunta, olhando para baixo, tentando assimilar a informação.
— Algumas semanas atrás, eu falei que ela era bonita e você
ficou bravo comigo! — Miranda se manifesta, boquiaberta.
— Nós não podíamos beijá-la, mas você pode? — Sebastian
rebate, um tanto irritado.
— Em minha defesa, eu não esperava gostar dela. Nós nos
aproximamos e aconteceu — justifico, não foi algo que surgiu de um
dia para o outro. Eu passei mais tempo com Leah, percebi que ela
era uma pessoa diferente, comecei a vê-la de outra forma e a
pensar em como nós poderíamos usar nossa química explosiva
para outra coisa, que não brigar. Tentei reprimir o sentimento, mas
não deu.
— Você não suportava a garota, achava que ela era o ser mais
insuportável do planeta! — Seb segue resmungando. Ele está
inconformado, eu entendo. Quando comecei a trabalhar com Leah e
descobri que ele tinha ficado com ela, fiquei abismado.
Eram outros tempos.
— Espera, eu ouvi direito? Você disse que gosta dela? Gosta em
que sentido? — Miranda dispara, a testa franzida, tentando
compreender essa novidade.
— Não sei. — Dou de ombros, sincero.
Miranda coloca as mãos no rosto, tampando os olhos, o cabelo
loiro e ondulado caindo todo para frente. Ela está balançando a
cabeça em negação, inconformada de um jeito exagerado.
— Como assim você não sabe, Kahel? — questiona quando seu
momento dramático acaba e ela consegue voltar a me fitar.
Respiro fundo, tentando organizar meus pensamentos.
— Passamos algum tempo juntos, nos conhecemos um pouco
melhor e comecei a sentir atração por ela. Fiquei curioso, nós nos
beijamos e agora, sei lá, não sei no que vai dar.
Leah não falou mais comigo. As Red Fox também tinham um jogo
hoje e vi pelo Instagram de Joanne que ganharam. Algumas garotas
do time, incluindo a loira e Anthony, Alex e Abby, estão
comemorando a vitória a algumas mesas de distância. Mas a capitã
não está entre elas. Imagino que tenha ido trabalhar. Aprendi, em
nossa recente aproximação, que ela é extremamente responsável
com suas tarefas. Leah não trocaria um turno no trabalho por uma
noite de folga no bar.
— Cara, não estou entendendo o que você quer. Só algumas
ficadas? Levar ela pra cama pra ver qual vai ser? — Os
questionamentos de Maverick me trazem certo desconforto.
— Não acho que a Leah vá gostar da forma como você conduz
suas conquistas — diz Sebastian e eu assinto, compreendendo seu
ponto.
Esse é o meu protocolo: conquistar, beijar, trepar e dispensar.
Não sou de me apegar, até tive alguns casinhos um pouco mais
longos, mas nunca duraram mais do que alguns meses. Agora com
Leah... não sei o que quero. Concordo com Seb, tenho para mim
que ela não gostaria nem um pouco de ficar comigo e depois
simplesmente desapegar. Seria melhor pararmos por aqui.
O problema é que não quero parar.
— Acho que antes de chegar a qualquer conclusão, você precisa
falar com ela, Kahel. Acredite em mim, mulheres odeiam falta de
diálogo. Seja honesto e vocês ficarão bem. — Miranda age como a
voz da razão, como sempre.
Nós nos beijamos, tivemos uma conexão e sentimos uma atração
forte um pelo outro. Com qualquer outra pessoa, eu deixaria rolar
para ver onde vai dar, mas com Leah, não quero agir dessa forma.
Preciso ir atrás dela.
— Obrigado pelos conselhos, caros amigos. Aproveitem a noite
por mim! — brinco e dou um rápido beijo na bochecha de Miranda,
antes de entrar no carro e ir atrás da ruiva que tem dominado meus
pensamentos.

A Small Snack está movimentada. Avisto Leah assim que entro,


atendendo uma mesa em seguida da outra, todas entupidas de
alunos da KSU que foram assistir nossos jogos. Vejo que alguns a
parabenizam pela vitória e confesso que tenho que fechar meus
punhos quando vejo alguns garotos do time de vôlei secando sua
bunda.
Não demora até que ela me note e venha andando até mim.
— Kahel. O que está fazendo aqui? — pergunta enquanto
termina de anotar um pedido em seu bloquinho.
Não deixo de reparar no quanto ela está bonita, mesmo com um
cansaço evidente. A camiseta larga está tampada pelo avental, mas
consigo ver que é do The Rolling Stones. Mais uma vez, usa jeans
justos que agarram suas coxas torneadas. Hoje, o cabelo está preso
em um rabo de cavalo alto, há alguns fios ruivos caindo em seu
rosto, deixando-a com um ar angelical, inocente, sensual.
— Parabéns pela vitória — decido começar pelo assunto mais
neutro.
— Ah, obrigada! Pra vocês também. Ouvi dizer que foi um ótimo
jogo — devolve com um sorriso amigável demais para nossa
relação.
Leah está agindo de uma forma esquisita. Simpática demais,
alegre demais. Não sei se está assim por causa do jogo ou pelo
nosso beijo. Bem, não deve ser pelo nosso beijo. Não consigo
imaginar Leah feliz depois do que fizemos. Imagino surtos, gritaria e
mais uma briga, que talvez resulte em um novo beijo. Mas alegria?
Não, jamais.
Um silêncio se instala entre nós. Não dura muito, apenas o
suficiente para que eu veja que está batendo pé repetidamente
contra o chão, respirando de uma forma prolongada, como se
quisesse manter o controle a qualquer custo. Está na cara que Leah
está abalada, mas faz esforço para disfarçar.
— Eu queria... — ameaço falar, mas o sino da cozinha toca,
avisando que há um pedido pronto.
Leah ergue o dedo indicador para pedir que eu espere,
disparando para trás do balcão, para pegar o pedido. Assisto
enquanto anda de um lado para o outro, correndo para atender
todos os clientes. Sigo parado no meio do corredor, balançando o
corpo para frente e para trás, as mãos enfiadas nos bolsos do
moletom vermelho e branco dos Tigers.
Sinto que estou atrapalhando. Não foi um bom momento para
tentar conversar com Leah, mas eu estava tão ansioso para ver o
que ela tinha a dizer, que não resisti.
Demora até que a capitã das Fox volte a se aproximar de mim.
Vejo uma gota de suor escorrendo da sua testa e imediatamente me
repreendo por ter escolhido vir até aqui.
— O que você estava dizendo? — pergunta, ainda animada
demais para os seus padrões.
— Queria conversar com você sobre...
— A venda de garagem? Já está tudo pronto! — Me interrompe,
a entonação mais alta do que o comum para ela.
— Não...
— O baile? Ainda temos tempo!
Sua segunda interrupção me faz franzir a testa. Ela está
realmente desviando do assunto dessa forma? É sério?
— Não, Leah. — Perco um pouco a paciência, irritado com sua
forma de lidar com essa situação. — Sobre aquilo que aconteceu
entre nós. — Não especifico propositalmente. Quero vê-la admitir.
Leah nega com a cabeça, um bico desentendido se formando em
seus lábios.
— Não sei do que está falando. — Escutá-la é quase levar uma
facada em meu coração. Não acredito que estou passando por isso.
Leah deve estar sentindo minha inquietação, porque olha para os
lados, desconfortável. — Olha, preciso mesmo trabalhar. Falamos
sobre a arrecadação depois — finaliza a conversa sem me dar
espaço para responder.
Sigo estático no lugar, ainda descrente com sua atuação. Sloan,
sua colega de trabalho, se aproxima com um sorriso amigável no
rosto. Ela gostou de mim no dia que vim até aqui, tenho
praticamente certeza de que iria para cama comigo sem que eu
pedisse duas vezes. Porém, não vou ser esse cara. Leah pode ter
sido cuzona e fingido que nada aconteceu entre nós, mas eu
permaneço dominado pelas memórias dos nossos lábios se
encostando.
— Problemas com a ruivinha? — Sloan pergunta, apontando para
a amiga com a cabeça.
Nem consigo disfarçar.
— Alguns — admito, meu semblante entregando o quanto estou
incomodado com essa situação.
Nunca tinha sido rejeitado desse jeito antes. Nunca alguém fingiu
que não me beijou. Todo mundo se vangloria por ter ficado comigo.
Que merda está acontecendo?
— Espero que tudo se resolva. Vocês ficam bonitinhos juntos —
Sloan comenta e pisca para mim, antes de voltar a trabalhar.
Percorro o olhar pela lanchonete outra vez e encontro Leah na
mesa dos atletas novamente. Os garotos falam alguma coisa e dão
risada. Na mesma hora, Leah me procura com o olhar. Nós nos
encaramos e há uma mistura de assuntos pairando no ar.
Nossa conexão. Nossas conversas. Nosso beijo.
Espero que ela venha até mim ou dê qualquer sinal de que
vamos falar sobre isso depois, mas ela não o faz. Leah volta a olhar
para os garotos, comentando algo que os faz rir outra vez, quase
como se não tivéssemos acabado de trocar um olhar fatal.
Cerro os punhos e decido que é hora de sair daqui. Se Leah
James queria me fazer sentir ciúmes e me abalar com seu silêncio,
conseguiu.
Agora tudo o que me resta é voltar para o bar, encontrar meus
amigos e encher a cara de cerveja.
Oh, com os meus sentimentos em chamas
Acho que sou uma péssima mentirosa

Bad Liar – Selena Gomez


Não sou uma pessoa que costuma surtar com ficadas. Até
porque, é raro que eu queira ficar com alguém ou tenha tempo para
isso. Quando vou nas festas da faculdade e a oportunidade
acontece, eu me divirto, porém, não é algo recorrente, não é comum
que eu fique listando garotos que queira pegar ou surte quando a
ficada acontece.
A questão é que estou surtando com o beijo de Kahel. Não paro
de pensar nele, de reviver o momento em que ele me agarrou
depois de discutirmos.
Fiquei louca com sua atitude de peitar Axel, me perguntando
quem ele pensava que era para se intrometer na minha vida dessa
forma, queria literalmente socar seu rosto perfeito. E então o tal
beijo aconteceu. Eu não sei explicar o que senti naquele momento.
O ódio misturado com o tesão me deixou confusa. Nós tínhamos
acabado de brigar. Fomos de acusações acaloradas para um beijo
avassalador.
Ainda estou me perguntando como isso aconteceu.
Passei a semana repassando a cena na minha mente. Me
concentrei no trabalho, nos jogos e nas minhas aulas, mas toda vez
que parei, Kahel tomou conta de cada um dos meus pensamentos.
Estou confusa sobre o que esse beijo significou para nossa
relação. Ele me surpreendeu ao mostrar outras facetas, assim como
eu também o surpreendi, é um fato. Nós não nos conhecíamos
antes, só víamos a superfície, só enxergávamos o que o outro
queria mostrar.
Agora é diferente. Sinto que conheço pelo menos um pouco de
quem ele é. E eu gosto de quem ele é. Mas será que gosto o
suficiente para arriscar me envolver com ele? Com alguém que eu
jurava odiar?
Não estou pronta para conversar sobre o que seremos, nem
mesmo sei o que quero e olha que costumo ser uma garota
extremamente decidida. Eu gostaria de evitar Kahel até que seu
suposto interesse por mim desaparecesse, mas não dá. Além de
jogarmos o mesmo esporte, somos os capitães e mesmo depois da
arrecadação acabar, teremos que conviver. É assim desde que nos
conhecemos. Nunca gostei dele porque nosso primeiro confronto foi
um caos, porém, era obrigada a conviver com sua terrível presença.
Agora não será diferente.
A venda de garagem acontece hoje e estou respirando o mesmo
ar que Kahel Williams há algumas horas. Ele está agindo de uma
forma estranha comigo. Não falou muito, o que não é do seu feitio.
Só me ajudou a comandar a organização, se dirigiu a mim somente
quando necessário. Entendo sua reação. Não reagi bem quando ele
apareceu no meu trabalho, após nossos jogos. Fiquei chocada
quando o vi, não soube o que dizer. Kahel queria conversar sobre o
nosso beijo, mas como conversar sobre algo que eu mesma não
entendo?
Sinto que não tinha nada para dizer naquele momento. Agora,
também não sei se tenho. Tenho dúvidas se tivemos apenas um
lapso, se nossa relação vai evoluir para algum lugar. Deus, eu nem
sei se quero isso para mim.
Estamos na garagem da toca das raposas, o espaço está
arrumado com três mesas grandes, os itens que nossos colegas de
time cederam para serem postos à venda estão dispostos de uma
forma chamativa. Abby nos ajudou a organizar tudo, ela tem um
bom gosto incrível e fez uma decoração com bolinhas de basquete
de papel na parede. Os logos dos times também foram impressos
em cartazes e estão colados na frente das mesas. Minha amiga
cursa moda e entende desse tipo de coisa. Ficamos conversando
quando ela estava aqui, mas até em sua presença, Kahel estava
quieto. Ele fala comigo de novo somente quando me entrega uma
prancheta.
— Coloquei todos os itens que estão à venda nessa lista. Os
preços estão do lado, é só riscarmos quando for vendido — explica
e pego a prancheta, admirada, outra vez, com sua organização.
— Ficou ótimo, Kahel — elogio, esboçando um meio sorriso
tímido, tentando colocar panos quentes em nossa relação.
Ele apenas assente, a expressão fechada de uma forma que
nunca vi em seu rosto. Fico chateada por estarmos nessa situação.
As coisas andavam bem entre nós até aquele maldito beijo. Tivemos
conversas sinceras, me abri com ele, deixei que soubesse de
algumas coisas da minha vida. Estávamos um pouco mais
confortáveis um com o outro. Agora tudo desandou.
— Você vai mesmo fingir que nada aconteceu? — a pergunta tão
direta me pega de surpresa.
Kahel está do lado oposto da garagem, atrás de uma das mesas,
de frente para mim. Nunca o vi tão irritado. Está claro que se cansou
do desconforto entre nós.
Engulo em seco, meu coração batendo tão rápido, que preenche
o silêncio do ambiente. Não tenho como fugir dessa vez. Só
estamos nós dois aqui.
— Ainda estou processando tudo — respondo, apertando a
prancheta até os nós dos meus dedos ficarem brancos, tensa por
estar me sentindo encurralada, pressionada a conversar sobre algo
que eu ainda não absorvi totalmente.
— Eu também estou, mas diferente de você, não agi como se
nosso beijo não tivesse acontecido. — Seu tom é cruel, ele
claramente não gostou da minha atitude e eu entendo o porquê.
Além de eu não ter agido da melhor forma, Kahel deve estar se
sentindo rejeitado. Duvido que alguma de suas conquistas tenha o
tratado dessa forma.
Não me orgulho do meu comportamento, mas me sinto bem por
já ter transmitido que não serei como as outras e outros. Se Kahel
acha que sou só uma figurinha para completar seu álbum, está bem
enganado. De namoro ruim já basta meu relacionamento com Axel.
Solto a prancheta na mesa, alinhando minhas ideias para tentar
encontrar uma resposta que explique a confusão que sinto dentro de
mim. Preciso ser madura.
— Nós vivemos nos provocando e brigando, Kahel. Nem nos
gostávamos antes de trabalharmos juntos. Esse beijo causou um
turbilhão dentro de mim. Não sei o que pensar, o que sentir. Nunca
estive tão perdida. — Sou sincera, está realmente difícil de
compreender o que quero.
Kahel suspira, o semblante se suavizando pouco a pouco. Ele
vem andando até mim devagar, até parar à minha frente, a poucos
centímetros de distância.
— Eu também estou confuso, Leah. Estou confuso desde que
comecei a sentir uma atração insana por você. Fiquei tentando
reprimir a sensação, mas foi incontrolável. Quis te beijar quando
você ainda fazia caretas para mim, quando ficamos presos naquele
armário, quando conversamos na minha casa...
— Espera, você já estava sentindo algo por mim há todo esse
tempo? — pergunto por que, sendo sincera, eu achei que ele
estivesse brincando quando jogou indiretas para cima de mim. Até
cogitei que os flertes podiam ser verdadeiros, mas logo eliminei a
ideia, porque, naquele momento, isso não fazia sentido.
Kahel dá uma risadinha meiga, mostrando seus dentes
perfeitamente alinhados. Tudo nele é tão encaixado, parece que ele
foi feito para ser assim, simpático, de bem com a vida, lindo.
— Eu não sei o que você fez comigo, princesa. Senti uma
necessidade de brigar com você e ao mesmo tempo te beijar —
Kahel expressa o que eu mesma tenho sentido.
Existe algo intenso e caótico entre nós.
— Entendo. Tive vários pensamentos conflitantes nesses últimos
dias, me perguntando como eu poderia te beijar e ainda gostar. —
Faço uma careta, arrancando outra risada gostosa de Kahel.
O momento pesado passa a ser um momento descontraído
quando também rio. É melhor levarmos essa situação dessa forma.
Com humor, não com surtos e ignoradas. Não somos mais
adolescentes.
— E você pareceu gostar bastante, capitã, porque me agarrou
com vontade. — A malícia em sua voz me faz corar
instantaneamente.
Sou péssima com flertes, com relacionamentos, com tudo que
envolve o amor. Depois da decepção com Axel, me fechei demais
nesse quesito. Nunca deixo ninguém entrar. É a primeira vez que
estou abrindo uma brecha. Preciso me certificar de que Kahel não
vai me machucar.
— O que você quer comigo, Kahel? Entendi que sentiu vontade
de me beijar, por isso o fez, mas o que estava buscando? —
questiono, querendo analisar suas verdadeiras intenções.
Kahel dá mais um passo para perto de mim. Sua mão procura
pela minha, apoiada na mesa, e seus dedos me encontram. Sinto
meu corpo todo esquentar com o contato de nossas peles.
— Eu quero tentar, Leah. — Sua revelação me deixa levemente
boquiaberta. — Sei que você conhece minha fama e sabe que não
costumo levar os relacionamentos para frente, mas não quero fazer
merda com você. — A mão que está livre vai subindo até encontrar
meu cabelo. Ele brinca com a ponta ondulada, atento aos meus fios,
atento a mim. — Nossa química está mais do que comprovada
graças àquele beijo. Agora quero saber o que você acha. — A
carícia sobe ainda mais e ele coloca uma mecha do meu cabelo
atrás da orelha. Meu boné atrapalha um pouco o movimento, mas
ainda assim, sinto um arrepio percorrer minha espinha. — O que
quer para nós, capitã?
Sua voz soa rouca. A frase, sexy. A pergunta, quase um convite
para que eu me renda de vez aos sentimentos inegáveis que tomam
conta de mim.
Sempre penso demais. Analiso tudo demais. Tenho
preocupações demais, tarefas demais, responsabilidades demais.
Todos os meus passos são milimetricamente calculados. Mas dessa
vez, apenas dessa vez, quero me deixar levar, quero me envolver
no sorriso de Kahel, quero me permitir, quero fazer algo para mim,
porque quero, não porque é o certo.
— Quero mais — completo meu raciocínio em voz alta,
entregando a Kahel exatamente o que ele quer ouvir.
— Mais do que, princesa? Me diga. Seja clara. Quero saber
exatamente o que você quer — Kahel me instiga, ele sabe como
deixar uma mulher com as estruturas abaladas. Minhas pernas,
normalmente tão firmes, estão até bambas.
— Quero que me beije de novo. — Nem acredito no que digo.
Minha resposta sai imediata, apenas deixo que as coisas
aconteçam, que meus sentimentos comandem.
Kahel não demora para me obedecer. A mão que estava em
contato com a minha vai até a minha cintura. Ele me puxa contra si
de uma vez, nossos corpos trombando com o contato. É bruto, é
sensual, é atraente. Sua mão me segura com força, como se não
quisesse me deixar escapar.
Antes que ele traga sua boca ao encontro da minha, seus olhos
escuros buscam pelos meus. Nós nos fitamos, presos um no outro,
perdidos na intensidade do outro. Eu não penso nos meus
problemas familiares, em Axel ou nessa maldita arrecadação. Penso
só nos lábios carnudos de Kahel e no quanto ele beija bem.
Avançamos no mesmo momento, ambos desesperados para nos
sentir outra vez. Nosso beijo é ainda mais avassalador que o
primeiro. Estamos mais calmos, não houve uma briga eufórica que
culminou em uma atração insana, mas mesmo assim, tudo é ainda
mais intenso, principalmente porque, dessa vez, escolhemos
mergulhar um no outro. Esse beijo aconteceu depois de uma
conversa madura e sincera dos nossos sentimentos.
Jogo meus braços sobre os ombros de Kahel, eliminando
qualquer centímetro de distância que ainda havia entre nós.
Começo a perder o fôlego tamanha a energia que coloco em nosso
contato. Mesmo sendo uma atleta, fico ofegante, porque não
conseguimos parar. Estamos frenéticos, nossas bocas parecem ter
encontrado o paraíso.
Ainda é bizarro o quanto nos encaixamos. Eu nunca me senti
assim beijando outra pessoa. Esse sentimento avassalador de
querer mais nunca tinha acontecido comigo. Não sei se é por causa
da nossa relação de inimizade, se é porque o beijo é bom, se é
porque Kahel sabe como conquistar alguém. Podem ser inúmeras
questões, mas no momento, não quero refletir sobre nada. Quero
apenas continuar beijando Kahel Williams.
— Seu gosto é viciante, princesa — ele sussurra em meio ao
nosso beijo, causando uma sensação inquietante entre as minhas
pernas.
Não tenho dúvidas de que Kahel é o tipo de cara que vai me
fazer subir nas paredes. Pensar nisso me deixa ainda mais elétrica,
mas sei que precisamos ir com calma. Posso estar com tesão,
porém, as coisas não são tão simples.
Consigo escutar, a uma distância curta, buzinas eufóricas.
Imediatamente sei que são os garotos do time de basquete, vindo
para trabalhar na arrecadação. Eles prometeram trazer todo mundo
que conheciam, convencendo-os de que a compra de qualquer item
seria convertida em um convite para a festa na casa de Kahel.
Nós nos afastamos aos poucos, ambos conscientes de que a
qualquer minuto seus amigos irão aparecer correndo pelo gramado
e nos verão pelo portão da garagem, que está escancarado.
Kahel abre um sorriso satisfeito quando coloca novamente os
olhos nos meus. Eu retribuo, estou um tanto abobada com o
momento que acabamos de ter.
— Vamos fazer essa venda ser um sucesso, capitã — diz,
piscando de uma forma tão sensual, que quase o puxo para nos
beijarmos de novo.
— Vai ser, capitão — devolvo o apelido, dessa vez, sem a
conotação ruim que eu costumava colocar.
Vejo pela minha visão periférica que os garotos estão vindo pelo
gramado, se empurrando no caminho até aqui. Faço um sinal com a
cabeça para que Kahel se afaste e vá recebê-los. Antes de ir, ele
rouba meu boné e coloca na própria cabeça. A aba virada para trás
e o tom rosa se destacam em relação a sua pele negra, o estilo
combina com as roupas coloridas. Em outros tempos, eu o mataria
por ter pegado meu boné emprestado, porém, agora, nem me
importo. Ele fica uma gracinha assim.
Kahel vai se afastando, o olhar fica focado em mim, até que ele
encontre com os amigos. Os garotos estão animados e trouxeram
outras pessoas com eles, que já começam a comprar alguns itens.
Kahel pede que Sebastian e Maverick o ajudem a dar baixa no que
foi vendido, Miranda também começa a colaborar, graças ao número
de pessoas precisando de atendimento. Tenho certeza de que a
maioria está aqui apenas pelo convite da festa na casa do capitão
dos Tigers, mas pouco importa o motivo. Se estiverem comprando,
está tudo certo.
Estou prestes a me juntar a eles para começar a trabalhar,
quando vejo que Jo, Alex, Abby e Scout estão paradas na porta que
separa a garagem da nossa casa. Scout está com os braços
cruzados, balançando a cabeça em negação. Abby está com as
sobrancelhas erguidas e um sorrisinho malicioso nos lábios. Jo está
passando a língua pela boca de forma maliciosa e fazendo uma
dancinha comemorativa. Alex está batendo palmas altas demais
para não chamarem atenção.
Ando até elas na mesma hora, segurando suas mãos e
sinalizando para que entrem na casa. Fecho a porta rapidamente,
empurrando as quatro garotas com quem eu moro para longe.
Quando nossos olhares se cruzam de novo, percebo que eu e Kahel
não estávamos exatamente sozinhos.
— O quanto vocês viram? — questiono, negando com a cabeça,
sentindo toda a minha credibilidade ir por água abaixo por estar
beijando o cara que eu alegava odiar.
— Chegamos só na hora do beijo — Abby conta.
— Na verdade, Alex chegou e veio chamar todas nós para
assistirmos a cena — Scout corrige.
— Eu não podia perder a oportunidade de compartilhar uma cena
dessas com as meninas! O enemies to lovers deu certo! — Ela bate
palmas de novo, dessa vez dando pequenos pulinhos no lugar.
Alex é um ser humano engraçado. Se fosse outra pessoa me
dizendo isso, eu provavelmente ficaria constrangida. Mas só porque
é ela, balanço a cabeça e abro um sorrisinho.
— Tá, agora nos conte! Ele beija bem? Nós nunca ficamos — Jo
questiona e, por dentro, agradeço por ela não ter beijado Kahel em
seus tempos de solteira.
As meninas olham para mim com expectativa, esperando que eu
dê todos os detalhes do meu envolvimento com Kahel. Nem sei por
onde começar ou se devo começar. Um certo receio de abrir minha
vida amorosa a elas ainda me toma, porém, hoje, estou em um dia
bom, um dia em que estou me permitindo não pensar demais. E
Scout, Jo, Abby e Alex já provaram, individualmente, que merecem
serem chamadas de amigas.
— Ok, vou contar tudo pra vocês, mas preciso que fique entre
nós. Não gosto de expor minha vida pessoal para ninguém.
As meninas assentem, sabem que sou reservada. Odeio fofocas
e não quero que minha relação recém-iniciada com Kahel seja
comentada por aí.
— Você pode confiar na gente, Leah — diz Jo e eu assinto. Não
tenho dúvidas da lealdade dela. De nenhuma delas, na verdade.
— Estamos com você, capitã — Scout se manifesta, piscando
para mim, interessada em me ouvir.
— Fox pra sempre, não é? — Abby fala e eu abro um sorriso
para a minha pupila.
— Estou adorando as declarações de amor, mas fale logo!
Preciso alimentar a fanfiqueira dentro de mim! — Alex balança as
mãos com desespero, arrancando gargalhadas de todas nós.
Deixo a arrecadação de lado por alguns minutos, sei que Kahel e
seus amigos dão conta de ficar um tempinho sem mim. Quero me
abrir e tenho quatro amigas doidas para escutar nossa breve
história. Não posso deixar o momento passar.
Conversas tarde da noite
Emoções elétricas
Com uma pitada de sexo
Potion – Calvin Harris, Dua Lipa & Young Thug

A venda de garagem foi um sucesso. Arrecadamos ainda mais do


que imaginei. Eu diria que todos os atletas da KSU estavam na toca
das raposas. Os times de basquete, de vôlei, de futebol americano,
as cheerleaders, até a equipe de natação e de atletismo. Kahel
conhecia todo mundo, óbvio. É impressionante o quanto ele é social,
o quanto conquista todo mundo com sua simpatia. Eu achava essa
sua característica um tanto irritante, mas agora confesso que até
gosto. Admiro a naturalidade da sua personalidade, ele é uma
pessoa extrovertida por natureza, totalmente oposto a mim.
Talvez isso nos ajude a dar certo. Ou talvez nos ajude a brigar
ainda mais. Mesmo tendo nos beijado loucamente antes da venda
começar, ainda tenho dúvidas em relação ao nosso envolvimento. É
tudo uma incógnita. Não sei se vamos continuar nos encaixando tão
bem.
Suspiro diante do pensamento, encarando meu reflexo no
espelho, enquanto termino de passar um pouco de base. Costumo
ter uma preguiça insana de me maquiar, mas hoje é uma ocasião
especial. A primeira parte do nosso plano de arrecadação deu certo
e vamos comemorar na festa de Kahel.
Vesti minha meia arrastão, um shorts preto e um moletom dos
Lakers tão grande que o cobre por completo. Nos pés, uso meus
Vans pretos de cano alto. Como diz Joanne, meu estilo Avril Lavigne
“emo suave” combina comigo.
Pego meu celular depois de passar uma quantidade mínima de
blush — sinto que já sou corada o suficiente — e vejo que Hailey
respondeu minha mensagem. Perguntei a ela como vão as coisas
em casa, já que não consegui visitá-la essa semana. Com o
campeonato acontecendo, minhas provas iniciando, a arrecadação
e o trabalho, simplesmente não houve tempo para mais nada.
Hailey me diz que tudo está bem, minha mãe tem cumprido suas
horas de trabalho e não bebeu nos últimos dias, pelo menos não na
frente dela. Nem sequer sinto alívio ao ler isso, porque sei que é
uma condição passageira. A qualquer momento, minha mãe pode
deslizar. Não confio nela.
Estou digitando uma resposta para Hailey quando escuto batidas
na porta. Rapidamente termino, pedindo que ela me ligue caso algo
aconteça e me dê notícias sobre seu desempenho nas provas da
semana. Bloqueio o celular e caminho até a porta do quarto.
Quando abro, me deparo com Abby e brilho. Muito brilho.
— Capitã, fiz algo I-N-C-R-Í-V-E-L pra você! — ela realmente
soletra cada letra, toda animada. Porém, quando me fita, o
semblante muda e uma careta se apossa de seu rosto. — Você vai
encontrar seu capitão gostoso vestida assim? — questiona,
apontando para o meu moletom.
Abraço meu próprio corpo, devolvendo sua careta.
— Eu gosto do meu estilo — rebato.
Entendo que Abby seja uma patricinha ligada na moda, mas eu
não sou. Usar um moletom desses para ir em uma festa deve ser
um crime para ela, que está vestida com uma saia jeans minúscula
e um cropped rosa brilhante. A maquiagem também carrega muito
brilho, assim como alguns pontos da sua pele.
— Seu estilo é ótimo, mas podemos dar uma melhorada nesse
look! Sorte sua que tenho a peça perfeita! — Abby levanta um
cropped roxo idêntico ao seu, balançando-o no ar para tentar me
atiçar. Não funciona, eu só sigo com a minha careta, encarando a
peça com a testa franzida. — Qual é, costurei pra você! — conta,
abrindo um sorrisinho meigo que me lembra Hailey.
Não resisto e acabo retribuindo um esboço de sorriso. Abby usou
parte do seu tempo para fazer uma roupa para mim. Como me
recusar a vesti-la?
Pego a peça, suspirando, sem acreditar que estou mesmo
fazendo isso.
— Oba! Você vai ficar mais gata ainda! — Ela bate palmas
repetidamente, mas para de forma abrupta e aproxima o rosto do
meu. — Podemos dar uma melhorada nesse make também!
— Abby... — Tento resmungar, mas não adianta. Abby me
empurra para dentro do quarto e me coloca sentada na frente da
escrivaninha.
— Fique quieta! — ordena, saindo rapidamente do meu quarto
para buscar algo no seu. Quando volta, está equipada com uma
maleta de maquiagens.
Deixo que ela faça o que quiser. Não resmungo, apesar de não
estar sendo meu momento favorito da noite. Para algumas pessoas,
a maquiagem e as roupas são coisas de grande importância. Para
mim, não. Estou sentindo que Abby leva tudo isso muito a sério, e
que esses nossos minutos juntas podem fazer não só nossos laços
se estreitarem, mas nossa confiança aumentar. Só de eu ter
permitido que ela me maquiasse, já é sinal de que confio nela. E
sinto, por algum motivo, que ela precisa dessa comprovação.
— Você está linda, Leah — ela fala enquanto segura no meu
queixo, analisando seu trabalho.
Faço um carinho em sua bochecha, para mostrar o quanto estou
agradecida e feliz por estarmos em um momento de proximidade.
Abby pega um espelho de sua maleta e me entrega. A sombra não
é muito pesada, apenas um toque de lilás brilhante, um pouco mais
claro que a minha blusa. O delineado preto, sim, me impressiona,
porque nunca vi meus olhos verdes tão destacados. Ela ainda
passou um batom claro, que orna perfeitamente com a maquiagem.
Devolvo o espelho para ela com um sorriso largo no rosto.
— Obrigada por isso, Abby. Acho que nunca me senti tão bonita
assim.
E essa é a mais pura verdade. Não olho para mim com
frequência. Abby Miller, a caloura que entrou há pouquíssimo tempo
na minha vida, não só olhou, como transmitiu minha essência
através da maquiagem. Ela realmente entende de moda. E não
estou falando no sentido de te vestir com a roupa mais estilosa, e
sim de enxergar quem você é e reproduzir sua personalidade
através do que você veste, da sua maquiagem.
— Ah, assim você me emociona! — Seus olhos claros estão
cheios de lágrimas. Quando vejo, Abby já está me abraçando,
puxando minha cabeça contra seu corpo. — Agora vista esse
cropped e não borre a minha obra de arte ou vou ter um treco! —
ordena e dou risada, agradecida pelo carinho.
Faço o que ela pede e, cacete, que bom gosto! O tom combinou
com o resto da minha roupa e trouxe um contraste com o visual
emo. Mesmo com metade da minha barriga aparecendo, me sinto
bem. Definitivamente, não é uma roupa que me imaginei usando.
Essa sensação de saber que vou surpreender me agrada. Eu
mesma estou surpresa. Diria que o dia de hoje está marcando
minha trajetória. Estou me arriscando, evitando refletir tanto sobre
tudo, abraçando as mudanças. É um caminho que gosto de ter
entrado.
Faço um sinal para Abby, mostrando que estou pronta, e
descemos as escadas comentando sobre o próximo time que
teremos que enfrentar. Quando estou prestes a descer os últimos
degraus, percebo que Alex e Jo já estão na porta, esperando por
nós.
As duas estão usando croppeds brilhantes iguais ao meu e o de
Abby. O de Alex é laranja, o contraste com sua pele negra fica lindo.
Jo está com um azul, a tonalidade valoriza suas curvas, o corpo
dela é praticamente uma obra de arte.
— Sério, Abby? — Me viro para perguntar, sem conseguir
esconder o riso em meus lábios. Só ela para fazer uma coisa
dessas.
— Não sabia que tinha feito pra todo mundo! Eu amei! — Alex
comenta, empolgada.
— Todas as moradoras da toca das raposas precisam estar
arrasando hoje! — Abby diz e joga o cabelo loiro para trás, um ato
mais patricinha, impossível.
— Você mandou bem, tô me sentindo uma gostosa — Jo fala e
faz carinho na bunda, mostrando o quanto a calça branca modela
suas nádegas. — Ainda mais gostosa, na verdade — se corrige e
ganha um empurrão de Alex, as duas são muito próximas e criaram
uma intimidade linda de se ver.
Na verdade, sinto que todas nós evoluímos um pouco nesse
quesito. Até mesmo minha metade irritadinha.
— Espera, você também fez um pra Scout? — indago, não a vejo
desde a arrecadação, Halstead tem a tendência de se trancar no
quarto para não precisar socializar conosco.
Abby me lança um olhar indignado e entendo que a resposta é
sim. Óbvio que ela não deixaria nem a garota mais marrenta da
casa escapar.
Antes que possamos dizer qualquer outra coisa, Scout aparece
nas escadas. Assim que para no topo, já reparo que não está
usando o cropped de Abby, e sim uma camiseta qualquer.
— Ah, Scout! — Abby reclama, batendo as mãos nas coxas e
logo em seguida cruzando os braços, fazendo uma expressão
emburrada, quase infantil.
— Eu não acredito que você fez isso! Queria que nós usássemos
uma roupa combinando? — Scout aponta para nós com o
semblante indignado, o cabelo escuro está preso em um rabo de
cavalo, que balança enquanto ela nega com a cabeça.
— Sim! Fiz especialmente pra vocês, pra podermos chegar juntas
na festa e mostrar o quanto as Red Fox estão fortes esse ano! —
Abby se justifica, acho seu comentário uma graça, fico feliz e grata
por ela pensar de forma coletiva, assim como eu.
— Não estraga tudo, Scout! Só vai faltar você! — Alex se
lamenta, chorosa.
— Tenho certeza de que você pode fazer esse esforço pra suas
amigas, Zangado.
Preciso de um controle enorme para segurar a gargalhada.
Joanne está mesmo se referindo a Scout como o anão da Branca de
Neve.
Por sorte, nossa amiga nunca se abala com esse tipo de coisa. O
que ela faz é olhar para mim, a pessoa de quem é mais próxima,
buscando minha opinião.
— Vamos usar uma roupa combinando, amiga! — Uso um tom
emocionado que não tem nada a ver comigo. As meninas caem na
gargalhada com a entonação que uso. Resolvo me aproximar de
Scout, subindo alguns degraus da escada até parar do seu lado. Por
incrível que pareça, conseguimos nos entender apenas com o olhar.
Digo à ela que cedi as meninas, que estou trabalhando para me
abrir e confiar nelas. Indico que tente fazer o mesmo. Scout me
mostra que ainda não está pronta, mas seu olhar de relance para as
três garotas logo abaixo de nós me diz que, um dia, ela vai estar. E
quando Scout Halstead finalmente se abrir, vamos poder dizer que
temos uma relação recíproca de amizade. Eu mal posso esperar
pelo dia em que ela revelará todos os segredos, que nos fará
entender o porquê de ser assim.
— Quem não estiver de cropped não entra na Baby! — Abby
apela, citando seu precioso carro. — Vai ter que pedir carona pro
seu namorado misterioso!
— Ah, o namorado fantasma! — Jo sussurra para Alex, mas não
é nada discreta. Todo mundo escuta.
Scout bufa, revira os olhos e sai pisando fundo na escada, rumo
ao seu quarto. Apesar da marra, volta com o cropped preto que
Abby fez. O conjunto com a saia de couro e o coturno mostram
muito de Scout. As garotas até a aplaudem quando a veem e
recebem mais uma revirada de olhos.
— Que delícia de mulher! — brinca Jo, passando a língua pelos
lábios.
— Você devia se vestir mais assim, tá um arraso, como eu
imaginei! — Abby se vangloria e Scout faz uma careta maior ainda.
— Nós estamos lindas! Quem topa uma foto? — pergunta Alex,
mostrando seu telefone para nós.
Abby e Joanne rapidamente se juntam a ela. Eu reluto um pouco,
mas olho para Scout e ela vai me empurrando na direção delas.
— Você me fez entrar nessa roubada, James, então agora nós
vamos mergulhar de cabeça!
Dou risada quando escuto Scout, as nuances da sua
personalidade são simplesmente bizarras.
Nós nos aproximamos das meninas, Abby fica no meio, eu de um
lado dela, com Scout do meu, Jo do outro lado de Abby, e Alex na
ponta, segurando o celular. Tiramos inúmeras fotos, fazemos caras
e bocas, até posamos imitando uma careta de Scout, que sai
olhando emburrada para nós. Quando Alex mostra como ficou a
imagem, gargalhamos tão alto que Scout é obrigada a se render e
dar risada também.
Continuamos conversando, rindo, gritando, cantando quando já
estamos no carro de Abby. Sinto uma coisa esquisita no meu peito,
uma sensação que há muito tempo eu não sentia. É como se eu
soubesse que esse momento vai ficar na memória, que vai marcar
nossa trajetória juntas. Um momento simples, mas significativo.
Uma aproximação lenta, mas que culminou em um período feliz.
Porque é assim que estou me sentindo.
Feliz.

Kahel não estava brincando quando disse que sabia dar uma
festa. A casa que divide com seus amigos está uma bagunça aos
meus olhos, mas entre eles, existe um sistema bizarro de
organização. Miranda está fiscalizando se quem entra tem o convite
que distribuíram na venda de garagem, Sebastian está na cozinha,
Maverick próximo a escada que leva aos quartos, ambos
conversando com outras pessoas, porém, com o olhar atento, como
se quisessem se certificar de que ninguém irá destruir nada ou
causar na festa.
Não avisto o capitão dos Tigers quando chego. Imagino que
esteja no quintal, o único lugar pelo qual não passei. Senti vontade
de ir atrás dele, mas não sei como vamos agir em público. Não
houve uma conversa para decidirmos, nos beijamos literalmente
duas vezes. Confesso que não quero chamar atenção para nós,
pelo menos não nessa festa. Todo mundo sabe que somos os
capitães do basquete, que nos odiamos e que estamos trabalhando
juntos. Boa parte das pessoas que estão na casa são atletas, e as
fofocas correm pelos vestiários em uma velocidade alucinante.
Aproveito o fato de ter me conectado com minhas colegas de
time e de casa, para me acabar de dançar e esquecer do
mimadinho que tem causado um rebuliço nos meus sentimentos.
“Potion” da Dua Lipa está tocando, a música é uma delícia, a
batida perfeita para uma dança com uma pegada mais sensual.
Joanne lidera nosso grupo, dançando no meio da rodinha, passando
a mão pelo seu corpo, a boca um tanto aberta, seduzindo de uma
forma que só ela sabe. Abby está se acabando, balançando a
cintura de um lado para o outro, cantando a música a plenos
pulmões. Sou mais contida, Alex e Scout também, então ficamos
mais juntas, só movimentando nossos corpos, curtindo o momento.
Scout até brinca mexendo em seu cabelo, há um sorriso quase
imperceptível em seus lábios, me dando a certeza de que ela está
adorando estar aqui, mas não quer perder a pose de marrenta.
Encosto minhas costas nas costas de Alex para dançarmos juntas,
ondulando nossos corpos em conjunto.
O ápice da música chega e Abby e Jo nos convidam a cantar.
Não sei muito bem a letra, mas tento acompanhá-las. Nós cinco
começamos a fazer uma coreografia, copiando os passos sensuais
que Jo inventa. Tenho que empurrar Scout para que ela tope,
seguro em suas mãos para obrigá-la a reproduzir os movimentos,
dando risada no processo.
Estou distraída com a música, mas não deixo de sentir que há
alguém me olhando. Procuro pela sala com o olhar e não demora
para que eu encontre Kahel parado ao lado da sacada que dá
acesso ao jardim. Quando ele percebe que estou encarando, bebe
um gole do que quer que esteja em seu copo. Noto que meu boné
rosa bebê ainda está em sua cabeça. Filho da mãe! Me distraiu em
um nível que nem notei a falta do boné.
— Você devia ir até lá — Abby aconselha, mostrando que está
me observando.
Engulo em seco, dá para ver em meu rosto que essa não era
bem minha ideia.
— Não — Jo fala, se aproximando de mim. Ela para ao meu lado,
murmurando perto do meu ouvido: — Se ele te quiser, vai ter que vir
até aqui.
Seu sorriso malicioso me diz tudo o que preciso saber. Joanne
está me aconselhando a fazê-lo lutar para me ter. Ela é mestra na
arte da conquista, então sinto que o certo é ouvi-la.
— Vou continuar dançando — anuncio, piscando para ela,
mostrando que vou seguir seu conselho.
— Rebole esse corpo lindo, Leah! Enquanto isso, vou ver se meu
namorado não topa uma rapidinha. — Jo bate na minha bunda
antes de sair andando, em busca de Anthony, que acabou de
chegar na festa. Ela o traz para nossa rodinha por alguns segundos,
mas logo os dois somem, me dando a certeza de que ele topou seu
pedido.
Fico próxima das outras meninas e resolvo fazer o que Jo disse.
Tento dançar com um pouco mais de sensualidade. Não sinto que
sou boa nisso, mas continuo. É por causa de Kahel, porque quero
que ele sinta que precisa vir até mim, mas também é por minha
causa, porque estou me divertindo, porque tirei o dia de hoje para
mim.
Eu não sabia que era tão gostoso apenas ser eu.
Aproveito que meu cabelo está solto e o jogo para o lado, passo
as mãos nas mechas onduladas e no meu corpo, coisa que nunca
faço. Nunca olho para mim. Nunca tenho tempo para mim. Nem me
lembro a última vez que pude apenas fechar os olhos e contemplar
o momento.
Estou tão imersa na música que só percebo a presença de Kahel
quando sinto suas mãos em minha cintura. Em um primeiro
momento, me assusto. Segundos depois, já estou arrepiada. Seu
toque é gelado, causando um choque em minha pele fervendo.
Sinto sua respiração em meu pescoço nu, me mostrando o quanto
está perto.
— Sua dança me deixou louco, princesa — sussurra com a voz
lenta, direto no meu ouvido, a boca tão próxima, que quase me
beija.
Puta merda. Estou travada, nervosa com essa interação mais
sensual entre nós. Preciso respirar fundo para tentar absorver um
pouco da ousadia de Joanne.
— Por que não se junta a mim? — pergunto, quase gaguejando.
Kahel não responde. Ele me vira de frente para si, colando
nossos peitos. O movimento é rápido, o baque dos meus seios
tocando em seu corpo me faz olhar para cima na hora. Encontro-o
me encarando. Há uma certa faísca em seus olhos castanhos. Não
é preciso ser uma expert em relacionamentos para interpretar o
significado desse olhar.
Para piorar minha situação, ele tira meu boné de sua cabeça e o
devolve para a minha, virando a aba para trás, ajeitando-o da forma
que uso sempre, um ato que só me mostra o quanto ele me
observa.
De repente, absorver a música que está tocando se torna
impossível. A única coisa em que meu cérebro consegue focar é na
boca carnuda de Kahel. É em seu rosto bem delineado, com
pequenos fios de barba nascendo pelo queixo. É em seu brinco de
cruz, balançando na orelha. É em seu cabelo crespo, que minhas
mãos não hesitam em tocar. É em seu corpo em um contato tão
íntimo com o meu.
Nós dançamos como se não houvesse ninguém por perto.
Balançamos nossos corpos em pura sincronia, não nos
distanciamos uma vez sequer. Esqueço de todo mundo a minha
volta, não ligo para que os outros vão pensar, não me importo com
as teorias que vão criar, não agora. Meu foco está unicamente em
Kahel.
Ele entrelaça nossas mãos, levando-as para acima da minha
cabeça, conduzindo nossa dança. Percebo que Kahel tem gingado,
diferente de mim, que não tenho talento algum. Só por isso, deixo
que ele mande, que faça o que bem entender.
A forma como me conduz é sutil. Mal percebo quando leva meus
braços para os seus ombros, trazendo suas mãos para minha
cintura, meu corpo para ainda mais perto do seu. Nossos quadris
estão colados, se movendo no mesmo ritmo, envolvidos na
sensualidade do momento.
Até nossos rostos, antes um tanto distantes, agora estão a uma
proximidade perigosa. Nossos narizes quase se encostam, as
respirações se encontram. Eu poderia beijá-lo com uma única
avançada, com um movimento mínimo. O pensamento me faz
morder o lábio inferior, tomada pelo tesão, pela vontade de tê-lo
mais uma vez.
Kahel parece estar passando pelo mesmo conflito, porque tira
uma de suas mãos da minha cintura e a leva para o meu rosto.
— Vamos para um lugar mais privado? — convida, cheio de
malícia, o corpo implorando pelo meu.
Estou pensando menos do que o normal. Meu raciocínio está
abalado pela proximidade entre nós, pelo momento que acabamos
de ter, então apenas assinto e deixo que ele me conduza até seu
quarto.
O lugar me é familiar, já dormi na mesma cama em que estamos
nos agarrando, mas as circunstâncias eram completamente
diferentes. Nós ainda não nos gostávamos, não como agora. Podia
até existir uma faísca inexplorada entre nós, porém, eu mesma
sequer pensava na possibilidade de estar, um dia, dando uns
amassos no quarto de Kahel Williams.
Estamos deitados de lado, nossos corpos seguem unidos, nossas
bocas se devoram com desespero. Criamos uma expectativa
enorme durante nosso momento na sala e agora que estamos
sozinhos, damos nosso melhor para explorá-la.
Sinto Kahel em todos os lugares, não há nenhuma parte do meu
corpo longe do dele. Nossa conexão me agrada, ao mesmo tempo
que me apavora. Estamos em seu quarto e sua mão na minha
bunda deixa claro o que ele quer. O problema é que eu estou
curtindo o momento, mas não tenho certeza se quero avançar.
E se ele não for delicado? E se ele me rejeitar quando eu disser
que não transo faz tempo? E se ele achar que não tenho
experiência o suficiente para estar com alguém tão conquistador
quanto ele? E se ele não me deixar sair quando eu pedir para ir
embora?
Os questionamentos em minha mente são pura confusão. Eu
queria muito não ser tão complicada, apenas aceitar tudo de bom
grado e aproveitar nosso tempo juntos. O problema é que meu
cérebro não quer mais desligar. O problema é que quando Kahel
toca meus seios, eu imediatamente penso em Axel.
Eu não gostava da forma com a qual ele me tocava. Não gostava
da sua brutalidade, do modo como me manipulava, de como sempre
me convencia a fazer o que ele queria. Me submeter a algo assim
de novo está fora de cogitação.
Empurro o peito de Kahel, separando nossas bocas. Ele me olha
com confusão, não está entendendo nada, já que, cinco minutos
atrás, eu estava envolvida no momento. Porém, ele não sabe do
meu passado, do que a minha mente revive, do que o meu cérebro
insiste em bloquear. Eu quero continuar com ele, quero avançar,
mas minha cabeça não deixa.
— O que foi? O que aconteceu? Fiz algo de errado? — A
preocupação em sua pergunta faz com que eu me sinta mal.
Eu não queria que as coisas fossem assim.
— Desculpe — falo antes de levantar da cama, pegar meu boné,
e enfiá-lo na cabeça, dessa vez com a aba para frente para cobrir
meu rosto. Não é uma tentativa de me esconder, apenas de não ter
que olhar para ninguém.
Preciso sair dessa casa.
Passo novamente pela sala, escuto até Maverick me chamando,
percebendo que estou abalada com alguma coisa, mas não paro,
nem mesmo olho para trás. Só me permito respirar quando encontro
o carro de Abby estacionado do lado de fora. Encosto na lataria,
descendo de forma dramática até me sentar no chão, tentando me
esconder em um lugar onde ninguém possa me encontrar.
Puxo os joelhos para perto e enfio meu rosto entre eles. A
vontade de chorar me consome, mas como sempre, não derrubo
uma lágrima sequer. Estou presa em um misto de tristeza,
decepção, invalidez e culpa. Desejo aos céus que as coisas sejam
diferentes. Me pergunto por que não posso ser como todo mundo.
Me frustro quando caio na realidade e tenho que aceitar que nunca
vou poder apagar o que vivi. Essa é a minha vida, minha história.
Minha dura e bela história.
— Leah, tá tudo bem? — A voz de Alex me faz levantar a cabeça
na hora.
Ela e Joanne estão paradas à minha frente. A expressão confusa
em meu rosto transmite o questionamento do porquê elas estão
aqui.
— Eu estava saindo do banheiro com Anthony e te vi passar
correndo. Fui atrás das meninas na mesma hora, mas a Scout
sumiu, a Abby estava pegando um cara e só encontrei a Alex — Jo
explica, dando de ombros de uma forma meiga.
— Desculpe ter atrapalhado sua foda — respondo, querendo a
todo custo falar sobre qualquer pessoa, que não seja eu.
— Nós já tínhamos terminado. Foi difícil convencer o Clark a ir
até aquele banheiro, mas, amiga, valeu muito a pena! — Jo mostra
a língua de forma maliciosa, usando o apelido interno que tem com
o namorado para se referir a ele.
Ela fala tão abertamente sobre sexo. É tão comum para ela, tão
natural. E eu surtando com um mero toque de Kahel.
— O que aconteceu, Leah? Nós vimos você com o Kahel. Ele fez
alguma coisa que você não gostou? — Alex pergunta, visivelmente
preocupada.
Eu hesito. Apesar de ter me aberto com elas mais cedo, contando
como me envolvi com Kahel, não sei se consigo ser sincera agora.
É uma situação diferente. Revelei uma parte feliz e fofa da minha
história. Essa é uma parte triste, uma parte que me fere.
— Se você não disser nada, não vamos conseguir te ajudar.
Estamos aqui por você — Joanne é fofa, lançando um sorrisinho
amoroso para mim.
Gosto tanto delas. Gosto a ponto de preferir omitir a me fechar
totalmente e deixar nossa conexão esfriar.
— Não tenho muitas experiências com namoros e coisas assim
— revelo uma meia verdade.
— Ah, Leah, não seja por isso! Posso te ensinar vários truques!
— Jo oferece, a expressão sapeca dominando seu rosto.
Alex, no entanto, me olha com desconfiança. Sinto que ela não
comprou o que eu disse, mas ainda assim, segue na conversa.
— Você se sentiu insegura? — ela pergunta, colocando uma
mecha do cabelo cacheado atrás da orelha.
— Kahel já deve ter dormido com metade da faculdade. Ele é
ótimo com conquistas e eu sou... eu. — Nada do que estou dizendo
é mentira. Realmente fico insegura perto dele. Seus flertes são bem
elaborados, ele tem uma forma peculiar de me desafiar, sabe como
me deixar de pernas bambas com facilidade. Eu não tenho muito a
oferecer nesse quesito.
— Olha, se quer que eu seja honesta, o que mais importa não é
sua experiência na cama, e sim sua confiança. Se você pelo menos
fingir que sabe, já é meio caminho andado. — Joanne começa a
palestrar sobre formas diferentes de chupar e masturbar um pau. Eu
não acredito que estou ouvindo isso, mas me pego interessada no
que ela tem a dizer. — Então você vai fingir que está espremendo
uma laranja. — Jo fecha o punho, fazendo o movimento esfregando
uma mão na outra. — E vai fazer esse movimento na cabeça do
pau. Garanto que ele vai gemer até não dar mais e gozar...
— Jo, acho que entendemos — Alex a interrompe, para nossa
sorte. Tenho até medo de quantas técnicas Joanne descreveria para
nós.
— Foram ótimos conselhos — digo para deixá-la feliz, acho que
até absorvi alguma coisa, mas não sei se tenho coragem de fazer
nada do tipo.
Joanne se abaixa à minha frente, colocando as mãos nos joelhos
para que o rosto fique na direção do meu.
— Sabe como você vai deixar uma transa boa, Leah? — ela
pergunta e eu nego. Nunca tive uma experiência boa. Não faço ideia
de como deve ser. — Com confiança, com diálogo, expondo o que
você quer, até onde você está disposta a ir. Ninguém conhece seu
corpo melhor do que você. Sempre tenha isso em mente.
Jo pisca para mim do seu jeitinho de sempre e eu suspiro, de
certa forma feliz por elas terem vindo atrás de mim. Ela não está
errada. Um diálogo sincero é o melhor caminho. Mas como arranjar
coragem de dizer para Kahel que eu nunca gostei de transar? Será
que ele não vai me achar estranha?
— Jo? — Anthony se aproxima de nós pela calçada, as mãos
estão enfiadas nos bolsos, ele só tira uma para ajeitar seus óculos e
logo volta a postura tímida. — Está tudo bem por aí?
Sorrio para sua pergunta. O espaço respeitoso que Anthony
deixa entre nós me mostra o quanto ele tem empatia pela nossa
amizade. Dá para ver que compreende o fato de Joanne precisar se
doar para as amigas. Acho o máximo que ele tenha vindo nos
procurar só para saber se está tudo bem.
— Sim, Anthony, obrigada — agradeço, nunca conversamos
muito porque o namorado de Jo é um cara tímido, mas gosto muito
dele.
— Se você quiser voltar pra festa com ele, fico com a Leah —
Alex oferece. Ela não se manifestou muito nos últimos minutos e a
camisa 10 das Red Fox costuma ser bem tagarela. Desconfio que
seu silêncio não seja um bom sinal.
Jo assente devagar e se abaixa para me dar um leve abraço.
Retribuo o carinho e ela me faz prometer que vou ligar se precisar
de alguma coisa. Agradeço a preocupação e observo quando ela vai
até o namorado, cumprimentando-o com um beijo rápido. Os dois
saem de mãos dadas em direção à festa, Jo passa o caminho todo
olhando para trás, como se quisesse se certificar de que estou
mesmo bem.
É só quando não temos mais visão da loira que Alex se senta ao
meu lado. Ela puxa os joelhos para perto do peito, ficando na
mesma posição que eu. Não precisa dizer muito, apenas pelo que
seus olhos castanhos mostram, sei que irá quebrar o muro que
construí.
— A falta de experiência não é seu problema, a experiência que
teve que é o problema, certo? — Sua pergunta é certeira, tornando
impossível que eu recue.
Respiro fundo, olhando para o céu, aproveitando para virar a aba
do meu boné para trás, do jeito que gosto de usar.
— Ninguém nunca abusou de mim ou tentou forçar alguma coisa.
Mas vamos dizer que as experiências não foram agradáveis e que
eu não fazia ideia do que estava fazendo — admito parte da história,
sem dar muitos detalhes.
Não conto que meu namorado era cinco anos mais velho e muito
experiente. Não conto que ele me convenceu de que eu precisava
perder a virgindade com ele, aos 14 anos, para poder fortalecer
nosso relacionamento. Não conto o quanto doeu e o quanto
continuou doendo. Não conto que ele fingia ser delicado e falava
coisas bonitas, mas não estava nem aí para o meu prazer. Também
não conto que nunca gozei com ninguém, exceto meus próprios
dedos.
— Minhas experiências não preenchem uma mão. — Ela mostra
dois dedos e eu até me surpreendo, cheguei a cogitar que Alex
fosse virgem. — E também não foram das melhores. Sei lá, não sou
uma pessoa que anseia por sexo, não é como se eu sentisse
vontade de fazer isso com qualquer cara.
Sua confissão me faz encará-la diretamente, surpresa por
compartilharmos do mesmo pensamento.
— Eu não faço questão, mas não sei se não gosto de transar ou
se só nunca tive uma transa decente. — É difícil identificar a
verdadeira razão por trás desse meu bloqueio.
— Sei que é fácil falar, porém, tenho pra mim que o Kahel não é
como esse outro cara com quem você se envolveu. Acho que se
você revelar suas inseguranças pra ele, Kahel vai respeitar e
entender o seu tempo.
Reflito sobre o que Alex disse, é realmente a saída mais óbvia e
mais madura, mas vou precisar de muita preparação para revelar
qualquer coisa para ele. Contar a história inteira está fora de
cogitação, até porque ele já encontrou com Axel e não vai ser difícil
somar um mais um. Tenho medo de Kahel ficar com raiva dele e
querer enfrentá-lo. Além de Axel ser perigoso, ele sabe tudo sobre a
minha família imperfeita, as dívidas da minha mãe. Ainda quero
manter essa parte da minha vida protegida de todos com quem
convivo na KSU.
— Vou tentar fazer isso, Alex. Obrigada por entender e por ter
arrancado essa confissão de dentro de mim.
Ela esbarra de leve em meu ombro, formando um sorriso
carinhoso.
— Você é fechada, mas não é impossível de ler. Sou craque em
identificar mocinhas quebradas.
Dou risada do seu comentário, feliz por ter um momento de
intimidade com mais uma das garotas com quem moro. Elas não
fazem ideia do quanto é importante para mim ter amigas. Sempre fui
um lobo solitário, entretanto, de uns tempos para cá, tenho me
sentido parte de alguma coisa. Não só de um time, mas de um
grupo, de uma tribo.
— Será que podemos ficar por aqui? Não quero enfrentar o Kahel
hoje — confesso, sinto que preciso pensar no que vou dizer antes
de efetivamente conversarmos.
— Nós até podemos, mas estou morrendo de fome. Será que
entregam pizza na calçada? — Sua pergunta me faz soltar uma
gargalhada, que ecoa pela rua vazia.
— Não sei, mas definitivamente temos que tentar.
Alex pega o telefone para fazer o pedido e continuamos sentadas
no mesmo lugar, conversando sobre as mais diversas coisas, até
que nossas outras amigas chegam e aderem à ideia da pizza,
Anthony, inclusive, também acaba se juntando a nós.
Terminamos a noite sentadas na calçada, com a caixa de pizza
apoiada no capô do carro, comendo e tagarelando como se não
tivéssemos que voltar para a vida real amanhã.
Começou com um beijo
Agora virou isso
Um pouquinho de risadas
Um pouquinho de dor
Estou lhe dizendo, querido
Tudo isso faz parte do jogo

The Game Of Love – Santana feat Michelle Branch

Não é segredo que as quadras são o lugar mais seguro para


mim. Quando eu era mais nova e as coisas ficavam difíceis em
casa, eu fugia para as pistas de skate. Andava pelas pistas e me
distraía da realidade. Passava horas e horas por lá, esperando até
que meus pais estivessem sóbrios. Eu costumava levar Hailey
comigo e ela ficava sentada, com uma câmera velha nas mãos,
tirando fotos de todos os atletas amadores que estavam por lá.
Foi em um desses momentos de fuga, que descobri o basquete.
Vi garotos jogando na quadra que ficava ao lado da pista e resolvi
experimentar. Passei a dividir meu tempo entre os dois esportes e
descobri que era ali que eu me sentia bem.
Mesmo com vinte anos, ainda fujo para a quadra quando preciso
pensar. Nosso treino terminou há pouco tempo e entro no trabalho
em uma hora. Eu deveria gastar esse tempo estudando para a
prova de cálculo, mas não estou com cabeça para isso e sei que
não iria render, então resolvi ficar por aqui.
Dividimos o Bolton Indoor Stadium com os Red Tigers e os times
usam as mesmas cores, por isso, o ginásio tem detalhes em preto,
branco e vermelho. Os símbolos dos times estão pintados no fundo
da quadra, fazendo com que eu me sinta ainda mais em casa. Visto
uma camiseta preta do time, com o número 17 estampado no lado
esquerdo do meu peito e na parte de trás. Gosto de dizer que não
só uso o uniforme, como absorvo toda a responsabilidade de
comandar as Red Fox.
Nosso treino não foi fácil, nossos jogos não têm sido fáceis, de
maneira geral. O time não está em sua melhor sincronia, mas tenho
para mim que vamos conseguir encontrar um timing em breve.
Estamos quase no fim do campeonato e temos boas chances de ir
para a final. Uma das coisas que mais quero é levantar a taça do
torneio das conferências e garantir nosso espaço no March
Madness.
Bom, isso e pagar a dívida que tenho com Axel, além de
descobrir uma forma de me abrir com Kahel.
Passei horas refletindo sobre a situação e cheguei à conclusão
de que, se quero levar esse nosso envolvimento para frente,
realmente é melhor contar a ele sobre parte do que vivi em meu
antigo relacionamento. A questão é que não sei como chegar nesse
assunto, ser uma pessoa que não costuma desabafar me faz ter um
bloqueio gigante em relação a conversas desse tipo.
É por isso que estou em quadra, treinando arremessos desde
que nosso treino acabou. As meninas foram viver suas respectivas
vidas e eu segui aqui, tentando colocar minha cabeça no lugar e de
brinde aprimorar minhas habilidades. Tenho orgulho da minha
precisão nos arremessos, costumo ter um bom aproveitamento em
quadra e quero permanecer assim.
Flexiono os joelhos e faço o impulso necessário para lançar a
bola contra a cesta. Arrisco um arremesso difícil, logo após a linha
dos três pontos, o mais distante que consigo ter a possibilidade de
acertar. A bola cai dentro da cesta sem encostar na tabela. É um
arremesso perfeito, impecável, completamente diferente da minha
vida.
Corro para pegar a bola e começo a driblá-la entre minhas
pernas, distraída. O barulho da bola encontrando com o chão ecoa
pelo ginásio, é literalmente o único som que escuto.
Até que passos sorrateiros comecem a se aproximar. Até que eu
levante o queixo e veja que Kahel está parado a poucos metros de
mim. Até que eu babe em seus braços musculosos, destacados pela
regata branca dos Tigers. O número 6 está estampado no centro,
logo abaixo do nome do time.
Não nos falamos desde a festa. Faz poucos dias, mas já foi o
suficiente para esfriar as coisas entre nós. Kahel tentou falar comigo
por mensagem, eu só não respondi. Não foi certo da minha parte,
porém, eu precisava de tempo para pensar.
— Topa um mano-a-mano? — pergunta, mostrando as mãos,
esperando que eu faça um passe para ele.
Nós nos fitamos por alguns segundos, enquanto bato a bola ao
lado do corpo. Consigo perceber que Kahel não está aqui para
brigar, e sim para me entender. Eu o ignorei e ele veio atrás de mim.
De novo.
Passo a bola para ele sem dizer nada. Kahel se posiciona no
fundo da quadra e eu o sigo. Paro à sua frente e espero que
comece a se movimentar. Kahel é um jogador rápido, ele joga na
mesma posição que eu, então temos características parecidas.
Imagino que ele vá tentar me driblar pela lateral e é isso que ele faz.
Finta, fingindo que vai para um lado, e sai em disparada para o
outro. Tento segurá-lo, atrapalho um pouco sua jogada, mas não
consigo impedir que faça uma cesta. Pego o rebote, pronta para me
posicionar no fundo da quadra, quando ele fala: — Vamos jogar de
um jeito diferente — começa e eu agarro a bola, prestando atenção
em sua proposta. — Quem faz a cesta, tem direito a uma pergunta.
Respiro fundo, entendendo o que ele está tentando fazer. A ideia
não é ruim, mas eu sei que ele irá me contestar sobre nossa última
noite juntos. Por sorte, estou me preparando para esse momento há
dias. Já tenho a resposta formulada.
— Tá bom. Você começa. — Aponto para ele e resolvo que
preciso de uma distração. Enquanto espero, vou brincando com a
bola, erguendo meu dedo indicador e tentando equilibrá-la.
— Nós estávamos indo bem, até os amassos no meu quarto.
Quero entender o que aconteceu. — Seu tom é sincero e carregado
de preocupação. Dá para ver que, assim como eu, passou esse
tempo todo que ficamos afastados pensando nisso.
— Não foi uma pergunta — provoco enquanto seguro a bola.
Logo volto a batê-la, dessa vez driblando-a embaixo das pernas.
— Leah — ele só cita meu nome e indica a bola com a cabeça.
É um pedido silencioso para que eu me foque na conversa. Kahel
já sacou que estou me esquivando. Como Alex me disse, sou
fechada, mas quem tirar um tempo para olhar para mim, descobrirá
muito.
Seguro a bola, abraçando-a na frente do meu corpo, tentando me
agarrar a algo para ter forças para conduzir essa conversa.
— Eu tive um namorado que não era dos mais carinhosos. Nosso
relacionamento era uma merda e os momentos mais íntimos... —
Não tenho coragem de completar a frase. Acho que já disse o
suficiente para que ele entenda que tenho um certo trauma em
relação a sexo.
Kahel passa a mão no queixo, nervoso, até dá um passo para o
lado, mas logo volta a me olhar.
— É aquele babaca que veio atrás de você no estacionamento,
não é? Eu sabia que ele era um merdinha! — Ele cerra os punhos
de tanta irritação. Imagino que se Axel estivesse aqui, ele o socaria.
Estou quase respondendo Kahel, quando lembro do nosso
combinado.
— Uma pergunta por cesta, Williams.
Ele resmunga, mas faz um sinal para que eu me posicione e
voltemos ao jogo. Decido surpreendê-lo e faço minha jogada de
outra forma. Kahel é esperto e me segue com rapidez, nossa
diferença de altura é pequena, contudo, suas pernas são mais
largas, as passadas gigantes, ele não tem dificuldade nenhuma de
me alcançar e roubar a bola.
Kahel dribla na minha frente, erguendo as sobrancelhas e
fazendo uma expressão espertinha, apenas para se vangloriar.
— Uau, papai Jordan teria orgulho da sua interceptada — zombo,
sem querer perder a oportunidade de usar seu pai famoso.
Kahel para de bater a bola, um ato que faz o jogador perder a
posse de bola em qualquer jogo. Foi uma reação automática, ele
logo percebe o que fez, mas não há como consertar.
Estendo meus braços e faço um sinal com as mãos para indicar
que me dê a bola. Kahel o faz com certa tristeza e fica claro para
mim que o que eu disse o afetou. Paro onde estou, me viro para a
cesta e arremesso a bola, pegando-o de surpresa. Faço o ponto e
deixo que a bola passeie um pouco pela quadra.
— O que foi? — pergunto, buscando entender o porquê de sua
mudança de expressão.
— Não gosto quando me comparam ao meu pai — revela e não
me surpreendo. Já entendi qual é a dele.
— Porque você acha que nunca pode ser como ele, não é?
Kahel me encara diretamente, esboçando um sorriso lateral
malicioso.
— Já foram duas perguntas, capitã.
Assinto, sentindo o feitiço ser virado contra a feiticeira. Kahel sai
correndo pela quadra para pegar a bola. Ele faz uma nova jogada,
dessa vez furando o garrafão e fazendo uma cesta de qualquer jeito,
jogando a bola para cima enquanto gira no ar. É um movimento
impressionante, que só quem é muito habilidoso consegue fazer.
Kahel é um jogador foda que não se dá o devido valor.
— Entendi que o cara do estacionamento é o ex de merda.
— Não, você supôs — rebato, enquanto Kahel se aproxima,
entregando a bola para mim. Suas mãos não se soltam da
superfície, mesmo que eu já esteja a segurando.
— Ele ainda está te incomodando?
Tenho que engolir em seco para disfarçar minha verdadeira
reação. Axel deve estar atrás de mim, eu só não estou sabendo por
que bloqueei seu número e não recebo mais nenhuma de suas
mensagens ou ligações.
— Você não precisa se preocupar com ele. Não é seu problema.
— É aí que você se engana, princesa. Estamos envolvidos. Então
é meu problema, sim.
Nunca vou admitir em voz alta, mas gosto do quanto ele se
preocupa comigo. Sei me virar e resolver meus problemas sozinha
exatamente porque nunca tive alguém para olhar por mim. Kahel,
em pouco tempo, já me mostrou que pode ser essa pessoa, se eu
permitir, e isso me trouxe um conforto que nunca esperei sentir.
— As coisas estão sob controle — digo, mesmo sem saber se
realmente estão.
Kahel finalmente solta a bola e espera que eu me posicione para
jogarmos de novo. Ele mal tenta me impedir dessa vez, parece que
estava querendo que eu fizesse a cesta.
— Muita gente te compara com o seu pai. Nunca pensou em
dizer a eles que não gosta desse tipo de comentário? — pergunto,
estou interessada em analisar essa camada da personalidade de
Kahel. Saber dessa história me fez entender alguns de seus
comportamentos.
— É fácil dizer pra você que não gosto, mas outras pessoas
podem achar que estou sendo mal-educado, que não sou grato por
tudo o que meu pai me deu. E não é bem assim, isso não está
relacionado com o fato de eu odiar a comparação.
— Entendi. Você não quer perder sua popularidade, então?
— O que eu vou fazer se não for o cara mais simpático da KSU?
Rio do seu convencimento, Kahel tem uma personalidade
peculiar em relação a socializar. É impressionante como ele gosta
de pessoas.
— Eu acho que você não gosta que te comparem com o seu pai
porque tem medo de não suprir as expectativas que as pessoas
colocam em cima de você. Então, acaba fazendo as merdas que faz
para que as pessoas não esperem um comportamento parecido
com o do seu pai, diminuindo as comparações e consequentemente
a pressão em cima de você — analiso e Kahel fica boquiaberto,
deve estar se sentindo nu, depois de eu ter me aprofundado em sua
dor. — A sombra do Jordan sempre vai estar em cima de você, não
tem jeito. Mas se os comentários te incomodam, você devia retrucá-
los.
— E qual a sua sugestão de resposta, sabichona? — zomba,
porém, sei que concordou com o que eu disse.
— Fale que você não joga como Jordan Williams, e sim como
Kahel. Fale que ele tem orgulho de você independentemente de
qualquer coisa, porque eu sei que ele tem. Mostre que você não é
confiante só do lado de fora, mas que também acredita em você
aqui dentro. — Toco em seu peito, bem em cima do coração.
— Não importa quantas cestas você fez, Leah, porque depois
dessas palavras, acabou de ganhar o jogo. — Seu comentário me
faz dar risada.
Percebo que nunca ri tanto como nos últimos tempos. Não só
com Kahel, mas com minhas amigas, com os momentos que
compartilhamos juntas. Estou me sentindo mais leve e espero ter
trazido esse alívio para ele, assim como ele traz para mim, quando
me distrai da minha verdadeira realidade.
Kahel se aproxima de mim com cautela, mas não me toca. Eu
sinto falta de suas mãos em minha cintura, de seu corpo colado ao
meu. Entendo o receio e aprecio o respeito que mostra ter por mim,
mas não deixo de sentir saudades.
— Quero avançar com você, conhecer seu corpo, poder te dar
prazer.
— Eu também quero, Kahel — respondo antes que ele tenha a
oportunidade de terminar.
— Mas não quero fazer nada que você não esteja preparada para
fazer. Preciso que me diga o que quer, até onde podemos ir. Preciso
que não me esconda nada, princesa. Eu não vou te julgar, não vou
te forçar, não vou insistir. Vou só te ouvir.
Fico tocada com suas palavras e com o carinho que demonstra.
Kahel está tentando me deixar segura e conseguiu. Confio que ele
vai me dar o tempo que preciso, que vai respeitar meus limites.
Tenho fé de que iremos conseguir seguir em frente, se formos com
calma.
— Prometo ser honesta e expor todas as minhas vontades —
concordo com nosso combinado, feliz por essa conversa ter
acontecido e por ter sido tão fácil.
As coisas com Kahel estão sendo fáceis. Ele tem sua dose de
complicação, todo mundo tem, mas é um cara muito mais leve do
que eu. É um equilíbrio perfeito para a vida louca que levo.
Seu olhar sobre mim diz que quer me beijar. A expectativa que
criamos quando dançamos juntos em sua festa só fez nosso beijo
ser mais gostoso, então resolvo fazer o mesmo agora. Saio em
disparada pela quadra, correndo até a outra cesta, pegando Kahel
de surpresa.
— Ei, capitã! Golpe baixo! — reclama em meio a risadas,
enquanto tenta me alcançar.
Só de pirraça, paro no meio da quadra e brinco com a bola,
driblando-a embaixo das pernas. Quando Kahel está se
aproximando, distraio-o com meu melhor olhar sedutor. É um truque
em que ele já caiu, e é pego de novo. Dou um giro e saio correndo
em direção a cesta, dando três passos para fazer a bandeja perfeita
e marcar dois pontos para mim.
Pego meu próprio rebote e ameaço voltar para o outro lado da
quadra, mas agora Kahel está mais esperto. Ele para à minha frente
com as pernas e braços abertos, tentando me distrair. Penso em
saídas para conseguir escapar e resolvo fintá-lo, fingindo que vou
para um lado, mas indo para o outro.
Não funciona, porque Kahel me alcança. Ao invés de roubar a
bola ou agir como um jogador normal, ele agarra minha cintura. Não
consigo me mexer e preciso abraçar a bola, para tentar protegê-la.
Acabo rindo da situação, Kahel tem braços fortes demais e só vou
sair daqui quando ele me permitir.
Olho por cima do ombro, vendo-o rindo tanto quanto eu, nós dois
alegres por termos nos acertado e conversado sobre o problema
que tivemos. Jo e Alex estavam certas, a melhor coisa é sempre a
honestidade. Ainda que eu não tenha contado tudo, ainda que Kahel
não saiba de boa parte do que passo, eu revelei o mais importante,
o que fez com que entendesse os motivos do meu comportamento.
Esse clima entre nós é uma delícia. O ambiente é confortável.
Estamos com a bola na mão, uniformizados, na quadra dos nossos
times, sintonizados como nunca. É a deixa perfeita para um beijo
avassalador.
Viro na direção de Kahel e ele entende o recado. Abraça minha
cintura com mais força, me puxa para perto e toma minha boca.
Mergulho em mais um beijo, em mais um momento memorável entre
nós, dessa vez sem a barreira que coloquei no nosso último
encontro.
Estou mais confortável, mas fico envergonhada quando os Red
Tigers entram em quadra e começam a assoviar e bater palmas
para nós.
— Quem diria, capitães! — Um dos garotos brinca.
— É o que dizem, ódio, normalmente, é amor disfarçado — Mav
filosofa, ganhando tapas amigáveis dos colegas de time.
Apoio a cabeça no ombro de Kahel, sem acreditar que nosso
romance foi literalmente revelado para o time de basquete inteiro.
Com esse bando de fofoqueiros, é questão de tempo até que a
faculdade inteira saiba sobre nós.
Kahel faz carinho no meu cabelo, repetindo que vai ficar tudo
bem. É claro como cristal que ele não se importa com o que os
outros vão dizer. No quesito relacionamentos, ele sempre foi um
cara bem resolvido. Sua confiança em estar comigo me dá
combustível para enfrentar isso de frente.
Se Kahel acredita em nós, também vou acreditar.

Eu não tenho um minuto de paz, é o que penso quando saio do


ginásio, depois de ter tomado banho e me arrumado para trabalhar.
Tive dias bons, sem estresses vindo da minha mãe, e considerei
que estava em um período sereno, em um momento de
tranquilidade. Porém, como nada na minha vida é fácil, claro que eu
tinha que dar de cara com Axel, mais uma vez no estacionamento
da KSU, justo no dia em que revelei para Kahel que nosso
relacionamento não era dos melhores.
Só espero, do fundo do meu coração, que ele não saia do treino.
Preciso que Kahel fique dentro desse ginásio até que eu me livre de
Axel ou teremos problemas.
— Axel, eu te disse que estava providenciando o dinheiro. — Já
chego dizendo apenas o necessário, sem cumprimentá-lo, sem
florear nada, para que ele não ache que gosto de sua presença.
Axel passa a mão pela careca, a manga da jaqueta de couro
desce e consigo ver seu braço coberto por tatuagens. Quando
coloca os olhos nos meus, percebo que suas pupilas não estão
normais. Ele não costumava usar as coisas que vendia quando
estávamos juntos, mas isso já faz anos. A situação parece ter
mudado.
— Eu sei que sua vida é difícil, baby, e não quero te pressionar.
— Franzo a testa na mesma hora. Não? Então ele está fazendo o
que, vindo atrás de mim? — Só não gosto quando não cumprem o
combinado.
— Vou cumprir o combinado. Você me conhece. — Por mais que
tenhamos tido uma relação caótica, não dá para dizer que não nos
conhecemos. Axel sabe tudo sobre mim, acompanhou todos os
percalços da minha vida.
— Sei disso, baby, sei disso — ele fala com os olhos focados em
mim, causando um arrepio horroroso pelo meu corpo. Sua mão vai
para o meu rosto e ele toca em minha pele com delicadeza. Eu
gostaria de sair correndo para fugir do ato, mas só dou um passo
para o lado, obrigando-o a se desvencilhar de mim. Tenho que
tomar cuidado com Axel. Qualquer ato bruto pode ser interpretado
de uma forma ruim. — Fico preocupado com você, sabia? Estar
nessa faculdade sozinha não deve ser fácil. Uma garota bonita
assim... os riquinhos devem te atormentar.
Cruzo os braços, incomodada com o rumo dessa conversa. Axel
pode ser infernal quando quer.
— Sei me virar. E não estou sozinha, tenho amigos.
— Mas não é a mesma a coisa, não é? Ninguém te conhece
como eu conheço.
— Estou bem — rebato com mais firmeza, cansada desse
diálogo.
Já entendi que ele quer o dinheiro e vou pagar o mais breve
possível. Preciso afastar Axel da minha vida outra vez.
— Te vi abraçando e beijando aquele garoto — ele solta quando
percebe que está perdendo a minha atenção.
Caralho. Axel só piora.
— Você estava me observando? — questiono, sem deixar minha
raiva transparecer. Não posso tirar Axel do sério antes de pagá-lo.
— Claro que não, Leah. Por acaso passei pela lateral do ginásio
e vi vocês juntos.
Sua resposta me faz soltar um riso sarcástico.
— Por acaso? — devolvo no automático, é tão óbvio que ele
estava me perseguindo. Já passei por isso antes, entre o fim do
nosso namoro e minha ida para a KSU. Depois, Axel me deixou em
paz, mas eu fui atrás dele e tudo desandou. De certa forma, a culpa
de tudo isso é minha, então preciso lidar com a situação.
— Eu estava te procurando. Queria te ver, baby. Já te falei o
quanto sinto a sua falta. E aquele cara... ele não é pra você, Leah.
Ele nem conhece Kahel para dizer se ele é ou não o cara para
mim. Tenho certeza de que ainda acha que sou a garota dele, que
nunca poderei pertencer a outro.
— Axel, nós não estamos mais juntos há tempos. Meus
relacionamentos não são da sua conta. — Tento soar tranquila, sem
acusá-lo de nada, apenas deixando claro que não há abertura para
esse tipo de questionamento da parte dele.
Axel assente, mexendo no queixo, nervoso. Não deve ter gostado
do que falei, porém, sabe que terá que engolir, porque não estou
errada.
— Sei disso, mas ainda tenho essa necessidade de cuidar de
você. Desculpe, baby. — Seu tom é meigo, a expressão carrega
preocupação, carrega uma culpa fingida.
Esse era o tipo de frase que me fazia perdoá-lo, que me fazia
ignorar seu comportamento abusivo anterior, só porque ele dizia
estar preocupado, estar se importando comigo. Ninguém nunca se
importava, então eu caía na dele. Achava que era realmente uma
tentativa de me proteger. Acreditava em tudo o que ele dizia. Me
jogava em seus braços de novo e me anulava cada vez mais.
Que bom que enxerguei a situação. Que bom que pude sair a
tempo. Que bom que não caio mais nessa. Muitas pessoas não têm
essa chance.
— Olha, Axel, você sabe que tenho uma vida corrida e não quero
que perca seu tempo vindo até aqui. Acho melhor conversarmos por
mensagem. Eu te aviso assim que tiver pelo menos uma parte do
dinheiro e nos encontramos para que eu te pague. — Encontro uma
saída mais cômoda para resolver nosso problema. Não quero que
Axel continue vindo atrás de mim na KSU.
— Só tem um problema, você não me responde, nem visualiza
minhas mensagens. Me bloqueou de novo, não é? — Sua
indagação é rancorosa, acabando com o clima pacífico que tentei
manter.
Axel está irritado. E conviver com um Axel irritado me assusta.
— Vou te desbloquear agora. — Não tenho coragem de negar o
óbvio. Pego meu celular, procuro por seu número e desbloqueio.
Uma enxurrada de mensagens chega. Mais de dez por dia,
procurando por mim, querendo que eu o encontre, me cobrando
para pagar a dívida.
Meu Deus, onde eu me meti?
— É bom que me responda quando eu mandar ou virei até aqui,
Leah. E se você não quer que seu namoradinho me veja, é bom
obedecer. — Ameaça, a expressão feroz e revoltada.
Ele coloca as mãos nos bolsos, olhando para os lados antes de
sair apressado em direção ao seu carro. Pela força com que bate a
porta, percebo que Axel está muito mais irritado do que imaginei.
Ignorei suas mensagens, estou devendo dinheiro, ele me viu com
outro. São inúmeros os motivos que devem vagar em sua mente.
Deve estar com raiva de mim, mas nem isso é o suficiente para
pará-lo. Porque por mais que eu tire Axel do sério, ele ainda me tem
na mão, ele ainda tem uma paixão bizarra por mim.
Preciso arranjar uma forma de pagá-lo o mais rápido possível e
ainda assim, corro o risco de ele continuar vindo atrás de mim. Terei
que implorar para que não me procure mais e rezar para que ele
respeite meu pedido. Não sei como farei tudo isso, mas vou dar um
jeito. É o que faço.
Os últimos dias fantasiando uma vida universitária normal, com
jogos, festas, amigas e um cara gostoso querendo me beijar,
acabaram.
Minha realidade não cabe nesse conto de fadas.
Quando você está bonita assim
Eu simplesmente não posso resistir
Sei que às vezes eu escondo
Mas agora eu não posso
fOoL fOr YoU – ZAYN

Quando Leah estaciona o carro de uma forma aceitável e olha


para mim, eu me derreto. Ela abre um sorriso que não é só alegre
por ela ter conseguido superar uma dificuldade, mas também
agradecido por eu ter a ajudado e insistido que superasse essa
barreira.
Passei as últimas semanas ensinando Leah a dirigir. Foi uma
desculpa boa para nos encontrarmos sempre que havia uma brecha
na agenda dela. Descobri que a capitã das Red Fox não estava
brincando quando disse que sua vida era caótica. Sua rotina é
calculada demais, tudo tem horário, as tarefas precisam durar um
tempo específico para não prejudicarem outras tarefas, é realmente
uma loucura. Porém, como eu já imaginava, Leah se fez de difícil
quando começamos a trabalhar juntos. Ela alegava que não
conseguia me encontrar, mas a verdade é que, quando quer, dá um
jeito. É assim que temos seguido com nosso relacionamento: dando
jeitos aqui e ali para conseguirmos nos encontrar.
Ainda é surreal acreditar que estamos mesmo juntos. Não temos
nenhum rótulo, mas posso afirmar que estamos nos dando bem.
Fiquei puto com Leah quando ela fingiu que nada havia acontecido
entre nós e ganhei uma bela ressaca por isso. Depois, quando a
pressionei na venda de garagem, as coisas fluíram, eu entendi seus
motivos, compreendi que teríamos que ir com calma e conseguimos
nos entender.
Meus amigos estão crentes de que estou perdidamente
apaixonado por ela, mas não acho que é para tanto. Creio que eles
estão surpresos por termos continuado juntos, isso sim. Não é um
comportamento que costumo ter, de fato. A questão é que sinto
coisas diferentes sobre Leah, coisas que nunca senti com ninguém.
Não sei se chega a ser paixão, talvez algum dia seja, só é cedo para
definir.
Sigo firme a minha meta de deixar as coisas rolarem, até porque
não sinto que ela está pronta para me dar o título de namorado. Não
tenho tido vontade de ficar com outras pessoas, não estou nem
olhando para outros, porque só tenho olhos para Leah. Quero
conhecer mais sobre ela, descobrir tudo que a aflige, poder dar a ela
uma experiência sexual prazerosa. Quero mais tempo ao lado dela.
— E aí, o que achou? — Leah pergunta, os olhos verdes
carregados de expectativa.
Solto meu sinto de segurança e avanço o tronco para frente,
estendendo minha mão para fazer carinho em seu cabelo.
— Você já pode ser considerada uma motorista decente. Não
causa mais risco aos passageiros ou a si mesma — brinco, mas no
fundo estou falando a verdade, Leah era simplesmente tenebrosa
dirigindo. Sorte que aceitou a ideia de ter algumas aulas comigo
para adquirir habilidade.
— Tive um professor muito paciente — ela devolve com um
sorrisinho malicioso nos lábios e eu tenho que me controlar para
não deixar meus pensamentos vagarem para outro lugar.
Leah é muito gostosa. Seus lábios são macios, as coxas
torneadas, a bunda arredondada e forte, ela tem um corpão, mesmo
que o esconda com roupas mais largas e despojadas. Hoje, para
minha sorte, Leah resolveu colocar uma regata mais arrumada, que
deixa sua cintura delineada e seus peitos marcados. Adoro o estilo
dela, mas não vou ser mentiroso, gosto de ver mais pele exposta.
— Sério, muito obrigada por ter me ajudado. Mesmo que eu não
tenha entendido por que me fez dirigir até aqui. — Leah olha pela
janela com uma careta.
O majestoso complexo da empresa da minha mãe é, sem
dúvidas, intimidante. É um lugar grande, a estrutura é bonita e
diferenciada, graças a sua equipe bem qualificada. Não é de se
esperar algo diferente, afinal, ela trabalha com construção e nesse
meio, assim como em muitos outros, a aparência importa e muito.
Trouxe Leah até aqui por um motivo simples: ela cursa
engenharia civil e minha mãe tem a porra de uma empresa nessa
área. Vê-la passando um perrengue gigantesco para conciliar o
trabalho na lanchonete com os estudos e os treinos me mata, e o
pior é que eu tenho certeza de que ela não é bem remunerada. Se
tivesse um estágio em sua área, talvez, as coisas fossem um pouco
melhores.
— Quero que você conheça a empresa. Minha mãe está ansiosa
pra mostrar tudo a você, o papo que tiveram naquele almoço na
minha casa a impressionou — dou uma justificativa vaga, a verdade
é que fui eu que dei a ideia, mas minha mãe adorou, ela realmente
achou Leah uma menina inteligente.
— No dia em que nós brigamos feito crianças na frente dela? —
ela questiona, a expressão cínica.
Dou risada.
— É, mas já expliquei pra ela que esse tempo ficou pra trás.
Leah vira de lado, dobrando a perna em cima do banco.
— Você contou a sua mãe que nós temos... algo? — Sua
pergunta carrega um tom desconfiado, está na cara que ela tem
dúvidas se isso é realmente algo bom. O fato de não saber como se
referir ao nosso relacionamento comprova que estou certo no
quesito puxar o freio.
— Nós somos próximos. Só disse que estamos ficando. Ela não
ficou muito surpresa, falou que sentiu uma química entre nós
naquele dia — revelo, fiquei chocado quando minha mãe se
expressou, simplesmente não sei onde ela viu química porque,
nessa fase, Leah não me suportava, eu tampouco a aturava.
— Você sempre conta esse tipo de coisa pra sua mãe? —
questiona e percebo que seu incômodo está ligado ao meu
relacionamento com minha mãe.
— Sempre, não. Conto quando é pertinente. Já falei pra ela sobre
uma ficada ou outra, mas nada foi tão significativo assim.
— Sou significativa, então? — Leah indaga e eu travo, nem
percebi que minha frase tinha se encaminhado para esse sentido.
— Você é diferente, princesa — admito a verdade, não tenho
vergonha de dizer que o que tenho sentido por ela, nunca senti por
ninguém.
As bochechas de Leah coram na hora. Mesmo sua expressão
estando plena, seu corpo não deixa que me engane.
— Conhecer sua mãe não é meio demais? Nós conversamos
aquele dia, mas eu estava em posição de sua inimiga mortal, não de
sua... — gesticula, mais uma vez, sem saber como definir.
Finjo que não fico magoado por ela não ter retribuído ou sequer
falado nada sobre a minha fala anterior. Tenho que me lembrar que
Leah é fechada e tem um trauma com relacionamentos. As coisas
não são simples.
— Minha mãe gostou de você. — Mesmo com o que digo, ela
continua insegura. — É sério! Não vai ser nada demais. Só quero
que você conheça a empresa e passe algum tempo comigo e a
minha família.
Leah já entendeu que eles são muito importantes para mim.
Meus pais e minha irmã são minhas bases, minhas âncoras. Não há
Kahel sem os Williams.
— Tudo bem. — Leah suspira, mas ainda consigo ver que está
nervosa. Acho que, desde quando nos beijamos pela primeira vez,
só a vi relaxada dois dias: no dia da venda de garagem e no dia em
que jogamos juntos. Desde então, só a vejo tensa, sem distribuir
muitos sorrisos, incomodada com alguma coisa.
Não canso de fazer a mesma pergunta a ela: — Está tudo bem
mesmo?
E obter a mesma resposta:
— Claro! Passar algumas horas com a sua mãe não é o que eu
tinha imaginado pra hoje, mas estou de acordo, vamos nessa! — Se
mostra corajosa, mas até o ânimo em sua voz é forçado.
Sei que não é algo relacionado a mim ou ao nosso envolvimento.
Nesse quesito, deixamos tudo claro. Ela expôs seus limites, temos
dado apenas amassos leves, apesar de já termos evoluído para
uma mão boba. Também sei que não está ligado ao encontro com a
minha mãe, porque esse comportamento não é algo novo. Tenho a
impressão de que Leah esconde algo de mim, mas todas as vezes
que tento arrancar a verdade, ela se esquiva ou desvia o assunto.
Apesar de querer respeitar seu espaço, estou cansado disso.
— Eu sei que alguma coisa está acontecendo com você. —
Acabo soltando. Leah me encara com uma expressão de deboche,
como se eu estivesse falando algum absurdo. — Não adianta tentar
fingir. Há algo te incomodando e você não quer me dizer o que é.
Tudo bem, entendo sua postura e você está no seu direito, mas fico
angustiado — desabafo, apontando para o meu peito, tentando
fazê-la entender o que estou sentindo.
Sua expressão fica um pouco mais transparente quando ela
resolve olhar no fundo dos meus olhos. A mão vai para a minha
coxa, me transmitindo um certo conforto. Ela está dizendo, através
do seu toque, que não é nada comigo, que nós estamos bem.
— Kahel, você é a parte mais fácil da minha vida. Quando estou
com você, não quero falar sobre os meus problemas. Quero ter um
momento leve, porque é isso que você transmite pra mim. Leveza,
paz, juventude. Só... vamos falar sobre coisas boas e fazer nosso
tempo juntos ser gostoso, como tem sido.
A sinceridade de Leah mexe comigo. Fico feliz e agradecido por
ser essa pessoa para ela, porém, ao mesmo tempo, sinto que eu
poderia ser muito mais.
— Podemos conversar sobre as coisas difíceis e ainda ter um
momento leve, princesa. Estarei ao seu lado de qualquer forma. —
Tento deixar claro a ela que não estou aqui só para os momentos
bons.
— Obrigada por isso, de verdade. É bom saber que posso contar
com você pra choramingar sobre qualquer assunto. Inclusive, sobre
a final da conferência. Estou tão nervosa que ainda não processei
esse acontecimento.
Mais uma vez, Leah desvia o assunto. Ela gesticula de uma
forma tensa, está claro que está falando demais só para me distrair.
Leah nunca é tagarela desse jeito.
Eu até queria continuar tentando arrancar algum tipo de
informação dela, mas sei que não vou conseguir. Ela não vai se
abrir. Não vai me deixar entrar. Não agora. Espero que esteja pronta
para isso algum dia.
Acabo entrando na conversa e também falo sobre a minha
ansiedade com a final enquanto andamos na direção do prédio. Os
Tigers sofreram para vencer a última partida e enfim estamos na
última etapa do campeonato. É “só” vencer esse jogo e vamos para
o March Madness. Leah está tão tensa quanto eu, liderar nossos
times em um momento importante desses não é fácil. Nós dois
estamos com sede de vitória, ainda mais por um motivo especial: o
nosso baile dedicado a arrecadar fundos para os times acontecerá
uma semana após a final. Queremos usar o trunfo da nossa ida para
o March Madness para incentivar as doações. Vários amigos do
meu pai confirmaram presença, quase tudo já está organizado e
acredito que teremos uma noite inesquecível.
Entramos na empresa e Leah cessa a conversa e solta a mão da
minha. Ela caminha pelo hall de entrada de frente para mim,
olhando para todos os lados, boquiaberta com a beleza do lugar.
— Meu Deus, Kahel, isso aqui é foda! — comenta, finalmente
abrindo o sorriso sincero que eu tanto queria ver.
— Eu sei. — Pisco para ela enquanto vamos juntos até a
recepção. Paro no balcão e já me identifico. — Olá, boa tarde! Sou
Kahel, filho da Karen. Combinei de encontrá-la na sala dela —
aviso.
A mulher franze a testa na minha direção, depois olha para Leah,
como se quisesse uma explicação da parte dela.
— Você é filho da Sra. Williams? — a pergunta sai de forma
espontânea, dá para ver que a mulher está chocada e eu logo
entendo o porquê.
Entendo por que já passei por isso mais vezes do que consigo
contar. Posso não me lembrar a quantidade, mas me lembro de
cada momento.
— Sim, algum problema? Quer ver meus documentos? —
devolvo o questionamento com certa rispidez, pegando minha
carteira no bolso da calça e balançando-a no ar.
É sempre assim que lido com esse tipo de situação. Não dá para
ser bonzinho, não dá para abaixar a cabeça.
— Não, não, vou só ligar pra secretária dela, tudo bem? —
pergunta e pega o telefone interno da empresa.
Sinto o toque de Leah em meu braço e me viro para olhá-la. Seu
semblante está confuso, ela não faz ideia do que está acontecendo
e porque estou puto. É uma realidade muito distante da dela, um
problema que ela nunca vai ter.
— Prontinho. A Srta. Williams está te aguardando. — De repente,
a mulher abre um sorriso largo, entregando um cartão para mim e
outro para Leah, para podermos entrar na empresa.
Pego o meu com má vontade, seguro na cintura de Leah e a guio
para longe da recepção, fazendo questão de fuzilar a mulher no
processo.
— Kahel, o que foi isso? — Leah indaga enquanto passamos
pela catraca, eu sigo a guiando para dentro da empresa. Posso não
frequentar o lugar com frequência, mas sei o caminho até a sala da
minha mãe.
Respiro fundo enquanto andamos e procuro sua mão, para que
eu possa me unir a ela. Quando nossas peles se encontram, Leah
me puxa em sua direção, fazendo com que eu pare de andar. Seu
semblante está preocupado, ela me viu bravo poucas vezes, mas
sabe identificar quando estou infeliz com alguma situação.
Suspiro, organizando meus pensamentos para poder revelar a
ela uma das minhas maiores dores.
— Sou muito preto pra ser branco e muito branco pra ser preto.
Já questionaram se sou mesmo filho da minha mãe inúmeras vezes.
Também questionaram se sou filho do meu pai, mas com menos
frequência. Enfim, sou o clichê do filho do casal interracial que não
sabe ao certo como se identificar.
A verdade é que me sinto preso em um limbo. Tenho convicção
de quem sou, mas o questionamento de tantas pessoas me faz
duvidar do modo como me enxergo em diversos momentos.
— Eu não fazia ideia de que você passava por algo assim. —
Leah faz um carinho em meu braço, mostrando seu apoio. Ainda é
estranho vê-la sendo tão amorosa comigo, mesmo que faça
semanas que estejamos ficando.
— É aquela típica coisa que eu não posso mudar, então tenho
que engolir — exponho apenas a verdade. Eu queria ter o poder de
fazer a mentalidade das pessoas evoluírem. Sinto que as coisas já
melhoraram nos últimos tempos, mas está longe de um mundo
ideal.
— Sei que nunca vou entender essa situação, mas estou aqui pra
xingar alguém, arranjar uma briga ou ser seu ombro pra chorar.
Acabo dando risada do que ela diz. Só eu sei o quanto ela é
ótima brigando.
— Sério? Você ficaria ao meu lado em todas essas ocasiões? —
pergunto para confirmar, meu tom de voz mais meloso, mostrando
que quero deixar o que aconteceu para trás. Aproveito e entrelaço
nossa outra mão, agora ficamos em contato através de ambas.
— Claro. Topo qualquer coisa — confirma, debochada, e eu
abaixo a cabeça para dar um beijo em sua testa. Leah até fecha os
olhos com o ato, parece que, dessa forma, consegue aproveitá-lo
um pouco mais.
— Filho! — Ouço a voz tão familiar da minha mãe e me viro para
vê-la. — Venha aqui me dar um abraço!
Obedeço, me soltando de Leah para ir até ela. Lilly vem logo
atrás e se aproxima, eu pulo em seu ombro para abraçá-la, de um
jeito que eu sei que a irrita, ainda mais em seu ambiente de
trabalho. Minha irmã é muito séria na empresa, ela tem um cargo
grande no setor administrativo e sente pavor de a menosprezarem
por ter Síndrome de Down. Lilly passou por muito na vida e diz não
querer jogar todo o seu esforço fora por conta de uma atitude
dessas. Quando ela me fuzila pela minha brincadeira, logo peço
desculpas e a abraço de uma forma mais civilizada.
— É ótimo te ver de novo, Leah — fala Lilly, cumprimentando-a
com dois beijos na bochecha.
— É bom ver vocês também. Obrigada por nos convidar para vir
aqui, Sra. Williams. — Leah agradece, educada de uma forma que
faz minha mãe sorrir. Eu tenho certeza de que ela já amou Leah.
Sua aprovação é crucial para mim.
— Ah, querida, nós tivemos uma ótima conversa quando nos
conhecemos! Espero que você goste da empresa. Vou te contar
como a criei, o que fazemos por aqui, te mostrar cada instalação...
— minha mãe começa a citar tudo o que fará nessa tarde e enlaça
seu braço no de Leah, levando-a pelo corredor.
A capitã das Fox olha para trás, levantando as sobrancelhas para
mim, e eu sei, apenas por esse olhar, que ela está gostando do
passeio, mas quer que eu fique por perto. Assinto devagar e
começo a andar atrás delas, com Lilly me acompanhando. Minha
irmã tem um sorriso travesso no rosto, o cabelo loiro está preso em
um rabo de cavalo, então sua expressão fica nítida para mim.
— Não comece — peço, mas sei que será inevitável.
— Ah, qual é, está na cara que você está caidinho por ela! Você
nunca apresentou ninguém pra família, Kahel!
Coloco as mãos nos bolsos da calça e olho para baixo, realmente
é algo novo para mim, mesmo que esse encontro não seja nada
oficial, e só uma informalidade para ajudar Leah.
— Estou gostando dela, Lilly — revelo e minha irmã morde o
lábio inferior, em seguida dando um soquinho em meu ombro.
— Tá, estou achando tudo ótimo, mas como vocês ficaram
juntos? Ela realmente parecia te odiar.
— É uma longa história.
— Nós temos tempo, com certeza a mamãe vai alugar a Leah —
Lilly diz e eu concordo, vamos segui-las, mas a conversa será toda
entre as duas. Posso tirar esse momento para contar minha breve
história com Leah.
— Sabe o clichê da garota que odeia o garoto desde que o
conheceu, mas que precisa trabalhar com ele e acaba descobrindo
que ele não é tão ruim assim?
Tivemos boa parte da tarde livre, já que o treino só aconteceu de
manhã, porque os treinadores querem poupar nossos corpos para a
final. Devo dizer que minha mãe e Leah usaram todo o nosso tempo
livre e não pararam de conversar um minuto sequer. Eu tinha
esperanças de que nós poderíamos dar uns amassos antes de eu
ter que levá-la para o trabalho, mas eliminei essa ideia quando vi
que elas já estavam juntas há duas horas.
Pela primeira vez na tarde, estamos reunidos de verdade,
sentados na área externa da empresa, tomando um café. Lilly
também entrou na conversa, elas estão falando sobre algum projeto
comunitário que minha mãe está planejando, parece que Leah deu
uma boa ideia para otimizar a construção e abrigar mais pessoas
nas casas que estão planejando. Eu estou boiando, mas não tem
problema. Olhar para Leah enquanto ela fala sobre as melhorias
que podem acontecer no projeto, me deixa completamente
encantado. Ela me disse que entrou na engenharia civil para ganhar
dinheiro e que não era apaixonada pela área. Porém, o que vejo, é o
discurso de alguém que irá amar o que faz.
— Leah, não sei o que dizer. Você foi simplesmente brilhante —
minha mãe comenta, consigo ver em seus traços que está mesmo
impressionada com ela.
Eu mesmo fiquei, quando a conheci melhor. Tenho para mim que
ficarei ainda mais, quando ela me deixar mergulhar de verdade em
sua vida.
— Ah, Sra. Williams, imagine. Só peguei o seu projeto e dei
algumas ideias. Não foi nada demais. — Leah abaixa a cabeça para
beber seu café, tímida.
— Nada demais? Você arrasou! — Lilly elogia.
— Não se menospreze, querida. Eu sou formada há quase trinta
anos e não tinha pensado nisso. — Minha mãe balança a cabeça
em negação, como se não estivesse acreditando nisso. — E pode
me chamar de Karen, não precisa de tanta formalidade.
Leah termina seu gole de café, mas permanece com o copo em
mãos.
— Eu não tive essa ideia só por conta da faculdade. Morei em um
bairro pobre a vida toda e vi moradias como essas serem
construídas de uma forma que não ajudava tanta gente. Sempre
pensei que isso poderia ser otimizado — Leah revela, consigo ver
que esse é um tópico difícil, mas que ela quis se abrir mesmo assim,
para que minha mãe entenda o verdadeiro motivo de seu
conhecimento.
Percebo que o olhar de Karen fica ainda mais admirado depois
de ouvi-la.
Levo minha mão para a coxa de Leah, mostrando meu apoio a
sua coragem. Trocamos um breve olhar e ela me lança um
sorrisinho meigo.
— Sabe, Leah, nós estamos contratando estagiários o tempo
todo. Você seria um ótimo adendo para a equipe. Se quiser, tenho
uma vaga para você. — Minha mãe oferece o que eu tanto queria e
quase solto um grito comemorativo. Não o faço, entretanto, e
resolvo apenas dar um aperto na coxa de Leah, para mostrar minha
animação com o convite.
Eu a encaro e percebo que sua expressão se fecha, as linhas de
expressão ficam duras e ela mexe a coxa, expulsando minha mão
de sua perna. Conheço-a o suficiente para saber que está brava
comigo, acha que eu armei essa situação. Posso ter dado a ideia,
mas minha mãe ofereceu um emprego a ela porque quis. Não é
minha culpa.
— Desculpe, Sra. Williams. — Só pelo fato de não chamar minha
mãe pelo nome, como ela havia pedido, já chego a conclusão de
que estou fodido. — Fico honrada com o convite, mas não posso
aceitar. Não é certo.
— Leah, estou te dando uma oportunidade porque vi potencial
em você, nada além disso. — Minha mãe tenta justificar, contudo,
sei que não vai funcionar.
Leah é teimosa pra um caralho. Ela mal aceitava minhas ideias
na arrecadação, que dirá uma justificativa dessas.
— Agradeço muito, de verdade, mas não posso. — Leah pega
seu café para terminar de bebê-lo, tomando um longo gole, antes de
apoiar o copo novamente na mesa. Ela me dá uma olhada fatal
antes de terminar o movimento que arrepia todos os pelos do meu
corpo. — Adorei conhecer a empresa, vocês foram muito receptivas
e foi uma ótima tarde. Infelizmente tenho que ir pro trabalho, mas
obrigada.
Leah vai se levantando e eu sou obrigado a acompanhá-la. Minha
mãe mantém as portas abertas, alegando que se ela quiser, há uma
vaga. Lilly me fita com os olhos arregalados, já entendeu que vou
me ferrar por ter armado esse encontro.
Nós nos despedimos e saímos juntos, porém, nem tento tocar na
mão dela ou chegar perto demais. Só quando estamos no
estacionamento, já próximos ao meu carro, que ela se vira para
mim. Seu rosto está tomado pela fúria. Deu para ver, pela passada
larga e dura que ela deu e por sua postura irritada. Os
divertidamente de sua cabeça devem estar pegando fogo, todos ao
mesmo tempo.
— Você quis armar pra mim, Kahel? É sério? Onde você estava
com a cabeça?
— Não foi bem uma armação — rebato e ela cruza os braços, a
expressão ainda mais intimidante, quase me matando com seu olhar
fatal. — Tá, foi uma armação. Conversei com a minha mãe, ela
disse que gostou muito de você e eu falei que te traria até aqui pra
vocês conversarem um pouco melhor. Imaginei que vocês dariam
certo juntas. Minha mãe realmente se impressionou com você, ela
não faz convites assim para qualquer pessoa.
Leah solta os braços, batendo as mãos nas coxas com força.
Anda de um lado para o outro, parecendo tentar se controlar, mas
quando se vira de volta para mim, perto demais para o tamanho da
sua ira, eu percebo que a tentativa foi falha.
— Você não tem limite algum! — Aumenta o tom de voz,
praticamente gritando.
— Estou tentando te ajudar a conseguir um emprego melhor,
Leah! Sua rotina é intensa demais, só quero facilitar as coisas pra
você! — devolvo, porque só tive boas intenções. Eu me preocupo
com ela.
— Eu não preciso da sua ajuda!
— Pelo amor de Deus, você não pode simplesmente aceitar a
oportunidade? Essa empresa é gigante, pode mudar sua vida! É
isso que você mais quer, não é? — Até eu aumento meu tom. Se ela
quer conversar gritando, vamos conversar gritando.
— Eu sei, Kahel, acha que não sei? — devolve, abrindo os
braços, o cabelo ruivo voando por causa do vento. — O problema é
que não é certo. Estou tirando a vaga de alguém que se inscreveu,
passou pelo processo seletivo e se esforçou pra entrar. Eu não fiz
nada, a não ser beijar o filho da dona. — Ela vai se acalmando
enquanto fala, automaticamente me acalmando também.
É impressionante como explodimos quando estamos juntos. Só
espero que as faíscas permaneçam acesas desse jeito quando
estivermos na cama.
— Entendo seus motivos, juro que entendo, mas não acho que
você deveria desperdiçar uma chance assim.
Leah cruza os braços de novo, a expressão irritada mudando,
agora formando um biquinho emburrado em seus lábios.
— É contra os meus princípios, Kahel. Não gosto de fazer as
coisas dessa forma.
Tinha até me esquecido do quanto ela é certinha. Infelizmente,
essa batalha, sei que não irei vencer.
— Pelo menos eu tentei. — Dou de ombros, me rendendo.
Em outros tempos, uma leve discussão nos levaria a caras feias
e um de nós saindo andando, irritado demais com o outro para
permanecer no mesmo ambiente. Hoje, ela dá um passo à frente e
joga os braços em meus ombros. Eu aproveito a deixa e agarro sua
cintura, aceitando a trégua.
— A intenção foi boa — ela fala, levando uma mão para brincar
com um fio rebelde do meu cabelo, de alguma forma tentando me
consolar. Fico triste por ela ter recusado, mas não há o que fazer. —
Você me leva pra casa? Preciso trocar de roupa e ir pro trabalho.
A mudança de assunto deixa claro que sua decisão foi tomada e
não há volta.
— Eu te levo até sua casa, te espero e te deixo no trabalho. —
Mudo os planos, porque Leah é teimosa até para pegar uma carona.
— Posso ir a pé até a lanchonete, é pertinho, estou acostumada.
— Princesa, eu vou te levar. Não tenho nada pra fazer. — Ela
revira os olhos, mas aceita. — Vai ter uma festa na casa das
meninas do vôlei mais tarde. Posso te buscar depois do trabalho e
irmos juntos, o que acha? Mal ficamos a sós hoje.
— E isso foi culpa de quem? — ela rebate, as sobrancelhas
erguidas em revolta. Só balanço a cabeça em negação,
inconformado com o quanto ela é cabeça dura. — Essas meninas
fazem festas demais.
— Ah, vamos nos divertir, vai! Preciso relaxar um pouco, dissipar
essa tensão da final.
Quando cito o jogo, Leah assente, compreendendo. Ela está tão
nervosa quanto eu, vai com certeza fazer bom uso de um momento
de lazer.
— Ok, vamos nessa festa! — concorda, abrindo um sorrisinho
mais animado.
— Até que enfim você concordou com alguma coisa! — provoco
e suas mãos vão direto para o meu peito, me empurrando sem dó.
— Ei, princesa, doeu!
— Se você parasse de ser bobo, eu não precisaria fazer isso —
fala e vai andando até o carro, se posicionando no lado do
motorista, como se eu fosse deixar ela dirigir de novo.
— Se você parasse de ser teimosa, não estaríamos tendo essa
discussão. E nem pense em dirigir, pode entrar no passageiro. —
Faço questão de abrir a porta para ela e indicar para onde tem que
ir.
Leah nem se mexe.
— Eu dirijo ou não tem festa. Preciso continuar aprimorando
minhas habilidades. — Ela faz um sinal para que eu passe a chave
para ela e eu me odeio por ser rendido a ponto de entregar
exatamente o que quer.
— Você me paga, capitã.
— Posso te pagar mais tarde, capitão.
Sua rebatida sensual simplesmente me deixa boquiaberto. Ela
quase precisa me chutar para que eu entre no carro. Não acredito
no que acabei de ouvir. Leah, mais uma vez, está me
surpreendendo, fazendo promessas que eu com certeza irei cobrar.
Já estou ansioso para buscá-la no trabalho e ela ainda nem
começou seu turno. Sobreviver às próximas horas será difícil.
E quando ela me lança um olhar malicioso e um sorriso mais
malicioso ainda, eu percebo que não será difícil.
Será impossível.
Quem é o cara? Quem é o cara?
Eu sou o cara, eu sou o cara
Quem é o cara com um plano?
Eu sou o cara

The Man – The Killers

Não é segredo para ninguém que acho Leah bonita — eu admitia


até mesmo quando éramos inimigos — mas hoje, especialmente,
ela está com uma beleza de outro mundo. Posso estar sendo
exagerado, é bem provável que esteja, tudo por causa do vestido
azul marinho que ela resolveu vestir. É um modelo justo de alcinhas
que vai até o meio das suas coxas, abraçando cada curva do seu
corpo. Estou hipnotizado desde que ela entrou no meu carro.
— Você tem certeza de que não está exagerado? — Leah
pergunta quando estaciono na rua da festa.
— Princesa, você está uma delícia. — Não resisto, acabo
dizendo o que se passa em minha mente, sendo mais honesto do
que eu deveria. A culpa é das coxas deliciosas que ela deixa à
mostra.
Leah se esconde atrás do longo cabelo ruivo, tampando os olhos
com as mãos.
— Eu não devia ter deixado a Abby escolher minha roupa. Ela
simplesmente apareceu com esse vestido minúsculo e eu não tive
coragem de dizer que não usaria — revela e eu solto uma risada
leve, trazendo minha mão para perto do seu cabelo, fazendo carinho
em mechas que estão próximas ao seu rosto, aproveitando da
proximidade para encostar em sua pele.
— Você é muito mãezona. Nunca quer magoar as crias — brinco
e ela assente, sabe que estou certo, afinal, se tem uma coisa com
que Leah se preocupa, é com suas jogadoras. — Não estou
mentindo, Leah. Você tá linda.
Ela desvia meu olhar fatal por alguns segundos, focando na rua.
Fica óbvio que está insegura, talvez por estar mais exposta do que o
normal, por essa não ser uma roupa que usa habitualmente. Já
percebi que Leah tem dificuldade em aceitar algumas mudanças.
Imagino que seja por medo de errar, de se magoar, de sair das
situações ferida.
— Obrigada, Kahel — agradece com os olhos emocionados, sinto
que transmiti um pouco de confiança para ela, porque Leah coloca a
mão na maçaneta, pronta para sair do carro.
Seguro em seu braço antes que ela possa concluir o movimento.
Leah me olha com confusão, mas minha expressão entrega o que
quero fazer e consigo arrancar um meio sorriso seu. Não preciso
fazer esforço para me aproximar, ela toma a iniciativa, avançando
na minha direção.
Quando nossos lábios se tocam, eu tenho a mesma sensação
que tive quando nos beijamos pela primeira vez. A sensação de que
isso é certo.
Seguro em seu rosto, unindo-nos ainda mais, tentando adquirir o
controle do nosso contato. Leah cede, se derretendo nos meus
braços, permitindo que eu avance. Levo minha mão a sua cintura
para tentar nos aproximar mais, o problema é que o câmbio do carro
atrapalha, não é um ambiente favorável para continuarmos nos
beijando. Eu diria que carros só são bons ambientes para uma
rapidinha, com a garota quicando no seu colo ou o cara chupando
seu pau. Não há espaço para muito além disso, pelo menos não
para minha altura.
O tesão entre nós ainda é palpável, mas ainda assim, nos
separamos. Vejo um lindo sorriso no rosto de Leah quando tenho a
visão completa do seu semblante. Devo estar espelhando a mesma
expressão boba.
— Vamos? — pergunto, deixando a decisão na mão dela.
— Vamos... — a frase fica no ar, parece que ela quer falar mais
alguma coisa, mas falta coragem. Levanto as sobrancelhas para
mostrar que percebi sua hesitação. Leah suspira, as bochechas
adquirindo um tom rosado lindo. — Podemos continuar com isso
mais tarde?
Sua pergunta, que me soa mais como um convite, me pega de
surpresa. Nosso envolvimento tem avançado lentamente por causa
de seus traumas, tenho me controlado ao máximo, receoso de
tentar alguma coisa que vá deixá-la chateada. Eu jamais esperava
que ela mesma fosse instigar um momento mais íntimo entre nós.
Definitivamente, não vou reclamar.
— Podemos fazer o que você quiser, princesa. É só você honrar
nossa promessa e se manter honesta, me dizer o que quer.
Leah me fita com um olhar repleto de amor, carinho e gratidão.
Eu não sei o que ela passou com o babaca do ex, mas tenho para
mim que está feliz do meu lado, que estou tirando esse paradigma
de que uma relação mais íntima é ruim. A capitã está
compreendendo que essa proximidade pode ser sim, muito boa. E
olha que nós ainda nem começamos. Não de verdade. Eu ainda
quero mostrar a ela o Kahel conquistador, o cara que deixa as
garotas de pernas bambas, que faz com que o parceiro sempre
esteja satisfeito na cama. Tenho orgulho de dizer que sei o que
estou fazendo. Se tem alguém que vai fazer Leah se amolecer e
subir nas paredes, sou eu.
— Agora, quero curtir um pouco a festa. Mais tarde, quero voltar
para o calor desse beijo — ela afirma, decidida, alimentando o fogo
dentro de mim.
— Como quiser, capitã. — Pisco para ela com uma expressão
maliciosa.
Leah não recua. Muito pelo contrário, me dá uma fitada de cima a
baixo, deixando claro que estamos na mesma sintonia.
A expectativa que criamos me deixa extasiado. Tenho vontade de
ligar o carro novamente e levá-la para minha casa, mas Leah já está
do lado de fora, se preparando para entrar na festa. E quando a vejo
de corpo inteiro, percebendo que está com um tênis de cano alto,
trazendo um item que é chave de seu guarda-roupa para dar uma
quebrada no visual, chego à conclusão de que seria um desperdício
irmos embora. A beleza dessa mulher merece ser mostrada para o
mundo.

As amigas de Leah se entrosaram com meu grupo de amigos em


instantes. Todo mundo já se conhece, é fato, mas não somos de
conversar tanto. Agora, Maverick está papeando com Alex e Abby
sobre basquete, Anthony está falando sobre números com
Sebastian, enquanto Joanne abraça sua cintura e finge prestar
atenção no assunto, e eu, Leah e Miranda estamos falando sobre a
garota com quem minha amiga quer ficar essa noite. A única que
não veio foi Scout, mas Leah me explicou que ela tem um namorado
misterioso e deve ter saído com ele.
— Posso te ajudar a chegar nela, sou bom nisso — ofereço a
Miranda, que nega com a cabeça.
Minha amiga está sempre em busca de uma companhia, assim
como eu, gosta da farra, de ficar com várias pessoas diferentes.
Bom, assim como eu no passado, porque agora estou amarrado em
Leah.
— E se ela não gostar de mulheres e achar que você tá dando
em cima dela? Sua garota não ia gostar — ela joga o
questionamento no ar, os olhos cor de mel me dizendo o quanto
está gostando de me provocar em relação a Leah. Era óbvio que
Miranda faria algo do tipo. Ela é minha melhor amiga, sabe do meu
histórico e está se divertindo com meu envolvimento com a garota
que eu jurava odiar.
— É, acho que eu não ia — Leah entra na dela, lançando um
olhar feio para mim.
— Então vou ficar bem quietinho. — Porque eu jamais enfrentaria
Leah, seria pedir para arranjar uma briga. E vamos dizer que,
especificamente hoje, não estou com vontade alguma de brigar.
Miranda solta uma gargalhada alta, o copo de cerveja balança em
sua mão, ela quase derruba o líquido, tamanha a emoção que sente
ao me ver rendido.
— Eu nunca achei que vocês pudessem ser alguma coisa e aqui
estou eu, presenciando o Kahel, justo o Kahel, lambendo o chão da
garota que ele jurava ser a pessoa mais insuportável do universo. —
Ela continua rindo, não cansa de se divertir às minhas custas.
— As coisas mudam — Leah diz e sua mão procura pela minha.
Entrelaçamos nossos dedos e trocamos um olhar amoroso. É tão
gostoso tê-la ao meu lado, sem ter problemas em ser vista comigo,
depois que fomos flagrados nos beijando no meio da quadra.
— Ainda acho que ela é esquentada, certinha demais e teimosa,
mas não me importo. Estou aprendendo a gostar até dos defeitos —
falo olhando para ela, mesmo que a resposta seja para Miranda.
— Você continua péssimo. E babaca. Convencido. Exibido.
A réplica de Leah faz algo em meu corpo esquentar. Nosso olhar,
agora, carrega tesão. Só de pensar na expectativa que criamos
dentro do carro, cogito novamente a ideia de encerrar esse diálogo
e levá-la para algum lugar em que possamos ficar a sós.
— Eu adoro vocês juntos. É ótimo. Um clichê ambulante ao vivo
— diz Miranda. Lanço um sorrisinho malicioso para Leah, temos um
diálogo todo em poucos segundos, apenas com nossas expressões.
Ela me mostra que está gostando da conversa, mas que gostaria
mais se estivéssemos sozinhos. Eu falo que precisamos de mais um
tempo, porque meus amigos queriam muito socializar com ela e eles
são importantes demais para mim. Leah diz que entende, porém,
está ansiosa para a próxima etapa da noite. Mostro que também
estou e volto a olhar para Miranda. Minha amiga está espremendo
os olhos na direção de Leah, sua expressão indecifrável me faz
imaginar que irá fazer alguma colocação que não quero ouvir. —
Gosto de você, Leah — fala com um pequeno sorriso, contudo, sinto
que ela vai dizer mais alguma coisa. Miranda estava nos
observando demais na nossa última troca de olhares. Sei bem como
ela é. — Mas já aviso, se você o magoar, nunca mais olho na sua
cara.
— Miranda! — resmungo, fazendo uma careta para ela, abrindo
meus braços para mostrar minha indignação diante de sua
cobrança.
Leah, entretanto, está dando risada.
— Ok, é justo — ela concorda, não parece incomodada com o
pedido que recebeu.
Miranda levanta uma sobrancelha, como se dissesse para mim
“viu, ela não hesitou e ainda compreendeu o que falei, está
aprovada”. Balanço a cabeça em negação, desistindo de tentar
repreendê-la. Já sei que Miranda Wick sempre faz o que quer.
— Ei, Smurf, começou a causar com o casal? — Sebastian se
aproxima de nós, noto que é porque Anthony e Jo foram dançar
juntos. Eles são uma graça, tem uma química palpável, dá para ver
o quanto se amam só pelo modo como ele agarra a cintura dela. É
um daqueles atos carinhosos, mas também carregados de tesão. O
equilíbrio perfeito. O tipo de relação que quero ter com Leah.
— Não estou fazendo nada além do necessário, Seb — Miranda
justifica, não está arrependida, obviamente.
Meu amigo dá risada e trocamos um olhar, ele também a
conhece e sabe como as coisas funcionam com Miranda.
— E você, Leah, estudou pra prova de sexta? — ele pergunta e a
capitã das Fox bufa, seu estresse com esse teste, somado ao
estresse da final do campeonato, só me faz ter a certeza de que ela
precisa relaxar. De preferência, em meus braços.
— Estou no processo. É um absurdo que eles tenham marcado
uma prova justo no dia anterior à final. Não consigo me concentrar
direito pra estudar — diz Leah.
— Quantos jogadores de basquete tem na turma de vocês? —
pergunto, confuso com sua colocação.
— Só nós dois — responde Sebastian.
— E você acha que o professor devia ter remarcado a prova só
porque dois alunos têm um jogo importante no dia seguinte? Qual a
chance de isso acontecer? — provoco porque simplesmente não
resisto. Eu estava tentando me controlar, juro que estava, mas é de
Leah que estamos falando. Ela ainda precisa ser desafiada de vez
em quando.
Por sua expressão irritada, sei que acertei em cheio. Leah se
alimenta das nossas discussões. Entendo do sentimento, também
me sinto energizado quando brigamos. E mais energizado ainda
quando fazemos as pazes nos agarrando em algum lugar.
— Vá conversar com a sua amiga, quero discutir a matéria com o
Seb — ela fala, me esnobando com a mão, se virando para falar
com meu amigo. Reparo que continua olhando para mim, mesmo
focada na conversa, me lançando fitadas bravas, mas repletas de
calor.
— Você está tão apaixonado que chega a ser ridículo — comenta
Miranda, rindo enquanto bebe sua cerveja.
— Não estou apaixonado, só curtindo o momento — justifico,
mas minha mente me trai, levando meu olhar direto para Leah
quando Sebastian toca no ombro dela.
Eu sei que meu amigo não sente nada pela capitã das Fox,
porém, é inevitável, ver outro encostando nela, mesmo que seja de
relance, me deixa doido.
O que essa ruiva esquentada está fazendo comigo?
— Se engane o quanto quiser. Enquanto você “curte o momento”
— ironiza, fazendo aspas com as mãos. — Eu assisto o fim da sua
vida de solteiro de camarote. Isso vai dar namoro, cara.
Solto uma risada quando a escuto, mas devo admitir que estou
mexido demais com meu relacionamento com Leah.
— É, talvez você esteja certa, Smurf.
Miranda apoia uma mão no peito e fica boquiaberta, espantada
com o que estou admitindo.
— Você está me dando a razão? Caralho, essa garota realmente
te rendeu!
Dou de ombros, afinal, o que posso fazer? Estou entrando no
time da coleira de bom grado.
— Ela rendeu, Miranda. Ela rendeu — confesso, procurando
Leah outra vez. Ela me encara na mesma hora, mostrando que,
mesmo concentrada na conversa com Seb, ainda está pensando em
mim. Posso jurar que meu corpo está pegando fogo, porque eu sei
que seus pensamentos não estão focados somente no agora. Leah
está pensando no final da noite. No nosso momento a sós. Se
continuarmos assim, não vou aguentar levá-la para casa. — Vamos
pegar mais uma cerveja.
Porque só uma bebida bem gelada vai diminuir o fogo dentro de
mim.

Como esperado, nós não aguentamos voltar para casa. Depois


que terminei de beber minha cerveja, Leah e Seb finalizaram a
conversa e Miranda requisitou o amigo para irem atrás de alguém
para beijar. As amigas de Leah foram jogar beer pong com Maverick
e Max, outro garoto do time, e ficamos a sós.
E um casal que começou a se relacionar recentemente ficando a
sós só pode resultar em uma coisa: pegação.
Leah me pressionou na parede com uma vontade que eu nunca
vi nela. Dá para perceber o quanto estava ansiando por esse
momento pelo modo como ela gruda nossos corpos. A capitã das
Fox sempre foi um pouco mais retraída durante nossas ficadas, era
uma coisa mais calma, mas ultimamente, nossa relação tem
esquentado. Gosto de acreditar que é por minha causa, tenho
tentado deixá-la confortável e no comando da situação. Percebi que
dessa forma, Leah tem se soltado.
A forma como seus lábios devoram os meus me prova que
também perdeu o medo. Pelo menos comigo, ela se sente segura,
se permite, relaxa. Tudo o que eu queria era que nosso
envolvimento fizesse bem para ela. Tenho a sensação de que essa
meta está sendo cumprida com êxito.
Uma das minhas mãos está enfiada em seu cabelo, emaranhada
em seus fios ruivos, e a outra enlaça sua cintura com firmeza. Leah
está agarrada nos meus ombros, mas eu a sinto se mover em meus
braços, como se me pedisse para que o toque descesse mais um
pouco. Costumo ser ousado em minhas ficadas, mas não vou
agarrar a bunda de Leah na frente de todo mundo. Com ela, quero
fazer tudo certo.
Separo nossos lábios para sinalizar que venha comigo. Conheço
alguns cômodos da casa das meninas do vôlei e sei que há um
banheiro que elas deixam destrancado no andar de cima. Subo a
escada pedindo licença, abrindo o caminho para Leah, que está
com a mão unida à minha. Depois de passar pela multidão, enfim
chegamos ao corredor do andar de cima. Há inúmeras pessoas se
beijando, colados nas paredes, é um ambiente que exala tesão,
sexo, intimidade. Olho para Leah mais uma vez, para me certificar
de que ela está ciente do passo que estamos dando. Ela assente, a
expressão não está só consumida pelo fogo da nossa ficada,
também está plena, em total acordo com esse avanço.
Entramos no banheiro e faço questão de trancar a porta. O
ambiente não é muito grande e sei que ficará apertado, mas que se
foda. Só quero minha ruiva colada em mim.
— Agora, sim, princesa. Estamos a sós — falo apenas para dar a
deixa para que ela me ataque.
Leah encosta seu quadril na pia, me puxando para perto. Nossos
corpos colidem com brutalidade, ela deixa as mãos na pia, seus
peitos estão deliciosos demais nesse vestido, seu corpo todo está,
na verdade. A vontade de avançar me consome, estou
simplesmente louco por ela, mas ainda sigo firme a ideia de irmos
com calma.
Levo minha mão para o seu cabelo, afastando-o do seu rosto,
para admirá-la. Passo meus dedos pelas suas sardas, fazendo
carinho em sua pele, que já está levemente rosada. Não deixo de
encarar sua boca durante o movimento, mostrando o quanto a
quero, o quanto anseio por tê-la mais próxima de mim.
— O que você quer, capitã? Me diga. Comande. Você tem o
controle aqui.
Meu tom sensual faz Leah respirar fundo, parece que ela precisa
desse ar para me responder. É bom saber que a faço perder o
fôlego.
— Quero que você me toque.
O modo como ela me olha e a determinação com que me pede
para avançar me fazem ter certeza de que não saio desse banheiro
sem fazê-la gozar.
— Seu desejo é uma ordem, princesa. — Não resisto, preciso
usar o apelido que começou como uma brincadeira, e agora se
tornou uma forma de mostrar o quanto gosto dela.
Nós não hesitamos. Simplesmente nos entregamos ao momento,
ao beijo. Ela leva uma mão para meu cabelo, me puxando para mais
perto, e eu aproveito para abraçar sua cintura. Uma das minhas
mãos desce devagar, caminhando até sua bunda. Não consegui
realizar seu pedido antes, mas agora vou fazer todas as suas
vontades.
Faço carinho em sua bunda arrebitada, impressionado por ela ser
ainda melhor do que eu havia imaginado. Aperto devagar, com
medo da reação dela, mas Leah me surpreende. Ela joga o quadril
para frente, colando-o no meu, deixando claro o quanto gostou do
toque. Aplico mais força e ela me dá outra resposta positiva. Estou
vendo que a capitã vai curtir uma pegada forte e carinhosa.
Do jeitinho que eu sei oferecer.
Deixo seus lábios por um instante, descendo meus beijos pelo
seu maxilar, até encontrar a pele do pescoço. Começo com
movimentos suaves, termino com um chupão leve. Leah geme em
meus braços, me dando mais um sinal do quanto está gostando.
Aproveito e beijo toda a pele que vejo livre. Seus ombros, o colo do
seu peito, o outro lado do seu pescoço.
— Ah, Kahel. — Ouvi-la gemer o meu nome só me incentiva a ir
mais longe.
Levo minhas duas mãos para os seus seios. Não são grandes,
mas de longe, são as coisas mais lindas em que já toquei. Olho para
Leah, usando esse vestido azul, com minhas mãos em seus peitos,
seu rosto cheio de tesão por mim, e tenho a impressão de que atingi
o nirvana. Que mulher gostosa da porra!
Volto a colar nossos lábios, acariciando-a por cima do tecido, sem
querer ousar demais. Em meio ao nosso beijo, sinto a mão de Leah
deslizando para dentro da minha blusa. Ela acaricia meu abdômen,
o toque mais contido, chegando perto do cós da minha calça, mas
nunca efetivamente se aproximando do meu pau. Porém, só o mero
calor de seu corpo já o faz subir. O coitado está duro como pedra,
mas sei que não terá atenção essa noite.
Hoje, a vez é dela.
Abandono um dos seus seios para dirigir minha mão para baixo.
Vou deslizando a mão pelo seu corpo, tocando em sua barriga
chapada, em sua cintura, em seu quadril, por fim chegando até a
barra do seu vestido. Cesso nosso beijo para fitá-la, para me
certificar de que ela esteja gostando, de que ela quer dar mais um
passo.
Os olhos verdes de Leah me dizem tanta coisa. Mas o que ela
fala, efetivamente, é muito melhor.
— Eu confio em você.
Seu voto me faz seguir em frente. Enfio a mão por baixo do seu
vestido, acariciando as laterais da calcinha, caminhando devagar
até seu centro. Sinto Leah se arrepiar quando a toco por cima do
tecido. É um carinho leve, um toque sucinto, apenas para ver sua
reação. Olho para ela mais uma vez, buscando mais um sinal. Leah
assente com desespero, quase implora para que eu avance.
Finalmente, desvio da calcinha e toco em sua boceta. Mesmo
não a visualizando, sei que é o meu novo paraíso.
Levo meu dedo médio para seu clitóris, acariciando com calma, já
fazendo Leah tremer. Ela segura na pia com força, fecha os olhos e
geme baixinho, de um jeito que me deixa completamente rendido.
Vou aumentando um pouco a velocidade e faço uma troca, meu
indicador fica no clitóris, o médio desce para dentro dela. Começo
devagar, entrando pouco a pouco, até que ela me abrace. Faço
movimentos de vai e vem enquanto Leah solta pequenos gritinhos.
É o som mais delicioso que já ouvi.
Não presto atenção no barulho da festa, nada à minha volta
importa, só ver Leah gozando nos meus dedos.
Aumento a velocidade quando sinto que ela precisa de mais e
Leah joga o cabelo ruivo para trás, abrindo levemente a boca,
extasiada, consumida pelo prazer que dou a ela.
Eu mesmo poderia gozar só de olhá-la atingindo seu ápice.
Porque, porra, quando ela começa a me apertar mais e mais, eu
quase me liberto. A expressão em seu rosto, o olhar safado que me
lança, as reações do seu corpo, o vestido azul... É, definitivamente o
corpo de Leah virou meu paraíso.
Sinto quando ela termina, fica nítido em seu olhar e em seu
sorriso. Tiro meus dedos de sua boceta e lavo seu gozo na pia logo
atrás de si. Sou obrigado a enlaçar sua cintura para completar o ato
e Leah parece adorar esse fato. Enxugo minhas mãos em uma
toalha qualquer, ela dá uma arrumada no vestido e se vira para
poder enxergar seu reflexo. Enquanto passa os dedos pelo cabelo,
tentando ajeitá-lo, eu fico atrás dela, minha virilha grudada em sua
bunda, minha ereção adorando a proximidade. Leah percebe que
estou duro, mas ela sabe, e eu sei, que não vamos avançar mais
hoje.
Dou um beijo em seu ombro nu, olhando nosso reflexo no
espelho. Leah está rosada, mas nunca vi sua expressão tão
relaxada. É bom ter esse papel em sua vida. Ser seu escape, seu
momento de paz, seu lugar de tranquilidade.
— Como você se sentiu? — pergunto, fitando-a pelo espelho,
nosso contato visual ainda mais íntimo do que antes.
Sexo não é só luxúria. Sexo também é conexão.
— Foi quase melhor do que jogar basquete. — Sua resposta me
faz soltar uma risada gostosa.
— Então deve ter sido incrível — devolvo, dessa vez roubando
um beijo de sua bochecha.
Leah segura minhas duas mãos, levando-as para sua cintura. Ela
me faz abraçá-la e deita sua cabeça em meu peito.
— Você é incrível, Kahel.
Suas palavras me causam um frio na barriga que eu nunca senti.
A confiança que ela deposita em mim faz com que um sentimento
esquisito surja. Eu sinto que faria tudo por ela. Talvez isso seja um
sinal de que Miranda estava certa. Estou me apaixonando por Leah
James.
— E eu quero mais — Leah solta, me pegando de surpresa.
— Vamos ter muito mais, princesa.
Meu coração me diz que esse é só o começo, que ainda vou
desvendar tudo sobre ela, que ainda vamos viver altos e baixos, que
ainda vamos criar mais intimidade, descobrir tudo um sobre o outro.
Não tenho vontade alguma de tornar meu envolvimento com Leah
algo passageiro.
E se isso me torna um rendido apaixonado, então que seja.
Sou um rendido apaixonado.
Eu acho que eu me preocupo muito
Eu preciso ter calma
Eu tenho uma sensação de ansiedade
Mas ela vai embora por um minuto quando estou com você,
respirando

Cry Baby – The Neighbourhood

Serei obrigada a admitir que só fui bem na prova graças as dicas


que peguei no dia da festa com Sebastian. Se não tivéssemos
conversado naquele dia, eu teria me fodido. Devo a ele pela ajuda
com os estudos e a Kahel pela ajuda me fazendo relaxar.
Ele já me fez gozar três vezes. Todos os dias em que nos
encontramos, arranjamos um jeito de repetir o que fizemos no
banheiro da festa. Foi um passo gigante para mim, mas não hesitei
em nenhum momento, eu sabia que estava fazendo a coisa certa,
simplesmente porque Kahel é certo. Ele me respeita, esperou até
que eu me sentisse preparada, não me pressionou uma vez sequer.
Da última vez em que demos uns amassos no seu carro, inclusive,
ele me freou antes que eu tocasse em seu pau. Disse que preferia
esperar mais um pouco, que não tinha pressa, que me dar prazer já
era prazeroso para ele. Eu queria tocá-lo, porém, entendi seu
receio. Kahel quer ir com calma. Não vou reclamar disso, acho que
ele tem razão. É melhor irmos devagar, me sinto mais confortável
dessa forma. Tenho medo da minha mente resolver bloqueá-lo se eu
me assustar ou me sentir ameaçada de alguma forma. Kahel me
prova todos os dias que não é como Axel, mas não é tão simples
esquecer um relacionamento abusivo. Nem acho que é algo
possível de ser esquecido. Você só aprende a conviver com a
memória do que viveu.
Eu já superei muito, sem dúvidas, mas não consigo superar
totalmente, porque Axel não sai do meu pé. Desde que desbloqueei
seu número, ele tem me atormentado todos os dias. Suas
mensagens normalmente são simples, na maioria das vezes, ele só
quer saber como eu estou. A questão é que, em algumas vezes,
Axel pergunta com quem estou, se já arranjei o dinheiro, quando
vamos poder nos ver. Se eu demoro para responder, recebo uma
cobrança e uma ameaça velada. Varia de “estou preocupado com
você, acho que vou dar uma passada na KSU”, para “se não me
responder, terei que aparecer no seu treino e ouvir sua resposta
pessoalmente”. Todas as mensagens têm o mesmo significado, mas
às vezes, ele se esforça em tentar disfarçar seu comportamento
tóxico.
Aproveito que é a vez de Joanne posar para a foto para
responder a última mensagem de Axel, avisando que estou me
esforçando para conseguir pelo menos uma parte do dinheiro. Eu
gostaria de ter trabalhado mais nas últimas semanas, mas nosso
volume de jogos foi alto, ganhamos todos e começamos a treinar
ainda mais pesado. Se vencermos a final, estamos no March
Madness. É um momento importante demais para mim, não posso
deixar Axel estragá-lo. Sei que ele vai ficar tranquilo, desde que eu
dê satisfação sobre a minha vida.
— Tire uma nesse ângulo também, é meu melhor lado — Joanne
pede, mudando sua posição no banco que estamos usando para
posar para as fotos oficiais do time.
É uma tradição que tenhamos imagens não só do time todo, mas
de cada uma das jogadoras, para colocarmos no corredor do
ginásio. Todo ano a foto é atualizada e, dessa vez, resolvemos fazer
a sessão no dia da final. A treinadora Hale achou que seria uma boa
para deixar o time relaxado e concordo. Sem dúvidas Jo está
promovendo um ótimo entretenimento.
— Agora desse lado, por favor, prometo que são as últimas. — Jo
se ajeita de novo, arrumando o cabelo loiro e liso, fazendo caras e
bocas para a câmera.
— Se chegarmos atrasadas na final, a culpa é dela — Scout
sussurra para mim. Ela está mais mal-humorada do que o normal,
por causa da tensão da partida.
Eu entendo. Estamos preocupadas com o comportamento de
Mia. Ela passou os últimos dias se vangloriando por estarmos na
final, ao invés de se focar nos treinos. A treinadora está tensa, todas
as jogadoras também, mas eu diria que nós quatro — Alex, Scout,
Jo e eu — estamos piores. Somos as titulares, as merdas sempre
caem no nosso colo. Vamos ter que arranjar uma forma de
convencer Mia a jogar em equipe, a focar nas Red Fox, e não
somente em si mesma. Para ajudar, o time adversário é muito bom
e perdemos delas na temporada regular, o campeonato que
antecedeu o torneio das conferências. Diante de todo esse cenário,
estou uma pilha de nervos. Se não fosse por Kahel, eu estaria ainda
pior.
— Pronto, Jo — Hailey anuncia, fazendo um sinal para que ela se
levante. Joanne faz um biquinho, é provável que gostaria de tirar
mais 200 fotos, se a treinadora deixasse. Mas temos horário e o
time masculino também está em quadra, esperando pelo momento
em que vamos liberar a fotógrafa.
Convenci a treinadora Hale a contratar Hailey para tirar nossas
fotos. Minha irmã estava precisando de um dinheirinho e estava
difícil achar um fotógrafo com disponibilidade para esse dia.
Expliquei para a treinadora que Hailey era talentosa, mostrei alguns
de seus trabalhos e ela topou. Madison Hale pode ser dura em
quadra, mas ela é um amor, tem um coração gigante e está sempre
disposta a ajudar suas jogadoras. Me espelho em sua postura, acho
a mulher incrível e além de tudo, ela ainda me respeita como capitã
e deu uma oportunidade para minha irmã.
O sorriso no rosto de Hailey, enquanto tira as fotos, é gratificante.
Ela montou um cenário incrível, com um fundo verde escuro e um
banquinho, para que pudesse deixar as fotos com aparência
profissional. Fui buscar minha irmã de ônibus logo cedo, ela chegou
na universidade e andou o campus inteiro para conseguir a
iluminação que precisava. Os alunos da área de comunicação
tinham inúmeros holofotes e emprestaram a ela de bom grado.
Claro que eu fui junto, para trazer mais confiança ao empréstimo.
Todo mundo sabe que sou capitã das Red Fox.
— Oi, princesa. — Sinto a presença de Kahel atrás de mim e me
viro para olhá-lo.
Estamos uniformizados, cada um carregando o emblema de seu
time no peito. É um dia feliz e tenso para mim, mas Kahel, para
variar, é a paz em pessoa.
— Não sei como você consegue ficar tão pleno sabendo que joga
a final amanhã.
Ele para ao meu lado, mas não me toca. Seu receio só pode ser
por causa de Hailey. Todas as outras pessoas que estão nessa
quadra sabem que estamos ficando. Até a treinadora Hale e o
treinador Morrow fizeram piada sobre isso. Os dois acham que
foram nossos cupidos por terem nos colocado para trabalhar juntos.
— Preciso ficar calmo hoje, para te relaxar. Estou guardando o
estresse para o meu jogo.
Sua resposta me faz abrir um sorriso bobo. Faz semanas que
estamos juntos, mas Kahel não cansa de me impressionar. Nunca
pensei que ele pudesse ser fofo desse jeito.
— Obrigada por equilibrar minha tensão. Se não estivéssemos
presos nessas fotos, eu toparia uma relaxada — falo e Kahel ergue
uma sobrancelha, interessado.
Ele me deixou tão à vontade, que não tenho mais vergonha de
dizer o que quero. Quando estou decidida, simplesmente falo.
— Sempre podemos dar uma fugidinha — sugere, me lançando
um olhar safado, colocando as mãos atrás do corpo, como se
precisasse escondê-las, para não ter vontade de me tocar.
— Leah, é sua vez. — A voz séria de Hailey me dá um susto. Ela
está me olhando com uma expressão de quem acabou de pegar
alguém no flagra.
Troco um rápido olhar com Kahel, que percebeu o mesmo que
eu. Estamos óbvios demais. Hailey já sacou que estamos
envolvidos.
Me sento no banco da forma que vi outras garotas fazendo, há
uma sequência de poses para seguirmos. Minha irmã vai me
conduzindo, mas vejo que está um pouco chateada comigo. Não
contei a ela sobre mim e Kahel. Eu quis, mas não sei, acho que
fiquei com medo de ela me julgar por eu estar preocupada em ficar
com um cara, ao invés de monitorar a bebedeira da nossa mãe.
Hailey não é assim, sei que não é, o problema é a minha cabeça e
meu senso de responsabilidade gritando que estou usando meu
tempo para sair, quando devia estar trabalhando ou cuidando da
minha família. Não estou errada, mereço viver minha própria vida.
Tenho consciência disso, mas ainda me sinto culpada. É uma
merda.
A sessão de fotos segue e Hailey sempre me procura com o
olhar, dá para ver que está chateada por ter sido deixada de fora.
Agora não há escapatória, preciso arranjar um tempo de falar com
ela sobre Kahel. Entretanto, terá que ser depois do jogo, porque
agora não tenho condição alguma de manter um diálogo sério.
— Você também está apavorada ou só somos nós? — Alex
pergunta quando já estamos do lado de fora do Bolton Stadium, nos
preparando para entrar no ônibus que nos levará para a final.
— Estou tensa dos pés à cabeça — sinalizo meus tênis e meu
cabelo, para mostrar que não estou brincando.
— Sinto que vou vomitar a qualquer momento e nem sei se vou
entrar em quadra — diz Abby, ela ainda está de cabelo solto, com
um casaco rosa por cima do uniforme.
— Acho que você vai entrar em algum momento. — Tento
tranquilizá-la, mas, para falar a verdade, não sei quais são os planos
da treinadora. Um jogo de basquete é imprevisível, pode ser que ela
tenha que mudar a estratégia durante a partida, pode ser que
façamos trocas só para descansar um pouco, pode ser que não
façamos trocas, para tentar segurar as melhores em quadra. É tudo
uma grande incógnita.
— Só espero que aquela menina não faça nenhuma cagada —
comenta Scout, se aproximando da nossa rodinha com Jo.
— Vamos pensar positivo, pelo amor de Deus! A vibração de
vocês tá péssima! — Joanne reclama, apontando para nós quatro.
Sei que ela também está nervosa, mas está tentando disfarçar com
seu humor. — Ei, Hailey, vem cá! — Ela chama minha irmã, que
estava encostada no ônibus, distraída com seus fones de ouvido.
Hailey se aproxima de nós com cautela, guardando o celular e os
fones na mochila.
— Você é a cara da sua irmã — diz Abby quando Hailey para ao
meu lado.
— Sempre fomos iguais, né, Hales? — pergunto a ela, mas
minha irmã só assente devagar, sem vontade de participar da
conversa.
As meninas fazem outras perguntas a ela, as quais Hailey
responde de forma sucinta. Fica óbvio que há algo acontecendo
entre nós, mas não temos sequer a chance de tentar conversar,
porque a treinadora nos chama para entrar no ônibus. Minhas
amigas vão na frente, eu fico para trás, para poder me sentar com
Hailey.
Quando estamos quase entrando, a treinadora Hale faz um sinal
para pararmos.
— Leah, me desculpe, mas ela não pode ir com a gente. O
ônibus é da faculdade, só as atletas e a comissão técnica têm
permissão para entrar.
Troco um olhar com Hailey, ela já está puta comigo e isso só
piora a situação.
— Mas ela estava tirando nossas fotos. — Tento arranjar uma
forma de driblar a regra, mesmo sabendo que não tem jeito.
— Me desculpe, mesmo. Se fosse por mim, ela iria, mas tem
muita gente do departamento esportivo por aqui e lá terão muito
mais. As Red Fox conseguiram chamar a atenção da KSU, não
podemos quebrar nenhuma regra.
Entendo a justificativa dela, realmente tivemos um ótimo
desempenho e estamos movimentando a faculdade. Todos os olhos,
nesse final de semana, estão nos times de basquete.
— Vou de carro, posso levá-la.
Eu me viro quando escuto Kahel, percebendo que ele está ao
lado do ônibus, usando uma jaqueta dos Tigers. Imagino que tenha
vindo até aqui me desejar boa sorte, já que não vamos conseguir
nos falar no ginásio.
Fico tensa com a oferta, sem dúvidas é uma boa ideia, mas ele e
Hailey nem se conhecem, não foram sequer apresentados. Confio
em Kahel, só não sei se Hailey aceitaria.
Encaro minha irmã, buscando por uma resposta. Ela está
enigmática, fechou suas emoções para mim.
— Nós vamos pro mesmo lugar de qualquer jeito. Você pode até
sentar comigo e com meus amigos, Hailey, assim não fica sozinha
assistindo ao jogo — diz Kahel, tentando resolver o problema a todo
custo.
Minha irmã não perderia uma final só porque está chateada
comigo. Ela também não vai querer ir com Kahel se eu não der
permissão e mostrar que ele é alguém em quem confio.
— Você pode ir com ele, se quiser. É bom, assim você não se
perde no ginásio e consegue nos encontrar quando a partida acabar
— digo a ela, fazendo um carinho em suas costas.
Hailey não se afasta do meu toque, mostrando que não está tão
brava assim. Ela só quer que eu conte a verdade.
— Tudo bem, vou aceitar, Kahel, obrigada. — Agradece com um
sorriso amigável, em seguida se virando para mim. — Faça o que
você sabe fazer de melhor, Leah.
Puxo minha irmã para um abraço, que ela retribui com carinho.
— Prometo que vou te contar tudo assim que a partida acabar —
sussurro em seu ouvido.
— Eu sei disso, mas não pense que não vou tentar arrancar algo
dele durante o trajeto — ela sussurra de volta e se solta de mim com
um sorriso travesso no rosto.
Kahel está fodido.
Ele se aproxima de mim em seguida, me dando um breve abraço
e um beijo carinhoso na bochecha.
— Estarei torcendo por você, princesa. — Kahel puxa a manga
do casaco e vejo que pintou o número 17 no punho. É uma coisa
besta, mas eu acho uma graça.
— Chega de namorar, capitã, temos uma final pra vencer —
Scout grita do ônibus, causando uma comoção de todas as Red
Fox, que começam a bater na lataria e gritar.
Dou risada e, já que Hailey descobriu tudo, roubo um beijo rápido
de Kahel.
— Cuide da minha irmã — peço, apontando para o seu rosto de
uma forma intimidadora.
— Eu que vou cuidar dele — Hailey responde, chamando a
atenção para si.
Sua expressão sabichona e seus braços cruzados deixam claro
que Kahel terá um belo interrogatório para responder.
— Acho que é você quem precisa de sorte — aviso a ele, dando
um tapinha amigável em seu peito.
Se eu não fosse tão fiel ao meu time, me enfiaria no carro de
Kahel só para presenciar essa cena. Eu queria que alguém
gravasse a conversa dos dois. Vai ser imperdível.

Mal consigo respirar dentro do carro. Hailey está quieta, mas


tenho para mim que seu silêncio é apenas um sinal de que está
procurando a melhor forma de me abordar.
A irmã de Leah é muito parecida com ela, mas seus estilos são
bem diferentes. Hailey usa um macacão marrom e uma camiseta
listrada por baixo. Seus tênis são coloridos, a mochila é colorida,
tudo nela grita que a garota tem a alma de uma artista.
Reparo que uma de suas pernas está inquieta, balançando para
cima e para baixo de forma frenética.
— Você tá bem? — pergunto, encarando-a de relance, logo
voltando minha atenção para o trânsito.
Hailey pensa por um instante, os olhos verdes estão focados nas
ruas, nos carros e nas pessoas que caminham nas calçadas.
— Suas músicas são chatas demais.
A reclamação me pega de surpresa. Costumo ser bem eclético,
mas meu gênero musical favorito é rap e é o que mais escuto no
carro, nos treinos, na vida em geral.
— Ok, o que você gostaria de ouvir? — pergunto por que eu
jamais desafiaria a irmã de Leah.
— Posso colocar meu bluetooth? — Hailey mostra seu celular e
assinto, ela faz os movimentos rapidamente e logo uma música
conhecida começa a tocar.
— Paramore?
Hailey me encara como se eu estivesse fazendo a pergunta mais
estúpida do mundo. Apenas com esse olhar, já sei que é tão
marrenta quanto a irmã.
— Se você quer conquistar a Leah através de alguma música, é
obrigatório que seja Paramore, Avril Lavigne ou The Rolling Stones
— dá a dica e eu percebo que não fazia ideia de qual era seu gosto
musical. Já vi Leah com uma camiseta do The Rolling Stones, mas
tanta gente usa blusas de banda de rock só para fazer um estilo
rockeiro, sem efetivamente gostar das músicas, que nunca boto fé
de que curtem mesmo da banda.
— Bom saber, Hailey. Obrigado — agradeço, refletindo sobre o
quanto ainda não sei sobre Leah. Esse fato me incomoda, eu quero
saber mais sobre ela, quero poder dizer que sou uma das pessoas
que mais a conhece no mundo.
— O quão sério é esse lance entre vocês? — Hailey questiona,
direta.
Eu sabia, no minuto em que ofereci a carona, que ela tentaria
arrancar alguma informação de mim. Pela atitude de Leah, quando
pedi sua permissão, ela quer que eu conte a verdade a sua irmã. Se
não quisesse, não teria nos deixado ficar a sós.
— Estamos tentando. Gosto muito dela. — Aproveito para
acrescentar essa informação importante, quero que Hailey saiba
que não estou brincando com o coração da sua irmã.
Ela assente devagar, parecendo assimilar o que estou dizendo.
Não sei se ela torce por nós, mas tenho para mim que apenas quer
ver a irmã feliz.
— Leah é difícil. Temos muitos problemas familiares, ela sempre
cuidou de tudo, por isso ficou fechada desse jeito. — Me espanto
com o quanto ela se abre, Hailey parece mesmo estar querendo me
ajudar. — Mas dá pra ver que ela está envolvida ou não estaria te
lançando aqueles olhares, dando aqueles sorrisos.
— Só o fato de ela não me odiar já é uma vitória — brinco,
sentindo que Hailey está me dando abertura para tal.
Não imaginei que a irmã de Leah fosse ser tão sincera. Ela
pareceu quieta e séria na sessão de fotos, achei que sua
personalidade fosse dessa forma, mas estou vendo que ela é bem
mais solta do que a irmã.
— Você manda muito bem nas fotos. Onde aprendeu a fotografar
desse jeito? — pergunto, querendo puxar assunto para conhecer
melhor minha futura cunhada.
Hailey abre um sorriso delicado ao me ouvir, parece ter gostado
da pergunta.
— Aprendi sozinha, na verdade. Claro que peguei algumas
técnicas na internet, mas nunca tive alguém pra me ajudar.
Fico impressionado com o que ela diz, a menina só tem quinze
anos e já é talentosa desse jeito, nem imagino como será no futuro.
— Sua irmã se orgulha muito de você, ficou se vangloriando pro
time todo, falando de você — conto porque nunca vi Leah dessa
forma, ela mostrou o quanto acredita em Hailey para os times, para
a treinadora, acho que só a própria Hailey não viu.
— Ela que me deu essa câmera. — Bate na mochila que carrega.
— Meu pai disse que daria um presente especial para cada uma de
nós, antes de morrer, quando ele estava doente. Mas não deu
tempo de ele providenciar o meu, então Leah quis cumprir a
promessa e ficou guardando dinheiro durante meses para conseguir
comprar uma câmera profissional — conta, os olhos brilhando de
amor e respeito pela irmã. Fico sentido pela história. Mesmo já
sabendo que a vida de Leah não era fácil, a cada dia que passa,
vejo que ela tem um passado ainda mais complicado do que eu
imaginava. — Leah recebeu o presente dela. Foi um skate. — Não
entendo por que Hailey me conta esse fato, mas por seu olhar, sei
que há mais na história. — Sabe, aquele que você quebrou? —
Franzo a testa, sem entender ao que ela se refere. — Primeiro dia
de aula, ela era caloura, foi quando vocês se conheceram. — Tento
buscar em minha memória e até me lembro de esbarrar em Leah,
mas não de ter havido algo significativo. Começamos a brigar em
quadra, pelo que minha mente consegue relembrar. — É
basicamente o motivo por ela ter começado a te odiar.
Espera. Oi? Ela me odeia por causa de um skate? Tudo bem que
foi um presente do pai dela, mas não é para tanto. Ou é? Preciso
relembrar os acontecimentos do primeiro dia de aula do meu
segundo ano.
Fica óbvio para Hailey que essa história era um completo mistério
para mim. Devo estar com uma cara de panaca, enquanto coloco
minha mente para trabalhar. Eu acho que me lembro de algumas
partes desse dia. Forço minha memória para encontrar o exato
momento em que nos conhecemos.
Foi no estacionamento do departamento esportivo, próximo ao
Bolton Indoor Stadium. Eu estava de carro, desci e, enquanto
caminhava até o ginásio, ainda no estacionamento, Leah apareceu
como um foguete, dominando seu skate. O problema foi que ela não
me viu e veio direto na minha direção. Eu segurei seu corpo para
que caísse em cima de mim, mas lembro de ter abraçado sua
cintura para protegê-la e ter recebido um xingamento pela atitude.
Ela disse que eu estava me aproveitando dela só porque fiz algum
comentário sobre sua bunda. Em minha defesa, eu tinha acabado
de sair do colégio, queria me tornar um cara popular na faculdade e
achava que o caminho era dar em cima de todo mundo que
aparecesse à minha frente. Deu certo por muito tempo, eu fui muito
feliz em meu tempo de solteiro, mas agora ele acabou.
Puxo em minha memória o momento em que Leah se levantou,
ela estava irritada e gritou comigo quando viu que seu skate tinha
sido atropelado por algum carro. A tábua estava destruída, não tinha
conserto. Lembro que ela disse que havia sido minha culpa, que eu
tinha acabado com sua alegria e que ela iria me odiar para todo o
sempre depois daquilo.
Pode ter sido um início besta, mas agora sei que o skate tinha um
valor sentimental para ela e eu entrei em seu caminho do nada e a
fiz quebrá-lo. Não foi culpa de nenhum dos dois, então entendo sua
frustração. Só não entendo por que ela nunca citou esse
acontecimento e me deixou no escuro durante praticamente dois
anos. Eu achei que o ódio de Leah por mim era gratuito. Não
imaginei que nosso primeiro encontro tivesse sido tão marcante
para ela.
Quero questioná-la sobre isso e pedir desculpas pelo skate, mas
sei que terei que esperar. Acabamos de chegar no ginásio do time
adversário e as Red Fox estão prestes a entrar em quadra. Corro
com Hailey para dentro, encontrando meus amigos em um dos
melhores lugares do ginásio. É alto, mas não muito, e tem uma
visão panorâmica do ataque e da defesa. As posições foram
cortesia do meu pai, que fez questão de vir assistir ao jogo de Leah.
Ele está nas poltronas à nossa frente com seus seguranças à
paisana ao seu lado, para que ninguém o incomode.
Vejo que as Red Fox já estão em quadra, fazendo bandejas para
aquecer. Procuro por Leah e seu cabelo ruivo a destaca, é fácil
encontrá-la na multidão. A capitã está comandando as meninas,
gritando algo para uma, parabenizando outra.
Depois de acertar uma cesta perfeita, Leah passa o olhar pela
arquibancada, como se estivesse me procurando. Sinalizo com as
mãos repetidamente para que ela me veja e mostro com a cabeça
que trouxe Hailey em segurança e que a posicionei em um lugar
incrível. Leah me agradece com o olhar e acena de forma contida.
Eu sou mais explícito e mando um beijo para ela, mostrando outra
vez que estou aqui, torcendo por ela.
Chegou o momento da minha princesa brilhar.
Esta é a última vez para acertar
Esta é a última chance de conseguir ou não
Temos que mostrar o que somos
Now Or Never – High School Musical 3

Jogos de basquete são rápidos. É por isso que as pontuações


são sempre tão altas. A todo minuto, alguém está atacando,
tentando fazer o placar andar. Eu gosto do dinamismo do jogo, de
nunca ficar parada muito tempo, de ter que ficar atenta a todos os
movimentos do time adversário.
O problema é que hoje, uma diminuída no ritmo cairia bem.
Mia está lenta pra cacete. Nos outros jogos, ela deu uma de
fominha e ficou querendo ter a bola só para si, mas hoje, não está
aguentando a pegada do jogo. Nossas rivais são muito boas, parece
que estão ainda melhores do que na última partida em que nos
esbarramos.
Para ajudar, estou tendo que fazer um esforço além do normal
para me focar na quadra. Tudo porque, quando eu estava no
vestiário, vi dezenas de mensagens desagradáveis de Axel. Eu o
ignorei a manhã toda por causa da sessão de fotos e da minha
ansiedade pré-jogo. Para falar a verdade, nem sequer lembrei da
existência dele até pegar meu celular e ver suas mensagens. Não
foi nada além do normal, ele só queria saber onde eu estava,
perguntou se eu iria trabalhar, questionou mais uma vez sobre o
dinheiro. O problema foi sua última mensagem, enviada pouco antes
de eu chegar no ginásio. Dizia “Se não me responder até às três da
tarde, vou até você”. Ele nem fez questão de esconder seu
comportamento abusivo. A ameaça estava cristalina. Respondi
dizendo que eu tinha jogo e estava ocupada com as funções de
capitã, me odiando por ter que me justificar dessa forma, por ter me
colocado em uma situação dessas, por estar sentindo medo dessas
ameaças de merda.
Não tive tempo de esperar por uma réplica da parte dele, porque
tive que vir para a quadra, e só vou poder saber a resolução desse
diálogo quando a partida acabar. Até lá, preciso lidar com esse
sentimento horrível que cresce no meu peito. O sentimento de
culpa, pavor e impotência.
— James! — Alex sinaliza para mim, há uma garota do outro time
próxima a ela, mas minha amiga está conseguindo segurá-la.
Eu, por outro lado, estou encurralada. O time adversário está
tentando foder minhas jogadas a todo custo e alteraram seu sistema
defensivo para que sempre duas garotas estejam em cima da
armadora, no caso, eu.
Passo a bola para Alex, ela recebe o passe, fazendo esforço para
conseguir entrar no garrafão. Outra garota se aproxima dela e minha
amiga fica sem escolha, tem que passar a bola para Joanne, que
também está marcada. Jo não consegue fazer o arremesso, ela é
interceptada, porém, uma falta é marcada e temos direito a dois
lances livres.
— Esse jogo tá um caralho! — Scout murmura quando se
aproxima de mim. Assinto, ofegante, sentindo o baque da partida e
das minhas poucas horas de sono refletir em meu corpo. Estou
cansada, mas não posso perder o ritmo.
— Precisamos jogar o dobro se quisermos vencer — concluo e
faço um sinal para que Scout se posicione em uma das linhas do
garrafão, enquanto Alex se posiciona na outra.
As jogadoras do outro time se intercalam com elas e Jo se
prepara para fazer o lance livre. O primeiro é tranquilo, ela acerta
sem muita dificuldade. Joanne está tão focada, que nem mesmo
comemora. Só se prepara para o próximo, batendo a bola, antes de
posicionar suas mãos nela e fazer o outro arremesso. Esse, já não é
tão tranquilo. No basquete, depois do time fazer seu último lance
livre, é liberado que as jogadoras voltem a se movimentar, para
tentar pegar a bola. Joanne erra a cesta, mas, por sorte, a bola para
na mão de Mia.
O problema é que ela está uma lesma e não faz nada, só fica
segurando a bola, perdendo tempo.
— Chuta! — grito, sinalizando para que ela tente fazer um
arremesso.
Mia, entretanto, não me obedece. Ela parece demorar para
processar a informação, na hora que resolve arremessar, já há uma
garota saltando junto com ela. O toco é uma das situações mais
merdas do basquete, todo mundo se sente mal quando toma um,
mas esse, em específico, é feio demais. A adversária bate na bola,
que está na mão de Mia, e a mesma vai para a mão de uma colega
do seu time. A garota dispara pela quadra, Alex até tenta
acompanhá-la, mas não tem sucesso.
O terceiro tempo acaba e nós estamos perdendo.
Puta que pariu!
Vamos para o banco e as reservas dão espaço para nos
sentarmos. Nossas garrafas de água são entregues em nossas
mãos, mas nenhuma palavra é dita. O silêncio me incomoda, porque
significa que nossas estratégias estão acabando. A treinadora Hale
está andando de um lado para o outro, ela já tentou nos fazer mudar
as táticas, mas nada tem dado certo.
Pela energia do time, percebo que todo mundo está aceitando a
derrota.
— Nós precisamos jogar com mais firmeza, Fox! Estamos
perdendo a bola por motivos bobos! Preciso da atenção de vocês!
Faltam dez minutos pro jogo acabar e estamos quinze pontos atrás!
Como querem ganhar desse jeito? — A treinadora é dura, mas nós
merecemos o esporro. Não dá para continuar assim.
Olho para Scout, Jo e Alex. Fica claro que nenhuma de nós está
satisfeita com o próprio desempenho, mas estamos menos
satisfeitas ainda com o desempenho do time como um todo.
Como eu já disse milhares de vezes, precisamos de mais
sincronia.
— Cadê a garra de vocês, Red Fox? — Abby pergunta,
chamando a atenção para si. Todas as jogadoras olham para ela,
não é comum que uma reserva, ainda mais sendo caloura, fale
alguma coisa em um momento tenso como esse.
O silêncio nos toma novamente e Abby retrai os ombros e olha
para baixo, parece estar se reprimindo por ter aberto a boca. Eu
acho que ela fez o certo. Nós queremos muito ganhar, sempre
quisemos. Não sei por que estamos desse jeito.
Bebo mais um gole de água, ajeito meu rabo de cavalo e me
levanto. Chega de me remoer. Temos pouco tempo de intervalo e
precisamos reabastecer nossa energia.
— Red Fox, quem aqui quer chegar no March Madness? —
pergunto, passando o olhar por todas as garotas. Algumas me
respondem, outras ficam quietas. — Eu não ouvi. Quem aqui quer
chegar no March Madness?
— Eu definitivamente quero — Scout fala alto, incentivando as
outras meninas a fazer o mesmo.
O coro traz uma vibração nova para o momento. A treinadora
sorri para mim, satisfeita com a atitude, mas eu sinto que ainda
precisamos de uma mudança. Encaro Mia, que está jogada no
banco, olhando para o chão, ainda desolada com o toco que tomou.
Não sei qual é a dela hoje, mas jogando mal desse jeito, não dá
para continuar a mantendo em quadra.
Chego perto da treinadora enquanto as meninas ainda estão se
incentivando.
— A Mia tá afundando o time — sussurro de uma forma que
ninguém vai nos escutar.
A treinadora sabe disso, mas não está em quadra com a gente,
não imagina o trabalho que está dando tentar cobri-la.
— Qual sua sugestão? — Madison Hale me pergunta, deixando a
decisão na minha mão.
Fito cada uma das reservas só para fingir que estou realmente
em dúvida, mas no fundo, já sei o que pode nos salvar.
— Coloque a Abby.
A treinadora arregala os olhos, surpresa com a minha decisão.
— Tem certeza? Acha que ela está pronta para aguentar a reta
final de um jogo decisivo?
Entendo sua dúvida. Abby não é uma jogadora madura, mas ela
é muito boa. Quando refinar um pouco mais suas habilidades e
ganhar mais experiência de jogo, ficará no ponto para ser uma das
titulares.
— Confio nela — falo e olho para a loira, que está conversando
com Alex, Scout e Jo, já no lugar certo para entrar em quadra.
A treinadora suspira, mas assente. Meu papel, como capitã, é
ajudá-la a tomar essas decisões difíceis, trazendo minha percepção
de quem está fazendo parte do jogo.
— Miller! — a mulher grita, as mãos apoiadas na cintura, a
postura e a voz fazendo todo o time ficar em silêncio. — Você vai
entrar no lugar da Mia — anuncia e Mia logo se levanta, indo
protestar com a treinadora.
Até saio de perto. Não posso me estressar nesse momento.
Preciso me focar em preparar Abby para entrar em quadra.
— Leah, o que você fez? — ela pergunta quando me aproximo, o
rosto em completo pânico.
Apoio as duas mãos em seus ombros, me focando somente em
seus olhos.
— Nós precisamos de alguém com a sua garra e a sua energia,
Abby. Você é uma jogadora foda e vai dar conta de ajudar a gente a
virar esse jogo. — Tento incentivá-la, porque Abby é nossa melhor
escolha. Ela só precisa acreditar nisso.
— Eu joguei pouquíssimos minutos durante o campeonato e você
quer que eu jogue o último quarto inteiro, em uma final, em um jogo
difícil pra cacete, em que estamos perdendo? — Sua indignação me
faz olhar para as nossas outras amigas. Alex, Scout e Jo entendem
que precisam se levantar e me ajudar na missão de fazer Abby
acreditar em si mesma.
— Você é a escolha certa, Miller. Precisamos de uma quinta
jogadora que arrase com a gente — fala Jo, dando um tapinha na
bunda de Abby.
Ela dá risada, consigo ver que já está amolecida só por estarmos
em volta dela, apoiando-a nesse momento decisivo.
— A Mia só fez bosta o campeonato inteiro e parecia um
fantasma em quadra. — Jo e Alex colocam a mão na boca,
espantadas por Scout ter se referido a piadinha que elas fizeram
algum tempo atrás. — Você vai se sair bem. — Afasto minhas mãos
de Abby para que Scout toque em seu ombro rapidamente.
Abby não deixa barato, ela adora encher o saco de Scout, então
agarra a cintura dela, puxando-a para um abraço.
— Sei que todo mundo está falando do seu jogo e do seu talento,
mas acho que o mais conta aqui é a conexão que você tem com a
gente — Alex fala, olhando para cada uma de nós. — Vai ser uma
honra dividir a ala com você. — Ela faz um carinho no rosto de
Abby, usando a posição das duas para declarar seu apoio.
Abby respira fundo, agradecendo a nós todas com o olhar. Seu
semblante orgulhoso me diz que está pronta para jogar.
— Então, o que me dizem? A toca das raposas vai dominar essa
quadra? — pergunto, fitando cada uma das minhas amigas.
— É agora ou nunca! — diz Joanne, estendendo a mão para
frente. Entendo, no mesmo momento, o que ela quer.
Alex, Abby, Scout e eu colocamos nossa mão em cima da dela.
Em nossa roda, trocamos um olhar em grupo e eu esqueço de tudo.
Só foco em minhas amigas, no meu time, no jogo, no esporte que
eu amo.
— Um — falo, olhando para Alex, para que ela continue.
— Dois — ela olha para Scout, para que a contagem siga.
— Três — diz Scout.
— Vai Red Fox! — Abby termina e nós erguemos nossas mãos
ao mesmo tempo.
O resto da equipe nos incentiva, gritando e batendo palmas
enquanto voltamos para a quadra. Olho para o placar, guardando
bem os números. 76 a 61.
É hora de correr atrás do prejuízo.
A partida já recomeça intensa. O outro time não está com
vontade de perder. Mas nós também não estamos.
Abby entra no ritmo rapidamente. Ela está descansada, não tinha
entrado em quadra nessa partida, então tem mais fôlego do que
todas nós. Montamos nosso primeiro ataque. Eu fico no centro,
próxima a linha dos três, Alex e Abby estão cada uma em uma
lateral, Jo está embaixo da cesta e Scout não muito longe dela,
quase dentro do garrafão. Raciocino rápido e passo a bola para
Alex, que sempre é minha parceira no início das jogadas. Ela bate a
bola, finta duas garotas e traz a bola para mim de novo. Faço um
sinal para Abby com meu olhar, indicando que faremos um corta-luz,
uma das jogadas mais comuns no basquete. Passo a bola para ela,
me aproximo e uso meu corpo para bloquear as jogadoras que
tentam marcá-la.
A jogada funciona, Abby entra no garrafão e faz uma cesta linda.
— Vamos, porra! — Scout bate palmas e troca um cumprimento
com Abby, antes de corrermos para o outro lado da quadra, para
nos defender do outro time.
Usamos uma nova estratégia e conseguimos roubar a bola. Jo
contra-ataca sozinha e faz três pontos para nós. Alex estava certa.
Nossa conexão é diferente. Sempre tive uma ligação boa com ela,
Joanne e Scout em quadra, e parece que Abby se encaixa
perfeitamente no nosso esquema.
Ela é a peça que faltava.
Demora oito minutos para que o jogo empate. Foi suado, mas
mesmo pontuando muito, ainda tivemos que segurar as outras
garotas para que elas não fizessem tantas cestas. O placar está 88
a 88. Faltam dois minutos para a final acabar. Temos dois minutos
para vencer essa partida.
Gasto toda a energia que há em meu corpo para correr pela
quadra. Cometo uma falta que leva o time adversário a ganhar um
lance livre. Elas pontuam, mas Jo consegue pegar o rebote e eu sou
a jogadora que está mais acima da quadra, ou seja, mais próxima
da nossa cesta.
Não precisamos pensar muito. A bola é passada para mim e
disparo pela quadra. Penso em fazer uma bandeja, seriam pontos
garantidos, afinal, mas quando chego na linha dos três, resolvo usar
toda a precisão que adquiri nos treinos extras. Paro de bater a bola,
a seguro e posso jurar que o tempo para. Lanço a bola na cesta,
vendo-a girar pelo ar com lentidão, até cair perfeitamente dentro da
rede.
São mais três pontos para as Red Fox. O placar agora está 91 a
89 para nós.
Os últimos minutos são como um borrão. Minhas atitudes são
automáticas, tudo o que eu quero é pontuar mais para ganharmos.
Nossas adversárias fazem uma cesta, nós logo respondemos. Elas
erram a próxima tentativa de ataque, Alex acerta um lance quase
impossível. Joanne rouba a bola antes que o outro time consiga
concluir seu ataque e faz um arremesso perfeito. Estamos vencendo
por 97 a 91.
Nos últimos segundos, estamos literalmente segurando o jogo.
Passamos a bola de uma para outra, como sempre fazemos em
situações como essa. Ficamos só aguardando o cronômetro parar
de rodar e nossa vitória ser declarada.
Quando faltam cinco segundos para o jogo acabar, passo a bola
para Abby e grito para que dê um último lance. Ela acerta uma cesta
linda e a espera eterna finalmente chega ao fim.
As Red Fox vencem o torneio das conferências por 99 a 91.
Corro na direção das meninas, é inevitável, todas nós temos a
mesma ideia, estamos eufóricas diante da vitória. Abraço as quatro
garotas que moram comigo e nos parabenizamos, enquanto
pulamos sem parar. O resto do time dispara pela quadra e se junta a
nós. Não paramos de gritar, nosso êxtase é tamanho, que quase
esquecemos de cumprimentar nossas adversárias.
A cerimônia de premiação acontece pouco tempo depois e
saímos do ginásio com um troféu em mãos e medalhas de ouro
balançando no peito.
Acho que esse é um dos dias mais felizes da minha vida.
Quando chegamos na frente do ginásio, inúmeros alunos da KSU
nos recebem. Joanne corre na direção de Anthony e pula em seu
colo, beijando-o sem parar. Eu procuro por Kahel pela multidão,
querendo um beijo — talvez não tão escandaloso — e o encontro
parado ao lado de Sebastian, Maverick, Miranda, Hailey e pasmem,
seu pai. Me aproximo com cautela, extasiada por ver um jogador
que sempre admirei vindo me assistir.
Eles me recebem com uma salva de palmas, assoviando e
comemorando nossa vitória. Por mais que eu queira beijar Kahel,
minha irmã ainda vem em primeiro lugar. Hailey tem acompanhado
minha trajetória no basquete a vida toda e sabe o quanto eu ansiava
por esse momento.
— Estou tão orgulhosa de você — ela diz enquanto me abraça,
enfiando o nariz em meu pescoço, buscando uma proteção. — Mas
ainda não te perdoei por não ter me contado sobre o Kahel.
— Me desculpe. Eu juro que ia contar, só não tinha encontrado o
momento certo — justifico de uma forma rasa, mesmo que haja
outros motivos por trás da minha omissão.
— Ele parece legal e está caidinho por você — sussurra e eu
afasto, segurando em suas mãos para vê-la.
— Que bom que, apesar do que eu tinha dito sobre ele no
passado, você tirou suas próprias conclusões. Prometo que vou te
contar cada detalhe de como isso aconteceu.
— É bom que conte. Vou cobrar. — Hailey aponta para mim, me
intimidando, e eu parto para os próximos cumprimentos.
Olho para Kahel e ele abre um sorriso feliz para mim. Antes, esse
era um sorriso que me incomodava. Agora, é um gesto que me
acalenta. O modo como abre os braços, me convidando para se
aproximar, faz com que eu me sinta amada. Quando aceito seu
convite e o abraço, tenho a confirmação de que esse é sim um dos
dias mais felizes da minha vida.
Ninguém nunca tinha me tratado dessa forma.
— Parabéns, princesa. Você foi impecável. — Ele dá um beijo na
minha testa, carinhoso ao extremo, me olhando com um orgulho que
faz meu coração errar as batidas.
Para quem era um gelo para relacionamentos, eu diria que estou
bem amolecida.
— Foi um jogo difícil, mas conseguimos! March Madness, aí
vamos nós! — comemoro, sem acreditar que esse sonho finalmente
virou realidade.
— Eu confesso que estava quase morrendo no final do jogo, mas
nunca deixei de acreditar em vocês. Aquela virada foi espetacular!
— Kahel começa a elogiar alguns dos meus lances, dá para ver,
pelo modo como fala, que não deixou de olhar para mim um minuto
sequer.
Eu não sabia que era tão gostoso ter alguém gostando tanto de
mim.
Seus amigos interrompem nosso contato para me dar parabéns,
abraço Miranda, Seb e Mav, por fim parando na figura que mais me
surpreendeu por estar aqui hoje: Jordan Williams.
— Você é uma jogadora excelente, Srta. James — ele fala,
estendendo sua mão para me cumprimentar de uma maneira formal.
Um dos ex-jogadores mais famosos da história da NBA está
dizendo que jogo bem. Pouco me importa que ele seja pai do cara
com quem estou saindo. Jordan Williams não mentiria sobre uma
coisa dessas.
— Obrigada, Sr. Williams. Eu nem acredito que você veio me ver
jogar. É uma honra te ter aqui.
— Eu disse que viria, não disse? — devolve e eu balanço a
cabeça em concordância. Ele realmente disse, eu só não botei fé. —
Confesso que fiquei surpreso por ver vocês tão próximos. Sua mãe
me contou que deixaram os tempos de inimigos para trás — ele
comenta mais para o filho, que está ao meu lado, com um dos
braços abraçando minha cintura.
— Estamos em uma trégua temporária — Kahel responde e
espremo os olhos em sua direção, me divertindo com o seu tom.
— Vou fingir que não fiquei ofendido por ter que saber isso pela
sua mãe, e não por você — ele cobra o filho, mas consigo ver que
não está bravo, que é só uma brincadeira entre eles.
Jordan tem uma postura imponente. Ele usa roupas alinhadas e
bonitas, dá para ver que são caras, mesmo que não haja nenhum
símbolo aparente. Sua pele negra é mais escura que a de Kahel,
mas os olhos têm o mesmo tom. Os dois também compartilham a
pose confiante. Mas o que mais me chama atenção, é a forma
carinhosa com que se olham e se tratam. Kahel conta a ele sobre
como nos aproximamos de uma forma natural e seu pai presta
atenção na história, faz perguntas, participa. Antes de ir embora, até
nos convida para jantar em sua casa amanhã, após a final do filho,
que ele obviamente irá assistir.
Eu não queria, mas sinto inveja da relação deles, sinto inveja da
família estruturada e dos pais incríveis que Kahel tem. Porém,
apesar do sentimento me consumir, não falo sobre isso em voz alta.
Guardo para mim e agradeço por estar tendo a oportunidade de
pelo menos ter um cara legal ao meu lado.
— Tenho um convite pra te fazer — ele fala quando jogo meus
braços em seus ombros, querendo tê-lo perto de mim.
Hailey está conversando com seus amigos, contando sobre a
fotografia e mostrando algumas fotos que fez recentemente.
— Se for relacionado a alguma festa, estou fora! Preciso
descansar, sinto que quando a adrenalina passar, vou estar toda
dolorida. — E não estou mentindo. Só quero me deitar.
Kahel dá risada e sua mão vai direto para o meu cabelo. Estou
com ele solto e molhado, o que dá a deixa para que ele coloque
uma mecha atrás da minha orelha.
— Meu plano é levar a Hailey pra casa dela e você pra minha.
Podemos passar a noite toda deitados, vendo algum filme. Também
preciso descansar, amanhã tenho uma final pra vencer.
A confiança com que faz o convite me abala.
— Filme, é? — questiono, sabendo muito bem que não vamos
ver filme nenhum.
— Interprete da forma que quiser — ele rebate, tentando parecer
inocente, mas com um leve olhar malicioso.
Passar a noite com Kahel sem dúvidas é um passo gigante em
nosso relacionamento, mas me sinto pronta para dá-lo. O que mais
me deixa preocupada, na verdade, é o fato de ele querer levar
Hailey para casa. Seguindo com esse plano, ele verá o bairro e a
casa onde morei a vida toda.
Olho para minha irmã mais uma vez, animada e sorridente na
conversa com os amigos de Kahel. É tão bom vê-la interagindo com
esse lado da minha vida, ver como fica à vontade, mesmo com
pessoas que não conhece direito.
Percebo o contato de Kahel em minha pele, a firmeza com que
abraça minha cintura. Temos uma relação sólida. Sou parte do seu
grupo, da sua convivência. Não preciso ficar constrangida com o
meu passado. Tudo o que passei me trouxe até aqui. É só isso que
importa.
— Ok, vamos pra sua casa — aceito e recebo não só mais um
sorriso alegre, como também um olhar repleto de segundas
intenções.
Seu amor está me assustando
Ninguém jamais se importou comigo
Tanto quanto você se importa

Scary Love – The Neighbourhood

Descobri que a cama de Kahel se tornou um dos meus lugares


favoritos no mundo. Deitada de frente para ele, com seu braço
envolvendo minha cintura e nossos narizes quase se encostando,
me sinto segura. Seus olhos castanhos escaneiam cada detalhe do
meu rosto, enquanto os dedos passeiam pelas minhas sardas.
Consigo sentir o carinho que tem por mim através do seu toque. Eu
me arrepio com nosso contato, com nossa proximidade, com essa
sensação nova que ele trouxe para o meu coração. Essa sensação
de amor. De paixão. De estar apaixonada.
Estou completamente imersa no universo que criamos para nós
dois.
— No que está pensando, princesa? — ele pergunta e seu
carinho é transferido para o meu cabelo.
— No quanto você mexe comigo. No quanto nosso
relacionamento é gostoso. No quanto meu coração parece gostar de
você — admito, escolhendo deixar o medo que eu sentia de me
envolver com Kahel para trás.
Ele sorri para o que digo.
— Meu coração também gosta bastante de você. — Sua réplica
faz o sentimento se intensificar dentro de mim. Eu não sabia o que
era estar apaixonada até ouvi-lo, até perceber o quanto ele se
importa comigo. — E meu coração e minha mente acham que
podemos fazer as coisas ficarem mais sérias.
Espremo os olhos em sua direção, sem entender o que quer
dizer.
— Quero ser seu namorado, Leah James.
A segurança com que ele diz essa frase mostra que tem certeza
do que quer. Eu não imaginei que fossemos chegar nesse ponto,
quando nos beijamos pela primeira vez. Kahel não me parecia o
cara que namorava, nós tínhamos uma relação conturbada, não
coloquei fé que iríamos durar. Achei que ele me irritaria e que
brigaríamos em menos de um mês. A parte das brigas e da irritação,
eu acertei. Ele continua sendo irritante e continua me achando
chata, mas aprendemos a conviver com as partes do outro que não
gostamos. Ainda brigamos por motivos banais, mas agora
resolvemos as intrigas com facilidade. Descobrimos que, de alguma
forma, nos completamos. Ele, com seu jeito mais solto e leve. Eu,
com meu jeito mais fechado e sério. Juntos, achamos uma forma de
nos equilibrar.
— Então seja meu namorado, Kahel Williams.
Ele entende minha resposta como uma deixa para me beijar.
Diferente da maioria dos nossos momentos juntos, temos um beijo
delicado. Um toque de lábios suave, uma troca de olhares
significativos, um sorriso sincero se formando em nossos rostos.
Espero que Kahel avance e tente me tocar, mas ele não o faz.
Pelo olhar que me lança, percebo que ainda quer conversar sobre
alguma coisa.
— O que foi? Ficou chocado com o meu bairro? — questiono,
sem vontade de esperar que ele tome uma atitude e me diga o que
o incomoda.
Antes de virmos para sua casa, fomos juntos levar Hailey para
casa. Ele viu o lar onde cresci, conheceu a pista de skate em que eu
passava boa parte do meu tempo, tudo graças a minha irmãzinha e
seu apetite por fofocas.
— Claro que não, Leah. Você é a pessoa que mais se importa
com isso.
Sei que ele tem razão. Eu me importo muito com o que deixei
para trás. É por culpa do meu relacionamento com Axel e dos
problemas com a minha mãe, mas também, é porque, lá no fundo,
eu tenho ressentimentos em relação à minha infância. Quando vejo
a vida que ele tem e a sua estrutura familiar, sinto inveja. Eu recebia
amor na mesma proporção que descobria problemas. Paz não era
uma coisa que reinava no meu lar.
— Meu passado me incomoda. Esse lado da minha vida me
incomoda. — É tudo o que consigo dizer, mesmo que, em minha
mente, pense em muito mais.
Kahel assente devagar, mas eu sinto que ele quer fazer mais
perguntas, se aprofundar mais na minha história. Apesar de uma
parte minha querer que ele conheça mais sobre mim, até para
entender alguns dos meus comportamentos, tenho um receio
gigante de contar a ele todos os detalhes complicados da minha
vida.
— Hailey mora só com a sua mãe? — questiona como se
sentisse meu medo, mas quisesse me ajudar a soltar as
informações aos poucos.
Suspiro, me preparando psicologicamente para abrir pelo menos
uma parte do meu coração.
— Sim, mas tento ir até lá pelo menos uma vez na semana, para
ver como estão as coisas. Tento sempre ajudá-las com o que for
preciso.
— Você é uma irmã e uma filha maravilhosa, Leah. Dá para ver
que coloca sua família sempre em primeiro lugar. — Coloco minha
irmã, é o que eu deveria dizer para corrigi-lo. Entretanto, fico quieta,
deixo que ele conclua que sou próxima da minha mãe. — Andei
pensando sobre o estágio.
Reviro os olhos quando o escuto. Kahel não desiste.
— Eu não vou aceitar a proposta da sua mãe.
— Sei que não. Tenho outra ideia. — Estranho, fazendo uma
careta para o que ele diz. — Você pode se inscrever para uma vaga
no site da empresa. Vai ter que passar pelo processo seletivo e uma
entrevista, mas é uma forma honesta de entrar na empresa.
— Uma entrevista com a sua mãe, eu suponho?
— Acha que ela tem tempo pra entrevistar estagiários? Minha
mãe tem uma equipe de contratação. Ela só vai saber que você
entrou na empresa quando for contratada e começar a trabalhar
com ela.
Sua proposta sem dúvida é tentadora. Eu adorei a empresa de
Karen, fora que ela é muito aberta e ouviu todas as minhas ideias.
Além de trabalhar na mesma área que eu, a mãe de Kahel também
adora mexer com projetos sociais, coisa que eu gostaria muito de
fazer no futuro.
— Ok, vamos supor que eu tope me inscrever. Você conseguiria
manter isso em segredo? Não quero que sua mãe saiba e tente
driblar o sistema por minha causa.
— Se você não quer que eu conte, não vou. As minhas intenções
aqui são as melhores.
Não tenho dúvidas disso. Kahel entendeu que tenho uma vida
corrida demais e que preciso diminuir o ritmo. Esse estágio teria
horas mais flexíveis e um salário melhor. Ajudaria bastante na minha
rotina.
— Então parece que vou me inscrever para um novo emprego —
anuncio, sentindo que essa é a decisão certa.
Kahel comemora, batendo palmas animadas, antes de puxar meu
rosto para mais um beijo. Devo admitir que suas ideias não são tão
ruins. Eu achava que ele era só um jogador mimadinho, mas Kahel
tem conseguido mudar o conceito que eu tinha formado a seu
respeito. Gosto do fato de ele ter se incomodado com a vida que
levo, de querer que as coisas melhorem para mim. Isso significa que
ele se importa não só com o meu bem-estar agora, mas também no
futuro. É como eu sempre gosto de dizer: nossas decisões da
juventude implicam em nossa vida adulta. Lembro de ter dito essa
frase a Kahel, quando ainda não nos gostávamos. Fico feliz por ele
ter absorvido o que eu quis dizer e estar aplicando essa teoria da
melhor forma. Já senti uma mudança em seu comportamento. É
nítido que Kahel está mais maduro e responsável.
Ele trouxe leveza para minha vida, eu trouxe maturidade para a
sua.
— Agora que você concordou comigo pela primeira vez na vida
— ele brinca e eu o fuzilo, até parece que sou difícil assim. — Quero
te perguntar sobre uma coisa. Uma situação envolvendo um skate,
na verdade.
Pelo seu olhar, consigo entender ao que se refere. Só houve uma
única vez em que minha vida de skatista e Kahel se esbarraram. Eu
não conversei com ele sobre assunto, sinto raiva só de pensar
nesse dia, mas há uma outra pessoa que sabe sobre o
acontecimento e que com certeza teria a língua solta o suficiente
para contar a ele.
— Hailey — digo e Kahel assente, sem disfarçar.
Eu gostaria de dizer que vou matá-la por ter aberto a boca. O
problema é que não posso, porque estou em dívida com ela por não
ter contado sobre meu envolvimento com Kahel. Pelo menos, agora
estamos quites.
— Não foi muito legal descobrir o motivo do ódio que minha
namorada sentia por mim por terceiros. — Kahel não parece
realmente incomodado, mas ainda assim, sei que seu comentário
tem um fundo de verdade.
Ele espera que eu diga alguma coisa, porém, não sei por onde
começar.
— O primeiro ano da faculdade foi como um novo ciclo para mim.
Eu tinha acabado de perder o meu pai, estava querendo uma
mudança de vida. — Não conto que minha mãe estava me dando
trabalho por causa do alcoolismo, não conto que eu quase desisti de
sair de casa para continuar cuidando de Hailey, não conto o quanto
sofri por estar a deixando para trás, mesmo que fosse para buscar
um futuro melhor para nós. — O skate sempre foi parte da nossa
relação. Foi meu pai que me ensinou a andar. Era nas pistas que
tínhamos conexão, era o nosso momento, o nosso lugar. Aquele
skate, em específico, tinha sido o último presente que ele me deu.
Eu planejava usá-lo para ir de um prédio até o outro na faculdade,
para me locomover até o trabalho, tinha um plano traçado em minha
mente. — Kahel balança a cabeça de forma debochada, nada
surpreso por eu já ter mania de planejar tudo e mais um pouco
desde o início da vida universitária. Gosto do fato de ele me fazer rir,
mesmo que a história não seja feliz. Ele traz uma leveza para o
momento sério, como disse que faria. — E aí você apareceu. Eu
não te vi até estarmos no chão. Fiquei puta por ter caído e mais puta
ainda quando você falou que entrou no meu caminho de propósito
porque tinha achado minha bunda bonita. — Kahel até fecha os
olhos quando escuta o próprio comentário. Eu sempre disse que ele
era um babaca. Não odeio as pessoas de forma aleatória. Sempre
tem que ter um motivo. — A queda doeu, mas ver meu skate
quebrado destruiu meu coração. Eu estava fragilizada e foi como se
aquele acidente levasse embora o último pedacinho do meu pai.
Sinto uma vontade tremenda de chorar. As lágrimas ameaçam
sair, mas respiro fundo e reprimo o choro. Me recuso a fraquejar por
causa disso. O acontecimento pode ter me ferido, mas ficou para
trás.
— Me desculpe por ter entrado no seu caminho, princesa —
Kahel fala com delicadeza, voltando a fazer carinho em meu rosto.
Consigo ver que fica chateado com a história, não era minha ideia
trazer um assunto desses para nossa primeira noite dormindo
juntos.
— Nunca se desculpe por isso. Você foi uma das melhores coisas
que me aconteceu.
Se ele não tivesse esbarrado em mim naquele dia, eu nunca teria
o odiado, nós não teríamos passado os últimos dois anos discutindo
por aí, provavelmente não teríamos construído a relação que temos
agora. Tudo seria diferente.
Kahel entrelaça sua mão na minha, embaixo da coberta, me
dando uma resposta silenciosa. Seus olhos ainda estão vidrados
nos meus, nossos corpos próximos, mas não colados. Estou só
esperando o momento em que vamos mudar esse pequeno detalhe.
— Você não anda mais de skate? — pergunta, apesar de eu ter
certeza de que imagina qual será a resposta.
Nego com a cabeça.
— Quando meu skate quebrou, eu não tinha grana pra comprar
outro. Acabei desencanando desse esporte e me focando só no
basquete. Fora que o skate traz toda uma memória afetiva que dói
no fundo da minha alma — confesso, me abrindo um pouco mais.
Kahel fica pensativo, mesmo olhando para mim, percebo que está
com a mente em outro lugar. — Podemos parar de falar de coisas
tristes agora? Achei que seu convite pra passar a noite na sua casa
traria outro tipo de conversa.
Minha frase carregada de duplo sentido traz Kahel de volta para a
realidade.
— O que você tem em mente, princesa? Lembre que seus
desejos são sempre uma ordem. — Ele aperta minha mão com mais
força, deixando claro que está a bordo de qualquer vontade que eu
tenha.
Já estamos nos tocando há algum tempo. Kahel me transmitiu
confiança e mostrou o quanto se importa com o meu prazer. Eu tive
vontade de avançar, mas ele pediu para segurarmos um pouco
mais, querendo se certificar de que eu realmente estivesse pronta.
Eu tinha certeza de que queria tentar ousar um pouco mais hoje
quando o convite para dormirmos juntos foi feito. Parece besteira,
porém, depois das conversas sinceras que tivemos e da nossa
decisão de nos tornarmos namorados, tenho mais convicção ainda
de que preciso de mais.
— Quero ir até o final. — Meu anúncio é acompanhado de uma
aproximação. Tomo seus lábios, esquecendo da timidez, ignorando
minha falta de experiência, deixando que minha vontade comande.
Kahel agarra minha cintura com força, me conduzindo até que eu
esteja deitada em cima dele. Nossos corpos estão colados agora.
Nossas virilhas estão tão grudadas que sinto seu pau duro. Para
minha surpresa, isso não me apavora ou me traz algum tipo de
lembrança ruim. Muito pelo contrário. Eu me esfrego nele, sentindo
que estou molhada e que o contato vai aliviar essa sensação louca
que me consome.
Suas mãos vão para a minha bunda, aumentando meu
desespero. Percebo que Kahel também está tentando amplificar o
contato entre nós, porque seu quadril não para de vir na direção do
meu. Eu sinto que estou prestes a ter um treco, então paro de beijá-
lo para arrancar minha camiseta. Jogo a peça em qualquer canto e
Kahel segura minha cintura, enquanto estou montada nele, apenas
de sutiã.
— Você é tão gostosa, capitã. — A malícia da sua frase me faz
morder o lábio inferior.
Kahel passa a mão pela minha barriga, levando-as até meus
seios. O contato começa leve, mas vai se intensificando à medida
que percebe minhas reações positivas. Eu desisto de ficar de sutiã e
levo minhas mãos para o fecho, arrancando-o com velocidade.
O olhar dele, quando percebe minha atitude, é de puro choque.
Kahel está adorando minha confiança e sabe que só estou
confortável dessa forma por sua causa. Para um cara como ele, que
se acha o maioral, ter esse reconhecimento é gratificante.
Acho que é por isso que ele inverte nossas posições e me joga
na cama com certa brutalidade. Sua camiseta é arrancada
rapidamente e sou abençoada pela visão do seu abdômen malhado.
A pele negra praticamente brilha na meia-luz do quarto, os
gominhos sorriem para mim e sinto uma vontade tremenda de tocar
em seus braços ridiculamente fortes.
— Você é tão gostoso, capitão — devolvo seu elogio e Kahel
solta uma risada, balançando a cabeça em negação.
— Não fale essas coisas pra mim, princesa. Desse jeito, vai ficar
difícil de me controlar — ele fala enquanto se posiciona em cima de
mim, os joelhos apoiados no colchão, ao lado do meu quadril, a
virilha outra vez em contato com a minha.
— Eu disse que quero ir até o final, Kahel. Não estava brincando
— enfatizo minha vontade mais uma vez, porque sei o quanto ele
está receoso, preocupado com as minhas reações.
— Como quiser.
Agora, ele entende a deixa. Suas mãos vão para os meus seios,
acariciando minha pele, apertando de leve meus mamilos. Eu gemo
diante do toque, acho que qualquer coisa que ele vá fazer me fará
gemer. Estou completamente derretida por ele.
— Gosta disso? — ele pergunta quando suas mãos tomam meus
seios por completo, apertando-os enquanto arremete o quadril na
direção do meu. Nesse momento, eu só queria que nossas calças
não existissem. — E disso? — Seu tronco vai para a frente e ele
beija o vão entre meus seios, enquanto aperta os dois, formando um
espaço que encaixa perfeitamente seu rosto.
Assinto, agarrando o lençol, consumida por um tesão que eu
nunca senti na vida. Não consigo formular uma frase para respondê-
lo. Meu cérebro só sabe produzir gemidos.
Kahel tem consciência de que está me enlouquecendo. Não só
têm, como está adorando ser o motivo do meu colapso. As batidas
do meu coração estão completamente descompassadas e nós ainda
nem tiramos todas as roupas.
Como se lesse meus pensamentos, Kahel vai descendo seus
beijos pela minha barriga, segurando minha cintura com firmeza no
processo. Seus lábios chegam próximos a calça, mas antes de
abaixá-la, ele me olha, como se pedisse minha autorização final.
Não pestanejo, apenas assinto, indicando que ele continue.
Poucos segundos depois, estou completamente exposta na frente
dele. O jeito com que Kahel me olha faz com que eu me sinta a
mulher mais bonita do mundo. Quando ele leva os lábios para as
minhas coxas e vai beijando cada pedaço da minha pele, eu me
sinto sexy, desejada. Quase imploro para que ele me toque o mais
rápido possível.
Entretanto, não preciso, porque Kahel está tão sedento quanto
eu. A questão é que ele sabe se controlar melhor, porque quer fazer
esse momento ser especial para mim.
Demora até que ele chegue à minha boceta. Mas quando lambe
meu clitóris, preciso morder meu lábio com força para não gritar.
Sinto que Kahel ri contra minha pele, se divertindo com a reação
honesta que tive. Ele faz alguns movimentos com a língua que
fazem meu corpo tremer. Quando sinto que estou prestes a derreter,
porém, Kahel se afasta.
Estou quase reclamando quando ele lambe dois de seus dedos e
os leva para dentro de mim. Aperto-os com força quando sua língua
resolve acompanhar os movimentos de vai e vem. Agora, Kahel
permite que eu chegue ao meu ápice e goze em seus dedos.
Enquanto me recupero, ele se levanta e vai até sua mesa de
cabeceira, voltando com uma camisinha em mãos. Sua calça de
moletom estava marcando seu pau e me deu uma ideia de seu
comprimento. Mas quando ele fica nu e se ajoelha de novo à minha
frente, arregalo os olhos. De repente, sinto uma vontade imensa de
tocá-lo.
Kahel está abrindo a embalagem com os dentes quando me
sento. Minha mão é atraída para o seu pau majestoso e eu o toco
devagar, masturbando-o com calma. Sinto que o ambiente está
quieto demais e quando vejo, Kahel está travado, com a camisinha
na mão, apenas assistindo enquanto lhe entrego prazer.
Acelero meus movimentos e lambo a cabeça do seu pau,
sentindo seu gosto. Kahel treme e fecha os olhos, extasiado com
esse mero toque. Estou pronta para mais, quando ele segura meu
queixo, me fitando diretamente.
— Ainda quero foder sua boquinha, princesa, mas se continuar
com o meu pau na boca, me olhando desse jeito, não vou aguentar.
E hoje preciso estar dentro de você.
Ergo minhas mãos, me rendendo ao seu pedido. Volto a me
deitar, tocando em meus seios, abrindo minhas pernas para ele.
— As suas ordens, capitão.
Minha frase faz com que Kahel vista a camisinha em segundos.
Ele se posiciona à minha frente e traz minhas pernas para o lado do
seu quadril. Sinto quando posiciona a cabeça na minha entrada,
mas antes de meter, seu dedo indicador faz movimentos circulares
no meu clitóris, me fazendo relaxar.
Faz muito tempo que não transo, mas meu corpo até que
responde bem a investida de Kahel. Há uma certa sensação de
ardor, quase como se eu fosse virgem de novo, mas ela passa
quando Kahel tira tudo e me fode outra vez. Ele começa com
movimentos mais lentos, toma cuidado para entrar, e nunca sai
totalmente. Olho para o seu rosto, percebendo o quanto está
concentrado para não fazer nada de errado e me machucar.
— Kahel, juro que estou bem. Não precisa se segurar tanto assim
— falo, sendo sincera, querendo que ele curta o momento junto
comigo.
Entendendo minha deixa, ele puxa minhas pernas até que eu
cruze meus pés atrás das suas costas. Kahel traz o tronco para
frente, as mãos se apoiam ao lado da minha cabeça. Nossa
proximidade faz com que essa transa seja ainda mais especial. Não
são só nossos corpos que estão conectados, estamos
compartilhando o mesmo ar, nossos corações estão
descompassados, buscando bater no mesmo ritmo. Nossos lábios
se procuram no mesmo momento. O beijo que trocamos é sem
dúvidas o mais significativo da nossa história.
Aqui, nós não somos nada além de Leah e Kahel. Duas pessoas
que tiveram um início conturbado, mas agora estão envolvidas
romanticamente, escolhendo viver uma história juntos.
Eu não menti quando disse que ele é a parte mais leve da minha
vida. A sensação de paz que Kahel me transmite, mesmo em um
momento que, teoricamente, seria destinado somente à luxúria, me
mostra que, ao dar uma chance para nós, escolhi o caminho certo,
escolhi o caminho que era para ser meu.
Nossa aproximação aconteceu por acaso, mas escolhemos estar
juntos, escolhemos tentar, escolhemos evoluir nossa relação para
um namoro.
Acho que isso faz com que nossa conexão aumente. Eu não
sabia que sexo podia ser tão bom até dividir a cama com Kahel. Ele
não é só carinhoso, como é perceptivo, e inverte nossas posições,
para que eu cavalgue em cima dele, tendo meu próprio momento de
controle.
Afinal, nós somos os capitães. Se tem uma coisa que gostamos,
é de estar no controle.
Apoio as mãos em seu peitoral enquanto subo e desço em seu
pau com a maior velocidade que consigo manter. Estou quase
gozando, mas vejo que Kahel chegará lá mais rápido. Deixo que ele
faça parte dos movimentos e acelere as estocadas, me fodendo até
que desmonte na camisinha. Ele continua dentro de mim enquanto
toca meu clitóris com rapidez, percebendo que estou próxima
demais de gozar. É impressionante como, em poucos segundos, ele
consegue o que desejamos e me faz atingir o ápice do meu prazer
outra vez.
Caio ao seu lado na cama, derrotada pelo tanto que fomos
frenéticos.
— Isso foi... — fico sem palavras.
— Indescritível, princesa — ele completa e me olha, nós dois
estamos deitados de barriga para cima, ofegantes, suados, mas
dando risada. — Mal posso esperar pela próxima.
— Me dê alguns minutos — peço, precisando me recuperar.
— Só alguns minutos? — Kahel pergunta com a testa franzida,
como se estivesse duvidando de mim.
Viro de lado, apoiando meu cotovelo no colchão para fuzilá-lo
com mais propriedade.
— Esqueceu que sou atleta, bonitão? Isso aqui foi só um
aquecimento.
Kahel ri do meu tom e me puxa pela cintura, até que nossos
corpos estejam grudados outra vez. Me aconchego ao seu lado,
apoiando a cabeça em seu peito, sentindo seu coração bater forte
por mim.
— Você não me deixa esquecer, esfregando seu título de campeã
na minha cara — brinca e eu dou de ombros, as Red Fox ganharam
e eu vou comemorar nossa vitória pelo menos até o início do March
Madness.
— Se vocês vencerem amanhã, prometo que também te deixo se
vangloriar um pouquinho.
— Só um pouquinho?
— Não aturo seu ego de capitão por muito tempo.
Continuamos nos provocando, abraçados e nus, em um momento
tão nosso, até pegarmos no sono.
Dormindo nos braços de Kahel, após nossa noite de amor, eu
tenho a certeza de que independentemente do que acontecer na
minha vida, ele estará ao meu lado. Nosso relacionamento não é
frágil. Nossa conexão não é frágil. Nosso amor não é frágil. Às
vezes ainda parece surreal dizer isso em voz alta, mas nós estamos
apaixonados um pelo outro. É um fato.
Ei, garota com os olhos vazios
Se abra, você sabe que você fica mais bonita quando sorri
Olhe em volta, é uma vida decente
Você sente demais, levante seus pés e faça uso do seu tempo

Easier Said – Alessia Cara

Odeio admitir, mas os Tigers tiveram um jogo lindo. Sem grandes


dificuldades e perrengues, com um placar esmagador contra seus
adversários. Kahel me obrigou a usar uma camiseta do time com
seu número estampado nas costas, para mostrar para todo mundo
que sou sua garota. Eu aceitei, mas com a condição de que ele
usaria uma camiseta das Red Fox com o meu número estampado
no primeiro jogo do March Madness. Kahel nem pestanejou, sua
vontade de se vangloriar para o mundo é sempre grande demais
para que recuse uma coisa dessas.
Depois do jogo, fomos almoçar na casa dos seus pais. Karen e
Jordan quase pularam de alegria quando souberam que estávamos
namorando oficialmente. Ela me agradeceu, em segredo, por ter
ajudado seu filho a sossegar. Lilly, por outro lado, me desejou boa
sorte e muita paciência para aturar Kahel.
Os Williams são incríveis. Simplesmente não tenho palavras para
descrever o tanto de sentimentos bons que eles me transmitiram
nas horas que passamos juntos. Eu me senti acolhida, me senti
parte da família, como se já os conhecesse há anos. Eles me
incluíram nos assuntos, fizeram perguntas sobre mim, fizeram com
que eu me sentisse à vontade. Fora que o amor que compartilham
ameaçou me fazer chorar de emoção. Eles são uma família. Uma
família de verdade.
Ficamos na casa dos pais de Kahel até o final da tarde, quando
ele me levou para minha casa para que eu me arrumasse, porque
tínhamos combinado com as Fox e os Tigers de comemorar ambas
as vitórias no Koala’s.
A maioria dos garotos do time de Kahel está de pé, flertando com
outras pessoas e até com algumas meninas do meu time. Já minhas
amigas — meu squad, como Jo tem gostado de chamar — estão
sentadas comigo em uma mesa nos fundos. Os únicos intrusos são
Anthony e Kahel.
— A melhor parte dessa final não foi a vitória, foi te ver torcendo
por mim com a minha camiseta — ele sussurra no meu ouvido com
uma voz sexy, arrepiando meu corpo inteiro.
— Sério? Espera que eu acredite que você preferiu me ver ao
ganhar? — devolvo, me virando para olhá-lo, mantendo minha
marra.
Kahel está com o quadril grudado no meu, o braço enlaçando
minha cintura. Eu gosto dessa sua atitude de querer me manter por
perto. Sinto que depois que transamos, passamos a necessitar
dessa proximidade.
— Vamos dizer que os dois acontecimentos foram igualmente
importantes — responde de uma forma mais sincera, deixando sua
pose de galanteador de lado para me lançar um sorriso amoroso.
Não resisto e roubo um beijo de seus lábios. Só o mero contato
das nossas bocas faz meu corpo ter ideias erradas. Eu montaria em
seu colo agora mesmo e levaria esse beijo para outro patamar, se
estivéssemos sozinhos.
O problema é que não estamos, e quando nos separamos, vejo
que minhas amigas estão me fitando com olhares maliciosos.
Que alguém me proteja quando elas começarem a perguntar
sobre minha aproximação com Kahel.
— Por que você não vai pegar uma bebida pra mim? — dou a
ideia a Kahel, tendo a certeza de que elas não irão segurar a língua.
Ele olha para as meninas de relance e quando volta a me
encarar, percebo que entendeu o motivo do meu pedido.
— Um suco? Ou um drink sem álcool? — pergunta, deixando um
beijo em meu ombro, coberto pela jaqueta jeans que uso.
— Gosto da ideia do drink sem álcool. Obrigada. — Sorrio para
ele e ganho um beijo na boca, antes de ele se levantar.
Assim que Kahel sai, os sorrisos de Abby, Jo, Alex e Scout se
amplificam de uma forma assustadora.
— Então... — Alex começa, os olhos brilhando de ansiedade para
me ouvir, esperando que eu diga alguma coisa.
Não tenho tempo de sequer pensar, porque Joanne se antecipa:
— Vocês treparam, né?
— A sua delicadeza me impressiona todos os dias — comenta
Scout, balançando a cabeça em negação.
As meninas me encaram, esperando que eu diga alguma coisa, e
eu até quero. Nossa proximidade, nos últimos tempos, tem
aumentado mais e mais. Depois da conexão que tivemos no jogo de
ontem, sei que a escolha certa é contar sobre a noite que tive com
Kahel. O problema é que Anthony está na mesa, e por mais que eu
goste dele, não sinto coragem de expor minha vida pessoal ao
namorado da minha amiga.
Joanne percebe que estou olhando demais para ele e entende a
deixa.
— Lindo, por que você não pede uma rodada de tequila pra nós?
Ainda não brindamos nossa vitória — Jo sugere e Anthony se
levanta na hora, ajeitando seus óculos antes de empurrar a cadeira
em que está para trás. — Quatro tequilas e um copo com água com
gás pra Leah participar.
Agradeço-a com um sorriso, feliz por ter se importado comigo
dessa forma.
— Os shots são por minha conta, Fox — diz Anthony e nós
agradecemos e suspiramos em uníssono. Ele é fofo demais.
— Pronto, ele saiu, agora conta tudo! — pede Alex, com a voz
desesperada, os cachos balançando do tanto que ela se mexe.
Suspiro e me ajeito na cadeira, me preparando para compartilhar
tudo o que aconteceu. Nunca pensei que eu estaria sentada em
uma mesa de um bar, com as quatro garotas com quem moro,
ansiosa para contar a elas sobre minha transa com Kahel Williams.
É um cenário surreal.
— Bom, depois do jogo, ele me convidou pra ir até a casa dele
ver um filme.
— A jogada clássica — comenta Abby, esboçando um meio
sorriso, entretida na história.
— Nós conversamos muito. Falamos sobre tudo e sobre nada ao
mesmo tempo. Foi tão gostoso, me senti tão confiante, tão bem
perto dele. — Eu não me canso de suspirar, de relembrar o quanto
essa noite foi especial para mim. — Já tínhamos nos tocado, mas
não tinha passado disso.
— O Kahel tem cara de quem fode gostoso e soca forte — diz
Joanne, fazendo Abby soltar uma gargalhada, Alex enfiar o rosto
entre as mãos e Scout amassar um guardanapo e jogar na cabeça
dela.
— Joanne! — a repreendo e a loira ergue as mãos, hoje seu
cabelo está preso em um rabo de cavalo alto, não dá para esconder
sua expressão safada. Bem, não que ela queira esconder. — Ele
fode gostoso mesmo. — Acabo admitindo, porque já cheguei até
aqui e sinto que tenho liberdade o suficiente para falar algo desse
tipo a elas.
A questão é que as quatro fazem um escândalo, gritando,
batendo na mesa, chamando a atenção do bar inteiro para nós. Eu
me encolho na cadeira, querendo sumir, apesar de estar me
divertindo com a animação que exibem.
— Vocês vão me matar de vergonha. — Apoio as mãos nas
bochechas, que estão pegando fogo. Já devo estar parecendo um
pimentão.
Por sorte, em uma olhada rápida, vejo que Kahel está com meu
drink sem álcool na mão, mas parou em uma rodinha para
conversar com seus amigos. Espero que, pelo menos por enquanto,
ele fique por lá.
— Em resumo, foi bom? — Scout pergunta.
— Foi ótimo. E vamos dizer que aconteceu mais uma coisa
importante... — Jogo no ar, sabendo que elas vão arregalar os
olhos, implorando para que eu continue. — Decidimos oficializar as
coisas.
— Meu Deus, vocês estão namorando? — Abby indaga,
boquiaberta.
— Sim — respondo, assentindo repetidamente, alegre demais
para controlar meu sorriso.
— Ah, nossos capitães juntinhos! — Joanne faz um coração com
as mãos.
— Estou muito feliz por você, Leah — diz Alex, segurando minha
mão em cima da mesa. Eu sei que ela não se refere somente ao
pedido de namoro, mas também ao sexo, ao fato de eu ter
conseguido curtir esse momento. Agradeço com um aceno, porque
sei que Alex vai entender esse simples gesto como uma referência à
nossa conversa, ao segredo que compartilhamos.
— Eu realmente não coloquei fé na relação de vocês. Parece que
me enganei. — Scout é sincera e entendo sua posição. Eu mesma
não achei que meu envolvimento com Kahel fosse dar em algum
lugar.
— Somando nossa vitória com o namoro, a transa... Nossa,
nunca tive um dia tão bom! — confesso, imaginando que elas
tenham sentido o mesmo, afinal, nosso momento em quadra foi
épico.
— Durante o jogo, achei que podíamos perder, mas quando a
Abby entrou, nossa, que energia diferente! — Joanne diz, deixando
a postura mais séria, como acontece em momentos raros, quando
tocamos em assuntos mais delicados.
— Foi incrível mesmo, nós nos encaixamos perfeitamente — fala
Alex e todas concordam.
— Fora que nos livrar da Mia foi um bônus à parte. Ela joga bem,
mas pelo amor de Deus, uma hora não trabalha em equipe, na outra
parece morta em quadra! — A braveza de Scout faz uma série de
risadas ecoar pela mesa. Até ela ri, coisa rara de se ver.
— A treinadora não falou com você, Abby? Porque, por mim,
você já pode entrar no March Madness como titular — dou minha
opinião. A conexão que tivemos não é fácil assim de se encontrar.
Ela olha para as mãos, as unhas estão pintadas de rosa e
parecem ser uma boa distração. Toco em sua coxa por baixo da
mesa e Abby me olha. Sinalizo que pode contar qualquer coisa a
nós, que não vamos julgá-la, independentemente do que esteja
passando em sua mente.
— Ela falou comigo, sim. Disse que eu poderia ter mais tempo de
quadra, mas não me ofereceu a vaga de titular. — Fico surpresa
com o que ela diz, achei que a treinadora quisesse alguém que se
entrosasse melhor com o resto das meninas. — Jogo desde
sempre, mas só comecei a levar o esporte a sério no colegial. Não
estou no mesmo nível de vocês.
— Você é ótima, Abby — Alex fala.
Ela olha para a amiga com desconfiança, balançando a cabeça
em negação em seguida.
— Eu sei que não sou péssima. Só não me sinto pronta ainda.
Preciso treinar mais. — A voz de Abby até fraqueja, vejo que isso a
fere e que não é uma decisão fácil. É óbvio que ela quer entrar para
as titulares, mas está escolhendo dar esse passo somente quando
estiver realmente confiante.
— Admiro sua atitude, Miller. E quero dizer, como capitã, que
estou só esperando seu momento de brilhar. Porque, não tenha
dúvidas, esse momento vai chegar — afirmo, convicta de que essa
não é uma realidade distante.
— Só não demore, por favor, ninguém aguenta mais a Mia —
Alex solta com tanta sinceridade que todas nós a encaramos,
chocadas.
— Quem diria, a Sunshine consegue falar mal de alguém —
Scout provoca, vejo em seus olhos que está se divertindo com
nosso diálogo. Para quem me zombava por estar dando abertura
para elas, Scout, dentro do parâmetro Scout de ser, está bem
empolgada.
— Não estou falando mal, só expondo uma verdade, Zangado.
Arregalo os olhos e até abro a boca quando vejo Alex usando o
apelido que Joanne deu para Scout. Percebo que ela não falou na
maldade, é mesmo uma zoeira entre nós, mas não deixa de ser
divertido ver uma garota fofa como Alex agindo dessa forma com a
durona do grupo.
— Leah está se abrindo, a Alex falando desse jeito, a Joanne
namorando... nós estamos passando tempo demais juntas e
pegando manias uma da outra. Acho melhor darmos um basta —
Scout constata, mas sei que não quer nada disso.
— Isso significa que vai chegar o momento em que você vai amar
abraçar a gente! — Abby se joga em cima de Scout, é
impressionante como elas sempre sentam lado a lado e a loira tenta
manter algum contato físico carinhoso com ela.
— Qual é o seu problema? Por que gosta tanto de me abraçar?
Jesus! — Scout tenta se desvencilhar, mas Abby é tão forte quanto
ela e não para de esmagá-la em seus braços. Por fim, Scout para
de lutar e apenas fica parada, esperando que Abby se canse e a
solte.
É uma cena cômica, eu e Alex ficamos nos segurando para não
rir, Joanne pega seu celular e começa a tirar fotos das duas. Nossos
celulares vibram e eu sei que é ela enviando as imagens no nosso
grupo de mensagens.
Quando Abby libera Scout, ela solta um “Graças a Deus” e a loira
ameaça abraçá-la de novo. Vai chegar o dia em que Scout vai
adorar esses abraços. Tenho certeza.
— Voltando ao assunto sério, acho que falo por todas nós quando
digo que adoramos jogar com você — Alex traz o tópico à tona outra
vez.
— A atmosfera ficou diferente. Parecia que você era a peça que
faltava pra coisa se encaixar — diz Joanne, só completando a ideia
que já estávamos construindo.
— É, Abby, nós respeitamos sua decisão, mas esperaremos
ansiosas pelo dia que você se sentir pronta — Scout fala, olhando
para Abby, esboçando um sorriso.
Nós até ficamos sem reação. Os olhos de Abby se enchem de
lágrimas, mas ela não fala nada. Provocar Scout estragaria o
momento.
É bonito de ver o quanto estamos nos conectando. Eu nunca me
senti tão a vontade com outras pessoas, nunca senti que eu
realmente tivesse amigas. Agora eu tenho. Não há dúvidas disso.
— Foi aqui que pediram quatro tequilas e uma água com gás? —
Anthony se aproxima da mesa, trazendo uma bandeja com nossas
bebidas.
Kahel vem logo atrás e se senta ao meu lado, me entregando
meu drink sem álcool, fazendo um carinho delicado em minhas
costas quando se livra do copo.
As meninas pegam seus copos de tequila e faço o mesmo com
meu copo de água. Reparo que Anthony pediu que a água fosse
servida em um copo de shot, para que eu me sentisse incluída.
Pisco para ele a distância e o namorado de Jo dá de ombros, como
se isso não fosse nada demais. E para ele, realmente não é.
— As Red Fox! — Joanne propõe o brinde, levantando seu copo.
— A toca das raposas! — Alex acrescenta.
— Ao nosso sucesso no March Madness — diz Scout.
— A mais noites como essa! — fala Abby e chega minha vez.
Olho para as quatro, cheias de expectativa, esperando pela forma
com que vou concluir o raciocínio. Não preciso pensar muito. Já sei
o que vou dizer.
— À nossa amizade!
Quatro sorrisos surgem à minha frente e eu espelho suas
expressões. Erguemos nossos copos, fazendo um brinde
barulhento, atrapalhado e carinhoso, do nosso jeitinho. É a primeira
vez, em muito tempo, que me sinto parte de alguma coisa.
Dormi na casa de Kahel de novo. Transamos duas vezes ontem à
noite e assistimos “Amizade Colorida” juntos porque ele disse que
amava o filme, que o Justin Timberlake era seu crush da
adolescência e que ele e a Mila Kunis eram sua definição de tanto
faz. Eu ri todas as vezes que ele suspirou diante da imagem do
Justin, não consigo entender o que viu no cara, já que eu não o
acho tão bonito assim.
Prefiro Kahel.
Agora estamos enroscados na cama, nos beijando como se não
tivéssemos que estar no treino em menos de meia-hora. Estou
viciada no gosto da sua boca, no seu corpo, na forma com que ele
me toca. A facilidade com que derreto nos seus braços é
impressionante. Eu ficaria o dia todo com ele, mas, infelizmente,
ainda sou a garota certinha que ele tanto achava insuportável, e
preciso treinar, estudar e trabalhar.
— Kahel, precisamos ir — sussurro em meio aos gemidos.
Ele não me deixa ficar quieta, porque não para de beijar meu
pescoço.
— Podemos ficar aqui o dia todo. A semana toda, na verdade —
ele se corrige, mas não tira os lábios da minha pele.
Tento empurrá-lo, porém, uso uma força ridícula que não muda
em nada nossa situação. No fundo, não quero me separar dele. O
modo como o abraço é a prova disso.
— Eu queria tanto — murmuro e Kahel se senta em cima de mim,
prendendo minhas mãos acima da minha cabeça, me olhando com
um sorriso malicioso de quem quer começar uma nova rodada de
sexo a qualquer momento. — Mas nós realmente precisamos ir —
reforço, tentando me desvencilhar do seu toque. — Kahel! —
reclamo, rindo, enquanto batalhamos.
— Espera, tenho uma pergunta importante pra fazer. — Dou uma
trégua quando o escuto e ele também me solta. Suas mãos,
entretanto, não se afastam de mim. Uma vai fazer carinho em meu
cabelo, a outra vai direto para minha cintura. Fico esperando seu
anúncio, sua expressão me diz que é algo sério, então me mostro
atenta. — Qual a cor do vestido que você vai usar no baile?
Solto um riso irônico quando percebo que essa é a pergunta
importante. Kahel é impossível.
Só de raiva, aproveito que ele está distraído e impulsiono meu
corpo para cima, fazendo nossas posições inverterem. Sento em
cima do seu quadril, mas Kahel, mesmo surpreso pelo meu
movimento, continua exibindo um sorriso safado de quem quer
trepar.
— Vermelho — conto, sabendo que ele vai pirar quando me ver
com o modelito que Abby produziu para mim.
— Então usarei uma gravata vermelha, pra poder combinar com
você. — Reviro os olhos quando escuto sua cantada barata.
— Você tem capacidade de fazer melhor do que isso, capitão.
— Até tenho, mas você está me distraindo.
Seus dedos vão passeando pelo meu quadril, se aproximando do
shorts largo que uso. Empurro sua mão, impedindo que continue
com sua ideia. Ameaço me levantar, mas ele me puxa e me beija
mais uma vez.
Eu deixo, porque não consigo pensar em mais nada quando
estamos nos tocando. Mergulho no nosso beijo, mas nós dois temos
a consciência de que precisamos nos levantar agora ou iremos nos
atrasar, então não demora para que nos afastemos novamente.
Antes de nos separarmos de vez, trocamos um sorriso
apaixonado.
Pulo para fora da cama e ele também. Já começo a buscar meus
pertences pelo quarto enquanto ele se veste. Visto o uniforme de
treino e calço meus tênis, mas antes de sair, pego meu celular e ligo
o aparelho. Resolvi desligá-lo ontem para não sermos incomodados,
porém, quando vejo a quantidade de ligações perdidas e de
notificações de mensagens, percebo que realmente não posso me
deixar levar por uma vida normal e clichê.
Passei os últimos dois dias totalmente focada em mim, no
basquete e no meu namoro. Me distraí da minha realidade e me
enfiei em um mundo ao qual não pertenço.
Agora, vou pagar por isso.
Agora a vizinhança está quebrada e desmoronando
As crianças cresceram, mas suas vidas estão desgastadas
Como pode uma pequena rua engolir tantas vidas?

The Kids Aren’t Alright – The Offspring

Tive que despistar Kahel e mentir sobre o meu paradeiro. Ele foi
para a academia do complexo esportivo e eu disse que estava indo
para o ginásio. Não quero enfiá-lo nessa confusão, tampouco quero
que ele saiba que esse problema existe. Tentei permanecer calma,
mesmo com o mundo desmoronando na minha cabeça, para que
ele não desconfiasse de nada. Acredito ter feito um bom trabalho,
porque consegui escapar e corri para pegar os ônibus que me levam
até a casa da minha mãe.
O trajeto não é rápido, o que me dá tempo para pensar. Mesmo
sem a cabeça quente, sigo firme a convicção de que, se não fosse
por minha distração, nada disso teria acontecido. Eu nunca fui de
me envolver com outras pessoas, seja no quesito amoroso ou de
amizade, e sempre me foquei somente no que realmente me faria
alcançar meus objetivos. Percebo, agora, que esse deslize poderia
ter me custado a coisa mais importante que tenho.
Talvez seja cedo para definir alguma coisa, ainda nem me
encontrei com Hailey para saber como ela realmente está, mas
tenho para mim que manter um relacionamento amoroso, continuar
saindo dessa forma, frequentando festas e passando a noite fora,
são coisas que preciso abolir da minha vida. Eu deixei de trabalhar
no final de semana, não ganhei o dinheiro que eu precisava, não
fiquei atenta como deveria.
É tudo culpa minha.
Tenho ignorado Axel desde a final da conferência. Respondi sua
mensagem no sábado avisando que estava ocupada com os jogos,
mas ele continuou me atormentando. Depois de ganharmos, resolvi
bloquear seu número momentaneamente para que eu tivesse
algumas horas de paz. No fim das contas, tive um fim de semana
inteiro de alegrias, para acordar na segunda-feira e descobrir que
meu ex-namorado arranjou uma nova forma de me atingir. De todas
as maneiras que ele poderia ter agido, essa foi a pior. Se ele queria
fazer com que eu perdesse a cabeça e entrasse em um estado de
completo desespero, conseguiu.
Minhas pernas não param quietas. Meu coração está disparado.
Minha mente não para de gritar “CULPADA, CULPADA, CULPADA”.
O sentimento causa um aperto no meu peito, porque tudo o que eu
fiz foi viver, foi ser uma jovem universitária como qualquer outra. Eu
já devia saber que nunca poderei me dar esse luxo.
O ônibus estaciona na minha parada e eu desço correndo,
finalmente obtendo o controle da minha velocidade. Disparo pelas
ruas do bairro onde cresci, abuso do meu condicionamento físico
para tentar chegar o mais rápido possível. Costumo adorar correr,
mas somente em quadra. Nesse lugar escuro, medonho e
destruidor, sinto raiva. Tenho vontade de parar e berrar, mas não há
tempo. Não posso perder um minuto sequer.
Chego na rua da minha mãe em menos de dez minutos. Cruzo o
quintal e esmurro a porta, para que alguém venha me atender. Meus
pulmões estão queimando pelo esforço, já estou suando, mas tudo
o que importa agora, é saber se Hailey está bem.
Minha mãe abre a porta, ela está vestida para o trabalho e me
lança um olhar repressor.
— Cadê a Hailey? — pergunto enquanto entro em disparada,
procurando pela sala, dando uma olhada na cozinha, mas não a
encontrando em lugar algum.
— Ela está no quarto, se recusou a levantar e ir pra escola —
minha mãe conta, cruzando os braços e se mantendo perto da
porta, distante de mim. — Achei que você odiasse o Axel.
O que ela diz, somado a sua expressão, me faz ter certeza de
que ela não gostou do que aconteceu. E não estou falando somente
do acontecimento fatídico de ontem à noite, mas também do fato de
eu ter pedido dinheiro para um cara de quem jurei nunca mais me
aproximar.
— Eu não gosto dele — afirmo, para que fique claro de vez.
— Se não gosta, por que fez essa merda? Porque pediu dinheiro
justo a ele, Leah? Sua irmã poderia ter se machucado! Sabe Deus o
que esses caras podiam ter feito com ela! — Minha mãe começa a
gesticular, porém, segue longe, receosa.
Eu entendo sua raiva, nós duas queremos proteger minha irmã,
isso é um fato. Mas se ela acha que vou engolir o que está dizendo,
está bem enganada.
— Não sei se você se lembra, mas foi por sua causa que eu tive
que correr atrás do cara que fodeu com a minha cabeça! Por causa
da sua porra de vício, da sua porra de dívida, eu me sacrifiquei! —
Aponto para o meu peito, exalando raiva. — Fiz o que eu tinha que
fazer para me livrar do King, pra resolver o seu problema! — É para
ela que aponto, fitando-a diretamente, mostrando o quanto eu
também fui vítima dessa história. — Então, mãe, antes de vir falar
merda, pense bem na situação. Você causou tudo isso.
Quando termino, percebo que ela está com os olhos arregalados,
finalmente percebendo o papel principal que teve nessa confusão.
Eu odiei a forma com que jogou minha decisão na minha cara, como
se eu tivesse pego dinheiro com Axel para comprar maquiagens
novas. Salvei sua pele, tive que lidar com um agiota e com o meu ex
problemático, e ela não se importou. Posso me sacrificar por ela,
posso foder com a minha própria vida, posso lidar com a falta de
reconhecimento e de preocupação com o meu bem-estar, mas não
posso admitir que ela jogue toda a culpa em mim.
Estou cansada de olhar para a cara dela, então a deixo sozinha e
vou para o quarto de Hailey. É minha irmã que precisa da minha
presença. É por ela que estou aqui.
Tenho que respirar fundo umas vinte vezes antes de conseguir
me acalmar, e nem assim consigo. Estou uma pilha de nervos, mas
por Hailey, preciso fingir que não estou tão desesperada assim.
Entro em seu quarto devagar e ela se mexe na cama,
percebendo uma movimentação. Me sento na ponta do seu colchão,
tocando em sua perna de forma delicada, como sempre faço
quando quero chamar sua atenção.
Hailey não estranha, ela sente que sou eu e se vira, me lançando
um olhar acuado que nunca vi em seu rosto. Abro meus braços,
convidando-a para me abraçar, e com uma breve troca de olhares,
percebo que ela está emocionada por me ver.
Minha irmã se perde em meus braços, apoiando a cabeça no
meu peito, mergulhando em lágrimas. Eu agarro seu corpo com
força, não deixo nosso contato fraquejar nenhuma vez. Fico olhando
para a parede enquanto a consolo, vendo fotos da nossa família
feliz, de um passado muito distante e de uma alegria ocasional
demais para duas crianças que tiveram que amadurecer com
rapidez.
— Está tudo bem agora, Hales. Estou aqui — reforço meu gesto
com palavras bonitas, distribuo beijos por seu cabelo ruivo, hoje
soltos e ondulados, caindo pelas costas.
Demora até que Hailey se recomponha, porém, quando me
encara, fico aliviada por ver que ela está assustada, mas
determinada a deixar a situação para trás.
— Eu fiquei com tanto medo, Leah.
— Eu sei. Também fiquei. Mas preciso que você seja forte e me
conte tudo o que aconteceu, ok? — peço, fazendo um carinho em
seu rosto.
Hailey se ajeita à minha frente, cruzando suas pernas, se
sentando confortavelmente. Ela olha para baixo, abalada por estar
relembrando os detalhes da ameaça que sofreu.
— Fui jogar boliche com alguns amigos ontem. Quando estava
voltando, dois caras se aproximaram de mim. Primeiro, pediram
minha mochila e eu achei que iam só me roubar, mas eles
acabaram só pegando minha câmera. Depois, disseram que
estavam atrás de mim porque o Axel queria mandar um recado pra
você. Eu não demorei para entender o que tinha acontecido. —
Hailey ergue os olhos verdes na minha direção, insatisfeita com
mais uma coisa que omiti. Estou virando a rainha das mentiras e
omissões, mesmo sem ter a intenção.
— Eles te machucaram? Alguém tocou em você? — pergunto,
pegando seus braços para ver se há algum arranhão.
Hailey deixa que eu inspecione, mas definitivamente não gosta
da situação.
— Não. Só mandaram o recado e quebraram minha câmera. —
Ela olha para o lado e eu faço o mesmo. Entrei no quarto tão focada
nela, que não tinha visto que sua câmera estava em sua
escrivaninha, completamente destruída.
Quando liguei meu celular e vi que minha mãe tinha me ligado,
coisa que ela nunca faz, e Hailey mandado diversas mensagens
resumindo o acontecido, pensei no pior. Pensando cruelmente,
poderia ter sido. Os capangas de Axel tinham capacidade de fazer
muito mais, mas ele ainda nutre um carinho por mim e optou pela
saída mais pacífica, ainda que tenha quebrado a coisa que minha
irmã mais ama na vida.
— Vou te dar uma câmera nova assim que esse pesadelo acabar,
ok? — prometo, fazendo um novo carinho em seu rosto, admirando
sua pele macia, seu rosto jovem. Ela é tão nova e já teve que
passar por tanta coisa.
— Não se preocupe com isso, Leah. O importante é que eu já
tinha colocado as fotos do time na nuvem. — Hailey fala de um
modo descontraído, mas sei que o fato de sua preciosa câmera
estar quebrada deixa sua vida muito mais difícil. Tirar fotos é seu
alívio, é o que ela mais ama fazer. É a mesma coisa de me tirarem a
cesta e dizerem que não posso mais jogar basquete.
Eu gostaria que esse fosse o único problema em pauta, que eu
poderia apenas juntar dinheiro durante alguns meses e comprar
uma nova para ela. A questão é que esse problema é mais
complicado do que parece.
— Qual o recado que eles te deram? — pergunto, apesar de já
imaginar.
Quando voltei a ligar meu celular, também me deparei com
centenas de mensagens de Axel. Desbloqueei seu número depois
que fiquei sabendo da ameaça a Hailey e descobri que ele havia me
avisado por mensagem: eu entregava o dinheiro ou ele iria atrás da
minha irmã. Axel perdeu a paciência. Ele sabe que estou com outro,
o gelo que dei nele deixou claro que não há interesse nenhum da
minha parte. Meu ex percebeu, finalmente, que nunca vou voltar
para os seus braços. O problema é que eu só conseguia segurá-lo
por causa da sua obsessão por mim. Agora que ele só quer o
dinheiro, as coisas ficam complicadas.
— Você tem dez dias pra pagar. Se não conseguir, eles vão vir
atrás de mim de novo. Disseram que Axel mandou que não fossem
tão bonzinhos da próxima vez. — Hailey me lança um olhar
assustado, as mãos estão unidas em seu colo, coisa que ela faz
quando está nervosa.
Dez dias. Como vou arranjar tanto dinheiro em dez dias?
— Não faço ideia de como resolver essa situação — desabafo,
enfiando a cabeça entre minhas mãos, sem enxergar uma saída.
— Você pode pedir para as suas amigas ou pro Kahel. Tenho
certeza de que eles ajudariam. — A ideia de Hailey me faz erguer a
cabeça.
— Acha que vou colocá-los no meio dessa história? Não dá,
Hales, sem chance.
Ninguém da minha convivência na KSU vai se meter com Axel.
— Eu tenho algum dinheiro guardado, mas é quase nada — fala,
o olhar confuso, procurando uma solução, uma forma de ajudar.
— Hailey, nem se nós duas juntássemos todos os centavos que
temos conseguiríamos esse dinheiro. É muita coisa.
Tentei juntar dinheiro e até consegui mobilizar um pouco, mas tive
um imprevisto com o conserto do carro de Abby, que pesou no meu
bolso. Ainda assim, mesmo se eu não tivesse dormido no volante,
ainda não teria nem um quarto do valor.
— Confie em mim, eu vou dar um jeito nisso — afirmo, mas não
tenho certeza do que digo.
— Como você vai arranjar essa grana, Leah? — ela pergunta,
desconfiada, percebendo que estou perdida.
— Ainda não sei, mas vou pensar em alguma coisa. Tenho dez
dias. Você não precisa se preocupar.
Hailey assente repetidamente, aceitando que vou tomar o
controle da situação e resolvê-la, como sempre faço. Eu sei que ela
gostaria de ajudar, mas não há nada que possa fazer.
— Só quero que tudo isso acabe. Fiquei com tanto medo de eles
me machucarem — admite e seus olhos se enchem de lágrimas.
Minha irmã desaba e eu a puxo novamente para os meus braços,
repetindo que tudo vai ficar bem, enquanto faço carinho em seu
cabelo. Olho para a câmera destruída, imaginando o que ela sentiu
quando esse estrago aconteceu. Uma menina de quinze anos,
sozinha com dois caras mais velhos, que podiam ter feito muito mais
do que apenas o que o chefe mandou. Essa situação poderia ter
acabado de uma maneira muito pior.
Ainda vai levar alguns anos até que eu consiga tirar minha irmã
desse lugar, então, infelizmente, tenho que me contentar em pagar
Axel e implorar para que ele esqueça da nossa existência. Não faço
a menor ideia de como vou fazer isso, mas não há escolha, preciso
arranjar uma solução.
Enquanto consolo Hailey, inúmeros sentimentos se conflitam
dentro de mim. Estou preocupada e abalada por ela, mas ao mesmo
tempo, com a mente funcionando loucamente, pensando em formas
de nos livrar desse problema. Raiva e irritação se unem a mistura
quando vejo que minha mãe está na porta do quarto, observando
nosso abraço.
Não sorrio para ela, não mostro nada, só sigo impassível, sendo
a garota de coração de gelo que ela sempre acha que sou. Posso
não ser sensível com seu vício, mas é porque estou esgotada. Se
ela melhorasse, saísse dessa e passasse a agir como uma mãe de
verdade, nossas vidas iriam melhorar.
Será que ela não percebe que está ferrando com as próprias
filhas? Será que nunca notou os traumas que gerou em nós duas?
Será que nunca percebeu que nós não perdemos só meu pai, mas a
ela também?
Eu sinceramente acho que a resposta para todas essas
perguntas é não. Ela não percebe, nunca vai perceber, e eu vou ter
que, mais uma vez, dar um jeito em tudo sozinha.
Você é adorável, com seu olhar tão caloroso
E suas bochechas tão macias
Não me resta nada além de amar você

The Way You Look Tonight – Rod Stewart

Só de olhar para o salão de gala da KSU, me emociono. Faz


quase dois meses que estou usando boa parte do meu tempo livre
para cuidar dos detalhes dessa arrecadação. Convenci o
departamento esportivo a ceder o lugar, fui atrás do buffet, pedi para
que meu pai ajudasse com a lista de convidados, imprimi os
convites que Lilly desenhou, fiz questão de falar pessoalmente com
cada pessoa da lista para que eles entendessem o quanto sua
presença seria importante.
A vitória que os Tigers e as Fox conquistaram só trouxe mais
significado para o evento. Diversos ex-jogadores e até alguns ex-
alunos admiradores de esportes ou antigos atletas de outras
modalidades, vieram nos parabenizar pela vitória. As pessoas não
param de chegar e o melhor é que todos param no cofre de doações
que deixamos na entrada. Há um banner explicando o porquê desse
baile estar acontecendo e pedindo a ajuda de todos os presentes,
para que os times de basquete continuem tendo suporte para obter
bons resultados.
Eu mesmo não aguento o sorriso convencido em meu rosto. Leah
ajudou em uma coisa ou outra do planejamento, mas em geral, eu
cumpri a maior parte das tarefas. Ela tem uma vida mais agitada do
que a minha e eu tinha mais contatos, então fez sentido que
organizássemos dessa forma. Estou orgulhoso de mim por tudo ter
dado certo, o baile está impecável, até melhor do que eu imaginei
inicialmente.
— Tudo está incrível, mas esse champagne é a melhor parte —
diz Miranda, que já deve ter bebido três taças, fácil. — E usar
roupas bonitas. Estou uma gata com esse vestido. — Ela gira no
lugar, mostrando o quanto o vestido azul e rodado se levanta.
Miranda está linda. O cabelo loiro está preso em um coque solto,
com fios caindo pelo rosto, a maquiagem combina com a cor do
vestido e ela usa saltos gigantescos. Porém, mesmo estando mais
alta, ela continua minúscula quando fica perto de nós.
— Você tá gata demais, Smurf — elogia Sebastian, fitando-a de
cima a baixo, do jeito que sabe que Miranda gosta.
Ela ama ser bajulada, assim como eu.
— Linda, mas ainda um Smurf. — Ameaço bagunçar seu cabelo
quando falo e levo um tapa forte na mão como resposta. — Porra,
que merda, Miranda! — reclamo e faço um biquinho com os lábios,
me vitimizando da melhor forma que consigo.
— Para de ser chorão. — Ela revira os olhos e tira alguns
segundos para nos admirar.
Somos três jogadores de basquete que vivem de bermuda,
regata e tênis, vestidos em ternos justos, com o cabelo penteado, a
aparência impecável. O tecido da camisa gruda em nosso corpo, até
pelo próprio paletó, dá para ver que somos fortes.
— Vocês estão uma delícia — Miranda comenta, dobrando o
lábio inferior, seu rosto nos dizendo que aprovou o visual.
— O verdadeiro trio da perdição — Seb acrescenta, segurando a
lapela do paletó para se mostrar um pouco mais.
Se tem uma coisa que todos os moradores da casa do vale têm
em comum, é o ego.
— Eu até pensei em adotar o terno como peça-chave do meu
guarda-roupa, mas aí perderia a graça. Prefiro mostrar essa
gostosura toda apenas em ocasiões especiais — brinco, fazendo
Miranda e Sebastian caírem na gargalhada.
Nós três encaramos Maverick, que está olhando para o nada. Ele
não abriu a boca no nosso último diálogo.
— Ei, o que foi? — Miranda pergunta, batendo com o dorso da
sua mão no peitoral de Mav, que pula com a atitude.
Ele coloca a mão onde ela bateu, mas não a provoca de volta,
como costuma fazer. Tem alguma coisa muito errada.
— Louis Maverick, se você não nos contar o que está
acontecendo, vamos ter que arrancar de você — digo, colocando
uma mão em seu ombro, para mostrar meu apoio, mesmo sem
saber o que está acontecendo.
Mav força um sorriso e balança a cabeça em negação, como se
quisesse tirar essa tal coisa da mente.
— Não me matem, mas estou saindo com um cara há algum
tempo — revela e arregalo os olhos, surpreso pela revelação.
Sebastian murmura um “hm” interessado, Miranda fica boquiaberta,
conheço-a bem o suficiente para saber que está ofendida por estar
sabendo disso apenas agora.
— Elabore a pauta ou as coisas vão ficar feias para o seu lado,
Maverick — ela ameaça, espremendo os olhos na direção dele,
intimidando-o ainda mais.
Mav assente repetidamente, ele nem tentaria ir contra um pedido
tão enfático de Miranda. Ela é um trator.
— É da KSU, gato, gostoso, um fofo... — A frase fica no ar e Mav
olha para baixo, dá para ver que algo não está certo nesse
relacionamento.
— E qual o problema? — pergunta Sebastian, confuso.
Maverick suspira e leva a mão para o cabelo castanho, jogando-o
ainda mais para o lado.
— Ele ainda está se descobrindo, se assumindo para si mesmo.
Estou tentando ser paciente com ele nessa fase, mas as coisas não
são fáceis.
— Eu já vivi essa história, Mav. — Miranda apoia a mão em seu
ombro, consolando-o, lembrando de todas as vezes que o mesmo
aconteceu com ela.
Sinto a tristeza na voz de Maverick e a situação me deixa
chateado. É uma merda não poder andar de mãos dadas por aí com
alguém que você gosta. Nós temos uma boa relação com nossas
sexualidades, mas estamos cientes de que muita gente ainda está
no processo para se aceitar.
— Se esse cara valer a pena, fique, ajude, esteja ao lado dele
nesse momento. Mas lembre-se sempre de que você precisa estar
bem com essa situação, que não dá para anular suas vontades por
causa de outra pessoa — aconselho e Mav me agradece com o
olhar.
Sebastian não fala nada, apenas concorda com a cabeça e puxa
Maverick para um abraço. Miranda se enfia no meio deles e eu me
aproximo, odiando a ideia de ficar fora desse abraço em grupo. Os
três são mais do que amigos para mim, nós formamos uma espécie
de irmandade, nos consideramos a extensão da família um do outro.
Eu amo Seb, Mav e Miranda como se fossem meus irmãos.
Nosso abraço termina e Sebastian conta sobre uma ficada com
uma garota que conheceu em uma festa. Gargalhamos com o modo
que ele fala, voltando ao clima mais leve.
Não dura muito, porque todos os risos cessam quando Romeo
Ballard aparece à nossa frente. Ele está acompanhado de Joshua, o
capitão do time de futebol americano e seu único escudeiro. Romeo
abre um sorriso cínico para nós, fica claro que veio até aqui só para
encher o saco. Eu realmente não entendo por que sempre precisa
nos cutucar.
— O que está fazendo aqui? — indago, meu tom deixando óbvio
que ele não é bem-vindo.
— Você convidou todos os atletas da universidade e disse que
todos poderiam trazer alguém. Josh me trouxe — explica dando de
ombros.
— Não sei como você tem coragem de andar com alguém como
ele — fala Sebastian, um pouco mais bruto, se dirigindo a Joshua.
Romeo, como o esperado, tenta avançar para cima do meu
amigo. Eu não tenho outra reação a não ser dar um passo à frente,
para mostrar que se uma briga acontecer, ele terá que me enfrentar
também.
— Sebastian, Kahel, não se movam ou vão lavar a louça pelo
resto do ano! — Miranda nos repreende, empurrando nossos peitos
com força. Nós somos muito maiores, então seu toque não tem
efeito algum. Porém, Maverick está do lado dela e nos puxa pelo
braço, para nos afastar de Romeo. Joshua faz o mesmo com o
amigo, trocando um olhar com Mav, os dois claramente insatisfeitos
por terem que ficar nos separando o tempo todo.
Pode soar estranho, mas sinto uma energia ruim vindo de
Romeo. Não o conheço tão bem, porém, sua história com o time de
futebol americano mostrou que seu caráter não é dos melhores.
Fora que ele constantemente se mete onde não deve e fica nos
provocando. É natural que sempre role uma ameaça para
brigarmos. Talvez eu seja julgado, mas faz tempo que tenho uma
grande vontade de dar um soco na cara dele.
— Vamos sair daqui, Romeo — pede Joshua, balançando a
cabeça em negação enquanto puxa o amigo para longe de nós.
Romeo continua nos encarando o caminho todo, buscando nos
intimidar. Se ele acha que eu tenho medo dele, é bom que desista
dessa ideia. Eu o venceria facilmente.
Ajeito meu terno, me recompondo desse recente diálogo. Nós
comentamos mais um pouco sobre a situação de Romeo,
relembrando o que ele fez com seu time, e é unânime, ninguém
gostou da sua atitude ou entendeu por que ele fez o que fez. De
qualquer forma, nossa opção é não manter uma relação com ele.
Melhor assim.
Meus amigos resolvem passear pelo salão para conversar com
alunos-atletas de outros esportes, enquanto eu procuro pelo meu
pai.
Ele está conversando com outros homens quando me aproximo e
reconheço alguns como antigos contatos da NBA. Vejo que minha
mãe e Lilly não estão por perto, e aproveito para cumprimentar a
todos, fazer perguntas educadas e manter um diálogo animado.
Meu pai me lança olhares durante a conversa e percebo que quer
me dizer alguma coisa. Mas é só quando seus amigos nos deixam a
sós, que ele se vira para mim e abre um sorriso amoroso.
— Estou muito orgulhoso de você, filho. O evento está incrível,
todo mundo está adorando e te elogiando pelo bom trabalho.
Suas palavras fazem meu peito inflar, eu automaticamente me
sinto mais confiante por saber que tenho a aprovação do meu pai.
— Obrigado, pai. Fiquei muito feliz que tudo deu certo. Sem a sua
ajuda, nada disso seria possível.
— Tudo o que fiz foi te passar telefones e e-mails. O resto foi
mérito seu. — Ele apoia a mão em meu ombro, apertando-o com
força, os olhos brilhando de tanta satisfação. Seu toque vai se
afrouxando aos poucos, até que se transforma em um carinho leve.
A expressão em seu rosto também muda, meu pai agora parece
querer tocar em algum assunto delicado. — O treinador Morrow
comentou comigo que você está reconsiderando a ideia de jogar
profissionalmente.
— Como ele é fofoqueiro! — falo, sem me aguentar. Eu amo o
treinador, mas ele não sabe manter a língua dentro da boca.
Meu pai dá risada e tira a mão do meu ombro para chamar um
garçom. Ele pega duas taças de champagne e me entrega uma.
— O treinador fez isso para o seu próprio bem. Tanto eu quanto
ele sabemos que essa não é uma decisão fácil de ser tomada. Eu
mesmo questionei se esse era o caminho certo a ser seguido
diversas vezes — conta, se abrindo de uma forma que não costuma
fazer. — Meu ponto é que eu já estive onde você está, Kahel.
Entendo o que está sentindo e estou aqui se quiser conversar sobre
isso, analisar os prós e contras de tentar uma carreira no esporte,
pensar em possíveis caminhos caso o basquete não dê certo.
A abertura que meu pai me dá faz uma coragem crescer dentro
de mim. Sinto que essa é a hora certa para contar a ele todos os
sentimentos conflitantes que tenho a respeito de seguir jogando
basquete. Falo sobre o medo de comparação, sobre a expectativa
que eu mesmo coloco em cima de mim, para que eu seja igual a ele,
falo até sobre algumas atitudes imaturas que eu tive, analiso meus
comportamentos e digo a ele que meu subconsciente fez com que
eu agisse dessa forma para que as pessoas não se
decepcionassem caso eu não atendesse às expectativas. Meu pai
escuta tudo atentamente, não me interrompe, sequer olha para o
lado, focado em mim e nessa história que tanto me atormenta.
Quando termino, tenho que beber o champagne inteiro para
matar a sede. Meu pai solta um riso com meu ato e esvazia sua
taça, é como se quisesse me copiar só para fazer com que eu me
sinta bem.
— Kahel, quero que você entenda, de uma vez por todas, que a
decisão de ter uma carreira profissional é sua e inteiramente sua.
Você pode querer seguir meus passos, mas vai trilhar seu próprio
caminho. E se você achar que não é isso que quer ou se as coisas
derem errado, existem inúmeras opções, inúmeras profissões que
você pode seguir, caminhos que pode trilhar — aconselha, calmo e
sábio, mais uma vez provando que é o homem em que devo me
espelhar. Meu pai é um exemplo. Se eu for pelo menos um pouco
como ele, já ficarei feliz.
— A ideia de cuidar de um negócio ou organizar eventos
esportivos também me parecem atrativas — comento porque
realmente gostei da responsabilidade de organizar o baile. Posso
me inscrever em mais algumas matérias na faculdade para pegar o
diploma de administração. Caso a carreira na NBA não dê certo, já
terei uma alternativa.
— Independentemente do que você faça, vou te apoiar e estar ao
seu lado. Eu já te disse, Kahel, os Williams são uma fortaleza. Nós
nos protegemos, cuidamos um do outro, estamos lado a lado em
qualquer situação.
— Não tenho dúvidas disso, pai.
Ao invés de agradecê-lo com palavras, abro meus braços e o
convido para um abraço. O contato entre nós é próximo, íntimo,
seguro. Minha família sempre foi e sempre será a melhor coisa da
minha vida, porém, é claro que temos atritos e assuntos mal
resolvidos. Eu não conto tudo a eles e precisou que o treinador
Morrow revelasse ao meu pai o embate que acontece dentro de mim
para que tivéssemos essa conversa. Confesso que saber o que ele
pensa a respeito dessa situação fez com que um peso enorme saía
dos meus ombros. Agora, tenho a certeza de que ele irá ficar do
meu lado, não importa qual caminho eu escolha.
Estou focado no abraço, mas afrouxo o toque quando meus olhos
encontram Leah. Ela está descendo as escadas para chegar ao
salão ao lado das suas colegas de casa, desfilando o vestido
vermelho que parece ter sido feito para modelar o seu corpo. É um
modelo longo, com fendas laterais que deixam suas pernas à
mostra enquanto desce os degraus, mais devagar do que o normal
por estar usando saltos. O cabelo está parcialmente preso, deixando
o rosto livre para que eu possa ver seu leve sorriso, quando ri de
algo que alguma de suas amigas fala.
Meu pai cessa nosso abraço e se afasta, mas eu ainda não
desviei o olhar, sigo hipnotizado pela minha namorada.
— Leah faz bem para você — ele comenta, chamando minha
atenção de volta para si. — E você a olha como eu sempre olhei
para a sua mãe.
Sorrio diante do que escuto, é bom saber que meu pai notou que
estou mais feliz com Leah por perto. A comparação que faz do meu
relacionamento com o seu me deixa bobo. Meus pais têm um amor
lindo, leve, do tipo que eu sempre quis para mim.
— Eu gosto muito dela. — Talvez eu até a ame. Mas ainda não
sinto coragem de dizer algo tão forte em voz alta.
— Então vá ficar com a sua garota, filho. — Meu pai aponta para
ela com a cabeça, tocando em meu ombro uma última vez antes de
se afastar, provavelmente indo atrás da própria esposa.
Eu vou me aproximando da escada, sem tirar os olhos de Leah.
Estendo minha mão quando chego perto dela, para ajudá-la a
descer os últimos degraus. Leah abre um sorriso meigo quando me
vê, aceitando o toque.
— Oi, princesa. Tentei pensar em uma forma de te elogiar, mas
não existem palavras que descrevam o que eu senti quando
coloquei meus olhos em você.
Leah solta um riso contido quando para à minha frente,
balançando a cabeça.
— Isso foi meloso demais.
— Foi sincero. Você está linda — repito, entrelaçando nossas
mãos, dando um passo para mais perto dela.
— Você também não está nada mal, Williams — sussurra como
se isso fosse um segredo que não quer compartilhar com ninguém.
Essa semana foi uma loucura. Com o baile chegando, fiquei
atarefado e Leah já tem uma rotina conturbada, então praticamente
não nos vimos. Senti falta dela, mas conversamos por mensagem e
nos mantivemos atualizados de nossas vidas. Ela me disse que
precisou ajudar a irmã com algumas questões da escola e por isso,
teve que se ausentar um pouco mais.
— O que acha de irmos pra pista de dança? — pergunto,
apontando para um dos lados do salão, onde vários casais estão
dançando.
Leah olha para o lugar, fazendo uma careta.
— Mal sei dançar sozinha, que dirá com outra pessoa.
— Eu prometo que vou te conduzir. — Pisco para ela, apertando
sua mão com mais força, para que perceba que não vou permitir
que passe vergonha.
Leah assente devagar, me dando passe livre para conduzi-la até
a pista. Coloco seus braços em meus ombros, abraço sua cintura.
Começo a me movimentar devagar, seguindo a lentidão da música,
conduzindo minha namorada a dança romântica que eu insisti em
ter.
Nem pareço o mesmo cara de alguns meses atrás, tudo porque
Leah mexeu com o meu coração de uma forma que ninguém mais
mexeu. Ela despertou um lado meu que eu nem sabia que existia,
um lado que faria tudo por ela. O sentimento de ódio ficou no
passado, porque eu conheci a garota determinada, correta e incrível
que Leah é.
Focado nela, com meus olhos fixados nos seus, a música lenta
tocando e nossos corpos se movendo no mesmo compasso, eu
tenho a certeza de que estou vivendo um dos melhores momentos
da minha vida. Ganhei o campeonato, tive uma conversa sincera
com o meu pai, que vai me ajudar a definir meu futuro, e tenho
minha garota nos braços.
Não posso pedir por mais nada.
E eu sempre vivi assim
Mantendo uma distância confortável
E até agora eu tinha jurado a mim mesma que estava satisfeita
Com a solidão
Porque nada disso nunca valeu o risco
The Only Exception – Paramore

Os braços de Kahel me sufocam. Não por causa dele, mas pelo


que escondo. Uma semana de distância não me preparou para o
baque de vê-lo, abraçá-lo, beijá-lo. Sentir seu amor por mim está
acabando com o resto de sanidade que eu tinha.
Fui ver Hailey mais vezes na semana, sacrificando parte do meu
tempo de estudo, para poder checá-la. Minha irmã voltou à escola e
está vivendo sua vida normalmente, apesar de ter dobrado sua
atenção nas ruas. De certa forma, ela superou a ameaça que
sofreu, porque acredita que eu irei encontrar uma solução e tirar
Axel de vez das nossas vidas.
É bom saber que ela tem fé em mim, mesmo que eu não tenha.
Ainda não sei o que fazer. Dinheiro, infelizmente, não é algo que
brota em árvore. Ou você tem ou você ganha ou você rouba. Eu não
tenho, então tentei ganhar, mas isso também não tem dado certo.
Todas as minhas economias das últimas semanas não serão
suficientes para pagar a dívida. Com o tempo que demorei para
juntar esse dinheiro, chuto que precisaria de mais alguns meses
para pagar Axel, e eu realmente não tenho meses.
Tenho dias.
Para ser mais específica, tinha dez, que já viraram três.
O que significa que estou entrando em um certo nível de
desespero.
Aviso a Kahel que preciso ir ao banheiro com urgência e disparo
pelo salão às pressas. Quando entro na cabine, tranco a porta,
apoio minhas costas na parede e tento fazer minha respiração voltar
ao normal. Suspiro centenas de vezes, mas parece que desaprendi
a respirar como uma pessoa normal. Preciso pensar para me
manter viva, algo que me leva a crer que minha cabeça quer, na
verdade, que eu me distraia para não pensar no pior.
Porque a verdade é que eu não sei como conseguir esse
dinheiro. Não vejo uma alternativa, não vejo um caminho. Envolver
meu namorado e minhas amigas está fora de cogitação. Ganhar o
dinheiro também. Não sei o que fazer.
— Leah? — A voz de Scout preenche o ambiente silencioso.
Fecho os olhos ao escutá-la, tentando permanecer quieta, para ver
se ela desiste e vai embora. — Sei que você está aí, te vi entrando.
Engulo minha vontade de chorar e saio da cabine, sem ter
escolha. Scout está com o quadril encostado na pia, os braços
cruzados, o vestido preto, curto e justo combina com seu visual que
intimida qualquer um.
— Por que a cara de merda? — ela questiona, apontando a
cabeça para mim, com certeza confusa com a postura que exibi nos
últimos dias.
— Não é nada — conto a maior mentira de todas, andando até a
pia, abrindo a torneira para fingir que preciso lavar minha mão.
Scout permanece ao meu lado, assentindo para tudo o que falo,
uma expressão de descaso estampada. Sei que é uma expressão
forçada, porque tenho certeza de que ela se importa comigo ou não
viria atrás de mim.
— Acha que eu nasci ontem? Estou sentindo o cheiro de mentira
a distância. — A forma com que Scout devolve minha resposta faz
com que eu demore ainda mais para terminar de lavar minhas
mãos, tentando pensar no que vou dizer.
Os olhos castanhos de Scout estão fazendo com que eu me sinta
encurralada.
— Se eu te contar, vou ter que te matar — brinco, sem dar risada
ou achar que isso foi realmente engraçado. É só uma resposta para
tentar despistar Scout. Mas não funciona, como o esperado, porque
ela ergue as sobrancelhas, claramente não colocando fé no que
digo. — As coisas não estão fáceis na minha casa — revelo,
pegando um papel para secar minhas mãos.
— É a sua mãe de novo? Ou aquele cara não cumpriu o
combinado e está te atormentando? Meu convite pra acabar com ele
está sempre de pé.
Forço um meio sorriso diante do que Scout diz. Eu não queria
falar sobre o que aconteceu quando ela foi conhecer meu passado,
achei que tivéssemos deixado isso enterrado.
— Ele não me incomodou mais. — Acho que essa é a primeira
verdade que saiu da minha boca nessa semana. Pelo menos King é
um homem de palavra.
— Então é a sua mãe? — Scout pergunta de novo, firme a ideia
de me fazer falar.
— É, mas já estou resolvendo — minto outra vez, acreditando
que estou quase no patamar de uma meia verdade. Está
relacionado a minha mãe, como é desde o começo, mas ela não é a
causa do caos atual.
Axel Norman é.
Meu ex me mandou algumas mensagens nos últimos dias. Todas
tinham números. Dez, nove, oito, sete... até chegarmos no três, que
recebi hoje. É a contagem regressiva do prazo máximo para pagar a
dívida. Só mais uma amostra da força da sua ameaça.
— Finn veio comigo. Queria que vocês se conhecessem — Scout
solta essa informação aleatória, me pegando de surpresa pela
mudança de assunto.
Quando a encaro, percebo que notou que não estou com vontade
de continuar falando sobre os problemas que tenho em casa.
Esboço um sorriso para agradecê-la pela percepção.
— Quem é Finn? — questiono. Não me lembro de ter escutado
esse nome.
— Meu namorado, ué! Quem mais seria?
— Seu namorado se chama Finn? — rebato, Scout nunca
mencionou seu nome.
— Sim, qual o problema?
— Ele tem um nome e não é um fantasma? — brinco, soltando
uma risadinha sincera.
— Ah, pelo amor de Deus, pare de andar com a Joanne! — Scout
resmunga, revirando os olhos. — Você quer conhecê-lo ou não?
— Claro que quero! — aceito a distração.
Sigo Scout para fora do banheiro e a primeira pessoa que avisto
é Kahel me esperando. Finjo normalidade e falo para ele vir
conosco. Meu namorado aceita de bom grado, enlaçando sua mão
na minha. Enquanto caminhamos pelo salão, ele sussurra: — Temos
que contar o dinheiro que arrecadamos em breve. O jantar vai
começar a ser servido e as doações vão se encerrar.
O que conta me surpreende. Kahel é quem estava à frente de
tudo, estou tão envolvida nos meus próprios problemas que me
esqueci de que temos uma responsabilidade nesse baile.
— Vamos só conhecer o Finn, depois fazemos isso — afirmo,
repetindo a mim mesma que preciso tentar me fazer útil para ajudá-
lo.
Depois de andarmos quase o salão todo, Scout para ao lado de
um garoto negro, seus olhos castanhos são convidativos, o terno
cinza o destaca na multidão e o sorriso que abre para nós me faz
simpatizar com ele na mesma hora.
— Leah, Kahel, este é o Finn, meu namorado — ela o apresenta
com um leve sorriso, enlaçando o braço no dele.
— É um prazer finalmente te conhecer, Finn. Eu gostaria de dizer
que ouvi muitas coisas sobre você, mas sua namorada não me
conta nada. — Jogo a indireta em Scout e ela espreme os olhos na
minha direção, brava.
— Você deveria se sentir honrada por estar o conhecendo e não
reclamando do que eu não te contei — ela rebate e eu percebo que
é verdade, Scout não chamou Abby, Alex ou Joanne para conhecer
Finn. Isso é só mais um sinal de que ela confia em mim.
— A Scout é reservada, mas o que você quiser saber sobre mim,
Leah, pode perguntar — Finn oferece, lançando um olhar carinhoso
para a namorada.
Scout esboça um meio sorriso para ele e Finn começa a nos
contar sobre sua vida. Ele engata em uma conversa com Kahel
sobre basquete, meu namorado conta sobre seu time, suas vitórias
e logo Finn descobre que ele é filho de Jordan Williams e os dois
começam a falar sobre a NBA, os últimos jogos e possíveis times
que levarão a melhor esse ano. Scout e eu participamos da
conversa, mas percebo que ela encara Finn de um jeito carinhoso.
Apesar de ser um olhar positivo, não vejo a faísca que Jo tem com
Anthony ou até a que eu mesma tenho com Kahel. Dá para ver que
Scout gosta dele, mas talvez não o ame com toda a sua alma.
Ela me fita, percebendo que estou encarando, e apenas por seu
olhar, sei que estou certa. Finn é o cara que ela escolheu para ter ao
seu lado agora, porém, não é o amor da sua vida.
Mostro a Scout que estou feliz pelo reconhecimento à nossa
amizade. Podemos não conversar sobre todos os nossos
problemas, mas nosso silêncio, de alguma forma, supre o vazio das
palavras não ditas.
Kahel encerra a conversa e pede licença, avisando que
precisamos encerrar as doações. Antes de sairmos, ele e Finn se
seguem nas redes sociais, para ficarem a par da vida um do outro.
Me despeço dele, digo que estou feliz por conhecê-lo e que
precisamos marcar uma saída entre casais em breve.
Quando nos afastamos, Kahel apoia a mão em minhas costas
para me conduzir até a entrada do salão, onde concentramos o
cofre destinado às doações. O ato é carinhoso, protetor, e me fazia
bem até alguns dias atrás. Agora é só mais uma coisa que me
causa nervosismo e desespero. Usar essa máscara e fingir que está
tudo bem está me consumindo por dentro.
Kahel pega o cofre e nos dirigimos a uma sala do salão,
reservada para o momento de fazermos as contas. Ele começa a
falar sobre o sucesso do baile, conta sobre a conversa importante
que teve com o pai e mostra o quanto está feliz com o
reconhecimento que os amigos influentes de Jordan mostraram. Eu
respondo o mínimo possível, agradecendo por Kahel ser
egocêntrico a ponto de não perceber que estou quase tendo um
treco apenas por ficar aqui dentro com ele.
Estou sufocada. Ansiosa. Sentindo as paredes se fecharem em
volta de mim. Só penso em Axel, na dívida, no dinheiro.
Então, Kahel abre o cofre e tudo o que vejo é dinheiro.
Dinheiro.
Dinheiro.
E mais dinheiro.
Ele passa uma parte para mim, pega a outra para si, e tira seu
notebook da bolsa para anotarmos os valores contabilizados na
planilha. Kahel me explica cada detalhe do que temos que fazer,
mas não escuto nada, porque estou focada demais no dinheiro.
Dinheiro.
Dinheiro.
Muito dinheiro.
Bem na minha frente.
Ao meu alcance.
Ele começa a contar, mas eu fico parada, ainda encarando as
notas. A grande maioria é de valores altos, o que faz sentido, visto o
público que Kahel convidou para vir ao baile. Fico pensando em
quantas notas preciso para pagar minha dívida. Imagino se elas vão
caber no moletom que Kahel tem dentro da mochila. Se eu
conseguiria esconder algumas também no meu sutiã.
Balanço a cabeça em negação, tirando esse pensamento da
cabeça. Não acredito que minha mente está imaginando um cenário
em que roubo esse dinheiro. Parece surreal.
Mas não é.
Porque resolveria meu problema, protegeria Hailey, faria com que
eu me livrasse de Axel de vez. E ninguém sentiria falta, certo?
Esses caras são ricos, doaram essa grana porque tem dinheiro
sobrando.
— Leah? Você ficou esquisita de repente — Kahel pontua e eu
me empertigo, percebendo que divaguei demais. Está óbvio que
nem comecei a contar a minha parte do dinheiro.
Se vou mesmo seguir em diante com essa ideia, preciso me
manter plena.
— Foi mal, só estou abismada com a quantidade de doações —
falo a verdade.
— É, foi maravilhoso! O treinador Morrow e a treinadora Hale vão
nos amar pra sempre! — comenta, animado, e volta a se concentrar
em sua contagem.
Eu começo a contar minhas notas. Focada em uma função,
passo a repensar a ideia de pegar esse dinheiro. Vou roubar do meu
próprio time, que tipo de capitã faz isso?
Conto a primeira pilha e digito o valor na planilha. Vejo que a
somatória só está crescendo mais e mais, conforme o que Kahel
também digita. Eu sigo contando e contando, refletindo sobre os
prós e contras de seguir em frente com essa ideia.
Destruir meus princípios é um problema, mas é da proteção de
Hailey que estamos falando. Por mais que eu carregue essa culpa
para sempre, que essa seja uma atitude errada, não estou vendo
muita escolha. Não há forma de eu conseguir esse dinheiro de
forma honesta. Simplesmente não há. E só de pensar em Hailey se
machucando por minha causa, fico destruída.
Concluo a contagem de todas as minhas pilhas, Kahel já contou
todas as dele. A somatória total é linda. Uma quantia gigante, algo
que eu nunca sequer vi na vida. Ninguém vai sentir falta de um
pouco de dinheiro. Ninguém vai sequer ficar sabendo que falta
dinheiro.
— Bom, eu diria que mandamos muito bem! — Ele está sorrindo
de orelha a orelha, todo feliz pelo nosso desempenho.
— Foi ótimo. Parabéns pelo trabalho — elogio, até mesmo
conseguindo sorrir um pouco, agora que encontrei uma possível
saída para o meu problema.
— Parabéns pra nós, princesa.
Kahel se levanta e vai até mim, puxando meu rosto para nos
beijarmos. Sua boca tem gosto de champagne. Nunca me importei
com o fato de Kahel beber, mas hoje tudo está me incomodando. O
álcool me lembra minha mãe. Minha mãe me lembra a dívida. A
dívida me lembra de que preciso fazer algo que eu nunca faria.
— Vamos voltar pra festa? — ele pergunta quando se afasta e
começa a guardar o dinheiro de volta no cofre.
Meu coração dispara. Se eu quiser seguir em frente, terei que
freá-lo agora.
— Por que você não vai indo e deixa que eu arrumo tudo? Os
amigos do seu pai devem estar ansiosos para falar com você de
novo. Fora que precisamos fazer um discurso para agradecer a
todos pela presença e pelas doações.
— Verdade, eu tinha me esquecido desse discurso. — Kahel faz
uma careta, batendo na testa por ter deixado esse pequeno detalhe
passar.
— Vá se preparando para ele, invente alguma coisa legal pra
dizer. Não quero abrir a boca, vou deixar esse trabalho pra você. —
Não estou com cabeça para isso e Kahel foi quem esteve à frente
da organização. Ele merece esse momento de reconhecimento.
Ele ri da rapidez com que me abstenho dessa tarefa. Mal sabe
que não é pelo fato de falar em público, mas sim sobre me livrar
dele, para que eu possa ficar sozinha com o dinheiro.
— Ok, eu vou, mas não demore. Quero dançar com você de novo
e de preferência te ter nos meus braços a noite toda. — Kahel
agarra minha cintura, me puxando para perto rapidamente.
Apoio os braços em seu peitoral, sorrindo para sua feição bonita,
sentindo algo dentro de mim se apertar por ter que mentir para ele
dessa forma, por ter que trai-lo dessa forma.
— Preciso voltar pra casa hoje. Tenho que estudar durante a
noite, amanhã preciso ir até a casa da minha mãe para ajudá-la com
algumas coisas. — Sou vaga, mentindo outra vez.
A verdade é que preciso despistá-lo para que eu possa sair daqui
com o dinheiro. Não dá para voltar para a festa.
— Vai estudar a noite toda? Leah, você precisa descansar! —
Kahel fica bravo, ele sempre insiste para que eu diminua o ritmo, eu
sabia que se incomodaria com isso, mas que não estranharia meu
comportamento. Ir para casa estudar é algo comum para mim.
— As provas estão acabando comigo e o March Madness já vai
começar. Preciso colocar tudo em dia ou vou me ferrar nesse
semestre. — Faço um biquinho triste com os lábios, cínica. Estou
impressionada com a minha capacidade de me manter na mentira.
Talvez eu esteja tão mergulhada nela, que quase acredite que
seja verdade.
Kahel balança a cabeça em negação e leva meu cabelo para
atrás da orelha. Ele sabe que não há chance de eu voltar atrás
nessa decisão.
— Tudo bem, só não fique acordada até tão tarde e me dê
notícias amanhã. Você volta pra casa com as meninas? — pergunta,
preocupado, como sempre.
— Sim, pode deixar. Jo disse que ia embora, vou pegar uma
carona com ela e Anthony — minto.
Kahel pede que eu avise quando chegar em casa e me dá mais
um beijo carinhoso antes de sair. Enquanto ele discursa, eu coloco a
maior parte do dinheiro no cofre, mas separo a quantidade que
preciso para pagar Axel. Visto o moletom de Kahel, que fica gigante
no meu corpo e vai ser perfeito para que eu esconda todas as notas.
Guardo a maioria no bolso, mas algumas tem que ficar no meu sutiã
ou presas pelo elástico da calcinha. É ridículo que eu esteja fazendo
isso, mas realmente não há opção.
Não posso pensar muito, não quero refletir sobre o que esse ato
significa, nem pensar nas possíveis repercussões.
Pego a planilha de Kahel e excluo o valor que peguei, fazendo
com que o total diminua. Guardo seu notebook na mochila, me
certifico de que todas as notas estejam escondidas, coloco o capuz
e saio em disparada pelo salão.
Espero que ninguém descubra o que fiz, porque viver com a
culpa já vai ser o suficiente para me destruir. Eu não sei como
estarei amanhã, como vou encarar Kahel, como vou continuar
namorando com ele e sendo a capitã do time depois de ter roubado
nossa própria arrecadação.
Mas, infelizmente, esses terão que ser problemas para o futuro. A
única coisa em que preciso focar agora é em pagar Axel para deixar
Hailey em segurança.
Peço um táxi, vou para casa e entro em disparada. O movimento
é tão abrupto, que é só quando escuto um “porra” vindo de Anthony,
seguido de um abraço para tentar esconder o corpo nu de Joanne,
que percebo o que eles vieram fazer quando decidiram sair do baile.
— Ah, mas que merda! — exclamo, ainda na porta, sem coragem
de entrar.
— Oi, Leah — Jo me responde com um sorriso que é tudo,
menos envergonhado.
Decido ir até a sala e vejo que os dois estão emaranhados no
sofá. Fico preocupada por encontrá-los, com medo de que eles
reparem que estou estranha. Enfio as mãos nos bolsos para tentar
conter a tremedeira que o nervosismo causa. Estou tensa dos pés à
cabeça, mas preciso disfarçar. Pensando melhor, é bom que eles
estejam aqui. Encaixa perfeitamente na mentira de eu ter vindo
embora com o casal.
— Vocês... estavam... — tento falar, mas paro a frase no meio. É
a Joanne. Era questão de tempo até que ela transasse na sala.
— Foi mal, James. O tesão bateu e...
— Deixa pra lá, finjam que eu não estava aqui — respondo
rapidamente, cortando Jo. Não quero ouvir os motivos que a
levaram a cometer esse ato e preciso mesmo sair daqui.
Dou licença ao casal e corro até o meu quarto, subindo os
degraus de dois em dois, trancando a porta quando entro. Tiro o
dinheiro do bolso e do meu corpo, sentindo como se estivesse
tirando um veneno de mim. Arrumo a quantia que vou entregar a
Axel em uma caixa e enfio dentro de uma mochila, pronta para
resolver essa situação assim que eu acordar amanhã.
Meu vestido é a próxima coisa que sai do meu corpo. A peça é
linda, mas sinto como se tivesse queimado minha pele a noite toda,
tamanho o desespero e o sufocamento que eu sentia.
Entro no chuveiro frio, tentando fazer com que meu corpo e
minha mente esfriem.
Acho que estou tão quebrada por dentro, que não estranho a
temperatura. Enfio a cabeça embaixo da ducha e fico lá, olhando
para os azulejos, pensando no que eu acabei de fazer. Roubei meu
time. Meu próprio time. O time para o qual eu me entrego em
quadra. As garotas por quem eu dou a vida.
Quero chorar. Quero tanto, tanto chorar. Quero gritar de
desespero. Mas não faço nada. Só sigo olhando para o azulejo,
repetindo a mim mesma que fiz o que fiz por um motivo maior.
Preciso garantir que Hailey esteja em segurança.
Quando eu chamei os matemáticos
Eu pedi a eles para explicar
Eles disseram que o amor só se equivale à dor

Let Somebody Go – Selena Gomez e Coldplay

Acordo simplesmente destruída. Não posso afirmar que dormi a


noite toda, até consegui fechar os olhos em alguns momentos, mas
minha mente não se desligou em nenhum. Pensei nos últimos
meses, refleti sobre as decisões que tomei e os caminhos que me
trouxeram até o lugar complicado onde estou.
Tive que trair meu time, uma das únicas coisas boas que eu
tenho na vida, para tentar me livrar de uma pessoa que já devia ter
sido eliminada do meu caminho há tempos. Que estava eliminado,
na verdade, até minha mãe resolver se afundar mais um pouco no
seu vício.
A raiva que sinto dela é tanta, que não consegui dirigir a palavra
a ela nas vezes em que fui checar Hailey. Minha mãe tampouco está
falando comigo ou fazendo esforço para consertar nossa relação.
Ela acha que eu tomei uma péssima decisão pedindo dinheiro para
Axel, ainda que eu tenha me rebaixado dessa forma apenas para
ajudá-la. Sei que nosso atrito machuca Hailey, mas não vou abaixar
a cabeça dessa vez. Quem saiu perdendo mais, nessa história toda,
fui eu.
Coloco uma calça de moletom larga e uma camiseta da Avril
Lavigne que vai até o meio das coxas, tampando todo o meu corpo.
Enfio o boné na cabeça, com a aba virada para frente, para que
nenhuma das meninas perceba minha expressão e tente perguntar
se está tudo bem. Pego a mochila em que coloquei o dinheiro, jogo
nas costas e saio do quarto rumo ao fechamento do pior ciclo da
minha vida.
Quando termino de descer as escadas, percebo que Scout está
vendo TV na sala. Ouço risadas vindo da cozinha, deixando óbvio
que as meninas estão tomando café da manhã juntas. Olho para
Scout, erguendo o queixo para que ela consiga me encarar e
compreender que vou resolver um assunto importante. Ela recita um
“boa sorte” com os lábios, sem emitir som algum, e eu aceno com a
cabeça, agradecendo-a pelo apoio silencioso. Sei que se Jo, Abby
ou Alex perguntarem sobre mim, Scout vai inventar alguma história
que impeça qualquer tipo de desconfiança.
O trajeto até o meu antigo bairro é solitário e triste como sempre.
Hoje, porém, um novo sentimento toma conta de mim. Estou com
raiva. De Axel, da minha mãe, de mim. Agora que eu estava
construindo uma boa relação com as meninas do time, melhorando
as notas na faculdade, envolvida com Kahel, corro o risco de perder
tudo.
Acho difícil que alguém descubra o que fiz, mas pode acontecer.
E se acontecer, estou fodida. Vou ficar sozinha no mundo de novo.
Não vou ter ninguém para assistir filmes infantis comigo, nem para
me dar apelidos carinhosos ou para me ensinar a dirigir. Demorei
tanto para me abrir, tanto para me entregar, tanto para deixar todo
mundo entrar, para chegar nesse ponto. Em um ponto onde só
quero me fechar em um casulo e chorar.
Apoio a cabeça no vidro do ônibus, sentindo o aperto no meu
peito triplicar. Quero chorar. Preciso chorar. Mas as lágrimas não
saem. Até isso não funciona. Até isso quebrou.
Dou um soco no assento vazio à minha frente, frustrada.
Sinto que joguei toda a minha evolução no lixo quando tomei a
decisão de roubar esse dinheiro. Os motivos foram nobres, mas a
atitude não. Eu nunca vou deixar de me sentir culpada, nunca vou
achar que fiz a escolha certa, nunca vou esquecer desse ato
horrendo que cometi. Leah James nunca faria uma coisa dessas.
Não se tivesse outra opção.
Agarro a mochila com força quando meu ponto chega. Vou
chutando latinhas que vejo pela rua, enquanto caminho até a casa
de Axel. Devo estar parecendo um pimentão, porque meus
divertidamente, nesse momento, devem estar todos com a cabeça
pegando fogo, como Kahel sempre imaginou.
Kahel. Ah, Kahel. O que ele acharia se soubesse que o traí
debaixo do seu nariz? O que faria se soubesse do quanto menti?
Será que ainda gostaria de mim? Será que ainda me amaria?
Gosto de imaginar que sim. Kahel não é tão certinho quanto eu,
ele não veria meu ato como algo determinante. Talvez eu não o
perca, se essa história explodir. Ou talvez eu tenha jogado todo o
nosso amor fora quando resolvi roubar esse dinheiro. Fico pensando
se não seria melhor me afastar dele enquanto ainda posso,
enquanto ele ainda tem uma imagem boa de mim. Eu poderia dizer
que preciso focar nos estudos e que não tenho tempo para namorar.
Pouparia Kahel de se envolver na parte obscura da minha vida.
Posso estar escondendo tudo dele agora, mas se continuarmos
juntos, uma hora ou outra, ele vai descobrir sobre o alcoolismo da
minha mãe.
E eu não quero que ele descubra.
Não devia ter me envolvido com ele, não quando carrego tanta
coisa do meu passado. Não devia ter me entregado, me
apaixonado, deixado que ele entrasse no meu coração. Vivemos
momentos incríveis, mas depois do que fiz, como vou olhar na cara
dele e fingir que as coisas estão normais?
Você já está fazendo isso faz tempo, Leah, é o que digo a mim
mesma. Deixando de contar sobre a minha história, omitindo uma
parte de mim, deixando Kahel no escuro quanto aos porquês das
minhas reações. Ele não consegue me interpretar, não totalmente.
Me abri em relação aos meus traumas com Axel, mas nunca contei
tudo, sempre dividi apenas o necessário.
Meu sonho era que eu entregasse o dinheiro a Axel e depois
vivesse plenamente. Imagino uma cena linda, em que saio da casa
dele saltitando, me sentindo livre, pronta para entregar cada parte
do meu coração para Kahel. Eu até acho que sairei daqui livre, mas
só de Axel. Estarei presa com a minha consciência, com a minha
culpa por ter traído meu time e meu namorado dessa forma.
Bato duas vezes na porta, mas ninguém me atende. Bato mais
duas, nada. A raiva me consome mais um pouco e começo a
esmurrá-la, depositando tudo o que estou sentindo. É gostoso
liberar minha raiva, porém, quase perco o equilibro quando a porta
se abre.
Axel está sem camisa e com um cigarro na boca. Todas as suas
tatuagens estão à mostra, a cueca preta está aparecendo por causa
da calça de cintura baixa. Sua beleza é notável, o tipo de beleza que
promete destruir seu coração. Ele tem cheiro de problema, mas
muitas caem na sua por acharem que o problema vale a pena.
A questão é que não vale. Axel é a personificação de um homem
manipulador, tóxico e abusivo.
— Baby, que delícia te ver — comenta como se não tivesse
passado a semana toda me ameaçando por mensagem, como se
não tivesse mandado seus homens atrás da minha irmã.
Axel é simples. Se você faz o que ele quer, é bem tratado. Se não
faz, é certo que ele vai arranjar uma forma de te ferrar.
— Não posso dizer o mesmo, seu filho da puta de merda! —
Empurro seu peito, usando toda a força que tenho para colocá-lo
para dentro da casa.
Fecho a porta com um coice, sem tirar os olhos dele, o barulho
estrondoso fazendo-o arregalar os olhos.
— Calma, Leah. Qual é, tá de TPM?
Machista. Escroto. Puta que pariu, como eu queria esmurrar a
cara dele!
— Calma? Você pirou, otário? — Me aproximo dele novamente,
arranjando uma força do além para retrucá-lo da forma que merece.
— Ameaçou minha irmã e achou que eu voltaria para os seus
braços? Achou que me conquistaria dessa forma, que me
assustaria? — grito, até ficar frente a frente com Axel e apontar o
dedo indicador para o seu rosto. — Eu não tenho mais medo de
você.
Estou tremendo, mas não mentindo. Ele ameaçou o que eu tenho
de mais precioso, então agora vai enfrentar minha fúria.
— Eu te ajudei, porra! Fiz o que você me pediu, te dei esse
maldito dinheiro, mesmo depois de você ter passado anos sem falar
direito comigo, e o que recebi em troca foi te ver com outro! —
retruca, enciumado, irritado, gritando tanto quanto eu.
— Nunca me mostrei aberta a me relacionar com você de novo,
Axel! Te pedi ajuda porque estava desesperada! Mas você ameaçou
minha irmãzinha, a pessoa mais importante do mundo pra mim,
porque não aguentou ser rejeitado! — despejo a verdade na cara
dele.
— Você devia ter sido mais grata a mim. Te ajudei quando você
não tinha ninguém, fui o cara que você precisava, corri quando você
me ligou precisando de dinheiro. — Joga na minha cara como se
fosse meu dever expressar minha gratidão através de um
relacionamento amoroso.
— Eu agradeço a sua ajuda, mas nunca, em sã consciência, vou
me submeter a você de novo. Nosso relacionamento era uma
merda, Axel. Não havia nada de saudável entre nós. Ainda não há.
— Soo mais calma, apesar de ainda querer esmurrar sua cara.
Axel não responde. Ele parece ter chegado ao seu ápice, porque
o olhar que me lança é de puro desprezo. Toda a obsessão, o
desespero por me ter, o amor problemático que tinha por mim,
sumiu. Parece que só enxerga a rejeição, o fato de eu ter seguido
em frente, de eu ter superado seus malditos abusos.
— O meu dinheiro tá dentro dessa mochila? — pergunta, seco.
— Sim, é todo seu — entrego a mochila a ele, praticamente
empurrando-a na direção do seu corpo.
Axel pega com a mesma brutalidade e puxa uma cadeira para se
sentar em frente à mesa, onde espalha todo o dinheiro. Observo a
casa em que passei parte da minha adolescência, um lugar escuro,
com poucos cômodos, onde ele iniciou sua vida nas drogas.
Começou a produzir no quarto que tinha sobrando, a vender na
escola, depois pedindo para que alguns amigos o ajudassem,
quando a demanda aumentou. Hoje, ele mantém um galpão, que é
sua central de operações, perto da casa. Axel ainda não é tão
grande no meio, então imagino que a grana que pedi emprestada
tenha feito falta. Mas não foi só por isso que ele me cobrou
incessantemente. Foi porque ele viu que não teria chance alguma
de me ter de novo.
— O playboy do seu namorado que te deu esse dinheiro? — Axel
pergunta quando termina de contar, tragando seu cigarro,
espalhando fumaça pela casa fechada.
Cruzo meus braços e tento prender um pouco a respiração para
não tossir.
— Não. Consegui sozinha.
— De que jeito? Você não tem onde cair morta — rebate,
abalando minhas estruturas.
— Não te interessa. Eu paguei, não paguei? — devolvo, mas sei
que o tom da minha voz me entrega.
Axel traga o cigarro novamente, finalizando-o. Ele apaga a bituca
no cinzeiro, soltando uma risada irônica.
— Você fez merda. Dá pra sentir o cheiro de culpa de longe,
Leah. Garotas como você não pisam na bola o suficiente para
conseguirem disfarçar por muito tempo.
As palavras de Axel adentram em mim de uma forma
desagradável. Se ele percebeu que estou estranha, qualquer um
pode perceber. Mas não vou demonstrar que estou abalada. Preciso
sair desse lugar. Preciso fechar de vez esse capítulo da minha vida.
— Você fodeu muita coisa pra mim, Axel. Acho que você nunca
vai ter a dimensão do que fez com a minha cabeça, mas tenha a
certeza de que eu nunca vou esquecer. Se depender de mim, nós
nunca mais vamos nos ver. Fique longe de mim, da minha irmã, da
minha família, da minha universidade. Viva a sua vida sem lembrar
do meu nome. — Minha fala é carregada de rancor, um sentimento
que odeio guardar dentro de mim. Também é carregada de tristeza,
raiva e dor. Ele me machucou, eu tive que me rebaixar para pedir
sua ajuda, e por causa disso, ele tentou me machucar de novo, me
atingindo através de Hailey.
Agora eu espero, do fundo do meu coração, que Axel Norman
nunca mais me perturbe.

Chego em casa atordoada. Esgotei todo o meu estoque de


energia falando verdades para Axel. Fechar esse ciclo fez com que
todos as angústias que eu tentei reprimir emergissem. Passei o
caminho de volta inteiro mergulhada em pensamentos, consumida
de uma forma que perdi meu ponto e tive que andar mais do que o
normal.
Eu não sei o que está acontecendo comigo, mas tenho uma boa
ideia. O esforço excessivo — tanto emocional, quanto físico — dos
últimos meses, está cobrando seu preço. Não consigo organizar
meu raciocínio, sinto dificuldade até de trancar a porta de casa. Meu
peito está cheio, meu coração doendo, minha respiração falha.
Acho que estou com vontade de chorar. Mas não é a vontade que
sinto sempre, aquela que consigo reprimir com facilidade. Essa é
avassaladora. Meu corpo está implorando para que eu libere tudo o
que sinto dentro de mim.
— Leah? — Alex pergunta e reparo que está sentada no sofá da
sala, com o celular na mão. — Mãe, pai, vou ter que desligar.
Depois nos falamos! Amo vocês! — ela se despede da família, mas
não deixo que se aproxime de mim.
Disparo pela escada, rumo ao quarto da pessoa que mais me traz
conforto nessa casa. Alex não entende de problemas familiares, ela
e os pais são amigos, conversam o tempo inteiro, dá para ver que
tem uma ligação que eu mataria para ter com a minha família. Eu
nunca vou ter esse tipo de alegria, nunca vou entender o que é ter
uma vida leve, nunca vou poder chorar no colo da minha mãe.
Vivi boa parte da vida reprimindo qualquer sentimento que me
enfraquecesse, mas agora, não sei, acho que só preciso me libertar.
Bato na porta de Scout e ela murmura um “entra” sem ânimo.
Quando me vê entrando, se ajeita na cama, sentando com as
pernas flexionadas.
— O que aconteceu? — pergunta, visivelmente preocupada.
Vou até sua cama e me sento ao seu lado. Olho para o horizonte
e espero que as lágrimas venham. Respiro fundo para tentar libertá-
las, mas nada acontece. Eu não consigo chorar. Por que eu não
consigo chorar?
— Nada. Só preciso ficar aqui — afirmo, ainda sentindo um nó na
garganta, o mesmo aperto no peito, a mesma dor crescendo dentro
de mim.
Estou me concentrando para chorar, focada nas lágrimas, já
imaginando-as escorrendo pelas minhas bochechas. Nada
acontece. Reprimi tanto esse tipo de sentimento, sempre buscando
me manter forte, que agora não consigo destravá-lo. Meus dutos
lacrimais estão bloqueados. Simplesmente nenhuma lágrima sai.
— Leah? — ouço uma voz me chamando e percebo que Jo, Abby
e Alex estão na porta, as três vestindo seus pijamas, olhando
preocupadas para mim.
— Sem invasão, a capitã aqui está em um momento delicado —
Scout se adianta, tentando me proteger.
Eu a encaro, admirada quando ela toca em minha coxa,
sinalizando que está ao meu lado. Agradeço o apoio, mas sinto que
nada do que dissermos vai cessar a preocupação no olhar das
meninas.
— Está tudo bem. — Minha voz sai trêmula, afastada da firmeza
habitual.
É óbvio que não está tudo bem.
Jo, Alex e Abby ignoram minha mentira e se aproximam, se
juntando a mim e Scout na cama. As quatro ficam sentadas,
olhando para mim atentamente, esperando que eu diga alguma
coisa, conte o que me aflige, desabafe. O desespero atinge seu
ápice quando percebo que elas estão me enxergando de verdade.
Mesmo que eu não revele a verdade, mesmo que eu não abra a
boca, mesmo que eu siga mantendo minha vida em segredo, elas
percebem que há algo errado, que há algo me consumindo.
— Nós estamos aqui, Leah — é Jo quem fala, abrindo um sorriso
acolhedor para mim.
Olho para Alex, que faz um pequeno movimento com a cabeça,
indicando que concorda com a amiga. Encaro Abby, que me lança
uma piscadinha amorosa, seguindo a corrente. Fito Scout, que
aperta o toque em minha coxa, outra vez mostrando seu apoio.
Por fim, olho para todas elas e percebo que mesmo que o meu
erro venha à tona, que tudo na minha vida dê errado, vou tê-las ao
meu lado. Elas não são só minhas companheiras de time e de casa.
São minhas amigas. Minhas melhores amigas. As pessoas que, em
tão pouco tempo, se tornaram um porto seguro para mim.
E é essa segurança que me faz desabar.
Eu choro como nunca chorei. Derrubo todas as lágrimas que
estavam presas há meses, há anos. Despejo a frustração que tanto
me consome, mostro toda a vulnerabilidade que faço esforço para
reprimir.
Sou recebida com um abraço em grupo, com carinho, com amor.
Nenhuma delas diz nada, mas não precisam. Eu sinto que me
amam, assim como eu as amo. Eu sinto que estão aqui por mim,
assim como eu estou por elas. Eu sinto que estamos juntas, dentro
e fora das quadras.
Seu toque em mim
Não consigo dormir

Tip Toe – PatrickReza

Estrear em um campeonato sempre é eletrizante, mas estrear


fazendo a cesta que leva meu time à vitória depois de um jogo duro,
é outro nível. Estou extasiado, saí da quadra pulando e fiz uma festa
no vestiário com os meninos, enquanto tomávamos banho. O início
do March Madness não foi nada fácil. Nossos adversários eram da
Duke, um time que é conhecido e forte, já que levou vários de seus
membros para a NBA. Derek Mackenzie[6], inclusive, jogou com o
meu pai há algum tempo. Sorte que os Tigers estavam com sede de
vitória e deram seu máximo para podermos avançar para a próxima
fase. Pontuamos muito, o jogo foi insano, eu nunca tinha visto os
garotos jogarem dessa forma.
— Vocês são meu orgulho, porra! — berro mais uma vez
enquanto estamos arrumando nossas mochilas para sair do
vestiário.
— Tigers! Tigers! — Sebastian incentiva e o time todo começa a
gritar outra vez.
Maverick tira a camisa e sobe em um banco, girando-a no ar.
Bato na porta do meu armário repetidas vezes, incentivando mais
garotos a fazerem o mesmo. Está um caos aqui dentro. Caos que só
se encerra quando o treinador Morrow entra no vestiário. Ele
literalmente dá um passo para dentro, cruza os braços na frente do
corpo e nos encara. É o suficiente para o silêncio nos tomar.
— Vocês jogaram bem, mas foi só o primeiro desafio que
enfrentaram. — Seu discurso faz boa parte dos garotos abaixarem a
cabeça. Ele quer colocar nossa mente no lugar, é óbvio. Muita
confiança pode destruir um time. — Essa fase do campeonato não é
qualquer fase. Só os melhores do país se classificaram, todos os
jogos serão duros, o nível é muito mais alto do que vocês estão
acostumados. — Suspiro, compreendendo por que ele está falando
dessa forma, mas também chateado, querendo apenas um
parabéns por ter vencido. Nós fomos muito bem hoje. — Mas se
vocês chegaram até aqui, é por algum motivo. Comemorem a vitória
hoje, mas amanhã, quero todo mundo focado na próxima partida.
Entendido?
— Sim, treinador — o time responde em uníssono, porém, apesar
de ele ter nos elogiado de alguma forma, senti que faltou uma fala
um pouco mais humanizada, algo para nos incentivar.
— Treinador Morrow, posso dizer algumas coisas? — peço a ele,
surpreendendo a mim mesmo pela coragem que exibo em minha
postura.
— Claro, Kahel, fique à vontade.
Todos os garotos me encaram com seriedade, cheios de
expectativa. Eu inflo meu peito, lembrando da confiança de Leah
para falar com os times, da segurança que eu sempre observei em
meu pai, quando ele jogava.
— Tigers, batalhamos duro para chegar até aqui e tivemos uma
estreia maravilhosa. Foi um jogo difícil, que exigiu nosso melhor e
temos sim, que focar nas próximas partidas, porque o March
Madness está só começando. Mas fiquem felizes por hoje, porque
eu estou e muito. Nunca estive tão orgulhoso de carregar o símbolo
dos Red Tigers no peito! — Mostro meu moletom, onde o emblema
do time está estampado.
— Você é foda, Kahel! — Maverick grita, iniciando uma série de
aplausos que me arranca um sorriso de orelha a orelha.
Os garotos se aproximam para me cumprimentar, distribuindo
abraços, tapinhas nas costas e elogios. Sinto que o time saiu daqui
focado, com os pés no chão, mas motivado. O treinador Morrow
precisava entrar com sua dureza habitual, entretanto, senti que era
a hora de usar meu papel como capitão para ser o alívio que eles
precisavam.
Quando todos saem do vestiário, o treinador se aproxima de mim.
Ele apoia uma mão em meu ombro e seu semblante fechado, a
princípio, me assusta. Fico com medo de ele ter achado ruim que
tomei a frente dessa forma, mas, surpreendentemente, o treinador
Morrow sorri.
— Você está, finalmente, usando todo o seu potencial, Williams.
Com essa frase e um tapinha em meu ombro, ele me deixa
sozinho. Soco o ar de tanta animação, sem acreditar no quanto
evoluí, tanto em quadra, como fora dela. Passei a última semana
focado nos treinos, pensando somente no campeonato, dando
suporte para o meu time. A função de capitão teve mais significado,
eu me mostrei aberto e os garotos começaram a me procurar para
desabafar ou pedir ajuda. Isso fez com que minha confiança
aumentasse ainda mais, me levando ao discurso de hoje.
Tentei seguir os conselhos do meu pai e passei a ser eu mesmo.
Ainda brinquei, fui a festas, e me diverti, mas soube ser sério
quando precisava, criando uma outra atmosfera entre os Red Tigers.
Fazia tempo que eu não me sentia tão à vontade em quadra. O
menino que sonhava em seguir os passos do pai toma conta de mim
novamente e eu passo a ver meu futuro jogando basquete. Penso
nas quadras, nas entrevistas, nos times, na fama, nas ações
beneficentes. Esse é um cenário que volta a me agradar. É um
cenário em que me vejo facilmente inserido.
Nesse lampejo de futuro, vejo uma certa ruiva ao meu lado. Até
lá, ela já vai estar trabalhando com a minha mãe, provavelmente
comande o negócio ao lado dela e de Lilly. Eu estarei em quadra,
representando nossa família, mantendo o amor dela pelo basquete
aceso toda vez que me ver jogar. Nós vamos treinar na quadra que
teremos em nossa futura casa juntos, para que Leah nunca perca
suas habilidades incríveis de jogo.
— Está no mundo da lua, capitão? Levar seu time à vitória te
esgotou? — A dona das minhas fantasias aparece na porta do
vestiário e não hesita em entrar, percebendo que o lugar está vazio.
— Algum tempo atrás, eu te persegui em um vestiário e você
ficou puta comigo.
— Mas nós nos beijamos logo depois, então acho que fizemos as
pazes bem rápido. — Rio de sua lembrança, parece que faz anos
que isso aconteceu, e não pouco mais de um mês.
Passamos por tanta coisa juntos que tenho a impressão de que
iniciamos a organização das arrecadações há muito tempo. O baile
e a venda de garagem já terminaram, o dinheiro já está com os
treinadores, nossa função acabou, mas continuamos juntos. Estar
com Leah é uma das partes favoritas do meu dia, quando ela
arranja um tempinho para mim.
Na última semana, nos vimos apenas duas vezes. Ela tem estado
atolada com o trabalho e treinou muito, graças à proximidade com o
início do campeonato. As Fox jogaram ontem e venceram sua
estreia por um placar apertado. Fui assistir ao jogo e torcer por Leah
e, hoje, ela veio torcer por mim usando uma camiseta com o número
seis e “Williams” estampado no verso.
Ela está linda com o cabelo ruivo solto e levemente ondulado nas
pontas, o corpo coberto pela minha camiseta, a calça jeans rasgada
combinando com o tênis de cano alto e o estilo skatista que agora
eu sei de onde vem. Aprendi muito sobre Leah desde que nos
aproximamos e passei a analisar alguns de seus comportamentos.
Percebi que ela tem problemas de confiança e que é uma garota
mais fechada, e nós evoluímos bastante nesse quesito, porém,
ainda sinto que há muito que ela não me diz. Respeito sua decisão,
entendo que não quer compartilhar cada detalhe de sua vida
comigo, mas, sei lá, ela anda esquisita demais. Eu queria entender
o porquê.
— Viu a cesta que dediquei a você? — pergunto, me
aproximando dela, abraçando sua cintura.
Leah apoia as mãos em meu peitoral e assente de forma contida.
— Foi um ótimo jogo, você mandou bem.
— Obrigado. — Agradeço e o assunto entre nós morre. As coisas
não eram assim antes. Esse silêncio me deixa constrangido. — O
que você tem, princesa? Está quieta demais. — Coloco uma mecha
do seu cabelo atrás da orelha, encarando-a diretamente.
— Não é nada. Só fiquei cansada do jogo de ontem. — Entendo
que a partida foi difícil, mas eu sei que não é só isso. O problema é
que sempre que eu a contesto, Leah responde de forma vaga ou
foge do assunto.
— Tem certeza? Você já estava assim antes do jogo.
Leah nega e eu mais uma vez me contesto por breves instantes.
Será que estou vendo coisa? Ela costuma ser mais reservada, não
expõe tanto a vida e é uma das jogadoras mais focadas que já
conheci. Pode ser que seja somente nervosismo. Ou pode ser outra
coisa. Mas Leah não quer me contar o que é e eu não quero forçá-la
a nada.
— Estou bem, Kahel. Vim até atrás de você dentro desse
vestiário só pra te dar um beijo de parabéns! — Sua expressão
segue esquisita, mas eu sei que não há chance de eu arrancar a
verdade dela. Não hoje, não agora.
— Então cadê meu beijo? — peço, voltando ao meu jeito
brincalhão, para que o clima entre nós melhore.
Leah fica na ponta dos pés e agarra meu pescoço, me dando um
beijo gostoso. Eu a puxo pela cintura com força, sentindo o tesão
que sinto por ela me dominar, lembrando do quanto o gosto dela me
deixa entorpecido. Não tivemos tempo de transar essa semana e
minhas mãos não são tão legais quanto a boceta dela.
Desço a mão para sua bunda porque não me aguento, preciso
tocá-la. Leah me responde com um gemido, mordendo meu lábio
com uma força que não é comum. Ela está tão sedenta quanto eu.
— O quanto você ficaria brava se eu te fodesse nesse vestiário?
— sussurro em seu ouvido, enquanto distribuo beijos pelo seu
pescoço, me aproximando de sua orelha, mordendo o lóbulo para
seduzi-la.
— Eu não ficaria. Estava esperando por isso, pra falar a verdade.
Sua resposta me surpreende. Paro de beijá-la para erguer as
sobrancelhas, indignado com o que estou ouvindo.
— O que foi? Não posso ter vontade de fazer uma coisa
diferente? — rebate, na defensiva.
— Só fiquei surpreso, princesa — respondo de uma forma fofa,
para que ela não brigue comigo e recue.
Leah costuma ter um comportamento mais certinho e contido,
pensar que ela entrou nesse vestiário imaginando que iríamos
transar traz uma imagem diferente da que tenho dela. É um
diferente bom, um sinal de que Leah confia em mim, de que tem
gostado das nossas experiências sexuais.
— Vai ficar de conversinha ou vamos em frente? — ela pergunta
com o tom que usava quando ainda nos odiávamos.
Sua voz me arrepia, porque me lembro das sensações que me
tomaram quando comecei a enxergá-la de outra forma. O tesão que
eu sentia quando brigávamos toma meu corpo novamente e sou
obrigado a tomar uma atitude.
Puxo a camiseta de Leah, deixando-a apenas de sutiã. Seguro
seus seios, sentindo o volume por cima do tecido de renda. A forma
como ela me olha, como se quisesse me devorar agora mesmo, faz
com que eu já leve a mão para o fecho do sutiã. Leah tira a peça
olhando para mim, jogando-a no chão.
— Alguém pode nos flagrar — ela comenta, olhando para a porta,
preocupada com essa possibilidade.
— Não gosta da ideia de fazer algo proibido? — provoco,
brincando com o bico dos seus seios, já durinhos para mim.
— Estou ousada, mas não tanto — Leah rebate, apontando com
a cabeça para a porta mais uma vez.
Solto um riso leve, agora sim enxergando a garota que conheço.
Corro até a porta para trancá-la, rezando para que ninguém tente
abri-la no tempo em que estivermos aqui, caso contrário,
arranjaremos problemas.
— Pronto, capitã. — Vou caminhando até ela novamente com os
braços abertos, mostrando que estou à sua mercê, que meu corpo é
todo seu. — Agora me diga, o que quer que eu faça? — pergunto,
deixando o controle na mão dela.
Leah não responde com palavras. Ela só faz um sinal com a mão,
para que eu me aproxime dela. Vou andando devagar, mas quando
chego a uma distância curta, ela espalma a mão em meu peito e me
empurra até que eu encoste as costas na parede. Ergo as mãos,
encantado com sua atitude, doido para ver o que tem em mente.
Ela desabotoa a calça, descendo-a pelas pernas até ficar
somente com uma calcinha preta e um tanto transparente no corpo.
Vejo sua boceta e não resisto, preciso levar uma mão até ela e
acariciá-la por cima do tecido. Leah se contorce nas minhas mãos,
abrindo a boca levemente com o contato.
Em resposta, ela leva a mão para a minha calça, tentando
desabotoá-la. Abandono sua boceta momentaneamente para ajudá-
la a me deixar nu. Arranco o moletom, a camiseta e a cueca,
libertando meu pau.
Leah leva sua mão a ele e começa a me acariciar.
— Quero tentar uma coisa diferente — divide seus planos
comigo, me lançando um olhar inocente e, ao mesmo tempo,
perverso.
— O que você quiser fazer, faça. Sou todo seu.
Leah esboça um sorriso lateral malicioso e se ajoelha.
Eu repito.
Ela se ajoelha.
Meu Deus.
Quando sua boca envolve meu pau pela primeira vez, sinto cada
pelo do meu corpo se arrepiar. Sua língua passeia pela minha
extensão com cuidado, conhecendo meu gosto, explorando cada
pedaço da minha pele. Ela tira da boca para me masturbar de novo,
espalhando minha lubrificação. A forma como ela bate uma para
mim, acelerada, mas não muito, me deixa completamente
enlouquecido.
Leah volta a me chupar, erguendo o olhar para mim no processo,
para conferir se estou gostando. Seguro em seu cabelo ruivo para
acompanhá-la, incentivando que aumente a velocidade. Passo a
foder a boca de Leah quando vejo que ela se acostuma com o meu
ritmo.
Eu poderia gozar na boquinha dela. Seria lindo, uma experiência
inesquecível, mas não abro mão de meter em sua boceta.
— Vem cá, princesa — chamo Leah, fazendo um sinal com a
mão, para que ela se junte a mim.
A maldita capitã das Fox não larga meu pau. Continua me
masturbando, mesmo já em pé à minha frente, com nossos olhares
na mesma altura. Roubo um beijo de seus lábios, enquanto brinco
com o elástico da sua calcinha, ansioso para tirá-la.
— Estou pensando onde quero te foder — falo, puxando o tecido
para baixo devagar, logo voltando-o para cima, apenas a atiçando.
— Não sei se prefiro ver você quicando no meu colo ou com a
bunda empinada pra mim.
— Podemos testar os dois — ela joga a ideia no ar, me beijando
mais uma vez, antes de começar a se afastar, dando alguns
passinhos para trás.
Sua calcinha é retirada em segundos e tenho a visão privilegiada
do seu corpo maravilhoso pronto para mim.
Entendo o que quer e me sento com as costas apoiadas nos
armários, esperando que ela tome a frente da nossa transa. Pego
uma camisinha na mochila rapidamente, envolvendo-a no meu pau.
Leah não hesita. Ela se aproxima, coloca um joelho de cada lado
do meu quadril, e esfrega a porra da boceta no meu pau.
— Caralho, Leah, senta logo — imploro, morrendo apenas com
esse mero contato.
Ela me enlouquece. Simplesmente me enlouquece. E o pior é
que sabe disso, porque lança um riso safado para mim, antes de
segurar meu pau e posicioná-lo na sua boceta. Leah senta com
calma, demora até que esteja toda preenchida por mim. Eu a sinto
me apertando, me encanto pelo modo como conduz nossa
velocidade.
Levo minhas mãos até sua bunda para tentar ajudá-la, como o
bom garoto que sou. Aperto-a com força, incentivando-a a acelerar.
Eu adoro o fato de sermos dois atletas. Adoro que temos fôlego
para fazer nossa transa ser intensa. Adoro que consigo fodê-la em
pé, com as costas batendo no armário, enquanto agarro suas coxas
gostosas. E adoro ainda mais o fato de que ela topa segurar na pia
e empinar a bunda para mim.
Enxergar nosso reflexo e a expressão maliciosa que tomou
nossos rostos, enquanto meto nela com as mãos na sua bunda,
eleva o patamar do nosso prazer.
Não consigo mais me controlar. Leah já gozou uma vez, quando
acariciei seu clitóris, enquanto ela sentava em mim. O plano é que
ela se liberte mais uma vez, agora assistindo a cena de camarote.
Acelero as estocadas, ela nem consegue ficar com o corpo
parado, está tão consumida pelo prazer, que traz o quadril ao
encontro do meu. O vestiário é tomado pelos nossos gemidos, pelo
som da bunda dela se encontrando com o meu pau.
A cara que Leah faz, com a boca levemente aberta, os olhos
revirados de tanto prazer e uma mordidinha leve no lábio inferior, me
dá o incentivo que preciso para acelerar mais.
— Goza pra mim, capitã. — Uso um tom mais autoritário, irônico,
raivoso, parecido com o que usava em nossas brigas infantis, assim
como ela quando incitou essa transa.
Leah não demora a me obedecer. Ela geme alto, agarrando a pia
com toda a força de seus braços, enquanto continuo metendo sem
parar. Espero até que ela esteja terminando de gozar para me
libertar. Vou diminuindo a velocidade aos poucos, tão extasiado
quanto ela, consumido pela nossa conexão, por essa troca de
energia que nossos corpos tiveram.
Saio de dentro dela, mas já a puxo pela cintura para que fique de
frente para mim. Tomo seus lábios em um beijo, declarando meu
amor por ela.
Leah retribui, mas quando nos separamos, vejo que o brilho que
nossa transa trouxe para os seus olhos se apagou. O encanto se foi
tão rápido quanto veio.
Eu não sei o que há com ela, não sei o que está acontecendo, o
que está sentindo. Estou completamente perdido, sem saber como
abordá-la, sem saber o que se passa em sua mente.
Fico me perguntando se é algo relacionado a mim, a nós, ao
nosso namoro. Esse pensamento me preocupa, mas tento não me
deixar ser consumido por ele.
Se algo estivesse errado em nosso relacionamento, ela me
falaria. Certo?
Não é engraçado?
Todos os jogos distorcidos
Todas as perguntas que você costumava evitar?

traitor – Olivia Rodrigo

Sinto dores em todos os músculos do meu corpo e só há uma


coisa que quero fazer para relaxar: transar com Leah. O único
obstáculo é encontrá-la. Minha namorada não responde minhas
mensagens direito, hoje mal falou comigo, não sei se está nervosa
com os jogos, se conseguiu se livrar do turno do trabalho.
Não entendo esse gelo que ela está me dando. Parece que Leah
está se afastando de mim aos poucos. Sinto que estou a perdendo,
mas não sei o porquê. Ela não me conta nada, sempre repete que
está tudo bem, quando eu sei que não está. Não sei mais o que
fazer para tentar arrancar alguma informação dela.
Decido tomar um banho e limpar o suor, para me recuperar do
treino insano que o treinador Morrow inventou. Tivemos que correr
em volta do campus durante todo o nosso tempo de treino. Ele diz
que estava nos preparando fisicamente para os jogos do final de
semana, mas eu acho que estava tentando testar nossa força
mental. Precisei de muito foco para não desistir da corrida infinita.
A fase inicial do March Madness é uma loucura, tivemos nossa
estreia na sexta e iremos jogar de novo amanhã. As Fox estrearam
na quinta e jogam de novo hoje, no período da tarde. Vou assisti-las,
é óbvio, mas gostaria de poder desejar boa sorte para a minha
garota antes que ela entre em quadra.
Pena que isso só é possível se ela me responder.
Saio do vestiário do Bolton Indoor Stadium com a bolsa jogada
nos ombros, conversando com Mav e Seb sobre o relacionamento
firme e secreto de Maverick. Ele nos conta coisas superficiais sobre
o cara com quem está saindo, mas toma cuidado para não dar
detalhes demais, para que não descubramos quem é. Esse mistério
todo está me matando.
— Kahel, que bom te ver! — A treinadora Hale me para no meio
do corredor. Ela está segurando uma prancheta, o apito balança no
pescoço e a camiseta com o logo das Red Fox me diz que já está
pronta para o jogo.
— Ei, treinadora! Está animada para o jogo? — pergunto,
fazendo um sinal para Maverick e Sebastian irem para o carro sem
mim. Madison Hale consegue ser um pouco tagarela, quando quer.
— Ah, sim, sempre. Temos adversárias difíceis hoje.
— Mas as Red Fox estão jogando muito — rebato, porque
realmente as meninas melhoraram. Mia tem feito um jogo menos
egoísta e Abby tem topado entrar um pouco mais em quadra. O time
feminino da KSU está começando a entrar nos eixos.
— É, elas estão. Confio nas minhas garotas. — Ela solta uma
risada fofa, mas eu sei que não é isso que quer dizer para mim. É
difícil que eu converse com a treinadora Hale. Nós nunca ficamos de
papo furado, quando nos encontramos, sempre falamos sobre
alguma coisa importante. — Queria te parabenizar pelo baile, a festa
estava incrível e o departamento esportivo está pulando de alegria
com toda a publicidade que você trouxe. Fora que alguns dos
amigos do seu pai se interessaram em começar a patrocinar os
times nas próximas temporadas. Os valores ainda estão sendo
discutidos e o contrato ainda não foi assinado, mas se
conseguirmos isso, não precisaremos mais lutar para arrecadar a
verba para os campeonatos! Seu trabalho foi realmente excepcional.
Levantar quarenta mil dólares em uma noite é impressionante,
Kahel. Espero que se orgulhe do seu trabalho.
Não consigo conter a animação diante de seu elogio. É incrível
saber que fiz a diferença para as equipes de basquete da KSU. Isso
me move a continuar, me inspira a seguir dando o meu melhor como
capitão, me faz ter a certeza de que estou no caminho certo e que
tenho capacidade de fazer o que eu quiser.
Porém, apesar de ter adorado quase todas as palavras que
saíram da boca de Madison Hale, algo em sua fala me incomoda.
— Não foram quarenta mil dólares, treinadora. Foram cinquenta
— a corrijo, certo de que ela se equivocou e confundiu os valores.
Pela expressão dela, vejo que não é o caso.
— A Leah me deu quarenta mil dólares. Na tabela que ela me
enviou o valor também era esse.
— Não, não é possível. Fiz as contas junto com ela, foram
cinquenta. Tenho certeza — reforço, algo deve estar errado, eu me
lembro muito bem do valor que arrecadamos. Caralho, contei junto
com ela, também digitei na planilha.
A treinadora pega seu celular, digitando algo rapidamente e logo
me entrega o aparelho.
— Aqui, olhe o e-mail que a Leah me mandou. Essa é a tabela de
vocês, não é? — contesta e eu observo cada detalhe do arquivo.
Realmente, é a nossa tabela. Mas o valor final está errado, não
tenho dúvidas disso.
— Foram cinquenta mil dólares, está faltando coisa nessa
planilha — afirmo outra vez.
A treinadora pega seu celular e bloqueia a tela, colocando-o no
bolso. Sua expressão me diz que minha contestação a preocupa,
que ela, assim como eu, está tentando processar o que está
acontecendo.
— Kahel, não tem como, o dinheiro foi da Leah direto para a
minha mão. Uma quantia dessas não se perde no meio do caminho,
a não ser que...
— Alguém a desvie — finalizo a frase para ela, sentindo meu
peito se apertar. Tento controlar minha respiração, mas não consigo.
Sinto como se as paredes do ginásio estivessem se fechando à
minha volta. — Mas esse dinheiro só passou nas minhas mãos e
nas de Leah.
A constatação faz com que a treinadora fique em alerta. Eu
engulo em seco, buscando compreender essa situação. Parte do
dinheiro que arrecadamos sumiu, as contas estão todas erradas,
sendo que eu planejei cada detalhe da planilha, organizei todo o
esquema de contabilidade, conferi o valor quando terminamos de
contar as notas. Há uma coisa muito errada acontecendo.
— Você acha que a Leah poderia ter feito isso? — ela joga o
questionamento no ar e eu sinto a dor dentro de mim aumentar.
Leah anda estranha há dias. Ela sempre carregou seus mistérios,
mas parece ter se afastado ainda mais de mim depois do baile.
— É a Leah — solto mais para mim do que para ela, achando
essa ideia absurda. Deve haver outra explicação. Não é possível
que não exista outra explicação.
— Kahel, seja honesto comigo, você acha que a Leah poderia ter
desviado uma parte desse dinheiro? — a treinadora pergunta de
novo, visivelmente abalada, preocupada com o que vou responder.
Assim como eu, ela se importa muito com Leah. Nós a amamos,
admiramos sua postura e jamais esperaríamos um comportamento
desses vindo justo dela, mas não dá para negar que essa história
está estranha, que todas as evidências apontam diretamente para a
minha namorada. Eu tenho certeza de que há dinheiro faltando e
quem fez a entrega para a treinadora foi Leah. Deixei a quantia toda
sob sua responsabilidade depois do baile.
Eu não quero que isso seja verdade. Não quero acreditar que a
garota por quem estou apaixonado trairia seu time dessa forma. As
Red Fox são tudo para ela. Ou eu acho que são tudo. No fundo, há
muito que não sei sobre Leah James.
— Preciso sair daqui — anuncio e saio andando pelo corredor.
Escuto a treinadora Hale me chamar, mas não olho para trás.
Não quero mais conversar com ela, não quero responder suas
perguntas, não quero tirar conclusões precipitadas. Preciso
conversar com Leah e ouvir a sua versão dos fatos.
Mas antes disso, preciso de mais informações, da certeza de que
analisei tudo o que estava ao meu alcance.
Pego meu celular e digito uma mensagem para Joanne,
perguntando onde ela está. A pivô das Fox logo responde e diz que
está fazendo um pouco de musculação para se preparar para o
jogo.
Eu literalmente corro até a academia do centro esportivo. Durante
o percurso, nem parece que meu corpo já se esgotou fisicamente
hoje. Tudo o que penso é em Leah, a garota certinha e responsável
por quem eu me apaixonei. Uma garota que, na minha cabeça,
jamais teria coragem de roubar o próprio time. Apesar de tudo
apontar para ela, só vou acreditar que isso é verdade quando não
houver outra possibilidade. Me recuso a aceitar essa história
facilmente. Se Leah realmente tiver desviado esse dinheiro... meu
Deus, não sei se conseguirei perdoá-la.
Entro na academia ofegante, o lugar não está muito cheio, por
ser sábado, então não demora até que eu encontre Joanne. Abby
está a ajudando a fazer um agachamento. Quando as duas
percebem minha presença e o meu estado, fazem caretas
estranhas.
— Kahel, você tá bem? — Abby pergunta, apoiando uma das
mãos na cintura.
Joanne coloca a barra do agachamento de volta no suporte e se
vira para mim.
— Você está com uma cara péssima — ela comenta com
sinceridade demais.
Ignoro tudo o que dizem, me focando somente no que vim fazer
aqui.
— Jo, preciso te fazer uma pergunta. — Ela assente
repetidamente, indicando que eu prossiga. — A Leah voltou com
você do baile? Vocês foram juntas pra casa?
A expressão de Jo entrega que não entendeu o porquê da
pergunta.
— Não, achei que ela tivesse voltado com você. Eu já estava em
casa quando ela chegou.
O que Joanne conta me faz dar alguns passos para trás. Leah
me disse que ia embora com a amiga. Eu a deixei sozinha com o
dinheiro e voltei para a festa. Passei o resto da noite bajulando os
amigos do meu pai para garantir o futuro do nosso time, enquanto
ela nos sabotava.
A decepção que sinto destrói a sanidade que tentei manter desde
que os indícios de um roubo vieram à tona. Como Leah fez isso?
Como ela foi capaz de pegar parte do nosso trabalho duro? Como
ela conseguiu olhar na minha cara depois de ter feito uma coisa
dessas?
Pensando bem, ela teve grandes dificuldades de se aproximar de
mim desde o baile. Se esquivou, ficou estranha, não conversou
comigo direito, me procurou de verdade somente ontem, após a
vitória dos Tigers. Fico me perguntando se ela não foi atrás de mim
só pelo sexo. Leah estava nitidamente querendo transar, talvez para
esquecer o que fez. Depois disso, ela sumiu de novo, me deu o
mesmo gelo de antes. Ela me usou e descartou.
Vou me afastando de Joanne e Abby até que seja razoavelmente
educado que eu me vire e encerre nossa conversa sem me
despedir. Antes de sair, porém, escuto Abby sussurrando para a
amiga: — Eu tenho a impressão de que você não deveria ter
contado isso a ele.
Essa frase faz com que eu precise me escorar na parede,
buscando forças para continuar. Sou um cara esquentado por
natureza, mas essa situação não me deixa só puto, me deixa
decepcionado, frustrado, com um sentimento crescente de traição
dentro de mim.
Eu gostaria que tudo fosse um grande mal-entendido, mas algo
me diz que não é o caso. Entretanto, só há uma pessoa que vai me
ajudar a desvendar esse enigma.
Preciso ir atrás de Leah.
Mas são só mentiras agora, baby
Oh, mentiras que me colocam para baixo
Lies – Two Feet

Entrei em um estado de torpor tão grande, que não sinto


ansiedade alguma para o jogo que temos em breve. Passamos para
a segunda fase do March Madness e fiquei orgulhosa do meu time,
porém, nem isso me trouxe alívio.
Nas últimas noites, só pensei no dinheiro. Um filme se passou na
minha cabeça cada vez que a encostei no travesseiro. Repassei a
cena do roubo, me perguntei se fui fria demais, se meu coração
havia congelado de vez, depois de ter traído não só meu time, mas
meu namorado e todo o trabalho que tivemos para arrecadar esse
dinheiro.
Evitei Kahel o máximo que pude. Todas as vezes em que o
encontrei, tentei desviar o assunto e me focar em sexo. Não só para
distraí-lo e evitar qualquer tipo de conversa ou questionamento em
relação ao meu comportamento, mas também para que eu pudesse
relaxar. Os momentos em que me fez gozar foram os melhores da
semana. Eu consegui, pelo menos durante aqueles minutos, pensar
somente no meu prazer. O grande problema é que o prazer acaba.
A realidade aparece. A culpa volta a me assolar. Eu continuo
pensando no dinheiro, continuo horrorizada por ter tomado uma
decisão dessas.
Resolvi a dívida da minha mãe, encerrei de vez o ciclo vicioso de
Axel, trouxe de volta a segurança para a vida da minha irmã. Como
consequência, fodi mais ainda a minha. Todo o progresso que tive
foi jogado no lixo. Não consigo conversar direito com as minhas
amigas, me afastei emocionalmente de Kahel, ergui meu muro outra
vez.
De novo, me sinto sozinha.
Estou deitada na cama, abraçando meus joelhos, pensando
sobre todas as merdas da minha vida, quando devia estar me
concentrando no jogo que terei daqui a pouco. Abby e Joanne estão
na academia aquecendo as articulações, Scout foi fazer uma corrida
leve pelo bairro, Alex está lendo para focar sua mente e eu estou
aqui. Parada. Inútil. Remoendo minha culpa.
Duas batidas discretas na porta me fazem gemer. Fecho os olhos
devagar, apoiando a mão no colchão para me sentar. Pego meu
boné, que estava jogado na mesa de cabeceira, e o coloco na
cabeça. Ajeito o cabelo amassado, tentando melhorar um pouco
minha expressão, sabendo que Alex está na porta. Minha amiga
com certeza percebeu que estou mais estranha do que o normal,
mas se me encontrasse na cama, absorvendo minha derrota,
tentaria arranjar uma forma de me animar. E eu não quero que ela
se esforce para me ajudar. Não mereço.
— Pode entrar, Alex — falo e me levanto para abrir a porta para
ela.
Dou um passo para trás quando vejo que não é minha amiga
quem me procura, e sim Kahel.
— O que você está fazendo aqui? — pergunto, confusa. Tenho
evitado suas mensagens, é fato, mas imaginei que ele fosse supor
que eu estava me concentrando para o jogo. Nunca pensei que
pudesse simplesmente aparecer no meu quarto.
— Vim te ver. Não gostou? — rebate, dando de ombros, com as
mãos nos bolsos da calça jeans.
— Claro que gostei! — afirmo com um tom agudo na voz, tão
diferente do tom normal, que fica óbvio que há algo errado.
Fico segurando a porta, apertando-a com força, como se ela
fosse minha âncora, o objeto que me mantém sã.
— Posso entrar? — Kahel pergunta, levantando as sobrancelhas.
Por sua expressão, consigo ver que irá me questionar. Eu tenho
estado estranha desde o baile, tenho me afastado cada dia mais.
Ele sabe que não estou sorrindo como antes, que algo me puxou
para baixo.
Kahel só não sabe o tamanho da minha queda.
— Claro, fique à vontade. — Mais uma vez, minha voz soa
cantada, minhas palavras são cordiais demais para o nosso nível de
intimidade.
Posso não ter escancarado minha vida para ele, mas contei parte
da história do meu pai, dividi meus sonhos e ambições, expus meu
trauma com Axel. Eu abri meu coração para Kahel. Deixei que ele
entrasse, que me amasse, que cuidasse de mim. Mas agora me
afastei. Coloquei tudo a perder. Ele deve achar que não gosto mais
dele, deve estar cansado de levar gelo o tempo todo, de ter uma
namorada ausente.
Kahel anda pelo meu quarto, parando próximo a janela. Ele
segue com as mãos nos bolsos, consigo ver que seus ombros estão
tensos, mostrando que há algo o atormentando. Seu olhar deixa
claro que está confuso. O modo como ele o desvia pelo cômodo,
como se quisesse fugir do meu olhar, me faz achar que está aqui
para terminar comigo.
Sinto meu coração disparar, um certo enjoo me consome, ao
mesmo tempo que me sinto aliviada, porque mereço isso. Eu
sempre disse que Kahel era bom demais para mim. Ele finalmente
deve ter percebido que não sou para o seu bico.
— Eu tenho algo pra te perguntar, Leah — solta, retomando
nosso contato visual. Não há mais amor em seus olhos. Ele não
gosta mais de mim. — Mas preciso que você seja honesta comigo.
Acha que consegue fazer isso?
— Sempre fui honesta com você — rebato sem pensar.
Estou me tornando uma bela mentirosa.
— Não seja hipócrita agora, por favor — pede com um riso
sarcástico preso nos lábios. Eu me calo, sem ter como contestá-lo.
Não acredito que isso está acontecendo. Não acredito que nosso
relacionamento gostoso vai acabar. — Você foi embora do baile com
a Jo?
Sua pergunta me faz travar. Por que ele está questionando uma
coisa dessas? Eu achei que Kahel tinha vindo até aqui para terminar
comigo, mas parece que não é só isso. Imaginar os motivos que o
levaram a confirmar essa informação me deixam em completo
desespero. Será que ele sabe? Será que desconfia? Será que
chegou a hora de começar a pagar pelo que fiz?
— Sim, eu te disse que fui. — Me mantenho na mentira, firme à
ideia de não me entregar. Por dentro, estou tremendo. Por fora,
tento parecer plena, apesar de imaginar que nem se eu fosse a
melhor atriz do mundo, conseguiria disfarçar o desespero que sinto.
É isso. Esse é o momento em que eu me afundo de vez.
— Jo disse que já estava aqui, quando você chegou. — A
revelação de Kahel me faz morder o lábio inferior. A força dos meus
dentes é tanta, que sinto um gosto de sangue. Mordi a pele. Me
cortei. Mas não ligo. — Vai continuar mentindo? Porque estou
começando a ficar farto dos seus segredos, Leah! — Ele aumenta o
tom de voz e tira as mãos dos bolsos para gesticular.
Kahel entrou aqui querendo se controlar. Ele é um cara explosivo,
mas tentou não explodir comigo, apesar de tudo o que fiz. Minha
máscara caiu.
— Você não entende — respondo a única coisa que me vem à
mente, sentindo meus olhos encherem de lágrimas.
— Não entendo? O que eu não entendo? Porque para mim está
tudo bem claro. — Ele dá passos pesados para perto de mim,
apontando o dedo indicador para o meu rosto. — Como você pode
roubar seu time, sendo a porra da capitã? Como pode jogar todo o
nosso trabalho fora?
Ao ouvi-lo, meu desespero só aumenta. Seus olhos exalam raiva.
— Kahel...
— Não tente me dizer que não é isso, que eu estou equivocado,
porque tenho provas, Leah! Você mexeu na nossa planilha depois
de eu já ter saído de perto do computador. Você adulterou as contas
e pegou o dinheiro pra você! — Ele continua apontando o dedo para
mim, me acusando de uma forma que me faz desabar.
Faço uma coisa que nunca fiz na frente dele. Eu choro. Deixo que
as lágrimas consumam meus olhos outra vez, que a dor consuma
meu corpo, que a culpa que sinto fique exposta.
— Kahel, as coisas não são tão simples assim. — Tento explicar,
mas ele não está com vontade de ouvir. Era tão óbvio que ele ia
descobrir. Não sei o que o levou a olhar novamente o arquivo, mas
não importa. Acabou para mim.
— Não? Então você não roubou? O dinheiro desapareceu? —
Sua rebatida grosseira e a falta de empatia diante do meu choro me
mostra que tudo o que havia de bom entre nós acabou. Não tenho
coragem de respondê-lo. Ele já sabe a verdade. — É, é o que
imaginei — debocha, balançando a cabeça em negação, mexendo
em seu cabelo quando se afasta de mim e começa a andar de um
lado para o outro no quarto. — Sabe, o tanto que você era certinha
era um dos motivos que me levavam a não gostar de você. Eu te
achava insuportável por ser tão correta. Nunca imaginei que você,
logo você, fosse fazer uma coisa dessas. Mas depois, refletindo
melhor, percebi que não te conheço tão bem quanto imaginei — ele
fala com um rancor que dilacera minha alma.
— Você me conhece, sim! — respondo, mas estou mentindo para
mim mesma.
— Não, Leah. Não conheço, não de verdade. Há muito que você
não me conta, sempre foi assim! Mesmo quando nós estávamos
bem, você me deu pequenas aberturas, mas nunca revelou tudo! Eu
escancarei meus medos pra você, entreguei meu coração, mas
você sempre ficou com um pé atrás, nunca quis me contar toda a
verdade. — A dor em sua voz se torna nítida quando seus olhos se
enchem de lágrimas.
Nós dois estamos chorando, destruídos, trocando olhares tristes,
novamente pairando na linha tênue entre o amor e o ódio.
Nos breves segundos que passamos em silêncio, penso em tudo
o que vivemos juntos, desde o início das arrecadações, até o ponto
em que começamos a nos aproximar. Lembro das nossas conversas
sinceras, dos nossos jogos, das risadas, dos sorrisos, do nosso
amor. Sinto que estou perdendo tudo isso, que os sentimentos entre
nós estão escorrendo pelas minhas mãos, se esvaindo de forma
descontrolada.
A forma como ele me encara mostra que essa situação o
quebrou. Suas expectativas ao meu respeito foram modificadas, ele
não se sente só traído, como também decepcionado, porque jamais
esperava que eu fosse ter uma atitude dessas. Kahel se sente
assim porque não sabe da minha história, por causa do meu
silêncio, do meu receio de revelar a ele a verdade. Mas agora, se eu
não fizer isso, com a raiva que ele está sentindo, não duvido que me
dedure.
Preciso contar tudo. Não posso esconder mais nada. Se eu
continuar em silêncio, vou perdê-lo.
— Kahel, por favor, me escute... — começo a falar, mas meu
celular toca na mesma hora.
Olho para o aparelho, que está jogado na cama, e vejo que é
Hailey. Pego o celular e recuso a chamada. Não posso falar com ela
agora.
Quando volto a olhar para ele, percebo que minha abertura para
me justificar acabou.
— Kahel...
— Eu não quero mais saber de você, não quero escutar nada,
porque nada do que você disser vai mudar minha opinião. — Ele é
radical, se apegando somente aos sentimentos ruins, deixando que
a raiva o consuma. — Seus atos vão ter consequências, ouviu? Não
vou deixar que meu time se ferre por causa do seu egoísmo!
Fico sem palavras diante do que escuto. Posso estar derrotada,
chorando e sentindo meu coração ser quebrado em milhares de
pedacinhos, mas falar que eu sou egoísta? Isso não aceito. Ele não
sabe da história, não faz ideia do que eu passei, ao que tive que me
submeter. Fora que esse trabalho não é somente dele. Eu também
fiz parte disso.
— Você não sabe do que está falando! Se me desse a chance de
falar, entenderia tudo! — grito, sentindo minha pele ruborizar, meu
corpo começar a suar, de tão nervosa que estou.
— Acabou, Leah! Eu já disse que não quero ouvir nada! Não há o
que entender. Você desviou o dinheiro que arrecadamos. Isso já
basta. — Kahel é grosseiro mais uma vez. A firmeza em sua voz
deixa claro que não há chance para mim. Ele não está disposto a
escutar o meu lado da história. Ele está enxergando meu erro e
nada mais.
Kahel parece querer falar mais alguma coisa, mas desiste. A
sensação que tenho, quando ele esbarra no meu ombro para sair do
quarto, é que percebeu que não vale a pena dizer mais nada para
mim, porque eu não valho a pena.
Levo as mãos para o meu rosto, esfregando minhas lágrimas
com raiva, odiando essa sensibilidade recém adquirida. Eu sei que
errei, estou me sentindo culpada e me condenando pelo meu ato,
mas Kahel não tinha o direito de me tratar dessa forma, de se
recusar a me ouvir. Não sou a correta da história, porém, como meu
namorado, um cara que dizia estar apaixonado por mim, ele devia
pelo menos ter me dado uma chance de me explicar. O problema é
que, mesmo com nossa aproximação, mesmo com nossa paixão,
ele ainda é um mimadinho de merda que só enxerga o próprio
mundinho. Ele não faz ideia das coisas que acontecem na vida real.
Sua atitude me diz que ele vai sair daqui e ir correndo me
dedurar. Pode ser que eu esteja prestes a jogar meu último jogo
universitário. Pode ser que eu tenha que me despedir das Red Fox.
Eu não sei o que farei se isso acontecer e rezo para que Kahel vá
para casa, se acalme e me dê uma chance.
Não consigo continuar pensando por que, outra vez, meu celular
toca. Pego o aparelho com raiva, incomodada por Hailey ter um
péssimo timing. Se ela não tivesse ligado àquela hora, talvez eu
conseguisse me explicar. Ou não. Kahel estava tão convicto em me
condenar, que não veio aqui disposto a me ouvir.
— O que foi? — pergunto quando atendo, levando uma mão a
testa, sentindo minha cabeça latejar de tanto estresse.
— Você tá bem? Nunca vi você falar assim comigo — diz Hailey e
eu fecho os olhos e fito o teto. Fodi meu time, meu namoro e agora
estou prestes a foder minha relação com a minha irmã, se não
conseguir disfarçar o quanto estou quebrada.
— Estou estressada com o jogo — escolho a saída mais óbvia.
Não há chance alguma de eu contar a Hailey o que realmente me
assola.
— Ah. Espero que vocês ganhem. — Sua voz não soa tão
animada e eu sei que esmaguei sua alegria pela forma com que
atendi a ligação. — Preciso conversar com você sobre a mamãe.
A menção a minha progenitora me faz revirar os olhos e suspirar.
— Não estou com cabeça pra isso agora, Hales. — Tento soar
mais suave, mas ainda assim sinalizando que não estou no clima
para discutir nada relacionado a mulher que me deu a vida.
Pena que Hailey me ignora completamente.
— Andei conversando muito com ela nesses últimos dias. A
mamãe quer se tratar, Leah. Ela disse que topa ir para a
reabilitação.
A esperança na voz de Hailey me quebra. Eu sei que ela quer
que tudo dê certo e que nossa vida entre nos trilhos, mas as coisas
não são assim, nunca foram.
— Hales, ela já disse isso inúmeras vezes e já tentou outras
inúmeras. Não acredite em besteira. Você ainda é inocente e tem
um coração puro, mas nossa história não é um conto de fadas. As
coisas não dão certo para nós. Nunca dão. — Sei que minha fala
reflete não só o que sinto em relação ao alcoolismo da minha mãe,
mas também a minha decepção com Kahel e comigo mesma.
Estou farta de tudo. Farta de sempre perder. Farta de nunca ter
paz.
— Eu não sei o que te fez falar uma coisa dessas. É triste ver
você perdendo a fé dessa forma. Ainda há esperança para a
mamãe, Leah — Hailey responde com uma voz chorosa, carregada
de dor.
Ela também está decepcionada comigo. Mais uma para a fila.
— Eu preciso ir. O jogo é daqui a pouco.
— Tudo bem. Voltamos a conversar sobre isso quando você
estiver realmente disposta a ouvir. — Hailey soa madura e decidida,
de uma forma que até me surpreende.
Não a vi nos últimos dias, mas imagino que esteja tentando
convencer minha mãe a mudar e que hoje ela tenha finalmente
topado, caso contrário não teria me ligado, em um dia de jogo, para
me contar essa novidade. Minha irmã está magoada com o
afastamento entre mim e nossa mãe, Hailey sabe que minha
paciência para os vícios dela acabaram no minuto em que ela foi
abordada pelos capangas de Axel. Eu não troquei uma palavra
sequer com ela desde que brigamos. Admiro a tentativa de Hailey
de mudar a realidade da nossa casa, mas, infelizmente, eu não
acredito que minha mãe possa sair dessa. Já me decepcionei tanto
com ela, que aprendi a não esperar por nada. É melhor estar
sempre preparada para o pior.
Arremesso o celular na cama e aproveito para me jogar nela,
tirando o boné da cabeça para cobrir meu rosto, querendo sumir da
face da Terra.
— Leah... — A voz de Alex me faz pular. Com a ajuda dos meus
braços, me sento rapidamente, colocando o boné na mesa de
cabeceira. Eu mal deitei, mal tive um segundo para me recuperar
dos diálogos que tive com Kahel e Hailey. — Desculpa entrar dessa
forma, mas a Abby está nos esperando no carro. Precisamos ir ou
vamos nos atrasar. — Ela fala com cautela, como se sentisse que
estou uma pilha de nervos.
Alex é a única das meninas que estava em casa, logo foi ela que
deixou Kahel subir. Imagino que não tenha escutado nossa briga,
porque Alex não é enxerida, mas é certo que viu a expressão
fechada de Kahel quando ele saiu daqui. Ela sabe que há algo
errado, contudo, graças a Deus, não temos tempo para falar sobre
isso.
Tenho algumas horas para colocar minha cabeça no lugar e
entrar em quadra.
Obrigada por fingir que se importava
E me fazer sentir como se eu fosse a única
É ótimo saber que tínhamos tudo
Obrigada por assistir enquanto eu caía
E me avisar quando acabamos
My Happy Ending – Avril Lavigne

O segundo jogo de um campeonato sempre carrega uma certa


pressão. Ambos os times já tiveram uma vitória e estão se
enfrentando porque fizeram por merecer. É isso que a treinadora
diz, quando discursa para nós no vestiário. Eu estou tentando
prestar atenção, mas meu foco, que normalmente é absoluto, está
um tanto desnorteado.
O time está parte em pé, parte sentado nos bancos. Eu faço parte
do segundo grupo, estou com a cabeça encostada nos armários, o
corpo exalando tensão. Em dias normais, eu estaria concentrada,
pensando nas jogadas, no meu discurso, no papel que preciso
exercer em breve. Mas hoje nada está dando certo para mim. As
horas que passei tentando colocar minha cabeça no lugar não foram
suficientes. Ainda estou pensando no dinheiro, em Kahel, me
perguntando se ele me dedurou ou não.
Sinto um baque me trazendo para a realidade quando Joanne,
que está sentada ao meu lado, bate seu joelho contra o meu. Ela
olha para a treinadora, me dando um sinal para que eu preste
atenção nos recados.
— Vamos nos focar no jogo, Red Fox! Preciso de vocês
entregues na quadra ou não passaremos dessa fase. Se juntem
aqui! — Ela chama, fazendo um sinal para nos levantarmos. Sua
mão vai para o centro da roda e percebo que a treinadora Hale está
puxando nosso grito de guerra. Sou sempre eu que desempenho
esse papel. Essa é a minha função. — Um, dois, três, Red Fox!
— Vai Red Fox! — O time todo repete, mas eu não consigo gritar,
não consigo dizer nada.
Ergo meu olhar para encará-la e buscar algum vestígio que me
mostre a verdade. Quando Madison Hale, a mulher que me fez
capitã, que me incentivou, que me ajudou a melhorar minhas
jogadas e meu caráter, me fita de volta, eu vejo decepção inundar
seu olhar. Será que ela sabe? Seria esse um sinal de que estou
perdida de vez?
— Vamos pra quadra! — grita Mia, empolgada, e boa parte do
time segue a treinadora Hale para fora do vestiário.
Entretanto, Alex, Jo, Abby e Scout ficam para trás. Elas se viram
para mim, as expressões confusas, os braços cruzados, inúmeras
perguntas pairando sobre nós.
— Leah, o que está rolando? — é Scout quem pergunta,
iniciando uma rodada de questionamentos que me sufoca ainda
mais.
— Você está estranha há dias — diz Abby.
— Eu vi o Kahel saindo do seu quarto, vocês brigaram? — Alex
indaga. — Meu Deus, fui eu que o deixei entrar. — Ela apoia as
mãos na cabeça, nervosa, sentindo que tem culpa nessa situação.
Eu não consigo respondê-la, porque Jo logo desata a falar: —
Acha que tem condições de jogar? — a pergunta me faz erguer as
mãos, sinalizando que deem um tempo nos questionamentos.
— Tudo está uma merda, mas agora eu só quero entrar em
quadra. — Essa é a frase mais sincera que eu digo em semanas.
Por seus olhares, percebo que seguem preocupadas. É natural, elas
nunca me viram tão desfocada. Mas não importa o quão mal eu
esteja, jamais deixaria as Red Fox na mão. — Eu preciso entrar em
quadra — afirmo com mais convicção, para que elas vejam que,
independentemente do meu estado de espírito, vou dar o meu
melhor, como sempre faço.
— Tudo bem, nós vamos, mas depois, queremos te ouvir — fala
Abby, estendendo sua mão para segurar a minha. Agradeço-a com
o olhar, encantada com o carinho.
— Não guarde tudo pra você, Leah — diz Alex, piscando para
mim.
— As dores da vida são muito pesadas para serem carregadas
sozinhas. — A voz suave de Scout faz nós quatro olharmos para
ela, chocadas.
— Você leu essa frase em um livro de autoajuda? — indaga
Joanne, gargalhando.
— Eu não posso ser legal que vocês esculacham! Parece que
gostam quando sou grossa, nunca vi — Scout resmunga, cruzando
os braços, na defensiva.
Abby e Alex entram na de Jo e começam a zombá-la, eu não
resisto e rio, agradecendo por, pelo menos, ainda tê-las na minha
vida.
— Ei, garotas! — A treinadora Hale aparece na porta do vestiário,
sua postura já está mais rígida, ela está pronta para entrar no modo
jogo e não parece muito feliz por ainda estarmos no vestiário. —
Preciso de vocês agora!
O tom dela faz com que nós cinco a sigamos na hora.
É hora de as garotas entrarem em quadra.
Eu nunca joguei tão mal na minha vida. Estamos perdendo, tudo
está caótico, o placar está uma merda, nenhuma das Red Fox está
conseguindo segurar o time adversário. Posso afirmar com certeza
que ninguém está no seu melhor dia, mas eu, particularmente, estou
pior do que todas juntas. Parece que estou pagando uma penitência
por ter feito o que eu fiz.
Afinal, há um ditado que diz que tudo que vai, volta.
Não só na quadra, mas também na vida.
Foi mais ou menos assim comigo e com Kahel. Eu o odiei e
agora é ele quem me odeia. Mesmo depois de eu ter me
apaixonado por ele. Mesmo depois de ele ter me convencido a me
abrir, de ter derrubado meus muros, de ter se infiltrado na fortaleza
que construí em volta do meu coração.
Ele fodeu com tudo. Simplesmente com tudo.
Eu deveria estar focada no jogo, deveria estar focada no meu
time, deveria estar focada em pegar os rebotes dos nossos
adversários. O problema é que o significado de rebote, para mim,
nesse momento, mudou. Não estou pensando em tentar resgatar as
bolas que não entram na cesta, e sim na porra de efeito rebote que
estou sofrendo.
Eu tinha um problema. Achei que tinha resolvido o problema. O
problema voltou dez vez pior. E agora o problema se amplificou de
uma forma incontrolável. E é culpa dele. E também minha.
Eu sei que estou fodida. Sei que errei. Mas será que meu erro é
tão condenável assim? Será que se eu contar a verdadeira história,
Kahel vai entender? Será que mereço uma segunda chance? Será
que ele vai deixar meu futuro ser prejudicado por causa de um único
deslize?
— James! — Alex grita e aponta para o cronômetro.
Vinte e quatro segundos.
Vinte e três segundos.
Vinte e dois segundos.
Falta pouco tempo para acabar o jogo. A pressão não me ajuda a
tomar uma decisão. Estou parada no meio da quadra, batendo a
bola no chão, só sentindo que estou no mundo real quando, a cada
batida, a bola faz um breve contato com a minha mão.
Olho para minhas colegas de time, posicionadas e batalhando
contra nossas adversárias em uma marcação individual. Elas estão
me olhando com expectativa, esperando que eu tome a decisão e
inicie nossa jogada. Em dias normais, eu já teria passado a bola
para uma delas e estaríamos próximas de pontuar.
Mas hoje não é um dia normal.
Sei disso desde o momento em que o time rival fez a última cesta
e recuperamos a posse de bola. Alex se posicionou para iniciarmos
o ataque e, antes que pudesse passar a bola para mim, eu vi.
Kahel entrou na arquibancada atrasado, diferente do habitual, e
se posicionou logo atrás do nosso banco. Mesmo com inúmeras
pessoas à sua volta, meu olhar encontrou o dele. Desenvolvemos
um magnetismo forte, mas não foi por isso que fui atraída em sua
direção, pelo menos não hoje.
Eu o olhei porque queria descobrir se revelou meu segredo.
E com apenas um olhar, descobri que a resposta é sim.
A bola quica outra vez e o cronômetro chega aos dezoito
segundos. Estou suando, meu coração disparado, meu senso de
direção bagunçado. Não consigo pensar em armar uma boa jogada,
não consigo fazer a porra do meu papel, tudo por causa de um
único erro, tudo por causa dele e da sua incapacidade de manter a
boca fechada.
Minha atenção se desvia para a entrada da quadra e vejo o
treinador do time masculino marchando para perto da nossa
treinadora. Ele puxa o braço dela, sussurra algo em seu ouvido e ela
me encara.
É isso.
Estou perdida.
Quinze segundos.
Quatorze.
Treze.
Quico a bola uma última vez e a seguro, tentando colocar minha
cabeça no lugar. Agora, não posso mais voltar a batê-la. Preciso
tomar uma decisão. Meu time precisa de mim. Nós precisamos
ganhar esse jogo.
Eu não posso ser a pessoa que coloca tudo a perder.
Doze.
Onze.
Dez.
E eu passo a bola.
Abby pega meu passe e Joanne grita para que ela tente fazer
uma cesta.
Abby erra.
Nós perdemos.
Estamos fora do March Madness.
Fico parada na quadra, vendo enquanto as garotas do time rival
comemoram a vitória. Tudo parece um borrão, escuto parcialmente
os gritos, sinto quando algumas garotas da minha equipe tocam em
meu ombro, lamentando nossa derrota. Olho para a arquibancada
outra vez, procurando por Kahel. Ele está com um meio sorriso
triste, parece chateado por termos perdido. Eu também estou
chateada, mas quero mandá-lo a merda por ter contribuído para
estragar esse dia, quero xingá-lo por estar com essa cara depois de
ter causado ainda mais na minha vida, horas atrás. Ele não podia ter
esperado o jogo passar? Teve que revelar tudo a treinadora logo
hoje?
— Leah! — Scout me chama e me viro para olhá-la.
Abby, Alex e Jo estão com ela, todas com o semblante acabado
por termos perdido justo agora. Estávamos em um bom ritmo,
vínhamos construindo uma nova história para as Red Fox, mas,
infelizmente, hoje, não jogamos bem. A derrota faz parte, ainda que
eu ache que poderíamos ter ganhado, se nossa energia não
estivesse tão para baixo.
— Me desculpem por ter afundado o time — peço porque
acredito ter sido a percursora desse caos.
Eu tentei focar no jogo e esquecer o mundo lá fora, porém, não
consegui. Sou ótima em deixar meus problemas fora do ginásio. As
coisas podiam estar desmoronando na minha casa, mas eu
mantinha meu desempenho alto, fazia as melhores jogadas,
pontuava bem. Acredito que anos e anos sufocando meus
sentimentos fizeram com que eu me afogasse nessa partida.
— Leah, ninguém jogou bem, foi uma partida difícil, não se culpe
— Alex tenta me consolar, mas vejo que elas estão magoadas,
todas nós queríamos ganhar.
— Ei, não foi você que me disse que eu não tinha culpa por
termos perdido a temporada regular? Levanta essa cabeça, mulher!
— diz Joanne, esboçando um sorrisinho animado para mim.
— Nós vamos voltar mais fortes ano que vem — Scout afirma,
porém, sua frase faz meu coração disparar.
Eu não sei se terei um ano que vem.
— Espero que sim — concordo, mas, dessa vez, não tenho uma
frase motivacional para incentivá-las.
Eu só quero saber o que a treinadora vai fazer comigo.
Sem falar nada, deixo as meninas sozinhas e me aproximo dela.
A treinadora Hale está conversando com o árbitro, finalizando a
papelada da partida. Eu sempre a encontro nesse momento, para
assinar como testemunha e capitã da equipe. Ela percebe que me
aproximo e faz um sinal para que eu cumpra minha função. Pego a
caneta da sua mão, faço uma assinatura rápida, tentando controlar
a tremedeira da minha própria mão. Madison Hale nunca deixou de
falar comigo no final de uma partida. Ganhando ou perdendo, ela
sempre nos reúne, aponta onde erramos e acertamos, nos incentiva
a melhorar na próxima vez. É normal que eu e ela façamos
apontamentos sobre o jogo, que eu dê minha opinião, e mostre a ela
o que acho que podemos trabalhar mais, conto do que senti falta em
quadra.
Hoje, porém, ela segue em silêncio. Só fala comigo quando
devolvo a caneta para suas mãos.
— Me encontre na minha sala.
Sua frase curta e grossa me mostra que chegou a hora.
É isso. Adeus, Red Fox. Adeus, basquete. Adeus, bolsa de
estudos. Adeus, futuro para o qual eu tanto batalhei.
Acabou.
Minha perna não para de tremer. A vitamina que Jo me obrigou a
tomar no caminho até aqui está doida para sair. Quero vomitar.
Quero sair correndo. Quero eliminar os últimos dias da minha
memória e voltar para os momentos incríveis que vivi nesse
semestre.
É uma pena que eu não possa mais fugir.
A treinadora está sentada de frente para mim, atrás de sua mesa,
as mãos unidas, o semblante pensativo. Eu me distraio com seu
diploma, diversas medalhas do seu tempo jogando e fotos de todas
as equipes que treinou na KSU. Paro meu olhar na foto que Hailey
tirou da nossa equipe, quando sua câmera ainda não tinha sido
destruída.
Sinto vontade de chorar de novo, de gritar até que não haja mais
forças dentro de mim.
— Leah — a treinadora me chama com a voz séria, mas seus
olhos, antes repletos de decepção, agora parecem carregar pena.
— Gostaria de começar essa conversa dizendo que, desde que te
conheci, admirei seu talento, sua garra, sua postura, sua aptidão
para liderança. Mas o que mais me chamou a atenção, foi o quanto
você era correta. Sempre buscava por justiça dentro da quadra,
queria trazer as mesmas oportunidades para todo mundo, defendia
suas colegas quando precisava. Eu ainda vejo essas características
em você. Acho que esse foi o principal motivo para que eu
demorasse para aceitar o que aconteceu.
Diferente de Kahel, ela não está brava, só decepcionada. Eu caí
em seu conceito. Não há como negar.
— Como você descobriu? O treinador te contou? — pergunto,
buscando entender como essa história realmente se desenrolou.
— Parabenizei o Kahel pela arrecadação, comentei com ele o
valor que você tinha entregado a mim, ele disse que não era o valor
correto. Não demorou para que chegássemos à conclusão de que
alguém tinha desviado parte do dinheiro. O treinador Morrow não faz
ideia de nada.
— Mas ele veio falar com você no meio da partida...
— Não era nada relacionado a arrecadação, ele só estava me
pedindo para combinar com o motorista do ônibus o horário que ele
deveria buscar os Tigers para o jogo de amanhã.
Minha testa se franze, estou confusa. Achei que Kahel tivesse
descoberto tudo sozinho e contado para o treinador Morrow, que
contou a Hale, mas, aparentemente, ele e a treinadora perceberam
as informações divergentes que tinham e chegaram a conclusão
sozinhos. Eu tentei esconder o que fiz, porém, não fiz um esforço
gigantesco. Na hora, tudo o que eu queria era pegar o dinheiro. Não
pensei em cobrir meus rastros de uma forma que ninguém nunca
me pegasse. No fundo, acho que, talvez, eu quisesse isso. Mereço
ser pega, mereço ser punida.
— O que vai acontecer comigo? — indago, preocupada.
Planejo meu futuro há anos. Se eu for expulsa do time, nenhuma
outra equipe universitária vai me querer. E sem uma bolsa de
estudos, não vou conseguir um diploma. Sem um diploma, vou ter
que me esforçar muito mais para continuar tentando mudar nossa
vida. Meu Deus, vou ter que voltar para a casa da minha mãe.
Como vou viver debaixo do mesmo teto que ela?
Antes que a treinadora possa dar minha sentença, começo a
chorar de novo. Por que peguei esse dinheiro? Por que arrisquei
tudo dessa forma? Por que ouvi somente meu lado desesperado?
Por que não ouvi minha razão?
— Você não quer tentar se explicar? — a treinadora pergunta e
vejo que ela está me dando uma chance. Ela quer me ajudar, quer
estender a mão para mim, porque conhece meu verdadeiro caráter
e deve estar imaginando que fiz o que fiz por necessidade extrema.
O problema é que eu não quero falar agora. Estou morrendo de
vergonha, nem sei por onde começar. Dói demais falar sobre os
motivos que me levaram a fazer o que fiz. Então, nego com a
cabeça, mesmo que meu coração doa, mesmo que eu esteja
jogando tudo pelo que batalhei no lixo. Não tenho forças para lutar
essa batalha.
— Sabe, Leah, eu não quero fazer isso, não quero perder a
melhor capitã com quem já trabalhei, mas você não me dá escolha.
— Seu silêncio momentâneo me diz que chegou a hora. Minha
sentença será dada. — Você está fora do time.
Essa frase arranca o pedaço da minha alma que ainda tinha
alguma esperança. Eu acabei de perder uma das melhores partes
da minha vida. Quem sou eu, sem o basquete?
Me levanto devagar, enfraquecida, com dificuldade de formular
uma resposta. Kahel e sua raiva me destruíram, mas a treinadora e
sua decepção acabaram de foder de vez com a minha cabeça.
Estou prestes a sair da sala, pronta para correr até o meu quarto
e me trancar nele para todo o sempre, quando a treinadora começa
a falar de novo: — Quero que entenda o quanto essa situação
também é difícil para mim, Leah. Você me lembra Dylan, meu filho.
Ele é determinado como você. — A menção ao seu filho acalenta
um pouco meu coração. Sei o quanto a treinadora o ama e ter me
comparado a ele é mais um sinal do quanto quer meu bem.
— Você também é importante para mim, treinadora Hale. Sinto
muito por ter te decepcionado dessa forma — murmuro com o resto
de força que ainda tenho em meu corpo.
Abro a porta me arrastando, engolindo as lágrimas que parecem
não secar. Todo o choro que acumulei nos últimos vinte anos de
vida estão sendo liberados de uma vez só.
Estou esfregando meus olhos, quando vejo que Abby e Alex
estão de pé no corredor, com as costas apoiadas na parede, e Jo e
Scout sentadas no chão, ao lado delas. Vê-las aqui, esperando por
mim, como se sentissem que eu precisaria delas, faz com que
minhas lágrimas disparem de vez.
Eu me sento no chão, entre Joanne e Scout, e as outras meninas
se acumulam à nossa volta, todas tentando me consolar de alguma
forma. Elas não sabem o que fiz ou o que acabou de acontecer
dentro da sala da treinadora, mas só pela expressão de derrota que
eu estampo, devem imaginar que a situação é bem grave.
— Cometi o maior erro da minha vida — conto a elas, enfiando a
cabeça entre os joelhos, querendo me fechar mais e mais.
Porém, minhas amigas não deixam. Scout me envolve com seu
braço, Jo apoia a cabeça em meu ombro, Alex me lança seu olhar
mais carinhoso e Abby esboça um sorriso acolhedor.
— Por que não vamos pra casa? Acho que é uma boa hora para
uma nova sessão desabafo com o polvo Wendy — Abby sugere e
todas as garotas assentem, concordando com sua ideia.
Eu não tenho mais forças para negar ou me esconder. Nesse
momento, preciso muito das minhas amigas.
Um brinde nós
Um brinde ao amor
Todas as vezes que estragamos tudo Here’s To Us - Halestorm

Assim que cheguei em casa, tomei um banho longo e respondi


uma mensagem de Hailey, para avisá-la que perdemos. Minha irmã
lamentou, mas não perguntou o que aconteceu ou tentou me
consolar. Conhecendo-a como conheço, imagino que esteja seca
dessa forma porque está chateada por eu não ter dado a devida
importância a sua tentativa de convencer nossa mãe a ir para a
reabilitação.
Prometo a mim mesma que ligarei para ela o mais breve possível
para resolvermos essa situação. Hoje não é o dia certo para
falarmos sobre isso. Não me sinto capaz de tomar uma decisão tão
importante quanto essa.
Desço as escadas usando uma camiseta gigante com um skate
desenhado e um shorts de moletom, até prendo meu cabelo em um
coque bagunçado, para ficar o mais confortável possível. Um
momento desabafo com o polvo Wendy significa que terei que abrir
o jogo. Essa exposição já será desconfortável o suficiente.
Quando chego no andar de baixo da casa, percebo que as
meninas estão na cozinha. Sigo suas vozes e noto que nossa mesa
está no meio do ambiente, as cadeiras estão afastadas, de um lado,
copos azuis estão posicionados, do outro, copos vermelhos.
— O que vocês aprontaram? — pergunto quando me aproximo,
parando na lateral da mesa, os braços cruzados para tentar me
proteger do que virá.
Scout e Abby estão de um lado da mesa, atrás dos copos azuis,
e Jo e Alex do lado oposto, atrás dos copos vermelhos.
— Vamos jogar um pouco de tequila pong para afogar as mágoas
da derrota — anuncia Scout, apontando para a mesa, mostrando o
óbvio.
— A regra é a seguinte — Jo começa a explicar — quem acertar,
tem que arrancar algum segredo ou fazer alguma pergunta para
quem perdeu.
Fico boquiaberta quando a escuto, me lembrando muito bem que
eu mesma expliquei essa regra a ela, quando jogamos tequila pong
pela primeira vez. Foi no semestre passado, quando Joanne estava
na fossa por causa de Anthony. Esse foi um dia importante para
nossa relação. Foi uma das primeiras vezes que todas as meninas
se uniram para ajudar uma das membras da toca das raposas.
Tivemos uma conexão naquele dia. O fato de terem tido a ideia de
repetir essa cena me faz ter a certeza de que estão mesmo
dispostas a me ouvir.
— Em qual time vou entrar? — pergunto, alternando meu olhar
de uma dupla para a outra.
— Vem com a gente — Alex convida e eu me posiciono entre Jo
e ela.
Tiramos par ou ímpar e perdemos, dando a chance para Scout e
Abby começarem. É a primeira que faz as honras, se posicionando
na ponta da mesa, lançando a bolinha com um ângulo perfeito e
acertando no copo que está bem na frente de Alex.
— Você bebe — digo a ela, as garotas sabem que não bebo e
que minha participação aqui envolve apenas a parte das perguntas
e respostas.
Alex pega o copo e vira tudo de uma vez, fazendo uma careta
diante do ardor da bebida.
— Qual foi a coisa mais errada que você já fez na vida? — Scout
pergunta a ela, esboçando um sorriso lateral malicioso, doida para
arrancar algo escandaloso da garota mais certinha da casa.
Alex pensa durante um segundo, o cabelo cacheado e volumoso
está todo solto e ela sopra uma mecha que tenta cair na frente do
seu rosto.
— Eu colei na prova de francês do primeiro ano do colégio —
revela com uma expressão culpada tão fofa, que faz Jo quase se
engasgar de tanto rir.
Até eu tenho que engolir em seco para não dar risada. Alex é tipo
um ursinho carinhoso quebrando regras.
— É sério? Essa é a coisa mais errada em que você conseguiu
pensar? — Scout indaga, zombando da amiga de forma descarada.
— Ei, foi errado pra mim! — Alex rebate, fazendo um biquinho
manhoso com os lábios. — Mas eu não tinha estudado direito e
estava desesperada, precisei de uma solução rápida, não podia
deixar minhas notas caírem.
— Acontece, Alex. É normal errarmos em momentos como esse
— falo de forma espontânea, refletindo sobre a minha própria
situação. É claro que a de Alex teve um impacto muito menor e
afetou somente a ela, diferente do meu erro, que prejudicou o time
inteiro. Porém, não deixamos de ser duas garotas desesperadas
tomando decisões precipitadas.
O jogo segue e Joanne arremessa a bolinha, que quica na mesa
e cai direto no copo da dupla adversária. Scout rapidamente pega
um copo e o entrega a Abby, sinalizando para que ela beba. A loira
vira tudo e olha para Jo, desafiando-a.
— Nos conte um segredo, Miller — Joanne pede, erguendo as
sobrancelhas de forma maliciosa, doida para ouvir algo sujo, sem
sombra de dúvidas.
— Quando fiz dezoito anos, usei uma identidade falsa para beber
com alguns amigos, enchi a cara, encontrei com um amigo gato do
meu pai e fiquei com ele.
Se eu estivesse com algum líquido na boca, teria cuspido tudo.
Abby acaba de deixar nós quatro com o queixo caído. Simplesmente
não acredito no que estou ouvindo. Abby é minha bebezinha, a
caloura, nossa pupila!
— Você beijou um amigo do seu pai? — Alex questiona, a
expressão abismada, inconformada com o que está ouvindo.
— Gosto de caras mais velhos — Abby responde dando de
ombros, como se isso não fosse nada demais para ela.
— Quem diria, aprendiz de Lazy Town, quem diria... — Scout
comenta, dando um tapinha no ombro de Abby, orgulhosa dela.
O jogo segue com alguns erros e acertos de ambos os lados. As
garotas revelam uma coisa ou outra sobre suas vidas, mas
demoram para me fazer alguma pergunta. Sinto que fazem isso
para amaciar o terreno e deixar o ambiente mais confortável para
mim. Admiro o esforço, porém, não é justo que eu siga sem
compartilhar nada. Estou disposta, neste momento, a conversar com
elas.
Quando Scout acerta uma jogada e Joanne bebe a tequila,
seguro em seu braço para mostrar que eu irei responder dessa vez.
As meninas me encaram com certo espanto, por seus olhares,
percebo que querem muito perguntar se estou mesmo querendo me
abrir, com medo de que eu esteja dando um passo maior do que as
pernas. Apenas assinto para Scout, para que ela faça a maldita
pergunta que está entalada em sua garganta. Entrei nesse jogo para
falar. Chegou a hora.
— O que aconteceu na sala da treinadora? — minha amiga é
direta, como o habitual.
Suspiro, buscando forças em meu interior para revelar a verdade.
— Fui expulsa do time.
— O que? — Joanne grita, segurando em meus ombros, me
fitando diretamente para ver se estou falando a verdade.
— Você só pode estar brincando! — Abby resmunga, batendo as
mãos nas coxas.
Scout, por outro lado, não fala nada. Ela só pega um copo e bebe
toda a tequila, mesmo que ninguém o tenha acertado e que nosso
jogo esteja pausado.
— Eu tenho certeza de que a Leah tem uma boa explicação —
Alex tenta acalmar o grupo e tira os braços de Jo de cima de mim,
fazendo um sinal para que ela se afaste. — Vamos pra sala pegar o
polvo Wendy e começamos a sessão desabafo, pode ser?
Todas concordam com a ideia de Alex e seguimos juntas para o
outro cômodo. Nós nos espalhamos pelos sofás, eu fico bem no
meio do maior, com Alex sentada de um lado, Jo do outro, Scout
sentada na poltrona mais distante e Abby no tapete, próxima a ela.
Joanne me entrega o polvo de pelúcia que virou nossa mascote e
eu viro a carinha de Wendy para baixo, mostrando um sorriso triste,
assim como me sinto.
— Para começarmos essa conversa, preciso voltar ao início, ao
meu passado. — Respiro fundo, deixando o polvo no meu colo, para
ter algo em que me apoiar. — Meus pais se conheceram nas
reuniões do AA. Os dois eram alcoólatras em recuperação e não era
indicado que mantivessem um relacionamento sério no primeiro ano
de sobriedade, mas ainda assim, eles insistiram. Namoraram, se
casaram, tiveram duas filhas. Eram apaixonados, mas, infelizmente,
de tempos em tempos, sucumbiam aos vícios. — Conto sobre
diversos momentos da minha vida, em que um ou outro estava
ausente, revelo até mesmo minha paixão pelo skate, atividade que
era diretamente ligada ao meu pai e a nossa relação. As meninas
ficam surpresas, mas dá para ver que gostaram de saber esse
pequeno detalhe sobre mim. — Meu pai era mais controlado,
sempre era o cara que tirava minha mãe do buraco, quando ela
perdia as esperanças. Depois que ele morreu, as coisas dentro da
minha casa foram de mal a pior. Minha mãe deslizou mais vezes do
que consigo me lembrar. Eu sempre tive que ajudar a cuidar de
Hailey, eram poucos os momentos em que ambos ficavam sóbrios
por muito tempo, mas a morte do meu pai fez com que a situação se
agravasse de uma forma incontrolável. Eu passei a agir como uma
mãe para ela e prometi a mim mesma que a tiraria daquela casa
assim que tivesse condições de fazer isso. — Faço uma breve
pausa, olhando para cada uma das garotas para tentar descobrir o
que estão achando. As quatro estão apenas atentas, focadas em
mim, respeitando a seriedade da história. — Alguns meses atrás, eu
descobri que minha mãe tinha uma dívida. — Engulo em seco,
sentindo um nó forte na garganta. É como se uma faca estivesse
presa dentro dela. Não sei se é um alerta para que eu pare por aqui
e não corra o risco de perder mais pessoas importantes para mim
ou se é simplesmente meu corpo relembrando os sentimentos ruins
que tive ao descobrir a existência da dívida. — Ela pegou dinheiro
emprestado com um agiota. Para conseguir pagá-lo, eu peguei
dinheiro emprestado com o meu ex-namorado.
Troco um olhar com Alex e Scout, as moradoras da casa que têm
conhecimento sobre a minha história com Axel. As duas fazem um
sinal com a cabeça, indicando que posso confiar em Abby e Joanne,
que nós estamos nessa juntas.
Mais uma vez, respiro fundo. Pela primeira vez, revelo tudo.
Absolutamente tudo. Conto cada abuso de Axel, cada
comportamento tóxico, cada ameaça, cada movimento que ele fez
para me cobrar. Por fim, chego ao Xeque-Mate, ao acontecimento
que me fez tomar a atitude que tomei.
— Depois que Axel mandou seus amigos atrás da Hailey e eles
quebraram a câmera dela, entrei em desespero. Eu tinha dez dias
para pagá-lo e não sabia o que fazer. Era uma quantia alta demais
para que eu conseguisse sozinha. Conheço Axel. Ele não brinca
quando o assunto é dinheiro. Não tenho dúvidas de que ele não
hesitaria em machucar a Hales. Eu não podia pagar para ver,
simplesmente não podia. Ela é a pessoa que eu mais amo no
mundo. — Junto as mãos e as envolvo em meus joelhos, uma
reação automática do meu corpo à exposição. — Até que o baile
aconteceu. Eu vi aquele dinheiro e só... pensei em Hailey. Não
imaginei que faria falta para o time, nem sequer tentei esconder o
que tinha feito. No fundo, eu queria apenas resolver o problema,
pagar Axel e me livrar de vez da sua presença. Então, não pensei
muito. Peguei o dinheiro, entreguei a ele e fiquei aliviada por
finalmente ter me livrado de alguém que me fez tão mal. O problema
é que eu perdi o basquete e o meu namorado no processo. Kahel
está revoltado comigo. — Olho para baixo, desolada. Apesar de
saber que mereço, estou chateada com todas as consequências
que estou sofrendo. Eu não queria nada disso.
— Ok, primeiro de tudo, sua vida é muito fodida! — Joanne
comenta, sincera até demais, mas pelo menos trazendo um humor à
situação.
— Jo! — Scout a repreende, como é de praxe.
— Eu imaginei que as coisas eram complicadas, mas não tanto.
Puta merda, Leah! — Jo continua, mas acabo esboçando um meio
sorriso diante do que ela fala. Não era segredo que eu vinha de uma
família simples, que tinha que batalhar para conquistar o que eu
almejava. A questão é que ter uma vida simples e ter uma mãe
alcoólatra são coisas diferentes que, unidas, podem causar um caos
gigantesco.
— Acredito que falo por todas nós quando digo que não te culpo
— Alex começa, levando uma mão até a minha coxa, para mostrar
seu apoio. — Não estou dizendo que você fez uma coisa certa,
porque não fez e é óbvio. Mas compreendo seus motivos e entendo
que tudo aconteceu em um momento delicado, e que você estava
focada somente em proteger a sua irmã.
— A Hailey é a pessoa mais importante do mundo para você,
Leah. É natural que tenha feito de tudo para mantê-la em segurança
— Abby complementa, eu já falei para ela sobre Hailey algumas
vezes, disse o quanto lembra minha irmã com seu jeitinho único de
ser.
— Você cometeu um erro feio, mas te conhecendo como te
conhecemos e ouvindo toda essa história, não dá para te condenar
por isso — fala Scout, se levantando de sua poltrona para se
aproximar de mim. Ela puxa Abby pelo braço no caminho,
arrastando-a para que as duas fiquem no tapete, bem na minha
frente.
— A treinadora Hale me deu uma chance de me explicar, mas eu
simplesmente não consegui. Mereço sofrer alguma consequência.
Não posso sair ilesa depois de ter roubado meu próprio time — falar
isso em voz alta dilacera meu coração, mas é a verdade.
— Caralho, ela te deu uma chance e você não aproveitou? — Jo
rebate, inconformada. — Leah, você é nossa capitã, é nossa
âncora, é em você que a gente se apoia quando precisa! As Red
Fox não são as mesmas sem você!
— Agradeço o carinho, mas eu não acho que ela vai voltar atrás.
— Mas... — Jo tenta de novo, mas Scout segura em sua perna
com força, fazendo-a se calar com seu olhar.
— E o Kahel? Você disse que ele estava bravo — Alex questiona,
ela ainda está se sentindo culpada por ter o deixado entrar na nossa
casa, sei disso.
Suspiro diante do tópico, ainda sem saber o que vou fazer a
respeito dele.
— Ele não estava disposto a me ouvir. Acusou, acusou e acusou,
mas não me deu a chance de uma réplica, de uma explicação —
conto, percebendo que eu queria o perdão dele porque há um lado
meu que compreende todas as camadas da minha decisão e não
me condena. Porém, há outro lado que quer a punição da
treinadora, porque tem certeza de que eu preciso sofrer as
consequências do que fiz.
— Não quero passar pano pra macho, mas ele deve estar
decepcionado, se sentindo traído, deve ter iniciado a conversa com
um conceito formado sobre a situação, sem sequer pensar nos seus
motivos para fazer o que fez — Abby constata, inteligente.
— Eu concordo. Não acho que o Kahel seja um cara ruim —
complementa Alex.
— Ele não é, mas vive em uma realidade que não é a nossa —
diz Scout, se acrescentando a conversa, pegando todas as Fox de
surpresa. — Um garoto como ele não entende o que é desespero
por dinheiro, o que é ter que pedir grana emprestada, o que é ter
que viver com pouco.
— Só vejo motivos para chutarmos a bunda dele pra longe — fala
Jo, recebendo fuziladas de todas. — O que foi? Ele não deu nem
uma chance pra ela e os dois namoravam! O mínimo que ele devia
ter feito é ter ficado quieto quando a treinadora o questionou, para
depois vir conversar com a Leah, entender o que aconteceu, e só
então, talvez, reportar.
As opiniões das meninas são parecidas, mas divergem em
alguns pequenos pontos. Eu concordo com a maioria das coisas
que disseram. Gostaria de ter uma chance de me explicar para
Kahel, mesmo sabendo que isso não vai trazer nosso
relacionamento de volta ou fazer com que seu respeito por mim seja
restaurado. Nós dois estávamos com os nervos à flor da pele
quando conversamos mais cedo. Apesar de eu ter ficado puta com
algumas coisas que ele disse, quero seu respeito. Podemos nunca
mais nos tocarmos, mas pelo menos estarei com a consciência
menos poluída.
— É uma situação complicada, eu sei. Entendo minha culpa,
assim como entendo meus motivos. Estou literalmente no centro da
situação, sem saber se corro para um lado para o outro — retomo o
controle do diálogo, certa de que pelo menos aqui, tenho um
ambiente seguro. — Independentemente do que acontecer, se nós
não nos virmos mais ou se não nos cruzarmos mais, eu vou sempre
me lembrar das Red Fox, da nossa amizade e da compreensão que
vocês tiveram diante dessa situação. Estou realmente honrada por
ter dividido um pouco da minha história com vocês.
— Sai pra lá com esse discurso de despedida! — Joanne faz um
gesto, como se quisesse esnobar o que acabei de dizer.
— Leah, nós vamos arranjar uma forma de tirar você dessa
situação. Você não pode simplesmente deixar as Red Fox! —
resmunga Abby, com um biquinho infantil e choroso nos lábios.
— Eu realmente não sei se há uma forma de sair dessa. Também
não sei se quero — revelo, tentando compreender os conflitos que
se formam dentro de mim.
— Você batalhou a vida toda para chegar aonde chegou e quer
desistir agora? — O questionamento de Scout me faz abraçar o
polvo Wendy com mais força.
A sensação que tenho é que estou jogando tudo no lixo, mas o
que posso fazer? Eu sou culpada. Roubei o dinheiro. Estou sendo
punida por isso. Como vou reclamar de algo que é justo?
— Ok, tenho uma ideia! — anuncia Alex, se levantando. — Nós
não vamos chegar a lugar algum com essa conversa. Tudo é muito
recente e acho que a Leah precisa de um tempo para descansar a
cabeça e refletir sobre tudo o que aconteceu hoje.
— Vocês também devem estar cansadas, o jogo foi duro — eu
trago esse pequeno detalhe à tona.
O dia foi tão longo e tão cheio de acontecimentos, que quase
esqueci de que perdemos um jogo importante algumas horas atrás.
— Mesmo com todos os holofotes em cima dos seus inúmeros
problemas, você não deixa de se preocupar com a gente — fala
Abby, balançando a cabeça em negação, me lançando um sorriso
agradecido.
Apesar de toda a confusão, eu ainda sou eu.
— Ok, podemos dormir. Mas vamos fazer isso juntas, aqui na
sala. O que acham? — oferto porque nós nunca fizemos isso e
porque, com a punição que recebi, não vou conseguir permanecer
na KSU. Não tinha dinheiro para pagar meu ex, que dirá uma
universidade dessas. — Uma última coisa. Por favor, podemos
deixar essa história toda entre nós? Não quero que ninguém mais
saiba.
— O que acontece na toca das raposas, fica na toca das raposas
— responde Joanne e o resto das meninas concorda. Essa casa é
nosso lar, nosso ambiente, nosso pequeno refúgio em meio ao caos.
Estamos seguras aqui.
— Então vamos começar essa festa do pijama! — anuncia Abby,
se levantando e chamando Scout para ajudá-la a trazer um colchão
para a sala.
As meninas se animam e nos espalhamos pela casa para montar
uma boa festa do pijama, com direito a maratona de “De Repente
30” e muita pipoca. Como a boa amante de skincare que é, Alex
passa uma máscara facial hidratante no rosto de cada uma de nós.
O creme é verde e estamos ridículas, mas quem se importa? Eu
vivo cada segundo da noite como se fosse o último, sem saber
como ficará meu futuro. Entretanto, não digo nada a nenhuma delas,
sem querer estragar o momento. Se tem uma coisa que quero levar
desse tempo nas Red Fox, são as belas memórias que criamos
juntas.
O time pode não ser para sempre, mas espero, do fundo do meu
coração, que minhas garotas sejam.
Onde você está?
E eu sinto muito
Eu não consigo dormir, não consigo sonhar esta noite
I Miss You – Blink 182

Jogo basquete a vida toda e estou acostumado com as dores


musculares pós-jogo. É normal que eu faça um esforço muito
grande em quadra e depois fique o dia todo cansado e dolorido,
porém, hoje, não são só minhas pernas e braços que doem. O vazio
em meu peito também dói, porque meu coração ficou nas mãos de
Leah.
Depois de ter explodido com ela, eu voltei aos antigos hábitos e
fui para o Koala’s no final do dia. Pedi uma cerveja, mas comecei a
pensar nos Tigers, no jogo que tínhamos no dia seguinte e no
quanto eu poderia prejudicar nossa vitória se seguisse em frente
com aquele ato de autodestruição. Eu resolvi que não precisava da
cerveja para afogar minhas mágoas, a devolvi e fui para a quadra.
Arremessei por uma hora inteira, refletindo sobre nosso diálogo.
Nenhum de nós esteve 100% certo a todo momento. Já cheguei
na casa de Leah estressado e descontei minha frustração em cima
dela. Não agi da melhor forma e reconheço meu erro, apesar de
compreender que tudo aconteceu porque eu estava de cabeça
quente. Se eu tivesse conversado com ela hoje, nosso diálogo seria
diferente.
Foi pensando nisso que resolvi vir até sua casa logo após o fim
do nosso jogo. Não joguei no meu melhor, mas os Red Tigers
conseguiram segurar o placar e vencemos por 98 a 90. Passamos
para a fase dos Sweet Sixteen, mais conhecido como as semifinais
regionais do March Madness. É a primeira vez que chegamos nesse
ponto do campeonato e confesso estar nervoso, ao mesmo tempo
que estou animado e orgulhoso. Se passarmos dessa fase, iremos
para a final regional. Será uma honra liderar meu time nesse
caminho e estou realmente focado para vencer, porém, quem
domina minha mente é Leah.
Toco a campainha três vezes até ser atendido. Quem me recebe
é Scout, com o cabelo castanho preso de forma desordenada, um
moletom das Red Fox e uma calça xadrez preta e branca. Ela bebe
um gole do seu café e me fuzila por cima da xícara.
— Oi, Scout. Tudo bem? — cumprimento-a de forma educada,
mas ela segue bebendo o café, me ignorando completamente. —
Vim até aqui pra conversar com a Leah. Você pode chamá-la? —
pergunto, mesmo imaginando que Scout não vai se mover. Ela
afasta a xícara da boca, porém, segue tentando me espantar com
seu olhar. — Não vai me responder?
— Ainda estou decidindo — ela retruca e a expressão indiferente
não muda.
Por sua atitude, tenho a certeza de que Leah contou o que
aconteceu para as meninas.
Enfio uma das mãos nos bolsos e com a outra tento gesticular,
sem saber como vou convencer Scout Halstead a me deixar entrar.
Eu tenho praticamente certeza de que ela me odeia, assim como
odeia todo o resto do mundo.
— Ah, oi, Kahel! — Alex aparece na porta, também carregando
uma xícara, e acena para mim de forma animada.
Vejo que ela também está de pijama. Já passa da hora do
almoço, o que me leva a crer que as raposas tiveram uma noite
agitada.
— Oi, Alex! Será que você pode chamar a Leah pra mim? Sua
amiga aqui não quer cooperar.
— Por que eu te ajudaria? — Scout indaga, ainda presa ao
mesmo semblante.
Alex encara a amiga com um riso debochado, quase se divertindo
com a reação dela.
— Eu gosto de você, Kahel, mas... — Alex deixa a frase no ar,
não precisa dizer mais nada para me fazer entender que, apesar de
gostar de mim, também não vai me deixar entrar.
Que caralho!
— Olha, meninas, entendo que estejam bravas, mas para tudo se
resolver, eu preciso conversar com a Leah. — Uno minhas mãos
para tentar implorar, mas é nessa hora que Joanne aparece entre
Alex e Scout.
Jo costuma sorrir. Ela costuma ser uma pessoa alegre, costuma
conversar e rir comigo. Agora, está com os olhos exalando raiva, o
dedo em riste apontado direto para o meu rosto.
— Você não vai pisar na nossa casa! Acha que pode esculachar
nossa capitã e aparecer aqui querendo se redimir? Não, não,
querido! — Ela nega com o dedo, quase partindo para cima de mim.
Por sorte, Alex não me odeia totalmente e envolve os braços na
cintura da amiga para segurá-la.
Se eu fosse um cara covarde, sairia correndo, porque lutar contra
essas meninas não vai ser fácil. Mas não vou desistir. Depois de
tudo que vivi com Leah, não podemos acabar as coisas dessa
forma.
— Preciso de uma chance, só uma chance! — entrelaço os
dedos com mais força, quase me ajoelhando para implorar com um
pouco mais de vontade. Minha expressão desesperada parece não
ser suficiente.
— Igual a chance que você deu para a Leah se explicar? — Abby
questiona, surgindo no meu campo de visão, apoiando o cotovelo no
ombro de Scout.
As quatro estão literalmente interditando a porta. Eu não passaria
nem se quisesse. E tenho amor a minha vida, então não tentaria.
Preciso convencê-las de alguma forma.
— Meninas, eu errei, ok? Não escutei a Leah, tirei conclusões
precipitadas e não dei espaço a ela, mas tentem entender que eu
estava decepcionado de uma forma que nunca fiquei antes. Não sou
um cara perfeito, ainda cometo muitos erros e esse foi um deles. —
Paro durante um segundo, me certificando de que elas estão
prestando atenção em mim. Os olhares mortais seguem firmes em
seus rostos, mas pelo menos estão me ouvindo. Já é alguma coisa.
— Quero conversar com a Leah para tentar esclarecer a situação.
— Ah, até que foi fofo, vai! — comenta Alex, abrindo um
sorrisinho meigo e fitando as amigas, para analisar suas reações.
As três continuam querendo chutar minha bunda para fora daqui.
— O que vocês querem que eu faça? Ajoelhe? Escale a parede
para tentar chegar na janela da Leah? Porque eu faria isso — apelo,
vendo os olhos escuros de Alex brilharem.
— Queremos que você suma da nossa frente — repete Joanne,
firme a ideia de me expulsar daqui.
Suspiro, passando a mão no rosto, aceitando a derrota. Terei que
falar com Leah de outra forma. Eu não queria ligar ou mandar uma
mensagem porque uma conversa dessas precisa ser feita
pessoalmente, mas, agora, não vejo escolha. Já estou com a mão
no aparelho, que está no bolso de trás da bermuda, quando escuto
a voz de Leah: — Deixem o Kahel entrar — ela fala de dentro da
casa e enfio a cabeça pela porta, para enxergá-la.
Leah está parada no meio da escada, segurando no corrimão,
nitidamente abalada com a minha visita. Ela não usa o boné de
sempre, está com uma regata mais justa e um shorts cheio de
bolinhas de basquete. Meu coração bate de uma forma diferente ao
vê-la. Nossa briga aconteceu ontem, mas já senti a falta dela.
Passar o dia todo sabendo que não estávamos bem acabou comigo.
— Você tem certeza? — pergunta Abby.
— Tenho. Obrigada pela ajuda, mas assumo daqui. — Leah
agradece com um meio sorriso, porém, as meninas não se mexem.
— Vou conversar com o Kahel lá fora, então podem ficar com a casa
pra vocês — anuncia, terminando de descer as escadas e passando
pela muralha que elas formaram na porta.
As cinco trocam um olhar íntimo, dá para ver em suas
expressões que estão tendo um diálogo inteiro em silêncio. Apesar
de imaginar que elas estão falando mal de mim em pensamento,
fico feliz por Leah ter se aproximado das garotas dessa forma.
Gosto muito delas e sei o quanto Leah precisava de uma relação
forte como essa. Acompanhar o desenvolvimento da amizade delas
de perto foi um presente.
Leah faz um sinal com a cabeça, parece afirmar que está tudo
bem, e se afasta das meninas, que fecham a porta da casa, não
sem antes me fuzilarem uma última vez.
Fico a sós com Leah, que para à minha frente. É a primeira vez
que nos encaramos diretamente depois da nossa discussão. Vejo
em seus olhos que não está nada feliz comigo e percebo que vou
ter que me esforçar para mantermos um diálogo civilizado.
Conhecendo nosso histórico, é bem provável que essa conversa
termine com uma nova briga.
Ela começa a andar para longe de mim, e eu a sigo, percebendo
que vai me guiar para outro lugar. Leah contorna a casa e começa a
andar para os fundos, onde encontro um quintal que nunca conheci.
É um lugar simples, tem apenas dois bancos posicionados em L e
um pequeno jardim. Leah se senta em um deles e eu resolvo me
sentar no outro, para dar privacidade a ela.
Nós nos fitamos, sem saber quem vai ser o primeiro a quebrar o
gelo e iniciar esse diálogo difícil. Eu não penso muito, sei que
preciso tomar a atitude e falar alguma coisa.
— Ontem, eu estava de cabeça quente. Encontrei a treinadora no
corredor, descobri que você tinha mentido para mim várias vezes e
comecei a pensar na quantidade de coisas que você escondia...
Não estou certo nessa história, admito que não fui tão legal quanto
poderia, mas você fez algo que eu nunca pensei que faria. Foi
errado, Leah.
Ela coloca as mãos embaixo das coxas, esfregando um lábio no
outro, antes de me encarar novamente.
— Você acha mesmo que eu não sei disso? Estou me culpando a
cada minuto do dia, desde que tudo aconteceu.
É difícil ver a dor nos olhos dela e não me comover. Eu odeio que
isso tenha acontecido. Foi por causa da arrecadação que nos
aproximamos, e é também por causa dela que estamos nos
afastando.
— Eu não consigo entender como alguém como você agiu dessa
forma. Quando a treinadora me perguntou se eu achava que você
poderia ter roubado o dinheiro, não fui capaz de responder. Imaginar
esse cenário parecia irreal pra mim. — Sou sincero, ainda não
processei esse fato. Talvez eu até vá, quando ela revelar porque fez
tudo isso, mas, por enquanto, tenho dificuldades de aceitar.
— Kahel, sabe qual é o seu problema? — Leah pergunta,
levantando o queixo para me olhar. — Você enxerga só uma
pequena parcela do mundo.
— O que você quer dizer com isso?
— As coisas não são simples como você pensa. Eu nunca
tomaria uma atitude dessas se não estivesse em desespero. Esse
dinheiro era uma necessidade, não um luxo. Essa foi uma decisão
difícil, mas eu precisei fazer o que fiz para proteger a minha família.
Fico confuso com o que escuto.
— Sua família? Do que você está falando, Leah?
— É uma história longa e complicada. Posso te contar, mas
preciso que você realmente queira ouvir.
Me espanto com o que ela fala, percebendo que a feri mais do
que imaginei. Tinha certeza de que Leah estava brava, mas agora
percebo que ela também está triste. Eu me decepcionei com sua
atitude, ela se decepcionou com a minha.
— Leah, eu sinto muito por ter sido tão irredutível e não ter dado
abertura para que você se explicasse. Tudo o que eu sempre quis,
desde que começamos a nos relacionar, foi que você fosse honesta.
Sinto que conheço apenas uma parte de você e isso acaba comigo.
Leah desvia o olhar do meu, se focando na grama. Fica nítido
que ela está querendo fugir. Desde o início, foi assim. A qualquer
indício de aproximação, ela se afastava.
— Nossas realidades são muito diferentes, Kahel — ela diz com
a voz chorosa, voltando a me encarar devagar, ainda receosa. —
Você nunca vai entender os meus problemas, assim como eu nunca
vou entender seus privilégios. Nós não somos compatíveis. Não sei
por que achamos que poderíamos dar certo. — Leah solta um riso
irônico, realmente acreditando na merda que está dizendo.
Desisto de dar espaço a ela e me sento ao seu lado. Pego sua
mão, coloco-a em sua coxa e a cubro com a minha.
— Eu concordo com você, realmente temos vidas diferentes, mas
estávamos em um bom caminho. Encontramos pontos em comum,
achamos uma forma de nos equilibrar, mesmo discordando em
inúmeros pontos. — Ela abre um sorrisinho quando escuta a última
parte, provavelmente se lembrando das mesmas coisas que eu. Das
nossas provocações, das briguinhas bobas, das discussões sobre
os divertidamente que moram em nossas cabeças. — O que estou
tentando dizer é que eu me entreguei a você. Me abri, dividi meus
medos e sonhos, passei a enxergar um futuro do seu lado. — Ela se
espanta quando digo a última parte, acho que nunca cheguei a
efetivamente compartilhar com ela que eu já nos imaginava
morando em uma casa enorme, com dois filhos, um cachorro e
carreiras brilhantes. — Mas para esse futuro acontecer, preciso
conhecer você de verdade. Quero saber tudo, Leah.
Ela leva uma mão para o cabelo, colocando uma mecha que caia
em seu rosto atrás da orelha, deixando-o exposto para mim. Sinto
uma vontade imensa de tocar em sua pele, mas não o faço.
Estamos tendo uma conversa sincera, porém, tenho para mim que
as coisas não se resolverão tão facilmente. Nossa briga de ontem
não foi simples. O que ela fez ainda paira entre nós. Temos muito o
que resolver.
Leah abre o jogo. Ela revela coisas que eu nunca imaginei.
Descubro que seus pais eram alcoólatras, que sua mãe, no caso,
ainda é. Fico abismado quando escuto sobre a dívida. Uma vontade
imensa de quebrar alguma coisa me atinge quando descubro o
envolvimento de Axel nessa história.
— Eu vou matar esse cara. — Não aguento e a interrompo,
cerrando meus punhos, sentindo meu sangue ferver.
— Kahel, ele é um traficante, você é um playboyzinho, acha que
teria alguma chance? — ela devolve, me colocando no meu lugar.
Dou de ombros, sem admitir a derrota. Sou forte, treino todos os
dias. Gosto de imaginar que daria pelo menos um trabalho para o
cara.
Leah volta ao foco, me contando sobre o que aconteceu com
Hailey. Meu coração se apertar ao perceber a quantidade de
problemas que ela teve por uma dívida de um valor que, para mim,
não é nada. Essa diferença entre nós nunca me abalou tanto quanto
agora. Eu nunca teria um problema como esse, não sei o que é não
ter dinheiro para alguma coisa. No fundo, não consigo entender seu
desespero, porque eu nunca passei por isso.
— Enxergo o erro que cometi, Kahel. Vejo todas as problemáticas
envolvidas, mas, naquele momento, era a única opção que eu tinha.
— Você podia ter me pedido. Eu teria te ajudado.
Leah franze a testa, com certeza não gostando do que eu disse.
— Acha mesmo que eu pediria? Agora sim, estou achando que
não me conhece.
Ela tem razão. Leah é orgulhosa demais para aceitar qualquer
coisa do tipo.
— Não, não acho. Mas se você tivesse se aberto, eu arranjaria
uma forma de te ajudar. Qualquer coisa seria melhor do que isso.
Leah faz uma careta e eu já até sei o que está pensando. Ela
acha que estou batendo na mesma tecla. A questão é que eu não
consigo simplesmente achar isso normal. Entendi os motivos dela,
mas isso não torna o ato correto.
— Eu assumi a culpa e sofri as consequências do meu erro. Vou
abandonar meu futuro por isso. — Sua voz soa mais séria, dá para
ver que toquei em seu ponto fraco.
— Como assim?
— Fui expulsa das Red Fox, Kahel. Sem o basquete, não tenho
como pagar a faculdade.
Após terminar a frase, ela se afasta do meu toque e eu fico
parado, olhando para o horizonte, chocado com o que me conta.
Criamos uma nova barreira entre nós, uma que é mais leve do que a
de ontem, mas que, ainda assim, está aqui.
— Leah, meu Deus! — Apoio uma mão na boca, inconformado
com a proporção que isso tomou.
Se eu não tivesse comentado nada com a treinadora, Leah
estaria livre. Porém, eu saberia do seu segredo e seria seu
cúmplice. Nosso relacionamento provavelmente se deterioraria da
mesma forma.
— Eu sei que fiz merda, mas o modo como você falou comigo, o
fato de não ter sequer deixado eu falar, me deixou incomodada. A
treinadora não está errada em me punir, ela tinha todos os
argumentos para isso, porém, ainda me deu uma chance de me
explicar. Uma chance que você, que era meu namorado, não me
deu.
— Era? — Essa pequena palavra é a única em que me foco.
— Acha que conseguimos continuar juntos, depois de tudo o que
aconteceu? — ela rebate, dá para ver que não tem fé alguma em
nós dois. Não mais.
— Acho que precisamos de um tempo pra pensar, mas
deveríamos tentar de novo. Eu sou apaixonado por você, Leah.
Sua expressão sequer muda. Ela continua com um olhar
cabisbaixo, ferida por todos os acontecimentos dos últimos tempos.
— Não sei, Kahel. Nós somos diferentes demais.
— Então você está simplesmente desistindo da gente? —
questiono, entendendo que é isso que ela quer.
Leah me encara com o olhar ferido, essa situação é foda para
nós dois. Estou puto como o universo por ter permitido que isso
acontecesse. Estávamos tão bem juntos.
— Ainda não superei nossa conversa, nem esqueci das coisas
que você me disse. Entendi seus motivos por ter agido dessa forma,
assim como você entendeu os meus, mas não posso esquecer tudo
em um piscar de olhos. Preciso de um tempo pra pensar.
— Quanto tempo?
— Não sei.
Sua resposta vaga me diz que as coisas vão ser muito mais
complicadas do que imaginei. Leah saiu do time, disse que é
provável que saia da faculdade, e a ideia de perdê-la me deixa
transtornado. Eu não vejo mais minha vida sem ela. Já não via
antes, mas agora que entendi sua história e consegui atrelar suas
atitudes aos traumas de sua infância, reconheço que ela é ainda
mais incrível do que imaginei. Leah cometeu um erro, mas é uma
das melhores pessoas que eu já conheci. Preciso dar um jeito de
ajudá-la. Ela não pode simplesmente deixar a KSU. Eu não vou
deixar que minha capitã escape tão fácil assim.
...
A primeira coisa que faço, quando chego na minha casa, é me
jogar no sofá entre Miranda e Sebastian. Cruzo os braços atrás da
cabeça para apoiá-la e estico minhas pernas na mesa de centro,
sentindo que preciso ficar na pose mais largada possível para
conseguir relaxar.
Meus amigos me encaram com um semblante confuso, não
sabem o que está acontecendo na minha vida e porque estou me
comportando dessa forma. Nunca chego em casa quieto, sou
sempre o cara que pergunta sobre a vida de todo mundo e não para
de falar. O problema de ser uma pessoa sorridente, alegre e falante,
é que quem te conhece estranha quando você quer apenas ficar
preso no seu mundinho.
— Primeiro, você roubou meu lugar — diz Maverick assim que
entra na sala, carregando uma bandeja de sanduíches. — Segundo,
que cara de bosta é essa? — pergunta com uma careta, enquanto
apoia a bandeja na mesa de centro.
Miranda dá um tapa na minha perna para que eu tire meus pés
da mesa.
— É complicado — respondo, desencostando do sofá e apoiando
os cotovelos nas coxas, para poder esfregar meu rosto com as
mãos.
— Desembucha, Kahel — Miranda ordena. Ela não tem paciência
nenhuma para esperar que eu me recomponha.
Costumo ser transparente com meus amigos, mas, dessa vez,
não poderei revelar tudo. Simplesmente não dá.
— Eu fiz uma merda grande, mas não posso contar os detalhes
pra vocês. — Sou misterioso, pensando no que mais posso
entregar, sem prejudicar Leah.
Mav se senta na poltrona ao lado do sofá, e troca um olhar com
Miranda e Seb, os três confusos com minha explicação vaga.
— Não precisa entrar em detalhes, mas pelo menos nos diga do
que se trata, assim conseguimos te ajudar — fala Sebastian,
tocando levemente em minhas costas, para mostrar que está aqui,
disposto a me ouvir.
— Tive uma briga com a Leah e falei coisas que eu não devia.
Nós dois estávamos estressados. Agora ela parece querer desistir
da gente.
— Não sei qual o motivo da briga, mas quem você acha que está
certo? — pergunta Miranda.
— Esse é o problema. Não existe certo ou errado nessa situação.
— Volto a me jogar no sofá para conseguir enxergá-los. — Nós dois
tivemos nossos motivos para agir do jeito que agimos.
— Vocês conversaram sobre isso? Um diálogo sincero é a chave
para o sucesso de um relacionamento — Maverick pontua com tanta
propriedade, que nós três erguemos as sobrancelhas para ele. — O
que foi? Sou comprometido agora.
Não resisto e dou risada. Sinto que o namorado secreto de Mav
ainda vai render muita história para nós.
— Nós conversamos hoje, mas não sei. A Leah reforçou que nós
somos diferentes demais, parece até ter deixado de acreditar no
nosso amor. Estávamos construindo algo tão bom. Não quero
perdê-la.
O diálogo que tivemos foi essencial para entendermos ambos os
lados, porém, me trouxe uma outra reflexão. Quero continuar me
relacionando com Leah, desde que as coisas sejam diferentes.
Quero ser parte de todos os âmbitos de sua vida. Quero ser o cara
com quem ela pode contar, assim como eu sei que posso contar
com ela. Preciso que confie em mim, que entenda que só quero o
seu bem, que quero que ela seja a minha pessoa.
— Você a ama? — Miranda questiona e eu sei que vai me dar
alguma ideia boa.
— Amo — afirmo sem medo. Só a mera ideia de perdê-la já
acaba comigo.
— Então mostre. Faça um grande gesto, grite para o mundo que
a Leah é a mulher da sua vida. Lute por ela, Kahel — sugere e eu
faço uma careta.
— Não sei se ela gostaria disso.
— Depende do que você inventar — responde Mav.
Balanço a cabeça, concordando com seu ponto. Se eu fizer a
coisa certa, Leah vai gostar e, quem sabe, querer voltar para mim.
Difícil será ter uma ideia tão boa assim. E ainda há a questão de ela
ter sido expulsa do time. Não sei como resolver isso, nem se cabe a
mim resolver. Independentemente de qualquer coisa, vou ficar ao
seu lado, ela estando na KSU ou não.
— Você pode cantar pra ela na arquibancada do ginásio! —
Sebastian dá a ideia, batendo palmas animadas.
— Brega — rebate Miranda.
— E um flash mob? O Justin Timberlake faz isso em “Amizade
Colorida” para reconquistar a Mila Kunis. É perfeito! — falo, sem
deixar de colocar meu filme favorito na conversa. Essa cena é uma
das mais brilhantes do cinema. Eu já assisti ao filme com Leah.
Seria uma boa referência aos tempos em que estava tudo bem entre
nós.
Miranda se levanta, gesticulando para que fiquemos quietos.
— Podemos pensar em algo que não seja de um filme? Pelo
amor de Deus, coloquem essas cabeças pra funcionar! — ela se
irrita, como o habitual, e nós quatro ficamos em silêncio, tentando
pensar em alguma coisa.
Temos inúmeras ideias, mas sempre alguém critica uma parte do
plano e voltamos à estaca zero. Passamos horas e horas discutindo,
e é só depois que me lembro de algo que eu tenho certeza de que
irá abalar o coração de Leah. Algo pequeno, que talvez ela ache
que passou despercebido em nossa história, mas que ficou marcado
em minha memória.
Depois que ela descobrir o que estamos aprontando, tenho
certeza de que irá me dar uma chance. Duvido que não se comova
com meu grande gesto romântico. Eu garanto que o meu plano será
brega, mas inesquecível.
Eu te amarei de qualquer forma
Poderia ser tão doce
Poderia ser tão amargo

It’ll Be Okay – Shawn Mendes

Quando acordei pontualmente às seis da manhã, arrumei minha


bolsa de treino e desci para tomar café e abastecer minhas energias
antes de ir para a academia. No minuto em que as meninas
colocaram os olhos em mim e um silêncio tomou a cozinha, eu me
lembrei de tudo o que aconteceu no final de semana. Não sou mais
uma Red Fox. Estou fora do time. A sessão de musculação matinal
não me inclui.
Minhas amigas tentaram me consolar e dizer palavras bonitas
para que eu me sentisse melhor, mas, mesmo que eu me sinta
agradecida pelo cuidado, meras palavras não vão mudar minha
nova realidade.
Ainda é cedo demais para declarar o fim da minha vida
universitária, a expulsão do time aconteceu durante o final de
semana, então acredito que a treinadora Hale não teve tempo de
comunicar a nenhuma autoridade sobre o meu crime. Enquanto
minha sentença não se oficializa, vou aproveitar as últimas aulas e
tentar passar algum tempo com as minhas amigas.
Depois que as meninas saem para treinar, eu tento voltar a
dormir, mas não sou capaz. Resolvo me sentar na escrivaninha e
tentar revisar as matérias da semana passada, mas também não
funciona. Meus pensamentos estão a mil quilômetros por hora. Eu
preciso treinar, só que não posso ir até o ginásio, onde o time
masculino está treinando. Não tenho uma quadra em minha casa,
como Kahel — e tampouco quero vê-lo depois de ter acabado de
pedir um tempo — então o que me resta é correr na rua.
O problema é que odeio correr sem rumo. Na primeira volta no
quarteirão, já estou entediada. Ainda são sete horas. Puta merda.
Quando vejo, estou dentro do ônibus, partindo para o bairro de
qual venho tentado fugir desde que entrei para a KSU. O trajeto
demora e acabo usando esse tempo para colocar minha cabeça no
lugar. Assim que chego, vou direto para a pista de skate
comunitária. Cumprimento algumas pessoas que conheço e peço o
skate de uma das meninas emprestado.
Se não posso estar em quadra, preciso, pelo menos, estar nas
pistas.
Posiciono o skate na beira de um half[7], viro meu boné rosa para
trás e apoio um dos pés na tábua, pronta para descer. A sensação
enérgica que me toma quando dropo é parecida com a que sempre
sinto em quadra. Meu cabelo se movimenta por causa do vento, a
brisa me ajuda a relaxar um pouco, a tentar me focar apenas no que
estou fazendo.
O esporte sempre foi tão importante para mim. De longe, a única
parte sólida da minha vida. Eu coloquei tudo a perder por um erro
terrível e estou finalmente me dando conta do que está em risco.
Sair da KSU vai acabar com as minhas esperanças de uma vida
melhor. Não vou só me ferrar no processo, mas levar Hailey para
baixo comigo.
Enquanto faço manobras básicas, as únicas das quais meu corpo
se lembra, penso se não deveria ter abraçado a chance que a
treinadora me deu. Se eu tivesse contado a história, talvez, só
talvez, as coisas poderiam ser diferentes. Mas se isso acontecesse,
eu não pagaria pelo que fiz. Pela primeira vez, me sinto dividida
quanto a minha sentença, me arrependo do caminho que escolhi,
apesar de sentir que mereci tudo e muito mais. Essa decisão,
infelizmente, não atinge só a mim. Atinge também a Hailey. E é isso
que acaba comigo e me faz contestar essa escolha.
Paro o skate assim que penso na minha irmã. Não conversamos
novamente e não dei retorno algum a ela sobre a situação com
nossa mãe. Sem o basquete para ocupar parte do meu dia, tenho
tempo livre o suficiente para resolver uma coisa que está ao meu
alcance.
Tenho aula em breve e, por isso, não tenho muito tempo, então
logo devolvo o skate para a garota e saio caminhando pelo bairro,
rumo a casa da minha mãe. Hailey ainda não deve ter saído para a
escola, mas acredito que minha mãe já tenha ido para o trabalho,
então poderemos conversar a sós.
Toco a campainha da casa algumas vezes, para sinalizar que sou
eu. Não demora para que Hailey venha me atender. Ela está com
uma jardineira preta e uma camiseta tie-dye colorida que ela mesma
deve ter tingido. Abro um meio sorriso para sua autenticidade e mais
uma vez me culpo por não ter abraçado a chance que a treinadora
me deu. No único momento em que não pensei em Hailey, e sim
somente na minha culpa, ferrei com seu futuro.
— Leah! O que está fazendo aqui? — pergunta, confusa por me
ver tão cedo.
Cruzo os braços e balanço a cabeça de um lado para o outro, me
questionando se devo ou não contar tudo a ela. Sempre tento
proteger Hailey, mas acho que omitir algo dessa magnitude fará
mais estrago do que a verdade.
— Podemos nos sentar? — Aponto para a sala e ela assente, o
semblante já preocupado, sabendo que alguma merda aconteceu.
Puxo Hailey pela mão para que se sente ao meu lado, e deixo
nossas mãos entrelaçadas, porque preciso do seu carinho e do seu
apoio. Conto sobre a arrecadação e a forma que encontrei de me
livrar de Axel. Ela viveu na pele o pavor de ser ameaçada por seus
capangas, então é fácil para que compreenda meu desespero.
Quando revelo a reação de Kahel ao descobrir meu furto, Hailey
fecha a cara e seu temperamento forte fica exposto. Rapidamente a
acalmo contando que conversamos com sinceridade e que pedi um
tempo para pensar em nosso relacionamento. Um problema que
não tenho cabeça para resolver agora.
— A treinadora Hale me tirou do time.
A revelação da minha sentença faz Hailey abrir levemente a boca
e desviar o olhar do meu. Ela sabe o que essa expulsão significa e,
assim como eu, deve estar sentindo seu futuro escapando pelas
suas mãos.
— Mas eu prometo que vou trabalhar o dia todo e arranjar outro
emprego para conseguir juntar dinheiro. Vou abrir uma poupança e
economizar para que você faça uma faculdade...
Hailey interrompe minha fala, voltando a me encarar. Ela aperta
minha mão com força e seus olhos verdes mostram uma maturidade
que eu tive muita dificuldade de aceitar.
— Leah, você queria tanto esse diploma! Ama o basquete, o seu
time... isso não é justo!
— Eu sei, Hales. Estou me sentindo uma merda, mas o que
posso fazer? Preciso pagar pelo que fiz — repito o que tenho dito a
mim mesma há dias, mesmo já não acreditando nisso com
totalidade.
— O que você fez foi errado, mas as circunstâncias precisam ser
analisadas. A justiça não é tão simples assim. — Hailey está
inconformada, quase advogando por mim.
Eu a entendo. Todo mundo que me conhece sabe que minha
ação não está relacionada ao meu caráter, e sim às circunstâncias,
como Hailey pontuou. A questão é que a merda já está feita. A
treinadora já me tirou do time. A chance que me deu se expirou.
— Eu te contei por que precisava, mas não vim até aqui para
falar disso. Temos um assunto mais importante pra tratar — falo,
tentando mudar o tópico e partir para o motivo que me trouxe até
aqui.
Hailey abre a boca para me responder, sabe muito bem o que
precisamos discutir, mas não dá tempo.
— Leah. — A voz rouca e inconfundível da minha mãe reverbera
pela sala, interrompendo minha irmã.
Eu me viro no instante em que a escuto, vendo que está parada
na porta que separa a sala da cozinha. Aproveito esse breve
momento de silêncio para checá-la, como faço toda vez que nos
encontramos. Para a minha surpresa, ela não parece tão mal. As
olheiras ainda estão fundas, mas o cabelo está com um pouco mais
de cor. Consigo perceber que está sóbria pelo modo como se porta.
— Você não devia estar trabalhando? — questiono, agindo na
defensiva, como é de praxe, quando estamos no mesmo ambiente.
Não consigo engolir seus comportamentos e minha mãe sabe
disso. Dá para ver que se sente constrangida pelo modo como olha
para baixo e engole em seco. Se ela estivesse bêbada, já teria me
retrucado de uma forma grosseira e desbocada.
— Hailey tem uma apresentação importante na escola, troquei de
turno com uma colega para poder vê-la — ela revela e eu faço uma
careta para minha irmã, tanto por ela não ter me convidado, quanto
pelo choque por ver minha mãe participando de alguma atividade
escolar.
A última vez que ela acompanhou nossa vida acadêmica foi
quando nosso pai estava vivo. E ainda assim, nessa época, os dois
não eram dos mais responsáveis. Perdi a conta de quantas feiras de
ciências tive que apresentar sem a presença dos meus pais.
— Você não me disse nada sobre essa apresentação — falo para
Hailey, quem realmente me importa.
Minha irmã dá de ombros.
— Eu não queria que você faltasse na aula pra me ver.
Suspiro e levanto as sobrancelhas para Hailey, reclamando, sem
usar palavras, da sua omissão.
— Mas você não veio aqui pra falar sobre isso, não é? — ela traz
de volta o assunto que tentei iniciar. — Eu e a mamãe temos
conversado muito sobre a doença dela.
Olho para minha mãe, ainda acuada, longe de nós. Perceber que
o motivo do seu afastamento sou eu, me deixa um tanto chateada.
Eu não queria ser tão dura com ela, mas é difícil. São anos e anos
de negligência, anos e anos lidando com esse maldito vício.
— Estou sóbria a uma semana — minha mãe revela, eu não
mudo a expressão. Ela vai dar um discursinho sobre tentar ficar
sóbria, mas daqui alguns dias, terá uma recaída e voltaremos à
estaca zero. É sempre assim. — Voltei às reuniões, encontrei um
novo padrinho. Quero melhorar.
Sua afirmação não convence. Nada do que Beverly James faz
me convence.
— Leah — Hailey me chama, segurando minha mão novamente,
sabendo que estou fora de foco, que não acredito nessa baboseira.
— Eu e a mamãe conversamos durante dias. Expus a ela o quanto
fico chateada com a ausência dela na minha vida, o medo que senti
quando fomos cobradas pelo King e depois, com a ameaça dos
capangas do Axel. Ela entendeu que está colocando nós duas em
risco e está disposta a buscar um novo caminho.
O sorriso e o brilho esperançoso no olhar de Hailey fazem meu
coração doer.
— E você realmente acreditou nela? — rebato, irredutível. Já
passei por poucas e boas nessa família. Não tenho mais fé.
— Leah, não fale assim — Hailey me repreende, soltando nossas
mãos e se levantando, indo até nossa mãe. Ela abraça seu corpo e
a traz na minha direção, para que fiquemos frente a frente.
Eu me sinto desconfortável no momento em que ela se senta no
sofá, a poucos centímetros de mim. Não quero ter essa conversa
justo quando minha vida desandou dessa forma, mas minha irmã
não me dá escolha. Ela tem feito uma movimentação para tentar
voltar a ter uma mãe. Não posso ignorar seu esforço.
— Sei que não facilitei pra você, filha, mas estou tentando
consertar as coisas — minha mãe lamenta, chorosa, me chamando
de “filha” pela primeira vez em muito tempo.
Ela só pode estar brincando. Não é possível que não tenha noção
de nada, que não perceba que não há conserto, que minhas
cicatrizes são irreparáveis.
— Você sequer entende que eu tive que passar minha vida toda
cumprindo o seu papel? — enfatizo, tentando manter a compostura
e não sair gritando, como habitualmente faço. — Cuidei de Hailey,
aprendi a me virar, a ter disciplina, a ansiar por um futuro e querer
mais para mim e para a minha irmã. Me dediquei ao esporte para
ganhar uma bolsa de estudos e ser a primeira pessoa dessa família
a se formar na faculdade, mas você sequer me deu um parabéns,
sequer foi comigo conhecer a faculdade, sequer assistiu minha
formatura. Eu tive que abastecer essa casa com o meu dinheiro,
abdiquei da minha infância para cuidar da Hailey, me esforcei para
manter nossa vida em pé, enquanto você bebia pelos cantos. —
Começo a chorar e não aguento mais ficar sentada, não aguento
que ela me veja fraquejar desse jeito. Ando pela sala, enxugando as
lágrimas, me sentindo uma criança, uma jovem precisando de
amparo. No fundo, é isso que sou. Tenho só vinte anos, porra.
Minha infância foi turbulenta demais. Tive que amadurecer rápido
demais. Tudo foi complicado demais. — Eu me sinto abandonada
por você, mãe — revelo a verdade que sempre carreguei no fundo
da minha alma.
Eu queria a ajuda dela, o amor dela, o suporte dela. Mas minha
mãe nunca me deu essa confiança, nunca me estendeu a mão. Eu
nunca pude precisar dela, porque ela nunca estava lá por mim.
Não consigo parar de chorar. As lágrimas rolam e rolam,
enquanto encaro minha mãe de frente, enquanto desmonto minha
armadura para ela. Seu olhar é de completo choque, parece que
finalmente está percebendo o tamanho da ferida que criou em mim.
Sinto os braços de Hailey em volta do meu corpo, ela me
sustenta como se eu fosse quebrar a qualquer momento, me
consola enquanto desmorono, enquanto deixo transparecer o que
sinto. Minha irmã é minha âncora, assim como sempre fui a dela. É
em seu colo que me acalmo, que vou diminuindo a intensidade do
choro e tenho capacidade de voltar a continuar essa conversa.
— Leah, eu não sei o que dizer. Me desculpe, me desculpe. —
Não me comovo com seu pedido de perdão, mesmo que ela
também esteja chorando. Eu e Hailey fomos as vítimas nessa
história. — Eu fiquei sem chão sem o seu pai, ele era tudo para
mim.
— A questão é que nós também ficamos, mãe. — Abraço Hailey,
mantendo-a perto de mim. Seus olhos, assim como os meus,
estampam toda a dor que sentimos ao longo dos anos. — Perdemos
nosso pai e nossa mãe no processo. — A tristeza fica clara em
minha voz. Quase volto a chorar, mas tento me segurar, para
finalizar essa conversa.
Minha mãe nunca tinha nos dado abertura para falar sobre o
assunto. Essa é a hora para despejarmos tudo.
— Foi tão duro pra mim. Eu ainda não sei o que fazer sem ele,
quem eu sou sem ele. — Minha mãe chora como eu nunca a vi
chorar.
Sinto sua dor no fundo do meu peito. Ela perdeu o amor da sua
vida, deve ter se sentindo sozinha e perdida, ainda mais diante do
problema que eles sempre enfrentaram juntos. Admito que nunca
enxerguei as coisas da sua perspectiva, mas, de qualquer forma,
isso não muda o fato de que ela nos negligenciou durante anos.
Troco um olhar com Hailey e temos uma comunicação silenciosa.
Ela me pede para dar uma chance a nossa mãe. Eu demoro a
ceder, mas aceito. Estou assustada e não tenho certeza de que algo
vai mesmo mudar, mas não dá para continuar dessa forma ou, daqui
alguns anos, vamos perder minha mãe também.
Nós nos aproximamos do sofá e sentamos cada uma de um lado
dela. Hailey a abraça, eu apenas fico por perto. Não vou conseguir
perdoá-la tão rápido.
— Queremos que você melhore, mãe — Hailey afirma, beijando a
bochecha dela.
— Eu vou consertar as coisas, prometo que vou — minha mãe
diz em meio as lágrimas, assentindo repetidamente.
— Não dá para consertar o passado. Você não pode voltar atrás.
— Hailey me fuzila quando começo a falar, mas faço um sinal para
que ela espere a conclusão do meu raciocínio. — Mas pode buscar
um futuro melhor. Pode ser a mãe que Hailey sempre precisou.
Estamos te dando uma chance, mãe. Aproveite, porque não te darei
outra. — Sou dura, como tenho que ser.
O processo de recuperação de um alcoólatra é uma constante
luta. Ela terá dias bons e ruins e vai precisar de muito apoio e
acompanhamento. Eu não sei se ela é capaz de passar por esse
processo sem desistir, mas estou disposta a vê-la tentar. Vou dar
suporte e continuar cumprindo o papel que sempre exerci, rezando
para que ela finalmente melhore e passe a agir como uma mãe pelo
menos no resto da adolescência de Hailey.
— Leah. — Minha mãe segura minha mão, colocando seus olhos
diretamente nos meus. Seu toque é quente, ela me encara com
firmeza, certa do que está fazendo. Eu quero me afastar, até tento,
mas ela não deixa. Pela primeira vez, minha mãe me segura. — Vou
ser uma mãe pra você também.
Ela leva minha mão para os lábios e deixa um beijo carinhoso no
dorso. Eu fico paralisada, não me lembro a última vez que recebi um
beijo dela. Qualquer ato de amor entre nós se tornou inexistente.
Nossa relação foi quebrando pouco a pouco, até que chegamos no
patamar em que estávamos. Nossos diálogos se resumiam a
ofensas e acusações. É a primeira vez que baixamos a guarda em
anos e é tudo por causa de Hailey e da sua crença de que as coisas
podem melhorar.
Eu ainda não perdoo minha mãe. Nunca vou me esquecer de
tudo que ela nos fez passar, também não vou simplesmente deixar
de fazer o que faço só porque tivemos uma conversa civilizada. Mas
vou, sim, dar uma chance para que ela melhore e tente se redimir
por seus erros. Todo mundo merece uma oportunidade, até mesmo
aqueles que nos feriram como minha mãe me feriu.
Estou sem cabeça para assistir aulas complicadas, então resolvo
acompanhar minha mãe na apresentação de Hailey. É um trabalho
sobre seu hobby favorito e ela fez uma colagem com inúmeras fotos
que tirou ao longo dos anos. Minha irmã fala sobre sua paixão por
fotografia, é impressionante o quanto ela é solta e se sente à
vontade em público. Fico chateada por ela não ter mais sua câmera
por minha causa, mas sei que ela tem se virado tirando fotos no
celular. Espero que eu consiga comprar uma nova quando as coisas
se estabilizarem.
Vejo nos olhos da minha mãe que está orgulhosa da filha e
compartilho do mesmo sentimento. Hailey é boa demais em tudo o
que faz, o que só me leva a refletir novamente sobre seu futuro. Eu
preciso me formar, preciso seguir na KSU e dar a oportunidade que
eu tive a ela. Hailey merece ter a carreira que quiser.
— Leah? — Minha mãe me chama e eu a encaro, esperando que
conclua seu raciocínio. — Ouvi tudo que você contou a Hailey. —
Suspiro, surpresa com sua revelação. Acabo desviando o olhar de
volta para minha irmã momentaneamente, mas um toque em meu
braço me faz olhar para minha mãe de novo. — Se você precisar,
posso falar com a treinadora, assumo a culpa por você ter feito o
que fez. Só não deixe essa oportunidade escapar, filha. Você
mereceu a vaga no time e na faculdade. Essa é a chance da sua
vida. Você sabe disso.
Sua afirmação me abala, não só porque ela está recitando meus
pensamentos em voz alta, mas porque minha mãe nunca ligou para
a minha vida universitária. O fato de ela não citar Hailey, e sim
somente a mim, me faz pensar na empresa da mãe da Kahel, na
vaga de estágio para a qual eu me inscrevi, na minha carreira como
engenheira que ainda nem começou...
Eu preciso de uma segunda chance. Preciso voltar para as Red
Fox, para o esporte que amo, para o curso que escolhi para mim.
Meu Deus, eu preciso tanto, tanto, de uma chance. Eu só não faço
ideia de como consegui-la.
Toda noite você chora até dormir
Pensando: Por que isso acontece comigo?
Por que todo momento tem que ser tão difícil?
Won’t Go Home Withou You – Maroon 5

Passo o caminho de volta para casa revivendo as memórias dos


últimos meses. Encontro fotos dos treinos, de momentos com as
meninas, inclusive uma selfie nossa com o polvo Wendy e uma foto
de Alex e Abby tocando na bunda de Jo. Há imagens minhas com
uma Scout emburrada e até uma rara, com minha amiga mostrando
a língua, porque a obriguei. Dou risada das cenas, grata pelas
memórias que essas quatro garotas me proporcionaram. Só de
pensar em perder a convivência e a relação que desenvolvemos,
sinto um aperto no peito. Eu aprendi a amá-las, me tornei parte do
grupo, finalmente deixei de me sentir sozinha.
A galeria do meu celular me leva a uma nova leva de fotos, dessa
vez com Kahel. Há algumas em que mostramos uma careta um para
o outro para brincar, há fotos que tirei dele enquanto estava
distraído, há várias de nós dois juntos, nos abraçando ou nos
beijando. Há até uma que Alex tirou e me mandou, em que estamos
brincando na quadra, ele está tentando roubar a bola e eu tento me
defender, nós dois estamos rindo, é a personificação de um
momento feliz do nosso relacionamento.
Estávamos construindo algo especial. Estar com ele era sem
dúvidas uma das melhores partes do meu dia. Kahel me desafia, me
provoca, me diverte, me faz sorrir. Ele é leve, sua energia é
contagiante, sua vontade de sempre me ver bem, sua preocupação
e seu carinho comigo, são coisas que nunca tive. Eu deixei que ele
entrasse na minha vida porque senti que valia pena entregar meu
coração. O meu erro foi não ter entregado com totalidade, foi não ter
confiado que Kahel ficaria comigo, mesmo depois de saber todo o
caos que envolvia minha vida. Eu subestimei seu amor por mim. Ele
errou comigo ao tirar conclusões precipitadas. Nós dois falhamos.
Ainda estou chateada com ele e apavorada só de pensar em me
arriscar ao mergulhar nesse relacionamento outra vez. Tenho medo
de não darmos certo e eu não ser a pessoa que ele precisa, de
nossas diferenças se tornarem gritantes ao ponto de não
conseguirmos mais conviver. Nem nossas memórias boas fazem
esse medo sumir. Entendo que isso é um sinal para que eu recue e
dê mais um tempo ao meu coração machucado. Não é um fim para
mim e Kahel, é só um até logo. Preciso pensar e focar minhas
energias em tentar obter perdão.
Já passa das três da tarde e eu sei que as Red Fox estarão em
quadra, então é para o Bolton Indoor Stadium que vou. Meu plano é
assistir ao treino da arquibancada e depois pedir um tempo para
conversar com a treinadora. Tive horas para planejar um discurso e
estou pronta para batalhar por uma chance.
Conforme vou me aproximando do ginásio, percebo que não há
nenhum barulho, nem dos tênis deslizando pela quadra, nem das
bolas, nem da falação entre o time. Acelero meu passo, confusa
diante do cenário.
Quando tenho a visão da quadra, percebo que somente a
treinadora está nela, parada com os braços cruzados, próxima ao
banco onde nos sentamos para descansar. Só há outras pessoas na
arquibancada. Quatro garotas, em específico.
— O que aconteceu com o treino? — pergunto quando me
aproximo e tenho a visão da cena como um todo.
Scout, Alex, Jo e Abby estão sentadas em diferentes degraus,
todas usando calças jeans, moletom e chinelo. Seus semblantes
culpados entregam que aprontaram alguma. Alterno meu olhar entre
elas e a treinadora, que não parece nada feliz com a situação.
— Expliquem pra ela, garotas — a mais velha ordena. Eu a
conheço bem o suficiente para saber que está prestes a fazê-las
correr a tarde inteira para compensar o estresse que estão
causando.
Minhas amigas se entreolham, parecem decidir quem vai ser a
porta voz da situação. É Scout que acaba se levantando, usando
sua pose marrenta, dessa vez, para liderar as garotas.
— Nós nos recusamos a treinar sem você. Não aceitamos sua
saída do time.
Fico boquiaberta com o que escuto e meu choque aumenta
quando vejo Alex, Abby e Joanne concordando ativamente com o
que Scout afirma.
— E eu fui obrigada a cancelar o treino, porque não dá para
continuar sem as minhas principais jogadoras. O resto do time não
entendeu nada — a treinadora Hale gralha, me fitando em busca de
uma explicação.
— Não sei de nada, isso é coisa delas. — Aponto para as
meninas. Hoje não é o dia certo para irritar Madison Hale. Preciso
dela.
— É o seguinte, treinadora — Joanne se levanta e eu já fecho os
olhos, sabendo que ninguém sairá dessa quadra ilesa. Jo não
perdoa. — A Leah fez merda? Fez! Mas ela é uma das melhores
jogadoras desse time, é uma capitã que todo mundo respeita e que
faz jus ao seu papel. As Red Fox não são as Red Fox sem a Leah!
— Ela me lança um sorriso amoroso quando termina de falar e eu
não resisto, acabo sorrindo de volta.
Nunca tive alguém para me defender, que dirá quatro garotas
fodas como elas.
— Sei que a Leah errou feio — Alex começa a falar, também se
levantando, e esfrega as mãos nas calças, com certeza nervosa por
estar se impondo dessa forma. — Mas no momento em que nos
contou o que aconteceu, eu sabia que ela merecia perdão. Nós não
podemos condenar as pessoas por um único deslize. Nossa capitã
precisa de uma chance. — Alex segue advogando pela causa e,
porra, acabo derramando uma lágrima ao ouvi-la.
Estou ficando cansada de chorar tanto, mas Abby se levanta e eu
sei que estou fodida. Vou me acabar de chorar mais uma vez.
— Leah é uma das garotas mais honestas, determinadas e
responsáveis que eu já conheci. Ela me abraçou quando eu cheguei
nesse time, cuidou de mim como se eu fosse uma irmã para ela. —
Abby me encara e meu coração se aperta. Eu a lanço um olhar
carinhoso, o que sempre mostro a ela, e minha pupila volta a falar
com firmeza, com uma confiança que eu sempre quis ver nela. —
Leah jamais faria uma coisa dessas sem um grande motivo. Ela tem
uma história para contar. Por favor, treinadora, escute essa história.
Dê uma oportunidade a nossa capitã.
As quatro me olham e eu murmuro um “obrigada” com os lábios.
Posso ter preparado um grande discurso, mas não chegaria aos pés
da emoção que minhas melhores amigas mostraram. É, acho que é
isso que elas são. Minhas melhores amigas.
A treinadora se vira para mim, sua expressão se suaviza quando
ela solta um suspiro, balançando a cabeça em negação.
— Eu te dei uma chance de se explicar, Leah. Por que não a
abraçou?
Olho para baixo, nervosa diante do questionamento. Eu poderia
fugir da pergunta, inventar alguma mentira ou omitir parte da
verdade, mas já descobri que isso não funciona. Preciso ser
honesta.
— Achei que eu merecia ser punida. Ainda acho. Não fiz algo
correto, peguei algo que não era meu para resolver um problema
que não estava relacionado ao time. Errei e errei feio. Não posso
sair ilesa e não tive forças para lutar por um caminho diferente.
Quando nós conversamos, eu só aceitei as consequências.
A treinadora da mais um passo para perto de mim, ainda segue
de braços cruzados, mas seus olhos mostram a compaixão que eu
sempre enxerguei nela.
— Mas a capitã que eu conheço jamais se entregaria sem lutar —
pontua e eu sorrio. Madison Hale me enxerga como uma garota
forte, me vê como o talento que ela lapidou e transformou no que
sou hoje. Eu a admiro e a respeito, assim como ela me respeita. E é
por isso que eu sei que ela vai me estender a mão. — Então, se
você tem uma história para contar, conte.
Sua deixa é a que eu precisava para despejar tudo. Pela
milésima vez, abro minha vida, conto toda a confusão que me levou
a roubar o dinheiro. A treinadora escuta atentamente, não tira o foco
de mim nem mesmo quando minhas amigas descem da
arquibancada e se sentam no banco ao nosso lado. Eu termino a
história com mais um pedido de perdão, implorando por uma nova
chance, afirmo que mereço, que sempre fiz de tudo pelo meu time e
vou continuar fazendo. Não vou cometer um erro como esse
novamente. Não só porque espero nunca mais ter que resolver esse
tipo de problema, mas porque agora eu sei que não estou sozinha,
que posso pedir ajuda, se eu precisar.
Os olhares de expectativa que a treinadora recebe beiram o
sufocante. Estamos ansiosas, aguardando pela confirmação da
minha sentença ou por uma nova página em branco, para que eu
possa continuar escrevendo minha história.
A treinadora puxa o cabelo para trás, morde o lábio inferior,
pensa durante alguns minutos torturantes. Por fim, solta um longo
suspira e me lança um meio sorriso que diz muito mais do que
palavras.
— Ok, você pode voltar ao time. — Abby pula do banco assim
que a escuta, socando o ar em comemoração. Quando a treinadora
a fuzila, ela volta a se sentar rapidinho. — Mas tenho uma condição.
— O que você disser, eu faço — afirmo com convicção. Já estou
recebendo muito mais do que mereço.
— Ainda não entreguei o dinheiro ao departamento esportivo.
Não falei para ninguém sobre o que aconteceu, mas o Kahel sabe e
suas amigas sabem, e não podemos correr o risco dessa história
vazar. Se você quiser sua vaga de volta, precisa devolver a quantia
que pegou até o final da semana.
Quando eu acho que estou quase vencendo, recebo uma nova
missão. A vida não cansa de me bater.
— Eu entreguei todo o dinheiro pro meu ex... — jogo no ar,
esperando que ela mude de ideia.
Acabei de contar toda a história a ela. Não tenho dinheiro nem
para comprar a câmera da minha irmã, que dirá arranjar dez mil
dólares para repor o valor que roubei.
— Faça uma nova arrecadação. Arranje um jeito. Essa é a minha
condição — a treinadora segue firme e eu fico sem argumentos.
Ela já está me ajudando de uma forma excepcional. Não posso
pedir por mais nada.
— Obrigada por me dar essa chance, treinadora. Até o final da
semana, o dinheiro estará nas suas mãos — afirmo, mesmo sem
saber o que diabos vou fazer.
Madison olha para as meninas, que estão nitidamente se
contendo para não sair pulando pela quadra, depois para mim, que,
apesar de estar preocupada, estampo um sorriso no rosto. Ela
balança a cabeça de um lado para o outro, também esboçando um
sorriso.
— A amizade que vocês estão construindo é linda. Perigosa e
irritante, mas ainda assim, linda. — Sua fala me emociona, gosto de
saber que nossa união está transparecendo dessa forma.
A treinadora nos deixa depois de me dar um leve tapinha no
ombro. Quando ela sai, nós cinco começamos a pular e gritar em
comemoração.
— A capitã está de volta! A capitã está de volta! — cantamos em
coro, saltando em círculos e dançando sem parar.
Depois de incontáveis saltos, nos cansamos e um silêncio
domina a roda.
— Cacete, como vou arranjar esse dinheiro até o final da
semana? — questiono, rezando para que o universo me mostre
algum caminho.
Olho para as meninas, buscando por ajuda, e é a loira mais alta
do grupo que abre um sorriso carregado de malícia.
— Eu tenho uma ideia — Joanne diz com uma empolgação que
me assusta.
Algo me diz que não vou gostar dessa tal ideia.
Me pegue pela mão
Me leve para algum lugar novo
Eu não sei quem você é
Mas eu, eu estou com você I’m With You – Avril Lavigne

De todas as coisas que Joanne Hudson poderia ter inventado,


essa não é a pior. A mente perversa da minha amiga é capaz de
criar os mais diabólicos cenários, mas devo admitir que ela teve
uma boa ideia. Sem dúvida será rentável, o único problema é a
roupa que ela nos obrigou a usar.
Ou a falta dela.
— Ainda não acredito que topei essa merda. Valorize minha
presença, James, porque não me coloco nesse papel por qualquer
pessoa — resmunga Scout, apontando para o seu corpo.
Eu me aproximo dela, passando o braço em seu ombro.
— Você sabe que algumas meninas do time achavam que a
gente se pegava escondido, certo? — indago, lembrando de um
boato que ouvimos quando começamos a nos provocar, no nosso
ano de calouras.
— Sim, me lembro muito bem.
— Imagina o que elas fariam se me ouvissem dizendo o quanto
você está gostosa com esse biquíni — provoco e Scout me
empurra, dando risada da brincadeira.
Estamos do lado de fora do ginásio, mais precisamente no
estacionamento, onde montamos um lava-rápido. A grande ideia de
Jo consistiu em reunir o time inteiro para lavar os carros de diversas
pessoas da faculdade, com a desculpa de arrecadarmos dinheiro
para comprar novos uniformes para as Red Fox. Não mentimos,
essa grana realmente servirá para isso, quando for para as mãos do
departamento esportivo.
Distribuímos panfletos nos últimos dias, fazendo propaganda do
evento e chamando todo mundo que conhecíamos. Somos um time
grande e popular na faculdade, então não foi difícil arranjar clientes.
Estamos trabalhando desde as oito horas da manhã da porra de um
sábado, rezando para conseguirmos o dinheiro todo até o final do
dia. Precisamos entregar a quantia para a treinadora ainda hoje.
Montamos duas tendas grandes, financiadas por Abby, para que
possamos ficar um pouco na sombra, e para Anthony, o caixa oficial
do evento, organizar o dinheiro. Todas as garotas ficaram
encarregadas de lavar os carros e é óbvio que não podíamos
simplesmente vir com qualquer traje. Estamos todas com um shorts
vermelho, que carrega o símbolo das Red Fox, e usando um biquíni
cortininha branco. Joanne fez questão que nos vestíssemos da
mesma forma, passou os últimos dias enchendo o nosso saco para
concordarmos e, bem, não tivemos muita escolha.
Estou me sentindo um tanto exposta, mas não posso negar que
também me sinto bonita. Costumo sempre me esconder tanto, é
bom variar um pouco. E com o calor que faz hoje em Kingston
Beach, eu duvido que sobreviveria com qualquer outra roupa.
Termino de lavar outro carro, em dupla com Scout, e vamos para
a sombra respirar um pouco. Joanne está em pé, parada ao lado de
Anthony, enquanto faz carinho em seu cabelo preto. Ele está
compenetrado, contando o dinheiro que já conseguimos e
separando em pequenos montes, antes de guardá-los na caixa que
estamos usando de cofre.
— E aí, como estamos indo? — pergunto, me aproximando dos
dois.
Abby e Alex também aparecem na tenda, após lavarem outro
carro, trazendo garrafas de água para nós. O movimento está
intenso, lotamos o estacionamento com o evento e não paramos de
trabalhar. Branca do jeito que sou, é bem capaz de acordar com as
bochechas rosas amanhã, por ter ficado tanto tempo no sol. Mas
nada disso importa. Precisamos conseguir esse dinheiro.
— Falta três mil. Acho que conseguimos fácil, fácil — fala
Anthony, ajeitando os óculos no nariz, alegre por nos ver
conquistando a meta. Joanne me pediu autorização para contar a
ele a história completa, já que seu namorado se dispôs a nos ajudar.
Ele é um cara discreto e não comentou nada comigo, mas eu sei
que entendeu o meu lado da situação.
— Nem consigo expressar em palavras o quanto sou grata por
tudo isso. — Aponto para o evento todo, sem saber o que mais
posso dizer para agradecer. O que elas estão fazendo por mim é
indescritível. Nunca me senti tão querida. — A ideia foi ótima e
nosso empenho fez o evento ser um sucesso! — elogio as meninas,
que estão tão felizes quanto eu com o resultado que obtivemos.
— Nós estamos nessa com você, Leah — diz Alex, bebendo um
gole de água em seguida.
— É, limpamos sua barra dessa vez, mas pelo amor de Deus, da
próxima, não se meta em confusão e peça ajuda antes — Scout me
repreende, ela ficou puta por eu não ter compartilhado nada com
ninguém, ainda mais com nossa proximidade.
— Eu reconheço que errei e aprendi minha lição. Sei que posso
contar com vocês — admito, acreditando firmemente nessa
verdade.
— Uma por todas — fala Abby.
— E todas por uma — repetimos em coro, distribuindo risos.
— Sinto que estou sobrando aqui — brinca Anthony, abrindo um
sorrisinho meigo.
— Ah, para com isso, lindo. Você segue sendo o dono do meu
coração e é quase um anexo das Red Fox. — Joanne puxa o rosto
do namorado para beijá-lo e suspiramos diante da fofura da cena.
Conversamos mais algumas amenidades e estamos prontas para
voltar ao trabalho, quando uma sinfonia de buzinas começa a tocar.
Nós nos viramos para ver o que está acontecendo e meu queixo cai.
Estou simplesmente em choque com o que vejo.
— Aquele é o Kahel? — pergunta Alex, apoiando a mão na boca,
chocada com o que vê. Do jeito que é bookstan, deve estar amando
a cena clichê que se desenrola à nossa frente.
— Ele se superou no escândalo — fala Scout, balançando a
cabeça em negação, mas com um sorriso meigo no rosto.
— Eu achei incrível! Queria que alguém me amasse o suficiente
para fazer uma coisa dessas. — As palavras de Abby mexem
comigo e fazem meu coração tentar rasgar meu peito.
Algum tempo atrás, eu me perguntei como seria ter um cara
rendido por mim. Não imaginei que a vida me traria um presente
desses tão rápido, mas, bem aconteceu. E aqui estou eu, vendo
Kahel Williams, o cara que eu jurava odiar, cometendo uma loucura
de amor por mim.
— O capitão sempre gosta de aparecer — falo para mim mesma,
encantada, e ao mesmo tempo um tanto envergonhada, porque fica
óbvio que ele está tentando me impressionar.
Há pelo menos dez carros buzinando pelo estacionamento, todos
pertencem aos garotos do time de basquete, mas é o de Kahel que
está todo enfeitado. Ele colou adesivos das Red Fox por toda a
lataria e escreveu “Eu te amo, Leah” no vidro da frente com o que
eu desconfio ser um batom rosa. Kahel está pendurado para fora do
carro e usa uma camiseta com uma foto minha mostrando o dedo
do meio estampada.
É uma declaração muito brega, das piores que já vi, mas ainda
assim, me arranca um sorriso, abala meu coração e a racionalidade
que eu estava tentando manter, porque tudo isso é a cara de Kahel.
E eu gosto que ele não mude por ninguém, que se mantém fiel a
sua personalidade, que se arrisca para tentar me conquistar de
volta. Gosto da ousadia de ter pensado em fazer uma coisa dessas
mesmo sem saber se eu ia gostar. Não entendo esse ato como uma
forma de me obrigar a tomar uma decisão, e sim como uma forma
de me dizer que ele quer lutar por mim.
Todo mundo para de trabalhar para assistir Kahel descendo do
carro e andando na minha direção. Miranda, Seb e Mav o
acompanham, mas vão para o porta-malas, abrindo-o e me
deixando desconfiada. Enquanto ele ama essa atenção toda, eu só
quero sair correndo daqui. Odeio que estejam nos encarando dessa
forma, esperando que troquemos uma grande declaração de amor.
Kahel percebe que estou desconfortável, mas segue se
aproximando. Olho para suas mãos com mais atenção e percebo
que há um microfone em uma delas.
Ah, não. Não, não, não.
A situação piora mais quando Anthony se levanta e começa a
andar na direção dele. Eu não entendo nada, desisti de tentar
entender. Olho para Joanne, mas ela, assim como as outras
meninas, parece tão perdida quanto eu.
Há uma ação toda acontecendo à nossa frente. Miranda entrega
a guitarra de Anthony nas mãos dele, Kahel posiciona o microfone,
eles trocam um olhar e uma melodia começa. As caixas de som do
porta-malas fazem “Smile” ecoar pelo lugar.
Kahel começa a cantar e sua voz é horrível, uma das piores que
eu já ouvi. Mas não importa, porque ele está cantando Avril Lavigne
para mim. A serenata faz toda a cena ser ainda mais brega. São
tantos clichês juntos, que quase me sinto em um filme de comédia
romântica dos anos 2000.
— Eu não acredito no que estou vendo. O Anthony ainda me
mata do coração — Jo sussurra para mim, dá para ver em seus
olhos o quanto está encantada pelo namorado, não só pela ajuda
que ele está dando para Kahel, mas também por conta de seu
talento inegável na guitarra. Anthony é ótimo.
Kahel é péssimo.
— “E agora você causa uma reviravolta E, de repente, você é
tudo que eu preciso A razão pelo qual eu-eu-eu Eu sorrio” — ele
canta e eu não resisto, sorrio de orelha a orelha, amando o quanto a
letra combina comigo. Eu adoro essa música.
E Kahel não está brincando na performance. Ele faz uma
dancinha com Anthony, que apenas ri da brincadeira, e continua
focado em tocar sua guitarra. Se aproxima de Miranda e encosta
seu quadril no dela, para que os dois rebolem juntos. Depois, passa
os braços nos ombros de Sebastian e Maverick, e seus amigos
cantam junto com ele.
Escondo meu rosto quando Kahel se aproxima e vem cantar para
mim. Ele desafina muito, mas tem ritmo e encaixa a letra na
melodia. Dá para ver que ensaiou, está até suando, provavelmente
nervoso por estar fazendo algo que é totalmente fora da sua zona
de conforto. Esse pequeno detalhe faz com que a homenagem seja
ainda mais especial.
Kahel termina a serenata ao lado de Anthony, até agradece a
plateia quando termina, e os dois são enaltecidos por uma salva de
palmas. O namorado de Jo e o meu se abraçam, Kahel o agradece
pela ajuda, é uma cena fofíssima, que faz eu e minha amiga
trocarmos um olhar apaixonado.
Anthony devolve a guitarra para que Miranda a guarde no carro,
Joanne não espera que ele se aproxime, sai correndo e pula em seu
colo, emocionada com o que ele se dispôs a fazer.
Kahel entrega o microfone para os amigos, que o parabenizam
por ter concluído o plano com sucesso. Os quatro membros da casa
do vale se abraçam, eles desejam boa sorte ao meu namorado
próximos demais, parece até que estão escondendo alguma coisa.
Não consigo enxergar direito, mas vejo que entregam algo a Kahel.
Quando ele começa a andar na minha direção, reparo que suas
mãos estão atrás do corpo, escondendo alguma coisa.
— Sinto muito por todos os olhares — ele fala baixinho quando
para à minha frente, evitando que alguém nos escute. — Eu só
precisava mostrar o quanto quero você.
Não posso negar, suas palavras me abalam. Não só elas, como
seu sorriso fácil, seu olhar apaixonado, a forma como seu corpo se
inclina na direção do meu. Sou puxada para sua direção, pelo
magnetismo que nunca deixou de existir entre nós.
— Você, sem dúvidas, fez uma entrada triunfal — comento,
esboçando um sorriso, sem conseguir resistir.
— Eu passei dias tentando descobrir uma forma de mostrar para
você o quanto nós valemos a pena. Pensei em inúmeros cenários e
tive duzentas ideias bregas diferentes. — Dou risada quando ele
conta essa parte, eu nem quero imaginar o que se passou em sua
mente. — E quando fiquei sabendo que você estava de volta ao
time e que vocês fariam esse lava-rápido, tive a deixa para agir.
Quis fazer essa serenata, mas precisei de uma ajuda mais técnica
e, bem, Anthony entrou na jogada. — Ele não fala mais sobre a
chance que recebi de estar de volta ao time, tem consciência de que
não é um assunto que podemos discutir aqui, com tantas pessoas
nos encarando.
Jo e o namorado se aproximam de nós, ela está pendurada em
seu pescoço, não para de sorrir.
— Achei que vocês precisavam de um cupido — Anthony diz e dá
de ombros de uma forma meiga que só me faz gostar ainda mais
dele. Kahel e ele tocam no ombro um do outro, cúmplices nessa
missão bem-sucedida.
Minhas amigas focam em Anthony, enchendo-o de perguntas, e
eu aproveito a privacidade para focar em Kahel. Ele faz um sinal
com a cabeça para nos afastarmos e eu topo na hora.
— Vai na frente — pede, indicando que eu caminhe até o ginásio.
Sei que faz isso para que eu não veja o que está atrás do seu
corpo e tenho ainda mais certeza de que vai me dar algum presente.
Passo o caminho todo pensando no que vou fazer. Fica claro que
Kahel está determinado a me ter de volta e eu ainda não sei se
superei os problemas que tivemos.
Entro no ginásio e paro no corredor de acesso à quadra, próxima
a parede. As luzes estão apagadas, então é melhor ficarmos por
aqui.
Retomo o contato visual com Kahel. Seus olhos me dizem que
está certo do que quer. Ele estampa uma determinação muitas
vezes vista nos meus próprios olhos. É fato que Kahel amadureceu
com nossa convivência, é fato que ele tem potencial para se tornar
um ícone do basquete, é fato que eu o amo. E é por esse motivo
que estou cautelosa. Sinto coisas demais por ele. Faria tudo por ele.
Kahel Williams tem meu coração nas mãos e pode quebrá-lo, se
quiser.
— Leah, eu quero, antes de tudo, que você saiba que respeito o
tempo que você me pediu. A minha intenção aqui não é te
pressionar a tomar uma decisão, e sim te mostrar o quanto estou
disposto a batalhar por nós dois. Eu não vou desistir do nosso amor,
princesa. — Ele leva uma mão para o meu rosto, segurando o tal
presente apenas com a outra. Seu carinho me faz fechar os olhos e,
por um momento, é como se eu fosse transportada diretamente para
os nossos primeiros toques, para os nossos primeiros momentos
juntos. — Tenho uma coisa pra te dar — seu anúncio me faz abrir os
olhos e ele volta a posicionar a mão atrás do corpo.
— Quer me subornar com um presente? — questiono, rebatendo-
o do jeito que sempre fiz.
Kahel nega com a cabeça, rindo do que digo. Ele fica tão, mas
tão lindo rindo.
— A ideia é outra, mas acho que você só vai entender quando
descobrir qual é o presente.
Ele dá alguns passos para trás e finalmente me mostra o que
escondia. Fico boquiaberta ao perceber que é um skate. Porra! Um
skate! Novinho em folha, com rodinhas cor de rosa, do mesmo tom
do boné que sempre uso.
Kahel me entrega o skate e sinaliza para que eu veja o desenho
da tábua. São várias bolas de basquete e um “princesa” escrito no
centro. Bem no cantinho, há uma frase.
— Para a melhor capitã da KSU — leio, dando risada da
referência aos nossos dias como inimigos, do início da nossa
aproximação, do nosso amor. — Não sei o que dizer.
Estou encantada, paralisada, chocada. Eu não tenho um skate
para chamar de meu desde o primeiro dia de aula da faculdade,
desde o dia em que esbarrei em Kahel, desde o momento em que
iniciamos nossa história.
— Leah, esse presente não é só um agrado — ele começa a
falar, usando uma voz séria, me mostrando um olhar mais firme. —
Você me disse que o skate era uma memória dolorida, que era algo
que lembrava seu pai. Por ironia do destino, o skate também é o
motivo para que nossa relação tenha começado, mesmo que de
forma conturbada. — Ele ri e eu o acompanho, adorando sua
reflexão, feliz por ter se lembrado desse detalhe, da pequena
história que contei sobre meu pai. — Esse novo skate é um símbolo
de que as coisas podem melhorar. De que as dores não se curam
totalmente, mas diminuem. De que o ódio, muitas vezes, pode se
tornar amor. De que novos tempos chegam, e que nós sempre
temos uma chance de recomeçar.
— Kahel... — murmuro seu nome, com os olhos marejados,
impactada por suas palavras.
Ele chega mais perto de mim para limpar a lágrima que escorre
em minha bochecha. Seu toque carinhoso me emociona ainda mais.
O simples fato de estarmos tão próximos, de sua pele estar
encostando na minha, já faz com que meu corpo se aqueça.
— Nós dois erramos, princesa. Não só pelas coisas que
dissemos, mas pelo modo como agimos em outras situações. E eu
sei que ainda vamos errar muito durante nosso namoro. É a
natureza humana. — Dá de ombros, levando seu toque para o meu
cabelo, brincando com as pontas ruivas, do jeito amoroso que só ele
sabe fazer. — Mas nós vamos aprender com nossos erros juntos,
vamos evoluir, vamos ser transparentes.
Ele está convicto do que quer. Eu nunca vi Kahel tão confiante. O
problema é que não compartilho do mesmo sentimento.
— Eu não sei se vamos dar certo, se somos a escolha certa. —
Agarro o skate com força e ameaço trazê-lo para o meu peito, para
evitar ficar tão perto de Kahel. Ele pega o skate da minha mão e o
coloca no chão, acabando com a minha tentativa de me distanciar.
Seu dedo indicador aponta para o meu peito, bem no coração.
— O que você sente aqui não te diz nada?
Meu coração não me ajuda e resolve bater mais rápido. É como
se fosse um sinal do meu corpo para que eu volte para ele. O
problema é minha mente, que não permite que eu ceda. Eu ainda
não me acho boa o suficiente para Kahel, ainda não acho que
combinamos. Me pergunto se me sinto assim por causa de nossas
diferenças ou se só estou com medo de me jogar em seus braços
novamente e arriscar meu coração.
— Estou assustada, Kahel — admito, rezando para que ele me
entenda.
Kahel segura meu rosto, colando nossas testas. Respiramos o
mesmo ar, compartilhamos a emoção desse momento, o turbilhão
de sentimentos que nos assola.
— Você é a garota para mim, Leah. Eu sei disso. A capitã e o
capitão, lembra? — Ele solta uma risada e eu o acompanho.
Percebo que sua voz está embargada, que ele também está
chorando. — Dê uma chance pra nós, princesa. Acredite no nosso
amor — sua súplica me comove.
Kahel não vai descansar enquanto não me tiver de volta. Está
claro que ele irá batalhar o quanto for preciso para me convencer de
que somos bons juntos. Mas eu ainda estou apavorada, ainda me
pergunto se esse é o caminho que devo seguir, ainda me questiono
se vou conseguir ser tão transparente quanto Kahel quer. Estou
acostumada a omitir, a viver diversas emoções em sigilo. Foram as
mentiras que fizeram com que eu quase perdesse tudo e aprendi
minha lição, mas como vou ter a certeza de que vou conseguir ser
tão honesta quanto ele quer?
— Eu quero dar uma chance pra nós — falo e Kahel suspira, se
afastando de devagar. Ele sabe que não vou ceder com tanta
facilidade. — Mas ainda tenho diversos questionamentos internos
pra resolver.
Ele assente e vejo seu punho se fechar, tamanho o nervosismo
que acumula. Kahel está tenso, quer tentar resolver a situação, mas
eu não facilito. Não quero que ele desista, contudo, não posso
simplesmente ceder. Preciso arranjar uma forma de controlar esse
pavor crescente dentro de mim para conseguir mergulhar
novamente em nosso amor. Se isso não acontecer, estaremos
fadados ao mesmo problema.
— Eu entendo. — Kahel passa a mão no cabelo e desvia o olhar
para o lado, antes de voltar a me fitar. Dá para ver que estou o
ferindo, mas sua esperança permanece intacta. — Você confia em
mim, Leah?
Sua pergunta me pega de surpresa.
— Confio — falo com convicção. Apesar da briga que tivemos, eu
confio em Kahel de olhos fechados. Me abri para ele de uma forma
que nunca tinha me aberto antes, afinal.
— Você confia no amor que sinto por você? — ele muda a
pergunta e eu me calo.
A resposta é não.
Sempre acho que Kahel vai me deixar, que vai se cansar das
nossas diferenças, que vai se irritar com os meus distanciamentos e
desistir de tentar fazer com que eu me entregue totalmente. Eu
nunca acredito que ele vai ficar, nunca acho que nosso
relacionamento é sólido, porque eu nunca tive algo parecido em
minha vida cheia de incertezas.
Cacete.
— Pense sobre isso. Reflita sobre tudo o que conversamos nos
últimos dias. Tenha em mente que eu amo você de uma forma que
nunca amei ninguém e que não vou desistir da gente. Eu não vou
desistir sem lutar, Leah. — Kahel faz questão de me fitar
diretamente enquanto afirma, mais uma vez se mostrando firme em
sua decisão. — Vou jogar amanhã à tarde. Eu gostaria muito que
você fosse me ver. Não precisa decidir nada em tão pouco tempo,
mas, se você aparecer, vou entender que está disposta a pelo
menos tentar.
Assinto devagar, entendendo que Kahel está me dando espaço,
para que eu possa me resolver. Ele me dá um beijo na testa, antes
de se afastar. A cada dois passos, olha para mim, passa o caminho
todo parecendo dividido entre continuar essa conversa ou seguir se
afastando para que eu tenha um momento de reflexão.
Suas palavras sem dúvidas mexeram comigo. Eu sabia que
estava assustada com a possibilidade de me machucar, mas não
tinha atrelado isso a falta de fé no amor que Kahel sente por mim.
Fica claro, agora, que as duas coisas estão juntas e que esse é um
problema interno que só eu posso resolver.
Meu coração já sabe o que quer, isso é fato. Só tenho que
convencer minha mente a aceitar.
— Sabe, Abby, eu amo pop, amo mesmo, mas não podemos
colocar outro tipo de música? — Joanne pergunta, apoiando as
mãos no banco de Abby. — Eu sou uma expert em rock, posso
arranjar algo que agrade todas nós.
— E se eu disser que odeio rock? — rebate Scout, desafiando-a
com as sobrancelhas erguidas.
— Então eu vou arranjar um estilo musical que você ame só pra
te agradar — responde Jo, mostrando a língua para Scout, que solta
uma risadinha.
Estamos na Baby, o carro de Abby, voltando para a toca das
raposas. Passamos na Small Snack para jantar, porque estávamos
cansadas demais para pensar em cozinhar. Lavamos os carros dos
mais diversos alunos da universidade e conseguimos arrecadar até
mais do que precisávamos. Acabei entregando a quantia inteira a
treinadora, para compensar, de alguma forma, toda a confusão que
causei.
Eu agradeço aos céus por estar de folga hoje, porque eu não
aguentaria trabalhar depois de ficar em pé tanto tempo. Gosto da
lanchonete e amo papear com Sloan enquanto trabalhamos, mas
agora, mais do que nunca, sinto que preciso de um novo emprego.
— Vocês podem colocar a música que quiserem, sou tranquila
com isso, gosto de tudo — fala Abby, olhando rapidamente para as
meninas pelo espelho, logo focando em voltar a dirigir.
— Já que estou na frente e sou a capitã, vou tomar a liberdade
de conectar o meu celular. — Assumo essa missão e começo a
mexer no rádio de Abby.
— Cuidado, ela jogou a carta da capitã — Scout zomba e dou um
tapa amigável em sua perna, que está ao meu alcance. Ela está
sentada no meio do banco de trás, Jo e Alex nas pontas, mais
próximas às janelas. Nós somos cinco garotas altas e fortes, e eu
diria que estamos esmagadas. Ainda bem que ficamos mais
próximas, caso contrário, esse aperto seria bem constrangedor.
— Preparadas? — pergunto quando encontro a música perfeita,
olhando para o banco de trás, depois para Abby.
— Vamos ver o que você preparou pra nós — fala Alex e todas
assentem.
Dou o play em “I’m With You” da Avril Lavigne e ouço um coro de
suspiros.
— Um momento nostalgia nunca é demais — justifico minha
escolha e é inevitável, nós todas começamos a cantar.
Não, cantar não é a palavra certa. Essa é a típica música perfeita
para gritar em plenos pulmões, para jogar as mãos para o alto e
simplesmente curtir o momento. E que sorte a minha por estar
curtindo esse momento com elas.
Jo e Alex envolvem Scout com seus braços, ela fica presa entre
elas, mas, pela primeira vez, não parece se importar com isso. Finjo
que minha mão é um microfone e me aproximo de Abby para cantar
com ela. Quando paramos em um farol, nossa motorista abre todas
as janelas. A princípio, não entendo o porquê, mas quando o carro
volta a se movimentar e nossos cabelos ficam ao vento, me sinto
em um videoclipe, me sinto a própria Avril Lavigne.
A música acaba, mas a nossa conexão não. Continuamos
sorrindo à toa, todas falam ao mesmo tempo, é uma verdadeira e
maravilhosa confusão. Eu observo a interação delas e sinto que
preciso dizer uma coisa que tenho sentido no fundo da alma. Só
espero até que Abby estacione, para que seu precioso carro não
seja batido de novo.
— Meninas — chamo a atenção delas como faço em quadra. As
quatro se calam na hora. — Eu só queria agradecer por tudo o que
vocês fizeram por mim. Não só pelo lava-rápido, mas também por
me entenderem, por não me julgarem, por todas as conversas, os
momentos desabafo e até os jogos de tequila pong. Nunca tive
amigas antes, então demorei para deixar vocês entrarem na minha
vida. Mas eu não me arrependo, nem por um segundo, de ter me
aproximado de vocês. — Paro ao ver que Alex está chorando, Abby
mordendo o lábio para tentar não desabar, Jo deixando algumas
lágrimas escaparem e Scout me encarando fixamente, absorvendo
o que estou dizendo. — Acho que vocês são minhas melhores
amigas.
— Você acha? — Scout rebate na hora, revoltada.
— Não. Eu tenho certeza. Vocês são minhas melhores amigas —
afirmo.
Alex estende seu braço para que eu segure sua mão. Aceito o
toque e, com a outra mão, seguro a mão de Abby. Todas entendem
a deixa e não demora para que, mesmo dentro do carro, uma roda
se forme através das nossas mãos.
Não sei tudo sobre a vida de cada uma delas, nem todas se
abriram totalmente e ainda temos um grande caminho para
percorrer em nossa amizade. Mas o tanto que já evoluímos, desde
que viemos morar juntas, foi impressionante. Nossos tempos de
estranhamento ficaram para trás de vez. Eu tenho para mim que,
daqui para frente, essa ligação entre nós só irá crescer. Dentro e
fora das quadras, como deve ser.
— Ok, também temos algo a dizer pra você — anuncia Alex,
fazendo um sinal com a cabeça para Abby, e soltamos nossas
mãos.
Olho para a loira sentada no banco do motorista, ela está de lado,
me fitando com um sorriso travesso, deixando óbvio que aprontou
alguma. Joanne abre a tampa do porta-malas e tira de lá uma caixa,
embrulhada em um tecido vermelho. Ela passa o presente para
Abby, que o estende na minha direção.
— Mais presentes? — questiono, passando o olhar pelas
meninas, buscando informações.
— Na verdade, não é pra você — Abby revela e eu a encaro com
confusão. — É uma câmera para a Hailey.
Eu travo quando a escuto, sem compreender se ouvi a coisa
certa. Scout, Jo e Alex estão com sorrisos bobos nos rostos, o que
me dá a certeza de que é isso mesmo que escutei.
— E não é bem um presente. Lembra quando você me deu
dinheiro para pagar o conserto do carro? — pergunta Abby e eu
assinto. — Eu não usei. Paguei tudo com o meu dinheiro. — Sua
revelação me deixa boquiaberta. — Eu ia te devolver a quantia, mas
quando você contou que tinham quebrado a câmera da sua irmã,
pensei em usar o dinheiro para um bem maior. Nós quatro
completamos o valor e conseguimos comprar uma câmera ainda
melhor do que a que ela tinha. Então você pode dizer a Hailey que é
um presente de todas as moradoras da toca das raposas — ela fala
com um sorriso largo no rosto e eu nem sei mais o que dizer.
Agradeço novamente, deixo claro o quanto estou feliz por tê-las
na minha vida. Essa foi uma das coisas mais bonitas que já fizeram
por mim. Agora eu tenho ainda mais certeza de que, assim como
Kahel, minhas amigas também sempre vão lutar por mim.
Apenas de lembrar seu nome, já sinto um aperto no peito. Depois
que ele foi embora, não consegui tirá-lo da cabeça. Kahel Williams
dominou cada um dos meus pensamentos. Refleti sobre nossas
conversas, não só a de hoje, como a outra que tivemos, e cheguei à
conclusão que, no fundo, é óbvia. Eu quero voltar com ele. Estou
disposta a começarmos uma nova história, a tentarmos de novo,
dessa vez com menos barreiras entre nós. O problema é o medo. É
sempre o medo.
— Leah, tá tudo bem? — pergunta Abby, apoiando uma mão na
minha coxa, percebendo que estou com os pensamentos longe
daqui.
Quase assinto e digo que sim, mas logo resolvo usar esse
momento para desabafar.
— O Kahel está certo de que fomos feitos um para o outro. Ele
fez aquela breguice para chamar minha atenção, me deu o skate de
presente...
— Foi um dos presentes mais lindos da história — Alex
interrompe, unindo as mãos na frente do peito, emocionada, como o
habitual.
— E você não gostou? Não quer voltar com ele? — questiona
Scout.
— Eu quero.
— Mas? — pergunta Abby.
Suspiro, esfregando uma mão na outra, pensando em como
explicar o que sinto.
— Tenho medo de me entregar completamente e sofrer caso ele
quebre o meu coração.
Assim que falo, Joanne se remexe no banco, focando seus olhos
nos meus.
— Eu passei a vida com medo de me apaixonar e olha onde
estou? Amar vale a pena, Leah. Viver um amor como o de vocês
vale muito a pena — ela afirma com a convicção de quem passou
por isso e escolheu mergulhar na loucura que é um relacionamento.
— Pare de pensar no pior! — Alex me dá uma bronca. — O Kahel
fez uma homenagem ridícula só para dizer o quanto te ama!
— Viver uma paixão é intenso e pode dar errado, sim. Mas deixar
de vivê-la não é o caminho. — A fala de Scout carrega algo sombrio.
Seus olhos se desviam levemente para baixo e eu percebo que ela
não está dizendo isso da boca para fora. Sua convicção é parecida
com a de Joanne, com a de alguém que já teve um grande amor.
Quero questioná-la e tentar arrancar informações dessa história,
mas sei que não é a hora para isso.
A atenção está toda voltada para mim.
— Você, no fundo, já se entregou. Só falta ter a coragem de se
jogar de vez nesse amor. — Abby dá a cartada final e eu esfrego
meus olhos com as mãos, afetada por tudo o que disseram.
Elas estão certas. Eu quero estar com Kahel. Nós tínhamos algo
maravilhoso, estávamos construindo um relacionamento gostoso e
respeitoso. Ele quebrou minhas barreiras em diversas ocasiões, me
fez descobrir o quanto sexo é bom, fez com que, pela primeira vez,
eu sentisse o que é estar apaixonada por alguém.
Erramos, nos redimimos, tivemos as conversas que
precisávamos ter. E agora cabe a mim decidir nosso futuro.
Ainda estou assustada, mesmo que Kahel tenha provado que me
quer ao seu lado. Mas como minhas amigas disseram: o amor vale
a pena, mergulhar novamente na nossa história vale a pena. Não
posso deixar de viver uma paixão como a nossa porque estou com
medo. Não posso deixar Kahel escapar.
Fecho os olhos e imagino que estou em quadra, o lugar onde me
sinto mais confiante, em uma final de campeonato. Pego o rebote,
estou novamente com a posse de bola e pronta para fazer a cesta
certeira, o melhor chute da minha vida, o ponto que vai me fazer
ganhar meu amor de volta.
De repente, tenho um simples e brilhante plano para retribuir o
que ele fez por mim.
Porque a verdade é que eu percebi
Que sem você aqui, a vida é apenas uma mentira
Este não é o fim, este não é o fim
Nós podemos fazer isso, você sabe, você sabe History – One
Direction

A arquibancada grita para o nosso time em coro.


Red Tigers!
Red Tigers!
Red Tigers!
Essa vibração da torcida faz com que meu coração bata mais
rápido. Estou focado somente no som das palmas que ecoam pelo
ginásio, e são elas que me guiam para dentro da quadra.
Quando tenho a visão completa das arquibancadas, da estrutura
do lugar e até da cobertura midiática de ambas as faculdades, fico
de queixo caído. Nosso time nunca tinha avançado tanto no March
Madness. Estamos entre os melhores trinta e dois times do país e
poderemos estar entre os dezesseis, se passarmos essa fase.
Eu tenho para mim que temos uma grande chance. Não de
sermos campeões, mas de avançarmos na competição. Estamos
sólidos em quadra, focados no jogo, fazendo os lances certos.
Tivemos os melhores treinos do ano nessa última semana, eu tive o
meu melhor desempenho como capitão, tive ainda mais
confirmações de que a carreira profissional é o caminho que devo
seguir.
Se a vibração de um campeonato universitário já é desse jeito,
imagino como será a de um profissional. Frequentei diversos jogos
quando meu pai jogava e apenas de assistir, percebia que era algo
diferente. Nem imagino a emoção de estar jogando, de ouvir meu
nome sendo gritado pela torcida, de levantar o troféu da NBA.
Esse me parece um futuro incrível, meu futuro dos sonhos, mas
só vai fazer sentido se minha garota estiver torcendo por mim na
arquibancada.
Foi Leah que me mostrou o que é ser um líder de verdade. Foi
olhando para ela, que eu aprendi o que é responsabilidade, o que é
ser um exemplo, o que é cuidar do meu time. Eu a admirei desde
que vi como age diante das Red Fox, o quanto elas a respeitam. A
Leah capitã me inspirou na postura em quadra, mas é Leah James
como um todo que inspira meu coração.
Olho para as arquibancadas, procurando por ela. Com seu cabelo
ruivo e sua altura, imagino que não será difícil encontrá-la. Mas
Leah não está aqui. Ainda não. Eu tenho certeza de que ela vai
aparecer.
O aquecimento começa, recebemos as últimas orientações do
treinador Morrow e os times se posicionam no círculo do centro da
quadra, para disputar a posse de bola. É Maverick quem salta para
o nosso time e quando o apito soa, é para a minha mão que ele joga
a bola.
Eu a seguro com força, analisando o panorama do jogo, para
decidir o que vou fazer. A decisão não demora mais do que alguns
segundos, mas é tempo o suficiente para eu avistar cinco meninas
entrando na arquibancada. Uma loira e muito alta. Outra loira
vestida de rosa. Uma morena empurrando essa mesma loira para
que ela ande mais rápido. Outra com o cabelo cacheado
balançando de um lado para outro, me fazendo imaginar que está
saltitando enquanto se posiciona. Mas quem me chama atenção
mesmo é uma ruiva que está com um boné rosa virado para trás.
É Leah.
Leah veio me ver.
Leah vai dar uma chance para nós.
E Leah está carregando um cartaz que diz “Namorada do
capitão”.
É a melhor e mais simples declaração de amor que eu já recebi.
Não contenho a empolgação e sorrio de orelha a orelha, agora
sim, pronto para jogar no estilo Kahel Williams.
Disparo pela quadra e passo a bola para Sebastian quando um
garoto do time rival tenta me parar. Nós nos posicionamos em volta
do garrafão, os cinco jogadores assumindo seus lugares, prontos
para armar uma boa jogada.
A bola volta para a minha mão, driblo um garoto com um giro e
corro em alta velocidade para poder ganhar impulso para saltar.
Enterro a bola na cesta, me pendurando no aro por um momento, só
para me vangloriar pelos pontos. Quando meus pés voltam a tocar
no chão, soco o ar em comemoração, recebendo tapinhas rápidos
do resto do time.
Nada dura muito, porque ainda há muito jogo pela frente.
Voltamos ao foco em poucos segundos e é assim durante a partida
toda. Os Red Tigers concentrados em vencer, sem perder muitos
lances, atentos na defesa, conseguindo roubar da bola dos
adversários mais vezes do que o habitual.
Nosso domínio é absoluto. Quando chega no final do jogo, já
estamos nos arriscando, tentando jogadas mais difíceis, porque
sabemos que iremos ganhar.
Nos últimos vinte segundos, trocamos alguns passes para
enrolar. Quando, por fim, nos aproximamos do garrafão, eu me
posiciono na linha dos três pontos e decido me arriscar mais uma
vez. Faço o arremesso que não é minha especialidade, mas que
treinei tantas vezes com a ruiva que me assiste na arquibancada.
Eu nunca vi alguém acertar bolas de longas distância como Leah,
então, quando acerto, bato no meu peito e aponto para onde ela
está, para deixar claro que dedico esses três pontos a ela.
Para deixar claro que meu coração é todo dela.
O apito soa, o jogo acaba e nós avançamos no campeonato. A
comemoração é eufórica, os reservas e a comissão técnica correm
pela quadra para nos abraçar. Estamos batendo um recorde para a
KSU e para os Tigers. É um momento histórico, um daqueles que eu
sei que vou guardar na memória e contar, algum dia, para o meu
filho ou filha.
Depois de abraçar o time todo e o treinador, eu, Mav e Seb
fazemos nosso próprio abraço em grupo, pulando, abraçados e em
círculo, para comemorar a vitória. Em uma das rodadas, tenho um
novo ângulo da quadra e vejo Leah.
Ela está perto da cesta, vestindo uma calça jeans toda rasgada e
a camiseta vermelha dos Tigers que dei para ela, com o número
seis estampado, e um “Williams” bem grande nas costas. O cabelo
ruivo está solto e as ondas caem em seus ombros. O boné rosa
virado para trás é o toque perfeito, é o item que faz Leah James ser
Leah James.
Sebastian e Maverick percebem que dispersei, meu foco é
totalmente dela, não dá para negar. Cada um me dá um tapinha nas
costas, mostrando seu apoio, sinalizando para que eu vá até ela.
Não preciso nem pensar duas vezes.
Vou me aproximando com cautela e quando chego na frente dela,
ainda mantenho uma distância segura, para não me impor demais.
Leah está aqui porque tem uma resposta e eu sei que ela é positiva,
que vamos terminar esse diálogo com nosso namoro reatado, e é
por isso mesmo que quero deixá-la no comando dessa conversa.
— Mais uma pra conta, capitão — ela me parabeniza de uma
forma diferente.
— A última cesta foi especialmente pra você — falo com um
sorriso lateral estampado, uma expressão que ela ama, que é
justamente a que usei para conquistá-la.
O meu sorriso fácil de quem vai molhar calcinhas.
— Eu vi. Aprendeu com a melhor, não é? — provoca, erguendo
as sobrancelhas, me desafiando da forma que fazia no início da
nossa relação.
— Aprendi, mas agora acho que já estou superando a mestra —
rebato, esperando irritá-la pelo menos um pouquinho.
As bochechas de Leah ficam vermelhas, ela não se aguenta,
sempre fica brava com as coisas que digo. E eu a amo tanto, que
até seu jeito marrentinho me conquista.
— Eu estava pensando em declarar meu amor por você, mas
acho que, depois dessa, desisti. — Dá de ombros como se não se
importasse, fazendo um bico desencanado com os lábios.
Dou risada da sua reação, adorando que, mesmo que tenhamos
nos envolvido romanticamente, continuamos com as provocações,
com as rebatidas infinitas. Eu discutiria com Leah até ficarmos
cansados, rezando para que a briga terminasse em uma rodada
incrível de sexo.
Com a confirmação de que ela veio aqui com a intenção de voltar
comigo, posso me dar a liberdade de puxá-la pela cintura. Envolvo
meus braços em seu corpo, colando nossos peitos, mandando um
abraço para a distância que mantivemos nos últimos dias.
— Você não desistiria de mim, princesa.
Leah apoia as mãos no meu peitoral e levanta o queixo,
encaixando o olhar diretamente no meu. Em sua expressão, só vejo
amor, carinho, esperança. Ela abraçou minha ideia de iniciarmos um
novo capítulo da nossa história.
— Se eu quisesse desistir, não teria me humilhado para os
seguranças só para poder entrar na quadra e te ver. Tive que jogar
a cartada “ele é filho do Jordan Williams” para que me deixassem
passar — conta e eu dou risada, me sentindo especial ao saber do
seu esforço para vir até aqui. — Mas eu precisava te falar essas
coisas dentro da quadra, no lugar que é tão importante para nós
dois, rodeada pelo esporte que nos uniu.
— Que coisas? — pergunto apenas pelo prazer de poder fazer
isso.
Eu declarei meu amor a Leah. Ela sabe de tudo o que sinto, de
tudo o que quero. Agora é sua vez.
— Ainda odeio o quanto você é egocêntrico e acho que nunca
vou conseguir aturar todas as suas piadas e seus momentos de
estrela. Também não supero o quanto você é simpático e social,
simplesmente não consigo entender essa vontade toda de falar com
todo mundo. Sua felicidade excessiva me incomodava, mas percebi
que era porque eu tinha inveja do quanto você sorria. Tenho orgulho
de dizer que, agora, eu admiro essa mesma felicidade, porque
consegui absorvê-la. Você entrou na minha vida e me fez sorrir,
Kahel. Você me trouxe segurança, leveza, certezas. Você me fez
acreditar no amor, me fez viver um amor. E eu espero que esteja
disposto a continuar vivendo, porque eu não vou a lugar algum.
Sua declaração é simples, sincera, tem o jeitinho dela. Leah
trouxe uma pitada do nosso ódio do passado, deixou claro que
ainda não gosta desses pontos, mas que há muitos outros que
aprendeu a amar. Nosso relacionamento é sobre isso, é sobre
aceitar as diferenças e tentar encontrar o melhor ponto de equilíbrio,
é sobre amar as mesmas coisas e compartilhar essa paixão, é sobre
estar apaixonado, mas ainda assim seguir com nossas
provocações, é sobre ter a garota que amo nos meus braços, e
sentir que quero mais momentos ao lado dela, que nosso futuro é
algo certo.
— Eu te fiz uma homenagem brega e escandalosa, você me
conquistou com apenas algumas palavras. Acho que isso diz muito
sobre nossas personalidades.
Leah dá risada do que falo, enfiando o rosto em meu ombro para
se esconder. Quando ergue o olhar novamente, está mais leve,
relaxada, seus olhos expressam todo o amor que sente por mim.
Mas há um detalhe em sua expressão, um detalhe que eu
simplesmente não resisto, preciso pontuar.
— Eu gosto de ser o cara que te faz sorrir, porque seu sorriso é
lindo, princesa. — Solto uma mão de sua cintura para levá-la ao seu
cabelo, fazendo um carinho delicado em seus fios.
Leah joga os braços em meus ombros, nos aproximando ainda
mais, colando de vez nossos corações.
— Agora eu amo seu sorriso, capitão.
— E eu te amo, capitã.
Minha declaração final me dá a deixa perfeita para matar as
saudades dos seus lábios. Perdi a conta de quantas vezes pensei
no seu beijo, nesses dias que ficamos separados. Essa é só mais
uma prova de que Leah mexe comigo de uma forma que ninguém
nunca mexeu. Porque só o beijo dela me deixa assim, só ela me
deixa assim. Sou apaixonado por Leah James. Completamente
apaixonado.
Minha mão vai do seu cabelo para o seu rosto. Toco em sua pele,
traço suas sardinhas com meus dedos, encantado com cada pedaço
dela. Estamos colados, nossas bocas quase se encostam, mas nós
dois demoramos para seguir em frente com o beijo. Usamos esse
tempo para admirar um ao outro, para gravar os detalhes dos
rostos, para manter nossa conexão forte. Nós nos olhamos com
uma intensidade que nunca tivemos antes. Esse abalo em nosso
relacionamento só fez com que voltássemos mais fortes. Agora, eu
consigo dizer que conheço Leah. E quero continuar conhecendo,
quero ser o cara que sabe absolutamente tudo sobre ela, quero que
tenhamos o tipo de relacionamento em que consigamos nos
entender apenas pelo olhar.
Acredito que isso não será difícil, porque, apenas pelo leve
movimento de sua cabeça, eu sei que quer me beijar. Mas como
tudo entre nós sempre tem que ser um desafio, eu a beijo primeiro.
O reencontro dos nossos lábios consegue ser melhor do que
qualquer vitória. A emoção de levantar uma taça não é a mesma de
beijar Leah James. Estar em quadra é especial sempre, mas estar
reatando meu relacionamento com ela nesse lugar que é tão
significativo para nós deixa tudo ainda melhor.
Demora até que eu tenha coragem de me afastar, de dar uma
pausa em nosso beijo. Eu poderia beijá-la o resto do dia — e agora
posso, na verdade — mas tenho algo importante para dizer.
— Agora você acredita no meu amor por você, princesa? —
questiono com as duas mãos em seu rosto, segurando-a com
firmeza, carinho, cuidado.
— Eu não só acredito, eu sinto.
Sua afirmação é a deixa que eu precisava para beijá-la de novo.
Dessa vez, Leah pula no meu colo, enlaçando as pernas em minha
cintura, e eu tenho que segurá-la. Nosso beijo é eletrizante, tem
gosto de saudades, é carregado de expectativas para o futuro, de
paixão pelo presente.
Fico me perguntando se entrar para a NBA e ser o jogador mais
valioso do campeonato vai me causar as mesmas sensações que
Leah me causa. Tenho para mim que serão emoções parecidas,
daquelas que te levam ao limite, que ficam guardadas na memória,
mas acho que terei que esperar para descobrir com certeza.
Faço a jogada perfeita de distraí-la com um beijo para ajudá-la a
voltar para o chão e roubar seu boné, colocando-o na minha
cabeça. Leah tenta pegá-lo, mas não deixo e disparo correndo pela
quadra. Ela me segue com rapidez, aguenta correr pela quadra
tanto quanto eu, odeia perder, assim como eu. Não tenho dúvidas
de que correremos até não aguentarmos mais, porque nenhum de
nós deixaria o orgulho de lado para ceder.
Nós somos assim: gostamos de nos desafiar, de provocar, de
batalhar. Temos muitas diferenças, mas também muitas
semelhanças, e é por isso que somos tão bons juntos.
Com Leah James ao meu lado, seja dividindo as quadras, a cama
ou torcendo por mim na arquibancada, me sinto mais forte, me sinto
mais confiante, me sinto mais eu. Ela é a minha pessoa, eu sou a
pessoa dela. Ela é o motivo dos meus sorrisos, eu sou o motivo dos
sorrisos dela. Ela é a garota que eu amo, é minha capitã, minha
princesa, e eu sou o capitão dela.
Leah e Kahel.
Kahel e Leah.
O capitão e a capitã.
O melhor efeito rebote de todos os tempos.
Nenhum outro garoto fez eu me sentir bonita
Quando estou em seus braços, sinto que tenho tudo

Queen Of Disaster – Lana Del Rey

Alguns meses depois


A vida pode ser difícil, mas também pode ser adorável. Depois de
uma longa fase conturbada, eu finalmente posso dizer que encontrei
um pouco de paz.
Minha mãe segue frequentando as reuniões do AA e se
empenhando na missão de ficar sóbria. No primeiro mês, ela teve
uma recaída. Nos três que se seguiram, mais duas. Foram
momentos complicados, em que ela quase quis desistir, mas eu e
Hailey demos o apoio que ela precisava e mamãe voltou a tentar.
Vai ser um processo longo até que esteja com mais controle sobre o
vício e ela tem consciência disso. Estou orgulhosa da sua
determinação até aqui, eu confesso que não tinha acreditado que
sua vontade de mudar chegaria tão longe. Depois de meses, eu
consigo crer que quer mesmo tomar as rédeas da situação.
Apresentei Kahel oficialmente a ela um mês depois que voltamos.
É óbvio que Beverly o adora — não há uma pessoa no mundo,
exceto meu eu do passado — que não goste de Kahel Williams.
Perdi a conta de quantas vezes brigamos nos últimos meses,
porque a verdade é que somos duas pessoas orgulhosas, temos
dificuldade de aceitar ideias que não são nossas e sempre
queremos estar no papel de liderança. A parte boa é que soubemos
administrar as discussões, aprendemos a entrar em um acordo
rapidinho e terminar as brigas com um sexo de reconciliação
gostoso.
É isso que acabamos de fazer, inclusive. Transamos no seu carro
mesmo, depois de ele me buscar no trabalho e entrarmos em uma
discussão sobre quem iria dirigir.
Faz algum tempo que estou trabalhando com a mãe de Kahel. O
currículo que enviei fez com que o departamento de contratação me
contatasse, fiz uma prova presencial e também uma entrevista e,
por fim, fui selecionada para o estágio. Karen me deu uma bronca
no primeiro dia de trabalho, disse que eu já deveria ter aceitado sua
oferta e entrado direto, e não passado por todo o processo com
risco de não conseguir o emprego, mas expliquei para ela que não
gosto de fazer nada de errado e minha sogra entendeu. Desde
então, formamos uma dupla imbatível. Ela é uma engenheira
brilhante e diz que tenho ótimas ideias, tenho contribuído bastante
nos projetos, gostado do trabalho mais do que eu achei que iria
gostar. Kahel diz que, no futuro, sua mãe vai me tornar sua sócia,
porque meu talento é bom demais para ser desperdiçado.
Ele confia demais em mim. Eu só estou deixando as coisas
rolarem.
Ajeito meu cabelo no espelho do carro, tento dar uma arrumada
na roupa, mas não adianta muito, está na cara que estávamos
transando.
— Muito ruim? — pergunto, fazendo uma careta para ele.
— Todo mundo vai descobrir, mas não estou nem aí.
Reviro os olhos com o tanto que ele é desencanado. Kahel está
com a camiseta toda amassada e suado, mas ainda dá para
disfarçar. Agora eu, com minhas bochechas pegando fogo e meu
cabelo desse jeito, fica impossível.
Descemos do carro mesmo assim e ele logo se apressa para
andar ao meu lado e segurar minha mão. Kahel é mais romântico do
que eu imaginava. Ele adora ficar me abraçando, vive me fazendo
surpresas e me dando pequenos presentes para me agradar. É um
bajulador de primeira.
— Nós somos os capitães, temos que manter uma certa imagem
— pontuo e Kahel me olha com deboche. Reviro os olhos e esbarro
em seu ombro para provocá-lo. Em resposta, Kahel leva seu braço
para o meu ombro e rouba um beijo rápido dos meus lábios.
Eu amo essas nossas nuances, a capacidade que temos de
zombar um do outro e ter um gesto carinhoso logo depois. É fato
que isso fortalece nosso relacionamento, nos aproxima, nos deixa
cada vez mais à vontade um com o outro.
Quando estou com Kahel, me sinto em casa.
Estamos trocando sorrisos e caretas, quando Kahel paralisa. A
princípio, não entendo por que parou, sendo que estamos atrasados
para encontrar as meninas, mas quando sigo seu olhar, percebo que
está encarando uma delas.
Alex está escorada na parede lateral do ginásio, um lugar
escondido e que recebe muita sombra. Vejo que está dividindo o
fone de ouvido com alguém, rindo com alguém, sorrindo para
alguém.
Eu imaginava que esse alguém poderia ser qualquer pessoa.
Sério. Literalmente qualquer pessoa. Menos ele.
— Por que o Romeo está próximo desse jeito da Alex? Eles são
amigos? O que eu perdi? — Kahel indaga, o semblante está
carregado de desgosto, já que ele não suporta o ex-jogador de
futebol americano.
— Não sei, nunca vi os dois conversando. Não sabia que eles
sequer já tinham conversado.
Alex é falante e costuma compartilhar algumas coisas da sua
vida, mas nunca comentou que tinha qualquer tipo de amizade com
Romeo. Na verdade, estamos cansadas de saber que Alex tem
uma paixonite por Josh, melhor amigo de Romeo, o que torna tudo
ainda mais estranho. A cena que se desenrola à minha frente me
parece carregar certa proximidade. Eles trocam olhares, discutem
sobre alguma coisa, enquanto escutam uma música juntos. Ela não
faria isso com alguém com quem não tem um mínimo de
convivência.
— Eles parecem íntimos. Não gostei. Ele não é o cara pra ela —
Kahel resmunga, fazendo uma careta de desgosto.
— E quem é você pra dizer quem é bom pra ela? — rebato com
as sobrancelhas erguidas, cruzando os braços.
— Leah, você mesma disse, nós somos os capitães. Somos tipo
o pai e a mãe dos jogadores de basquete de KSU. Precisamos
cuidar dos nossos filhos. Romeo não é um cara legal. Ele é um bad
boy e a Alex é uma garota incrível. Ela merece coisa melhor.
Sua fala, sem dúvidas, é muito parental. A preocupação de Kahel
com minha amiga é no mínimo engraçada. Só por isso, ele já
merece um beijo. Grudo nossos lábios rapidamente e entrelaço
nossas mãos novamente para que sigamos nosso caminho.
Entretanto, Kahel não esquece da cena que viu. Até quando
estamos sentados no gramado próximo ao ginásio, ele fica com o
olhar longe, pensando demais. Eu converso com Jo, Abby e Scout,
Anthony tenta manter um diálogo ativo com meu namorado, mas
está difícil. Cutuco seu braço quando vejo Alex se aproximando. Ela
parece normal, nos cumprimenta e se senta ao lado de Abby sem
contar onde estava, sem sequer citar o nome de Romeo. Acho
estranho que ela esteja mantendo essa amizade com ele em
segredo. Todo mundo da faculdade o julga, é fato, mas nós não
somos todo mundo. Somos suas amigas.
— Alex, te vi conversando com o Romeo. Não sabia que eram
amigos — Kahel fala, causando um silêncio imediato na roda.
Puta que pariu! Eu o encaro na hora, sem acreditar que
realmente falou isso. Faço uma careta que deixa minha indignação
clara.
Alex abre levemente a boca, pega de surpresa. Não deve ter
imaginado que alguém veria seu momento com Romeo. Mas nós
vimos e Kahel, aparentemente, já criou uma história em sua cabeça.
— Nós estamos fazendo uma matéria optativa juntos e estou
dando uma ajuda pra ele — Alex se explica.
— Nossa, mas para pessoas que estão só fazendo uma matéria
juntas, vocês pareciam íntimos demais — Kahel retruca, está na
cara que não está com vontade de deixar essa história passar de
forma alguma.
Dou uma cotovelada amigável em sua costela para ver se
percebe o que está fazendo, mas meu namorado me ignora. Alex
coça a cabeça e se cala, nitidamente desconfortável com a
cobrança.
— Ele é um belo bad boy, hein. Um ótimo investimento, se quer
minha opinião — Jo comenta para descontrair, mas eu sei que
pensa isso de verdade, porque já ficou com Romeo e vários outros
garotos “maus”.
— Acho ele bem gostoso. — Abby abre um sorriso malicioso e
ela e Jo trocam um olhar que grita perigo. É tipo um complô das
mais pegadoras do grupo (ou ex-pegadora, no caso de Joanne).
— Dá pra perder alguns minutos com ele — fala Scout,
levantando as sobrancelhas para Alex, incitando o caos.
Minha amiga gesticula rapidamente, implorando para que todas
parem.
— Gente, chega! Não tem nada entre mim e o Romeo, estou só
dando aulas pra ele, não é nada demais. Não há chances de
ficarmos juntos — ela afirma, deixando, pela primeira vez, seu lado
bookstan e fanfiqueira de lado. Logo agora que temos tanto material
em mãos.
— Eu também dizia que não havia nada entre mim e o Kahel e
olha onde estamos. — Entro na brincadeira, incapaz de resistir.
— Nós não vamos ser iguais a vocês! — Alex rebate na
defensiva, eu nunca a vi estressada, mas estou adorando o
panorama. Kahel, por outro lado, segue com a cara fechada,
espremendo os olhos na direção dela. — Vamos mudar de assunto?
Por que os dois capitães enxeridos não vão pegar um sorvete pra
gente?
A completa transformação do tópico me pega de surpresa. Troco
um olhar com as meninas e fica claro, para todas nós, que talvez
exista algo a mais nessa história. Alex não tinha comentado sobre
essas tais aulas, agora age desse jeito... Sinto que há algo rolando.
Um relacionamento secreto? Uma paixão surgindo? Uma amizade
colorida? As possibilidades são inúmeras, mas só vou saber a
verdade quando Alex revelar tudo.
Eu e Kahel obedecemos e nos levantamos para ir até o refeitório
comprar os sorvetes. Assim que nos distanciamos do grupo, dou um
tapinha amigável em seu braço, para repreendê-lo por ter cobrado
Alex.
— Não acredito que você teve coragem de falar aquilo pra Alex!
Ele me olha, indignado.
— Ela é sua amiga e minha também, me preocupo e me importo
muito com ela! — Apoia a mão no peito de forma dramática.
— Eu também me preocupo, mas você não precisava ter cobrado
ela daquele jeito. — Sigo repreendendo-o, ainda acho que Kahel
passou dos limites. Sei que ele tem intenções boas e uma rivalidade
esquisita com Romeo, mas as coisas não funcionam dessa forma.
— O Romeo não me cheira a coisa boa. Eu só quero o melhor
pra Alex — fala com sinceridade e eu resolvo deixar essa história
para trás.
Se algo estiver acontecendo, nós logo saberemos. Alex é uma
pessoa que gosta de se abrir, de conversar e desabafar. A hora que
quiser nos contar a verdadeira história por trás de sua intimidade
surpreendente com Romeo, serei toda ouvidos.
Dou risada do jeito paizão de Kahel, colocando fim nesse
assunto.
— Nem imagino como você vai agir se tiver uma filha — comento,
balançando a cabeça em negação.
— Nossa filha vai começar a namorar com trinta anos — enfatiza
o final da frase, mas não é isso que me chama atenção.
— Já estamos pensando em filhos nossos? — questiono,
surpresa com esse mero detalhe.
Kahel se aproxima de mim, enlaçando minha cintura com um dos
braços. Seus olhos vão direto para os meus e sua boca se abre
para mais uma declaração simples, mas que abala cada uma das
minhas estruturas.
— Eu te disse, princesa, quero tudo com você.
Sinto vontade de esconder o rosto em algum lugar e faço isso no
ombro dele. Quando o encaro novamente, vejo seu sorriso bobo e
tenho certeza de que estou, como sempre, vermelha. Acho que
nunca vou deixar de ruborizar com as coisas que ele me diz.
— Vai com calma, Kahel, vai com calma — peço, mas no fundo,
estou adorando esse ritmo, adorando a sintonia e a conexão que
criamos.
— Eu tô calmo. Tenho todo o tempo do mundo, desde que você
fique do meu lado. — Ele rouba um beijo rápido da minha bochecha
e seguro seu rosto com as duas mãos, para obrigá-lo a olhar para
mim.
— Já disse que vou ficar — afirmo com a convicção que ele
mostrou para mim tantas vezes.
Kahel é certo, nosso relacionamento é sólido, nós nos
encaixamos de uma forma que eu nunca imaginei ser possível.
Qualquer dúvida que eu tinha em relação ao nosso namoro ficou
para trás, porque, todos os dias, ele me dá a segurança de que está
aqui por mim, para o que der e vier.
— Sempre, capitã?
— Sempre, capitão.
Após nossa pequena declaração, sorrimos. Quando estamos
juntos, ficamos sempre assim. Sorrindo, rindo, sentindo uma alegria
genuína só por estarmos na companhia um do outro. E é com esse
sorriso, na frente do ginásio que é o lar dos nossos times, que é o
ambiente que mais amamos, que nos beijamos.
É um beijo com gosto de certezas, com gosto de amor, de
companheirismo, de carinho.
Com gosto de final feliz.
Este não é um momentinho bobo
Esta não é a tempestade antes da calmaria
Esse é o profundo e último suspiro
Deste amor a que nos dedicamos
Slow Dancing In a Burning Room - John Mayer

Ele não vem.


Meus olhos percorrem cada canto do Bolton Indoor Stadium à
sua procura, mas não o encontram.
Isso significa que acabou.
Nós sempre estivemos fadados ao fim. Mas devo admitir que, por
um breve momento, eu acreditei que poderia ser diferente. Talvez
pelos beijos roubados atrás do estacionamento da faculdade, pelos
sorrisos tímidos que eu sabia que guardava para mim – só para
mim. Talvez pelo som do seu coração batendo forte e
descompassado sempre que eu descansava o rosto em seu peito,
pelas nossas piadas internas e pela forma como ele transformava
tudo e qualquer coisa sobre mim fascinante.
Eu devia ter escutado os conselhos de Leah. Devia ter acreditado
em Scout quando disse que me envolver com Romeo Ballard, o
“garoto-problema”, seria furada. Ou, talvez, eu podia ter sido mais
esperta, como Joanne sugeriu, e ficado apenas com a parte boa e
prática: sexo sem compromisso. Também não posso culpar Abby
por ter me aconselhado a ouvir meu coração. Claro que eu ouviria,
afinal, metade de mim é amor e a outra metade é M&M’s de
chocolate com amendoim.
O som da bola quicando de forma cadenciada sobre o chão da
quadra captura minha atenção, enquanto Joanne se prepara para o
primeiro lance livre de dois, concedidos em razão de uma falta
cometida quando a garota estava prestes a enterrar a bola na cesta.
É o meu som preferido, desde que eu me entendo por gente.
A plateia silencia por alguns segundos à espera do arremesso e,
mentalmente, agradeço este pequeno lapso temporal para tentar me
recompor. Com o tronco inclinado para frente, apoio as palmas das
mãos nas pernas, fixo meu olhar no chão e respiro fundo. Ainda
assim, é como se o ar continuasse preso em meus pulmões.
Joanne acerta o primeiro lance e a torcida da Kingston State
University vai à loucura. No segundo, ela erra e o relógio retoma a
contagem, marcando os últimos momentos da partida. A bola quica
no aro e volta em minha direção. Disputo o rebote com uma
jogadora do time adversário e consigo capturá-la no ar. Joanne
corre para o garrafão, marcada por todos os ângulos, e eu me dou
conta de que não há tempo para iniciar uma jogada. Sem conseguir
avançar, permaneço atrás da linha de três, busco espaço, miro na
cesta e salto, torcendo para que, na hipótese de eu não acertar,
Joanne ao menos consiga pegar o rebote e converter o arremesso
de forma rápida.
Então eu lanço. E quase erro. A bola se choca contra a tabela,
mas entra na cesta. No instante em que faturamos os três pontos, o
cronômetro zera. Fim de jogo.
As meninas me abraçam em comemoração à nossa vitória.
— No três, Red Fox — grita Leah, nos convocando ao grito de
guerra. — Um, dois, três.
— Vai, Red Fox — berramos em uníssono, as garotas felizes pela
temporada brilhante das raposas, invictas até aqui, e a dois jogos de
obter a tão esperada classificação para o Torneio das Conferências.
Eu amo o meu time, amo as minhas amigas e amo tudo o que
conquistamos. No entanto, hoje, nem o basquete ou um placar
vitorioso me fariam sorrir.
— Ei, Alex. — Scout segura minha mão. — Você está bem?
O que devo responder?
Não. Ele partiu meu coração e você bem que me avisou que isso
iria acontecer?
— Estou ótima. — Forço um sorriso. — Só... com um pouco de
dor de cabeça — minto, já antevendo que as meninas vão querer
sair para comemorar, o que irá demandar uma excelente desculpa
da minha parte.
— Mesmo assim você mandou bem hoje, como sempre — elogia
ela, para o meu estranhamento. Scout não é uma pessoa dada a
elogios. Acho que, de alguma forma, talvez ela sinta que tem algo
errado comigo.
— Obrigada, Zangado. — Uso o apelido que aderimos nos
últimos meses. — Você também jogou muito.
Para a minha sorte, ela se dá por satisfeita com a resposta e
corre para abraçar Leah.
A partir daí, faço tudo no automático. Falo com as outras garotas,
inclusive as adversárias, e com a treinadora Hale. Cumpro todo o
protocolo pós-jogo, quando tudo o que eu mais quero é ficar sozinha
para ceder à essa sensação que me puxa para baixo, que faz o meu
peito doer e as lágrimas emergirem pelos meus olhos a cada
minuto.
Olho para a arquibancada uma última vez, apenas para ter
certeza, agarrando-me a um fiapo de esperança. Na primeira fileira
– como sempre –, Anthony e Kahel dividem um balde de pipoca.
Miranda, Seb, Mav e Josh conversam de forma animada,
acompanhando a mascote do time, uma raposa de pelúcia gigante,
em seu número de dança final. Nosso pequeno e inusitado grupo de
amigos. O espaço ao lado de Anthony, que ele costumava ocupar
nos últimos jogos, continua vazio. De novo, a realidade me atinge, e
agora que o jogo acabou, com mais força ainda.
Se alguém dissesse, meses atrás, que eu me apaixonaria por
Romeo Ballard, eu teria dado risada, mas aconteceu: um amor por
tabela, como o lance que eu acertei minutos atrás. Era para ser
apenas um jogo de interesses. Ele precisava de ajuda para estudar,
eu só queria ser notada pelo carinha por quem estava a fim. De
repente, o meu mundo estava de cabeça para baixo, preenchido por
esse sentimento forte, incrível e assustador. Foi inevitável não
pensar que éramos para valer, aquele encontro de almas que só
acontece uma vez na vida.
Como Landon e Jamie em “Um Amor Para Recordar”.
Nathan e Haley em “One Tree Hill”.
Garret e Hannah em “O Acordo”.
Eu não poderia estar mais enganada, porque ele não está aqui e,
lá no fundo, algo me diz que ele não irá voltar.
Bem-vinda ao seu romance pessoal, Alex .
Cada vez que termino um livro, sinto uma alegria diferente.
Quando acabei Efeito Rebote, além de tirar um peso gigante dos
meus ombros, me senti orgulhosa pela jornada que as nossas
garotas trilharam até aqui.
Não é fácil escrever uma série em grupo e só nós sabemos as
dificuldades que enfrentamos e que ainda vamos enfrentar. É
complicado dar vida a personagens que não são suas, mas, graças
a Deus, eu fui presenteada com o melhor squad do mundo, com as
melhores autoras e amigas com quem eu poderia partilhar essa
série.
Bia, Fe, Liv e Freitas, esse livro é nosso, essa série é nossa! É
um retrato da nossa amizade, é um apanhado de referências dos
nossos encontros, é tudo o que amamos reunido em um só lugar.
Foi um processo duro e estressante, mas eu não dividiria esse
momento com mais ninguém. Eu amo vocês. Amo nossa amizade.
Amo nossos encontros. Dos livros (e das quadras) para a vida!
Hoje, sinto orgulho de poder ser a dona do segundo livro. Foi
uma responsabilidade e tanto dar continuidade ao sucesso de O
Último Lance, então espero, do fundo do meu coração, que você
tenha gostado dessa história. Leah e Kahel me arrancaram risadas
e suspiros. Me diverti com as piadas ruins do Kahel, sofri com as
dificuldades da Leah. O amor que eles compartilham foi, de longe,
um dos mais graciosos que já escrevi.
Mas nessa série, quem rouba a cena, são ELAS! Todos os
momentos entre as meninas foram meus favoritos, não dá para
negar. A amizade dela chegou em um ponto precioso. O
desenvolvimento foi lindo.
E só vai melhorar.
Alex, Abby e Scout esperam por vocês em breve!
Acompanhem as outras autoras da série no Instagram para não
perderem nenhuma novidade dos próximos livros!
Alex – Fernanda Martins
Abby – Olivia Ayres
Scout – Fernanda Freitas
Um beijo e até a próxima!

Lau <3

[1] O “suicídio” é um exercício típico feito nos treinos de diversas modalidades.


Os atletas devem correr até uma linha da quadra, tocar nela, e depois voltar
para a primeira linha e repetir o movimento, dessa vez avançando para uma
linha mais à frente. É conhecido por ser um exercício exaustivo.
[2] Tipo de pista com formato em U.
[3] Descer a rampa.
[4] Expressão que significa “para a vida”.
[5] Brincadeira popular em festas universitárias em que dois times rivais
precisam acertar bolinhas de ping-pong em um copo do outro time. Quando a
bola entra no copo, um dos jogadores precisa beber o conteúdo, que
normalmente é cerveja. As Red Fox são diferenciadas e brincam com tequila.
[6] Derek Mackenzie é personagem da série “Sobre Nós” da autora Fernanda
Freitas.
[7] Tipo de pista com formato em U.

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