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Assim que chego em casa, ouço risos sinceros da minha mulher, vindo do ambiente superior.
O que deveria me deixar feliz, causa o suor em minhas mãos. Tento não dar vazão à irritante
voz na minha cabeça sobre em qual posição ela deve estar com outro homem. É a minha casa,
com os meus funcionários por todos os lados.
A menos que seja um funcionário.
Balanço a cabeça, rindo sozinho da minha insanidade e meus ciúmes absurdos. Tiro o terno
e a gravata, jogando as peças em qualquer canto, enquanto decido beber só mais uma dose para
me acalmar, e me aproximo do minibar.
No instante em que seguro a garrafa e viro o líquido transparente no copo, lembro da voz da
minha mãe, brigando com meu pai, durante toda a minha infância.
“Você não sabe ficar sóbrio, Erin Duncan?” ela perguntava, indignada.
E ele respondia:
“Se você soubesse o que é ser um Sangue em Ascensão, meu bem, você entenderia o porquê
eu nunca quero estar.”
E eu, que tanto o odiava, me sinto cada dia mais parecido com ele. Chegar a essa conclusão
faz todos os sentimentos que reprimi ao longo do dia se aproximarem como uma avalanche, e
levo a garrafa à boca, sentindo a frieza do vidro contra meus lábios.
O odor nítido da vodca invade minhas narinas com um aroma limpo e penetrante, e a
sensação de frescor percorre minha língua com um calor suave que me faz esquecer do meu
sobrenome.
Ainda escuto as vozes da minha esposa do andar de cima e luto contra a ideia de perder a
cabeça.
Minha esposa está sozinha. É só mais uma noite normal depois de um dia enfadonho em que
não fiz nada além de assinar papelada inútil. Eu não sou Damon Duncan. Eu não fiz nada. Não
sou o responsável pelo EuroOásis. Foram apenas papéis inúteis. Minha esposa está me
esperando.
À medida que o líquido lava minha garganta, sinto o álcool me atordoar, envolvendo minha
mente em uma névoa que tira das minhas costas um pouco do peso.
Agora sim, consigo respirar, e rumo os passos em direção à escada.
A porta do quarto da bebê está entreaberta e isso me deixa mais tenso só de imaginá-la com
alguém no cômodo da nossa filha. Adentro de uma vez.
— Com quem está rindo? — pergunto, vasculhando o ambiente com o olhar.
Ainda cheira a tinta recém passada e está tomado por móveis desmontados e embalagens no
chão. Pelo horário, tudo está tocado pela escuridão, exceto ela.
Sua pele reluz, dourada e cheia de viço, tornando-a ainda mais linda com a camisola que, ao
mesmo tempo em que aperta sua cintura, exibindo o relevo redondo de uma barriga que, em
breve, vai para o sexto mês, expõe suas coxas, mais grossas que o normal, e os seios fartos.
Meu coração se derrete e é como se o resto do mundo tivesse ficado do lado de fora. Tudo o
que eu sei é que a única maneira de sentir mais dessa energia é a abraçando, porém Ellie desvia,
evitando me encarar.
— Sozinha. — Afirma, sem nem me olhar. — Eu já me acostumei.
Solto um riso sarcástico à procura de uma saída para os pensamentos que me perseguem. Ela
levanta o rosto e me analisa por algum tempo. As bochechas redondas, o queixo delicado e o
olhar azul…
Não consigo ignorar a frustração amargando a minha boca por reconhecer tão bem esse
olhar.
— O que foi dessa vez?
— Já conversamos que, quando beber, não precisa voltar para casa. — Responde e volta a
mexer no abajur, fingindo que não estou aqui, na sua frente.
Minhas mãos cerram automaticamente, enquanto sinto o sangue esquentar, pulsando como
uma corrente de eletricidade pelo meu corpo. Ellie fita-me de soslaio, primeiro o meu rosto, e
depois desce o olhar, até os meus punhos. Mesmo nessa distância vejo o seu corpo tensionar, e
sou atingido pela culpa.
— O quartinho está lindo. — Elogio, menos ameaçador.
— É, sei que está — fita ao redor com sarcasmo e descrença. — Como pode ver, estou
empenhada, fazendo tudo sozinha — enfatiza. — Pode voltar ao trabalho e ao EuroOásis[1][2], não
falta muito para ferrar com o Iraque antes de entrar outra vez na lista da Forbes de empresário
mais visionário do ano.
Suas palavras me atingem como um soco na boca do estômago e abaixo a cabeça para que
ela não veja o quão fundo me atingiu, com a linha de lágrimas se formando abaixo dos olhos.
— Você quer muito que eu saia de casa para que você possa ficar sozinha, não é?
Semicerra os olhos claros.
— Está tentando me dizer algo?
Sim, estou. Penso em tudo o que também poderia jogar na cara dela, mas engulo cada
palavra. Simplesmente arregaço as mangas da camisa.
— A equipe que contratamos não está fazendo o trabalho corretamente? — pergunto,
tentando não soar amargo.
— Eles estão. — diz, indiferente. — É que não quero os seus capangas arquitetando como
serão minhas lembranças… outra vez.
Reviro os olhos enquanto conto até dez. Ela está grávida, não posso piorar a situação.
Aproximo-me para pegar a caixa que ela segura, porém Ellie desvia.
— O que é? — Rio de nervoso. — Isso é muito pesado para você carregar. — Roubo a caixa
dela, à força. — Qual é? Sou um capanga também?
Ela devolve a hostilidade com uma gargalhada e fita o fundo das minhas íris com um olhar
afiado como o fio de uma navalha, enquanto eu processo a sensação de desgosto que toca o meu
ouvido quando o som da sua voz ricocheteia as paredes.
— Ah, não. Com certeza, não, Damon. — A raiva cintila em suas íris. — Você é muito pior
do que qualquer um deles.
Arqueio uma das sobrancelhas.
— Não parecia um problema quando você aceitou o anel de diamantes com que te pedi em
casamento.
— Tudo é sobre dinheiro para você, não é? Que inferno! — Solta em um rompante de fúria,
o que me deixa ainda mais trêmulo. — Você tem vinte e cinco anos, Damon! Ao menos sabe o
que é ser pai?
Ouço-a com a voz da minha mãe, e tropeço nos próprios pés, dando passos para trás,
assustado como se tivesse visto um fantasma. Então todo o medo é convertido em fúria, e eu lhe
devolvo o tom com aspereza:
— Precisa insinuar que vou ser como meu pai, justo quando estou fazendo o melhor pela
bebê?!
Fica em silêncio por alguns minutos, então meneia a cabeça para os lados.
— Essa merda é o seu melhor?
O calor sobe pelo meu corpo, as veias parecem pulsar com fúria, e a respiração torna-se
curta e intensa.
— Preciso olhar cada detalhe ridículo que surge na sua cabeça inútil? — devolvo com a
mesma hostilidade, e me arrependo do que saiu. — Ellie, pelo amor de Deus, você tem noção do
tamanho do projeto que estou metido? Tenho reuniões até às onze da noite para me preocupar, as
decisões que estou tendo que tomar… olha o peso nas minhas costas para você exigir
participação por algo mínimo. Tenha dó!
Ela explode em ira.
— Foi você quem deu a ideia de foder com países que não tinham a menor chance de se
defender, só para extrair a riqueza deles, Damon. Tenha dó, você! Não haja como se fosse tão
inocente quanto as vidas que você está destruindo! Como se isso te isentasse de fazer o mínimo
como marido e como pai!
O soco no estômago saiu idêntico aos sermões que minha mãe me dava, me levando a
questionar como ela reagiria se descobrisse que me tornei o que ela mais temia.
Decepcionar sua memória dói mais do que à mágoa que sinto por obedecer a todos os
Sangue em Ascensão envolvidos na catástrofe que só eu me sinto mal por causar.
Viro de costas, desejando esconder dela a única lágrima que rola pelo rosto enquanto minhas
entranhas se contorcem em uma mistura dolorosa de caos e tristeza, enfraquecendo meus ossos.
— Você sabe que não foi ideia minha, — sussurro a minha desculpa favorita, me apoiando
na parede. — Só fiquei com os créditos.
— Não, Damon. Foi você. A parte de você que sempre triunfa, a qualquer custo.
Algo na sua frase, de fato, fortalece essa parte sombria que eu temo em mim mesmo,
anestesiando a preocupação em ser melhor.
Penso em nós dois, juntos, na cama, em um sexo gostoso capaz de me fazer esquecer tudo
além dos nossos corpos antes de cair no sono. Preciso tanto disso que mal consigo respirar.
Esquecer quem sou.
— Os dias estão sendo tão difíceis para mim, querida, você não faz ideia. — Desabafo,
buscando a sua mão. Ellie é minha única forma de sentir minimamente o que é paz, o bastante
para me fazer passar por alto todas as palavras que foram ditas. — Não brigue comigo, só hoje...
Ela não se mexe, nem recua, então eu me aproximo de seu pescoço e, após inspirar o doce
perfume que exala dela, vendo-a amolecer levemente, deposito lentos e delicados beijos por sua
extensão.
Ellie se afasta, negando com a cabeça. Os olhos enchem d'água, e ela se vai, irritada, em
passos largos. Vou atrás, grito, perguntando o que fiz que justificasse essa fúria. No meio do
corredor, antes de bater à porta do quarto, com a voz cheia de mágoa, ela se rende:
— Esquece, Damon, esquece! Você não se importa.
Deixo os ombros caírem, concentrado demais em contar até dez para só então segui-la.
— O que foi que eu disse ou fiz de errado? — imploro ao adentrar o quarto e encontrá-la no
closet.
Ellie não responde. Ignorando-me, começa a lançar suas peças de roupas na mala que pega
da prateleira do alto. Meu coração erra as batidas. A descarga de adrenalina me faz tremer. Ir
embora? Não!
— Você está louca? — meu timbre soa quase cruel. — Não pode desistir da gente!
— A gente não existe, Damon! Sempre foi você!
Entro na frente e fecho a mala.
— Repete?
Ela olha para a porta repetidas vezes e eu não consigo acreditar que está com medo de mim,
até ver meu reflexo no espelho. Minha voz interna diz que até mesmo eu tenho medo de mim,
com as veias saltando do pescoço e os ombros erigidos para trás como uma muralha. Desfaço a
postura.
— Tudo isso é por causa de um quarto de bebê? — tento ser compreensivo, porém perco a
paciência que restava. — Se estou ocupado, é porque estou pagando por ele.
Ela ri sarcástica. Acusa:
— A cada três minutos você paga por um cômodo muito superior àquele. — Abre a mala,
me contrariando. — Nem sequer precisa ir trabalhar ou sair de casa para isso, basta existir. Basta
ser um Duncan! — Seu timbre é áspero, e ela começa a despejar as roupas com mais pressa. —
Mas é por isso, exatamente por esse motivo, que estou indo embora.
— Por que sou um Duncan?! — Quero gritar, mas me controlo.
— Porque dinheiro é tudo o que importa! — Desabafa em um grito que rasga a alma e a
garganta. — Meu Deus, Damon, vocês são as pessoas mais ricas desse mundo e, mesmo tendo
mais do que qualquer outro ser humano precisa para sobreviver, são as criaturas mais
gananciosas que já vi. — Sorri em meio as lágrimas. — Não tenho sangue-frio para sobreviver
ao seu estilo de vida, Damon. Também não quero isso para a bebê. Eu preciso ir embora.
Num rompante, empurro a mala de cima da prateleira. Ela bate na porta de vidro, que se
parte em mil estilhaços, causando uma reação muito maior do que a que desejei ter. Ellie se
encolhe. Não posso recuar agora, muito menos fingir para mim mesmo que não gostei da
sensação de poder.
— Você é ingrata — Solto friamente. — Reclama das minhas horas de trabalho, mas só
quando não tem diversão melhor, programada. — Ela me olha, pasma, sem reação. — O dinheiro
não serve agora, porém é útil quando eu pago por imóveis e mais imóveis luxuosos para a sua
mamãe querida ficar cada vez mais perto, se intrometendo na nossa vida enquanto faz de tudo
para escalar nesse mundo ganancioso que você desdenha.
— Não ouse! — Aponta o dedo para mim. — Você foi o primeiro a ignorar a minha opinião
e dar o loft de Manhattan de presente para ela, porque gosta da ideia de me deixar presa a você!
Aliás, ama a ideia de me aprisionar a você com uma dívida alta demais para eu quitar, porque é
isso o que eu e sua filha somos para você, bonecas na caixa, um luxo que pode pagar! — grita,
tirando as pulseiras as jogando longe em uma espécie de catarse.
Sinto muita raiva, pois sempre achei que ela gostasse das coisas como elas são. Ellie sempre
pareceu amar absolutamente tudo o que eu lhe desse — e eu lhe dava tudo — mas, em forma de
agradecimento, ela fez o que fez comigo.
E eu ainda não quero tocar nesse assunto.
Por isso, retenho a informação que me faria vencer essa discussão e toda a verdade que
sangra em meu peito sai em uma única frase provocativa:
— Para o dinheiro te preocupar tanto, imagino que deve ser porque me deva algo. Isso me
leva a outra pergunta — faço uma pausa dramática —: o que você fez, Ellie?
— Não — rebate no mesmo instante. — Só é pesado, Damon — desconversa. — Você
devia ter ouvido minha opinião antes, mas você nunca me ouve. Não apenas sobre a dívida,
dinheiro, tudo. Gostaria que levasse em conta as minhas opiniões e meus desejos, eu não sou sua
boneca.
Ouvir isso sair da sua boca me lembra de todas as vezes em que brincamos sobre isso. Fecho
os olhos e, com o timbre mais doce que consigo, provoco:
— Anotado, boneca. Isso é tudo?
Ela assente com um riso fraco e, no mesmo instante, puxo-a para mim, com cada célula do
meu corpo gritando por ela. A minha paz. Abraço-a e escondo o rosto em seus cabelos,
murmurando pedidos de desculpas e tudo o que for preciso para fazê-la desistir da ideia.
— Ah... como eu te amo — murmuro contra sua boca, mas dessa vez a reação é contrária à
de sempre. Ellie não cede aos meus encantos, apenas me devolve um olhar frio.
— Não, Damon, você não me ama, só ama o que causo em você.
Às vezes, me pergunto se isso é mesmo amor, mas somos dois jovens descobrindo a vida
juntos, inertes em tantos sentimentos indivisíveis, afogados um no outro. Lembro-me dos meus
poderosos avós e dos meus glamourosos pais. Se nem as pessoas mais velhas sabiam o que é o
amor, por que devo me importar em desvendá-lo?
Talvez eu não ame Ellie de verdade, talvez não precise amar do jeito certo. Só preciso tocá-
la, beijá-la, senti-la.
Fácil assim.
Amá-la até que o vazio não pese mais.
— E como poderia, se você não faz ideia do que é o amor — murmura para si.
Se eu respirasse fundo e contasse até dez, provavelmente ficaria calado como em todas as
noites em que nos deitamos naquela cama e fingimos que não está acontecendo nada, mas hoje...
algo em seu tom de voz me faz queimar por dentro.
Posso não saber, mas quem é ela para julgar?
— E você sabe? — indago.
— Sim — responde, desconfiada.
— Ele te ensinou? — Solto-a.
— Ele quem?
— O cara com quem você está me traindo há meses.
É tudo muito rápido. A cor do sangue sumindo da sua pele rosada, a feição assustada
tomando conta dos lindos traços e os sussurros nos lábios tentando encontrar palavras boas o
suficiente para argumentar. Não permito que tente.
— Não abra a boca se for para dizer alguma mentira — ordeno, sentindo meu coração a mil
por hora. — Já sei de tudo.
Ela engole em seco.
— Tudo o quê?
Não suportando sua farsa em parecer injustiçada, deixo-a e vou até o escritório. Ela me
segue, gritando:
— Damon. — Segura nos meus braços. — O que vai fazer?
Com toda a frieza que carrego dentro de mim, vocifero:
— Te fazer falar. — Desejo assustá-la. — Quer ver como te faço abrir a boca rapidinho?
Ela engole em seco quando vou em direção ao cofre. Digito a combinação e, quando a fito
de novo, parece outra pessoa olhando para mim. Ellie está completamente pálida, com os olhos
arregalados e o queixo caído, abraçando a barriga.
— O que você… vai fazer comigo? — pergunta com a voz falha.
Pego o envelope de papel pardo, o que está em minha posse há tanto tempo que me obriguei
a ignorar a sua existência, porque lembrar dele era o mesmo que esfregar a ferida que ainda
sangra em meu peito. Atiro o embrulho em sua direção, vendo-a mal conseguir pegá-lo devido
ao reflexo lento e praticamente jogo na sua direção.
— Minta para mim agora — desafio, embora mal consiga esconder a mágoa na própria voz.
— Se eu não falar, vai me matar? — Seu tom de voz sai quase nulo. Mantém a atenção fixa
na direção do cofre.
Preciso seguir seu olhar para compreender o motivo da pergunta. Leva alguns segundos para
cair em mim.
O revólver da família.
— Acha que eu faria uma coisa dessas? — Ela faz que sim. — Nunca te machucaria, Ellie.
— Aponto para a barriga. — Você está grávida da minha filha. — Fecho a porta do cofre para
deixá-la mais segura.
Apenas quando o estalo do trinco vibra, ela volta a respirar. Abre o envelope e nem olha
direito antes de despejar as fotografias na mesa.
— Se não te amasse, no momento que descobri, teria acabado com tudo. Mas não fiz, sabe
por quê? — questiono, atropelando as palavras.
— Por que você me traiu primeiro e sabe que não pode exigir nada?
Perco a postura, até me lembrar que não foi bem assim.
— Porque te amo e acredito que seja só uma fase que vamos superar. Se não fosse louco por
você, acha que eu estaria disposto a isso?
Seu olhar é de pena.
— Nunca vi tanto desespero em uma só pessoa, Damon. — E me dá as costas, mas, antes de
sair do escritório, avisa: — estou indo embora.
Observo o mundo desmoronar e o tempo parar de correr. Não sei se leva horas ou minutos
para ela pegar o que acha importante, porque continuo paralisado no escritório.
Tudo o que consigo pensar é no quanto lutei para nosso amor acontecer. Todas as brigas
com a minha família, nosso casamento escondido, a gravidez às pressas para eles aceitarem e
deixá-la em paz...
A sensação de ter falhado é como uma sombra pesada que se instala sobre mim,
obscurecendo qualquer resquício de esperança que ainda pudesse permanecer.
Eu falhei, não sou diferente do meu pai ou de qualquer outro Sangue em Ascensão.
Não deveria ter tentado.
Talvez o amor não seja para um Duncan.
Apenas quando escuto o barulho da mala quebrada rangendo sobre o mármore, percebo
quão real é. Reúno todas as forças e saio do escritório. Há um nó na minha garganta enquanto
tento engolir a realidade.
— Não vai, Ellie. — Peço em uma espécie de ordem, no alto da escada. A necessidade de
impedi-la de partir é avassaladora, como se todo o meu ser estivesse gritando para que eu não
deixasse isso acontecer.
— Não faça isso, Damon.
Vejo nos olhos dela uma mistura de tristeza e determinação, e o fato de não poder impedir
essa separação me deixa destruído.
A sensação de impotência parece cravar mais fundo no meu coração, feito o fio de uma
lâmina nova, a cada passo que ela dá da porta vejo meus sonhos sendo arrastados junto com a
mala meio quebrada.
Um turbilhão de emoções tumultua meu peito, e minha mente está em guerra consigo
mesma entre aceitar que ela vá embora ou o desejo desesperado de segurá-la a qualquer custo.
— Você quer eu implore? — Ela para no lugar. Odeio quão ridículo soa o meu desespero em
voz alta. — Porque eu fiquei de joelhos para te pedir em casamento, eu ficaria agora...
— Não! — grita em um rompante de lágrimas. — Olha, Dam... você não precisa disso.
Minhas mãos tremem enquanto tento tocar os ombros dela. Seus olhos refletem a dor que
também sinto, porém, a determinação em seu olhar continua me cortando feito uma lâmina
afiada.
— Eu preciso de você, Ellie. Faço qualquer coisa para ter você. — O vazio que se abre
diante de mim parece insuportável, e a ideia de viver sem a presença dela é assustadora. — Fiz
uma vez, não fiz? Posso fazer de novo, só precisa me dizer o que...
— O que tivemos sempre foi errado, proibido... mentimos para o outro, você me traiu uma
vez, eu traio você. Eu tenho outro, Damon!
Meu coração bate na garganta. A tristeza inicial é rapidamente eclipsada por uma onda de
raiva, uma combustão interna que ameaça consumir tudo ao redor, em um desejo ardente de fazer
com que ela sinta o peso da dor que me inflige.
As lágrimas se acumulam nos meus olhos, mas tento manter a compostura para fitar o fundo
dos seus olhos e a ameaçar:
— Espero que a diversão tenha sido boa o suficiente para compensar todas as consequências
que você vai enfrentar.
— E foi — responde, com o queixo erguido, altiva.
As palavras dela ressoam nos meus ouvidos como uma sentença de morte, e é como se
apenas agora me desse conta da traição. Sinto a dor outra vez, pulsando, e seguro o choro.
— Sempre te dei o mundo, — minha voz quase não sai. — Como pôde fazer isso comigo?
— Mundo? — Gargalha. — Se refere a sua gente, não é? — Meneia a cabeça para os lados,
indignada. — Quando, misteriosamente, todos os homens desaparecem das festas, fico só com
aquelas mulheres. Sinto arrepios, principalmente daquela cobra que você chama de amiga, Che...
— Não admito que fale assim da minha família! — respondo, ofendido e atordoado.
— É que todos fingem para você! — grita de volta. — Você e seu irmão, os gêmeos órfãos
queridinhos…
— Não ouse!
— Vítimas de dois pais que enlouqueceram com a fortuna que possuíam…
Encarando fundo nos olhos da minha ex-esposa, da mulher que escolhi a dedo, pensando
que com ela dividiria minha vida inteira, e na qual acreditei tão fielmente a ponto de causar uma
guerra com o meu mundo para tê-la, mundo que ela desdenha agora. Sinto mais que ódio, sinto
nojo. Vou até a porta e escancaro-a.
— Sabe, querida, espero que essa criança não seja minha, porque, se for, vai ser só mais uma
das muitas coisas que você vai perder. — Se ela está tão certa das suas escolhas, eu também
estou decidido quanto às minhas. — Pode ir embora agora.
Não estou apenas querendo machucá-la, também estou me agarrando a algo, a minha filha.
Pelo menos assim não estarei completamente sozinho. Se essa bebê tiver o meu DNA, posso
sentir amor incondicional por alguém. Vou lutar por ela.
— Não se preocupe, Damon, ela não é.
Sua frase é como um golpe em mim, desses que esvai toda a força e embaralha toda a
cabeça.
— Como sabe?
— Engravidei enquanto você estava ocupado na cama da Beatrice.
As lágrimas brotam dos meus olhos antes que eu consiga pensar em uma forma de
convencê-las a não caírem, então apenas abaixo a cabeça para não a ver saindo pela porta. Tudo
vem à tona.
Estou sozinho nessa sala de trezentos metros e a única coisa que consigo ouvir é a minha
própria voz.
As lágrimas, antes silenciosas, agora se transformam em soluços angustiantes. Cada choro
parece uma tentativa desesperada de liberar a dor que me quebra, fazendo as mãos tremerem e os
joelhos cederem em um abismo de desamparo.
Estou sozinho outra vez.
O vazio, agora, é um fardo que me esmaga, uma presença que pesa sobre cada respiração,
fazendo-me arfar. Sinto-me envolto por uma escuridão, e a ausência dela deixa um buraco
profundo e impossível de preencher.
Sozinho, sozinho, sozinho.
Afoito, ligo para a pessoa que Ellie mais detesta, a mulher que mais amo depois da minha
mãe e da minha vó, minha melhor amiga de infância.
— Acabou, Cherrie.
— O quê? — Ao ouvir sua voz, me arrependo de tê-la procurado, depois do que fiz. É que...
— Meu casamento acabou. — explicou, chorando tanto que meu peito chia. — Desculpa te
procurar, sei que você está magoada comigo, mas está doendo muito. Eu preciso de você.
— Oh, mon chouchou, já nem me lembro mais… — acalenta com o tom de voz angelical
que só ela possui. — Posso estourar fogos? — completa, divertida.
— Estou destruído — deixo claro em um gemido entrecortado, limpando as lágrimas.
— Não fique — diz, como se fosse fácil. — É só uma mulher, e mulheres existem aos
montes por aí.
— Cher... Ela foi a única coisa que eu quis.
— Por enquanto. — Frisa. — Lindo desse jeito, do naipe que é, logo você encontra outra,
mais bonita, mais jovem e com mais classe que essa Mundana[3]. Não vê meu pai? Vai para a
quarta.
— Eu a amo, Cher.
— Temos tanto poder, Damon. Quem precisa de amor?
A vergonha me assola. Ela não me entende.
— O que eu vou fazer da minha vida?
E é nesse momento que Cherrie Young promete me dar um novo propósito.
Tudo o que eu preciso fazer é esperar.
DANÇANDO NO VAZIO
Faz algumas semanas desde que Ellie foi embora, e tudo o que eu faço é fingir.
Todos os dias eu acordo no mesmo horário, me visto e me sento à mesa para o café da
manhã, como se Ellie ainda estivesse dormindo com sua preguiça gestacional, então venho para
o trabalho, onde permaneço até tarde da noite, revisando cada documento, cada pequena vírgula.
Ninguém percebe que há algo errado.
Todos conhecem a minha parte que insiste em decidir cada minúscula ação dentro da
multinacional que leva meu sobrenome, obcecada por controle.
Exceto o meu irmão gêmeo.
— Tá tudo bem? — entra sem bater.
E eu, que brincava com a aliança na mesa de mogno maciço esculpida à mão, não consigo
pegá-la a tempo. O ouro cai sobre o piso de mármore italiano, tilintando por segundos suficientes
para que Dylan se ajoelhe e a pegue.
Estico a mão, porém ele não me entrega a joia.
— O que está acontecendo, Dam? — seu tom de voz denota suspeita, semicerrando o olhar
castanho adornado por cílios longos.
Em uma tentativa de parecer bem estabelecido quanto a real situação, apoio as costas no
encosto da cadeira de couro, apoiando os braços nos detalhes dourados.
— Nada, por quê? — mordo a língua com o ato falho.
Desvio o olhar dele para as janelas, que vão do chão ao teto e oferecem uma visão
panorâmica da Quinta Avenida, permitindo que a luz natural banhe o espaço enquanto as
cortinas pesadas em tecidos jacquard, chinelle e algodão egípcio adicionam uma camada de
privacidade e mistério.
— Cherrie te contou algo? — investigo.
— Então tem algo, seu safado? — Senta-se na ponta da minha mesa, colocando a aliança na
minha frente como se desse um xeque-mate. — E não — pega em um porta retrato com a
fotografia do nosso grupo de amigos. — Faz dias que não falo com a minha namorada. — Se
queixa. — Desde o Torneio[4] ela está muito estranha...
A culpa pelo que causei a Cherrie retorce em minhas entranhas.
— Desculpa, Dylan.
Ele faz um gesto com as mãos.
— Ela não venceria o Torneio, mesmo se você não tivesse tentado roubar o Rosebud[5] dela.
Há exatamente seis meses eu tomei a primeira das piores decisões da minha vida: me casar
com Ellie.
Ao escolhê-la, eu quebrei uma aliança de casamento e, em uma medida desesperada de um
pedido de desculpas com à família envolvida, peguei o projeto da minha melhor amiga e assumi
a autoria do EuroOásis.
Então, quatro meses depois, cometi o segundo maior erro da minha vida: vendi minha alma
ao Tabuleiro[6].
O lado bom: ganhei a Ascensão e agora sou uma Torre[7].
O lado ruim: perdi a minha melhor amiga, Cherrie Young.
— Ela tentou falar com o pai dela? — indago, afinal George cuida da filha com mãos de
ferro, e todos sabemos a influência que a família materna dela tem sobre sua personalidade.
— Ele também está tentando convencê-la a voltar da Hungria, mas estamos com medo de...
você sabe.
Assinto enfaticamente.
— Não ser ela.
Um frio na barriga retorce com a possibilidade de isso estar acontecendo outra vez.
Cherrie Young possui TDI, um raro e complexo transtorno caracterizado pela presença de
duas ou mais identidades distintas que controlam o comportamento de um corpo, também
conhecidas como alters.
Acontece que a nossa melhor amiga de infância carrega um monstro que assume o front
sempre que ela se sente ameaçada.
— Que problema aconteceu com a Ellie? — volta ao assunto.
Suspiro profundamente, criando coragem para admitir e tornar tudo dolorosamente real.
— Brigamos e eu estou dando um tempo para ela esfriar a cabeça antes de ir buscá-la.
À medida que falo, seu queixo cai e ele não consegue esconder o semblante alegre na
covinha que se forma entre as bochechas, por mais que esteja tentando esconder o sorriso ao
deslizar a ponta da língua entre os lábios fechados.
— Ela meteu o pé? — seu timbre sai agudo pela ansiedade da resposta. — É isso que está
tentando dizer?
— Nós brigamos — corrijo, metódico. — Dissemos coisas que machucaram o outro. —
Enfatizo minha participação nesse desastre. — Estou esperando a tempestade passar para trazê-la
de volta para casa.
Ele balança a cabeça negativamente com um sorriso bobo estampando os traços que são
idênticos aos meus.
— Você não vai buscá-la, desculpa, maninho. Não mesmo. — Peso as pálpebras, porém
meu irmão não me deixa revidar. Continua: — não vai buscar aquela vadia oportunista, nem que
eu precise te amarrar, entendeu?
Começo a tremer.
— Ela não é oportunista. — Defendo, e ele me devolve um olhar cheio de deboche. Sou
obrigado a argumentar: — se ela fosse, não tentaria me convencer de que a bebê não é minha.
Dylan, que está com o celular na mão, para de digitar para me fitar com descrença.
— Ela te disse isso?
Minhas bochechas queimam e eu foco na informação que importa:
— Ela pode ser vadia — sorrimos um para o outro — mas não oportunista.
Dylan abaixa a cabeça, balançando-a e, no segundo seguinte, o celular vibra com uma
mensagem no grupo dos x-herdeiros.
Dylan: A víbora foi embora \o/
— Alguém te deu permissão para falar? — aumento o tom de voz.
Cartier: Nunca pedi tanto a Deus.
Reviro os olhos.
Damon: Você nem acredita em Deus.
Cartier: Eu sou Deus.
Zaki: Desde quando?
Cartier: Pai maníaco, cultos, seita, Messias. etc.
Zaki: Eu sei que você é pirado, me refiro ao Damon.
Cherrie: Faz algumas semanas.
Damon:???
Cartier: Você sabia e não contou para a gente?
Dylan: Só para mim hahaha!
Meus olhos queimam os do meu irmão.
— Desde quando?!
Dylan me entrega um fitar de quem estava ciente desde o momento em que liguei para
Cherrie.
Zaki: As Damas já sabem?
Damon: NÃO CONTA AINDA.
Dylan: já avisei a vovó.
— Dylan! — meu timbre sai estridente. — Cacete! — Meu coração dispara tão forte que
empurro a mesa. — Não sabe respeitar o tempo das pessoas? — indago, trêmulo.
— Damon, hoje faz um mês!
Solto todo o ar dos pulmões de uma única vez, com o coração batendo na garganta.
— Agora até o vovô sabe! — ele solta o celular, compreendendo o meu horror.
— Não chora. — Pede em uma espécie de ordem que me faz engolir em seco e respirar
devagar e profundamente, guiado pela sua postura e gesticulação. — Acabou, Damon. — Sua
voz é branda, quase sussurrada. — Não tem mais nada que você possa fazer.
A fachada de controle que eu mantive para o mundo exterior nas últimas semanas
desmorona nesse momento, expondo toda a minha vulnerabilidade escondida em um pedido
silencioso de socorro.
O silêncio é cortado por um soluço profundo que escapa do meu peito em um eco das
tensões, frustrações e tristezas que vinham se acumulando desde que Ellie passou por aquela
porta. A angústia é como uma tempestade silenciosa e profunda, inundando meu rosto com
lágrimas pesadas enquanto apoio a cabeça na mesa.
Meu irmão atravessa a sala em frações de segundo e me puxa para um abraço apertado. O
seu cheiro familiar me acalenta e os ossos duros do seu corpo magro me confortam o suficiente
para que eu possa sofrer o luto por todos os planos destruídos junto com a vida que sonhei
quando decidi ter aquela mulher a todo custo.
— Você vai superar. — Ele acaricia meus cabelos, acalentando meus gemidos, com minhas
lágrimas molhando sua camisa. — Você vai encontrar outra, cara, muito melhor.
Sinto uma dor física no peito se estender a cada célula, penetrando em minha alma com um
cansaço somado a melancolia.
— Eu não quero outra, — o abraço mais forte. — Eu...
Meu irmão se afasta um pouco para tirar um convite do bolso interno do terno, como se me
desse um novo brinquedo para me consolar.
— Cherrie me pediu para te entregar.
Seguro nas mãos um convite que mais se parece com uma obra-prima de elegância e
sofisticação. O preto profundo como a meia-noite envolve a superfície de detalhes dourados
dançando sobre o papel.
Busco a reação do meu irmão, que se afasta educadamente, como se não quisesse nem ver,
como se fosse proibido. Caminha em direção à porta e tudo o que faz é coçar a cabeça enquanto
comenta em voz alta:
— Depois, se puder, me conta o que é.
Assinto, observando a experiência de requinte que se desenrola conforme o deslizo em meus
dedos molhados, prendendo o ar com tudo o que significa.
— Tem certeza de que posso olhar? — indago com a voz anasalada, fungando, maravilhado.
Levanto a cabeça e não há mais ninguém na sala.
Passo as mãos na camisa, secando as das lágrimas, antes de analisar cada detalhe do papel
em minhas mãos, como os relevos dos cantos adornados com filigranas douradas que imitam
traços Art Deco.
Sinto até pena de rasgar o luxuoso brasão dos Sangue em Ascensão e puxo com cuidado a
carta dentro. As letras, em uma caligrafia elegante, parecem dançar sobre o papel.
Um convite para um espetáculo de ballet.
Sorrio, com uma sensação positiva somando com tristeza que me consumia.
— Senhor Duncan. — Minha assistente me chama, na porta. — A reunião. Estão todos te
aguardando.
Assinto, me levantando e fechando o botão do terno. Em uma tentativa de despertar minha
mente do marasmo que a consumiu tantos dias, vou até o lavabo e me inclino sobre a pia,
jogando água no rosto. Quando levanto a cabeça e vejo meu reflexo no espelho, o coração
dispara com o reflexo que encontro. Tudo o que vejo são os traços do meu pai.
Eu e Dyl estamos no processo da sucessão da Duncan, treinados por nosso avô, que controla
uma das mais bem sucedidas empresas familiares da atualidade.
O plano, orientando pelo Rei do Jogo, é tornar-me o CEO e Dylan COO da Duncan
Commodities. Assim, meu irmão vai cuidar da operação da empresa que alimenta os Estados
Unidos, para que eu possa me concentrar na estratégia do negócio que controla um terço do
mundo.
Fortes como a Torre do Tabuleiro mundial.
Ainda no corredor, vejo meu irmão dentro da sala de paredes de vidro, sentado à mesa de
reuniões com a equipe, todos mergulhados em discussões acaloradas, gráficos e projeções
estampavam as paredes transparentes.
Não é meu objetivo interromper esse espírito quando adentro, entretanto todos se calam em
uma temível pausa. Os olhares se voltam para mim e a efervescência dá lugar a uma quietude
reverente. Basta eu fitar um funcionário sentado ao lado do meu irmão, e ele se levanta, cedendo
seu lugar.
— Podem continuar. — Peço, embora goste da sensação de ter todos segurando o ar dentro
dos seus pulmões, só por estarem em minha presença. — Qual o tema?
Dylan começa a circular os cálculos antes de me passar os relatórios, um a um, explicando a
incongruência na sede da Austrália. Os números não estão batendo.
As conversas retomam aos poucos, com uma nova dinâmica. Minha entrada adiciona um
elemento de autoridade e a equipe parece focada em entender a origem desse desvio. O problema
ocupa toda a minha mente pelo resto da manhã.
— E o convite? — pergunta Dylan, quando estamos saindo da sala.
— É para um ballet. — Conto, com um delicioso frio na barriga se formando. — Hoje, no
Ópera House.
Fitamo-nos com um sorriso no rosto, espelhado um pelo do outro.
— A minha garota nunca erra. — Conta vantagem sobre Cherrie.
E ele está certo.
— Cherrie Young pensa em tudo.
Fito vovô em uma das mesas da lanchonete e, imediatamente, procuro uma alternativa que
não envolva encará-lo, após todas as brigas que tivemos devido ao meu envolvimento com Ellie,
com ele me dizendo exatamente como isso acabaria. Não quero admitir que ele estava certo em
suas previsões.
— Acho que vou visitar a mamãe. — Giro os calcanhares para o lado oposto. — Vou
almoçar com ela.
Dylan franze o cenho.
— Tá. — Simplesmente concorda, sem achar suspeito, afinal é impossível pensar em ballet
sem lembrar dela.
Dancei ballet durante dez anos da minha vida e, diferentemente do hipismo ou da esgrima,
não foi “só” um esporte com que me ocupei.
Foi tão mais do que isso ...
Eu devia ter uns quatro anos quando vi minha mãe dançando ballet pela primeira vez. Ela
estava fazendo um cambré, e eu achei um máximo o quão alto ela esticava a perna. Tentei imitar
e ela me pegou no flagra. Charllote gargalhou deliciosamente — e ela não sorria muito — então
decidi fazer ballet com ela. Assim a faria rir todos os dias.
Não deixava de ser arriscado.
Meu pai e meu avô já a criticavam pela forma como superprotegia meu irmão, alegando que
ela afeminava o Dylan, então ninguém podia suspeitar que ela amarrava sapatilhas nos meus pés
e me ensinava a pisar na pontinha e dar pirouettes.
Os anos passaram e eu fui me desenvolvendo cada vez mais, mantendo o nosso segredo
intacto, como um ritual que deveríamos proteger a todo custo.
Então, de repente, eu já tinha praticamente a sua altura e segurava a sua cintura com firmeza
quando arriscava pequenos saltos, enquanto brincava que eu só precisava crescer mais um
pouquinho e dominaríamos os palcos com o nosso pas de deux.
Até o dia em que tudo mudou.
— Chegamos, senhor. — Avisa o motorista.
Peço que ele aguarde enquanto adentro o cemitério de Old Westbury, seguindo um caminho
perfeito até a lápide de Charllote Duncan. Preciso limpar com as luxas de couro a camada de
neve para ver a fotografia da sua deslumbrante beleza encher meus olhos de lágrimas, porém não
dou vazão a elas. Agacho-me em cima do gramado congelado, abro meu lanche e a lata de Coca.
— Vou em um espetáculo de ballet, hoje. — Conto, com um sorriso bobo surgindo em meus
lábios. — A propósito, também me separei de Ellie, então estou livre para sair às sextas a noite
sozinho.
Quase a ouço me perguntar o motivo de eu ter demorado tanto para visitar um espetáculo de
ballet, e as lágrimas que segurei há poucos minutos se tornam abundantes, escorrendo dos meus
olhos antes que eu tente evitá-las.
Quando mamãe morreu, pensar em dançar doía tanto que bloqueei tudo o que envolvesse o
assunto.
— Confesso que havia me esquecido completamente dessa parte da minha vida, até Cherrie
me dar o convite. — Limpo as lágrimas com o dorso das mãos. — Desculpe ter sido negligente
com algo que a senhora amava tanto. — Encaro o meu lanche e dou uma mordida. — Eu
também. — Admito, de boca cheia. — Eu amava e estou feliz de lembrar disso a tempo.
Colocar esses sentimentos para fora me deixa leve, então termino o meu horário de almoço,
prometendo voltar com as novidades sobre a noite.
Sinto-me um idiota por ficar empolgado com algo tão pequeno. Não é como se eu nunca
tivesse assistido um concerto ou uma peça de teatro — esse é um programa que faço pelo menos
uma vez no mês. Ainda assim, me sinto empolgado como se fosse pela primeira vez. Volto para
o escritório e acabo me distraindo nas reuniões da tarde, pensando em que roupa que vou usar,
como se não fosse apenas outro terno da minha coleção Schiaparelli.
Até mesmo hidrato a minha barba e passo nas olheiras um corretivo da NARS que Ellie
esqueceu de levar. Depois de três semanas chorando, esse show soa como uma noitada.
A princípio, não sei o que imaginar, não tenho ideia se é um convite do Bolshoi ou Royal, se
vou assistir Lago dos cisnes ou Giselle. Não pesquiso e nem pergunto para Cherrie.
Quero ser surpreendido.
E sou.
Definitivamente, não espero encontrar o The Metropolitan Opera House marcado para o
Jogo, porém o chafariz jorrando vermelho-sangue cumpre seu papel como um aviso silencioso e
ameaçador sobre o que vai acontecer essa noite.
Antes mesmo de adentrar, sei que sou o único convidado.
Não há funcionários do Ópera House na entrada. Reconheço os meus pelo terno com
gravata borboleta e os relevos das armas nos bolsos.
— Não deixe brechas. — Digo ao Coroado, que libera a passagem.
— Cavalheiro Duncan. —Me entrega uma lista de instruções feita do mesmo papel
aveludado que o do convite, porém decido ler quando me sentar.
Tudo parece tão silencioso, que nem consigo acreditar que vá ter algum tipo de show. Se não
fosse pelos funcionários passando de um lado para o outro, eu pensaria que está fechado.
O brilho sutil do lustre de cristal lança uma luz suave sobre as fileiras de poltronas vazias,
criando um jogo de sombras que me incentiva a escolher um dos lugares perto do palco na
plateia em vez subir até os camarotes, por mais luxuosos que sejam, com Coroados prontos para
me servir meus drinks favoritos.
A meia-luz sensual me convida a despir da minha moralidade, e as esculturas e ornamentos
assimilam-se a guardiões silenciosos de segredos como os que estou prestes a conhecer, não
contenho o sorriso que adorna meu rosto.
Como eu amo ser Sangue em Ascensão.
Sento-me no meio e ligo a luz do flash para ler o conteúdo do papel, mordendo os lábios
com a empolgação. Antes de começar, observo cada detalhe nas pontas, pois sei que tudo foi
meticulosamente pensado.
Parece antigo, mas não tenho certeza se é só um detalhe decorativo.
Meu coração dá um salto e eu preciso parar de ler, respirar fundo, enquanto tento
compreender o que essas Regras significam. Levo os olhos até o começo e releio tudo outra vez,
com as palavras se embaralhando na frente dos meus olhos.
Meus dedos, que seguravam o papel, começam a tremer involuntariamente, amassando-o em
resposta à minha reação visceral. Então percebo que há outra carta.
— Não pode ser verdade... — sussurro.
Um estalo leva toda a minha atenção para o palco no instante em que todas as luzes se
apagam. Quando a cortina finalmente se abre, não tenho dúvidas de que a boneca-russa é a coisa
mais valiosa que vou ver na minha vida.
Até ela começar a dançar.
O ESPETÁCULO
É curioso como até a cor dos olhos George Young consegue manipular a seu favor, às vezes
ele me fita com seus verde-oliva e o verde é caloroso, vivo e afável, e em outros momentos,
como agora, eles são tão frios que não tenho dúvida do quanto podem cortar.
— Qual o nome dela?
A atenção do monarca parece penetrar minha alma, rasgando por dentro a sensação que me
impede de dar com a língua nos dentes, e então me dou conta de que estou com medo de
responder, como se a bailarina quebrada fosse um segredo do qual magicamente ganhei acesso,
um portal para outro mundo que tive a sorte de atravessar.
Vou proteger o meu segredo mágico.
— Não estou entendendo. — Desvio com um sorriso no rosto, desviando o olhar dele para o
de Cartier, que me devolve um semblante de indignação. — O senhor não sabe quem é ela?
Ouço loiro bufar enquanto me dou conta da minha estupidez. Não se dá a entender para a
pessoa mais fodidamente controladora do universo, que ela não está ciente de qualquer vírgula
que apareceu no caminho.
— Qual foi o nome da sessão, Damon? — Damon, não Torre. Damon de “eu te conheço
desde bebê, estive aqui cuidando de você desde a morte do seu pai, sempre te dei tudo, e agora
você vai me dar a informação que eu quero, porque é assim que as coisas funcionam e não estou
gostando da demora.”
Sinto a pressão do silêncio lutando contra a obrigação de falar, e a tensão no ar é palpável. A
reverência diante do Rei se mistura ao temor de desapontá-lo, criando um turbilhão de emoções
que me consome enquanto permaneço fitando-o, ouvindo minha voz interna me impedindo de
dar o que ele quer, enquanto não souber o que Cherrie aprontou.
— Não lembro, para ser sincero.
George Young me devolve o olhar de quem está lendo a minha alma, ciente do meu
fingimento ridículo ao coçar a nuca, tentando soar confuso.
— E a aparência? — pelo timbre, está perdendo a paciência. — Ou vai me dizer que come
uma mulher gostosa de olhos fechados?
— Qual era a cor dos olhos? — Cartier ajuda a pressionar, tão angustiado quanto eu.
— Azul. — Revelo, porque deve haver outras bonecas de olhos azuis.
— Bailarina de olho azul? — A pergunta de George é curta e objetiva. Não tenho para onde
correr, nem para quê fazer isso. Ainda assim, mordo os lábios e, nessa fração de segundos, crio
coragem para confirmar e me ver livre da presença dele.
O ambiente se torna um espectro de emoções contidas, um teatro de sombras onde o medo e
a reverência se entrelaçam, criando uma sinfonia silenciosa de suspense que paira no ar como
uma nuvem densa e impenetrável.
Então alguém grita na nossa direção:
— Cherrie voltou!
Todas as poucas vezes em que vimos George Young expressar reações verdadeiramente
humanas e não simulações reais o suficiente para nos cativar e envolver, tiveram a ver com ela.
O exemplo mais marcante teve a ver com Europa surgindo pela primeira vez, colocando a
vida de Cherrie em risco e obrigando o Rei a ceder as vontades de uma criatura irrefreável.
Nenhum Sangue em Ascensão vai se esquecer do dia em que todos vimos George abaixar a
cabeça e chorar em soluços agudos e intensos, com o diagnóstico da sua filha. Não pelo TDI em
si, mas pelo que esse transtorno significa.
Cherrie Young foi quebrada tão fundo ao ponto de se fragmentar em duas.
Ele jurou que não morreria até encontrar o culpado, e agora é imortal.
Por isso, nesse momento, quando ouvimos que Cherrie finalmente está em casa, no lar onde
ele pode cuidar e proteger sua preciosa filha, George suspira profundamente, saindo da sua
postura enaltecida. Olha para o céu e murmura:
— Graças. — Quando volta a atenção para mim, tão aliviado com o assunto que todos os
outros parecem irrelevantes. Coloca a mão no meu ombro e esclarece: — Depois a gente
conversa.
Cartier tampouco parece se importar com o que aconteceu, em vez disso segue George,
igualmente desesperado para ver a francesa, fazendo-me segui-lo com a mesma agonia até o
saguão, onde encontramos ela.
Cherrie, a personificação da cereja, o ingrediente mais doce do bolo. Cherrie, o momento
mais esperado da sobremesa. Cherrie, a parte mais divertida da festa. Cherrie, que obriga todo
lábio a se render ao charme de formar um biquinho sempre que ousar chamá-la.
Dentro de um vestido rosado, as duas versões da minha amiga brigam por espaço dentro da
minha mente e coração. O que tem de pérfida tem em beleza, e sempre foi, de longe, a mais linda
do nosso círculo social. De todos os traços moldados, o que chama a atenção são seus olhos
verdes, persas como os do pai, que remetem a folhagens raras. Sofisticada e selvagem, atraente e
perigosa como uma flor carnívora.
Ela é diferente. Ama estudar, de história a geometria, porque sempre converte o assunto em
uma estratégia nova para ganhar vantagem em algum jogo. Tabuleiros, cartas ou nossas cabeças,
Cherrie Young é a melhor em todos os jogos que existem na terra.
Ninguém chega aos pés dela.
Nem mesmo o pai.
A prova disso é que todos estão a adorando como imagem canônica, sem perceber que estão
sendo fantoches ao tratá-la como uma filha querida. Uma garota bonita é como música, e Cherrie
se aproveita do jazz que entona uma melodia ambiente para dançar em cima das tradições
Sangue em Ascensão, em forma de palavras bem escolhidas e frases tão bonitas quanto a
aparência dela.
— Mon Chouchou. — Embalando as curvas do seu corpo em um vestido de babados que
acentua seu tão característico charme inocentemente suspeito, lança-se em meus braços, manhosa
e carente.
No entanto, no momento em que vou abraçá-la, George a toma de mim, sem conseguir
esconder seu ciúme parental. Ele fecha os olhos enquanto a abraça forte, murmurando coisas que
a fazem sorrir, retribuindo o carinho. Todos no saguão parecem maravilhados com essa
expressão de amor pública. Então eles se fitam, em completo silêncio, e permanecem nesse
diálogo por algum tempo, como se tivessem acesso a alma do outro.
— Que bom que veio para a casa. — Ele beija lentamente a testa dela. — Mais um dia e eu
ia te buscar da casa daquele desgraçado.
— Querido, nós sabemos que você o ama, mas foi você quem o exilou do Tabuleiro. —
Madeleine, a mãe de Cherrie, intervém, cumprimentando a filha com um beijo curto, e todos
riem.
George me fita e a abraça. Encarando-a, indaga:
—Vamos começar a Partida?
Cherrie acena enfaticamente.
Adentramos em outra sala e George Young ocupa seu lugar à mesa, na ponta, ao lado do seu
filho primogênito, George Jr., que me observa em silêncio. Na estrutura aristocrática nova-
iorquina parecemos iguais em potência, porém dentro desta sala, entre as quatro paredes do gesso
mais puro, decorados com a boiserie mais bem trabalhada, cada peça tem sua posição, e todos
ocupam seus lugares já estabelecidos. Menos Cherrie, o caos vestindo Fendi, por isso ela se senta
entre mim e Dylan, e ninguém olha torto, porque ninguém ousaria questionar as suas escolhas. A
cada Partida ela escolhe um novo lugar, e quem somos nós para reclamar?
A essa altura, no entanto, é muito bom estar perto.
— Cher. — Sussurro, porém ela está muito ocupada com a cabeça apoiada no ombro do
meu irmão.
Dylan está feliz.
Seu braço esquerdo contorna a cintura dela, onde a acaricia com as mãos, movendo os dedos
lentamente, fitando seu o rosto enquanto ela murmura algo perto de seu ouvido, e ele sorri, céus,
sorri de um jeito único, com os lábios mostrando seus dentes, com as maçãs do rosto inclinadas
e, principalmente, com os olhos. Cherrie é o único motivo pelo qual suas íris brilham como se o
amor irradiasse de dentro dele.
Eu o invejo tanto.
A história de amor deles é a minha favorita, depois da dos meus pais, pela onda de encontros
e desencontros. Isso porque desde crianças as suas vidas foram entrelaçadas em um acordo de
alianças pelo meu pai e George, melhores amigos.
Mas não foi simples assim – definitivamente.
Cherrie e Cameron deviam ter sete e seis anos quando todos perceberam que existia algo
muito além do ódio profundo. E se a química desses dois inimigos mirins não fosse o suficiente,
também tinha um plus: Dylan não amadureceu no mesmo ritmo que eu ou os outros x-herdeiros.
Com treze e quatorze anos, Cameron e Cherrie estavam se beijando escondidos enquanto
Dylan só queria saber de colecionar mangás e jogar videogame. Não dava para competir, e
nossas famílias sabiam disso.
Então Europa apareceu para destruir a vida de Cherrie e, quando a versão boa finalmente
voltou, meses depois, meus pais já estavam mortos, tudo estava quebrado e o Rei desesperado o
bastante para dizer sim a tudo o que fizesse sua filha favorita minimamente feliz.
Então a aliança foi desfeita e Cherrie começou a namorar o Waddel. Qualquer um ficaria
triste de perder a mão da queridinha dos Sangue em Ascensão, mas para Dylan foi como respirar
após tirar um peso enorme das costas. Ele e Cameron eram melhores amigos e Cam fazia mais
por ele do que por todos nós. Meu gêmeo não queria estar no meio da felicidade do amigo.
O problema foi que Cameron não aguentou as trocas de alters da Cherrie. No dia do noivado
deles, Cam teve um surto e nunca mais o vimos.
Então ela estava solteira e Dylan já era um homem de vinte anos. Certo?
Europa assumiu o front e Cartier não perdeu a oportunidade, afinal, ele foi o único que
nunca temeu a alter maligna. Ao contrário, ele fez o que ninguém nunca foi capaz — ele a amou,
com toda a sua força.
Mas era óbvio que George não daria aval para o romance dos dois. Além de consanguíneo,
significava perder sua preciosidade para os abomináveis Kühn.
O Rei não permitiria.
Não sabemos o que George disse a Europa naquela noite, nem como ele conseguiu domá-la,
mas, na manhã seguinte, para o azar de Cartier, era Cherrie.
Então ela e Dylan finalmente se aproximaram e Cherrie tem sido tão bem cuidada pelo meu
irmão que Europa nunca mais apareceu no front.
— Jogadores — o Rei dá as honras — temos uma notícia muito alegre para compartilhar. —
Sinaliza com a cabeça para que Richard Harding explicasse.
— A Harding vai comprar a maior petrolífera do mundo, na Saudita. — Richard se levanta
para contar. — O EuroOásis vai sair do papel.
O som chega aos meus ouvidos como um golpe súbito, um eco doloroso que reverbera pelo
meu ser, deixando-me paralisado. É como se o mundo ao meu redor desacelerasse, enquanto a
desgraça penetra profundamente em minha consciência. O mal-estar penetra cada celular do meu
corpo, de modo que só abaixo a cabeça, concentrando a atenção em minhas mãos.
Todos os outros batem palmas.
— Nós Duncan, os Harding e o Rei passamos os últimos meses, desde o Torneio, em
negociações. — Meu avô explica, com seu timbre alegre. — Encontramos o melhor negócio, e o
Rei está disposto a investir em território no Oriente Médio.
A sensação é quase física, como se um punho invisível tivesse esmurrado meu estômago.
Um arrepio percorre a minha espinha, e meus músculos se contraem involuntariamente em
reação à confirmação dos meus temores.
Subo meu olhar lentamente, alguns arqueiam as sobrancelhas, outros riem surpresos, vovô e
Phillip se entreolham, e eu e Cherrie nos fitamos.
— Parabéns. — Provoca ela, alto, trazendo toda a atenção para mim. — Você venceu, Torre.
O som ambiente torna-se abafado, como se o mundo ao meu redor estivesse distante, e uma
sensação de náusea se mistura à dor emocional. Cada detalhe do ambiente parece adquirir uma
tonalidade mais sombria, e a notícia ruim se torna um eco constante.
Sempre soube que o meu Rosebud seria imbatível, mas não posso evitar o amargor invadir o
palato. Que tipo de idiota não compete para ganhar?
Prazer, eu.
— Todos aqui sabemos do potencial político e econômico que o EuroOásis vai trazer para os
Estados Unidos e nossos aliados no Oriente. — Continua George, cruzando as mãos grandes
sobre a mesa, de um jeito que o relógio de ouro branco contrasta com a penugem escura do seu
braço, evidente com as mangas da camisa branca dobradas elegantemente na altura do cotovelo.
— 835 bilhões, senhores. — O silêncio é absoluto. — E essa foi a parte fácil.
Construir tubulações debaixo do Iraque e da Síria é o que me preocupa desde o momento em
que ouvi essa proposta de Rosebud do meu avô.
E ainda assim aceitei, porque me permitiria casar com a mulher que eu queria. Eu fodi o
mundo por uma mulher que me traiu e engravidou de outro.
A tortura interna dá origem ao inconformismo. Com tantos Peões mais inteligentes, eu iria
imaginar que, justo eu, o mais novo do Jogo, ia vencer de lavada?
— A culpa também é sua. — Inclino-me para sussurrar no ouvido de Cherrie, com meu
coração batendo forte demais para continuar em silêncio. — Você devia ter sido melhor do que
eu, Cherrie. — Balanço a cabeça, olhando para a frente, fingindo que estou prestando a atenção,
com os dedos trêmulos. — Eu contava com isso.
Mesmo sem fitá-la, sinto seu olhar me queimar.
— Eu teria vencido. — Chuta meu calcanhar com seu sapato de bico fino. — Se você não
tivesse me roubado.
As palavras parecem carregar um peso palpável, uma gravidade que suga a esperança e
enche o meu redor de um vazio angustiante.
— Eu te devolvi.
— Tarde demais — a voz soa enfadonha. — Já tinha queimado meu Rosebud com essa sua
boca grande e aberta.
Um riso meu escapa e eu coloco a mão em cima da sua enquanto analiso os detalhes no
esmalte claro e nos anéis, como o anel de noivado do Cameron que permanece no seu anelar, e o
anel que Dylan lhe deu, da nossa mãe, no dedo médio.
— Eu queria voltar no tempo, Cherrie, — encaro no fundo dos seus olhos verde-amarelados
que me fazem sentir a doçura da sua personalidade. — Juro que faria tudo diferente.
Ela abre um sorriso, me dedicando com a íris a mesma atenção, enquanto entrelaça seus
dedos nos meus, me acalmando.
— Aproveite a vitória, Torre Duncan. — deita levemente a cabeça no meu ombro. — É a
única vez que você vence de mim uma batalha.
Não sei se estou falando sério ou brincando quando tomo a ousadia e indago:
— Pensei que tivesse sido a guerra. Não?
Ela levanta a cabeça, me entregando um dos seus olhares mortais como se questionasse a
minha audácia.
— Mantenha essa confiança. – Sobe as mãos até o meu rosto, acariciando minha barba.
Segura meu maxilar e ameaça: – vai precisar dela.
Sorrio com o afago, com o coração aliviado pela saudade que estava da minha melhor
amiga.
— Obrigado por me perdoar, mon cher.
Um riso escapa dos seus lábios rouge, tão lindo e tão genuíno, que Dylan interrompe o
assunto sobre o EuroOásis para nos observar, curioso.
— Quem disse que eu te perdoei, bobinho? — seu timbre ainda é doce e ela ainda me
entrega um fitar cheio de amor, o que me assusta mais do que se ela gritasse.
— Você. – Ergo os ombros, incomodado. — Você me deu até o espetáculo de presente.
A mudança no seu semblante me faz tensionar os músculos, e sua voz apreensiva congela
todos os meus ossos. O coração para por um instante antes de disparar descontroladamente,
como uma explosão súbita que causa ondas elétricas em cada fibra do meu ser.
— Que espetáculo, Damon? — A voz dela, carregada de surpresa e pânico, reverbera em
meus ouvidos e meu corpo reage instantaneamente, tenso e alerta, enquanto o frio percorre
minha espinha.
Não, não, não.
— O da bailarina. – A escuridão ao nosso redor torna-se mais densa, e por um breve
momento, meus sentidos pareceram se desconectar da realidade quando George completa, em pé
atrás de nós com sua onisciência. – Preciso saber qual Boneca é essa, filha.
Agora o olhar de Cherrie é de desespero e assombro, inundando a linha da água. Ela abaixa
a cabeça como se odiasse decepcioná-lo, então murmura na nossa direção:
— Desculpe, Damon. – A voz quase não sai. – Papai, nos últimos meses, eu estive fora...
É pior do que eu imaginava.
Foi um presente da Europa.
PREZADO JOGADOR
Estamos todos à mesa, feito um frame de O poderoso chefão. O jazz agradável embala a sala
em uma aura pura de amistosidade, sendo intercalado com o som que nossas gargantas
sonorizam ao ingerir vinho Richebourg. Lábios bordôs e línguas roxas. Rostos belos com olhares
coloridos por íris extravagantes que seguem uma paleta harmonizada, do amarelo ao verde-oliva,
do castanho-café até doce caramelado e do azul ao cinza. Sorrisos brilhantemente brancos
intercalados com gargalhadas suaves e contidas.
Admiro a paisagem como um observador de fora.
Esse momento resume exatamente a síntese do que amo no meu mundo. A união entre
pessoas inteligentes, os diálogos bem-humorados com tiradas perspicazes, a prataria unida à
louça que simboliza a força das nossas Famílias... Sempre foram ocasiões como essa que fizeram
meu coração transbordar de orgulho por ser parte disso e ser um Sangue em Ascensão.
Hoje, sinto que tudo parece diferente.
Ainda não assimilei a história das Bonecas, quer dizer, quantos nessa mesa sabem disso?
George se senta do lado da sua, mas será que outros também têm? Como isso funciona? Será que
a bailarina é de algum homem nessa mesa?
— Então quer dizer que Damon voltou finalmente a ser solteiro? — Louise Harding puxa o
assunto, voltando toda a atenção para mim. Seu olhar penetrante, carregado de desaprovação, faz
o som da conversa animada ao nosso redor diminuir gradualmente. — Ouvi dizer que já faz
algumas semanas, mas ainda não falou com a gente.
O rubor sobe até minhas bochechas, com a sensação de que todos os olhares estão em mim,
e meu coração começa a bater mais rápido. Odeio o quanto me sinto exposto, como se estivesse
no centro de um palco, pronto para ser açoitado em público.
Eu poderia dizer que precisei de um tempo para assimilar antes de contar a todos, contudo a
ideia de expor ainda mais a minha vulnerabilidade, me faz endireitar os ombros e devolver:
— Estive muito ocupado com trabalho, quer dizer, o EuroOásis tem exigido muito foco, não
é, vovô?
Beatrice mantém o olhar penetrante, com a taça entre os lábios.
A minha primeira namorada é indiscutivelmente linda e inteligente, com a pele clara e os
cabelos cor de cenoura, lábios redondos e o rosto oval, como o da Ellie.
As duas são incrivelmente parecidas. O formato do rosto, o tom das íris, o mesmo estilo
feminino, saias curtas e vestidinhos rosas. Ainda assim, basta compará-las para entender o
porquê uma me seduziu e a outra me repele.
Beatrice só é mais afiada.
— Essa é a sua desculpa padrão, não é? Trabalho. — Os olhares curiosos e as expressões
atentas da plateia ao nosso redor adicionam uma camada extra de desconforto com a provocação
da minha ex. — Mesmo no final de semana, às oito da noite de um domingo, que eu também
esteja trabalhando no EuroOásis o bastante para saber que ele nunca foi seu foco.
O silêncio constrangedor que se segue às suas palavras intensifica a tensão, como se o tempo
estivesse congelado, e eu preso nesse momento embaraçoso. De todos os olhares, o que mais me
perturba é o da minha avó, pois sei que pode significar o céu ou o inferno, dependendo de como
eu reagir.
— Ainda bem que agenda cheia nunca é um problema para uma dama — brinco, na
tentativa de aliviar o clima.
— Eu honro com a minha palavra. — Tudo o que sai da boca de Beatrice soa como veneno.
— Sabe o que é isso?
A respiração acelerada, a pulsação frenética e a sensação de adrenalina correndo por minhas
veias criam um turbilhão de emoções que me impedem de evitar o que sai da minha boca.
— Pensei que a palavra tivesse sido desfeita no momento em que dei o EuroÓasis de
presente para você.
Minha fala é seguida por um silêncio pesado, como se o próprio ambiente estivesse
prendendo a respiração em antecipação ao próximo golpe verbal. Os cochichos sussurrados entre
os presentes adicionam um zumbido constante à trilha sonora do constrangimento, aumentando a
sensação de que eu estou no centro do furacão.
A risada da minha avó corta o ar.
— Meu neto fala como se fosse um vira-lata. — Vovó corrige com classe, como se estivesse
brincando, ao mesmo tempo que suas palavras me cortam. — É isso que dá ter sangue de uma
Mundana nas veias. — Então me entrega um olhar cruel. — Você ainda é um Duncan.
— Somos Sangue em Ascensão. — Vovô complementa, como se eu tivesse me esquecido.
— Promessas duram para sempre.
A sensação de exposição e humilhação que alimentava o crescente calor em minhas
bochechas dá lugar a chama de raiva que se acende em meu peito. Primeiramente porque odiei,
com cada célula do meu corpo, o comentário de vovó sobre minha mãe, e segundo, porque, se eu
soubesse que o EuroOásis não compraria um pouco da minha liberdade, não teria vendido a
minha alma.
— Até porque Charllote não era uma Mundana, né? — Solta Cherrie, silenciando a todos,
que a encaram com queixos caídos e palidez instantânea, enquanto eu escuto meu coração cair
em um lugar bem fundo. — O quê, mon père? — Sorri largamente para o Rei. — Agora ele já
pode saber.
O sangue para de correr pelo meu corpo, e um frio assustador atravessa minha espinha.
— Saber o quê? — Meu primo Ethan Lloret, de quinze anos, pergunta com a boca cheia.
A sala, cheia de vida e celebração, se torna um espaço frio e distante.
— Segredos de Peças Forte. — Corta o pai dele, seco, fitando o Rei.
Estou tão concentrado nas batidas do meu coração que não consigo elaborar uma resposta, e
Eleanor puxa um assunto leve a fim de amenizar o clima, enquanto minhas mãos tremem tanto
que não sou capaz de segurar na taça.
— O que significa, Dam? — viro o rosto, encontrando o olhar perdido do meu irmão. —
Me explica?
Sua inocência arranca de mim a inércia e eu me levanto no mesmo segundo, fazendo a
cadeira ranger e todos me fitarem com mais preocupação.
— Vem, Cherrie. — Não é um pedido, é uma ordem, e ela compreende, porque para de
mastigar, esboçando um sorriso que se alterna com o olhar para o pai. — Vamos conversar.
— Não. — O tom do Rei é como uma sentença. — Sente-se, Damon. Estamos no meio do
almoço.
E eu normalmente o obedeceria cegamente, como todos fazem, porém sou incapaz de mover
um dedo agora, de me sentar e imitar o cinismo de todos, principalmente quando o meu
estômago torce tão forte que quase tenho ânsia de vômito, e o corpo inteiro amolece só de
imaginar minha mãe na pele da bailarina.
— É sobre a minha mãe. — Contesto, com a voz tremida.
Alguns Sangue em Ascensão murmuram segredos por baixo da mesa, porém George
permanece calmo, cortando a carne malpassada do seu prato.
— Segredos mortos não devem ser desenterrados. — Relembra a Regra, calmamente. —
Sente-se, Damon. — Outra vez ordena, com seu timbre amoroso de pai mesclando-se ao de líder
de seita. — Quem sabe, se você merecer, abro uma exceção.
Meu irmão me puxa pelo braço, não apenas me obrigando a ocupar o meu assento
novamente, mas principalmente puxando de volta a minha razão.
— Perdão, Louise, Beatrice, vovó. — Vagueio o olhar de rosto em rosto, enquanto
mantenho as mãos abaixo da mesa, apertando a do meu irmão como se a presença dele me
ajudasse a focar no que é importante. — Perdão a todos pelo transtorno. — Abaixo a cabeça,
sentindo a humilhação em novamente me admitir: — terminei um relacionamento recentemente
e estou com os nervos à flor da pele. Não foi a minha intenção.
Dylan solta sua mão da minha e me dá subliminares batidinhas de aprovação nas costas
antes de voltar a comer, contudo eu só toco no meu prato porque estão me observando.
Funciona até os Young mais importantes terminarem a sobremesa.
Os primeiros a se retirarem da mesa são George e Cherrie. Sou rápido com a deixa, coloco
meu guardanapo ao lado e me levanto também, no entanto não dou três passos antes de sentir os
braços de Cartier me segurarem.
— Não se meta nos assuntos da Coroa. — Murmura contra a minha nuca.
As palavras de Cherrie à mesa ainda são como feridas abertas que continuam sangrando, me
deixando em um estado de resignação e tristeza profunda.
— É sobre a minha mãe. — Teimo.
Encaramo-nos seriamente por alguns instantes, então Zaki entra no meio de nós dois.
— Vamos sair daqui. — Sugere, puxando-nos para fora da propriedade, onde podemos
conversar sem nos preocupar com câmeras escondidas.
Cartier não deixa Dylan passar da porta.
— Você fica.
O Duncan me encara com indignação.
— Vocês vão saber e eu não? — cruza os braços, com o timbre tristonho.
Toco no peito dele.
— Não. — Aponto com o olhar para o interior da mansão. — Você tenta descobrir o que
Cherrie conversou com George, e eu descubro o que está acontecendo, e depois te conto.
Ele revira os olhos idênticos aos meus, porém obedece.
— Zaki vai? — acho justo cobrar, porém Cartier toca no seu ombro, deixando evidente que
não há segredo entre os primos. Então o Kühn se cobre com um casaco que destaca seus cabelos-
loiros, enquanto Zaki veste um suéter branco que combina com sua pele escura.
Nós três caminhamos em silêncio no gramado congelado até o bosque da mansão Young,
onde árvores se erguem em alturas imponentes, formando um dossel de neve que filtra a fraca
luz do sol em padrões de sombra e luz dançantes.
— Pronto, Damon. — Cartier se vira para mim, pondo as mãos na cintura. — O que está
acontecendo?
A pergunta é um convite para eu desabafar tudo o que me perturba.
— Você viu o que ela disse sobre minha mãe? — Seu silêncio me deixa ainda mais
indignado. — Você também sabia?!
— Respira, cara. — Zaki inicia sua posição de intermediador.
— Não sei sobre sua mãe — Cartier mexe os largos ombros. — Mas faz sentido.
— Sentido? Minha mãe? — ouço o timbre soar agudo. — Charllote conheceu meu pai em
um jantar na Casa Branca!
Zaki está de costas, brincando de cavucar a terra e neve com os sapatos.
— Imagino que seja isso o que uma mãe diga para os filhos, em vez de contar que era uma
acompanhante de luxo.
Que fique claro: jamais fui a favor da violência, muito menos me vi impelido a me envolver
em uma briga física. Tudo o que sei sobre luta foram resultados das aulas de defesa corporal.
Mas, no instante seguinte, os ossos dos meus dedos, mãos e punhos transmitem uma
vibração que reflete no meu corpo inteiro, em contato com o rosto de Zaki. A adrenalina da luta
interrompe qualquer desconforto, cegando-me com o impulso, porém Cartier me segura.
Sinto as ondas rapidamente irradiarem para a extremidade do meu braço, ricocheteando uma
dor que me faz balançar os braços.
— Você está louco? — Zaki grita com a voz aguda antes de devolver o golpe na boca do
meu estômago.
É, eu também nunca levei um soco.
O impacto rouba o ar dos meus pulmões, e uma explosão de dor aguda reverbera por toda a
minha região abdominal, cortando minha respiração com a sensação de pressão intensa que faz
com que meus músculos se contraiam instantaneamente, em uma reação quase involuntária para
proteger a área atingida.
— Chega. — Cartier se põe no meio, e os dois me olham.
— Eu não aguento mais ninguém falando da minha mãe. — Solto em um suspiro
murmurado, com cada fibra do meu corpo se concentrando na região do estômago.
— Mas eu não estava falando mal dela, não, Damon! — devolve com o timbre estridente de
indignação, passando a mão nos lábios grossos, que sangram. — Estava tentando falar sobre...
Eu caio em mim, balançando a cabeça.
— Desculpa. — O calor não é apenas pela adrenalina ou pela dor física, mas sim pela
vergonha. — Não estou bem e descontei em você.
Ele poderia surtar, poderia fazer disso um motivo de guerra, porém abre um sorriso de
condolências e me puxa para um meio abraço.
— Quer falar sobre isso ou quer ficar sozinho? — Cartier está com os braços cruzados.
Acho que a tristeza não é apenas por isso, é por saber que eu não sei grande parte da vida da
minha própria mãe. E eu amava a história de amor dela, a Miss Mundo cantando para o
presidente, na Casa Branca, quando cruza com os olhos de um dos herdeiros mais ricos dos
Estados Unidos, e se apaixona perdidamente.
— Ela era uma Boneca. — Falar em voz alta torna tudo pior e mais sombrio, porque me faz
pensar na bailarina.
— Vamos com calma. — Zaki intermedia.
Fito-o com os olhos cheios de lágrimas.
— O que uma modelo de dezoito anos estava fazendo em um jantar na Casa Branca, Zaki?
— O silêncio pesa com a minha pergunta, e os dois abaixam a cabeça, porque minha mãe era
especial o bastante, linda o suficiente, para fazer parte do Jogo que levou a sua alma e sua vida.
Refletir nisso me deixa com ainda mais perguntas, porém não vou obter as respostas com
meus amigos, e peço para voltarmos a mansão. Zaki e Cartier me perguntam duas vezes se estou
melhor, e me convencem, no percurso de grama e pedras, a voltar para casa.
— Os Sangue em Ascensão vão entender, e até que você consiga se reestabelecer e controlar
seu gênio, é melhor ficar longe do Rei.
De fato, estou com raiva e a um fio de fazer uma besteira. Mas, acima de tudo, preciso de
respostas, então vou até Cherrie Young que, nesse momento, elabora um grandioso e complexo
castelos de cartas. A obra possui uns três andares e a morena de olhos verdes precisa se inclinar
para posicionar a próxima, com uma concentração majestosa.
Todo mundo ao seu redor nem respira, ao contrário, entregam a própria carta com uma
reverência e admiração que não escapa dos olhos do seu pai, apaixonado demais para perceber o
perigo em seu reinado.
— Cherrie? — aproximo-me com cautela, ajoelhando-me ao seu lado.
— Não atrapalhe, Damon. — Minha avó reclama.
— Sim? — pergunta a francesa, e me encara com um olhar provocativo que não reconheço.
Então põe a língua para a fora e, sem desviar a atenção dos meus olhos, desliza a ponta da
carta coringa entre os dentes, lentamente e com um sorriso brincalhão e safado.
Endireito os ombros.
— Você está bem? — franzo os cenhos.
Cherrie vira o rosto e agora a observo de perfil. Quando éramos mais novos a curvatura do
nariz dela possuía uma lombada, porém Europa corrigiu cada pequena imperfeição do que quer
que pudesse afastá-las de um padrão inatingível.
Não há o que dizer, ela é perfeita.
— Eu estou maravilhosamente bem. — Por que soa como uma ameaça? — E você?
Esse deveria ser o momento em que desabafo com a minha melhor amiga tudo o que está
acontecendo comigo, contudo o seu olhar, de repente, é tão frio que estremeço.
— Estou péssimo. — Testo.
Cherrie começaria uma série de perguntas que me levariam a compreensão dos meus
sentimentos.
— Deveria ir para a casa. — Fala, e então noto as microexpressões do seu rosto se
contorcerem, e ela faz algo que Cherrie nunca faria, se corrigindo: — deveria ir para a casa, está
com o semblante tão abatido, mon chouchou.
Acaricia minha barba antes de pegar com Dylan a próxima carta.
— Você disse que o convite, quem me deu, foi a Europa.
Nem me fita, observando o castelo. Erro dois, Cherrie estaria me olhando no olho agora,
segurando em minha mão enquanto me incentiva a colocar para fora todos os segredos do meu
coração, para depois usá-los ao seu bel-prazer. Erro três, Cherrie estaria mais curiosa do que eu
sobre o convite, e já teria me feito contar cada detalhe sobre a bailarina, para pesquisarmos
juntos.
Mas o monstro na minha frente sabe exatamente quem é a bailarina, porque foi ela quem
planejou isso.
— Não sabe de nenhuma informação? — Abaixo os olhos para o seu peito em
descompasso, e os subo rapidamente para o seu rosto.
— Oh não, mon chouchou... — Suspira, cínica e dissimulada, com uma voz forçadamente
angelical. — Só acordei hoje no meu tio e voltei para a casa.
Quero rir do seu fingimento, mas me seguro.
— Não consegue falar com ela? — tento mais um pouco, só para ver até onde vai. — Aí no
headspace, talvez.
Ela faz um biquinho, segurando outra carta coringa, como se quisesse que, de alguma coisa,
eu entendesse seus planos.
— Você sabe que em cada sistema os alters se comunicam de forma única. Eu não tenho
acesso a Europa, apenas ela a mim.
A frustração amarga o palato, pois sei que não há a menor chance de conseguir qualquer
informação dela, e isso me preocupa. Como vou fazer para ver a bailarina outra vez?
Continuo paralisado enquanto luto contra os instintos de fechar os punhos, porque sei que só
a deixaria ainda mais atrevida. O passatempo de Europa Young é tirar as pessoas do sério só para
vê-las explodir, viciada no frenesi que as pessoas lhe derramam sempre que arrancam seu
sangue.
— Vou para a casa, podemos conversar amanhã.
Manda beijinhos com seu charme mortal e eu me despeço dos outros Sangue em Ascensão,
ainda relutante quanto a ideia de voltar para a casa que Ellie decorou com as obras de arte
herdadas.
Tento me concentrar no que vou fazer quando chegar em casa. Vou tomar um banho com
sais, deitar na minha cama e tentar dormir após mais de 24h acordado. Vou finalmente poder
pensar na bailarina e repassar cada detalhe em busca de alguma coisa que não percebi no
momento em que estive com ela. A essa altura, começo a refletir se ela foi real ou um delírio.
Como vou fazer para vê-la de novo, céus?
Principalmente porque agora consigo enxergar minha mãe na bailarina. Elas estão ligadas de
alguma forma e, se eu descobrir mais da bailarina, também posso compreender mais da mulher
que me deixou com um vazio eterno no coração.
Subo as escadas depressa.
E Europa? É ela, não tenho dúvidas. A preocupação que sinto dói no meu próprio peito. O
que Europa está tramando?
Ao abrir a porta do meu quarto, a sensação mais arrepiante de toda a minha vida toma conta
de mim.
Há uma caixa completamente ensanguentada no meio da minha cama, manchando os lençóis
em um nível que faz parecer que um serial killer veio me visitar.
Mas foi apenas ela sendo ela.
Europa, mais uma vez.
Dou passos hesitante em direção a cama, temendo o que vou encontrar dentro. A ansiedade é
como um nó apertado no meu peito, que me obriga a colocar os joelhos sobre o colchão, e puxar
a caixa.
Não tenho dúvidas de que é sangue humano coagulado, pelo forte odor, me fazendo abrir o
laço com ainda mais cautela, mas não é um órgão humano, e sim o traje de diamantes que a
bailarina de porta-joias usou na sua apresentação.
O ar escapa dos meus pulmões, aterrorizando-me com a ideia de o sangue ser dela, e eu
avanço sobre as peças, procurando alguma pista. Só há uma coisa intacta na caixa, dentro de um
porta-joias de ouro sujo de sangue.
A calcinha dela.
Levo até o nariz apenas para ter a certeza da mente pérfida de Europa.
Está com o cheiro da bailarina.
Desvio os olhos da caixa para o resto do quarto, vasculhando a cena do crime. Tem uma
carta na minha mesa de cabeceira e, dessa vez, não me dou ao luxo de analisar os detalhes
minuciosamente. Rasgo o envelope afoito.
BONECA QUEBRADA
Lembro da primeira vez que vi minha mãe chorando. Eu devia ter uns quatro anos porque
ela pediu que colocássemos nossos brinquedos favoritos na mochila do Rei Leão, e era a época
em que eu achava que era o Simba.
Lembro das suas lágrimas molhando o topo da cabeça e o medo que eu senti por vê-la se
desmanchando em dor, sem entender por que isso me deixava tão assustado. Até aquele
momento, eu pensava que adultos não choravam, e a quebra de expectativa se intensificou
quando meu pai entrou no quarto e a mandou desfazer as malas.
Desço o olhar até a bailarina, ainda sem acreditar na vulnerabilidade que ela está me
entregando, e faço tudo o que meu pai não foi capaz de fazer com a minha mãe, acariciando suas
costas, confortando-a para que fique o mais confortável. Não tento interromper seu pranto, em
vez disso, deixo-a chorar tudo o que ela esconde com essa aparência impecável, até que a
dopamina faça o efeito em seu cérebro.
Vi minha mãe chorar muitas outras vezes, sei como funciona. Assisti-a definhar de tristeza
assim como um câncer que progride, e a depressão que a visitava durante as brigas com meu pai
se transformaram em um maligno tumor de melancolia. Enquanto a bailarina coloca para fora os
seus sentimentos, aproveito a deixa para revisitar os meus.
Ver minha mãe desse jeito me perturbava tanto, que não sei como estou calmo, impassível
feito uma muralha capaz de manter a dançarina em pé. Tem algo mais assustador para uma
criança do que ver a pessoa que ela mais ama, no mundo, sofrendo? Eu ainda me sinto pequeno,
aqui dentro dessa casca, preso no cenário onde a mulher mais importante do meu mundo está se
dissolvendo em dor, repetindo cada momento, todos os dias, em um espiral que me corrói com o
vazio.
Ainda assim, de alguma forma inexplicável, é como se algo mais importante do que meu
desespero dominasse minhas células, assumindo o controle. É como se eu soubesse exatamente o
que fazer, como se, durante todos esses anos, eu tivesse aprendido para, de alguma forma, ajudar
a mulher em meus braços.
Senão, por qual motivo, meu caminho cruzaria justo com o da bailarina cuja presença me faz
revisitar todos os traumas do meu passado, a cada vez que me entrega esse olhar azul?
Esse é o motivo pelo qual esperei tanto por esse encontro. Não é só porque ela é a coisa mais
linda que meus olhos já viram, ou porque o ballet que ela dança faz balançar tudo o que eu
mantive adormecido dentro do meu peito. É porque ela pode me dar as respostas que arrancam o
meu sono e tomam toda a minha paz.
Ela pode explicar o que aconteceu com a minha mãe. Ela pode me dizer o que eu fiz de
errado e, no melhor dos casos, ela pode me deixar fazer o certo. Meu coração dispara com a
ideia, meus olhos percorrem o ambiente e, em uma tentativa de consolar a dançarina, pego a flor
mais próxima, uma rosa vermelha no arranjo de mesa, e dou para a Boneca.
Ela me entrega um dos seus olhares profundos enquanto assimila o que significa, com as
lágrimas escorrendo em uma linha pela maquiagem do rosto dela, de um modo que vejo suas
translúcidas sardas e a ponta do nariz avermelhada. Depois de um tempo me analisando, sorri em
meio as lágrimas e, cheia de receio, aceita o presente.
Uma vez, descobri que dar flores fazia mamãe sorrir. Isso se tornou minha arma secreta,
assim como o ballet. Quando ela ficava muitos dias de cama e não queria se levantar, eu montava
a mesa para ela com o arranjo de florezinhas que os jardineiros me ajudavam a escolher. Pedia
para as funcionárias prepararem waffles, só para despejar o mel por cima antes de oferecer o
prato, porque assim ela comia.
É surreal imaginar que uma criança de oito, nove e dez anos, se sinta responsável por um
adulto, mas, mesmo tendo tudo o que o dinheiro pode oferecer, esse peso era um segredo que eu
carregava em silêncio. Por Deus, como eu faria tudo de novo, todos os dias, até descobrir o
porquê não foi o suficiente.
O porquê eu não fui suficiente.
Talvez por isso que ver a bailarina em prantos doa tanto que também me faz desejar colocar
para fora as feridas que nunca cicatrizaram. Talvez a resposta esteja nos meus braços. Duas
Bonecas quebradas, mas só uma ainda está viva. Se eu colar os cacos dela, os meus vão parar de
sangrar?
Quando eu tinha quatorze anos, mamãe foi internada em uma clínica psiquiátrica depois de
um surto psicótico em uma festa. Por seis meses, eu e meu irmão acreditamos que ela seria
curada. Foi como se o peso saísse das minhas costas, por saber que ela estava a salvo, que eu
podia dormir sem medo de acordar com a notícia que perturbava minha sanidade.
Essa mágoa me destroça todos os dias.
Como eu saberia? A saudade por não a ter participando do nosso dia a dia, em casa, era
consolada por uma motivação maior. Mamãe estava sendo tratada. Bem, era o que pensávamos,
até convencer nosso pai a nos levar para uma visita.
A primeira decepção da nossa vida normalmente acontece na adolescência. Eu deveria estar
sofrendo por corações partidos e as coisas bobas que preenchiam o dia de Zaki, Cameron,
Cartier, não por aquilo.
Mamãe estava muito pior do que quando foi levada.
Olho para o lado e reconheço na bailarina cada lágrima, cada soluço agudo, potente o
suficiente para me desesperar.
— Boneca… — Tento segurar a sua mão e ela desvia.
Mesmo em todos os anos, dentro de casa, por mais que minha mãe ficasse magra e abatida,
ainda assim ela estava ali. Ela ria das mesmas piadas, se alegrava com as mesmas flores, ainda
era a minha mãe. Não a mulher que encontramos naquela clínica. Não havia a Charllote em lugar
nenhum na carcaça dela.
Meus próprios olham inundam com lembrança de mim e Dyl nos fitarmos aterrorizados.
Papai também se desesperou, mas o que ele fez para fazer diferente? Ele saiu do quarto e
começou a chorar com uma intensidade que nunca havíamos visto. Os olhos de Dylan também
marejaram e eu, pela primeira vez em toda minha vida, também desejei me entregar a tristeza.
Mas eu não podia. Ela precisava de mim. Ela só tinha a mim, então fiz o que era necessário.
Meninos se tornam homens quando decidem amar como um. Sai pela porta e disse ao meu pai
que iriamos tirar ela daquele lugar.
É aqui que começa a ficar estranho.
Ele disse que não podia. Em toda a minha vida, nunca tinha ouvido nada como isso. Nós
somos Sangue em Ascensão, nós tínhamos tudo, podemos tudo. Repeti que iriamos tirar ela, bati
o pé, lutei por isso como nunca.
Meu pai chorou mais. Disse que não podíamos. Ela precisava ficar até o tratamento acabar.
Mas que tratamento?
Foi a única vez que vi meu irmão lutar por algo. Ele gritou que estavam machucando-a
naquele lugar. Que tipo de hospital era esse?
Meu pai disse que era para o bem dela, que também a queria viva, mas essa era condição.
Sempre pensei que ele estivesse falando de uma condição médica, algum tratamento com
choque ou sei lá, mas e se não for? Meu coração bate na garganta com a hipótese e eu abraço
mais forte a bailarina. E se tiver a ver com o fato dela ser uma Boneca?
Só a bailarina pode me explicar.
Puxo-a para o mesmo abraço que dei na minha mãe aquele dia. Repito:
— Vai ficar tudo bem.
— Não. — A bailarina me empurra. — Isso não está certo. — Ameaça, destruída. — Eu não
posso... — E soluça inconsolavelmente. — Não posso. Sou condenada. Não posso. Eu estraguei
a minha vida.
Observo atentamente suas palavras, gravando-as na minha mente para estudá-las quando
todos os meus pensamentos não estiverem concentrados em uma única coisa.
Mamãe dizia as mesmas palavras que a bailarina.
Naquela ocasião, quebramos as Regras e a trouxemos para a casa. Logo que chegamos, ela
me fitou no fundo dos olhos e me disse:
“Pare de tentar, Damon. Pare de perder seu tempo comigo. Eu não tenho conserto.”
— Não diga isso, Boneca. — imploro, assustado com seu pranto e mais horrorizado ainda
por, no auge do meu egoísmo, estar aliviado em ver quão viva ela está com sua respiração
fungada.
Meus olhos a percorrem dos pés à cabeça, tentando encontrar algo que me ajude a distingui-
la da minha mãe. Ambas possuem uma beleza estonteante, ambas se vestem como Barbie, têm
cabelos longos e escuros, olhos grandes e delineados. A bailarina está limpa e cheirosa.
A versão do passado não conseguiu se limpar do vício.
Tentei convencer meu pai a me deixar estudar em casa, para ficar perto da minha mãe
porque eu e meu irmão éramos os únicos que ela deixava ficar no quarto, mas meus avós não
permitiram. Eu precisava me preparar para o ensino médio. Então minha rotina consistia em vê-
la antes da aula e voltar correndo para casa, para ficar de olho nela. Eu pensava que assim
poderia ajudá-la, mas, no único dia em que me atrasei devido a uma prova, ela tentou se matar
com remédios.
Tento imaginar o que deixou a Boneca-Russa nesse estado.
Quem.
— Quer conversar sobre o que a deixou assim?
Com a minha mãe, fui eu quem gritou para os funcionários ligarem para a emergência, fui eu
quem entrou na ambulância a caminho do hospital. Fui eu quem segurou na mão dela até que os
médicos levassem a maca para a UTI. Fui eu quem ficou sozinho naquela ala enquanto meu
irmão, meu pai e meus avós não chegavam. Fui eu quem sentiu a derrota e a decepção de falhar
penetrar cada célula de quem eu sou. Dor, culpa e fracasso se infiltrando em cada centímetro dos
meus ossos, enquanto todo mundo se perguntava o que aquele garoto rico estava fazendo sozinho
naquele Pronto-Socorro.
A bailarina se levanta depressa.
— Desculpe, senhor. — Mantém a cabeça baixa, dando passos para trás. — Juro que isso
nunca aconteceu antes.
Também fico em pé.
— Onde quer ir?
— Vou pedir para o meu Dono vir me buscar e...
Ela tenta dar outro passo e eu a agarro com toda a esperança que me resta.
— Eu não te dei permissão para ir embora.
Encara-me com os lábios trêmulos enquanto procura as palavras certas.
— E-eu não estou em condições de fazer companhia ao senhor.
Por que ela está me chamando assim novamente? Não tínhamos passado dessa fase?
— Mas isso quem decide sou eu, não?
Tenta se soltar, sem conseguir esconder a irritação latente.
— O senhor disse que eu poderia ir quando quisesse.
Penso em obedecer, sim, porém, como posso ouvir sua súplica? Parece terrível obrigá-la a
ficar aqui, mas seria ainda pior acatar sua decisão. Será que ela mora com o seu Dono como
Scarlet com George? Ou será que ele apenas vai visitá-la? Todas as opções que envolvem
arrancá-la do meu campo de visão parecem péssimas.
Minha mãe não morreu naquele dia. Na verdade, depois dele, ela teve uma melhora súbita,
assim como em um câncer terminal. Por algumas semanas, ela foi a mulher que meu pai e o
mundo inteiro se apaixonou. Ela me mostrou que estava bem, me incentivou a relaxar já que,
dentre todas as pessoas no mundo, era a única que realmente me via.
Em um domingo lindo, mamãe sugeriu que convidássemos os x-herdeiros para jogar
videogame, em casa. Ela preparou tudo para que eu baixasse a guarda. Fez eu prometer que iria
brincar a tarde toda, assim não poderia suspeitar que ela estaria, finalmente, se matando no andar
de cima.
Não vou baixar a guarda outra vez.
— Acho que mudei de ideia. — Consigo reagir.
— Por que seus olhos estão cheios de lágrimas, Damon? — Soa quase sem forças.
Mamãe pediu que eu a deixasse em paz com seus monstros, naquele dia, e a dor a devorou.
O mesmo monstro que se alimenta da bailarina bem na minha frente. Não quero insistir e deixá-
la mais tensa e nervosa, mas não vou cometer o mesmo erro.
A angústia dessa constatação abre um buraco em meu peito maior e maior, ocupando o
espaço que deveria ser dos meus pulmões e me deixando com a mesma falta de ar que me
acompanhou por anos.
— Não vou deixá-la ir. — Assumo de uma vez.
— Eu não quero ficar.
— Tudo bem. — Abraço-a a força. Seu corpo enrijece quando colidimos e demora alguns
segundos para voltar a respirar, desconfortável. Fecho os olhos e me concentro em sentir seu
coração bater forte contra o meu. — Vou cuidar de você.
— Damon! — sua voz sai chorosa. — Vou ligar para o meu Dono se você não me deixar ir.
— Põe as mãos no meu peito, tentando me empurrar, em vão. — Você está me assustando! —
Soluça alto, quebrando o meu coração.
Sua frase é como um golpe, desses que esvai toda a força e embaralha a mente inteira. Não
entendo, porque cai com tanta força e me abala tão profundamente que quem continua é meu
inconsciente embaralhado em seus traumas.
Não vou deixá-la ir a lugar nenhum, não enquanto não tiver o máximo de informações sobre
onde ela mora e um vínculo com ela. Mas a bailarina não entende. Empurra-me e me encara
como se eu fosse um inimigo, afrontosa e raivosa, determinada. Nossos olhares se cruzam outra
vez, e acontece de novo, de o ar ao redor ficar rarefeito, pesado de tanta emoção.
Quebra o contato, virando o rosto. Temendo perder a batalha, recorro à única arma que me
dá vantagem. Levo minhas mãos até sua face, obrigando-a a manter contato fixo e ser drogada
pela mesma química que me faz enxergar nela o retrato do meu passado.
Ela não tem forças para lutar contra, e, de modo a convencê-la, acaricio seu rosto.
— Me deixe cuidar de você, linda bailarina. — Suplico. — Não posso deixá-la ir embora
assim. Não me peça para ir outra vez.
Cuidar de você é a única maneira de consertar a minha própria alma quebrada.
De repente, a bailarina é uma última chance de fazer algo bom.
Imerjo nas sensações que escorar na sua fragilidade me proporciona, certificando-me do seu
calor.
E então ela faz de novo.
O semblante de uma superfície insondável, inóspita e revoltada desaparece do rosto dela,
prestes a me afogar com mais uma das suas ondas, dessas explosões que até os dentes se
chocam.
Despeja em mim todas as emoções que a afogam, contando com isso para me fazer buscar o
fôlego.
— Por que… — indago, sem voz, a beira-mar, entre os seus lábios. A bailarina não tenta me
empurrar, apenas abaixa a cabeça. — Por que faz isso?
Encaro-a, completamente consternado pelas atitudes imprevisíveis da Boneca quebrada.
— Foi seu Dono quem te ensinou a agir assim? — Seus lábios estão roxos e seu queixo
treme de medo, mas ela não responde. — Me responda.
Seus olhos se arregalam.
— Ah, sim. É. É ele.
— Não precisa mais fazer isso, me beijar por medo. — Ela arregala os olhos, confusa.
Ela puxa suas mãos, mantendo-as contra o corpo.
— Por quê? — Abraça os próprios braços, desconfiada. — Vai me deixar ir embora?
Faço que não. Preciso que ela entenda.
— Boneca, me deixa explicar…
— Você não entende, Damon! Eu sou comprometida!
Esfrego o rosto com agonia.
— Isso não importa!
— Para ele sim! — Grita, voltando a chorar mais, de um jeito que me faz tremer. — Sou eu
quem vai lidar com as consequências, ok? — Diz, completamente desestabilizada. — Eu só
quero voltar para casa!
É como uma deixa que eu agarro.
— Meu pai era abusivo, ele abandonou minha mãe na própria dor, e eu nunca o perdoei por
isso. Ela também era uma Boneca. — Solto com a voz trêmula e ela arregala os olhos da minha
direção. — Nunca me perdoei por fazer o mesmo, uma única vez. — Revelo o que nunca admiti
para ninguém, com lágrimas preenchendo a linha da água. — Como eu poderia deixar você
assim, tão machucada, e fingir que não é problema meu?
— Você é doente. — Ri, com fúria. — Eu não sou problema seu.
Esse timbre me irrita também.
— É enquanto eu quiser que seja.
Arregala os olhos, recuando.
— Damon…
Também suspiro, porque entendo o que está acontecendo.
— Ao mesmo tempo, se eu te mantenho em cárcere, ignorando sua vontade e a coagindo,
estou imitando-o. — ela balança a cabeça, perdida. — Não peça para ir embora outra vez. —
Tiro outra mecha de cabelo que cai na frente dos seus olhos, escondendo a selvageria marinha
que me encanta tanto, escuro como o oceano a meia-noite. — Me deixar ajudá-la, irá me ajudar
também. É só um final de semana, o que pode acontecer?
VÉSPERA DE NATAL
O choro da Boneca é abafado por um riso que denota escárnio quando ela indaga:
— Posso ir ao banheiro, pelo menos? — Não consegue esconder o tom genioso por trás da
fachada submissa.
Não sei o porquê adoro tanto essa sensação de poder.
— Pode, mas não demore.
Ela não consegue esconder o olhar de ódio antes de me dar as costas e, depois de tê-la visto
chorar daquele jeito, ver essa mulher empinar o nariz em passos apressados pelo corredor me faz
sorrir como se eu tivesse vencido as Olimpíadas.
— Precisa de ajuda para encontrar? — ela faz um gesto de não com as mãos, abrindo porta
em porta.
Acompanho sua silhueta marcada dentro do vestido estruturado e o menear do quadril de um
lado para o outro em passos desfilados que fazem seus saltos tilintarem contra o piso, tão preso
nos movimentos do seu corpo que, quando me fita por trás com um sorriso atrevido de quem
encontrou a porta certa sozinha, prendo o ar dentro dos pulmões, sentindo cada célula endurecer.
Deveria me culpar por achá-la tão sexy, principalmente quando a Boneca não faz o mínimo
esforço para me seduzir. Ela odiaria descobrir que isso só a torna ainda mais deliciosa.
A minha razão tenta ganhar espaço entre a química que inunda meu cérebro e me deixa
ainda mais louco por esse oceano de mistérios. Ela deixou bem claro que não quer estar aqui.
Isso deveria me parar, mas continuo nadando de braçada.
A sensação é de estar afundando.
Vem a minha mente a figura dela me encarando com seus olhos azuis tempestuosos,
violentos como ondas de um mar revoltado com o vendaval que se arma acima de si, levando
tudo consigo.
Estou mergulhando na sua existência e não quero emergir à superfície. Digo a mim mesmo
que posso nadar contra a correnteza, só não quero. Não quando ainda sinto o gosto do seu beijo,
vejo o seu recuo constante, assim como as águas profundas de um oceano ficariam revoltas por
serem evocadas a emergir à superfície.
O que a bailarina esconde de tão perigoso bem no fundo?
Penso no bem dela. O lugar de uma dançarina como ela não é se prostituindo para homens
ricos, escondida atrás de um Dono. Ela é linda demais para fazer espetáculos privados, o mundo
deveria ver a sua luz.
Seria egoísmo meu fazer do mistério dela passatempo, mas seria um ato de humanidade
ajudá-la a se encontrar. E, se isso responder às inúmeras perguntas da minha mente obcecada,
que mal há?
— Pronto. — Ela diz, fechando a porta e se aproximando. — O que planejou para nós?
Algo nela mudou.
Seus cabelos lisos continuam iguais no charme como caem pelo seu rosto, e ela limpou a
maquiagem borrada, mas a linha da água continua mais escura, entregando um quê dramático
que combina tão bem com o seu rosto. Não é só angelical, é divina, com uma beleza única que
me faz vasculhar toda a minha mente em busca de um adjetivo tão perfeito quanto ela.
Não posso evitar perder o ar toda vez que ela respira.
Também não há sinal de tristeza no seu rosto. Não sei como ela escondeu tão bem o brilho
dos olhos e o nariz avermelhado, porém a forma como me olha é receptiva, viva e prestativa,
bem diferente da maneira habitual.
— Você está bem? — franzo o cenho.
Ela sorri e eu só entendo que há algo errado porque ela faz uma tentativa de releve com o
salto.
— Estou ótima.
Desvia rapidamente o olhar para a mesa antes de se aproximar o bastante para enroscar seus
braços nos meus, como se me pedisse para guiá-la ao que quer que eu deseje.
Pobre dançarina, não faz ideia do quão arriscado é brincar assim comigo.
Nessa distância, no entanto, sou eu o maior prejudicado. O seu cabelo é perfumado com um
doce que alastraria facilmente pelo quarto, lençóis e travesseiros, do tipo que te deixa a semana
toda preso nas memórias do que aconteceu na sua cama. Mas não só no cabelo. À medida que me
aproximo do seu pescoço com a coleira de pérolas, sinto um cheiro... excitante.
— Qual é o perfume que você usa?
Ela dá de ombros, move os pés e sorri com uma mordidinha nos lábios.
— Depois te mostro.
Concordo, feliz por vê-la mais empolgada com o nosso final de semana. Faço um
movimento para esticar o braço a fim de ver a hora e ela põe a mão por cima, como se pedisse
para eu não expor o meu relógio. Então desço as mãos até o bolso para pegar o celular e ver a
hora, sem a menor intenção de me deparar com a seguinte mensagem:
Cherrie: Como estão as coisas? À propósito, a posição favorita dela é cachorrinho. Sim, eu
penso em tudo, me agradeça depois. Espero que esteja aproveitando com a bailarina, use-a como
se fosse a última vez.
Europa Young.
Meu coração erra as batidas.
— Mas que porr...
— Oi? — A Boneca fita-me com os olhos atentos em uma expressão preocupada.
Basta bater os olhos nela que eu esqueço completamente do resto do mundo. De repente
nada mais importa senão a mulher na minha frente, silenciando todos os pensamentos que
deveriam me alertar, como o fato dela mexer os pés incontrolavelmente, demonstrando
desconforto pela interação.
Não consigo reagir, afastá-la ou fazer qualquer outra coisa que não envolva acariciar suas
bochechas com meu polegar, como se pudesse entender pelos detalhes do seu rosto a
complexidade da sua personalidade.
— Você está diferente.
Ela sobe as mãos até meus bíceps, abraçando-os. Não sei em que momento ficamos tão
próximos, porém agora nossos lábios estão a um triz de se tocar, abafando toda a atmosfera ao
nosso redor.
— Quero reparar a situação, te mostrar que eu não sou o que você viu. — Explica com o seu
sotaque carregado, rouco e sexy, me fazendo sentir seu hálito quente em meus lábios molhados.
— Sou muito melhor.
Abaixo os olhos para o seu decote e os subo rapidamente para o seu rosto, com o arrepio
percorrendo minha dorsal. É impossível não sentir meu corpo reagir quando meus olhos se
cruzam com os tons de azul-escuro e resquícios claros das íris dela. É como uma droga e, eu,
feito um usuário que acabou de descobrir os efeitos, decido ignorar os sinais.
Esse é o primeiro erro da noite.
— Vamos jantar. — Convido, antes que ela abaixe o rosto e perceba o volume na minha
calça.
A mesa é de doze lugares e, nos segundos em que me aproximo, me arrependo de não ter
escolhido logo uma de dois, temendo que ela se afaste. Porém eu me esqueci que ao meu lado
está outra bailarina, e essa, de todos os lugares, escolhe o ao lado do meu.
Ela se ajeita no assento, apoiando o braço no meu ombro de um modo que posso sentir sua
respiração quente alcançar a pele do meu pescoço.
Sorrio para ela enquanto aperto o botão que faz um dos funcionários nos servir e, com uma
postura treinada, a bailarina pede uma tigela com a sopa de beterrabas. A princípio, penso que é
alguma mania russa sobre como tomar sopa, mas não é.
Ela come como uma gata.
Encaro-a tomar a sopa com lambidinhas, completamente consternado pelo que estou vendo
e, por um segundo antes de voltar a fingir, ela me devolve um olhar que expõe tristeza e
humilhação. Sinto uma agonia profunda, mas não quero demonstrar, então permaneço impassível
diante da cena. Nossos olhares se entrelaçam em uma espécie de elo invisível, que une nossas
dores em uma conexão emocional poderosa. E, em um gesto de demonstrar gratidão por ela ter
exposto a mim algo tão íntimo, pego na sua mão e deposito um terno beijo, selando nosso acordo
silencioso de cumplicidade.
— Posso perguntar o motivo?
Ela sobe a cabeça, limpando os lábios com a língua.
— É o acordo que fiz com o meu Dono.
Só estou tentando não perder a cabeça enquanto não tenho nomes.
— Ele não está aqui, agora. — Devolvo, irritado com o canalha. — Não precisa fazer. Pode
comer como uma pessoa.
Ela sorri com uma frieza, passando o guardanapo na boca.
— Você não entende. — Vislumbro o brilho molhado em seus olhos. — Ele sempre está —
aponta para a própria cabeça — aqui.
Há tanta melancolia nas suas palavras que soam com um golpe que me faz perder o ar e
gemer de dor. Então abaixa o olhar e morde os lábios como se estivesse martirizando-se pela
exposição. Analisa o meu vinho e sorri com malícia, se recompondo.
— Mas, já que você é um Jogador rebelde e quebra as Regras, aceito um pouco de vinho.
Segundo erro da noite. Encho sua taça.
— A propósito, sou um Jogador exemplar, não um rebelde.
Ela gargalha. É tão quente que me enlouquece de vontade de arrancar a qualquer custo toda
a escuridão que pincela seus azuis até vê-los intensos e alegres como as águas do Caribe.
Imaginar o calor do seu corpo é excitante demais.
— Por isso é importante para o Jogo? — Ela parece se lembrar.
— Quem te disse isso? — investigo, levando o garfo à boca.
— Meu Dono.
Endireito a coluna. Então ele me conhece? Será que eu o conheço? Será que ele é um
Jogador ou uma Peça?
— O que mais ele te disse? — indago, cortando a carne.
Balança a cabeça exageradamente, alegre pelo álcool que acabou de começar a beber.
— Só isso. E você está fazendo perguntas demais. — Corrige, franzindo as sobrancelhas de
um modo que eu levanto a mão em rendição. — Você prometeu que não faria perguntas!
É a minha vez de rir com a bronca. Definitivamente ela é russa.
O restante do jantar ocorre em um agradável silêncio que é cortado apenas pelos meus
comentários sobre as comidas, do tipo “prove essas batatas” ou “está uma delícia esse assado.”
— São especialmente raras essas trufas brancas — comento, também com a boca cheia. —
Não existe a possibilidade de produzi-las. Precisam ser caçadas em meio às árvores específicas
em determinada época do ano.
Ela só bebe a sopa de beterrabas, como se fosse a coisa mais valiosa da mesa em vez do
caviar, wagyu e trufas brancas.
— A minha avó fazia Borscht para mim. — Explica, bebericando a taça de vinho com a
língua. — Tem a ver com a época da guerra, o nosso vilarejo era muito pobre e ela tinha que se
virar com o pouco que conseguia. Beterrabas.
Balanço a cabeça enquanto penso em como a guerra foi lucrativa. Para os Duncan porque,
com a Europa arrasada pela guerra, nos tornamos líderes na distribuição mundial de
commodities. Além disso, os Harding, Lloret, Vannozza e Isakai foram os que mais cresceram,
elevando o valor de todo o nosso Tabuleiro.
Tirando essas conversas rápidas, no geral, não comemos muito. Ela porque provavelmente
come pouco, e eu porque gostaria de me saciar com outra coisa.
Mas tudo o que me resta é ficar passando vontade toda vez que ela balança os cabelos, passa
a língua nos lábios e respira perto de mim. Francamente, já aceitei esse fato, posso conviver com
a distância desde que a bailarina esteja no meu campo de visão. Posso me divertir com isso.
— Podemos assistir a um filme. — Sugiro, tentando pensar em uma forma de segurá-la
comigo. — Algum filme de Natal que goste?
Ela fica em pé, mas não consegue esconder a inquietação. Não consegue me olhar nos olhos,
observando todo o redor.
— Eu não assisto.
Meus ombros caem, me levantando também.
— Não tem televisão?
— Eu não assisto.
Caio no erro de perguntar:
— Por quê?
Mexe os pés.
— Diminui a conexão com meu Dono.
Começo a andar na tentativa de esconder o ódio que sinto desse filho da puta a cada frase
que sai da boca dela sobre ele. Ela, por sorte, não percebe e continua:
— Tenho uma ideia do que a gente pode fazer... — sorri com uma malícia que desconheço.
— Eu danço para você, e você me dá uma nota.
Não consigo esconder o sorriso com a proposta, aceitando-a no mesmo segundo, com as
batidas do meu coração disparando contra o tórax.
— Entendo de ballet. — Conto vantagem, sem tirar os olhos do corpo dela. — Vou ser bem
técnico.
Ela balança a cabeça, negando a minha provocação com o charme presente em cada
respiração que sai da sua boca entreaberta.
— Não ballet. — Faz um gesto com as mãos, em uma posição que seduz cada centímetro de
mim. — Vou dançar algo que você nunca viu.
E que nunca vou esquecer.
Sinto um frio na barriga impulsionar o sorriso que não sai do meu rosto, com a certeza de
que nunca foi tão largo e doloroso em minhas bochechas.
— Quem escolhe a música? — minha voz sai rouca.
Ela põe a mão na cintura e, com um olhar magnetizante, sussurra:
— O presente é seu. — Empurra-me para o sofá. Sento-me com a boca aberta pela forma
com ela sorri para mim. — Você escolhe.
Leva menos de dois minutos para eu colocar Swim e conectar com o sistema de som da casa.
Ela começa devagar, como se estivesse sentindo a batida antes de explorá-la com
profundidade. Ela mexe mais os ombros e os braços em movimentos lentos e uma graça
envolvente, respondendo a cada nota como se conversasse com a letra.
Aposto que agora você sente isso, amor
Especialmente porque nos conhecemos há apenas um dia
Meus olhos seguem cada curva do seu corpo com total devoção. A cada balanço de quadril
ou menear de cintura, ela me afunda um pouco mais nesse sofá, e eu perco o fôlego, com a
sensação de que essa mulher está me arrastando para uma correnteza.
Eu estou nadando, eu estou nadando, eu estou nadando, sim.
Então ela me fita, de costas, por cima dos ombros, com um sorriso cheio de maldade, e
murmura algo que eu não compreendo no primeiro momento.
Até ela começar a tirar o vestido.
— Não acredito que vai fazer isso comigo, garota. — Meu coração dispara tão rápido que
coloco uma mão em cima do meu pau duro e o aperto.
— Assim consigo me mover melhor. — Leio em seus lábios.
Estou completamente sem ar.
A Boneca-russa é sublime.
Ela veste um corset de renda rosa, estruturado, mas seu corpo fica ainda mais delineado por
causa da terceira peça, que cobre sua cintura com uma seda azul-acinzentada, transparente.
Os babados abaixo dos seios dão ainda mais sustentação ao pequeno volume dela,
destacando a região. Fico com o olhar preso ao convite que a bailarina faz, apoiando um dos
braços para trás, na estante, deslizando os dedos pelo relevo de um modo que minha boca fica
cheia d’água de vontade de ter um dos seus mamilos para brincar com a língua.
Quase sinto o sabor de endurecê-los com meus lábios.
Quero me levantar, ir até ela e finalmente saciar tudo o que me corrompe desde a primeira
vez que bati os olhos nela, mas se eu partir para cima dela, será que a bailarina vai impor a
barreira de sempre?
Sei que ela está fazendo isso por mim e não por ela, mas se eu a tocar e ela demonstrar
qualquer reação negativa, não vou conseguir continuar. Não há barreiras agora, ela está mais
livre, do que jamais vi, caminhando de um lado para o outro enquanto balança os cabelos longos
e sorri com um brilho que a torna fascinante.
Vou deixar que ela conduza como desejar.
Ela domina cada centímetro do seu corpo com um magnetismo que me aprisiona,
dominando os meus pensamentos. Meu sangue bombeia tão rápido que meu pau dói dentro da
calça e brigo contra os meus próprios instintos para manter a compostura.
A bailarina começa mexer o quadril, levando meu olhar para um passeio exploratório por
seu corpo, da cintura para baixo, me deixando ainda mais excitado com os detalhes perfeitos do
seu corpo esculpido, como as suas pernas, lindíssimas, longas e com músculos torneados. A sua
bunda. Deus.
— 10, 100, 1000, 10000... — solto, sem conseguir parar de me contorcer de tesão no
assento.
Ela me fita por cima do ombro com um sorriso safado, inclinando a bunda para trás
enquanto rebola, em uma posição que me permite ver o formato da boceta dentro da calcinha
pequena. Minha respiração falha só de imaginar como seria gostoso percorrer os dedos pela
borda da costura, adentrar a região molhada e mergulhar para dentro dela.
Imagino que esteja pegando fogo.
O tesão fala mais alto. Se ela está fazendo isso comigo, quero que ela veja o estado em que
está me deixando. Quero que saiba como estou duro e abro o zíper da minha calça, libertando
meu membro. Coloco a mão nele, acariciando a cabeça antes de deslizar até a base e aplicar uma
pressão que me faz gemer.
Ela não parece surpresa, ao contrário, é profissional e não para de dançar para olhar o meu
pau, como se já estivesse acostumada. Sinto um ódio só de imaginar para quantos homens ela já
fez esse número e sou inundado por um sentimento doentio de posse. Quero-a só para mim.
Há um enfeite de pérolas na sua cintura, combinando com a gargantilha que usa nesse
momento. Sou incapaz de reparar em qualquer outro detalhe, pois seus movimentos ditam os
meus.
Se ela vira de costas e rebola a bunda com a calcinha de lacinhos, meu vai e vem é rápido,
mas se ela ergue os braços e balança o seu corpo lentamente, levando meus olhos por ele, então
faço bem devagar, para não gozar fantasiando no quão gostoso seria tê-la nua, todinha para eu
passar a mão e a língua.
— Ah, gostosa — escapa da minha boca.
A cada balanço de quadril ou menear de cintura, ela me deixa mais duro, e eu espalho as
gotas de tesão pela glande, molhando todo o meu prepúcio antes de voltar com mais pressão nos
movimentos. Então a bailarina faz o impensável.
Ela começa a tirar a lingerie.
A primeira peça a deixar seu corpo é a calcinha. A bailarina vira de costas e desamarra os
lacinhos laterais, rebolando até que a peça caia. O meu pau reage ao seu corpo gostoso, fazendo-
me intensificar a velocidade só de imaginar sua boceta aberta, pedindo para eu foder.
— Hmm… — mordo os lábios, com o barulho da punheta ficando mais agudo.
Ela tira o corset, ficando só com a terceira peça, a gargantilha e o cinto de pérolas. Sua
auréola é marrom-clara e o bico tem um tamanho delicioso.
— Ah, ah — gemo, perdendo completamente o controle do meu próprio corpo.
Meu pau está todo lambuzado das gotas de pré-gozo que se tornam cada vez mais
abundantes à medida que sinto minhas bolas endurecerem de tanto tesão, e os espasmos
involuntários me levam para outra frequência.
Estou contorcendo inteiro nesse sofá, tensionando involuntariamente meu corpo a cada
arrepio, quando ela para de dançar, no chão. Penso que ela vai se masturbar também e a ideia de
fazermos isso juntos me faz aliviar a pressão com que seguro meu membro, esperando-a.
Então ela vem até mim.
De joelhos, rasteja para o meio das minhas pernas, encarando-me com inocência enquanto
põe as mãos na minha coxa e molha os lábios para colocar a boca gostosa no meu pau. Ela
começa com um beijo. Beija a glande com os lábios enquanto abre a boca devagar, envolvendo a
cabeça do meu pau com a língua, aprofundando o oral, engolindo-me pouco a pouco,
preenchendo-me com o calor da sua saliva e gosto de céu.
Tudo isso enquanto me encara com os olhos azuis.
Estou prendendo o ar enquanto meu corpo inteiro concentra o sangue no meu pau,
segurando a tensão que cresce a cada centímetro que ela engole de mim até chegar na garganta e
seus olhos brilharem com as lágrimas do engasgo, mas ela não tira. Em vez disso, começa a
mexer a cabeça com movimentos lentos de vai e vem, da ponta até a base.
O prazer é tão intenso que não consigo segurar a respiração e solto com gemido alto,
entrecortado e abafado, agudo ao ponto de fazer toda pressão que eu concentrava ser liberada em
um jato que me faz estremecer dos pés à cabeça, contorcendo-me com o orgasmo forte. Reviro
os olhos com o pico de adrenalina e agarro nos cabelos dela enquanto choramingo de tesão.
Fito-a enquanto lavo o rosto dela com a minha porra.
Não aguentei um minuto do melhor boquete da minha vida.
— Desculpa — solto no último gemido, com a prazer se dissipando e dando lugar a
vergonha. — Isso nunca aconteceu antes, é que você é muito gostosa. — Desvio o olhar dela
para o ambiente, a procura de algo que eu possa usar para limpar seu lindo rosto e compensar a
minha ridícula ejaculação precoce.
Minha vista está tão turva que eu quase não percebo o detalhe vermelho que começa onde
ela estava dançando e faz um rastro pelo caminho, até onde está, encaixada nas minhas pernas.
Passos os olhos pelo seu corpo nu à procura do sangue, e minha atenção vai na única coisa
que ainda veste, os saltos.
O seu pé está ensanguentado.
A minha consciência me golpeia só de pensar em quão desconfortável ela estava com esse
show, ao ponto de se ferir desse jeito.
Perdi qualquer chance que eu não tinha com ela.
Desabotoo a camisa, tiro-a e a amasso com as mãos, para passar o tecido macio do algodão
no seu rosto e ela não precise se levantar.
— Como você está? — Não sei como reagir. — Não está sentindo dor?
Ela franze o cenho antes de lembrar e fitar os próprios pés. Fica quase um minuto encarando
o machucado em silencio. Quando me encara de novo, seu semblante é outro. Os músculos da
face parecem quase retorcidos, e seu queixo treme sozinho.
— Damon! — Grita horrorizada, com uma voz de pânico que corta o ar. — Esqueceu das
Regras?
A Boneca Quebrada não pode ver sangue.
PRIMEIRA CRISE
Continuo olhando para a porta depois que ela foi trancada, sem reação alguma. Quando as
preocupações invadem os meus pensamentos a respeito do conteúdo da caixa, apenas cantarolo
baixo, me acalmando.
— Tic-tac, tic-tac.
E se for um exposed? Meu Dono sempre me disse que se alguém descobrisse o que fiz, eu
iria para a cadeia e nem mesmo alguém importante como ele poderia me proteger. Não consigo
pensar em outro motivo sério o bastante para haver meu nome na caixa.
— Tic-tac, tic-tac.
Começo a andar em círculos pelo quarto, cruzando os braços para não sentir a intensidade
das mãos trêmulas. Damon teria coragem de ligar para a polícia e me denunciar? Quer dizer,
quem se arriscaria para defender uma criminosa? Ele parecia diferente, mas mudou comigo
depois que viu o presente.
As lágrimas brotam dos meus olhos.
— Tic-tac, tic-tac.
Meu Dono disse que não faria nada para me proteger se eu abrisse a boca, mas eu nem sei o
que fiz. Isso é o pior. Estou exausta de tanto tentar me lembrar e não chegar a lugar nenhum,
embora não reste muitas opções envolvendo sangue. Já tive muitas crises com a ideia de que
machuquei alguém.
— Tic-tac, tic-tac, tic-tac, tic-tac. — Pressiono as duas mãos contra a cabeça, tentando me
concentrar com o barulho abafado.
Encaro a parede a minha frente, com as extensas portas e janelas francesas que dão para a
varanda. Ouço a ideia surgir como uma lâmpada na minha mente, de modo que busco a porta,
temendo que o Coroado a tenha ouvido também.
Assim que dou o primeiro passo, minha mente me repreende. Damon ordenou que eu ficasse
no quarto, mas a varanda é parte do quarto, certo?
Destranco a porta cuidadosamente. O vento me impacta tão forte que fecho a porta francesa
antes que ela bata e os vidros estilhacem, desistindo da ideia com a roupa que estou. Procuro pela
minha mala com o olhar, mas ela ficou no outro quarto, então decido ir, na ponta do pé, até o
closet. Gemo de dor a cada passo em ponta alta, mas o curativo não me deixa ver qualquer
resquício de sangue.
O closet está bem vazio, com poucas roupas ocupando os cabides, porém três casacos
chamam a minha atenção. Como amante da moda, sou atraída para o clássico trench coat da
Burberry, bege.
Eu só não esperava que seria justo a roupa com o cheiro de Damon.
Também não é um casaco novo, na verdade, parece muito surrado para um Jogador distinto
como Damon, o que entrega ainda mais charme e autenticidade a peça e ao dono dela.
A peça fica imensa para as minhas proporções, mas é quente. Ainda assim, o frio penetra os
meus ossos, devido aos meus pés descalços. Não está nevando, mas o chão, os móveis externos e
o parapeito estão brancos pela neve, e meus dentes começam a bater imediatamente.
Meus pés congelam antes de eu alcançar o parapeito, anestesiando o dedão sem a unha.
Não quero me jogar daqui de cima, apenas ver se tem policiais vindo me buscar. Se houver,
daí sim eu me jogo.
Eu esperava encontrar tantas coisas dessa vista... Damon não é uma delas.
Ele está ao telefone. Sei que está irritado pela forma como balança os braços, com as veias
saltando das mãos grandes, andando de um lado para o outro enquanto intercala movimentos da
boca com gargalhadas sarcásticas. Ele está com um casaco preto, que vai até os joelhos, por cima
do pijama, de modo que um ar diferente exala da sua postura. É ameaçador.
Desvio o olhar dele para a cama onde passamos a noite. Muita coisa está enuviada em minha
mente, mas lembro da forma como me senti bem, com ele me chamando de Oceano. Volto a
atenção para o homem no andar térreo. O que aconteceu com o Damon que conheci nesse
quarto?
Não consigo ouvir o que ele diz, porque o vento ecoa suas palavras para o lado oposto, mas
consigo entender que é sobre o presente quando um Coroado traz a caixa e ele aponta para o
carro estacionado perto do chafariz congelado.
Daqui de cima, consigo ver o que há na tampa da caixa.
Minha boca seca no instante em que meus olhos batem no vermelho-sangue.
Viro-me de costas, com os olhos marejando e as mãos trêmulas, de modo que limpo as
palmas suadas no casaco dele enquanto engulo o choro. Penso “Não tem porque ter medo,
Damon está no comando.” Então sou dominada pela culpa, deveria estar obediente dentro do
quarto. É isso o que acontece quando sou desobediente.
— Tic-tac, tic-tac, tic-tac, tic-tac.
As Regras existem para proteger. Ecoa a voz do meu dono, me fazendo girar os calcanhares
congelados para dentro em profunda agonia. É inconsciente buscar por Damon uma última vez.
Ele continua com o telefone na mão, intercalando entre falar na ligação e dar ordens a três
Coroados. Articulado e imponente. Fico hipnotizada pela forma como ele transmite poder em sua
postura, igual ao meu Dono, e ainda mais por saber que, de alguma forma, tem a ver comigo.
Ele pode estar me denunciando nesse momento, mas me protegeu do sangue.
Mesmo antes de voltar para o quarto, não estou sentindo frio, ao contrário, o calor se aloja
dentro de mim. Encaro-me no espelho do closet enquanto devolvo o casaco no lugar onde foi
roubado, com meus pés roxos e minhas bochechas coradas.
Elas levam minha atenção para a minha aparência, deixando-me ainda mais ruborizada por
imaginar que ele me viu nessas condições. A maquiagem profissional não saiu direito e eu estou
toda borrada, meus cabelos escuros estão duros, embaraçados e fedidos pelas chuveiradas.
Eu nunca ficaria assim na presença do meu Dono.
Alguém bate na porta, me fazendo voltar correndo para o quarto. É um Coroado com uma
bandeja de café da manhã, com bolo, sucos, frutas cortadas e blini com creme azedo e caviar, um
tipo de panquecas russas.
— O Jogador pediu desculpas por não poder se juntar com a senhorita no brunch, pois está
ocupado. — Procura um lugar para deixar a bandeja. — Mas ele deu a ordem para a senhorita
comer alguma coisa.
Bato os olhos na mesinha de canto onde Damon estava jogando xadrez, e me aproximo para
tirar o tabuleiro com as peças.
— Não toque. — Ordena de um jeito que eu franzo o cenho, sem coragem de discutir com
um Coroado que traz ordens diretas do Damon.
Observo o homem colocar a mesinha na cama e dar as costas. Prestes a tocar a maçaneta,
solicito:
— Poderia trazer minha mala e meu kit de maquiagem que ganhei de presente?
Enquanto o aguardo, não resisto a tentação de comer em pé, indo e voltando até a mesa de
xadrez com os blinis recheados com caviar. Tem um livro de movimentos, cheios de anotações
de Damon, porém sou péssima em ler inglês cursivo, acho que isso se deve ao fato de que não fiz
curso de inglês, aprendi o idioma apenas oralmente com os Jogadores que encontrava à mando
do meu Dono.
O Coroado volta.
— Aqui está. — Recuo rapidamente do Tabuleiro.
Não sou repreendida pelo empregado, apenas para em frente a porta e pergunta:
— Posso ajudar em algo mais?
— Posso tomar banho?
— Só um momento. — Sai e volta com uma confirmação.
Posso fazer o que eu quiser. Assistir televisão. Tomar banho de espuma. Mexer no livro
dele...
Concentro-me no que preciso primeiro. Ficar apresentável. Lavo os cabelos e os seco com o
secador que encontro embaixo da pia do banheiro, e que devia ser da esposa dele pela potência.
Depois, enrolada em uma toalha, escolho uma segunda pele branca com um vestido da MiuMiu
de pedras bordadas sobreposto, combinando com uma coleira de safiras do Sri Lanka, meia-calça
branca e um scarpin de salto baixo da Chanel.
Travo uma batalha interna enquanto defino os próximos passos, porque Damon disse que eu
podia assistir televisão, mas meu Dono não. Se bem que meu Dono sempre deixou claro que
quando estou com os Jogadores, devo fazer a vontade deles. Não sou a Kitty com eles, sou uma
Boneca e Damon deu o comando de que eu podia fazer o que quiser.
Ligo a televisão.
Passo as próximas horas testando as sombras do kit com uma pálpebra colorida enquanto
assisto A dama e o vagabundo, morrendo de saudade das minhas meninas Meldora, Odalisca e
Gulnara a cada frame da Lady. De modo que esqueço completamente os problemas.
Se eu for presa, pelo menos vivi um dos dias mais legais da minha vida.
Até Damon voltar.
Estou finalizando a maquiagem com brilho no canto interno dos olhos e cantarolando a
canção do filme, quando ele fecha a porta e continua estático com a cena. Nada na sua aparência
me faz relacionar ele com o homem que conheci mais cedo. O maxilar travado, as pálpebras
pesando rancor em seus olhos, o cabelo bagunçado... Basta que coloque os olhos em mim e sinto
o peso invisível entre nós.
Um medo irracional domina as minhas células e eu desligo a televisão, desesperada.
— Desculpa!
Balança a cabeça.
— Não sou seu Dono. — Solta como se estivesse com raiva. De mim?
Então desvio a atenção dele para a cama branca, suja com os resquícios das maquiagens.
Uma bagunça. Um frio interno me devasta com pensamentos sobre quão burra e idiota eu sou, de
modo que me levanto em um salto, entendendo o motivo do meu dono nunca me deixar subir na
sua cama, quando estamos juntos.
Eu deveria ter dormido no tapete de Damon.
— Desculpa! — meu timbre sai esganiçado, mas nem isso parece o interessar.
Em vez disso, caminha em direção ao closet.
— Tudo bem, Aleks.
Encolho-me apesar do mal-estar que é ouvir o meu nome, e permaneço de cabeça baixa e
braços em frente ao corpo, com minha postura de bailarina submissa.
Mas ele nem me olha.
— Vou me trocar. — Avisa, do closet, tirando o casaco e o colocando em um cabide
separado.
Fito-o tirar os sapatos que não combinam com o pijama. Será que ele está bravo porque tirei
o meu?
— Não! — junto as mãos em súplicas, em passos vagarosos em direção ao ambiente em que
ele está. — Não tire o seu, eu coloco o meu de volta...
Sua voz me corta.
— Você vai ter que voltar hoje.
Perco a voz e a postura, deixando meu ombro cair gradualmente à medida que assimilo.
Damon age como se eu não estivesse parada na sua frente enquanto todo o meu brilho
desaparece.
— Meu Dono pediu? — minha voz quase nem sai.
Ele parece decepcionado consigo mesmo.
— Eu tentei, mas um passo em falso e eu nunca mais te vejo. — Sinto um frio na barriga
estranho com sua frase, parece mais sombria do que é.
— Eu vou para a cadeia? — meu timbre sai choroso.
— Por que iria?
Surge uma ponta de esperança.
— Você não viu no presente?
Damon não responde. Em vez disso, começa a tirar o pijama como se estivesse caindo na
real sobre um sonho que ainda não viveu. Meu primeiro impulso é o de sair da frente dele, então
o vejo sem camisa e sou incapaz de mover um passo.
Damon tem gomos no abdômen trincado, um peitoral lindíssimo, braços desenhados e
ombros largos e definidos. Meu Dono também tem um físico de tirar o fôlego, mas não posso
negar que a diferença de idade fez Damon disparar na frente. Eles estão competindo pelo que
mesmo?
Caio em mim e saio do closet antes de ver Damon só de cueca.
Talvez seja bom voltar para casa, para meus cachorros, para a minha rotina e para o meu
Dono. Quem sabe assim minha cabeça pare de girar com esses pensamentos esquisitos.
Ainda assim...
— Posso perguntar que horas vou voltar para o meu Dono? — Meu timbre é baixo, assim
que ele surge, com calças pretas e uma parte de cima justa de manga longa.
Suspira lentamente e, pela primeira vez desde que passou pela porta, me encara e me vê.
Sorri fracamente, ocupando o meu lado no colchão, colocando a mão em cima das minhas, com
uma proximidade que me faz querer me afastar, entretanto, não consigo nem me mover.
Nossos olhares se entrelaçam em uma espécie de elo invisível que une nossas dores em uma
conexão emocional poderosa.
— Como pode ser tão leal a alguém que só te faz mal?
Ele não está me julgando, parece realmente interessado, então sou sincera.
— Ele me salvou de formas que ninguém é capaz de compreender. — Coloco o cabelo atrás
da orelha. — Devo isso a ele.
— Você o ama mesmo, ou só sente que é obrigada a retribuir? — pergunta, traçando os
dedos pelos detalhes das minhas mãos. — Seu Dono.
Demoro alguns segundos para fazer que sim com a cabeça, como se algo dentro de mim se
recusasse a pensar no assunto.
— Eu o amo, mais que tudo. — Minha voz quase não sai.
— E é só isso? — pergunta, com um riso fraco cortando o ar ao nosso redor. — Dor e essa
necessidade de gratidão?
Dou de ombros, pois esse assunto me deixa à flor da pele: ansiosa, confusa, excitada,
esperançosa e com medo. Principalmente, cansada de sentir tanto toda vez que meus olhos se
cruzam com os de Damon e meu cérebro grita sobre o quanto é errado o que está acontecendo
comigo.
— Em 99% do tempo.
— Acha justo viver o inferno por um minuto no céu?
Sinto-o mais perto e isso me deixa nervosa, porque, quanto mais próximo, mais inevitável é
reparar no desenho da sua boca ou em qualquer outro traço do seu rosto.
— Quando acontecer com você, me conta.
Abaixa a cabeça com um sorriso no canto.
— Acho que isso não vai acontecer nunca. — murmura, com o olhar preso ao meu. —
Tento, tento, tento, mas é como se eu ficasse sempre à deriva.
Sei o que responder, só hesito um pouco.
— Talvez devesse parar de tentar tanto. — Um sorriso alivia o semblante duro à medida que
compreende onde quero chegar.
Entreabre os lábios como se tivesse uma resposta na ponta da língua, porém tudo o que sai
da sua boca é um obrigado.
— Mais algum conselho?
Um pensamento me faz sorrir com a ideia de retribuir a forma como me tratou.
— Você consegue mais algumas horas comigo?
Ele faz que sim.
— Por quê?
Nem eu sei o que estou fazendo quando estico o meu braço esquerdo e toco nas costas de
Damon. Sinto seu músculo contrair com o toque da minha palma, o calor do seu corpo contra
minhas palmas frias. Deslizo até sua escápula, e, com a mão direita, alcanço seu peito, rijo e
delineado, elevando a região.
Estamos muito próximos agora.
— Precisa segurar sempre essa postura. —Faz tempo que não toco em um corpo masculino,
são sempre eles que me tocam. — Está vendo?
Busca o seu reflexo no vidro das portas francesas.
— O que está fazendo? — me olha confuso.
— Vou te ensinar balé, Damon. Se encontrar a beleza dentro de si, não a buscará no amor de
outras pessoas.
BONECA RUSSA
A bailarina costura a ponta das minhas sapatilhas novas como se estivesse retribuindo o
presente.
Não que o clima ao nosso redor não esteja com o gosto terrível de despedida, só estamos
fingindo que os problemas ficam do lado de fora dessa sala de espelhos. Aqui, somos apenas
duas pessoas que encontraram no ballet algum motivo para continuar tentando.
Até eu descobrir quem é o Dono dela.
Cartier diz que isso é impossível. São 150 Jogadores, 50 Peças. O único que sabe quantas
Bonecas e qual Sangue em Ascensão tem, é o Rei, e vossa Majestade deixou claro que Aleks não
está no catálogo, então é melhor que ele não fique sabendo.
Já fiz todas as ligações que podia, só me resta esperar que meus pontos voltem com
respostas.
Quando aceitei esse convite de presente, aceitei os termos com sangue do envelope.
Esperava ter respostas que sanassem minha obsessão, não voltar para a casa ainda mais
envolvido. Agora, enquanto ela ziguezagueia a agulha com linhas entre os dedos ágeis,
explicando que somos de escolas diferentes e me orientando a buscar uma com método Royal,
tento encontrar em uma maneira de aprisioná-la a mim.
— E se eu quiser aprender ballet russo? — contraponho, sem conseguir tirar os olhos dela.
Se nas primeiras horas comigo ela só ficava em silêncio, agora é como uma delicada flor
desabrochando diante dos meus olhos. É a coisa mais graciosa desse mundo a forma como se
move, respira, pisca e existe. Consigo ver nos seus olhos o quanto ama falar sobre esse assunto, e
acredito que ela consegue ver nos meus o quanto adoro finalmente ouvi-la falar sobre qualquer
coisa, quanto mais ballet.
— Vaganova[10] busca uma técnica sólida e uma execução precisa, o Royal valoriza a
expressão artística e a liberdade de movimento. — Para de costurar para me fitar com seus
deslumbrantes olhos azuis-escuros. — Acho que combina mais com a sua personalidade, e você
já aprendeu a base do ballet com o método Royal, então é natural para você.
Desvio a atenção dela para as mensagens no meu celular, aguardando alguma resposta de
Europa Young, em vão. Quem respondeu foi Cherrie, sem entender nada, então não tenho o que
fazer estando em Vermont, por mais que minha mente me dê mil opções por minuto. Volto os
olhos para a bailarina e tudo o que sinto se resume a mesma impotência diante das violências
psicológicas que minha mãe sofria na mão dos Sangue em Ascensão. Estou de mãos atadas.
— Sempre achei que Royal fosse a melhor mesmo. — Brinco com ela, para distraí-la.
A bailarina semicerra as linhas de expressão.
— Então volte para o ballet Royal, consiga outro encontro comigo e vamos ver se eu não
acabo com você.
A língua afiada soa deliciosa, porém detesto a ideia de outro encontro com ela.
A simples ideia de ela sair com outros Jogadores e mostrar a eles tudo o que eu vi, e que
ainda nem toquei, para homens que não vão ter o mesmo cuidado com os cacos da minha boneca
quebrada, me faz lutar contra o instinto de fechar os punhos.
Não é como se eu não entendesse a mente dos outros Jogadores. A bailarina é delicada e
sensível como um cristal. Ela brilha inocência. É o que dizem, algumas coisas são tão lindas que
nascem para serem quebradas. Consigo imaginar o Dono dela cuidando de cada um dos seus
cortes, até que ela esteja pronta para ser estilhaçada por outro Jogador, de novo e de novo.
Vou enlouquecer com a ideia.
Não posso deixar isso acontecer. Eu não desejo que outro homem a toque, nem mesmo que
ponha os olhos na coisa mais linda que já vi. Não me importa se estou enlouquecendo. Eu a
quero e, quando desejo algo tanto assim, não existe outra forma de diminuir o estrago.
— Não quero outra professora — rebato em tom de quem acha a sugestão absurda. — Quero
você.
Faz um movimento com o corpo de “não importa” antes de me olhar por cima dos ombros.
— Isso não é uma opção, Jogador. O final de semana está acabando.
— Você aposta? — Franze o cenho para a minha pergunta.
Meu telefone começa a tocar, cortando nossa disputa. Levanto-me, vou até a janela e atendo
Cartier.
— Já liguei para alguns Jogadores, estou fingindo que é um fetiche meu. — Cartier explica.
— Mas ninguém tem uma Boneca-russa, bailarina com olhos azuis-escuros, para emprestar. Nem
um Jogador conhece outro Jogador que tenha.
Enquanto Cartier fala, assisto a bailarina com adoração.
— Isso porque ela não pertence a um Jogador, e sim a uma Peça Forte. — Lembro, com
pesar. — Vamos ter que...
— Não vou perguntar para nenhuma Peça Forte, Damon. — Deixo que o silêncio fale por
mim. — Não, Damon. Você não pode comprar briga com peixe maior que você. Porque, se isso
acontecer, não é você quem vai ser engolido, é a estranha que você se apaixonou em 24h.
— Então eu simplesmente a deixo ir embora?
Ele suspira ruidosamente.
— Eu sei como se sente, mas somos Sangue em Ascensão, não podemos sair por aí salvando
as pessoas que cruzam o nosso caminho. O Tabuleiro é sangrento, o melhor que podemos fazer é
não deixar o sangue respingar em nós. Desculpe. Se o George souber que você está querendo
roubar a propriedade de outro Jogador, que você morra sozinho. Foi mal.
Desliga antes mesmo que eu responda. Eu entendo o seu posicionamento, mas sei também
que ele está sujo demais com o Sangue das pessoas que tenta ajudar.
Volto e me sento no chão ao lado da bailarina, em um silêncio sério demais para disfarçar.
Ela coloca as sapatilhas no meu colo.
— Pronto, mas não as use ainda. — Ordena com o timbre atencioso. — Dance sempre com
as meias, tudo bem?
A bailarina me observa atentamente com seus olhos azuis adornados combinados com o
collant azul cintilante e a maquiagem quase artística elaborada pelo delineador marcado e a
sombra azul.
É como se todos os problemas evaporassem.
— Como consegue ser tão linda? — indago, sem esconder meu olhar encantado.
Ela busca a parede de espelho a sua frente.
— Quando eu era criança, sempre via uma borboleta no jardim da minha avó. — Começa
observando seus próprios olhos. — Ela era azul cintilante desse jeito.
— Uau.
Abaixa a cabeça, um pouco triste.
— Eu não gostava dessa borboleta. Morria de medo quando abria a janela do meu quarto e lá
estava ela, feito um presságio — sorri consigo. — Mas bastou eu ir embora da Rússia, para sentir
falta dela. Não é engraçado? Sempre desejar aquilo que perdeu?
De alguma forma eu sei que, se deixar a bailarina voltar e eu a perder, essa pergunta vai me
perseguir pelo resto dos meus dias.
— Conseguiu rever a borboleta alguma vez?
— Só nos meus sonhos. — Admite. — Mas nunca consigo alcançá-la.
Adormecida ou acordada, a bailarina vive em uma eterna perseguição. Como eu.
—Também era a maquiagem que fazia para me apresentar no meu repertório favorito. —
Lembra com uma animação única.
— Qual é seu repertório favorito?
— Já ouviu falar nos Corsários?
— Não lembro.
Aleksandryia entrega um sorriso tão lindo que arrepia cada centímetro de mim, me fazendo
abaixar a cabeça para que ela não me veja mordiscar os lábios inferiores antes de voltar a atenção
aos seus olhos.
— Era uma vez um grupo de Corsários liderados pelo pirata Conrad, viajando em alto-mar.
Ajusto a postura, de frente para ela, com um dos joelhos levantados de um modo que apoio
as mãos e o queixo em um misto de fascinação, a impedindo de desviar o olhar.
— Eles são surpreendidos por uma forte tempestade. As ondas rebeldes os levam até uma
ilha. Quando seus pés tocam a areia da praia, eles cruzam com lindas jovens, lideradas pelas
gregas Meldora e Gulnara... Quando o olhar de Meldora encontra com o de Conrad, adivinha só
o que acontece?
Ela não tem intenção quando demonstra sua faceta romântica para mim, mas sua pergunta
traz, automaticamente, a memória do nosso primeiro encontro, dominando a minha mente como
uma gravação de câmera lenta do espetáculo que nunca vai sair de cartaz.
— Eles se apaixonam à primeira vista… — solto com a voz mais rouca, e a covinha na sua
bochecha só faz com que eu repare nas maçãs do rosto avermelhadas pela minha investida.
Seus pés se mexem, mas ela continua contando.
— No entanto, aparece também um grupo de mercadores turcos mal-encarados… —
Continua, mal escondendo a careta. — Eles capturam as gregas e as levam para serem vendidas
como escravas.
Minha postura fica ereta e ela nota meus músculos tensionarem por baixo da roupa justa
esportiva.
Abaixa a cabeça, mexendo no dedão do pé, morrendo de vergonha.
— E aí? — incentivo.
— No mercado, o rico Paxá está procurando as mais lindas mulheres para serem compradas
para seu harém e fica encantado por Meldora, — seu timbre é baixo, mas então se empolga de
novo — vendo-a dançar, pas d’esclave.
Sorrio com sua ênfase.
— Pas d’esclave? — repito, gravando na mente. — Como é?
A curiosidade na minha pergunta é o suficiente para fazê-la levantar em um salto.
— Vou mostrar. — Entrego o meu celular e ela coloca a música. — Amo a melodia, esse é
um dos motivos pelos quais amo Le Corsaire.
De fato, a melodia é a coisa mais alegre que já ouvi, combina muito com essa Aleksandryia
na minha frente. Observo-a sem me mexer, mãos no joelho e queixo apoiado, com um leve
sorriso brincando nos lábios ao vê-la se posicionar na barra improvisada.
Começa com uma demarche suave, mergulhando em um plié profundo e subindo para o
relevé.
No écarté, abre as pernas em um gesto expansivo e a transição para a arabesque é suave.
Arabesque é um movimento que tenta alcançar algo maior, e ela faz isso parecer divino. Não
resisto e também fico em pé, cruzando os braços enquanto gravo cada movimento dela.
A retiré traz sua perna ao alto, enquanto os braços ondulam como uma melodia que se
entrelaça com a dança. Desliza lateralmente com o pas de bourrée, cortando um espaço entre
nós, bem na minha frente. Seus giros seguintes a trazem para mim, mas ela volta antes que eu a
agarre, como se suspeitasse das minhas intenções. Existe muita felicidade em cada movimento,
completamente diferente do que eu a vi dançar no espetáculo.
Agora, ela exala vida.
Quando finaliza a variação com um gesto final e nos encaramos, cada célula do meu corpo
diz que ela é um segredo que devo proteger com a minha vida.
Levo as mãos à sua cintura, com meu corpo inteiro se incendiando com o desejo de avançar
contra sua boca gostosa e devorar seus lábios com os meus.
— Essa é a variação que deixa o rico Paxá completamente apaixonado por Gulnara — fala
rapidamente, me impedindo de avançar. No entanto, em vez de me empurrar ou se esquivar,
direciona os meus braços, norteando minhas mãos abaixo dos seus seios, de um jeito que sinto a
maciez do volume me excitar enquanto o aro do sutiã me impede de subir os dedos. Tão
proibido... — Ele está disposto a pagar muito para tê-la em seu harém.
— Qualquer um pagaria muito para tê-la, borboleta-russa... —demonstro minha força com
precisão na pegada, de um jeito que a sinto prender o ar. Ela faz um plie e o misto de sensações
se intensifica, indo muito além do tesão ou da admiração, toca a minha alma.
Pas de deux é um sonho que eu não pude realizar com Charllote Duncan.
Também tem um significado poderosíssimo de confiança. No ballet, o homem atua como a
sombra para que a bailarina estrele. O papel dele é ampará-la em todos os movimentos. Essa
união perfeita permite que ela dê seus grand jetés, piruetas e até os retirés de forma mais
graciosa.
Em troca, a vida dela está nas mãos dele, já que, caso a deixe cair, a maior lesão ocorre nos
pés — lugar de maior impacto para a bailarina. É claro que a Aleks não vai saltar, mas não
diminui quão profundo é a demonstração de confiança que ela está dando a um Jogador estranho.
Prometo para mim mesmo que vou dar tudo para compensar.
— Um desconhecido faz uma oferta mais alta. — Fala em tom de provocação, sentindo
minha respiração quente selar sua nuca. Céus, eu a escutaria com esse sotaque pelo resto da vida,
e nunca enjoaria...
— O Conrad. — Concluo, prendendo nossos olhares em uma distância tão curta que a faz
tremer. — Conrad a salva. — Desfilo os dedos até sua cintura. — Eu te salvaria, Aleks. — Soa
como uma súplica, sem compreender o porquê de isso fazer meu coração bater tão forte a ponto
de se chocar com os ossos do tórax em forma de espasmos intensos e deliberados. — Por todos
os meus dias, eu te salvaria, borboleta russa.
Seu pulmão parece ser preenchido com o mesmo ar congelante da madrugada em que
engoliu a raiva de precisar suportar a minha companhia.
— Eu não preciso ser salva. — Declara, afastando-me bruscamente. — E você não tem nada
a ver com Conrad. — Ri, quase satírica. — Preciso ir agora. Meu Dono está me esperando. Não
sei o porquê te contei isso.
— Fica comigo, Aleks. — Peço, profunda e sinceramente, ao ponto de doer nos ossos. — Eu
pago por você, seu Dono deve ter um preço, só me diz o nome dele.
— Para quê? — ri com nervosismo. — Vai me tirar de uma prisão para me colocar em
outra?
A dor atravessa suas palavras, rasgando uma parte de mim mesmo.
— Não — tento. — Você vai ser livre, comigo.
Faz que não.
— E quem disse que eu quero ser livre?! — Seu timbre sai esganiçado. — A beleza e a
complexidade das asas das borboletas não podem ser consertadas, após quebradas, é questão de
tempo até que morra.
Faço que não, dominado por um impulso que me faz avançar na sua direção.
— Você não vai morrer quebrada! Eu não dei a permissão.
— Quando eu era criança, temia borboletas, pois representam a liberdade. — Há uma
distância mínima do meu rosto, fala claramente: — Não a quero, Damon. Vivemos em guerra
dentro de mim. Minha alma quer voar, mas eu prendo todos os fragmentos que restaram em uma
gaiola. — Então aponta o dedo contra o meu peito. — E eu nunca aceitaria ser espetada por
outro algoz.
Nem sequer consigo argumentar, porque ela sai da sala e segue para o heliponto para
aguardar a aeronave, e se eu a trancar em um dos quartos, estarei sendo exatamente como o seu
Dono, e como meu pai.
Então eu decido mudar a estratégia.
Antes dela adentrar o helicóptero, puxo sua mão e pergunto:
— Não vou ganhar nem um abraço?
— Abraço? — Isso a quebra, ela não estava esperando.
Assinto.
Observo seus pezinhos se mexerem enquanto ela procura um motivo para recusar algo tão
singelo, e não encontra, apenas revira os olhos e abre os braços, entregando uma feição entediada
que diz “isso é o máximo que você terá de mim.”
Aceito como se fosse tudo o que precisasse para ter a permissão de puxá-la e a envolver com
os dois braços. Meu corpo é como uma muralha protetora, e eu sinto Aleks amolecer com minhas
mãos em torno da sua cintura fina.
Abaixo a cabeça para sentir o perfume dos seus cabelos e os inspiro profundamente em uma
demonstração de que quero gravar seu cheiro, junto com tudo o que vivemos nas últimas vinte e
quatro horas.
— Seu tempo acabou, Jogador. — Tenta se desvencilhar do meu abraço.
Aproximo-me do seu ouvido, colocando um cartão com meu número dentro do seu casaco.
— Me liga quando chegar, Oceano. Sempre que precisar. Me liga e eu largo tudo, vou
correndo.
Não é como se eu estivesse desistindo, só estou sendo inteligente.
Ela faz uma careta, colocando a mão no ventre, dá as costas e sobe na aeronave.
Ligo para Cartier assim que o helicóptero desaparece no céu.
— Faça as malas e avise Zaki e Dylan. Estamos indo para a Rússia.
— O que vamos fazer em um território que somos proibidos?
— Buscar uma borboleta-russa.
SANGUE
Era uma vez uma doce e ingênua camponesa, chamada Giselle, que se apaixona por um
nobre que se esconde atrás de uma fachada de mentiras para iludi-la.
Aos poucos vou retomando a consciência.
Demoro longos minutos para conseguir abrir os olhos, mas até as minhas pálpebras possuem
um peso descomunal, abrir o olho leva longos minutos. Vejo o teto, estou na minha cama. Sinto-
me fraca e atordoada demais para lutar pela minha própria vida, embora ainda escute os gritos de
socorro da minha versão de quatorze anos, rasgando pela garganta com toda a potência que o ar
dos seus pulmões permite.
Ela quer ser livre.
A cada movimento com o pescoço, por menor que seja, minha cabeça lateja mais forte,
percorrendo como unhas afiadas que esmagam cada pedaço de mim, trazendo os efeitos sórdidos
da consciência corporal. Sou nocauteada com uma dor que me faz soltar um gemido cortante,
abafado, paralisante. Isso desperta meus cachorros, que começam a lamber a minha mão, caída
para fora da cama.
Lembro-me deles, como um raio de luz na minha escuridão, tiro uma força que não existe
em mim para observá-los, mas só encontro o casal de adultos. Conrad e Meldora estão com os
pelos dos seus rostos sujos de sangue e a ideia de estarem machucados me faz sentar na cama,
em um esforço profundo.
Então eu olho para a cama.
Isso desperta o maior dos meus terrores.
É claro que estou tremendo de frio, os lençóis ainda estão molhados de tanto sangue,
grudento e pegajoso que, no primeiro momento, não acredito ser apenas da minha menstruação.
Não pode ser meu, eu teria morrido. O sangue escorreu da cama para o chão, que Gulnara lambe.
O instinto de sobrevivência entranhado embaixo das minhas vértebras, profundamente lesionado
e abatido, reage. Então eu cometo o erro de procurar onde está o machucado no meu corpo.
O mundo para.
Ainda quero chorar, estou tremendo, sem entender quanto do que eu sinto é medo ou ódio. A
bola de emoções que cresce em minha garganta me impede de respirar e eu me deito de novo,
seguro forte do edredom como se fosse um pedaço do meu coração, apertando como se pudesse
esfarelá-lo até me fazer parar de sentir tanto.
Meus olhos se enchem com lágrimas tão grossas quanto as gotas de sangue que escorrem
entre os meus dedos, o que é bom, porque me impede de ver o vermelho. O coração bate
descompassadamente dentro da caixa torácica e eu sinto minha alma se rasgar com a pele, em
estado de choque, arfando e derramando-me em suor e lágrimas.
Meu corpo foi a refeição de um monstro faminto.
A dor que sinto são dos cortes em minha pele. Alguns foram feitos com facas, e, outros, com
dentes. Onde não está manchado pelo sangue que escorreu, está roxo pelas contusões dos
hematomas. Meus seios estão tão machucados que não tenho dúvidas do que aconteceu enquanto
eu estava desacordada.
Começo a gritar e a chorar de profundo pavor. Ouvir meu desespero tem um efeito ainda
mais desesperador, fazendo meu corpo arquear em uma crise de vômito demorada o bastante
para me fazer perder, aos poucos, a força.
Eu deixo todos os Jogadores que meu Dono quiser transarem comigo.
Eu nunca disse não ao meu Dono.
Se ele quisesse transar comigo ontem, mesmo com a crise de endometriose, eu não diria não
a ele.
Isso não era o bastante. Ele queria roubar algo de mim.
Então me violentou enquanto eu estava inconsciente.
Quando Giselle descobre que foi enganada, ela morre de desgosto.
Sou inundada por um sentimento doentio que domina as minhas células, efervescendo meu
sangue enquanto corre pelas veias até chegar no coração. Primeiro, estranhei estar viva com o
tanto de sangue que saiu de mim, mas agora chego à conclusão de que algumas feridas são
profundas demais para resistir à vida. Eu já morri.
Sinto-me como Giselle, traída e enganada pelo seu grande amor. Frágil e insana. As
descargas de fúria eletrizam meu corpo com espasmos mais fortes do que acredito suportar, e
decido que não vou. Sei quando essa história termina, sou eu quem dança entre a luz e a sombra.
Eu digo quando ela acaba. Sempre amei a variação do sepultamento.
No entanto, antes que eu dê o primeiro passo, algo dentro de mim se levanta das
profundezas.
A porta está aberta.
A Aleks esmurra o calabouço na qual a Kitty a trancou, com seus punhos frágeis, e eu sinto
a dor do impacto nas minhas próprias mãos, em seu desejo de ser ouvida a todo custo. Abaixo a
cabeça para resistir as pancadas que ressoam em meu corpo.
Meus cachorros pulam nas minhas pernas com os seus enormes olhos de amor e minhas
duas versões lutam com a ideia de me ajoelhar para acariciá-los. Amá-los só me trouxe
problemas, mas enquanto percebo que falta outro filhote, Odalisca, o desgaste me alcança em
uma reação espelho, levando-me a chorar incessantemente, enquanto a procuro pelo quarto.
Pego Gulnara no colo para que pare de lamber o sangue e me assusto com a leveza do seu
corpo. Sinto os seus ossos. Acaricio também Conrad e Meldora, percebendo que a camada de
pelos longos me impedem de perceber como estão magros. Por quanto tempo dormi?
O corpo branco com mechas marrons de Odalisca está perto da porta. Os pedaços do meu
coração se partem ainda mais. Odalisca, que dormia em cima do pote de ração quando cansava
de comer, morreu de fome. O golpe é tão forte que chorar perde o sentido.
Eu preciso ser forte.
Reúno todas as forças e me concentro em descer até a cozinha. Está muito frio, o sistema de
aquecimento está desligado e a casa, sem luz, mas meus cães estão tão fracos que não me
seguem no caminho até a geladeira. Não tem nada na geladeira para mim nem para os meus
cachorros, nem nos armários. Não tem nem gelo nessa merda de geladeira.
Em um impulso furioso, lanço um prato contra a parede, o som dos estilhaços reverbera
dentro de mim, feito um eco que silencia tudo ao redor, como se eu tivesse mergulhado para
dentro dos meus próprios cacos.
Eu ainda estou nua, simplesmente não me importo de sair para fora em direção ao lago. A
raiva dominou minhas artérias, vou matar um cisne e dar para os cachorros, sim, vou quebrar o
pescoço dele, abrir com a faca de cozinha e cortar os pedaços para eles até que eles não estejam
mais correndo risco de vida.
Todos os meus cisnes estão mortos.
Estão boiando na água do lago, que agora está vermelho, contrastando com a neve. À
medida que me aproximo, o cheiro de podridão se acentua, assim como os cartuchos de balas que
encontro na neve.
Meu Dono brincou de tiro ao alvo.
Essa é a minha parte favorita no ballet de Giselle. A Dança das Wilis, onde as Wilis,
espíritos femininos que morreram antes do casamento, são compelidas a dançar com os homens
até a morte.
Giselle precisa dançar com seu vilão.
Eu correria mais rápido para dentro se não sentisse dor a cada passo, minha menstruação é
tão intensa que me sinto fraca, escorrendo por minhas pernas enquanto lambuza a neve, o deck e
a cozinha.
Meus olhos batem na minha mala de viagem e meu coração aperta com a gota de esperança.
Os biscoitos russos que Damon me deu! Volto para o meu quarto com as latas luxuosas, sento-
me no chão e abro a embalagem. Meldora e Conrad comem todos os biscoitos, mas preciso
forçar Gulnara a morder, até ela entender que enche o estômago.
Curto esse momento como uma lembrança que eu gostaria de levar comigo. Eu os amei
tanto, mas o amor é inútil, falho e podre. O amor só enfraquece e atrapalha.
— Desculpem não ter sido uma boa mãe. — Peço, com uma resignação dolorosa. — Vou
consertar isso. — Juro, como se fosse minha última promessa, e me levanto.
A primeira coisa que dou falta é meu celular e meu iPad, porém como estou sentindo meu
corpo entrar em inanição, me concentro no que é necessário. Não tento procurar onde está a
chave de energia da casa, em vez disso, me contento com uma ducha gelada afinal estou
tremendo desde a hora que acordei e, entre a dor física e emocional que estou sentindo, o frio é
como um abraço gelado nos dias em que brincava na neve com a minha avó.
Minha menstruação parece uma torneira aberta, mas a cólica não está doendo mais do que
todo o resto.
Vou até o closet enrolada em uma toalha e com papel higiênico estancando o sangue.
Encontro outra surpresa. O cofre está aberto e todas as minhas coleiras foram levadas. Ele me
destruiu e me descartou.
A raiva me queima com uma dor que me faz engolir em seco e xingar mentalmente em todos
os idiomas possíveis, e eu desconto no meu TOC.
Colocar o sutiã é o que mais dói, mas o meu collant favorito me faz esquecer. Meias-calças
pretas trabalhadas em tricot, minissaia Chanel, casaco de pelo, com luvas e polainas brancas, por
cima das sapatilhas que Damon me deu. Vou para o espelho com as maquiagens que ganhei de
Damon, e, pela primeira vez, penso no que aconteceria se eu o procurasse agora.
À medida que me maquio, escondendo os hematomas no meu rosto inchado. A ideia vai se
acentuando, porém não há ninguém na portaria para me levar até lá.
Minha casa está completamente desprotegida, quase como se meu Dono quisesse que
alguém me encontrasse naquele estado.
Preciso ir até a mansão vizinha pedir dinheiro emprestado. Ofereço aos funcionários como
troca um dos meus brincos de diamantes, mas eles não aceitam e só me dão uns duzentos
dólares. Coloco coleira no meu casal de Cavaliers e a Gulnara em uma bolsa Hermes.
Peço para o Taxi me levar até o edifício da Duncan Commodities e descubro que é dia 27.
Fiquei inconsciente por quase dois dias completos. A Duncan está fechada, e eu tento explicar
que quero falar com Damon para me despedir, mas os funcionários dizem que não podem
contatá-lo pois ele está viajando.
Aparentemente, existe muita burocracia para falar com o CEO de uma das maiores
multinacionais do mercado.
Estou mais fraca quando entro no taxi e peço para o motorista me levar no Centro de abrigos
para animais. A fraqueza é tanta que mal consigo guiar Conrad e Meldora pela coleira até o
balcão. No caminho, a voz de Aleksandryia volta a falar comigo, tentando me parar.
Essa maldita versão não para de chorar e implorar por ajuda, de um modo que não tenho
mais, nem fôlego, nem paciência para suportá-la. Ela perde a voz de tanto lutar pela nossa vida, e
eu canso de viver para mantê-la trancafiada.
No meio do sangue derramado em minha alma, a minha briga interna se torna uma longa
batalha de sussurros.
— Oi. — Tento sorrir para a moça no balcão. — Não posso ficar. com esses. cacho-rros. —
Minha voz trava.
A mulher encara a filhotinha na minha bolsa, o casal das coleiras e eu, de cima abaixo. Faz
cara de nojo.
— Descobriu que cachorro não é igual ursinho de brinquedo, riquinha?
Meus olhos se enchem de lágrimas e eu abaixo a cabeça.
— Não é isso... — Sussurro, com as gotas caindo pela minha face, porque tudo o que eu
queria era poder ser a mãe deles. — Eu amo cuidar deles, é que eu não consigo cuidar direito. —
Não consigo contar que dois já morreram.
Ela me encara com descrença, mascando um chiclete.
— Você sabe que depois que entregar não vai poder voltar atrás, né?
Faço que sim.
— Não vou voltar.
Não sou Giselle.
Ainda assim, ela me faz assinar um termo me comprometendo. Não é o que mais dói, me
despedir deles é, porque é como dar adeus a única coisa boa que aconteceu na minha vida, e que
me fez querer viver em muito tempo. Dói mais que a dor física do meu corpo, do que a traição do
meu Dono, do que todas as vezes que dancei para os Jogadores, que cada coisa suja que fiz
contra a vontade. Dói a mesma dor de perder minha avó, de sentir que dei tudo pelo amor e que
mesmo assim não serviu para nada.
— Obrigada por cuidarem de mim. — Beijo a cabecinha de cada um deles. — Espero que
encontrem alguém que cuide de vocês do mesmo jeito.
Vê-los chorar enquanto dou as costas, perdidos e imaginando que não os amei o suficiente,
me faz chorar de perder o ar durante todo o caminho de casa, no entanto a motivação se torna o
bastante para superar a dificuldade de andar até o meu quarto, quando chego.
As gavetas que meu Dono revirou ainda estão abertas, mas eu troco a roupa de cama antes
de abrir a caixa de Fentanill e levar todos os comprimidos a boca. Olho o corpo de Odalisca no
chão, o enrolo com a minha saia de ballet favorita e me deito na cama, abraçada a minha
filhotinha.
Eu não quero exatamente morrer.
Eu só quero dançar sozinha.
SONHO
— Não acho que tenha sido um Sangue em Ascensão. — Defende Cartier, com as mãos
cruzadas em frente à mesa de um modo que os pelos loiros brilham com o ouro do relógio.
Eu e Cartier estamos com roupas sociais, Zaki veste uma combinação esporte fino clara e
Dylan se veste feito mendigo, como sempre, desarmonizando estampas Yves Saint Laurent com
Gucci até ficar com o visual engraçado. Ele não gosta de quiet luxury, embora todo mundo saiba
que apenas pessoas muito ricas continuam elegantes vestidos como palhaços.
— Primeiro porque estamos na Rússia — continua Cartier, com sua voz aveludada. Não tem
como um Sangue em Ascensão ter vindo.
— A menos que seja desobediente ao Rei, igual a nós. — Zaki está lendo o cardápio.
Garçons vestidos impecavelmente movem-se com uma graça discreta, proporcionando um
atendimento que combina perfeitamente com a atmosfera requintada do lugar.
Estou no café mais famoso de Moscou e nem mesmo os detalhes suntuosos da decoração me
envolvem, com a atmosfera de classicismo que parece ressoar com a história imponente do país.
As paredes revestidas de madeira escura, adornadas com detalhes dourados e obras de arte
clássicas, evocam a magnificência da Rússia czarista, mas eu estou perdido dentro da minha
própria existência.
— Você não escutou tudo o que te contei? — Seguro o diário na frente do rosto. — Festas
particulares. Homem poderoso. Dinheiro. Coleiras...
— Acertou milhares nesse tiro. — Dylan coloca o cardápio na minha frente. — O que vai
pedir? — me coage a escolher.
Meu estômago também ronca pelos aromas tentadores que pairam no ar, mas minha barriga
está muito embrulhada para eu querer comer qualquer coisa. Esquivo-me:
— Tenho uma reunião marcada com o borboletário nacional, — explico, levantando-me. —
Depois volto direto para o hotel, então não me esperem para a farra.
Cartier segura no meu braço, sério.
— Não tem menção ao Jogo nesse diário. Ela não cita a palavra “boneca” nenhuma vez,
Sangue em Ascensão não pisam na Rússia, não sabem russo para falar com uma adolescente de
quatorze anos. — Enfatiza: — Não existem menores no Jogo.
— Como tem tanta certeza? — indago, com as sobrancelhas levantadas.
Retrocede com a postura.
— Porque o Rei não arriscaria todo o Tabuleiro. É perigoso demais.
— Mas ele escraviza Bonecas, não? — retruco.
Cartier ri consigo, virando sua bebida em um gole só. Também tomo uma dose da minha
vodca, que cai como fogo na barriga vazia.
— Não tem nada de ilícito nisso, é “só” prostituição de luxo.
Mulheres que querem dinheiro e homens dispostos a pagar uma fortuna pela brincadeira.
— Não foi o que vi com meus olhos. — Me solto de seu agarre.
Apesar disso, compreendo o seu ponto. Tem algo nessa história que não bate. As peças da
bailarina não se encaixam no tabuleiro, e isso me deixa ainda mais obcecado, ao ponto de tudo o
que desejo se resumir a buscar minha borboleta russa.
Deixo os três apreciarem a vida agitada de Moscou e vou até o meu último compromisso no
país. O responsável pelo borboletário está me esperando.
— Sou Sergei Kuznetsov, como posso ajudá-lo? — indaga, enquanto caminhamos.
O ambiente é como uma estufa. As plantas exuberantes, meticulosamente escolhidas para
mimetizar os habitats naturais dessas criaturas, criam um cenário tropical que ecoa suas origens.
Raios de luz filtram-se através das folhas, iluminando o espaço com uma luz difusa, realçando
ainda mais a beleza caleidoscópica das asas das borboletas.
Vejo borboletas de todas as formas e tamanhos. Algumas repousam delicadamente nas
folhas, enquanto outras flutuam graciosamente no ar, parecendo bailarinas em um palco celestial.
Sorrio com isso.
— A borboleta que estou procurando é azul-cintilante. Minha namorada via muito quando
era criança.
Ele me leva para analisar as espécies que existem empalhadas na sala principal, e chegamos
à conclusão de que a borboleta que Aleksandryia se referiu se chama Aricia Anteros, uma
espécie de pertencente à família Lycaenidae. Essa borboleta é encontrada no sul da Rússia, mas
não é sua época de atividade e só há um espécime vivo, em laboratório. Não há como comprá-lo
oficialmente, então preciso pagar por esse roubo.
— 300 mil dólares é o suficiente? — pergunto, sabendo que a taxa de câmbio nos coloca em
vantagem nessa negociação.
— É muito, senhor. Não é uma borboleta rara.
— Então vai servir. — Bato em suas costas e transfiro a quantia.
Levo a minha aquisição dentro de uma redoma de cristal e a coloco na mesa do meu quarto
de hotel, onde grandes lustres pendem majestosamente do teto alto, lançando uma luz suave
sobre a cama posta. Tomo um banho rápido e me jogo na cama, pronto para imergir em mais
pesquisas. Antes, analiso as mensagens do meu celular em busca de qualquer sinal da bailarina,
porém tudo o que encontro são as mensagens que enviei na manhã de Natal querendo esganar
Europa.
A única resposta que obtive foi a de Cherrie, informando que não sabe nada. Quando me
dou conta, estou ligando para ela.
— Oi, mon chouchou. Está mais calmo? — existe desdém na sua voz?
— Oi, Cherrie. Estou, e você, como está? — Quero ver mesmo se é ela.
— Estou ótima. — Usa o tom de quem está observando as próprias unhas. — Algum
problema?
Cherrie não perguntaria assim. Ela diria algo que derreteria o meu coração, seja uma poesia
que eu ame, ou uma declaração sobre o quão único eu sou na vida dela. Ela deixaria meu coração
mole para manuseá-lo como massinha de modelar, e eu amaria cada segundo.
— Não, só quero conversar. — Puxo assunto, dando abertura, facilitando para ela. — Estou
com saudade.
— Eu também estaria com saudade de mim, no seu lugar.
Touché. Cherrie jamais diria isso. Ela me lembraria de alguma ocasião onde fiz alguma das
suas vontades e me convenceria de que sinto falta disso até que eu entregue o que ela quer aos
seus pés.
Decido entrar no jogo dela.
— Ainda bem que você me atendeu e topou falar comigo. — Jogo a isca.
Europa faz charme.
— Sou muito boa, minha alma não guarda rancor.
Quero socar o travesseiro.
Penso rápido. Preciso dessa vadia, mas quanto mais eu implorar, mais ela vai se divertir com
o meu desespero. Ao mesmo tempo, ninguém consegue argumentar com ela, nem mesmo o Rei.
Eu só tenho uma tentativa.
— Posso te contar um segredo? — a atiço, sentando-me na cama enquanto mexo nos meus
pés com aflição.
— Claro! — Solta, sem conseguir esconder a empolgação.
Fico em silêncio enquanto penso se devo ir por esse caminho, mas não é como se eu tivesse
outra opção.
— Sabe por que esse seu plano não vai dar certo, Europa?
Um riso maldoso corta o ar.
— Quem disse que não está saindo exatamente como planejei? — sinto um frio na espinha,
mas continuo com tanta coragem que ela não tem reação.
Minhas próximas palavras são frias.
— Você é burra. — O coração dispara, talvez eu esteja encomendando meu caixão. — Seu
ego é maior do que seu cérebro, você jamais se passaria pela Cherrie.
— Diga isso para o seu irmão gêmeo viadinho, que insiste em me mandar mensagens com
os presentes que está comprando para mim. — Devolve, irritada. — Ou para qualquer Sangue em
Ascensão.
Estou tremendo que não sei como tenho voz.
— Eu vou. — Se ela desligar agora, é o meu fim. — Estou voltando para Old Westbury
amanhã, e seu pai é o primeiro.
Sua respiração é lenta e profunda.
— Justo, aí eu conto sobre sua bailarina russa. — Estremeço com a ameaça. — Entre deixá-
la morrer comigo, ou com ele, pelo menos eu tenho a decência de te enviar o corpo dela em uma
caixa, para você se despedir.
Sua frase toca nos meus traumas mais profundos, e ela sabe disso, porque ri vitoriosa e
desliga.
Estou nas mãos de um monstro, e ela não vai me atacar, vai atacar Aleks para me ferir.
Gostaria de ficar a noite inteira pensando em como sair das garras dela, mas preciso dormir
se quiser enfrentá-la no dia seguinte. Não durmo há muito tempo, não sei como ainda estou em
pé.
Uma das vantagens de tomar medicação para dormir, é que o sono é tão pesado que você
nem sequer sonha.
Só que eu tive um sonho muito estranho essa noite.
Não era bem um sonho.
Era uma memória.
Eu estava na janela, pedindo pizza no telefone, enquanto reparava que céu do lado de fora
estava escuro demais para às vinte horas de um domingo de verão. Já podia até sentir o cheiro da
chuva, vindo forte, mas comum nessa época do ano. Um sentimento estranho se alojava no meu
peito.
Cartier, Zaki e Cameron conversavam exasperados com os controles do videogame nas
mãos, enquanto mexiam o corpo com os movimentos do streetfighter na TV. Mesmo assim,
Cherrie, linda de até faltar o ar, se mantinha aninhada a Cam, tão confortável como se estivesse
em um divã.
Eu não era o único que sentia inveja dos dois, o sentimento era coletivo. Cam tinha todas as
meninas aos seus pés, porém nem se importava, já que tinha Cherrie, e o mundo queria ter
Cherrie Young, a filha favorita do Rei. Cartier também poderia escolher qualquer menina para
namorar, mas ele só queria ter a Cherrie. Ela é um daqueles fenômenos raros que acontecem
apenas uma vez.
Já Dylan nem ligava para isso, Zaki queria todas que conseguisse e eu, bom, eu não
precisava de uma Cherrie, só queria amar alguém tanto quanto Cameron amava Cherrie.
Com o livro nas mãos, ela lia em voz alta “Além do bem e do mal” de Nietzsche, como se
fosse uma receita de bolo. Meu irmão gêmeo a observava meio boquiaberto, com o caderno no
colo e uma caneta nas mãos, anotando o que entendia e, vez por outra, pedindo que ela repetisse
o conceito sobre o niilismo.
A corrente filosófica que acredita no vazio.
O sentimento no ambiente era mais que simples amizade, era uma união forte e familiar, e
deveria me deixar feliz, como sempre, mas eu não conseguia parar sentado, agitado. Então avisei
ao grupo que a pizza estava chegando e sai da sala para preparar a mesa.
Normalmente o jantar era servido pelos funcionários, mas papai estava viajando com vovô e
mamãe dispensou todos. Ela disse que não gostava da formalidade, mas na minha opinião ela
fazia isso porque, sem os funcionários perto, não precisava parecer forte.
A prova disso era que, nesse domingo, nem sequer havia a visto depois do café da manhã.
Decidi ir chamá-la, mas não sei porque não queria ir até o quarto dela, então pedi que Cameron e
Cherrie fossem, já que eles ficariam sozinhos e poderiam se beijar nos corredores. Eu me achava
um ótimo amigo.
Só que... assim que eles subiram as escadas, fiquei pior. Pensei que se minha mãe pegasse
os dois no flagra, sozinhos, ia sobrar para todo mundo e ficaríamos de castigo, então decidi ir
atrás, meio desesperado.
No entanto, no momento que fui em direção à escada, Cherrie apareceu, no meio dela, e eu
gelei no mesmo segundo. Meu coração disparou. Seus olhos não brilhavam mais, estavam
centrados e sua feição era séria. Aquele olhar que ela dava só quando algo muito errado tinha
acontecido, tipo quando aquela outra versão esquisita dela surgia, em que só descobrimos que era
outra identidade um ano depois.
Eu perguntei o que foi e ela se esquivou. Perguntei onde estava o Cameron e ela disse que
no banheiro, pegou o telefone e começou a digitar um número.
Foi aí que eu tremi, com medo do que tinha acontecido. Pensei: será que mamãe os pegou
juntos e estava dando um sermão no Cameron? Se fosse isso, o meu castigo seria eterno. Por que
não nos chamou?
Com o coração disparado, perguntei onde estava a minha mãe. Então ela chamou o pai dela
no telefone, pedindo para ele vir na minha casa, urgente. O que o Rei iria querer aqui, sem meu
pai, a Torre?
Fui em direção ao segundo andar e Cherrie segurou forte no meu braço, me impedindo.
Naquele momento eu soube. Tinha acontecido algo com minha mãe. Meu coração disparou ainda
mais, me impedindo de ouvir qualquer outra coisa. O sangue parou de correr por meu corpo, com
um frio assustadoramente gelado atravessando minha espinha. A pior sensação que já senti em
toda minha vida.
Soltei-me de sua mão e subi o primeiro degrau, atordoado. Cameron apareceu na ponta dela,
me assustando mais ainda. Diferente de Cherrie, seu olhar estava arregalado e assustado. Sua
camisa estava com marcas de suor. Ele não queria me deixar passar e eu o empurrei.
Eu já estava chorando antes de chegar, mas nada me preparou para o que vi quando abri a
porta do quarto dela. Meu estômago torceu tão forte que tive ânsia de vômito. Meu corpo inteiro
amoleceu. Ajoelhei-me e toquei nela, ela estava dura e gelada, então só consegui gritar
apavorado, assustado demais para saber se deveria abraçar ou se afastar daquele corpo.
Mãe, mãe, mãe.
Observei melhor a cena, sem saber como conseguia enxergar com tanta lágrima correndo
pelo meu rosto. Ela estava linda, como sempre linda com os longos cabelos escuros escovados e
uma roupa bonita. Ao lado, embalagens de remédios.
Foi só nessa hora que entendi o que aconteceu .
Senti uma dor dilacerante, tão forte que pensei que fosse morrer junto, rasgando quem eu era
e tudo o que ainda iria ser. Por saber que ela preferiu acabar com sua vida a viver para mim, que
precisava tanto dela, por saber que ela achou a morte melhor do que a mim. Queria voltar no
tempo e observar melhor aquele rosto lindo, poder gravar ele bem na minha memória todas as
vezes em que ela sorriu.
Parecia que minhas pernas estavam amarradas ao chão, não conseguia sair de perto nem
quando George e a ambulância chegaram.
Eu sabia que o mundo que vivia era ruim, mas não fazia ideia de que era tanto assim. Minha
mente acusava o quanto eu não era o suficiente. Nunca me importei com o fato dela estar doente,
só dela estar perto de mim, tudo valia a pena, tudo o que eu fazia para ela me alegrava. Comecei
a soluçar alto, ainda sem conseguir mexer os pés. Sabendo que naquele momento, naquele quarto
decorado e luxuoso, eu tinha acabado de dar adeus ao que sobrou da infância.
Acordo no meio da crise de choro.
Estou no escuro do quarto desse hotel, sentindo uma dor tão aguda que meu coração parece
se derramar nas lágrimas que lavam meu rosto, e minha reação mais rápida é abraçar o
travesseiro enquanto agonizo em um choro estrondoso, agudo e alarmante. Surreal.
Não sei quanto tempo demoro para me acalmar minimamente, pois é como se todos os meus
traumas despertassem nessa madrugada, tentando me dizer alguma coisa, e minha reação natural
é ficar paralisado, apenas sentindo as memórias me lavarem. A luz ilumina o quarto aos poucos,
trazendo mais consciência para a escuridão que me persegue, e a borboleta bate suas asas dentro
do recipiente vítreo.
Estou tremendo como se tivesse levado uma surra, usando toda a força que me resta para
vestir alguma coisa ir até o quarto do meu irmão, do outro lado do corredor. Ele abre a porta só
de cueca e se joga na cama outra vez.
— Eu sonhei com a mamãe. — Minha voz sai anasalada.
Dylan abre os olhos e me encara de bruços, sério. Ele também sonha muito com mamãe,
mas a culpa normalmente é da ayahuasca.
— Sonhou o quê?
Não consigo falar, temendo que a lembrança deixe Dylan mal como estou. Sento-me na
ponta da cama e, raciocinando melhor com a presença do meu gêmeo, penso.
— Talvez seja a bailarina. — Abaixo a cabeça, passando as mãos na nuca. — Ela me lembra
a mamãe, trazendo as memórias à tona.
Dylan se vira, pensativo.
— Talvez a memória da mamãe queira te dizer algo.
Minha boca seca no mesmo segundo. Penso no bilhete que recebi dizendo que se eu negasse
o encontro me arrependeria para sempre. A caixa com sangue, a mensagem de Europa sobre eu
aproveitar cada minuto como se fosse o último...
Eu estava com medo esse tempo todo. Meu coração queria me dizer algo e eu não o escutei.
Meu coração se estraçalha com a ideia.
— Aleks está em perigo! — Cada célula do meu corpo grita com a constatação, e a
adrenalina decorrente assume os meus sentimentos. — Dylan, a gente precisa voltar agora!
Meu irmão assente, se levanta, começa a vestir sua roupa e acordar os outros enquanto eu
mando prepararem a aeronave. Levo a borboleta nas mãos todo o percurso e, quanto mais a fito,
mais penso na possibilidade de colocar um rastreador no fundo da redoma.
Damon: Me deixa ver a Aleks uma última vez, Europa. Estou pedindo.
Europa: Oh, príncipe. Não será possível e nem é porque eu não quero.
Reviro os olhos.
Damon: É que eu comprei um presente para ela. Você poderia pelo menos entregar?
Europa: Ela não vai poder receber, gatinho.
Franzo as sobrancelhas.
Damon: O Dylan está do meu lado, e eu aposto que Cartier não vai ficar feliz quando eu
contar como você está sendo maldosa com a mulher que ele me ajudou a investigar nos últimos
dias. Vou contar para todo mundo, e se é para ferrar com a bailarina, vamos contar juntos ao
George. Acho que ele não vai ficar feliz de saber que você escolheu uma boneca que não está no
catálogo. Talvez ele descubra outras coisas, o que será?
Europa: Quer mesmo entrar nessa disputa comigo?
Damon: Eu já ganhei a primeira (EuroOásis).
Europa: Vou realizar seu último desejo antes de devorar sua alma.
Ela me envia a localização da Aleks.
Europa: Depois me conta como foi entregar esse presente nas mãos pálidas dela.
ESTRAGOS
É pouco mais de cinco horas da tarde nos Estados Unidos quando pisamos no solo do país,
no exato instante em que começa uma nevasca.
— Se precisar, me chama. — Cartier bate nas minhas costas.
Entro no Jaguar e seguimos até o destino, em um bairro nobre de Long Island, próximo a
Old Westbury. Do lado de fora, o céu escurece mais a cada segundo, tornando as rajadas de neve
mais esplendorosas e intensas, e a borracha do para-brisa risca o vidro de um jeito que faz
barulho e aumenta o suspense.
O trânsito está infernal.
— Dia vinte e sete normalmente não tem tanto movimento. — diz meu motorista. — É a
neve.
— Hoje é dia vinte e sete? — me dou conta.
Amanhã é meu aniversário.
Uso esse argumento para tentar me convencer de que está tudo bem com Aleks, estou apenas
enlouquecendo, seguindo o roteiro que Europa planejou para me colocar no hospício em que a
aprisionaram na sua última brincadeira ao front. No auge da minha tensão, começo a procurar
coisas para morder, primeiro meus próprios dedos, depois os lábios.
Um vento gélido contorce minhas entranhas e, no mesmo instante, uma chuva de neve
irrompe, com as pedradas atingindo o carro por todos os lados.
— Continuamos? — pergunta o motorista, preocupado. — Estamos perto.
— Mais rápido, de preferência. — Olho-me no retrovisor. Estranhamente, não reconheço o
homem que reflete.
Calma, está tudo sob controle. Tudo sob controle.
Fito para os lados. Carros e mais carros com seus faróis altos iluminando a neve acima do
escuro do céu dessa tarde sombria, em uma beleza digna de uma cena Noir. Olho para frente e
noto que o engarrafamento desaparece no horizonte, de tão monstruoso. O GPS diz que o
endereço é a uma quadra e meia.
Apesar disso, a tempestade de gelo deixa claro que a natureza havia guardado o pior para
daqui a poucos minutos, talvez segundos. Dentro de mim, no entanto, um sentimento novo me
queima as entranhas, e eu sei que ele me diz que eu devo dar um jeito, quanto antes, de me
certificar que a bailarina está bem.
De alguma forma assassina, tenho a firme convicção de que, se for preciso, mato ou morro
para garantir isso. É mais fácil matar ou morrer do que repetir a minha falha.
— Lincoln, me alcança o revólver no porta-luvas, por favor.
— Não posso deixar o senhor se arriscar. — Vira-se para me encarar no banco de trás e vê
minha determinação, porque, silenciosamente, obedece. — Vou chamar a equipe de segurança.
Eu já abri a porta do carro.
Corro ao ponto de sentir os músculos das minhas coxas estirarem-se com a força do impacto
dos meus passos rápidos pelas calçadas, passando pelas sombras que as mansões do outro lado
da rua causam, deixando mais intensa a escuridão que me toma, sem me importar com o que
quer que atravesse o meu caminho.
Até chegar na frente da casa dela.
É uma mansão pequena e comum, reformada, o que dá um toque original. Aproximo-me da
portaria, mas toco a campanha muitas vezes e ninguém atende. Bato no vidro fumê, preto, até
concluir que não há porteiro. O muro tem mais de dois metros e qualquer outra solução que eu
penso levaria mais que dez minutos.
Exceto a opção que usa a arma na minha mão.
O portão está estranhamente aberto, de modo que um chute meu o escancara. À medida que
me aproximo, cauteloso, encontro o lago ensanguentado com cisnes e os cartuchos vazios, de
sniper. Em uma resposta intuitiva, tensiono todas as minhas células.
O pior ainda está por vir.
Quando entro, uma descarga de energia atinge meu corpo inteiro na mesma potência que o
fulmen na atmosfera.
O chão está todo sujo de sangue.
— Aleks! — grito, em direção as escadas ao mesmo tempo em que digito a mensagem para
Dylan com a localização em tempo real.
Damon: Preciso de Coroados é uma emergência. Rápido.
A cada passo, o sonho que tive de madrugada se transfigura em realidade, como flashes que
se alternam a cada piscada de olhos. Sinto-me um menino outra vez, impotente e incapaz,
perdido e assustado, mas não deixo de ir o mais rápido em direção ao quarto em que o rastro de
sangue leva.
Chuto a porta, com a arma apontada e o dedo no gatilho, mas o que vejo abre um enorme
buraco abaixo dos meus pés, e meu corpo inteiro parece congelar quando meus olhos encontram
a figura imóvel na cama. Uma onda de choque percorre meu ser, e a realidade bate como uma
maré avassaladora, paralisando-me.
Já vi a mesma cena outra vez, não preciso me aproximar ou tocá-la para saber que o meu
sonho acabou. A pele pálida, os lábios escuros e roxos.
A minha bailarina está morta.
E ainda assim, eu me aproximo com pressa, mesmo que cada célula do meu cérebro implore
para me afastar, sem suportar o trauma de ver a segunda versão da mulher que eu mais amei,
morta.
Entro em colapso. Morta, acabou.
Sento-me ao lado da cama, como se o mundo tivesse parado, e levo meus dedos à artéria em
seu pescoço, mas não encontro pulsação com minha mão trêmula, e puxo-a para os meus braços,
depositando toda a força e delicadeza que carrego dentro de mim, embalando a minha bailarina,
o meu desejo perdido.
— Doce presa que a morte não consegue desprender... — murmuro com a voz embargada,
como se entendesse a dor de Romeu. Minha Julieta também não responde, então a chacoalho
antes de abraçá-la com força. — Volte para mim... — beijo sua testa, molhada pelas minhas
lágrimas que descem pelo meu rosto sem que eu consiga sentir a dimensão delas.
Pressiono-a contra o meu peito com a dor me dilacerando.
— Por que não me ligou, amor? — pergunto baixinho, observando-a tão serena quanto um
sonho interrompido. — Eu fui à Rússia buscar uma borboleta russa, como você sonhava, só para
te fazer feliz. Por que não me esperou? — Acaricio seus cabelos escuros, cada detalhe perfeito.
— Eu faria qualquer coisa por você, garota. Era só me ligar.
Seu rosto está envolto em um silêncio perturbador, e seus olhos, que costumam brilhar como
a vida no fundo do mar, permanecem fechados, escondendo segredos que eu jamais saberei.
Penso que não vou sobreviver a isso, que nunca mais conseguirei me entregar a uma mulher
sem pensar em como seria se eu tivesse tido a chance de amar a garota mais fenomenal que já
conheci. A vida perde a graça e tudo se torna cinza. Adeus ballet, adeus Natal, adeus música,
adeus dança, adeus arte, adeus tudo o que faz a vida digna de ser vivida.
A dor me atravessa outra vez e eu ouço meus próprios soluços, embora esteja tão
anestesiado que não sinto as lágrimas descerem, quentes, pelo meu rosto.
Tenho a sensação de ouvir vozes, mas é só quando meu irmão aparece na porta que tudo se
torna real. Basta que encaremos as íris um do outro para expormos a intensidade das nossas duas
almas idênticas e partidas. Ele, que está até então, forte feito uma Torre, perde o rumo com a
cena, e Cartier se posiciona.
— Os paramédicos chegaram. — diz o loiro, estendendo os braços em passos lentos. —
Vem, Dam.
Abraço ainda mais Aleks, como se eu quisesse passar cada segundo com ela antes de a
trancafiar em um caixão e me contentar em fazer visitas regulares e falar sozinho com uma
lápide. Com ela nos meus braços, digo:
— Ela morreu, não está vendo?
Eles me fitam enquanto eu devolvo um olhar sincero de quem vai surtar se tentarem me
afastar do corpo dela, contudo um soluço alto do meu irmão me quebra. Subo o olhar até o dele e
sei que ele está vendo a nossa mãe. Ele também já viu a mesma cena antes. Eu abraçado ao corpo
dela.
Não sei sou eu quem o abraço primeiro ou ele quem me puxa para um abraço apertado e
desengonçado, mas nós dois estamos chorando como se tivéssemos quatorze anos de novo, sem
fôlego e sem esperança.
— Iniciar protocolo de RCP! — diz a paramédica em cima dela.
Eu e meu irmão gêmeo estamos imóveis, abraçados um ao outro, enquanto assistimos as
massagens cardíacas em um silencio profundo, contando até trinta, com medo de acordar no
pesadelo. Eles tentam chamá-la, mas ela não reage, então tentam mais incontáveis repetições
enquanto a outra equipe sobe com a maca e o desfibrilador. Nesses minutos, eu não existo à
espera dela.
Tensiono o corpo só de ver a potência do choque no corpo frágil da minha borboleta, e então
os médicos dizem algo perto, gelando a minha espinha novamente. Toda a vida do meu corpo se
esvai com a constatação de que estão desistindo.
— Continua! — Solto do meu irmão, indo para cima deles. — Eu mandei continuar!
Estou ao lado da cama agora, em uma posição onde consigo ver o porquê os dois médicos
estão em silêncio, falando algo perto do corpo dela. Bato os olhos nela e, no instante em que
minhas íris se cruzam com os azuis que tanto adoro, meus orbes marejam com a alegria mais
profunda que senti em toda a minha vida, me preenchendo de uma gratidão eterna.
A minha bailarina está viva.
A atmosfera volta a ter magia, a neve caindo torna a ter beleza, e algo mais poderoso do que
a vida volta a percorrer minhas veias.
Quero me aproximar, e acho que ela também quer, porque continua me fitando, como se não
acreditasse que estou na sua frente, porém espero a colocarem na maca e a levarem até a
ambulância, para subir e segurar na mão dela, ignorando os médicos ministrando agulhas e
medicamentos, com o automóvel em velocidade máxima através da nevasca até o hospital Lloret.
Nós dois nos assustamos com o ruído das sirenes que começam a tocar, pavor esse que
cresce com a luz vermelha acentuando a roupa ensanguentada de Aleks, da cintura para baixo,
mas nossas palmas estão suadas e fixas no toque um do outro e isso é tudo o que importa.
Levo suas mãos até meus lábios e as beijo.
— Não vai acontecer nada com você, está ouvindo, Oceano? — determino, próximo do seu
rosto.
Uma única lágrima escapa do seu semblante determinado.
— Já aconteceu... — sua voz é fraca como um sussurro do mar.
Uso toda a força que me resta para manter o semblante pacífico, com algo novo queimando
em minhas veias.
— O que aconteceu, Aleks? — fita-me com os olhos cor de oceano inundados e eu vou com
as mãos em seus cabelos, acariciando-a. — Eu preciso saber para cuidar de você.
Ela balança os cabelos, se desvencilhando fracamente do meu toque, virando a cabeça para o
outro lado e começa a fechar os olhos.
Aperto sua mão com força.
— Aleks…
Ela balança a cabeça de novo, como se também estivesse lutando contra essa verdade.
— Meus cachorros... — sussurra, fechando as pálpebras de um jeito que o paramédico fica
agitado. — Tudo.
Pedem para que eu vá para o fundo da ambulância e tornam a examiná-la, durante todo o
caminho que parece levar horas embora seja curto. Não há nada que eu possa fazer além de pedir
socorro a única figura espiritual que acredito, minha mãe.
— Me deixa ter uma segunda chance com ela. Por favor, mãe.
O movimento da ambulância estacionando me faz inspirar forte a ponto de preencher os
meus pulmões de ar, e depois, é tudo muito rápido. Quero segui-la até a ala da UTI, mas me
barram e eu só não tiro o revólver porque os meus amigos chegam atrás e me impedem, me
levando para um banco.
Dylan fica de um lado e Cartier de outro, e Zaki me entrega água.
— Que merda foi essa? — Dylan quebra o silêncio, após uns minutos.
— Tinha muito sangue. — Cartier comenta, impressionado. — E Fentanill do lado da cama.
— Ela estava com um cachorro morto ou era de brinquedo? — Dyl indaga.
— Era morto. — Esclareço, pensando no que ela falou na ambulância.
Ela estava quase morrendo e a única coisa que importavam eram os seus cachorros. Onde
eles estão?
— Ah.
Ninguém tenta teorizar o que aconteceu, em vez disso permanecemos em um silêncio
sepulcral pelas próximas horas, aguardando os médicos voltarem, o que não acontece.
É a polícia que vem até nós.
— Quem é o responsável pela garota?
Levanto-me.
— Aleksandryia Sklyar. Sou eu.
Abre sua caderneta.
— O senhor é o que dela?
— Namorado.
O homem assente, sério.
— Vamos precisar fazer algumas perguntas. — diz o outro. — O que o senhor estava
fazendo quando encontrou ela?
— Eu estava fora, viajando. — Peço o celular de Dylan. — Tenho fotos. Por quê?
Eles dizem que vão analisar as informações, mas meia-hora depois voltam ainda mais mal-
encarados.
O peso do cansaço destroça minhas costas, meu estômago embrulha e eu abaixo a cabeça,
processando a informação com pensamentos incessantes que me invadem e falam, circulando
minhas dúvidas, medos e terrores em um espiral.
Aleks não tem documentação, é como um fantasma nesse país. Porém saber que ela está
ilegalmente não é a pior parte, descobrir que entrei no rol de suspeitos pelo crime de estupro
contra a minha bailarina, é. Ver as fotos do corpo de delito, com o corpo dela todo mordido e
rasgado, e ouvir do médico que o sangramento dela era uma laceração na vagina, liberta os meus
fantasmas com seus demônios mais profundos.
Vou descobrir qual monstro quebrou as asas da minha borboleta.
E vou quebrar todos os ossos do corpo dele.
LIMPANDO A BAGUNÇA
Em todas as noites em que Cherrie era criança, o Rei a levava para a cama e contava uma
única história. Durante dez mil cento e vinte e oito dias, ele olhou no fundo dos olhos da sua
garotinha e ensinou, como se fosse a primeira vez, uma fábula sobre A Hierarquia da Floresta.
Sei que ele tentava controlar o peso da sua mão ao acariciar os cabelos dela, temendo que a
própria natureza violenta pudesse ferir sua preciosa criação. Repetia as palavras de sempre em
uma entonação invariavelmente inédita e, em seguida, beijava sua testa, a cobria, apagava as
luzes e saía do quarto.
Cherrie contava nos dedos até que sua sombra desaparecesse do corredor, por isso me
recordo com exatidão dos quinze segundos mais tenebrosos que existiam.
Ela nunca foi medrosa. A prova disso era que Cherrie costumava ir até o quarto do nosso
irmão mais velho, quando ele estava em casa, convencê-lo a assistir a filmes de terror.
Maratonaram franquias como A hora do Pesadelo e Pânico na Floresta durante as madrugadas
como se não se disputassem o mesmo ego em um Jogo de poder, de dia.
Aos dez anos, o repertório de coisas malvadas de Cherrie Young era infinitamente maior do
que o de todos os seus amigos.
Entretanto, o escuro era diferente.
A garota corajosa desaparecia quando estava só naquele quarto gigantesco. O desespero que
sentia por estar com os olhos abertos e ter como única certeza a sensação da própria existência
era aterrorizante.
Não era fobia de que houvesse algo no escuro. Cherrie nunca acreditou em fantasmas e
cresceu chamando monstros de tios. Até a mais assustadora presença era familiar para ela.
A questão era que, quando não se vê nada diante dos olhos, a única coisa que se tem certeza
é do seu próprio corpo, e, naqueles breves instantes que duravam uma eternidade, Cherrie não
queria estar ali.
Cherrie tinha medo dela.
Qualquer coisa parecia mais aceitável do que ser ela, até se tornar um monstro verde e
gosmento, que não sabe de qual matéria é feito, feio o suficiente para assustar todos os outros
que se atrevessem a sair do seu guarda-roupa.
Foi assim que ela começou a desejar ser o monstro.
Então, no dia do seu aniversário de quinze anos, realizei os seus desejos mais sombrios.
Eu nasci.
Também deveria comemorar meu aniversário, sei, mas essa é a data favorita de Cherrie, e eu
não sou tão fria a ponto de não me curvar para a minha obsessão. Até a deixaria assumir o front
hoje, não acho que ela se assustaria com a minha bagunça, sou muito organizada — separo
minhas maldades em pastas.
Acontece que o nosso sistema é um pouquinho complexo.
Nós apenas trocamos as identidades quando uma de nós surta.
Cherrie quando quebra, e eu quando a quebro.
Não é por mal, isso me machuca tanto que entramos em crise dissociativa, que pode levar
semanas ou meses, com o nosso corpo vagueando como um zumbi, sem alma, voz ou
pensamentos, apenas a casca, até que Cherrie encontre o caminho de volta para a nossa cabeça e
arrume todo o caos que fiz.
Quando penso nisso, uma voz profunda tenta questionar o que estou fazendo, no entanto,
minha alma está em chamas ardentes e famintas, e o barulho das fagulhas é mais alto do que o da
minha consciência distorcida.
Talvez Damon não merecesse.
Cherrie ama aquele filho da puta egoísta desgraçado com complexo de salvador que só sabe
cair em buracos e pedir ajuda. Além disso, ela impôs uma única Regra ao sistema. Não posso
tocar em Cameron, Cartier, Zaki, Dylan e Damon. Eles são a coisa que ela mais ama.
Cherrie era a única menina em um grupo de cinco garotos e, por mais que fossem delicados
e protetores, que notassem cada curva que aparecia no corpo dela e a achassem a garota mais
linda do mundo, quando estavam sozinhos, simplesmente escolhiam enxergá-la como um deles,
o que é fofo e mágico se pensarmos que ser um menino é tudo o que Cherrie sempre desejou.
Eles nunca poupavam os detalhes, tipo o primeiro pelo no saco, a primeira ereção e as
famosas poluções noturnas.
Existe um evento canônico na vida de todo menino, a masturbação.
Enquanto as meninas morrem de vergonha de olhar a buceta no próprio espelho, garotos
aprendem cedo que o pinto é um brinquedo. Eles gostam de apostar quem vai ejacular mais
longe, ver quanto tempo ficam duros, quanto tempo conseguem segurar o orgasmo, medir os
centímetros e outras coisas ridículas que Cherrie pôde participar, mesmo que fosse como jurada.
Quando eu penso que esses bobões salvaram a inocência dela…
Não é assim que as coisas funcionam. Cherrie não é o tipo de pessoa que coloca para fora os
seus sentimentos, ela retém, retém e retém todas as putarias que fazem com ela, então eu
explodo. Damon não vai escapar das consequências do meu fogo.
— Bom dia, princesa do papai... — uma voz branda me desperta.
Abro os olhos vagarosamente, me deparando com lindíssimas orbes verde-oliva me
encarando com tanta sinceridade que meu corpo inteiro tensiona.
De perto assim, o Rei é ainda mais intimidador, com a barba em três tons: preto, cinza e
branco, e os cabelos cinza-escuros combinando com os olhos verde-claros e os lábios rosados.
Ele está ajoelhado aos pés da minha cama, com um lindo sorriso no rosto, uma faca em uma mão
e um bolo em formato de coração em outro.
Inclino-me para sentar e noto que estou pelada, então seguro os lençóis junto aos peitos,
amaldiçoando Cherrie, não pela intimidade física em si, mas pela vulnerabilidade dessa
intimidade, de não ter absolutamente nada para esconder dessa figura tão confiável quanto um
ilusionista profissional.
Cherrie e o Rei não escondem nada um do outro.
Estou a um passo de vantagem.
— Eu ainda não acredito que você não é mais a minha menininha. — Sorri com profunda
devoção, entregando a faca. — Você tem vinte e sete facadas e um desejo.
Isso é outra coisa sobre Cherrie que estou roubando.
Cherrie é a personificação da tradição: ritualística e metódica. Ela odeia mudanças e
inovações, tudo sempre tem que ser como sempre foi, e todos os Sangue em Ascensão se curvam
a esse capricho, porque todos adoram tudo o que ela propõe. Definição de realeza.
Todos os anos, os seus aniversários se repetem, idênticos aos do ano passado. Todos os
anos, a primeira coisa que ela faz quando papai a acorda, é esfaquear o bolo com geleia de
morango, em vez assoprar velinhas como pessoas normais.
Então, me preparo para o golpe.
George Young me assiste cravar fundo com a lâmina e puxar o cabo, estraçalhando o bolo,
sujando meu rosto com a geleia que espirra pelo pescoço, cabelos, escorrendo pelo colo, seio até
a ponta dos mamilos, manchando os lençóis com o vermelho-sangue, e permanece com a mesma
paixão e admiração no olhar que entrega a Cherrie, todos os dias, desde que ela nasceu.
— O que você quer, princesa? — Acaricia meu rosto sujo, então leva os dedos sujos de
geleia a própria boca. — Peça o mundo e eu te dou.
Sua declaração acende em meu interior labaredas que secam qualquer fonte de humanidade,
lembrando que sou poderosa ao ponto de atingi-lo mesmo quando não uso as minhas habilidades
devastadoras.
Mesmo assim, esse viado insiste em negar a Coroa.
Também me dá confiança para recuperar o domínio do meu território. Constatar isso faz
esse desejo arder dentro do meu peito.
— Você já me deu, mon père. — Uso o timbre amoroso de Cherrie. — Eu tenho tudo.
Eu tenho o Rei.
Viro o rosto de um modo que os dedos dele, acariciando minhas bochechas, resvalam em
meus lábios, onde deposito um longo e molhado beijo, fitando seus olhos verdes com os meus,
doces e amarelados como resquícios da mata embebida de mel. Ele não resiste e leva a outra mão
aos meus cabelos, acariciando-os antes de puxar minha cabeça até a sua boca, e beijar ternamente
minha testa, sujando sua barba grisalha com a geleia, deixando-lhe mais lindo com a cor do
sangue manchando seu rosto imaculado.
A fogueira que me queima por dentro me pede para tacar fogo nele. Calma, digo, estou
separando as lenhas.
— Você diz isso todos os anos, por isso comprei um novo presente. — Fito-lhe surpresa e
ele chama: — Bunny?
Scarlet aparece com seu sorriso largo ao ponto de fazer covinhas, trajada com babydoll
estilo coquete rosa claro, minúsculo com os seus peitos e coxas grossas, e um filhote de felino
nos braços. Cherrie é apaixonada por gatos, então ele a enche de raças raras, mas dessa vez se
superou. Ele sempre se supera. Scarlet põe o animal na cama enquanto me dá parabéns e eu fico
presa na beleza do felino preto com olhos verdes e patas grandes.
— É uma pantera.
Ele acha que um gato do mato vai fazer Cherrie esquecer da porra da Coroa que nos deve?
Lembro-me do mais importante em meu Jogo. Vou estraçalhar Damon, sim, mas Damon não
é o fim, é o meio. Papai é o alfa e ômega, começo, meio e final. Damon pode ser uma Torre para
ele, mas é apenas um Peão para mim, que vou usar para derrubar o Rei e ensinar como se vence
com as Peças mais fracas, porque é isso o que ele obriga Cherrie a ser. Fraca.
Eu preciso queimar...
— Pensei em usar o meu desejo para presentear Damon. — Sou direta.
Ele apenas olha para Scarlet e a peituda gostosa manda um beijinho na minha direção, se
despedindo. Ela avisa:
— Eu e sua irmã vamos começar a montar a festa daqui a meia hora.
Assinto. Papai começa a brincar com a pantera, movendo rapidamente os dedos enquanto o
filhote tenta pegar a isca imaginária com suas patas monstruosas.
— Damon precisa de amor, então damos amor a ele. — Meu timbre é tão meigo que papai
sorri.
— Se ele ganhar uma Boneca, não vai mais querer se casar com Beatrice.
Reviro os olhos.
— Se ele se apaixonar por uma Boneca, ele será obrigado a entrar no Jogo, e se casar com
Beatrice.
Sorri com malícia.
— Ele terá algo para zelar.
É tão fácil manipulá-lo que eu não sei como ninguém mais consegue. Cherrie é a única
pessoa em que ele confia desde o incêndio que levou sua família e fodeu os Kühn.
— Eu já pensei em tudo — revelo, em um tom de conspiração. — A dançarina.
— A que Damon se referiu no dia da partida? A dançarina russa?
Faço que sim com toda a confiança que eu tenho, para que ele não perceba quão além disso
estou indo, e não resisto a um lindo sorriso.
— Eu já falei com o Dono dela, na verdade. — Acrescento. — Consegui negociar.
Nem verifica a informação, rindo sozinho.
— Eu ainda estou mapeando os interesses dele, mas se isso o agradar.
Sou exatamente um ano mais velha que os gêmeos. Nascemos no mesmo dia, mas a festa é
sempre minha.
— Vamos fazer uma festa surpresa para ele. — Continuo, sutil como o canto da serpente.
— Na festa eu dou o presente.
Arqueia uma das sobrancelhas.
— Cherrie quer abrir mão da sua festa anual? — Levanta-se do colchão, divertindo-se com a
ideia. — Mandarei uma mensagem assustando o Damon. Às 18h está bom?
— Não o deixe desconfiar. — Peço, acenando um tchau com a pata da pantera.
Quando ele fecha a porta, aquela sensação de não estar dentro do meu corpo, de ver a
situação de fora como em um filme, se apodera das minhas células, e eu não consigo me mover,
pensar ou existir pelos próximos segundos, então as lambidas do gatinho me trazem de volta.
Deito-me no travesseiro sujo de geleia, fitando a bela criatura que lambe e morde meus
dedos. Estico a barriguinha dele para ver o sexo. Uma fêmea. Decido dar a ela o nome das
minhas maiores inspirações.
— Diga-me, Mata Hari, como é ser uma pantera? — indago, acariciando as formas macias
da felina selvagem. — E os planejamentos para hoje? Já sabe caçar ou terei que te ensinar? —
Passo a mão por sua barriga. — Sim, também caço. — O verde de nossos olhos se encaram por
breves segundos. — Sei que você entende que tenho fome. Muita fome … — A gata selvagem
vê a sede de sangue na minha íris. — Infelizmente, no meu mundo, esse jogo é bem mais
complexo — pisco —, mas eu consigo, você sabe. O poder que te rege também guia os meus
passos.
Deixo-a na cama e abro meu MacBook para comprar o laço do presente do Damon, afinal a
bailarina precisa estar embalada. Depois, me arrumo como Cherrie e desço para ajudar as Young
a montar a decoração da festa surpresa.
— Parabéns pelo aniversário, rainha. — Crystal me abraça e Scarlet beija minha bochecha.
— O que está pensando para essa festa?
Minha irmã é o produto perfeito, uma Dama, o que todo Sangue em Ascensão sonha ter
como esposa, com um instinto materno arraigado e uma astúcia sutil, amorosa, paciente e fatal.
Scarlet também é o exemplo perfeito da sua categoria, uma Boneca, o que todo Jogador quer
encontrar na cama antes de dormir. Divertida, barulhenta, sexual e dedicada, pronta para
transformar qualquer fetiche em uma memória impossível de esquecer.
Eu também sou o produto perfeito desse Tabuleiro, uma Peça, desprovida de qualquer
sentimento complexo, uma espécie de protótipo criado para o Jogo que só pensava em vencer,
idêntica a eles, jogando do lado contrário.
As três Young, a combinação mais letal desse xadrez de mentiras e manipulações.
Enquanto Crystal escolhe os arranjos, Scarlet ordena onde cada funcionário deve colocar o
quê, e eu observo. Mamãe está fora, com titio Francis, e a casa é toda para os nossos caprichos.
— A decoração azul combina com a nova fase de Damon. — Comento com uma inocência
de Cherrie.
O azul dominante é suave, um tom que lembra o céu noturno iluminado por estrelas
cintilantes, e a iluminação ambiente destaca essas cortinas, criando uma atmosfera de
sofisticação e mistério.
A mesa principal é um espetáculo à parte. Um longo arranjo de flores azuis e brancas ocupa
o centro, destacando-se contra toalhas de mesa de um azul celeste. Talheres de prata reluzem ao
lado de delicados pratos de porcelana azul-petróleo, onde a luz suave das velas projeta sombras
dançantes nas paredes, contribuindo para uma atmosfera íntima e elegante.
Scarlet chama o pequeno bastardinho dela com o Rei, Amory, para soltar os balões azuis que
sobem e flutuam pelo teto, presos por fitas delicadas que ondulam como se estivessem dançando
no ar. O contraste com o branco das paredes e móveis amplifica a sensação de festa, só faltam os
convidados.
Scarlet e Crystal me obrigam a ir ao salão de beleza com elas. Enquanto o cabeleireiro
hidrata os fios loiros da minha irmã, que briga com o noivo Edwart Waddel por mensagem,
Scarlet relata para os funcionários, em minuciosos detalhes, suas experiências sexuais com o Rei,
como se não soubesse que eles espalhariam para mais e mais Coroados.
E é assim que ela torna George Young ainda mais reverenciado do que o poderoso Henry
VIII.
Enquanto a escuto, recebendo massagem nos pés, penso que todas as pessoas carregam fogo
dentro de si, mas o fogo de algumas pessoas é mais brilhante. Não é sobre sexo, é sobre poder, e
é aqui que reside o perigo da nossa brincadeira. O poder corrompe, se infiltra no coração como
uma erva daninha, levando qualquer pessoa a fazer escolhas que o privilegiam, em um caminho
escuro dentro dos seus próprios desejos.
Torno a estudar Scarlet, linda e com uma vivacidade expressiva. Cada Jogador deseja algo,
que cada Boneca é condicionada e treinada a suprir. Ela não é a sua única, mas papai escolheu
viver abertamente com Scarlet porque sustentar uma histriônica desse naipe dentro do nosso
universo quiet luxury é um privilégio exclusivo do Rei, ela é a demonstração do seu poder.
Não é o caso do Damon. Ele sempre viveu em cima do muro, é bom sempre que pode, mas é
pior ainda quando precisa proteger suas obsessões. Que face ele vai revelar quando tiver a
bailarina na palma da mão? Vai ser altruísta como a mãe foi? Ou vai se render ao desejo obscuro
feito o seu pai?
Tudo o que uma pessoa precisa para revelar sua verdadeira natureza, é enxergar o reflexo de
si do outro lado.
Quando voltamos para a casa, há Sangue em Ascensão por todos os lados, esperando os
gêmeos.
— Senhorita Young. — Uma voz inesquecível sussurra em meu ouvido.
Viro-me, perdendo o fôlego com a sua presença.
Seus cabelos e barba são um tom de dourado como ouro, e seus traços são másculos no
formato do nariz e na mandíbula. No entanto, nada se compara aos seus olhos. Parece que gotas
de raio de sol caíram dentro de suas íris, e só de encará-lo o seu fogo me consome como
combustível.
— Cartier Kühn.
Toma minha mão, beijando-a com toda a cordialidade e cavalheirismo que existe, enquanto
mantém o olhar fixo. Cada célula do meu corpo se arrepia com o roçar de sua barba em minha
pele.
— Você está tão distante desde o Torneio. — Adoro sua voz, aveludada e grossa como um
segredo proibido.
É isso o que nós dois somos.
— Também senti a sua falta. — Desvio o olhar para frente porque, se ele souber que está
falando com Europa, vai me arrastar para um dos seus porões e me fazer gritar tanto que minhas
cordas vocais nunca mais serão as mesmas.
Eu amo a maneira como somos selvagens juntos.
— Tem tanta coisa acontecendo. — Vira-se para a mesma direção, observando a festa. — Já
sabe do Damon?
Passo a língua em meus lábios, para não sorrir.
— Não. — Viro-me para ele. — O que devo saber?
Cartier esboça um sorriso experiente, mas não diz nada, essa é a sua essência. Todos
precisam de Cartier Kühn, porque todos podem contar com ele, sem ter seus segredos revelados
ou julgados. O bispo é uma figura quase espiritual que todos recorrem por milagres, isso torna
poderoso.
— Damon está vindo! — Alguém avisa, apagando as luzes para que todos nós esperemos no
escuro.
Ele não leva um susto, embora esteja claramente abalado com a surpresa. Sou a primeira a
me aproximar, na direção dele.
— Sai da minha frente antes que eu te machuque. — Nem sequer me encara, com maxilar
travado.
Seguro no seu braço com uma das mãos e todos os seus músculos se contraem ao meu
toque. Eu não sei o que ele faria se o Rei não se aproximasse, dando-lhe parabéns e perguntando
se gostou da surpresa.
— Nós o amamos, filho. — Acaricia seu rosto. — Desejamos que saiba disso.
Damon abaixa a cabeça.
— Eu sei. — Força um sorriso tão péssimo que o papai percebe.
— Já deu o presente a ele? — George me pergunta, obrigando Damon a me fitar.
Então eu estico o estojo retangular na sua direção, com ele me queimando com o olhar como
se pudesse abrasar o meu fogo.
— Pega. — Incentivo com meu melhor sorriso.
Ele abre o involucro. Trata-se de uma fita de seda com um luxuoso pingente de ouro branco
escrito DAMON.
— Sua primeira Boneca. — Papai bate nas suas costas. — Divirta-se com a Zoya.
Damon me entrega um olhar desesperado e eu sorrio com o incêndio que causei com nada
mais que um homem obcecado e a obsessão perfeita.
Ele pode perguntar ao rei quem é Zoya e correr o risco de perder seu brinquedo recém
adquirido. Ou, ele pode demonstrar gratidão a família real e aproveitar os poucos momentos que
terá com sua boneca nova.
— Damon! — Sua avó se aproxima para segurar em seu rosto pálido com um olhar severo.
— Desde quando você faz viagens sozinho e se enrosca com gatas de rua? —Refere-se aos
arranhados.
— Não é de rua. — Acrescento, como uma querida observadora. — A Kitty faz parte do
Jogo.
As crianças vêm parabenizar Damon e ele sai de perto de mim, deixando-me só com a vista
da nevasca caindo lá fora.
Imagino o quão refrescante deve ser sentir o frescor da neve banhando uma pele que arde em
chamas, mas, deixar as minhas brasas queimarem todo o Tabuleiro é um mérito exclusivo de
Europa Young.
Xeque-mate.
DONO
É muito tarde quando a voz de Damon murmura em meu ouvido feito um sopro da brisa de
inverno mais quente que já senti tocar a minha nuca.
— Voltei. Está acordada, Oceano? — Finjo que não, de olhos fechados, até que desista de
tentar falar comigo e me deixe em paz. — Foi o meu aniversário — conta, sem se importar com
o fato de eu, tecnicamente, não estar ouvindo. — Meu presente foi você.
Fica por perto mais alguns segundos antes de suspirar alto, se afastar e se sentar na poltrona.
Não me sinto culpada por não o parabenizar, ao contrário, há algum prazer em vê-lo sofrer
por minha causa, mesmo que isso signifique estar descontando em um inocente toda a mágoa que
me sufoca. Não posso evitar o ódio que me penetra toda vez que a voz de Damon invade meus
pensamentos, tornando tudo real. Estou apavorada com a ideia de ficar sem a pessoa que cuidou
de mim, gostaria que fosse ele aqui.
Sem meu Dono, é como se eu deixasse de existir.
Não que eu já tenha perdoado tudo o que ele fez comigo, é que encontrei tantas justificativas
que não consigo culpar ninguém além de mim mesma.
Ele poderia ter me machucado acordada, mas me dopou, porque não queria que eu sofresse
de verdade, só precisava que tudo acontecesse exatamente daquele jeito. Ele sempre cuidou para
que ninguém me quebrasse, então por que ele fez isso? Meu Dono não vê prazer na violência
física, ele apenas gosta de brincar com a mente. Mas... e se ele repetir isso comigo acordada?
As lágrimas escorrem pelo meu rosto, silenciosas, enquanto eu me esforço para não ondular
meus ombros. Mal consigo respirar, mas não por causa da dor física, e sim pela traição do meu
Dono. Ele prometeu que cuidaria de mim...
Sei que é outro dos seus joguinhos, talvez esteja me esperando resolver o enigma para me
levar consigo. Será? Sinto-me burra por não ser capaz de desvendar o quê. Mas como vou
conseguir fechar os olhos perto dele de novo?
Eu confiaria nele mesmo se ele pedisse para me jogar de um penhasco, mas agora a
confiança está quebrada, e isso me parte mais que tudo.
Culpo Damon. Tudo começou a ruir depois que ele apareceu na minha vida, transformando
tudo, de um baralhado sustentável a um nó sufocante. É desesperador dar pirouettes com todas
essas tentativas e só me ver, a cada volta, mais presa em um laço apertado.
Durmo pensando em como me livrar dele.
Quando acordo no dia seguinte, com as enfermeiras me medicando, é Damon quem está na
sala. Não são nem seis da manhã.
— Bom dia, Oceano.
Ele veste uma camisa de linha azul clara com um colete azul escuro, e calças off-white, cujas
cores conversam, combinando com a barba e o cabelo escuro, os supercílios e os olhos,
castanhos, me fitando intensamente.
— Você não vive...? — pergunto.
— Estou vivendo agora.
Aperto o controle remoto da minha cama, levantando-me até uma posição sentada, brava por
acordar irritada, com dor e com ele. Encaro novamente um dos Jogadores mais importantes do
Jogo, CEO, com conhecimentos de hipismo, ballet e mais um milhão de coisas que não sei,
porque a viagem de Natal acabou mais cedo.
— Jura que não tem nada mais interessante do que ficar me vendo dormir? — tenho pena.
— É claro que tem. — É impressionante como o seu sorriso consegue ser tão grande. —
Conversar com você.
Meu coração dispara e isso me dá nos nervos ao ponto da minha cabeça doer.
— Quando vou para casa? — as palavras arranham a minha garganta, como se eu tivesse
gritado muito nos últimos dias.
Eu gritei, dentro da minha mente.
— Não lembra do que te disse ontem? — balança a cabeça, amoroso e paciente.
Minto com um gesto negativo, porque não acredito. Damon não é meu Dono, apenas quer
se sentir como. Não estou fantasiada de bailarina de porta-joias, não recebi as instruções do meu
Dono, não vou realizar os fetiches dele. Estou disposta a brigar, tenho palavras horríveis na ponta
da língua, apenas aguardando o momento de usá-las, basta que ele repita tudo o que me disse
ontem.
Parece que o homem está lendo a minha mente, se calando como se não quisesse entrar no
meu jogo, me irritando ainda mais. Estamos brigando com nossos olhares, a tempestade de terra
contra a fúria do mar, quando as técnicas de enfermagem chegam com a refeição do café da
manhã. Uma bandeja de frutas, suco, chá e torradas.
Recuso no mesmo segundo; torturar Damon é a única coisa que me acalenta.
Exceto se ele não continuasse tão confiante.
— Se não comer, não vai ficar mais forte, não vai ganhar alta e voltar para a casa. — Fala
como se eu fosse uma criança.
Começo a tremer com a sua audácia em me ordenar alguma coisa. Não estamos em uma
sessão.
— Você não manda em mim. — Revido, cruzando os braços.
Pende a cabeça para o lado como se estivesse ensinando um novo comando para seu filhote
de estimação.
Corsário, Odalisca…
— Coma.
Fito a minha bandeja outra vez e minha barriga ronca, meu corpo inteiro cansado dos
equipos de soro presos às veias. Subo o olhar para Damon e ele permanece com a atenção presa
em cada movimento meu, seu olhar denso sobre mim.
Meu estômago se contorce com a sensação de ser observada por ele. Minhas pernas ficam
fracas e meu coração aperta.
— Por que está me olhando assim? — estremeço.
Como se eu fosse sua presa.
— Apenas admirando o que agora é meu.
Escolhe as palavras para me atingir, porque dá um sorrisinho de vitória.
Veremos.
Pego a tigela e levo até a boca, encarando-o fixamente enquanto coloco a língua para fora,
pronta para comer as frutas feito a Kitty. Damon se levanta, aproximando-se lentamente e, quanto
mais perto, maior, mais alto e com ombros mais largos fica.
De repente, me sinto uma criança, pequena e frágil, implorando pela atenção de um
adulto. Minhas palmas começam a suar.
— Não. — Tira a tigela das minhas mãos. — Você não é mais a Kitty, é a minha bailarina
agora. — Cada palavra sai pausadamente. — Minha bailarina não come como um animal.
Meu coração aperta e eu seguro as lágrimas de medo, por não saber o que esperar dessa
situação que invalida completamente a maneira como vivi até aqui. Desejo desafiá-lo, mas meu
timbre sai quebrado pelos lábios trêmulos.
— Então não vou comer...
Não tira a atenção de mim, nem para segurar o garfo, pegar a fruta e levar até a minha boca,
de um jeito que me hipnotiza e me obriga a abrir a boca para receber as mangas, sorrindo com
orgulho de um jeito que me desconcerta.
— Boa menina.
Meu Dono cuidou muito de mim, mas nunca me deu comida na boca.
— Boas notícias! — A médica adentra, claramente ansiosa pela atenção de Damon, porque
se dirige a ele. — Os exames da sua namorada estão melhores.
Meu coração dispara como um tambor. Eu sempre quis ter um namorado.
— Namorada? — Meu timbre sai agudo. — Não somos...
Damon passa os braços pelos meus ombros, como se me pedisse para concordar, embora o
rubor no seu rosto entregue quão fracassado foi seu plano. Não é melhor ser meu Dono? O que
ele tem na cabeça?
A médica também percebe a nossa tensão.
— Parece que alguém decidiu pelos dois. — brinca ela, aliviando o clima, e então me fita,
séria. — Você só tem uma consulta com a psicóloga e vai para a casa, Aleksandryia. Como está
se sentindo?
Minha cabeça está girando.
— Com vontade de ir ao banheiro.
Ela pergunta se deve chamar alguém da equipe e Damon se oferece para me ajudar, mas eu
recuso as duas opções, esperando-a sair da sala para me descobrir dos lençóis, deparando-me
com os hematomas e cortes pela minha perna.
É tão assustador que meus olhos marejam e eu tento ficar em pé, porém estou tremendo
demais, e piso em falso na escada da maca. No segundo em que vou cair, Damon me segura em
seus braços. É como se o peso do mundo estivesse em suas íris, e, quanto mais me fita, mais
prisioneira me torno.
— Você está bem?
Sua voz me traz de volta e eu murmuro um sim, me desvencilhando.
Sou uma bailarina, sei o que é sentir dor nos pés, eu as aceito como uma parte de mim,
acostumada com as pernas e juntas doloridas. Isso é diferente. É como se eu estivesse
estraçalhada, como se minhas pernas se esfarelassem a cada passo, como se meu quadril
estivesse quebrado e meus ombros pesassem toneladas. Quero desistir e voltar para a cama, mas
passei tempo demais tomando soro, desacordada. Estou apertada.
Damon está a um palmo de distância, pronto para me amparar caso meus pés me
desamparem, mas não vai me tocar a menos que eu peça.
— Me ajuda? — Minha voz embarga, derrotada. — Estou com dor.
Vê o quanto me parte a alma pedir isso, mas, em vez de se aproximar, se afasta até sua
poltrona. Pedi a ajuda do meu Dono em meu momento mais vulnerável e ele riu de mim. Recorri
a humilhação de pedir a mesma coisa para Damon e me ignora para pegar o celular?
As lágrimas que brotam nos meus olhos são de ódio e eu respiro profundamente, pronta para
andar até o banheiro como se a dor não existisse, nunca tive opção de senti-las mesmo, eu não
posso ser fraca. Quando a música começa a tocar no iPhone dele, paraliso no lugar.
No primeiro momento, não entendo o que ele está fazendo, mas, quando coloca a melodia do
ballet de Romeu e Julieta, da variação balcony Pas de deux, a mais romântica e trágica dos
repetórios, fica bem claro que ele está querendo me distrair da dor com a coisa que mais amo, o
ballet.
Damon, então, se ajoelha diante de mim, estendendo uma das pernas, que atravessam parte
do quarto, no melhor arabesque que consegue usando calças de alfaiataria, de um jeito que
consigo ver os músculos da coxa se contraírem com o esforço, enquanto a outra se dobra.
Ele está fazendo um convite para um mundo onde só nós dois existimos.
Ao mesmo tempo, seus braços desenham linhas expressivas na minha direção, que seria
arabesque à la seconde se ele tivesse mais técnica, mas não deixa de ser lindo, convidando-me
para o enlace.
É o escapismo perfeito da realidade que me esmaga, imaginar que estamos em um palco,
como se não houvesse traição ou dor penetrando minhas veias.
Sinto-me boba por estar feliz, mas faço um port de bras, entrelaçando nossas mãos e braços,
de um jeito que o tempo parece congelar enquanto nos prendemos em nossos olhares enlaçados.
E então Damon me levanta, mas não em um colo normal, e sim em um lift, colocando-me
nas suas costas, de um jeito que me sinto leve, como se estivesse voando, com meus braços e
pernas soltas, brincando com o ar enquanto ele caminha com cuidado e graça até o banheiro da
suíte, há poucos metros.
E sim, meu corpo dói muito mais do que se ele apenas me colocasse nos braços, mas Damon
também parece me entender ao ponto de saber que a dor não é o problema, o motivo dela é. A
dança me anestesia, por isso ele quis usá-la agora.
Amo os segundos em que estou encaixada em suas costas, ao ponto de que tento esticar a
perna em um attitude, mas desisto antes dele me colocar no chão.
Ele se ajoelha, mas não consegue ter a mesma desenvoltura, o que não é um problema tendo
em vista que a sua prioridade é me descer com toda a cautela que carrega dentro de si, colando
nossos rostos.
Não sei o que dizer para que ele saiba que estou grata, mas tento.
— Você tem força como um bailarino, mas precisa treinar o equilíbrio. — Seus ombros
caem sutilmente. Disse algo errado? — Releves em retires costumam ajudar.
Adentro o banheiro queimando de vergonha, e seguro na maçaneta, mas conforme fecho
lentamente a porta, a música fica mais baixa, e eu não quero ficar sozinha para ver o estrago na
minha carne, lembro-me de estar tomando banho frio com o sangue escorrendo e a dor da
memória me faz querer chorar.
— Traz a música mais perto?
Damon assente com seriedade, enquanto eu apenas fecho um pouco a porta.
— Quer que eu coloque dos Corsários? — lembra-se que é minha favorita.
Levanto a camisola do hospital, tentando não me desesperar. Já vi minhas coxas
machucadas, mas ainda não tentei tirar a calcinha. Quando faço, no automático, não imaginaria
que o absorvente grudou no ponto que eu nem sequer sabia que havia levado. Foi tão grave
assim?
— Não! — Sinto um misto de medo, ódio e dor à medida que solto o xixi e minha vagina
arde como se a urina estivesse saindo por esse buraco. — Escolhe uma péssima, horrível,
desgraçada, maldita... é... desgraçada, horrenda…
— Filha da puta? — Começa me lembrar dos palavrões, para eu repetir. — Porra? Pau no
cu? — Fica em silêncio, como se acabasse seu repertório. — Preciso aprender alguns com
Cartier.
Solto um riso fraco.
— Passou. — Suspiro, aliviada como se tivesse sobrevivido a grande guerra.
Mas ainda preciso me secar e, inevitavelmente, ver resquícios de sangue. É como se as
lágrimas que não foram derramadas até esse momento encontrassem seu caminho agora,
alimentando o desespero do trauma.
A imagem do sangue na cama e no meu corpo me paralisa, como se eu fosse ver tudo
manchado de vermelho quando chegar em casa. Pisco e esse banheiro é invadido pelo passado, e
o horror, como uma maré crescente, inunda minha visão.
Tudo está vermelho.
Mais lágrimas brotam dos meus olhos, com o terror dominando cada célula do meu corpo.
Sinto como se estivesse afundando em um abismo de tristeza, cercado pela escuridão. Começo a
respirar descompensadamente. Coço os olhos, mas não importa o quanto pressione o globo
ocular, não muda a percepção do que eu enxergo. O que está acontecendo comigo?
— Tudo está vermelho, tudo está vermelho! — grito, horrorizada. — Socorro! — Fecho os
olhos, mas no segundo seguinte Damon está ajoelhado na minha frente.
— Não tem nada vermelho, Aleks. Nada. — Pressiono forte as pálpebras em meus olhos,
recusando-me a abri-las, enquanto ondas de arrepio me invadem com violência, me fazendo
tensionar o corpo. — É só o sangue da sua menstruação, Oceano. — Explica em tom baixo. —
Não precisa ter medo. — Faço que não, colocando as mãos na frente do rosto.
— Estou com medo! — desabafo em um soluço alto e angustiante. — Ahhhhh!
Então ele faz outra coisa surpreendente. Damon segura na minha calcinha e puxa o
absorvente sujo, amassando-o e o jogando no lixo.
— Não tem mais sangue! — Diz, depressa. — Acabou, Aleks... — Toca no meu joelho e eu
me retraio. — Não precisa ter medo.
Abro os olhos com cautela, me acalmando à medida que enxergo tudo normal. Damon
continua me fitando com uma doçura que não entendo.
— Você gosta de me ver quebrada?
Seus olhos, pouco a pouco, se tornam mais brilhantes, como se minha pergunta o
emocionasse, e ele sorri com o canto, acentuando a covinha do seu rosto. Segura em minhas
mãos e não se importa de selar os lábios em meu dorso.
— Eu odeio, Oceano. — Sei que é verdade pelo timbre rouco, vindo da alma. — Como eu
nunca odiei nada.
Olho para nós dois nesse banheiro de hospital.
— Por que continua aqui?
— Por que Siegfried se apaixona por Odette, mesmo quando ela estava amaldiçoada em
forma de pássaro?
Fungo alto.
— Porque ele fica encantado por sua beleza e pureza.
Uma única lágrima escorre do seu rosto e ele morde os lábios, hesitante, antes de tocar nos
meus cabelos e declarar feito uma poesia.
— Seja lá do que nossas almas sejam feitas, a dela e a minha são iguais. Se tudo mais
perecesse e ela permanecesse... — Tece os dedos pelas minhas bochechas até o queixo, me
admirando profundamente. — Eu continuaria a existir; e se tudo o mais permanecesse e ela fosse
aniquilada, o universo se tornaria um grande estranho.
Não sei o que responder, meu Dono nunca me disse nada tão bonito.
— Emilly Brontë, Morro dos Ventos Uivantes. Nunca leu?
Faço que não.
— Só sei ler em russo... — limpo as lágrimas com as costas das mãos.
E meu Dono nunca me deu um livro...
Alguém bate na porta do quarto, de modo que Damon se levanta e vai atender, enquanto
lavo as mãos e volto para cama a passos lentos. Antes, paro em frente ao espelho e abro a
camisola, me obrigando a me encarar em uma tentativa falha de sentir menos medos.
Uma sensação de descrença toma conta de mim.
Os meus olhos se fixam na cena diante de mim, e a cor desaparece do meu rosto. A realidade
é tão avassaladora que sinto meu corpo tenso, como se estivesse congelado diante do choque.
Uma onda de incredulidade se espalha, deixando-me fraca diante da brutalidade a qual fui
submetida. O que fiz para merecer? Eu sempre fui perfeita... A respiração fica presa, e meu corpo
reage com uma mistura de horror e perplexidade, com a raiva subindo. Por que ele fez isso
comigo? Por quê? Por que ele foi tão traíra? Tão cruel?
A mágoa e a dor tomam conta de mim como um manto sombrio, envolvendo meu coração
em um rancor profundo. Cada batida parece ecoar a intensidade do sofrimento que se instalou em
minha alma, com meus pensamentos agindo feito facas afiadas que cortam mais fundo e mais
fundo...
A voz do Duncan me tira da minha mente.
— Tenho uma surpresa para você, mas só se parar de chorar.
Ele não está olhando para meu corpo, mas para meus olhos. Damon me puxa para um abraço
apertado e reconfortante, com o cheiro familiar dele preenchendo os meus sentidos e me
acalmando, de modo que os soluços se tornam respirações longas e calmas.
— Por que meu Dono fez isso comigo?
Ele demora para responder, travando o maxilar.
— Porque ele está pedindo para... — morde a língua, como se estivesse cuidando das
palavras. — Ele está cansado de viver, Aleks.
Franzo o cenho, ainda confusa e sem entender sua expressão. Damon beija minha testa.
— Está pronta para ir para a casa?
De novo os pensamentos. Como vai ser chegar em casa depois de tudo o que aconteceu?
Meus cisnes estão lá ou aquele pesadelo foi real? Mais do que isso, como vou viver naquele
lugar sabendo que não tenho mais os meus cachorros?
Cada detalhe da memória em que os entreguei para a adoção me atinge violentamente, e meu
peito aperta, enquanto as lágrimas teimam em se formar nos cantos dos meus olhos.
É a minha obrigação, endireito os ombros. Preciso voltar para o meu Dono, mas quero pedir
socorro. Por um momento, desejo que ele nunca mais me toque, porém sei que, quando ele
aparecer na minha frente, vou deixar fazer tudo de novo comigo. Fiz uma promessa, é minha
obrigação cumprir com meus votos.
Mas não quero...
— Vamos. — Minha voz é dura.
Não quero me vestir porque não quero pensar demais, e apenas vou em direção ao corredor,
de camisola, determinada e amargurada como se meus sentimentos não importassem. Então
Damon me cobre com o seu casaco pesado, coloca as mãos nas minhas costas e me guia pelo
hospital até o estacionamento, onde o mesmo modelo de Jaguar que me levou para ele, nos
aguarda.
Mas não seguimos o mesmo caminho para a minha casa. Em vez disso, o percurso segue até
o centro de Manhattan, em um edifício perto da quinta Avenida.
Não sei como reagir. Uma parte de mim quer chorar e implorar para ir para casa, mas a outra
está desesperada com a ideia de voltar para aquele lugar solitário carregado de memórias
pesadas. Com o meu Dono...
— Para onde estamos indo?
Acaricia o meu rosto com o polegar.
— Você é o meu segredo mais precioso, bailarina. Estou te escondendo.
Engulo em seco, encarando os fatos, por mais que não queira.
— Do meu Dono?
— Eu sou seu Dono agora.
Faço que não, relutante, me esquivando do seu toque.
— Isso é loucura! — Sou dominada pelo medo novamente. — Ele sempre sabe tudo. Ele vai
me achar e me machucar mais...
Seu maxilar trava, mas Damon não demonstra medo, e sim raiva na maneira como cerra os
punhos. Também não tenta me convencer com palavras, apenas fica em silêncio o restante do
caminho. Quando chegamos, sai do carro, atravessa, abre a minha porta e estende a mão, com o
comando.
— Vem.
Coloco as mãos trêmulas junto ao corpo.
— Quero ir para a minha casa. — Digo, embora não seja verdade. Estou com medo de voltar
lá, mas temo mais ainda em imaginar o que meu Dono pode fazer comigo se eu não voltar para
ele.
— É uma ordem, Aleksandryia.
— Você não entende! — Grito e o chuto, mas Damon segura minhas pernas e me puxa para
fora, o que me deixa furiosa ao ponto de acertá-lo no rosto com tanta força que minhas mãos
doem, e ele segura as duas, me imobilizado e me tirando do carro. — Me solta! — grito tão alto
que o estacionamento ecoa a minha voz. — Meu Dono vai acabar com a sua vida! — prometo,
fitando o fundo dos seus olhos, mas me arrependo no segundo em que ele, perplexo, alivia um
pouco da força com que me segura. — E com a minha também... — sussurro, perdida. — Com
nós dois, se eu não voltar. — Volto a postura. — Prefiro que não fique no nosso caminho,
Damon...
Ele simplesmente me pega no colo, imobilizando meus braços, e me leva a força até o
elevador, sem se importar com as pessoas que saem assustadas com os meus gritos, me roubando
descaradamente.
— Veremos quem fica no caminho de quem.
DISTORÇÃO
A borboleta dos meus sonhos, a que tenho medo profundo. Viva, tentando bater as asas no
recipiente vítreo. Apoio meu queixo na mesa, observando-a, imóvel.
É questão de tempo até que morra.
Assisto isso acontecer pelo resto do dia.
TRANSTORNOS
Nunca pensei que ficaria tão doente como estou pela minha borboleta russa.
Isso é clínico.
A febre não deixa o meu corpo, e os delírios que ela traz se tornam cada vez mais reais,
bagunçando os meus sentidos. Ouço a voz dela com o seu sotaque russo gostoso, no silêncio.
Sinto o cheiro dela, mesmo estando em outro continente. Em todos os lugares, não importa em
qual reunião eu esteja, só consigo vê-la na mesa, nua. Na cama, eu me masturbo por horas, e
quando fecho os olhos, lá está ela, implorando pelo meu pau.
Assisti-la pelas câmeras funcionou como um remédio.
E eu me viciei.
Uma tela não é mais o suficiente.
Fui visitá-la assim que cheguei em Nova Iorque. Esperei a minha bailarina dormir para
entrar — com medo do que faria se a pegasse com aquela camisola fácil de rasgar, sabendo que
ela não estava de calcinha.
E então o meu lindo cisne branco mostrou que estamos infectados pelo mesmo doce veneno.
Ela se transformou no cisne negro diante dos meus olhos.
Ela me enlouqueceu.
O melhor a fazer é ir à clínica da psiquiatra de Aleks.
É o primeiro horário da manhã, e há pacientes aguardando-a. Chego sem avisar, dou bom
dia, e as funcionárias ficam alertas com os Coroados na porta, enquanto entro tranquilamente. O
Rei me ensinou esse truque. Somos Sangue em Ascensão, parecemos muito mais ameaçadores
quando estamos apenas sendo educados.
Talvez seja a minha aparência que os intimida. Embora eu esteja com um terno da minha
coleção Schiaparelli, corte de cabelo recente e barba cerrada, ainda assim, tenho a sensação de
que tirei o ar desse lugar. Sinceramente, é o que desejo.
Não faz nem um minuto que cheguei quando a assistente me convida até a sala da Dra.
Lauren Allorsi. O lugar é bonito. As paredes pintadas em tons suaves, combinadas com
iluminação indireta, criam um ambiente tranquilo. Quadros discretos, mostrando paisagens
serenas, adicionam um toque de serenidade ao espaço.
— Bom dia, senhor Duncan. — Está sentada em sua cadeira de escritório, com os ombros
erguidos como se não tivesse motivo para sentir vergonha. — Como posso ajudá-lo?
Está com a caneta pronta para registrar informações importantes em um bloco de notas, ao
lado do MacBook. Cruzo os braços.
— Não pergunte como pode me ajudar, se não tem competência para isso.
Não tenho a intenção de ser grosseiro, mas não me importo em como soa. Ela tinha uma
única obrigação: cuidar do meu Oceano, e ela falhou.
— Sente-se, senhor. — Convida, esfregando as mãos uma com a outra. — Explique-me
como não estou sendo competente.
Demoro algum tempo decidindo se vou ouvir o que ela tem antes de acabar com a carreira
dela. Veja bem, não gosto de destruir pessoas, mas, quando se entra no Jogo, só se sai morto, e
ela aceitou a oferta antes mesmo de ponderar o que significava ser psiquiatra da minha Boneca.
Serei bonzinho se a única coisa que eu ferir for a reputação dela.
— Passei mais de um mês, fora. — Começo em tom de diálogo, não acusação, sentando-me
na poltrona verde-água. — Estou curioso para saber que progresso você teve com a minha
bailarina, nesse tempo.
Observo os detalhes ao seu redor, como os inúmeros diplomas atrás de si.
Lauren é uma mulher de cinquenta anos, especializada em psiquiatria forense pela
Universidade de Cambridge, especialista em Estresse Pós-Traumático e em Terapia Cognitiva-
comportamental pelo Ambulatório de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria de Yale. Trabalha há
mais de trinta anos na área e é referência em vítimas de violência sexual.
— Os primeiros meses são sempre mais difíceis...
— Não perguntei isso.
Ela sorri, contrariada.
— O que o senhor consideraria como progresso, senhor Duncan?
Apoio as costas na poltrona, desviando a atenção do celular para ela.
— Não responda com uma pergunta para fugir da resposta, Dra. Lauren, não é inteligente e
me deixa com ainda mais raiva.
Ela suspira, vendo que não tem para onde correr. Eu a encurralei. Não vai ser uma boa ideia
usar a desculpa de sigilo médico paciente.
— Eu mapeei o cérebro da sua bailarina. Normalmente um diagnóstico de algum transtorno
leva meses, eu identifiquei dois transtornos em menos de trinta dias, e entrei com medicação, fiz
ajustes que já estão fazendo efeitos nos sintomas imediatos do TOC e do TEPT dela. — A
médica já havia me enviado os laudos com os transtornos, então não me surpreendo mais do que
já pesquisei. — Isso não apenas trouxe qualidade de vida à sua bailarina, como aliviou a
sobrecarga cerebral dela, como se “me desse espaço” — faz aspas — para iniciar novas
investigações, isto é, ver quais redes neuronais estão mais prejudicadas e iniciar novos
tratamentos. Foi isso que eu fiz em um mês e dez dias, senhor Duncan. — Tento não parecer
surpreso, mas ela percebe. — Aconteceu alguma coisa com a sua bailarina, que fez o senhor
duvidar do imenso progresso dela?
Lembro de nós dois na madrugada anterior e sinto o sangue do meu corpo descer, me
endurecendo, só de lembrar da minha gostosa naquela cama, mexendo seu corpo, se
masturbando, gemendo, com tanta sedução que me deixa fora de mim e eu suspiro lentamente.
Penso também no que Aleks fez em seguida e meu coração é dominado pelo peso que me
trouxe até aqui.
— Ela repetiu comportamentos e me confundiu com alguém do passado dela.
— O Dono? — adivinha.
Arqueio uma das sobrancelhas.
— Ela fala dele?
— Ah sim, o tempo todo. Ela só fala nele. Pensei até que fosse o senhor.
Meu coração dispara com a informação de que ela fala de mim o tempo todo, e eu sorrio
discretamente. É como se eu estivesse vivendo pela primeira vez a reciprocidade de uma
obsessão. Podemos ser loucos juntos?
— Por que a senhora acha que sou eu? — meu timbre sai alegre.
— O Dono tem acesso a casa, a câmera, aos recursos, a rotina e aos horários, determinando
cada movimento dela.
Não sei muito bem como me sinto com a informação.
— É, sou eu. — Ao mesmo tempo em que há orgulho, há um desconforto em ocupar essa
posição. — Mas também houve outro, no passado dela.
Ela faz uma breve anotação e, não sei por que, deixo que me analise.
— Qual a diferença entre o senhor e o outro? — pergunta.
Tento não ficar ofendido, mas meu sangue esquenta, e eu me movo na cadeira, cruzando as
pernas.
— O óbvio: ele a machucava?
— Como?
Solto com um riso sarcástico.
— Ele a estuprava. — Meu timbre sai arrogante, mas a médica não parece se importar. —
Ele a dava para outros animais fazerem o mesmo. Ele é um monstro.
Há uma breve pausa, preenchida apenas pelo suave arrastar da caneta sobre o papel
enquanto a médica processa as informações.
— E ela sabe?
Ela sabe que ele a estuprava? Que os programas que ela fazia eram abusos? Que ele é um
monstro? Ela sabe que ele só queria o seu mal?
Lembro dela chorando por ele no hospital, com uma lealdade e inocência que partiu o meu
coração. Todas as palavras na ponta da língua, para respondê-la, desaparecem.
Também mudo a minha postura, apoiando as mãos na mesa.
— Quem tem que me dizer isso é você, a médica que eu estou pagando, muito caro, para
mostrar isso a ela.
Tira os óculos de grau para fitar os meus olhos, de um modo que eu sinto a seriedade do que
ela deseja me dizer, e deixo meus ombros caírem com certa submissão.
— Senhor Duncan, o senhor me permite ser sincera e dizer tudo o que eu descobri e penso a
respeito da minha paciente?
Nossos olhares se encontram nesse momento de silêncio, de modo que concordo com a
cabeça.
— Por favor.
— Por meio dos exercícios e alguns poucos diálogos, consegui identificar diversos padrões
comportamentais na Aleksandryia, que vi em muitas outras pacientes ao longo da minha carreira,
tendo em vista que essa é a minha área de excelência. — Solta um suspiro profundo, revelando a
gravidade da situação e o quão desconfortável está. — Para começar... — coça a nuca, sem saber
como dizer. — Os sintomas dela são claramente associados a vítimas de exploração sexual. Ela
esteve praticamente a sua vida toda em uma dinâmica de escravidão sexual. — Conta com os
dedos: — O cárcere privado e a restrição de liberdade, a privação de lazer, o isolamento social, e
o controle financeiro. Tudo isso em um espaço longo de tempo, as lesões são profundas, além
dos traços que indicam que ela sofreu abuso sexual antes da formação completa do seu cérebro.
— As palavras me atingem como uma onda repentina, e uma sensação de peso se instala no meu
peito. — Por exemplo: o transtorno de ansiedade, a raiz do TOC, o Transtorno de estresse pós-
traumático, a baixa autoestima e dificuldade de estabelecer limites, problemas na sexualidade
com comportamentos destrutivos, dificuldade em expressar necessidades e em defender os
próprios direitos, culpa, flashbacks e pesadelos.
A minha respiração, que parecia automática até então, requer esforço consciente, e eu
inspiro fundo, tentando encontrar algum equilíbrio em meio à torrente de informações.
— O senhor já ouviu falar em síndrome de Estocolmo, senhor Duncan?
Balanço a cabeça. A necessidade de entender e buscar respostas começa a se manifestar, mas
a minha mente parece um labirinto confuso.
— O que tem a ver?
— A vítima com síndrome de Estocolmo entende que os recursos de sobrevivência básicos
vêm do seu agressor e que ter um comportamento dócil e submisso poderá dar a ela alguma
vantagem mínima. — Me olha nos olhos para transmitir a seriedade do que sai da sua boca. —
Além disso, uma maneira de minimizar os impactos da violência sofrida, é a romantização das
violências. Pense comigo, senhor Duncan, você está preso ao seu abusador. É mais fácil aprender
a amá-lo ou continuar o odiando? O que gasta menos energia em um ambiente onde os recursos
são limitados e escassos?
O impacto é como se o chão tivesse sido subitamente puxado debaixo dos meus pés. Os
meus olhos fitam o vazio por um momento, enquanto a mente corre para assimilar a informação.
Uma mistura tumultuada de emoções começa a se formar: choque, incredulidade, talvez um
toque de desespero.
— Está me dizendo que ela não gosta de mim? Ela só me vê como uma forma de
sobrevivência?
A Dra. faz uma pausa no discurso para oferecer um sorriso compreensivo, ajustando o tom
da voz em uma sensibilidade que combina com as emoções envolvidas.
— Senhor Duncan, como o senhor mesmo frisou, o tratamento de Aleksandryia começou a
um mês e dez dias. O senhor acha que em 40 dias conseguimos curar todos esses estragos que
aconteceram ao longo de toda a vida dela?
Abaixo a cabeça.
— Minha dúvida não é essa. — Minha voz sai baixa, e a melancolia me faz pensar em como
todo esse mês não passou de uma farsa que minha mente fabricou. — É se ela vai ficar bem, se
vai superar esse trauma.
Ela vai conseguir me amar um dia ou vou ser sempre uma cópia dele?
— Cada sobrevivente lida com o abuso de uma forma, não posso te dizer o que ela pode ou
não sentir. Só quem sabe é ela e seus sentimentos devem ser respeitados, validados e priorizados.
Penso no quanto ela sorriu esse final de semana e se divertiu com a minha companhia. Nas
nossas conversas profundas sobre ballet, nela se divertindo fazendo charme para mim com a
espuma no banho, nas noites em que assistimos desenhos da Disney, nos jantares que fizemos
pelo Facetime...
A nossa conexão foi verdadeira. Sem ela, eu com toda a certeza morreria à deriva.
Um suspiro profundo, libertador, emerge do âmago da minha alma, enquanto eu assinto,
com a sensação de leveza se espalhando pelos ombros, dissipando a carga que a tristeza
depositou neles.
— Obrigado, Dra. — Faço um movimento de me levantar.
— Agora eu te pergunto, senhor Duncan. — Seu timbre sai trêmulo, denotando o medo por
me afrontar dessa maneira. — O senhor acha que alguém em uma situação de completa
vulnerabilidade e fragilidade extrema, que não tem estrutura mínima para sentir amor por si
mesma, tem condições psicológicas, de amar outra pessoa? Justo quando essa figura se parece
com a imagem do homem que a abusou por anos?
A raiva pulsa como um fogo pela sua pergunta, queimando dentro de mim todos os
sentimentos bons que me nocauteavam. Cada batida do meu coração ressoa com a intensidade da
sua provocação, de modo que eu fecho os punhos em cima da mesa, frente a frente com ela.
— Você tem coragem. — Meu tom é de ameaça, com as palavras dela ecoando em minha
mente, agindo como um catalisador para a ira que se acumula, enquanto penso no que vou fazer.
Devo ouvi-la e me afastar de Aleks? Ou devo ignorar e assumir o lugar que tanto amei estar?
— Estou dizendo o que é melhor para a sua bailarina, senhor. — Levanta-se e estende as
mãos para um cumprimento pacífico. — Sei que o senhor quer o mesmo para ela, por isso tomei
a liberdade, embora não quisesse, de modo algum, ofendê-lo.
Essas palavras quebram qualquer expectativa violenta que eu tenha a respeito dela, como se
a parte boa dentro de mim, aquela que minha mãe construiu com tanta dificuldade, tentasse me
convencer a ter um pouco de paciência antes de tomar alguma atitude atravessada.
— Vou pensar no seu caso. — Aviso, saindo da sala.
No caminho para o trabalho, logo que me sento no carro e o motorista começa a dirigir,
minha reação mais natural é abrir o celular, acostumado a observar a Aleks.
Ela ainda está dormindo, na mesma posição, mas eu não sou mais o mesmo. Não consigo
fitar a tela e não sentir culpa ao imaginar que o seu Dono também fazia a mesma coisa. Não é
difícil entender o porquê, ela é um espetáculo, só é revoltante.
Fico pensando nela, tão frágil e indefesa, nas garras de alguém que só queria usá-la e vendê-
la, arrancando o melhor dela, a força. O ódio que sinto, sempre que penso nessa figura é
descomunal, e eu checo as investigações, em vão. E, ainda se ele fosse até o apartamento dela,
perto, que seja, eu teria sido informado, mas a planilha está vazia.
Desinstalo o aplicativo das câmeras e tento me concentrar no trabalho, como se tudo não
tivesse mudado em um mês e pouco. Enquanto fiquei em negociações referente ao EuroOásis,
meu irmão cuidou da Duncan e, agora, tem quarenta dias para me atualizar, em um.
É muito difícil me concentrar, habituado a mandar mensagens para Aleks o tempo todo.
Sinto falta dela, de conversar com ela, de receber fotos dela... Fico me perguntando o que ela está
fazendo agora, imaginando-a nas cenas que vi ao longo dos dias. Brincando com os cachorros, as
9h. Dançando, as 10h30. Minha boca fica seca e eu não consigo parar de me mexer, ansioso para
saber o que acontece em seguida, doido para vê-la respirar, existir, viver...
— Você está bem, Dam? — Dylan nota.
Balanço a cabeça, sem saber por onde começar, mas desisto antes de abrir a boca, com medo
de ele pensar que estou louco.
— Estou preocupado com a Aleks.
— O que deu com relação ao Dono dela? Algum sinal?
Faço que não.
— Está sendo difícil.
— A única maneira vai ser ela te contando. — Sorri, como se eu tivesse fodido. — Você já
foi ver ela, desde que chegou?
Checo o relógio.
— Vou hoje a noite.
Bate nos meus ombros.
— Boa sorte para sobreviver até lá.
— Não estou tão desesperado assim...
Ele apenas ri e sai da sala.
Passo o restante do dia oscilando entre o bem e o mal.
Em alguns momentos, me pego pesquisando sobre o transtorno de estresse pós-traumático,
lendo a lista de sintomas e vendo todos os sinais que ela deu para mim, nos pesadelos, ao me
confundir, ao se esquecer de cenas que vivemos...
Em outros, digo a mim mesmo que consigo, que não sou nada do que aquela médica disse,
que nossa relação é saudável, diferente dela com seu Dono. E, embora as reuniões da tarde não
me façam deixar de pensar nela em nem um minuto, resisto a ideia de mandar mensagens ou
reinstalar o aplicativo das câmeras.
Em vez disso, canalizo meus pensamentos sobre o que faremos a noite.
A febre volta a queimar meu corpo. Minha mente me faz passar mal com todas as ideias
sujas do que eu faria com a borboleta russa. Sei que não vai acontecer, mas eu posso imaginar,
não posso?
Não, Damon.
Apenas jantaremos e conversaremos, como pessoas normais, e no dia seguinte volto até a
médica picareta e faço questão de prová-la quão errada ela está, antes de acabar com a sua
existência.
Mas, só a ideia de ficar perto da minha Boneca...
Marco o horário em um restaurante conceituado, para não ficar sozinho com ela, como se
uma parte de mim soubesse exatamente o que aconteceria, se eu ficasse a sós com meu cisne
negro. Tudo o que ela fez na madrugada, a memória da sua bunda, da sua boceta, as poses, o
rebolado e até os gemidos, céus, ela me deixa salivando o dia inteiro, mesmo quando nem tenta.
Delírios e mais delírios...
A cada hora que se passa, fico mais ansioso. Conto os minutos para ir para a casa, me
masturbar como se pudesse aliviar essa necessidade com o nome dela, mesmo sabendo que fiz
isso mais vezes em um mês do que em toda a minha vida e, a vontade por ela só aumenta.
Enquanto tomo um banho, me perfumo e me visto, imaginando-a fazendo o mesmo, mais
excitado.
— Não vai acontecer nada. — Digo para meu reflexo no espelho, fazendo o nó da gravata.
— Ouviu a médica, ela não está bem psicologicamente para isso, ainda.
Minha voz ecoa, lembrando-me que estou sozinho. Não preciso me esforçar tanto com o que
parece, tiro a gravata e abro o último botão da camisa, de um jeito que dá para ver os ossos da
clavícula e o começo dos músculos do peitoral depilado.
Chego no restaurante antes dela, de modo que fico no bar, aguardando-a. Nessa meia-hora,
penso em como fui idiota por não a ter assistido pelas câmeras, durante o dia. Agora, estou com
uma sede muito maior de vê-la, quase como um viciado em abstinência, aguardando sua droga
favorita cruzar a porta.
Sei que é ela antes mesmo dos meus olhos se cruzarem com os dela, apenas pelos múrmuros
que ouço no bar, com a atenção de todos se voltando para a porta.
Seu vestido é preto com babados discretos na saia, curto e tomara-que-caia, dando ao seu
colo, ombros e pescoço o destaque perfeito para o laço grande, rosa-claro, que usa de colar, com
o pingente do meu nome, no meio dele. As pernas estão nuas, sem meia-calça, apenas com uma
bota de salto alto, estruturada, rosa-claro, decorando suas pernas longilíneas até os joelhos.
Aleks também está com um coque, mas não um coque de bailarina, um estruturado como se
tivesse passado a tarde toda prendendo os fios de um jeito único, um a um, com mechas
encaracoladas caindo pelo seu rosto divino, maquiado como se ela fosse uma boneca.
Sinto uma pontada no peito como se eu pudesse morrer de tanto amor, devoção e tesão.
Faço um movimento, chamando a atenção dela, que abaixa estranhamente a cabeça e vem
até mim, com a mini bolsa rosa na frente nas mãos decoradas por luvas rosa, em passos que
paralisam todos os que estão perto, igualmente obcecados.
Meu coração nunca bateu tão forte por alguma coisa.
E seria mais fácil se eu não ficasse tão à sua mercê, se eu não me derretesse com ela tão
próxima a mim, mas nossas peles parecem queimar ao toque e eu estou a um passo de perder o
foco. Não deveria ser assim, ela enfraquecida pelo meu poder e eu me desfazendo a cada
centímetro a menos entre nós, distância essa que é diminuída pela atmosfera densa que nos
entrelaça em desejo e desespero.
— Oi. — Sou eu que toco na pele nua do braço dela, então por que é a minha tez que se
arrepia como se tivesse ganhado um beijo?
Puxo-a na minha direção, levando meus lábios até sua bochecha rosada. Ela fecha os olhos
no mesmo segundo, impedindo contato visual, então eu me afasto e ela abaixa a cabeça, mas
como o funcionário do restaurante vai nos mostrar a nossa mesa, apenas mantenho minhas mãos
nela, guiando-a por entre as cadeiras até o melhor lugar, reservado, com o prazer de mostrar a
todos nesse lugar a minha mulher.
A mesa redonda, a luz de velas, combina com os papéis de parede bordô, enriquecidos com
padrões sutis e detalhes dourados, conferem um toque de luxo e romantismo ao ambiente. Puxo a
cadeira estofada de Aleks e ela se senta, em um silêncio obediente, colocando o guardanapo no
colo enquanto ocupo o outro lugar.
Fito-a com um sorriso bobo estampado no meu rosto, enquanto penso em como ela é ainda
mais linda de perto, distraída, observando o restaurante.
— Gostou do restaurante? — Ela faz que sim, sorrindo com a cabeça baixa.
— Faz muito tempo que você não me leva em um. — Conta, desviando a atenção para a
minha mão na mesa, pondo as dela por cima, resvalando os dedos no relógio de pulso. —
Obrigada, Dono. Eu amei.
Meu sorriso se desfaz, embora eu adore o seu toque. Não é possível que ela esteja me
confundindo tanto assim.
— Aleks? — Ela mexe a cabeça, baixa. — Me olhe.
Ela tenta, levantando a cabeça até a altura dos meus lábios, mas então parece travar, e abaixa
de novo, me assustando.
Levo minhas mãos até o seu queixo, subindo-o a uma altura em que nossos olhares se
cruzariam se ela não abaixasse as pálpebras, permitindo que eu veja a beleza da sua sombra e os
cílios longos e curvados de boneca.
— Abra os olhos. — Ela ri, nervosa. Nega.
Basta fitá-la para saber por que preciso ter paciência: ela é muito valiosa.
— Abra os olhos, amor.
Faz aos poucos, hesitante a medida em que me dá o prazer me encarar suas íris azuis
analisando cada detalhe do meu rosto.
— Damon. — Sorri, alegre.
Meu coração se derrete.
— Você se lembra de mim?
Faz que sim, empolgada, e segura mais forte na minha mão, se inclinando para perto, na
pontinha da cadeira, com uma proximidade que me permite sentir o seu perfume deliciosamente
doce.
— Você é meu Dono. — Acaricia o laço com o pingente que me faz lembrar da madrugada
em que esfregou na sua boceta. Inclino o nariz, só para distinguir o cheiro dele com o do
perfume.
Ela não lavou o pingente. Ela quer me enfeitiçar com o cheiro da sua lubrificação. Meu
Cisne Negro, eu lamberia cada gota, direto da fonte.
— Sou o Jogador que você conheceu em um espetáculo — ela sorri de novo,
verdadeiramente confusa. — A gente passou o Natal juntos, você se lembra?
Seu semblante se acende de um modo que ela se torna ainda mais bonita. Tão linda sorrindo
como se me amasse...
— Os presentes! — Sua alegria é espontânea, e então sobe a mão, acariciando os músculos
no meu braço. — Eu amei os presentes, Damon...
Sorrio de volta, pegando sua mão e levando até a boca.
Nesse momento, o garçom oferece o cardápio de bebidas. Deposito um lento beijo antes de
soltá-la, para eu escolher um vinho, mas ela não sabe escolher sua própria bebida.
— O que você quiser, borboleta.
Aproximo-me dela para explicar cada opção do cardápio, de um modo em que seu corpo se
encaixa, pequeno, no meu, largo, e eu passo os braços em torno dela, apoiando no encosto dela.
Agora, nossos rostos estão lado a lado. Ela sente o meu hálito assim como eu sinto meu olfato ser
inundado por todos os perfumes dela, dos cabelos, das roupas novas, do pescoço, do hálito, e do
pingente...
A ereção me aperta dentro da calça.
— Acho que sua única restrição é o álcool, por causa dos remédios. — Ela me fita
atenciosamente. — Todo o resto você pode escolher. Tem de pêssego, chocolate, morango...
— Eu não sei. — Dá de ombros. — Todos parecem gostosos.
— Então traga todos. — Peço ao garçom.
Ela deita a cabeça no meu corpo, encaixando no meu pescoço, em um sutil gesto de
agradecimento, e eu me sinto no céu, até o garçom voltar. Ofereço minha taça para ela molhar os
lábios.
— Você bebeu na noite de véspera, lembra? — Puxo assunto.
Faz que não, ficando com os lábios roxos. Então segura o canudo da sua soda com um
charme que me faz perder até o rumo, fazendo biquinho para bebê-lo. Céus, vou fazer uma
loucura a qualquer segundo se ela continuar sorrindo linda assim.
— Véspera do quê?
Franzo o cenho.
— A véspera de Natal. Do que você lembra?
Ela só consegue falar dos presentes e de estar no quarto assistindo A dama e o Vagabundo.
A psiquiatra não especificou sobre isso. Aleks tem amnésia? Do que mais ela não lembra? Será
que isso tem a ver com o motivo pelo qual não poder ver sangue? O que mais aconteceu que ela
não se lembra?
Começo a fazer perguntas e ela responde três antes de mudar de assunto, contando sobre
como está melhor com os fouettes, sabendo que esse é o nosso assunto em comum, de modo que
eu relaxo um pouco e curto a noite.
Ela parece bem. Fita-me enquanto fala por nós dois, sobre seus cachorros, seus passos de
dança, a reforma do apartamento e as bonecas de Cartier. Ela dá indiretas também, diz que o
Dono delas as visita todos os dias. Pergunto se ela gostaria das minhas visitas e ela diz que sim,
com as mãos no meu braço, me acariciando.
Mas não dá cinco minutos e ela fica estranha de novo, abaixa a cabeça e reluta a me fitar,
para de falar o meu nome e volta a me chamar de Dono.
— Aleks, me olha... — Imploro pela terceira vez, desistindo.
Desvio o olhar dela para os casais das outras mesas, com suas taças de vinho, a maioria ri à
toa enquanto alguns conversam agradavelmente e outros mantém-se confortáveis com o silêncio
do parceiro. A minha bailarina pede massa com molho branco de champagne e nozes, e eu a
acompanho com fois grás, observando-a em um silêncio preocupado até que Aleks começa a
balançar a cabeça com o jazz que a banda toca ambiente, ao vivo.
— Não sabia que gosta desse ritmo de música. — comento.
Eu posso até ter parado na década em que o jazz tornou-se algo intenso e agitado, porém
Aleksandryia permanece presa em Tchaikowski.
— Também não sabia. — Assume, com a cabeça baixa. — Só tenho permissão de ouvir
música clássica.
Meu queixo cai.
— Seu ex-Dono determinou até uma besteira dessas?
Ela sobe o olhar assustada, confusa, então me vê e sorri mais, lembrando que sou eu. Torna-
se impossível segurar os sentimentos e raciocinar direito diante de um clima tão doce, quente e
inebriante. Ainda mais com meu corpo inteiro gritando um amor inexprimível a ela, que devolve
meros sussurros inaudíveis. Chega a ser injusta a posição em que ela me coloca, fazendo-me
desejar agradá-la e fazê-la sorrir a noite inteira, por toda a vida, se assim eu pudesse.
Começa a tocar uma das minhas músicas favoritas, Sunny, e eu sorrio com a ideia que se
forma. Vou mostrar como sou diferente, tirar esse Dono da cabeça dela. Vou fazê-la gravar como
é bom poder viver além das Regras. Eu me levanto depressa, analisando-a com travessura.
— Damon?
Pego em sua mão e a puxo para meus braços, arrastando-a para o meio do salão, colando
nossos corpos de um jeito que todo mundo fica olhando.
— Já dançou jazz? — Desço as mãos até sua cintura e a seguro firmemente, e ela se
contorce graciosamente, encaixando-se no toque.
— Estou com vergonha. — Reclama, sorrindo tanto quanto eu.
Com nossos olhares magnetizados, presos um no outro, não resisto e canto para ela a letra
que meu peito explode de tanto querer:
— Raio de sol, ontem minha vida foi preenchida com chuva. Raio de sol, que sorriu para
mim e realmente aliviou a dor. Agora, os dias escuros se foram, e os dias brilhantes estão aqui.
— Beijo ternamente sua bochecha em direção à orelha. — Minha Sunny brilha tão sincera, um
tão verdadeiro eu te amo.
Giro-a para longe e a puxo para mim em um súpeto, colocando nossas mãos entrelaçadas em
suas costas. Em um único movimento sensual, ela se desvencilha dos meus encantos e brinca
com seu lindo corpo na melodia, tão intensa quanto Marvin Gaye, ignorando o fato de todos a
fitarem sem ar.
Puxo-a para mim outra vez, impactando nossos corpos. Canto a música:
— Raio de sol, obrigado pela verdade que você me deixou ver. Raio de sol, obrigado pelas
provas de A a Z. Minha vida foi rasgada como areia pelo vento, então uma rocha se formou
quando você segurou minha mão.
Ela espalma as mãos no meu peito e, encarando-me com um brilho no olhar e um sorriso
emocionado, sussurra:
— Obrigada por me mostrar o que significa ser o sol de alguém, Dono. Nunca vou me
esquecer…
Faço carinho em suas bochechas, completamente derretido com a febre com que minha alma
queima pelo nome dela.
— Minha Sunny, obrigado por esse sorriso em seu rosto. — Roubo um beijo rápido.
De repente, o cenário parece ter sido milimetricamente montado e a música escolhida pelos
anjos, pois a letra declarava o que não precisamos cantar um para o outro para saber que
nutrimos exatamente o mesmo sentimento forte demais para expressar em palavras. Um calor no
peito, que sentimos na pele.
Quero tanto de Alex que suspeito que nem mesmo uma vida inteira dela me supriria.
Contudo, não posso agir com pressa ou ansiedade quando ela finalmente parece me ver, muito
menos ultrapassar os limites; não posso contar com sua imprevisibilidade marítima, correndo o
risco de ela recuar e eu morrer à deriva após ter pulado tantas ondas.
— O que eu preciso fazer para mostrar que sou diferente do seu antigo Dono?
Seu olhar brilha e ela sorri, também emocionada diante da aura romântica que nos nocauteia
com um só golpe. Enrosca os braços no meu pescoço e murmura em um tom melancólico.
— Continua o que está fazendo. — soa como súplica. — O problema não é você, eu que não
tenho conserto...
— Odeio quando diz isso, Aleks. Lembra a minha mãe. — Desabafo, apertando-a contra o
meu corpo.
Arregala seus olhos azuis.
— Desculpa. Não queria...
Levo um dedo sutilmente até o seu queixo, acaricio e subo, desenhando cada traço do seu
rosto.
— Não peça desculpa, você é perfeita.
Seus olhos se enchem de lágrimas.
— Eu não sou... — Uma gota cai. — Esse é o problema. Eu não consigo ser. Tento, tento,
tento, mas...
— Talvez não precise tentar, Oceano, porque eu estou aqui, e vou ser seus olhos enquanto
você precisar. — Parece presa nos movimentos dos meus lábios. — E, se você confiar em mim,
essa noite, prometo te mostrar o que é real. — deslizo seus lábios pelos meus, friccionando
nossas bocas. — Porque isso que temos é real. Nós. E eu vou te fazer sentir.
Estamos mais perto agora, de um modo que nossas bocas e nossos olhos são as únicas coisas
que damos a atenção, deixando de fundo o aroma das comidas, a canção da música ambiente e o
calor das velas decorando as mesas.
— O que achou da borboleta que te dei? — abre um sorriso que entrega seu desespero. —
Sabe por que eu te dei, Oceano?
— Foi uma punição, porque não fui obediente. — Dá de ombros de um jeito sensual. — É
que eu não consegui parar... — Aproxima-se mais. — Pensar em você estava muito bom... —
Sua voz, russa, sussurra em meu ouvido: — eu amei a sua foto.
Põe a mão na minha coxa, com um sorriso safado combinando o olhar azul-escuro como o
céu da noite mais pervertida. Quando sussurra com seu rosto próximo ao meu, não sei distinguir
se ouvi algo real ou um delírio.
— Eu queria ver pessoalmente.
CISNE NEGRO
Ela enrosca os seus braços no meu pescoço, trêmula demais para manter o cambré. Minha
boca ainda está na sua, e nós movemos nossas línguas cansadas, estalando nossas mandíbulas
com toda a vontade que evoca de dentro da minha alma.
— Não sabia que meu corpo era capaz de explodir de prazer tantas vezes seguidas...
Eu também não.
É como se, de alguma forma mística, conhecêssemos cada segredo no corpo do outro, como
se fôssemos feitos para esse amor.
— Cansei você? — provoco.
Depois de outro orgasmo, sinto minhas estruturas se dissolvem, e penso que é impossível as
terminações nervosas de Aleks transformarem esse sentimento em eletricidade pura outra vez,
então aperto a sua bunda e ela está pronta para outra, de novo e de novo.
— Não o suficiente.
Respondo atacando sua boca, impedindo que fale ou pense em qualquer outra coisa senão na
pressão que eu faço contra seu corpo, colando suas costas na parede, fazendo-a arfar. Deslizo a
língua por seus lábios, sugando todo o doce sabor que Aleks exala em beleza e prazer. Desço as
mãos até suas coxas e a ergo, no meu colo, ao mesmo tempo em que entrelaça suas pernas em
torno da minha cintura, com nossos sexos encaixados, fechando os braços em torno do meu
pescoço, apertando contra si na mesma intensidade. Levo-a até a cama, onde a deito, enquanto
nossas respirações entrecortadas soam como uma poderosa canção que suspira por mais fôlego.
Nossas íris se encontram; a obscuridade presente em nossos tons adquire forma e potência.
De repente, eu não preciso de luas que guiem meu caminho nas madrugadas gélidas ou de
estrelas que tornem as noites de verão quentes, só preciso dela. Não pode ser normal sentir algo
tão poderoso assim.
No segundo seguinte, Aleks me beija como se estivesse tentando me convencer a nunca a
deixar. Seu corpo parece saber exatamente o que fazer, tudo o que faço é assistir que seus
instintos a guiem, subindo em mim com as pernas bambas, lambuzando minha barriga com sua
boceta pingando, pronta para me satisfazer pelo resto da noite, me fazendo gravar a sensação do
seu corpo deslizando em cima do meu, assim como ainda sinto o meu pau dentro dela, mesmo
quando apenas se esfrega em mim.
Põe as duas mãos no meu peito para empinar a bunda de um jeito tão sexy que meu pau
reage, com o prazer despertando os meus sentidos exaustos. Seus peitos apontam na minha
direção, apertados pela maneira como ela está com os ombros juntos, dando foco para a curva do
quadril, maior com as pernas uma de cada lado.
Seu penteado é ainda mais bonito, bagunçado desse jeito, e a maquiagem borrada pelas
lágrimas que escaparam dos orgasmos e das estocadas, me deixa excitado pra caralho. Levo
minhas mãos até a sua cintura, acariciando seu corpo com adoração, enquanto o impulso de
movê-la para frente e para trás, traz de volta a força dos meus braços.
A cavalgada começa lenta e silenciosa, mais para Aleks do que para mim. É ela quem fecha
os olhos e põe charme nos movimentos, dançando no meu pau, totalmente entregue aos instintos
do seu corpo, me seduzindo de um jeito que meu membro corresponde, mais duro a cada vai e
vem em que ela entrega toda a energia sexual que prende dentro de si.
Morde os lábios, rebolando mais forte, intensificando a fricção molhada nos nossos corpos a
cada onda de prazer que inunda o meu pau, com uma intensidade estonteante que dispara meu
coração.
Encaixamos nossos corpos em uma nova dinâmica. Ela sobe até minha glande, e eu a desço
mais forte com as mãos fechando sua cintura, batendo nossos corpos, e Aleks arqueja,
empinando a bunda de um jeito em que eu deslizo até suas nádegas, aperto-as e estalo um tapa
que a faz pular, descendo com força, e ela choraminga de prazer, mexendo o quadril em
rebolados rápidos.
— Eu adoro quando dança no meu pau, amor... — Gemo, sem tirar os olhos do corpo dela,
seus peitos balançando e o sorriso lindo que seu rosto me dá, me fitando com os olhos azuis-
escuros.
— E eu adoro dançar em você, amor...
Subo os dedos até sua nuca, trazendo sua boca para a minha, com avidez e desespero. Tento
beijá-la e ela recua, me provocando, então me atraco aos seus peitos, mamando nos bicos. Com a
mão na cintura, deposito mais força, penetrando-a com uma profundidade que a faz se arrepender
de fugir da minha boca, porque é ela quem me atraca em um beijo díspar de tudo o que já
experimentei. Forte a ponto de cortar meus lábios, com uma intensidade que leva embora todos
os meus sentidos, deixando apenas uma sede insaciável, e eu enfio minha língua mais fundo,
com nossos gostos se misturando na saliva do corpo, enquanto os barulhos dos nossos corpos se
intensificam e o tesão fica mais forte e frenético até que ela solta um gemido longo entre os meus
lábios, me fazendo derramar junto em outro gozo.
Permanecemos algum tempo com nossos lábios colados, enquanto eu recupero a força
mínima para prender o toque na sua cintura e a puxar, a derrubando com um movimento
brincalhão e impensado, ao mesmo tempo em que encaixo o seu corpo no meu, como se pudesse
protegê-la com a minha concha maior, prendendo minhas pernas com as suas, fazendo meu braço
de meu travesseiro, minha pelve colada na sua bunda vermelha de tanto apanhar.
Aleks me fita tão perplexa que fico com medo de perguntar.
— O que foi? — O calor do meu hálito toca a sua nuca de um jeito que ela se encolhe,
sorridente. — Não vai me dizer que seu antigo Dono não se deitava com você. — Desafio,
deixando escapar os resquícios do nojo do maldito.
Aleks suspira de um modo que não sei se é muito cansaço físico ou mental, para pensar no
assunto. Então desvia o olhar para o emaranhado que nos tornamos, e se encaixa mais, meio
triste, perdida. Entrelaço minha mão a sua e ela se sente confortável para contar.
— Tinha uma Dama que se deitava com ele. — Aperta minha mão como se quisesse ter
força para o momento, fechando os olhos para gravar a delícia que é a junção dos nossos cheiros.
— Eu dormia na caminha de gato.
Abraço-a mais forte, como se pudesse fazê-la se esquecer de todas as merdas que seu antigo
Dono a fez passar, enquanto penso em como gostaria de descobrir quem é o filho da puta. Beijo
seus cabelos bagunçados no que restou do coque, e começo a acariciar todas as curvas do seu
corpo, do côncavo da cintura ao revelo dos ossos do quadril e as coxas, como se estivesse
brincando de carrinho com os dedos.
— Como era essa mulher? — pergunto, como se não tivesse nenhuma pretensão. — Você
lembra?
— Eu não tinha permissão de ver o rosto. — Sua voz está rouca e cansada, se agarrando a
pronúncia russa, me deixando ainda mais apaixonado a cada palavra que eu demoro para
entender. — As mãos dela... — me fita, por cima dos ombros. — Eram completamente
queimadas.
A incredulidade domina meus pensamentos, e por um momento, sinto como se o tempo
tivesse congelado. A cor desaparece do meu rosto, tornando minha barba castanha mais escura
do que é, e ela se inclina para passar as mãos pela pele, notando esse detalhe.
— Dono? — demonstra preocupação.
Todos os Sangue em Ascensão a conhecem.
A mulher que Aleks está se referindo é a Dama mais forte do Jogo, Madeleine Kühn, a mãe
de Cherrie. Uma onda de choque percorre meu corpo ao perceber a verdade. A bailarina era
escrava de George Young.
O homem que a dilacerou foi o Rei do Tabuleiro.
— Você a conhece?
— Não se preocupe, Oceano. — Beijo sua mão.
— Mas você parece preocupado.
Tento responder algo, abalado demais para pensar em qualquer coisa, e faço a única coisa
que desejo. Abraço-a, deliciando-me com a sensação de tê-la, depositando em meus braços todo
o consolo que eu gostaria de expor com a informação que ela não pode saber, enquanto assimilo
tudo o que isso significa.
Não é razoável a proporção que Aleksandryia toma dentro do meu peito, não é legítimo
gostar tanto do que temos, e, acima de tudo, não é justo termos algo tão poderoso e raro, tão
frágil — sempre a um fio de quebrar em meio aos nossos cacos.
— Não importa, minha bailarina.
Ainda assim... É impossível olharem seus olhos azuis e não enxergar muito além do que vi
até então, e amá-la.
— Você é minha agora. — friso.
Como se pudesse provar isso a mim mesmo, deslizo as mãos pelo seu corpo, gravando cada
detalhe, até chegar nas suas coxas e encontrar tudo melado pelas nossas gozadas. Só então me
dou conta de que esqueci a camisinha.
— Acho que precisamos de pílula do dia seguinte.
Não que eu fizesse questão, mas, nesse momento, a ideia de um filho com Aleks parece
impossível e insana. Novamente a voz da psiquiatra martela a minha consciência, com
pensamentos sobre como não deveríamos estar aqui, assim. Então a informação sobre ela ter sido
de George me ataca com violência, e eu volto a tremer de ódio. Não sei o que vai ser de nós.
— Não posso ter bebê. — Revela, com melancolia. — É a endometriose, meu outro Dono
nunca usou preservativo comigo.
Acho que eu deveria perguntar se tem tratamento ou qualquer outra coisa, mas não consigo
pensar na ideia agora, então apenas puxo os edredons, nos cobrindo, a aninhando, enquanto
desejo ter para sempre o seu corpo colado ao meu. Acho que estou com medo de perder minha
borboleta russa.
Ela parece adivinhar os meus pensamentos.
— Damon? — fito-a, tentando disfarçar minhas preocupações. — Promete que vou ser para
sempre sua?
— Você já é, eu prometo. — Selo seus lábios, com os meus frios de preocupação. — Ainda
tem dúvida, bailarina?
Ela, com toda a sua sensibilidade, parece estar na mesma frequência que a minha, e fala em
voz alta os meus medos.
— Não quero voltar para o meu antigo Dono. — Pede-me, encostando a cabeça no meu
peito. — Quero ser a sua Boneca. — Encaixa seu corpo quente no meu. — Quero que repitamos
para sempre o que fizemos hoje. Quero você.
Meu coração se derrete.
— Consegue ver a diferença entre mim e ele, agora?
Faz que sim.
— Ele gostava de ver chorar, você gosta de me ver sorrindo. Eu acho.
Sua frase faz ainda mais sentido se eu lembrar dos boatos que dizem sobre George. Ele é
sádico. Abraço-a mais forte.
— Mas eu errei com você, Aleks. — Admito, por mais que eu odeie concordar com a
médica. — Eu estava te sufocando, a gente precisa ir com calma.
Os olhares se cruzam por um breve instante, e um sorriso terno se forma nos lábios dela.
Aconchego-me mais perto, e minha outra mão encontra o caminho até sua nuca, onde os dedos
brincam com os cabelos, criando uma sensação reconfortante.
— Não quero que nada mude. — Seu timbre é quase uma forma de tentar me convencer,
sensual e genioso, como o meu cisne negro.
Observo seus olhos enquanto a minha mão se move em círculos reconfortantes em sua pele,
criando uma conexão silenciosa.
— Isso não é saudável, Oceano. — Acompanho a curva delicada do seu rosto, e meu polegar
traça padrões suaves sobre sua pele. — Como você disse, eu quero você sorrindo, bem. Livre.
Não suporto a ideia de te fazer sofrer.
Penso no meu pai e na minha mãe, compreendendo-os de um jeito que dói na minha alma.
Papai achou que tê-la por perto seria melhor, e isso acabou com a alma dela.
— Eu estou sorrindo agora, não estou?
Não é fácil tentar convencê-la de algo que nem eu acredito, então desisto, pego em uma
mecha de cabelo solta enquanto a assisto fechar os olhos até pegar no sono, com algo maior que
a exaustão pesando o meu corpo. E, por mais que eu não queira sair de perto dela, afasto-me
delicadamente, levanto, visto a cueca, e pego o celular, em direção a porta.
Assim que a abro, os três cavaliers, que estavam dormindo à espera da dona, invadem o
quarto, o casal subindo na cama para cheirá-la e beijá-la.
— Aonde vai? — Indaga, despertando assustada.
Volto, pego a filhote e a ponho na cama.
— Atender uma ligação.
Segura a minha mão com a sua.
— Não me deixa sozinha aqui. — Pede, chorosa.
O trauma da cama...
Sinto o calor subir pelo meu corpo, uma sensação intensa que começa no peito e se espalha
como fogo. Minhas mãos tremem e os músculos se contraem involuntariamente. Uma onda de
raiva, crua e poderosa, toma conta de mim a medida em que lembro de tudo o que o Rei fez com
ela.
Espero Aleks dormir, dessa vez abraçada a Meldora, vou até o corredor e deixo a porta
entreaberta, para observá-la, enquanto ligo para Cartier, andando de um lado para o outro.
Eu não posso fazer nada contra o Rei, porque, se eu fizer, o Jogo acaba e, por mais que eu
goste da ideia de afundar algo perverso como o que faziam com Aleks, e foder esses Jogadores
malditos que a usavam, o Jogo também é a minha casa, é tudo o que eu sou.
Mas também, se o Rei cai, o tabuleiro quebra, e as Peças caem.
Eu, a Torre, Cartier, o Bispo. Meu irmão, Peão, Cherrie, Zaki. Meus tios, meus avós. Aleks e
as outras Bonecas, os Coroados...
E, se as Peças caem, nossas empresas quebram, e se nossas empresas quebram, a economia
mundial entra em colapso, em um espiral onde mais e mais pessoas sofrem, e meu problema com
o Iraque vai parecer bem pequeno.
— São três da manhã... — Cartier atende.
— Descobri quem é o filho da puta.
— Quem? — sua voz está grogue de sono.
— Quem é o maior filho da puta?
Cartier fica em silêncio para xingar baixo.
— Porra, não!
É como se uma tempestade escura se formasse dentro de mim, obscurecendo qualquer traço
de serenidade.
— Ela disse que o cara sempre estava com uma mulher que tem as mãos queimadas. —
Repasso a informação com o timbre baixo. — Conhece alguém assim na sua família?
— Tia Mad... — Tudo ressoa como um eco irritante na minha mente.
— Como vou foder o Rei do tabuleiro?
— Cala a boca! — me corta com uma seriedade profunda. — Nunca mais repita uma merda
dessas, entendeu?
A respiração fica mais curta, e sinto a tensão nos músculos do rosto.
— Mas é o que eu quero fazer, Cartier! Ele violentou a minha Aleks, ele fodeu a cabeça
dela. Não posso simplesmente ficar quieto e aceitar...
— Ele fode com a cabeça de todo mundo, ele pode, ele é intocável!
— Me ajuda a pensar em uma forma...
Cartier respira tão ruidosamente que me calo.
— Esquece a vingança, foca na sobrevivência dela. O que é mais importante para você? —
enfatiza com o silêncio que faço. — Coloca essa garota em um avião e manda ela de volta para a
Rússia!
— Eu não vou fazer isso! — Grito com tanta indignação que Aleks se mexe na cama.
— Você vai! — devolve no mesmo segundo.
— Não!
Inspira lentamente.
— Damon...
— Não!
— Você vai perder sua bonequinha!
— O Rei me deu ela! — lembro, atropelado. — Ela está com o pingente que o Rei me deu
de aniversário.
— Qual a chance de ele ver ela nos seus braços e querer de volta? — fico em silêncio. — E
outra, por que no dia que você falou dela, ele disse que ela não estava no catálogo e ficou
confuso?
Lembro do Rei citando o nome Zoya, não Aleks, na minha festa surpresa. Ignoro esse
detalhe.
— Ele me deu ela de presente. — Foco nos fatos. — Ele não volta atrás.
Cartier solta mais palavrões em alemão.
— Tem alguma coisa errada nessa história, Damon! Será que você não está vendo?
— Damon? — Aleks chora, se levantando da cama.
— Estou aqui, Oceano. — Entro no quarto, acalmando-a.
— Oceano, Damon? — Cartier ri do tom amoroso. — Você está muito fodido. Muito
ferrado e nem eu nem ninguém vai conseguir te ajudar.
— Cartier, vou ter que desligar.
— Você vai perder ela, Damon.
— Obrigada por me fazer passar raiva.
Desligo a chamada, voltando para a cama. Aleks levanta o edredom para me convidar,
enquanto me encaixo no corpo da minha bailarina e a beijo mais, disputando a atenção com a
filhotinha nos braços dela. Fitamo-nos na meia-luz do ambiente em plena madrugada, e ela faz
carinho no meu rosto, como se quisesse gravar cada traço.
— Lembra a borboleta que eu te dei?
Os dedos dela deslizam gentilmente sobre os meus, e nossas mãos se entrelaçam de forma
tensa.
— O que tem ela?
Estamos envoltos pelo calor dos lençóis, aconchegados, com nossos corpos se entrelaçando
naturalmente.
— Eu queria você parasse de sentir medo da liberdade, por isso te dei a borboleta.
Ela pensa por um pouco, então se encaixa no travesseiro, sonolenta.
— Não gosto dessa ideia.
Começo a acariciar seus cabelos, apreciando a sensação reconfortante que cada movimento
proporciona. Seus olhos se fecham lentamente, como se a carícia despertasse uma paz interior.
— Por quê?
Ela pega os meus braços e os abraça.
— Porque, se eu fosse livre, não estaria aqui.
CONQUISTA
Finalmente, os sinais do meu incêndio surgem como pequenos focos, por todos os lados,
pondo em xeque a paz que sempre reinou nas Oito Famílias.
Estamos todos na sala quando papai puxa O assunto.
— É impressão minha ou o Damon está estranho comigo? — Balança o braço de um modo
que o relógio de ouro da sua coleção brilha, me hipnotizando.
— Comigo também. — Mamãe nos surpreende, levando nossa atenção para os traços
imponentes do seu rosto contornado pelos fios dourados, colocando uma mecha atrás da orelha
queimada.
Todos desviam o olhar para Damon, que sorri como se não quisesse arrumar briga, tentando
manter a calma, embora seu semblante demonstre uma mistura de determinação e desconforto.
Ele se afunda no sofá.
Há duas semanas Damon veio me questionar se a sua Boneca-Russa foi a bailarina de porta-
joias de George Young. Foi no primeiro sábado de Treino que ele apareceu desde que voltou de
viagem, e ele não parecia nem um pouco feliz de estar com a família, porque faltou vários
Treinos.
Precisamos falar sobre como bocetas destroem lares.
Eu estava na sala, com os Jogadores, bancando a Cherrie, no colo de papai, quando Damon
me puxou para um canto e me encheu de perguntas, transtornado com a ideia de abaixar as
orelhinhas e colocar o rabinho entre as pernas para o monstro que devorou a bailarina dele.
Primeiro, eu disse:
“Se está tão preocupado, pergunte você a ele.”
Mas ele não quer fazer isso, porque, se George olhar na cara dele e dizer que sim, e Damon
não aguentar e dar um soco no Rei, ele vai conhecer o inferno, sim, mas vai descobrir que o
inferno dói muito mais quando os torturados são as pessoas que você ama.
E, convenhamos, a bailarina já sofreu demais nas mãos do seu monstro.
Também tem o risco de Damon perguntar e o Rei dizer que não deu Aleksandryia de
presente, afinal “ela não estava no cardápio” (palavras dele, não minha). E tomar o brinquedo
de volta.
Nesse último, não menos importante, existe a opção de o Rei ficar com raiva da insinuação e
acabar com a brincadeira da Torre.
O ponto é, em algum momento da vida, todo mundo aqui perdeu algo para o Rei. Eu perdi
Cartier, Cherrie perdeu Cameron e mais um zilhão de coisas, Phillip Waddel teve a primeira
esposa morta, Erin perdeu a Charllote e depois se perdeu. Franklin perdeu Lizzy e eu consigo dar
uma lista imensa de histórias de amor com finais trágicos, e serei bondosa se citar apenas o amor
nessa lista.
E pensar em todas as Bonecas que não tiveram a sorte de Aleks de ter um bom Dono e
encontrar o Damon delas...
O xadrez é uma metáfora sobre guerra, e a guerra é sobre escolher quantas perdas uma
pessoa suporta até desistir da sua humanidade e se tornar um animal movido a instintos.
Essa é a verdadeira Ascensão.
Se bem que o Rei já está perdendo a paciência.
— Qual é a pedra no seu sapato, filho? — provoca George, diante de todos.
A troca de olhares é intensa, carregada de emoções não ditas, e o silêncio tenso é
interrompido apenas pelos comentários mordazes de outras Peças, como meu irmão. Damon
cruza os braços, sem desviar os olhos dele.
— Acho que você sabe, Vossa Majestade. — Não soa educado, soa sarcástico.
Dylan faz um movimento para se aproximar do irmão, querendo mandar ele calar a boca por
osmose, mas eu levanto e o seguro, abraçando-o para que ele não perceba o quanto quero que
tudo pegue fogo.
— Deve ser sobre a Boneca-Russa. — Provoco com um sorriso de fora a fora, subindo meu
olhar para encarar o Duncan comprimir os lábios com irritação por minha impertinência, ao
expô-lo dessa forma.
Todos sorriem, pois conhecemos Damon e sua obsessão de brincar de amor verdadeiro.
— Não gostou do presente? — Papai contesta com a exasperação que imaginei, dobrando as
mangas da camisa com um sorriso largo no rosto. — Podemos trocar, posso te dar uma melhor.
Damon sorri, com raiva, e Cartier discretamente se aproxima com um copo de vodca, mas
em vez de beber e calar a boca, Damon devolve a provocação.
— Cuide das suas.
O silêncio total anuncia o choque pela resposta que a Torre deu para o Rei, e aos poucos o
eco de comentários se fortalece, alguns expressando preocupação, enquanto outros sussurram.
Alguns Sangue em Ascensão parecem hesitantes, discutindo o que fazer diante da situação
delicada que se desenrola diante deles, surpresos.
Invejo Damon pela coragem, e decido apostar quais semblantes entregarão quando
descobrirem que cada passo que dei, não passou de um conjunto de estratégias para manipulá-
los.
Uma reação é certa — eles vão enlouquecer.
O Rei, no entanto, poderia ter qualquer reação, e é isso o que torna George Young tão
espetacular, esse frisson de nunca saber se ele vai gritar, gargalhar ou esfaquear você. O ar
parece eletrificado, como se a menor faísca pudesse incendiar a situação. A espera por cada
palavra, cada gesto, adiciona camadas à tensão crescente.
— Você está vendo, Gerard? — Aponta com sua bebida, rindo. — A gente dá a vida por
esses meninos, eles crescem e ficam ingratos desse jeito.
Damon ainda tenta manter a compostura, mas vejo o aperto firme de seus punhos, a
mandíbula cerrada em uma tentativa de resistir à provocação. Há uma expressão de desafio em
seu olhar, e uma sombra de vulnerabilidade também.
— Vá se foder, George. — Paralisa todo mundo.
A única pessoa que xinga George e ainda está vivo, é Francis Kühn, de castigo no Leste
Europeu.
Damon, no entanto, parece muito irritado para se importar, e se levanta lentamente, pronto
para sair do ambiente carregado de tensão.
Por um milagre, Damon pegou meu pai de bom humor.
— O que foi que eu fiz? — Está rindo com a situação, mas não vai atrás.
A postura do Rei o torna ainda mais adorado. Ele não precisa se preocupar, não precisa
gritar, tudo está na palma da sua mão e Damon não passa de uma criança mimada que não soube
valorizar o brinquedo. George está com o mesmo sorriso de quando acordou, impassível, e todos
estão gratos por ele deixar passar a ofensa e não enfiar um pau no cu de Damon.
— Damon quer assumir essa Boneca. — Gerard Duncan anuncia, com vergonha.
A indignação se forma diante dos meus olhos, toda a família agindo como se estivessem
assistindo uma derrota no Superbowl.
— O quê? — Phillip Waddel indaga com seus olhos azuis-esverdeados.
— Lá vem o Erin 2.0 — minha irmã, Crystal, ri com Scarlet.
Eleanor abraça Aarona, dando condolências como se o anúncio fosse o de uma morte.
— E Beatrice? — alguém diz. — Ele vai quebrar a aliança?
— Esquece... — a ruiva se esquivou, piscando para Ahren de um jeito que faz eu me
perguntar se elas vão ter coragem de assumir. — Estou em outra.
— Já temos o EuroOásis, se não for para honrar a aliança, que fique longe dela. — Defende
Richard, beijando sua filha, sem imaginar que a jovem Dama está a um passo se tornar a
vergonha da família.
— Isso não pode acontecer de novo. — Papai parece colapsar, lembrando-se do seu melhor
amigo indo para o buraco e levando todo o tabuleiro, por causa de uma única Boneca-Miss.
Que Deus a tenha, Charllote Duncan.
— Se alguém quiser impedir, fique à vontade. — Aarona deixa claro que não se importa em
como vamos resolver esse problema, desde que ele deixe de existir. — Ele está protegendo a
menina a sete chaves.
— Que lástima. — Minha mãe comenta, estalando seus dedos queimados.
Seguro o riso. Esse é o tipo de coisa que faz meu interior vibrar, quase como se fosse
impactado com uma turbulenta tempestade solar. E significa um quase clímax, para alguém que
praticamente não possui atmosfera interna.
Sento-me no encosto do sofá, acariciando o tecido plissé da minha saia comportada,
fingindo que meu objetivo ali não é arquitetar meu gran finale.
— A gente precisa conhecer ela, não acham? — dou um sorriso malicioso.
Aarona e as outras Damas concordam.
— Até parece que Damon vai trazer sua Boneca aqui para acontecer com ela o que ocorreu
com Charllote. — Cartier corta, sem imaginar que é esse o gatilho que quero ativar.
Todos ficam em silêncio, pensativos.
O Rei se aproxima de mim, no encosto do sofá, acariciando o meu rosto com força nos
dedos.
— Alguma ideia, princesa? — Fita-me com seus olhos verdes gélidos.
Finjo pensar.
— O próximo passo do EuroÓasis não é apresentar o projeto aos Jogadores, para conseguir
mais investidores? — Papai pisca para mim.
— Planeje algo com Damon. — Me dá o aval. — Se a garota sobreviver, Damon fica com
ela.
Mais risadas, porque não há a menor chance de os Sangue em Ascensão deixarem uma
Boneca bonita como a bailarina, escapar.
Tudo o que consigo pensar enquanto assisto Aleks reagir a carta é que ela vai me trocar por
George quantas vezes for preciso.
— Vou nos Young ver se a cadelinha está lá. — Cartier avisa.
— Está falando da Europa? — Zaki tira uma piada da situação.
Encaro o loiro estender a mão para um cumprimento que aceito com o melhor sorriso que
tenho.
— Obrigado, amigo.
— Vou junto. — Zaki me dá um toque das mãos.
Levo-os até a porta, mas meu irmão fica absorto em pensamentos, observando a vista dos
janelões. Dylan também tem motivos para estar triste.
— Desculpas não ter falado da Europa antes. — Assumo que seja o motivo. — Eu devia ter
contado que era ela...
Ri, com mágoa de si mesmo.
— Eu devia ter percebido que não era a minha Cherrie. — Fita-me com os olhos cheios de
lágrimas. — Como eu posso dizer que a amo, se nem sequer percebo quando ela vai embora?
Desvio o olhar dele para Aleks, feito um zumbi no sofá da sala.
— Você é um bom namorado. — Lembro de todas as vezes que ele cuidou e deu a Cherrie o
que mais ninguém é capaz de oferecer à garota que tem o mundo. — Ela ficou dois anos estável
e sem crise dissociativa, foi um recorde.
Balança a cabeça, negativo.
— Ela cuidou de mim, nesses dois anos. Ela me entendeu, nesses dois anos. — Sua voz
embarga. — Ela fez tudo por nós, nesses dois anos.
— Não é verdade...
Suspira profundamente.
— Para eu não perceber, nosso namoro não existe há muito tempo, Dam.
Fico quieto porque, de fato, Dylan não ter reparado, sendo que eu percebi no momento em
que ela pisou na América, evidencia que a cabeça dele está longe.
— Tira um tempo para rever as coisas, pensar em tudo, quando ela voltar vocês conversam.
Se ela voltar. Sinto um arrepio com a ideia.
— E você cuida dela — aponta para Aleks. — Sobre o espetáculo...
— Não vou levá-la.
— Vai ser pior. — Alerta. — Se você não a levar, e não fazer do jeito que a Europa quer...
Ela vai se vingar.
Tornamos a observar a bailarina e eu sinto no meu coração uma ferida ser reaberta, fazendo
com que o vazio pulsante ecoe através de cada batida.
— Eu vou perder Aleks para ele. — Como dói me dar conta disso, e ele fica em silêncio,
porque sabe não posso competir com o Rei. — Não importa quantas vezes eu faça de tudo para
salvá-la... — Meu timbre sai quebrado. — Você viu como ela ficou, só com uma carta dele?
— Você está fazendo tudo o que pode, Damon. Não vai poder esconder ela para sempre.
É, e sentir que tudo não é o bastante enche meus ombros com uma carga de sensações
pesadas, como se a tristeza se manifestasse fisicamente, infiltrando-se nos meus ossos.
— Eu achei que estava fazendo tudo para a mamãe, também. — A frase reverbera ao nosso
redor.
Ele deita a cabeça no meu ombro, e permanecemos assim por alguns minutos, dando suporte
emocional um ao outro.
É impossível não sentir a nossa união por lembrar de todas as vezes que choramos juntos,
com o luto dela, e depois o de papai, que eu suprimi, de ódio, e ele entrou em depressão. Mesmo
nessa situação terrível, me sinto grato por tê-lo.
— Estamos na merda juntos. — Ele ri no meio de uma fungada de tristeza.
— Finalmente estamos quites. — Brinco.
Ele estava bem, solteiro, enquanto eu vivia o meu relacionamento mais tóxico, com
Beatrice. Ele estava bem com a Cherrie enquanto eu lutava por Ellie até não ter mais forças
E, agora, cá estou eu, fazendo tudo outra vez, numa intensidade muito maior.
Meu celular vibra com a mensagem da psicóloga, me orientando a como lidar com essa
situação.
— Vou indo — faz carinho na minha cabeça, se afastando. — Cuida dela.
É o que decido fazer, a vendo no sofá, olhando para um lugar fixo, embora um lado infantil
dentro de mim deseje fazer birra até ela sair do transe e perceber que eu também estou sofrendo
com tudo o que ela está passando, para que sinta por mim qualquer coisa forte o bastante para
que não ouse me deixar morrer na praia.
Sento-me ao seu lado e ofereço toque físico no seu ombro.
— Vamos para cima? — ela demora para responder.
Guio-a até o seu quarto, onde ela me espera na cama, preparar um banho com água quente,
como a médica orientou, perfumada como a bailarina gosta. Ajudo Aleks a tirar a roupa e a
entrar na água. Peço rapidamente para uma das funcionárias, na porta do quarto, a sopa de
beterrabas que ela gosta, mas, quando volto ao banheiro está tentando se afogar na banheira.
— Aleks! — puxo-a com o grito preso na garganta.
Ela sorri um sorriso que não é dela.
— Eu gosto de mergulhar. — Fala calmamente, com o rosto e os cabelos molhados, os
lindos olhos azuis perdidos.
E tenta imergir de novo, porém não deixo.
— Para com isso! — Brigo com a voz sussurrada, e então a abraço tão forte que ela se
debate para alguns instantes antes de me abraçar forte e liberar o choro preso desde que leu a
carta.
Aleks faz muitos porquês enquanto chora, inconformada com o fato dele tê-la machucado.
Diz:
— Eu dei tudo para ele.
— Eu sei... — acaricio seus cabelos molhados. — Eu sei, Oceano.
Depois que ela se acalma, visto-a com o roupão fofinho e a guio até a cama. Aconchego-a, e
brinco sobre como Meldora e Conrard estão nos travesseiros, esperando pela mamãe deles. Ela
os abraça e chora mais, agora por Gulnara.
Batem na porta com a sopa russa, e eu sento-me na pontinha da cama para dar na boca de
Aleks. Ela sorri quando sente o aroma, com Meldora no colo, e meu coração se derrete em ver
que a minha borboleta russa está voltando ao normal.
— Eu consigo comer. — Sorri, mas abre a boca para receber as colheradas.
Percorro os olhos pelo seu lindo rosto, e, de repente, nada mais importa além dela. Não
tenho mágoa, mas sim paciência e disposição para dar tudo de mim, todos os dias, por ela, assim
como faria tudo de novo para minha mãe, mil vezes mais, se soubesse que a perderia.
— Eu amo cuidar de você, Oceano. — Sorrio, emocionado. — Amo você.
Ela abaixa o olhar, reflexiva, abrindo a boca para ganhar mais comida com uma graça que eu
não resisto, porém torna a me fitar com seriedade.
— Dono. — Seu semblante é convicto. — Vou no espetáculo com você.
Sinto o ar que preenche meu pulmão ficar pesado.
— Ele pediu?
— Eu vou me apresentar no espetáculo.
Coloco a sopa na mesa de cabeceira, por causa das mãos trêmulas.
— Ele deu o comando?
Então Aleks segura no meu pulso, e eu nunca vi esse olhar nela. É confiante.
— Vamos nos apresentar no espetáculo. — Corrige, resoluta. — Pas de deux, Odile e
Siegfried, a variação da traição, o Pas de deux negro. — Se ajeita na cabeceira da cama, com as
costas eretas. — Vamos mostrar a eles que também sabemos jogar esse Jogo.
Estou boquiaberto.
— Um dos pas de deux mais difíceis do ballet? — acho fofo ela achar que consigo. —
Aleks, voltei a fazer ballet agora, com você, depois de anos parado. Não tenho tanta técnica.
— Você tem muito talento, só precisa desenferrujar. — Acaricia minha barba. — Eu te
ensino, não acha que consigo?
Não quero desanimá-la.
— Não é só chegar e dançar, Aleks. E depois?
Faz carinho nas orelhas de Meldora.
— Ele disse que não vai me machucar.
Inclino a cabeça para o lado, pesando as pálpebras.
— Depois de tudo o que ele te fez, você ainda acredita?
Seu olhar cruza o meu.
— Queria que ele me visse com você. — Confessa com um sorrisinho entre os lábios
fechados que me faz inclinar a cabeça e beijar sua boca vermelha. — E ele vai me devolver
Gulnara, — explica, abraçando Conrad.
Levanto-me, agitado demais para ficar na mesma posição.
— O Cartier foi na casa do seu ex Dono buscar Gulnara.
— Foi? — dá um largo sorriso.
Aproximo-me dela outra vez.
— Pode dormir. — Acaricio seus cabelos, beijando sua testa. — Vou ficar falando com ele.
Ela me encara no fundo dos olhos e eu penso que finalmente vou ouvir um “eu te amo”.
— Obrigada por cuidar tanto de mim.
Nossas íris se encontram. A essa altura, já compartilhamos um repertório de olhares, e esse
diz quão forte e mútuo é o que nutrimos um pelo outro. Fico na poltrona ao lado da cama,
pensando no quanto não aceito perder o evento mais lindo e raro que cruzou minha existência.
Não vou perder Aleksandryia,
Arrepio-me com a ideia insana que me faz abrir um sorriso. Não posso matar o Rei sem
derrubar o tabuleiro, porém, quando as peças caem, o Jogo recomeça. Será que é tão ruim assim?
Ninguém conseguiu dar xeque-mate até agora, é verdade, mas tenho semanas até um grande
espetáculo acontecer.
Vou preparar um show especial para George Young.
ABERTURA DO ESPETÁCULO
Enquanto me encaro pela última vez no espelho, o agridoce se fortalece em meu paladar, um
misto de alegria e medo. Fecho os olhos e inspiro tão profundamente quanto consigo, na
tentativa de compreender o motivo das emoções que guerreiam dentro de mim.
Passo os dedos pelo corselete que desenha minha silhueta, contornando o busto com o
decote coração que desce e agarra minha cintura em centímetros menores do que sua
circunferência natural, tornando custoso respirar, apertando meus seios sensíveis com a tensão
pré-menstrual latente.
Existem muitos motivos para eu estar com medo e o fato da minha menstruação descer no
meio da festa deveria ser o menor deles, mas não é. Desde o evento catastrófico, só menstruei
uma vez, e a funcionária que cuida de mim auxiliou nas trocas de absorventes, de modo que a
única gota de sangue que vi foi a dos lábios do Damon, que não me assustou. Além disso, estou
tratando a endometriose e, pelo meu atraso, provavelmente meu ciclo desregulou.
Existem coisas muito piores do que meu próprio sangue me esperando no espetáculo.
Meu antigo Dono estará lá.
Quando penso nisso, o medo tenta me puxar para trás, envolvendo-me em suas garras frias,
mas a coragem me empurra para frente, instigando-me a dar voz aos sentimentos que até então
permaneceram calados, em algo mais forte que a mágoa, parecido com fúria.
Tento esquecer os pensamentos e voltar para o mundo real, passando a mão no corpete. A
frieza presente nas pedras bordadas no tecido firme me traz a nostálgica ansiedade que me
impulsionava a dar meu melhor antes de entrar no palco, quando eu era bailarina de porta joias.
Sinto um enjoo frequente, todas as vezes que minha mente me traz flashes das coisas que
vivi, nos últimos anos, de modo que emagreci alguns quilos, nas últimas semanas, ansiosa por
esse evento.
O medo é como uma sombra que se estende por minha mente, projetando imagens sombrias
de possíveis consequências. A incerteza do que está por vir cria um frio na espinha, uma
hesitação tenta me fazer recuar para a segurança dos braços de Damon.
Ao mesmo tempo, a coragem é como uma centelha que teima em iluminar o escuro. É como
se eu estivesse na borda de um abismo, com o medo sussurrando que qualquer passo em falso
pode me levar a uma queda irreversível, mas, ao mesmo tempo, eu quero saber o que tem lá
embaixo.
Desço a mão, acariciando o tutu preto, feliz por ter coragem de vestir o traje completo de
Odile, após tanto tempo.
Treinamos incansavelmente nas últimas semanas e isso nos aproximou muito. Quando
estamos na sala de dança, Damon me deixa no comando. Meu Dono se coloca na posição de
aluno e me deixa exigir cada movimento, de cabeça baixa, obediente. Ele também é muito
dedicado, e eu sei que dá conta da apresentação.
Estamos prontos, agora.
Subo o olhar para o reflexo do meu rosto. As íris azuis parecem mais vivas com o realce que
o delineado preto proporciona, os cílios estão cheios e negros e as maçãs do meu rosto, rosadas.
É bom ver tantas cores vivas e vibrantes no meu rosto após anos vivendo em meio a escombros
acinzentados.
Trago o batom na altura dos olhos, quase fascinada pelo bastão vermelho bordô como
sangue coagulado e fito-o por vagarosos segundos até desfocar a vista dele para a minha
aparência no espelho. O espelho. O vermelho. Meu rosto. O vermelho. Meu rosto; o espelho. O
espelho; o vermelho. Meu antigo Dono.
Meu cérebro trava.
Como meu antigo Dono vai reagir quando me ver?
Balanço a cabeça, mandando embora o pensamento, mas meu estômago se contorce de
ansiedade e um ardor sobe das pontas dos dedos dos pés até incendiar meu corpo e minha alma.
Parece que, ao mesmo tempo em que meu corpo está prestes a entrar em combustão, meu cérebro
tenta, usando como arma as minhas piores lembranças, me manter congelada no espaço-tempo,
afogada no fundo do oceano Ártico.
Levo o batom para os meus lábios, pensando no quanto esse espetáculo representa e, ao
sentir a coragem crescer dentro de mim, passo-o com voracidade, colorindo não apenas a boca,
mas principalmente a alma. Borro os cantos pelo excesso de emoção exteriorizada nos contornos
e, em seguida, mancho os dedos de vermelho, limpando os cantos. Dedos sujos com vermelho.
Meu rosto. O espelho. O vermelho.
— Você está tão linda. — A voz de Damon reverbera atrás de mim, de modo que me viro
assustada para encará-lo.
Depois de meses convivendo com esse homem, estou acostumada com sua beleza,
entretanto, quando me viro para encará-lo, consigo perder o fôlego. Admiro-o dos pés à cabeça.
Ele parece um príncipe de repertório com os trajes de Siegfried. A camisa branca, com seus
delicados bordados, ressalta a beleza dos seus ombros e peitoral, com botões dourados que
parecem reluzir à medida que ele caminha na minha direção.
O colete azul profundo acrescenta uma dimensão de nobreza ao conjunto, destacando sua
postura imponente, e a capa acrescenta uma aura majestosa, transformando-o em algo misterioso
e poderoso.
E o meu detalhe favorito, as calças de veludo negro, com o tecido se ajustando em cada
músculo da perna além do volume definido no meio delas.
— Dono... — chamo sua atenção com um sorriso no rosto. — Suas calças.
Damon acompanha o meu olhar, então me fita com um sorriso safado que incendeia cada
célula de mim.
— Eu esqueci desse detalhe. — Ele está duro, muito duro. — O que faço? — pergunta,
brincalhão.
— Vai passar. — Provoco, colocando a maquiagem e absorventes em minha clutch.
No instante seguinte, ele está atrás de mim.
— Olha para você, Aleks. — Sua voz sai rouca. — Não vai... — Abraça-me por trás. —
Vou te desejar a noite inteira...
Viro-me, ficando de frente para ele. Com uma ousadia despretensiosa, coloco a mãos dentro
da sua calça, seguro no seu pau e o aperto, com a boca ficando cheia d’água só com a sua
sensação de tê-lo nas mãos, e Damon me assiste mexer o volume com a respiração falha, até que
eu o esconda em um truque que bailarinos fazem.
E, então, nos encaramos por mais alguns segundos, nossos olhares sintonizados em um canal
de comunicação para que nossas almas dialoguem. Sorrimos um para o outro.
Pergunto-me se, ao final da noite, seremos mais ou menos humanos do que somos agora.
Na entrada de Old Westbury, é possível ver trânsito construído por jaguares blindados
enfileirados, o modelo exclusivo dos Sangue em Ascensão, chegando para o espetáculo com suas
hordas de seguranças.
Damon está estranhamente calado, mas quando vou perguntar, somos interrompidos pelo
imenso chafariz jorrando vermelho-sangue, no coração da vila privativa mais luxuosa dos
Estados Unidos, coração da economia mundial — o lar dos Sangue em Ascensão.
Sinto, no fundo do meu coração, que esse espetáculo foi orquestrado para me enlouquecer.
— Que droga. — Ele xinga baixo. — Eu proibi os chafarizes...
Mas ignoro a intuição.
— Tudo bem. — Viro para o outro lado. — De quem é essa mansão?
Por fora, mantenho a pose e a compostura na tentativa de fortalecer e convencer o meu Dono
a não desistir do evento mais importante da sua carreira, sem deixar transparecer que meu corpo
inteiro sucumbe a temores e arrepios que precedem crise.
Eu só quero ser forte na minha conversa com meu antigo Dono.
E, à medida que passamos na frente das mansões magnificentes, todas com seus
deslumbrantes chafarizes esculpidos com detalhes de xadrez jorrando vermelho, com as
iluminações das fachadas entregando um rubro quase encantado, pergunto-me se há como ficar
mais sinistro do que isso.
Então o carro se aproxima e o suntuoso portão de bronze marcado por desenhos de pedrarias
abre-se para nós.
— Essa é a minha casa. — Ele apresenta.
E, embora, por fora, se assemelhe a todas as mansões vizinhas, o interior da propriedade
Duncan expressa a personalidade e a excentricidade que se espera do território de um Sangue em
Ascensão.
Damon desce do carro e estica a mão para me ajudar a descer, explicando a rota de
segurança. No segundo em que aceito o seu toque, fito o céu escuro acima da minha cabeça e
imploro por coragem, embora saiba que clamor nenhum vai me ajudar, se eu vim por livre e
espontânea vontade para a toca dos monstros.
— Seguranças de azul são os meus, as câmeras estão em todo lugar para dar cobertura ao
vivo ao evento, então, se sentir medo, fique perto de uma e você será protegida pelos Estados
Unidos todo. Tudo bem?
— Tem certeza de que esse é um bom plano? — indago, embora tenha cansado de ouvi-lo
nos últimos dias.
Acontece que os Sangue em Ascensão fogem da mídia assim como vampiros correm de sol.
Eles são como vultos cuja silhueta apenas outros super ricos conhecem.
Curiosamente, império dos Kühn é um conglomerado de mídia, e ele ajudou Damon a
montar o esquema.
Tudo foi planejado nos detalhes.
Eu e Damon apenas não esperávamos o que vemos quando alcançamos o majestoso jardim
da mansão Duncan, onde a festa foi montada.
Somos os únicos com fantasias.
Todos os outros estão com máscaras.
Minha retina é tomada pela escuridão ao redor, completa e substancial por trás dos corpos
cujas vestimentas de milhares de dólares brilham; lindas Damas com peles de seda que brilham
feito diamante, incrustadas de joias por cima de vestidos majestosos, ao lado de homens que
refletem nos ternos o poder de suas mentes obscuras.
Um intenso perfume luxuoso e sombrio preenche o ar. Quando percebo a mão de Damon
firme em minha cintura, o fito de soslaio, ele desce o rosto e sorri em encorajamento.
— Quer mesmo fazer isso?
Não é como se pudéssemos desistir agora.
As pessoas que nos veem, encararam-nos, admiradas e perplexas, e eu sinto que deveria ir
embora nesse momento, dar meia-volta e recuar enquanto estou perto da porta de entrada.
Entretanto não quero. Meu Dono está me exibindo como o seu maior prêmio, me sinto
importante ao seu lado. Quero enfrentar meu trauma, dançar diante de todos os que me
destruíram e mostrar como eles foram estúpidos.
Vou mostrar ao meu Dono, um a um dos que eu me lembrar.
— Ainda está disposto a me dar mãos de presente?
Ele sorri, porque a noite é nossa.
— Esperei ansiosamente pelo momento que você me daria os nomes.
— Damon! — um homem, com a esposa nos braços, feito um presente que ele usa para
ganhar mais destaque. — Todo esse espetáculo é influência dela? — indaga com sarcasmo.
— Gostou, vovô? — Meu Dono sorri em provocação, abraçando-me. — Aleks, esse é
Gerard Duncan e Aarona Duncan, meus avós.
O casal retira as máscaras para que eu veja seus rostos.
Gerard deve ter uns sessenta, mas nem assim deixa de ser bonito como um Duncan, com um
belo sorriso, maxilar desenhado e postura imponente, e a mulher, Aarona Duncan, irradia
elegância e sofisticação. Vestida em um deslumbrante e impecável vestido de alta costura que
destaca sua silhueta esguia, a Dama me fita de cima a baixo enquanto decide se vai me
cumprimentar, de um jeito que seus cabelos dourados caem suavemente sobre os ombros,
conferindo-lhe um ar de glamour. A maquiagem, sutil e refinada, destaca seus olhos expressivos
e realça seus traços delicados.
— Então você é o novo problema da família? — ela pende a cabeça para o lado, em um tom
que Damon, conversando com o avô, não ouve.
— Não acho que eu seja um problema novo. — Admito, desejando que ela não perceba
quão nervosa estou. — Apenas um que estava escondido.
Ela sorri com a minha resposta, se solta de Gerard e cruza os meus braços, para me levar
para longe, enquanto conta.
— Sabe qual era a brincadeira favorita de Damon? — Damon impede que ela dê mais um
passo, com as mãos nos meus braços.
Aarona balança a cabeça para ele.
— Eu quero contar a ela sobre você e sua infância. — Seu timbre é o som mais sinuoso que
já ouvi na vida.
Damon continua me segurando.
— Outro dia, vovó. Ela será minha esposa, então terão muitos momentos juntas.
Desvio o olhar dela para ele, e sorrio com a declaração, sem entender a dimensão dela. Ele
está falando de casamento? Meu coração dispara com a ideia, lavando meu cérebro com a
enxurrada de dopamina, de modo que só me lembro de Aarona quando ela dá as costas.
— Espera! — paraliso-a. — Qual brincadeira?
A mulher está com a máscara quando se vira.
— Tic-tac.
Minha espinha congela com a ideia que me vem à mente, e eu continuo com meus olhos
fixos em Damon, porque, com ele sorrindo e exalando intimidação a todos os que se aproximam
para nos cumprimentar, sinto que tem algo a mais, só não consigo identificar o que.
— Que brincadeira é essa de tic-tac?
— É uma versão de esconde-esconde que as crianças Sangue em Ascensão brincam. Não
tem nada de mais.
Assinto. Eu e ele brincamos muito de esconde-esconde no último mês, eu adoro, mas, ainda
assim, estico-me para alcançar um dos incontáveis garçons impecavelmente vestidos, que passa
com uma bandeja de bebidas, e bebo toda a taça de champanhe de uma só vez. Duncan me
analisa com preocupação.
— Você não pode beber, Aleks.
— É para eu não perder a cabeça.
Ele diria algo, porém um casal chega, abraçando-o com intimidade. Dão tapinhas nas suas
costas, e sorrisos curiosos para mim.
— Titio, Dama, essa aqui é a próxima Dama Duncan.
Dama? Meu coração dispara.
— Sou Leon Vannozza — ele se apresenta antes de tomar minha mão, sem perceber que
meu corpo inteiro congela com seu toque. — Essa é minha esposa, Bárbara Duncan Vannozza.
— A mulher beija meu rosto, sorrindo majestosamente, sem imaginar que eu já transei com o
marido dela.
— Duncan? — repito. — São parentes? — indago a Damon, chocada. Mais, horrorizada.
— Eu sou irmã gêmea do pai dele. — O homem, atrás dela, parece rir do meu assombro.
Assim que saem, pergunto:
— Jogador ou Peça?
— Peça Forte. Cavalo. — Não entendo bem.
— Ele continuaria Jogando sem as mãos?
O queixo de Damon cai, mas a forma como ele trava o maxilar me excita.
— Só tem um jeito de descobrir...
Alguns funcionários da sua equipe chegam e eles iniciam uma breve conversa de sussurros
inclinados em ouvidos, impossibilitando que eu ouça uma só palavra, principalmente porque uma
orquestra toca e as notas agudas do violino trazem tensão suficiente para me deixar à flor da pele,
com um inebriante palco que embala minha alma.
Trêmula, me coloco a observar a decoração para me distrair. O gutural verde escuro do
gramado arrematado pela noite contrasta com a delicadeza do telhado composto por fitas de
penas de cisnes. Românticas mesas redondas estão alocadas em centímetros estratégicos, com
suntuosos arranjos de flores pretas e brancas, somando às toalhas cintilantes no centro. As luzes
trazem uma atmosfera áurea, e paredões de flores preenchem o baile com um lirismo
condescendente.
Entre as mesas, estão as atrações dos espetáculos, como o palco, a esquerda, um luxuoso
carrossel de prata e azul, casa de espelhos e outros que não conseguimos chegar perto, pois todos
querem falar com Damon a todo momento, tentando afastá-lo de mim.
Isso está errado meu subconsciente repete mais alto.
Sempre que eu pisco, sinto o olhar do meu Dono sobre mim, de modo que torço o pescoço à
procura dos seus olhos. Será que ele está escondido por trás de uma máscara nesse evento? Será
que ele já me viu?
Entorno outra taça quando Damon está de costas, mas ele repara em minhas mãos trêmulas,
porque as toma e as beija, ignorando o casal a sua frente.
— Sua médica está te esperando no estacionamento caso você precise, tudo bem? —
murmura em meu ouvido, preocupado.
Concordo, reunindo coragem para continuar enfrentando meus pesadelos. Ciente de que eu
preciso sair desse ciclo.
Quanto mais adentramos, o corredor de rosas brancas, por cima do espelho de vidro que
expõe o que as máscaras não cobrem, mais olhares caem sobre nós, sedentos e famintos, embora
o luxo sacie.
É curioso que, enquanto eu me desmancho ao seu lado, o Duncan mantém sua postura de
Torre, deixando-me ainda menor com seus ombros posicionados e peito aberto para conquistar
todas as opiniões sobre sua pessoa, sorrindo com inclemência. Uma muralha. Inconscientemente,
tento me esconder atrás do seu braço. Sei que ele vai me proteger. Não deixaria ninguém entrar.
Certo?
Então nos dão o cronograma da noite. Vamos abrir o evento com o nosso pas de deux,
depois Damon irá discursar e apresentar o EuroOásis, e o jantar será servido.
— Está pronta? — Damon me fita com preocupação. — Quer mesmo fazer isso?
É um misto de nervosismo e excitação que dança no meu estômago, criando uma sensação
borbulhante de antecipação.
— Vamos.
Enquanto os funcionários nos levam até a entrada, a luz intensa dos refletores parece
iluminar ainda mais a expectativa que paira no ar, a cada passo que Damon e eu damos, e mais
pessoas nos observam. Cada respiração é acompanhada por uma pontada de ansiedade, como se
meu corpo estivesse sintonizado com a iminência do que está por vir.
As mãos ficam ligeiramente trêmulas, e as pernas, que durante os ensaios se moviam com
confiança, agora sentem uma leve instabilidade, enquanto tento acalmar Damon. Os músculos
estão alerta, prontos para entrar em ação, mas o frio na barriga é uma recordação constante de
que este momento é um marco em nossas vidas.
O clima é carregado de tensão e drama quando entro no pas de deux como Odile, a vilã
sedutora de "O Lago dos Cisnes". Damon, está à minha frente, e a intensidade de nossos olhares
cria uma conexão magnética, silenciando toda a plateia a medida em que a música se eleva, me
impulsionando para um jogo complexo de sedução e traição.
Cada passo e cada gesto meu é um movimento calculado, uma dança intricada de engano.
Imagino que os convidados reconhecem muito bem.
Meus olhos encontram os de Siegfried, e o olhar de Damon é profundo, cheio de promessas
que Odile não vai deixá-lo cumprir. Cada movimento do meu corpo é uma provocação, uma
tentação que desafia a virtude que ele jurou a Odette, a verdadeira princesa cisne.
A coreografia é um equilíbrio perigoso entre a elegância e a traição, onde cada passo um
testemunho da nossa habilidade em manipular as emoções. As minhas piruetas são rápidas e
ardilosas, os arabesques são cheios de malícia, enquanto envolvo o meu Siegfried em uma teia
de falsas promessas.
A atmosfera é eletricamente carregada, e a música parece conduzir nossos corpos em um
dueto de emoções conflitantes. Nosso contato é carregado de uma tensão que ecoa entre nós
como uma sinfonia trágica, e a energia da traição nos envolve como uma sombra, um lembrete
de que neste pas de deux, a manipulação é uma forma de arte.
A amiga dele, Europa, vai se sentir lisonjeada.
Então chegamos ao clímax, onde a traição atinge seu ápice. Damon consegue fazer seu olhar
de adoração se transformar em desespero, quando percebe a gravidade do engano. A música
atinge um crescente dramático, e o pas de deux culmina em uma pose final, onde a traição é
revelada em toda a sua glória sombria.
Todos se levantam para nos saldar com palmas.
Eu pisco e todos se parecem com meu Dono, mas, nesse momento, Damon segura na minha
mão, me dando mais força e coragem. Eu preciso encarar, eles deveriam estar com medo, não eu.
Aproxima os lábios do meu ouvido e, com sua voz grave, diz:
— Obrigado pelo momento mais inesquecível da minha vida. — Então ele me encara
profundamente com seu intenso olhar doce, e me dissolvo em sentimentos. — Eu te amo, cisne
negro.
Deito a cabeça em seu ombro no mesmo segundo, tentando recuperar a compostura,
aceitando parecer profundamente apaixonada pelo meu Dono. Por um instante, sonho com a
ideia de que vamos ficar bem. Dentro do palco, Cartier e Dylan esperam para me levar até a
mesa e cuidar de mim, enquanto Damon se prepara para o discurso, e os Sangue em Ascensão me
observam caminhar em passos de bailarina até a mesa.
Damon sobe no palco de terno e gravata borboleta, tudo preto, como a maioria dos homens.
— Senhoras e senhores. — A voz de Damon suga a atenção de todos. —Preparei esse
espetáculo para compartilhar com vocês um projeto que não apenas marcará um ponto de virada
para a Harding Company, a Duncan e a Young Management mas também terá um impacto
significativo na autonomia energética da Europa.
Observo sorrisos surgindo nos rostos das pessoas, e os olhares se encontrando em gestos de
aprovação. O rosto de Damon brilha com os flashes.
— Como todos nós sabemos, a energia é o motor que impulsiona o crescimento econômico,
a inovação e o progresso. É com esse entendimento profundo que um grupo de pessoas que
vocês conhecem muito bem — todos riem, buscando a mesa de pessoas de olhos verdes, e
Europa pisca para mim. — Se dedicou a criar algo que não só atenda, mas ultrapasse as
necessidades energéticas da Europa.
Alguns erguem as sobrancelhas em reconhecimento, outros trocam olhares de aprovação, e
as expressões de surpresa refletem uma compreensão coletiva de que o EuroOásis não é apenas
mais um projeto, mas algo que eleva o padrão do Jogo.
— Este projeto não é apenas sobre dutos e infraestrutura; é sobre construir uma base sólida
para o futuro energético da Europa, e estamos comprometidos em proporcionar uma fonte
confiável e sustentável de gás natural, reduzindo a dependência externa e fortalecendo a
resiliência do continente.
Uma salva de palmas emerge, expondo a empolgação dos convidados quanto ao que o
projeto de Damon significa, embora eu mesma fique confusa. Damon, no entanto, sorri
largamente, de uma forma que ninguém imaginaria o quanto ele está odiando aquele palco, além
de mim e de Dylan.
— Termina logo, cara. — Dylan murmura.
— Agradeço aos investidores que tornaram o EuroOasis uma realidade, aos nossos parceiros
estratégicos que compartilham nossa visão e a todos os envolvidos neste empreendimento
visionário. Juntos, estamos inaugurando uma nova era na história energética da Europa.
A salva de palmas dura longos minutos, me enchendo de orgulho, por isso, quando Damon
sai do palco, eu me levanto e aviso, afoita para estar do lado do meu Dono.
— Estou indo até ele.
Damon está no nosso campo de visão e estamos no meio das câmeras, então Dylan e Cartier
concordam. Eu só não esperava que, poucos metros atrás de Damon, uma silhueta mais alta que a
de todos os outros se sobressaísse. A máscara negra destaca os seus olhos claros.
Reconheço-o, desde a postura até os ombros largos, o porte dos braços e o modo de andar.
Meu estômago torce com tanta força que pressiono o estômago. Não posso vomitar aqui.
É meu antigo Dono.
TIC TAC, BORBOLETA
Além do coração disparado e do tremor, o ar evapora dos meus pulmões, de modo que eu
busco uma rota vazia pela qual possa escapar do centro das atenções, desviando o olhar para a
figura sombria, que vagueia a atenção à procura da distração para o tédio. Não há tempo.
Dou as costas, rumando em passos largos para o outro lado do gramado, onde as atrações do
espetáculo divertem o público. Dou uma mirada por cima dos ombros, apenas para ter a certeza
de que o meu antigo Dono também está me vendo.
Ele para onde está e assiste meus passos em câmera lenta, feito um felino que se diverte com
a sua borboleta de asas quebradas antes de a devorar.
Nessa fração de segundos, seu olhar me rasga como suas garras. Minhas pernas perdem
momentaneamente a força e eu perco o ar, com o gosto metálico de sangue na boca.
Solto um soluço agudo, enquanto ordeno cada célula do meu corpo que continue a andar,
calmamente, sem chamar a atenção das pessoas que, de tão acostumadas com espetáculos como
os que o de Cirque du Soleil faz nas alturas, parecem mais interessadas em me observar sangrar
na corda bamba.
Sou surpreendida por um cuspidor de fogo, que brinca com uma chama no instante em que
dou um passo. As labaredas fazem eu inclinar meus ombros para trás, e as pessoas próximas do
espetáculo riem, convertendo o meu medo em algo poderoso o bastante para me fazer olhar para
trás.
Ele caminha lentamente em minha direção. Seu sorriso perverso me diz exatamente o que
ele está pensando, afinal, já ouvi seus fetiches o suficiente para reproduzi-los com perfeição.
É perturbador o quão sincronizados somos. Mesmo no meio de uma multidão posso ouvir
sua respiração, contida, se deliciar com a minha, desesperada. Não precisa mostrar o relógio para
que eu saiba que está no seu bolso.
Tic-tac.
Ele quer me pegar. Tic-tac. Ele quer me devorar. Tic-tac. Ele quer saborear o gosto de cada
gota do meu suor assustado. Meu medo o excita e, por alguma razão, apenas meu corpo sabe,
sinto espasmos disso se alojarem na minha calcinha.
É sobrenatural o nível de dominação que ele exerce sobre mim ao ponto de, por mais
assustada que eu esteja, apenas o fato de ser o alvo da sua atenção ser capaz de seduzir partes que
achei que ele tivesse matado. Pedaços da minha alma que vivem apenas para ele.
Assim como na vez em que me hipnotizei e o confundi com Damon, não consigo pensar em
qualquer coisa que não seja meu Dono, como se meu cérebro fosse lobotomizado, em uma
profunda hipnose. É mais difícil traçar uma rota de fuga quando meus pés parecem obedecer à
pessoa errada.
O que resta do meu emocional tenta sair desse transe enquanto desvio das pessoas e das
barracas, porém me sinto presa em minha própria mente, atordoada pela droga psíquica que é o
seu amor doentio.
As únicas coisas que falam mais alto que o grito do meu corpo para ser rasgado, são as
batidas do meu coração, perdidas e erradas. Os meus passos, que tentam me manter segura,
minha respiração, ofegante e trôpega, e as gotas que eu não sei se são lágrimas, suor ou chuva.
Meu racional grita para que Damon me salve, mas, quando finalmente alcanço o carrossel e
me sento, perco completamente as esperanças.
Damon se aproxima do meu Dono e o cumprimenta com o seu sorriso íntimo. Meu Dono
sorri de volta e eu já não sei se a tontura é pelo carrossel que gira, ou pela minha mente
bagunçada. Meu tórax dói tanto que mal consigo respirar. Eles se abraçam. Fecho os olhos.
A dor me atinge feito uma traição. Como ele pôde chorar nos meus braços de ódio do
homem que me violentou, se está o abraçando e sorrindo? Como ele pode ser tão falso?
Damon não quer me salvar, Damon não tem raiva dele. Damon estava fingindo.
Os dois são iguais.
Preciso fitá-los uma última vez antes de sentir cada célula do meu corpo ordenar para que eu
corra.
Descer do carrossel, nessas condições, é um erro. Minhas pernas estão mais bambas do que
eu imaginava e o meu corpo inteiro se contorce em uma ânsia. Vomitar na lata de lixo me atrasa
e, quando levanto a cabeça, os dois estão vindo juntos na minha direção.
Sou inundada por uma sensação tão devastadora que perco a consciência, como se cada
célula ficasse em chamas e, de repente, não sou mais eu. Sou algo muito mais primitivo do que
um ser humano, tateio meu corpo inteiro procurando por algo que alivie esse fogo que me
consome, mas o collant é fechado. As lágrimas rolam dos meus olhos. Desço os dedos até a parte
inferior da peça e os pressiono contra a minha boceta.
Vozes externas me lembram que estou em público e que há crianças em todo lugar. Estou
com medo de olhar para trás, aterrorizada pela ideia de encontrar os dois combinando qual parte
do meu corpo vão dividir para o jantar e, ao mesmo tempo, fricciono uma perna contra a outra,
sem entender como aliviar a sensação que me devora.
Meus dois Donos se separam. Minha mente me entrega inúmeros cenários sobre o que eles
planejam, indo cada um para um lado, como quando duas pessoas se juntam para caçar um
animalzinho indefeso. Enfio uma mão dentro do meu busto só para brincar com meu mamilo
enrijecido enquanto mantenho os dedos contra a boca. Minha intimidade lateja tanto que entro no
primeiro lugar que encontro.
Sei qual é a única forma de sair desse domínio. Preciso me aliviar com a minha coleira.
Está escuro e silencioso aqui dentro. O único ruído que existe é o de um ponteiro,
amplificando a ilusão dos espelhos.
Estou em uma luxuosa casa de espelhos.
Ainda com a mão dentro do busto, esfregando e apertando meu mamilo tão forte que
gemidos escapam da boca e eu os seguro com mordidinha nos lábios, transito entre o labirinto de
corredores estreitos e distorcidos, onde cada parede reflete uma imagem diferente de mim em
cores que mudam a cada tic-tac.
Não me reconheço em nenhuma delas.
Uma dessas ilusões conquista a minha atenção. Não tenho dúvidas sobre o que estou
fazendo quando desço as mãos até os botões da parte de baixo do collant, abrindo-o. Rasgo a
meia-calça, fazendo um buraco. Sei que posso só colocar a calcinha de lado, mas estou em um
estado em que qualquer sinal de timidez não me sustenta.
Desejo ver minha boceta lambuzada se abrir enquanto enfio os meus dedos dentro. Quero
imaginá-la sendo fodida enquanto a fodo com a minha mão.
Não há nada além de outro espelho distorcido atrás de mim, mas não ter onde me apoiar não
me atrapalha. Sou flexível. Levanto a perna o mais alto possível.
Mantenho-me em pé, com a perna esticada em um devellope enquanto me penetro e gemo.
Estou quente, molhada e inchada, entrando e saindo com facilidade e rapidez, completamente
concentrada nos meus próprios estímulos, quando um gemido vence o meu.
Meu Dono está na porta.
Posso ver em seus olhos o quanto a minha imagem o devasta de tesão, na mesma intensidade
com que me ataca. Observo os sinais de racionalidade deixarem os traços do seu rosto esculpido,
assim como os meus me abandonaram no momento em que decidimos ser dois lados da mesma
moeda, caça e caçador.
Isso me lembra de que ainda não acabou. Eu ainda corro perigo e sei que, se cair nas mãos
do meu Dono novamente, perderei o avanço. Meu pulmão se comprime de medo, decepção e
excitação. Quero, mas não posso.
— Continue, cisne negro. — Ele balança a cabeça com uma cara de quem não gostou nem
um pouco de ser poupado dessa visão. — Eu não mandei parar.
Desço lentamente a perna.
É engraçado. Qualquer um poderia dizer que não reconhece a figura que tomou posse do
homem doce, educado e contido, príncipe, cavalheiro nobre. Não eu. Eu o conheço ao ponto de
saber que meu Dono é como um animal enjaulado, lutando contra a própria essência.
Não há motivos para ser civilizado agora.
— Continue o espetáculo, borboleta russa. — Sua voz rouca o torna ainda mais ameaçador.
De repente, não existe mais ninguém entre nós. Não há outro, apenas ele, meu único Dono, e
eu sei qual brincadeira ele me ensinou a gostar.
Deslizo pelos corredores sinuosos da casa de espelhos, com meu coração pulsando pela
urgência da fuga e do prazer. Ainda sinto meu baixo-ventre latejar e a música do ponteiro tocar
mais alto, me enfeitiçando.
Tento correr, o que funciona nas duas primeiras curvas, e então a cor das luzes mudam,
refletindo vermelho. Nesse tic-tac, percebo que a ilusão não está nos espelhos. A cada tic-tac, o
reflexo muda, alterando o labirinto.
— Acho uma pena você querer brincar de se esconder comigo, bailarina. — Meu Dono
arranha o vidro, do outro lado, fazendo um barulho ainda mais grotesco contracenar com o tic-
tac. — Nós fizemos outras vezes, não tem como vencer, eu sempre vou te achar.
Os corredores estreitos criam uma sensação de claustrofobia, enquanto as superfícies
espelhadas capturam e multiplicam a luz, gerando uma atmosfera psicodélica.
— Eu sinto o seu cheiro, bailarina… — A sombra distorcida do meu perseguidor parece
dançar entre os reflexos famintos que multiplicam sua presença ameaçadora. Tento me esquivar
e tropeço.
— Eu vou te encontrar… — Cada reflexo revela um vislumbre diferente da figura que me
caça, me deixando cada vez mais excitada. — Quando isso acontecer… — Não tenho tempo de
me levantar. — Tic-tac…
Começo a rastejar, sem me importar com o meu joelho, ralando. Meu Dono não parece
contente com isso. O som dos espelhos quebrando reverbera, aumentando a intensidade do
momento.
— Estou te vendo pelos espelhos, Aleks. — Cantarola, de um jeito que minha pele se arrepia
com a respiração ofegante do meu caçador. — Estou vendo sua bunda gostosa. — Quebra mais
um espelho. — Eu vou te pegar.
Minha respiração se mistura com a dele, enquanto a aura sensual entre nós intensifica a
atmosfera carregada dessa emoção proibida que faz minhas mãos suarem em contato com o piso
frio. Cada espelho que se despedaça é um fragmento do quebra-cabeça dessa dança perigosa.
— Ah, Aleks, eu não tentaria fugir… — A minha fuga, agora, é mais como uma valsa
distorcida do que uma tentativa desesperada de fugir. — Você não vai escapar, mesmo. Você é
minha.
Meu corpo colide com um espelho distorcido, deixando-me encurralada no labirinto de
sombras. Estou em uma encruzilhada entre os reflexos dos nossos desejos com as sombras do
meu predador, no limiar entre o desejo e o medo.
— Não tente correr, vai ser pior. — Arregaça as mangas, revelando as veias das mãos e
antebraço. — Vou te pegar de qualquer forma, borboleta. Você vai aprender a não fugir de mim.
Levanto-me com os joelhos trêmulos, mas aceito o fim da linha. Isso significa que ele pode
fazer o que quiser comigo, fui condicionada a aceitar qualquer condição, por mais degradante e
humilhante. Aprendi que meu corpo não é meu, e sim um meio de satisfazer meu Dono. Só isso
já é o suficiente, vou me submeter com perfeição, mesmo que doa, mesmo que sangre, mesmo
que eu me despedace por dentro.
Estou pensando quais são as formas que ele irá me sodomizar quando meu Dono ordena que
eu levante a perna em devellope. Seu timbre é ainda mais dominante do que na primeira vez,
denotando que a caça só o deixou com mais fome.
Obedeço. Só não espero o que ele faz em seguida.
Meu Dono caminha lentamente, até ficar frente a frente comigo. Seus lábios estão molhados
e, ainda assim, passa a língua por eles, fazendo-me acompanhar o movimento enquanto desfruto
do seu hálito quente e do perfume misturado com testosterona e suor. A demora me deixa ainda
mais ansiosa e preocupada. Ele não me toca, ele não me beija, ele…
Fica de joelhos.
Perco completamente o ar.
Meu Dono se ajoelha para mim.
Solto um gemido atropelado quando ele abocanha minha boceta com uma fome
avassaladora, apertando minha coxa levantada com uma mão e segurando minha bunda com a
outra, dando alguma sustentação ao meu corpo já que sua boca me devora com tanta avidez que
me sinto desmanchar na sua língua gulosa.
— Puta que pariu, Dono… — seguro em seus cabelos, puxando-os. Solto: — você vai
arrancar um pedaço meu…
Ele mordisca meu clitóris inchado, respondendo meus gemidos com ainda mais vontade e
gula. Meu Dono lambe e engole a minha boceta, colocando tudo na boca antes de deslizar a
língua pelos lábios maiores e menores, sugando toda a minha lubrificação, mamando cada gota
do suco do meu prazer.
— É o mínimo que você merece por tentar fugir de mim.
Ouvir isso só intensifica ainda mais o tesão de vê-lo se lambuzando inteiro com o meu
gosto. Minhas pernas tremem tanto que tenho a sensação de que vou cair e ele segura a minha
bunda com mais força, me estimulando com tanta intensidade que é impossível me concentrar
em qualquer outra coisa além da minha respiração ofegante, do meu cheiro alastrando e dos
nossos reflexos nessa sala distorcida.
Sinto a tensão se alojando com mais pressão na boca dele. Meu Dono não para de me chupar
nem para respirar. Seu calor afobado contra a pele sensível da região e a aspereza da sua barba
funciona como um estímulo extra que contracena com a macieza dos lábios e da língua. Meus
gemidos já deixaram de ser civilizados há um bom tempo.
Sinto meu corpo inteiro se arrepiar em doses cada vez mais intensas e em janelas de tempo
mais curtas. Estou segurando os seus cabelos com toda a força enquanto assisto sua silhueta na
luz azul.
— Ah, eu vou gozar… — confesso, sentindo meu coração apertar mais forte a cada batida.
Em vez de continuar nos movimentos circulares, Meu Dono morde a minha coxa.
— Eu disse que você iria sofrer. — Provoca e sorri de um jeito que meu ventre baixo lateja
de tesão.
Minha reação mais honesta é inclinar a pelve para frente, resvalando minha boceta na boca
gostosa dele que, surpreso, não tendo autodomínio o suficiente para resistir à tentação, voltando
a me chupar.
— Ah… — reviro os olhos com o arrepio que atravessa a minha espinha. — Ahhhh — me
contraio e meu Dono faz menção a me provocar, porém sou mais rápida.
Desço a perna e a coloco por cima do seu ombro, prendendo em suas costas, enquanto ganho
desenvoltura o bastante para mexer a pelve, me esfregando na cara de Damon, que geme de
prazer e fica ainda mais sedento.
— Damon… — explodo em um gemido agudo enquanto sinto o desfiladeiro de prazer
irradiar da minha boceta até as extremidades dos meus pés, contorcendo-os em um plie.
— Aleks… — Meu Dono geme junto. — Que delícia... — solta, sem saber se sobe o olhar
para assistir meu rosto se contorcer de prazer, ou se observa minha boceta contrair.
Por fim, simplesmente a abocanha para beber todo o líquido que me lava em um squirting,
escorrendo para a sua boca. Quando percebe que estou o assistindo, me fita safado com seus
deslumbrantes olhos castanhos antes de sair da sua posição e ficar frente a frente comigo.
Estou completamente sem reação. Minhas pernas tremem tanto que agradeço quando sua
mão passa pela minha cintura. A outra segura no meu queixo, puxando minha boca para um beijo
molhado que me faz sentir meu próprio gosto em abundância na sua língua, melando meu rosto
com sua barba em tanta intensidade que parece me devorar. Começo a rir, de tanta leveza.
É ele, agora o vejo.
— Damon. — Ele também abre um sorriso no beijo. Desvio. — Você vai me engolir.
Concorda, selando meus lábios com os seus, vermelhos e inchados, mas continua me
observando com admiração, e então desce as mãos até o body, não é para terminá-lo de arrancar,
e sim fechá-lo.
— Não quero que ninguém veja.
— Mas você não quer terminar? — coloco a mão no seu volume, duro como pedra desde o
começo da noite.
Acaricia meus cabelos.
— Ah, Aleks… — suspira, com suas íris fixas nas minhas. — Você é tão valiosa, Oceano.
— Rouba outro selinho e não satisfeito, beija minhas bochechas em uma explosão de carinho que
me desnorteia. Diz em meu ouvido. — Ter você brincando de esconde-esconde e gritando meu
nome no orgasmo já me satisfaz, bailarina.
Então entendo o porquê não quero sair daqui.
— Damon… — Ele franze o cenho, sem entender meu desabafo. — Estou com medo.
— A festa está cheia de seguranças, tem câmeras.
Cruzo os braços, cedendo a mágoa.
— Quem era aquele homem que você conversou?
Trava o maxilar ao falar dele.
— Quem? — Parece confuso. — Eu conversei com muita gente.
Eu também não sei, então suponho.
— O Rei.
— Não se preocupe com ele, Aleksandryia. Ele é assunto meu.
Não entendo o porquê ele parece irritado com o assunto, se foi todo sorridente para cima do
meu antigo Dono, e isso me magoa, mas eu não sei como confrontá-lo além de cruzar os braços.
— O que foi, borboleta?
— Vocês são amigos.
Faz cara de nojo.
— Não, eu o suporto essa noite porque ele é o maior responsável por trás do EuroOásis. —
Pende a cabeça para o lado. — O que foi, meu amor?
Não respondo e ele me abraça, murmurando palavras fofas, mas é como se irrompesse algo
ruim dentro de mim, refletindo uma dor física.
Uma pontada de cólica.
— Banheiro. — Peço, arregalando os olhos. — Banheiro.
— Desceu?
Vou na frente e ele segura minha mão, como se me pedisse para ir com ele.
— Não sei.
Damon e eu atravessamos todo o espetáculo até o banheiro do salão de festas cheio de
mulheres.
— Quer que eu entre? — pergunta.
— Eu vou ver se é e te chamo.
Ele continua me fitando, sério.
— Tudo bem mesmo?
Solto sua mão.
Eu não deveria ter soltado a sua mão.
DANÇANDO NA TOCA DOS LEÕES
Adentro o banheiro, assustada com a hipótese de menstruar agora, mas tudo o que encontro
é a minha calcinha molhada da minha lubrificação transparente.
O alívio percorre as minhas células, e eu me sento na privada, respirando profundamente
enquanto faço xixi e me recupero do turbilhão de emoções que inundaram minha mente. Minha
cabeça ainda está pesada, como se os resquícios da hipnose ainda estivessem dominando alguns
espaços, como se o tic-tac estivesse com a mão nas maçanetas proibidas. Permaneço sentada por
alguns minutos, até que as batidas do meu coração estejam calmas e sincronizadas com a minha
respiração.
Seco-me bastante, procurando resquícios de sangue, e não encontrar nada me deixa
estranhamente irritada. Parece até que alguma parte de mim quer ver sangue.
Puxo a descarga e abro a porta da cabine, levando um susto com o que vejo na pia. Há uma
mulher debruçada sobre o mármore carrara, inalando uma carreira de pó branco. Suas costas
estão completamente nuas, e são lindas, com o desenho da dorsal fazendo a curva perfeita, até o
quadril, onde um laço enorme, vermelho, causa a sensação de que sua bunda é um presente,
seguindo uma saia longa vermelha-sangue.
Aproximo-me da outra pia e ela vê reflexo no espelho, levantando-se enquanto coça o nariz.
Seus longos cabelos, castanhos, estão meio-presos de um modo sexy, e o seu rosto, com as
proporções delicadas, quadradas, acompanhadas com uma boca pequena de lábios grossos e os
olhos grandes e delineados, suga a minha atenção.
Eu a reconheço.
— Kitty! — Ela sorri com uma alegria fabricada. — Lembra de mim?
Faço que não, só para ouvir seu nome e ter certeza.
— Sou Bunny! — E me abraça com as luvas vermelhas contracenando com o decote
vermelho que sustenta os seios volumosos. — A gente já participou de muitas surubas.
Começo a lavar a mão, assustada.
— Não lembro.
— É... — Apoia-se no mármore. — Você estava hipnotizada.
Desvio a atenção das minhas mãos para ela, pronta para questionar quando vejo a gota de
sangue saindo do seu nariz, então minha reação mais rápida é usar o lenço de papel na minha
mão para colocar no seu nariz, tentando não me desesperar.
— Está sangrando. — Mexo os pés.
Ela sorri com uma alegria doce, e se vira para o espelho.
— Papai me proibiu de usar coca. — Mexe com o papel no fundo do nariz, de um jeito que
sinto aflição e não consigo me mover, paralisada. — Daí, sempre que eu uso, acontece isso, me
denunciando... — Tira o papel ensanguentado e eu abaixo a cabeça, lutando contra uma barreira
invisível que quer ver. — É como se cada pedacinho de mim obedecesse ao Rei, mesmo que eu
não queira, tamanho é o seu poder. Você sabe, isso é uma delícia, né?
Franzo o cenho.
— Está falando do Dono?
— Não, é o papai. — Corrige, jogando o papel no lixo — É como ele gosta de ser chamado.
Essa constatação me causa um mal-estar tão repentino que meu cérebro gira. Dou dois
passos para trás e meu corpo impacta com a parede, sentindo um impulso de me afastar.
Murmuro:
— Foi um prazer vê-la, Bunny.
Só que Damon não está na porta como combinamos.
Perco completamente o ar e o rumo.
Ele me deixou sozinha.
— Damon! — chamo por ele, sem me dar conta do quanto minha voz e presença soam
ensurdecedoras, porque a atenção de todos os presentes, homens e mulheres, se volta para mim.
— Damon...
Estar nesse espetáculo, como a acompanhante do anfitrião, é como ser uma gazela bebendo
da fonte no território dos leões, e eles não parecem satisfeitos com a ideia de dividir aquilo que
os sacia.
Por isso, levanto a postura e dou meu melhor sorriso, afinal, se sentissem o odor de medo
exalar dos meus poros, me devorariam todos ao mesmo tempo. E, se isso acontecesse, não
restaria nem mesmo uma última carcaça para Damon.
— Está sozinha?
Um estrondo me assusta e uma série de explosões de fogos no céu clareia os limites da
propriedade decorada com luxo e mistério, na velocidade de um piscar de olhos.
— Não. — Digo para Bunny, e o seu sorriso doce começa a parecer assustador.
Olho ao redor, procurando Damon, completamente sozinha no meio dos Sangue em
Ascensão que me fitam como se eu fosse a atração da noite.
— É muito perigoso uma moça gata como você ficar sozinha, hoje à noite. — Continua ela.
Um arrepio percorre toda a minha espinha dorsal e eu me afasto dela, tentando não me
perder na riqueza do ambiente. O jazz sombrio preenche o ar; o perfume de comidas finas
enrosca-se com o de perfumes caros e acresce, misturando-se ao de tecidos elegantíssimos que
estão sendo usados pela primeira e última vez. Famílias que, embora não cheguem a duzentos
convidados, pesam mais quilates que nações inteiras.
— Tem muitos seguranças.
— Coroados. — Corrige. — São tão corruptos quanto nós.
Ignoro-a e ela continua.
— Somos as únicas Bonecas desse lugar, devia ficar comigo.
— Obrigada. — Não paro de andar.
— Eu não devia falar. — Ela está fumando. — Mas estão planejando muitas coisas quando
pegarem você. Alguém andou espalhando que é gostoso te ver chorar com esses lindos olhos
azuis-escuros... — acaricia meu rosto pálido com... prazer?
Meus músculos se contraem instantaneamente, e meu coração pula em meu peito como um
tambor descontrolado. Uma onda de arrepios percorre minha espinha, e uma sensação gelada se
espalha por todo o meu corpo.
— Quem? — afasto sua mão.
— Todos. — Assopra a fumaça no meu rosto. — Damas, Peças, Jogadores... — O tempo
parece congelar, e meus sentidos estão aguçados ao máximo, alertas para qualquer movimento.
— Menos eu, você devia ficar comigo.
Fito novamente ao redor.
É simplesmente impossível encontrar a silhueta do Duncan em meio a tantos ternos pretos e
cabelos castanhos escuros. Observo minha única opção de escolha, sorrindo e piscando para
Jogadores, nem um pouco confiável.
— Por que você me protegeria?
Enrosca um braço no meu feito teia e, embora parecesse solícita e simpática, eu sei que é
desse modo que os Sangue em Ascensão enroscam suas vítimas. Primeiro, com gentileza e
cordialidade, retiram nossas armaduras, deixando-nos expostos. Depois, a generosidade que
encanta e embebeda enquanto manipulam nossas mentes e fazem das nossas personalidades
massinha de modelar.
— Não estou dizendo que te protegeria, estou dizendo que deveria ficar comigo. — Joga a
bituca no chão. — Eu não quero com você a mesma coisa que eles querem.
Paro de andar.
— E o que você quer comigo, Bunny?
Viro a cabeça, buscando Damon na multidão que cresce na selva de bilionários. A vontade
de chorar de medo por não o ver em canto nenhum cresce, mas eu lembro que isso vai excitá-los
e engulo.
Então meu inconsciente me faz uma pergunta que quase me leva a um colapso:
Qual a pior coisa que poderia acontecer com uma presa em uma cova de leões?
Bunny me fita com sangue nos olhos translúcidos e eu entendo que o Rei ficou com ela
porque viu na garota uma letalidade idêntica à dele.
— Sou ciumenta, não gosto de dividir a atenção com outra Boneca.
Solto dela, indo para o lado contrário.
— Obrigada, mas...
Meu corpo esbarra em outro.
— Bailarina, bailarina… — Arrepio-me com a voz do Jogador na minha nuca. — Achei que
nunca mais te veria.
Viro para o homem, que tira a máscara para que eu me lembre de cada objeto que enfiou em
mim, e a raiva me faz fechar os punhos.
— Por que achou uma coisa dessas? — retruco, assustada e irritada, espantando-me com
como o tempo foi cruel com ele. Muito velho.
— Porque você morreu para nós — explica tranquilamente. — E, dentre os Sangue em
Ascensão, a regra é clara: ninguém toca em assuntos enterrados.
Sua frase efervesce minha alma.
— Estou aqui hoje nos braços de Damon Duncan, onde pretendo continuar. — Minha voz
sai aguda e, para camuflar o medo que escapa com o timbre, cruzo os braços e levanto os
ombros. — Não podem me tratar como se eu fosse um fantasma para sempre.
Ele ri, aceitando a aposta.
— Você se surpreenderia com a quantidade de pessoas que adora filmes de terror por aqui,
garota.
Uma descarga de adrenalina me atinge assim que suas palavras me tocam, causando um
tremor que eu não consigo controlar. Meu coração bate descompassadamente, ecoando o ritmo
frenético dos meus passos ao dar as costas e recuar, torcendo para que ele não venha atrás.
O ar torna-se denso, e o som da minha respiração acelerada ecoa como um tambor pulsante.
A luz fraca tremeluz, lançando sombras distorcidas que dançam ao ritmo do meu medo.
Viro-me e um Jogador está praticamente em cima do meu corpo.
— Há quanto tempo não nos vemos, Aleksandryia! — Cumprimenta, fazendo-me pular de
susto e já tomando a minha mão. — Como vai?
Não consigo responder. Meu coração bate tão rápido e forte que eu sinto os espasmos
impactarem minha caixa torácica e me deixarem sem ar.
— Procurando alguém? — Sua esposa me cumprimenta com gentileza, ignorando o fato de
eu estar pálida. O que eles querem comigo? — Porque Damon está atrás de uma linda moça de
olhos azuis idênticos aos seus. — Sorri ternamente.
Meus olhos brilham de esperança.
— Onde ele está?
— Por ali. — Aponta para uma direção vazia e sombria.
Contudo, antes que eu possa mover um dedo, o Jogador segura em meu braço e se aproxima,
cortando a distância. Alerta:
— Querida, você sabe que está na toca dos leões, não sabe? — Assinto, e um medo súbito
de olhar em seu rosto domina as minhas ações, então permaneço estática. — Sabe o que isso
significa?
Uma agonia revira meu âmago.
— Que vão me devorar ainda hoje?
A luz de todo o lugar apaga, deixando o ambiente em densa escuridão por cinco segundos.
Quando volta, ele está sorrindo.
— Que você só tem uma chance de sair viva.
Encaro seus olhos cinzas.
— E qual é?
Sua ameaça é tão sutil quanto ameaçadora.
— Não. Faça. Movimentos. Bruscos.
Faço o oposto — desvencilho-me da sua mão com desespero e viro na encruzilhada de
fortunas e violência sem perceber estar indo exatamente na direção que sugeriram.
O suor frio escorre pelo meu rosto, e meus músculos imploram por uma fuga mais rápida,
enquanto eu mantenho a compostura diante dos olhares. Cada vez que viro a cabeça para trás, os
olhos dos monstros parecem mais próximos e a escuridão se fecha ao meu redor.
Finalmente, quando acho que não posso mais suportar, do lado oeste da propriedade,
encontro uma piscina, cuja água balança com a brisa violenta.
Os músculos, até então tensos, se acalmam, e eu respiro lentamente, sentindo as pernas
bambas. A única coisa que ilumina o breu das terras milionárias é a lua cheia ao longe.
Com as mãos trêmulas. desamarro as sapatilhas e imerjo os pés, sentando-me na borda. O
frio por submergi-los me traz um bem-estar acalentador. Em um exercício de respiração, começo
a movimentar os pés em elevés debaixo d'água, aumentando a intensidade das pequenas ondas,
que vão de uma ponta a outra da piscina.
Inspiro e suspiro diversas vezes até sentir que estava revertendo a crise, orgulhosa por não
ter quebrado e chorando na frente deles.
Então escuto passos e me inclino na direção do ruído. É uma mulher de cabelos escuros,
sentando-se ao meu lado. A barra do seu vestido forma um desenho bonito na água que me
lembra alguma espécie rara de musgo marinho.
— Te encontrei. — Sorri, desamarrando a máscara.
Surpreendo-me com a beleza do seu rosto, tão bela que não parece real. Parecida com as
Bonecas de Cartier, a mulher nos porta retratos de Damon.
Europa Young.
— Te encontrei. — Sorri, aliviada, afastando os fios que dançam pela sua face.
O ódio se acende dentro de mim como o fogo vivo de uma lamparina, quando lembro de
tudo o que ela fez. Faço um gesto para me levantar, mas, quando me viro, há seguranças na
entrada da porta, e Europa emerge os pés na água comigo.
Penso em tudo o que ela fez, em tudo o que ela tem poder para fazer e mal consigo respirar,
despreparada, frágil e vulnerável para lidar com essa situação.
— O que vai fazer comigo? — pergunto, com a voz trêmula.
Fica quieta e eu volto a atenção para a piscina, de cabeça baixa, encarando os meus pés
quando ela começa a mexer os dela, de um lado para o outro, de um jeito que toda a água da
piscina forma ondas relaxantes, para lá e para cá, e ela começa a cantar calmamente.
— Hum-hum. Hum-hum. — No ritmo da água, batendo de uma ponta a outra.
O peso em meu corpo cai de uma vez, como se apenas agora eu sentisse a pancada de
emoções que me devorou a noite inteira. Estou com a cabeça dolorida, com pontadas de cólicas,
e com meu corpo exausto de segurar a atenção e a minha mente muito cansada por tudo o que
vivi no espetáculo.
Estou com tanto medo, que guardo minhas energias para resgatar Gulnara e me concentro no
que os movimentos causam na piscina, sentindo uma estranha serenidade se infiltrar nos recantos
mais profundos da minha mente à medida que a melodia sutil e envolvente da sua canção parece
acalmar até mesmo o mais furioso dos meus temporais internos. É boa a sensação.
— O que está fazendo? — pergunto, caindo em mim, em um susto.
Ela desvia a atenção da piscina para mim, e seu olhar hipnótico me prende, verde-
amarelado. Vejo-me incapaz de desviar os olhos enquanto ela canta baixinho e a água obedece.
Os seguranças atrás permanecem impassíveis, seus olhos vazios refletindo apenas a obediência
cega. É como se a própria atmosfera estivesse impregnada com o hum-hum dela.
Tento desesperadamente me afastar mentalmente disso, focar em pensamentos de
resistência, mas a música e a água formam uma simbiose irresistível. Meus olhos se fixam nos
dela, perdendo a batalha contra a corrente suave de encantamento que ela faz.
— Shh, querida. Hum-hum. Relaxe. Tic-tac. Não há mais necessidade de lutar.
Europa continua a mexer os pés, e a piscina responde obedientemente às suas ordens. As
ondas se tornam mais intensas, o balé aquático me hipnotiza cada vez mais. O ódio, antes
fervente, é suprimido pela mágica insidiosa que ela exerce. O que me resta é uma aceitação
catatônica, meu corpo se move em sintonia com os acordes que fluem da boca dela.
— Não há mais necessidade de lutar.
Sua voz sussurra nos recantos da minha mente, e eu me entrego à corrente, meu corpo
flutuando passivamente enquanto Europa, como uma sereia sedutora, exerce o seu feitiço através
da água hipnotizante da piscina.
— Todo mundo tem a sua forma de relaxar, Aleksandryia. Quer ver a minha?
— Não sei. — Minha voz soa perdida.
Sem interromper sua melodia tranquilizadora, de repente, uma expressão de dor atravessa
seu rosto. Ela ergue uma lâmina, cortando o pulso, deixando que gotas de sangue se misturem à
água da piscina. Uma sensação de desconforto inunda meu ser, mas eu continuo paralisada,
incapaz de desviar o olhar do sangue pingando em seu braço.
— É a única forma que eu encontro de sentir alívio. A dor física me faz esquecer o que sinto
me devorar por dentro. Já experimentou?
O líquido rubro se espalha pela água, formando padrões abstratos que ecoam como sombras
dançantes. Uma energia estranha parece emanar dessas gotas vermelhas, infiltrando-se na
atmosfera e encontrando ressonância dentro de mim.
— Não. — Minha voz sai trêmula.
— Por que está chorando, Kitty?
O ódio que eu havia suprimido é substituído por uma avalanche de sentimentos, cada um
mais intenso do que o anterior.
— Eu não posso ver sangue.
— Por quê, Kitty?
É como se o sangue na água tivesse agido como um catalisador para os meus gatilhos mais
sensíveis.
— Eu não gosto.
Ela se corta mais, pega minha mão e encosta no seu braço.
— O que sente quando pensa em sangue?
A dor latejante na minha cabeça se intensifica, uma pulsação rítmica que sincroniza com a
melodia perturbadora da água da piscina. Uma sensação de náusea se insinua, retorcendo meu
estômago em espasmos desagradáveis. A piscina, em tons vermelho perto dos meus pés, parece
ter adquirido uma textura sinistra, como se cada onda fosse uma manifestação tangível da minha
própria angústia.
— Culpa, eu me sinto mal... Me sinto horrível. Meu Dono cuidou de mim.
Eu tento resistir à avalanche emocional, mas a dor de cabeça se torna cada vez mais
insuportável. As lembranças, antes confinadas, agora fluem desordenadamente, misturando-se
em uma colagem caótica de imagens e sentimentos.
— Você acha que não merece o cuidado que seu Dono te deu? — Cada movimento dela,
cada corte, é como um golpe direto na minha resistência. — Por isso sente culpa?
A sensação de mal-estar se intensifica, como se o próprio ambiente estivesse conspirando
contra mim. A piscina se transformou em um mar de emoções tumultuadas e dor física, e eu me
sinto submersa em um turbilhão de tormentas, lutando para manter a compostura.
— Você acha que alguém fez mal a você, Kitty? — aponta para o braço. — Olhe. — Leva o
sangue do seu braço até meu rosto, esfregando o corte. — Ou você sente que fez mal a alguém,
por isso sente culpa e nojo de sangue?
O vermelho do sangue se torna o foco central das minhas lembranças, provocando uma
sensação de pânico visceral. A lembrança é vívida: uma mulher, a culpa, o choro e o amparo do
meu Dono, de algo que eu desejava esquecer.
Eu relembro o cheiro metálico, a visão do líquido escarlate manchando o chão e as mãos
trêmulas que não puderam evitar o inevitável.
De repente, uma onda de imagens e emoções invade minha mente. Recordações dolorosas,
medos profundos e anseios enterrados ressurgem.
— Sim. — Fito-a, consternada. — Eu acho que sim.
Acho que matei alguém.
PRAZER, CHARLLOTE
A essa altura, você deve ter percebido que não sou uma narradora confiável.
Ocultei informações, manipulei fatos, fiz do Tabuleiro o meu parquinho de diversões, e
agora estou aqui, refrescando os pés na piscina enquanto ele pega fogo.
Todos estão achando que sou uma puta, mas não ligo. Acharam o mesmo de Cherrie e ela
não era. Transformo qualquer xingamento em meu escudo.
É assim que as coisas funcionam dentro do Jogo. Ou você brinca com a cabeça deles, ou eles
fodem com a sua. Sei que você queria que houvesse outra maneira, mais justa e mais limpa, mas
todas as Peças Brancas são derrubadas assim que se levantam.
Gostaria com toda a minha alma que Charllote Duncan provasse o contrário, mas ela foi a
única que não quis engolir essa porra, e a silenciaram.
Então, aqui estou eu, manipulando tudo e todos enquanto rasgo o meu braço com o estilete,
observando meu sangue escorrer como escape por todos os segredos que ficam presos dentro de
mim.
E se só me machucar fosse o suficiente...
Ainda se Cherrie pudesse gritar, eu não existiria, mas eles só escutam os estragos, então
ofereço o melhor da casa.
Nas mãos, o estilete me diz que o triunfo está entre meus dedos, e eu me mantenho nessa
espécie de transe dissociativa, desligada de outras sensações e pensamentos ao ponto de não
sentir a dor física, até uma sombra me cobrir.
— Cartier?
E, então, retira a máscara, evidenciando sua beleza marcante nos ossos do rosto, com uma
garrafa do meu champanhe favorito em uma mão e duas taças em outra. Põe a garrafa com as
taças ao meu lado e, com um fraco sorriso contrariado, despe-se do smoking preto e justo para
ocupar o meu lado com mais versatilidade.
Meu homem possui ombros largos demais para caber confortavelmente dentro de uma
alfaiataria de alta costura.
— Parabéns para Europa Young. — Comemora com a voz aveludada, sentando-se. — Mais
uma vez, você conseguiu tudo... — vê o meu braço e me fita assustado. — O que está fazendo?
Reviro os olhos com sua preocupação, me machucando.
— Tentando ficar mais um pouco. — Aponto com o olhar para a bebida. — Estava te
esperando para comemorar.
O Kühn sorri fracamente, trazendo sua mão até o meu rosto. Desenha meus traços com seu
dedo indicador, do meu queixo às maçãs do rosto. Seu toque praticamente se desfaz em contato
com minha tez, tamanha a minha letalidade.
— Estou tonta. — Confesso, e ele aproveita a deixa para tirar o estilete, mesmo que isso
signifique dar voz a dissociação que me inebriada.
— Deve ser o sangue que saiu.
Sorrimos tristes para o outro. Não é. Estamos acostumados com despedidas como essa.
Eu só fico no front até cumprir meu objetivo. Sempre entrego o caos nas mãos de Cherrie, e
sinto os sinais de que estou indo embora. Nem consigo mais nem fazer piada.
— Porra — solto, deitando minha cabeça nos ombros dele, com os olhos fechados, o calor
da sua camisa em minha testa, meu nariz sentindo o seu perfume. — Eu devia ter ido mais
devagar com o plano.
Segura a garrafa e faz pressão com os dedos até que a rolha estoure, caindo longe na piscina,
dentro da água, mas eu não desvio o olhar para Cartier, analisando suas íris douradas como fogo.
— Foi perfeito, minha vadia. — Agora, nossos rostos estão tão próximos que sua respiração
quente me toca, demonstrando toda a emoção por me ter em seu território. — Eu amei cada
segundo de você aqui. — Sela meus lábios. — Uma pena você só ter me contado nas últimas
semanas.
Encaro-o, com ódio de mim mesma por isso.
— Mas você teria me deixado fazer tudo o que fiz com a coitadinha?
Dá de ombros e mostra a mão cheia de mordidinhas de cachorro.
— Roubei um cavalier, não?
Cartier é tão bom que não deveria ser considerado homem.
Ele faz o que precisa fazer, aguenta a porrada e não tem medo da dor, e ele sabe amar de
verdade, o tipo de amor altruísta, que não precisa de reciprocidade, o que existe
independentemente de quanto tempo passe. Ele me ama há anos, em minhas passagens rápidas, e
sei que vou embora hoje, mas, daqui dois, cinco ou dez anos, quando eu voltar, ele vai continuar
igual, e vai me amar não importa a merda que eu invente fazer, e vai me ajudar, se estiver ao seu
alcance, porque esse é Cartier.
— Eu te amo, droga. — Lanço-me sobre o seu corpo, abraçando seu pescoço, e ele nos
deita, eu em cima do corpo dele, envolvendo seus braços fortes em meu entorno.
— O monstro demonstrando sentimentos? — brinca, mas me encaixa, de um jeito que
ficamos com a cabeça deitada fitando as estrelas, sem conseguir esconder a tristeza penetrando o
momento.
Sempre sou forte, exceto nas despedidas, e minha reação mais vulnerável é ficar de mãos
dadas e fechar os olhos, desejando curtir cada segundo da sua companhia enquanto a dor
emocional vai se tornando física.
Começa com os efeitos de que estou fora do meu corpo. A dor no braço desaparece
completamente e o toque da mão dele também. Sinto partes do meu cérebro se desligarem em
pequenos apagões, causando pontadas na cabeça.
— Eu não queria te deixar — murmuro, observando o céu. — Queria ficar com você todos
os dias. Seríamos a turminha do mal.
Apenas sei que beijou minhas mãos porque as vejo na boca dele, é uma sensação meio
assustadora, mas me acostumei.
— Eu também, mas e a Cherrie?
É pior pensar nela. Pensar que ela vai ficar sozinha com os monstros, e ela não vai pedir a
ajuda de ninguém, vai ferrar o psicológico e vai se estraçalhar fazendo tudo três vezes mais só
para ser enxergada como um Peão pelos olhos do papai que não dá a coroa que ela nasceu para
receber.
Esse é o ponto.
Tudo o que eu fiz com Damon foi para foder o reinado desse filho da puta. Faria de novo mil
vezes, usaria todas as Bonecas do jogo com prazer, nesse caralho.
— Tenta cuidar dela. — Peço, com um zumbido crescente.
— Não se preocupe, minha gostosa.
A dor me faz estremecer cada vez mais. É como uma enxaqueca que faz seu cérebro sair
pelos ouvidos e olhos, tamanha a pressão. Dói também na alma, tudo o que somente eu, Europa,
sei a magnitude do que aconteceu, de um modo que sinto cada centímetro de mim ser quebrado
com flashes de vezes que precisei me ferir para estabelecer os limites, de quando Cherrie era só
uma menina de quartoze e quinze anos, e foi traída da maneira mais sórdida, pelas pessoas que
mais amava, e mataram a única ajuda que ela teve: Charllote.
Dói tudo o que não tenho o direito de viver, porque não posso simplesmente existir e ficar
abraçada a Cartier como uma pessoa normal, tenho que ser essa máquina de matança, não tenho
outra opção. Dói cada trauma de Cherrie. Dói muito ser apenas uma parte dela que ela exclui,
sabendo que seríamos muito melhores se fôssemos as duas, juntas. Inteira.
Cartier percebe que estou chorando e faz uma última coisa, na tentativa de tornar o meu pior
momento em algo bom como um sonho.
Traça a maciez dos meus lábios com a ponta dos dedos para, enfim, tomá-los enquanto suas
mãos sobem até meus cabelos. Ao se aproximar do meu pescoço, inspira o meu perfume antes de
atacar minha boca com apetite. Como se eu fosse o seu veneno e, ainda assim, o bebesse com
prazer.
Fecho os olhos, caindo em um abismo terrivelmente assustador, e escuro e silencioso, e o
choro se intensifica porque nesses momentos eu sinto a morte e não importa quantas vezes
aconteça, sempre vou sentir a dor de estar morrendo de novo e de novo, em um espiral que
embaralha a minha mente, bagunça os meus sentimentos, me faz sentir muitos cheiros e...
Busco todo o fôlego dos meus pulmões, como se estivesse submergindo de um oceano
profundo e escuro, sentando-me enquanto coloco as mãos contra o peito em uma tentativa falha
de obter mais ar e parar de chorar.
Meus olhos se abrem e eu tento entender onde estou, me deparando com a feição de Cartier
Kühn inundada por lágrimas. Abaixo o olhar, encontrando nossas mãos entrelaçadas em um forte
aperto, e tento entender as minhas unhas grandes e afiadas, o vestido, a piscina dos Duncan...
— Cherrie? — a voz do Kühn capta minha atenção, carinhosa, embora anasalada. — Bem-
vinda ao Front.
Ele está com o rosto liso e, sem a barba loira, o maxilar a boca e o formato do nariz tornam o
seu conjunto ainda mais único.
Sorrio em agradecimento, tentando acalmar as batidas do meu coração.
— Mon Soleil... — acaricio sua face tomada por lágrimas, limpando-as enquanto crio
coragem de perguntar. — O que aconteceu?
O loiro expressa uma feição conturbada.
— Qual a última coisa que se lembra?
Concentro-me por vários minutos na resposta.
— Estávamos na Ilha, no Torneio. — À medida que falo, obtenho mais detalhes, e sorrio. —
Eu iria apresentar o EuroOásis — então meu timbre abaixa, e eu sinto um aperto no peito. —
Damon roubou a autoria do projeto. Ele roubou o meu projeto.
É a vez do loiro acariciar minha face.
— Estamos no jantar de apresentação do EuroOásis, oito meses depois, Europa preparou um
espetáculo, fodeu Damon de todos os jeitos. — Morde os lábios, pensando em como explicar. —
Lembra daquela Boneca que seu pai tirou do catálogo?
Meu cérebro lateja com a confusão.
— Papai tira muitas do catálogo.
— A Boneca-russa. — Inclino a cabeça, atenta por mais informações. — A bailarina de
porta joias.
Meus olhos se arregalam quando me recordo de Aleksandryia, com um enjoo se apoderando,
amargando o meu palato.
A com envolvimento no caso de Charllote?
— Ela e Damon estão juntos.
Meu queixo cai. Não. Não. Não.
— Aqui?
Ele assente.
— Seu pai estava surtando.
Sinto meu coração disparar em movimentos mais rápidos a medida em que assimilo o caos,
e me levanto tão rápido quando consigo, com a tontura e os pés molhados, então um peso
descomunal no braço faz eu me assustar quando me deparo com a tragédia que ele se tornou,
completamente ensanguentado com rasgos em diversas direções.
O sangue sujou toda a minha roupa.
— Ai... — escapa, antes que eu me dissocie da dor, focando no que é mais importante. —
Papai!
Cartier aponta a outra direção.
Perco o fôlego quando encontro a estrutura da festa, e, por um instante, agradeço a Europa
porque, só de imaginar que esse momento deveria ser meu, sou tomada por uma vontade de
matar Damon dos jeitos mais dolorosos, e torno a atravessar as atrações em busca do meu
homem de máscara.
Dylan cruza comigo, usando um terno de bom caimento em seu corpo esguio, os ombros
largos e as pernas longas.
— Europa, seu braço!
Puxo para o meu corpo, escondendo-o.
— Cadê papai?
Meu namorado puxa a máscara e eu me perco na aparência do seu rosto, com todos os
detalhes que amo.
— Cherrie? — fica consternado.
— Papai precisa de mim. — Explico que tenho pressa, procurando-o por todos os lados.
Ele compreende com perfeição.
— Você viu uma bailarina vestida de cisne negro andando por aí?
Faço que não.
— Cobre a ala leste, vou para a oeste — sugiro e ele abre um largo sorriso.
Sem que precisemos dizer mais nada, cada um vai em uma direção com um silêncio
cúmplice. A certa altura, busco por ele, no exato instante em que ele me fita.
— É bom te ver, meu amor — se declara, sem se importar com as pessoas ao redor.
Mando um beijo para ele.
Não encontro meu pai na área externa da casa. Do lado de dentro, a primeira pista que me
chama a atenção é o rastro de sangue no corredor, e eu o persigo, imaginando ser de alguma
vítima do Rei.
Não é o que eu encontro quando abro a porta.
Papai está apoiado na mesa do escritório de Gerard Duncan, enquanto mamãe limpa o
sangue do seu rosto.
Eu já vi muitas pessoas que ele machucou, mas nunca o vi ferido.
— O que aconteceu com o papai? — meu timbre sai esganiçado.
Os dois me fitam.
— Europa, sai. — Ordena mamãe, com um olhar de águia e seu cabelo loiro em cascata no
penteado.
Adentro alguns passos, com o coração doendo à medida que me aproximo e encontro o meu
pai nesse estado. Sua linda barba grisalha está vermelha, segura gelo em um dos olhos e seus
lábios estão inchados e cortados.
— Pai? — meus olhos se enchem de lágrimas.
— Europa... — ele rosna, com o timbre de quando está realmente bravo, e eu paraliso.
— É a Cherrie.
Tenta rir e cospe mais sangue.
— Depois de meses fazendo todo mundo de trouxa, no dia que você causa mais estrago,
acha que é só dizer que é a Cherrie?
Ela fingiu ser eu?
— Cherrie, sai. — Mad tenta de novo, mas é George quem aponta a porta para ela.
— Querida, sai você.
A loira ri, consternada.
— Não vou deixar vocês sozinhos...
Papai começa a tirar o cinto.
— Aproveita que seu irmão veio da Hungria para esse espetáculo, e o tempo que te resta
com ele.
Madeleine e eu nos fitamos preocupadas.
— Quer saber? Vou mesmo. — Expõe impaciência, em direção a saída. — Nos encontramos
no hospício.
Não estou com medo quando ela fecha a porta e papai está me fitando com aquele olhar.
Todo mundo sabe que o Rei e a sua princesa têm uma relação doentia, ninguém quer imaginar o
porquê.
— Europa...
— Cherrie.
— Você foi longe demais dessa vez, Europa.
Minha postura é de submissão, de cabeça baixa. Ele quer punir a Europa.
— Ela sempre vai, papai.
— Como acha que estou me sentindo?
Meus pelos se eriçam.
— Aceito e concordo, papai.
— Então sabe o que fazer. — E se vira de costas, para que eu me dispa do vestido.
Sento-me no meio do tapete, segurando os cabelos para frente e a bunda inclinada, dando-
lhe as minhas costas em sacrifício. Quando ele se vira, e se aproxima, a tensão percorre o meu
corpo como ondas elétricas que se alojam em um único lugar.
— Por que você tem que ser assim? — dá a primeira cintada, com a fivela acertando minha
pele em cheio e depois o calor no açoite formigando com potência em minhas costas.
Dá outra. Todo o meu corpo esquenta com a sensação, e eu perco o ar na expectativa da
próxima cintada, que irradia pelo tecido.
— Eu não entendo, juro que não entendo! — diz entre os golpes. — Tudo o que eu faço por
você! — fala mais alto que os estalos que me fazem arquear, embora eu não sinta dor o bastante.
— Como você prejudica o Tabuleiro desse jeito?
E eu tento me concentrar nos açoites para evocar a dor física, mas a cada vez que eu olho
por trás dos ombros e o vejo descontar a sua raiva em mim, sou inundada por um prazer que
enche minha boca de saliva.
— Por quê? — pergunta.
Açoita-me tão violentamente que um arquejo escapa dos meus lados.
— Por que fez isso?
A fivela arranha minha pele, mas é ele quem geme.
A verdade é que ele sempre vai encontrar um motivo para me surrar, e eu sempre vou
aceitar, feliz e excitada por ser a válvula de escape do Rei.
— Por que, Cherrie?
Encaro o fundo dos seus olhos verdes com os meus. Não fui quem planejei esse acidente,
mas sei que meu coração ecoa a mágoa do Torneio como se fosse ontem, e ouvir o ruído da festa
que deveria ser minha faz uma lágrima saltar do meu rosto.
— Porque esse é um jogo de poder, mon père, e, nele, eu sou o Rei.
Fito-o com os lábios entreabertos, desejando mais violência por essa resposta, ansiando que
meu pai perca o controle e me quebre de todas as formas mais criativas que seu cérebro genial
pensar, mas ele se ajoelha com um olhar de adoração enquanto arfamos pelo outro.
Não sei se é ele quem me beija primeiro, ou se sou eu quem busca os seus lábios
machucados. Não importa, nos instantes seguintes nossas línguas estão dentro da boca do outro,
e o gosto da sua saliva com sangue é tão delicioso que não posso evitar os gemidos que escapam.
— Eu te amo, papai...
Todo o meu corpo, que permanece desligado mesmo com os açoites, parece vivo agora,
brilhando por cada centímetro onde seus dedos correm, e não há nada mais poderoso do que o
amor que sentimos quando ele me puxa para o seu colo, abraçando-me fortemente enquanto me
penetra, e está dentro de mim, e nós somos um só, ele me beija, e o prazer se mescla ao amor,
adoração e todas as memórias de cada um dos meus momentos de vida, com ele ao meu lado.
Ninguém pode proibir esse sentimento.
Nem mamãe, nem Cameron, nem Europa e nem Charllote Duncan.
Esse é o segredo que matamos para proteger.
PRAZER, DONO
Ainda estou trêmulo, dos pés à cabeça, pela adrenalina que corre pelo meu corpo, tanto pela
briga física quanto para o que vem depois dela.
— Você deveria me matar — George me orienta, quando me vê paralisado com a
informação de que o Dono não é ele. — Porque, você sabe — cospe sangue no chão ao seu lado.
— É questão de sobrevivência. — Seu timbre não denota raiva de mim, ao contrário, ele está me
aconselhando assim como fez no dia em que escolhi me casar com Ellie. — Nem se eu quisesse,
poderia deixar passar o que você fez com o Rei. Você quebrou muitas Regras, Damon. Você
quebrou a mais importante.
Se sou uma ameaça ao Rei, significa que pertenço ao outro lado do Tabuleiro.
Sou uma Torre Branca.
Devo ser eliminado.
É um desses momentos na vida em que um minuto muda tudo. Ao meu redor, tudo parece
um silêncio concentrado. Estou a um triz de apontar o calibre na testa dele e garantir que não seja
mais um problema que vai me perseguir no futuro e ameaçar a paz de Aleks, quando minha
audição denuncia passos atrás.
Se for George Jr. ou qualquer outro Sangue em Ascensão, estou morto. Mas, quando viro
lentamente o pescoço, é uma Dama que encontro.
A Dama de fogo.
Ela retira a máscara dourada enquanto se aproxima a passos lentos. Não grita por ajuda, não
pergunta nada, apenas mantém o semblante divertido quando toca no meu ombro com suas mãos
queimadas e pergunta:
— Não vai terminar? — Não é um convite, nem uma ameaça. É uma pergunta sincera.
George também está se divertindo com a situação.
— Não. — Admito, abaixando o revólver. — Peguei a pessoa errada — explico a ela. — Ele
não é o meu alvo.
Madeleine não me deixa guardar o projétil.
— Tem certeza? — seu timbre frio me assusta. — Mesmo sabendo as consequências?
Isso aperta o meu peito, mas, quando fito George...
— Você não fez nada para mim, ainda. — Recuo. — Não vou matar um inocente.
Mad acaricia a minha barba.
— Você é tão parecido com sua mãe. — Aperta minhas bochechas com suas unhas longas,
me causando um frio na espinha, e então me solta. — Que tenha mais sorte do que ela.
Dá-me as costas para ajudar o marido a levantar, e dou passos para trás, observando-os, até
me virar em direção a festa, que ainda acontece como se tudo estivesse normal, o que me
atrapalha porque as pessoas querem me cumprimentar e conversar como se o meu mundo não
desabasse um pouco mais a cada segundo em que não encontro Aleks em nenhum canto.
No entanto, acho meus avós bem rápido.
— Saiu do quarto? — vovó está com uma bebida nas mãos, enquanto vovô cumprimenta
cada pessoa que vai até eles me elogiar.
E pensar que ela cedeu um quarto para me prenderem.
— Por que a senhora fez isso, vovó?
— Estou te protegendo, Damon. — Sorri para um casal que se aproxima. — Cansei de tentar
te alertar. Você está cavando a sua cova.
Vejo nos seus olhos o medo de me perder igual perdeu meu pai, e odeio ser compreensivo
ao ponto de entender que ela está cuidando dos Duncan como qualquer outra Dama cuida da sua
família. A fala de George torna mais pesado o argumento de vovó porque, realmente, talvez eu
esteja a um passo de morrer.
Aproximo-me e beijo a testa da mulher que cuidou de mim dos quinze em diante, antes de
dar as costas.
Eu preciso encontrar a minha bailarina.
Vou para a área de segurança da noite, e os Coroados, que assistiram pelas câmeras todos os
meus movimentos impensados, me fitam com os olhos arregalados de medo.
Eu os contratei com um objetivo e todos nessa festa falharam.
— Onde está a Aleksandryia? — indago, com um timbre de quem não tem nada a perder, se
eles não responderem a única pergunta.
Nenhum responde.
Assinto com o coração vazio e dou as costas, rumo ao carrossel, embora esteja tremendo
sem saber como vou fazer, e a vontade de chorar arranhe na garganta com o sentimento que me
devasta com a ideia de a coisa mais preciosa da minha vida estar sofrendo agora, nas mãos de
qualquer um.
O desespero começa a bater, desfocando a minha visão e tornando a minha respiração falha.
Estou com medo e ele cresce a cada segundo nesse lugar cheio de monstros, sozinho,
desprotegido e com o Rei planejando arrancar minhas tripas.
— Torre.
Viro-me com a voz grave. Trata-se de um Coroado com terno azul e uma arma de elite nos
braços. No instante em que nossos olhos se cruzam e encaro os detalhes do seu rosto, a pele
negra, os lábios grossos e o olhar cerrado, o reconheço das fotografias que o detetive me deu
sobre as traições de Ellie.
Eu sempre desconfiei que era um funcionário.
— Ela foi levada de carro. — Explica, embora não ajude, pois todos os carros são iguais. —
Posso apurar a informação.
Cruzo os braços.
— O que você quer? — indago, desconfiado.
Ao redor, a horda de seguranças se mantém neutra.
— Eu vi pelas câmeras que você vai precisar de ajuda. — Esboça um sorrisinho insurgente.
— E eu acho que estou te devendo.
Abro um sorriso fraco, aceitando que ele vá até a guarita enquanto eu opto por ficar na festa,
procurando-a para ter certeza de que não vamos sair da festa e deixá-la de bandeja, quando
Europa vem na minha direção.
Sem máscara, desfilando como a única da festa.
Fecho os punhos no mesmo segundo e avanço na sua direção, até a estrutura onde está a
maquete do EuroOásis, com uma vontade insana de derrubá-la em cima e ver tudo ruir como
começou.
Vou com as mãos nos seus dois braços.
— Cadê a Aleks? — pergunto entredentes.
Seus olhos verdes, sempre ardilosos, transmitem inocência.
— É a Cherrie. — Sorri docemente, com um timbre angelical que Europa não conseguiu
chegar perto, mesmo tentando com toda a alma. — Oh, mon Chouchou... — enlaça-me com seus
braços machucados, e deita a cabeça no meu peito, desarmando todas as minhas estruturas. —
Ouvi dizer que ela fez coisas horríveis com você. — Pisca e, agora, seu olhar reflete preocupação
genuína. — Como você está?
Meus olhos se enchem d’água, sem entender como ela consegue puxar tudo o que eu sinto
do vazio da minha alma. Abraço-a no mesmo segundo, ansiando pelo consolo que ela me traz.
— Foi horrível sem você. — Admito, sem conter a intensidade de emoções caindo com toda
a força dentro de mim. — Eu senti tanto a sua falta! — beijo sua cabeça, trêmulo. — Eu me
arrependo tan...
— Shiii. — Pede, acariciando minha cabeça. — Não chore, DamDam, vamos conversar e
fazer as pazes, ok? — enlaça seus braços nos meus.
Travo no lugar, procurando o Coroado que falou que iria me ajudar.
— A Aleks. — Lembro. — Preciso achar...
— Eu sei onde ela está, bobinho. — Me tranquiliza, e começa a me puxar em direção as
atrações.
Sou inundado por um misto de alívio e ansiedade.
— Então me leva. — Imploro, fitando-a com brilho nos olhos.
A morena de olhos verdes dá um dos seus sorrisos idênticos ao de George.
— Primeiro eu quero que você me mostre cada detalhe desse evento. — Ordena como um
pedido simpático. — Quero ver tudo o que eu perdi.
O peso em meus ombros fica mais asfixiante, porque ela está certa. Tudo isso deveria estar
no nome de Cherrie Young, a mente brilhante que criou o EuroOásis do zero, e que montou um
dos maiores Rosebuds de todos os tempos, contando que ele seria sua passagem para Ascensão a
Rei, se o projeto não fosse roubado na noite de véspera do Torneio, pelo seu melhor amigo.
— Posso te contar um segredo? — coloco seu cabelo atrás da orelha.
Ela nunca resiste. Cherrie ama segredos.
— Todos. — Faz um gesto para entrarmos na casa de espelhos.
Ao cruzar o umbral, somos recebidos por um labirinto de reflexos distorcidos, com uma luz
azul de fundo.
— Tentei voltar atrás, no Torneio, depois da apresentação. — A luz suave destaca nossas
silhuetas em cada espelho, criando uma ilusão de movimento constante. — Mas as Peças Fortes
me convenceram a ficar com o projeto, seu pai também. — Fito-a preocupada, mas ela está
sorrindo largamente, para nossas imagens que se multiplicam, se distorcem e se fundem em um
espetáculo visual único. — Eles disseram que não te aceitariam como Rei, de qualquer forma,
então era melhor eu pegar e não desperdiçar.
A iluminação diminui, lançando sombras sinistras sobre as molduras douradas dos espelhos.
— Eu sei, Damon. — Fala, como se não importasse, mas os espelhos luxuosos, em vez de
refletirem sua alegria, agora parecem esconder segredos obscuros.
— Posso te dar a liderança do EuroOásis — continuo, tentando equiparar essa situação. —
Eu adoraria, na verdade. Ele é seu, você precisa cuidar. — Sugiro e nossos próprios reflexos
parecem desafiar nossa presença, movendo-se de maneiras que não controlamos.
O clima se torna tenso e uma sensação de que estamos sendo observados intensifica a
atmosfera. Reflexos perturbadores começam a surgir, sugerindo presenças invisíveis nos
espelhos.
— Você acha mesmo que eu não monto um projeto muito melhor para o ano que vem,
Dam?
Sinto pena dela.
— Não é isso, Cher. — Coloco as mãos no bolso, com a boca secando de preocupação. —
Não importa quantos projeto incríveis você faça... — perco a fala, mas ela precisa ouvir. — Você
é mulher. — Fita-me com um olhar sanguinário. — Seu pai não vai permitir que você seja Rei
em um Jogo que usa Bonecas como moedas de troca.
É visível, por milésimos de segundos, o quanto ela está com ódio, mas, no reflexo seguinte,
ela é adorável, estendendo os braços para ganhar um abraço de consolo, lançando os braços em
meu entorno, prendendo-me em um laço impossível de afastar. Encosta a cabeça no meu peito e
aconchega-se, bagunçando seus cabelos escuros na minha camisa de uma maneira que faz eu me
sentir amado, exatamente como mamãe fazia.
Fecho os olhos, quando ela passa as mãos por dentro do meu terno, murmurando:
— Oh, mon Chouchou — usa o timbre amoroso, e se desequilibra da sandália de salto, de
um jeito que meu corpo impacta no espelho atrás. — Acho que você tem seus próprios
problemas para se meter nos meus.
Sinto o cano do meu revólver subir, com um calafrio lavando o meu interior, até o meio da
minha costela, então ela me fita com um sorriso maior que o rosto, e eu me perco no verde dos
seus olhos. Tento me mover e ela afunda mais o cano na minha pele, deixando claro que devo me
manter parado, enquanto me entrega o olhar de que me ama profundamente.
A selva é devoradora, sempre fazendo vítimas dos pobres desavisados que adentram
encantados com sua beleza visceral.
— O que você está fazendo? — meus lábios tremem, paralisando.
— Você sabe o que estou fazendo, Damon. Eliminando problemas da Coroa.
A selva traz consigo o princípio da seletividade: os mais fracos são engolidos, os
sobreviventes, fortalecidos.
É tudo muito rápido, movo-me com a delicadeza de um movimento de ballet para tentar me
afastar do calibre e segurar nas suas mãos, e ela não titubeia, aperta o gatilho, sem se importar
onde vai me acertar, cega por seus propósitos.
Sinto a minha pele se romper com o calor da bala, a dor me rasgando com a intensidade que
arranca todo o meu fôlego, e a vista escurece, mas tudo aconteceu em um segundo e estou com
os pulsos dela nas mãos, então concentro a dor em força nos punhos, fazendo-a gritar e abrir as
mãos, derrubando o projétil, que chuto.
Mais rápido do que consigo contar, Cherrie deposita sua força em uma cotovelada na ferida
do tiro, e as lágrimas que estavam inundando a minha vista caem pelo rosto, enquanto tento
respirar, empurrando-a contra os espelhos, que caem com ela, estilhaçando os dois.
Levo as mãos ao ferimento enquanto uso a adrenalina que me resta para pegar a arma no
chão, apesar da tontura pela agilidade do movimento, e aponto para ela, nos espelhos quebrados.
Coloco o cano na testa dela, trêmulo de dor.
Em um único segundo, vislumbro todas as vezes que dividi a vida com Cherrie. Desde a
nossa infância alegre, a adolescência e as descobertas de dores e amores… até as conquistas e
decepções da vida adulta. A forma como o nosso mundo depende dela, como tudo gira em torno
dela, como ela sempre faz parte de tudo, fazendo meu coração triplicar de tamanho.
E eu odeio admitir que entre, nós dois, eu morreria pela minha amiga.
Nessa fração de momento, entendo o poder do Rei no Tabuleiro e o motivo de tantas Peças,
Coroados e Jogadores se curvarem para George, dando suas almas para protegê-lo,
independentemente do que ele faça.
O poder que exala dele é o mesmo que Cherrie e Europa carregam, fazendo de todas as
histórias enredos delas. Eu me curvaria a elas.
— Não vou te matar. — Aviso com dificuldade e ela sorri, confiante.
— Eu vou acabar com você, Mon Chouchou. — Promete.
— Não, não vai. — Provoco, com a respiração falha. — Você precisa de mim.
Ela abre um lindo sorriso.
— Desde quando?
Dou o melhor sorriso que consigo em meio a dor, sem perder a pose.
— Você vai ser o Rei das Peças brancas, Cherrie. — Informo, sentindo o sangue da camisa
molhar minha mão. — E eu vou te proteger com um Roque[13]...
— Ir contra meu pai? — seu timbre é satírico seguido de uma risada, que se transforma em
uma gargalhada assustadora ecoando pela casa de espelhos, mas, em seguida fica em silêncio
profundo, imóvel.
— Cherrie?
Pede tempo com um gesto nas mãos, como se estivesse se descongelando em movimentos
mecânicos, e então me fita com seu olhar assassino.
— Eu amei a ideia, Damonzinho! — sorri largamente, arfando como se estivesse correndo.
— A gente precisa foder com todos esses filhos da put... Ai! — leva as mãos até a cabeça,
gritando de um jeito que desperta dores do meu próprio corpo, me fazendo gemer e apertar mais
forte. — Aiiii!
Deitando no chão em cima dos espelhos, se contorcendo, então paralisa e se senta, tirando os
cacos dos espelhos de seus braços machucados, me fita inexpressiva, se levantando
vagarosamente.
— Ouviu o que eu disse? — indago com dificuldade, levantando a camisa para ver o
estrago. A bala foi na minha cintura, perfurando a região abdominal, mas não estilhaçou dentro e
sim atravessou pelo outro lado, em um pequeno furo.
Assente com frieza.
— Sinto muito, mas você vai estar morto até o final da noite, Torre.
Franzo o cenho.
— Europa?
Cherrie me fita de volta, confusa.
— Vamos brincar de tic-tac? — sugere com um timbre brincalhão e inocente. — Quem
achar a bailarina primeiro, leva?
— Você não quer ser o Rei? — volto o assunto, buscando minhas mãos apenas para vê-la
ensanguentada e compreender que estou perdendo muito tempo nessa conversa.
Então ela sobe o olhar violento como o escuro de uma mata fechada, e eu sei que é Europa.
— Ela não quer, mas é o melhor, Damon. — Seu timbre é sério, agora, e a fala atropelada
como se estivesse muito atrasada. — O Cartier é um excelente bispo e... Ai! — põe as mãos na
cabeça, arquejando. — Por favor, promete que... Aaaaaaa! — grita, de dar dó, em profunda
agonia. — Ela não quer por causa do..., mas o George precisa morrr... aaaaaaaaa! — cai no chão,
de joelhos, vê um pedaço do espelho e se estica para alcançar.
Com muita dificuldade, tateia o próprio corpo como se não soubesse onde está cada
membro, alcança a coxa e crava o pedaço do vidro na perna. Eu não sei o que ela está fazendo e
isso me assusta, mas estou paralisado na mesma posição, para minimizar a dor do disparo, e o
máximo que consigo fazer é assisti-la.
— Escuta, Damon! — fala, tremendo também, enquanto se rasga lentamente. — O motivo
de eu ter feito tudo isso é para você descobrir os segredos, para movimentar o Tabuleiro e tirar o
peso do Rei. Ai! — Berra com a pontada na cabeça que a faz abaixar, e eu faço o meu melhor
para me ajoelhar na frente dela e acudi-la antes que... — O que foi? — Seu olhar é doce.
Sento-me no chão, perplexo, sem saber como reagir.
— Tirar o peso do Rei? — sai dos meus lábios.
— Europa disse isso? — balança a cabeça com seu sorriso perfeito. — Você não está
acreditando naquele monstro, está? — então olha para o meu estado e depois para o seu próprio.
— Não se esqueça do quanto ela é mentirosa. — Tira o pedaço da coxa e se levanta, com
dificuldade, para estender as mãos na minha direção e me ajudar a levantar como se não tivesse
atirado em mim. — Vou te levar para a sua bailarina agora.
Quando aceito o toque da sua mão e me levanto, ela fica estática.
Entendo o padrão. Cherrie é desligada do corpo, Europa é arrancada dele.
— Que caceteeeeeee! — Europa enfia os dedos no rasgo da perna, encarando-me com o
queixo trêmulo. — Não acredita na Cherrie ela vai matar a Aleks, porque a Aleks sabe que a
Charllote foi morta porque descobriu as surubas que George fazia com Cherrie, Aleks e Francis
— fala sem pausa, o mais rápido que consegue, se machucando mais, e sorri em meio a dor.
Sinto o peso me atingir com violência. Como se minha pele fosse rasgada, os músculos
serem esmagados e os ossos, estilhaçados. Escuto o barulho da carne sendo moída, e o estalo de
cada partícula da tíbia e da fíbula sendo trituradas com o peso do vazio.
— A Charllote ficou indignada porque eram adolescentes e o pai com a própria filha e... Ela
tentou fazer algo, ela deu a vida dela tentando fazer alguma coisa, Dam.
A potência do baque abre um buraco imensurável, sua densidade se compara à de um buraco
negro e, somado à gravidade, meus olhos se enchem com mais lágrimas, e então Europa me olha,
com as lágrimas pulando dos olhos verdes dela.
— Ela era um Cavalo Branco, sozinho no Tabuleiro, lutando com todas as Peças mais fortes
que existem desde 1920 — e abre um sorriso lindo — ela, uma miss, fez o que ninguém mais
nessa merda de Jogo tem coragem...
Soluço alto, me ajoelhando no chão com a dor alucinante que despedaça minha alma.
Lágrimas escorrem pelos meus olhos na intensidade de uma cachoeira, lavando meu rosto,
deixando-me encharcado pela dor. Não vejo mais nada senão o sofrimento colossal que me rasga
de dentro para fora.
— Eu estava na Hungria com o Francis, ele sabe de tudo, cedeu a Aleks para eu manobrar
porque o George colocou toda a culpa da morte da Charllote nele e o exilou do tabuleiro, e essa
porra tá muito fácil do George botar o terror. Ai! — Não sei se sou eu quem estou arfando ou se
é ela, ou nós dois. — Eu ia deixar você descobrir sozinho, mas — começa a chorar alto. — Eu
não sabia que você tinha coragem de se levantar como Peça Branca, Damon, porque não é justo,
esse caralho não é justo... E eu queria tanto fazer parte, botar fogo nesse tabuleiro... — Geme alto
e eu não sei se é dor física ou tristeza. — Mas a Cherrie precisa mais do que eu e...
Abraço Europa com toda a força, e choramos juntos. Não entendo como toda a dor que ela
sente está doendo tanto dentro de mim, só me entrego a uma dor amarrada bem, no fundo, que eu
tento esconder de mim. Choro como nunca. Mal ouvimos aos sons do lado de fora até que ela se
acalma, e não precisa olhar nos meus olhos para que eu saiba que é Cherrie.
— Damon? — arregala as pálpebras ao ver o meu estado, preocupada. — O que a Europa
disse?
Tiro as mãos do meu ferimento, levo até o seu rosto e beijo sua testa com todo o amor do
mundo, admirando a beleza dos seus traços, então me levanto, ignorando a dor física que já não
faz sentido, mancando em direção a porta.
O meu Coroado está fazendo a guarda. Ordeno:
— Mantenha a Cherrie dentro.
— Aonde você vai? — O grito dela sai esganiçado.
Não paro de andar, fechando o terno para que ninguém perceba o furo na minha barriga.
— Buscar a minha mulher.
ENTRE DONOS
Não sei em que momento tirei a máscara, mas todos me fitam agora, enquanto atravesso o
extenso gramado do meu espetáculo até o portão da mansão Duncan, sem reconhecer quem eu
era quando cheguei aqui, de mãos dadas com a minha bailarina.
Durante todos esses anos, desejei o amor como se soubesse que era isso o que precisava
conhecer para me transformar no homem que nasci destinado a tornar-me.
Nesse momento, o que sinto pela minha mãe me mantém em pé, fortalecendo a cada passo
com um poder que irradia pelas minhas veias com coragem e senso de justiça.
Sei que vou terminar o que ela começou, e isso preenche o peso do vazio que sua morte me
deixou.
O que sinto por Aleksandryia, anestesia tudo e qualquer sentimento que me impede de
atravessar a rua em direção a mansão mais perigosa do tabuleiro com apenas quatro tiros no
bolso e os punhos fechados.
Eu farei o que for preciso para estar com a minha bailarina nos meus braços quando o sol
nascer.
Não preciso pensar, o que sinto move os meus passos.
O portão se abre para mim, como se estivessem me esperando, o contorno da mansão
imponente se destaca contra o céu da madrugada, e a fachada impecável revela detalhes
arquitetônicos que ecoam o estilo Art Deco dos Sangue em Ascensão.
Eu não vim muitas vezes aqui, brincar com Cartier quando era criança. A decoração exala
sexo, e mamãe sempre criticava com papai o fato de uma criança morar neste ambiente
depravado.
Ele está na sala agora, mas foco vai todo para o meu majestoso Cisne Negro, como se os
holofotes estivessem nela, abraçada a cavalier filhote, chorando em toda a sua linda melancolia.
A linda maquiagem que ela fez questão de passar a tarde toda elaborando, como se as
sombras e os pinceis fossem os brinquedos que não foram arrancados dela, quando decidiram
que podiam tirar sua inocência antes da hora, escorreu com as lágrimas que derramou, e as
escuras gotas grossas continuavam lavando o seu rosto.
Imediatamente, minha atenção desvia para o homem ao seu lado, que passa o braço por ela,
pelo encosto do sofá.
Meu corpo todo tensiona, como o de um animal que se prepara para estraçalhar seu alvo.
Meu campo de visão fica ainda mais resumido, como se o vermelho pincelasse um quadro com
fúria. Minha respiração fica curta e desregulada pela dor no abdômen, sincronizada com o meu
coração.
Só então vejo o rosto dele.
Francis Kühn, o Bispo exilado pelo Rei.
Até os meus quinze anos convivi com ele, nos Treinos e eventos, a distância. Ele era o
Conselheiro de George. Francis, Madeleine e George eram inseparáveis. Então, na mesma época
em que mamãe morreu, aconteceu algo sobre as peças Fortes, e soubemos que ele se exilou na
Europa.
Que azar da minha borboleta russa, cruzar com um monstro desses.
— Vem cá. — Chamo-a com um timbre sério e amoroso. Ela faz um movimento e ele toca
no ombro dela.
Ele tem quase as mesmas proporções alemãs que Cartier, o que significa que, mesmo com a
idade, é maior do que eu. Lembro do que calculei com George. Sou mais jovem, mais rápido e
mais forte.
— Você está sangrando? — A minha bailarina pergunta, fazendo-me abaixar a cabeça e me
deparar com o meu sangue pingando no chão, lembrando que eu não estou tão bem quanto minha
autoconfiança tenta passar.
Não importa, dou mais um passo.
— Sente-se, Torre. — Aleks estremece com a voz dele, parecida com a de Cartier. — Eu
estava te esperando.
Encaro-o com olhos carregados de fúria, meu coração pulsando com uma intensidade que
quase abafa o som ao meu redor.
— Por que não vai dar comandos para as adolescentes que você treina como pet? — ele
arqueia a sobrancelha com um sorriso de quem está em vantagem, ao me ver estourado enquanto
permanece sereno. — Só assim para te obedecerem, né. — Rio com sarcasmo. — Quero ver
mandar em um homem.
Seus olhos encontram os meus, e por um momento, o ar parece mais denso, impregnado
com a eletricidade carregada pela hostilidade.
— Eu só quero conversar com você, Damon. — Envolve a Aleks, que solta Gulnara com o
susto, e eu dou passos até ele. — Eu te presenteei com a minha valiosa Boneca, acho que mereço
ser ouvido. — Cada palavra maliciosa que sai de sua boca é como um eco de um tempo que
nunca deveria ter existido.
— Vai ter que me hipnotizar se quiser que eu ouça as merdas que saem da sua boca. —
Continuo andando.
— Calma. — Cartier pede e eu devolvo a ele um olhar frio.
— Por que você está sentado, quando poderia tirá-la daqui?
O meu melhor amigo arqueia a sobrancelha loira com seu melhor sorriso.
— Assim como eu fiquei sentado ouvindo você roubar o projeto da vida de Cherrie. —
Mantém o olhar fixo por trás da postura contida. — E não quebrei a sua cara na frente de todos
os Jogadores, como você merecia.
As palavras ásperas dele criam uma nuvem de desespero e desconfiança que ameaça
obscurecer a nossa amizade, mas não deixo que ele perceba, e permaneço com os ombros eretos.
Estou perto de Francis e Aleks agora. Estico a mão para ela enquanto o encaro fixamente,
sentindo o calor da raiva pulsando em minhas veias, em uma mistura de indignação e frustração
que ameaça transbordar a qualquer momento, e torno a fitá-la, inundado pelo que sinto.
— Licença, meu amor, quero me sentar aqui. — Ela franze a sobrancelha, mas busca o aval
dele, que concorda e ela vai para o lado.
Francis não tira o braço, nem muda a postura quando eu ocupo a posição, e nós ficamos
próximos, olho no olho, com nossas respirações se tocando.
Sinto a tensão se acumular em cada músculo, minhas mãos cerradas em punhos apertados,
enquanto resisto à vontade avassaladora de confrontá-lo com toda a fúria que habita dentro de
mim, travando o maxilar.
— Sei que não quer me ouvir, mas acho que vai querer ouvir ela.
Ele apenas fita Aleks e a bailarina abre a boca com sua voz trêmula de melancolia e dor.
— Eu... Eu preciso te contar uma coisa que eu fiz. — Explica entre soluços, partindo meu
coração. — O meu trauma com sangue, Dam, é porque eu fiz uma coisa muito má... — O
silêncio entre as palavras é preenchido pelo som de soluços contidos. — A sua mãe... — me olha
com seus lindos orbes inundados, como se me implorasse desculpas. — Eu a conheci, e, eu sou
responsável pelo que aconteceu com ela.
Ouvir que minha mãe foi morta dói tanto quanto ver a minha borboleta russa chorar como se
fosse culpada de algo que ela seria inocentada apenas pela idade, quanto mais com as palavras de
Europa martelando no meu cérebro tudo o que Francis não imagina que eu sei sobre todas as
merdas que ele fez com a minha mulher.
Meus instintos de proteção entram em ação, e a necessidade de confortá-la torna-se
avassaladora, e a fúria dentro de mim toma as dores da bailarina porque, no segundo seguinte
estou em cima dele, esmurrando a cara do Dono dela. Aleks grita com a violência e uma parte de
mim a busca de soslaio para saber se está bem, e Francis me chuta na ferida do tiro, derrubando-
me no chão.
Aleks está atrás de Cartier, que nos assiste como mediador. Francis fica em pé muito mais
rápido do que eu, atordoado com a falta de sangue e energia, mas fico em pé depressa.
O Bispo Exilado não vem para cima de mim. Em vez disso, me provoca:
— Pensei que fosse ficar bravo com ela. — Tira sarro, mas não é isso o que me faz partir
para cima dele outra vez, e sim a mirada que dá em Aleksandryia.
O impacto do meu corpo na sua direção, nos leva até a parede mais próxima, encurralando-o
em uma série de joelhadas e socos que desconto com uma fúria descomunal, ao ponto de, por um
momento, não sentir dor, apenas ódio, pronto para ser liberado com meus punhos.
— Eu entendo se você não quiser mais ser o meu Dono, mas queria que você soubesse que
eu te amo e eu quero muito uma chance de provar que eu posso ser melhor do que os meus erros.
Diferentemente de George que foi pego de surpresa e não tentou se defender, Francis se
protege dos golpes na cabeça com os braços apenas, mas não tenta me empurrar ou sair da
posição, como se quisesse que eu desferisse todos os tipos de golpes nele.
A cada soco no estômago, lembro de mais um motivo para dar outra joelhada na sua costela,
e antecipo o próximo ataque nele, depositando uma força maior nos punhos e pernas.
Ele nem sequer encosta o dedo, como se soubesse que meu próprio corpo se voltaria contra
mim e, no meio de uma joelhada, uma fisgada no abdômen me faz perder todo o ar e ver estrelas,
de modo que retrocedo um passo, colocando as mãos no joelho para buscar mais fôlego, arfando,
e todo o cansaço corporal pesa nos meus ossos.
É nesse momento que ele vem para cima de mim e eu fico em posição, mas ele não tenta me
acertar na cara, em um único movimento de luta que não consigo calcular, Francis me segura e
me lança contra a parede, impactando minha costela e a área machucada, com tanta força que
meus olhos se enchem involuntariamente de lágrimas, atordoando minha vista.
Novamente, não desfere um único golpe sobre mim, em vez disso, segura o meu colarinho,
prensando o corpo dele contra o meu enquanto me entrega um sorriso safado.
Todas as minhas estruturas gelam de uma única vez.
Seu pau está duro.
E ele quer que eu saiba, por isso se esfrega no meu corpo antes de me soltar e colocar as
mãos na cabeça, imaginando que isso vai me enraivecer e eu vou partir para cima ainda mais
furioso, porque isso vai excitá-lo mais, e quanto mais forte eu bater, mais ele vai amar. Dessa
forma vou abrir minha ferida, perder mais sangue, e ele vai continuar sendo a porra de um
sadomasoquista.
Ele é gay?
Desvio o olhar para Cartier, que está no telefone, perto da janela que expõe o início da
aurora, e para a bailarina, encolhida em pé perto da pilastra, vendo a cena com Gulnara no colo.
É assim que eu vou perder?
— Vamos, Torre, aproveite o seu momento de glória.
Levo a mão na ferida do abdômen, e abro a mão na região, calculando o estrago antes de
partir para cima dele. E, então, o frio do cano do revólver eletriza a minha pele dentro da calça
social e não sei como consigo esconder o sorriso porque ...
Ainda estou com a pistola.
Não deixo que ele perceba. Entro no seu jogo, estalo os ossos da mão e volto para cima dele,
e ele não recua, me observa me aproximar com desejo nos olhos, até ficarmos perto o bastante, e
eu usar da minha desenvoltura para aplicar as técnicas de leveza que a professora de balé que me
assiste, ensinou, e ele só percebe o revólver quando o canto toca o pescoço dele, levantando seu
queixo.
Preciso ser rápido o bastante para que ele não revide com a experiência que deve ter, seguro
o gatilho e dou um breve adeus.
— Divirta-se no inferno.
No instante em que vou apertar o gatilho, ouço gritos. Primeiro do Cartier.
— A Aleks!
Depois, do Rei do tabuleiro.
— Solta o meu brinquedo que eu solto o seu.
Encaro de soslaio a cena, com meu coração disparando mais à medida que vejo o coque de
Aleksandryia nas mãos de George, ela expressando cara de dor pelo puxão de cabelo e o revólver
na têmpora dela.
Meu mundo para de girar.
— Solte o meu bispo. — Ordena pausadamente.
Nem penso, apenas empurro Francis, tirando a arma da posição. Mas o Rei não solta dela, ao
contrário, puxa o seu cabelo de um modo que seu lindo rosto retorce de dor, enquanto ele sorri
para mim.
— Sinto muito, Damon. — Encara Francis com dureza. — Ela já deveria ter sido morta há
muito tempo.
E é a vez dele de segurar no gatilho.
— Não! — A voz de Francis soa com autoridade, e ele desce dois degraus na direção dos
dois. — Solta a minha Boneca.
George devolve exatamente o mesmo olhar.
— Não está aberto a discussão, amor.
Francis cruza os braços. Manda:
— Solta ela, George.
— Ela deveria ter sido morta.
Francis fica quieto por um segundo.
— Sou eu quem decide quem morre e quem vive, esqueceu, Rei?
— Ela vai ser um problema para nós. — Ele reitera e Francis ri.
Parecem irritados como uma discussão de casal.
— Ela não é problema nenhum, amor. — Francis frisa. — Ela nunca deu trabalho nenhum,
solta a minha Boneca!
George aponta para mim.
— Agora é dele e ele, sim, é um problema.
— Não é. — Cartier se mete. — Ele vai honrar o privilégio de ter a Boneca dele. Não é,
Damon?
Os três me fitam.
— Por favor, Rei. — Imploro com toda a sinceridade do meu timbre. — Me deixe ficar com
Aleks. — Junto as palmas em súplica. — Prometo ser leal a Coroa.
George pensa por um tempo antes de finalmente a soltar, mas, antes que eu desvie os olhos,
aponta para a Gulnara e explica:
— Isso é por você ter me respeitado.
Aleksandryia está mais perto e, no segundo em que a bala vai atravessar a cavalier filhote, a
bailarina põe a perna na frente, defendendo sua filha de quatro patas, e o tiro se aloja em sua
coxa.
Atingiram a alma da minha bailarina.
O PESO DO VAZIO
— Minha perna não, minha perna não, minha perna não! — Aleks agoniza, no caminho para
o hospital. — Me diz que não é minha perna. — Chora mais.
Sem controle algum, flashes de todas as vezes que presenciei Alex dançando vem à minha
mente enquanto o sangue em sua coxa me desespera com mais ímpeto do que penso suportar. Os
eventos do dia me atacam com tanta intensidade que eu não consigo ser forte por Alexia, e choro
com ela todo o percurso.
Assim que o motorista estaciona na garagem do hospital, o médico e o socorrista pedem
licença e começam a manuseá-la, colocando-a na maca para adentrar o hospital. Aleks pergunta
da perna, implora pela perna, atingindo meu corpo inteiro com uma dor transcendental. O que vai
ser da minha bailarina sem a perna?
— Por favor — peço aos profissionais. — A perna dele, cuidem da perna dela. — Clamo,
enchendo os olhos de lágrimas.
Ela sobe o olhar azul escuro inundado até o meu e eu tento transmitir força, mas estou
morrendo por dentro quando eles a levam para a ala médica e me deixam do lado de fora. — Eu
pago qualquer coisa. Apenas...
— Vamos tentar, senhor.
Quebraram as asas da minha borboleta russa.
Ele não vai mais poder voar com seus Jetés.
Lembro de nós dois há poucas horas dançando no espetáculo, e em todas as cenas que
presenciei dela dançando ou vivendo o ballet. Como eu amo assistir à maestria com que Aleks
move o corpo, porque a alegria que ela sente com a ballet é a coisa mais linda de admirar em
toda a terra.
A minha bailarina é perfeita em cada passo. Jetés, tendus, rond de jambés no ar, grand
battements… Ela respira o ballet e, apenas em imaginar vê-la sobreviver sem isso, é a minha
alma que se destroça.
— Hey, Damon. — É o Cartier, com as mãos no bolso e uma expressão de
orelhas caídas, sentando ao meu lado. — Eu vim logo atrás.
Meu coração está doendo demais a cada batida, com uma intensidade que eu me esforço até
para respirar, quanto mais para falar com home que podia me ajudar e não fez nada.
Não consigo evitar a mágoa, encarando o meu sol.
Queima a derme e sua excessividade causa estragos, mas, ainda assim, seu
calor abraça a vida humana.
Eu amoEle ama o sol.
Por isso dói tanto e eu o ignoro com a atenção fixa no movimento do hospital, porém tenta
se justificar.
— Eu estava lá para cuidar dela, Dam, não iria deixar meu tio machucá-la.
Quero perguntar o que ele acha do estrago agora, contudo apenas o fito com desconfiança.
— Você sabia que ela era do seu tio?
Ele se esquiva.
— No começo não, só quando Europa me disse.
Sinto uma breve vontade de comentar sobre o quão surpreso estou com relação a
personalidade de Europa, mas então respiro e a dor me sufoca, e eu lembro que Aleks está nessa
situação porque ele não me ajudou, e que ela deve estar querendo morrer de tristeza dentro
daquela sala e impessoal, e sou varrido pelo mesmo sentimento.
— Você precisa ver esse machucado, Damon. — Tenta me alertar. — Já está aqui...
— Não se preocupe comigo. — Mantenho-me sério, observando a porta por onde Aleks
entrou, apesar dos pontos salpicados de preto que aparecem na minha vista.
Cruza os braços.
— Você roubou o que Cherrie tinha de mais importante — devolve com rispidez. — E não
fui eu quem deu o tiro em Aleksandryia, ao contrário, estava lá para ajudar.
— E eu levei um tiro de Cherrie. — Conto com a voz cansada, virando o rosto para encarar
nos seus olhos, finalmente. — Então não precisa mais tomar as dores dela.
— Sério? — Observa minha expressão e tenta se levantar, mas eu seguro o braço dele,
fazendo careta. — Você precisa de atendimento.
Aponto para a porta em que ela entrou.
— Preciso de Aleksandryia. — minha voz embarga. — Preciso que ela esteja bem, primeiro.
Ele toca levemente no meu joelho, entendendo o meu desespero.
— Sei como é. — E se ajeita no assento, pronto para esperar comigo.
Ficar em silêncio me faz pensar em todas as coisas ruins que descobri essa noite, então me
rendo a uma conversa que me faça sentir algo bom preencher minhas células, por um momento
nessa sala de espera de hospital.
— Ela não é tão má.
Cartier sorri largamente, revelando anos em que guarda esse segredo.
— Cherrie é muito pior.
Estou decidindo por onde começar quando uma voz semelhante à minha me impacta.
— Cherrie o quê? — É meu irmão, com a máscara acima da cabeça e Zaki atrás.
Eu e Cartier nos encaramos mais uma vez e, em silêncio, decidimos guardar os segredos
dessa noite conosco, assuntos de Peças Fortes Brancas, Bispo e Torre.
Preciso falar com ele sobre o Contra-ataque.
— Ela voltou para o front. — Cartier disfarça o assunto e eu analiso os detalhes do rosto do
meu irmão apenas para sentir pena de ver sua alegria inocente, sem fazer ideia de quem é a
namorada e muito menos o com quem ela o trai.
Por isso o namoro dos dois é tão distante.
Penso também em nossa mãe e em como vou contar para Dylan que ela foi morta por se
opor a relação incestuosa e pedófila de George com Cherrie. Uma coisa é certa: de todos aqui,
ele é o que mais vai sofrer, e só de pensar nisso são os meus olhos que se enchem de lágrimas.
Vou poupá-lo com toda a minha alma. Não suportaria vê-lo perder sua alegria. Dylan é o
meu chão.
Dentre todas as coisas que ele amava no Planeta Terra, estava o solo. Tinham um elo
especial, eram formados do mesmo material genético. Ele se expunha enquanto a biodiversidade
permanecia escondida e protegida. Em contrapartida, o solo se mantinha rico e saudável, afinal,
era o respiro de todo aquele ecossistema.
— Eu finge ser você para os convidados meio bêbados. — Conta com um sorriso bobo. —
Espero que não se importe.
Deito a cabeça no seu ombro.
— Aleksandryia? — O médico chama pelos responsáveis, de modo que nós quatro
levantamos. Eles primeiro, e Cartier me ampara, me ajudando a andar até o médico. —
Primeiramente, gostaria de expressar que a sua...
— Mulher.
Assente.
— A sua mulher está sob cuidados médicos e estável, mas há algumas questões que
precisamos discutir. — Concordo, gelando a espinha. — O ferimento na coxa foi revolvido
durante a cirurgia. Isso significa que tivemos que realizar procedimentos adicionais para lidar
com a complexidade do trauma.
— Ela é bailarina. — Explico, afoito, e todos os x-herdeiros parecem não respirar. — Isso
vai prejudicar?
— Não pegou em nenhum nervo, ela vai ficar bem.
Sinto um suspiro profundo escapar dos meus lábios, como se carregasse consigo o peso que
finalmente se dissipou, e Dylan me abraça, enquanto a onda de alívio varre meu corpo, liberando
as tensões que se acumularam nos meus ombros por tanto tempo, enquanto Cartier e Zaki
também sorriem.
Mas o médico continua sério.
— A principal preocupação neste momento. — Paro de respirar. — É que o revolvimento do
ferimento na coxa torna a situação mais desafiadora devido aos riscos de intervenção durante a
gestação.
Os três me fitam e é como se o tempo se suspendesse por um instante, e minha mente tenta
processar a magnitude da notícia. O tremor que me acompanhou nas últimas mais terríveis horas
da minha vida, é tomado por um sentimento bom.
— Gestação?
O médico sorri.
— Ela está grávida de nove semanas e... — Desiste de falar, com um semblante animado ao
ver meu susto. — O senhor quer ver?
Eu sonhei tanto com esse momento.
Preparei um plano nos mínimos detalhes.
Fui além, projetei minha vida inteira com um único objetivo: deixar tudo perfeito para
quando a hora chegasse, mas Ellie me enganou de todas as formas.
É como se meu corpo inteiro congelasse, incluindo o misto de sensações que me percorre
com tanta violência. O medo evapora e a ansiedade que até então me consume toma outro sabor,
agora, o frio na barriga me provoca uma crise de risos involuntária.
— É tudo o que eu mais quero. — Estou sorrindo.
Cartier toma a frente.
— Ele precisa ser tratado. — Dedura. — Ele levou um tiro também.
Meu irmão, que estava abraçado a mim, pula de susto, fitando-me com cenho franzido.
— Onde? — procura no meu corpo, fazendo-me gemer.
Não desvio a atenção do médico, principalmente quando a notícia parece flutuar no ar, quase
irreal, e meu coração bate mais rápido.
— Eu quero ver ela primeiro. — Meu timbre revela a minha ansiedade, mas o médico segura
meu ombro, guiando-me. — Acho que você não vai querer estar sentindo dor nesse momento.
Enquanto o médico limpa o ferimento e faz os pontos, minha mente gira com essa
informação, as mudanças que vão acontecer na minha vida e o milagre que está acontecendo
dentro da minha bailarina, sem que nos déssemos conta.
Amo-a mil vezes mais só de pensar que vou ser pai do filho da mulher que mais amo.
Vamos ser uma família, eu, os cavaliers, uma criança e a mulher dos meus sonhos.
— Está preparado? — traz-me para a realidade.
Gostaria de perguntar para a minha mãe como ela estava no momento em que descobriu que
estava grávida de mim. Se era normal ter tanto medo. Mal posso suportar o pensamento de que
ela só não está aqui e em todos os meus momentos importantes da minha vida, porque
arrancaram-na de mim. Fecho os punhos, mas, quando me leva até a sala de ultrassom, meu peito
queima de amor e alívio assim que abro a porta e encontro Aleks com os lindos olhos
arregalados, com a coxa enfaixada.
Já visitei tantos lugares; de balão, sobrevoei a Capadócia; de barco, desvendei o Mar Morto.
Inúmeros pores do sol nas Maldivas e nasceres do sol em Bora Bora. Fiji, Indonésia, Deserto do
Atacama… Tantas vistas deslumbrantes que, perto dela, parecem borrões insignificantes.
Meus passos até a minha Aleks chegam a falhar.
Fitamo-nos e, compreendendo as emoções no olhar um do outro, me aproximo e a envolvo
em um abraço emocionado.
A bailarina não entende.
— O que foi? — sua voz é tensa.
Meu coração para fora do peito a cada passo que dou e direção ao meu tão desenhado sonho,
o meu Cisne negro com roupa de hospital. Sinto um sentimento mais forte que alívio penetrar
minhas veias em saber que ela está bem, que não corre mais perigo e que vão deixá-la em paz,
jurando a mim mesmo que a minha borboleta russa nunca mais vou sofreu, porque eu vou ser a
Torre dela, enquanto eu viver.
Dessa vez, quando a abraço, algo forte e pungente se apodera da minha alma, e tenho certeza
de que eu vou dar conta, de que vou cuidar bem de Aleksandryia — serei meu melhor por ela,
todos os dias.
— Como você está, meu amor? — pergunto com os olhos cheios de lágrimas.
Seu queixo treme.
— Você me perdoa? — sorri ansiosamente, com mais lágrimas descendo pela face.
Encaro a médica e peço por alguns minutos, para falar com a minha bailarina. Quando a
porta se fecha, encarando o fundo azul do mar de Aleks, tento argumentar.
— Se você tivesse uma filha... — Uso a metáfora, pois ela abriu mão da perna por um
filhote de cachorro. — E ela passasse por tudo o que passou, exatamente do mesmo jeito, você
pensaria que ela é culpada de alguma coisa?
Aleks chora mais à medida em que raciocina.
— Não... — Murmura.
— Então por que se sente culpada, meu amor?
Ela se debulha em alegria, mas nem todas são tristezas porque ela sorri em meio ao choro.
— Era a sua mãe...
Seguro em sua face com as duas mãos.
— Ela enlouqueceu pelo que fizeram com vocês, não pelo que você disse ou fez.
Aleksandryia me abraça, chorando e agradecendo, então eu massageio as suas costas, até
que ela se acalme naturalmente, como a psiquiatra orientou. Então seguro forte em suas mãos,
expondo o meu amor.
— Eu te amo, Oceano, com toda a minha alma e nada vai diminuir esse amor. Nunca, nada
vai me separar do amor que sinto por você. — Beijo seus dedos, com as lágrimas saltando dos
meus olhos.
Ela também está tremendo.
— Obrigada por me amar assim, Damon... Mesmo quando tudo o que eu fazia era fugir de
você. — Fala entre os soluços de alegria, me derretendo em mais lágrimas. — Eu te amo, você é
a Brisa que me trouxe o fôlego da vida.
Abraçamo-nos de novo, apertado, e ficamos assim até a médica voltar, pedindo licença para
passar gel na barriga dela, e Aleks fica tensa, sem entender.
— Será que é a endometriose?
Eu e a médica cruzamos olhares, e ela aceita participar da surpresa, por vai discretamente até
o celular e liga a câmera.
— Talvez. — Digo, para dar emoção.
Aleks bufa, com o timbre choroso.
— Será que você me deixaria fazer uma segunda cirurgia?
— O que você quiser, não precisa pedir. — Beijo sua testa, sentindo uma mistura de
nervosismo e excitação enquanto a médica inicia o procedimento, segurando a mão calorosa da
minha bailarina. O ambiente está impregnado de expectativa, e o som suave da máquina de
ultrassom ecoa, preenchendo o ar com uma melodia reconfortante.
É a melhor sensação do mundo a forma com que a vida se torna instantaneamente mais
colorida, leve e com uma nota deliciosa de alegria pura, eu mal consigo me segurar.
— O que é isso?
A médica e eu sorrimos enquanto desliza o transdutor delicadamente sobre a barriga dela.
— Sabe o que é isso? — retorque a doutora. — É o som do coração do seu bebê.
Sou eu quem quebra com a frase, me ajoelhando diante de Aleks enquanto choro de alegria,
tomado por algo inédito que, embora assuste, me fortalece por tamanho poder e devoção. Dou
risada em voz alta ao perceber que agora não existem mais apenas meus próprios desejos no
mundo, e compreendo imediatamente o que é ser um homem. Tudo pode desabar, mas se Aleks e
esse pequeno coração estiver bem, eu também vou estar.
— Ops. — Ela interrompe nossos soluços de alegria com tensão e, assustados, fitamos a
mulher. — Desculpem, cometi um erro.
Nossas mãos dadas, gelam, e seguramos a palma do outro com mais força.
— Não é um som de um coração, não. — Morde os lábios, enquanto eu e Aleks paralisamos.
— E o que é? — A voz de Aleks mal sai.
A médica sorri largamente para nós dois.
— São dois corações. — Não sinto o chão. — São gêmeos, olha. — Desliza o aparelho e a
imagem começa a se formar na tela, revelando não apenas um, mas dois contornos em um saco
gestacional.
Nossos olhares se cruzam e a ideia de nós quatro vivermos algo parecido com uma família
preenche nossos corações com esperança e amor, preenchendo nossas almas com luz o bastante
para fazer a escuridão fugir de medo.
Eu nunca pensei que poderia ser melhor, muito melhor, do que nos meus melhores sonhos.
Nesse momento só há espaço para elas, que tomam uma proporção gigantesca dentro de
mim, acima da minha razão ou qualquer outro sentido, dissipando o peso do vazio.
— Meu Oceano — sussurro para Alexia, com o peito transbordando por compreender
que, embora tenha perdido tanto, finalmente tenho o único poder que eu preciso para vencer o
Jogo.
Amor.
— Para sempre, minha Brisa. Para sempre.
A Torre se reergueu.
A história continuará.
[1]
Um projeto de fornecimento de gás para a Europa por meio de tubulações da Arábia Saudita.
[2]
[3]
Pessoas fora do universo dos Sangue em Ascensão.
[4]
Eventos anuais onde um Peão recebe a Ascensão no Jogo.
[5]
Denominação ao projeto em que peões disputam a Ascensão.
[6]
Território dos Sangue em Ascensão.
[7]
Posição dos Duncan dentro do Jogo.
[8]
Refere-se a uma situação na qual um jogador é colocado em desvantagem porque é obrigado a fazer um movimento.
[9]
Uma matriosca ou boneca-russa, é um tradicional brinquedo russo. Constitui-se de uma série de bonecas, feitas
geralmente de madeira, colocadas umas dentro das outras, da maior até a menor. A palavra provém do diminutivo do nome
próprio matriona.
[10]
O método Vaganova é uma técnica de balé e um sistema de treinamento desenvolvido pela bailarina e pedagoga russa
Agrippina Vaganova. Foi derivado dos ensinamentos do Premier Maître de Ballet Marius Petipa, ao longo do final do século
XIX.
[11]
O o termo deixou de ser usado em 2013, porém esse capítulo se passa anteriormente ao ano.
[12] Você está bem?
[13]
O Roque é uma jogada especial que envolve a movimentação de duas peças em um único lance, o rei e uma torre. O
objetivo da jogada é proteger o rei, tirando-o do centro.