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COPYRIGHT © 2024 OLIVIA LAUTRE

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Esta obra foi revisada conforme o Novo Acordo Ortográfico.
Estão proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte desta obra, através de
quaisquer meios ― tangível ou intangível ― sem o devido consentimento. A violação dos
direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código
Penal.
Esta obra literária é uma ficção.
Qualquer nome, lugar, personagens e situações são produtos da imaginação do autor. Qualquer
semelhança com pessoas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Design de Capa: Ellen Ferreira
Diagramação: Hunai Studio & Nayara Bernardi
Ilustração: Laura Barros
Revisão Textual: Maria Silva
O PESO DO VAZIO
[Recurso Digital] / Olivia Lautre — 2ª Edição; 2024
1. Romance 2. Mistério 3. Psicológico
Sinopse
Nota da autora e gatilhos
Playlist
Dedicatória
Rei de ouro
A Origem
Epígrafe
Prólogo
PARTE I: A BAILARINA DE PORTA JOIAS
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PARTE II: A BONECA QUEBRADA
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PARTE III: DANÇANDO NA COVA DOS LEÕES
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Ele não é como os outros Jogadores.
Ele é mais jovem e mais poderoso.
Escolhe as palavras mais bonitas, mas sei que não se tornou uma Torre nesse tabuleiro de
poder sendo bonzinho.
Seu prazer não está em meu corpo, e sim nos meus sentimentos.
Talvez ele goste de coisas quebradas.
Pensei que se eu permitisse brincar comigo até enjoar, ele me deixaria em paz e não contaria
para o meu Dono sobre o meu mal comportamento.
Eu poderia ser sua bailarina de porta-joias por um final de semana.
A sua boneca-quebrada.
Só tinha uma exceção.
O meu manual de instruções vinha com as Regras, mas ele quebrou todas.
Agora, ele precisa decidir o que realmente quer.
Ir contra a sua própria natureza sanguinária e me consertar?
Ou abraçar seus instintos e quebrar o que restou da minha alma?
Violência psicológica extrema, violência física, depressão, ansiedade, crises de pânico,
suicídio, luto, assassinatos, traumas, vício/uso de entorpecentes, relacionamentos abusivos,
automutilação, transtornos mentais, crueldade animal, hipnose, overdose e misoginia.
Embora não haja BDSM na história, encontraremos kinks como: primal play (jogos
primitivos), fear play (jogos de medo) pet play (encenação animal). Sadismo e degradação.
O peso do vazio trata sobre servidão sexual. Espere por sexo explícito e atitudes
perturbadoras e perversão sexual envolvendo: abuso sexual e estupro (sem descrições gráficas),
menção a pedofilia, exploração sexual e prostituição.
Este é o primeiro livro da série Peões em Ascensão e terá continuação.
O peso do vazio tem uma playlist oficial.
Caso queira escutá-la durante a sua leitura, basta acessar o seu aplicativo no Spotify e apontar a
sua câmera para o código abaixo.

Ou se preferir, clique aqui.


Para a parte de nós que tentamos esconder do espelho.
Nosso pior não nos torna monstros, apenas humanos.
Cada um dos nossos pedaços merece o amor.
Os Duncan vieram da Escócia para os Estados Unidos ainda na época da colonização.
Logo, eles expandiram suas terras, aumentando suas fazendas por todo o condado de Nova
Iorque, estabelecendo morada em Old Westbury.
Eles ofereceram terras na região para algumas famílias com quem faziam negócios. Uma
delas foram os Lloret, espanhóis colonizadores famosos na área médica.
Os Lloret compravam remédios dos Vannozza, que passaram a comprar commodities com
os Duncan para a fabricação de medicamentos.
Outra família que ganhou um lote em Old Westbury dos Duncan foram os Waddel, que
compravam suas commodities para sua popular rede de varejo.
Os Waddel tinham vendido alguns conglomerados para os alemães Kühn, e os apresentaram
para os Duncan.
Os Kühn, ligados ao nazismo, faziam negócios com os Isakai, japoneses que investiam na
indústria bélica.
Eles também possuíam contatos com os Harding.
Em 1920, William Young, um acionista da bolsa de valores, os encontrou.
Os Estados Unidos estava no auge do seu crescimento econômico e a ambição de William os
cativou ao usar sua perspicácia no xadrez para falar de negócios.
O Young se tornou o investidor das sete famílias mais abastadas do país, prosperando de
uma forma secreta toda essa fortuna.
O segredo tem um nome.
Sangue em Ascensão.
“Você tem o mundo inteiro, mas querido, a que preço?”
MILLION DOLLAR MAN, LANA DEL REY
No andar debaixo, posso ouvir as risadas e o jazz embalando o ritmo da festa. Aqui, no
entanto, a voz do Cartier é a única que detém a nossa atenção.
— Vou começar! — ele avisa, colocando o rosto contra a parede do corredor escuro. — Tic-
tac um, tic-tac dois, tic-tac três …
Nem escuto o restante da contagem, saio em disparada, deixando todos os outros para trás.
Minha maior preocupação é correr com esses sapatos que mamãe insiste em fazer eu usar no piso
escorregadio que brilha mais que as joias da vovó. Bato o olho na lareira da biblioteca e já sei
aonde vou me esconder.
— Dam, a mãe vai brigar se você se sujar! — Meu irmão gêmeo surge atrás, cruzando os
braços.
— Saia daqui! — brigo em um sussurro. — Encontre seu próprio esconderijo!
Dylan cruza os braços em frente ao peito e seu rosto se transforma em uma careta chateada
— Não sei me esconder, Damon...
— Problema seu, Dylan — me ajeito no buraco. Mamãe sempre critica meus esconderijos,
mas não tenho culpa de ser o melhor, quase uma lenda, no esconde-esconde. — Não vou dividir
meu canto hipersecreto com você.
— Eu não pedi mesmo. — Resmunga, tentando ficar invisível na cortina e desistindo.
A questão é que ver meu irmão feito uma barata tonta me faz pensar que eu posso encontrar
outro lugar, ao contrário dele, que vai ficar triste se perder outra vez. Não gosto de vê-lo triste.
— Vem cá, vai. — Resmungo. — Pode ficar para você.
Ajudo-a a se encaixar no espaço e, confesso, me sinto incrível quando ele sorri para mim
com seu sorriso de janelinha. Meu coração fica quentinho, porque eu adoro vê-lo assim.
— Tic-tac vinte, tic-tac vinte e um...
Putz, só tenho dez segundinhos!
Volto correndo para o corredor, bem no momento em que Cameron está abrindo a porta
secreta, do outro lado do andar. Quando me vê, me chama com as mãos.
— Podemos nos esconder aqui, mas ó, segredo — murmura. — É aqui que papai e os
cavalheiros fazem as Partidas, então ninguém pode desconfiar que a gente entrou. Entendeu?
Faço que sim, porém não somos os únicos quebrando as Regras.
Ela também é.
Cherrie Young.
A patricinha mais insuportável da escola inteira, a que ninguém gosta, exceto os professores,
porque ela é ótima em cativar atenção dos mais velhos, provocando, assim, a ira de outro
queridinho dos adultos: Cameron.
Na sala de aula, os dois competem pelas melhores notas, vivem brigando e indo para a
diretoria. Faltam se matar. Cameron fala mal dela o tempo todo, por isso, fico atento para ver o
que vai acontecer com ela na sala ultrassecreta dele
— Já viram isso aqui? — Ela eleva o livro de capa preta, ignorando o olhar zangado dele.
— Mon père me disse que, nessa sala, tem fotos de todos os meus tatatatará avôs. Deve ter os
de vocês também.
Observo ao redor, com a certeza de que esse é o lugar mais legal do mundo. O chão é de
tabuleiro de xadrez e, no centro da sala, um lustre composto por pendentes que parecem
folhagens e ramalhetes na cor dourada, finos como se fossem desenhados por algum artista de
mão leve, circunda toda a extensão do ambiente principal da sala.
— Seu pai te traz aqui?! — É a única informação que Cameron grava, acostumado com
essa sala.
Ela sorri feito a gatinha Marie.
— Desde que sou uma bebezinha! — afirma enfaticamente, então põe a mão na boca. —
Oh! Era segredo …
— Será que tem de todos os tatatatará avôs do mundo inteiro? — pergunto, embora não
faça a menor ideia do que essa palavra cheia de tatata significa.
Cameron dá alguns passos para perto, me acompanhando.
— Puxa … — Cam suspira, inclinando o longo pescoço para ver algumas páginas sem
precisar chegar muito perto dela. — Não sabia que tinha isso aqui.
— Ah, você não faz ideia de quanta coisa legal há nessa sala. — Ela olha ao redor com
seus grandes olhos que eu nunca sei se são amarelo-esverdeados ou verde-amarelados. Será que
eu devo perguntar? — Você deveria vir aqui mais vezes, é a sua casa mesmo.
— Rum — ele faz pouco caso. — Jamais! Aqui é proibido crianças, ainda mais crianças
chatas feito você.
Ela o fita de cima a baixo com desdém.
— Então está fazendo o que aqui?
Escuto os tic-tacs se intensificarem.
— É o Cartier! — percebo, assustado. — Silêncio!
Cameron bate os pés, fazendo birra.
— Ficamos conversando com essa chatonilda e agora ele vai nos achar …
— Não sou chata! — Cherrie faz biquinho.
— Então prove, Cherrie — exijo, tendo uma pequena ideia ao me lembrar de que, uma vez,
Cartier me contou que sonhava em namorar com ela. — Distraia o Cartier para nos escondermos.
Cameron concorda.
— Se fizer isso por nós, não te chamo mais de chatonilda.
— Não sou chata e nem ligo para como me chama. — Mostra a língua para Cameron. —
Porém, posso ajudar vocês se …
— Ahh nãoooo— reclama Zaki no corredor, pego.
— Se — ela continua — me deixarem brincar também.
— Nem morto! — Cameron recusa.
Cherrie semicerra os olhos com maldade, fita a porta e grita:
— Cartier!
Eu e Cameron bufamos ao mesmo tempo.
— Menina chata! — brigo, porém ela dá de ombros com os braços cruzados. Então desvio
o olhar para Cameron. Junto as mãos, implorando. — Vamos deixar, Cam …
— Tá, que seja. — Com delicadeza, ele a empurra na direção de Cartier. — Distrai ele
então!
Corremos para trás de uma estante, alternando a atenção da porta para as estantes e as obras
de arte nas paredes. Uau, é tudo muito lindo, elegante e majestoso, parece um castelo com essas
paredes negras aveludadas, trabalhadas com um boisserie dourado.
— É ouro, Cam?
— Cala a boca. — Me dá uma cotovelada leve, apontando para a porta. Cartier
está entrando.
— Oi, primo — Cherrie sorri.
Eu me ajeito dentro de um minúsculo cubículo que não faço ideia do que é. Gosto do lugar,
porque dá para vê-la mexer o vestidinho para lá e para cá, toda santinha. Será que ela não sabe
que esse truque só funciona com adultos?
— Oi — responde ele, todo estranho. Cartier não é tímido … — Você me chamou?
— É que quero te mostrar uma coisa. — Abre o livro. — Meu pai me disse que tem
todos os tatatatará avôs mais importantes do mundo inteiro nessas páginas. Acho que esses
homens são os nossos, olha como eles têm o cabelo loirinho como o seu e o da minha mamãe.
— Verdade. — Ele sorri durante alguns segundos, então muda o semblante
completamente. — Então os odeio também! — Fecha a folha com tanta brutalidade que o livro
cai das mãos dela.
Cherrie dá um passo para trás, assustada, e ele arregala os olhos.
— Oh, desculpe, Cherrie. Mil desculpas. Te assustei? — Ela faz que sim com a cabeça.
— Por favor, me perdoe — pede com a voz embargada. — Sou mau às vezes, não sei o
porquê, não é por mal. — funga alto. — Acho que sou tão mal quanto meu papai …
— Meu pai também é mal, mas eu o amo mais que tudo. — Ela se declara com um sorrisão.
— Também posso amar você.
Cartier abre um sorriso.
— Pode?
Ela cruza os braços e empina o queixo, cheia de marra.
— Meu pai sempre diz que meninas são como florzinhas e que sou a margaridinha mais
linda do jardim dele, por isso, todos devem me tratar com muito carinho. Se você prometer me
tratar assim, acho que também posso te amar.
— Tá — resmunga. — Prometo sempre te tratar como uma margaridinha se você me
perdoar.
No momento em que os dois vão dar as mãos, Cameron sai de trás do armário, todo
atropelado.
— Qual é, Cartier, vai ficar conversando com essa chatonilda ou vai nos procurar?
— Não sou chatonilda! — Bate o pé para ele, enfezada. Ué! Não era ela que disse que não
ligava?
— Afff — esbravejo. — Por que saiu do seu esconderijo, Cameron? Cartier ia nos
procurar!
— Poxa, galera! É por isso que não gosto dessa brincadeira — Dylan diz, surgindo feito
um filhotinho com orelhas caídas, com Zaki atrás. — Onde está a graça de nunca ser
encontrado? — Ajeita os óculos. — O que essa patricinha está fazendo aqui? — Faz careta.
— Oi, nerd da sala! — ela provoca.
Eu me preparo para defendê-lo, porque mamãe diz que não posso deixar ninguém fazer
bullying com meu irmão gêmeo, mas escutamos passos e vozes de adultos.
A primeira é tão monótona quanto a do pai de Cameron, mas a segunda é assustadora.
Droga, é o pai do Cartier!
Cameron pega na mão da sua inimiga em uma velocidade eletrizante e a puxa para trás do
armário consigo, abraçando-a. Cutuco Dylan e aponto para o esconderijo na poltrona. É
apertado, porém, como mamãe sempre diz, moramos sete meses apertadinhos na barriga dela.
Cabemos em qualquer espacinho.
Não sobra lugar para Cartier e, quando os homens abrem a porta, ele nos fita com seus olhos
amarelos marejados.
— Não quero apanhar de novo …
Sinto dó e me levanto para dar meu espaço a ele, afinal, mamãe nunca deixa papai me bater,
mas a mamãe do Cartier vive no hospital.
Mais rápido que eu, Cherrie o puxa para seu lugar, dando para ele. No mesmo segundo,
Dylan faz um movimento abrupto, pronto para sair em sua defesa, porque mamãe disse que
adultos não sabem ser delicados com florzinhas como ela.
Não dá tempo.
A careta que o cavalheiro Waddel e o cavalheiro Kühn fazem para ela me assusta, mas
enquanto todo mundo se encolhe, ela parece … corajosa?
— Estou procurando meu papai — mente, com um tom de voz de quem está prestes a
chorar. — Cadê meu papai?
— Seu papai não está aqui, mocinha — responde o cavalheiro Waddel, abrindo uma
maleta. — Não deveria estar aqui. Aqui não é lugar de criança, muito menos de meninas.
— Meu papai sempre vem aqui … — Coça os olhos. — Quero ele!
— Ele está lá embaixo. Vaza, garotinha — diz o cavalheiro Kühn. Estremeço. Nunca sei
se ele está muito bravo ou se é apenas o jeito normal dele.
— Não, não — ela o confronta. — Não quero ir sozinha. Quero meu papai!
— Levo essa criatura. — Cavalheiro Kühn tenta pegar a mão dela e, em resposta, Cherrie
corre para o meio das pernas do cavalheiro Waddel.
— Não quero ir com você, titio, quero que busque meu papai. — Começa a chorar.
— Por favor, Kühn, aproveita e pede para George entregar o cartão de memória. Quero te
mostrar... aquilo.
Assim que o homem loiro sai da sala, ela cessa o choro e se senta no sofá ao lado do adulto.
Balança os pés dentro daquele sapatinho que parece de cristal.
— Aquilo o quê? — indaga, curiosa. Ele gargalha e a ignora. — Cavalheiro Waddel …
— Levanta-se e começa a esfregar as perninhas uma na outra. — Estou com vontadinha de
fazer xixi.
— O banheiro é virando o corredor.
— Tenho medo da sua casa. É escura. Me leva?
— Não dá para esperar seu pai, Cherrie?
— Estou com muita vontadinha de fazer xixi. — Ele fica em silêncio. — Vai escapar,
cavalheiro Waddel. Por favor.
No momento em que vão passar pela porta, Cherrie faz um gesto para avisar que devemos
aproveitar a deixa e correr daqui.
É o que fazemos.
Assim que pisamos no salão principal, aliviados por Cherrie ter nos salvado, vovó e mamãe
correm ao nosso encontro. Enquanto mamãe se abaixa para tirar o pó das nossas roupas, vovó
briga com ela.
— Precisa cuidar direito deles! Olhe como estão imundos! O que vão pensar de você,
Charllote?
Mamãe só balança a cabeça e fica quieta.
— Vocês gostam de manchar minha imagem com as outras Damas, não é? — acusa logo
que nos sentamos à mesa. Bebe todo o suco violeta em sua taça e faz uma leve careta. — Desse
jeito nunca vou ter amiguinhas …
Odeio ver ela triste, e Dylan também.
— A gente estava brincando, mamãe — Dylan explica, com o dedo na boca porque ele é
meio neném, mas eu já sou grandão.
— Eu dei o meu esconderijo para ele, mamãe, e adivinha? — Faço suspense. —
Ninguém o achou!
— Sei disso, meus amores. — Beija a testa de Dylan, depois a minha. Amo ganhar
beijinhos da mamãe, é minha coisa favorita do mundo inteiro. — É que ninguém aqui entende
que crianças, mesmo que sejam Duncan, Isakai ou Waddel — fala com voz monótona — ou
Young, Harding, Kühn …
— Ou Lloret. — Completo o que ela esqueceu.
— Ou Vannozza. — Dyl fala errado.
— Isso mesmo, meus meninos inteligentes — faz carinho na minha cabeça e na do meu
irmão. Olhando para mim, ela completa: — Mesmo os Sangue em Ascensão são crianças.
— O que significa manchar a imagem? — Ela sorri com a minha pergunta.
Papai diz que mamãe tem o sorriso mais lindo do mundo e eu concordo.
— Quer dizer que as pessoas vão pensar coisas não tão legais de você, amorzinho. Coisas
que não são verdade.
— E o que significa tatatatará avôs?
— Tataravós, Damon — me corrige, sorrindo. — É algo como família.
— Onde eles estão agora?
— Quantas perguntas, seu curioso — suspira, meio perdida, rindo — você vai me
enlouquecer.
— Essa eu sei, essa eu sei. — Dylan levanta o dedinho molhado de baba. — No
cemitério que tem atrás do solário.
Cherrie surge toda pomposa no colo do pai. George a entrega aos irmãos mais velhos, e
George Jr. assopra a colher antes de dar comida na boca dela. Ela é grande demais para receber
comida na boca, por isso todos a chamam de mimadinha.
Aconteceu com ela o que mamãe disse, manchar a imagem, porque ela até é meio patricinha
e sabe-tudo, mas salvou a gente e isso foi irado. Ela não merece não ter amiguinho nenhum.
Cutuco Dylan com o braço.
— Vamos convocar o Cartier, Cameron e o Zaki para uma Partida hiper secreta de última
hora?
Seu rosto fica alegre.
— Igual quando o papai precisa sair correndo bem tarde da noite?
— E o tio George o traz meio bêbado. — Nós dois rimos.
— VãO PaRa o QuArTo CrIaNçAs … — ele imita o papai, igualzinho.
Sem que mamãe perceba, Dylan desce primeiro da mesa e depois eu.
Os homens fazem Partidas naquela sala chique, as mulheres, no solário, os adolescentes, no
cemitério, e nós também temos o nosso local de reuniões! Quer dizer, não é bem um lugar …
— Estava pensando que talvez a Cherrie pudesse entrar para o nosso grupinho — sugiro
ao grupo, encolhido debaixo da mesa.
— Ah, sem chance! — Cameron esbraveja, irritado.
— Por que não, Cameron? — Cartier pergunta. — Quer dizer, ela foi muito legal hoje. E
eu gosto dela.
— Justamente por isso que não!
— Ah! Entendi tudo — Zaki declara. — Você gosta da Cherrie, Cameron!
— O quê? — Fica vermelho de raiva. — Nunca!
— O Cameron gosta da Cherrie — cantarola ele. — O Cameron gosta da Cherrie!
— Você gosta de mim, Cameron? — Cherrie aparece debaixo da mesa.
— O que você está fazendo aqui? — Parece indignado. — Só pode menino!
— Mentira — Cartier discorda. — Acabamos de decidir que você pode andar com a
gente de agora em diante. Damon deu a ideia.
Ela sorri para mim.
— Vou ter amiguinhos? — enrola os cachinhos negros com os dedos. — Não vou mais
ficar sozinha?
— É claro que, assim como o grupo do papai, também temos regras no nosso. — Cartier
diz. — A mais importante é...
— A principal é que precisamos sempre cuidar um do outro — deixo claro. — Se você
sempre fizer o que fez hoje, pode ser nossa amiga.
Ela concorda, porém Zaki quer ter certeza.
— Promessa de dedinho — Zaki sugere, enroscando o mindinho no dedo dela e no meu.
Faz o mesmo com Dylan e Cartier, porém, quando chega a vez de fazer com Cameron, ela
confessa:
— E, para sua informação, chatonildo, eu gosto um montão de você.
Sua postura brava se desfaz no mesmo segundo, porém ela nem vê, nos encara e pergunta:
— Posso dar minha primeira sugestão como integrante do grupo?
— A Coroa é minha, então você deve perguntar a mim. — Cameron se posiciona. —
Damon e Dylan são Torres, Zaki e Cartier são Bispos. Você pode ser um Cavalo.
Ela percebe que estamos imitando nossos pais e cruza os braços meio brava.
— Se for assim, eu sou o Rei, igual ao meu papai. — Soa metida. — Sou a mais
poderosa e a coroa deve ser minha!
— Você acabou de entrar! — Zaki se indigna.
— Além disso, você não pode ser igual ao seu pai, você é menina, dãrr— Cam lembra.
— Meninas não são Peças, são Damas. E eu estou deixando você ser um Cavalo, é um baita
upgrade.
Cherrie mostra a língua para ele.
— Não tem nada a ver ela ser menina. Mamãe disse que meninas podem ser o que
quiserem. — Dylan entra em defesa.
Então ele me olha do jeito que quer que eu fale algo.
— É — afirmo. — Meninas são iguais meninos. A única diferença é que meninos têm
torneirinhas e meninas têm …
— Levanta a mão quem acha que a Cherrie pode ser rei — Cartier puxa, levantando a
dele. Eu e Dylan também levantamos.
Cameron e Zaki cruzam os braços.
— Já sei! — Cherrie bate palminhas. — Vou mostrar para vocês meu lugar ultrassecreto.
Se vocês gostarem dele e me deixarem ser Rei, pode ser o nosso local de Partidas.
— Não existe lugar mais secreto que o nosso. — Cameron devolve, ofendido.
— Feito. — Cartier entra no meio da discussão.
Seguimos Cherrie até o hall de entrada, mas continuamos do lado de dentro quando ela passa
pela porta. É meio proibido ir ao jardim sem as babás.
Cartier é o mais corajoso e dá o primeiro passo, e eu não quero ficar para trás, então vou em
seguida. Meu irmão me segue e Zaki fica bem no meio da porta. Cameron é o único a relutar.
— Você não obedece porque é uma menina, mas nós somos Peões. A obediência é o nosso
lema! — Lembra.
Isso me deixa culpado ao pensar no quanto papai ficaria desapontado comigo, então volto
para dentro. Dylan me segue e Zaki também dá um passo para trás.
Ela, no entanto, começa a brincar de pisar nas linhas do chão.
— Obedecer, obedecer, obedecer … — canta, pulando na nossa frente. Cartier dá a mão
para ela, que salta mais longe. — Eu não preciso obedecer a nenhuma regra, porque meu pai é
quem faz elas. E, se estiverem comigo, também não precisam obedecer.
— Jura? — Dylan sai de trás de mim.
— É a minha palavra! — Faz um gesto de soldado.
Todos nos damos por vencido, mas não andamos longe. Quando estamos perto do portão,
sou eu mesmo quem paro. Aí já é demais.
— Mamãe diz que somos muito valiosos para ficar aqui. — coço a cabeça.
— Pode aparecer alguém malvado e machucar a gente... — Dylan completa, com a voz
baixinha de medo.
— A gente não vai ficar perto do portão. — Ela tranquiliza, então dá um sorriso maligno.
— A gente vai passar por ele!
Graças a Deus que o porteiro aparece nessa hora. A gente até suspira aliviado.
— Ei, crianças. — Ele sinaliza para dois seguranças que estão fazendo a ronda. — Não
podem estar aqui.
Cherrie começa a balançar o vestidinho do mesmo jeito que fez com os cavalheiros.
— Sabe o que é, Harold?
— Como ela sabe o nome dele? — pergunto aos outros.
— Está no crachá, bobão. — Cameron zomba.
— É que eu queria muito visitar a Grande Macieira com meus novos amiguinhos …
Nós nos entreolhamos, preocupados.
A Grande Macieira é a nossa árvore sagrada. Ela fica na entrada de Old Westbury, papai
contou que os fundadores do Jogo decidiram que aqui seria nossa casa só para ficar perto dela e
que, depois disso, os negócios de todos os Sangue em Ascensão prosperaram. Às vezes o vovô
Gerard me leva junto, quando vai agradecer. Nunca fui sozinho.
— Eu adoraria deixar, mas não posso, Cherriezinha. É ordem direta do seu papai. Vocês
precisam voltar para a mansão.
Cherrie chama o porteiro para mais perto e fala algo no ouvido dele. Quando ele nos encara
de novo, está branco e muito assustado.
— Vai ser rapidinho, — ela continua. — Papai não precisa saber.
O homem se levanta e chama os seguranças que estavam perto. Fala algo para eles, que
respondem em um tom de voz de quem está bravo, bem alto.
— O quê? Você enlouqueceu? Tem noção do quanto essas crianças valem? Juntas, então?
Eu não posso arriscar a minha vida e a da minha família me responsabilizando por …
Dylan simplesmente grita:
— Corre! — e sai em disparada para fora.
Estamos todos tão surpresos com a reação dele que somos tomados por uma coragem muito
louca, e todo mundo corre pela rua. Não sei o porquê, mas nosso coração está batendo tão forte
que a gente começa a rir e não consegue mais parar. Adoro ter crise de risos.
— Uau … — Zaki olha a Macieira.
— Ela é ainda maior de perto. — Cartier repara.
Papai diz que a Grande Macieira realiza os nossos desejos, então a primeira coisa que faço é
colocar a mão no tronco dela e pedir para que papai me deixe fazer balé com a mamãe.
— O que você disse para o Harold ficar assustado? — Zaki lembra.
Cherrie está com as mãos nos joelhos e seus cabelos pretos estão colados na testa, mas ela
continua sendo a menina mais bonita da escola.
— Que vi ele fazendo coisas de adulto com a babá da minha irmã e ia contar para meu
papai.
— Coisas de adulto? — Franzo a testa. — Que coisa?
Ela torce o nariz.
— Ela estava com o pipi dele na boca dela, eu acho.
— Eca! — fazemos todos juntos.
— Deve ser por isso que ele não queria que ninguém soubesse — ela ri. — Sou ótima
com segredos, tenho um montão deles. — Levanta a sobrancelha igual quando o papai dela faz
mágica para nós. — Se me deixarem ser o Rei, posso contar alguns para vocês.
— Eu acho que você está mentindo — Cameron não quer dar o braço a torcer.
— Eu provo — ela diz, e se abaixa para cavoucar a terra — mas vocês não podem contar
para ninguém, hein?
Os seguranças gritam algo na nossa direção, mas param de andar no momento em que ela
tira um crânio que parece de Halloween do fundo da terra.
— É de verdade? — pergunto, pegando da mão dela.
— É claro que é — Cameron rouba de mim. — Como conseguiu isso?
Ela sorri, orgulhosa.
— Tem um monte de coisa enterrada aqui. — Limpa as mãos. — Acho que é presente
para a Grande Macieira. — Abraça a árvore.
— Por isso ela dá prosperidade! — Descubro.
— A gente devia escrever nosso nome aqui — Dylan tem a ideia. — Aí a gente vai ser
amigo para sempre!
— E daí a gente iria ter poderes especiais — Zaki tem a ideia e começa a tirar casquinhas
do tronco. — Vamos guardar esses amuletos. — Entrega um para cada um. — Eles realizam
desejos. — Inventa.
— Ok, ok, ok — Cameron se entrega. — Você pode ser o Rei, Cherrie, mas eu sou o
vice-rei. — Ele não gosta de admitir que é a Rainha. — E eu também gosto de você... —
Assume.
Tenho vergonha de falar que já estou sentindo meus poderes especiais, porque agora nosso
grupinho está completo e cada um é muito bom em alguma coisa.
— Ó, eu já sei — chamo a atenção. — Cherrie tem o poder de saber o segredo das
pessoas, Cartier tem força, Zaki tem visão Raio-x, Cameron tem Super-coragem. Eu tenho o
poder das Superideias e Dylan tem o poder da Invisibilidade!
— A gente devia ter um nome — Zaki sugere, com o crânio na mão.
— Escavadores de ossos!
— Exploradores de segredos!
— Superpoderosos?
— Superpoderosos herdeiros!
— X-herdeiros!
— Isso! — todos vibram.
Juntos, escrevemos nosso nome na Grande Macieira e, depois disso, temos a certeza.
O poder corre pelas nossas veias.
O FIM

Assim que chego em casa, ouço risos sinceros da minha mulher, vindo do ambiente superior.
O que deveria me deixar feliz, causa o suor em minhas mãos. Tento não dar vazão à irritante
voz na minha cabeça sobre em qual posição ela deve estar com outro homem. É a minha casa,
com os meus funcionários por todos os lados.
A menos que seja um funcionário.
Balanço a cabeça, rindo sozinho da minha insanidade e meus ciúmes absurdos. Tiro o terno
e a gravata, jogando as peças em qualquer canto, enquanto decido beber só mais uma dose para
me acalmar, e me aproximo do minibar.
No instante em que seguro a garrafa e viro o líquido transparente no copo, lembro da voz da
minha mãe, brigando com meu pai, durante toda a minha infância.
“Você não sabe ficar sóbrio, Erin Duncan?” ela perguntava, indignada.
E ele respondia:
“Se você soubesse o que é ser um Sangue em Ascensão, meu bem, você entenderia o porquê
eu nunca quero estar.”
E eu, que tanto o odiava, me sinto cada dia mais parecido com ele. Chegar a essa conclusão
faz todos os sentimentos que reprimi ao longo do dia se aproximarem como uma avalanche, e
levo a garrafa à boca, sentindo a frieza do vidro contra meus lábios.
O odor nítido da vodca invade minhas narinas com um aroma limpo e penetrante, e a
sensação de frescor percorre minha língua com um calor suave que me faz esquecer do meu
sobrenome.
Ainda escuto as vozes da minha esposa do andar de cima e luto contra a ideia de perder a
cabeça.
Minha esposa está sozinha. É só mais uma noite normal depois de um dia enfadonho em que
não fiz nada além de assinar papelada inútil. Eu não sou Damon Duncan. Eu não fiz nada. Não
sou o responsável pelo EuroOásis. Foram apenas papéis inúteis. Minha esposa está me
esperando.
À medida que o líquido lava minha garganta, sinto o álcool me atordoar, envolvendo minha
mente em uma névoa que tira das minhas costas um pouco do peso.
Agora sim, consigo respirar, e rumo os passos em direção à escada.
A porta do quarto da bebê está entreaberta e isso me deixa mais tenso só de imaginá-la com
alguém no cômodo da nossa filha. Adentro de uma vez.
— Com quem está rindo? — pergunto, vasculhando o ambiente com o olhar.
Ainda cheira a tinta recém passada e está tomado por móveis desmontados e embalagens no
chão. Pelo horário, tudo está tocado pela escuridão, exceto ela.
Sua pele reluz, dourada e cheia de viço, tornando-a ainda mais linda com a camisola que, ao
mesmo tempo em que aperta sua cintura, exibindo o relevo redondo de uma barriga que, em
breve, vai para o sexto mês, expõe suas coxas, mais grossas que o normal, e os seios fartos.
Meu coração se derrete e é como se o resto do mundo tivesse ficado do lado de fora. Tudo o
que eu sei é que a única maneira de sentir mais dessa energia é a abraçando, porém Ellie desvia,
evitando me encarar.
— Sozinha. — Afirma, sem nem me olhar. — Eu já me acostumei.
Solto um riso sarcástico à procura de uma saída para os pensamentos que me perseguem. Ela
levanta o rosto e me analisa por algum tempo. As bochechas redondas, o queixo delicado e o
olhar azul…
Não consigo ignorar a frustração amargando a minha boca por reconhecer tão bem esse
olhar.
— O que foi dessa vez?
— Já conversamos que, quando beber, não precisa voltar para casa. — Responde e volta a
mexer no abajur, fingindo que não estou aqui, na sua frente.
Minhas mãos cerram automaticamente, enquanto sinto o sangue esquentar, pulsando como
uma corrente de eletricidade pelo meu corpo. Ellie fita-me de soslaio, primeiro o meu rosto, e
depois desce o olhar, até os meus punhos. Mesmo nessa distância vejo o seu corpo tensionar, e
sou atingido pela culpa.
— O quartinho está lindo. — Elogio, menos ameaçador.
— É, sei que está — fita ao redor com sarcasmo e descrença. — Como pode ver, estou
empenhada, fazendo tudo sozinha — enfatiza. — Pode voltar ao trabalho e ao EuroOásis[1][2], não
falta muito para ferrar com o Iraque antes de entrar outra vez na lista da Forbes de empresário
mais visionário do ano.
Suas palavras me atingem como um soco na boca do estômago e abaixo a cabeça para que
ela não veja o quão fundo me atingiu, com a linha de lágrimas se formando abaixo dos olhos.
— Você quer muito que eu saia de casa para que você possa ficar sozinha, não é?
Semicerra os olhos claros.
— Está tentando me dizer algo?
Sim, estou. Penso em tudo o que também poderia jogar na cara dela, mas engulo cada
palavra. Simplesmente arregaço as mangas da camisa.
— A equipe que contratamos não está fazendo o trabalho corretamente? — pergunto,
tentando não soar amargo.
— Eles estão. — diz, indiferente. — É que não quero os seus capangas arquitetando como
serão minhas lembranças… outra vez.
Reviro os olhos enquanto conto até dez. Ela está grávida, não posso piorar a situação.
Aproximo-me para pegar a caixa que ela segura, porém Ellie desvia.
— O que é? — Rio de nervoso. — Isso é muito pesado para você carregar. — Roubo a caixa
dela, à força. — Qual é? Sou um capanga também?
Ela devolve a hostilidade com uma gargalhada e fita o fundo das minhas íris com um olhar
afiado como o fio de uma navalha, enquanto eu processo a sensação de desgosto que toca o meu
ouvido quando o som da sua voz ricocheteia as paredes.
— Ah, não. Com certeza, não, Damon. — A raiva cintila em suas íris. — Você é muito pior
do que qualquer um deles.
Arqueio uma das sobrancelhas.
— Não parecia um problema quando você aceitou o anel de diamantes com que te pedi em
casamento.
— Tudo é sobre dinheiro para você, não é? Que inferno! — Solta em um rompante de fúria,
o que me deixa ainda mais trêmulo. — Você tem vinte e cinco anos, Damon! Ao menos sabe o
que é ser pai?
Ouço-a com a voz da minha mãe, e tropeço nos próprios pés, dando passos para trás,
assustado como se tivesse visto um fantasma. Então todo o medo é convertido em fúria, e eu lhe
devolvo o tom com aspereza:
— Precisa insinuar que vou ser como meu pai, justo quando estou fazendo o melhor pela
bebê?!
Fica em silêncio por alguns minutos, então meneia a cabeça para os lados.
— Essa merda é o seu melhor?
O calor sobe pelo meu corpo, as veias parecem pulsar com fúria, e a respiração torna-se
curta e intensa.
— Preciso olhar cada detalhe ridículo que surge na sua cabeça inútil? — devolvo com a
mesma hostilidade, e me arrependo do que saiu. — Ellie, pelo amor de Deus, você tem noção do
tamanho do projeto que estou metido? Tenho reuniões até às onze da noite para me preocupar, as
decisões que estou tendo que tomar… olha o peso nas minhas costas para você exigir
participação por algo mínimo. Tenha dó!
Ela explode em ira.
— Foi você quem deu a ideia de foder com países que não tinham a menor chance de se
defender, só para extrair a riqueza deles, Damon. Tenha dó, você! Não haja como se fosse tão
inocente quanto as vidas que você está destruindo! Como se isso te isentasse de fazer o mínimo
como marido e como pai!
O soco no estômago saiu idêntico aos sermões que minha mãe me dava, me levando a
questionar como ela reagiria se descobrisse que me tornei o que ela mais temia.
Decepcionar sua memória dói mais do que à mágoa que sinto por obedecer a todos os
Sangue em Ascensão envolvidos na catástrofe que só eu me sinto mal por causar.
Viro de costas, desejando esconder dela a única lágrima que rola pelo rosto enquanto minhas
entranhas se contorcem em uma mistura dolorosa de caos e tristeza, enfraquecendo meus ossos.
— Você sabe que não foi ideia minha, — sussurro a minha desculpa favorita, me apoiando
na parede. — Só fiquei com os créditos.
— Não, Damon. Foi você. A parte de você que sempre triunfa, a qualquer custo.
Algo na sua frase, de fato, fortalece essa parte sombria que eu temo em mim mesmo,
anestesiando a preocupação em ser melhor.
Penso em nós dois, juntos, na cama, em um sexo gostoso capaz de me fazer esquecer tudo
além dos nossos corpos antes de cair no sono. Preciso tanto disso que mal consigo respirar.
Esquecer quem sou.
— Os dias estão sendo tão difíceis para mim, querida, você não faz ideia. — Desabafo,
buscando a sua mão. Ellie é minha única forma de sentir minimamente o que é paz, o bastante
para me fazer passar por alto todas as palavras que foram ditas. — Não brigue comigo, só hoje...
Ela não se mexe, nem recua, então eu me aproximo de seu pescoço e, após inspirar o doce
perfume que exala dela, vendo-a amolecer levemente, deposito lentos e delicados beijos por sua
extensão.
Ellie se afasta, negando com a cabeça. Os olhos enchem d'água, e ela se vai, irritada, em
passos largos. Vou atrás, grito, perguntando o que fiz que justificasse essa fúria. No meio do
corredor, antes de bater à porta do quarto, com a voz cheia de mágoa, ela se rende:
— Esquece, Damon, esquece! Você não se importa.
Deixo os ombros caírem, concentrado demais em contar até dez para só então segui-la.
— O que foi que eu disse ou fiz de errado? — imploro ao adentrar o quarto e encontrá-la no
closet.
Ellie não responde. Ignorando-me, começa a lançar suas peças de roupas na mala que pega
da prateleira do alto. Meu coração erra as batidas. A descarga de adrenalina me faz tremer. Ir
embora? Não!
— Você está louca? — meu timbre soa quase cruel. — Não pode desistir da gente!
— A gente não existe, Damon! Sempre foi você!
Entro na frente e fecho a mala.
— Repete?
Ela olha para a porta repetidas vezes e eu não consigo acreditar que está com medo de mim,
até ver meu reflexo no espelho. Minha voz interna diz que até mesmo eu tenho medo de mim,
com as veias saltando do pescoço e os ombros erigidos para trás como uma muralha. Desfaço a
postura.
— Tudo isso é por causa de um quarto de bebê? — tento ser compreensivo, porém perco a
paciência que restava. — Se estou ocupado, é porque estou pagando por ele.
Ela ri sarcástica. Acusa:
— A cada três minutos você paga por um cômodo muito superior àquele. — Abre a mala,
me contrariando. — Nem sequer precisa ir trabalhar ou sair de casa para isso, basta existir. Basta
ser um Duncan! — Seu timbre é áspero, e ela começa a despejar as roupas com mais pressa. —
Mas é por isso, exatamente por esse motivo, que estou indo embora.
— Por que sou um Duncan?! — Quero gritar, mas me controlo.
— Porque dinheiro é tudo o que importa! — Desabafa em um grito que rasga a alma e a
garganta. — Meu Deus, Damon, vocês são as pessoas mais ricas desse mundo e, mesmo tendo
mais do que qualquer outro ser humano precisa para sobreviver, são as criaturas mais
gananciosas que já vi. — Sorri em meio as lágrimas. — Não tenho sangue-frio para sobreviver
ao seu estilo de vida, Damon. Também não quero isso para a bebê. Eu preciso ir embora.
Num rompante, empurro a mala de cima da prateleira. Ela bate na porta de vidro, que se
parte em mil estilhaços, causando uma reação muito maior do que a que desejei ter. Ellie se
encolhe. Não posso recuar agora, muito menos fingir para mim mesmo que não gostei da
sensação de poder.
— Você é ingrata — Solto friamente. — Reclama das minhas horas de trabalho, mas só
quando não tem diversão melhor, programada. — Ela me olha, pasma, sem reação. — O dinheiro
não serve agora, porém é útil quando eu pago por imóveis e mais imóveis luxuosos para a sua
mamãe querida ficar cada vez mais perto, se intrometendo na nossa vida enquanto faz de tudo
para escalar nesse mundo ganancioso que você desdenha.
— Não ouse! — Aponta o dedo para mim. — Você foi o primeiro a ignorar a minha opinião
e dar o loft de Manhattan de presente para ela, porque gosta da ideia de me deixar presa a você!
Aliás, ama a ideia de me aprisionar a você com uma dívida alta demais para eu quitar, porque é
isso o que eu e sua filha somos para você, bonecas na caixa, um luxo que pode pagar! — grita,
tirando as pulseiras as jogando longe em uma espécie de catarse.
Sinto muita raiva, pois sempre achei que ela gostasse das coisas como elas são. Ellie sempre
pareceu amar absolutamente tudo o que eu lhe desse — e eu lhe dava tudo — mas, em forma de
agradecimento, ela fez o que fez comigo.
E eu ainda não quero tocar nesse assunto.
Por isso, retenho a informação que me faria vencer essa discussão e toda a verdade que
sangra em meu peito sai em uma única frase provocativa:
— Para o dinheiro te preocupar tanto, imagino que deve ser porque me deva algo. Isso me
leva a outra pergunta — faço uma pausa dramática —: o que você fez, Ellie?
— Não — rebate no mesmo instante. — Só é pesado, Damon — desconversa. — Você
devia ter ouvido minha opinião antes, mas você nunca me ouve. Não apenas sobre a dívida,
dinheiro, tudo. Gostaria que levasse em conta as minhas opiniões e meus desejos, eu não sou sua
boneca.
Ouvir isso sair da sua boca me lembra de todas as vezes em que brincamos sobre isso. Fecho
os olhos e, com o timbre mais doce que consigo, provoco:
— Anotado, boneca. Isso é tudo?
Ela assente com um riso fraco e, no mesmo instante, puxo-a para mim, com cada célula do
meu corpo gritando por ela. A minha paz. Abraço-a e escondo o rosto em seus cabelos,
murmurando pedidos de desculpas e tudo o que for preciso para fazê-la desistir da ideia.
— Ah... como eu te amo — murmuro contra sua boca, mas dessa vez a reação é contrária à
de sempre. Ellie não cede aos meus encantos, apenas me devolve um olhar frio.
— Não, Damon, você não me ama, só ama o que causo em você.
Às vezes, me pergunto se isso é mesmo amor, mas somos dois jovens descobrindo a vida
juntos, inertes em tantos sentimentos indivisíveis, afogados um no outro. Lembro-me dos meus
poderosos avós e dos meus glamourosos pais. Se nem as pessoas mais velhas sabiam o que é o
amor, por que devo me importar em desvendá-lo?
Talvez eu não ame Ellie de verdade, talvez não precise amar do jeito certo. Só preciso tocá-
la, beijá-la, senti-la.
Fácil assim.
Amá-la até que o vazio não pese mais.
— E como poderia, se você não faz ideia do que é o amor — murmura para si.
Se eu respirasse fundo e contasse até dez, provavelmente ficaria calado como em todas as
noites em que nos deitamos naquela cama e fingimos que não está acontecendo nada, mas hoje...
algo em seu tom de voz me faz queimar por dentro.
Posso não saber, mas quem é ela para julgar?
— E você sabe? — indago.
— Sim — responde, desconfiada.
— Ele te ensinou? — Solto-a.
— Ele quem?
— O cara com quem você está me traindo há meses.
É tudo muito rápido. A cor do sangue sumindo da sua pele rosada, a feição assustada
tomando conta dos lindos traços e os sussurros nos lábios tentando encontrar palavras boas o
suficiente para argumentar. Não permito que tente.
— Não abra a boca se for para dizer alguma mentira — ordeno, sentindo meu coração a mil
por hora. — Já sei de tudo.
Ela engole em seco.
— Tudo o quê?
Não suportando sua farsa em parecer injustiçada, deixo-a e vou até o escritório. Ela me
segue, gritando:
— Damon. — Segura nos meus braços. — O que vai fazer?
Com toda a frieza que carrego dentro de mim, vocifero:
— Te fazer falar. — Desejo assustá-la. — Quer ver como te faço abrir a boca rapidinho?
Ela engole em seco quando vou em direção ao cofre. Digito a combinação e, quando a fito
de novo, parece outra pessoa olhando para mim. Ellie está completamente pálida, com os olhos
arregalados e o queixo caído, abraçando a barriga.
— O que você… vai fazer comigo? — pergunta com a voz falha.
Pego o envelope de papel pardo, o que está em minha posse há tanto tempo que me obriguei
a ignorar a sua existência, porque lembrar dele era o mesmo que esfregar a ferida que ainda
sangra em meu peito. Atiro o embrulho em sua direção, vendo-a mal conseguir pegá-lo devido
ao reflexo lento e praticamente jogo na sua direção.
— Minta para mim agora — desafio, embora mal consiga esconder a mágoa na própria voz.
— Se eu não falar, vai me matar? — Seu tom de voz sai quase nulo. Mantém a atenção fixa
na direção do cofre.
Preciso seguir seu olhar para compreender o motivo da pergunta. Leva alguns segundos para
cair em mim.
O revólver da família.
— Acha que eu faria uma coisa dessas? — Ela faz que sim. — Nunca te machucaria, Ellie.
— Aponto para a barriga. — Você está grávida da minha filha. — Fecho a porta do cofre para
deixá-la mais segura.
Apenas quando o estalo do trinco vibra, ela volta a respirar. Abre o envelope e nem olha
direito antes de despejar as fotografias na mesa.
— Se não te amasse, no momento que descobri, teria acabado com tudo. Mas não fiz, sabe
por quê? — questiono, atropelando as palavras.
— Por que você me traiu primeiro e sabe que não pode exigir nada?
Perco a postura, até me lembrar que não foi bem assim.
— Porque te amo e acredito que seja só uma fase que vamos superar. Se não fosse louco por
você, acha que eu estaria disposto a isso?
Seu olhar é de pena.
— Nunca vi tanto desespero em uma só pessoa, Damon. — E me dá as costas, mas, antes de
sair do escritório, avisa: — estou indo embora.
Observo o mundo desmoronar e o tempo parar de correr. Não sei se leva horas ou minutos
para ela pegar o que acha importante, porque continuo paralisado no escritório.
Tudo o que consigo pensar é no quanto lutei para nosso amor acontecer. Todas as brigas
com a minha família, nosso casamento escondido, a gravidez às pressas para eles aceitarem e
deixá-la em paz...
A sensação de ter falhado é como uma sombra pesada que se instala sobre mim,
obscurecendo qualquer resquício de esperança que ainda pudesse permanecer.
Eu falhei, não sou diferente do meu pai ou de qualquer outro Sangue em Ascensão.
Não deveria ter tentado.
Talvez o amor não seja para um Duncan.
Apenas quando escuto o barulho da mala quebrada rangendo sobre o mármore, percebo
quão real é. Reúno todas as forças e saio do escritório. Há um nó na minha garganta enquanto
tento engolir a realidade.
— Não vai, Ellie. — Peço em uma espécie de ordem, no alto da escada. A necessidade de
impedi-la de partir é avassaladora, como se todo o meu ser estivesse gritando para que eu não
deixasse isso acontecer.
— Não faça isso, Damon.
Vejo nos olhos dela uma mistura de tristeza e determinação, e o fato de não poder impedir
essa separação me deixa destruído.
A sensação de impotência parece cravar mais fundo no meu coração, feito o fio de uma
lâmina nova, a cada passo que ela dá da porta vejo meus sonhos sendo arrastados junto com a
mala meio quebrada.
Um turbilhão de emoções tumultua meu peito, e minha mente está em guerra consigo
mesma entre aceitar que ela vá embora ou o desejo desesperado de segurá-la a qualquer custo.
— Você quer eu implore? — Ela para no lugar. Odeio quão ridículo soa o meu desespero em
voz alta. — Porque eu fiquei de joelhos para te pedir em casamento, eu ficaria agora...
— Não! — grita em um rompante de lágrimas. — Olha, Dam... você não precisa disso.
Minhas mãos tremem enquanto tento tocar os ombros dela. Seus olhos refletem a dor que
também sinto, porém, a determinação em seu olhar continua me cortando feito uma lâmina
afiada.
— Eu preciso de você, Ellie. Faço qualquer coisa para ter você. — O vazio que se abre
diante de mim parece insuportável, e a ideia de viver sem a presença dela é assustadora. — Fiz
uma vez, não fiz? Posso fazer de novo, só precisa me dizer o que...
— O que tivemos sempre foi errado, proibido... mentimos para o outro, você me traiu uma
vez, eu traio você. Eu tenho outro, Damon!
Meu coração bate na garganta. A tristeza inicial é rapidamente eclipsada por uma onda de
raiva, uma combustão interna que ameaça consumir tudo ao redor, em um desejo ardente de fazer
com que ela sinta o peso da dor que me inflige.
As lágrimas se acumulam nos meus olhos, mas tento manter a compostura para fitar o fundo
dos seus olhos e a ameaçar:
— Espero que a diversão tenha sido boa o suficiente para compensar todas as consequências
que você vai enfrentar.
— E foi — responde, com o queixo erguido, altiva.
As palavras dela ressoam nos meus ouvidos como uma sentença de morte, e é como se
apenas agora me desse conta da traição. Sinto a dor outra vez, pulsando, e seguro o choro.
— Sempre te dei o mundo, — minha voz quase não sai. — Como pôde fazer isso comigo?
— Mundo? — Gargalha. — Se refere a sua gente, não é? — Meneia a cabeça para os lados,
indignada. — Quando, misteriosamente, todos os homens desaparecem das festas, fico só com
aquelas mulheres. Sinto arrepios, principalmente daquela cobra que você chama de amiga, Che...
— Não admito que fale assim da minha família! — respondo, ofendido e atordoado.
— É que todos fingem para você! — grita de volta. — Você e seu irmão, os gêmeos órfãos
queridinhos…
— Não ouse!
— Vítimas de dois pais que enlouqueceram com a fortuna que possuíam…
Encarando fundo nos olhos da minha ex-esposa, da mulher que escolhi a dedo, pensando
que com ela dividiria minha vida inteira, e na qual acreditei tão fielmente a ponto de causar uma
guerra com o meu mundo para tê-la, mundo que ela desdenha agora. Sinto mais que ódio, sinto
nojo. Vou até a porta e escancaro-a.
— Sabe, querida, espero que essa criança não seja minha, porque, se for, vai ser só mais uma
das muitas coisas que você vai perder. — Se ela está tão certa das suas escolhas, eu também
estou decidido quanto às minhas. — Pode ir embora agora.
Não estou apenas querendo machucá-la, também estou me agarrando a algo, a minha filha.
Pelo menos assim não estarei completamente sozinho. Se essa bebê tiver o meu DNA, posso
sentir amor incondicional por alguém. Vou lutar por ela.
— Não se preocupe, Damon, ela não é.
Sua frase é como um golpe em mim, desses que esvai toda a força e embaralha toda a
cabeça.
— Como sabe?
— Engravidei enquanto você estava ocupado na cama da Beatrice.
As lágrimas brotam dos meus olhos antes que eu consiga pensar em uma forma de
convencê-las a não caírem, então apenas abaixo a cabeça para não a ver saindo pela porta. Tudo
vem à tona.
Estou sozinho nessa sala de trezentos metros e a única coisa que consigo ouvir é a minha
própria voz.
As lágrimas, antes silenciosas, agora se transformam em soluços angustiantes. Cada choro
parece uma tentativa desesperada de liberar a dor que me quebra, fazendo as mãos tremerem e os
joelhos cederem em um abismo de desamparo.
Estou sozinho outra vez.
O vazio, agora, é um fardo que me esmaga, uma presença que pesa sobre cada respiração,
fazendo-me arfar. Sinto-me envolto por uma escuridão, e a ausência dela deixa um buraco
profundo e impossível de preencher.
Sozinho, sozinho, sozinho.
Afoito, ligo para a pessoa que Ellie mais detesta, a mulher que mais amo depois da minha
mãe e da minha vó, minha melhor amiga de infância.
— Acabou, Cherrie.
— O quê? — Ao ouvir sua voz, me arrependo de tê-la procurado, depois do que fiz. É que...
— Meu casamento acabou. — explicou, chorando tanto que meu peito chia. — Desculpa te
procurar, sei que você está magoada comigo, mas está doendo muito. Eu preciso de você.
— Oh, mon chouchou, já nem me lembro mais… — acalenta com o tom de voz angelical
que só ela possui. — Posso estourar fogos? — completa, divertida.
— Estou destruído — deixo claro em um gemido entrecortado, limpando as lágrimas.
— Não fique — diz, como se fosse fácil. — É só uma mulher, e mulheres existem aos
montes por aí.
— Cher... Ela foi a única coisa que eu quis.
— Por enquanto. — Frisa. — Lindo desse jeito, do naipe que é, logo você encontra outra,
mais bonita, mais jovem e com mais classe que essa Mundana[3]. Não vê meu pai? Vai para a
quarta.
— Eu a amo, Cher.
— Temos tanto poder, Damon. Quem precisa de amor?
A vergonha me assola. Ela não me entende.
— O que eu vou fazer da minha vida?
E é nesse momento que Cherrie Young promete me dar um novo propósito.
Tudo o que eu preciso fazer é esperar.
DANÇANDO NO VAZIO

Frequentemente antes de dormir coloco fones de ouvido e aumento o volume de


Tchaikovsky apenas para me ensurdecer com a sinfonia que toca tão alto a ponto de balançar
meu cérebro, desejando reverberar minhas memórias até trazê-las à tona em sonhos vívidos.
Pelo menos assim eu sinto algo.
Como um dente de leão que paira pelo ar acima dos campos verdejantes,
Sendo conduzido pela brisa refrescante,
Para lá e para cá com sua leveza e delicadeza,
Eu flutuava pelo palco.
E, embora seja divino poder deixar meus pensamentos fluírem e a imaginação me levar onde
eu gostaria de estar, o efeito ricochete me devasta.
Sem a música, os sonhos e a poesia dos meus diários, até acordarei “bem”, isto é,
conformada com a ideia que serei tão feliz quanto uma borboleta com suas asas quebradas.
Eu não era eu, em forma física.
Era a música que preenchia o ar com suas notas sentimentais
Deslizava, sendo a raiva que a melodia transmitia…
Depois a calma que a sinfonia evocava.
A dor que a peça expressava.
Até lembrar que, a vida inteira, pendi, com perfeição, entre a inocência e graça do cisne
branco e a malícia e sensualidade do cisne negro, mas, nos últimos onze anos, o mais perto que
cheguei da arte foi sentir na pele a força da atuação de quem vive aprisionada dentro da própria
carne.
E, embora não estivesse sozinha naquele espetáculo, o momento era sublime demais para
enxergar qualquer coisa...
Não via e nem ouvia a plateia lotada.
Só sentia e repetia os movimentos que me transmutariam para aquilo que nem sabia como
descrever.
Que me faziam ser quem eu era e amava ser.
Lembrar disso me faz detestar a ideia de ainda ser humana. Em consequência, sou dominada
por uma profunda tristeza, que me impede de levantar da cama até para comer. Quando isso
acontece, todo o meu esforço foca em respirar, e ainda sim, é sufocante.
Onze anos são quatro mil e dezessete dias. Se for analisar, não parece tão terrível e
catastrófico. É relativo. Por exemplo, quando alguém é condenado à prisão, pode ficar feliz se a
pena for de apenas quatro mil dias, supondo que o crime cometido fosse algo hediondo, como
um homicídio, ou coisa assim.
Mas eu...
Não sei o porquê insisto em pensar nisso, mas cheguei à conclusão que ficaria feliz se
dissessem que, daqui a quatro mil dias e uns quebrados, estaria livre outra vez.
Meus dias se arrastam como fagulhas de uma eternidade.
Perpetuamente condenada.
Ainda na escuridão que antecede o nascer do sol, em um esforço colossal, levanto-me,
surrando meu próprio corpo. São 5:15h. Meus ombros pesam toneladas e mais toneladas. Calço
as meias cinzas e coloco o roupão desbotado por cima do pijama pesado.
Vou em direção ao closet, ando até o porta-joias que há no centro. Abro-o para encontrar um
pingente delicado em forma de nota musical e uma pequena chave. Coloco a chave na fechadura
da caixa de música acoplada ao porta-joias e a giro.
Uma melodia suave começa a preencher o cômodo, e instantaneamente me vejo envolvida
por uma sensação hipnotizante. A música parece penetrar minha alma, e meus olhos se fixam no
pingente que emite a melodia sombria.
A calma fabricada inunda meu ser, e sinto-me guiada por uma força invisível que toma a
minha concentração. Ao mesmo tempo em que meu cérebro parece ser embebido por um peso
descomunal, flutuo em passos en dehors enquanto me arrumo.
Escolho um collant branco de alcinha e decote profundo nas costas, meias-calças 15 fios,
branca, polainas ⅞ cinzas por cima das sapatilhas rosas cintilantes e polainas de lã nos braços.
Há uma certa desconexão durante o tempo que me visto, como se eu estivesse em um estado de
sonho lúcido, e isso é bom, me anestesia da realidade.
Enquanto faço o coque diante do espelho que ocupa toda a parede, imagens vívidas surgem
na minha consciência e, em todas elas, a voz dele me diz quais são meus próximos passos.
Escolher uma das coleiras e caminhar pelo assoalho de madeira dessa mansão antiga, até o
hall de entrada.
À medida que me afasto do closet e do porta-joias, é como se as névoas de encantamento se
desfizessem. Minha respiração, ritmada, retorna ao normal, e um leve formigamento percorre
meu corpo à medida que a influência da música se desvanece.
Tudo o que ouço agora é o tic-tac do ponteiro no meio da sala, que conversa com o barulho
do meu cérebro, silenciando um pouco da melancolia que me consome. Ao mesmo tempo que
acalma, causa desespero.
Vou para a cozinha, decidida a preparar qualquer coisa, desde que fique longe do relógio,
tentando fazer os olhos dessa casa acreditarem na minha própria mentira: que, com a comida, o
cansaço vai diminuir. No entanto, o efeito é contrário.
Logo que meus olhos percorrem o ambiente, uma fraqueza tão forte me toma, que preciso
me sentar. A bagunça reina, tanto no ambiente externo quanto dentro de mim.
Abro as prateleiras, e tudo o que encontro são três biscoitos água e sal murchos e quebrados.
Vasculho a geladeira em busca de manteiga ou qualquer coisa que torne as bolachas mais
comestíveis, no entanto, só tem duas formas de gelo, garrafas de água, antimofo e uma
embalagem de leite na metade.
Os dedos dos pés começam a se mover freneticamente, porque preciso voltar a sala e ficar
na posição de espera em frente a porta.
Agora, são visíveis aos olhos os feixes de claridade que surgem no horizonte através dos
vidros da janela vitoriana, e eu me concentro do sol, pronta para desfrutar do meu ritual matutino
que consiste em…
Assistir à escuridão deixar minha casa e ocupar apenas minha mente, enquanto aguardo a
minha comida chegar.
Dói ver a luz do sol, que me lembra ele, machuca tanto que o tic-tac não é capaz de abafar a
dor. Quando me dou conta, estou em prantos.
Todas as manhãs, repito esse processo apenas para ter a certeza de que as próximas vinte e
quatro horas vão se arrastar em todos os ângulos. A eternidade opera em cada minuto dos meus
dias, e só percebo quanto tempo passou quando a campainha toca.
Conto 60 segundos antes de abrir a porta.
Penso em como seria poder passear além dos limites dessa propriedade, então abaixo o olhar
e encontro uma caixa embebida com sangue humano, ameaçadora como um lembrete dele.
Faz muitos anos que estamos nesse joguinho e em todas as vezes minha reação é a mesma.
Primeiro, meu coração dispara. Sou inundada pelo medo, o susto preenchendo cada célula
com adrenalina o suficiente para me fazer gritar agoniada, ajoelhando-me nessa maldita varanda
como se eu pudesse me esconder entre as ripas de madeira. Meu pulmão se comprime tanto que
machuca meu peito com a crise de pânico latente.
O choque térmico das lágrimas quentes escorrendo pelas bochechas geladas me traz de
volta. Lembro que posso estar sendo observada e minha postura se eleva no mesmo segundo.
Limpo as lágrimas com as mangas da blusa e pego na caixa, sujando as mãos com o sangue
grudento que escorre entre os meus dedos.
Um enjoo surge, amargando o meu palato, forte e invasivo como esse presente, a ânsia não
tem meio-termo e no segundo seguinte estou debruçada sobre a pia da cozinha, colocando para
fora tudo o que não comi.
Tento me acalmar, limpar as lágrimas, enxaguar a boca, evito olhar a caixa, para não sentir o
cheiro do sangue coagulando, a gosma entre meus dedos trêmulos. Preciso me recompor.
Tic-tac. Tic-tac.
Meus movimentos se tornam robóticos, vou até a mesa de jantar e escancaro as cortinas,
dando-lhe a vista do ambiente, onde há o último buquê, apodrecido há semanas, decorando.
Performática dentro do meu pesadelo, coloco a caixa na mesa como se cada pedaço da minha
alma lhe mostrasse quão grata estou por saber que ele ainda pensa em mim a ponto de me cuidar
a cada dia.
Abro a caixa enquanto o medo de ter feito algo errado me ataca com toda a violência que
meu cérebro consegue visualizar. Sei que ele está feliz comigo quando meus presentes são
minhas flores favoritas, mas não entendo o sangue na caixa.
O sangue significa punição e não fiz nada para merecê-la, tenho certeza de que fui perfeita.
Até ver o que há dentro.
Normalmente há mantimentos para o dia. Junto com os meus suplementos, algumas frutas,
legumes e meus pratos favoritos, como pelmeni, plíni com geleia de smokva, mel ou caviar. Ele
sempre me mima, não existe motivo para fazer o contrário.
Lavo as mãos antes de tocar em cada item.
Hoje há uma sapatilha azul-claro incrustrada com pedras preciosas e uma fita transparente,
bordada a mão com mini joias, junto com um belíssimo collant, repleto de diamantes.
Brilha tanto que machuca os olhos.
É o meu figurino.
Também tem um tutu, escandalosamente bonito, meias-calças novas, adornos para os
cabelos e uma calcinha fio-dental, rendada e com pedrinhas preciosas.
O sangue esquenta, porém, engulo o nojo.
Sempre há uma carta, então chacoalho cada item na esperança de encontrá-la. Preta, cheia de
detalhes dourados. Analiso por alguns instantes o relevo do inconfundível brasão antes de abri-
lo, sedenta.
Quando termino de ler as instruções, estou tremendo de ódio e com o choro entalado. Volto
até o meu quarto enquanto ainda processo a ordem, andando de um lado para o outro. Estou
brava com ele. É injusto, faria minha parte nesse jogo, ele não precisava me assustar, obediente a
tudo, como ele me ensinou.
Sinto culpa por estar irritada com meu Dono.
Será que ele vai estar no endereço?
O simples pensamento desperta cargas elétricas por todo o meu corpo, de modo que eu fecho
os olhos só para senti-las com mais intensidade, controlando-as. Não posso deixar que o
nervosismo me atrapalhe.
Preciso estar impecável.
Passo o restante do dia ocupada na preparação. Treino os passos de bourrée e changement
de pieds, um salto em que mudo de uma posição de perna dobrada para outra, e erro, então foco
nisso a manhã inteira, ignorando a fome.
Faço fouetté apenas porque esse passo me faz sentir felicidade, e só de pensar que vou me
apresentar em um palco, consigo ter forças para suportar a parte difícil.
Descobri o fascínio pelo ballet desde nova e não há um passo que não tenha aprendido, a
responsável foi minha avó, que fez questão de abdicar de sua aposentadoria em um trabalho
extra, para que usasse cada centavo do seu suado salário em aulas de dança para pôr no meu
currículo.
Seu desejo era que eu crescesse com uma “carta na manga” e nunca corresse o risco de
depender de um homem, como ela dependeu do meu avô, ela me fez dependente do ballet, sem
imaginar que, poucos anos sem ela, esse seria o único fio que me ligaria à vida.
Sinto sua falta, mas também sou grata por ela ter morrido antes de descobrir o caminho cruel
que a dança me levou.
Tomo um longo banho, depilo cada pelo do meu corpo, esfolio a pele, hidrato e perfumo,
observando minha magreza, exposta em detalhes sem a roupa que marca as curvas dos ossos.
Dói admitir ser menos que a sombra do que fui um dia. Como ele vai ver beleza em mim, se nem
eu a encontro mais?
Espero que ele a veja na maquiagem que fiz.
As sete em ponto, um luxuoso Jaguar me aguarda. Não tento falar com o motorista, porque
ele não vai responder mesmo. Concentro-me em observar as ruas agitadas de Nova Iorque, a
neve caindo, é tão bom ver pessoas, estranhos vivendo suas vidas normais.
A cada um que atravessa o meu caminho, julgo quais seriam os motivos que os trouxeram
para essa cidade. Gosto de imaginar quais segredos sujos escondem, é um jeito divertido de
sobreviver à passagem dos meus.
A neve delicada e amena encobre as calçadas, os telhados e as fachadas das lojas velhas e
escuras. Varais de luzes coloridas atravessam Manhattan, deixando a grande Metrópole com um
charme brega e encantador ao mesmo tempo.
Meu coração dispara outra vez, como se a culpa resolvesse dar as caras e me lembrar de toda
a bondade que não mereço viver, depois do que aconteceu.
“Do que você também teve participação, Kitty”.
O desespero percorre o corpo todo, feito ondas de eletricidade, me impulsionando a fechar
os olhos e só abrir quando o motorista avisa que cheguei ao meu destino.
Metropolitan Opera House.
Abro a porta e respiro fundo, tragando o máximo do ar congelante que me envolve,
expandindo cada centímetro do tórax. O frio amortece desde a ponta do meu nariz arrebitado até
alcançar meus dedos e ossos, curiosamente não dói, acalenta.
Seguro firme no casaco de pelos, na tentativa de evocar todos os resquícios do meu
autocontrole enquanto limpo as provas do pânico, expostas em minhas palmas escorregadias de
suor.
Quando encaro a rua, uma ideia tão perigosa quanto provocante passa pela minha cabeça,
inundando a alma com um misto de sensações. Não há cordas ou correntes em meus pulsos, não
vejo ninguém atrás ou na minha frente.
O caminho parece livre
— Você não irá a nenhum outro lugar, o seu Dono quer que você dance aqui. — Repito o
pensamento em voz alta, desviando o olhar para o chafariz, borbulhando vermelho-sangue.
Inconscientemente, rumo em direção a ele, apenas para admirá-lo por alguns instantes,
sempre que vou me apresentar encontro um desses, significam que o evento da noite é privativo.
Eu sou o espetáculo.
Um desejo súbito de fugir me domina, e eu queria acreditar que sou livre das Regras, mas
ele me ensinou que as mentiras mais bonitas são as que cortam mais fundo.
A verdade é que Ele me encontraria em qualquer lugar e, se isso acontecesse, eu não iria
querer estar viva.
Eu já não quero estar mesmo.
Balanço a cabeça, sentindo as lágrimas escorrerem. Medo contra coragem, tristeza
guerreando contra a alegria por sentir tanta leveza.
E culpa.
Pressiono o casaco junto ao corpo em uma tentativa de me proteger do que posso encontrar
em meu caminho, o que não adianta, pois o casaco não cobre minhas longas pernas, que estão
desnudas.
O funcionário apenas me deixa entrar quando lhe sussurro a palavra-passe.
— O brilho no escuro é mais forte.
Abre a porta e a sensação é de estar adentrando a Era Dourada. A imponente fachada de
mármore me acolhe, e ao cruzar suas portas ornamentadas, mergulho em um ambiente de puro
luxo.
Os lustres suntuosos lançam uma luz dourada sobre o foyer, destacando detalhes intricados e
tapeçarias ricamente ornamentadas que adornam as paredes. Cada passo no majestoso corredor é
como uma jornada pela história da ópera e do ballet.
Por um momento, esqueço do que estou fazendo aqui. Decido fingir que sou a principal do
espetáculo e, enquanto passo pelos camarins vazios, os imagino cheio de bailarinas
talentosíssimas, todas me invejando.
Um frio na barriga me faz sorrir.
A única coisa que escuto, além dos meus próprios pensamentos, é o colidir do meu salto
sobre o chão escorregadio, em passos coordenados que tocam um silêncio rítmico, anunciando
minha chegada.
No camarim, visto o tutu e calço as sapatilhas, retoco a maquiagem e testo o meu coque.
Aproximo-me do reflexo e limpo uma única lágrima escura que escorre pelo rosto, borrando a
maquiagem, não devia ter carregado na sombra escura, apesar de o resultado ter deixado meus
olhos azuis tão enigmáticos quanto eu preciso.
Escuto o tic-tac dentro da minha cabeça, encaro a porta e a vontade de soluçar aumenta, me
lembrando do quão dura é a realidade, o quanto eu gostaria que minha vida fosse diferente, o
quando gostaria de...
Ser normal.
Sinto medo, nojo e culpa.
As lágrimas preenchem a linha da água e eu fito o teto, sem piscar, esse é o meu truque
expert de secar a água, porque já chorei vezes demais diante de espelhos melhores do que esse.
Lamentar não me leva a nenhum lugar além do fundo do poço em que já me encontro
aprisionada.
A ideia de encontrar com o meu Dono é o que me impulsiona a caminhar até o palco,
embora eu tema ser apenas outra ilusão. Ele não vem me ver há anos, em vez disso...
Meus pés fazem plies involuntários com a ideia de outro estranho me tocar, de modo que me
esforço a ficar em posição até que as cortinas ricamente adornadas se abram para me revelar
como o espetáculo da noite.
No passado, amava os olhares e as salvas de palmas, afinal eram o reconhecimento dos
meses de ensaio e das restrições severas que me impunha, da dedicação e da determinação acima
de qualquer outra coisa.
Significavam a saudação de todas as vezes em que deixei de brincar para dançar, ou as
experiências românticas de que abdiquei, por não pensar em nenhuma outra coisa a não ser em
me tornar bailarina na maior companhia de teatro do mundo.
“Você é o espetáculo, Kitty. Vê como te olham?”
As notas musicais sombrias de uma caixinha de porta-joias fazem eco na plateia vazia, ao
mesmo tempo em que se infiltram na minha mente. Toda a dor e a tristeza deixam de me sufocar
e, de repente, sinto-me como se estivesse flutuando em um estado de graça, totalmente absorvida
pela melodia.
Meus movimentos, controlados e ensaiados, tornam-se intuitivos, como se eu e a batida nos
encontrássemos e ela me fizesse fluir, assim como as águas do mar correm para o caminho que o
vento as guia.
Cada movimento é um mergulho nas sombras, guiado pela melodia que ressoa como um eco
melancólico.
E, assim como é a precipitação climática que decide se será um dia calmo ou se irromperão
ondas tsunâmicas à margem, não escolho quais passos farei, apenas permito que o ritmo me faça
executar arabesques e tendus. Movimentos como fouetté e développé se entrelaçam em uma
mistura que sou incapaz de gravar, com a mente aberta.
Não sei quanto tempo se passa até que uma mão desliza pela minha cintura, sutil como uma
pena. Sinto uma dose de arrepio eriçar toda a minha pele, guerreando em minha própria mente.
Gostaria de reagir e tensionar os músculos, porém é como se dançasse sobre memórias
obscuras, e eu me sinto solta, vagando pelo imenso vazio. Não tenho forças para ir contra o peso
de tudo o que meu Dono colocou dentro de mim.
Sou uma bailarina de brinquedo, uma boneca dentro de um porta-joias.
À disposição do meu Dono.
Não me dou o trabalho de olhar para trás. Ao contrário, movo mais a costela, me encaixando
ao toque dele.
Outra mão corre tênue pelas minhas costas em direção à nuca, desliza por uma mecha do
cabelo, da raiz às pontas, causando um arrepio que desfila por toda minha espinha dorsal.
Continuo dançando e o toque continua leve como a brisa, brincando com minhas madeixas e
com minha curiosidade de maneira profunda e enigmática.
Dou um passo para trás, aproximando-me, procurando sentir seu aroma. A Brisa cheira a
perfume amadeirado misturado com suor.
Minhas mãos deslizam até as mãos da Brisa, seguro as duas e as trago para mim. O
movimento deixa nossos corpos mais próximos, em um mergulho mais profundo na escuridão
onde passos de ballet assumem uma aura sinistra.
Uma ponta de melancolia me toca quando não reconheço o toque. Meu coração aperta tão
forte que me viro para observar e desvendar logo a face desconhecida da Brisa.
Permanecemos em silêncio enquanto seus olhos navegam pelos meus traços, ao mesmo
tempo em que minhas íris azuis-escuras percorrem pelo rosto dele.
A Brisa tem olhos e cabelos no mesmo tom castanho que sua barba cerrada, contrastando
perfeitamente com sua pele clara, contudo não são os detalhes mais marcantes quando o vejo.
Seu queixo quadrado e o formato no rosto me fazem pensar que, se ele não fosse poderoso o
bastante para ganhar do meu Dono uma noite comigo, definitivamente seria um modelo.
Eu deveria estar feliz.
BAILARINA DE PORTA-JOIAS

Faz algumas semanas desde que Ellie foi embora, e tudo o que eu faço é fingir.
Todos os dias eu acordo no mesmo horário, me visto e me sento à mesa para o café da
manhã, como se Ellie ainda estivesse dormindo com sua preguiça gestacional, então venho para
o trabalho, onde permaneço até tarde da noite, revisando cada documento, cada pequena vírgula.
Ninguém percebe que há algo errado.
Todos conhecem a minha parte que insiste em decidir cada minúscula ação dentro da
multinacional que leva meu sobrenome, obcecada por controle.
Exceto o meu irmão gêmeo.
— Tá tudo bem? — entra sem bater.
E eu, que brincava com a aliança na mesa de mogno maciço esculpida à mão, não consigo
pegá-la a tempo. O ouro cai sobre o piso de mármore italiano, tilintando por segundos suficientes
para que Dylan se ajoelhe e a pegue.
Estico a mão, porém ele não me entrega a joia.
— O que está acontecendo, Dam? — seu tom de voz denota suspeita, semicerrando o olhar
castanho adornado por cílios longos.
Em uma tentativa de parecer bem estabelecido quanto a real situação, apoio as costas no
encosto da cadeira de couro, apoiando os braços nos detalhes dourados.
— Nada, por quê? — mordo a língua com o ato falho.
Desvio o olhar dele para as janelas, que vão do chão ao teto e oferecem uma visão
panorâmica da Quinta Avenida, permitindo que a luz natural banhe o espaço enquanto as
cortinas pesadas em tecidos jacquard, chinelle e algodão egípcio adicionam uma camada de
privacidade e mistério.
— Cherrie te contou algo? — investigo.
— Então tem algo, seu safado? — Senta-se na ponta da minha mesa, colocando a aliança na
minha frente como se desse um xeque-mate. — E não — pega em um porta retrato com a
fotografia do nosso grupo de amigos. — Faz dias que não falo com a minha namorada. — Se
queixa. — Desde o Torneio[4] ela está muito estranha...
A culpa pelo que causei a Cherrie retorce em minhas entranhas.
— Desculpa, Dylan.
Ele faz um gesto com as mãos.
— Ela não venceria o Torneio, mesmo se você não tivesse tentado roubar o Rosebud[5] dela.
Há exatamente seis meses eu tomei a primeira das piores decisões da minha vida: me casar
com Ellie.
Ao escolhê-la, eu quebrei uma aliança de casamento e, em uma medida desesperada de um
pedido de desculpas com à família envolvida, peguei o projeto da minha melhor amiga e assumi
a autoria do EuroOásis.
Então, quatro meses depois, cometi o segundo maior erro da minha vida: vendi minha alma
ao Tabuleiro[6].
O lado bom: ganhei a Ascensão e agora sou uma Torre[7].
O lado ruim: perdi a minha melhor amiga, Cherrie Young.
— Ela tentou falar com o pai dela? — indago, afinal George cuida da filha com mãos de
ferro, e todos sabemos a influência que a família materna dela tem sobre sua personalidade.
— Ele também está tentando convencê-la a voltar da Hungria, mas estamos com medo de...
você sabe.
Assinto enfaticamente.
— Não ser ela.
Um frio na barriga retorce com a possibilidade de isso estar acontecendo outra vez.
Cherrie Young possui TDI, um raro e complexo transtorno caracterizado pela presença de
duas ou mais identidades distintas que controlam o comportamento de um corpo, também
conhecidas como alters.
Acontece que a nossa melhor amiga de infância carrega um monstro que assume o front
sempre que ela se sente ameaçada.
— Que problema aconteceu com a Ellie? — volta ao assunto.
Suspiro profundamente, criando coragem para admitir e tornar tudo dolorosamente real.
— Brigamos e eu estou dando um tempo para ela esfriar a cabeça antes de ir buscá-la.
À medida que falo, seu queixo cai e ele não consegue esconder o semblante alegre na
covinha que se forma entre as bochechas, por mais que esteja tentando esconder o sorriso ao
deslizar a ponta da língua entre os lábios fechados.
— Ela meteu o pé? — seu timbre sai agudo pela ansiedade da resposta. — É isso que está
tentando dizer?
— Nós brigamos — corrijo, metódico. — Dissemos coisas que machucaram o outro. —
Enfatizo minha participação nesse desastre. — Estou esperando a tempestade passar para trazê-la
de volta para casa.
Ele balança a cabeça negativamente com um sorriso bobo estampando os traços que são
idênticos aos meus.
— Você não vai buscá-la, desculpa, maninho. Não mesmo. — Peso as pálpebras, porém
meu irmão não me deixa revidar. Continua: — não vai buscar aquela vadia oportunista, nem que
eu precise te amarrar, entendeu?
Começo a tremer.
— Ela não é oportunista. — Defendo, e ele me devolve um olhar cheio de deboche. Sou
obrigado a argumentar: — se ela fosse, não tentaria me convencer de que a bebê não é minha.
Dylan, que está com o celular na mão, para de digitar para me fitar com descrença.
— Ela te disse isso?
Minhas bochechas queimam e eu foco na informação que importa:
— Ela pode ser vadia — sorrimos um para o outro — mas não oportunista.
Dylan abaixa a cabeça, balançando-a e, no segundo seguinte, o celular vibra com uma
mensagem no grupo dos x-herdeiros.
Dylan: A víbora foi embora \o/
— Alguém te deu permissão para falar? — aumento o tom de voz.
Cartier: Nunca pedi tanto a Deus.
Reviro os olhos.
Damon: Você nem acredita em Deus.
Cartier: Eu sou Deus.
Zaki: Desde quando?
Cartier: Pai maníaco, cultos, seita, Messias. etc.
Zaki: Eu sei que você é pirado, me refiro ao Damon.
Cherrie: Faz algumas semanas.
Damon:???
Cartier: Você sabia e não contou para a gente?
Dylan: Só para mim hahaha!
Meus olhos queimam os do meu irmão.
— Desde quando?!
Dylan me entrega um fitar de quem estava ciente desde o momento em que liguei para
Cherrie.
Zaki: As Damas já sabem?
Damon: NÃO CONTA AINDA.
Dylan: já avisei a vovó.
— Dylan! — meu timbre sai estridente. — Cacete! — Meu coração dispara tão forte que
empurro a mesa. — Não sabe respeitar o tempo das pessoas? — indago, trêmulo.
— Damon, hoje faz um mês!
Solto todo o ar dos pulmões de uma única vez, com o coração batendo na garganta.
— Agora até o vovô sabe! — ele solta o celular, compreendendo o meu horror.
— Não chora. — Pede em uma espécie de ordem que me faz engolir em seco e respirar
devagar e profundamente, guiado pela sua postura e gesticulação. — Acabou, Damon. — Sua
voz é branda, quase sussurrada. — Não tem mais nada que você possa fazer.
A fachada de controle que eu mantive para o mundo exterior nas últimas semanas
desmorona nesse momento, expondo toda a minha vulnerabilidade escondida em um pedido
silencioso de socorro.
O silêncio é cortado por um soluço profundo que escapa do meu peito em um eco das
tensões, frustrações e tristezas que vinham se acumulando desde que Ellie passou por aquela
porta. A angústia é como uma tempestade silenciosa e profunda, inundando meu rosto com
lágrimas pesadas enquanto apoio a cabeça na mesa.
Meu irmão atravessa a sala em frações de segundo e me puxa para um abraço apertado. O
seu cheiro familiar me acalenta e os ossos duros do seu corpo magro me confortam o suficiente
para que eu possa sofrer o luto por todos os planos destruídos junto com a vida que sonhei
quando decidi ter aquela mulher a todo custo.
— Você vai superar. — Ele acaricia meus cabelos, acalentando meus gemidos, com minhas
lágrimas molhando sua camisa. — Você vai encontrar outra, cara, muito melhor.
Sinto uma dor física no peito se estender a cada célula, penetrando em minha alma com um
cansaço somado a melancolia.
— Eu não quero outra, — o abraço mais forte. — Eu...
Meu irmão se afasta um pouco para tirar um convite do bolso interno do terno, como se me
desse um novo brinquedo para me consolar.
— Cherrie me pediu para te entregar.
Seguro nas mãos um convite que mais se parece com uma obra-prima de elegância e
sofisticação. O preto profundo como a meia-noite envolve a superfície de detalhes dourados
dançando sobre o papel.
Busco a reação do meu irmão, que se afasta educadamente, como se não quisesse nem ver,
como se fosse proibido. Caminha em direção à porta e tudo o que faz é coçar a cabeça enquanto
comenta em voz alta:
— Depois, se puder, me conta o que é.
Assinto, observando a experiência de requinte que se desenrola conforme o deslizo em meus
dedos molhados, prendendo o ar com tudo o que significa.
— Tem certeza de que posso olhar? — indago com a voz anasalada, fungando, maravilhado.
Levanto a cabeça e não há mais ninguém na sala.
Passo as mãos na camisa, secando as das lágrimas, antes de analisar cada detalhe do papel
em minhas mãos, como os relevos dos cantos adornados com filigranas douradas que imitam
traços Art Deco.
Sinto até pena de rasgar o luxuoso brasão dos Sangue em Ascensão e puxo com cuidado a
carta dentro. As letras, em uma caligrafia elegante, parecem dançar sobre o papel.
Um convite para um espetáculo de ballet.
Sorrio, com uma sensação positiva somando com tristeza que me consumia.
— Senhor Duncan. — Minha assistente me chama, na porta. — A reunião. Estão todos te
aguardando.
Assinto, me levantando e fechando o botão do terno. Em uma tentativa de despertar minha
mente do marasmo que a consumiu tantos dias, vou até o lavabo e me inclino sobre a pia,
jogando água no rosto. Quando levanto a cabeça e vejo meu reflexo no espelho, o coração
dispara com o reflexo que encontro. Tudo o que vejo são os traços do meu pai.
Eu e Dyl estamos no processo da sucessão da Duncan, treinados por nosso avô, que controla
uma das mais bem sucedidas empresas familiares da atualidade.
O plano, orientando pelo Rei do Jogo, é tornar-me o CEO e Dylan COO da Duncan
Commodities. Assim, meu irmão vai cuidar da operação da empresa que alimenta os Estados
Unidos, para que eu possa me concentrar na estratégia do negócio que controla um terço do
mundo.
Fortes como a Torre do Tabuleiro mundial.
Ainda no corredor, vejo meu irmão dentro da sala de paredes de vidro, sentado à mesa de
reuniões com a equipe, todos mergulhados em discussões acaloradas, gráficos e projeções
estampavam as paredes transparentes.
Não é meu objetivo interromper esse espírito quando adentro, entretanto todos se calam em
uma temível pausa. Os olhares se voltam para mim e a efervescência dá lugar a uma quietude
reverente. Basta eu fitar um funcionário sentado ao lado do meu irmão, e ele se levanta, cedendo
seu lugar.
— Podem continuar. — Peço, embora goste da sensação de ter todos segurando o ar dentro
dos seus pulmões, só por estarem em minha presença. — Qual o tema?
Dylan começa a circular os cálculos antes de me passar os relatórios, um a um, explicando a
incongruência na sede da Austrália. Os números não estão batendo.
As conversas retomam aos poucos, com uma nova dinâmica. Minha entrada adiciona um
elemento de autoridade e a equipe parece focada em entender a origem desse desvio. O problema
ocupa toda a minha mente pelo resto da manhã.
— E o convite? — pergunta Dylan, quando estamos saindo da sala.
— É para um ballet. — Conto, com um delicioso frio na barriga se formando. — Hoje, no
Ópera House.
Fitamo-nos com um sorriso no rosto, espelhado um pelo do outro.
— A minha garota nunca erra. — Conta vantagem sobre Cherrie.
E ele está certo.
— Cherrie Young pensa em tudo.
Fito vovô em uma das mesas da lanchonete e, imediatamente, procuro uma alternativa que
não envolva encará-lo, após todas as brigas que tivemos devido ao meu envolvimento com Ellie,
com ele me dizendo exatamente como isso acabaria. Não quero admitir que ele estava certo em
suas previsões.
— Acho que vou visitar a mamãe. — Giro os calcanhares para o lado oposto. — Vou
almoçar com ela.
Dylan franze o cenho.
— Tá. — Simplesmente concorda, sem achar suspeito, afinal é impossível pensar em ballet
sem lembrar dela.
Dancei ballet durante dez anos da minha vida e, diferentemente do hipismo ou da esgrima,
não foi “só” um esporte com que me ocupei.
Foi tão mais do que isso ...
Eu devia ter uns quatro anos quando vi minha mãe dançando ballet pela primeira vez. Ela
estava fazendo um cambré, e eu achei um máximo o quão alto ela esticava a perna. Tentei imitar
e ela me pegou no flagra. Charllote gargalhou deliciosamente — e ela não sorria muito — então
decidi fazer ballet com ela. Assim a faria rir todos os dias.
Não deixava de ser arriscado.
Meu pai e meu avô já a criticavam pela forma como superprotegia meu irmão, alegando que
ela afeminava o Dylan, então ninguém podia suspeitar que ela amarrava sapatilhas nos meus pés
e me ensinava a pisar na pontinha e dar pirouettes.
Os anos passaram e eu fui me desenvolvendo cada vez mais, mantendo o nosso segredo
intacto, como um ritual que deveríamos proteger a todo custo.
Então, de repente, eu já tinha praticamente a sua altura e segurava a sua cintura com firmeza
quando arriscava pequenos saltos, enquanto brincava que eu só precisava crescer mais um
pouquinho e dominaríamos os palcos com o nosso pas de deux.
Até o dia em que tudo mudou.
— Chegamos, senhor. — Avisa o motorista.
Peço que ele aguarde enquanto adentro o cemitério de Old Westbury, seguindo um caminho
perfeito até a lápide de Charllote Duncan. Preciso limpar com as luxas de couro a camada de
neve para ver a fotografia da sua deslumbrante beleza encher meus olhos de lágrimas, porém não
dou vazão a elas. Agacho-me em cima do gramado congelado, abro meu lanche e a lata de Coca.
— Vou em um espetáculo de ballet, hoje. — Conto, com um sorriso bobo surgindo em meus
lábios. — A propósito, também me separei de Ellie, então estou livre para sair às sextas a noite
sozinho.
Quase a ouço me perguntar o motivo de eu ter demorado tanto para visitar um espetáculo de
ballet, e as lágrimas que segurei há poucos minutos se tornam abundantes, escorrendo dos meus
olhos antes que eu tente evitá-las.
Quando mamãe morreu, pensar em dançar doía tanto que bloqueei tudo o que envolvesse o
assunto.
— Confesso que havia me esquecido completamente dessa parte da minha vida, até Cherrie
me dar o convite. — Limpo as lágrimas com o dorso das mãos. — Desculpe ter sido negligente
com algo que a senhora amava tanto. — Encaro o meu lanche e dou uma mordida. — Eu
também. — Admito, de boca cheia. — Eu amava e estou feliz de lembrar disso a tempo.
Colocar esses sentimentos para fora me deixa leve, então termino o meu horário de almoço,
prometendo voltar com as novidades sobre a noite.
Sinto-me um idiota por ficar empolgado com algo tão pequeno. Não é como se eu nunca
tivesse assistido um concerto ou uma peça de teatro — esse é um programa que faço pelo menos
uma vez no mês. Ainda assim, me sinto empolgado como se fosse pela primeira vez. Volto para
o escritório e acabo me distraindo nas reuniões da tarde, pensando em que roupa que vou usar,
como se não fosse apenas outro terno da minha coleção Schiaparelli.
Até mesmo hidrato a minha barba e passo nas olheiras um corretivo da NARS que Ellie
esqueceu de levar. Depois de três semanas chorando, esse show soa como uma noitada.
A princípio, não sei o que imaginar, não tenho ideia se é um convite do Bolshoi ou Royal, se
vou assistir Lago dos cisnes ou Giselle. Não pesquiso e nem pergunto para Cherrie.
Quero ser surpreendido.
E sou.
Definitivamente, não espero encontrar o The Metropolitan Opera House marcado para o
Jogo, porém o chafariz jorrando vermelho-sangue cumpre seu papel como um aviso silencioso e
ameaçador sobre o que vai acontecer essa noite.
Antes mesmo de adentrar, sei que sou o único convidado.
Não há funcionários do Ópera House na entrada. Reconheço os meus pelo terno com
gravata borboleta e os relevos das armas nos bolsos.
— Não deixe brechas. — Digo ao Coroado, que libera a passagem.
— Cavalheiro Duncan. —Me entrega uma lista de instruções feita do mesmo papel
aveludado que o do convite, porém decido ler quando me sentar.
Tudo parece tão silencioso, que nem consigo acreditar que vá ter algum tipo de show. Se não
fosse pelos funcionários passando de um lado para o outro, eu pensaria que está fechado.
O brilho sutil do lustre de cristal lança uma luz suave sobre as fileiras de poltronas vazias,
criando um jogo de sombras que me incentiva a escolher um dos lugares perto do palco na
plateia em vez subir até os camarotes, por mais luxuosos que sejam, com Coroados prontos para
me servir meus drinks favoritos.
A meia-luz sensual me convida a despir da minha moralidade, e as esculturas e ornamentos
assimilam-se a guardiões silenciosos de segredos como os que estou prestes a conhecer, não
contenho o sorriso que adorna meu rosto.
Como eu amo ser Sangue em Ascensão.
Sento-me no meio e ligo a luz do flash para ler o conteúdo do papel, mordendo os lábios
com a empolgação. Antes de começar, observo cada detalhe nas pontas, pois sei que tudo foi
meticulosamente pensado.
Parece antigo, mas não tenho certeza se é só um detalhe decorativo.

Meu coração dá um salto e eu preciso parar de ler, respirar fundo, enquanto tento
compreender o que essas Regras significam. Levo os olhos até o começo e releio tudo outra vez,
com as palavras se embaralhando na frente dos meus olhos.
Meus dedos, que seguravam o papel, começam a tremer involuntariamente, amassando-o em
resposta à minha reação visceral. Então percebo que há outra carta.
— Não pode ser verdade... — sussurro.
Um estalo leva toda a minha atenção para o palco no instante em que todas as luzes se
apagam. Quando a cortina finalmente se abre, não tenho dúvidas de que a boneca-russa é a coisa
mais valiosa que vou ver na minha vida.
Até ela começar a dançar.
O ESPETÁCULO

Dentro do figurino cravejado de brilhantes, a boneca-russa brilha acima da escuridão do


ambiente, guiando a luz do único holofote que reflete em seu belíssimo corset de joias raras.
Os seus giros e saltos arrancam o meu fôlego no primeiro segundo, hipnotizando-me ao
ponto de não conseguir tirar os olhos dela, preso em seus movimentos enquanto tudo dentro de
mim também paralisa para assisti-la flutuar sobre o cenário.
Céus, é como se essa mulher estivesse em estado líquido, cuja correnteza leva para o
caminho que a melodia de porta-joias a puxa, de um lado para o outro, em uma intensidade que
inunda o teatro com seu brilho magnífico.
Deslizo os dedos entre os lábios para garantir que não estou babando, embora tenha certeza
de que ninguém no meu lugar me julgaria, nem mesmo veriam.
Que idiota estaria olhando para qualquer outro lugar que não fosse o palco, enquanto a
estrela da noite brilha como se a única coisa que importasse fosse se encontrar na escuridão?
Na mais bela combustão.
Seu fogo me queima por dentro, ardendo em minha pele até os ossos, deixando minha alma
em chamas. Há algo sensual e magnético exalando da boneca-russa, quase espiritual.
Nunca quis tanto rezar de joelhos.
Começo a mover os pés em sintonia, e a única coisa que me faz permanecer na cadeira são
as malditas instruções.
Desvio o olhar da boneca para o papel no banco ao lado. Minha consciência me diz que há
algo estranho nesse faz de conta, porém a voz interna é abafada pela música que alimenta seus
passos de dança, sugando toda a minha atenção.
A ideia de permanecer sentado me corrói em uma lenta tortura.
Quero que ela faça essa magia comigo.
As instruções me dizem que, desde que eu não a espanque, posso fazer qualquer coisa, então
por que estou refreando os meus instintos?
Não sei até que ponto é cautela ou idiotice. Só dormi com duas mulheres em toda a minha
vida. Nunca transei com estranhas, muito menos pagando.
Mas eu pagaria por ela.
A bailarina deve estar ganhando muito dinheiro para esse show particular, sou apenas mais
um cliente. O que me intimida?
Ok... é claro que estou incomodado com a ideia de chegar em uma estranha, demorei quase
um ano para falar com Ellie. Beatrice não conta porque fomos namorados de infância.
Penso em como foi com Ellie.
Ela não entendia o porquê não me importava de passar noites inteiras observando-a, e
francamente, nem eu.
Nunca passava disso.
Tudo o que eu fazia era assisti-la, por que não é o suficiente para a bailarina?
Bastou ver Ellie pela primeira vez para saber que ela seria a minha boneca. E agora, cá estou
eu, com receio de me aproximar de uma Boneca de verdade.
Gesticulo para o Coroado no canto do palco me trazer uma bebida, porém as doses de vodca
têm um efeito contrário e me deixam ainda mais reflexivo.
A verdade é que eu não queria estragar tudo antes da hora, com Ellie, mas estraguei. Minha
vida está vazia agora, então não há por que me segurar diante de uma estranha que
provavelmente nunca mais verei.
Levanto-me e, magnetizado, me convenço de que só quero vê-la de perto, que mentira. A
carta deixou bem claro que a bailarina é delicada, e não pretendo quebrá-la, ao contrário, a ideia
de machucar algo tão belo, parte o meu próprio coração. Fazê-la ver estrelas não é o
suficientemente bom por uma noite?
Ela não é só uma bailarina fenomenal. Ela não está só cravejada em diamante. Ela também é
linda, mas não só linda, e sim a mais linda criatura que meus olhos já pousaram.
Tudo no seu rosto é delicado e grandioso. Seus olhos são redondos e expressivos, sua boca é
larga, apesar dos lábios médios, e o ossinho no nariz a torna ainda mais autêntica. Entendo o
motivo do valor dela ser imensurável, na verdade, essa palavra ainda é pobre para descrevê-la.
A luz dança em seus reflexos, criando um espetáculo de centelhas que se espalham como
constelações em uma noite estrelada com todo o brilho dessa mulher.
O frio da barriga que me acompanhou durante o dia me atinge com mais intensidade e, sem
saber direito o que estou fazendo, tiro os sapatos e piso no palco com as meias sociais pretas.
Experimento um relevé e sinto vergonha. Por sorte, a bailarina está de costas e não vê minhas
tentativas horríveis de fazer as posições com pés.
O fato é que não consigo esconder o sorriso por estar tentando, depois de tanto tempo. Sinto
o amor da minha mãe pulsar dentro de mim, feito um imã que me leva a bailarina, feliz por estar
aqui e por ter ganho o melhor presente do mundo em uma sexta que começou péssima e tinha
tudo para ser tão horrível quanto todos os outros dias que não consigo admitir.
Não sei o que fazer quando chego perto o bastante da bailarina para tocá-la, minhas mãos
estão suadas, a respiração apressada, o coração batendo tão descompensado que mal consigo me
concentrar na melodia, e ela está na minha frente.
Linda, linda, linda.
O corset é tomara que caia, expondo o desenho dos seus ombros enquanto ela ondula os
braços esticados, perfeitamente sincronizada com a música. A nuca se mantém elevada feito a de
um majestosíssimo cisne branco, decorado por colar largo de pedras preciosas, azuis e brilhantes.
Mais forte do que consigo raciocinar, toco seu ombro e deslizo os dedos pelos nós dos ossos
das suas costas, um a um. Sinto a dose de arrepio desfilar por sua dorsal à medida que percorro
os dedos pela pele nua.
O seu corpo se contrai com o toque no primeiro momento, porém ela não se vira. Em vez
disso, move o corpo na direção da minha mão, me convidando a ir mais fundo.
A consequência disso é meu corpo reagir antes que meu cérebro faça as sinapses necessárias
para eu pensar se é o momento, a adrenalina percorre como ondas por todo o meu corpo, se
alojando no meio das minhas pernas em um latejamento que me faz abandonar minha razão
pelos próximos segundos.
Subo a mão até a nuca e desço os dedos pelos fios escuros de cabelo que caíram do coque.
Continuo passando as mãos pelo corpo da bailarina e ela continua brincando, como se
tivéssemos todo o tempo do mundo.
Não temos. Tenho sede de vê-la.
Talvez ela leia mentes, porque dá um passo para trás, colando os nossos corpos, de alguma
forma, esse contato nos conecta a algo maior, como se nossas almas entrassem na mesma
frequência.
No instante seguinte, ela move a cabeça para trás, virando-se para mim.
O ar desaparece dos meus pulmões a medida em que vejo todos os detalhes do seu rosto,
como a proeminência nas maçãs do rosto e sardas translúcidas decorando o nariz.
Percorre seus olhos pelo meu rosto com a mesma atenção e, Deus, seus olhos...
O contorno das íris é em um azul-índigo que mancha o tom claro perto da pupila, assim
como a transparência das ondas se dissolve com o banho do mar.
Não é só a beleza neles que me enfeitiça, vai além. É como se ela me desse um vislumbre da
sua alma.
Tudo o que vejo dentro se resume a um azul triste.
Meu coração torce no momento em que seus olhos cruzam com os meus, é como se nossas
almas se encontrassem e se amarrassem em um nó indivisível nesse único instante.
Nas frações de segundos seguintes, sensações novas brotam de dentro de mim, um choque
térmico causado pelo frio na barriga junto ao sangue que ferve dentro da pele.
Desço as mãos até as suas, a rodopio uma vez para longe e depois a trago entre os meus
braços, pesando o toque sobre sua cintura. Ela entreabre os lábios para soltar a respiração de uma
vez, enquanto tento controlar as batidas do meu peito.
— Podemos dançar valsa? — peço.
Ela arqueia a sobrancelha escura e lembro da regra, mordendo a língua, atento as seguintes
reações dela.
Não passa pela minha cabeça que ela devolveria a pergunta.
— Por que valsa? — seu inglês possui um forte sotaque.
A boneca-russa deve ter perto de 1,80 de altura, porque sua respiração bate no meu pescoço,
arrepiando-me a cada segundo em que me lembra o quanto é de verdade.
Minhas mãos seguram a bailarina com delicadeza enquanto a guio em movimentos
cadenciados, torcendo para que ela não perceba o nervosismo nas minhas mãos trêmulas e
suadas.
— É a única dança que sinto propriedade em conduzir. — Explico e ela permanece em
silêncio, como se estivesse presa dentro da música. — Faz sentido para você?
— Sente necessidade em conduzir. — Repete, simplesmente.
Desço as mãos até o final da sua cintura e a puxo para mais perto, porém me arrependo no
instante em que a sinto se contrair com a proximidade, como se estivesse lutando para suportar
isso. Afasto o rosto.
— Treinei bastante para o meu casamento, — conto, na tentativa de deixá-la mais à vontade
— gostaria que visse que sou bom.
Ela não questiona se eu sou casado, apenas concorda.
Definitivamente não estamos na mesma sintonia e eu não sei se a culpa é minha ou da
música. Por mais que seus passos estejam perfeitos, na sincronia da melodia, a bailarina parece
tropeçar na conversa, como se não me ouvisse direito.
— Ty khoroshiy. — Murmura, distante, e balança a cabeça. — Desculpe, eu disse que você é
bom.
Então solto ela, peço licença e vou atrás das cortinas. Estalo os dedos para o Coroado mais
próximo.
— Abaixa a música, por favor.
— Não é recomendado, Torre.
Em vinte e três anos, é a primeira vez que um Coroado não me obedece de primeira.
— Não estou pedindo. — Ele engole em seco. — Abaixe um pouco, quero conversar com a
bailarina.
Pisca repetidas vezes, como se quisesse me dizer que a música é alta para não conversar
com a bailarina.
Encaro-o até que faça o que mando, então lembro das instruções. Comandos curtos.
Isso só torna a bailarina mais intrigante.
Na ponta do palco, ela continua dançando em seu mundo da lua. A única diferença que
parece ser consequência do volume é que os passos complexos deram espaços para delicados
tendus.
Talvez esteja no contrato dela que não deve parar de dançar, então tento uma coisa. Fico
frente a frente com ela, obrigando-a a pausar os passos.
— Olhe.
Obedientemente, observa o movimento que faço com o pé, deslizando para a frente e o
estendendo suavemente ao longo do chão, em outro tendu.
A Boneca-russa sobe o olhar até o meu rosto, cruzando suas íris com as minhas, e então
sorri, em câmera lenta. A postura, pelos próximos segundos, sai do seu script. Seu sorriso é largo
e intenso, desses que ilumina todo o rosto, com direito a dentes lindíssimos, brancos feito torrões
de açúcar.
— Você é bailarino? — seu timbre é sussurrado como um segredo compartilhado.
— Quase fui. — Admito. Meu semblante se entristece a medida em que penso no assunto.
— Um dia...
A resposta tem o efeito contrário e ela muda completamente, também fechando a cara. Torna
a mover intensamente os pés.
— Vamos beber alguma coisa? — sugiro, meio agoniado, e ela franze o cenho,
completamente confusa. — Vem — estico a mão e ela a agarra.
Quando sinto seus dedos magros se enroscarem nos meus, lembro que não posso levá-la
para o bar, a menos que eu queira que ela fique me olhando beber.
Peço para ela se sentar na ponta do palco e pergunto:
— Do que gosta de tomar?
Balança a cabeça, sem me olhar.
— Desculpe, eu não bebo.
— Suco ou água? — insisto.
Vejo faíscas se acenderem em algum lugar dentro dela.
— Eu não bebo. — Responde com firmeza, apesar da educação.
Coloco a mão na cintura enquanto decido se aceito ou contesto uma regra tão irrelevante.
— Tem cara de quem gosta de martini. — Arrisco, tentando decifrar os mistérios por trás de
seus olhos.
— Eu não bebo. — Corta, e se vira de costas, embora continue próxima, como se essa fosse
a única forma que encontrou de me confrontar.
Pego uma vodca, porém quando me sento no palco ao seu lado, não resisto e estendo o copo
na direção dela.
— Imagino que goste de bebida russa.
Nossos olhares continuam a batalha silenciosa, e a tensão no ar cresce, como uma corrente
elétrica que nos mantém conectados.
— Não. Bebo. — Mexe os pés incontrolavelmente.
— Por quê? — questiono, e o silêncio paira entre nós, tornando a atmosfera cada vez mais
densa. — Me diga o porquê.
— Tira a concentração da música. — Ela continua olhando para a frente. Fita de soslaio meu
copo e sussurra, sem voz: — e eu só bebo em tigelas.
Minhas pálpebras se levantam, refletindo genuína surpresa diante da reviravolta na sua
resposta. Agora eu quero ver.
— Se eu arranjar uma, você me acompanha?
Ela finalmente me encara, entregando um olhar cruelmente duro.
— Faço tudo o que você mandar.
Torna a balançar as pernas e os pés no vazio. O peso cede em meus ombros, pendendo-os
para baixo. Observo cada um dos seus detalhes de perfil, até as mãos adornadas com unhas
cravejadas, apoiadas no chão do palco. A mulher mais linda do mundo está bem do meu lado. O
pensamento me faz depositar minha mão em cima da sua.
— Eu só queria que você ficasse confortável. — Admito com a voz tão fraca que falha,
baixa. — Você dançou, deve estar com sede.
— Estou acostumada a não beber ou comer nada quando estou em sessão — não sei o
porquê isso soa tão doloroso, mas foi como um soco que eu não estava preparado para receber.
Levo o copo à boca, sentindo a frieza do vidro contra meus lábios. O odor nítido da vodca
invade minhas narinas com um aroma limpo e penetrante, antes de saborear o líquido cristalino
trazer uma sensação de frescor em minha língua, seguida por um calor suave que se espalha pela
garganta.
— Foi você que escolheu isso? — Ela não responde. — Ou decidiram isso por você?
A bailarina mexe tanto o pé que não sei como não quebra os dedos naquela sapatilha. Parece
doloroso.
— Me dê seus pés.
Ela obedece. A superfície da sapatilha brilha com diamantes meticulosamente encrustados,
como pequenas estrelas cintilantes adornando o firmamento do gesso.
Noto também o tom do dorso do pé brilhar com a meia-calça transparente, levando minha
atenção para as suas lindas pernas. Não há como não reparar no formato do joelho se destacando
com seus ossos, porém os músculos da panturrilha e coxas camuflam a magreza excessiva.
Começo a soltar o laço.
— Não vai me falar? — tiro uma das sapatilhas de ponta e tento agir como se não me
assustasse com o estado do seu pé.
Ele releva todos os machucados que ela tenta esconder em sua aparência impecável.
— Só se você mandar. — Soa cansada, me observando. — Faço tudo o que você mandar eu
fazer. — insiste.
Balanço a cabeça, rindo fracamente.
— Não quero que fale porque está sendo obrigada. — Preciso segurar o seu pé para que ela
pare com esses movimentos.
— Prefiro que me diga o que devo fazer em vez de me perguntar o que eu quero.
— Por quê?
A linha d’água fica cheia de lágrimas e ela abaixa o rosto, engolindo em seco. Apelo:
— Me diga o porquê.
Ela mantém a cabeça baixa.
— Não posso ter o que eu quero. — Sua voz sai chorosa.
O nó aperta em minha garganta, e o vazio fica nítido em cada detalhe, desde a expressão no
rosto dela até o ambiente ao nosso redor, que se tornou mais sombrio, carregado de tristeza.
Pergunto:
— O que você quer?
A bailarina avança sobre mim, invadindo minha boca com sua língua desesperada ao mesmo
tempo em que passa suas pernas ao meu redor e enrosca seus braços em torno do meu pescoço,
encaixando seu corpo no meu colo.
Com esse único movimento, ela me tem nas mãos, rendido. Sei que foi só uma tática para
me distrair, e eu odeio admitir que ela conseguiu.
Não consigo afastá-la, ao contrário, beijo-a mais, subindo as mãos até sua nuca para
intensificar o contato, puxando-a para mim, enquanto movo a cabeça, esfregando nossos narizes,
roçando nossas línguas com o sabor da vodca somando com o gosto da sua saliva quente.
Assumo o controle, deitando-a embaixo de mim, no chão de madeira do Ópera House,
dominando o momento com calma enquanto deslizo as mãos até suas coxas, acariciando-a ao
mesmo tempo em que a saboreio, como se estivesse provando um pote de mel. O mais raro.
O meu tesão inunda o nosso beijo em emoções e sentimentos que sequer compreendemos,
enquanto aperto sua cintura, mordisco seus lábios, chupo sua língua e devoro sua boca com
vontade.
Vagueio as mãos, da sua coxa até o centro das suas pernas, excitado com a ideia de também
melar meus dedos, e pressiono a pelve contra o seu corpo em um espasmo involuntário, mas não
encontro sua calcinha molhada.
Sua língua delicada brincando com a minha enche minha mente com cenas de nós dois nesse
palco, sem roupas. Esse corset brilhando no chão e essa gostosa sendo minha.
— Ah... — gemo, cortando o beijo, só para ver seu lindo rosto, antes de lamber seus lábios e
seu corpo inteiro.
Seu olhar é como um banho de água fria.
A Boneca-russa também me observa, mas, sinceramente, duvido que esteja sentindo algo
além do peso do meu corpo contra o seu. Seu semblante não está triste, contudo, ainda é
indiferente, como se enxergasse através de mim, feito uma parede de vidro que a permite
mergulhar para dentro de si mesma enquanto espera o tempo passar.
As instruções explicitavam que eu não poderia quebrá-la, mas a bailarina já é uma boneca
quebrada. Ela já está estilhaçada.
Dói ver algo tão lindo assim.
Acaricio suas bochechas com as costas dos dedos enquanto tento encontrar uma maneira de
amenizar o estrago. O toque a traz de volta e a sua reação é me fitar com o cenho franzido, como
se não compreendesse o carinho.
Como se não estivéssemos falando a mesma língua.
Então se inclina e sela meus lábios com os seus, lentamente, enquanto o seu olhar de oceano
me inunda. Meu membro rígido tenta me convencer a continuar, porque ela quer. Ela está aqui,
para mim.
Ela é tão boa em seduzir quanto em interpretar. Imagino que seja perfeita em outros papéis.
— Sabe o que é? — murmuro, pertinho da sua boca. — É que você é tão linda que eu só
quero te ver dançar.
Assimila lentamente.
— Quer que eu tire a roupa?
— Não. — Deslizo para o lado. — Quero que fique do jeito que está.
Demora um tempo para entender e, nessas frações de segundo, assisto sua pele do rosto
assumir tons furiosos de vermelho.
— Não preciso da sua pena. — Levanta-se depressa. — Não preciso que pegue leve, sou
muito boa no que faço.
Levanto-me também.
— Não tenho dúvidas disso. — Seguro um dos seus braços, mantendo-a perto, tentando
entender sua mente complexa, mais maravilhado a cada reação dela. — Mas posso fazer o que
quiser com você, não posso?
Nossos olhares se enlaçam e se engalfinham durante alguns segundos, enquanto nós dois
assistimos à disputa para ver quem vence. Se vão ser os seus azuis-escuros como o alto mar que
vai afogar a poeira tempestuosa dos meus castanhos, ou se é o meu furacão que vai devorá-la.
— Não pode fazer perguntas, mas a única coisa que fez, desde que chegou aqui, é me encher
de porquês irritantes. — Tenta se soltar em solavanco e eu a puxo para mim.
Por mais que eu não queira que ela perceba, não posso evitar. Meu coração dispara alto e,
com ela tão próxima assim, tenho certeza de que ouve as batidas, e o quão desestabilizado estou.
— Vou contar tudo ao meu Dono. — Ameaça.
Isso não me amedronta, ao contrário, irrita.
— Não acho que vai. — Desafio. Seu maxilar trava e eu penso que ela vai me golpear com
um soco no peito ou me empurrar, porém continua me analisando durante alguns instantes,
intensa e profundamente. — Não vai perguntar o porquê, bailarina?
Tenta se soltar de novo e, quando vê que não consegue, bufa:
— Por quê?
Nunca encarei tão fundo em outros olhos.
— Porque sua postura me diz que seus problemas têm a ver com ele.
Sorri em meio ao olhar de fúria, e eu vejo, claramente, o que em mim a desespera tanto.
A boneca-russa vai me enlouquecer, e eu, terminarei de quebrá-la.
Nunca mais seremos os mesmos.
FRAGMENTOS

Fogo representa beleza, fúria e renascimento.


No caminho para casa, observo o brilho do ouro da minha coleira enquanto me pergunto
como o tempo o deixou tão resplandecente. Lembro, como se fosse ontem, do dia que ele me
presenteou com essa joia. Na época, respondi:
— Está enganado. Fogo não representa renascimento, e sim destruição.
O motorista me fita pelo retrovisor e eu viro o rosto, fechando meu semblante. Do lado de
fora dos vidros escuros e blindados, observo Nova Iorque com o viés do sol da manhã, de um
sábado.
— É o que você acha, Kitty? — imito sua voz e, só de ouvi-la dentro de mim, bufo com
impaciência para o motorista, que buzina para o carro da frente. Penso no meu Dono, em
finalmente vê-lo. O frio na barriga faz eu me contorcer, encolhendo-me na cadeira.
Seu olhar é como o sol, e a cada segundo que me encara, ouço o crepitar das fagulhas
incendiando meu coração. Sinto o calor arder como febre por dentro da minha pele, avassalador
a ponto de me causar tonturas.
Sempre soube que ele me reduziria a ruínas...
Pressiono a delicada corrente contra a palma da minha mão e fecho os olhos, na tentativa de
impedir que o sentimento de culpa me atinja com seus golpes cruéis e diários.
Deito a cabeça na janela do carro, vendo a rua congelada. Há lixo em toda esquina,
ocupando cada meio-fio, excedendo acima das calçadas, atrapalhando os transeuntes, que
esquivam dos sacos e, ocasionalmente, esbarram, derrubando-os de maneira troncha. As
embalagens recicláveis são levadas pelo vento até serem atropeladas pelas rodas dos automóveis,
impassíveis à mercê do trânsito violento. Os que não estão tombados foram dilacerados por
cachorros e gatos de rua. Inclino o pescoço para ver dois cãezinhos, porém o carro vira.
Sei o caminho de casa, conheço a cidade toda de dentro desse Jaguar. As vezes sinto vontade
de andar pelas ruas feito uma pessoa normal e não uma Boneca na caixa, não há segurança para
me impedir e os porteiros nunca dizem nada. Também penso em fugir de verdade, deixar essa
coleira, o carro e tudo. Recomeçar de verdade, ser livre. No Alasca, talvez. Voltar para casa, na
Rússia. Meu coração dispara com a ideia, o que será que aconteceu com a casa da minha avó?
Rio comigo mesma, recusando a possibilidade, porque... Não, não, eu não saberia viver sem
o meu Dono. Ele é como o fogo e quando alguém assim te toca, você queima sozinha até virar
cinzas.
Abaixo a cabeça e evidentemente coloco a coleira de volta no pescoço, pensando no quanto
amei ganhá-la.
O caminho de volta não é a parte mais difícil, chegar em casa é. Não pelo que eu vou
encontrar — quero muito tudo o que me aguarda, meu estômago ronca só de pensar. Só que, para
alcançar tudo isso, precisarei andar.
Meus olhos se enchem de lágrimas no segundo em que piso no chão, fazendo-me levantar os
pés involuntariamente, tomar o fôlego para descer do carro e subir a escadaria da entrada. Não
sei se a culpa é das sapatilhas, mas sinto medo do momento em que vou tirá-las, porque com elas
meu pé fica comprimido o bastante para que eu não sinta cada um dos meus ossos latejando.
Contudo, no instante em que dou os primeiros passos, desisto de tentar.
Sento-me nos degraus para desfazer o laço da sapatilha e me pego relembrando daquele
Jogador acariciando os meus pés. Seu olhar me faz sentir o gosto das chamas e vem à minha
mente mil pensamentos de devastação e calamidade.
O mundo ao meu redor fica em silêncio, uma voz na minha cabeça me pergunta se era
fetiche e eu solto os meus sapatos com nojo. Um dos meus cisnes canta, levando a minha atenção
para a paisagem no meu vasto jardim.
Além da neve, a neblina é grossa e gélida, tornando a paisagem um gótico soft. Além disso,
o lago artificial na frente de casa umedece ainda mais o ar. Meu queixo está batendo, o frio
congela minhas orelhas, bochechas e nariz. Essa sensação me abraça, aquecendo meu coração
com memórias do meu passado na Rússia.
Na tranquila serenidade do lago aquecido, os meus cisnes iniciam sua melodia celestial. O
som, suave e gracioso, ecoa como trombetas de prata em uma sinfonia natural. Cada nota é uma
expressão lírica da beleza que flutua no lago, envolvendo o ambiente em uma aura de
encantamento.
Isso me dá forças para me levantar, apoiando as mãos nos corrimãos. Meus pés não pesaram
no palco, mas agora parecem carregar todo o peso do mundo, e eu não consigo andar três passos
sem parar, para tomar fôlego, pois cada toque no chão é um lembrete agudo da fadiga.
Os músculos dos meus pés protestam a cada movimento, como se estivessem gritando pela
misericórdia que não podem encontrar, e a tensão nos tendões que foram esticados ao limite
durante os relevés e os jetes me fazem gemer mais.
Isso me lembra de quando eu era principal do Bolshoi.
Eu amava grand jetés, pois quando meus pés tocavam o ar, sentia estar no céu. E eu queria
me elevar a outro nível, então jéte e mais outro, seguidos, em rodopios, giros e movimentos
perfeitamente sincronizados e encaixados, com emoção. Saltava e, embora estivesse dentro
daquele teatro russo, parecia estar na divisa entre a atmosfera e a terra, a arte e a realidade, a
leveza contra o peso.
A primeira sempre vencia a segunda, porque não existia peso algum em mim.
Minha alma era tão leve a ponto de fazer Rond de jambe seguidos de jetés e tendus com o ar
que me envolvia. Eu amava aquela vida, essa dor, mas estou com tanto ódio agora que me
encontro segurando o choro, preso na garganta, sem conseguir entrar na minha própria casa, com
uma dor tão forte me rasgando por dentro, ao ponto que mal consigo respirar.
Tomo coragem e alcanço a maçaneta, viro a chave, e encontro minha casa mais linda do que
nunca. Há muitas flores por todo o ambiente, entre os sofás com estofados em tecidos macios e
tons claros, entre as poltronas e nas mesinhas de apoio.
A casa está limpa e a mesa está ricamente posta com porcelana de primeira e talheres de
pérolas, complementando a beleza somada aos encostos altos e detalhes dourados adicionam um
toque de classismo.
Há uma bandeja de prata fazendo mistério quanto ao prato do dia.
É atum azul.
A carne escarlate do atum está habilmente cortada em finas lâminas, revelando uma textura
sedosa sobre um berço de arroz de grão curto. Acompanhando a estrela do prato, pequenas
pérolas de caviar adornam a apresentação, adicionando um toque luxuoso e uma explosão de
salinidade ao conjunto.
Procuro ao redor pelo responsável desse presente, e tento não demonstrar a tristeza por saber
que ele não veio pessoalmente conferir a boneca dele, outra vez.
Antes meu Dono vinha de qualquer lugar apenas me ver, porque eu era rara. Nunca pensei
que suas palavras pudessem ser apenas distração para que não percebesse sua investida de atear
fogo na minha sanidade, mas a cada aniversário me sinto mais esquecida, crueldade, porque eu
ainda sinto cada célula do meu corpo arder o nome dele.
Sento-me e coloco o guardanapo de linho do colo. Essa é a parte fácil.
A tigela está próxima a mim.
Hesito em despejar o conteúdo no lindo prato em uma tigela, perguntando o que vai
acontecer se eu comer, uma única vez, como uma pessoa normal. Ele vai perguntar:
— Você não quer mais ser a minha gatinha, Kitty? — sussurro em russo.
E eu vou querer me matar.
Já estou de cabelo preso, então só preciso abaixar o rosto. Não é difícil comer com a língua,
só é preciso ter paciência, e está tão bom que eu só me concentro no sabor, e no aroma do atum
que molha o meu nariz. Estar de barriga cheia é tão reconfortante que eu comeria outros vinte
pratos desse, se não viesse tudo contado. Então me lembro da sobremesa.
Sorrio, me levantando enquanto gemo de dor a cada passo.
Há uma caixa de chocolate belga em cima da bancada da cozinha. Devem ter uns quarenta
bombons decorados com pó de ouro, dentro de uma caixa rosa claro, de pelúcia. Pego a caixa e
subo para o meu quarto.
A primeira coisa que faço é pegar o celular na mesa de cabeceira e ver se chegou alguma
notificação no celular. Coloco no volume máximo, pois não posso perder o contato dele.
Levo ao banheiro, além dos bombons e do celular, o meu IPad.
Deixo tudo na mesinha de apoio da banheira francesa, enquanto torneira aberta a enche com
um ruído agradável que faz subir por um vapor quente e calmante. Tranco a porta, mesmo
sabendo que não há ninguém além de mim nessa casa, porque esse é o momento mais doloroso
em tudo o que envolve as sessões.
É quando eu só tenho a mim e preciso encarar as consequências do passado, no meu próprio
corpo.
Não posso fugir de mim mesma, preciso encarar meu próprio reflexo para retirar cada um
dos grampos presos em meu cabelo, enquanto lembro das vezes em que fiz isso rodeada de
outras bailarinas, e a gente conversava sobre os movimentos que errávamos e uma consolava a
outra.
Eu não errei nenhum.
Abaixo a cabeça com a intensidade da investida que ateia fogo na minha sanidade. As
lágrimas brotam dos meus olhos e eu esfrego uma mão na outra, em silenciosos soluços que
refletem o grau da minha exaustão. Fui perfeita, mas ninguém estava lá para ver. Ninguém nunca
está. Eles não se importam, nem sabem o que faço. Só querem me usar.
Exceto o Jogador dessa noite.
Encaro meu próprio reflexo assustado, com os olhos azuis arregalados e as lágrimas escuras
escorrendo por minha pele alva. De alguma forma, isso me deixa com ainda mais ódio, borrando
a visão, e eu me levanto, desabotoo e lanço o meu corset no chão, arranco a calcinha limpa e
entro na banheira. Afundo o corpo todo dentro da água, prendo a respiração e imerjo, afundando
completamente a cabeça.
É mais confortável assim, quando tudo o que escuto é o barulho da água abafando os meus
pensamentos. Começo a contar os segundos dentro da água, então tenho a sensação de que o
celular tocou, e emerjo de volta a superfície, imaginando que seja meu dono cuidando de mim,
temendo que eu me afogue outra vez.
Mas foi só impressão. Nada do meu Dono.
Ainda com as mãos molhadas, roubo um chocolate. O sabor do cacau inunda a minha boca,
me fazendo fechar os olhos com o prazer. Sinto cada neurônio no meu cérebro me implorar por
mais dessa sensação, seco as mãos com a toalha de apoio e pego o IPad.
Coloco minha playlist de coisas fofas — a maioria filhotes de cachorro, cabritinhos e mini
cavalos, menos gatos. E bebês sendo bebês. Uso a toalha como travesseiro e apoio a cabeça com
as mãos na borda da cerâmica, apoiado a tela em uma posição confortável para me anestesiar do
resto do mundo.
É o meu ritual de contenção de danos. Não importa o que aconteceu durante as sessões,
comer meus chocolates favoritos na minha banheira cor de rosa vendo animaizinhos e bebês
fofos e puros, me faz esquecer de cada um dos rostos dos homens que me tocaram. Sempre
funcionou.
Mas não estou conseguindo esquecer o rosto dessa noite.
As lágrimas inundam meus olhos. Não sei porque estou com esse aperto tão forte no
coração, é como respirar as mesmas partículas que me levaram à destruição, quando me perdi no
olhar do meu Dono.
Nesse instante o telefone finalmente toca e eu respiro fundo. Pego o aparelho e olho a tela,
me arrependendo do segundo que demorei para atender, observando o nome me chamar.
— Miau. — Faço, mexendo os pés dentro da água, limpando o nariz com as costas da mão.
— Minha Kitty. — A voz dele é um farol na minha tempestade interna, uma fonte de
conforto que dissipa qualquer nuvem de tristeza. — Como você está?
Sua pergunta é um gesto de preocupação, e quando ele sussurra com esse timbre tomado de
carinho, eu...
— Melhor agora. Miau.
— Desculpe-me não ir te ver pessoalmente, Deus sabe o quanto eu gosto de conferir cada
detalhe da minha Boneca-russa.
Lembro de todas as vezes em que ele deslizou seu dedo por cada centímetro do meu corpo.
Ele conhece cada sarda, cada pinta e cada pensamento da minha cabeça.
— Tudo bem. — Sorrio fracamente, sentindo as bochechas queimarem com a declaração. —
Miau.
— Tire fotos, Kitty. Eu quero ver como seu corpo está.
Sua frase reforça todo o seu cuidado por mim, me acalmando. Teve uma vez que um
Jogador me machucou e, no dia seguinte, quando lhe contei, ele saiu de casa e voltou com fotos
do homem morto, com o pênis arrancado.
Já conheci outras bonecas, mas nenhuma tem um Dono tão bom quanto o meu.
— Estou na banheira. — Explico, no mesmo segundo, tentando não tensionar cada músculo.
— Melhor ainda. Troque a chamada de voz por vídeo.
— É que...
— Não consegue fazer isso? — seu timbre calmo meu assusta e no mesmo segundo ligo a
câmera, concentrando a vontade de chorar em movimentos nos pés. Vejo meu próprio rosto na
câmera, com o rímel borrado e o cabelo bagunçado, e me odeio, com medo de ser abandonada.
— É que ele não me tocou, Dono. — Abaixo o olhar, sem conseguir olhar para a tela preta.
— Mas eu te mostro tudo. Miau. — Começo a descer a câmera.
— Espere. — Paro com o celular. — Me explique isso.
Sua ordem me causa a palpitação de quem sente muralhas inteiras se desmanchando com
toda frustração que arrebata o meu peito, intensificando os sintomas, medo se mistura à
desorientação, e desponta a dificuldade de respirar, tornando mais alto e insustentável o chiado
no peito, tremo tanto que não consigo manter a câmera na mesma posição.
— Eu fui perfeita, eu juro. Mas ele me obrigou a dançar a noite inteira, meus pés estão
doendo muito. Foi horrível... — Dou-me conta do que saiu da minha boca e ponho a mão na
frente. — Desculpa, é que...
— Tudo bem, Kitty. — Ele me acalma. — Eu gosto quando você diz o que está no seu
coração, assim posso te ajudar.
— Não quero que precise.
— Sei que não quer, por isso você é a minha favorita. Agora, precisa me dizer o porquê foi
tão horrível, se você nunca reclamou de nenhum jogador antes, nem dos que te machucam.
Não quero, preciso sair desse território antes de ser consumida pelas chamas, porém meu
cérebro insiste em me lembrar o quanto foi real, o reacender das fagulhas que estavam
adormecidas, com sua companhia.
— É que ele me machucou, Dono.
— O que ele fez?
Lembro dos seus curiosos olhos castanhos correndo por cada centímetro de mim, não de um
jeito sensual ou predatório, parecia perdido, mas, ao mesmo tempo, focado em fotografar o
máximo de detalhes que conseguisse, acariciando as minhas bochechas enquanto dizia que só
queria me ver dançar.
Penso por um segundo nas consequências do que pode acontecer com o estranho se eu
contar o que ele fez, o pior é que eu tenho as palavras exatas, na ponta da língua, no entanto elas
se recusam a sair. Não quero machucar o Jogador, mas estou tremendo dos pés à cabeça só de
lembrar de como ele fez eu me sentir e de como ele me fez lembrar de coisas que eu deveria
esquecer.
— Ele fez perguntas. — Limpo as lágrimas, chorosa. — Ele me encheu de perguntas. Foi
pior do que se me machucasse, Dono...
— Que perguntas ele te fez, Kitty?
Como vou explicar que mesmo não sendo nada demais, mexeram me feridas que eu escondi
a tanto custo? Detesto a maneira como fizeram algo chiar dentro de mim, me fazendo lembrar de
como era a minha vida quando eu era uma pessoa normal e não a única refém de um mundo
incendiário.
A consciência pesa tão forte que gasto a energia de mil dias apenas para ter forças de
empurrá-lo. Meu Dono sente minha necessidade e aguarda em silêncio pela minha reposta.
— Eu não lembro, está tudo embaralhado — digo e, tentando soterrá-las no fundo da minha
mente, coloco dois bombons na boca, fungando alto.
O silêncio toma conta da aura que nos envolve.
— E o que você respondeu. — Não é uma pergunta, é um comando.
— Disse que contaria tudo a você.
— Boa menina.
Sorrio entre as lágrimas.
— Kitty, me escute. — Subo o olhar para a tela, atenta. — Não posso dar xeque-mate nesse
Jogador, porque ele é muito importante para o Jogo.
Franzo o cenho, estranhando.
Conheço mais ou menos a hierarquia do Jogo.
Existe os Jogadores e existem as Peças. Os Jogadores podem morrer, Peças não. Jogadores
investem nas Peças, qualquer um pode ser, desde que tenha dinheiro. Peças não, elas são únicas,
nasceram Sangue em Ascensão.
— Pensei que apenas os mais velhos, como você, eram importantes no Jogo. — Minha voz
sai anasalada.
Seu sorriso transpassa a tela, entendendo que fiquei incomodada pelo meu Dono dividir esse
lugar de poder.
— É, mas o pai dele morreu antes da hora e ele recebeu a Ascensão mais cedo.
Tudo o que sei é que a Ascensão é sobre o que meu Dono me ensinou no jogo de xadrez.
Quando um peão atravessa o tabuleiro, ele pode escolher ser torre, bispo, cavalo ou rainha.
Acontece que é muito difícil um peão chegar na Ascensão. Apenas os melhores conseguem,
como o meu Dono.
E esse Jogador também?
— Escute, vou ver o que faço...
A força que preciso para terminar essa conversa se esvai. O peso preenche o ar com seu alto
grau de monóxido de carbono, e o medo me consome. Minha respiração é cortada pelos soluços
que se irrompem feito ondas instáveis.
Quando entrei no Jogo, ele me disse que, se eu dissesse que não, eu nunca mais precisaria
repetir aquilo.
Nunca usei nenhum veto.
— Eu não quero mais esse Jogador. — Digo, com mil pensamentos dopados por tantos
sentimentos de devastação e calamidade apoderando-se de cada neurônio.
Meu Dono parece desconcertado com meu choro, suspira tão fundo que o calor da
respiração atravessa a linha, fazendo eu me arrepiar com o poder da sua presença.
A tristeza me consome, deixando-me em carne viva, exposta na frente dele, já não sei mais o
motivo, choro por ser quem sou. Só eu sei o quanto queria poder recomeçar a minha vida e não
precisar conversar como um gato, tendo apenas o passado como companhia.
— Teve uma coisa que o Jogador perguntou, que me deixou assim... — Desabafo, embora
sinta medo da sua reação.
— O que ele perguntou?
E choro mais por saber que cada lágrima que mostro ao Dono sai suja de sangue por ser
extraída de uma ferida tão profunda e aberta, rasgada e incinerada. Choro até a fraqueza vencer,
até não ter força para nem mais uma lágrima e, entregando ao vento um dos poucos fragmentos
que restaram da minha alma, murmuro:
— Ele perguntou o que eu quero.
Meu Dono entende o porquê isso me perturba tanto.
— E o que você quer, Kitty?
Choro pelo quanto desejo poder sonhar com o amor ou ter alguém para fazer bebidas
quentes e assistir a vídeos de dança ao menos. As lágrimas molham o meu rosto, quentes antes
de gotejarem a água da banheira. Companhia, eu nunca tive isso, por que eu não posso ter? O
quanto quero poder refazer minhas escolhas e não ter destruído toda a minha vida por um único
erro.
— Me sentir viva... — Soluço tanto que mal consigo respirar.
— Tudo bem, Kitty. Vou providenciar um pouco de vida a você.
Assinto e encerramos a chamada. Vou dormir depois disso, para me recuperar da noite.
Enrolo-me nos meus edredons de algodão, sem previsão para me levantar — e sem vontade de
fazer isso — entretanto em menos de três horas, a campainha toca. Visto o roupão e desço
correndo, pois meu Dono não se comunica a essa hora.
É uma cesta.
Uma cesta com uma família de Cavalier King Charles Spaniels.
A mamãe, que se parece com a Lady de A dama e o Vagabundo, está deitada com elegância,
seu pelo macio e sedoso realçado por um laço delicado que destaca ainda mais sua beleza. Seus
olhos expressam a doçura característica da raça, enquanto ela olha ternamente para os pequenos
filhotes.
Ao lado dela, o papai exibe sua pelagem rica tricolor, preto, branco e caramelo, e suas
orelhas longas que conferem um charme irresistível. Ele observa atentamente os filhotes,
demonstrando um instinto protetor e amoroso.
Os três filhotes são a coisa mais linda que já vi. Cada um exibe as características marcantes
da raça, desde suas manchas distintas até as expressões travessas com esses enormes olhos.
— Oh, meus bebês... — suspiro em lágrimas, me ajoelhando para abraçá-los e beijá-los, com
o coração batendo tão forte que não escuto mais nada. — Vocês são tudo o que eu preciso... —
eles me lambem, com os filhotinhos pulando para morder os meus cabelos. — Vocês são a
minha nova família, sabiam? — sorrio, com os olhos cheios de lágrimas. — Eu vou cuidar de
vocês e vocês vão cuidar de mim...
E isso é tudo o que eu preciso.
BONECAS

Nem tento dormir quando chego em casa.


São sete da manhã e eu tenho duas horas até o Treino, então aproveito cada minuto para
recordar cada segundo do que vivi com a boneca quebrada, antes do Jogo começar.
Sábado é o dia sagrado dos Sangue em Ascensão.
É o dia em que dedicamos cada gota do nosso espírito ao Jogo e as alianças entre as Oito
Famílias, o que me anima um pouco. Talvez, se for cauteloso, posso conseguir algumas
informações sobre o que vivi.
Cherrie, definitivamente, me deve muitas respostas.
O problema é que, assim que chego na mansão do Rei, não encontro sua filha favorita entre
os presentes. Em vez disso, todos estão me aguardando com uma vibrante expectativa no ar.
Minha avó está na porta da entrada, no hall cercado por uma aura selvagem, como se a
natureza tivesse decidido compartilhar seu domínio com o esplendor arquitetônico Art Deco dos
Young.
Faz questão de abrir os braços para me receber.
Beirando os sessenta, a beleza dessa mulher permanece inalcançável, vovó tem os cabelos
loiros, na altura do ombro, é magra, com uma postura de bailarina e um pescoço de cisne, de
quem também fez ballet a vida inteira.
Todos os seus traços são delicados — o nariz faz uma curvinha, seus lábios rosados são
pequenos, desenhados, e todo o contorno do seu rosto parece feito à mão. Ela é clássica e
atemporal, fria e imponente como a riqueza das joias que usa.
Amo-a e a admiro tanto que meu peito dói.
— Estou tão feliz pela sua decisão, meu amor. — Acaricia meu rosto, a bochecha e a barba.
— De deixar aquela Mundana sarnenta e se juntar com os da sua classe.
Tomo sua mão e a beijo ternamente, quando crio coragem para dizer que mesmo assim não
quero Beatrice Harding, porque nada no mundo vai me fazer desejá-la como esposa.
Os Sangue em Ascensão não se casam por amor, se casam por aliança. O objetivo é proteger
o segredo do Jogo, garantindo que os recursos permaneçam nas mãos das Oito Famílias.
As alianças são organizadas pelos familiares quando ainda somos crianças, e meu destino
sempre esteve entrelaçado ao de Beatrice Harding. Nossa aproximação nunca foi natural e,
quando você dá peso a algo frágil feito o amor, ele quebra.
— Tudo bem conversarmos sobre isso em outro momento? — peço.
Ela afasta sua mão do meu toque e me devolve o olhar frio que fazem todos os jogadores
temerem A dama de ferro.
— Damon. — Faz uma pausa. — Nem tudo é como a gente quer. — Golpeia como um soco
no estômago. — Quanto antes você entender isso, mais fácil será para você.
É injusto. Estou tremendo.
Todo Sangue em Ascensão adora a possibilidade de poder duplo, é a base dos nossos
relacionamentos. O Jogo deve ser o ar que respiramos, mas, por algum motivo, me culpo todos
os dias, por não ser como eles.
A vezes sinto como se tivesse nascido quebrado, com algum defeito que me impede de ser
como todos os outros, por mais que eu deseje. Tento compensar sendo o melhor, acima das
expectativas e das suspeitas, me esforçando para que ninguém perceba essa fraude, obedeço
cegamente às Regras, enceno com perfeição, mas agora parece que minha mente se recusa a
continuar o teatro.
— Então me fala três coisas que eu realmente quis, vovó. — Ela engole em seco, porque não
há. Minha obediência é cega. — Tudo o que eu faço é pensando na senhora, no vovô, no Dylan e
no Jogo. A Ellie foi minha única escolha.
— Seu pai também só precisou querer uma coisa para ferrar o Tabuleiro, a sua mãe. E você
com a Ellie, aquele Zugswang[8]… Como acha que vai ser na próxima? — vê que pegou pesado e
alivia o olhar. — Damon, meu querido, o nosso universo, a nossa estrutura, — faz cerca com as
mãos — não permite ninguém de fora. A única mulher capaz de estar do lado de um Sangue em
Ascensão é uma Dama, somos treinadas para Jogar ao lado de vocês, Beatrice foi preparada para
você a vida inteira!
Significa que as Damas são uma de nós, diferentemente de Ellie, que eu aprisionei em um
mundo distante demais do que uma pessoa comum está acostumada.
Penso na bailarina. Ela está dentro do Jogo? Ela é uma de nós?
— Você precisa fazer o que for necessário, o que todos nós fazemos para proteger o que
temos de mais precioso, O Jogo. Sua cota de bobagens acabou, Damon. — Seu timbre me causa
um frio na espinha capaz de fazer a culpa me golpear como um trovão. — Não pense, nem por
um segundo, que você será como o seu pai.
Meus olhos se arregalam.
— Mas eu não quero ser como ele, vovó! — mesmo magoado, meu timbre é baixo e
respeitoso.
— Muy bien. — É o máximo que vou ouvir. — Fracasso por fracasso, prefiro morto.
Ouvir isso da minha ponte materna dói, ainda mais por pensar em como minha mãe nunca
diria isso. Mas ela não está aqui há muito tempo, então engulo em seco, com a decepção me
lavando por dentro ao ver minha avó me dar as costas e voltar ao saguão do Jogo sozinha.
— Eu não vou ser um fracasso! — contesto, ela vira a cabeça e me fita com um olhar de
quem só acredita vendo, fortalecendo o meu desejo de provar que serei diferente.
É com esse sangue nos olhos que passo pela porta.
O monstruoso relógio em toda sua extravagância, revestido de prata e ouro apimenta a
decoração clássica e refinada do saguão do Jogo. A luz fraca torna a madeira escura mais
atraente e subliminar, escondendo os pequenos arranhões que não puderam ser cobertos com os
tapetes de peles de animais exóticos que separam os lounges.
O luxo, aqui é o melhor amigo da violência.
No ar, o perfume de batida mistura-se ao do poder que exala dos membros, homens e
mulheres, trajados com elegantes ternos e vestidos caros. Encontram-se nos mais distintos
espaços, cada um em sua panelinha, alguns aconchegados no veludo dos macios sofás, outros
confortáveis no couro legítimo dos estofados...
Quase vejo o sangue exposto nas poltronas.
Em suas mesas, apreciam tanto o jazz ambiente quanto os apertos de mãos ambíguos,
bebericando bebidas desenhadas em porcelana de primeira e aperitivos antes do brunch.
— Palavra-passe ou você morre. — Uma voz masculina murmura em meu ouvido, com
braços envolvendo o meu pescoço em um mata leão.
— Caia aos meus pés, e me reconhecerá. — Uso a palavra-passe de Zaki Isakai, que me
solta e me empurra levemente, sorrindo em cumprimento.
Do outro lado, Cartier Kühn me acerta uma leve cotovelada na costela. Meu irmão está logo
atrás.
— Cadê a sua mulher? — indago no mesmo segundo, aguardando qualquer reação de
alegria do rosto dele.
Ele simplesmente balança a cabeça.
— Não consigo contato com ela desde ontem.
— Cara, ela está muito estranha. — Zaki se intromete. — Não sei, não...
— Será que é a Europa? — indago e Dyl aponta com o olhar para Cartier, em um pedido
silencioso para não tocar nesse nome perto do Kühn.
Acontece que Cartier tem um relacionamento sério com a versão malvada de Cherrie, e
Dylan, pelas olheiras no seu rosto, está aterrorizado com a ideia de perder a namorada.
Os dois são completamente opostos. Dylan é homem mais santo que conhecemos, do tipo
que deu o primeiro beijo com vinte e um anos, e que transou com vinte e três, e em ambas as
ocasiões, Cherrie partiu para cima.
Já a escuridão de Cartier é uma sombra que reluz, brilha e confunde, mas que está, no fundo
do seu olhar, cintilando com uma clareza assustadora.
Ele é alguns meses mais velho que eu, mas ainda não me acostumei com o fato de termos
algo em comum. Cartier vem de uma família odiada por todos dentro do Jogo, ele é um Kühn. A
lista de definições para eles só piora a cada geração: psicopatas, nazistas, sectários, assassinos...
Cherrie também tem sangue Kühn, mas é apenas o de Europa que revela toda a maldição da
sua genética.
— O que aconteceu? A noite não foi boa? — Dylan adivinha pelos meus traços, trocando de
assunto.
— Que noite? — Zaki indaga, abrindo um sorriso de fofoqueiro.
Cartier me puxa, virando-me de costas para os dois.
— Segredos de Peça Forte. — O Kühn pisca com soberba, fazendo o meu semblante se
acender.
Assim como recebi a Ascensão e me tornei Torre em meados desse ano, Cartier foi
ascendido à Bispo. A principal razão da minha Ascensão foi a aposentadoria do vovô, que, sem o
meu pai, me deixou na mira um pouco cedo.
Já Cartier é o único herdeiro da casa Kühn. Não sei o que aconteceu — e os mais velhos não
contam, — mas, por algum motivo, seu pai e seu tio ganharam o exílio do Rei, George Young.
Aos vinte e um anos, o loiro de olhos âmbar, pele dourada e ombros largos já ocupava a mesa
dos mais poderosos.
E desde que me tornei Torre, estamos mais próximos. Depois de uma vida inteira como
Peão, obedecendo e assistindo, é bom tê-lo me ensinando a participar ativamente no Jogo. Sei
que posso perguntar o que quiser.
Ele sabia de tudo antes mesmo da sua Ascensão.
— Cherrie te contou alguma coisa?
Ele sorri largamente.
— Seu irmão contou do convite, então liguei os pontos.
Nunca sei o que esperar do meu amigo, tudo o que envolve sua existência são segredos em
cima de segredos, mas sei que ele não é tão ruim quanto faz todo mundo acreditar. Já o vi
fazendo coisas boas, vezes o bastante para não colocá-lo no mesmo patamar que os membros da
sua família.
— E o que foi aquilo? É parte do Jogo?
Ele para de andar e fica frente a frente comigo.
— Quer mesmo saber?
Balanço a cabeça, assentindo energicamente.
Cartier olha os dois lados, observando a movimentação das Peças e me puxa pelo braço,
atravessando os extensos lounges até a outra parte da casa, e meus olhos encontram com os de
Beatrice.
Beatrice não é só uma pessoa que cruzou o meu caminho, é o caminho que eu busco quando
estou exausto de procurar sentido em outros. O que sinto por ela não é carnal, é simbólico. Sou a
minha pior versão com ela, e esse é o problema.
Com ela, sou como meu pai.
Mas, às vezes, a parte assustadora de não ser como nossos pais é de nos tornar pior do que
eles.
— O que você quer? — Cartier indaga, no segundo em que atravessamos a porta, sentindo o
contraste gélido do ar externo queimar a via respiratória.
— Que me conte o que foi aquilo, sobre as “bonecas” — devolvo, direto, enquanto
caminhamos os corredores externos da casa-floresta.
— Não. — Revira os olhos, de um jeito que me irrita, virando uma das fachadas. — O que
você quer da sua vida, Duncan?
Minha atenção é sugada para a movimentação atrás de Cartier, e ele dá um passo para trás,
revelando a amante de George Young na piscina, enquanto todos estão ocupados com o Jogo,
dentro da casa.
Dentro de um biquíni minúsculo, a jovem mulher aprecia a piscina aquecida ao lado de uma
caixinha de música que toca Cola, da Lana Del Rey, enquanto fuma tranquilamente o seu
cigarro.
Desvio o olhar dela para o loiro, que mantém as sobrancelhas levantadas, aguardando pela
resposta.
— O que eu quero? — pergunto, criando coragem para admitir algo tão bobo. — Amor?
— Não, você não quer amor. — Meu sangue esquenta com a sua arrogância ao achar que
sabe mais sobre mim do que eu mesmo. — Se você quisesse amor, estaria satisfeito com o da sua
avó. — Reviro os olhos e ele aponta para a Scarlet. — Você quer uma mulher.
Lembro da silhueta da noite passada, dançando e me envolvendo como uma fogueira que
incendeia tudo ao redor.
— Talvez. — Admito.
Ele ri consigo, observando minha reação.
— A minha dúvida, então, é: por que não pode ser qualquer uma? — direciona minha
atenção para o caminho de volta ao saguão. — Qualquer uma iria te querer, e você pode ter
qualquer uma. A Beatrice é uma grande gostosa, por que não pode ser ela? — faz uma pausa
antes de continuar o seu argumento. — Os Harding são 66 bilhões mais ricos que os Duncan,
231 para 147 bilhões. Com as duas empresas debaixo da sua direção, e o EuroOásis no seu colo,
você atingiria outro patamar, poderoso pra cacete. Por que não ficar com a Beatrice? O que você
quer, cara?
Vem à mente a bailarina me encarando com seus olhos azuis tempestuosos, violentos como
ondas de um mar revoltado com o vendaval que se arma acima de si, levando tudo consigo.
Quando a confrontei, ficou tão indignada comigo assim como as águas profundas de um oceano
ficariam por serem evocadas a emergir à superfície. O que ela esconde de tão perigoso bem no
fundo?
— Quero alguém especial! — solto com angústia. — Eu nunca quis qualquer uma, Cartier,
eu quero sentir tudo aquilo o que dizem...
Cartier estala o dedo, denunciando que chegou ao ponto que queria.
— As pessoas acham que sempre vão ficar contentes quando conseguirem a coisa que tanto
desejam, mas a verdade, Dam, é que nada nunca vai ser o suficiente. — Ri consigo mesmo. —
Somos gananciosos, é da natureza humana perseguir o que não se pode ter. E ainda somos
Sangue em Ascensão. — Faz uma pausa antes de adentrar mais fundo em seu argumento. —
Quando homens tem o poder de ter tudo nas mãos, até a mulher mais bonita ou a mais inteligente
não vai ser o bastante. — Levanta o braço, chamando a atenção de Scarlet. — Homens como eu
ou você sempre vão querer algo especial, Damon.
Scarlet sorri enquanto nos cumprimenta de um modo sexy com o cigarro entre as longas
unhas vermelhas, stiletto. Seus cabelos castanhos, lisos e longos, estão presos em um coque alto
meio Priscilla Presley, e, quando ela tira os óculos de sol, revelando nos traços de Bonequinha de
luxo um olhar sanguinário, fica bem claro o motivo do Rei do tabuleiro a tratar como bibelô
favorito.
— Veja George. — Cartier encara-me outra vez. — Madeleine Kühn é tudo o que George
Young precisa, eles se completam. A emoção dele complementa a razão dela. Ainda assim, ele
quis a Scarlet, por quê?
Rio com a verdade que todos os Sangue em Ascensão fofocam.
— Scarlet é ninfomaníaca.
— Vamos lá, Damon. — Aponta e me vira novamente para ela, que, agora, faz charme,
adorando estar sendo observada. — Ela é bem mais que isso, ela tem algo especial. — Murmura,
fixo na garota. — Todos pensam que a função do Rei é ser servido, mas a obrigação dele é servir
e garantir o melhor aos seus súditos. E quando os súditos têm tudo, um bom soberano vai
perseguir o que há de mais especial para oferecer à sua corte.
Meu queixo cai aos poucos, à medida que assimilo.
— Mulheres? — questiono, sem ter certeza de que entendi onde ele quis chegar. — Ele vai
perseguir mulheres para dar a eles?
Estala os dedos.
— Mulheres especiais. — Corrige com um sorriso safado. — Ou, Bonecas...
Não sei se meu coração está disparando mais com a informação ou com a vibração da batida
que sai da caixa de som de Scarlet.
— Mas... Cartier, — toco no seu ombro, sério. — Ela não parecia bem. Ela estava triste
demais.
Cartier solta uma risada fraca e estala os dedos outra vez.
— Scarlet, vem cá!
Assistimos, em câmera lenta, a morena sair da piscina. Seu biquíni cortina fica um absurdo
em seu corpo cheio de curvas. Scarlet é uma mulher pequena, com pouco mais que um metro e
meio, o que torna os aspectos do seu corpo ainda mais avantajados. Não há como não reparar
seus peitos enormes — e naturais, — em sua cintura fina e na sua bunda redonda, tudo sempre
marcado em roupas curtas e vermelhas.
Fazem uns sete anos que Scarlet veio morar com os Young, horrorizando outros Sangue em
Ascensão com a sua presença escandalosa. Ninguém nunca entendeu o porquê George trouxe
uma mulher desse naipe para dormir na cama que divide com uma Dama Legítima.
Mas ninguém nunca chamou Scarlet de Mundana. Ninguém nunca atentou um A contra ela,
diferentemente do terror que causaram em Ellie.
Estou começando a entender.
— Scarlet, ontem o Damon brincou pela primeira vez com uma Boneca.
A morena sorri maliciosamente. Está muito frio aqui fora, porém ela parece não se importar,
desde que Cartier continue a fitando obscenamente.
— Perdeu o cabaço, foi, bebê? — fita-me dos pés à cabeça com o sorriso safado, me
deixando roxo de vergonha. — O que achou? Doeu?
— Ele quer saber se todas as Bonecas são tristes. — Cartier põe lenha na fogueira.
A primeira reação da morena é colocar a mão na boca, soltando um riso sincero, que se abre
em um sorriso largo a ponto de mostrar todos os dentes. Então ela me fita com as pálpebras
levantadas, exibindo os grandes olhos verdes de bambi.
— Tristes? — passa a língua lentamente entre os lábios, e deita a cabeça com um olhar de
pena.
Quando vê que não vou responder, suspira fundo e, balançando os cabelos, toma a iniciativa
de me tocar, primeiro no braço, deslizando a mão até meu pescoço e a barba.
— Olhe para você, Damon Duncan. — Sua voz sai estilizada, meio gemida. Com a outra
mão mexe no meu colarinho. — Sempre tão lindo, tão arrumado, todo engomadinho, posturado.
Você é um príncipe, sabia? — À medida que fala, fica mais evidente o seu sotaque grosseiro de
Los Angeles. — Você realmente nasceu em um berço de ouro, duvido que já tenha andado pelo
Brooklyn sem o carro, ou ido a um mercado qualquer, simplesmente para comprar comida. Você
já foi em um supermercado ou qualquer outro lugar normal, sem seguranças e uma equipe
correndo atrás e te cercando?
Fico em silêncio.
— Eu já. Eu cresci indo roubar comida no Waddel-mart, porque a vagabunda da minha mãe
me deixava passando fome, para comprar pó. Aí eu descobri que pó também tira a fome e
adivinha? — ela simplesmente enfia o dedo no nariz, e ele afunda, onde ela mexe de um jeito
que desvio o olhar de agonia. — É, a cartilagem foi totalmente corroída. — Desvia o olhar,
abaixando a cabeça, distraída. — Eu me prostituía 24h por dia e continuava sem um puto no
bolso, porque gastava tudo com cocaína. — Então seu timbre muda, sério. — Isso sim é triste,
Damon. Sabe o que mais é triste?
Solto uma risada sem graça, sem saber o que responder. Sei que o mundo é cruel, mas
nenhuma dor diminui a outra. Orgulhoso, indago:
— O quê?
— Se foder igual a um filho da puta o mês inteiro, da hora que acorda a hora que vai dormir,
e ficar feliz porque conseguiu ir ao mercado comprar o básico, como cereais Duncan, ovos da
granja Duncan, bacon Duncan, aveia Duncan, arroz Duncan… — perco a postura com seu
argumento baixo. — Até enlatados Duncan, porque a marca de vocês tem o melhor preço nas
prateleiras. — O meu maxilar se contrai. — E ficar passando mal o mês inteiro, porque é tudo
uma porcaria ultraprocessada, cheio de sódio e açúcar.
Mudo o peso de uma perna para a outra.
— São ultraprocessados para serem mais baratos, — justifico com o timbre grave. — São
baratos para a massa conseguir comprar, e assim ninguém passa fome! — protesto. — Eu
alimento esse país, você sabia?
Cartier começa a rir da minha reação e ela também o acompanha.
— Você já comeu alguma coisa Duncan, príncipe? Você come algum insumo que produz?
Ela entende o meu silêncio como não e puxa a minha gravata, trazendo-me para perto da sua
boca, fazendo-me analisar de perto todos os detalhes do seu rosto esculpido.
— Você não faz ideia do que é tristeza, príncipe. Você vive em uma redoma de luxo e poder
e não faz ideia de como é o mundo real, muito menos do que é a tristeza.
Penso em minha mãe.
— Eu sei o que é tristeza. — Não vou deixar ninguém me convencer do contrário. — Eu já
vi. — Lembro dos olhos da bailarina. — Vi nos olhos dela a tristeza.
Ela parece quase irritada.
— Você não faz ideia das merdas que passei e do quanto me fodi até o Rei me encontrar em
uma caçamba de lixo, — ri, balançando a cabeça, com os olhos brilhando. — Porque era isso o
que eu era, lixo, e o Jogo me transformou em ouro! — Estende os braços, exalando sensualidade.
— Olha para mim, Duncan, meus únicos compromissos se resumem a ficar gostosa e trepar com
o homem mais gostoso desse mundo, pareço triste para você?
— Você não, mas...
— Eu vou dar a minha boceta a todos os Jogadores que meu Dono quiser, e em cada foda eu
vou ser mais feliz do que na última, e vou ser mais puta, para mostrar, todos os dias, quão grata
sou pela honra de servir ao Tabuleiro e fazer parte do Jogo. Entendeu?
Eu e Cartier cruzamos olhares, completamente embasbacados com a mentalidade dela.
— Hey, papai. — Ela acena para alguém atrás de nós, sorrindo, toda derretida.
Um arrepio percorre minha espinha, e meu coração bate descompassado no peito. Sua
majestade, dentro do casaco por cima do terno, emana uma aura de autoridade e poder da qual
nunca vou me acostumar.
— Oi meninos. — George tira o casaco para cobri-la, envolvendo-a em um abraço enquanto
nos entrega seu sorriso caloroso. — O treino vai começar. Damon, a pauta hoje é o EuroOásis.
O medo se instala profundamente, como sombras escuras que envolvem meu ser. Sua barba
por fazer e os cabelos que mesclam uma paleta de tons despigmentados, desde grisalhos-
acinzentados até brancos alvos, tornam o quadro da sua aparência uma pintura fria e calculista.
Adorada.
— Claro, Rei. — Assinto com a cabeça baixa, pois o desejo de desagradá-lo pesa sobre
mim, como uma nuvem.
Então encara a sua Boneca, não bravo por ela estar quase pelada na nossa frente,
preocupado, quem sabe até meio orgulhoso.
— Vai ficar resfriada, Bunny. Está frio.
Scarlet dá um gemidinho.
— É que eu estava contando para o Damon como é bom ser toda sua, papai.
Então ele volta sua atenção para mim, como que se lembrando de algo. Desce a mão até a
bunda de Scarlet e diz:
— Vá vestir algo quente, depois pode ir ao Saguão ficar com as Damas.
Ela bate palminhas.
— Posso, papai?
— Você merece, baby girl.
A garota dá pulinhos de alegria enquanto o abraça. Sai correndo, acolhida ao casaco dele
como se estivesse entorpecida com o cheiro.
Então George Young nos encara, e somos só nós.
Cada fração de segundo desse silêncio parece carregar consigo o eco de expectativas
imensas, uma ansiedade palpável que se espalha pelo ar.
— Gostou do presente? — pergunta com um timbre profundamente amoroso, de pai.
Coloco as mãos no bolso, tentando não dar vazão à aflição que é estar com a atenção do Rei
voltada a mim.
— O senhor sabe?
Sorri afavelmente, pondo a mão no meu ombro, de um jeito que me faz segurar o ar dos
pulmões enquanto me martirizo pela pergunta idiota.
É claro que ele sabe.
O Rei sabe de todos os segredos.
— A bailarina foi uma escolha perfeita. — Minha mente clareia com a ideia: — se possível,
gostaria de vê-la mais vezes.
Ele me fita de cenho franzido e eu tenho a sensação de que todo o ar escapou do meu
pulmão.
— O que disse? — Meu coração dispara com o tom da sua voz. — Bailarina?
— É...
Nada nunca sai do controle do Rei, por isso um simples movimento e Cartier parece fora de
si, segurando em meus dois braços para ficar cara a cara e me fitar com uma profundidade que
me apavora.
— Damon, você não está entendendo. Não temos bailarina no catálogo.
CAVALO DE TROIA

É curioso como até a cor dos olhos George Young consegue manipular a seu favor, às vezes
ele me fita com seus verde-oliva e o verde é caloroso, vivo e afável, e em outros momentos,
como agora, eles são tão frios que não tenho dúvida do quanto podem cortar.
— Qual o nome dela?
A atenção do monarca parece penetrar minha alma, rasgando por dentro a sensação que me
impede de dar com a língua nos dentes, e então me dou conta de que estou com medo de
responder, como se a bailarina quebrada fosse um segredo do qual magicamente ganhei acesso,
um portal para outro mundo que tive a sorte de atravessar.
Vou proteger o meu segredo mágico.
— Não estou entendendo. — Desvio com um sorriso no rosto, desviando o olhar dele para o
de Cartier, que me devolve um semblante de indignação. — O senhor não sabe quem é ela?
Ouço loiro bufar enquanto me dou conta da minha estupidez. Não se dá a entender para a
pessoa mais fodidamente controladora do universo, que ela não está ciente de qualquer vírgula
que apareceu no caminho.
— Qual foi o nome da sessão, Damon? — Damon, não Torre. Damon de “eu te conheço
desde bebê, estive aqui cuidando de você desde a morte do seu pai, sempre te dei tudo, e agora
você vai me dar a informação que eu quero, porque é assim que as coisas funcionam e não estou
gostando da demora.”
Sinto a pressão do silêncio lutando contra a obrigação de falar, e a tensão no ar é palpável. A
reverência diante do Rei se mistura ao temor de desapontá-lo, criando um turbilhão de emoções
que me consome enquanto permaneço fitando-o, ouvindo minha voz interna me impedindo de
dar o que ele quer, enquanto não souber o que Cherrie aprontou.
— Não lembro, para ser sincero.
George Young me devolve o olhar de quem está lendo a minha alma, ciente do meu
fingimento ridículo ao coçar a nuca, tentando soar confuso.
— E a aparência? — pelo timbre, está perdendo a paciência. — Ou vai me dizer que come
uma mulher gostosa de olhos fechados?
— Qual era a cor dos olhos? — Cartier ajuda a pressionar, tão angustiado quanto eu.
— Azul. — Revelo, porque deve haver outras bonecas de olhos azuis.
— Bailarina de olho azul? — A pergunta de George é curta e objetiva. Não tenho para onde
correr, nem para quê fazer isso. Ainda assim, mordo os lábios e, nessa fração de segundos, crio
coragem para confirmar e me ver livre da presença dele.
O ambiente se torna um espectro de emoções contidas, um teatro de sombras onde o medo e
a reverência se entrelaçam, criando uma sinfonia silenciosa de suspense que paira no ar como
uma nuvem densa e impenetrável.
Então alguém grita na nossa direção:
— Cherrie voltou!
Todas as poucas vezes em que vimos George Young expressar reações verdadeiramente
humanas e não simulações reais o suficiente para nos cativar e envolver, tiveram a ver com ela.
O exemplo mais marcante teve a ver com Europa surgindo pela primeira vez, colocando a
vida de Cherrie em risco e obrigando o Rei a ceder as vontades de uma criatura irrefreável.
Nenhum Sangue em Ascensão vai se esquecer do dia em que todos vimos George abaixar a
cabeça e chorar em soluços agudos e intensos, com o diagnóstico da sua filha. Não pelo TDI em
si, mas pelo que esse transtorno significa.
Cherrie Young foi quebrada tão fundo ao ponto de se fragmentar em duas.
Ele jurou que não morreria até encontrar o culpado, e agora é imortal.
Por isso, nesse momento, quando ouvimos que Cherrie finalmente está em casa, no lar onde
ele pode cuidar e proteger sua preciosa filha, George suspira profundamente, saindo da sua
postura enaltecida. Olha para o céu e murmura:
— Graças. — Quando volta a atenção para mim, tão aliviado com o assunto que todos os
outros parecem irrelevantes. Coloca a mão no meu ombro e esclarece: — Depois a gente
conversa.
Cartier tampouco parece se importar com o que aconteceu, em vez disso segue George,
igualmente desesperado para ver a francesa, fazendo-me segui-lo com a mesma agonia até o
saguão, onde encontramos ela.
Cherrie, a personificação da cereja, o ingrediente mais doce do bolo. Cherrie, o momento
mais esperado da sobremesa. Cherrie, a parte mais divertida da festa. Cherrie, que obriga todo
lábio a se render ao charme de formar um biquinho sempre que ousar chamá-la.
Dentro de um vestido rosado, as duas versões da minha amiga brigam por espaço dentro da
minha mente e coração. O que tem de pérfida tem em beleza, e sempre foi, de longe, a mais linda
do nosso círculo social. De todos os traços moldados, o que chama a atenção são seus olhos
verdes, persas como os do pai, que remetem a folhagens raras. Sofisticada e selvagem, atraente e
perigosa como uma flor carnívora.
Ela é diferente. Ama estudar, de história a geometria, porque sempre converte o assunto em
uma estratégia nova para ganhar vantagem em algum jogo. Tabuleiros, cartas ou nossas cabeças,
Cherrie Young é a melhor em todos os jogos que existem na terra.
Ninguém chega aos pés dela.
Nem mesmo o pai.
A prova disso é que todos estão a adorando como imagem canônica, sem perceber que estão
sendo fantoches ao tratá-la como uma filha querida. Uma garota bonita é como música, e Cherrie
se aproveita do jazz que entona uma melodia ambiente para dançar em cima das tradições
Sangue em Ascensão, em forma de palavras bem escolhidas e frases tão bonitas quanto a
aparência dela.
— Mon Chouchou. — Embalando as curvas do seu corpo em um vestido de babados que
acentua seu tão característico charme inocentemente suspeito, lança-se em meus braços, manhosa
e carente.
No entanto, no momento em que vou abraçá-la, George a toma de mim, sem conseguir
esconder seu ciúme parental. Ele fecha os olhos enquanto a abraça forte, murmurando coisas que
a fazem sorrir, retribuindo o carinho. Todos no saguão parecem maravilhados com essa
expressão de amor pública. Então eles se fitam, em completo silêncio, e permanecem nesse
diálogo por algum tempo, como se tivessem acesso a alma do outro.
— Que bom que veio para a casa. — Ele beija lentamente a testa dela. — Mais um dia e eu
ia te buscar da casa daquele desgraçado.
— Querido, nós sabemos que você o ama, mas foi você quem o exilou do Tabuleiro. —
Madeleine, a mãe de Cherrie, intervém, cumprimentando a filha com um beijo curto, e todos
riem.
George me fita e a abraça. Encarando-a, indaga:
—Vamos começar a Partida?
Cherrie acena enfaticamente.
Adentramos em outra sala e George Young ocupa seu lugar à mesa, na ponta, ao lado do seu
filho primogênito, George Jr., que me observa em silêncio. Na estrutura aristocrática nova-
iorquina parecemos iguais em potência, porém dentro desta sala, entre as quatro paredes do gesso
mais puro, decorados com a boiserie mais bem trabalhada, cada peça tem sua posição, e todos
ocupam seus lugares já estabelecidos. Menos Cherrie, o caos vestindo Fendi, por isso ela se senta
entre mim e Dylan, e ninguém olha torto, porque ninguém ousaria questionar as suas escolhas. A
cada Partida ela escolhe um novo lugar, e quem somos nós para reclamar?
A essa altura, no entanto, é muito bom estar perto.
— Cher. — Sussurro, porém ela está muito ocupada com a cabeça apoiada no ombro do
meu irmão.
Dylan está feliz.
Seu braço esquerdo contorna a cintura dela, onde a acaricia com as mãos, movendo os dedos
lentamente, fitando seu o rosto enquanto ela murmura algo perto de seu ouvido, e ele sorri, céus,
sorri de um jeito único, com os lábios mostrando seus dentes, com as maçãs do rosto inclinadas
e, principalmente, com os olhos. Cherrie é o único motivo pelo qual suas íris brilham como se o
amor irradiasse de dentro dele.
Eu o invejo tanto.
A história de amor deles é a minha favorita, depois da dos meus pais, pela onda de encontros
e desencontros. Isso porque desde crianças as suas vidas foram entrelaçadas em um acordo de
alianças pelo meu pai e George, melhores amigos.
Mas não foi simples assim – definitivamente.
Cherrie e Cameron deviam ter sete e seis anos quando todos perceberam que existia algo
muito além do ódio profundo. E se a química desses dois inimigos mirins não fosse o suficiente,
também tinha um plus: Dylan não amadureceu no mesmo ritmo que eu ou os outros x-herdeiros.
Com treze e quatorze anos, Cameron e Cherrie estavam se beijando escondidos enquanto
Dylan só queria saber de colecionar mangás e jogar videogame. Não dava para competir, e
nossas famílias sabiam disso.
Então Europa apareceu para destruir a vida de Cherrie e, quando a versão boa finalmente
voltou, meses depois, meus pais já estavam mortos, tudo estava quebrado e o Rei desesperado o
bastante para dizer sim a tudo o que fizesse sua filha favorita minimamente feliz.
Então a aliança foi desfeita e Cherrie começou a namorar o Waddel. Qualquer um ficaria
triste de perder a mão da queridinha dos Sangue em Ascensão, mas para Dylan foi como respirar
após tirar um peso enorme das costas. Ele e Cameron eram melhores amigos e Cam fazia mais
por ele do que por todos nós. Meu gêmeo não queria estar no meio da felicidade do amigo.
O problema foi que Cameron não aguentou as trocas de alters da Cherrie. No dia do noivado
deles, Cam teve um surto e nunca mais o vimos.
Então ela estava solteira e Dylan já era um homem de vinte anos. Certo?
Europa assumiu o front e Cartier não perdeu a oportunidade, afinal, ele foi o único que
nunca temeu a alter maligna. Ao contrário, ele fez o que ninguém nunca foi capaz — ele a amou,
com toda a sua força.
Mas era óbvio que George não daria aval para o romance dos dois. Além de consanguíneo,
significava perder sua preciosidade para os abomináveis Kühn.
O Rei não permitiria.
Não sabemos o que George disse a Europa naquela noite, nem como ele conseguiu domá-la,
mas, na manhã seguinte, para o azar de Cartier, era Cherrie.
Então ela e Dylan finalmente se aproximaram e Cherrie tem sido tão bem cuidada pelo meu
irmão que Europa nunca mais apareceu no front.
— Jogadores — o Rei dá as honras — temos uma notícia muito alegre para compartilhar. —
Sinaliza com a cabeça para que Richard Harding explicasse.
— A Harding vai comprar a maior petrolífera do mundo, na Saudita. — Richard se levanta
para contar. — O EuroOásis vai sair do papel.
O som chega aos meus ouvidos como um golpe súbito, um eco doloroso que reverbera pelo
meu ser, deixando-me paralisado. É como se o mundo ao meu redor desacelerasse, enquanto a
desgraça penetra profundamente em minha consciência. O mal-estar penetra cada celular do meu
corpo, de modo que só abaixo a cabeça, concentrando a atenção em minhas mãos.
Todos os outros batem palmas.
— Nós Duncan, os Harding e o Rei passamos os últimos meses, desde o Torneio, em
negociações. — Meu avô explica, com seu timbre alegre. — Encontramos o melhor negócio, e o
Rei está disposto a investir em território no Oriente Médio.
A sensação é quase física, como se um punho invisível tivesse esmurrado meu estômago.
Um arrepio percorre a minha espinha, e meus músculos se contraem involuntariamente em
reação à confirmação dos meus temores.
Subo meu olhar lentamente, alguns arqueiam as sobrancelhas, outros riem surpresos, vovô e
Phillip se entreolham, e eu e Cherrie nos fitamos.
— Parabéns. — Provoca ela, alto, trazendo toda a atenção para mim. — Você venceu, Torre.
O som ambiente torna-se abafado, como se o mundo ao meu redor estivesse distante, e uma
sensação de náusea se mistura à dor emocional. Cada detalhe do ambiente parece adquirir uma
tonalidade mais sombria, e a notícia ruim se torna um eco constante.
Sempre soube que o meu Rosebud seria imbatível, mas não posso evitar o amargor invadir o
palato. Que tipo de idiota não compete para ganhar?
Prazer, eu.
— Todos aqui sabemos do potencial político e econômico que o EuroOásis vai trazer para os
Estados Unidos e nossos aliados no Oriente. — Continua George, cruzando as mãos grandes
sobre a mesa, de um jeito que o relógio de ouro branco contrasta com a penugem escura do seu
braço, evidente com as mangas da camisa branca dobradas elegantemente na altura do cotovelo.
— 835 bilhões, senhores. — O silêncio é absoluto. — E essa foi a parte fácil.
Construir tubulações debaixo do Iraque e da Síria é o que me preocupa desde o momento em
que ouvi essa proposta de Rosebud do meu avô.
E ainda assim aceitei, porque me permitiria casar com a mulher que eu queria. Eu fodi o
mundo por uma mulher que me traiu e engravidou de outro.
A tortura interna dá origem ao inconformismo. Com tantos Peões mais inteligentes, eu iria
imaginar que, justo eu, o mais novo do Jogo, ia vencer de lavada?
— A culpa também é sua. — Inclino-me para sussurrar no ouvido de Cherrie, com meu
coração batendo forte demais para continuar em silêncio. — Você devia ter sido melhor do que
eu, Cherrie. — Balanço a cabeça, olhando para a frente, fingindo que estou prestando a atenção,
com os dedos trêmulos. — Eu contava com isso.
Mesmo sem fitá-la, sinto seu olhar me queimar.
— Eu teria vencido. — Chuta meu calcanhar com seu sapato de bico fino. — Se você não
tivesse me roubado.
As palavras parecem carregar um peso palpável, uma gravidade que suga a esperança e
enche o meu redor de um vazio angustiante.
— Eu te devolvi.
— Tarde demais — a voz soa enfadonha. — Já tinha queimado meu Rosebud com essa sua
boca grande e aberta.
Um riso meu escapa e eu coloco a mão em cima da sua enquanto analiso os detalhes no
esmalte claro e nos anéis, como o anel de noivado do Cameron que permanece no seu anelar, e o
anel que Dylan lhe deu, da nossa mãe, no dedo médio.
— Eu queria voltar no tempo, Cherrie, — encaro no fundo dos seus olhos verde-amarelados
que me fazem sentir a doçura da sua personalidade. — Juro que faria tudo diferente.
Ela abre um sorriso, me dedicando com a íris a mesma atenção, enquanto entrelaça seus
dedos nos meus, me acalmando.
— Aproveite a vitória, Torre Duncan. — deita levemente a cabeça no meu ombro. — É a
única vez que você vence de mim uma batalha.
Não sei se estou falando sério ou brincando quando tomo a ousadia e indago:
— Pensei que tivesse sido a guerra. Não?
Ela levanta a cabeça, me entregando um dos seus olhares mortais como se questionasse a
minha audácia.
— Mantenha essa confiança. – Sobe as mãos até o meu rosto, acariciando minha barba.
Segura meu maxilar e ameaça: – vai precisar dela.
Sorrio com o afago, com o coração aliviado pela saudade que estava da minha melhor
amiga.
— Obrigado por me perdoar, mon cher.
Um riso escapa dos seus lábios rouge, tão lindo e tão genuíno, que Dylan interrompe o
assunto sobre o EuroOásis para nos observar, curioso.
— Quem disse que eu te perdoei, bobinho? — seu timbre ainda é doce e ela ainda me
entrega um fitar cheio de amor, o que me assusta mais do que se ela gritasse.
— Você. – Ergo os ombros, incomodado. — Você me deu até o espetáculo de presente.
A mudança no seu semblante me faz tensionar os músculos, e sua voz apreensiva congela
todos os meus ossos. O coração para por um instante antes de disparar descontroladamente,
como uma explosão súbita que causa ondas elétricas em cada fibra do meu ser.
— Que espetáculo, Damon? — A voz dela, carregada de surpresa e pânico, reverbera em
meus ouvidos e meu corpo reage instantaneamente, tenso e alerta, enquanto o frio percorre
minha espinha.
Não, não, não.
— O da bailarina. – A escuridão ao nosso redor torna-se mais densa, e por um breve
momento, meus sentidos pareceram se desconectar da realidade quando George completa, em pé
atrás de nós com sua onisciência. – Preciso saber qual Boneca é essa, filha.
Agora o olhar de Cherrie é de desespero e assombro, inundando a linha da água. Ela abaixa
a cabeça como se odiasse decepcioná-lo, então murmura na nossa direção:
— Desculpe, Damon. – A voz quase não sai. – Papai, nos últimos meses, eu estive fora...
É pior do que eu imaginava.
Foi um presente da Europa.
PREZADO JOGADOR

Sabe, prezado Jogador, sempre amei castelos de cartas.


Quando criança, Cherrie costumava passar as tardes inteiras montando castelos com os
baralhos do nosso sobrenome. No início, era difícil montar um monumento alto. Se titubeasse,
tudo caía e precisava recomeçar do zero. Com o tempo, veio a prática, e os castelos foram
ficando maiores e mais fortes.
Coloco outra carta e assopro:
— Que espetáculo, Damon? — Quero sorrir com o seu terror, mas eu gosto de testar para ter
a certeza de que encaixei cada detalhe, de que não vão cair ao menor sinal.
Quando pequena, estudava quais cartas da base poderia tirar sem derrubar o império todo ou
quantas poderiam ser derrubadas sem afetar o topo.
Uma infância toda estudando essa estratégia.
Existem cartas como a bailarina-russa, que, embora não fiquem na base estrutural,
enroscam-se às da primeira fileira. Essas são as mais perigosas, pois sempre nos pegam de
surpresa — sempre são as culpadas pela maior parte dos castelos que desmoronam.
E eu detesto começar do zero.
As mais legais de retirar são as mais fortes, os alicerces dos castelos. O prazer de tirar carta a
carta e ver o castelo permanecer inabalável é excitante para caralho.
— O da bailarina. – O poderoso George Young diz, tocando em meus ombros. – Preciso
saber qual Boneca é essa, filha.
Nunca, nem, por um segundo, vou esquecer a sensação de poder que é descartar as mais
importantes, vê-las implorando por algo que só eu posso dar. É como se a inteligência de Cherrie
Young estivesse além da força da gravidade.
Somos melhores que todos esses sobrenomes.
Era apenas uma criança que amava jogos. Jamais imaginaria o quanto ouros, espadas, copas
e paus ensinaram sobre poder. E foi a paciência, a determinação, a análise crítica e a ousadia que
a Cherrie de nove anos treinava que me preparou para começar o Jogo de verdade.
— Desculpe, Damon. – Abaixo a cabeça para não deixar escapar qualquer microexpressão
de felicidade.
Sabe, Jogador, Cherrie nunca foi apenas uma, autêntica e sincera como o arquétipo que as
pessoas costumam admirar, ela sempre foi o que precisou ser para ter o que deseja. Nunca foi
sobre falsidade, e sim sobre possuir uma capacidade única de entender o que cada pessoa precisa
para, então, se adaptar.
Foi doloroso no começo, como usar um sapato que machuca o pé e depois calcifica, e então
nunca mais doeu. Sempre tivemos consciência dos riscos que essa estratégia acarreta a nossa
estrutura cerebral. Transtorno dissociativo de Identidade. Médicos demais tentaram alertar dos
perigos sobre ela se perder um pouco mais a cada vez que se transforma em mim.
Nenhum deles entendem o porquê estou aqui.
Nunca me perdi, apenas tomei forma. Existem pessoas que jogam para vencer e existem
pessoas que sabem jogar. Juntas, somos os dois.
A questão é que eu não sou como ela, não gosto de me camuflar, prefiro deixar bem
evidente a minha personalidade, e submeter cada pessoa aos meus caprichos. É aqui que reside
minha vitória e o meu fracasso, esperando pelo próximo passo.
– Papai, nos últimos meses, eu estive fora...
Assim que a sonoridade das minhas palavras perde a força diante da hostilidade do
ambiente, o silêncio prepondera na sala.
A dose de adrenalina que ministrei com a nossa chegada não foi o suficiente para mantê-los
em seus clímaces por mais que uma hora, e o peso das minhas palavras fala mais alto e Dylan é o
primeiro a sentir o impacto.
— O quê?
— Cherrie... — Damon murmura, assimilando.
Não gosto que me identifiquem como Cherrie, sou Europa. Acontece que eles têm medo de
mim e, por mais que eu também adore fazer todo mundo se cagar de medo, dessa vez é
diferente.
Não estou aqui apenas para colocar as pessoas no lugar, não, vou tirar elas dos seus lugares e
ficar com todos para mim.
Se eu me revelar, os Sangue em Ascensão vão trancar suas portas depois de marcar as
ombreiras com sangue de cordeiro. Preciso me passar por Cherrie, já que não há uma pessoa que
não a deseje como visita.
Entendeu o plano, caro Jogador?
Não posso dizer que estou feliz com essa estratégia. Se você me conhecesse, também não
estaria.
Antes que sinta pena do que vou fazer com o queridinho do Damon, saiba que estou aqui
porque as pessoas passaram dos limites. Nasci no dia em que Cherrie mais sentiu medo, e a
protegi, do meu jeito fodido — e eficaz —, assumindo o controle de todas as merdas que ela não
precisava se lembrar no dia seguinte. Nada como provar do próprio veneno.
Não, não sou humana.
O único que sabe disso é você, então use bem a informação.
Como todo monstro, causo problemas, estragos, faço bagunça, deixando um rastro de
sangue por onde passo. Sou o tipo de fera que as pessoas imploram para não sujar as mãos,
porque não vou parar enquanto houver sangue para ser drenado.
Que fique claro: não me contento com corpos rastejando, preciso sentir o coração pulsante
nas minhas mãos. O tipo de iguaria que, não importa quantos eu devore, sempre vão me deixar
ainda mais faminta.
Espero que você não precise cruzar o meu caminho, mas, se isso acontecer, há uma chance
de você terminar vivo. Tudo depende de como você tratou Cherrie Young, ela é uma criatura
amável, não é difícil ser a porra de um humano normal com ela, mas, se você quer brincar de
bicho-papão, tenho um esqueleto guardado no meu guarda-roupa que vai te fazer gritar até não
ter mais voz.
Como o monstro de Cherrie, devo protegê-la de outros monstros. Isso me excita, gosto da
minha reputação, de ser perigosa, assustadora o suficiente para botar medo em qualquer filho da
puta que ousar a sorte de tocar em Cherrie Young, por pior que ele seja. Nada me abala.
Sou mais forte do que todos os meus monstros.
Exceto um.
— O que está dizendo? — George Young se ajoelha, me encarando com tanta sinceridade
que meu corpo inteiro tensiona. O sorriso preocupado desse monstro se emoldura com a barba
grisalha, e eu sei que que devo usar as minhas armas mais letais para mantê-lo longe, só não
quero. — Ela veio para o front?
— Europa? — Sou entorpecida pelo sorriso dirigido a mim, e cada célula irradia felicidade
por ser iluminada pelo meu Sol.
Usufruindo da intimidade que construímos ao longo dos anos, cruzamos nossos olhares. O
ouro presente em suas íris soma-se às joias verde-claras que são as minhas, e, em silêncio, nossos
âmagos se encontram e conversam de um jeito que jamais poderíamos dizer verbalmente.
Nossas almas se entendem de modo perfeito.
Cherrie Young uma versão para cada pessoa, exceto para Cartier Kühn… Ela não precisa ser
nada para o seu primo.
Ele ama todas as nossas versões.
A vantagem dele é ter a pior delas.
— Tudo o que sei... — Volto a atenção para a parte mais legal em brincar com a mente
desses filhos da putas. — É que acordei hoje de manhã na casa do tio Francis e voltei para a
casa.
O ataque severo do olhar de George é tão violento quanto um beijo terno nesse habitat hostil
que Cherrie tem como lar, de modo que sorrio com o frisson de tê-lo manipulado, mais confiante
na disputa pela coroa com o monstro que governa as redondezas desde antes de eu nascer.
— Venha comigo.
Sua ordem tem o poder de me desconectar do meu corpo, me fazendo encarar o espaço vazio
enquanto sinto a onipotência do saguão se infiltrar em meus ossos, permitindo que sua voz guie o
meu caminho em passos cambaleantes até o lounge em que minha mãe está, com a sensação de
que estou flutuando.
Todos os detalhes desse lugar — desde as maçanetas de ouro até os estofados de caxemira,
os manuscritos raros nas estantes e as obras de arte na parede, ornamentos de peças de xadrez —
são muito estonteantes, mas não são, nem mesmo um pouco, desnecessários.
Cada item foi escolhido a dedo para nos lembrar, a cada Treino ou Partida, qual é a nossa
posição perante o Tabuleiro. Uma inteligentíssima tática elaborada para incitar a ambição das
Peões desde o berço, para lembrá-los, antes de cada decisão naquela sala, de fazer escolhas que
protegerão nosso estilo de vida, visando sempre acumular mais riqueza.
O luxo exacerbado é uma venda deleitosa para o ser humano. Eficaz, bloqueia a visão de
ricos, peões, nobres, cavaleiros, clérigos e reis. Eu gostaria de saber onde você se encaixa nesse
jogo de poder, querido Jogador.
Oh, perdão, estou lhe enchendo com esse assunto, não é? O assunto deveria ser estrito sobre
o meu retorno e agora estou lhe obrigando a escolher seu lugar no Tabuleiro. Onde estávamos
mesmo?
Ah, sim, sobre nós e nossa violência. Venha, caminhe comigo nesse hall ostentoso, ouça
meus saltos Louboutin batendo contra o piso frio e elegante, escute os estalos de ossos dos
poderosos homens que quase quebram o pescoço para me observar passar.
Minha mãe está do outro lado, respondendo mensagens no celular como se meu retorno não
fosse relevante. Ela é uma loira de um metro e oitenta, com ombros e quadris largos e uma
cintura que lembra uma ampulheta. Suas íris são como pedras de âmbar e sua pele é dourada
como o calor do sol, contudo, não é isso o que a faz ter tanta presença.
São as marcas que traçam um rastro de fogo pelo lado esquerdo do seu corpo.
A cicatriz começa no seu ombro e desce pelo lado esquerdo, alcançando a cintura, nádega,
perna e o braço. Nesse momento, em que ela mexe no celular, consigo ver suas mãos deformadas
em tantas camadas que devoram suas unhas.
Quando pequena, Cherrie morria de vergonha dela. As crianças na escola contavam histórias
terríveis sobre como seu adorado pai ateou fogo na própria mãe.
— Conte para a sua mãe o que me disse. — O Rei exige.
A verdade é que nunca houve opção de Cherrie formar qualquer vínculo com a mãe, George
a roubou no momento em que ela nasceu. Ela era a coisa preciosa dele. Ele não a dividiria com a
inimiga como é obrigado a dividir Francis Kuhn.
O Complexo de Electra sempre definiu que o monstro de Cherrie Young seria a mulher
com quem disputa a atenção do pai. Não que a rejeição magoasse Madeleine, de algum modo.
Nada nunca a magoa, vantagens de ser psicopata.
— Era a Europa quem estava com o titio Francis. — digo, fazendo o melhor que consigo na
minha atuação.
— E? — balança a franjinha.
Não estou dizendo que ela é um monstro, embora fique implícito nesse termo defasado. Só é
perversa na cama, não é maquiavélica, como George, ou maligna, como Francis.
— Você vai descobrir o que os dois fizeram nesses meses. — George ordena a esposa.
Ela sorri com o seu lindo sorriso inocente, e eu desvio o olhar, notando como todos os
Sangue em Ascensão nos observam, atentos, dividindo-se em duas vertentes. Os mais novos,
Peões, inclinam-se sobre as cadeiras e paredes, curiosos e divertindo-se com a tensão existente,
enquanto os mais velhos, as Peças fortes, tensionam os ombros e endireitam a coluna, atentos.
Damon esfrega o rosto com agonia, enquanto Dylan deita a cabeça no ombro dele em um
gesto de desolação, pálido feito um fantasma, e papai parece ter visto todos os seus assombros
com uma única frase. Você tem alguma ideia do porquê?
São os segredos escondidos, Jogador.
— Descobrir o quê, George?
— Europa presenteou o Damon com uma Boneca e eu preciso saber qual é.
— E o que o Francis tem a ver com isso?
Seus olhares guerreiam.
Estamos perto da sala de jantar, o ambiente mais claro da mansão, pois fica no centro e os
vitrais que se estendem entre as paredes estão posicionados como parte da decoração. As janelas
estão abertas, e o vento corre castigante, festejando com o tecido leve das cortinas translúcidas,
puxando meus fios de cabelo e a barra da saia para uma dança uivante.
Scarlet adoça o suco do seu pequeno filho, Amory, enquanto ele devora a gema cremosa dos
ovos mollet em seu prato com a sagacidade de uma raposinha faminta. Nesse instante, meu
irmão se aproxima, dá um bom-dia a todos enquanto beija, primeiro a cabeça de Scarlet, depois
cheira o cangote de Amory e o enche de beijos, provocando-lhe gargalhadas macias que fazem
todos sorrirem.
Acredito fielmente que George Jr. tenha, dentro de si, algo especial o suficiente para ganhar
seus próprios brinquedos em vez de usar os do papai, só está cego demais para se interessar — os
Sangue em Ascensão têm esse pequeno defeito quase genético, uma cegueira congênita de
espírito, a mesma venda que vou tirar de Damon, fazendo-o arrancar os próprios olhos.
E esse é o verdadeiro espetáculo, querido Jogador.
Também não é verdade que foram as cicatrizes de Madeleine que corroboram para George
ter trazido Scarlet para casa, porque ele sempre teve suas Bonecas, antes de se casar com uma
Dama legítima, e depois. Nem todas sobreviveram ou permaneceram atraentes o bastante para
cativar a atenção do Rei a longo prazo.
E é por isso que Scarlet é tão especial, como um prato que dividimos à mesa, como um
delicioso ortolan que sacia todos em espécie de ritual quase sagrado. Nosso Ação de graças
acontece todos os dias.
Essa Bonequinha de luxo é como um pet que George Jr. trouxe para a casa em um dia
chuvoso, que Crystal, minha irmã, quis ficar como companhia e que, quando todos nos demos
conta, já a tínhamos como membro da família. O bichinho de estimação que todos intercalam
para ter em suas camas, inclusive mamãe ou eu, quando assumo o front, e GJ adia o casamento
com uma Dama porque não consegue imaginar a ideia de viver longe dela.
Ficarei magoada se pensar que somos depravados, Jogador.
A única diferença entre nós e você é que não precisamos fingir que temos uma máscara de
moral escondendo nossos instintos primitivos. Ainda que sejamos espécies evoluídas, somos
animais no topo da cadeia alimentar. Trepar e matar ainda são os motivos pelos quais vivemos.
É mais cruel quando não se sabe jogar esse Jogo, justo quando são monstros como nós que o
dominamos. O instinto sempre foi sangrento e os Sangue em Ascensão não lutam contra o
impulso que habita dentro das nossas veias. Somos mais fortes quando usamos esse poder ao
nosso favor.
Então escolha um lugar na primeira fileira, Jogador, você é meu convidado de honra.
O Jogo está só começando.
SEGREDOS

Estamos todos à mesa, feito um frame de O poderoso chefão. O jazz agradável embala a sala
em uma aura pura de amistosidade, sendo intercalado com o som que nossas gargantas
sonorizam ao ingerir vinho Richebourg. Lábios bordôs e línguas roxas. Rostos belos com olhares
coloridos por íris extravagantes que seguem uma paleta harmonizada, do amarelo ao verde-oliva,
do castanho-café até doce caramelado e do azul ao cinza. Sorrisos brilhantemente brancos
intercalados com gargalhadas suaves e contidas.
Admiro a paisagem como um observador de fora.
Esse momento resume exatamente a síntese do que amo no meu mundo. A união entre
pessoas inteligentes, os diálogos bem-humorados com tiradas perspicazes, a prataria unida à
louça que simboliza a força das nossas Famílias... Sempre foram ocasiões como essa que fizeram
meu coração transbordar de orgulho por ser parte disso e ser um Sangue em Ascensão.
Hoje, sinto que tudo parece diferente.
Ainda não assimilei a história das Bonecas, quer dizer, quantos nessa mesa sabem disso?
George se senta do lado da sua, mas será que outros também têm? Como isso funciona? Será que
a bailarina é de algum homem nessa mesa?
— Então quer dizer que Damon voltou finalmente a ser solteiro? — Louise Harding puxa o
assunto, voltando toda a atenção para mim. Seu olhar penetrante, carregado de desaprovação, faz
o som da conversa animada ao nosso redor diminuir gradualmente. — Ouvi dizer que já faz
algumas semanas, mas ainda não falou com a gente.
O rubor sobe até minhas bochechas, com a sensação de que todos os olhares estão em mim,
e meu coração começa a bater mais rápido. Odeio o quanto me sinto exposto, como se estivesse
no centro de um palco, pronto para ser açoitado em público.
Eu poderia dizer que precisei de um tempo para assimilar antes de contar a todos, contudo a
ideia de expor ainda mais a minha vulnerabilidade, me faz endireitar os ombros e devolver:
— Estive muito ocupado com trabalho, quer dizer, o EuroOásis tem exigido muito foco, não
é, vovô?
Beatrice mantém o olhar penetrante, com a taça entre os lábios.
A minha primeira namorada é indiscutivelmente linda e inteligente, com a pele clara e os
cabelos cor de cenoura, lábios redondos e o rosto oval, como o da Ellie.
As duas são incrivelmente parecidas. O formato do rosto, o tom das íris, o mesmo estilo
feminino, saias curtas e vestidinhos rosas. Ainda assim, basta compará-las para entender o
porquê uma me seduziu e a outra me repele.
Beatrice só é mais afiada.
— Essa é a sua desculpa padrão, não é? Trabalho. — Os olhares curiosos e as expressões
atentas da plateia ao nosso redor adicionam uma camada extra de desconforto com a provocação
da minha ex. — Mesmo no final de semana, às oito da noite de um domingo, que eu também
esteja trabalhando no EuroOásis o bastante para saber que ele nunca foi seu foco.
O silêncio constrangedor que se segue às suas palavras intensifica a tensão, como se o tempo
estivesse congelado, e eu preso nesse momento embaraçoso. De todos os olhares, o que mais me
perturba é o da minha avó, pois sei que pode significar o céu ou o inferno, dependendo de como
eu reagir.
— Ainda bem que agenda cheia nunca é um problema para uma dama — brinco, na
tentativa de aliviar o clima.
— Eu honro com a minha palavra. — Tudo o que sai da boca de Beatrice soa como veneno.
— Sabe o que é isso?
A respiração acelerada, a pulsação frenética e a sensação de adrenalina correndo por minhas
veias criam um turbilhão de emoções que me impedem de evitar o que sai da minha boca.
— Pensei que a palavra tivesse sido desfeita no momento em que dei o EuroÓasis de
presente para você.
Minha fala é seguida por um silêncio pesado, como se o próprio ambiente estivesse
prendendo a respiração em antecipação ao próximo golpe verbal. Os cochichos sussurrados entre
os presentes adicionam um zumbido constante à trilha sonora do constrangimento, aumentando a
sensação de que eu estou no centro do furacão.
A risada da minha avó corta o ar.
— Meu neto fala como se fosse um vira-lata. — Vovó corrige com classe, como se estivesse
brincando, ao mesmo tempo que suas palavras me cortam. — É isso que dá ter sangue de uma
Mundana nas veias. — Então me entrega um olhar cruel. — Você ainda é um Duncan.
— Somos Sangue em Ascensão. — Vovô complementa, como se eu tivesse me esquecido.
— Promessas duram para sempre.
A sensação de exposição e humilhação que alimentava o crescente calor em minhas
bochechas dá lugar a chama de raiva que se acende em meu peito. Primeiramente porque odiei,
com cada célula do meu corpo, o comentário de vovó sobre minha mãe, e segundo, porque, se eu
soubesse que o EuroOásis não compraria um pouco da minha liberdade, não teria vendido a
minha alma.
— Até porque Charllote não era uma Mundana, né? — Solta Cherrie, silenciando a todos,
que a encaram com queixos caídos e palidez instantânea, enquanto eu escuto meu coração cair
em um lugar bem fundo. — O quê, mon père? — Sorri largamente para o Rei. — Agora ele já
pode saber.
O sangue para de correr pelo meu corpo, e um frio assustador atravessa minha espinha.
— Saber o quê? — Meu primo Ethan Lloret, de quinze anos, pergunta com a boca cheia.
A sala, cheia de vida e celebração, se torna um espaço frio e distante.
— Segredos de Peças Forte. — Corta o pai dele, seco, fitando o Rei.
Estou tão concentrado nas batidas do meu coração que não consigo elaborar uma resposta, e
Eleanor puxa um assunto leve a fim de amenizar o clima, enquanto minhas mãos tremem tanto
que não sou capaz de segurar na taça.
— O que significa, Dam? — viro o rosto, encontrando o olhar perdido do meu irmão. —
Me explica?
Sua inocência arranca de mim a inércia e eu me levanto no mesmo segundo, fazendo a
cadeira ranger e todos me fitarem com mais preocupação.
— Vem, Cherrie. — Não é um pedido, é uma ordem, e ela compreende, porque para de
mastigar, esboçando um sorriso que se alterna com o olhar para o pai. — Vamos conversar.
— Não. — O tom do Rei é como uma sentença. — Sente-se, Damon. Estamos no meio do
almoço.
E eu normalmente o obedeceria cegamente, como todos fazem, porém sou incapaz de mover
um dedo agora, de me sentar e imitar o cinismo de todos, principalmente quando o meu
estômago torce tão forte que quase tenho ânsia de vômito, e o corpo inteiro amolece só de
imaginar minha mãe na pele da bailarina.
— É sobre a minha mãe. — Contesto, com a voz tremida.
Alguns Sangue em Ascensão murmuram segredos por baixo da mesa, porém George
permanece calmo, cortando a carne malpassada do seu prato.
— Segredos mortos não devem ser desenterrados. — Relembra a Regra, calmamente. —
Sente-se, Damon. — Outra vez ordena, com seu timbre amoroso de pai mesclando-se ao de líder
de seita. — Quem sabe, se você merecer, abro uma exceção.
Meu irmão me puxa pelo braço, não apenas me obrigando a ocupar o meu assento
novamente, mas principalmente puxando de volta a minha razão.
— Perdão, Louise, Beatrice, vovó. — Vagueio o olhar de rosto em rosto, enquanto
mantenho as mãos abaixo da mesa, apertando a do meu irmão como se a presença dele me
ajudasse a focar no que é importante. — Perdão a todos pelo transtorno. — Abaixo a cabeça,
sentindo a humilhação em novamente me admitir: — terminei um relacionamento recentemente
e estou com os nervos à flor da pele. Não foi a minha intenção.
Dylan solta sua mão da minha e me dá subliminares batidinhas de aprovação nas costas
antes de voltar a comer, contudo eu só toco no meu prato porque estão me observando.
Funciona até os Young mais importantes terminarem a sobremesa.
Os primeiros a se retirarem da mesa são George e Cherrie. Sou rápido com a deixa, coloco
meu guardanapo ao lado e me levanto também, no entanto não dou três passos antes de sentir os
braços de Cartier me segurarem.
— Não se meta nos assuntos da Coroa. — Murmura contra a minha nuca.
As palavras de Cherrie à mesa ainda são como feridas abertas que continuam sangrando, me
deixando em um estado de resignação e tristeza profunda.
— É sobre a minha mãe. — Teimo.
Encaramo-nos seriamente por alguns instantes, então Zaki entra no meio de nós dois.
— Vamos sair daqui. — Sugere, puxando-nos para fora da propriedade, onde podemos
conversar sem nos preocupar com câmeras escondidas.
Cartier não deixa Dylan passar da porta.
— Você fica.
O Duncan me encara com indignação.
— Vocês vão saber e eu não? — cruza os braços, com o timbre tristonho.
Toco no peito dele.
— Não. — Aponto com o olhar para o interior da mansão. — Você tenta descobrir o que
Cherrie conversou com George, e eu descubro o que está acontecendo, e depois te conto.
Ele revira os olhos idênticos aos meus, porém obedece.
— Zaki vai? — acho justo cobrar, porém Cartier toca no seu ombro, deixando evidente que
não há segredo entre os primos. Então o Kühn se cobre com um casaco que destaca seus cabelos-
loiros, enquanto Zaki veste um suéter branco que combina com sua pele escura.
Nós três caminhamos em silêncio no gramado congelado até o bosque da mansão Young,
onde árvores se erguem em alturas imponentes, formando um dossel de neve que filtra a fraca
luz do sol em padrões de sombra e luz dançantes.
— Pronto, Damon. — Cartier se vira para mim, pondo as mãos na cintura. — O que está
acontecendo?
A pergunta é um convite para eu desabafar tudo o que me perturba.
— Você viu o que ela disse sobre minha mãe? — Seu silêncio me deixa ainda mais
indignado. — Você também sabia?!
— Respira, cara. — Zaki inicia sua posição de intermediador.
— Não sei sobre sua mãe — Cartier mexe os largos ombros. — Mas faz sentido.
— Sentido? Minha mãe? — ouço o timbre soar agudo. — Charllote conheceu meu pai em
um jantar na Casa Branca!
Zaki está de costas, brincando de cavucar a terra e neve com os sapatos.
— Imagino que seja isso o que uma mãe diga para os filhos, em vez de contar que era uma
acompanhante de luxo.
Que fique claro: jamais fui a favor da violência, muito menos me vi impelido a me envolver
em uma briga física. Tudo o que sei sobre luta foram resultados das aulas de defesa corporal.
Mas, no instante seguinte, os ossos dos meus dedos, mãos e punhos transmitem uma
vibração que reflete no meu corpo inteiro, em contato com o rosto de Zaki. A adrenalina da luta
interrompe qualquer desconforto, cegando-me com o impulso, porém Cartier me segura.
Sinto as ondas rapidamente irradiarem para a extremidade do meu braço, ricocheteando uma
dor que me faz balançar os braços.
— Você está louco? — Zaki grita com a voz aguda antes de devolver o golpe na boca do
meu estômago.
É, eu também nunca levei um soco.
O impacto rouba o ar dos meus pulmões, e uma explosão de dor aguda reverbera por toda a
minha região abdominal, cortando minha respiração com a sensação de pressão intensa que faz
com que meus músculos se contraiam instantaneamente, em uma reação quase involuntária para
proteger a área atingida.
— Chega. — Cartier se põe no meio, e os dois me olham.
— Eu não aguento mais ninguém falando da minha mãe. — Solto em um suspiro
murmurado, com cada fibra do meu corpo se concentrando na região do estômago.
— Mas eu não estava falando mal dela, não, Damon! — devolve com o timbre estridente de
indignação, passando a mão nos lábios grossos, que sangram. — Estava tentando falar sobre...
Eu caio em mim, balançando a cabeça.
— Desculpa. — O calor não é apenas pela adrenalina ou pela dor física, mas sim pela
vergonha. — Não estou bem e descontei em você.
Ele poderia surtar, poderia fazer disso um motivo de guerra, porém abre um sorriso de
condolências e me puxa para um meio abraço.
— Quer falar sobre isso ou quer ficar sozinho? — Cartier está com os braços cruzados.
Acho que a tristeza não é apenas por isso, é por saber que eu não sei grande parte da vida da
minha própria mãe. E eu amava a história de amor dela, a Miss Mundo cantando para o
presidente, na Casa Branca, quando cruza com os olhos de um dos herdeiros mais ricos dos
Estados Unidos, e se apaixona perdidamente.
— Ela era uma Boneca. — Falar em voz alta torna tudo pior e mais sombrio, porque me faz
pensar na bailarina.
— Vamos com calma. — Zaki intermedia.
Fito-o com os olhos cheios de lágrimas.
— O que uma modelo de dezoito anos estava fazendo em um jantar na Casa Branca, Zaki?
— O silêncio pesa com a minha pergunta, e os dois abaixam a cabeça, porque minha mãe era
especial o bastante, linda o suficiente, para fazer parte do Jogo que levou a sua alma e sua vida.
Refletir nisso me deixa com ainda mais perguntas, porém não vou obter as respostas com
meus amigos, e peço para voltarmos a mansão. Zaki e Cartier me perguntam duas vezes se estou
melhor, e me convencem, no percurso de grama e pedras, a voltar para casa.
— Os Sangue em Ascensão vão entender, e até que você consiga se reestabelecer e controlar
seu gênio, é melhor ficar longe do Rei.
De fato, estou com raiva e a um fio de fazer uma besteira. Mas, acima de tudo, preciso de
respostas, então vou até Cherrie Young que, nesse momento, elabora um grandioso e complexo
castelos de cartas. A obra possui uns três andares e a morena de olhos verdes precisa se inclinar
para posicionar a próxima, com uma concentração majestosa.
Todo mundo ao seu redor nem respira, ao contrário, entregam a própria carta com uma
reverência e admiração que não escapa dos olhos do seu pai, apaixonado demais para perceber o
perigo em seu reinado.
— Cherrie? — aproximo-me com cautela, ajoelhando-me ao seu lado.
— Não atrapalhe, Damon. — Minha avó reclama.
— Sim? — pergunta a francesa, e me encara com um olhar provocativo que não reconheço.
Então põe a língua para a fora e, sem desviar a atenção dos meus olhos, desliza a ponta da
carta coringa entre os dentes, lentamente e com um sorriso brincalhão e safado.
Endireito os ombros.
— Você está bem? — franzo os cenhos.
Cherrie vira o rosto e agora a observo de perfil. Quando éramos mais novos a curvatura do
nariz dela possuía uma lombada, porém Europa corrigiu cada pequena imperfeição do que quer
que pudesse afastá-las de um padrão inatingível.
Não há o que dizer, ela é perfeita.
— Eu estou maravilhosamente bem. — Por que soa como uma ameaça? — E você?
Esse deveria ser o momento em que desabafo com a minha melhor amiga tudo o que está
acontecendo comigo, contudo o seu olhar, de repente, é tão frio que estremeço.
— Estou péssimo. — Testo.
Cherrie começaria uma série de perguntas que me levariam a compreensão dos meus
sentimentos.
— Deveria ir para a casa. — Fala, e então noto as microexpressões do seu rosto se
contorcerem, e ela faz algo que Cherrie nunca faria, se corrigindo: — deveria ir para a casa, está
com o semblante tão abatido, mon chouchou.
Acaricia minha barba antes de pegar com Dylan a próxima carta.
— Você disse que o convite, quem me deu, foi a Europa.
Nem me fita, observando o castelo. Erro dois, Cherrie estaria me olhando no olho agora,
segurando em minha mão enquanto me incentiva a colocar para fora todos os segredos do meu
coração, para depois usá-los ao seu bel-prazer. Erro três, Cherrie estaria mais curiosa do que eu
sobre o convite, e já teria me feito contar cada detalhe sobre a bailarina, para pesquisarmos
juntos.
Mas o monstro na minha frente sabe exatamente quem é a bailarina, porque foi ela quem
planejou isso.
— Não sabe de nenhuma informação? — Abaixo os olhos para o seu peito em
descompasso, e os subo rapidamente para o seu rosto.
— Oh não, mon chouchou... — Suspira, cínica e dissimulada, com uma voz forçadamente
angelical. — Só acordei hoje no meu tio e voltei para a casa.
Quero rir do seu fingimento, mas me seguro.
— Não consegue falar com ela? — tento mais um pouco, só para ver até onde vai. — Aí no
headspace, talvez.
Ela faz um biquinho, segurando outra carta coringa, como se quisesse que, de alguma coisa,
eu entendesse seus planos.
— Você sabe que em cada sistema os alters se comunicam de forma única. Eu não tenho
acesso a Europa, apenas ela a mim.
A frustração amarga o palato, pois sei que não há a menor chance de conseguir qualquer
informação dela, e isso me preocupa. Como vou fazer para ver a bailarina outra vez?
Continuo paralisado enquanto luto contra os instintos de fechar os punhos, porque sei que só
a deixaria ainda mais atrevida. O passatempo de Europa Young é tirar as pessoas do sério só para
vê-las explodir, viciada no frenesi que as pessoas lhe derramam sempre que arrancam seu
sangue.
— Vou para a casa, podemos conversar amanhã.
Manda beijinhos com seu charme mortal e eu me despeço dos outros Sangue em Ascensão,
ainda relutante quanto a ideia de voltar para a casa que Ellie decorou com as obras de arte
herdadas.
Tento me concentrar no que vou fazer quando chegar em casa. Vou tomar um banho com
sais, deitar na minha cama e tentar dormir após mais de 24h acordado. Vou finalmente poder
pensar na bailarina e repassar cada detalhe em busca de alguma coisa que não percebi no
momento em que estive com ela. A essa altura, começo a refletir se ela foi real ou um delírio.
Como vou fazer para vê-la de novo, céus?
Principalmente porque agora consigo enxergar minha mãe na bailarina. Elas estão ligadas de
alguma forma e, se eu descobrir mais da bailarina, também posso compreender mais da mulher
que me deixou com um vazio eterno no coração.
Subo as escadas depressa.
E Europa? É ela, não tenho dúvidas. A preocupação que sinto dói no meu próprio peito. O
que Europa está tramando?
Ao abrir a porta do meu quarto, a sensação mais arrepiante de toda a minha vida toma conta
de mim.
Há uma caixa completamente ensanguentada no meio da minha cama, manchando os lençóis
em um nível que faz parecer que um serial killer veio me visitar.
Mas foi apenas ela sendo ela.
Europa, mais uma vez.
Dou passos hesitante em direção a cama, temendo o que vou encontrar dentro. A ansiedade é
como um nó apertado no meu peito, que me obriga a colocar os joelhos sobre o colchão, e puxar
a caixa.
Não tenho dúvidas de que é sangue humano coagulado, pelo forte odor, me fazendo abrir o
laço com ainda mais cautela, mas não é um órgão humano, e sim o traje de diamantes que a
bailarina de porta-joias usou na sua apresentação.
O ar escapa dos meus pulmões, aterrorizando-me com a ideia de o sangue ser dela, e eu
avanço sobre as peças, procurando alguma pista. Só há uma coisa intacta na caixa, dentro de um
porta-joias de ouro sujo de sangue.
A calcinha dela.
Levo até o nariz apenas para ter a certeza da mente pérfida de Europa.
Está com o cheiro da bailarina.
Desvio os olhos da caixa para o resto do quarto, vasculhando a cena do crime. Tem uma
carta na minha mesa de cabeceira e, dessa vez, não me dou ao luxo de analisar os detalhes
minuciosamente. Rasgo o envelope afoito.
BONECA QUEBRADA

Tenho uma nova rotina.


Depois de receber a cesta de mantimentos para o dia com a ração dos meus cachorros,
separo o que cada um vai comer.
Eu mesma fiz um patê de fígado com legumes para complementar a alimentação de
Meldora, já que ela amamenta e precisa estar forte.
Coloco a tigela de Conrad mais afastada, no canto da cozinha, porque ele fica um pouco
agressivo se os filhotes chegam perto e não queremos nenhum acidente familiar.
Sento-me no chão para acompanhar os filhotes, que estão na introdução alimentar. Odalisca
se engasgou duas vezes, Corsário engole sem mastigar e Gulnara quer dormir em cima da tigela
e fica cheirando ração. Ok, os três têm bafinho de ração e leite, e talvez, só talvez, eu fique
beijando os seus focinhos só para me deliciar com a gostosura.
Enquanto como, Meldora fica lambendo os filhotes (suspeito que ela também seja viciada no
bafinho deles) e Conrad fica sentado em frente a porta, encarando-me com seus grandes olhos
redondos e suas orelhonas preto, branco e marrom caídas.
–– Estou indo. –– aviso.
Abro as suntuosas cortinas de renda francesa antes de colocar minha digital na maçaneta.
Eles são tão inteligentes. Acho que já entenderam o que o apito da porta de correr da cozinha
significa, porque Conrad começa latir e Meldora dá voltinhas, toda charmosa.
Pego os três filhotes no colo e os coloco no braço de um jeito tão fofo que tenho gana, e os
abraço, os espremendo contra o meu peito.
O casal corre para fora com seus rabos de espanadores balançando tanto que tenho a
sensação de que a faxineira não vai precisar varrer a neve da minha varanda. Meldora cheira o
deck congelado e Conrad corre em direção aos cisnes, me obrigando a ir atrás, gritando e rindo
da situação.
Ele não tem coragem de pular no lago aquecido e fica me encarando como se me pedisse
para fazer alguma coisa contra essas majestosas aves brancas.
— Queira você ou não, eles também são membros da família, Conrad.
Conrad chora em resposta e eu continuo com a postura de “sinto muito”, então ele vem
perto, me ajoelho, e nós nos fitamos com uma profundidade que me faz pensar como é possível
amar tanto, compreender tanto, e se sentir tão conectada, a um ser tão diferente de você?
Conrad se aproxima, cheirando os seus filhotes antes de apoiar as patinhas dianteiras no meu
braço e me lamber no rosto. Meus olhos se enchem de lágrimas com a demonstração de carinho,
sei que é cedo para descrever, mas amor é pouco para o que sinto.
Eles são minha vida.
Então volto, sorrindo e chamando Conrad, que vagueia pela propriedade em busca de
invasores para atacar. Minha majestosa Meldora está na parte coberta do deck feito uma rainha,
tomando o sol fraco enquanto lambe as patas.
Sento-me em espacate, fazendo com as longas pernas abertas uma cerca para os filhotinhos
não passarem, e os solto no piso de madeira para tomarem sol e brincarem com os brinquedos de
pelúcias que estão por todo o lugar coberto.
Meldora sai de onde estava e vem até mim. Deita-se ao meu lado, apoiando a cabecinha na
minha perna para que a acaricie. Não sei qual era a sua vida antes, mas seu olhar reflete profunda
gratidão.
E eu acho que o meu também.
— Você é a coisa mais linda da minha vida, sabia? — acaricio uma das suas orelhinhas de
um jeito que o laço de seda rosa cai. — O que acha de a mamãe escovar você?
Meldora levanta a cabeça e posiciona as orelhas em pé, observando-me em tom de alerta.
Então late e a Odalisca tenta imitá-la.
— O seu primeiro latido! — vibro, acariciando seu focinho, rindo. — Também quer ser
escovada, bebê? É vaidosa assim?
Um movimento faz com que Meldora se levante e, agitada, saia do deck, entrando
novamente pela porta. Então Conrad passa por mim, convertendo toda sua coragem e macheza
em latidos estridentes para dentro da casa. Os filhotinhos tentam segui-los e eu os coloco
rapidamente na cozinha e encosto a porta, porque eles caíram do degrau do deck uma vez e me
senti uma péssima mãe.
Ainda não me acostumei com o fato de haver seres ávidos para me proteger. Seus cuidados
simbolizam uma maneira de demonstrar gratidão por tê-los adotado, me sinto falha e
imerecedora, afinal, fui a pessoa salva por uma familinha de cachorros.
Na terceira latida, me dou conta de que Meldora e Conrad estão avisando algo, e corro até
hall de entrada da casa.
São dez da manhã, meu Dono não se comunica a essa hora, e eu não tenho olho mágico, mas
se a portaria deixou passar, então preciso abrir a porta para descobrir quem está tocando a
campainha.
— Olá Boneca-bailarina! — Meu cabeleireiro se aproxima e me beija no rosto. — Fiquei
sabendo que você vai fazer uma transformação.
Dou passagem e ele adentra com sua mala de rodinhas, seguido do assistente.
— É mesmo? — Estou sem reação.
Ele sorri como se eu estivesse fazendo piada e se dirige ao assistente.
— Leve esses equipamentos para cima. — Não precisa dizer o caminho, pois Sebastian
conhece minha mansão e sabe onde é o spa. — Vou no carro buscar o restante.
— Mais coisas? — meu timbre sai estridente, pois há mais do que o necessário no spa, assim
eu nunca saio de casa. — Não estou entendendo, Joseph. — Ele não me falou nada.
Isso nunca aconteceu antes.
Ele sempre me comunica com antecedência, afinal, há uma série de protocolos como não
comer, me concentrar com a música de porta-joias. Mas, acima de tudo, o tempo entre as minhas
apresentações costuma ser longo, levando meses entre uma sessão e outra, e a minha última foi
semana passada.
Joseph pede um segundo e sai pela porta, enquanto eu e os meus cachorros nos encaramos
com o cenho franzido de preocupação. Então o homem volta cheio de sacolas da Miumiu e uma
mala nova da Hermes.
— Pediram para eu te entregar. — Põe tudo na minha mesa.
São roupas, minissaias plissadas brancas e cinzas, minivestidos com pérolas e laços de todos
os tamanhos, tecidos chiffon e bordados, casacos azuis e rosa claro. À medida que vejo as peças,
tento não me desesperar com a confusão, afinal, recebo peças novas a cada quinze dias — não
repito peças de roupa — acontece que já ganhei peças novas, semana passada, direto do Haute
Couture de Paris.
Há duas sacolas de lingerie, mas não somente sutiã e calcinha como uso no dia a dia ou nos
espetáculos, e sim conjuntos com cinta-liga, saias para fetiche, camisolas riquíssimas com
camadas e babados rendados.
— Ele te explicou o motivo? — minha voz quase não sai.
Joseph responde tirando do bolso interno um estojo quadrado, tão grande que não sei como
coube no seu casaco. Pego o material aveludado e o abro com preocupação e expectativa.
É uma nova coleira.
Trata-se de uma coleira toda perolada, com linhas o bastante para preencher todo meu
pescoço, além de tiras longas que caem sobre o meu colo, prontas para puxar. As pérolas
também não são todas do mesmo tamanho, nem do mesmo tom de branco, indo de um tom
rosado a um azulado, furta-cor, denunciando que a origem delas são naturais em vez de
fabricadas.
— Conchas de Nácar. — O homem me diz. — Uau, parece que o presente de Natal de
alguém vai ser um final de semana espetacular com você.
Ainda estou com o estojo aberto em minhas mãos.
— Final de semana? — Subo os olhos até os dele, sem entender. — Como assim final de
semana?
O homem dá de ombros.
— Foi o que me disseram. — Toca em minha cintura. — Agora vamos, porque você precisa
estar pronta até as 16h, para pegar o helicóptero.
Chego a sentir vertigens.
— Preciso? — tenta me puxar e eu desvio do seu toque, com a desculpa de que só preciso
guardar a coleira junto com a minha coleção, no meu quarto.
Porém o que eu quero mesmo é ficar sozinha. No primeiro momento, não entendo o porquê
estou triste. Quer dizer, ganhei um presente lindo do meu Dono. Mais do que isso, meu Dono
nunca me deixou ficar mais de uma noite com outro Jogador, então existe uma possibilidade
muito grande de ser ele o convidado, sim, por isso ele escolheu cada detalhe. Isso é tão a cara
dele, ter ficado horas escolhendo o que vou vestir e como vou estar...
O frio na barriga se instala. Meu coração bate tão forte que sinto que posso morrer a cada
segundo que ele brinca com a minha sanidade, em vez de simplesmente me dizer o que está
planejando. Meu celular está sem mensagens novas.
Pego o meu celular e, receosa, digito as primeiras palavras, porém as apago. Devo ficar
quieta, devo aguardar as instruções, apenas obedecer, estou dizendo isso a mim mesma enquanto
caminho para o spa, quando Conrad surge na porta com o seu olhar que diz mais que mil
palavras.
Paraliso, compreendendo o motivo pelo qual estou triste, mesmo com a hipótese de ver o
meu Dono. É mais do que simplesmente não querer sair de casa. Eu não posso sair de casa.
Quem vai cuidar dos meus cachorros?
Busco os filhotes na cozinha e o casal de cachorros me acompanha até o espaço onde vou
me arrumar. Coloco as almofadas do sofá no chão e os aconchego, porém Meldora sobe no meu
colo.
— Que lindos, Boneca-Russa. — Elogia Sebastian, sorrindo para os filhotes enquanto
prepara a tinta.
Sinto o frio na barriga se intensificar.
— Meu Dono me deu. — Beijo a cabeça de Meldora. — O que vai acontecer com o meu
cabelo? — indago, receosa, porém conformada. — Ele quer curtinho outra vez?
Temo que ele diga que sim, porque os fios acima do ombro são difíceis de prender, o que me
atrapalha nos passos de ballet, porém tenho a consciência de que não vou poder fazer nada a
respeito. Por mais que eu ame os fios longos, é meu Dono quem escolhe meus cortes de cabelo.
Sinceramente, minha preocupação é outra.
Joseph me mostra o aplique de cabelo natural, antes de começar a separar os meus fios.
— Vamos escurecer e alongar.
Minhas mãos estão suando tanto que o celular quase escorrega, meu corpo inteiro tensiona,
fazendo-me ter medo de que os profissionais percebam. Mas não consigo esconder minha agonia
e eles notam que não tiro o olhar da tela do celular, na conversa com meu Dono, e tentam me
distrair.
— Agora, novidades do seu mundo. — Joseph começa a passar o líquido em meu couro
cabeludo. — Tem uma Boneca nova arrasando corações.
Sorrio, porque sei que ele e Sebastian fazem o que podem para socializar comigo, como uma
ponte nesse mundo de segredos. Só que não estou com cabeça para nenhum outro assunto.
Kitty: Miau.
Mordo os lábios com a aflição e o arrependimento latejando. Sei que tenho permissão para
mandar mensagens quando for uma emergência, porém nunca uso o aval, nem quando tenho
crises de endometriose e preciso me arrastar até o remédio.
— Ela é a Boneca-sereia. — Sebastian completa, com certa dramatização, escovando o
aplique. — Precisa ver o canto dessa gata, deixa os homens de joelhos.
Dono: Oi, Kitty. O que foi?
— Mas o Dono dela não é bom como o seu. — Meus olhos desviam do celular para o
homem, que continua explicando: — a sereia está passando de mão em mão.
Kitty: Não foi nada.
Engulo em seco, me martirizando. Respiro fundo e continuo:
Kitty: Acabei de ficar sabendo que vou viajar e estou confusa.
Dono: Confusa com o quê?
Meu pulmão se comprime tão forte que fico alguns segundos sem respirar, me arrependendo
por chamá-lo. Digito um pedido de desculpas, porém Meldora está no meu colo e a preocupação
ganha espaço no meu peito, guerreando com a razão.
Kitty: É que não houve comunicação e eu ainda não entendi o que vai acontecer. Vou passar
o final de semana inteiro fora?
Dono: Você realmente não está entendendo. Houve comunicação, eu sempre te digo tudo o
que precisa saber.
Levanto a cabeça, encarando o meu reflexo na parede de espelho a minha frente enquanto
tento não demonstrar o desespero pelas suas palavras.
Ele está brincando com a minha cabeça.
Ele está brincando com a minha cabeça.
Tic-tac.
Kitty: Ok, desculpe perturbá-lo. Miau.
Dono: Sanei a sua dúvida?
Um frio percorre toda a minha espinha enquanto penso na resposta. Sinto a voz dele ressoar
dentro de mim e movo os pés involuntariamente. Sei que ele quer ouvir um sim, porém não
posso mentir para o meu Dono. É uma encruzilhada.
Kitty: Estou preocupada com passar o final de semana fora. Quer dizer, os cachorros ainda
estão se habituando com a rotina, e eu tenho os filhotes. Como vou fazer? Acho que não posso
levá-los, não é?
Meus dedos tremem quando recebo sua resposta curta.
Dono: Não faça eu me arrepender por presenteá-la com esses cachorros, Aleksandryia.
Dói mais do que um soco na boca do estômago, de modo que eu respiro lenta e
profundamente, já que não posso abaixar a cabeça para deixar as lágrimas caírem, preciso
inspirar devagar, enquanto assimilo a frase. Conheço-o bastante para saber que foi uma ameaça,
o suficiente para compreender a seriedade implícita ao me chamar pelo meu nome.
Como pude ter sido tão idiota de tê-lo chamado para perguntar a minha dúvida? Tremo, com
vontade de chorar, me sinto vulnerável, exposta para alguém que não se importa, que só finge.
Isso me quebra mais do que o que ele disse. Sou tão boba. Quantas vezes não fui dormir
chorando pelo mesmo motivo?
Meu telefone toca com o número dele, e meu cabeleireiro gesticula para seu ajudante deixar
tudo como está e saírem da sala antes que eu lembre que sou obrigada a atendê-lo.
— Miau. — Atendo com a voz esganiçada.
Sua respiração lenta me corta em duas.
— Me deixe te fazer uma pergunta. — A voz grave e aveludada sempre me faz tensionar
cada centímetro do meu corpo, como se pudesse me proteger do impacto que é tê-lo o tempo
inteiro na minha mente. — Meldora sobreviveria sem os seus brinquedos?
Encaro a câmera no canto na sala, enquanto acaricio minha cadela. Ele está me vendo.
— É claro. — Devolvo, mecânica e medrosa.
— Ela seria feliz sem os brinquedos dela?
Sinto o frio na barriga me devorar.
— Sim. — Sussurro.
— Por quê?
Engulo todas as emoções que formam uma bola na garganta e as lágrimas começam a rolar
pelo meu rosto antes que eu tenha coragem de expor a resposta.
— Porque eu sou tudo o que importa para ela.
— Como acha que estou me sentindo agora?
Meus lábios tremem com sua pergunta, de modo que eu fecho os olhos enquanto sinto as
batidas do meu coração ficarem pesadas de tanta culpa, a voz embarga e eu desisto de conter as
lágrimas, que escapam grossas e descem lavando o meu rosto com o calor amargo.
— Triste... — um soluço faz a palavra sair entrecortada.
— Aleks, sempre cuidei das suas necessidades. — É curioso como, ao mesmo tempo em que
soa como uma bronca, também se parece com uma declaração, bagunçando minha cabeça. — O
que te levou a pensar que eu não cuidaria dessa vez?
Burra, idiota, burra, burra. Quero bater na minha cabeça, mas ele me vê pela câmera, então
me concentro em mover os dedos dos pés.
— Eu só fiquei com medo...
— Como você quer que a nossa relação fique, se você não confia mais em mim?
Há uma espécie de melancolia que se instala, um sentimento de desalento que pesa na hora
de pensar em uma resposta que toque no coração de um homem tão difícil quanto o meu.
Difícil sou eu, mordo a língua com tanta a força que sinto o gosto metálico, e a ideia de ter
sangue escorrendo me deixa ainda pior, e eu sugo a língua.
— Vou melhorar nesse aspecto. — Digo, com a boca fechada.
— Sei que vai, vai ter o final de semana inteiro para trabalhar a sua confiança.
Escuto algo dentro de mim se chocar e se quebrar, causando um eco que faz eu me perder
dentro dos meus próprios pensamentos.
Na última vez que meu Dono falou algo assim, ele me fez correr dele e dos seus amigos em
uma floresta, completamente nua em um inverno com temperaturas mínimas.
Por isso, saio da atmosfera, como se um botão fosse desligado dentro de mim junto com a
sua chamada, em um estado de transe que não me deixa sentir ou pensar em mais nada, nem
mesmo em meus cachorros, e tudo o que eu faço é cantarolar a melodia do porta-joias.
Nada mais tem sentido ou importância, nem quando Joseph termina o meu cabelo e
Sebastian começa a maquiagem, nem quando ele me coloca em frente ao espelho e diz que estou
linda, ou quando o helicóptero chega para me buscar e uma adestradora profissional está me
esperando no hall.
Explica que foi contratada há alguns dias e que recebeu filmagens de Conrad fazendo xixi
no sofá. Promete cuidar de todos e treiná-los com adestramento positivo, porém eu nem mesmo
me despeço dos cães.
Simplesmente entro no helicóptero e deixo o motorista me levar para o inferno escolhido da
vez.
Estar a tantos pés de altura tenta me trazer de volta, já que eu sempre amei voar, e ver toda a
cidade cheia de neve se distanciando é quase tão bonito quanto a vista do céu no meio de um pôr
do sol de inverno.
Então encaro minhas pernas e percebo que troquei de roupa, porque estou com uma linda
meia-calça branca e um salto com pompons, estico as mãos e vejo a cor de unha nova, passo as
mãos pelos cabelos e reparo no quanto estão longos e escuros.
Sinto minhas mãos exageradamente frias, meu estômago ronca por algo que me dê sustância
e o meu cérebro pesa toneladas. Não sei nem o porquê estou tão nervosa, já deveria estar
acostumada com a nossa dinâmica.
Tento não pensar no que me espera em meu destino, mas seria uma ótima surpresa se fosse
meu Dono, e tudo o que aconteceu não tivesse passado de um exercício de confiança besta.
Fecho os olhos com a ideia, imaginando. Ele me abraçaria e toda a tristeza que estou sentindo
agora desapareceria, e fitaria o fundo dos meus olhos e tudo valeria a pena, apenas pela forma
que me sinto toda a vez que ele me toca e eu me sinto finalmente — amada.
Mas ele não pode passar nenhum feriado comigo, pois tem obrigações com a sua família.
Fico pensando se é algum dos seus amigos e tento me convencer de que, se for, meu Dono
colocou nas regras que não podem me machucar, então não vão ser sádicos comigo outra vez.
Está tudo bem.
O nervosismo novamente volta a penetrar minhas células quando o helicóptero pousa no
meio do nada e um funcionário com terno e gravata estende a mão para eu descer, enquanto
outro pega a minha mala. Preciso deixar o fone na cabine e o bater das hélices é ensurdecedor,
assim como o vento bagunça todo o meu cabelo novo.
Observo a vista desse ponto de pouso particular, enquanto tento me distanciar. Estou em
uma fazenda, há cavalos soltos correndo não muito longe dos campos brancos.
— Você também acha lindo a maneira como eles se movem? — Viro-me com o cenho
franzido em uma expressão de confusão.
Nem sequer consigo acreditar em quem estou vendo na minha frente, com um sorriso largo o
bastante para exibir todas as covinhas que sua barba castanha tenta esconder. De gola alta azul-
marinho e as mãos nos bolsos da calça, com classe e uma postura que reconheço do Royal Ballet.
— Como se estivessem dançando, não parece?
Ele também não faz ideia de todas as sensações que permeiam meu corpo no momento em
que suas palavras me atravessam feito um tsunami que bagunça todos os meus sentimentos da
mesma maneira que a sequência de ondas incomuns, repetidas e irregulares mexem com o mar.
— Você... — Fecho os punhos e começo a brincar com meus pés, ficando na ponta dos
dedos, focando no esmagamento das juntas calejadas contra a dureza do chão e no peso da minha
própria magnitude.
Ele percorre seu olhar castanho pelos meus traços, observo-o perder o ar e, do largo sorriso,
seus lábios se entreabrem, maravilhados. Ele avança um passo e eu dou outro para trás,
encostando na mureta, mas ele parece não perceber e se aproxima, o suficiente para tocar em
meu cabelo, não forte o suficiente para sentir o puxão, mas tem força aplicada, o bastante para
arrepiar meu corpo inteiro, me fazendo perder o ar e esquecer todas as palavras que estavam na
ponta da minha língua.
— Como consegue ser ainda mais linda do que eu me lembrava?
Nossos olhares permanecem entranhados enquanto eu oscilo para não perder a disputa,
guerreando com seus traços marcantes. E, de repente, ele é tudo o que preciso para descarregar
um pouco desse peso que me deixa tão exausta, das brincadeiras do dono e de tudo, e eu
empurro-o.
— Quem te deu a permissão de me tocar?
— Não é o que você está pensan…
Tremo dos pés à cabeça. Suja por ter me submetido a uma proposta atraente, achando que
meu Dono se importa comigo, triste por gastar toda a minha energia com isso, exausta pelas
noites maldormidas, sempre faminta, instável, bagunçada, traída e enganada por mim. A raiva
que sinto não é por ele, é direcionada a mim.
— Não é o que estou pensando? — devolvo a pergunta, me afastando. — Você não pagou
milhões para me usar o final de semana inteiro?
Assim que ouço a minha frase, caio em mim e sou consumida pela culpa e o medo. O que
aconteceu comigo? Sinto um frio dançar por todo o meu corpo com essas palavras. Perco a fala,
a postura, o orgulho e até esqueço meu nome. Ele poderia dizer que é isso mesmo, pegar a minha
mão e me levar para um quarto, e me manter trancada lá, fazer o que quiser comigo, mas quando
tento me aproximar ele faz um gesto para eu continuar onde estou.
Parece que um muro se levantou. Já não faço a menor ideia se o ofendi, pois o Jogador, com
os braços cruzados, me entrega um olhar impenetrável, onde nada vaza, nenhuma informação ou
sentimento. Sem ele me mandar calar a boca, me sinto à mercê de mim mesma, tentando impedir
que meus pés se movam na primeira, segunda e terceira posição.
— Desculpe. — Peço, tremendo os lábios.
Ele arqueia as sobrancelhas. Posso jurar que também está com raiva, embora não a
demonstre na frase.
— Vou falar com o piloto. Você pode voltar para sua casa.
Sinto o golpe da boca do estômago me preencher com uma vontade de vomitar. Se eu voltar,
e o meu Dono descobrir como me comportei, o que vai ser de mim?
Simplesmente caio de joelhos.
— Por favor! — imploro, com as mãos juntas. — Perdoe-me, por favor, me desculpe...
Então eu pisco as lágrimas que bloqueiam minha visão e ele está na minha frente, segurando
em meus dois braços e me levantando.
— Não chore. — Ordena, fazendo eu respirar lentamente com o timbre grave da sua voz. —
Se você quer ficar, você fica. Senão você pode ir, não vou falar com o seu Dono.
Balanço a cabeça, sem saber como fazê-lo entender que não vou acreditar em nada que sair
da sua boca, se meu próprio Dono me traiu ao me entregar de bandeja para o único Jogador que
eu neguei.
Ele me levanta vagarosamente, enquanto nossos olhares se mantêm presos no outro, sem
conseguir desviar a atenção.
Penso em como ele deve ser importante para o Jogo, ao ponto do meu Dono me emprestar,
um final de semana inteiro. Ele poderia me punir, me chutar de volta para o helicóptero, então
por que continua me amparando, com um olhar preocupado?
— Está mais calma? — Faço que sim.
Continua me encarando desse jeito, como se enxergasse o que acontece nas minhas
profundezas que explique a minha maré agitada.
— O que quer fazer?
Sinto minha língua completamente desnuda, sem nenhuma palavra na ponta dela, e meu
coração bate tão alto que mal escuto o que sai da minha boca.
— Ficar.
Ele deposita as mãos nas minhas costas enquanto me encara com uma intensidade que me
faz perder a fala. Gesticula para o copiloto, chamando-o. Com o homem do meu lado, explica:
— A qualquer momento que você quiser ir embora, esse homem — aponta para ele. —
Estará esperando para te levar, entendeu?
Assinto, com a vontade de chorar crescendo à medida que ele fica fazendo isso, seja lá o que
for, que não reconheço de lugar nenhum. Então o Jogador pega na minha mão e me leva para
uma área externa, perto dos cavalos, onde uma mesa com queijos e vinhos está montada.
Puxa a cadeira para que eu me sente, e ocupa o assento ao lado do meu, de pernas cruzadas
enquanto enche minha taça com suco de uva, me convidando a me servir, ao mesmo tempo em
que alterna a atenção entre os queijos, a vista do pôr do sol e eu.
E em uma mirada dessas é que percebo.
Há desejo no olhar que dedica a mim.
Talvez ele goste de coisas quebradas. Talvez ele não seja como os outros Jogadores. Seu
prazer não está em meu corpo, está em meus sentimentos.
Se eu permitir que brinque comigo até enjoar, ele me deixará em paz e não contará nada para
o meu Dono?
Serei o seu brinquedo por um final de semana.
A sua Boneca-quebrada.
PRIMEIRAS VEZES

Passo a meia hora seguinte estudando esse Jogador.


Ele não é difícil de ler, só é assustador. Já estive com Jogadores muito piores, a questão é
que eles não tentavam esconder o lobo que eram em uma linda pele de cordeiro, ao contrário,
gostavam de exibir suas versões animalescas. Esse insiste em beber vinho e comer queijo
admirando o sol se pôr como se fôssemos a porra de duas pessoas normais.
Ele é bom em fingir, mas não consegue se esconder de mim, na maneira como me fita por
breves segundos antes de desviar o olhar e comentar algo sobre a raça dos cavalos tordilhos,
inclusive, esse é outro problema. Ele fala tanto que desejo colocar o dedo entre os seus lábios e
pedir cinco minutos de silêncio. Observo os pastos, imaginando que estou sozinha aqui, ouvindo
apenas as corujas uivarem em seus ninhos nos cumes das majestosas montanhas brancas.
— Não é?
Volto a atenção ao homem, que me observa com as sobrancelhas franzidas como se
esperasse uma resposta. Engulo em seco. O que ele estava falando mesmo? Era sobre cavalos,
sobre equitação, hipismo e a vez que disputou a Derby.
— O que é Derby?
Ele sorri, aliviando a testa franzida de um jeito que observo melhor o conjunto que torna o
seu rosto tão hipnotizante. Ele tem sobrancelhas grossas e escuras, da mesma cor que a barba
cerrada, e dos cílios, longos e curvados, e as íris quentes como chocolate em calda. São doces.
A decepção por estar reparando nisso me assola e eu faço um movimento forte como chicote
em meu pé, fazendo a dor irradiar pelos tendões. Assinto vagarosamente, embora não esteja
prestando atenção em nada do que ele diz, com meu rosto em chamas pela culpa e o palato
enjoado, lutando contra a vontade de sair de perto dele.
— Entendeu?
Mordo a língua, mas ele sorri largo a ponto de suas covinhas se tornarem visíveis, mesmo
com a barba cerrada sombreando-as. Desisto de tentar me acostumar ao efeito que esse sorriso
causa.
— Será que o senhor pode não fazer perguntas? — desconto com os pés, os movendo
freneticamente debaixo da cadeira, tentando ser educada, treinada e profissional.
Perfeita.
— Desde que não me chame de senhor. — Devolve com um sorriso largo e o palito na
frente da boca, com a luz dourada do sol e o brilho claro da neve refletindo em seu rosto
desenhado.
Não consigo lembrar de outro Jogador que tenha me irritado tanto.
Cruzo os braços, inspirando tão profundamente que só me lembro do quanto devo parecer
amável quando meus pulmões estão cheios, e eu solto o ar lentamente. Busco-o com o canto do
olho e ele fecha o sorriso em lábios brilhantes pela saliva que molha com a língua.
— Vamos aproveitar e deixar claro algumas coisas. — Sabe que conseguiu minha atenção,
porque aproveita para balançar a taça antes de bebericar mais um pouco do vinho. Então me fita
com profundidade, de um modo que não consigo desviar. — Sobre esse final de semana. Eu não
paguei para ter você. — Meus lábios se abrem em um “o” com a informação.
Espreguiça-se como se tivesse vencido a discussão que está travando sozinho na sua cabeça
problemática. Aproxima-se, pondo um dos braços em cima da mesa de um modo que eu vejo
seus músculos apertarem o suéter, o relógio Jaeger-LeCoultre, me paralisando com o tic-tac.
Ajusto a postura dócil.
— Eu pagaria, mas foi um presente. — Diz me fitando como se eu fosse sua presa. — Um
presente no qual passei a semana inteira pensando. — Admite, de um jeito que me faz franzir o
cenho, confusa. Então recua, encostando as costas no encosto da cadeira. Conta: — sabe, o Natal
é a pior semana na empresa, todo mundo quer comer bem, comprar os ingredientes da ceia,
encher as dispensas para receber a família. — Sorri consigo. — E eu nem consegui trabalhar, só
ficava pensando em quando te veria outra vez, — me entrega um sorriso, prendendo sua atenção
em meus lábios. — E agora você está aqui, e é ainda mais linda do que imaginei o tempo todo.
Abaixo a cabeça enquanto tento prestar atenção nos movimentos que faço com os pés,
ouvindo a minha voz interna me preparar para o que vai acontecer esse final de semana. Ele me
quer mesmo. Estou encurralada, sem ter como correr para outro lugar que não seja a cama desse
Jogador.
Parece que não vai demorar para acontecer.
— Vem. — Levanta-se, estendendo a mão. — Vou te levar para o seu quarto.
Encaro suas mãos esticadas. Quanto antes eu aceitar, mais fácil. Não é difícil, já fiz isso
muitas vezes. É só imaginar meu Dono. Por que estou tão relutante?
Assim que aceito sua mão, no entanto, sinto suas palmas escorregadias de suor, entregando
um nervosismo que ele não aparenta na postura. Apesar disso, ele entrelaça seus dedos nos meus,
segurando-me como se tivesse medo de que eu o solte.
Isso me abala de um jeito que não esperava. Desejo empurrá-lo, mas não tenho coragem
nem de encará-lo por cima dos ombros, e deixo que me arraste adentro das portas de madeira
antiga com um charme rústico e acolhedor nos envolvendo e o calor das suas palmas fazendo as
minhas suarem de nervoso, misturando nossos sentimentos em uma tensão torturante.
Do lado de dentro, a luz suave que atravessa as janelas antigas destaca os detalhes da
decoração clássica, desde os lustres majestosos até os móveis de época que contam histórias de
gerações passadas estampadas nas paredes.
— Essa é uma das primeiras propriedades da minha família. — Comenta, passando por uma
parede com porta-retratos de hastes douradas nos campos verdejantes. Paro de frente a uma
fotografia de bovinos Hereford. — Você sabe qual é meu nome? — Inclino a cabeça para o lado
e ele revira os olhos, com o sorriso que pelo jeito está preso no seu rosto e que, ainda assim,
parece ser mais sincero do que todos os que já dei na vida. — Desculpe, é difícil não fazer
perguntas. — Abaixa a cabeça, ele está com as bochechas coradas? — Sou Damon Duncan.
O silêncio que se segue é imediato e faz meu coração acelerar como se eu tivesse sido pega
por um vendaval violento. Ele estende a mão para um cumprimento e não entende o porquê eu
abraço os próprios braços. Dá três passos à frente, cortando distância, e dou um e meio para trás,
até encostar na parede. Acuada.
— Você não conheceu muitas Bonecas. — Assimilo, sem sustentar o contato visual por
mais que três segundos antes que sinta a linha da água encher de lágrimas com a vertigem que
me faz querer fugir, mas não posso, preciso encarar esse problema.
E ele é um problema perigosamente bonito.
— Você é a minha primeira. — Comenta, tomando a intimidade de tocar nas minhas costas,
convidando-me a andar. — Queria poder perguntar como adivinhou. — Questiona com um
timbre cuidadoso.
Fito-o de baixo para cima.
— Nunca, nenhum Jogador me disse o nome. — Murmuro, sem conseguir segurar as
lágrimas.
Nunca, nenhum Jogador me disse o nome.
Nenhum.
Nem meu Dono.
— Ah. — Solta o ar dos pulmões, errando o passo. — Não estava nas Regras.
Não consigo evitar o riso fraco com a sua resposta, com uma única lágrima saltando do rosto
enquanto o encaro com a resposta na ponta da língua.
Mesmo que estivesse, você não se importaria, Damon Duncan.
— Gostaria de perguntar o seu nome. — Aproveita a deixa, coçando a nuca como se eu não
percebesse a tentativa de abertura.
Mais natural do que todos os movimentos que fiz desde a primeira vez que o vi, devolvo.
— Ainda bem que não pode perguntar nada, Damon. — Fito-o alguns instantes antes de não
resistir a um sorrisinho, então molho os lábios com a língua e os mordo, me corrigindo. —
Desculpe. Eu não...
Abre um largo sorriso enquanto inclina a cabeça, até ficar perto o suficiente para que eu
sinta o calor do seu hálito com gosto de vinho arrepiar minha nuca quando ordena em um
sussurro:
— Não peça desculpas. — Passa a língua entre os lábios roxos. — Gosto quando se atreve.
Subo olhar até os seus, em posição de submissão quanto ao que ele desejar fazer. É o
momento perfeito para ele me prensar contra a parede e enroscar meu cabelo na moldura desses
quadros, suas mãos são grandes o bastante para preencher a minha cintura com um único toque.
A voz do meu Dono vem a minha cabeça em um lembrete constante sobre a quem pertenço.
Essa é outra parte estranha sobre mim. Durmo com os Jogadores que meu Dono escolhe, mas
não deixa de ser sobre o nosso relacionamento. Sobre lealdade e confiança. Sobre os fetiches
dele a respeito da sua Boneca, a sua Kitty.
Nunca teve a ver com o dinheiro que ganho, não disse sim pelo dinheiro, concordei porque
era única forma de ter meu Dono. O que me interessa nesse espetáculo de porta-joias é saber que
a cada toque no meu corpo, meu Dono me deseja mais. Isso me excita de uma forma doentia. É
febril e devastador. Não importa com quantos homens eu faça sexo, todas as vezes é sobre meu
Dono. É ele na minha mente, manobrando cada orgasmo e cuidando das minhas feridas.
Mas, não está sendo, agora. Está sendo sobre Damon.
— Onde tem um banheiro? — fujo, escapando feito um animal assustado, enquanto minha
mente alerta sobre cada detalhe que estou fazendo diferente das outras vezes.
— Pode ficar com esse quarto. — Abre uma porta, me entregando uma das suítes mais
lindas que já vi na vida.
Percorro os olhos pelo espaço composto por madeira escura revestindo as paredes com uma
sensação acolhedora e elegante. O chão de tábuas largas exibe um brilho polido, refletindo a luz
suave que entra pelas cortinas de linho branco até os tecidos rendados que decoram a imponente
cama com dossel que pende ao teto.
— Você pode desfazer sua mala e se trocar. — Sento-me na cama, deslizando as mãos por
uma colcha de linho finamente bordada. — Se quiser. — Olha o relógio. — Te espero na sala
principal daqui a uma hora?
— Não vai ficar? — Pergunto, afinal esse é o melhor quarto da casa. Eu acho.
— Vou ficar no quarto ao lado.
Fecha a porta e eu tombo o corpo para trás, observando o teto. Levo as mãos até o pescoço,
retirando a coleira.
Trata-se de uma corrente de 13mm de ouro branco, apertada, com três fios de ouro branco
entrelaçados em seus elos Cartiers. Na frente, outros dois fios funcionam como enforcadores
quando não estão decorando o meu pescoço, e um pingente de pingo d’água decora tudo com
uma pedra de safira que ele escolheu porque combina comigo.
Uma gota do oceano.
Estava me apresentando em Moscou quando ele apareceu pela terceira vez, com a proposta
no bolso. Eu nunca enxergava a plateia, mas senti sua presença atrás de mim. Parecia um deus,
desses que cresci fazendo pedidos. Ele realizaria os meus desejos.
Por isso foi tão baixo.
Eu era uma jovem talentosa, no início da carreira, descobrindo o mundo, completamente
deslumbrada. Ele era o mundo inteiro. Quem nunca se viu fascinado pelo brilho do sol?
Havíamos nos conhecido há uma semana e em outro encontro, ele havia me proporcionado a
noite mais incrível da minha vida inteira, tirando a minha virgindade. Quando disse que veio de
Nova Iorque apenas me ver, porque não parava de pensar em mim, que eu era rara, não pensei
que suas palavras pudessem ser apenas distração para que não percebesse sua investida de atear
fogo na minha sanidade.
Sentia cada célula do meu corpo arder por ele.
— Me dê suas próximas vinte quatro horas, bonequinha russa, — ouço a voz da sua
lembrança se misturar com a minha. — É só o que te peço.
Meu coração dói tanto que meus lábios tremem e eu não suporto, levanto em um salto e abro
a mala em cima da cama, retirando o meu estojo com as coleiras que trouxe. Retiro a nova, de
pérolas Nascar, fecho o estojo e guardo direitinho na mala. Encaro a minha joia nova enquanto
projeto todas as frustrações do meu Dono, quase como se pudesse vê-lo e ouvir um pedido de
desculpas.
Pego rapidamente o meu porta-joias, coloco sobre a penteadeira e o abro, em uma eficiência
mecânica. Sei o que devo fazer quando a mágoa me faz ter pensamentos negativos sobre meu
Dono. Giro a chave.
A primeira nota musical machuca como se uma faca estivesse entrando no meu cérebro, mas
é só no primeiro segundo, e depois eu não consigo desviar meus olhos da caixa de joias, e a
música parece estar me chamando para mais perto. Todos os sentimentos se distanciam conforme
eu aproximo os ouvidos do porta-joias, e eu me sinto como se estivesse em um mundo diferente,
onde tudo é possível e a música parece estar ficando mais alta e mais intensa.
Fecho meus olhos e me deixo levar pela canção, sentando-me na cadeira enquanto o peso
parece controlar meus movimentos. É como se eu estivesse na superfície de um oceano calmo e
sereno, de modo que enrosco a joia entre os dedos, abro as pernas e ergo os quadris para retirar a
calcinha.
Então me concentro nos melhores dias da minha vida.
O que era para ser um passeio na minha cidade natal se tornou uma visita à Praga e, após,
um tour por Viena, onde ele me bombardeou com sexo romântico. Navego pelo meu corpo com
a joia, até o meio das minhas pernas. Depois ele me levou para conhecer uma de suas
propriedades, em Budapeste, e as inúmeras festinhas sexuais que ele dava despertou meu
interesse por kinks. Deslizo as pérolas até a região úmida. Da Hungria fomos para a Croácia,
Albânia, e a cada território, mais do meu corpo e principalmente da minha mente, ele
conquistava.
O frio das pérolas sobre a minha intimidade quente causa um frisson tão gostoso que eu
esfrego os dedos em movimentos circulares, mais excitada com a ideia de encharcar a coleira.
Meu cérebro é incapaz de pensar em qualquer outra coisa, intensificando as sensações corporais
com as doses de arrepio que me fazem contorcer em espasmos ritmados e o prazer de penetrar
meus dedos com as pérolas, friccionando-as contra o meu ponto.
Mas a voz dele me faz parar antes de atingir o clímax.
Os comandos ficam mais altos com a melodia, dominando mais de mim enquanto sua voz
me manda o que fazer. Escolho um dos meus Haute Couture MiuMiu, tomara que caia com
comprimento midi, estruturado ao ponto de marcar a minha cintura, afinando-a mais, de um
modo que mesmo os seios pequenos aparecem no decote. Há bordados dourados assemelhando a
botões luxuosos, e o tecido é branco acetinado, evidenciando ainda mais meus cabelos escuros
caindo por todo o meu colo e os olhos azuis contornados pela maquiagem cut crease.
Aproximo-me do espelho e coloco a coleira de pérolas melada, para que o cheiro do meu
prazer lembre que o foco ainda é ele. Sempre ele.
A determinação em minhas pernas trêmulas dura até eu chegar na sala.
Não tinha reparado na árvore de Natal antes, mas ela brilha tanto agora que é impossível não
me lembrar de quando eu ia a shoppings com minha avó escolher os meus presentes. Há tantas
luzes que eu me sinto no cartão postal de Moscou, e o perfume de nozes incendeia o ar, fazendo
meu estômago roncar e levar minha atenção para a mesa.
Metade dela é com pratos russos, com salada de batata recheada de legumes frescos, ovos
cozidos, dumplings recheados e temperos autênticos que exalam um perfume tentador,
acompanhados por creme azedo. Entre os pratos principais, Borscht, uma sopa de beterraba que
minha avó fazia e eu amava por causa da cor roxa intensa, que me faz querer dar pulinhos e
comer nesse segundo.
Assim como nos costumes russos ortodoxos, não há carne.
Na outra parte, há tudo de mais americano e clichê possível, do Thanksgiving Turkey até
Coca-Cola.
— Se você quiser podemos comer agora — Damon diz e eu me viro na sua direção.
Ele está vestido com um terno smokey tão preto que parece aveludado, e gravata borboleta.
Sua barba está mais bonita e o seu cabelo penteado.
— Mas acho que é tradição esperar até meia-noite, não? Eu não sei direito, minha família
não liga muito para Natal, Jesus e etc. A minha mãe comemorava, então quando criança eu
amava esse feriado. — Seus ombros caem gradualmente. — Mas ela faleceu e eu nunca mais
comemorei. Até hoje.
Então, ele retrocede alguns passos, convidando a me aproximar para ver no que a televisão
está pausada. Quando suas mãos encostam em minhas costas desnudas pelo decote do vestido,
sinto o perfume suave da loção de barba misturado ao seu perfume.
— A gente pode assistir uma coisa para aquecer a nossa noite e o feriado, assim você não se
sente pressionada a falar.
Penso que é pornografia, mas é muito pior.
É um espetáculo do Quebra-Nozes, da minha casa, o Bolshoi, no meu palco, com as minhas
pessoas e, principalmente, comigo estrelando a Clara, aos doze anos, alta e magrela, no ano em
que fui contratada pela academia. Meu primeiro espetáculo honorável. Sinto uma vontade de
morrer me devorar de dentro para fora e eu odeio como a cada segundo desmorono um pouco
mais.
— Não foi tão difícil encontrar, quer dizer, eu disse que pensei muito em você, não disse?
Talvez eu tenha pesquisado no Youtube. Todos os vídeos de ballet no acervo, na verdade. Daí
achei esse, até que a definição está boa.
Como, se meu Dono disse que tiraria do ar tudo o que tivesse a ver comigo, depois da crise
depressiva que tive, onde me arrependi do nosso acordo e tentei me matar?
Sinto a tristeza penetrar minha alma, células e ossos, simplesmente não tenho forças para
bater de frente com Damon. Não posso ficar ruim de novo, agora tenho meus cachorros. Não
posso perder a cabeça longe de casa, longe do meu Dono. Na frente de um estranho. Damon não
pode dar play.
Minhas mãos estão trêmulas e a exaustão é a única coisa que me impede de agir. Sinto um
aperto sufocante no peito, como se meu coração estivesse sendo espremido, e não aguento o
impacto, apenas deixo que o som dos meus soluços corte o ar.
Então Damon coloca a mão em cima das minhas, com uma proximidade que me faz querer
empurrá-lo, entretanto não consigo nem me mover, as lágrimas caem em silêncio.
Choro mais por saber que cada gota que cai sai suja de sangue, por ser extraída de uma
ferida tão profunda e aberta, rasgada e incinerada, exposta a um estranho. Estou a trabalho e isso
me faz sentir mais culpa. Eu não presto mais nem para isso.
A dor de não estar sendo perfeita, e sim o completo oposto me faz chorar tanto que perco o
fôlego, Damon parece desconcertado com meu choro. Coloca meus cabelos para trás e, sem
razão alguma, acaricia meu rosto, como se analisasse a região.
Fitamo-nos profundamente enquanto ele mantém segurando firme as mãos no meu rosto,
então me puxa para os seus braços, apoiando minha cabeça no seu peito enquanto sustenta
minhas costas com seu toque. Choro até a fraqueza vencer, até não ter força para nem mais uma
lágrima e só então percebo que essa é apenas mais uma das coisas que saíram do meu controle.
Estou nas garras de um dos melhores Jogadores, e não acho que ele vai me soltar.
LÁGRIMAS

Lembro da primeira vez que vi minha mãe chorando. Eu devia ter uns quatro anos porque
ela pediu que colocássemos nossos brinquedos favoritos na mochila do Rei Leão, e era a época
em que eu achava que era o Simba.
Lembro das suas lágrimas molhando o topo da cabeça e o medo que eu senti por vê-la se
desmanchando em dor, sem entender por que isso me deixava tão assustado. Até aquele
momento, eu pensava que adultos não choravam, e a quebra de expectativa se intensificou
quando meu pai entrou no quarto e a mandou desfazer as malas.
Desço o olhar até a bailarina, ainda sem acreditar na vulnerabilidade que ela está me
entregando, e faço tudo o que meu pai não foi capaz de fazer com a minha mãe, acariciando suas
costas, confortando-a para que fique o mais confortável. Não tento interromper seu pranto, em
vez disso, deixo-a chorar tudo o que ela esconde com essa aparência impecável, até que a
dopamina faça o efeito em seu cérebro.
Vi minha mãe chorar muitas outras vezes, sei como funciona. Assisti-a definhar de tristeza
assim como um câncer que progride, e a depressão que a visitava durante as brigas com meu pai
se transformaram em um maligno tumor de melancolia. Enquanto a bailarina coloca para fora os
seus sentimentos, aproveito a deixa para revisitar os meus.
Ver minha mãe desse jeito me perturbava tanto, que não sei como estou calmo, impassível
feito uma muralha capaz de manter a dançarina em pé. Tem algo mais assustador para uma
criança do que ver a pessoa que ela mais ama, no mundo, sofrendo? Eu ainda me sinto pequeno,
aqui dentro dessa casca, preso no cenário onde a mulher mais importante do meu mundo está se
dissolvendo em dor, repetindo cada momento, todos os dias, em um espiral que me corrói com o
vazio.
Ainda assim, de alguma forma inexplicável, é como se algo mais importante do que meu
desespero dominasse minhas células, assumindo o controle. É como se eu soubesse exatamente o
que fazer, como se, durante todos esses anos, eu tivesse aprendido para, de alguma forma, ajudar
a mulher em meus braços.
Senão, por qual motivo, meu caminho cruzaria justo com o da bailarina cuja presença me faz
revisitar todos os traumas do meu passado, a cada vez que me entrega esse olhar azul?
Esse é o motivo pelo qual esperei tanto por esse encontro. Não é só porque ela é a coisa mais
linda que meus olhos já viram, ou porque o ballet que ela dança faz balançar tudo o que eu
mantive adormecido dentro do meu peito. É porque ela pode me dar as respostas que arrancam o
meu sono e tomam toda a minha paz.
Ela pode explicar o que aconteceu com a minha mãe. Ela pode me dizer o que eu fiz de
errado e, no melhor dos casos, ela pode me deixar fazer o certo. Meu coração dispara com a
ideia, meus olhos percorrem o ambiente e, em uma tentativa de consolar a dançarina, pego a flor
mais próxima, uma rosa vermelha no arranjo de mesa, e dou para a Boneca.
Ela me entrega um dos seus olhares profundos enquanto assimila o que significa, com as
lágrimas escorrendo em uma linha pela maquiagem do rosto dela, de um modo que vejo suas
translúcidas sardas e a ponta do nariz avermelhada. Depois de um tempo me analisando, sorri em
meio as lágrimas e, cheia de receio, aceita o presente.
Uma vez, descobri que dar flores fazia mamãe sorrir. Isso se tornou minha arma secreta,
assim como o ballet. Quando ela ficava muitos dias de cama e não queria se levantar, eu montava
a mesa para ela com o arranjo de florezinhas que os jardineiros me ajudavam a escolher. Pedia
para as funcionárias prepararem waffles, só para despejar o mel por cima antes de oferecer o
prato, porque assim ela comia.
É surreal imaginar que uma criança de oito, nove e dez anos, se sinta responsável por um
adulto, mas, mesmo tendo tudo o que o dinheiro pode oferecer, esse peso era um segredo que eu
carregava em silêncio. Por Deus, como eu faria tudo de novo, todos os dias, até descobrir o
porquê não foi o suficiente.
O porquê eu não fui suficiente.
Talvez por isso que ver a bailarina em prantos doa tanto que também me faz desejar colocar
para fora as feridas que nunca cicatrizaram. Talvez a resposta esteja nos meus braços. Duas
Bonecas quebradas, mas só uma ainda está viva. Se eu colar os cacos dela, os meus vão parar de
sangrar?
Quando eu tinha quatorze anos, mamãe foi internada em uma clínica psiquiátrica depois de
um surto psicótico em uma festa. Por seis meses, eu e meu irmão acreditamos que ela seria
curada. Foi como se o peso saísse das minhas costas, por saber que ela estava a salvo, que eu
podia dormir sem medo de acordar com a notícia que perturbava minha sanidade.
Essa mágoa me destroça todos os dias.
Como eu saberia? A saudade por não a ter participando do nosso dia a dia, em casa, era
consolada por uma motivação maior. Mamãe estava sendo tratada. Bem, era o que pensávamos,
até convencer nosso pai a nos levar para uma visita.
A primeira decepção da nossa vida normalmente acontece na adolescência. Eu deveria estar
sofrendo por corações partidos e as coisas bobas que preenchiam o dia de Zaki, Cameron,
Cartier, não por aquilo.
Mamãe estava muito pior do que quando foi levada.
Olho para o lado e reconheço na bailarina cada lágrima, cada soluço agudo, potente o
suficiente para me desesperar.
— Boneca… — Tento segurar a sua mão e ela desvia.
Mesmo em todos os anos, dentro de casa, por mais que minha mãe ficasse magra e abatida,
ainda assim ela estava ali. Ela ria das mesmas piadas, se alegrava com as mesmas flores, ainda
era a minha mãe. Não a mulher que encontramos naquela clínica. Não havia a Charllote em lugar
nenhum na carcaça dela.
Meus próprios olham inundam com lembrança de mim e Dyl nos fitarmos aterrorizados.
Papai também se desesperou, mas o que ele fez para fazer diferente? Ele saiu do quarto e
começou a chorar com uma intensidade que nunca havíamos visto. Os olhos de Dylan também
marejaram e eu, pela primeira vez em toda minha vida, também desejei me entregar a tristeza.
Mas eu não podia. Ela precisava de mim. Ela só tinha a mim, então fiz o que era necessário.
Meninos se tornam homens quando decidem amar como um. Sai pela porta e disse ao meu pai
que iriamos tirar ela daquele lugar.
É aqui que começa a ficar estranho.
Ele disse que não podia. Em toda a minha vida, nunca tinha ouvido nada como isso. Nós
somos Sangue em Ascensão, nós tínhamos tudo, podemos tudo. Repeti que iriamos tirar ela, bati
o pé, lutei por isso como nunca.
Meu pai chorou mais. Disse que não podíamos. Ela precisava ficar até o tratamento acabar.
Mas que tratamento?
Foi a única vez que vi meu irmão lutar por algo. Ele gritou que estavam machucando-a
naquele lugar. Que tipo de hospital era esse?
Meu pai disse que era para o bem dela, que também a queria viva, mas essa era condição.
Sempre pensei que ele estivesse falando de uma condição médica, algum tratamento com
choque ou sei lá, mas e se não for? Meu coração bate na garganta com a hipótese e eu abraço
mais forte a bailarina. E se tiver a ver com o fato dela ser uma Boneca?
Só a bailarina pode me explicar.
Puxo-a para o mesmo abraço que dei na minha mãe aquele dia. Repito:
— Vai ficar tudo bem.
— Não. — A bailarina me empurra. — Isso não está certo. — Ameaça, destruída. — Eu não
posso... — E soluça inconsolavelmente. — Não posso. Sou condenada. Não posso. Eu estraguei
a minha vida.
Observo atentamente suas palavras, gravando-as na minha mente para estudá-las quando
todos os meus pensamentos não estiverem concentrados em uma única coisa.
Mamãe dizia as mesmas palavras que a bailarina.
Naquela ocasião, quebramos as Regras e a trouxemos para a casa. Logo que chegamos, ela
me fitou no fundo dos olhos e me disse:
“Pare de tentar, Damon. Pare de perder seu tempo comigo. Eu não tenho conserto.”
— Não diga isso, Boneca. — imploro, assustado com seu pranto e mais horrorizado ainda
por, no auge do meu egoísmo, estar aliviado em ver quão viva ela está com sua respiração
fungada.
Meus olhos a percorrem dos pés à cabeça, tentando encontrar algo que me ajude a distingui-
la da minha mãe. Ambas possuem uma beleza estonteante, ambas se vestem como Barbie, têm
cabelos longos e escuros, olhos grandes e delineados. A bailarina está limpa e cheirosa.
A versão do passado não conseguiu se limpar do vício.
Tentei convencer meu pai a me deixar estudar em casa, para ficar perto da minha mãe
porque eu e meu irmão éramos os únicos que ela deixava ficar no quarto, mas meus avós não
permitiram. Eu precisava me preparar para o ensino médio. Então minha rotina consistia em vê-
la antes da aula e voltar correndo para casa, para ficar de olho nela. Eu pensava que assim
poderia ajudá-la, mas, no único dia em que me atrasei devido a uma prova, ela tentou se matar
com remédios.
Tento imaginar o que deixou a Boneca-Russa nesse estado.
Quem.
— Quer conversar sobre o que a deixou assim?
Com a minha mãe, fui eu quem gritou para os funcionários ligarem para a emergência, fui eu
quem entrou na ambulância a caminho do hospital. Fui eu quem segurou na mão dela até que os
médicos levassem a maca para a UTI. Fui eu quem ficou sozinho naquela ala enquanto meu
irmão, meu pai e meus avós não chegavam. Fui eu quem sentiu a derrota e a decepção de falhar
penetrar cada célula de quem eu sou. Dor, culpa e fracasso se infiltrando em cada centímetro dos
meus ossos, enquanto todo mundo se perguntava o que aquele garoto rico estava fazendo sozinho
naquele Pronto-Socorro.
A bailarina se levanta depressa.
— Desculpe, senhor. — Mantém a cabeça baixa, dando passos para trás. — Juro que isso
nunca aconteceu antes.
Também fico em pé.
— Onde quer ir?
— Vou pedir para o meu Dono vir me buscar e...
Ela tenta dar outro passo e eu a agarro com toda a esperança que me resta.
— Eu não te dei permissão para ir embora.
Encara-me com os lábios trêmulos enquanto procura as palavras certas.
— E-eu não estou em condições de fazer companhia ao senhor.
Por que ela está me chamando assim novamente? Não tínhamos passado dessa fase?
— Mas isso quem decide sou eu, não?
Tenta se soltar, sem conseguir esconder a irritação latente.
— O senhor disse que eu poderia ir quando quisesse.
Penso em obedecer, sim, porém, como posso ouvir sua súplica? Parece terrível obrigá-la a
ficar aqui, mas seria ainda pior acatar sua decisão. Será que ela mora com o seu Dono como
Scarlet com George? Ou será que ele apenas vai visitá-la? Todas as opções que envolvem
arrancá-la do meu campo de visão parecem péssimas.
Minha mãe não morreu naquele dia. Na verdade, depois dele, ela teve uma melhora súbita,
assim como em um câncer terminal. Por algumas semanas, ela foi a mulher que meu pai e o
mundo inteiro se apaixonou. Ela me mostrou que estava bem, me incentivou a relaxar já que,
dentre todas as pessoas no mundo, era a única que realmente me via.
Em um domingo lindo, mamãe sugeriu que convidássemos os x-herdeiros para jogar
videogame, em casa. Ela preparou tudo para que eu baixasse a guarda. Fez eu prometer que iria
brincar a tarde toda, assim não poderia suspeitar que ela estaria, finalmente, se matando no andar
de cima.
Não vou baixar a guarda outra vez.
— Acho que mudei de ideia. — Consigo reagir.
— Por que seus olhos estão cheios de lágrimas, Damon? — Soa quase sem forças.
Mamãe pediu que eu a deixasse em paz com seus monstros, naquele dia, e a dor a devorou.
O mesmo monstro que se alimenta da bailarina bem na minha frente. Não quero insistir e deixá-
la mais tensa e nervosa, mas não vou cometer o mesmo erro.
A angústia dessa constatação abre um buraco em meu peito maior e maior, ocupando o
espaço que deveria ser dos meus pulmões e me deixando com a mesma falta de ar que me
acompanhou por anos.
— Não vou deixá-la ir. — Assumo de uma vez.
— Eu não quero ficar.
— Tudo bem. — Abraço-a a força. Seu corpo enrijece quando colidimos e demora alguns
segundos para voltar a respirar, desconfortável. Fecho os olhos e me concentro em sentir seu
coração bater forte contra o meu. — Vou cuidar de você.
— Damon! — sua voz sai chorosa. — Vou ligar para o meu Dono se você não me deixar ir.
— Põe as mãos no meu peito, tentando me empurrar, em vão. — Você está me assustando! —
Soluça alto, quebrando o meu coração.
Sua frase é como um golpe, desses que esvai toda a força e embaralha a mente inteira. Não
entendo, porque cai com tanta força e me abala tão profundamente que quem continua é meu
inconsciente embaralhado em seus traumas.
Não vou deixá-la ir a lugar nenhum, não enquanto não tiver o máximo de informações sobre
onde ela mora e um vínculo com ela. Mas a bailarina não entende. Empurra-me e me encara
como se eu fosse um inimigo, afrontosa e raivosa, determinada. Nossos olhares se cruzam outra
vez, e acontece de novo, de o ar ao redor ficar rarefeito, pesado de tanta emoção.
Quebra o contato, virando o rosto. Temendo perder a batalha, recorro à única arma que me
dá vantagem. Levo minhas mãos até sua face, obrigando-a a manter contato fixo e ser drogada
pela mesma química que me faz enxergar nela o retrato do meu passado.
Ela não tem forças para lutar contra, e, de modo a convencê-la, acaricio seu rosto.
— Me deixe cuidar de você, linda bailarina. — Suplico. — Não posso deixá-la ir embora
assim. Não me peça para ir outra vez.
Cuidar de você é a única maneira de consertar a minha própria alma quebrada.
De repente, a bailarina é uma última chance de fazer algo bom.
Imerjo nas sensações que escorar na sua fragilidade me proporciona, certificando-me do seu
calor.
E então ela faz de novo.
O semblante de uma superfície insondável, inóspita e revoltada desaparece do rosto dela,
prestes a me afogar com mais uma das suas ondas, dessas explosões que até os dentes se
chocam.
Despeja em mim todas as emoções que a afogam, contando com isso para me fazer buscar o
fôlego.
— Por que… — indago, sem voz, a beira-mar, entre os seus lábios. A bailarina não tenta me
empurrar, apenas abaixa a cabeça. — Por que faz isso?
Encaro-a, completamente consternado pelas atitudes imprevisíveis da Boneca quebrada.
— Foi seu Dono quem te ensinou a agir assim? — Seus lábios estão roxos e seu queixo
treme de medo, mas ela não responde. — Me responda.
Seus olhos se arregalam.
— Ah, sim. É. É ele.
— Não precisa mais fazer isso, me beijar por medo. — Ela arregala os olhos, confusa.
Ela puxa suas mãos, mantendo-as contra o corpo.
— Por quê? — Abraça os próprios braços, desconfiada. — Vai me deixar ir embora?
Faço que não. Preciso que ela entenda.
— Boneca, me deixa explicar…
— Você não entende, Damon! Eu sou comprometida!
Esfrego o rosto com agonia.
— Isso não importa!
— Para ele sim! — Grita, voltando a chorar mais, de um jeito que me faz tremer. — Sou eu
quem vai lidar com as consequências, ok? — Diz, completamente desestabilizada. — Eu só
quero voltar para casa!
É como uma deixa que eu agarro.
— Meu pai era abusivo, ele abandonou minha mãe na própria dor, e eu nunca o perdoei por
isso. Ela também era uma Boneca. — Solto com a voz trêmula e ela arregala os olhos da minha
direção. — Nunca me perdoei por fazer o mesmo, uma única vez. — Revelo o que nunca admiti
para ninguém, com lágrimas preenchendo a linha da água. — Como eu poderia deixar você
assim, tão machucada, e fingir que não é problema meu?
— Você é doente. — Ri, com fúria. — Eu não sou problema seu.
Esse timbre me irrita também.
— É enquanto eu quiser que seja.
Arregala os olhos, recuando.
— Damon…
Também suspiro, porque entendo o que está acontecendo.
— Ao mesmo tempo, se eu te mantenho em cárcere, ignorando sua vontade e a coagindo,
estou imitando-o. — ela balança a cabeça, perdida. — Não peça para ir embora outra vez. —
Tiro outra mecha de cabelo que cai na frente dos seus olhos, escondendo a selvageria marinha
que me encanta tanto, escuro como o oceano a meia-noite. — Me deixar ajudá-la, irá me ajudar
também. É só um final de semana, o que pode acontecer?
VÉSPERA DE NATAL

O choro da Boneca é abafado por um riso que denota escárnio quando ela indaga:
— Posso ir ao banheiro, pelo menos? — Não consegue esconder o tom genioso por trás da
fachada submissa.
Não sei o porquê adoro tanto essa sensação de poder.
— Pode, mas não demore.
Ela não consegue esconder o olhar de ódio antes de me dar as costas e, depois de tê-la visto
chorar daquele jeito, ver essa mulher empinar o nariz em passos apressados pelo corredor me faz
sorrir como se eu tivesse vencido as Olimpíadas.
— Precisa de ajuda para encontrar? — ela faz um gesto de não com as mãos, abrindo porta
em porta.
Acompanho sua silhueta marcada dentro do vestido estruturado e o menear do quadril de um
lado para o outro em passos desfilados que fazem seus saltos tilintarem contra o piso, tão preso
nos movimentos do seu corpo que, quando me fita por trás com um sorriso atrevido de quem
encontrou a porta certa sozinha, prendo o ar dentro dos pulmões, sentindo cada célula endurecer.
Deveria me culpar por achá-la tão sexy, principalmente quando a Boneca não faz o mínimo
esforço para me seduzir. Ela odiaria descobrir que isso só a torna ainda mais deliciosa.
A minha razão tenta ganhar espaço entre a química que inunda meu cérebro e me deixa
ainda mais louco por esse oceano de mistérios. Ela deixou bem claro que não quer estar aqui.
Isso deveria me parar, mas continuo nadando de braçada.
A sensação é de estar afundando.
Vem a minha mente a figura dela me encarando com seus olhos azuis tempestuosos,
violentos como ondas de um mar revoltado com o vendaval que se arma acima de si, levando
tudo consigo.
Estou mergulhando na sua existência e não quero emergir à superfície. Digo a mim mesmo
que posso nadar contra a correnteza, só não quero. Não quando ainda sinto o gosto do seu beijo,
vejo o seu recuo constante, assim como as águas profundas de um oceano ficariam revoltas por
serem evocadas a emergir à superfície.
O que a bailarina esconde de tão perigoso bem no fundo?
Penso no bem dela. O lugar de uma dançarina como ela não é se prostituindo para homens
ricos, escondida atrás de um Dono. Ela é linda demais para fazer espetáculos privados, o mundo
deveria ver a sua luz.
Seria egoísmo meu fazer do mistério dela passatempo, mas seria um ato de humanidade
ajudá-la a se encontrar. E, se isso responder às inúmeras perguntas da minha mente obcecada,
que mal há?
— Pronto. — Ela diz, fechando a porta e se aproximando. — O que planejou para nós?
Algo nela mudou.
Seus cabelos lisos continuam iguais no charme como caem pelo seu rosto, e ela limpou a
maquiagem borrada, mas a linha da água continua mais escura, entregando um quê dramático
que combina tão bem com o seu rosto. Não é só angelical, é divina, com uma beleza única que
me faz vasculhar toda a minha mente em busca de um adjetivo tão perfeito quanto ela.
Não posso evitar perder o ar toda vez que ela respira.
Também não há sinal de tristeza no seu rosto. Não sei como ela escondeu tão bem o brilho
dos olhos e o nariz avermelhado, porém a forma como me olha é receptiva, viva e prestativa,
bem diferente da maneira habitual.
— Você está bem? — franzo o cenho.
Ela sorri e eu só entendo que há algo errado porque ela faz uma tentativa de releve com o
salto.
— Estou ótima.
Desvia rapidamente o olhar para a mesa antes de se aproximar o bastante para enroscar seus
braços nos meus, como se me pedisse para guiá-la ao que quer que eu deseje.
Pobre dançarina, não faz ideia do quão arriscado é brincar assim comigo.
Nessa distância, no entanto, sou eu o maior prejudicado. O seu cabelo é perfumado com um
doce que alastraria facilmente pelo quarto, lençóis e travesseiros, do tipo que te deixa a semana
toda preso nas memórias do que aconteceu na sua cama. Mas não só no cabelo. À medida que me
aproximo do seu pescoço com a coleira de pérolas, sinto um cheiro... excitante.
— Qual é o perfume que você usa?
Ela dá de ombros, move os pés e sorri com uma mordidinha nos lábios.
— Depois te mostro.
Concordo, feliz por vê-la mais empolgada com o nosso final de semana. Faço um
movimento para esticar o braço a fim de ver a hora e ela põe a mão por cima, como se pedisse
para eu não expor o meu relógio. Então desço as mãos até o bolso para pegar o celular e ver a
hora, sem a menor intenção de me deparar com a seguinte mensagem:
Cherrie: Como estão as coisas? À propósito, a posição favorita dela é cachorrinho. Sim, eu
penso em tudo, me agradeça depois. Espero que esteja aproveitando com a bailarina, use-a como
se fosse a última vez.
Europa Young.
Meu coração erra as batidas.
— Mas que porr...
— Oi? — A Boneca fita-me com os olhos atentos em uma expressão preocupada.
Basta bater os olhos nela que eu esqueço completamente do resto do mundo. De repente
nada mais importa senão a mulher na minha frente, silenciando todos os pensamentos que
deveriam me alertar, como o fato dela mexer os pés incontrolavelmente, demonstrando
desconforto pela interação.
Não consigo reagir, afastá-la ou fazer qualquer outra coisa que não envolva acariciar suas
bochechas com meu polegar, como se pudesse entender pelos detalhes do seu rosto a
complexidade da sua personalidade.
— Você está diferente.
Ela sobe as mãos até meus bíceps, abraçando-os. Não sei em que momento ficamos tão
próximos, porém agora nossos lábios estão a um triz de se tocar, abafando toda a atmosfera ao
nosso redor.
— Quero reparar a situação, te mostrar que eu não sou o que você viu. — Explica com o seu
sotaque carregado, rouco e sexy, me fazendo sentir seu hálito quente em meus lábios molhados.
— Sou muito melhor.
Abaixo os olhos para o seu decote e os subo rapidamente para o seu rosto, com o arrepio
percorrendo minha dorsal. É impossível não sentir meu corpo reagir quando meus olhos se
cruzam com os tons de azul-escuro e resquícios claros das íris dela. É como uma droga e, eu,
feito um usuário que acabou de descobrir os efeitos, decido ignorar os sinais.
Esse é o primeiro erro da noite.
— Vamos jantar. — Convido, antes que ela abaixe o rosto e perceba o volume na minha
calça.
A mesa é de doze lugares e, nos segundos em que me aproximo, me arrependo de não ter
escolhido logo uma de dois, temendo que ela se afaste. Porém eu me esqueci que ao meu lado
está outra bailarina, e essa, de todos os lugares, escolhe o ao lado do meu.
Ela se ajeita no assento, apoiando o braço no meu ombro de um modo que posso sentir sua
respiração quente alcançar a pele do meu pescoço.
Sorrio para ela enquanto aperto o botão que faz um dos funcionários nos servir e, com uma
postura treinada, a bailarina pede uma tigela com a sopa de beterrabas. A princípio, penso que é
alguma mania russa sobre como tomar sopa, mas não é.
Ela come como uma gata.
Encaro-a tomar a sopa com lambidinhas, completamente consternado pelo que estou vendo
e, por um segundo antes de voltar a fingir, ela me devolve um olhar que expõe tristeza e
humilhação. Sinto uma agonia profunda, mas não quero demonstrar, então permaneço impassível
diante da cena. Nossos olhares se entrelaçam em uma espécie de elo invisível, que une nossas
dores em uma conexão emocional poderosa. E, em um gesto de demonstrar gratidão por ela ter
exposto a mim algo tão íntimo, pego na sua mão e deposito um terno beijo, selando nosso acordo
silencioso de cumplicidade.
— Posso perguntar o motivo?
Ela sobe a cabeça, limpando os lábios com a língua.
— É o acordo que fiz com o meu Dono.
Só estou tentando não perder a cabeça enquanto não tenho nomes.
— Ele não está aqui, agora. — Devolvo, irritado com o canalha. — Não precisa fazer. Pode
comer como uma pessoa.
Ela sorri com uma frieza, passando o guardanapo na boca.
— Você não entende. — Vislumbro o brilho molhado em seus olhos. — Ele sempre está —
aponta para a própria cabeça — aqui.
Há tanta melancolia nas suas palavras que soam com um golpe que me faz perder o ar e
gemer de dor. Então abaixa o olhar e morde os lábios como se estivesse martirizando-se pela
exposição. Analisa o meu vinho e sorri com malícia, se recompondo.
— Mas, já que você é um Jogador rebelde e quebra as Regras, aceito um pouco de vinho.
Segundo erro da noite. Encho sua taça.
— A propósito, sou um Jogador exemplar, não um rebelde.
Ela gargalha. É tão quente que me enlouquece de vontade de arrancar a qualquer custo toda
a escuridão que pincela seus azuis até vê-los intensos e alegres como as águas do Caribe.
Imaginar o calor do seu corpo é excitante demais.
— Por isso é importante para o Jogo? — Ela parece se lembrar.
— Quem te disse isso? — investigo, levando o garfo à boca.
— Meu Dono.
Endireito a coluna. Então ele me conhece? Será que eu o conheço? Será que ele é um
Jogador ou uma Peça?
— O que mais ele te disse? — indago, cortando a carne.
Balança a cabeça exageradamente, alegre pelo álcool que acabou de começar a beber.
— Só isso. E você está fazendo perguntas demais. — Corrige, franzindo as sobrancelhas de
um modo que eu levanto a mão em rendição. — Você prometeu que não faria perguntas!
É a minha vez de rir com a bronca. Definitivamente ela é russa.
O restante do jantar ocorre em um agradável silêncio que é cortado apenas pelos meus
comentários sobre as comidas, do tipo “prove essas batatas” ou “está uma delícia esse assado.”
— São especialmente raras essas trufas brancas — comento, também com a boca cheia. —
Não existe a possibilidade de produzi-las. Precisam ser caçadas em meio às árvores específicas
em determinada época do ano.
Ela só bebe a sopa de beterrabas, como se fosse a coisa mais valiosa da mesa em vez do
caviar, wagyu e trufas brancas.
— A minha avó fazia Borscht para mim. — Explica, bebericando a taça de vinho com a
língua. — Tem a ver com a época da guerra, o nosso vilarejo era muito pobre e ela tinha que se
virar com o pouco que conseguia. Beterrabas.
Balanço a cabeça enquanto penso em como a guerra foi lucrativa. Para os Duncan porque,
com a Europa arrasada pela guerra, nos tornamos líderes na distribuição mundial de
commodities. Além disso, os Harding, Lloret, Vannozza e Isakai foram os que mais cresceram,
elevando o valor de todo o nosso Tabuleiro.
Tirando essas conversas rápidas, no geral, não comemos muito. Ela porque provavelmente
come pouco, e eu porque gostaria de me saciar com outra coisa.
Mas tudo o que me resta é ficar passando vontade toda vez que ela balança os cabelos, passa
a língua nos lábios e respira perto de mim. Francamente, já aceitei esse fato, posso conviver com
a distância desde que a bailarina esteja no meu campo de visão. Posso me divertir com isso.
— Podemos assistir a um filme. — Sugiro, tentando pensar em uma forma de segurá-la
comigo. — Algum filme de Natal que goste?
Ela fica em pé, mas não consegue esconder a inquietação. Não consegue me olhar nos olhos,
observando todo o redor.
— Eu não assisto.
Meus ombros caem, me levantando também.
— Não tem televisão?
— Eu não assisto.
Caio no erro de perguntar:
— Por quê?
Mexe os pés.
— Diminui a conexão com meu Dono.
Começo a andar na tentativa de esconder o ódio que sinto desse filho da puta a cada frase
que sai da boca dela sobre ele. Ela, por sorte, não percebe e continua:
— Tenho uma ideia do que a gente pode fazer... — sorri com uma malícia que desconheço.
— Eu danço para você, e você me dá uma nota.
Não consigo esconder o sorriso com a proposta, aceitando-a no mesmo segundo, com as
batidas do meu coração disparando contra o tórax.
— Entendo de ballet. — Conto vantagem, sem tirar os olhos do corpo dela. — Vou ser bem
técnico.
Ela balança a cabeça, negando a minha provocação com o charme presente em cada
respiração que sai da sua boca entreaberta.
— Não ballet. — Faz um gesto com as mãos, em uma posição que seduz cada centímetro de
mim. — Vou dançar algo que você nunca viu.
E que nunca vou esquecer.
Sinto um frio na barriga impulsionar o sorriso que não sai do meu rosto, com a certeza de
que nunca foi tão largo e doloroso em minhas bochechas.
— Quem escolhe a música? — minha voz sai rouca.
Ela põe a mão na cintura e, com um olhar magnetizante, sussurra:
— O presente é seu. — Empurra-me para o sofá. Sento-me com a boca aberta pela forma
com ela sorri para mim. — Você escolhe.
Leva menos de dois minutos para eu colocar Swim e conectar com o sistema de som da casa.
Ela começa devagar, como se estivesse sentindo a batida antes de explorá-la com
profundidade. Ela mexe mais os ombros e os braços em movimentos lentos e uma graça
envolvente, respondendo a cada nota como se conversasse com a letra.
Aposto que agora você sente isso, amor
Especialmente porque nos conhecemos há apenas um dia
Meus olhos seguem cada curva do seu corpo com total devoção. A cada balanço de quadril
ou menear de cintura, ela me afunda um pouco mais nesse sofá, e eu perco o fôlego, com a
sensação de que essa mulher está me arrastando para uma correnteza.
Eu estou nadando, eu estou nadando, eu estou nadando, sim.
Então ela me fita, de costas, por cima dos ombros, com um sorriso cheio de maldade, e
murmura algo que eu não compreendo no primeiro momento.
Até ela começar a tirar o vestido.
— Não acredito que vai fazer isso comigo, garota. — Meu coração dispara tão rápido que
coloco uma mão em cima do meu pau duro e o aperto.
— Assim consigo me mover melhor. — Leio em seus lábios.
Estou completamente sem ar.
A Boneca-russa é sublime.
Ela veste um corset de renda rosa, estruturado, mas seu corpo fica ainda mais delineado por
causa da terceira peça, que cobre sua cintura com uma seda azul-acinzentada, transparente.
Os babados abaixo dos seios dão ainda mais sustentação ao pequeno volume dela,
destacando a região. Fico com o olhar preso ao convite que a bailarina faz, apoiando um dos
braços para trás, na estante, deslizando os dedos pelo relevo de um modo que minha boca fica
cheia d’água de vontade de ter um dos seus mamilos para brincar com a língua.
Quase sinto o sabor de endurecê-los com meus lábios.
Quero me levantar, ir até ela e finalmente saciar tudo o que me corrompe desde a primeira
vez que bati os olhos nela, mas se eu partir para cima dela, será que a bailarina vai impor a
barreira de sempre?
Sei que ela está fazendo isso por mim e não por ela, mas se eu a tocar e ela demonstrar
qualquer reação negativa, não vou conseguir continuar. Não há barreiras agora, ela está mais
livre, do que jamais vi, caminhando de um lado para o outro enquanto balança os cabelos longos
e sorri com um brilho que a torna fascinante.
Vou deixar que ela conduza como desejar.
Ela domina cada centímetro do seu corpo com um magnetismo que me aprisiona,
dominando os meus pensamentos. Meu sangue bombeia tão rápido que meu pau dói dentro da
calça e brigo contra os meus próprios instintos para manter a compostura.
A bailarina começa mexer o quadril, levando meu olhar para um passeio exploratório por
seu corpo, da cintura para baixo, me deixando ainda mais excitado com os detalhes perfeitos do
seu corpo esculpido, como as suas pernas, lindíssimas, longas e com músculos torneados. A sua
bunda. Deus.
— 10, 100, 1000, 10000... — solto, sem conseguir parar de me contorcer de tesão no
assento.
Ela me fita por cima do ombro com um sorriso safado, inclinando a bunda para trás
enquanto rebola, em uma posição que me permite ver o formato da boceta dentro da calcinha
pequena. Minha respiração falha só de imaginar como seria gostoso percorrer os dedos pela
borda da costura, adentrar a região molhada e mergulhar para dentro dela.
Imagino que esteja pegando fogo.
O tesão fala mais alto. Se ela está fazendo isso comigo, quero que ela veja o estado em que
está me deixando. Quero que saiba como estou duro e abro o zíper da minha calça, libertando
meu membro. Coloco a mão nele, acariciando a cabeça antes de deslizar até a base e aplicar uma
pressão que me faz gemer.
Ela não parece surpresa, ao contrário, é profissional e não para de dançar para olhar o meu
pau, como se já estivesse acostumada. Sinto um ódio só de imaginar para quantos homens ela já
fez esse número e sou inundado por um sentimento doentio de posse. Quero-a só para mim.
Há um enfeite de pérolas na sua cintura, combinando com a gargantilha que usa nesse
momento. Sou incapaz de reparar em qualquer outro detalhe, pois seus movimentos ditam os
meus.
Se ela vira de costas e rebola a bunda com a calcinha de lacinhos, meu vai e vem é rápido,
mas se ela ergue os braços e balança o seu corpo lentamente, levando meus olhos por ele, então
faço bem devagar, para não gozar fantasiando no quão gostoso seria tê-la nua, todinha para eu
passar a mão e a língua.
— Ah, gostosa — escapa da minha boca.
A cada balanço de quadril ou menear de cintura, ela me deixa mais duro, e eu espalho as
gotas de tesão pela glande, molhando todo o meu prepúcio antes de voltar com mais pressão nos
movimentos. Então a bailarina faz o impensável.
Ela começa a tirar a lingerie.
A primeira peça a deixar seu corpo é a calcinha. A bailarina vira de costas e desamarra os
lacinhos laterais, rebolando até que a peça caia. O meu pau reage ao seu corpo gostoso, fazendo-
me intensificar a velocidade só de imaginar sua boceta aberta, pedindo para eu foder.
— Hmm… — mordo os lábios, com o barulho da punheta ficando mais agudo.
Ela tira o corset, ficando só com a terceira peça, a gargantilha e o cinto de pérolas. Sua
auréola é marrom-clara e o bico tem um tamanho delicioso.
— Ah, ah — gemo, perdendo completamente o controle do meu próprio corpo.
Meu pau está todo lambuzado das gotas de pré-gozo que se tornam cada vez mais
abundantes à medida que sinto minhas bolas endurecerem de tanto tesão, e os espasmos
involuntários me levam para outra frequência.
Estou contorcendo inteiro nesse sofá, tensionando involuntariamente meu corpo a cada
arrepio, quando ela para de dançar, no chão. Penso que ela vai se masturbar também e a ideia de
fazermos isso juntos me faz aliviar a pressão com que seguro meu membro, esperando-a.
Então ela vem até mim.
De joelhos, rasteja para o meio das minhas pernas, encarando-me com inocência enquanto
põe as mãos na minha coxa e molha os lábios para colocar a boca gostosa no meu pau. Ela
começa com um beijo. Beija a glande com os lábios enquanto abre a boca devagar, envolvendo a
cabeça do meu pau com a língua, aprofundando o oral, engolindo-me pouco a pouco,
preenchendo-me com o calor da sua saliva e gosto de céu.
Tudo isso enquanto me encara com os olhos azuis.
Estou prendendo o ar enquanto meu corpo inteiro concentra o sangue no meu pau,
segurando a tensão que cresce a cada centímetro que ela engole de mim até chegar na garganta e
seus olhos brilharem com as lágrimas do engasgo, mas ela não tira. Em vez disso, começa a
mexer a cabeça com movimentos lentos de vai e vem, da ponta até a base.
O prazer é tão intenso que não consigo segurar a respiração e solto com gemido alto,
entrecortado e abafado, agudo ao ponto de fazer toda pressão que eu concentrava ser liberada em
um jato que me faz estremecer dos pés à cabeça, contorcendo-me com o orgasmo forte. Reviro
os olhos com o pico de adrenalina e agarro nos cabelos dela enquanto choramingo de tesão.
Fito-a enquanto lavo o rosto dela com a minha porra.
Não aguentei um minuto do melhor boquete da minha vida.
— Desculpa — solto no último gemido, com a prazer se dissipando e dando lugar a
vergonha. — Isso nunca aconteceu antes, é que você é muito gostosa. — Desvio o olhar dela
para o ambiente, a procura de algo que eu possa usar para limpar seu lindo rosto e compensar a
minha ridícula ejaculação precoce.
Minha vista está tão turva que eu quase não percebo o detalhe vermelho que começa onde
ela estava dançando e faz um rastro pelo caminho, até onde está, encaixada nas minhas pernas.
Passos os olhos pelo seu corpo nu à procura do sangue, e minha atenção vai na única coisa
que ainda veste, os saltos.
O seu pé está ensanguentado.
A minha consciência me golpeia só de pensar em quão desconfortável ela estava com esse
show, ao ponto de se ferir desse jeito.
Perdi qualquer chance que eu não tinha com ela.
Desabotoo a camisa, tiro-a e a amasso com as mãos, para passar o tecido macio do algodão
no seu rosto e ela não precise se levantar.
— Como você está? — Não sei como reagir. — Não está sentindo dor?
Ela franze o cenho antes de lembrar e fitar os próprios pés. Fica quase um minuto encarando
o machucado em silencio. Quando me encara de novo, seu semblante é outro. Os músculos da
face parecem quase retorcidos, e seu queixo treme sozinho.
— Damon! — Grita horrorizada, com uma voz de pânico que corta o ar. — Esqueceu das
Regras?
A Boneca Quebrada não pode ver sangue.
PRIMEIRA CRISE

Ela se senta no chão para amparar o pé e, com a flexibilidade de bailarina, coloca o


machucado na sua cara. Nos segundos seguintes, permanece completamente imóvel, concentrada
em um silêncio perturbador, observando o sangue que sai do dedão onde a unha foi arrancada.
O desespero parece ter sido interrompido e o único barulho ao nosso redor é a faixa seguinte
da playlist. Continuo paralisado, esperando sua reação, mas a paz é tão grande que alivio a
tensão dos músculos, me permitindo soltar todo o ar que prendi nos pulmões.
Fecho lentamente o zíper da calça, me inclinando para frente, na direção dela, e é nesse
momento que percebo. A Boneca está balbuciando palavras.
— Bailarina?
Permanece hipnotizada pelo sangue, sem responder ao meu estímulo, de modo que
escorrego do sofá, me aproximando dela com cautela, como se não quisesse acordá-la. Quanto
mais perto, melhor entendo o que sai da sua boca.
A bailarina clama impronunciáveis miados.
— Bailarina. — Ajoelho-me, tão preocupado que nem sequer enxergo o seu corpo, nu. — O
que…
Sua primeira reação é se esquivar do meu toque.
— Eu não fiz isso! — Irrompe soluços com tanto desespero que suas palavras se tornam
irreconhecíveis, mas a dor e o medo gritam no seu timbre. — Não quero ir com você! Eu não fiz
isso! — O soluço agudo corta o meu coração. — Eu posso dançar, nada mudou! Nada aconteceu!
— Tenta se levantar e escorrega os pés machucados no sangue.
Tento ampará-la e ela me empurra tão forte que me desequilibro, principalmente porque no
instante seguinte lança-se na minha direção e caímos no chão, com ela debruçando o seu corpo
sobre o meu.
— Vou ser perfeita, eu prometo… — envolve seus braços trêmulos em torno do meu
pescoço, me abraçando. — Vou ser perfeita, você vai amar. Não desista de mim! Perdoe-me! —
se engasga com as lágrimas, com o queixo tremendo. — E-eu posso ser melhor...
Fecho os olhos e me concentro em sentir seu coração bater forte contra o meu, apertando os
braços ao seu redor enquanto sinto sua respiração se acalmar com o meu toque carinhoso. Nessa
fração de segundos, amo a sensação de ser o suficiente e afundo meu rosto em seus cabelos
cheirosos, com a química do orgasmo ainda bombeando meu coração.
O tempo ao nosso redor parece parar com Hozier tocando ao fundo e a neve caindo
decorando a paisagem escura do lado de fora dos janelões. Está tudo tão perfeito que eu poderia
ficar para sempre com ela nos meus braços...
Mas ela começa a miar.
É como uma facada que me lembra qual posição estou ocupando. A de Dono. Isso me
impulsiona a tocar em seus dois braços, afastando-a para que me encare, porém ela abaixa a
cabeça.
— Boneca — chamo-a, sem entender o porquê ela não levanta o rosto. — Sou eu!
Em um movimento reflexo, a bailarina vai com todas as unhas no meu rosto, me arranhando
tão fundo que seguro seus punhos com força. No entanto, o toque firme em minhas mãos a faz
irromper soluços, chorando tanto que perde o ar e soluça tão alto que escuto seu pulmão chiar,
afogando-se nas próprias lágrimas.
— Só me assiste, não precisa me tocar, me perdoe, por favor…
Tento segurar no seu queixo e a bailarina abaixa a cabeça, murmurando pedidos de desculpa
incongruentes.
— É o Damon!
Ela tampouco ouve. Em vez disso, os soluços começam a sair entrecortados, deixando-a
roxa, me desesperando ainda mais com sua crise de pânico. Seu rosto está molhado pelas
lágrimas que escorrem dos seus olhos e nariz, e sua respiração barulhenta revela que a falta de ar
se torna mais aguda a cada tentativa de tocar nela ou fazê-la me fitar.
É como se a boneca estivesse presa no seu maior pesadelo.
Não penso no que faço em seguida, simplesmente ajo.
Encaixo essa mulher nos braços, levantando-a, no meu colo. Ela não gosta e começa a
reagir, arranhando o meu peitoral, pescoço e rosto, então tento imobilizá-la para não errar
nenhum degrau da escada.
Ela piora com esse contato ao ponto de que ouço o seu pulmão chiar com o choro, mas não
há condições de fazê-la caminhar com o pé doendo assim e ela não consegue colocar força no pé
nem quando tenta fugir e me empurrar, gritando histericamente para que eu não a toque, e em
seguida, me abraça, suplicando perdão.
Também estou assustado e perdido, sem saber como reagir quando entro na minha suíte e a
levo para o banheiro. Também estou preso em um pesadelo, só não posso pensar demais nisso,
então me concentro nos meus passos.
Abro o box com o joelho e faço um esforço para abrir a ducha sem soltar do seu corpo. A
água fria nos impacta ao mesmo tempo e seu movimento imediato é procurar refúgio no calor do
meu corpo.
Ela está nos meus braços, tentando esconder o rosto no meu pescoço, sem saber se soluça ou
busca fôlego, com um tremor intenso tomando conta da sua estrutura, ao passo que eu, tomado
pela adrenalina, mal sinto frio, muito menos os arranhões que fazem caminhos de sangue pelo
meu corpo.
Tudo o que sinto é o peso do seu corpo trêmulo. Embora possua praticamente a minha
altura, é como segurar uma borboleta. Uma muito rara.
Um dos meus braços sustenta suas pernas e o outro ampara o seu tronco, de modo que sinto
com o meu corpo quando os seus tremores de medo se transformam em espasmos de frio. Tenho
os seus ossos nas minhas mãos e braços. Os nós da espinha, as grades das costelas, a parte de
trás do joelho. Não os vi enquanto ela dançava e odeio pensar que nenhum Jogador deve ter
notado. Detesto chegar à conclusão de que sou como um deles.
O barulho da água silencia aos poucos os seus soluços e pedidos de desculpa, mas a boneca
demora eternidade antes de desenroscar um dos braços e passar a mão pelo rosto, tirando os fios
de cabelo molhados que cobrem os olhos para, finalmente, me enxergar.
Não sei descrever o alívio que se infiltra em minhas células quando ela me vislumbra com
seus apaixonantes olhos azuis-escuros e eu vejo a bailarina neles. O tempo parece paralisar, em
uma mágica que faz com que nada mais tenha importância além desse momento.
— Oi, Oceano.
Suas íris me entregam a intensidade com que a observo, como se nutrisse a mesma
necessidade que faz meu coração disparar. Percorre com atenção, ávida pelos meus traços da
mesma maneira que eu tento gravar cada linha do lindo rosto dela. A maquiagem borrada me
permite ver como ela é linda por baixo de todas essas camadas. Boneca-russa, bailarina, gatinha.
Ainda mais linda sendo só ela.
— É você. — Suspira aliviada, despertando, meio grogue. — É você. — Deita a cabeça no
meu peito.
Meu coração se derrete e eu encaixo meu queixo na sua cabeça, desejando mantê-la calma e
a embalar até que pegue no sono, prolongando cada segundo desse momento. Não quero que
acabe nunca.
— Sim, sou eu.
Minha voz tem a reação oposta. Ela olha para a porta, subitamente agitada, e, antes que eu
diga qualquer coisa, tenta sair do meu colo, mas assim que seus pés tocam o chão, solta um
gemido, prontamente amparada pelos meus braços, que envolvem sua cintura fina.
— O que aconteceu?
Abro o box e a coloco na privada com a tampa fechada.
— Você não lembra?
Assim que se senta e me encara, em pé, só com a calça, olha para si mesma e se dá conta de
que está pelada. Coloca os braços na frente dos peitos enquanto se esconde com as pernas.
— Você tirou minha roupa? — sua voz sai aguda.
Meu queixo cai.
— Não. — Desvio o rosto, para não a deixar desconfortável, e vejo uma toalha branca,
estico os braços e entrego para ela. — Você já estava sem roupa.
— O que eu estava fazendo?
A maneira como ela se enrola na toalha me deixa tão péssimo que eu abaixo a cabeça. Tudo
o que consigo ouvir é a minha consciência repetindo o quanto não deveria ter visto nada do que a
vi fazer.
Nem por um segundo foi para mim.
— Você estava no seu quarto e gritou. — Minto. Meus olhos focam nos seus
machucados. — Seus pés… — puxo seu dorso com delicadeza.
Não consigo imaginar a dor que ela está sentindo. Além das duas unhas dos dedões terem
sido arrancadas, não sei como ela conseguiu que algumas regiões ficassem em carne viva nessa
profundidade. Também há pus. Não é um machucado de um dia, com certeza, mas,
definitivamente, ela terminou de destroçá-lo hoje.
O som da sua ânsia me faz levantar a cabeça e a encontrar inclinada, vomitando dentro da
banheira. Os cabelos estão molhados e embaraçados, mais escuros, colados na pele translúcida
das costas feito uma sereia.
Tento oferecer alguma sustentação, mas assim que a toco ela recua, então me fita e
murmura:
— Traz água? — pede como se precisasse de um motivo para me ter longe.
Assinto, em direção ao frigobar no quarto. Quando passo pela porta, sinto todo o frio do ar-
condicionado me impactar como uma consequência, de modo que pego uma blusa no guarda-
roupa e levo para a bailarina, abrindo a garrafa. Quando a vejo de novo, é meu coração que se
despedaça mais um pouco.
— Você precisa ir embora. — Mais lágrimas brotam dos seus olhos e, com elas, o
sentimento de culpa. — Ele veio me ver. — permanece encolhida, com os lábios roxos, vestindo
o moletom. — Ele não pode te encontrar aqui.
Eu também estou molhado e a madrugada é fria, porém há tanta adrenalina no meu corpo
que não sinto nada além do impulso que me faz manter os punhos fechados com o choque. Ela
está achando que eu sou ele?
— Ele não veio, boneca. — Entrego a água para ela, consternado. — Somos só nós dois.
Ela não parece acreditar, então tomo a difícil decisão de me ajoelhar, pronto para contar
quem verdadeiramente é o responsável pela sua crise, quando ela tira as palavras da minha boca.
— Eu estava com ele — conta, com os olhos azuis mais arregalados do que de costume,
apresentando-me três pontilhos castanhos que permeiam o vasto azul profundo que circula sua
pupila dilatada de medo. — Ele veio.
Isso acaba comigo.
— Bailarina, estamos na minha casa.
Ela fita ao redor, com o medo a desesperando.
— Isso é pior ainda. — Soluça, brutal e perdidamente. — Quero ir para a minha casa...
A bailarina abaixa a cabeça e abraça as próprias pernas, com uma dor e medo que me
transpassa ao ponto de também fazer os meus olhos se encherem de lágrimas e meu coração se
despedaçar.
— Tudo bem, vou falar com o piloto. — Tento encostar em seu joelho e ela recua, então eu
simplesmente cruzo os braços, desistindo de qualquer toque físico. — Isso vai te fazer feliz? Ir
para a casa?
Fita-me com as íris alagadas.
— Nada vai me fazer feliz…
Escuto meu coração cair e se estraçalhar em algum lugar bem fundo dentro de mim, com
meus olhos se enchendo de lágrimas.
— Não! — corrijo, buscando o seu rosto, subitamente aterrorizado. — Por favor, Boneca!
— e ela tenta desviar, mas eu não deixo, seguro firme no maxilar dela, prendendo suas íris nas
minhas. — Não diga, isso. Prometa que nunca mais vai dizer.
— É a verdade… — seu timbre sai entrecortado e ela me abraça forte com seus braços finos,
chorando tanto que sinto suas lágrimas molharem meu pescoço, sua respiração quente batendo
contra a minha pele. — Oh, Damon, Eu não tenho mais vida, eu nunca vou ser feliz, não quero
mais viver…
Abraço-a de volta, apertado como se pudesse mantê-la presa a mim, viva. Meu cérebro vai
longe com todas as hipóteses do que pode acontecer, e a ideia de encontrá-la morta assim como
achei minha mãe no chão faz meus olhos inundarem, aumentando o abraço. Seu corpo enrijece
quando colide com o meu, mas ela não tenta recuar porque, de alguma forma, entende que eu
também preciso disso. Nós dois estamos atordoados de medo.
Fala as mesmas coisas que Charllote soluçava em suas crises: “Não consigo mais viver desse
jeito”, “não aguento mais duvidar de mim mesma”. “É insuportável fechar os olhos e ter
sempre os mesmos pesadelos.” “Tudo está errado, e eu estou exausta de carregar tanta culpa.
Não vou conseguir.”
Pareciam ter sido vítimas da mesma pessoa.
Seguro em seu rosto com as duas mãos.
— Você precisa se acalmar. — Acaricio seus cabelos, mas ela não consegue parar, em uma
crise idêntica às que mamãe tinha, o que me deixa ainda mais desesperado. — Vou te levar para
o hospital. — Repito o que faziam com ela. — Tudo bem? — afasto-me o suficiente para
observá-la balançar a cabeça, confusa.
— Não! Não posso ir ao hospital. — Explica com a voz embargada. — Preciso falar com
meu Dono.
Meu coração erra as batidas.
— Você não tem que falar com ele! — minha voz sai mais grave do que o normal. — Falar
o quê?
Ela abaixa a cabeça, fitando a si mesma como se seu estado justificasse.
— Ele vai cuidar de mim. — Meu sangue começa a esquentar.
— Eu estou cuidando de você.
Ela ri como se fosse piada.
— Você é só um Jogador. — Tenta se levantar e eu impeço, segurando nas suas coxas. Ela
empurra minha mão. — Quando algo sai do roteiro, preciso que ele saiba.
— Ele não cuida de você. — Sou claro. — Ele só te machuca!
Ela estala um tapa na minha cara, que arde com um formigamento em minha pele e os cortes
que ela fez com a unha.
— Você não o conhece! — Levanta-se irritada. — Eu sim.
Caminha em direção a porta do quarto, me fazendo pensar rápido. Entro na frente e coloco a
mão, fechando antes de trancar a maçaneta e ficar com a chave, levantando o braço, e ela tenta
dar um salto, mas geme, derrotada. Fita-me com tanta fúria que sinto penetrar em meus ossos e
cruzo os braços na frente do peito desnudo.
— Deveria saber que no seu mundo existem Regras.
Ignoro o frio na barriga.
— Está me ameaçando, bailarina?
E ela quem cruza os braços na frente do moletom preto.
— Estou. — Quero sorrir com a pontinha de confiança aparecendo nela, mesmo que ela
esteja, literalmente, prometendo foder com a minha vida. — Vou relatar o seu comportamento
para o meu Dono.
Começo a brincar com a chave.
— Uhhh, que medo do seu Dono.
Seus olhos, raivosos, se enroscam com os meus, brincalhões, e ela os semicerra, mais brava
ainda.
— Você não está entendendo, ele é muito perigoso! — Há uma nota de temor no seu timbre.
— Ele já matou muitos Jogadores por muito menos. Quando ele souber o que você está fazendo
comigo...
Pesco uma informação crucial.
Ele é uma Peça Forte no Tabuleiro, acima dos Jogadores. Ele é um dos homens com quem
me sento a mesa todo sábado, com quem compartilho a minha vida, parte do que tenho como
família.
Uma voz dentro de mim me diz que talvez ele realmente seja perigoso, e isso me deixa com
mais raiva.
Avanço uns passos na direção da bailarina, fazendo-a retroceder outros, até a parede. Meu
coração aperta com a urgência de cuidar dela. Mal nos conhecemos, mas nesse momento parece
que nosso elo é a coisa mais certa que poderia existir.
Também me desperta um senso de proteção violento.
— Talvez eu também seja perigoso, boneca-russa. — Digo friamente, para que ela entenda.
— E eu não gosto de como ele faz você se sentir, então nós dois temos assuntos para resolver. —
Ela sorri entre as lágrimas, limpando o nariz com o dorso da mão. — Isso é entre homens, vou
cuidar de você agora. Sua única escolha é decidir se prefere sentar ou se vou ter que amarrá-la
para fazer seu curativo no dedo.
OCEANO

Como enxergar meu reflexo na água


Se o que sou permanece submerso
Algumas pessoas são tão sensíveis à natureza que sentem tsunamis ou furacões antes mesmo
deles chegarem.
Eu não.
Mergulhada no caos, de tanto confundir memórias distantes com o que especialistas chamam
de “amnésia dissociativa”, perdi completamente a noção do que é real ou imaginação.
Sempre que preciso dançar nesse tabuleiro perverso, meu cérebro desliga, obrigando meu
corpo a esquecer cada um dos rostos que me usam. Isso não me prejudica tanto, ao contrário, me
protege. Além disso, sempre estou nos mesmos teatros, fazendo a mesma trajetória para casa,
tendo o mesmo diálogo com meu Dono. Sendo cuidada.
Mas agora não sei em que lugar do país estou, fora de casa há horas, com um estranho que
não deixa ligar para o meu Dono e que continua com os braços cruzados em uma postura
fechada.
Quero gritar e surtar, tudo o que consigo pensar é no quanto quero ferrar com ele, expondo
tudo o que está fazendo comigo. Um pedacinho de mim me diz que vão matá-lo, mas estou tão
magoada que não consigo me importar. O que ele está fazendo comigo é desumano.
— Então vai ser assim? — meu timbre expõe todo o meu desdém.
— Vai. — Ele responde na mesma firmeza.
Uma das coisas mais perigosas da natureza é quando a atmosfera faz contraste entre as
camadas gélidas e as febris.
Sinto ainda mais fúria à medida que o enxergo tão calmo.
Voilá para a receita de um furacão.
— Espero que esteja ciente das consequências, Jogador.
Enquanto isso, no solo, Damon continua neutro, permitindo que eu descarregue à margem
minhas ondas insurgentes.
— Aguardo por elas, Boneca-Russa.
Mas também sei, por experiência própria, que fazer um escândalo só vai esgotar a energia
que me resta e inflar a sua, entro no meu modo sobrevivência. Observo o ambiente ao meu redor,
com a cabeça pesada. A decoração do quarto é neutra, com tons de branco e madeira clara, mel e
escura, e no chão há uma sobreposição de tapetes com diferentes texturas.
A cama é o principal destaque porque trata-se de um dossel de madeira nogueira-escura com
um véu branco decorando-o, e toda a roupa de cama é branca. Damon ainda me encara como se
esperasse uma resposta, sem camisa, com os braços cruzados na frente do peito.
Se ele deseja continuar com esse joguinho, que jogue por nós dois.
Simplesmente balanço a cabeça, saindo dos seus braços e me viro, arrastando meus passos
até a cama. Puxo o edredom e me deito, sem observar sua reação. Apenas me encolho entre os
lençóis macios e abraço um travesseiro em posição fetal, como se pudesse concentrar todas as
minhas dores junto as do peito.
Não queria chorar mais na frente dele, mas sinto a dor pulsar, implorando para ser
derramada. Penso nos meus cachorros e em como eu queria estar com eles, na minha casa, com
meu Dono, e não aqui assim impotente e humilhada, com esse Jogador prepotente, metido e
irritante.
Não impeço as lágrimas, mas elas caem silenciosas dessa vez, intercaladas apenas pelas
fungadas que deixo escapar. Damon tenta falar comigo apenas uma vez, para perguntar se eu
tomo algum remédio para acalmar, mas eu não respondo. Quando ele volta com um comprimido,
não me viro para aceitar, sem sair da minha posição. Por um milagre, ele também não tenta
forçar.
Choro até pegar no sono.
É quando o verdadeiro terror começa.
Isso porque meu verdadeiro inimigo está dentro de mim.
Em teoria, o cérebro executa muitas funções dentro de um organismo humano. Dentre elas,
uma seletividade de eventos, escolhendo o que pode ser lembrado e escondendo as experiências
perturbadoras no limbo da inconsciência.
Para a maioria das pessoas esse mecanismo funciona perfeitamente, mas para mim... Não há
maneira simples de dizer.
Eu quebrei a minha consciência.
Não sei como a experiência foi tão traumática que “sujou” meu cérebro com todo o sangue
que vi. Se era meu ou de outra pessoa, não sei, mas quando tento pensar no assunto, o sangue
mancha meu campo de visão.
E é por isso que meu Dono é tão importante para mim.
Ele cuidou de mim no período em branco da minha mente, assumindo o controle por cada
centímetro de mim. Usando a hipnose, limpou minha mente, escondendo os eventos que eu não
tenho estrutura mental para me lembrar. Meu Dono se certificou de deixar na consciência as boas
memórias, varrendo para debaixo do tapete as traumáticas. Por isso preciso tanto dele. Ele cuida
do meu bem-estar periodicamente e não exige nada em troca além da minha devoção. É um
exercício de confiança, me jogar do alto e torcer para que ele não deixe eu me esborrachar na
escuridão.
O único problema é o sangue. É o meu gatilho. Se eu vejo o sangue, a porta da minha
inconsciência é aberta e meus monstros saem para passear.
— Bailarina! — A voz de Damon balança o meu cérebro.
Abro os olhos, encontrando o homem em posição de alerta tentando me despertar, todo
ensanguentado.
Um frio penetra meus ossos. Sinto-me completamente imunda. Levanto assustada e passo as
mãos pelo corpo, encontrando sangue em todo lugar. Confundo o suor com sangue e só enxergo
o vermelho, como uma camada protetora sobre minha pele. Gotejando, grudento.
Grito, apavorada, mais do que pânico, é tudo, de modo que tiro depressa o moletom,
correndo para o banheiro. Juro enxergar o vermelho escorrer com a água que desce para o ralo,
apoiando a cabeça contra o box.
— Posso ajudar? — É Damon, na porta.
Faço que não e ele se vira de costas, mas continua na porta, como se estivesse mesmo
cuidando de mim.
Tudo o que consigo distinguir é que, agora, o mármore italiano é diferente do que tenho em
minha casa. A ducha que depredou meu corpo é escaldante. E, principalmente, agora, estou
sozinha, e não lavando o corpo dele.
O corpo dele…
Damon permanece no batente, com as mãos na cintura e uma postura apreensiva, com a
cabeça baixa e o brilho do ouro do seu relógio reluzindo. Concentro o que me resta das energias
em sair da água, com o chuveiro ainda ligado. Não perco tempo pegando a toalha, em vez disso
alcanço seus braços, descendo as mãos até o seu pulso.
Ele me fita com o cenho franzido, sem se importar com a água que escorre do meu cabelo e
corpo o molhando. Apenas permite que eu o roube e volte para a cama, me enroscando nos
lençóis, molhada, ansiosa para que a escuridão embale meu cérebro em uma valsa negra com
todas as nossas recordações.
Coloco o relógio no travesseiro a minha frente, observando o ponteiro silenciar meus medos
enquanto canto baixinho.
— Tic-tac, tic-tac, tic-tac...
Desperto mais uma vez. Suponho que ainda seja noite pela sombra que ronda o quarto, com
as cortinas fechadas. Ainda assim, Damon está acordado, na poltrona ao lado da cama. Ele não
notou que meus olhos se abriram, e continua balançando os pés enquanto mexe no laptop,
concentrado na informação. A luz do quarto está baixa, de modo que a luz da tela reflete em seu
corpo.
Damon ainda não trocou de roupa, em sentinela, com a calça e sem camisa, de modo que
consigo observar os machucados no seu peitoral definido subindo em vergões para o seu pescoço
e rosto. Logo nos primeiros minutos, caio em mim e sou consumida pela culpa.
— Não está bravo comigo? — minha voz sai rouca.
No segundo em que me ouve, fecha a tela do computador e o põe de lado, dando atenção
total para mim, inclinando-se de joelhos em frente a cama, aproximando o rosto do cantinho em
que coloquei a minha cabeça.
— Por que eu ficaria, Oceano? — Faz um gesto para tocar em meus cabelos, mas recua
antes de encostar em mim.
Tiro as mãos dos edredons e encosto os dedos nos arranhões no seu rosto, com cuidado. Ele
deita a cabeça em minha mão, fechando os olhos com a dose de carinho.
Não consigo pensar em como meu Dono reagiria se eu o ferisse, porém Damon não parece
nem um pouco bravo. Ao contrário, continua me fitando ternamente.
Vem a minha mente, então, o apelido que o denominei na nossa primeira noite. Brisa. A
brisa refresca, é branda e suave. Acolhedora.
Talvez ele seja um pouco assim, debaixo das camadas que me irritam. Talvez o que tira a
minha paz seja justamente o quanto somos opostos, eu com minhas tempestades, ele com sua
calmaria impassível.
A brisa arrasta a água para dentro de si. Como o oceano é muito profundo, a água afunda,
em um recuo.
— Eu te machuquei. — Explico, voltando a mão para dentro dos edredons. — Não posso
ferir nenhum Jogador.
— Eles te machucaram, Oceano. — Ele corrige, apontando para o corte que desce das
bochechas para a barba. — Você só estava se defendendo.
Sinto medo do que estou fazendo ao dar corda para esse Jogador. Não consigo lembrar a
última vez que conversei assim com outra pessoa, mas a rebeldia deixou meu corpo e minha
mente está exausta demais para eu continuar com as brigas. Quero agir como alguém normal
uma vez na vida.
No interior de suas profundezas, a magnitude do mar encontra sua força.
— Por que está me chamando de Oceano?
Sai da posição de joelhos, sentando-se na minha frente com o joelho flexionado e o braço
em cima. Pega o notebook atrás de si e o abre, só para mostrar a página de pesquisa do Google.
— Estava pesquisando sobre oceanos.
Desperta em mim uma ponta de curiosidade.
— O que descobriu? — minha voz sai cansada.
— Estima-se que 95% das águas profundas do oceano são impossíveis de serem exploradas.
O fundo do mar permanece praticamente intocado. — Ficamos em silêncio por um tempo,
provavelmente porque ele quer que eu pergunte algo, o que não acontece. — Você não sente
vontade de mergulhar e descobrir tudo o que tem lá?
— Você sente? — devolvo a pergunta, desconfiada com o rumo da conversa.
Ele sorri largamente com as covinhas sombreando a barba.
— Uma matéria até dizia que, possivelmente, existem mais artefatos submersos do que em
todos os museus. Sem contar as cidades inteiras e a quantidade de história submersas… —
suspira, com a atenção presa nos meus olhos. — É inimaginável a quantidade de preciosidades
escondidas nas profundezas.
Fico de bruços, com a cabeça levantada na direção dele.
— Por que estou com a impressão de que essa conversa de mar e oceano é você tentando me
dobrar? — Estreito os olhos.
Ele sorri.
— Você é o meu Oceano, bailarina.
Meu coração dispara com as palavras à medida que assimilo o que ele quer dizer com isso.
Aos poucos, sou energizada pela raiva que pesa minhas pálpebras.
Os mesmos ventos fortes que levaram as águas vão trazê-las de volta, com muito mais
potência.
— O que te faz pensar que vou deixar você mergulhar?
Ele dá de ombros diante da minha ameaça.
— Mas é você quem me afoga a cada onda do seu desabafo. — Diz. Rio indignada,
balançando a cabeça, dando-lhe ainda mais munição. — Quando o mar se revolta, bailarina,
ninguém consegue segurar sua força. — Nossos olhares permanecem entranhados enquanto eu
oscilo para não perder a disputa, guerreando com seus traços marcantes. — O seu desabafo, o
seu choro, é você quem está derramando suas águas sobre mim.
Não me sinto forte como o oceano, ao contrário. Sinto-me tão frágil que minhas mãos
insistem em tremer diante da sua provocação, e isso me faz querer chorar. Ainda assim, não
consigo evitar o prazer de saber que um Jogador importante como ele me vê como uma força
poderosa.
— O mar é perigoso. — provoco, ganhando confiança. — Devia estar com medo.
Abre um largo sorriso enquanto se aproxima, até ficar perto o suficiente para que eu sinta o
calor do seu hálito arrepiar minha pele quando suplica em um sussurro contra a minha boca.
— Devora-me com suas ondas impetuosas, oh, oceano tão profundo e irascível.
PRESENTES DE NATAL

Quando acordo novamente, a luz do dia já ilumina o quarto inteiro.


A primeira coisa que meus olhos buscam é o Jogador, mas ele não está na poltrona. Tiro um
braço e sinto o frio do ambiente contrastar com o calor do edredom, então me cubro novamente.
— Bom dia, Oceano.
Agora ele está na mesinha perto das janelas, com o Tabuleiro de xadrez aberto e um livro de
movimentos na outra mão.
— Você não dorme? — Minha voz sai rouca.
Ele sorri com todos os seus dentes branquíssimos.
— Não. — Então põe o livro na mesinha. — Apenas com Zolpidem, mas não vou tomar
com você aqui sob os meus cuidados.
Observo-o se levantar enquanto chego à conclusão de que nunca, nenhum Jogador me tratou
assim. Eles apenas fazem o que querem e depois me entregam nas mãos de terceiros, sejam eles
médicos ou Coroados.
— Tenho TDAH. — Conta.
Fito a forma como ele se mexe mesmo estando parado, aos pés da cama, apoiando a cabeça
no dossel enquanto me assiste.
Tento lembrar das coisas que aconteceram ontem, da conversa à mesa até a parte em que
comecei a tomar vinho e fomos para a sala de TV. Minha cabeça dói quando tento lembrar o que
aconteceu em seguida, então sinto medo de perguntar.
— Acho que isso explica muita coisa sobre você. — Murmuro, distante.
— Minha mãe também tinha. — Senta-se na ponta da cama. — E meu irmão gêmeo
também, só que ele é desatento, não hiperativo como eu.
Assinto para a informação, sem conseguir tirar os olhos dele. Não dele, mas do que ele
veste. Não sei se é porque apenas socializo com os Jogadores e todos os homens estão de ternos,
mas Damon não parece ser o tipo de pessoa que veste roupa colorida em um domingo de manhã.
Quer dizer, cai muito bem nele a camiseta de manga longa, colada em seu corpo de um jeito
que consigo observar os detalhes do seu ombro largo, a definição dos braços... A cor verde-
escura realça a beleza castanha da sua barba, olhos e cabelos.
O problema é a calça quadriculada em tons de branco, vermelho e verde.
— Que roupa esquisita. — Solto, com vontade de rir.
Então descubro que ele estava esperando pelo meu comentário, porque pega uma muda do
mesmo conjunto, ao seu lado na cama, e balança na minha direção antes de jogar ao lado da
minha cabeça.
— Se chamam pijamas de Natal, comprei de madrugada, enquanto você dormia. Costume
americano. Há quanto tempo está nos Estados Unidos?
Solto uma risada sarcástica.
— Onze anos. — Pego o conjunto, sentindo a maciez da calça. — Você não está achando
que vou vestir esse treco combinando com você, né? — meu tom é de fofoca.
— É o primeiro Natal que eu comemoro desde que minha mãe morreu — exclama com uma
empolgação infantil.
— É assim que você manipula as pessoas ao seu redor?
Então me fita com um olhar matador, e seu timbre é um dos mais sérios desde a primeira vez
que falou comigo.
— Seria legal depois da noite difícil que você teve. Como... começar de novo.
Não é apenas o seu olho que brilha com o final da frase, mas acho que o meu também reflete
com a ideia de fazer tudo diferente.
Mas, por mais que eu esteja me divertindo com a situação, a voz dentro de mim é cruel.
— Você é um Jogador importante — aponto para a mesa de xadrez. — Não devia estar
fazendo coisas perversas com Bonecas e cometendo maldades para o seu bel-prazer?
Não sei o que na minha pergunta faz o ombro dele decair de um modo que eu quase me
arrependo. Então ele me encara friamente e, com a voz grave, ordena:
— Estou com uma Boneca em cárcere neste final de semana para o meu bel-prazer e eu
estou a mandando vestir logo o maldito pijama.
Minha primeira reação é tensionar cada célula do meu corpo. Não que ele tenha sido o mais
assustador que já conheci, muito longe disso. Porém eu não estava esperando isso dele, e Damon
sabe disso, porque se arrepende na mesma hora.
— Eu estava brincando... — parece tão culpado.
Não consigo manter o semblante sério e deixo escapar uma risada genuína. A simples ideia
de pensar que ele é quase tão importante para o Jogo quanto o meu Dono, me deixa boba.
Gosto da forma como ele não parece nem um pouco ameaçador, de como ele me deixa olhar
para o seu rosto e usar até mesmo o seu nome real. Sinto uma alegria maligna com a ideia que se
forma em minha mente.
— Regra número um sobre atuação, de uma bailarina e Boneca.
Fico em pé, mesmo sabendo que estou nua, para dar ênfase no meu argumento. Conto com a
máxima de que, se ele não quis nada comigo a noite, quando podia me pegar nua e inconsciente,
então não vai tentar nada agora.
Isso não significa que ele não quer.
No segundo em que bate os olhos no meu corpo, geme baixo um “meu Deus”, mas não tenta
se aproximar ou me tocar, respeitando o meu espaço assim como fez a madrugada inteira.
— Nunca. — Digo, vestindo obedientemente a calça horrorosa. — Nunca. — Coloco a
camiseta, sem me importar com a forma como ela marca meus mamilos. — Nunca, saia do
personagem.
Damon não responde nada ao me ver vestida do jeito que ele ordenou, mas a forma como me
penetra com o olhar e o volume grosso marcado na sua calça deixam bem claro que seus
pensamentos envolvem meu corpo continuar despido.
— Quer tentar de novo? — Não entendo o porquê meus impulsos envolvem o desejo de
agradá-lo, mas me sinto mal por saber que ainda não o satisfiz, meio culpada.
Ele se aproxima a passos lentos, fazendo meu coração acelerar. Estende o braço para que eu
o segure e começa a me conduzir pela mansão Duncan feito o príncipe consorte dela. Assim que
saímos do quarto, nos deparamos com a paisagem da neve caindo do lado de fora nos janelões da
escadaria em espiral, tornando tudo meio mágico.
— Vamos abrir os presentes primeiro? — corta o silêncio agradável.
Tento engolir a empolgação, mas falho, eu amo presentes.
— Comprou essa madrugada?
Faz que não, levando uma das mãos até meu rosto só para tirar a mecha de cabelo do meu
olho.
— Disse que você não saiu da minha cabeça a semana inteira, não disse?
Sinto minhas bochechas corarem com a ideia de ter alguém pensando em mim esse tempo
todo, mas então meu cérebro me censura. Meu Dono pensa em mim o tempo todo, me observa o
tempo todo, cuida de mim tanto quanto eu preciso dele.
— Se está nos Estados Unidos há onze anos — Damon me tira dos devaneios. — Com
quantos anos veio para cá?
Ele quer saber minha idade.
— Por que parou de comemorar o Natal? — devolvo outra pergunta.
— Eu te contei ontem à noite. — Espezinha, como se tivesse um ponto a mais no placar.
— Quatorze. — Meu estômago embrulha. — Eu tinha quatorze anos.
— E como foi? — Pergunta. — Veio com sua avó? Qual visto?
Um amargor preenche o meu palato e eu busco a maneira mais rápida de me esquivar da
pergunta. Solto do seu braço e avanço alguns passos da escada em direção à sala.
Ao entrar nela, meus olhos são levados para a magnífica árvore de Natal que decora o
ambiente. Bolas reluzentes em tons de ouro e prata pendem elegantemente, somados aos laços
vermelhos e verdes adornam os ramos, dando um toque clássico e aconchegante. Os fios de luzes
piscam intermitentemente criando um espetáculo de cores que enche o ambiente de... algo bobo
o bastante para me fazer sorrir.
— Eu acho que a gente precisa se sentar e abrir um por um. — Damon explica, colocando
almofadas para mim, embora haja um lindo tapete na decoração.
— Vamos passar a manhã inteira abrindo tantas coisas. — Sinto minhas palmas suadas.
Confesso: — Nunca fiz nada assim.
Damon me entrega a primeira caixa retangular.
— Se não gostar, por favor, finja.
Balanço a caixa com um sorriso.
— É uma ordem, Jogador? — brinco, mas ele está concentrado escolhendo a sua caixa. —
Você comprou presentes para si mesmo? — tento não julgar.
— Pedi para os meus amigos. — Parece não se importar com o comentário. — As caixas
azuis são suas, as minhas são brancas. É só ler a etiqueta, ok?
Não posso evitar que meus olhos brilhem com curiosidade enquanto desfaço
cuidadosamente o papel de embrulho, com um sorriso delicado se formando em meus lábios pela
surpresa.
É uma sapatilha de ponta Grishko. Não é a sapatilha mais cara, perto das de diamantes que
uso, mas, sem dúvidas, é mais confortável. Pertence a uma marca russa que produz sapatilhas de
alta qualidade e é popular entre bailarinos profissionais.
Não vou poder usar nos espetáculos, mas pelo menos poderei treinar confortável em casa.
— Obrigada. — Sorrio, guerreando contra o desejo de pensar nos presentes que meu Dono
já me deu e comparar os dois.
Damon abre a caixa que pertence ao seu irmão gêmeo e também ganha uma sapatilha de
ponta.
— Alguém está me incentivando a voltar para o ballet. — Sorri, pensativo.
— Você não é bailarino?
— Parei com quatorze, depois da morte da minha mãe. — Conta, sem me encarar.
Coloco minha mão em cima da sua, porque, meio que entendo a sua dor.
— A minha vida também mudou radicalmente depois que a minha avó morreu.
É tão difícil vê-lo quieto que sinto vontade de perguntar o que está pensando.
— Ah, e não precisa usar a sapatilha de ponta, limita os movimentos de bailarinos. Como
você vai fazer um porteé?
— Quer apostar que eu consigo? — brinca.
Continuo abrindo meus presentes e ele os dele. A maioria são chocolates e doces russos, mas
também ganhei uma linda boneca matrioska[9] e uma coleção ilimitada de maquiagens
perfumadas.
— Alguma amiga te ajudou com esse presente? — estou passando o gloss de chocolate.
Balança a cabeça, com o olhar preso a minha boca.
— Minha ex gostava, então eu aprendi tudo de maquiagem. — Volta a abrir sua última
caixa. — Eu era casado, me divorciei no papel semana passada.
Ele parece ser tão alto-astral que eu não imaginaria.
— Sinto muito. Você é tão novo.
— No Jogo, é importante que Peças Fortes se casem e tenham filhos.
Assinto devagar. A verdade é que, até conhecê-lo, não sabia que Jogadores importantes eram
jovens. Todos os que conheci tinham fios grisalhos.
— Você se casou pelo Jogo.
Ele sorri, balançando a cabeça.
— Não exatamente. — Pensa um pouco antes de me explicar. — Ela não era uma Dama.
Sabe o que é uma Dama?
Engulo em seco, o evento traumático.
— Uma Dama já brincou comigo. — Ao ouvir minha voz, não entendo porque desabafo
isso, com vontade de morder a língua. Mudo de assunto: — se não era uma Dama e nem uma
Boneca...
— Mundana. Conheci na faculdade.
Franzo o nariz com nojo. — Não tenho permissão para falar com Mundanos. — Conto,
pegando a minha última caixa. A maior. — Eles não são como nós. Não entendem tudo o que
sacrificamos pelo Jogo.
Desejo contar que as vezes os invejo, mas se meu Dono souber que penso isso, estarei
morta. Além disso, Damon sorri orgulhoso com a minha fala.
— É horrível viver com alguém que não te entende. Fiz tudo pela minha ex e ela nem sequer
deu valor ao privilégio de ser Sangue em Ascensão. Ela não entendia o compromisso que eu
tinha com o Jogo. Exigia coisas absurdas como dizer não ao Rei, desobedecer às Peças Fortes,
faltar Partidas...
Ele é como eu. Tão preso no Jogo quanto as Regras que me mantém acorrentadas.
— É, mas o contrário também não é muito legal. Ter alguém que exige de você cada
pequena Regra...
— No final das contas, ainda estava grávida de outro. — Solta como se estivesse morrendo
de vergonha.
Tento me colocar no lugar dele.
— Você queria muito ser pai?
— É meu sonho. Não estar mais sozinho, ter pessoas para poder amar, saber que o resto do
mundo pode ficar do lado de fora quando estou com a minha família...
Quero dizer que também é o meu e que tenho uma playlist só com vídeos de bebês, mas aí
me lembro que isso nunca vai acontecer porque além de ser uma Boneca, sou infértil, então fico
quieta.
Então Damon fita a minha caixa.
— Espera. — Começa a contar os meus presentes. — Será que comprei algo a mais?
Dou de ombros, sem saber se abro. Damon se inclina para ler a etiqueta no meu colo e
murmura um “estranho”, então entrego para ele, assustada.
— Vamos abrir juntos. — diz, desfazendo o laço enquanto começo a rasgar o papel de
presente.
Inspiro profundamente, com a sensação que tem algo errado.
— Está sentindo um cheiro estranho? — reparo.
Seus olhos se arregalam e ele puxa a caixa para si, com uma seriedade inédita.
— Só um segundo. — Entrega um sorriso nervoso e preocupado.
À medida que abre a caixa, seu rosto empalidece, e a pele clara contrasta ainda mais com a
barba escura, causando uma aflição no meu coração. Fecha a caixa e me encara com
profundidade, como se formulasse a frase antes de ordenar severamente.
— Eu preciso que você saia daqui, Aleks. — O doce homem com quem eu estava me
habituando muda completamente.
Estou tão acostumada a ser chama de bailarina, Boneca-russa ou Kitty, que demoro para me
dar conta do que ouvi. Quando isso acontece, sinto meu corpo inteiro gelar.
— Como sabe o meu nome? — A cada fração de segundo o meu coração bate mais forte.
Abaixa a cabeça, concentrado na caixa, sem querer abri-la na minha frente.
— Está na carta.
Tem uma carta? Tenho um impulso para pegar o presente e ele põe o braço na frente, me
impedindo.
E, se fosse o mesmo Damon de minutos atrás, minha reação seria outra. Porém, bato os
olhos no homem a minha frente e só enxergo o meu passado: meu Dono. Isso abala toda a
confiança que custo a lhe entregar.
— É do meu Dono? — pergunto, agoniada para ver o que ganhei.
— Não. — É como uma facada. Damon pensou mais em mim uma única vez do que meu
Dono em todos esses anos.
Franzo as sobrancelhas, me corrigindo. E os meus cachorros? As flores? Teria presente
melhor do que tudo o que ele me dá?
— É de uma “amiga”. — Parece destruído.
Fico ainda mais confusa e atordoada.
— Por que ela me daria um presente? — coloco a mão na cabeça, sentindo-a girar. — Como
ela sabe o meu nome?
— Ela que me deu os dois encontros com você. — Conta, quase com a boca fechada,
perdido. — Acho que queria que tivéssemos um Natal bem marcante. — Usa a palavra, mas não
acho que quer mesmo dizer ela, porque o vejo engolir em seco com o pomo de adão. —
Bailarina, vai para o seu quarto.
Sua ordem é clara, porém não quero me levantar, percorrendo meus olhos pelo ambiente. A
bagunça de embalagens e laços coloridos, as luzes da árvore refletindo em nossos rostos e o
clima alegre dos presentes no ar. Não quero que esse momento acabe, mas tenho medo do que
tem na caixa.
— O que ela me deu de presente?
Ele engrossa o tom.
— Aleksandryia, quarto.
Estou quase chorando. É meio decepcionante porque achei que ele fosse alguém diferente.
Não sei explicar.
Levanto-me com a sensação estranha que se parece um misto de medo e curiosidade,
desejando que meu semblante triste o faça ter piedade já que não posso enchê-lo de perguntas,
porém Damon faz questão de chamar um Coroado para ficar de guarda e garantir que não vou
sair do quarto.
TIC TAC

Continuo olhando para a porta depois que ela foi trancada, sem reação alguma. Quando as
preocupações invadem os meus pensamentos a respeito do conteúdo da caixa, apenas cantarolo
baixo, me acalmando.
— Tic-tac, tic-tac.
E se for um exposed? Meu Dono sempre me disse que se alguém descobrisse o que fiz, eu
iria para a cadeia e nem mesmo alguém importante como ele poderia me proteger. Não consigo
pensar em outro motivo sério o bastante para haver meu nome na caixa.
— Tic-tac, tic-tac.
Começo a andar em círculos pelo quarto, cruzando os braços para não sentir a intensidade
das mãos trêmulas. Damon teria coragem de ligar para a polícia e me denunciar? Quer dizer,
quem se arriscaria para defender uma criminosa? Ele parecia diferente, mas mudou comigo
depois que viu o presente.
As lágrimas brotam dos meus olhos.
— Tic-tac, tic-tac.
Meu Dono disse que não faria nada para me proteger se eu abrisse a boca, mas eu nem sei o
que fiz. Isso é o pior. Estou exausta de tanto tentar me lembrar e não chegar a lugar nenhum,
embora não reste muitas opções envolvendo sangue. Já tive muitas crises com a ideia de que
machuquei alguém.
— Tic-tac, tic-tac, tic-tac, tic-tac. — Pressiono as duas mãos contra a cabeça, tentando me
concentrar com o barulho abafado.
Encaro a parede a minha frente, com as extensas portas e janelas francesas que dão para a
varanda. Ouço a ideia surgir como uma lâmpada na minha mente, de modo que busco a porta,
temendo que o Coroado a tenha ouvido também.
Assim que dou o primeiro passo, minha mente me repreende. Damon ordenou que eu ficasse
no quarto, mas a varanda é parte do quarto, certo?
Destranco a porta cuidadosamente. O vento me impacta tão forte que fecho a porta francesa
antes que ela bata e os vidros estilhacem, desistindo da ideia com a roupa que estou. Procuro pela
minha mala com o olhar, mas ela ficou no outro quarto, então decido ir, na ponta do pé, até o
closet. Gemo de dor a cada passo em ponta alta, mas o curativo não me deixa ver qualquer
resquício de sangue.
O closet está bem vazio, com poucas roupas ocupando os cabides, porém três casacos
chamam a minha atenção. Como amante da moda, sou atraída para o clássico trench coat da
Burberry, bege.
Eu só não esperava que seria justo a roupa com o cheiro de Damon.
Também não é um casaco novo, na verdade, parece muito surrado para um Jogador distinto
como Damon, o que entrega ainda mais charme e autenticidade a peça e ao dono dela.
A peça fica imensa para as minhas proporções, mas é quente. Ainda assim, o frio penetra os
meus ossos, devido aos meus pés descalços. Não está nevando, mas o chão, os móveis externos e
o parapeito estão brancos pela neve, e meus dentes começam a bater imediatamente.
Meus pés congelam antes de eu alcançar o parapeito, anestesiando o dedão sem a unha.
Não quero me jogar daqui de cima, apenas ver se tem policiais vindo me buscar. Se houver,
daí sim eu me jogo.
Eu esperava encontrar tantas coisas dessa vista... Damon não é uma delas.
Ele está ao telefone. Sei que está irritado pela forma como balança os braços, com as veias
saltando das mãos grandes, andando de um lado para o outro enquanto intercala movimentos da
boca com gargalhadas sarcásticas. Ele está com um casaco preto, que vai até os joelhos, por cima
do pijama, de modo que um ar diferente exala da sua postura. É ameaçador.
Desvio o olhar dele para a cama onde passamos a noite. Muita coisa está enuviada em minha
mente, mas lembro da forma como me senti bem, com ele me chamando de Oceano. Volto a
atenção para o homem no andar térreo. O que aconteceu com o Damon que conheci nesse
quarto?
Não consigo ouvir o que ele diz, porque o vento ecoa suas palavras para o lado oposto, mas
consigo entender que é sobre o presente quando um Coroado traz a caixa e ele aponta para o
carro estacionado perto do chafariz congelado.
Daqui de cima, consigo ver o que há na tampa da caixa.
Minha boca seca no instante em que meus olhos batem no vermelho-sangue.
Viro-me de costas, com os olhos marejando e as mãos trêmulas, de modo que limpo as
palmas suadas no casaco dele enquanto engulo o choro. Penso “Não tem porque ter medo,
Damon está no comando.” Então sou dominada pela culpa, deveria estar obediente dentro do
quarto. É isso o que acontece quando sou desobediente.
— Tic-tac, tic-tac, tic-tac, tic-tac.
As Regras existem para proteger. Ecoa a voz do meu dono, me fazendo girar os calcanhares
congelados para dentro em profunda agonia. É inconsciente buscar por Damon uma última vez.
Ele continua com o telefone na mão, intercalando entre falar na ligação e dar ordens a três
Coroados. Articulado e imponente. Fico hipnotizada pela forma como ele transmite poder em sua
postura, igual ao meu Dono, e ainda mais por saber que, de alguma forma, tem a ver comigo.
Ele pode estar me denunciando nesse momento, mas me protegeu do sangue.
Mesmo antes de voltar para o quarto, não estou sentindo frio, ao contrário, o calor se aloja
dentro de mim. Encaro-me no espelho do closet enquanto devolvo o casaco no lugar onde foi
roubado, com meus pés roxos e minhas bochechas coradas.
Elas levam minha atenção para a minha aparência, deixando-me ainda mais ruborizada por
imaginar que ele me viu nessas condições. A maquiagem profissional não saiu direito e eu estou
toda borrada, meus cabelos escuros estão duros, embaraçados e fedidos pelas chuveiradas.
Eu nunca ficaria assim na presença do meu Dono.
Alguém bate na porta, me fazendo voltar correndo para o quarto. É um Coroado com uma
bandeja de café da manhã, com bolo, sucos, frutas cortadas e blini com creme azedo e caviar, um
tipo de panquecas russas.
— O Jogador pediu desculpas por não poder se juntar com a senhorita no brunch, pois está
ocupado. — Procura um lugar para deixar a bandeja. — Mas ele deu a ordem para a senhorita
comer alguma coisa.
Bato os olhos na mesinha de canto onde Damon estava jogando xadrez, e me aproximo para
tirar o tabuleiro com as peças.
— Não toque. — Ordena de um jeito que eu franzo o cenho, sem coragem de discutir com
um Coroado que traz ordens diretas do Damon.
Observo o homem colocar a mesinha na cama e dar as costas. Prestes a tocar a maçaneta,
solicito:
— Poderia trazer minha mala e meu kit de maquiagem que ganhei de presente?
Enquanto o aguardo, não resisto a tentação de comer em pé, indo e voltando até a mesa de
xadrez com os blinis recheados com caviar. Tem um livro de movimentos, cheios de anotações
de Damon, porém sou péssima em ler inglês cursivo, acho que isso se deve ao fato de que não fiz
curso de inglês, aprendi o idioma apenas oralmente com os Jogadores que encontrava à mando
do meu Dono.
O Coroado volta.
— Aqui está. — Recuo rapidamente do Tabuleiro.
Não sou repreendida pelo empregado, apenas para em frente a porta e pergunta:
— Posso ajudar em algo mais?
— Posso tomar banho?
— Só um momento. — Sai e volta com uma confirmação.
Posso fazer o que eu quiser. Assistir televisão. Tomar banho de espuma. Mexer no livro
dele...
Concentro-me no que preciso primeiro. Ficar apresentável. Lavo os cabelos e os seco com o
secador que encontro embaixo da pia do banheiro, e que devia ser da esposa dele pela potência.
Depois, enrolada em uma toalha, escolho uma segunda pele branca com um vestido da MiuMiu
de pedras bordadas sobreposto, combinando com uma coleira de safiras do Sri Lanka, meia-calça
branca e um scarpin de salto baixo da Chanel.
Travo uma batalha interna enquanto defino os próximos passos, porque Damon disse que eu
podia assistir televisão, mas meu Dono não. Se bem que meu Dono sempre deixou claro que
quando estou com os Jogadores, devo fazer a vontade deles. Não sou a Kitty com eles, sou uma
Boneca e Damon deu o comando de que eu podia fazer o que quiser.
Ligo a televisão.
Passo as próximas horas testando as sombras do kit com uma pálpebra colorida enquanto
assisto A dama e o vagabundo, morrendo de saudade das minhas meninas Meldora, Odalisca e
Gulnara a cada frame da Lady. De modo que esqueço completamente os problemas.
Se eu for presa, pelo menos vivi um dos dias mais legais da minha vida.
Até Damon voltar.
Estou finalizando a maquiagem com brilho no canto interno dos olhos e cantarolando a
canção do filme, quando ele fecha a porta e continua estático com a cena. Nada na sua aparência
me faz relacionar ele com o homem que conheci mais cedo. O maxilar travado, as pálpebras
pesando rancor em seus olhos, o cabelo bagunçado... Basta que coloque os olhos em mim e sinto
o peso invisível entre nós.
Um medo irracional domina as minhas células e eu desligo a televisão, desesperada.
— Desculpa!
Balança a cabeça.
— Não sou seu Dono. — Solta como se estivesse com raiva. De mim?
Então desvio a atenção dele para a cama branca, suja com os resquícios das maquiagens.
Uma bagunça. Um frio interno me devasta com pensamentos sobre quão burra e idiota eu sou, de
modo que me levanto em um salto, entendendo o motivo do meu dono nunca me deixar subir na
sua cama, quando estamos juntos.
Eu deveria ter dormido no tapete de Damon.
— Desculpa! — meu timbre sai esganiçado, mas nem isso parece o interessar.
Em vez disso, caminha em direção ao closet.
— Tudo bem, Aleks.
Encolho-me apesar do mal-estar que é ouvir o meu nome, e permaneço de cabeça baixa e
braços em frente ao corpo, com minha postura de bailarina submissa.
Mas ele nem me olha.
— Vou me trocar. — Avisa, do closet, tirando o casaco e o colocando em um cabide
separado.
Fito-o tirar os sapatos que não combinam com o pijama. Será que ele está bravo porque tirei
o meu?
— Não! — junto as mãos em súplicas, em passos vagarosos em direção ao ambiente em que
ele está. — Não tire o seu, eu coloco o meu de volta...
Sua voz me corta.
— Você vai ter que voltar hoje.
Perco a voz e a postura, deixando meu ombro cair gradualmente à medida que assimilo.
Damon age como se eu não estivesse parada na sua frente enquanto todo o meu brilho
desaparece.
— Meu Dono pediu? — minha voz quase nem sai.
Ele parece decepcionado consigo mesmo.
— Eu tentei, mas um passo em falso e eu nunca mais te vejo. — Sinto um frio na barriga
estranho com sua frase, parece mais sombria do que é.
— Eu vou para a cadeia? — meu timbre sai choroso.
— Por que iria?
Surge uma ponta de esperança.
— Você não viu no presente?
Damon não responde. Em vez disso, começa a tirar o pijama como se estivesse caindo na
real sobre um sonho que ainda não viveu. Meu primeiro impulso é o de sair da frente dele, então
o vejo sem camisa e sou incapaz de mover um passo.
Damon tem gomos no abdômen trincado, um peitoral lindíssimo, braços desenhados e
ombros largos e definidos. Meu Dono também tem um físico de tirar o fôlego, mas não posso
negar que a diferença de idade fez Damon disparar na frente. Eles estão competindo pelo que
mesmo?
Caio em mim e saio do closet antes de ver Damon só de cueca.
Talvez seja bom voltar para casa, para meus cachorros, para a minha rotina e para o meu
Dono. Quem sabe assim minha cabeça pare de girar com esses pensamentos esquisitos.
Ainda assim...
— Posso perguntar que horas vou voltar para o meu Dono? — Meu timbre é baixo, assim
que ele surge, com calças pretas e uma parte de cima justa de manga longa.
Suspira lentamente e, pela primeira vez desde que passou pela porta, me encara e me vê.
Sorri fracamente, ocupando o meu lado no colchão, colocando a mão em cima das minhas, com
uma proximidade que me faz querer me afastar, entretanto, não consigo nem me mover.
Nossos olhares se entrelaçam em uma espécie de elo invisível que une nossas dores em uma
conexão emocional poderosa.
— Como pode ser tão leal a alguém que só te faz mal?
Ele não está me julgando, parece realmente interessado, então sou sincera.
— Ele me salvou de formas que ninguém é capaz de compreender. — Coloco o cabelo atrás
da orelha. — Devo isso a ele.
— Você o ama mesmo, ou só sente que é obrigada a retribuir? — pergunta, traçando os
dedos pelos detalhes das minhas mãos. — Seu Dono.
Demoro alguns segundos para fazer que sim com a cabeça, como se algo dentro de mim se
recusasse a pensar no assunto.
— Eu o amo, mais que tudo. — Minha voz quase não sai.
— E é só isso? — pergunta, com um riso fraco cortando o ar ao nosso redor. — Dor e essa
necessidade de gratidão?
Dou de ombros, pois esse assunto me deixa à flor da pele: ansiosa, confusa, excitada,
esperançosa e com medo. Principalmente, cansada de sentir tanto toda vez que meus olhos se
cruzam com os de Damon e meu cérebro grita sobre o quanto é errado o que está acontecendo
comigo.
— Em 99% do tempo.
— Acha justo viver o inferno por um minuto no céu?
Sinto-o mais perto e isso me deixa nervosa, porque, quanto mais próximo, mais inevitável é
reparar no desenho da sua boca ou em qualquer outro traço do seu rosto.
— Quando acontecer com você, me conta.
Abaixa a cabeça com um sorriso no canto.
— Acho que isso não vai acontecer nunca. — murmura, com o olhar preso ao meu. —
Tento, tento, tento, mas é como se eu ficasse sempre à deriva.
Sei o que responder, só hesito um pouco.
— Talvez devesse parar de tentar tanto. — Um sorriso alivia o semblante duro à medida que
compreende onde quero chegar.
Entreabre os lábios como se tivesse uma resposta na ponta da língua, porém tudo o que sai
da sua boca é um obrigado.
— Mais algum conselho?
Um pensamento me faz sorrir com a ideia de retribuir a forma como me tratou.
— Você consegue mais algumas horas comigo?
Ele faz que sim.
— Por quê?
Nem eu sei o que estou fazendo quando estico o meu braço esquerdo e toco nas costas de
Damon. Sinto seu músculo contrair com o toque da minha palma, o calor do seu corpo contra
minhas palmas frias. Deslizo até sua escápula, e, com a mão direita, alcanço seu peito, rijo e
delineado, elevando a região.
Estamos muito próximos agora.
— Precisa segurar sempre essa postura. —Faz tempo que não toco em um corpo masculino,
são sempre eles que me tocam. — Está vendo?
Busca o seu reflexo no vidro das portas francesas.
— O que está fazendo? — me olha confuso.
— Vou te ensinar balé, Damon. Se encontrar a beleza dentro de si, não a buscará no amor de
outras pessoas.
BONECA RUSSA

A bailarina costura a ponta das minhas sapatilhas novas como se estivesse retribuindo o
presente.
Não que o clima ao nosso redor não esteja com o gosto terrível de despedida, só estamos
fingindo que os problemas ficam do lado de fora dessa sala de espelhos. Aqui, somos apenas
duas pessoas que encontraram no ballet algum motivo para continuar tentando.
Até eu descobrir quem é o Dono dela.
Cartier diz que isso é impossível. São 150 Jogadores, 50 Peças. O único que sabe quantas
Bonecas e qual Sangue em Ascensão tem, é o Rei, e vossa Majestade deixou claro que Aleks não
está no catálogo, então é melhor que ele não fique sabendo.
Já fiz todas as ligações que podia, só me resta esperar que meus pontos voltem com
respostas.
Quando aceitei esse convite de presente, aceitei os termos com sangue do envelope.
Esperava ter respostas que sanassem minha obsessão, não voltar para a casa ainda mais
envolvido. Agora, enquanto ela ziguezagueia a agulha com linhas entre os dedos ágeis,
explicando que somos de escolas diferentes e me orientando a buscar uma com método Royal,
tento encontrar em uma maneira de aprisioná-la a mim.
— E se eu quiser aprender ballet russo? — contraponho, sem conseguir tirar os olhos dela.
Se nas primeiras horas comigo ela só ficava em silêncio, agora é como uma delicada flor
desabrochando diante dos meus olhos. É a coisa mais graciosa desse mundo a forma como se
move, respira, pisca e existe. Consigo ver nos seus olhos o quanto ama falar sobre esse assunto, e
acredito que ela consegue ver nos meus o quanto adoro finalmente ouvi-la falar sobre qualquer
coisa, quanto mais ballet.
— Vaganova[10] busca uma técnica sólida e uma execução precisa, o Royal valoriza a
expressão artística e a liberdade de movimento. — Para de costurar para me fitar com seus
deslumbrantes olhos azuis-escuros. — Acho que combina mais com a sua personalidade, e você
já aprendeu a base do ballet com o método Royal, então é natural para você.
Desvio a atenção dela para as mensagens no meu celular, aguardando alguma resposta de
Europa Young, em vão. Quem respondeu foi Cherrie, sem entender nada, então não tenho o que
fazer estando em Vermont, por mais que minha mente me dê mil opções por minuto. Volto os
olhos para a bailarina e tudo o que sinto se resume a mesma impotência diante das violências
psicológicas que minha mãe sofria na mão dos Sangue em Ascensão. Estou de mãos atadas.
— Sempre achei que Royal fosse a melhor mesmo. — Brinco com ela, para distraí-la.
A bailarina semicerra as linhas de expressão.
— Então volte para o ballet Royal, consiga outro encontro comigo e vamos ver se eu não
acabo com você.
A língua afiada soa deliciosa, porém detesto a ideia de outro encontro com ela.
A simples ideia de ela sair com outros Jogadores e mostrar a eles tudo o que eu vi, e que
ainda nem toquei, para homens que não vão ter o mesmo cuidado com os cacos da minha boneca
quebrada, me faz lutar contra o instinto de fechar os punhos.
Não é como se eu não entendesse a mente dos outros Jogadores. A bailarina é delicada e
sensível como um cristal. Ela brilha inocência. É o que dizem, algumas coisas são tão lindas que
nascem para serem quebradas. Consigo imaginar o Dono dela cuidando de cada um dos seus
cortes, até que ela esteja pronta para ser estilhaçada por outro Jogador, de novo e de novo.
Vou enlouquecer com a ideia.
Não posso deixar isso acontecer. Eu não desejo que outro homem a toque, nem mesmo que
ponha os olhos na coisa mais linda que já vi. Não me importa se estou enlouquecendo. Eu a
quero e, quando desejo algo tanto assim, não existe outra forma de diminuir o estrago.
— Não quero outra professora — rebato em tom de quem acha a sugestão absurda. — Quero
você.
Faz um movimento com o corpo de “não importa” antes de me olhar por cima dos ombros.
— Isso não é uma opção, Jogador. O final de semana está acabando.
— Você aposta? — Franze o cenho para a minha pergunta.
Meu telefone começa a tocar, cortando nossa disputa. Levanto-me, vou até a janela e atendo
Cartier.
— Já liguei para alguns Jogadores, estou fingindo que é um fetiche meu. — Cartier explica.
— Mas ninguém tem uma Boneca-russa, bailarina com olhos azuis-escuros, para emprestar. Nem
um Jogador conhece outro Jogador que tenha.
Enquanto Cartier fala, assisto a bailarina com adoração.
— Isso porque ela não pertence a um Jogador, e sim a uma Peça Forte. — Lembro, com
pesar. — Vamos ter que...
— Não vou perguntar para nenhuma Peça Forte, Damon. — Deixo que o silêncio fale por
mim. — Não, Damon. Você não pode comprar briga com peixe maior que você. Porque, se isso
acontecer, não é você quem vai ser engolido, é a estranha que você se apaixonou em 24h.
— Então eu simplesmente a deixo ir embora?
Ele suspira ruidosamente.
— Eu sei como se sente, mas somos Sangue em Ascensão, não podemos sair por aí salvando
as pessoas que cruzam o nosso caminho. O Tabuleiro é sangrento, o melhor que podemos fazer é
não deixar o sangue respingar em nós. Desculpe. Se o George souber que você está querendo
roubar a propriedade de outro Jogador, que você morra sozinho. Foi mal.
Desliga antes mesmo que eu responda. Eu entendo o seu posicionamento, mas sei também
que ele está sujo demais com o Sangue das pessoas que tenta ajudar.
Volto e me sento no chão ao lado da bailarina, em um silêncio sério demais para disfarçar.
Ela coloca as sapatilhas no meu colo.
— Pronto, mas não as use ainda. — Ordena com o timbre atencioso. — Dance sempre com
as meias, tudo bem?
A bailarina me observa atentamente com seus olhos azuis adornados combinados com o
collant azul cintilante e a maquiagem quase artística elaborada pelo delineador marcado e a
sombra azul.
É como se todos os problemas evaporassem.
— Como consegue ser tão linda? — indago, sem esconder meu olhar encantado.
Ela busca a parede de espelho a sua frente.
— Quando eu era criança, sempre via uma borboleta no jardim da minha avó. — Começa
observando seus próprios olhos. — Ela era azul cintilante desse jeito.
— Uau.
Abaixa a cabeça, um pouco triste.
— Eu não gostava dessa borboleta. Morria de medo quando abria a janela do meu quarto e lá
estava ela, feito um presságio — sorri consigo. — Mas bastou eu ir embora da Rússia, para sentir
falta dela. Não é engraçado? Sempre desejar aquilo que perdeu?
De alguma forma eu sei que, se deixar a bailarina voltar e eu a perder, essa pergunta vai me
perseguir pelo resto dos meus dias.
— Conseguiu rever a borboleta alguma vez?
— Só nos meus sonhos. — Admite. — Mas nunca consigo alcançá-la.
Adormecida ou acordada, a bailarina vive em uma eterna perseguição. Como eu.
—Também era a maquiagem que fazia para me apresentar no meu repertório favorito. —
Lembra com uma animação única.
— Qual é seu repertório favorito?
— Já ouviu falar nos Corsários?
— Não lembro.
Aleksandryia entrega um sorriso tão lindo que arrepia cada centímetro de mim, me fazendo
abaixar a cabeça para que ela não me veja mordiscar os lábios inferiores antes de voltar a atenção
aos seus olhos.
— Era uma vez um grupo de Corsários liderados pelo pirata Conrad, viajando em alto-mar.
Ajusto a postura, de frente para ela, com um dos joelhos levantados de um modo que apoio
as mãos e o queixo em um misto de fascinação, a impedindo de desviar o olhar.
— Eles são surpreendidos por uma forte tempestade. As ondas rebeldes os levam até uma
ilha. Quando seus pés tocam a areia da praia, eles cruzam com lindas jovens, lideradas pelas
gregas Meldora e Gulnara... Quando o olhar de Meldora encontra com o de Conrad, adivinha só
o que acontece?
Ela não tem intenção quando demonstra sua faceta romântica para mim, mas sua pergunta
traz, automaticamente, a memória do nosso primeiro encontro, dominando a minha mente como
uma gravação de câmera lenta do espetáculo que nunca vai sair de cartaz.
— Eles se apaixonam à primeira vista… — solto com a voz mais rouca, e a covinha na sua
bochecha só faz com que eu repare nas maçãs do rosto avermelhadas pela minha investida.
Seus pés se mexem, mas ela continua contando.
— No entanto, aparece também um grupo de mercadores turcos mal-encarados… —
Continua, mal escondendo a careta. — Eles capturam as gregas e as levam para serem vendidas
como escravas.
Minha postura fica ereta e ela nota meus músculos tensionarem por baixo da roupa justa
esportiva.
Abaixa a cabeça, mexendo no dedão do pé, morrendo de vergonha.
— E aí? — incentivo.
— No mercado, o rico Paxá está procurando as mais lindas mulheres para serem compradas
para seu harém e fica encantado por Meldora, — seu timbre é baixo, mas então se empolga de
novo — vendo-a dançar, pas d’esclave.
Sorrio com sua ênfase.
— Pas d’esclave? — repito, gravando na mente. — Como é?
A curiosidade na minha pergunta é o suficiente para fazê-la levantar em um salto.
— Vou mostrar. — Entrego o meu celular e ela coloca a música. — Amo a melodia, esse é
um dos motivos pelos quais amo Le Corsaire.
De fato, a melodia é a coisa mais alegre que já ouvi, combina muito com essa Aleksandryia
na minha frente. Observo-a sem me mexer, mãos no joelho e queixo apoiado, com um leve
sorriso brincando nos lábios ao vê-la se posicionar na barra improvisada.
Começa com uma demarche suave, mergulhando em um plié profundo e subindo para o
relevé.
No écarté, abre as pernas em um gesto expansivo e a transição para a arabesque é suave.
Arabesque é um movimento que tenta alcançar algo maior, e ela faz isso parecer divino. Não
resisto e também fico em pé, cruzando os braços enquanto gravo cada movimento dela.
A retiré traz sua perna ao alto, enquanto os braços ondulam como uma melodia que se
entrelaça com a dança. Desliza lateralmente com o pas de bourrée, cortando um espaço entre
nós, bem na minha frente. Seus giros seguintes a trazem para mim, mas ela volta antes que eu a
agarre, como se suspeitasse das minhas intenções. Existe muita felicidade em cada movimento,
completamente diferente do que eu a vi dançar no espetáculo.
Agora, ela exala vida.
Quando finaliza a variação com um gesto final e nos encaramos, cada célula do meu corpo
diz que ela é um segredo que devo proteger com a minha vida.
Levo as mãos à sua cintura, com meu corpo inteiro se incendiando com o desejo de avançar
contra sua boca gostosa e devorar seus lábios com os meus.
— Essa é a variação que deixa o rico Paxá completamente apaixonado por Gulnara — fala
rapidamente, me impedindo de avançar. No entanto, em vez de me empurrar ou se esquivar,
direciona os meus braços, norteando minhas mãos abaixo dos seus seios, de um jeito que sinto a
maciez do volume me excitar enquanto o aro do sutiã me impede de subir os dedos. Tão
proibido... — Ele está disposto a pagar muito para tê-la em seu harém.
— Qualquer um pagaria muito para tê-la, borboleta-russa... —demonstro minha força com
precisão na pegada, de um jeito que a sinto prender o ar. Ela faz um plie e o misto de sensações
se intensifica, indo muito além do tesão ou da admiração, toca a minha alma.
Pas de deux é um sonho que eu não pude realizar com Charllote Duncan.
Também tem um significado poderosíssimo de confiança. No ballet, o homem atua como a
sombra para que a bailarina estrele. O papel dele é ampará-la em todos os movimentos. Essa
união perfeita permite que ela dê seus grand jetés, piruetas e até os retirés de forma mais
graciosa.
Em troca, a vida dela está nas mãos dele, já que, caso a deixe cair, a maior lesão ocorre nos
pés — lugar de maior impacto para a bailarina. É claro que a Aleks não vai saltar, mas não
diminui quão profundo é a demonstração de confiança que ela está dando a um Jogador estranho.
Prometo para mim mesmo que vou dar tudo para compensar.
— Um desconhecido faz uma oferta mais alta. — Fala em tom de provocação, sentindo
minha respiração quente selar sua nuca. Céus, eu a escutaria com esse sotaque pelo resto da vida,
e nunca enjoaria...
— O Conrad. — Concluo, prendendo nossos olhares em uma distância tão curta que a faz
tremer. — Conrad a salva. — Desfilo os dedos até sua cintura. — Eu te salvaria, Aleks. — Soa
como uma súplica, sem compreender o porquê de isso fazer meu coração bater tão forte a ponto
de se chocar com os ossos do tórax em forma de espasmos intensos e deliberados. — Por todos
os meus dias, eu te salvaria, borboleta russa.
Seu pulmão parece ser preenchido com o mesmo ar congelante da madrugada em que
engoliu a raiva de precisar suportar a minha companhia.
— Eu não preciso ser salva. — Declara, afastando-me bruscamente. — E você não tem nada
a ver com Conrad. — Ri, quase satírica. — Preciso ir agora. Meu Dono está me esperando. Não
sei o porquê te contei isso.
— Fica comigo, Aleks. — Peço, profunda e sinceramente, ao ponto de doer nos ossos. — Eu
pago por você, seu Dono deve ter um preço, só me diz o nome dele.
— Para quê? — ri com nervosismo. — Vai me tirar de uma prisão para me colocar em
outra?
A dor atravessa suas palavras, rasgando uma parte de mim mesmo.
— Não — tento. — Você vai ser livre, comigo.
Faz que não.
— E quem disse que eu quero ser livre?! — Seu timbre sai esganiçado. — A beleza e a
complexidade das asas das borboletas não podem ser consertadas, após quebradas, é questão de
tempo até que morra.
Faço que não, dominado por um impulso que me faz avançar na sua direção.
— Você não vai morrer quebrada! Eu não dei a permissão.
— Quando eu era criança, temia borboletas, pois representam a liberdade. — Há uma
distância mínima do meu rosto, fala claramente: — Não a quero, Damon. Vivemos em guerra
dentro de mim. Minha alma quer voar, mas eu prendo todos os fragmentos que restaram em uma
gaiola. — Então aponta o dedo contra o meu peito. — E eu nunca aceitaria ser espetada por
outro algoz.
Nem sequer consigo argumentar, porque ela sai da sala e segue para o heliponto para
aguardar a aeronave, e se eu a trancar em um dos quartos, estarei sendo exatamente como o seu
Dono, e como meu pai.
Então eu decido mudar a estratégia.
Antes dela adentrar o helicóptero, puxo sua mão e pergunto:
— Não vou ganhar nem um abraço?
— Abraço? — Isso a quebra, ela não estava esperando.
Assinto.
Observo seus pezinhos se mexerem enquanto ela procura um motivo para recusar algo tão
singelo, e não encontra, apenas revira os olhos e abre os braços, entregando uma feição entediada
que diz “isso é o máximo que você terá de mim.”
Aceito como se fosse tudo o que precisasse para ter a permissão de puxá-la e a envolver com
os dois braços. Meu corpo é como uma muralha protetora, e eu sinto Aleks amolecer com minhas
mãos em torno da sua cintura fina.
Abaixo a cabeça para sentir o perfume dos seus cabelos e os inspiro profundamente em uma
demonstração de que quero gravar seu cheiro, junto com tudo o que vivemos nas últimas vinte e
quatro horas.
— Seu tempo acabou, Jogador. — Tenta se desvencilhar do meu abraço.
Aproximo-me do seu ouvido, colocando um cartão com meu número dentro do seu casaco.
— Me liga quando chegar, Oceano. Sempre que precisar. Me liga e eu largo tudo, vou
correndo.
Não é como se eu estivesse desistindo, só estou sendo inteligente.
Ela faz uma careta, colocando a mão no ventre, dá as costas e sobe na aeronave.
Ligo para Cartier assim que o helicóptero desaparece no céu.
— Faça as malas e avise Zaki e Dylan. Estamos indo para a Rússia.
— O que vamos fazer em um território que somos proibidos?
— Buscar uma borboleta-russa.
SANGUE

Entro no helicóptero com as primeiras pontadas de dor.


As cólicas fortes começaram com a minha menarca, aos treze, e se tornaram mais intensas a
cada ciclo menstrual. Eu devia imaginar que não era normal vomitar e desmaiar todo mês, mas
não era como se eu fosse rodeada de mulheres para observar como elas sobrevivem as suas
menstruações.
Minha avó já estava na menopausa quando fui morar com ela, aos quatro, e no ballet
ninguém fala sobre menstruação. É tabu. Como as bailarinas vão ficar com as pernas esticadas,
dando saltos e giros, correndo o risco de vazar sangue diante de toda uma plateia?
É engraçado imaginar que mesmo em uma dança majoritariamente feminina, o nosso útero
ainda seja motivo de vergonha. Não, o jeito é forrar todo o fundo da calcinha com absorventes
noturnos e fingir que não está se desfazendo em cólica.
Foi o que sempre fiz.
Cada menstruação era mais debilitante, eu chorava de dor e medo de morrer, até que os
primeiros dias passassem. Foi meu Dono quem percebeu que tinha algo errado comigo. Ele foi
me ver e eu não conseguia parar de agonizar nem para dar atenção a ele. Sexo era impossível —
ele não gosta de transar comigo chorando.
Ele me levou para o hospital e eu tive o diagnóstico: endometriose. Não, não era normal
todo o meu sofrimento! Sim, tinha tratamento. Fiz uma cirurgia de laparoscopia e, em seguida,
meu Dono me levou para a sua casa, onde cuidou pessoalmente de mim durante todo o pós-
operatório.
Menos de um ano depois, voltei a sentir as mesmas dores.
Quando contei para meu Dono, ele fez uma piadinha sobre eu querer apenas receber a
atenção que ele me deu quando fiquei sob seus cuidados. Fiquei magoada porque não estava me
vitimizando, estava com dor e medo de passar por tudo de novo. Jurei a mim mesma que nunca
mais reclamaria.
Prefiro morrer no meu quarto a pedir para ele me levar ao médico.
Meu Dono sempre disponibiliza opioides para eu me acalmar, então quando estou com
muita dor mastigo Oxicodona ou Fentanill. Não sei se é a dor que passa ou eu que apago, não
importa. Meu Dono não fica sabendo.
Só que não trouxe nada na bolsa, então preciso sobreviver o caminho até Nova Iorque.
Fecho os olhos, com os braços em frente a barriga, dizendo a mim mesma que está tudo
bem, estou indo para a casa. Tudo vai continuar igual. Nada mudou.
O que deveria me confortar me entristece. Por que não posso assistir desenhos da Disney?
Por que não posso ter um amigo para conversar sobre ballet? Por que tudo precisa ser sempre tão
triste e solitário?
Meus olhos enchem d’água quando subo a atenção para o reflexo do meu rosto, no vidro da
aeronave. As íris azuis parecem mais vivas com o realce que o delineado preto proporcionou, os
cílios estão cheios e negros e as maçãs do meu rosto, coradas. Por que eu me sinto tão culpada e
envergonhada por desejar coisas tão simples?
Eu tenho meus cisnes e meus cachorros. Tenho uma mansão, tudo do bom e do melhor.
Tenho um Dono cuidando das minhas necessidades. O meu Dono. Então por que sinto um vazio
tão grande?
Busco o cartão que Damon me deu. É preto fosco, com o número dele e um lindo símbolo
de Torre em relevo. Lembro da sua pergunta sobre eu realmente amar meu Dono e meu
estômago se contorce de ansiedade. Um ardor sobe das pontas dos dedos dos pés até incendiar
meu corpo e minha alma quando penso que estou voltando para a casa, de modo que não consigo
entender se isso é bom ou ruim. Apenas solto o cartão e o vento o leva para longe.
Além da dor emocional, a dor quente irradia da minha barriga, crescendo a cada minuto,
intensificando o medo que estou sentindo, por tudo. Parece que, ao mesmo tempo em que meu
corpo me nocauteia com seus açoites, meu cérebro usa como arma as minhas piores lembranças
para me manter congelada no espaço-tempo, afogada no fundo do meu oceano Ártico.
Eu mereço a minha vida, como ela é. Devo ser grata por não ter sido abandonada.
Sinto a tensão crescente na região pélvica, como se algo estivesse lentamente apertando e
puxando de dentro para fora. No início, é uma sensação sutil, quase como um incômodo
persistente. Sinto vontade de me mexer a cada fisgada, mas estou em um desconfortável banco
de helicóptero e tudo o que posso fazer é apertar a barriga, fechar os olhos e tentar me enganar de
que não estou sentindo nada. Nem o dedão sem unha, nem o útero, nem meu coração ou minha
mente estraçalhada.
Só consigo pensar no quanto quero ir para a casa e me deitar com meus cachorros na cama.
Pensar neles é o suficiente para eu descer da aeronave e arrastar meus passos até entrada da
minha casa. Toda vez que me movo, é como se algo estivesse se agarrando a órgãos que
deveriam ter espaço dentro de mim, ao ponto da dor se estender para a região lombar, criando
uma sensação de queimação profunda e latejante. Continuo andando, até abrir a porta de casa,
fechá-la e chamar os meus filhotes.
— Conrad? Meldora? — Meu timbre sai gemido e eu me permito me ajoelhar e ficar de
quatro, pois eu sinto que a dor fica menor nessa posição. — Corsário... Odalisca... Gul...
Eu sinto, nesse momento, o líquido quente sair de mim feito uma facada que me rasga de
fora afora, desencadeando uma sinfonia de dor. Meu coração, que batia mais forte a cada pulsão,
dispara adrenalina em todo o meu corpo, ao ponto de me sentir zonza de dor e medo.
O período menstrual não é só uma tortura pela endometriose, também é pelo sangue. Apesar
disso, nesse momento o meu pensamento mais importante é: onde estão os meus cachorros?
A dor, agora, não é apenas física. Ela tem uma presença poderosa que se estende para além
da fronteira do meu corpo. É como se tivesse uma mente própria, uma criatura invisível que
encontra prazer em se espalhar, em explorar cada recanto escuro do meu ser.
Começo a me rastejar de quatro em direção as escadas, sem saber se procuro primeiro o
remédio ou os meus cães, porque eu estava contando com eles para lamberem minhas lágrimas e
tornar a subida até o meu quarto mais suportável. Mas me ver sozinha nessa mansão escura me
desespera mais do que as pontadas, e eu não sou capaz de segurar as lágrimas que descem pelo
meu rosto, molhando minhas mãos.
É difícil me mover, pesado como se o peso do planeta estivesse em minhas costas, e eu não
sei se quero suportar. Eu só quero meus cachorros.
— Conrad? — grito com toda a minha força, de modo que preciso parar para respirar fundo
e suportar as contrações ao subir, degrau por degrau. — Meldora? — assopro, chorando. — Cadê
vocês...
É difícil descrever a sensação de rastejar; é uma dança dolorosa que parece não ter fim, um
intruso que persiste, se agarrando com uma teimosia em meu ventre. A distância do meu quarto
parece maior com o corredor escuro e as portas fechadas, como se eu estivesse em um jogo de
esconde-esconde constante com minha própria dor.
Meu coração parece estar sendo mais esmagado do que meu útero, e o medo disputa com a
dor. Passo os meus olhos por todo o corredor antes de abrir a porta do meu quarto, procurando
algum sinal deles, mas tudo o que sinto irradia tanto que não escuto qualquer outro barulho.
Só o rangido da porta se abrindo.
Meldora é a primeira que aparece no meu campo de visão, me lambendo e chorando de
alegria por me ver, com lacinhos e perfume de chiclete. A dopamina alivia um pouco dos
sintomas, principalmente quando Conrad pula em mim, me derrubando no chão. Odalisca e
Gulnara também dão choradinhas ao me ver, subindo em mim, fazendo-me sorrir como se eu não
estivesse sentindo meu corpo me rasgar por dentro.
— Corsário? — Chamo, desviando o olhar deles para procurar no ambiente.
E então eu vejo uma sombra no escuro.
Toda a minha estrutura paralisa. O sangue para de correr pelo meu corpo e eu ligo a luz
como se tivesse medo da escuridão. Subo o olhar lentamente, dos seus pés, as pernas longas, o
abdômen reto e o ombro largo. Paro a análise no seu peito, abaixando a cabeça novamente. Sinto
as lágrimas quentes escorrerem pela minha face, mas elas evaporam antes de despencar do meu
queixo.
Ele já está me queimando.
— Mi-miau.
Tento levantar e a dor pulsa, me fazendo desistir da ideia, então fico de joelhos, embora
sinta a pulsação dolorosa irradiar pelas minhas pernas, ao ponto de sentir meus músculos e ossos
tremerem com a sensação de pressão, como se algo estivesse empurrando e se movendo dentro
de mim.
Ele se aproxima lentamente, em um silêncio violento, divertindo-se comigo nessa posição.
Cada passo ecoa dentro de mim, congelando todos os pensamentos que ousam exclamar qualquer
tipo de repulsa, enquanto toda a minha química clama de adoração.
Ele para na minha frente, de uma altura que posso ver o volume avantajado na sua calça
clamar por mim. Mesmo estando com muita dor. Continuo preocupada com Corsário, triste com
tudo, confusa com Damon, mas, nesse momento, minha boca fica cheia de água.
Ele toca em mim e cada célula do meu corpo estremece. Desfila os dedos pelos meus
cabelos, entrelaçando em seus dedos, mas não os puxa, apenas acaricia de um jeito que eu morro
de culpa e desejo de pedir desculpas por tudo o que pensei, como se meu Dono estivesse a um
triz de invadir os meus pensamentos.
Ele está. Ele está.
Desce a mão até a minha coleira, puxando-a com um solavanco na direção dele. Fecho os
olhos com força. Não tenho permissão para fitar seu rosto.
—Kitty. — Sinto seus lábios sussurrarem contra os meus. — Por que está chorando,
babygirl?
É como estar em guerra com meu próprio corpo de uma batalha que não escolhi, mas que
devo enfrentar todos os meses.
Eu posso falar da cólica, mas não é o que mais me faz chorar.
— Corsário. — Murmuro, sentindo o gosto salgado nos meus lábios. — Onde está o meu
filhote?
Sei que errei minhas palavras, pois ele me trata feito uma boneca, me soltando, com tudo.
Não é sua intenção me derrubar, mas minhas pernas estão muito fracas, caio e bato a cabeça na
parede. Forte o bastante para a minha cabeça zumbir, o mundo parar de girar e eu começar a
tremer de medo da próxima reação.
— Eu te enviei de presente de Natal, você não gostou?
Sua frase me atinge como uma facada, cravando-a no meu coração e rasgando-o de fora
afora. Eu perco o fôlego e o medo aumenta, porque, sem meu coração pulsando o sangue das
artérias até minhas veias, vou morrer. Ele luta contra a droga que me deixa tonta e a
racionalidade praticamente inexistente. Isso não pode ser verdade. O quê?
— O presente na caixa era o meu cachorro?
— Que eu te dei, embora você não mereça. Venho até aqui te ver, e você chora por causa de
um cachorro? — Seu timbre não é bravo, é magoado, mas sei que está furioso porque as veias
das suas mãos fortes e largas saltam, e isso me amedronta.
— E-eu também estou com muita cólica.
Sua risada corta o ar.
— E o que mais, querida?
Engulo em seco, não compreendendo como tenho força de me levantar e ficar em pé,
limpando as lágrimas abundantes.
— Desculpa. — Peço.
Põe as mãos na cintura de um modo que eu vejo o seu relógio de ouro.
— Pelo quê?
— Por tudo o que o senhor acha pertinente.
A verdade é que não sei como continuo em pé. Estou frágil, sei que vou cair e me machucar
mais, ao menor vento, o que torna mais assustador cada passo que ele dá na minha direção.
Acho que subestimei o prazer do meu dono em me assistir sangrar.
— Está sangrando, bebê?
As lágrimas impedem que eu veja o sangue escorrendo pela meia-calça em minhas pernas,
mas não de sentir o tom malicioso em sua voz.
— Um pouco.
Torna acariciar meu rosto com a mão que varre todos os meus outros sentidos.
— Estava sangrando quando o outro Jogador te pegou?
Faço que não.
— Mas ele te fodeu, certo?
Não entendo a mente do meu Dono. Por que isso é importante? Ele pagou, não pagou? O
que os Jogadores fazem comigo é relevante?
— Kitty — seu tom é de alerta.
— Ele não fodeu meu corpo, Dono. Ele gosta de sentimentos. — Explico, porque não posso
mentir, atropelada pela dor física e emocional. — Fodeu minha mente.
Ele é como você.
— Você está tão engraçadinha, Kitty.
O desespero fala mais forte a minha dor, lanço-me na sua direção e enrosco meus braços em
seu pescoço. Ele se desvencilha dos meus braços e os segura. Em seguida, me coloca contra a
parede, apertada e assustada, descendo as mãos até a minha parte mais ferida, e introduz seus
dedos na minha vagina.
A cólica explode em desconforto, como se uma faca estivesse cortando meu interior. É uma
dor que vai além do físico, uma ferida que parece se estender até minha alma. Estou chorando de
novo, mas não sei se sou eu ou meu próprio útero, ecoando a tristeza e a frustração a cada
penetração.
Ele vê minha face se contorcer e tira a mão, brincando com seus dedos sujos pelo meu rosto,
e repete, afundando seus dedos e passando no meu rosto, de novo e de novo.
— Está com dor, não é? — acaricia minhas bochechas molhadas com as costas do seu dedo,
misturando sangue as lágrimas de um jeito que me desespera ainda mais.
Não consigo nem sequer responder, paralisada, então faço que sim, engolindo a vontade de
perguntar o porquê está me machucando desse jeito.
Ele se afasta, limpando o restando do sangue na minha roupa. Ordena:
— Vai para a cama.
O medo que sinto por desobedecê-lo é mais lancinante do que a dor de imaginar o que ele
vai querer comigo, nesse estado. Saber que há sangue no meu rosto me desespera, mas tenho
medo de limpar e ele fazer pior. Concentro toda minha força em cada passo, enquanto o escuto
abrir as gavetas e voltar com os comprimidos.
Estou sentada na ponta da cama e ele arruma os travesseiros, puxando o edredom para que
eu me aconchegue. Antes, tira os meus sapatos. Não sei reagir, nunca vou me acostumar com
esse lado dele, então prefiro me manter calada para não o irritar de novo. Não quero perder isso,
por mais magoada que eu esteja.
— Vamos resolver sua dor, porque quero falar muito sério com você e, preciso que você seja
forte.
Enche minha mão de comprimidos.
— Eu-eu só to… tomo um — me esforço para falar, tremendo dos pés à cabeça por
confrontá-lo. — Vou morrer com tanta Oxicodona no meu corpo.
— É claro que não vai, baby girl. Sei muito bem qual deve ser a dose para matar. Acredite.
— Sorri com orgulho. — Anda, engole. Rápido.
— Não… — não sei como tenho forças. — Vou parar de chorar, aí você me fa…
Meu Dono avança tanto na minha direção que eu encosto na cabeceira, onde ele me
pressiona entre seu corpo e a madeira. Sinto-me desesperada pela sua aprovação, pois sei que seu
desejo é a única coisa que pode me tirar dessa situação, então reúno toda a coragem e encosto
delicadamente em seu peito, ansiando que meu toque contra sua pele tenha o poder calmante de
sempre.
— Preciso que tome esses remédios agora, baby girl — me desperta para o pesadelo — para
aguentar tudo o que vou falar para você, entende? — Desce as mãos fortes até as minhas. —
Você é fraca demais. — Abre os meus dedos e retira os comprimidos da minha mão. — É para o
seu bem, Kitty. É para o seu bem. Como não acredita em mim? Eu não sei o que é melhor para
você?
— É claro que acredito, é que... — Respondo no mesmo segundo — estou com medo de
você, Dono.
— Shiii. — Faz carinho em meus lábios. — Estou cuidando da minha Kitty, como sempre
faço. — Segura em meu queixo e entreabre meus lábios com certa força. Por um minuto,
imagino-o quebrando meu maxilar com facilidade se eu recusar. — Abra a boca e coloca a língua
para fora como se fosse receber o meu pau, Aleks. — Obedeço, amedrontada com tudo o que está
acontecendo, desejando que, se eu cooperar, ele volte ao normal. — Muito bem, boa garota. —
Coloca os comprimidos em minha língua. — É por isso que vou sentir sua falta, Kitty. Agora
engole tudinho.
Meu coração dispara.
— O que quer dizer com isso? — Minha língua enrola as palavras.
— Vamos conversar enquanto o remédio não faz efeito, tudo bem?
Então ele tira o relógio do bolso do terno.
— Não, não, não. — Balanço a cabeça, desesperada. — Eu não quero...
Tento desviar o olhar e ele segura meu rosto em sua mão, com seus dedos sujos de sangue
limpando minhas lágrimas, enquanto balança o relógio diante de mim. O tic-tac constante ecoa
no ar, criando uma cadência hipnotizante que prende meu foco como uma teia sutil.
— Não...
— Eu quero conversar com aquela Aleks que prendi, Kitty.
Minha visão parece desfocar e as horas marcadas no mostrador do relógio se misturando em
uma dança hipnótica. Cada balanço do pêndulo é como um feitiço, tento desviar o olhar, mas a
atração magnética é uma força invisível que me puxa para dentro do próprio mecanismo do
tempo.
— Você sabe o porquê eu aceitei ficar com você, mesmo depois do que você fez, Aleks?
Meus pensamentos se emaranham em uma teia de preocupações, me fazendo questionar
como vou escapar dessa dança macabra onde a minha vida está no limite que meu Dono quer
atravessar.
— Por favor...
Sua risada gostosa ressoa como um eco distante, perdida na névoa crescente dentro da minha
cabeça. Cada batida do coração parece sincronizar com o ponteiro, criando uma simbiose
estranha entre minha pulsação e o movimento do relógio, ao ponto de toda a dor deixar de
existir.
A cada tic-tac, minhas defesas desmoronam diante da força inescapável da hipnose, presa
em um transe feito uma marionete cujos fios invisíveis são tecidos pelo meu Dono, conduzindo-
me para onde ele deseja.
— Você sabe o porquê eu aceitei ficar com você, mesmo depois do que você fez, Aleks?
— Por quê? — Meus olhos se fecham sozinhos.
— Porque quando alguém faz o que você fez, se torna especial. E eu sabia que, se cuidasse
de você, na hora certa você retribuiria o favor.
Toda a tristeza, o medo e a preocupação desabam em algum lugar profundo demais para eu
reagir. Estou presa a uma dívida eterna.
— Acho melhor eu ir para o hospital, estou com medo… — Abraço a almofada,
entorpecida, tonta, sonolenta. — Não sinto meu corpo.
— Abra os olhos, Kitty — ordena e eu obedeço a muito custo, mas tudo o que enxergo é
turvo. — Me conte o que você fez na noite em que tudo mudou, Aleks.
Tento aquecer minha mão com o calor do seu corpo, porém, de alguma forma, ainda tremo.
Céus, que frio é esse?
— Preciso me cobrir — peço, encolhendo-me. — Não ouvi nada. Nem sei do que estamos
falando…
— Você está mentindo para mim, Aleks. — Chacoalha meus ombros. — Diga a verdade!
Meus olhos se enchem de lágrimas, porque não tenho forças para ir contra ao que ele manda,
mas quando olho para dentro de mim não vejo nada.
— Não sei. — Minha voz sai esganiçada, e quase ouço o barulho das gotas de sangue
pingarem da minha boca com as palavras. — Eu não lembro.
Então, em um rompante, me pega pelos ombros e me arrasta até um espelho, onde ordena
que eu abra os olhos até que eu use uma força que nem sequer existe em meu corpo para
continuar essa tortura, vendo o meu rosto sujo com o sangue. Uma parte dentro de mim pede
para eu desviar, mas a voz do meu Dono é mais forte.
Atrás de mim, segurando-me para que eu não caia, visto que não tenho forças nas próprias
pernas, repete incessantemente:
— Como se sente? O que fez? Como foi?
Imploro que pare de dizer tudo isso, e ele continua pisando em minha alma, estraçalhando o
pouco que me resta.
— Como não se lembra do que fez? Você estava tão linda no dia, com aquele vestido azul-
turquesa que está no seu closet e seus cabelos ondulados. — Acaricia minhas madeixas
ternamente. — Tente lembrar, se esforce mais. Não pode se enganar e passar a vida inteira
fingindo que nada aconteceu.
Eu nego sem tanta certeza, porque ele me dá todos os detalhes da noite, e eu lembro daquela
festa com perfeição. Ele diz a data, diz tudo o que fizemos antes e depois. Lembro de tudo isso,
exceto o que ele quer que eu confirme.
— Eu cuidei de você durante todos esses anos, chegou a hora de você me dar o retorno de
todo o dinheiro e a atenção que te dei, Kitty.
Continua falando tantas verdades que me confundo e me sinto culpada por estar negando o
que ele afirma. Então ele simplesmente cansa, e sua voz aveludada em meu ouvido me deixa
completamente ferida.
— Estou revogando as ordens, Boneca-Russa, quero que você veja sangue até se lembrar do
que fez.
Dói tanto que sinto minha alma agonizar quando ele tira a coleira do meu pescoço.
— Olhe para seu rosto, Kitty. — Obedeço e vejo minha face completamente ensanguentada,
com ele atrás de mim. — O que você vê?
Nossa primeira parada é no teatro Bolshoi, em Moscou.
Já me perdi no tempo. A viagem de Vermont para Nova Iorque e de Old Westbury para
Moscou contabilizou mais que dez horas no total, o fuso daqui é oito horas de diferença e eu
estou mais de vinte e quatro horas sem dormir. Há tanta neve caindo que o cenário parece noite,
embora o ponteiro do Kremlin aponte para seis horas da manhã.
A bailarina ainda não ligou e eu estou preocupado com a reação dela ao descobrir sobre o
filhote. Sinto que deveria ter contado, mas não queria destruir a sua alegria nas horas em que
estivemos juntos.
— Acho que não tem ninguém trabalhando hoje. — Meu irmão fala do meu lado, enquanto
os flashes da câmera profissional de Zaki apontam para a fachada do teatro.
Estamos todos sem palavras. Eu, Dylan, Cartier e Zaki.
— Estão nos esperando. — Explico, enrolando o cachecol no rosto.
A ornamentação clássica do teatro é adornada com uma iluminação espetacular contrapondo
o azul-cinzento do céu, e as estátuas de cavalos estão brancas, assim como os chafarizes,
congelados. As luzes cintilantes formam padrões delicados que realçam os detalhes
arquitetônicos, revelando a majestade do edifício sob uma aura suave e festiva.
Odeio admitir que meu novo lugar favorito é território inimigo.
A entrada principal do teatro é marcada por uma árvore de Natal cheia de luzes coloridas
que refletem nas superfícies polidas do piso de mármore. Guirlandas luminosas contornam as
entradas, criando um corredor mágico que parece convidar os visitantes a imergir no mágico
universo do Quebra-nozes, ainda em cartaz.
Enquanto a equipe de segurança verifica o teatro, Cartier toca no meu ombro, sério.
— Se você não encontrar nada sobre ela. — Encara-me friamente com seu olhar de pai do
grupo. — É só mais um hiperfoco que você vai superar. Está tudo bem.
Dylan tenta me consolar com um carinho na cabeça.
— E é uma viagem que estamos fazendo nesse feriado, não estamos perdendo tempo, não
precisa se sentir mal.
— É história para contar. — Zaki alivia, com a câmera na mão. — Que outro motivo nos
traria para a Rússia além de sua nova obsessão?
As enormes portas de madeira se abrem para revelar um saguão espaçoso e ricamente
decorado, com colunas majestosas e lustres deslumbrantes que emanam uma iluminação suave.
O aroma do lugar exala uma mistura de antiguidade e elegância, envolvendo os sentidos
enquanto caminho pelo foyer. Paredes adornadas com tapeçarias e obras de arte contam a história
rica do ballet, fervendo essa paixão antiga em minhas veias.
Esse lugar combina tanto com a minha bailarina...
Os sons abafados de passos ecoam no mármore polido, e a atmosfera está impregnada de
uma serenidade antecipatória, à medida que nos aproximamos das portas que levam à sala
principal.
— Damon, achei algo que você pode gostar — Zaki me chama, porém estou muito
hipnotizado pela obra-prima arquitetônica, e a voz do meu amigo soma com a do Cartier. —
Vem aqui!
É um mural de fotografias que conta a história do Bolshoi através dos repertórios, separados
por datas. Bato o olho em uma das imagens de 2009 e reconheço Aleks no meio das outras
bailarinas, performando um lindo cisne, com as bochechas mais redondas e o ossinho do nariz
mais avantajado.
— É ela. — Sorrio, com alívio. — Encontramos o primeiro rastro da borboleta-russa.
Os três se espremem para ver ao meu lado.
— Tem certeza? — pergunta Cartier.
— É ela mesmo? — Dylan parece empolgado.
— Nem dá para ver nada. — Reclama Zaki.
— Bom dia. — Uma voz feminina ressoa atrás de nós, de modo que nos viramos com a
seriedade de quatro homens importantes e não um bando de meninos admirados. — Meu nome é
Ekaterina Sokolov, sou a diretora do Teatro. — Seu sotaque é forte.
Dou um passo à frente e estendo a mão para um cumprimento.
— Meu nome é Damon Duncan, marquei um horário para tirar algumas dúvidas.
Assente com um sorriso no rosto.
— Sei quem é, estava o aguardando. Como posso ajudá-lo?
Não sei que tipo de perguntas ela está esperando, porém minha equipe pessoal providenciou
um pagamento pelas horas em que ela ficar disponível para auxiliar no que eu precisar. Aponto
para a fotografia.
— Essa bailarina. — Ela se inclina para ver. — Preciso de informações sobre ela.
A diretora ajeita a postura com precisão enquanto me devolve um olhar misterioso. Seus
cabelos loiros caem em ondas suaves, criando um quadro de elegância natural. O olhar dos seus
olhos azuis, profundos e expressivos, me dizem que ela sabe mais do que gostaria.
— Oh, ela está viva? — indaga com preocupação e surpresa.
— Você a conhece? — Cartier se atravessa.
Sorri, ajeitando os óculos.
— Aleksandryia Sklyar, é claro que conheço. Ela foi minha aluna. — Torna a me encarar. —
É dela que precisa saber?
Faço que sim, em um misto de ansiedade e angústia que retorce minhas entranhas, sendo
acentuado quando ela nos pede para segui-la por um longo corredor até sua sala. Estou tão
angustiado que me sento em uma poltrona a mesa, esperando-a ocupar a cadeira presidente à
frente.
Cartier ocupa o lugar ao meu lado, de braços cruzados. Dylan e Zaki ficam observando cada
detalhe da decoração do ambiente como se estivessem em Nárnia. Zaki abre a boca para pedir
para tirar foto da sala e eu faço um gesto de “nem pense”.
— Aceitam uma bebida quente? — indaga a mulher.
Fito meu celular.
— Por que perguntou se ela está viva? — Cartier questiona antes de mim, direto ao ponto.
A mulher suspira com uma nostalgia incômoda, balançando a cabeça como se não quisesse
dizer o que realmente pensa.
— Nos conte tudo o que sabe. — Corto-a, pressionando. — Toda e qualquer informação é
valiosa, e podemos pagar até pelas sigilosas.
Até mesmo Dylan se aproxima, colocando a mão no meu encosto enquanto a mulher analisa
a ficha no computador.
— Aleksandryia foi indicada à Academia Bolshoi com doze anos, quando ganhou a bolsa.
No início, sua postura era exemplar, mas com o passar de alguns meses seu desempenho
começou a cair. — A mulher desvia a atenção do computador para nós, sorrindo com pesar. —
Pelo que me lembro, sua avó ficou doente. — Torna a atenção para o monitor e seus olhos se
estreitam ligeiramente, como se estivesse ponderando cada palavra antes de dizer em voz alta. —
Primeiro Aleksandryia começou a perder ensaios, mas depois as faltas se tornaram constantes. —
Noto um enrijecimento sutil nos ombros dela, indicando tensão ao abordar esse tópico. — Com a
bolsa, é exigido comprometimento total aos bailarinos, e esse tipo de comportamento não é
aceitável.
À medida que a mulher fala, me afundo na cadeira. Cada sílaba pronunciada é como um
golpe doloroso no peito, feito uma melodia dissonante que ressoa toda a minha indignação.
— Vocês a expulsaram? — indago, sem conseguir me conter só de imaginar a maior paixão
dela soltando da sua mão no seu momento mais difícil.
Nega.
— Demos uma última chance. — Continua ela, esfregando uma palma na outra. — Odette.
Casa cheia.
— Ela não apareceu. — Zaki adivinha, quebrando a expectativa sombria no ar.
A mulher tira os óculos, balançando a cabeça em negativo.
— Apareceu sim, se vestiu, ficou pronta para entrar. Então o telefone tocou. Dissemos a ela
que ela não podia nos abandonar naquele momento, não teríamos como colocar outra substituta.
Não adiantou, parecia cegada, deu as costas e foi embora.
O som da decepção é uma trilha sonora em minha mente, cuja melodia me atordoa com os
pensamentos. De alguma forma, sei que é o Dono dela. Cartier imagina qual assunto estou
raciocinando, porque encosta no meu joelho em um pedido de calma.
— E daí…? — Pergunta Dylan, atropelado.
— Depois disso ela perdeu a bolsa, mas não voltou nem mesmo para encerrar o contrato e
buscar os pertences. Ela tinha quatorze anos.
Continuo encarando a mulher depois que ela termina, com o amargor preenchendo o palato a
medida em que ela permanece em um silêncio de encerramento me fazendo cruzar os braços,
fechando a postura.
— Isso é tudo? — Não consigo ignorar a frustração na minha voz. — Vim até aqui e isso é
tudo o que pode me dizer?
Não é minha intenção assustá-la, mas quando ela tensiona os ombros franzinos e arregala as
pálpebras, gosto da sensação e decido continuar esse joguinho.
— Sinto muito... — Seu tom vai gradualmente perdendo o ânimo.
A frustração é uma névoa densa que envolve meus pensamentos, obscurecendo minha vista
ao ponto de me fazer inclinar sobre a mesa para encarar o fundo dos seus olhos.
— Ekaterina Sokolov. — Digo o seu nome em voz alta, brincando com a minha língua. —
Começou como bailarina da Companhia, se tornou professora e agora é a diretora desse lugar —
estou supondo tudo o que sai da minha boca, porém pela forma como reage, esfregando uma
palma na outra, diz que causei o efeito desejado. — Onde você quer chegar, em sua carreira?
O intuito com minha pergunta é simples. Com pouco mais do que duas ligações posso
garantir que ela tenha o reconhecimento que deseja, assim como posso fazer o contrário e
certificar que ela não será bailarina nem para jardim de infância.
Ela engole em seco.
— Talvez.... — Passa a língua entre os lábios finos. — Talvez os pertences dela ainda
estejam aqui. Posso conferir, se o senhor quiser. É tudo o que posso fazer.
— Ah, eu quero. — Minha voz grave ecoa, saindo do estado de inércia. — Traga-os para
mim.
A mulher se levanta e pede licença, saindo da sala onde mantém as portas fechadas. Os
meninos começam a conversar como se a tensão no ar não tivesse relevância alguma, embora eu
continue sério demais para sorrir e entrar nas brincadeiras, perguntando-me o que a bailarina
poderia ter ao ponto de não querer buscar. Não tenho esperança de que seja importante, mas,
ainda assim, quando ela me entrega a bolsa jeans, sinto-me como uma criança curiosa, doido
para abrir os presentes.
Agradecemos a mulher em direção a saída, mas de repente nem toda a sua majestade é o
bastante para me distrair dos pensamentos que me apunhalam. Cartier me dá um meio abraço
com condolências e sugere irmos para algum lugar, comer e conversar. Dylan e Zaki, que ainda
pensam que estamos fazendo um tour entre amigos, querem visitar as Torres Kremlin.
— Ótima ideia. — Cartier tira sarro. — Daí a gente já fica para um jantar com as Doze
famílias. Se não terminarmos como o prato principal deles, George nos come de sobremesa.
As oligarquias russas são meio que o núcleo dos bastidores aqui na Rússia, assim como os
Sangue em Ascensão são dos Estados Unidos.
Da mesma forma que as Oito Famílias se aproveitaram da vulnerabilidade econômica da
Grande Depressão para crescer, a colapso da União Soviética em 1991 serviu como trampolim
para que pessoas espertas comprassem empresas estatais por preços irrisórios, em setores
cruciais como energia, mídia, mineração e finanças.
Assim como os Sangue em Ascensão se utilizam das brechas da Lei para manter
monopólios, eles usaram suas conexões políticas e, vamos ser sinceros, alguns métodos pouco
éticos para se apropriar dessas empresas.
Isso deu origem às oligarquias russas.
Os Oligarcas se tornaram extremamente ricos e poderosos da noite para o dia, incomodando
o Rei do nosso Tabuleiro, George, que trava uma batalha pelo território da Europa com a Rússia.
Por isso o EuroOásis é tão importante.
Devo ter mais inimigos do que imagino, nesse momento.
Meu coração se entristece com essa conclusão, porque me apaixono mais pela bailarina a
cada minuto que penso que a minha borboleta russa veio desse berço. Fito meu celular na
esperança de uma mensagem dela.
— Vão vocês, acho que vou ficar. — Aviso, na porta do teatro. — Vou ficar mais um pouco
aqui para ver as coisas que ela tem.
Combinamos de nos encontrar no café Pushkin em algumas horas.
Dirijo-me ao salão principal.
A grandiosidade do espaço é avassaladora. Os imponentes lustres de cristal suspensos no
teto refletem uma luz dourada sobre a audiência, enquanto os ornamentos intricados adornam
cada centímetro do teatro. As fileiras de poltronas estofadas com veludo vermelho criam uma
simetria impressionante que se estende até o palco.
Escolho um assento e, com as mãos trêmulas, abro a mochila. Há uma blusa velha em um
preto que desbotou muito antes dela deixar de usar, dois livros: Anna Karenina e Razão e
Sensibilidade, ambos com desenhos e anotações de surtos nas páginas a cada declaração
romântica, suponho pelos corações desenhados, já que está tudo em alfabeto cirílico.
Prendo o ar com o que encontro em seguida. É um caderno de poesias.
A alegria de encontrar uma preciosidade dessas é dominada pela tristeza de estar tudo
rabiscado em russo, então abro a câmera do tradutor e posiciono contra a primeira página,
rezando para que funcione.
“Eu sou livre para voar
quão longe queira ir.
E eu desejo subir
o mais alto que conseguir.
Saltei, em um jeté.”

“Nos palcos que me ensinaram a plainar,


Mostro às plateias como flutuar
com o ar
que tiro de cada uma das pessoas
que me veem dançar.”
“Tudo o que ouço é o estalo da sapatilha
tocando a madeira dos palcos centenários.
Não escuto o barulho do impacto do meu corpo sobre o chão,
pois para isso precisa haver peso.
E não existe
nem mesmo
uma grama
pesando
meus ombros.”
Sinto a umidade fria e pegajosa formar uma camada em minhas mãos, enquanto a ansiedade
aumenta, transformando minha pele em uma superfície que traz minhas emoções mais profundas
até a superfície.
“O espetáculo dessa noite me elevou a um nível quase transluzente!!!!”
“Hoje vi Ivanok.
Não queria sua companhia, não preciso de pessoas. Tudo o que eu necessito é de música
clássica e de mim mesma.
Ainda se fosse apenas por eu querer a solidão,
seria mais fácil abrir mão.
O problema é que eu sinto algo estranho entre nós. Ultimamente ele anda muito grudento,
querendo me seguir para todo canto, ou se esquivando. Ele está agindo tão estranho que me faz
querer mais e mais distância.”
“Ivan estava me olhando perplexo, com os olhos brilhando e cerrados, todo esquisito. Fitei-
o com o canto dos olhos, encabulada. Como ele não se justificou, logo tratei de perguntar o que
estava acontecendo. Então ele fez o impensável: tentou me beijar à força!”
A indignação cresce, formando uma barreira protetora ao redor do meu coração.
“Ele disse que é amor.
Por que estragou tudo, Ivan? Justo eu?
Ele disse que nenhuma mulher é como eu.
Desde quando eu sou mulher?”
“E que ódio estou sentindo dele e da maldita frase!! Porque, depois de ter saído da sua
boca, não consigo parar de pensar que, talvez, eu não seja mais uma menina. E, se eu sou uma
mulher, deveria me sentir uma.
Maldita frase.
Comecei a desejar ouvi-la sair de outras bocas.”
“Acho que descobri o amargo da solidão,
Não mais ninguém para sentar comigo em mais nenhuma refeição
Repousar a cabeça nos intervalos da apresentação.
É triste não ter com quem fazer pas de deux…
Eu odeio ser tão sozinha.”
“A solidão pesou um pouco. Ainda não é o suficiente para me atrapalhar a rodopiar pelo
ar, mas já me atrapalha a pensar.”
“Sem me dar conta, comecei a reparar nos casais que vem assistir aos espetáculos. Desde
jovens até idosos, que sorriem e se abraçam, profundamente felizes. E observar o amor
acontecer diante dos meus olhos é um caminho sem volta. Agora, estou lendo Jane Austen e
sonhando que, em algum lugar no globo terrestre, existe um Darcy reservado para mim.”
“Quanto mais procuro, menos encontro.
Ao me dar conta disso, comecei a sentir algo no coração.
Um vazio.”
A compaixão mistura-se com a minha dor, formando uma ligação ainda mais profunda,
carregada de um peso emocional que não existia antes.
“Maldito amor que tanto falam. Por causa dele, já não mais me preenchia inteiramente. Já
não mais acho graça em estar na minha própria companhia. O que tem de tão especial no tal
sentimento a ponto de sua simples ausência ser capaz de minar meu amor-próprio? Preciso
descobrir o que tem de tão importante assim no amor!”
“Minha avó está morrendo e eu aqui preocupada com meu futuro namorado.
Desculpa, hoje não vai ter poesia
(nem nunca mais.)”
A revelação provoca uma mistura tumultuosa de emoções, desde choque e incredulidade até
tristeza profunda ao perceber a carga que a bailarina carrega silenciosamente.
“Por favor, não morre.
não morre.
não morre.
Eu preciso de você.
Eu só tenho você.”
A página está franzida com as gotas das lágrimas, e a próxima anotação acontece tempos
depois, porque sua letra está diferente a cor da caneta também.
“Não tenho tempo de fazer poesias e isso me deixa muito triste. Vovó não está conseguindo
trabalhar e a bolsa no ballet mal está dando para comprar comida.
Se os professores, a academia ou qualquer pessoa vir brigar comigo de novo... Eu vou
surtar. Não tenho culpa se dançar em festas particulares dá mais dinheiro em uma noite do que
o mês todo no Bolshoi.”
“Estou indo mal no ballet.
Estou reprovando na escola.
E todo o meu esforço não parece ser o suficiente.
Vovó continua morrendo.
Estou exausta.”
Tudo o que consigo pensar é que, enquanto eu estava chorando no colo dos meus avós e do
meu pai pela internação da minha mãe, a bailarina estava vendendo sua dança para conseguir
dinheiro para cuidar da única pessoa em sua vida, e nem isso foi o bastante para impedir sua
morte.
“Algo bom finalmente aconteceu.
No evento dessa noite, acho que finalmente conheci o amor.
O amor veste smoking preto e gravata borboleta.
O amor é um homem, com barba e ombros largos.
Por isso nenhum garoto me atraia na escola!!”
As mãos, antes firmes, começam a tremer sutilmente, revelando a vulnerabilidade que se
instala à medida que eu mergulho mais fundo nas camadas intricadas dessa história. Cada página
virada desencadeia uma enxurrada de emoções confusas, desde a compaixão, raiva até a tristeza
profunda.
“Ele parece muito importante nesse meio, pois todos o param para cumprimentar.
Todos como crianças desesperadas pela atenção dele.
Eu inclusa.”
“Vamos sair hoje.
É hoje ou nunca!”
O coração acelerado ecoa nos meus ouvidos, sincronizando com a descoberta de cada
detalhe doloroso nas sombras do passado da minha borboleta russa.
“Nas poucas horas juntos, ficou bem claro o quanto aquele homem é desejado. Enquanto eu
nunca mais o esqueceria, ele, amanhã ou depois, teria uma infinidade de mulheres se assim
apenas quisesse.
Não, eu não poderia deixar isso acontecer.
Se sua resplandecência dourada ficaria cravejada em minha memória até que aparecesse
outra íris mais bonita, eu também apareceria em seus sonhos.
Pedi que continuasse sentado para me assistir durante uma música e, com uma audácia até
então desconhecida, prometi que minha memória orbitaria sua atmosfera.
Eu apresentei a ele uma parte minha que, até então, apenas meu espelho conhecia. Dançava
e cantarolava mentalmente: “tente me esquecer agora, homem lindo e misterioso
Acho que consegui. Ele marcou outro encontro.”
“Hoje dei meu primeiro beijo.
Ele veio até mim e tomou meus lábios com um beijo pungente e intenso. Tinha gosto de
uísque puro misturado a sentimentos novos e inexprimíveis. Senti estar derretendo na sua mão
grande e pesada que percorria minhas costas, cintura e bunda em uma velocidade que eu não
conseguia assimilar.
Meu corpo ainda está em combustão.”
“Ele perguntou se eu sou virgem.
Quando eu disse que sim, ele quase se ajoelhou aos meus pés.
Bem, agora acho que não sou mais.
Tudo mudou. Me sinto outra pessoa.”
“Vovó está piorando, mas ele está me dando dinheiro para o tratamento no particular. Ele é
tão bom para mim. Eu o amo tanto.”
“Ele disse que sou a Kitty dele, não é fofo? (Kitty é gatinha em inglês!)”
“Você mataria por mim, Kitty?
Você sabe a resposta.
Você morreria por mim, Kitty?
Eu morro um pouco cada vez que você se afasta.
Você viveria por mim, Kitty?
Já vivo.
Então ele me pediu uma demonstração de amor. Algo em sua voz me faz estremecer, pois sei
que ele ama me ensinar lições nos momentos em que eu não consigo raciocinar, apenas para me
ver lutar contra meus próprios instintos. Não quero transar com outro homem, mas como vou
dizer não, depois de tudo o que ele faz por mim e por minha avó?”
“Sobre o colar de topázios azuis-turquesa.
Quando escutei o estalar dele afivelando no meu pescoço, sorri com a ideia de estar sendo
aprisionada a você. Você disse que o colar é o elo, que sou sua Kitty e você o meu dono. A
coleira.
Eu queria que você parasse de me fazer amá-lo tanto assim…
Estou com medo de me tornar tão dependente,
mas não consigo parar de desejar sua atenção.”
“Ele me levou para conhecer os Estados Unidos.
Foi o pior dia da minha vida.”
“Você é tão bom nisso.
Você é tão bom em fazer vítimas.
Eu queria conseguir te odiar.”
Não sei traduzir o que sinto, é mais forte que paixão e preocupação. É uma ânsia de
descobrir até que ponto nossas vidas estão ligadas por um Jogo.
GISELLE

Era uma vez uma doce e ingênua camponesa, chamada Giselle, que se apaixona por um
nobre que se esconde atrás de uma fachada de mentiras para iludi-la.
Aos poucos vou retomando a consciência.
Demoro longos minutos para conseguir abrir os olhos, mas até as minhas pálpebras possuem
um peso descomunal, abrir o olho leva longos minutos. Vejo o teto, estou na minha cama. Sinto-
me fraca e atordoada demais para lutar pela minha própria vida, embora ainda escute os gritos de
socorro da minha versão de quatorze anos, rasgando pela garganta com toda a potência que o ar
dos seus pulmões permite.
Ela quer ser livre.
A cada movimento com o pescoço, por menor que seja, minha cabeça lateja mais forte,
percorrendo como unhas afiadas que esmagam cada pedaço de mim, trazendo os efeitos sórdidos
da consciência corporal. Sou nocauteada com uma dor que me faz soltar um gemido cortante,
abafado, paralisante. Isso desperta meus cachorros, que começam a lamber a minha mão, caída
para fora da cama.
Lembro-me deles, como um raio de luz na minha escuridão, tiro uma força que não existe
em mim para observá-los, mas só encontro o casal de adultos. Conrad e Meldora estão com os
pelos dos seus rostos sujos de sangue e a ideia de estarem machucados me faz sentar na cama,
em um esforço profundo.
Então eu olho para a cama.
Isso desperta o maior dos meus terrores.
É claro que estou tremendo de frio, os lençóis ainda estão molhados de tanto sangue,
grudento e pegajoso que, no primeiro momento, não acredito ser apenas da minha menstruação.
Não pode ser meu, eu teria morrido. O sangue escorreu da cama para o chão, que Gulnara lambe.
O instinto de sobrevivência entranhado embaixo das minhas vértebras, profundamente lesionado
e abatido, reage. Então eu cometo o erro de procurar onde está o machucado no meu corpo.
O mundo para.
Ainda quero chorar, estou tremendo, sem entender quanto do que eu sinto é medo ou ódio. A
bola de emoções que cresce em minha garganta me impede de respirar e eu me deito de novo,
seguro forte do edredom como se fosse um pedaço do meu coração, apertando como se pudesse
esfarelá-lo até me fazer parar de sentir tanto.
Meus olhos se enchem com lágrimas tão grossas quanto as gotas de sangue que escorrem
entre os meus dedos, o que é bom, porque me impede de ver o vermelho. O coração bate
descompassadamente dentro da caixa torácica e eu sinto minha alma se rasgar com a pele, em
estado de choque, arfando e derramando-me em suor e lágrimas.
Meu corpo foi a refeição de um monstro faminto.
A dor que sinto são dos cortes em minha pele. Alguns foram feitos com facas, e, outros, com
dentes. Onde não está manchado pelo sangue que escorreu, está roxo pelas contusões dos
hematomas. Meus seios estão tão machucados que não tenho dúvidas do que aconteceu enquanto
eu estava desacordada.
Começo a gritar e a chorar de profundo pavor. Ouvir meu desespero tem um efeito ainda
mais desesperador, fazendo meu corpo arquear em uma crise de vômito demorada o bastante
para me fazer perder, aos poucos, a força.
Eu deixo todos os Jogadores que meu Dono quiser transarem comigo.
Eu nunca disse não ao meu Dono.
Se ele quisesse transar comigo ontem, mesmo com a crise de endometriose, eu não diria não
a ele.
Isso não era o bastante. Ele queria roubar algo de mim.
Então me violentou enquanto eu estava inconsciente.
Quando Giselle descobre que foi enganada, ela morre de desgosto.
Sou inundada por um sentimento doentio que domina as minhas células, efervescendo meu
sangue enquanto corre pelas veias até chegar no coração. Primeiro, estranhei estar viva com o
tanto de sangue que saiu de mim, mas agora chego à conclusão de que algumas feridas são
profundas demais para resistir à vida. Eu já morri.
Sinto-me como Giselle, traída e enganada pelo seu grande amor. Frágil e insana. As
descargas de fúria eletrizam meu corpo com espasmos mais fortes do que acredito suportar, e
decido que não vou. Sei quando essa história termina, sou eu quem dança entre a luz e a sombra.
Eu digo quando ela acaba. Sempre amei a variação do sepultamento.
No entanto, antes que eu dê o primeiro passo, algo dentro de mim se levanta das
profundezas.
A porta está aberta.
A Aleks esmurra o calabouço na qual a Kitty a trancou, com seus punhos frágeis, e eu sinto
a dor do impacto nas minhas próprias mãos, em seu desejo de ser ouvida a todo custo. Abaixo a
cabeça para resistir as pancadas que ressoam em meu corpo.
Meus cachorros pulam nas minhas pernas com os seus enormes olhos de amor e minhas
duas versões lutam com a ideia de me ajoelhar para acariciá-los. Amá-los só me trouxe
problemas, mas enquanto percebo que falta outro filhote, Odalisca, o desgaste me alcança em
uma reação espelho, levando-me a chorar incessantemente, enquanto a procuro pelo quarto.
Pego Gulnara no colo para que pare de lamber o sangue e me assusto com a leveza do seu
corpo. Sinto os seus ossos. Acaricio também Conrad e Meldora, percebendo que a camada de
pelos longos me impedem de perceber como estão magros. Por quanto tempo dormi?
O corpo branco com mechas marrons de Odalisca está perto da porta. Os pedaços do meu
coração se partem ainda mais. Odalisca, que dormia em cima do pote de ração quando cansava
de comer, morreu de fome. O golpe é tão forte que chorar perde o sentido.
Eu preciso ser forte.
Reúno todas as forças e me concentro em descer até a cozinha. Está muito frio, o sistema de
aquecimento está desligado e a casa, sem luz, mas meus cães estão tão fracos que não me
seguem no caminho até a geladeira. Não tem nada na geladeira para mim nem para os meus
cachorros, nem nos armários. Não tem nem gelo nessa merda de geladeira.
Em um impulso furioso, lanço um prato contra a parede, o som dos estilhaços reverbera
dentro de mim, feito um eco que silencia tudo ao redor, como se eu tivesse mergulhado para
dentro dos meus próprios cacos.
Eu ainda estou nua, simplesmente não me importo de sair para fora em direção ao lago. A
raiva dominou minhas artérias, vou matar um cisne e dar para os cachorros, sim, vou quebrar o
pescoço dele, abrir com a faca de cozinha e cortar os pedaços para eles até que eles não estejam
mais correndo risco de vida.
Todos os meus cisnes estão mortos.
Estão boiando na água do lago, que agora está vermelho, contrastando com a neve. À
medida que me aproximo, o cheiro de podridão se acentua, assim como os cartuchos de balas que
encontro na neve.
Meu Dono brincou de tiro ao alvo.
Essa é a minha parte favorita no ballet de Giselle. A Dança das Wilis, onde as Wilis,
espíritos femininos que morreram antes do casamento, são compelidas a dançar com os homens
até a morte.
Giselle precisa dançar com seu vilão.
Eu correria mais rápido para dentro se não sentisse dor a cada passo, minha menstruação é
tão intensa que me sinto fraca, escorrendo por minhas pernas enquanto lambuza a neve, o deck e
a cozinha.
Meus olhos batem na minha mala de viagem e meu coração aperta com a gota de esperança.
Os biscoitos russos que Damon me deu! Volto para o meu quarto com as latas luxuosas, sento-
me no chão e abro a embalagem. Meldora e Conrad comem todos os biscoitos, mas preciso
forçar Gulnara a morder, até ela entender que enche o estômago.
Curto esse momento como uma lembrança que eu gostaria de levar comigo. Eu os amei
tanto, mas o amor é inútil, falho e podre. O amor só enfraquece e atrapalha.
— Desculpem não ter sido uma boa mãe. — Peço, com uma resignação dolorosa. — Vou
consertar isso. — Juro, como se fosse minha última promessa, e me levanto.
A primeira coisa que dou falta é meu celular e meu iPad, porém como estou sentindo meu
corpo entrar em inanição, me concentro no que é necessário. Não tento procurar onde está a
chave de energia da casa, em vez disso, me contento com uma ducha gelada afinal estou
tremendo desde a hora que acordei e, entre a dor física e emocional que estou sentindo, o frio é
como um abraço gelado nos dias em que brincava na neve com a minha avó.
Minha menstruação parece uma torneira aberta, mas a cólica não está doendo mais do que
todo o resto.
Vou até o closet enrolada em uma toalha e com papel higiênico estancando o sangue.
Encontro outra surpresa. O cofre está aberto e todas as minhas coleiras foram levadas. Ele me
destruiu e me descartou.
A raiva me queima com uma dor que me faz engolir em seco e xingar mentalmente em todos
os idiomas possíveis, e eu desconto no meu TOC.
Colocar o sutiã é o que mais dói, mas o meu collant favorito me faz esquecer. Meias-calças
pretas trabalhadas em tricot, minissaia Chanel, casaco de pelo, com luvas e polainas brancas, por
cima das sapatilhas que Damon me deu. Vou para o espelho com as maquiagens que ganhei de
Damon, e, pela primeira vez, penso no que aconteceria se eu o procurasse agora.
À medida que me maquio, escondendo os hematomas no meu rosto inchado. A ideia vai se
acentuando, porém não há ninguém na portaria para me levar até lá.
Minha casa está completamente desprotegida, quase como se meu Dono quisesse que
alguém me encontrasse naquele estado.
Preciso ir até a mansão vizinha pedir dinheiro emprestado. Ofereço aos funcionários como
troca um dos meus brincos de diamantes, mas eles não aceitam e só me dão uns duzentos
dólares. Coloco coleira no meu casal de Cavaliers e a Gulnara em uma bolsa Hermes.
Peço para o Taxi me levar até o edifício da Duncan Commodities e descubro que é dia 27.
Fiquei inconsciente por quase dois dias completos. A Duncan está fechada, e eu tento explicar
que quero falar com Damon para me despedir, mas os funcionários dizem que não podem
contatá-lo pois ele está viajando.
Aparentemente, existe muita burocracia para falar com o CEO de uma das maiores
multinacionais do mercado.
Estou mais fraca quando entro no taxi e peço para o motorista me levar no Centro de abrigos
para animais. A fraqueza é tanta que mal consigo guiar Conrad e Meldora pela coleira até o
balcão. No caminho, a voz de Aleksandryia volta a falar comigo, tentando me parar.
Essa maldita versão não para de chorar e implorar por ajuda, de um modo que não tenho
mais, nem fôlego, nem paciência para suportá-la. Ela perde a voz de tanto lutar pela nossa vida, e
eu canso de viver para mantê-la trancafiada.
No meio do sangue derramado em minha alma, a minha briga interna se torna uma longa
batalha de sussurros.
— Oi. — Tento sorrir para a moça no balcão. — Não posso ficar. com esses. cacho-rros. —
Minha voz trava.
A mulher encara a filhotinha na minha bolsa, o casal das coleiras e eu, de cima abaixo. Faz
cara de nojo.
— Descobriu que cachorro não é igual ursinho de brinquedo, riquinha?
Meus olhos se enchem de lágrimas e eu abaixo a cabeça.
— Não é isso... — Sussurro, com as gotas caindo pela minha face, porque tudo o que eu
queria era poder ser a mãe deles. — Eu amo cuidar deles, é que eu não consigo cuidar direito. —
Não consigo contar que dois já morreram.
Ela me encara com descrença, mascando um chiclete.
— Você sabe que depois que entregar não vai poder voltar atrás, né?
Faço que sim.
— Não vou voltar.
Não sou Giselle.
Ainda assim, ela me faz assinar um termo me comprometendo. Não é o que mais dói, me
despedir deles é, porque é como dar adeus a única coisa boa que aconteceu na minha vida, e que
me fez querer viver em muito tempo. Dói mais que a dor física do meu corpo, do que a traição do
meu Dono, do que todas as vezes que dancei para os Jogadores, que cada coisa suja que fiz
contra a vontade. Dói a mesma dor de perder minha avó, de sentir que dei tudo pelo amor e que
mesmo assim não serviu para nada.
— Obrigada por cuidarem de mim. — Beijo a cabecinha de cada um deles. — Espero que
encontrem alguém que cuide de vocês do mesmo jeito.
Vê-los chorar enquanto dou as costas, perdidos e imaginando que não os amei o suficiente,
me faz chorar de perder o ar durante todo o caminho de casa, no entanto a motivação se torna o
bastante para superar a dificuldade de andar até o meu quarto, quando chego.
As gavetas que meu Dono revirou ainda estão abertas, mas eu troco a roupa de cama antes
de abrir a caixa de Fentanill e levar todos os comprimidos a boca. Olho o corpo de Odalisca no
chão, o enrolo com a minha saia de ballet favorita e me deito na cama, abraçada a minha
filhotinha.
Eu não quero exatamente morrer.
Eu só quero dançar sozinha.
SONHO

— Não acho que tenha sido um Sangue em Ascensão. — Defende Cartier, com as mãos
cruzadas em frente à mesa de um modo que os pelos loiros brilham com o ouro do relógio.
Eu e Cartier estamos com roupas sociais, Zaki veste uma combinação esporte fino clara e
Dylan se veste feito mendigo, como sempre, desarmonizando estampas Yves Saint Laurent com
Gucci até ficar com o visual engraçado. Ele não gosta de quiet luxury, embora todo mundo saiba
que apenas pessoas muito ricas continuam elegantes vestidos como palhaços.
— Primeiro porque estamos na Rússia — continua Cartier, com sua voz aveludada. Não tem
como um Sangue em Ascensão ter vindo.
— A menos que seja desobediente ao Rei, igual a nós. — Zaki está lendo o cardápio.
Garçons vestidos impecavelmente movem-se com uma graça discreta, proporcionando um
atendimento que combina perfeitamente com a atmosfera requintada do lugar.
Estou no café mais famoso de Moscou e nem mesmo os detalhes suntuosos da decoração me
envolvem, com a atmosfera de classicismo que parece ressoar com a história imponente do país.
As paredes revestidas de madeira escura, adornadas com detalhes dourados e obras de arte
clássicas, evocam a magnificência da Rússia czarista, mas eu estou perdido dentro da minha
própria existência.
— Você não escutou tudo o que te contei? — Seguro o diário na frente do rosto. — Festas
particulares. Homem poderoso. Dinheiro. Coleiras...
— Acertou milhares nesse tiro. — Dylan coloca o cardápio na minha frente. — O que vai
pedir? — me coage a escolher.
Meu estômago também ronca pelos aromas tentadores que pairam no ar, mas minha barriga
está muito embrulhada para eu querer comer qualquer coisa. Esquivo-me:
— Tenho uma reunião marcada com o borboletário nacional, — explico, levantando-me. —
Depois volto direto para o hotel, então não me esperem para a farra.
Cartier segura no meu braço, sério.
— Não tem menção ao Jogo nesse diário. Ela não cita a palavra “boneca” nenhuma vez,
Sangue em Ascensão não pisam na Rússia, não sabem russo para falar com uma adolescente de
quatorze anos. — Enfatiza: — Não existem menores no Jogo.
— Como tem tanta certeza? — indago, com as sobrancelhas levantadas.
Retrocede com a postura.
— Porque o Rei não arriscaria todo o Tabuleiro. É perigoso demais.
— Mas ele escraviza Bonecas, não? — retruco.
Cartier ri consigo, virando sua bebida em um gole só. Também tomo uma dose da minha
vodca, que cai como fogo na barriga vazia.
— Não tem nada de ilícito nisso, é “só” prostituição de luxo.
Mulheres que querem dinheiro e homens dispostos a pagar uma fortuna pela brincadeira.
— Não foi o que vi com meus olhos. — Me solto de seu agarre.
Apesar disso, compreendo o seu ponto. Tem algo nessa história que não bate. As peças da
bailarina não se encaixam no tabuleiro, e isso me deixa ainda mais obcecado, ao ponto de tudo o
que desejo se resumir a buscar minha borboleta russa.
Deixo os três apreciarem a vida agitada de Moscou e vou até o meu último compromisso no
país. O responsável pelo borboletário está me esperando.
— Sou Sergei Kuznetsov, como posso ajudá-lo? — indaga, enquanto caminhamos.
O ambiente é como uma estufa. As plantas exuberantes, meticulosamente escolhidas para
mimetizar os habitats naturais dessas criaturas, criam um cenário tropical que ecoa suas origens.
Raios de luz filtram-se através das folhas, iluminando o espaço com uma luz difusa, realçando
ainda mais a beleza caleidoscópica das asas das borboletas.
Vejo borboletas de todas as formas e tamanhos. Algumas repousam delicadamente nas
folhas, enquanto outras flutuam graciosamente no ar, parecendo bailarinas em um palco celestial.
Sorrio com isso.
— A borboleta que estou procurando é azul-cintilante. Minha namorada via muito quando
era criança.
Ele me leva para analisar as espécies que existem empalhadas na sala principal, e chegamos
à conclusão de que a borboleta que Aleksandryia se referiu se chama Aricia Anteros, uma
espécie de pertencente à família Lycaenidae. Essa borboleta é encontrada no sul da Rússia, mas
não é sua época de atividade e só há um espécime vivo, em laboratório. Não há como comprá-lo
oficialmente, então preciso pagar por esse roubo.
— 300 mil dólares é o suficiente? — pergunto, sabendo que a taxa de câmbio nos coloca em
vantagem nessa negociação.
— É muito, senhor. Não é uma borboleta rara.
— Então vai servir. — Bato em suas costas e transfiro a quantia.
Levo a minha aquisição dentro de uma redoma de cristal e a coloco na mesa do meu quarto
de hotel, onde grandes lustres pendem majestosamente do teto alto, lançando uma luz suave
sobre a cama posta. Tomo um banho rápido e me jogo na cama, pronto para imergir em mais
pesquisas. Antes, analiso as mensagens do meu celular em busca de qualquer sinal da bailarina,
porém tudo o que encontro são as mensagens que enviei na manhã de Natal querendo esganar
Europa.
A única resposta que obtive foi a de Cherrie, informando que não sabe nada. Quando me
dou conta, estou ligando para ela.
— Oi, mon chouchou. Está mais calmo? — existe desdém na sua voz?
— Oi, Cherrie. Estou, e você, como está? — Quero ver mesmo se é ela.
— Estou ótima. — Usa o tom de quem está observando as próprias unhas. — Algum
problema?
Cherrie não perguntaria assim. Ela diria algo que derreteria o meu coração, seja uma poesia
que eu ame, ou uma declaração sobre o quão único eu sou na vida dela. Ela deixaria meu coração
mole para manuseá-lo como massinha de modelar, e eu amaria cada segundo.
— Não, só quero conversar. — Puxo assunto, dando abertura, facilitando para ela. — Estou
com saudade.
— Eu também estaria com saudade de mim, no seu lugar.
Touché. Cherrie jamais diria isso. Ela me lembraria de alguma ocasião onde fiz alguma das
suas vontades e me convenceria de que sinto falta disso até que eu entregue o que ela quer aos
seus pés.
Decido entrar no jogo dela.
— Ainda bem que você me atendeu e topou falar comigo. — Jogo a isca.
Europa faz charme.
— Sou muito boa, minha alma não guarda rancor.
Quero socar o travesseiro.
Penso rápido. Preciso dessa vadia, mas quanto mais eu implorar, mais ela vai se divertir com
o meu desespero. Ao mesmo tempo, ninguém consegue argumentar com ela, nem mesmo o Rei.
Eu só tenho uma tentativa.
— Posso te contar um segredo? — a atiço, sentando-me na cama enquanto mexo nos meus
pés com aflição.
— Claro! — Solta, sem conseguir esconder a empolgação.
Fico em silêncio enquanto penso se devo ir por esse caminho, mas não é como se eu tivesse
outra opção.
— Sabe por que esse seu plano não vai dar certo, Europa?
Um riso maldoso corta o ar.
— Quem disse que não está saindo exatamente como planejei? — sinto um frio na espinha,
mas continuo com tanta coragem que ela não tem reação.
Minhas próximas palavras são frias.
— Você é burra. — O coração dispara, talvez eu esteja encomendando meu caixão. — Seu
ego é maior do que seu cérebro, você jamais se passaria pela Cherrie.
— Diga isso para o seu irmão gêmeo viadinho, que insiste em me mandar mensagens com
os presentes que está comprando para mim. — Devolve, irritada. — Ou para qualquer Sangue em
Ascensão.
Estou tremendo que não sei como tenho voz.
— Eu vou. — Se ela desligar agora, é o meu fim. — Estou voltando para Old Westbury
amanhã, e seu pai é o primeiro.
Sua respiração é lenta e profunda.
— Justo, aí eu conto sobre sua bailarina russa. — Estremeço com a ameaça. — Entre deixá-
la morrer comigo, ou com ele, pelo menos eu tenho a decência de te enviar o corpo dela em uma
caixa, para você se despedir.
Sua frase toca nos meus traumas mais profundos, e ela sabe disso, porque ri vitoriosa e
desliga.
Estou nas mãos de um monstro, e ela não vai me atacar, vai atacar Aleks para me ferir.
Gostaria de ficar a noite inteira pensando em como sair das garras dela, mas preciso dormir
se quiser enfrentá-la no dia seguinte. Não durmo há muito tempo, não sei como ainda estou em
pé.
Uma das vantagens de tomar medicação para dormir, é que o sono é tão pesado que você
nem sequer sonha.
Só que eu tive um sonho muito estranho essa noite.
Não era bem um sonho.
Era uma memória.
Eu estava na janela, pedindo pizza no telefone, enquanto reparava que céu do lado de fora
estava escuro demais para às vinte horas de um domingo de verão. Já podia até sentir o cheiro da
chuva, vindo forte, mas comum nessa época do ano. Um sentimento estranho se alojava no meu
peito.
Cartier, Zaki e Cameron conversavam exasperados com os controles do videogame nas
mãos, enquanto mexiam o corpo com os movimentos do streetfighter na TV. Mesmo assim,
Cherrie, linda de até faltar o ar, se mantinha aninhada a Cam, tão confortável como se estivesse
em um divã.
Eu não era o único que sentia inveja dos dois, o sentimento era coletivo. Cam tinha todas as
meninas aos seus pés, porém nem se importava, já que tinha Cherrie, e o mundo queria ter
Cherrie Young, a filha favorita do Rei. Cartier também poderia escolher qualquer menina para
namorar, mas ele só queria ter a Cherrie. Ela é um daqueles fenômenos raros que acontecem
apenas uma vez.
Já Dylan nem ligava para isso, Zaki queria todas que conseguisse e eu, bom, eu não
precisava de uma Cherrie, só queria amar alguém tanto quanto Cameron amava Cherrie.
Com o livro nas mãos, ela lia em voz alta “Além do bem e do mal” de Nietzsche, como se
fosse uma receita de bolo. Meu irmão gêmeo a observava meio boquiaberto, com o caderno no
colo e uma caneta nas mãos, anotando o que entendia e, vez por outra, pedindo que ela repetisse
o conceito sobre o niilismo.
A corrente filosófica que acredita no vazio.
O sentimento no ambiente era mais que simples amizade, era uma união forte e familiar, e
deveria me deixar feliz, como sempre, mas eu não conseguia parar sentado, agitado. Então avisei
ao grupo que a pizza estava chegando e sai da sala para preparar a mesa.
Normalmente o jantar era servido pelos funcionários, mas papai estava viajando com vovô e
mamãe dispensou todos. Ela disse que não gostava da formalidade, mas na minha opinião ela
fazia isso porque, sem os funcionários perto, não precisava parecer forte.
A prova disso era que, nesse domingo, nem sequer havia a visto depois do café da manhã.
Decidi ir chamá-la, mas não sei porque não queria ir até o quarto dela, então pedi que Cameron e
Cherrie fossem, já que eles ficariam sozinhos e poderiam se beijar nos corredores. Eu me achava
um ótimo amigo.
Só que... assim que eles subiram as escadas, fiquei pior. Pensei que se minha mãe pegasse
os dois no flagra, sozinhos, ia sobrar para todo mundo e ficaríamos de castigo, então decidi ir
atrás, meio desesperado.
No entanto, no momento que fui em direção à escada, Cherrie apareceu, no meio dela, e eu
gelei no mesmo segundo. Meu coração disparou. Seus olhos não brilhavam mais, estavam
centrados e sua feição era séria. Aquele olhar que ela dava só quando algo muito errado tinha
acontecido, tipo quando aquela outra versão esquisita dela surgia, em que só descobrimos que era
outra identidade um ano depois.
Eu perguntei o que foi e ela se esquivou. Perguntei onde estava o Cameron e ela disse que
no banheiro, pegou o telefone e começou a digitar um número.
Foi aí que eu tremi, com medo do que tinha acontecido. Pensei: será que mamãe os pegou
juntos e estava dando um sermão no Cameron? Se fosse isso, o meu castigo seria eterno. Por que
não nos chamou?
Com o coração disparado, perguntei onde estava a minha mãe. Então ela chamou o pai dela
no telefone, pedindo para ele vir na minha casa, urgente. O que o Rei iria querer aqui, sem meu
pai, a Torre?
Fui em direção ao segundo andar e Cherrie segurou forte no meu braço, me impedindo.
Naquele momento eu soube. Tinha acontecido algo com minha mãe. Meu coração disparou ainda
mais, me impedindo de ouvir qualquer outra coisa. O sangue parou de correr por meu corpo, com
um frio assustadoramente gelado atravessando minha espinha. A pior sensação que já senti em
toda minha vida.
Soltei-me de sua mão e subi o primeiro degrau, atordoado. Cameron apareceu na ponta dela,
me assustando mais ainda. Diferente de Cherrie, seu olhar estava arregalado e assustado. Sua
camisa estava com marcas de suor. Ele não queria me deixar passar e eu o empurrei.
Eu já estava chorando antes de chegar, mas nada me preparou para o que vi quando abri a
porta do quarto dela. Meu estômago torceu tão forte que tive ânsia de vômito. Meu corpo inteiro
amoleceu. Ajoelhei-me e toquei nela, ela estava dura e gelada, então só consegui gritar
apavorado, assustado demais para saber se deveria abraçar ou se afastar daquele corpo.
Mãe, mãe, mãe.
Observei melhor a cena, sem saber como conseguia enxergar com tanta lágrima correndo
pelo meu rosto. Ela estava linda, como sempre linda com os longos cabelos escuros escovados e
uma roupa bonita. Ao lado, embalagens de remédios.
Foi só nessa hora que entendi o que aconteceu .
Senti uma dor dilacerante, tão forte que pensei que fosse morrer junto, rasgando quem eu era
e tudo o que ainda iria ser. Por saber que ela preferiu acabar com sua vida a viver para mim, que
precisava tanto dela, por saber que ela achou a morte melhor do que a mim. Queria voltar no
tempo e observar melhor aquele rosto lindo, poder gravar ele bem na minha memória todas as
vezes em que ela sorriu.
Parecia que minhas pernas estavam amarradas ao chão, não conseguia sair de perto nem
quando George e a ambulância chegaram.
Eu sabia que o mundo que vivia era ruim, mas não fazia ideia de que era tanto assim. Minha
mente acusava o quanto eu não era o suficiente. Nunca me importei com o fato dela estar doente,
só dela estar perto de mim, tudo valia a pena, tudo o que eu fazia para ela me alegrava. Comecei
a soluçar alto, ainda sem conseguir mexer os pés. Sabendo que naquele momento, naquele quarto
decorado e luxuoso, eu tinha acabado de dar adeus ao que sobrou da infância.
Acordo no meio da crise de choro.
Estou no escuro do quarto desse hotel, sentindo uma dor tão aguda que meu coração parece
se derramar nas lágrimas que lavam meu rosto, e minha reação mais rápida é abraçar o
travesseiro enquanto agonizo em um choro estrondoso, agudo e alarmante. Surreal.
Não sei quanto tempo demoro para me acalmar minimamente, pois é como se todos os meus
traumas despertassem nessa madrugada, tentando me dizer alguma coisa, e minha reação natural
é ficar paralisado, apenas sentindo as memórias me lavarem. A luz ilumina o quarto aos poucos,
trazendo mais consciência para a escuridão que me persegue, e a borboleta bate suas asas dentro
do recipiente vítreo.
Estou tremendo como se tivesse levado uma surra, usando toda a força que me resta para
vestir alguma coisa ir até o quarto do meu irmão, do outro lado do corredor. Ele abre a porta só
de cueca e se joga na cama outra vez.
— Eu sonhei com a mamãe. — Minha voz sai anasalada.
Dylan abre os olhos e me encara de bruços, sério. Ele também sonha muito com mamãe,
mas a culpa normalmente é da ayahuasca.
— Sonhou o quê?
Não consigo falar, temendo que a lembrança deixe Dylan mal como estou. Sento-me na
ponta da cama e, raciocinando melhor com a presença do meu gêmeo, penso.
— Talvez seja a bailarina. — Abaixo a cabeça, passando as mãos na nuca. — Ela me lembra
a mamãe, trazendo as memórias à tona.
Dylan se vira, pensativo.
— Talvez a memória da mamãe queira te dizer algo.
Minha boca seca no mesmo segundo. Penso no bilhete que recebi dizendo que se eu negasse
o encontro me arrependeria para sempre. A caixa com sangue, a mensagem de Europa sobre eu
aproveitar cada minuto como se fosse o último...
Eu estava com medo esse tempo todo. Meu coração queria me dizer algo e eu não o escutei.
Meu coração se estraçalha com a ideia.
— Aleks está em perigo! — Cada célula do meu corpo grita com a constatação, e a
adrenalina decorrente assume os meus sentimentos. — Dylan, a gente precisa voltar agora!
Meu irmão assente, se levanta, começa a vestir sua roupa e acordar os outros enquanto eu
mando prepararem a aeronave. Levo a borboleta nas mãos todo o percurso e, quanto mais a fito,
mais penso na possibilidade de colocar um rastreador no fundo da redoma.
Damon: Me deixa ver a Aleks uma última vez, Europa. Estou pedindo.
Europa: Oh, príncipe. Não será possível e nem é porque eu não quero.
Reviro os olhos.
Damon: É que eu comprei um presente para ela. Você poderia pelo menos entregar?
Europa: Ela não vai poder receber, gatinho.
Franzo as sobrancelhas.
Damon: O Dylan está do meu lado, e eu aposto que Cartier não vai ficar feliz quando eu
contar como você está sendo maldosa com a mulher que ele me ajudou a investigar nos últimos
dias. Vou contar para todo mundo, e se é para ferrar com a bailarina, vamos contar juntos ao
George. Acho que ele não vai ficar feliz de saber que você escolheu uma boneca que não está no
catálogo. Talvez ele descubra outras coisas, o que será?
Europa: Quer mesmo entrar nessa disputa comigo?
Damon: Eu já ganhei a primeira (EuroOásis).
Europa: Vou realizar seu último desejo antes de devorar sua alma.
Ela me envia a localização da Aleks.
Europa: Depois me conta como foi entregar esse presente nas mãos pálidas dela.
ESTRAGOS

É pouco mais de cinco horas da tarde nos Estados Unidos quando pisamos no solo do país,
no exato instante em que começa uma nevasca.
— Se precisar, me chama. — Cartier bate nas minhas costas.
Entro no Jaguar e seguimos até o destino, em um bairro nobre de Long Island, próximo a
Old Westbury. Do lado de fora, o céu escurece mais a cada segundo, tornando as rajadas de neve
mais esplendorosas e intensas, e a borracha do para-brisa risca o vidro de um jeito que faz
barulho e aumenta o suspense.
O trânsito está infernal.
— Dia vinte e sete normalmente não tem tanto movimento. — diz meu motorista. — É a
neve.
— Hoje é dia vinte e sete? — me dou conta.
Amanhã é meu aniversário.
Uso esse argumento para tentar me convencer de que está tudo bem com Aleks, estou apenas
enlouquecendo, seguindo o roteiro que Europa planejou para me colocar no hospício em que a
aprisionaram na sua última brincadeira ao front. No auge da minha tensão, começo a procurar
coisas para morder, primeiro meus próprios dedos, depois os lábios.
Um vento gélido contorce minhas entranhas e, no mesmo instante, uma chuva de neve
irrompe, com as pedradas atingindo o carro por todos os lados.
— Continuamos? — pergunta o motorista, preocupado. — Estamos perto.
— Mais rápido, de preferência. — Olho-me no retrovisor. Estranhamente, não reconheço o
homem que reflete.
Calma, está tudo sob controle. Tudo sob controle.
Fito para os lados. Carros e mais carros com seus faróis altos iluminando a neve acima do
escuro do céu dessa tarde sombria, em uma beleza digna de uma cena Noir. Olho para frente e
noto que o engarrafamento desaparece no horizonte, de tão monstruoso. O GPS diz que o
endereço é a uma quadra e meia.
Apesar disso, a tempestade de gelo deixa claro que a natureza havia guardado o pior para
daqui a poucos minutos, talvez segundos. Dentro de mim, no entanto, um sentimento novo me
queima as entranhas, e eu sei que ele me diz que eu devo dar um jeito, quanto antes, de me
certificar que a bailarina está bem.
De alguma forma assassina, tenho a firme convicção de que, se for preciso, mato ou morro
para garantir isso. É mais fácil matar ou morrer do que repetir a minha falha.
— Lincoln, me alcança o revólver no porta-luvas, por favor.
— Não posso deixar o senhor se arriscar. — Vira-se para me encarar no banco de trás e vê
minha determinação, porque, silenciosamente, obedece. — Vou chamar a equipe de segurança.
Eu já abri a porta do carro.
Corro ao ponto de sentir os músculos das minhas coxas estirarem-se com a força do impacto
dos meus passos rápidos pelas calçadas, passando pelas sombras que as mansões do outro lado
da rua causam, deixando mais intensa a escuridão que me toma, sem me importar com o que
quer que atravesse o meu caminho.
Até chegar na frente da casa dela.
É uma mansão pequena e comum, reformada, o que dá um toque original. Aproximo-me da
portaria, mas toco a campanha muitas vezes e ninguém atende. Bato no vidro fumê, preto, até
concluir que não há porteiro. O muro tem mais de dois metros e qualquer outra solução que eu
penso levaria mais que dez minutos.
Exceto a opção que usa a arma na minha mão.
O portão está estranhamente aberto, de modo que um chute meu o escancara. À medida que
me aproximo, cauteloso, encontro o lago ensanguentado com cisnes e os cartuchos vazios, de
sniper. Em uma resposta intuitiva, tensiono todas as minhas células.
O pior ainda está por vir.
Quando entro, uma descarga de energia atinge meu corpo inteiro na mesma potência que o
fulmen na atmosfera.
O chão está todo sujo de sangue.
— Aleks! — grito, em direção as escadas ao mesmo tempo em que digito a mensagem para
Dylan com a localização em tempo real.
Damon: Preciso de Coroados é uma emergência. Rápido.
A cada passo, o sonho que tive de madrugada se transfigura em realidade, como flashes que
se alternam a cada piscada de olhos. Sinto-me um menino outra vez, impotente e incapaz,
perdido e assustado, mas não deixo de ir o mais rápido em direção ao quarto em que o rastro de
sangue leva.
Chuto a porta, com a arma apontada e o dedo no gatilho, mas o que vejo abre um enorme
buraco abaixo dos meus pés, e meu corpo inteiro parece congelar quando meus olhos encontram
a figura imóvel na cama. Uma onda de choque percorre meu ser, e a realidade bate como uma
maré avassaladora, paralisando-me.
Já vi a mesma cena outra vez, não preciso me aproximar ou tocá-la para saber que o meu
sonho acabou. A pele pálida, os lábios escuros e roxos.
A minha bailarina está morta.
E ainda assim, eu me aproximo com pressa, mesmo que cada célula do meu cérebro implore
para me afastar, sem suportar o trauma de ver a segunda versão da mulher que eu mais amei,
morta.
Entro em colapso. Morta, acabou.
Sento-me ao lado da cama, como se o mundo tivesse parado, e levo meus dedos à artéria em
seu pescoço, mas não encontro pulsação com minha mão trêmula, e puxo-a para os meus braços,
depositando toda a força e delicadeza que carrego dentro de mim, embalando a minha bailarina,
o meu desejo perdido.
— Doce presa que a morte não consegue desprender... — murmuro com a voz embargada,
como se entendesse a dor de Romeu. Minha Julieta também não responde, então a chacoalho
antes de abraçá-la com força. — Volte para mim... — beijo sua testa, molhada pelas minhas
lágrimas que descem pelo meu rosto sem que eu consiga sentir a dimensão delas.
Pressiono-a contra o meu peito com a dor me dilacerando.
— Por que não me ligou, amor? — pergunto baixinho, observando-a tão serena quanto um
sonho interrompido. — Eu fui à Rússia buscar uma borboleta russa, como você sonhava, só para
te fazer feliz. Por que não me esperou? — Acaricio seus cabelos escuros, cada detalhe perfeito.
— Eu faria qualquer coisa por você, garota. Era só me ligar.
Seu rosto está envolto em um silêncio perturbador, e seus olhos, que costumam brilhar como
a vida no fundo do mar, permanecem fechados, escondendo segredos que eu jamais saberei.
Penso que não vou sobreviver a isso, que nunca mais conseguirei me entregar a uma mulher
sem pensar em como seria se eu tivesse tido a chance de amar a garota mais fenomenal que já
conheci. A vida perde a graça e tudo se torna cinza. Adeus ballet, adeus Natal, adeus música,
adeus dança, adeus arte, adeus tudo o que faz a vida digna de ser vivida.
A dor me atravessa outra vez e eu ouço meus próprios soluços, embora esteja tão
anestesiado que não sinto as lágrimas descerem, quentes, pelo meu rosto.
Tenho a sensação de ouvir vozes, mas é só quando meu irmão aparece na porta que tudo se
torna real. Basta que encaremos as íris um do outro para expormos a intensidade das nossas duas
almas idênticas e partidas. Ele, que está até então, forte feito uma Torre, perde o rumo com a
cena, e Cartier se posiciona.
— Os paramédicos chegaram. — diz o loiro, estendendo os braços em passos lentos. —
Vem, Dam.
Abraço ainda mais Aleks, como se eu quisesse passar cada segundo com ela antes de a
trancafiar em um caixão e me contentar em fazer visitas regulares e falar sozinho com uma
lápide. Com ela nos meus braços, digo:
— Ela morreu, não está vendo?
Eles me fitam enquanto eu devolvo um olhar sincero de quem vai surtar se tentarem me
afastar do corpo dela, contudo um soluço alto do meu irmão me quebra. Subo o olhar até o dele e
sei que ele está vendo a nossa mãe. Ele também já viu a mesma cena antes. Eu abraçado ao corpo
dela.
Não sei sou eu quem o abraço primeiro ou ele quem me puxa para um abraço apertado e
desengonçado, mas nós dois estamos chorando como se tivéssemos quatorze anos de novo, sem
fôlego e sem esperança.
— Iniciar protocolo de RCP! — diz a paramédica em cima dela.
Eu e meu irmão gêmeo estamos imóveis, abraçados um ao outro, enquanto assistimos as
massagens cardíacas em um silencio profundo, contando até trinta, com medo de acordar no
pesadelo. Eles tentam chamá-la, mas ela não reage, então tentam mais incontáveis repetições
enquanto a outra equipe sobe com a maca e o desfibrilador. Nesses minutos, eu não existo à
espera dela.
Tensiono o corpo só de ver a potência do choque no corpo frágil da minha borboleta, e então
os médicos dizem algo perto, gelando a minha espinha novamente. Toda a vida do meu corpo se
esvai com a constatação de que estão desistindo.
— Continua! — Solto do meu irmão, indo para cima deles. — Eu mandei continuar!
Estou ao lado da cama agora, em uma posição onde consigo ver o porquê os dois médicos
estão em silêncio, falando algo perto do corpo dela. Bato os olhos nela e, no instante em que
minhas íris se cruzam com os azuis que tanto adoro, meus orbes marejam com a alegria mais
profunda que senti em toda a minha vida, me preenchendo de uma gratidão eterna.
A minha bailarina está viva.
A atmosfera volta a ter magia, a neve caindo torna a ter beleza, e algo mais poderoso do que
a vida volta a percorrer minhas veias.
Quero me aproximar, e acho que ela também quer, porque continua me fitando, como se não
acreditasse que estou na sua frente, porém espero a colocarem na maca e a levarem até a
ambulância, para subir e segurar na mão dela, ignorando os médicos ministrando agulhas e
medicamentos, com o automóvel em velocidade máxima através da nevasca até o hospital Lloret.
Nós dois nos assustamos com o ruído das sirenes que começam a tocar, pavor esse que
cresce com a luz vermelha acentuando a roupa ensanguentada de Aleks, da cintura para baixo,
mas nossas palmas estão suadas e fixas no toque um do outro e isso é tudo o que importa.
Levo suas mãos até meus lábios e as beijo.
— Não vai acontecer nada com você, está ouvindo, Oceano? — determino, próximo do seu
rosto.
Uma única lágrima escapa do seu semblante determinado.
— Já aconteceu... — sua voz é fraca como um sussurro do mar.
Uso toda a força que me resta para manter o semblante pacífico, com algo novo queimando
em minhas veias.
— O que aconteceu, Aleks? — fita-me com os olhos cor de oceano inundados e eu vou com
as mãos em seus cabelos, acariciando-a. — Eu preciso saber para cuidar de você.
Ela balança os cabelos, se desvencilhando fracamente do meu toque, virando a cabeça para o
outro lado e começa a fechar os olhos.
Aperto sua mão com força.
— Aleks…
Ela balança a cabeça de novo, como se também estivesse lutando contra essa verdade.
— Meus cachorros... — sussurra, fechando as pálpebras de um jeito que o paramédico fica
agitado. — Tudo.
Pedem para que eu vá para o fundo da ambulância e tornam a examiná-la, durante todo o
caminho que parece levar horas embora seja curto. Não há nada que eu possa fazer além de pedir
socorro a única figura espiritual que acredito, minha mãe.
— Me deixa ter uma segunda chance com ela. Por favor, mãe.
O movimento da ambulância estacionando me faz inspirar forte a ponto de preencher os
meus pulmões de ar, e depois, é tudo muito rápido. Quero segui-la até a ala da UTI, mas me
barram e eu só não tiro o revólver porque os meus amigos chegam atrás e me impedem, me
levando para um banco.
Dylan fica de um lado e Cartier de outro, e Zaki me entrega água.
— Que merda foi essa? — Dylan quebra o silêncio, após uns minutos.
— Tinha muito sangue. — Cartier comenta, impressionado. — E Fentanill do lado da cama.
— Ela estava com um cachorro morto ou era de brinquedo? — Dyl indaga.
— Era morto. — Esclareço, pensando no que ela falou na ambulância.
Ela estava quase morrendo e a única coisa que importavam eram os seus cachorros. Onde
eles estão?
— Ah.
Ninguém tenta teorizar o que aconteceu, em vez disso permanecemos em um silêncio
sepulcral pelas próximas horas, aguardando os médicos voltarem, o que não acontece.
É a polícia que vem até nós.
— Quem é o responsável pela garota?
Levanto-me.
— Aleksandryia Sklyar. Sou eu.
Abre sua caderneta.
— O senhor é o que dela?
— Namorado.
O homem assente, sério.
— Vamos precisar fazer algumas perguntas. — diz o outro. — O que o senhor estava
fazendo quando encontrou ela?
— Eu estava fora, viajando. — Peço o celular de Dylan. — Tenho fotos. Por quê?
Eles dizem que vão analisar as informações, mas meia-hora depois voltam ainda mais mal-
encarados.
O peso do cansaço destroça minhas costas, meu estômago embrulha e eu abaixo a cabeça,
processando a informação com pensamentos incessantes que me invadem e falam, circulando
minhas dúvidas, medos e terrores em um espiral.
Aleks não tem documentação, é como um fantasma nesse país. Porém saber que ela está
ilegalmente não é a pior parte, descobrir que entrei no rol de suspeitos pelo crime de estupro
contra a minha bailarina, é. Ver as fotos do corpo de delito, com o corpo dela todo mordido e
rasgado, e ouvir do médico que o sangramento dela era uma laceração na vagina, liberta os meus
fantasmas com seus demônios mais profundos.
Vou descobrir qual monstro quebrou as asas da minha borboleta.
E vou quebrar todos os ossos do corpo dele.
LIMPANDO A BAGUNÇA

Todos na UTI estão chamando a minha borboleta russa de novo milagre.


Além do sangramento e da overdose, ela também estava com indícios de desnutrição e
desidratação. Os médicos não entendem como ela sobreviveu.
As paredes do quarto são revestidas com uma tonalidade suave, iluminadas por uma luz
indireta que cria uma atmosfera aconchegante. O piso, coberto por um tapete espesso e macio,
absorve qualquer ruído, proporcionando um ambiente tranquilo. Fico admirando Aleks nessa
cama, com a cabeceira estofada em tecido nobre entregando uma sensação de conforto e
elegância enquanto minha boneca permanece coberta com colcha de linho, e me sinto o homem
mais orgulhoso desse mundo. Ela é o meu milagre.
Na madrugada, as enfermeiras que vêm checá-la, a cada duas horas, tentam me convencer a
ir para casa. O corpo da bailarina está muito cansado e ela vai demorar para acordar, mas não me
importo. O que não quero é sair de perto dela e voltar para Old Westbury.
Não quero olhar na cara de nenhum Sangue em Ascensão enquanto não souber qual rosto
vou desfigurar.
É bem melhor ficar escutando os batimentos da minha borboleta russa no monitor de alta
resolução que exibe informações vitais, enquanto controles delicados e intuitivos permitem
ajustar o ambiente conforme as necessidades. Observo a cor voltar para o seu lindo rosto,
enquanto arquiteto cada detalhe.
Na manhã seguinte, mando alguns coroados voltarem na casa dela à procura de tudo o que
for importante. Zaki vai junto e me atualiza a cada cinco minutos.
Zaki: havia câmeras, mas foram retiradas. O cofre dela foi roubado, mas há brincos e joias,
então não foi ladrão.
Foi o seu Dono.
Peço para Cartier apurar informações sobre o Jogo em busca de sinais do ex-Dono da minha
bailarina, enquanto discutimos os próximos Movimentos. Ele também acha arriscado demais
contatar o Rei enquanto estamos jogando em Blindfold, no escuro, e está ampliando o tabuleiro
até termos uma visão ampla dessa Partida. De qualquer forma, George me ligou hoje marcando
uma reunião, então talvez o responsável por esse hospital, meu tio, Asier Lloret, já tenha me
entregado.
Às 18h saberemos.
Enquanto isso, deleguei a Dylan a função de me cobrir. Ele deve passar na empresa resolver
pendências na parte da manhã e o restante do dia ficar com meus avós e os Sangue em Ascensão.
Europa me mandou mensagens. Não vou ler e nem responder, guardando todas as energias
para não a matar no encontro de hoje à noite, na frente de todas as Peças.
— Oi. — Meu irmão bate na porta no quarto com um pacote de snacks de sementes em uma
mão e uma lata de Coca-Cola em outra.
Adentra e se aproxima, dando-me a visão do casaco estampado da Gucci, dos cabelos curtos
bagunçados e das olheiras de quem passou a noite toda acordado comigo.
— Pode entrar com comida na UTI? — estreito os olhos, abrindo a embalagem de um jeito
que o aroma salgado contorce meu estômago, lembrando-me de que não como nada faz muito
tempo.
— Somos meio que donos desse hospital, esqueceu?
Nossa avó era uma Dama Lloret de nascença antes de se tornar a Dama Duncan, casando-se
com meu avô. Não acho que isso faça diferença para nós. Os filhos sempre pertencem ao
sobrenome do lado paterno.
— Será que já chegaram fofocas nos ouvidos da família? — Exponho minha preocupação
com a boca cheia de snacks.
Ele me devolve um olhar sério, colocando canudo na lata de refri antes de me entregar.
— Pedi sigilo para o diretor do hospital, apesar de que a lealdade com titio é mais forte do
que conosco, mas né...
Sorrio de agradecimento por Dylan pensar em meu lugar enquanto meu cérebro não
funciona direito, sobrecarregado de preocupação.
— Não vão falar, eles têm amor a vida. — Conto com a máxima.
Devolve o sorriso, pegando uma cadeira no fundo do quarto, onde os móveis de madeira
escura exibem um design clássico e funcional, e trazendo para o meu lado, onde senta-se. Agora,
uma pequena mesa lateral, adornada com uma luminária delicada, oferece espaço para objetos
pessoais ou leituras leves, iluminando-nos indiretamente.
— Quer uma notícia boa e ruim ao mesmo tempo? — indaga, inclinando-se o corpo para
frente.
Sinto um frio na barriga embrulhar tudo o que estou comendo, e bebo um longo gole de
Coca.
— Fala logo.
— Ela te procurou ontem.
É como se o mundo ao meu redor desacelerasse por um breve momento, e eu me vejo
paralisado pela surpresa.
Uma sensação de incredulidade toma conta de mim, enquanto minha mente tenta assimilar o
que ele disse. Ela me procurou? Meus lábios se entreabrem em uma expressão muda de espanto,
e por um instante, fico sem palavras.
— Como assim? — indago, atônito com mistura de emoções borbulhando dentro de mim.
Meu irmão tira um post-it verde-limão do bolso e cola na pele da minha mão, com a hora,
data e o recado anotado.
— Ela foi na empresa, mas como você não estava, dispensaram-na.
A surpresa vai dando lugar a crescente fúria a cada segundo em que eu penso que ela me
procurou antes de tentar se matar, eu que não a atendi, como prometi que faria. Minhas pupilas
se contraem, os músculos faciais se endurecem e a respiração torna-se irregular com cada
pensamento que alimenta a fúria que se agita dentro de mim.
Levanto-me calmamente.
— O que vai fazer? — franze o cenho ao me ver tirar o meu casaco preto.
— Toma, vamos trocar. — Jogo a roupa nele. — Me dá esse seu negócio horroroso e veste o
meu. Se a bailarina acordar, você finge que sou eu.
Dylan solta um riso frouxo, mas vê que estou falando sério, então se despe.
— Estou sem barba.
Dou de ombros.
— Ela nem vai perceber. — Visto a peça, que fica desajustada no meu corpo, justa demais
nos braços. — Não sai dessa sala, não dorme, entendeu?
Faz um gesto de “sim, senhor” com as mãos.
— Não vou tirar os olhos dela. — Promete.
Estou saindo do quarto quando Zaki está na porta da UTI, passando as informações para
Cartier.
— Estou indo na empresa demitir algumas pessoas. — Aviso, sem parar de andar.
Os dois me seguem e entram no Jaguar, o que é bom, porque no caminho até a Duncan, Zaki
me conta alguns detalhes bizarros que encontrou na mansão da bailarina.
— Lincoln, poderia colocar os fones? — O motorista assente e pega os abafadores no porta-
luvas.
— Parece que o cara a tratava como uma gata mesmo, tem até tigelas, toys de pet play e o
mais bizarro, fuck machine.
Fico tão enojado que cada batida do meu coração parece ecoar a pulsante raiva que se
instala.
O consolo dessa máquina é como o de um cavalo e a velocidade dela é inumana. Isso não foi
feito para satisfazer nada além de mentes masculinas pervertidas. Não é anatômico para uma
mulher, é brutal, doentio, nojento e caríssimo.
— Achou as coleiras? — Ele faz que não para a minha pergunta.
— Para onde ela vai agora? — pergunta Cartier, em um tom baixo. — Voltar para aquela
mansão...
Minha resposta imediata é dizer que para a minha casa, porém mordo a língua antes de
concluir o raciocínio. Não posso levá-la para Old Westbury, para o radar dos Sangue em
Ascensão, ela é um segredo que vou manter até encontrar seu Dono e ter certeza de que ele está
morto.
— Não importa qual a propriedade, o Rei vai ficar sabendo.
— Talvez ele já saiba dela. — Zaki opina.
Ele sabe de todos os segredos.
Antes que eu responda, o motorista estaciona e nós descemos.
As portas automáticas se abrem, revelando o átrio deslumbrante adornado com mármore
polido e obras de arte contemporâneas. Adentro o saguão imponente, onde a iluminação sutil
realça a sofisticação do ambiente. Os murmúrios dos funcionários cessam-se, todos com os olhos
em mim, e os seguranças, postados discretamente, cumprimentam-me com um aceno respeitoso,
enquanto o silêncio reverente se espalha pelo saguão.
Os elevadores dourados me dão a vista panorâmica da cidade através das janelas de vidro,
enquanto meus dois amigos permanecem atrás. Ao entrar no andar executivo, a secretária
executiva me recebe com um sorriso assustado.
— Senhor Duncan, não sabia que viria.
Colo o post-it no braço dela.
— Os envolvidos na minha sala, agora.
Em questão de quinze minutos me entregam a gravação da Aleks na portaria, pálida e com
três cavaliers king Spaniel.
— Os cachorros estavam na casa dela? — indago Zaki em um timbre baixo que apenas nós
ouvimos.
— Só o morto, mas ele não é igual ao que está na bolsa dela. — Aponta para a gravação.
— Como podemos ajudar? — pergunta um dos funcionários, fazendo-me lembrar das suas
existências.
Penso em como tudo teria sido diferente se eles tivessem me ligado para avisar que tinha
uma mulher lindíssima querendo falar comigo, em como eu poderia ter evitado a tentativa que
não ceifou a sua vida por um triz. Mais do que isso, penso que a minha bailarina estava
sangrando, com dor, e mesmo após ter sido violentada, vestiu sua melhor roupa e me procurou.
Dói tanto no meu coração que a minha vista desfoca com as lágrimas que fazem brilhar minhas
íris de tristeza e ódio de mim por não a ter atendido, em uma culpa que me corrói.
Esses funcionários tiraram essa oportunidade das minhas mãos.
— Pode ajudar entregando os crachás no RH. — Minha voz sai trêmula com o prazer dessa
emoção. — Estão na rua.
A minha secretária tenta argumentar em defesa, porém basta fitá-la e ela engole em seco,
orientando os seguranças e porteiros a saírem da sala. Quando estamos apenas eu e meus amigos,
apoio o quadril na minha mesa.
— Precisamos descobrir onde esses cachorros foram parar. — Suspiro, pensativo. — Ela
falou deles na ambulância.
— Tem um abrigo a poucas quadras daqui. — Zaki mostra no celular.
Faço um gesto com a cabeça sobre irmos atrás, afinal, é o mínimo que eu posso fazer para
consertar a situação.
Chegamos em questão de quinze minutos, e o som abafado de latidos, miados e gorjeios
preenche o ar, criando uma sinfonia de esperança e necessidade. Um funcionário nos atende e
nos leva para os boxes, onde cachorros pequenos e grandes, gatos de todas as cores e tamanhos,
uns ansiosos por atenção, enquanto outros observam com uma cautela silenciosa.
Mas não há cavaliers em lugar nenhum.
— Sim, uma moça entregou três cachorros dessa raça ontem, porém foram adotados em
questão de horas. — Explica a funcionária com um tom arrogante. — Cachorros de raça
normalmente são adotados rapidamente, principalmente raças caras como cavaliers. Postamos no
Instagram e foi muito rápido.
A frustração torna a me nocautear, enquanto Cartier bufa e Zaki debruça a cabeça no balcão,
ao lado do computador.
Aponto com o olhar para a tela, debruçando-me sobre o balcão.
— Me passa o endereço das pessoas que adotaram, por favor.
Ri, surpresa.
— Ah, não posso, é antiético.
Cartier solta um riso e eu apenas tiro o revólver do bolso e o coloco sobre o balcão, de um
jeito que a mulher treme com o susto, arregalando os olhos.
— Sabe o que mais é antiético? — aproximo-me dela com um sorriso largo no rosto. — Eu
te oferecer dinheiro para você me dar essa informação. — Os olhos dela brilham. — Você quer?
— É-é...
— Você sabe quem eu sou? — desvio o olhar rapidamente para os meus amigos. — Ou
quem são eles?
Faz que não e eu aponto para o computador.
— Pesquisa o meu nome, Damon Duncan.
Seus olhos, que antes refletiam soberba e tédio, agora se arregalam em uma expressão de
surpresa. Seus lábios entreabrem e as sobrancelhas arqueiam. Explico calmamente:
— Eu poderia te oferecer mais dinheiro do que você ganha em um ano, nesse subemprego,
mas estou irritado e você não quis me ajudar como uma boa menina, então você vai me passar o
endereço e agradecer por sair viva.
Dez minutos depois, estou com os endereços nas mãos. Porém, antes que eu entre no carro,
Dylan avisa que a bailarina acordou e precisou ser sedada, então Zaki pega as anotações e avisa
que vai buscar os cavaliers, para que eu volte para o hospital.
Cartier volta com o assunto.
— Vai deixar os cachorros e a Aleks aonde?
— Em um dos apartamentos...
Faz que não.
— Ele vai saber. — Refere-se ao Rei.
Olho a hora no relógio.
— Tenho um horário com a Vossa Majestade, mais tarde. — Comento, observando a neve
do lado de fora automóvel. — Talvez eu decida expor o problema. Ele é contra esse tipo de
conduta. Não lembra o que ele fez com o quase estuprador da Cherrie, aquela vez?
— Nosso Rei é um grande pau no cu, não faça isso. — Alerta, como se soubesse de mais
coisas e não quisesse falar.
Estremeço com a ideia do que pode acontecer.
— Não vou conseguir esconder a Boneca-Russa dele por muito tempo. — Desabafo assim
que chegamos no hospital.
Meu amigo me devolve um olhar vivo com as pedras de ambares decorando as íris.
— Tenho um lugar onde podemos esconder esse segredo.
Franzo o cenho.
— Onde?
— Com os meus.
Dylan nos encontra no corredor, cortando o assunto. Explica que Aleks teve um acesso de
surto e precisou ser medicada.
— Ela ficava repetindo que precisa voltar para casa.
Bato na porta do quarto dela ao encontrá-la acordada.
— Posso entrar? — peço, porém ela não responde nada e apenas permanece quieta,
submersa em seus pensamentos.
O silêncio pesa como uma sombra em meus ombros, ao vê-la envolta na tristeza que
preenche o ambiente, então tento acariciar seu cabelo e ela desvia do meu toque.
— O que foi, Oceano? — pergunto, com dor. — O que está acontecendo?
— Quero voltar para a minha casa.
Sinto um nó na garganta com a dor de vê-la sofrer.
— Lá não é mais a sua casa, bailarina. — Falo com meu timbre mais doce e sereno, mas isso
não impede que as lágrimas comecem a verter de seu rosto.
— Quero o meu Dono.
A sua lealdade brilha em meio a escuridão que aquele monstro colocou na sua alma.
— Ele não é mais o seu Dono.
O silêncio é interrompido pelo soluço contido que escapa de seus lábios, e cada gota que
escorre de seus olhos é como uma pequena parte do coração dela, deslizando pela pele e
deixando uma trilha salgada de emoções cruas. Ela segura forte no lençol, como se sentisse além
da dor de ser abandonada, também um medo profundo, em um som angustiante que ecoa na sala,
enquanto ela busca ar entre as lágrimas.
Se o instinto de proteção por Aleks fazia meu coração doer, agora ele se quebra a cada
batida. A ideia de consertar as asas da minha borboleta russa preenche minha alma.
O Rei está me esperando, sei exatamente o que vou fazer.
— Olhe para mim. — Ela obedece no automático. — Boneca-russa, a partir de agora, eu sou
o seu Dono.
Se foi um Sangue em Ascensão quem machucou a bailarina, então é minha obrigação curá-
la.
E, se cabe a mim consertar esse estrago, que minha mãe me perdoe.
Farei como um Sangue em Ascensão.
FOGO

Em todas as noites em que Cherrie era criança, o Rei a levava para a cama e contava uma
única história. Durante dez mil cento e vinte e oito dias, ele olhou no fundo dos olhos da sua
garotinha e ensinou, como se fosse a primeira vez, uma fábula sobre A Hierarquia da Floresta.
Sei que ele tentava controlar o peso da sua mão ao acariciar os cabelos dela, temendo que a
própria natureza violenta pudesse ferir sua preciosa criação. Repetia as palavras de sempre em
uma entonação invariavelmente inédita e, em seguida, beijava sua testa, a cobria, apagava as
luzes e saía do quarto.
Cherrie contava nos dedos até que sua sombra desaparecesse do corredor, por isso me
recordo com exatidão dos quinze segundos mais tenebrosos que existiam.
Ela nunca foi medrosa. A prova disso era que Cherrie costumava ir até o quarto do nosso
irmão mais velho, quando ele estava em casa, convencê-lo a assistir a filmes de terror.
Maratonaram franquias como A hora do Pesadelo e Pânico na Floresta durante as madrugadas
como se não se disputassem o mesmo ego em um Jogo de poder, de dia.
Aos dez anos, o repertório de coisas malvadas de Cherrie Young era infinitamente maior do
que o de todos os seus amigos.
Entretanto, o escuro era diferente.
A garota corajosa desaparecia quando estava só naquele quarto gigantesco. O desespero que
sentia por estar com os olhos abertos e ter como única certeza a sensação da própria existência
era aterrorizante.
Não era fobia de que houvesse algo no escuro. Cherrie nunca acreditou em fantasmas e
cresceu chamando monstros de tios. Até a mais assustadora presença era familiar para ela.
A questão era que, quando não se vê nada diante dos olhos, a única coisa que se tem certeza
é do seu próprio corpo, e, naqueles breves instantes que duravam uma eternidade, Cherrie não
queria estar ali.
Cherrie tinha medo dela.
Qualquer coisa parecia mais aceitável do que ser ela, até se tornar um monstro verde e
gosmento, que não sabe de qual matéria é feito, feio o suficiente para assustar todos os outros
que se atrevessem a sair do seu guarda-roupa.
Foi assim que ela começou a desejar ser o monstro.
Então, no dia do seu aniversário de quinze anos, realizei os seus desejos mais sombrios.
Eu nasci.
Também deveria comemorar meu aniversário, sei, mas essa é a data favorita de Cherrie, e eu
não sou tão fria a ponto de não me curvar para a minha obsessão. Até a deixaria assumir o front
hoje, não acho que ela se assustaria com a minha bagunça, sou muito organizada — separo
minhas maldades em pastas.
Acontece que o nosso sistema é um pouquinho complexo.
Nós apenas trocamos as identidades quando uma de nós surta.
Cherrie quando quebra, e eu quando a quebro.
Não é por mal, isso me machuca tanto que entramos em crise dissociativa, que pode levar
semanas ou meses, com o nosso corpo vagueando como um zumbi, sem alma, voz ou
pensamentos, apenas a casca, até que Cherrie encontre o caminho de volta para a nossa cabeça e
arrume todo o caos que fiz.
Quando penso nisso, uma voz profunda tenta questionar o que estou fazendo, no entanto,
minha alma está em chamas ardentes e famintas, e o barulho das fagulhas é mais alto do que o da
minha consciência distorcida.
Talvez Damon não merecesse.
Cherrie ama aquele filho da puta egoísta desgraçado com complexo de salvador que só sabe
cair em buracos e pedir ajuda. Além disso, ela impôs uma única Regra ao sistema. Não posso
tocar em Cameron, Cartier, Zaki, Dylan e Damon. Eles são a coisa que ela mais ama.
Cherrie era a única menina em um grupo de cinco garotos e, por mais que fossem delicados
e protetores, que notassem cada curva que aparecia no corpo dela e a achassem a garota mais
linda do mundo, quando estavam sozinhos, simplesmente escolhiam enxergá-la como um deles,
o que é fofo e mágico se pensarmos que ser um menino é tudo o que Cherrie sempre desejou.
Eles nunca poupavam os detalhes, tipo o primeiro pelo no saco, a primeira ereção e as
famosas poluções noturnas.
Existe um evento canônico na vida de todo menino, a masturbação.
Enquanto as meninas morrem de vergonha de olhar a buceta no próprio espelho, garotos
aprendem cedo que o pinto é um brinquedo. Eles gostam de apostar quem vai ejacular mais
longe, ver quanto tempo ficam duros, quanto tempo conseguem segurar o orgasmo, medir os
centímetros e outras coisas ridículas que Cherrie pôde participar, mesmo que fosse como jurada.
Quando eu penso que esses bobões salvaram a inocência dela…
Não é assim que as coisas funcionam. Cherrie não é o tipo de pessoa que coloca para fora os
seus sentimentos, ela retém, retém e retém todas as putarias que fazem com ela, então eu
explodo. Damon não vai escapar das consequências do meu fogo.
— Bom dia, princesa do papai... — uma voz branda me desperta.
Abro os olhos vagarosamente, me deparando com lindíssimas orbes verde-oliva me
encarando com tanta sinceridade que meu corpo inteiro tensiona.
De perto assim, o Rei é ainda mais intimidador, com a barba em três tons: preto, cinza e
branco, e os cabelos cinza-escuros combinando com os olhos verde-claros e os lábios rosados.
Ele está ajoelhado aos pés da minha cama, com um lindo sorriso no rosto, uma faca em uma mão
e um bolo em formato de coração em outro.
Inclino-me para sentar e noto que estou pelada, então seguro os lençóis junto aos peitos,
amaldiçoando Cherrie, não pela intimidade física em si, mas pela vulnerabilidade dessa
intimidade, de não ter absolutamente nada para esconder dessa figura tão confiável quanto um
ilusionista profissional.
Cherrie e o Rei não escondem nada um do outro.
Estou a um passo de vantagem.
— Eu ainda não acredito que você não é mais a minha menininha. — Sorri com profunda
devoção, entregando a faca. — Você tem vinte e sete facadas e um desejo.
Isso é outra coisa sobre Cherrie que estou roubando.
Cherrie é a personificação da tradição: ritualística e metódica. Ela odeia mudanças e
inovações, tudo sempre tem que ser como sempre foi, e todos os Sangue em Ascensão se curvam
a esse capricho, porque todos adoram tudo o que ela propõe. Definição de realeza.
Todos os anos, os seus aniversários se repetem, idênticos aos do ano passado. Todos os
anos, a primeira coisa que ela faz quando papai a acorda, é esfaquear o bolo com geleia de
morango, em vez assoprar velinhas como pessoas normais.
Então, me preparo para o golpe.
George Young me assiste cravar fundo com a lâmina e puxar o cabo, estraçalhando o bolo,
sujando meu rosto com a geleia que espirra pelo pescoço, cabelos, escorrendo pelo colo, seio até
a ponta dos mamilos, manchando os lençóis com o vermelho-sangue, e permanece com a mesma
paixão e admiração no olhar que entrega a Cherrie, todos os dias, desde que ela nasceu.
— O que você quer, princesa? — Acaricia meu rosto sujo, então leva os dedos sujos de
geleia a própria boca. — Peça o mundo e eu te dou.
Sua declaração acende em meu interior labaredas que secam qualquer fonte de humanidade,
lembrando que sou poderosa ao ponto de atingi-lo mesmo quando não uso as minhas habilidades
devastadoras.
Mesmo assim, esse viado insiste em negar a Coroa.
Também me dá confiança para recuperar o domínio do meu território. Constatar isso faz
esse desejo arder dentro do meu peito.
— Você já me deu, mon père. — Uso o timbre amoroso de Cherrie. — Eu tenho tudo.
Eu tenho o Rei.
Viro o rosto de um modo que os dedos dele, acariciando minhas bochechas, resvalam em
meus lábios, onde deposito um longo e molhado beijo, fitando seus olhos verdes com os meus,
doces e amarelados como resquícios da mata embebida de mel. Ele não resiste e leva a outra mão
aos meus cabelos, acariciando-os antes de puxar minha cabeça até a sua boca, e beijar ternamente
minha testa, sujando sua barba grisalha com a geleia, deixando-lhe mais lindo com a cor do
sangue manchando seu rosto imaculado.
A fogueira que me queima por dentro me pede para tacar fogo nele. Calma, digo, estou
separando as lenhas.
— Você diz isso todos os anos, por isso comprei um novo presente. — Fito-lhe surpresa e
ele chama: — Bunny?
Scarlet aparece com seu sorriso largo ao ponto de fazer covinhas, trajada com babydoll
estilo coquete rosa claro, minúsculo com os seus peitos e coxas grossas, e um filhote de felino
nos braços. Cherrie é apaixonada por gatos, então ele a enche de raças raras, mas dessa vez se
superou. Ele sempre se supera. Scarlet põe o animal na cama enquanto me dá parabéns e eu fico
presa na beleza do felino preto com olhos verdes e patas grandes.
— É uma pantera.
Ele acha que um gato do mato vai fazer Cherrie esquecer da porra da Coroa que nos deve?
Lembro-me do mais importante em meu Jogo. Vou estraçalhar Damon, sim, mas Damon não
é o fim, é o meio. Papai é o alfa e ômega, começo, meio e final. Damon pode ser uma Torre para
ele, mas é apenas um Peão para mim, que vou usar para derrubar o Rei e ensinar como se vence
com as Peças mais fracas, porque é isso o que ele obriga Cherrie a ser. Fraca.
Eu preciso queimar...
— Pensei em usar o meu desejo para presentear Damon. — Sou direta.
Ele apenas olha para Scarlet e a peituda gostosa manda um beijinho na minha direção, se
despedindo. Ela avisa:
— Eu e sua irmã vamos começar a montar a festa daqui a meia hora.
Assinto. Papai começa a brincar com a pantera, movendo rapidamente os dedos enquanto o
filhote tenta pegar a isca imaginária com suas patas monstruosas.
— Damon precisa de amor, então damos amor a ele. — Meu timbre é tão meigo que papai
sorri.
— Se ele ganhar uma Boneca, não vai mais querer se casar com Beatrice.
Reviro os olhos.
— Se ele se apaixonar por uma Boneca, ele será obrigado a entrar no Jogo, e se casar com
Beatrice.
Sorri com malícia.
— Ele terá algo para zelar.
É tão fácil manipulá-lo que eu não sei como ninguém mais consegue. Cherrie é a única
pessoa em que ele confia desde o incêndio que levou sua família e fodeu os Kühn.
— Eu já pensei em tudo — revelo, em um tom de conspiração. — A dançarina.
— A que Damon se referiu no dia da partida? A dançarina russa?
Faço que sim com toda a confiança que eu tenho, para que ele não perceba quão além disso
estou indo, e não resisto a um lindo sorriso.
— Eu já falei com o Dono dela, na verdade. — Acrescento. — Consegui negociar.
Nem verifica a informação, rindo sozinho.
— Eu ainda estou mapeando os interesses dele, mas se isso o agradar.
Sou exatamente um ano mais velha que os gêmeos. Nascemos no mesmo dia, mas a festa é
sempre minha.
— Vamos fazer uma festa surpresa para ele. — Continuo, sutil como o canto da serpente.
— Na festa eu dou o presente.
Arqueia uma das sobrancelhas.
— Cherrie quer abrir mão da sua festa anual? — Levanta-se do colchão, divertindo-se com a
ideia. — Mandarei uma mensagem assustando o Damon. Às 18h está bom?
— Não o deixe desconfiar. — Peço, acenando um tchau com a pata da pantera.
Quando ele fecha a porta, aquela sensação de não estar dentro do meu corpo, de ver a
situação de fora como em um filme, se apodera das minhas células, e eu não consigo me mover,
pensar ou existir pelos próximos segundos, então as lambidas do gatinho me trazem de volta.
Deito-me no travesseiro sujo de geleia, fitando a bela criatura que lambe e morde meus
dedos. Estico a barriguinha dele para ver o sexo. Uma fêmea. Decido dar a ela o nome das
minhas maiores inspirações.
— Diga-me, Mata Hari, como é ser uma pantera? — indago, acariciando as formas macias
da felina selvagem. — E os planejamentos para hoje? Já sabe caçar ou terei que te ensinar? —
Passo a mão por sua barriga. — Sim, também caço. — O verde de nossos olhos se encaram por
breves segundos. — Sei que você entende que tenho fome. Muita fome … — A gata selvagem
vê a sede de sangue na minha íris. — Infelizmente, no meu mundo, esse jogo é bem mais
complexo — pisco —, mas eu consigo, você sabe. O poder que te rege também guia os meus
passos.
Deixo-a na cama e abro meu MacBook para comprar o laço do presente do Damon, afinal a
bailarina precisa estar embalada. Depois, me arrumo como Cherrie e desço para ajudar as Young
a montar a decoração da festa surpresa.
— Parabéns pelo aniversário, rainha. — Crystal me abraça e Scarlet beija minha bochecha.
— O que está pensando para essa festa?
Minha irmã é o produto perfeito, uma Dama, o que todo Sangue em Ascensão sonha ter
como esposa, com um instinto materno arraigado e uma astúcia sutil, amorosa, paciente e fatal.
Scarlet também é o exemplo perfeito da sua categoria, uma Boneca, o que todo Jogador quer
encontrar na cama antes de dormir. Divertida, barulhenta, sexual e dedicada, pronta para
transformar qualquer fetiche em uma memória impossível de esquecer.
Eu também sou o produto perfeito desse Tabuleiro, uma Peça, desprovida de qualquer
sentimento complexo, uma espécie de protótipo criado para o Jogo que só pensava em vencer,
idêntica a eles, jogando do lado contrário.
As três Young, a combinação mais letal desse xadrez de mentiras e manipulações.
Enquanto Crystal escolhe os arranjos, Scarlet ordena onde cada funcionário deve colocar o
quê, e eu observo. Mamãe está fora, com titio Francis, e a casa é toda para os nossos caprichos.
— A decoração azul combina com a nova fase de Damon. — Comento com uma inocência
de Cherrie.
O azul dominante é suave, um tom que lembra o céu noturno iluminado por estrelas
cintilantes, e a iluminação ambiente destaca essas cortinas, criando uma atmosfera de
sofisticação e mistério.
A mesa principal é um espetáculo à parte. Um longo arranjo de flores azuis e brancas ocupa
o centro, destacando-se contra toalhas de mesa de um azul celeste. Talheres de prata reluzem ao
lado de delicados pratos de porcelana azul-petróleo, onde a luz suave das velas projeta sombras
dançantes nas paredes, contribuindo para uma atmosfera íntima e elegante.
Scarlet chama o pequeno bastardinho dela com o Rei, Amory, para soltar os balões azuis que
sobem e flutuam pelo teto, presos por fitas delicadas que ondulam como se estivessem dançando
no ar. O contraste com o branco das paredes e móveis amplifica a sensação de festa, só faltam os
convidados.
Scarlet e Crystal me obrigam a ir ao salão de beleza com elas. Enquanto o cabeleireiro
hidrata os fios loiros da minha irmã, que briga com o noivo Edwart Waddel por mensagem,
Scarlet relata para os funcionários, em minuciosos detalhes, suas experiências sexuais com o Rei,
como se não soubesse que eles espalhariam para mais e mais Coroados.
E é assim que ela torna George Young ainda mais reverenciado do que o poderoso Henry
VIII.
Enquanto a escuto, recebendo massagem nos pés, penso que todas as pessoas carregam fogo
dentro de si, mas o fogo de algumas pessoas é mais brilhante. Não é sobre sexo, é sobre poder, e
é aqui que reside o perigo da nossa brincadeira. O poder corrompe, se infiltra no coração como
uma erva daninha, levando qualquer pessoa a fazer escolhas que o privilegiam, em um caminho
escuro dentro dos seus próprios desejos.
Torno a estudar Scarlet, linda e com uma vivacidade expressiva. Cada Jogador deseja algo,
que cada Boneca é condicionada e treinada a suprir. Ela não é a sua única, mas papai escolheu
viver abertamente com Scarlet porque sustentar uma histriônica desse naipe dentro do nosso
universo quiet luxury é um privilégio exclusivo do Rei, ela é a demonstração do seu poder.
Não é o caso do Damon. Ele sempre viveu em cima do muro, é bom sempre que pode, mas é
pior ainda quando precisa proteger suas obsessões. Que face ele vai revelar quando tiver a
bailarina na palma da mão? Vai ser altruísta como a mãe foi? Ou vai se render ao desejo obscuro
feito o seu pai?
Tudo o que uma pessoa precisa para revelar sua verdadeira natureza, é enxergar o reflexo de
si do outro lado.
Quando voltamos para a casa, há Sangue em Ascensão por todos os lados, esperando os
gêmeos.
— Senhorita Young. — Uma voz inesquecível sussurra em meu ouvido.
Viro-me, perdendo o fôlego com a sua presença.
Seus cabelos e barba são um tom de dourado como ouro, e seus traços são másculos no
formato do nariz e na mandíbula. No entanto, nada se compara aos seus olhos. Parece que gotas
de raio de sol caíram dentro de suas íris, e só de encará-lo o seu fogo me consome como
combustível.
— Cartier Kühn.
Toma minha mão, beijando-a com toda a cordialidade e cavalheirismo que existe, enquanto
mantém o olhar fixo. Cada célula do meu corpo se arrepia com o roçar de sua barba em minha
pele.
— Você está tão distante desde o Torneio. — Adoro sua voz, aveludada e grossa como um
segredo proibido.
É isso o que nós dois somos.
— Também senti a sua falta. — Desvio o olhar para frente porque, se ele souber que está
falando com Europa, vai me arrastar para um dos seus porões e me fazer gritar tanto que minhas
cordas vocais nunca mais serão as mesmas.
Eu amo a maneira como somos selvagens juntos.
— Tem tanta coisa acontecendo. — Vira-se para a mesma direção, observando a festa. — Já
sabe do Damon?
Passo a língua em meus lábios, para não sorrir.
— Não. — Viro-me para ele. — O que devo saber?
Cartier esboça um sorriso experiente, mas não diz nada, essa é a sua essência. Todos
precisam de Cartier Kühn, porque todos podem contar com ele, sem ter seus segredos revelados
ou julgados. O bispo é uma figura quase espiritual que todos recorrem por milagres, isso torna
poderoso.
— Damon está vindo! — Alguém avisa, apagando as luzes para que todos nós esperemos no
escuro.
Ele não leva um susto, embora esteja claramente abalado com a surpresa. Sou a primeira a
me aproximar, na direção dele.
— Sai da minha frente antes que eu te machuque. — Nem sequer me encara, com maxilar
travado.
Seguro no seu braço com uma das mãos e todos os seus músculos se contraem ao meu
toque. Eu não sei o que ele faria se o Rei não se aproximasse, dando-lhe parabéns e perguntando
se gostou da surpresa.
— Nós o amamos, filho. — Acaricia seu rosto. — Desejamos que saiba disso.
Damon abaixa a cabeça.
— Eu sei. — Força um sorriso tão péssimo que o papai percebe.
— Já deu o presente a ele? — George me pergunta, obrigando Damon a me fitar.
Então eu estico o estojo retangular na sua direção, com ele me queimando com o olhar como
se pudesse abrasar o meu fogo.
— Pega. — Incentivo com meu melhor sorriso.
Ele abre o involucro. Trata-se de uma fita de seda com um luxuoso pingente de ouro branco
escrito DAMON.
— Sua primeira Boneca. — Papai bate nas suas costas. — Divirta-se com a Zoya.
Damon me entrega um olhar desesperado e eu sorrio com o incêndio que causei com nada
mais que um homem obcecado e a obsessão perfeita.
Ele pode perguntar ao rei quem é Zoya e correr o risco de perder seu brinquedo recém
adquirido. Ou, ele pode demonstrar gratidão a família real e aproveitar os poucos momentos que
terá com sua boneca nova.
— Damon! — Sua avó se aproxima para segurar em seu rosto pálido com um olhar severo.
— Desde quando você faz viagens sozinho e se enrosca com gatas de rua? —Refere-se aos
arranhados.
— Não é de rua. — Acrescento, como uma querida observadora. — A Kitty faz parte do
Jogo.
As crianças vêm parabenizar Damon e ele sai de perto de mim, deixando-me só com a vista
da nevasca caindo lá fora.
Imagino o quão refrescante deve ser sentir o frescor da neve banhando uma pele que arde em
chamas, mas, deixar as minhas brasas queimarem todo o Tabuleiro é um mérito exclusivo de
Europa Young.
Xeque-mate.
DONO

É muito tarde quando a voz de Damon murmura em meu ouvido feito um sopro da brisa de
inverno mais quente que já senti tocar a minha nuca.
— Voltei. Está acordada, Oceano? — Finjo que não, de olhos fechados, até que desista de
tentar falar comigo e me deixe em paz. — Foi o meu aniversário — conta, sem se importar com
o fato de eu, tecnicamente, não estar ouvindo. — Meu presente foi você.
Fica por perto mais alguns segundos antes de suspirar alto, se afastar e se sentar na poltrona.
Não me sinto culpada por não o parabenizar, ao contrário, há algum prazer em vê-lo sofrer
por minha causa, mesmo que isso signifique estar descontando em um inocente toda a mágoa que
me sufoca. Não posso evitar o ódio que me penetra toda vez que a voz de Damon invade meus
pensamentos, tornando tudo real. Estou apavorada com a ideia de ficar sem a pessoa que cuidou
de mim, gostaria que fosse ele aqui.
Sem meu Dono, é como se eu deixasse de existir.
Não que eu já tenha perdoado tudo o que ele fez comigo, é que encontrei tantas justificativas
que não consigo culpar ninguém além de mim mesma.
Ele poderia ter me machucado acordada, mas me dopou, porque não queria que eu sofresse
de verdade, só precisava que tudo acontecesse exatamente daquele jeito. Ele sempre cuidou para
que ninguém me quebrasse, então por que ele fez isso? Meu Dono não vê prazer na violência
física, ele apenas gosta de brincar com a mente. Mas... e se ele repetir isso comigo acordada?
As lágrimas escorrem pelo meu rosto, silenciosas, enquanto eu me esforço para não ondular
meus ombros. Mal consigo respirar, mas não por causa da dor física, e sim pela traição do meu
Dono. Ele prometeu que cuidaria de mim...
Sei que é outro dos seus joguinhos, talvez esteja me esperando resolver o enigma para me
levar consigo. Será? Sinto-me burra por não ser capaz de desvendar o quê. Mas como vou
conseguir fechar os olhos perto dele de novo?
Eu confiaria nele mesmo se ele pedisse para me jogar de um penhasco, mas agora a
confiança está quebrada, e isso me parte mais que tudo.
Culpo Damon. Tudo começou a ruir depois que ele apareceu na minha vida, transformando
tudo, de um baralhado sustentável a um nó sufocante. É desesperador dar pirouettes com todas
essas tentativas e só me ver, a cada volta, mais presa em um laço apertado.
Durmo pensando em como me livrar dele.
Quando acordo no dia seguinte, com as enfermeiras me medicando, é Damon quem está na
sala. Não são nem seis da manhã.
— Bom dia, Oceano.
Ele veste uma camisa de linha azul clara com um colete azul escuro, e calças off-white, cujas
cores conversam, combinando com a barba e o cabelo escuro, os supercílios e os olhos,
castanhos, me fitando intensamente.
— Você não vive...? — pergunto.
— Estou vivendo agora.
Aperto o controle remoto da minha cama, levantando-me até uma posição sentada, brava por
acordar irritada, com dor e com ele. Encaro novamente um dos Jogadores mais importantes do
Jogo, CEO, com conhecimentos de hipismo, ballet e mais um milhão de coisas que não sei,
porque a viagem de Natal acabou mais cedo.
— Jura que não tem nada mais interessante do que ficar me vendo dormir? — tenho pena.
— É claro que tem. — É impressionante como o seu sorriso consegue ser tão grande. —
Conversar com você.
Meu coração dispara e isso me dá nos nervos ao ponto da minha cabeça doer.
— Quando vou para casa? — as palavras arranham a minha garganta, como se eu tivesse
gritado muito nos últimos dias.
Eu gritei, dentro da minha mente.
— Não lembra do que te disse ontem? — balança a cabeça, amoroso e paciente.
Minto com um gesto negativo, porque não acredito. Damon não é meu Dono, apenas quer
se sentir como. Não estou fantasiada de bailarina de porta-joias, não recebi as instruções do meu
Dono, não vou realizar os fetiches dele. Estou disposta a brigar, tenho palavras horríveis na ponta
da língua, apenas aguardando o momento de usá-las, basta que ele repita tudo o que me disse
ontem.
Parece que o homem está lendo a minha mente, se calando como se não quisesse entrar no
meu jogo, me irritando ainda mais. Estamos brigando com nossos olhares, a tempestade de terra
contra a fúria do mar, quando as técnicas de enfermagem chegam com a refeição do café da
manhã. Uma bandeja de frutas, suco, chá e torradas.
Recuso no mesmo segundo; torturar Damon é a única coisa que me acalenta.
Exceto se ele não continuasse tão confiante.
— Se não comer, não vai ficar mais forte, não vai ganhar alta e voltar para a casa. — Fala
como se eu fosse uma criança.
Começo a tremer com a sua audácia em me ordenar alguma coisa. Não estamos em uma
sessão.
— Você não manda em mim. — Revido, cruzando os braços.
Pende a cabeça para o lado como se estivesse ensinando um novo comando para seu filhote
de estimação.
Corsário, Odalisca…
— Coma.
Fito a minha bandeja outra vez e minha barriga ronca, meu corpo inteiro cansado dos
equipos de soro presos às veias. Subo o olhar para Damon e ele permanece com a atenção presa
em cada movimento meu, seu olhar denso sobre mim.
Meu estômago se contorce com a sensação de ser observada por ele. Minhas pernas ficam
fracas e meu coração aperta.
— Por que está me olhando assim? — estremeço.
Como se eu fosse sua presa.
— Apenas admirando o que agora é meu.
Escolhe as palavras para me atingir, porque dá um sorrisinho de vitória.
Veremos.
Pego a tigela e levo até a boca, encarando-o fixamente enquanto coloco a língua para fora,
pronta para comer as frutas feito a Kitty. Damon se levanta, aproximando-se lentamente e, quanto
mais perto, maior, mais alto e com ombros mais largos fica.
De repente, me sinto uma criança, pequena e frágil, implorando pela atenção de um
adulto. Minhas palmas começam a suar.
— Não. — Tira a tigela das minhas mãos. — Você não é mais a Kitty, é a minha bailarina
agora. — Cada palavra sai pausadamente. — Minha bailarina não come como um animal.
Meu coração aperta e eu seguro as lágrimas de medo, por não saber o que esperar dessa
situação que invalida completamente a maneira como vivi até aqui. Desejo desafiá-lo, mas meu
timbre sai quebrado pelos lábios trêmulos.
— Então não vou comer...
Não tira a atenção de mim, nem para segurar o garfo, pegar a fruta e levar até a minha boca,
de um jeito que me hipnotiza e me obriga a abrir a boca para receber as mangas, sorrindo com
orgulho de um jeito que me desconcerta.
— Boa menina.
Meu Dono cuidou muito de mim, mas nunca me deu comida na boca.
— Boas notícias! — A médica adentra, claramente ansiosa pela atenção de Damon, porque
se dirige a ele. — Os exames da sua namorada estão melhores.
Meu coração dispara como um tambor. Eu sempre quis ter um namorado.
— Namorada? — Meu timbre sai agudo. — Não somos...
Damon passa os braços pelos meus ombros, como se me pedisse para concordar, embora o
rubor no seu rosto entregue quão fracassado foi seu plano. Não é melhor ser meu Dono? O que
ele tem na cabeça?
A médica também percebe a nossa tensão.
— Parece que alguém decidiu pelos dois. — brinca ela, aliviando o clima, e então me fita,
séria. — Você só tem uma consulta com a psicóloga e vai para a casa, Aleksandryia. Como está
se sentindo?
Minha cabeça está girando.
— Com vontade de ir ao banheiro.
Ela pergunta se deve chamar alguém da equipe e Damon se oferece para me ajudar, mas eu
recuso as duas opções, esperando-a sair da sala para me descobrir dos lençóis, deparando-me
com os hematomas e cortes pela minha perna.
É tão assustador que meus olhos marejam e eu tento ficar em pé, porém estou tremendo
demais, e piso em falso na escada da maca. No segundo em que vou cair, Damon me segura em
seus braços. É como se o peso do mundo estivesse em suas íris, e, quanto mais me fita, mais
prisioneira me torno.
— Você está bem?
Sua voz me traz de volta e eu murmuro um sim, me desvencilhando.
Sou uma bailarina, sei o que é sentir dor nos pés, eu as aceito como uma parte de mim,
acostumada com as pernas e juntas doloridas. Isso é diferente. É como se eu estivesse
estraçalhada, como se minhas pernas se esfarelassem a cada passo, como se meu quadril
estivesse quebrado e meus ombros pesassem toneladas. Quero desistir e voltar para a cama, mas
passei tempo demais tomando soro, desacordada. Estou apertada.
Damon está a um palmo de distância, pronto para me amparar caso meus pés me
desamparem, mas não vai me tocar a menos que eu peça.
— Me ajuda? — Minha voz embarga, derrotada. — Estou com dor.
Vê o quanto me parte a alma pedir isso, mas, em vez de se aproximar, se afasta até sua
poltrona. Pedi a ajuda do meu Dono em meu momento mais vulnerável e ele riu de mim. Recorri
a humilhação de pedir a mesma coisa para Damon e me ignora para pegar o celular?
As lágrimas que brotam nos meus olhos são de ódio e eu respiro profundamente, pronta para
andar até o banheiro como se a dor não existisse, nunca tive opção de senti-las mesmo, eu não
posso ser fraca. Quando a música começa a tocar no iPhone dele, paraliso no lugar.
No primeiro momento, não entendo o que ele está fazendo, mas, quando coloca a melodia do
ballet de Romeu e Julieta, da variação balcony Pas de deux, a mais romântica e trágica dos
repetórios, fica bem claro que ele está querendo me distrair da dor com a coisa que mais amo, o
ballet.
Damon, então, se ajoelha diante de mim, estendendo uma das pernas, que atravessam parte
do quarto, no melhor arabesque que consegue usando calças de alfaiataria, de um jeito que
consigo ver os músculos da coxa se contraírem com o esforço, enquanto a outra se dobra.
Ele está fazendo um convite para um mundo onde só nós dois existimos.
Ao mesmo tempo, seus braços desenham linhas expressivas na minha direção, que seria
arabesque à la seconde se ele tivesse mais técnica, mas não deixa de ser lindo, convidando-me
para o enlace.
É o escapismo perfeito da realidade que me esmaga, imaginar que estamos em um palco,
como se não houvesse traição ou dor penetrando minhas veias.
Sinto-me boba por estar feliz, mas faço um port de bras, entrelaçando nossas mãos e braços,
de um jeito que o tempo parece congelar enquanto nos prendemos em nossos olhares enlaçados.
E então Damon me levanta, mas não em um colo normal, e sim em um lift, colocando-me
nas suas costas, de um jeito que me sinto leve, como se estivesse voando, com meus braços e
pernas soltas, brincando com o ar enquanto ele caminha com cuidado e graça até o banheiro da
suíte, há poucos metros.
E sim, meu corpo dói muito mais do que se ele apenas me colocasse nos braços, mas Damon
também parece me entender ao ponto de saber que a dor não é o problema, o motivo dela é. A
dança me anestesia, por isso ele quis usá-la agora.
Amo os segundos em que estou encaixada em suas costas, ao ponto de que tento esticar a
perna em um attitude, mas desisto antes dele me colocar no chão.
Ele se ajoelha, mas não consegue ter a mesma desenvoltura, o que não é um problema tendo
em vista que a sua prioridade é me descer com toda a cautela que carrega dentro de si, colando
nossos rostos.
Não sei o que dizer para que ele saiba que estou grata, mas tento.
— Você tem força como um bailarino, mas precisa treinar o equilíbrio. — Seus ombros
caem sutilmente. Disse algo errado? — Releves em retires costumam ajudar.
Adentro o banheiro queimando de vergonha, e seguro na maçaneta, mas conforme fecho
lentamente a porta, a música fica mais baixa, e eu não quero ficar sozinha para ver o estrago na
minha carne, lembro-me de estar tomando banho frio com o sangue escorrendo e a dor da
memória me faz querer chorar.
— Traz a música mais perto?
Damon assente com seriedade, enquanto eu apenas fecho um pouco a porta.
— Quer que eu coloque dos Corsários? — lembra-se que é minha favorita.
Levanto a camisola do hospital, tentando não me desesperar. Já vi minhas coxas
machucadas, mas ainda não tentei tirar a calcinha. Quando faço, no automático, não imaginaria
que o absorvente grudou no ponto que eu nem sequer sabia que havia levado. Foi tão grave
assim?
— Não! — Sinto um misto de medo, ódio e dor à medida que solto o xixi e minha vagina
arde como se a urina estivesse saindo por esse buraco. — Escolhe uma péssima, horrível,
desgraçada, maldita... é... desgraçada, horrenda…
— Filha da puta? — Começa me lembrar dos palavrões, para eu repetir. — Porra? Pau no
cu? — Fica em silêncio, como se acabasse seu repertório. — Preciso aprender alguns com
Cartier.
Solto um riso fraco.
— Passou. — Suspiro, aliviada como se tivesse sobrevivido a grande guerra.
Mas ainda preciso me secar e, inevitavelmente, ver resquícios de sangue. É como se as
lágrimas que não foram derramadas até esse momento encontrassem seu caminho agora,
alimentando o desespero do trauma.
A imagem do sangue na cama e no meu corpo me paralisa, como se eu fosse ver tudo
manchado de vermelho quando chegar em casa. Pisco e esse banheiro é invadido pelo passado, e
o horror, como uma maré crescente, inunda minha visão.
Tudo está vermelho.
Mais lágrimas brotam dos meus olhos, com o terror dominando cada célula do meu corpo.
Sinto como se estivesse afundando em um abismo de tristeza, cercado pela escuridão. Começo a
respirar descompensadamente. Coço os olhos, mas não importa o quanto pressione o globo
ocular, não muda a percepção do que eu enxergo. O que está acontecendo comigo?
— Tudo está vermelho, tudo está vermelho! — grito, horrorizada. — Socorro! — Fecho os
olhos, mas no segundo seguinte Damon está ajoelhado na minha frente.
— Não tem nada vermelho, Aleks. Nada. — Pressiono forte as pálpebras em meus olhos,
recusando-me a abri-las, enquanto ondas de arrepio me invadem com violência, me fazendo
tensionar o corpo. — É só o sangue da sua menstruação, Oceano. — Explica em tom baixo. —
Não precisa ter medo. — Faço que não, colocando as mãos na frente do rosto.
— Estou com medo! — desabafo em um soluço alto e angustiante. — Ahhhhh!
Então ele faz outra coisa surpreendente. Damon segura na minha calcinha e puxa o
absorvente sujo, amassando-o e o jogando no lixo.
— Não tem mais sangue! — Diz, depressa. — Acabou, Aleks... — Toca no meu joelho e eu
me retraio. — Não precisa ter medo.
Abro os olhos com cautela, me acalmando à medida que enxergo tudo normal. Damon
continua me fitando com uma doçura que não entendo.
— Você gosta de me ver quebrada?
Seus olhos, pouco a pouco, se tornam mais brilhantes, como se minha pergunta o
emocionasse, e ele sorri com o canto, acentuando a covinha do seu rosto. Segura em minhas
mãos e não se importa de selar os lábios em meu dorso.
— Eu odeio, Oceano. — Sei que é verdade pelo timbre rouco, vindo da alma. — Como eu
nunca odiei nada.
Olho para nós dois nesse banheiro de hospital.
— Por que continua aqui?
— Por que Siegfried se apaixona por Odette, mesmo quando ela estava amaldiçoada em
forma de pássaro?
Fungo alto.
— Porque ele fica encantado por sua beleza e pureza.
Uma única lágrima escorre do seu rosto e ele morde os lábios, hesitante, antes de tocar nos
meus cabelos e declarar feito uma poesia.
— Seja lá do que nossas almas sejam feitas, a dela e a minha são iguais. Se tudo mais
perecesse e ela permanecesse... — Tece os dedos pelas minhas bochechas até o queixo, me
admirando profundamente. — Eu continuaria a existir; e se tudo o mais permanecesse e ela fosse
aniquilada, o universo se tornaria um grande estranho.
Não sei o que responder, meu Dono nunca me disse nada tão bonito.
— Emilly Brontë, Morro dos Ventos Uivantes. Nunca leu?
Faço que não.
— Só sei ler em russo... — limpo as lágrimas com as costas das mãos.
E meu Dono nunca me deu um livro...
Alguém bate na porta do quarto, de modo que Damon se levanta e vai atender, enquanto
lavo as mãos e volto para cama a passos lentos. Antes, paro em frente ao espelho e abro a
camisola, me obrigando a me encarar em uma tentativa falha de sentir menos medos.
Uma sensação de descrença toma conta de mim.
Os meus olhos se fixam na cena diante de mim, e a cor desaparece do meu rosto. A realidade
é tão avassaladora que sinto meu corpo tenso, como se estivesse congelado diante do choque.
Uma onda de incredulidade se espalha, deixando-me fraca diante da brutalidade a qual fui
submetida. O que fiz para merecer? Eu sempre fui perfeita... A respiração fica presa, e meu corpo
reage com uma mistura de horror e perplexidade, com a raiva subindo. Por que ele fez isso
comigo? Por quê? Por que ele foi tão traíra? Tão cruel?
A mágoa e a dor tomam conta de mim como um manto sombrio, envolvendo meu coração
em um rancor profundo. Cada batida parece ecoar a intensidade do sofrimento que se instalou em
minha alma, com meus pensamentos agindo feito facas afiadas que cortam mais fundo e mais
fundo...
A voz do Duncan me tira da minha mente.
— Tenho uma surpresa para você, mas só se parar de chorar.
Ele não está olhando para meu corpo, mas para meus olhos. Damon me puxa para um abraço
apertado e reconfortante, com o cheiro familiar dele preenchendo os meus sentidos e me
acalmando, de modo que os soluços se tornam respirações longas e calmas.
— Por que meu Dono fez isso comigo?
Ele demora para responder, travando o maxilar.
— Porque ele está pedindo para... — morde a língua, como se estivesse cuidando das
palavras. — Ele está cansado de viver, Aleks.
Franzo o cenho, ainda confusa e sem entender sua expressão. Damon beija minha testa.
— Está pronta para ir para a casa?
De novo os pensamentos. Como vai ser chegar em casa depois de tudo o que aconteceu?
Meus cisnes estão lá ou aquele pesadelo foi real? Mais do que isso, como vou viver naquele
lugar sabendo que não tenho mais os meus cachorros?
Cada detalhe da memória em que os entreguei para a adoção me atinge violentamente, e meu
peito aperta, enquanto as lágrimas teimam em se formar nos cantos dos meus olhos.
É a minha obrigação, endireito os ombros. Preciso voltar para o meu Dono, mas quero pedir
socorro. Por um momento, desejo que ele nunca mais me toque, porém sei que, quando ele
aparecer na minha frente, vou deixar fazer tudo de novo comigo. Fiz uma promessa, é minha
obrigação cumprir com meus votos.
Mas não quero...
— Vamos. — Minha voz é dura.
Não quero me vestir porque não quero pensar demais, e apenas vou em direção ao corredor,
de camisola, determinada e amargurada como se meus sentimentos não importassem. Então
Damon me cobre com o seu casaco pesado, coloca as mãos nas minhas costas e me guia pelo
hospital até o estacionamento, onde o mesmo modelo de Jaguar que me levou para ele, nos
aguarda.
Mas não seguimos o mesmo caminho para a minha casa. Em vez disso, o percurso segue até
o centro de Manhattan, em um edifício perto da quinta Avenida.
Não sei como reagir. Uma parte de mim quer chorar e implorar para ir para casa, mas a outra
está desesperada com a ideia de voltar para aquele lugar solitário carregado de memórias
pesadas. Com o meu Dono...
— Para onde estamos indo?
Acaricia o meu rosto com o polegar.
— Você é o meu segredo mais precioso, bailarina. Estou te escondendo.
Engulo em seco, encarando os fatos, por mais que não queira.
— Do meu Dono?
— Eu sou seu Dono agora.
Faço que não, relutante, me esquivando do seu toque.
— Isso é loucura! — Sou dominada pelo medo novamente. — Ele sempre sabe tudo. Ele vai
me achar e me machucar mais...
Seu maxilar trava, mas Damon não demonstra medo, e sim raiva na maneira como cerra os
punhos. Também não tenta me convencer com palavras, apenas fica em silêncio o restante do
caminho. Quando chegamos, sai do carro, atravessa, abre a minha porta e estende a mão, com o
comando.
— Vem.
Coloco as mãos trêmulas junto ao corpo.
— Quero ir para a minha casa. — Digo, embora não seja verdade. Estou com medo de voltar
lá, mas temo mais ainda em imaginar o que meu Dono pode fazer comigo se eu não voltar para
ele.
— É uma ordem, Aleksandryia.
— Você não entende! — Grito e o chuto, mas Damon segura minhas pernas e me puxa para
fora, o que me deixa furiosa ao ponto de acertá-lo no rosto com tanta força que minhas mãos
doem, e ele segura as duas, me imobilizado e me tirando do carro. — Me solta! — grito tão alto
que o estacionamento ecoa a minha voz. — Meu Dono vai acabar com a sua vida! — prometo,
fitando o fundo dos seus olhos, mas me arrependo no segundo em que ele, perplexo, alivia um
pouco da força com que me segura. — E com a minha também... — sussurro, perdida. — Com
nós dois, se eu não voltar. — Volto a postura. — Prefiro que não fique no nosso caminho,
Damon...
Ele simplesmente me pega no colo, imobilizando meus braços, e me leva a força até o
elevador, sem se importar com as pessoas que saem assustadas com os meus gritos, me roubando
descaradamente.
— Veremos quem fica no caminho de quem.
DISTORÇÃO

Meu escândalo dura até chegarmos em minha masmorra.


Quando as portas automáticas do elevador se abrem suavemente, no hall do apartamento
onde vou morar, meus olhos se enchem com as lágrimas mais felizes que já senti. Os cachorros
que acreditei que não poderia ter, encontraram o caminho de volta para mim.
Os meus três cavaliers.
Perco todo o ar dos meus pulmões em um soluço que escapa no meio do riso ao vê-los na
sala. Meldora cheia de laços rosas, no sofá de linho branco, lambe suas patas feito uma lady,
Gulnara, também com lacinhos, brinca com um ursinho no meio do tapete luxuoso, e Conrad,
cuidando das suas meninas, é o primeiro a cruzar seus grandes olhos apaixonantes com os meus.
Quando ele me vê, corre na minha direção, chamando a atenção das duas, que vem até mim
com tanta empolgação que suas patinhas tilintam sobre o piso de mármore.
— Meus amores... — suspiro, com meu queixo trêmulo, sem saber se dou mais passos ou
me ajoelho, abrindo os braços.
Meldora, com sua pelagem macia e manchas encantadoras com perfume de algodão doce,
pula em meu colo, lambendo o meu rosto enquanto seu rabo balança, em choradinhas que se
parecem com “senti saudades de você, mamãe!”.
Conrad, com seus olhos grandes e expressivos, olha-me com tanta ternura que é impossível
não sorrir em meio as lágrimas, e eu o acaricio lentamente enquanto Gulnara, com suas
orelhinhas caídas e olhar travesso, corre ao redor, radiante de energia.
Damon se ajoelha ao meu lado e pega a filhotinha no colo, e então me fita com um brilho
diferente, como se o laço especial entre nós se fortalecesse ainda mais.
— Gostou da surpresa? — Gulnara lambe sua barba. — Ou ainda quer ir embora?
Eles respondem com lambidas gentis, como se quisessem mostrar como estão alegres com o
meu retorno, expressando suas felicidades ao pular, buscando carinho, como se estivessem
compartilhando a mesma alegria que estou sentindo. Meu coração aperta com a culpa.
— Não posso cuidar deles, Damon. — Minha voz embarga. — Dois já morreram...
Entrega Gulnara no meu colo, sentando-se no chão para acariciar Conrad e Meldora, que
com focinhos empinados, denunciam a desconfiança com a presença dele.
— Você pode o que quiser, Aleks. Vai ser assim, agora.
Solto um riso satírico. É a coisa mais absurda que já ouvi, mas não desvio o olhar dos meus
cachorros. Acho que não consigo mais dizer outro adeus. Beijo a cabecinha de Gulnara, com
meu coração esquentando.
Algo em mim teima.
— Posso o que meu Dono quer. — Conrad lambe minhas mãos. — Acho que ele não gosta
deles...
Não entendo como alguém pode não gostar de criaturas tão lindas.
— Eu os adoro.
Minhas pálpebras pesam.
— Não estou falando de você.
Damon mexe nos bolsos com um olhar sério e distante.
— Eu não queria fazer isso. — É um colar com o nome dele. Uma coleira. — Sou seu
Dono, Aleks, e você não é mais a Kitty, mas se uma coleira for te ajudar a entender que você
pertence a mim, agora, coloco no seu pescoço. O que prefere?
Se eu disser não, perco meus cachorros e volto para as mãos do meu Dono. Quão furioso ele
está para me machucar outra vez? Conheço ele, sei como ele age, porém não sei o que esperar de
Damon. O que ele faria se eu o desobedecesse?
Mas, se eu disser sim, pelo menos terei Conrad, Meldora e Gulnara.
— Estou com medo... — mordisco os lábios, indecisa.
— Aleks, eu ganhei você do Rei. — Explica com tranquilidade. — Entende o que isso
significa?
— Que meu Dono não vai mais me machucar? Só você?
Faz que não, com um sorriso desacreditado.
— Ninguém vai te machucar, Aleks. Nem eu. Nunca.
Sinto um arrepio na forma como ele parece ter certeza disso, mas o que envolve ferir na
percepção dele?
— Você vai me dividir com muitos Jogadores?
Estou falando sério, porém Damon solta uma gargalhada sincera, puxa minhas mãos e as
beija outra vez.
— Eu não a dividiria nem com minha própria sombra. — Seu sorriso malicioso me faz
corar. — Ninguém vai tocar em você, e se eu descobrir quem já tocou, te dou as mãos de
presente.
Imagino as caixas de presente com mãos e me arrepio, mas a memória da manhã de Natal
me consola. Uma pontinha de esperança toca no meu coração.
— Vou poder assistir televisão?
Damon sorri largamente.
— Tudo o que você quiser, Borboleta. — Coloca uma mecha atrás da orelha, rindo da forma
como pareço confusa com a dinâmica que ele está propondo. — Meu fetiche é cuidar de você,
entendeu?
Acho que entendi, com uma mistura de excitação e nervosismo pulsando dentro de mim,
entrelaçando a ansiedade, enquanto cada célula implora para que ele domine a minha mente e me
faça parar de sentir tanto medo e culpa quando viro a nuca e levanto os cabelos para ele envolver
meu pescoço com a fita azul e dar o laço que vai definir todo o nosso destino.

Passo as próximas semanas me acostumando com a rotina do meu novo Dono.


Para começar, não fico mais sozinha. Meu apartamento está sempre cheio de Coroados com
suas snipers e calibres nos braços, além da chef, que me dá comida de quatro em quatro horas, e
da enfermeira, que cuida da minha medicação e dos meus ferimentos. Também tem os
funcionários que começaram a reforma pela sala de dança, e agora estão mexendo no
apartamento todo.
Eu amo morar aqui, porque tem parede de janelas que dá a visão do Central Park, se
estendendo até onde os olhos podem alcançar, e os raios do sol da tarde pintam uma paisagem
dourada sobre as copas das árvores congeladas. Também posso passar o dia todo vendo pessoas e
carros, é tão diferente da minha antiga mansão, no meio do nada, onde tudo o que eu ouviria era
silêncio e o nada.
Mas sinto falta do meu lago de cisnes.
Pelo que descobri, o apartamento que Damon me colocou foi comprado por seu amigo,
Cartier, para integrar à cobertura do seu harém. E eu sabia que existiam outras Bonecas, sim, mas
nunca havia conversado com uma, e agora convivo com sete, no andar de cima.
Elas são barulhentas e vivem com música alta.
O Dono delas é parecido com Damon. Também as deixa olhar o rosto dele, usar o nome dele
e ir para onde quiserem. Todas fazem faculdade. Mia faz medicina, Caroline cursa direito, Lea
está fazendo matemática e Tisha, literatura. Eleonora faz Caltech (não entendi bem o que
significa), Mare é aluna de psicologia e Anna é cirurgiã veterinária. Não gosto dela porque vive
vindo brincar com Conrad e Meldora, e fica pegando e beijando Gulnara. Se ela queria tanto
assim um cachorro, por que pediu ao Dono dela uma cobra de estimação?
Não sei se o fetiche do Dono delas é a aparência — todas possuem cabelos escuros e olhos
verdes, ou se é a inteligência. Sinto-me de outro planeta tentando conversar com elas, é
impossível sustentar um diálogo por mais de dois minutos e isso me deixa pensativa. O que tem
de errado comigo? Por que não consigo ser como elas?
Elas me convidaram a passar o Ano Novo junto e Damon me incentivou, já que não poderia
comemorar comigo. Ele explicou que agora que tem a mim, precisa ser exemplar no Jogo, e tem
muitos compromissos como Sangue em Ascensão.
Isso não significa que se mantém distante como o meu antigo Dono.
Primeiro, Damon me deu um celular para nos comunicarmos por ligações e, principalmente,
mensagens ao longo do dia, só que não consigo ler muito bem o inglês, assim com ele não
entende russo. Ele deu então a ideia de tirar fotos.
Damon me manda fotos de tudo. Dos seus pratos, de si mesmo na frente do espelho só de
toalha depois do banho, do seu rosto, e de coisas engraçadas ou aleatórias que vê ao longo do
dia.
Preciso admitir que ver Damon, sempre que eu quiser, fortalece muito mais a conexão do
que todas as Regras que me obrigavam a pensar no meu Dono antigo o tempo todo. Isso também
é um problema.
É como se o meu cérebro estivesse uma bagunça que mal me deixa pensar.
Às vezes, não sei se estou pensando em Damon ou no meu antigo Dono. Em outros
momentos, esqueço que é Damon e levo um susto com as fotos. Consideravelmente, me pego
miando e comendo como gatinha, então a chef precisa intervir e brigo com ela.
Acho que ela tem medo de mim, mas eu também tenho muito medo ultimamente, de tudo.
Não consigo mais me deitar na cama, e mesmo no sofá não consigo dormir, acordando de
meia em meia hora aos gritos. Não sei se são pesadelos, mas a lembrança de acordar no sangue
me enlouquece pouco a pouco.
No dia 1 de janeiro, uma médica começou a me visitar, dia sim e dia não. Ela disse que iria
cuidar do machucado no meu cérebro, o que é engraçado, porque ela nem sequer pergunta nada.
Apenas me dá instruções de desenhar inocentes formas geométricas e objetos aleatórios, que por
algum motivo ridículo, faz eu me sentir quebrada e chorar muito após as sessões.
Ela me incentiva a chorar e falar, conversamos sobre a minha tendência de empurrar as
coisas ruins para debaixo do tapete, e eu só vou arrumar a minha bagunça se parar de esconder o
que me machuca de mim mesma. Contei que gostava de fazer poesia e ela me deu um caderno.
Talvez ela esteja certa, não importa. Vou continuar fugindo de sangue e dos pensamentos do
meu antigo Dono.
Ela também cuida das medicações, para que meu sono dure mais, e outros que estão
diminuindo a minha necessidade de fazer movimento nos pés quando fico nervosa. Ela disse que
o nome disso é TOC, Transtorno obsessivo compulsivo, e o dos pesadelos é TEPT, transtorno de
estresse pós-traumático. Ela é especialista nessa doença.
No dia 2 de janeiro, Damon veio me ver com um buquê de rosas brancas.
O apartamento estava uma loucura porque as arquitetas e designers estavam me deixando
mal com tantas perguntas, enquanto eu repetia que queria que a decoração fosse idêntica à da
minha mansão, sem nem mesmo lembrar como era, como se minha mente tivesse apagado
completamente.
Damon estava vestido com roupas sociais, um boné estranho e óculos de sol, cheiroso e
suado como se estivesse correndo no trabalho, mas parou tudo para me ver e me chamou para dar
uma volta com ele.
Não devia ser nem dez da manhã, mas ele pegou um casaco que as Bonecas me
emprestaram, e botas, colocou o boné de um jeito que quase tampava meu rosto, segurou na
minha mão e me levou até o elevador, onde portas automáticas se abriram suavemente.
Fiquei reparando em nós dois pelo espelho, eu toda desarrumada e ele como o homem mais
importante do mundo, com luvas de couro, casaco preto e os óculos escuros combinando com a
barba e a pele clara
Não saímos no estacionamento, no hall do prédio.
— Para Para onde vamos? — Indaguei, nervosa, com ele me levando para fora do edifício,
cheio de pessoas nas calçadas e carros nas ruas.
Há quanto tempo não fico perto de tantas pessoas?
Alguns fitavam Damon como se tivessem medo dele. Meu antigo Dono também era assim.
Ele nunca passava despercebido, era como uma estrela chamativa demais para desaparecer
na escuridão, todos o fitavam com receio e admiração. As pessoas o temiam, e eu só queria saber
o porquê.
Em vez de responder, estendeu um dos braços para que eu o abraçasse, me guiando para o
outro lado da rua, caminhando pela neve fofa em cima do asfalto frio, enquanto flocos
continuavam dançando pelo ar.
— Visitar o seu jardim. — Sorriu, atravessando os portões do Central Park. — Já veio aqui?
Fiz que não, apaixonada pelo cenário.
— Só com o carro.
O parque estava transformado em um vasto campo branco, as árvores vestidas com um
manto de neve, e cada ramo decorado com delicadas coberturas de gelo. A luz do sol, mesmo
que tímida entre as nuvens, fazia com que a neve brilhasse como diamantes, lançando um brilho
mágico sobretudo ao nosso redor.
— Aleks, vou passar as próximas semanas fora. — O frio nítido do ar fresco contrastava
com o calor que compartilhávamos com nossos braços entrelaçados.
— Vai? — fiquei preocupada, meu Dono sempre sumia por tantos meses que eu pensava
que ele havia me esquecido.
— Tem um projeto muito grande que estou liderando. — A neve acumulada nos galhos das
árvores decorava cada ramo com gotas pendendo delicadamente das pontas, prontas para cair
num espetáculo silencioso quando a brisa sussurrava pelas folhas congeladas. — Chama-se
EuroOásis, é sobre fornecimento de gás natural para Europa por meio de tubulações
subterrâneas. — Parece incomodado pela maneira que suspira. — Amanhã viajo para a Arábia
Saudita, fechando a compra das reservas naturais. Depois, vamos passar por todos os países da
Europa, fazendo os acordos. — Mesmo com os casacos, parecia que eu ouvia seu coração
disparado, com as mãos suadas. — Deve levar um mês, talvez mais.
Franzi o cenho, sem entender nada, então só assenti, porém ele percebeu.
— Posso te fazer uma pergunta?
Como fazê-lo entender que eu ainda não gostava de perguntas?
— Pode fazer comigo o que quiser. — Sorrio.
Eu não tinha a intenção de atiçá-lo, mas Damon passou a língua entre os lábios antes de
depositar uma mordidinha no canto externo. Então desviou a atenção, como se estivesse se
controlando para não me abraçar mais forte.
— Até que ano foi na escola, Aleks?
Deparamo-nos com um riacho serpenteando pela paisagem branca, com suas águas
parcialmente congeladas criando padrões intrincados à medida que subíamos a ponte.
Detesto lembrar dessa época.
— Sétima série, eu acho. — Respondi, seguindo com o olhar o curso da água. — Por quê?
Ele balançou a cabeça negativamente, desenroscou os braços e os pôs em meus ombros, de
modo em que andamos abraçados até a ponte onde o lago refletia a paisagem branca, nos dava a
visão graciosa de cisnes brancos deslizando elegantemente sobre a água congelada.
Eu sorri largamente com as aves, porém Damon não viu.
— Odeio esse projeto.
Ver um homem do porte dele dizer palavras tão sinceras, mexeu comigo. Continuei
observando os cisnes com suas penas reluzindo sob a luz suave do inverno.
— Por quê?
Pensou um pouco.
— Tenho medo.
Perdi o ar, sem acreditar que um Jogador do porte dele também sentia medo.
— Do que?
— De me transformar em outra coisa. — Murmurou, distante.
Não sabia o que dizer, então pensei um pouco e apontei com o olhar para os cisnes que
pareciam dançar em uma coreografia natural.
— Tem uma discussão muito séria dentro do ballet.
— Qual? — Fitou-as também, com um timbre curioso.
— A humanidade de Odette. Uns dizem que ela é meio-humana, meio-pássaro, outros, que
ela é humana e apenas se transforma em um cisne no ato II.
Ele soltou um riso orgulhoso, de jeito que as covinhas do seu rosto ficavam mais expostas,
evidenciando quão belo são os traços que carrega.
— E o que você acha?
Elevei o meu braço, fazendo ondulações que vão do ombro até as pontas dos dedos.
— Ela faz esse movimento mesmo antes da maldição, na maioria das variações, inclusive no
Bolshoi. — Tirou os óculos para me observar, de um jeito que os seus olhos pareciam mais
escuros, densos de prazer. — Acho que ela não se transforma, ela já era, mesmo antes de tudo
acontecer. — Volto a olhar os cisnes, com a neve refletindo o brilho em nossos rostos. — Não
nos transformamos em bons ou maus, tudo o que somos está dentro de nós o tempo todo.
Algumas coisas apenas trazem à tona, como a maldição de Von Rothbart.
Ele perdeu o fôlego, me puxou para um abraço e beijou o topo da minha cabeça, com uma
intensidade que estremeci.
Depois disso, me deu a permissão de vir todos os dias no Central Park, com os seguranças e
uma das Bonecas de Cartier, passear com meus cachorros e ver os cisnes, que já os considero
meus. Meu Dono também enviou, alguns dias depois, uma professora de inglês. Não gostei disso
e ele percebeu. Na ligação daquela noite, perguntou:
— Por que você está tão quieta, Oceano?
— Você me acha burra?
E ele devolveu:
— Você me acha burro?
— Por que eu acharia?
Ele virou a câmera, mostrando a mesa cheia de livros.
Damon estava aprendendo russo.
Com nossos avanços, eu no inglês e ele no russo, nossa comunicação se tornou ainda mais
intensa. Começamos a arriscar frases curtas, embora continuássemos com as fotos. Na verdade,
eu até me tornei melhor com elas quando descobri que isso agrada meu novo Dono. Demorou
anos para eu entender o que meu antigo Dono gostava, mas Damon parece gostar de tudo o que
eu faço.
Conseguir a atenção do meu antigo Dono era uma tortura, mas a atenção do meu novo Dono
é como uma droga.
Estive treinando muito O lago dos cisnes, agora que posso assistir as gravações dos
espetáculos do Bolshoi, e aproveito para me gravar, assim limpo os movimentos e compartilho
com meu Dono tão apaixonado por ballet quanto eu, embora saiba que ele está me vendo em
tempo real.
Damon colocou câmeras por toda a casa e, mesmo estando muito ocupado em reuniões, sei
que ele me observa o tempo todo, porque me parabeniza quando me alimento, me elogia quando
faço algo fofo, ainda que seja só a opinião dele, como o fato de pegar as coisas do chão fazendo
penches, com uma perna no alto, ou treinar balance em qualquer oportunidade.
Ele acha engraçado a forma como me sento no cantinho do sofá para assistir desenhos,
embora tenha um espaço imenso, como fico com Gulnara no colo o tempo todo e me manda
prints com as capturas dos momentos que estou largada no tapete da sala brincando com meus
cachorros.
Meu Dono também cuida de mim em situações sérias, pois vê quando estou em crise antes
que eu perceba. Ele notou que, além de não conseguir dormir na cama, eu não estava
conseguindo tomar banho, mal conseguia entrar no banheiro. Isso era um problema pela
cicatrização dos meus pontos.
Então me perguntou o que estava acontecendo e, quando contei que era medo, questionou se
eu queria que alguém entrasse comigo e me ajudasse.
— Você. — Eu disse.
Ele colocou uma câmera na frente do banheiro e, agora, tomo banho para o meu Dono, todos
os dias.
Minha vida está tão diferente que cada vez mais as memórias ruins estão sendo empurradas
para baixo do tapete, liberando o espaço para a minha rotina de ballet, terapia, refeições, aulas e
meu novo Dono, que exige atenção 24 horas.
Perguntei ao meu Dono como ele gosta que eu me vista e ele disse que me adora como sou,
coquette, então escolhi tudo do mesmo jeito que meu Dono antigo gostava. O apartamento
também se parece com a mansão antiga e, um mês e meio depois, é como se nunca tivesse
existido outro além de Damon.
Você me chama de Oceano
Mas sou eu quem está afundando
E não há nada me segurando
Além de você, me enforcando.
Minha linda coleira
LIBERDADE

Estou dormindo no sofá quando escuto o elevador parar no meu andar.


Algo dentro de mim soa como um alarme, estridente e desesperado. Busco o relógio e são
mais de duas da manhã. É real? O vento uivando anuncia uma nevasca tão forte que eu não
consigo imaginar quem seria frio o bastante para competir com a temperatura. Será que estou
ficando louca? Fecho os olhos, tentando pegar no sono novamente
A porta do elevador abre.
O frio na barriga se instala, e minha mente começa a brincar comigo. Apenas uma pessoa
pode me visitar a qualquer horário e, pela tranquilidade dos Coroados, é ele. Meu Dono. Por que
estou com tanto medo? Meus cachorros continuam dormindo, nem Conrad despertou. Talvez eu
esteja ficando mesmo louca.
O medo começa a se instalar, uma sombra que se move pelos cantos escuros da minha
mente, e meus ouvidos ficam aguçados, capturando até mesmo os sons mais sutis, como os
passos, o cumprimento baixo, a respiração...
— Torre.
— Cheguei hoje de viagem, vim direto ver ela. Como estão as coisas?
— Tranquilas, senhor. Nem um sinal dele.
O meu coração bate rápido, como se quisesse escapar do peito, e cada ruído do ambiente
parece um eco dos meus próximos pensamentos. Inclino o pescoço vagarosamente e sinto a crise
de ansiedade revirar minhas entranhas quando vejo a silhueta de terno e gravata, na luz fraca do
corredor.
— Trouxe esse presente para ela. Consegue entregar no café da manhã?
Meu olhar vai até a embalagem no formato de cilindro que reflete enormes asas nas paredes.
Tento subir mais, travando nos seus ombros. consigo ver seu rosto, mas eu podia, não? Como era
mesmo?
— Obrigado, vou ver ela.
Deito de novo e me cubro até a cabeça, confusa e com a respiração entrecortada. O frio na
barriga se instala. Meu peito dispara tão forte que sinto que posso morrer a cada segundo que ele
brinca com a minha sanidade, em vez de simplesmente entrar e fazer o que quiser com o que é
dele. Devo ficar quieta e aguardar as instruções, apenas obedecer, quando ouço um barulho de
passos.
Ele está se aproximando.
Paraliso, sem saber se fico onde estou ou faço algo para ele, como me virar de bruços e
empinar a bunda feito uma gatinha no cio. Minhas mãos estão suando tanto que escorregam do
edredom, meu corpo inteiro treme tanto que temo que o bater dos meus dentes entregue a ele
todo o medo que lava minha alma e desce, escorrendo pelas minhas pernas sem a calcinha.
Ouço a respiração na minha frente, a sombra, sobrepondo-se a escuridão do cômodo. Tenho
certeza de que estou suando, quero me descobrir de tanto calor.
Meus pés se mexem sozinhos. O meu Dono também faz barulho. Meu pulmão se comprime
tão forte que fico alguns segundos sem respirar, esperando-o vir na minha direção, subir em mim
e trepar comigo. Meu ventre baixo se contrai com a ideia.
Meldora desperta e sai das cobertas com o rabo abanando para ele, que se abaixa e estala os
dedos.
— Hey, menina. — Sua voz sussurrada me faz fechar os olhos, mordendo os lábios.
Então ele apenas se levanta, despede-se dos Coroados e volta para o elevador.
Mas eu ainda estou esperando algo.
Sem saber o que fazer com essa angústia, levo as mãos até o pescoço, retirando a coleira.
Fito o nome dele no escuro enquanto o mentalizo, antes de descer com o pingente até o centro
das minhas pernas, abrindo-as. Eu já fiz isso muitas vezes, de saudade, de carência ou sempre
que sentia nosso elo distante, mas desde que levei os pontos e me mudei para esse apartamento
não havia sentido vontade. Hoje, fui despertada com o desejo me transbordando.
Nem sequer preciso me esforçar para ficar molhada. Estou no ponto.
Deslizo os dedos pela região, sentindo-a diferente. Tem um relevo no meu períneo, onde o
ponto cicatrizou, e eu sinto um incomodo quando enfio meu primeiro dedo, mas não paro.
Coloco mais dois, e o frio do pingente me faz gemer com a sensação de ser penetrada,
sobressaltando a dor.
Meu celular toca com uma mensagem do meu Dono.
Damon: vejo movimentos suspeitos no edredom. O que você está fazendo, bailarina? (não
pare, estou implorando)
Procuro pela câmera mais próxima, sorrindo com timidez. Não estava fazendo por ele,
sequer pensei que estivesse olhando, na rua, mas gosto de saber que tenho plateia, tiro a coleira
de um jeito que ele vê onde estava, balançando perto do meu rosto. Chupo o pingente.
Aleks: conexão, meu Dono. Você gosta?
Damon: posso te mostrar o quanto?
Penso por um momento antes de responder que sim, em um misto de curiosidade e medo, e
ele me manda uma foto do seu pau, duro em sua mão. Solto um gemido só de ver, com minha
boca ficando tão molhada quanto a minha boceta, então chuto as cobertas, sabendo que ele vai
ter uma visão privilegiada, e abro um grand ecart, deitada.
Volto a me penetrar com a coleira, imaginando o seu pau, mais fundo e mais fundo.
O telefone começa a tocar com uma chamada dele.
— Miau.
— É o Damon. — Minha boceta se contrai com a sua voz, e eu não paro de me tocar,
ignorando o sentido da palavra.
— Como posso te ajudar, Dono? — Minha pergunta falha.
Acho que minha voz o excita tanto quanto a sua mexe comigo, porque escuto o barulho das
suas próprias investidas, com a respiração dele me fazendo desejar seu corpo em cima do meu, o
calor do seu hálito tocando minha nuca, e o seu pau me rasgando.
Lembro de sexo, penso em sexo, desejo sexo. Meu Deus, me contorço.
A última vez que tive relações foi com um Jogador, meses antes do primeiro encontro com
meu Dono, se não contar a vez em que estivesse desacordada. E eu não senti prazer com esse
jogador, na verdade, só posso ter orgasmos com meu Dono, quando ele dá o comando, o que é
bem raro.
Mas, agora, estou me masturbando enquanto imagino meu Dono dentro de mim.
— Promete abrir as pernas desse jeito, quando eu foder essa boceta gostosa?
Sua respiração está mais pesada e o som da sua punheta está mais forte, combinando com as
minhas gemidinhas e o barulho molhado dos meus dedos sendo esmagados.
— Eu sei abrir as pernas de muitas maneiras.
— Ahhh... — Meu Dono não tem vergonha de gemer, ao contrário, parece saber quão
gostoso seus barulhos são, por isso não para de vocalizar todo o seu desejo por mim, me
deixando cada vez mais excitada com os gemidos, a respiração entrecortada, e as ordens. — Me
mostra. — Manda, com a voz rouca. — Levante.
A atmosfera eletricamente carregada aumenta minha obediência, e mal posso conter a
energia que se acumula dentro de mim quando começo a levantar a perna em um cambré, pronta
para liberá-la com os movimentos da minha mão, mas meu Dono não permite.
— Não ouse fazer isso no campo visual dos Coroados, a menos que queira acabar com a
vida deles. — Sorrio com a forma como ele diz, como se tivesse todo o poder do mundo nas
mãos.
Ele tem.
— Você é só minha, — murmura, rouco de tesão. — Minha para olhar, minha para tocar...
É mais forte do que eu sussurrar:
— Estou imaginando sua mão no lugar da minha.
Um riso malicioso escapa dos seus lábios. Ele está vendo o que estou fazendo com meus
dedos.
— Vá para o quarto, Boneca-Russa.
Eu tenho medo do quarto. Ele esqueceu?
Ainda assim obedeço, em meia ponta alta, para não fazer barulho enquanto caminho pelo
corredor na ponta dos dedos dos pés, de um jeito que minha coxa delineia na camisola azul nesse
desfilado, enquanto visualizo o meu Dono me acompanhando, câmera por câmera, mexendo os
quadris e os cabelos, até o cômodo ordenado. Ir de encontro com o medo é quase tão excitante
quanto imaginar o que ele vai fazer comigo.
Ele não entende tudo o que estou sentindo. O medo, palpável como o suor das minhas
palmas, a ansiedade se contorcendo como borboletas asfixiadas no meu estômago, o frio da
minha espinha guerreando contra o calor alojado na minha intimidade. É uma combinação volátil
se estendendo em um arrepio que enrijece meus mamilos, tornando-os sensíveis ao tecido da
camisola. Sinto-me viva como se o fogo estivesse beijando cada centímetro da minha pele.
A cada passo meu coração bate mais descompassado, como se soubesse que eu estou indo
encontrar os meus demônios favoritos. Os sons distantes, de cada Coroado me protegendo,
ganham proporções assustadoras, e minha imaginação tem vida própria, projetando sombras de
lembranças que eu esqueci parcialmente.
Por que tenho medo do quarto mesmo?
— Muito bom. — Elogia, antes mesmo de eu atravessar a porta, assim que as luzes
automáticas se acendem. — Tranque a maçaneta.
Meus olhos se fixam no canto mais escuro do quarto, o coração acelera como se meu Dono
estivesse ali e o ar fica mais denso à medida que sua presença se intensifica com os comandos.
— Dance para mim, sem roupa.
Tiro a camisola, me virando de costas para a sombra, ensaiando um movimento de quadril,
que o faz gemer alto, me fazendo sorrir ao ver como é fácil derrubá-lo. Sinto algum poder nisso e
movo ainda mais a cintura.
— Me mostra sua boceta. Na cama.
As emoções me inundam com a intensidade de mil mares, deixando-me completamente à
mercê do que seu desejo significa, meu coração bate tão forte que parece pular para fora do peito,
cada veia pulsando dentro de mim, e a contradição de obedecê-lo, me deixando ainda mais
excitada, agravando-se com o desejo desesperado de agradar meu Dono.
Eu adoro ir para o inferno por isso.
Deito-me na cama em um movimento de mergulho que deixa meus quadris altos em direção
à câmera, abrindo as pernas enquanto rebolo de um jeito que ele adora e geme mais. Os sons do
seu pau parecem mais molhados, me encharcando na mesma medida.
Quanto mais fundo levo os meus dedos, mais arqueio as costas, empino a bunda, lutando
para me manter na posição mesmo com meus pés se contorcendo aos poucos, quanto mantenho
os ombros apoiados no colchão, imagino sua mão em meus cabelos, me asfixiando.
— Ahhh... Miau...
— Não mia. — Repreende com a voz pesada de desejo. — Só geme, não mia.
Mas eu não sou capaz de raciocinar com o meu corpo pegando fogo de um jeito que eu
rebolo a bunda com meus dedos dentro, ao mesmo tempo em que esfrego meus peitos na colcha
bordada da cama, vocalizando.
— Miiiau...
— Porra, Aleks! — choraminga de tesão, aumentando as suas próprias investidas. — Para
de gemer assim ou vou mandá-la parar de se tocar.
Eu não sei se parei de escutar ou se apenas não quero escutar meu Dono, por isso faço
questão de miar mais alto, de rebolar mais, de me penetrar mais fundo e me esfregar mais rápido,
sentindo ondas elétricas me atravessarem em intensidades mais fortes e repetições mais curtas,
indo do alto da espinha até a pontinha do pé, enquanto imagino o pau do meu Dono, uma mão
apertando forte a minha bunda enquanto a outra puxa no meu cabelo, levantando o meu rosto.
— Ah! Miau!
— Aleks, pare. — A sua voz brava me atravessa, deixando-me ainda mais louca.
— Vai me punir, Dono? — imploro, friccionando meu ponto G com o dedo em
formato de gancho.
Não escuto barulhos do outro lado, apenas seu timbre sério.
— Você quer?
Mexo os quadris com o arrepio, antes de me deitar de barriga para cima enquanto sorrio para
a câmera, com as pernas abertas, os peitos esparramados e os cabelos bagunçados.
— O que você acha, Dono? — levo os meus dedos até a minha boca, lambendo-os. —
Lembra quando você me obrigou a dançar nua naquela festa, suspensa em ganchos?
Demora um pouco para responder, como se estivesse lutando para manter a seriedade.
— Acho que precisamos ter uma conversa séria.
E desliga.
Sinto o nó na garganta ficar maior à medida que me dou conta do que fiz, com a respiração
entrecortada pelo medo somando-se ao do desejo.
Fui desobediente com o meu Dono. Dói como se eu estivesse sendo chicoteada, e eu engulo
as lágrimas, porque ele está olhando. Agora, cada batida do meu coração ressoa como um tambor
de pavor, enquanto tento desesperadamente encontrar uma rota de fuga para as consequências
que me esperam.
Fui muito malcomportada, preciso compensar.
Começo a andar de um lado para o outro pelo quarto, então meu Dono retorna à ligação e
me manda dormir, seco. Fico paralisada por alguns minutos, enquanto ordeno ao meu corpo que
corrija a situação. Ergo os ombros, visto a camisola, volto para o sofá, na sala, mas não consigo
pegar no sono, apenas finjo, por horas e horas, até a funcionária me chamar para o café da
manhã.
As punições já começaram.
Decorando a bela mesa posta, ao lado da minha prataria, há uma borboleta azul-cintilante,
dentro de uma redoma de cristal, com um bilhete do meu dono.

A borboleta dos meus sonhos, a que tenho medo profundo. Viva, tentando bater as asas no
recipiente vítreo. Apoio meu queixo na mesa, observando-a, imóvel.
É questão de tempo até que morra.
Assisto isso acontecer pelo resto do dia.
TRANSTORNOS

Nunca pensei que ficaria tão doente como estou pela minha borboleta russa.
Isso é clínico.
A febre não deixa o meu corpo, e os delírios que ela traz se tornam cada vez mais reais,
bagunçando os meus sentidos. Ouço a voz dela com o seu sotaque russo gostoso, no silêncio.
Sinto o cheiro dela, mesmo estando em outro continente. Em todos os lugares, não importa em
qual reunião eu esteja, só consigo vê-la na mesa, nua. Na cama, eu me masturbo por horas, e
quando fecho os olhos, lá está ela, implorando pelo meu pau.
Assisti-la pelas câmeras funcionou como um remédio.
E eu me viciei.
Uma tela não é mais o suficiente.
Fui visitá-la assim que cheguei em Nova Iorque. Esperei a minha bailarina dormir para
entrar — com medo do que faria se a pegasse com aquela camisola fácil de rasgar, sabendo que
ela não estava de calcinha.
E então o meu lindo cisne branco mostrou que estamos infectados pelo mesmo doce veneno.
Ela se transformou no cisne negro diante dos meus olhos.
Ela me enlouqueceu.
O melhor a fazer é ir à clínica da psiquiatra de Aleks.
É o primeiro horário da manhã, e há pacientes aguardando-a. Chego sem avisar, dou bom
dia, e as funcionárias ficam alertas com os Coroados na porta, enquanto entro tranquilamente. O
Rei me ensinou esse truque. Somos Sangue em Ascensão, parecemos muito mais ameaçadores
quando estamos apenas sendo educados.
Talvez seja a minha aparência que os intimida. Embora eu esteja com um terno da minha
coleção Schiaparelli, corte de cabelo recente e barba cerrada, ainda assim, tenho a sensação de
que tirei o ar desse lugar. Sinceramente, é o que desejo.
Não faz nem um minuto que cheguei quando a assistente me convida até a sala da Dra.
Lauren Allorsi. O lugar é bonito. As paredes pintadas em tons suaves, combinadas com
iluminação indireta, criam um ambiente tranquilo. Quadros discretos, mostrando paisagens
serenas, adicionam um toque de serenidade ao espaço.
— Bom dia, senhor Duncan. — Está sentada em sua cadeira de escritório, com os ombros
erguidos como se não tivesse motivo para sentir vergonha. — Como posso ajudá-lo?
Está com a caneta pronta para registrar informações importantes em um bloco de notas, ao
lado do MacBook. Cruzo os braços.
— Não pergunte como pode me ajudar, se não tem competência para isso.
Não tenho a intenção de ser grosseiro, mas não me importo em como soa. Ela tinha uma
única obrigação: cuidar do meu Oceano, e ela falhou.
— Sente-se, senhor. — Convida, esfregando as mãos uma com a outra. — Explique-me
como não estou sendo competente.
Demoro algum tempo decidindo se vou ouvir o que ela tem antes de acabar com a carreira
dela. Veja bem, não gosto de destruir pessoas, mas, quando se entra no Jogo, só se sai morto, e
ela aceitou a oferta antes mesmo de ponderar o que significava ser psiquiatra da minha Boneca.
Serei bonzinho se a única coisa que eu ferir for a reputação dela.
— Passei mais de um mês, fora. — Começo em tom de diálogo, não acusação, sentando-me
na poltrona verde-água. — Estou curioso para saber que progresso você teve com a minha
bailarina, nesse tempo.
Observo os detalhes ao seu redor, como os inúmeros diplomas atrás de si.
Lauren é uma mulher de cinquenta anos, especializada em psiquiatria forense pela
Universidade de Cambridge, especialista em Estresse Pós-Traumático e em Terapia Cognitiva-
comportamental pelo Ambulatório de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria de Yale. Trabalha há
mais de trinta anos na área e é referência em vítimas de violência sexual.
— Os primeiros meses são sempre mais difíceis...
— Não perguntei isso.
Ela sorri, contrariada.
— O que o senhor consideraria como progresso, senhor Duncan?
Apoio as costas na poltrona, desviando a atenção do celular para ela.
— Não responda com uma pergunta para fugir da resposta, Dra. Lauren, não é inteligente e
me deixa com ainda mais raiva.
Ela suspira, vendo que não tem para onde correr. Eu a encurralei. Não vai ser uma boa ideia
usar a desculpa de sigilo médico paciente.
— Eu mapeei o cérebro da sua bailarina. Normalmente um diagnóstico de algum transtorno
leva meses, eu identifiquei dois transtornos em menos de trinta dias, e entrei com medicação, fiz
ajustes que já estão fazendo efeitos nos sintomas imediatos do TOC e do TEPT dela. — A
médica já havia me enviado os laudos com os transtornos, então não me surpreendo mais do que
já pesquisei. — Isso não apenas trouxe qualidade de vida à sua bailarina, como aliviou a
sobrecarga cerebral dela, como se “me desse espaço” — faz aspas — para iniciar novas
investigações, isto é, ver quais redes neuronais estão mais prejudicadas e iniciar novos
tratamentos. Foi isso que eu fiz em um mês e dez dias, senhor Duncan. — Tento não parecer
surpreso, mas ela percebe. — Aconteceu alguma coisa com a sua bailarina, que fez o senhor
duvidar do imenso progresso dela?
Lembro de nós dois na madrugada anterior e sinto o sangue do meu corpo descer, me
endurecendo, só de lembrar da minha gostosa naquela cama, mexendo seu corpo, se
masturbando, gemendo, com tanta sedução que me deixa fora de mim e eu suspiro lentamente.
Penso também no que Aleks fez em seguida e meu coração é dominado pelo peso que me
trouxe até aqui.
— Ela repetiu comportamentos e me confundiu com alguém do passado dela.
— O Dono? — adivinha.
Arqueio uma das sobrancelhas.
— Ela fala dele?
— Ah sim, o tempo todo. Ela só fala nele. Pensei até que fosse o senhor.
Meu coração dispara com a informação de que ela fala de mim o tempo todo, e eu sorrio
discretamente. É como se eu estivesse vivendo pela primeira vez a reciprocidade de uma
obsessão. Podemos ser loucos juntos?
— Por que a senhora acha que sou eu? — meu timbre sai alegre.
— O Dono tem acesso a casa, a câmera, aos recursos, a rotina e aos horários, determinando
cada movimento dela.
Não sei muito bem como me sinto com a informação.
— É, sou eu. — Ao mesmo tempo em que há orgulho, há um desconforto em ocupar essa
posição. — Mas também houve outro, no passado dela.
Ela faz uma breve anotação e, não sei por que, deixo que me analise.
— Qual a diferença entre o senhor e o outro? — pergunta.
Tento não ficar ofendido, mas meu sangue esquenta, e eu me movo na cadeira, cruzando as
pernas.
— O óbvio: ele a machucava?
— Como?
Solto com um riso sarcástico.
— Ele a estuprava. — Meu timbre sai arrogante, mas a médica não parece se importar. —
Ele a dava para outros animais fazerem o mesmo. Ele é um monstro.
Há uma breve pausa, preenchida apenas pelo suave arrastar da caneta sobre o papel
enquanto a médica processa as informações.
— E ela sabe?
Ela sabe que ele a estuprava? Que os programas que ela fazia eram abusos? Que ele é um
monstro? Ela sabe que ele só queria o seu mal?
Lembro dela chorando por ele no hospital, com uma lealdade e inocência que partiu o meu
coração. Todas as palavras na ponta da língua, para respondê-la, desaparecem.
Também mudo a minha postura, apoiando as mãos na mesa.
— Quem tem que me dizer isso é você, a médica que eu estou pagando, muito caro, para
mostrar isso a ela.
Tira os óculos de grau para fitar os meus olhos, de um modo que eu sinto a seriedade do que
ela deseja me dizer, e deixo meus ombros caírem com certa submissão.
— Senhor Duncan, o senhor me permite ser sincera e dizer tudo o que eu descobri e penso a
respeito da minha paciente?
Nossos olhares se encontram nesse momento de silêncio, de modo que concordo com a
cabeça.
— Por favor.
— Por meio dos exercícios e alguns poucos diálogos, consegui identificar diversos padrões
comportamentais na Aleksandryia, que vi em muitas outras pacientes ao longo da minha carreira,
tendo em vista que essa é a minha área de excelência. — Solta um suspiro profundo, revelando a
gravidade da situação e o quão desconfortável está. — Para começar... — coça a nuca, sem saber
como dizer. — Os sintomas dela são claramente associados a vítimas de exploração sexual. Ela
esteve praticamente a sua vida toda em uma dinâmica de escravidão sexual. — Conta com os
dedos: — O cárcere privado e a restrição de liberdade, a privação de lazer, o isolamento social, e
o controle financeiro. Tudo isso em um espaço longo de tempo, as lesões são profundas, além
dos traços que indicam que ela sofreu abuso sexual antes da formação completa do seu cérebro.
— As palavras me atingem como uma onda repentina, e uma sensação de peso se instala no meu
peito. — Por exemplo: o transtorno de ansiedade, a raiz do TOC, o Transtorno de estresse pós-
traumático, a baixa autoestima e dificuldade de estabelecer limites, problemas na sexualidade
com comportamentos destrutivos, dificuldade em expressar necessidades e em defender os
próprios direitos, culpa, flashbacks e pesadelos.
A minha respiração, que parecia automática até então, requer esforço consciente, e eu
inspiro fundo, tentando encontrar algum equilíbrio em meio à torrente de informações.
— O senhor já ouviu falar em síndrome de Estocolmo, senhor Duncan?
Balanço a cabeça. A necessidade de entender e buscar respostas começa a se manifestar, mas
a minha mente parece um labirinto confuso.
— O que tem a ver?
— A vítima com síndrome de Estocolmo entende que os recursos de sobrevivência básicos
vêm do seu agressor e que ter um comportamento dócil e submisso poderá dar a ela alguma
vantagem mínima. — Me olha nos olhos para transmitir a seriedade do que sai da sua boca. —
Além disso, uma maneira de minimizar os impactos da violência sofrida, é a romantização das
violências. Pense comigo, senhor Duncan, você está preso ao seu abusador. É mais fácil aprender
a amá-lo ou continuar o odiando? O que gasta menos energia em um ambiente onde os recursos
são limitados e escassos?
O impacto é como se o chão tivesse sido subitamente puxado debaixo dos meus pés. Os
meus olhos fitam o vazio por um momento, enquanto a mente corre para assimilar a informação.
Uma mistura tumultuada de emoções começa a se formar: choque, incredulidade, talvez um
toque de desespero.
— Está me dizendo que ela não gosta de mim? Ela só me vê como uma forma de
sobrevivência?
A Dra. faz uma pausa no discurso para oferecer um sorriso compreensivo, ajustando o tom
da voz em uma sensibilidade que combina com as emoções envolvidas.
— Senhor Duncan, como o senhor mesmo frisou, o tratamento de Aleksandryia começou a
um mês e dez dias. O senhor acha que em 40 dias conseguimos curar todos esses estragos que
aconteceram ao longo de toda a vida dela?
Abaixo a cabeça.
— Minha dúvida não é essa. — Minha voz sai baixa, e a melancolia me faz pensar em como
todo esse mês não passou de uma farsa que minha mente fabricou. — É se ela vai ficar bem, se
vai superar esse trauma.
Ela vai conseguir me amar um dia ou vou ser sempre uma cópia dele?
— Cada sobrevivente lida com o abuso de uma forma, não posso te dizer o que ela pode ou
não sentir. Só quem sabe é ela e seus sentimentos devem ser respeitados, validados e priorizados.
Penso no quanto ela sorriu esse final de semana e se divertiu com a minha companhia. Nas
nossas conversas profundas sobre ballet, nela se divertindo fazendo charme para mim com a
espuma no banho, nas noites em que assistimos desenhos da Disney, nos jantares que fizemos
pelo Facetime...
A nossa conexão foi verdadeira. Sem ela, eu com toda a certeza morreria à deriva.
Um suspiro profundo, libertador, emerge do âmago da minha alma, enquanto eu assinto,
com a sensação de leveza se espalhando pelos ombros, dissipando a carga que a tristeza
depositou neles.
— Obrigado, Dra. — Faço um movimento de me levantar.
— Agora eu te pergunto, senhor Duncan. — Seu timbre sai trêmulo, denotando o medo por
me afrontar dessa maneira. — O senhor acha que alguém em uma situação de completa
vulnerabilidade e fragilidade extrema, que não tem estrutura mínima para sentir amor por si
mesma, tem condições psicológicas, de amar outra pessoa? Justo quando essa figura se parece
com a imagem do homem que a abusou por anos?
A raiva pulsa como um fogo pela sua pergunta, queimando dentro de mim todos os
sentimentos bons que me nocauteavam. Cada batida do meu coração ressoa com a intensidade da
sua provocação, de modo que eu fecho os punhos em cima da mesa, frente a frente com ela.
— Você tem coragem. — Meu tom é de ameaça, com as palavras dela ecoando em minha
mente, agindo como um catalisador para a ira que se acumula, enquanto penso no que vou fazer.
Devo ouvi-la e me afastar de Aleks? Ou devo ignorar e assumir o lugar que tanto amei estar?
— Estou dizendo o que é melhor para a sua bailarina, senhor. — Levanta-se e estende as
mãos para um cumprimento pacífico. — Sei que o senhor quer o mesmo para ela, por isso tomei
a liberdade, embora não quisesse, de modo algum, ofendê-lo.
Essas palavras quebram qualquer expectativa violenta que eu tenha a respeito dela, como se
a parte boa dentro de mim, aquela que minha mãe construiu com tanta dificuldade, tentasse me
convencer a ter um pouco de paciência antes de tomar alguma atitude atravessada.
— Vou pensar no seu caso. — Aviso, saindo da sala.
No caminho para o trabalho, logo que me sento no carro e o motorista começa a dirigir,
minha reação mais natural é abrir o celular, acostumado a observar a Aleks.
Ela ainda está dormindo, na mesma posição, mas eu não sou mais o mesmo. Não consigo
fitar a tela e não sentir culpa ao imaginar que o seu Dono também fazia a mesma coisa. Não é
difícil entender o porquê, ela é um espetáculo, só é revoltante.
Fico pensando nela, tão frágil e indefesa, nas garras de alguém que só queria usá-la e vendê-
la, arrancando o melhor dela, a força. O ódio que sinto, sempre que penso nessa figura é
descomunal, e eu checo as investigações, em vão. E, ainda se ele fosse até o apartamento dela,
perto, que seja, eu teria sido informado, mas a planilha está vazia.
Desinstalo o aplicativo das câmeras e tento me concentrar no trabalho, como se tudo não
tivesse mudado em um mês e pouco. Enquanto fiquei em negociações referente ao EuroOásis,
meu irmão cuidou da Duncan e, agora, tem quarenta dias para me atualizar, em um.
É muito difícil me concentrar, habituado a mandar mensagens para Aleks o tempo todo.
Sinto falta dela, de conversar com ela, de receber fotos dela... Fico me perguntando o que ela está
fazendo agora, imaginando-a nas cenas que vi ao longo dos dias. Brincando com os cachorros, as
9h. Dançando, as 10h30. Minha boca fica seca e eu não consigo parar de me mexer, ansioso para
saber o que acontece em seguida, doido para vê-la respirar, existir, viver...
— Você está bem, Dam? — Dylan nota.
Balanço a cabeça, sem saber por onde começar, mas desisto antes de abrir a boca, com medo
de ele pensar que estou louco.
— Estou preocupado com a Aleks.
— O que deu com relação ao Dono dela? Algum sinal?
Faço que não.
— Está sendo difícil.
— A única maneira vai ser ela te contando. — Sorri, como se eu tivesse fodido. — Você já
foi ver ela, desde que chegou?
Checo o relógio.
— Vou hoje a noite.
Bate nos meus ombros.
— Boa sorte para sobreviver até lá.
— Não estou tão desesperado assim...
Ele apenas ri e sai da sala.
Passo o restante do dia oscilando entre o bem e o mal.
Em alguns momentos, me pego pesquisando sobre o transtorno de estresse pós-traumático,
lendo a lista de sintomas e vendo todos os sinais que ela deu para mim, nos pesadelos, ao me
confundir, ao se esquecer de cenas que vivemos...
Em outros, digo a mim mesmo que consigo, que não sou nada do que aquela médica disse,
que nossa relação é saudável, diferente dela com seu Dono. E, embora as reuniões da tarde não
me façam deixar de pensar nela em nem um minuto, resisto a ideia de mandar mensagens ou
reinstalar o aplicativo das câmeras.
Em vez disso, canalizo meus pensamentos sobre o que faremos a noite.
A febre volta a queimar meu corpo. Minha mente me faz passar mal com todas as ideias
sujas do que eu faria com a borboleta russa. Sei que não vai acontecer, mas eu posso imaginar,
não posso?
Não, Damon.
Apenas jantaremos e conversaremos, como pessoas normais, e no dia seguinte volto até a
médica picareta e faço questão de prová-la quão errada ela está, antes de acabar com a sua
existência.
Mas, só a ideia de ficar perto da minha Boneca...
Marco o horário em um restaurante conceituado, para não ficar sozinho com ela, como se
uma parte de mim soubesse exatamente o que aconteceria, se eu ficasse a sós com meu cisne
negro. Tudo o que ela fez na madrugada, a memória da sua bunda, da sua boceta, as poses, o
rebolado e até os gemidos, céus, ela me deixa salivando o dia inteiro, mesmo quando nem tenta.
Delírios e mais delírios...
A cada hora que se passa, fico mais ansioso. Conto os minutos para ir para a casa, me
masturbar como se pudesse aliviar essa necessidade com o nome dela, mesmo sabendo que fiz
isso mais vezes em um mês do que em toda a minha vida e, a vontade por ela só aumenta.
Enquanto tomo um banho, me perfumo e me visto, imaginando-a fazendo o mesmo, mais
excitado.
— Não vai acontecer nada. — Digo para meu reflexo no espelho, fazendo o nó da gravata.
— Ouviu a médica, ela não está bem psicologicamente para isso, ainda.
Minha voz ecoa, lembrando-me que estou sozinho. Não preciso me esforçar tanto com o que
parece, tiro a gravata e abro o último botão da camisa, de um jeito que dá para ver os ossos da
clavícula e o começo dos músculos do peitoral depilado.
Chego no restaurante antes dela, de modo que fico no bar, aguardando-a. Nessa meia-hora,
penso em como fui idiota por não a ter assistido pelas câmeras, durante o dia. Agora, estou com
uma sede muito maior de vê-la, quase como um viciado em abstinência, aguardando sua droga
favorita cruzar a porta.
Sei que é ela antes mesmo dos meus olhos se cruzarem com os dela, apenas pelos múrmuros
que ouço no bar, com a atenção de todos se voltando para a porta.
Seu vestido é preto com babados discretos na saia, curto e tomara-que-caia, dando ao seu
colo, ombros e pescoço o destaque perfeito para o laço grande, rosa-claro, que usa de colar, com
o pingente do meu nome, no meio dele. As pernas estão nuas, sem meia-calça, apenas com uma
bota de salto alto, estruturada, rosa-claro, decorando suas pernas longilíneas até os joelhos.
Aleks também está com um coque, mas não um coque de bailarina, um estruturado como se
tivesse passado a tarde toda prendendo os fios de um jeito único, um a um, com mechas
encaracoladas caindo pelo seu rosto divino, maquiado como se ela fosse uma boneca.
Sinto uma pontada no peito como se eu pudesse morrer de tanto amor, devoção e tesão.
Faço um movimento, chamando a atenção dela, que abaixa estranhamente a cabeça e vem
até mim, com a mini bolsa rosa na frente nas mãos decoradas por luvas rosa, em passos que
paralisam todos os que estão perto, igualmente obcecados.
Meu coração nunca bateu tão forte por alguma coisa.
E seria mais fácil se eu não ficasse tão à sua mercê, se eu não me derretesse com ela tão
próxima a mim, mas nossas peles parecem queimar ao toque e eu estou a um passo de perder o
foco. Não deveria ser assim, ela enfraquecida pelo meu poder e eu me desfazendo a cada
centímetro a menos entre nós, distância essa que é diminuída pela atmosfera densa que nos
entrelaça em desejo e desespero.
— Oi. — Sou eu que toco na pele nua do braço dela, então por que é a minha tez que se
arrepia como se tivesse ganhado um beijo?
Puxo-a na minha direção, levando meus lábios até sua bochecha rosada. Ela fecha os olhos
no mesmo segundo, impedindo contato visual, então eu me afasto e ela abaixa a cabeça, mas
como o funcionário do restaurante vai nos mostrar a nossa mesa, apenas mantenho minhas mãos
nela, guiando-a por entre as cadeiras até o melhor lugar, reservado, com o prazer de mostrar a
todos nesse lugar a minha mulher.
A mesa redonda, a luz de velas, combina com os papéis de parede bordô, enriquecidos com
padrões sutis e detalhes dourados, conferem um toque de luxo e romantismo ao ambiente. Puxo a
cadeira estofada de Aleks e ela se senta, em um silêncio obediente, colocando o guardanapo no
colo enquanto ocupo o outro lugar.
Fito-a com um sorriso bobo estampado no meu rosto, enquanto penso em como ela é ainda
mais linda de perto, distraída, observando o restaurante.
— Gostou do restaurante? — Ela faz que sim, sorrindo com a cabeça baixa.
— Faz muito tempo que você não me leva em um. — Conta, desviando a atenção para a
minha mão na mesa, pondo as dela por cima, resvalando os dedos no relógio de pulso. —
Obrigada, Dono. Eu amei.
Meu sorriso se desfaz, embora eu adore o seu toque. Não é possível que ela esteja me
confundindo tanto assim.
— Aleks? — Ela mexe a cabeça, baixa. — Me olhe.
Ela tenta, levantando a cabeça até a altura dos meus lábios, mas então parece travar, e abaixa
de novo, me assustando.
Levo minhas mãos até o seu queixo, subindo-o a uma altura em que nossos olhares se
cruzariam se ela não abaixasse as pálpebras, permitindo que eu veja a beleza da sua sombra e os
cílios longos e curvados de boneca.
— Abra os olhos. — Ela ri, nervosa. Nega.
Basta fitá-la para saber por que preciso ter paciência: ela é muito valiosa.
— Abra os olhos, amor.
Faz aos poucos, hesitante a medida em que me dá o prazer me encarar suas íris azuis
analisando cada detalhe do meu rosto.
— Damon. — Sorri, alegre.
Meu coração se derrete.
— Você se lembra de mim?
Faz que sim, empolgada, e segura mais forte na minha mão, se inclinando para perto, na
pontinha da cadeira, com uma proximidade que me permite sentir o seu perfume deliciosamente
doce.
— Você é meu Dono. — Acaricia o laço com o pingente que me faz lembrar da madrugada
em que esfregou na sua boceta. Inclino o nariz, só para distinguir o cheiro dele com o do
perfume.
Ela não lavou o pingente. Ela quer me enfeitiçar com o cheiro da sua lubrificação. Meu
Cisne Negro, eu lamberia cada gota, direto da fonte.
— Sou o Jogador que você conheceu em um espetáculo — ela sorri de novo,
verdadeiramente confusa. — A gente passou o Natal juntos, você se lembra?
Seu semblante se acende de um modo que ela se torna ainda mais bonita. Tão linda sorrindo
como se me amasse...
— Os presentes! — Sua alegria é espontânea, e então sobe a mão, acariciando os músculos
no meu braço. — Eu amei os presentes, Damon...
Sorrio de volta, pegando sua mão e levando até a boca.
Nesse momento, o garçom oferece o cardápio de bebidas. Deposito um lento beijo antes de
soltá-la, para eu escolher um vinho, mas ela não sabe escolher sua própria bebida.
— O que você quiser, borboleta.
Aproximo-me dela para explicar cada opção do cardápio, de um modo em que seu corpo se
encaixa, pequeno, no meu, largo, e eu passo os braços em torno dela, apoiando no encosto dela.
Agora, nossos rostos estão lado a lado. Ela sente o meu hálito assim como eu sinto meu olfato ser
inundado por todos os perfumes dela, dos cabelos, das roupas novas, do pescoço, do hálito, e do
pingente...
A ereção me aperta dentro da calça.
— Acho que sua única restrição é o álcool, por causa dos remédios. — Ela me fita
atenciosamente. — Todo o resto você pode escolher. Tem de pêssego, chocolate, morango...
— Eu não sei. — Dá de ombros. — Todos parecem gostosos.
— Então traga todos. — Peço ao garçom.
Ela deita a cabeça no meu corpo, encaixando no meu pescoço, em um sutil gesto de
agradecimento, e eu me sinto no céu, até o garçom voltar. Ofereço minha taça para ela molhar os
lábios.
— Você bebeu na noite de véspera, lembra? — Puxo assunto.
Faz que não, ficando com os lábios roxos. Então segura o canudo da sua soda com um
charme que me faz perder até o rumo, fazendo biquinho para bebê-lo. Céus, vou fazer uma
loucura a qualquer segundo se ela continuar sorrindo linda assim.
— Véspera do quê?
Franzo o cenho.
— A véspera de Natal. Do que você lembra?
Ela só consegue falar dos presentes e de estar no quarto assistindo A dama e o Vagabundo.
A psiquiatra não especificou sobre isso. Aleks tem amnésia? Do que mais ela não lembra? Será
que isso tem a ver com o motivo pelo qual não poder ver sangue? O que mais aconteceu que ela
não se lembra?
Começo a fazer perguntas e ela responde três antes de mudar de assunto, contando sobre
como está melhor com os fouettes, sabendo que esse é o nosso assunto em comum, de modo que
eu relaxo um pouco e curto a noite.
Ela parece bem. Fita-me enquanto fala por nós dois, sobre seus cachorros, seus passos de
dança, a reforma do apartamento e as bonecas de Cartier. Ela dá indiretas também, diz que o
Dono delas as visita todos os dias. Pergunto se ela gostaria das minhas visitas e ela diz que sim,
com as mãos no meu braço, me acariciando.
Mas não dá cinco minutos e ela fica estranha de novo, abaixa a cabeça e reluta a me fitar,
para de falar o meu nome e volta a me chamar de Dono.
— Aleks, me olha... — Imploro pela terceira vez, desistindo.
Desvio o olhar dela para os casais das outras mesas, com suas taças de vinho, a maioria ri à
toa enquanto alguns conversam agradavelmente e outros mantém-se confortáveis com o silêncio
do parceiro. A minha bailarina pede massa com molho branco de champagne e nozes, e eu a
acompanho com fois grás, observando-a em um silêncio preocupado até que Aleks começa a
balançar a cabeça com o jazz que a banda toca ambiente, ao vivo.
— Não sabia que gosta desse ritmo de música. — comento.
Eu posso até ter parado na década em que o jazz tornou-se algo intenso e agitado, porém
Aleksandryia permanece presa em Tchaikowski.
— Também não sabia. — Assume, com a cabeça baixa. — Só tenho permissão de ouvir
música clássica.
Meu queixo cai.
— Seu ex-Dono determinou até uma besteira dessas?
Ela sobe o olhar assustada, confusa, então me vê e sorri mais, lembrando que sou eu. Torna-
se impossível segurar os sentimentos e raciocinar direito diante de um clima tão doce, quente e
inebriante. Ainda mais com meu corpo inteiro gritando um amor inexprimível a ela, que devolve
meros sussurros inaudíveis. Chega a ser injusta a posição em que ela me coloca, fazendo-me
desejar agradá-la e fazê-la sorrir a noite inteira, por toda a vida, se assim eu pudesse.
Começa a tocar uma das minhas músicas favoritas, Sunny, e eu sorrio com a ideia que se
forma. Vou mostrar como sou diferente, tirar esse Dono da cabeça dela. Vou fazê-la gravar como
é bom poder viver além das Regras. Eu me levanto depressa, analisando-a com travessura.
— Damon?
Pego em sua mão e a puxo para meus braços, arrastando-a para o meio do salão, colando
nossos corpos de um jeito que todo mundo fica olhando.
— Já dançou jazz? — Desço as mãos até sua cintura e a seguro firmemente, e ela se
contorce graciosamente, encaixando-se no toque.
— Estou com vergonha. — Reclama, sorrindo tanto quanto eu.
Com nossos olhares magnetizados, presos um no outro, não resisto e canto para ela a letra
que meu peito explode de tanto querer:
— Raio de sol, ontem minha vida foi preenchida com chuva. Raio de sol, que sorriu para
mim e realmente aliviou a dor. Agora, os dias escuros se foram, e os dias brilhantes estão aqui.
— Beijo ternamente sua bochecha em direção à orelha. — Minha Sunny brilha tão sincera, um
tão verdadeiro eu te amo.
Giro-a para longe e a puxo para mim em um súpeto, colocando nossas mãos entrelaçadas em
suas costas. Em um único movimento sensual, ela se desvencilha dos meus encantos e brinca
com seu lindo corpo na melodia, tão intensa quanto Marvin Gaye, ignorando o fato de todos a
fitarem sem ar.
Puxo-a para mim outra vez, impactando nossos corpos. Canto a música:
— Raio de sol, obrigado pela verdade que você me deixou ver. Raio de sol, obrigado pelas
provas de A a Z. Minha vida foi rasgada como areia pelo vento, então uma rocha se formou
quando você segurou minha mão.
Ela espalma as mãos no meu peito e, encarando-me com um brilho no olhar e um sorriso
emocionado, sussurra:
— Obrigada por me mostrar o que significa ser o sol de alguém, Dono. Nunca vou me
esquecer…
Faço carinho em suas bochechas, completamente derretido com a febre com que minha alma
queima pelo nome dela.
— Minha Sunny, obrigado por esse sorriso em seu rosto. — Roubo um beijo rápido.
De repente, o cenário parece ter sido milimetricamente montado e a música escolhida pelos
anjos, pois a letra declarava o que não precisamos cantar um para o outro para saber que
nutrimos exatamente o mesmo sentimento forte demais para expressar em palavras. Um calor no
peito, que sentimos na pele.
Quero tanto de Alex que suspeito que nem mesmo uma vida inteira dela me supriria.
Contudo, não posso agir com pressa ou ansiedade quando ela finalmente parece me ver, muito
menos ultrapassar os limites; não posso contar com sua imprevisibilidade marítima, correndo o
risco de ela recuar e eu morrer à deriva após ter pulado tantas ondas.
— O que eu preciso fazer para mostrar que sou diferente do seu antigo Dono?
Seu olhar brilha e ela sorri, também emocionada diante da aura romântica que nos nocauteia
com um só golpe. Enrosca os braços no meu pescoço e murmura em um tom melancólico.
— Continua o que está fazendo. — soa como súplica. — O problema não é você, eu que não
tenho conserto...
— Odeio quando diz isso, Aleks. Lembra a minha mãe. — Desabafo, apertando-a contra o
meu corpo.
Arregala seus olhos azuis.
— Desculpa. Não queria...
Levo um dedo sutilmente até o seu queixo, acaricio e subo, desenhando cada traço do seu
rosto.
— Não peça desculpa, você é perfeita.
Seus olhos se enchem de lágrimas.
— Eu não sou... — Uma gota cai. — Esse é o problema. Eu não consigo ser. Tento, tento,
tento, mas...
— Talvez não precise tentar, Oceano, porque eu estou aqui, e vou ser seus olhos enquanto
você precisar. — Parece presa nos movimentos dos meus lábios. — E, se você confiar em mim,
essa noite, prometo te mostrar o que é real. — deslizo seus lábios pelos meus, friccionando
nossas bocas. — Porque isso que temos é real. Nós. E eu vou te fazer sentir.
Estamos mais perto agora, de um modo que nossas bocas e nossos olhos são as únicas coisas
que damos a atenção, deixando de fundo o aroma das comidas, a canção da música ambiente e o
calor das velas decorando as mesas.
— O que achou da borboleta que te dei? — abre um sorriso que entrega seu desespero. —
Sabe por que eu te dei, Oceano?
— Foi uma punição, porque não fui obediente. — Dá de ombros de um jeito sensual. — É
que eu não consegui parar... — Aproxima-se mais. — Pensar em você estava muito bom... —
Sua voz, russa, sussurra em meu ouvido: — eu amei a sua foto.
Põe a mão na minha coxa, com um sorriso safado combinando o olhar azul-escuro como o
céu da noite mais pervertida. Quando sussurra com seu rosto próximo ao meu, não sei distinguir
se ouvi algo real ou um delírio.
— Eu queria ver pessoalmente.
CISNE NEGRO

Seu pedido acende partes de mim que eu tentei manter no escuro.


— Tenho uma condição.
— Qual? — Arqueia as sobrancelhas.
— Quem você seria, se você fosse livre?
Aleks ri como se fosse loucura.
— Uma bailarina do Bolshoi?
Sorrio com a ideia, levo o braço até sua cintura e a puxo para perto, colando nossos corpos.
— Essa noite, eu quero que você seja você, não uma Boneca. Quero que faça tudo o que
sempre teve vontade, mas não pôde expressar. Quero que seja a Aleksandryia, uma bailarina
russa, e eu sou só o Damon.
Ela me devolve um olhar safado que me faz perder a razão, e eu levo meus lábios até o seu
ombro desnudo, selando a região com nossos olhares presos, nossos rostos a uma distância
mínima. Como se ela não suportasse as nossas bocas tão próximas, rouba um selinho. A bailarina
não devia ter feito isso.
— Vamos embora, Aleks. — Pego na sua mão, tirando mais dinheiro da carteira do que
necessário para a conta, de gorjeta na mesa.
— E a sobremesa? — pergunta, atrás de mim.
Sorrio para ela, levando o seu corpo para a frente do meu, prendendo a cintura com minhas
duas mãos enquanto provoco no seu ouvido.
— Não seja inocente, cisne negro, você é a minha sobremesa.
A primeira coisa que faço, quando entramos no carro, é fitá-la, de pernas cruzadas e bolsa no
colo, mexendo nos fios de cabelos com as luvas rosas, em uma postura digna de bailarina. Tão
perfeita que me falta o ar.
— Você está bem? — pergunta, como se não estivesse brincando com minha mente de
propósito.
Inclino-me na direção dela, roubando de volta o beijo, mas, no segundo em que toco sua
boca com a minha, sinto despertar todos os impulsos que tentei manter sob controle, como feras
dentro de mim, todas gritando pelo nome dela, e eu a ataco.
Uma mão vai para a sua nuca, prendendo-a a mim, enquanto a outra encaixa na perna dela,
que se abre, sozinha, ao mesmo tempo em que solta um suspiro, entreabrindo seus lábios, me
dando a passagem para deslizar minha língua, que encontra com a sua, degustando uma na outra,
excitando-nos na mesma medida. Abro mais a boca, com vontade de sentir o gosto da sua saliva,
nos meus lábios, com sua língua.
Aprofundo o beijo, indo com meu corpo cada vez mais para cima dela, que praticamente se
deita no banco, apoiando a cabeça no vidro embaçado do carro, enquanto o motorista dirige. Meu
pau está tão duro que nenhum outro sentido além do que envolve essa mulher consegue me
alcançar, me fazendo imaginar que delícia seria levantar as pernas dela e comê-la, aqui, assim.
Paro o beijo só para fitar a minha boneca embalada para presente. Não quero que mais
ninguém veja o corpo dela, ouça os gemidos dela, sonhe com o que vou fazer com ela. Quero
desvendar cada detalhe do seu corpo com calma, quero levar a noite toda fazendo isso, esquecer
quem eu sou e sucumbir ao desejo que sinto dela, incendiar seu corpo com meu toque assim
como ela me queima só de respirar ofegante, para mim.
Selo o beijo, lambendo seus lábios, descendo a boca para o seu queixo em direção ao seu
pescoço, molhando todo o caminho com a minha língua, marcando com meus dentes à medida
que avanço por sua pele arrepiada.
— Eu sonho com você quando estou dormindo... — Chupo seu pescoço. — Eu sonho com
você quando estou acordado... — Volto para a sua boca, a invadindo com violência e desespero.
Chupo sua língua. — Tudo o que faço é pensar em você, garota... — Desço as mãos pelo seu
corpo, ficando mais louco a cada curva que encontro. — E em como eu quero passar a língua em
cada parte desse corpo gostoso. — Lambo sua clavícula e o gosto me deixa ainda mais doente,
me levando até o maldito pingente, passando a língua, fazendo-a rir com o meu desespero, e
volto para a sua boca, prendendo seu lábio inferior com o dente. — Quero te morder inteira.
Quero te chupar toda, quero...
— Está esperando o quê? — sua voz está rouca.
Deito mais o meu corpo nela, de um jeito que ela sente o meu pau na sua cintura, e sorri,
tomando a iniciativa de beijar meus lábios de um jeito barulhento. Seguro as mãos na sua nuca,
prendendo-a, puxando-a, e volto a beijá-la, molhado, bagunçado, estalado, e ela retribui a mesma
ânsia, com nossas respirações se misturando e se intensificando, cada suspiro mais parecido com
gemidos.
O carro estaciona e não nos damos conta, o motor desliga e não conseguimos sair do
emaranhado que nos tornamos, nossos corpos encaixados, presos no calor do banco de trás.
O motorista sente a necessidade de sair do automóvel, deixando-o para nós. Aleks abre as
pernas, me encaixando no meio, mas eu não quero assim. Contra a sua boca, fitando o fundo dos
seus olhos, murmuro:
— Preciso de espaço para te foder de todos os jeitos que eu imaginei.
Ela sorri, mostrando que os pensamentos são mútuos.
É quando saio do carro que percebo o estado em que Aleks me deixou, apenas com beijos.
Minhas pernas tremem tanto que se parecem gelatina, e eu estou arfando como se ela tivesse me
arrancado todo o ar. Minha boca está doendo e a dela também, vermelha ao redor, por causa da
minha barba. Meu pau lateja a cada batida desenfreada do meu coração, e eu faço um movimento
para segurá-la, mas ela desvia.
Sorri, arteira, e dá dois passos à frente, balançando a bolsa rosa.
E, se eu já a venerava mesmo quando tudo o que via era dor e tristeza, quando me fita com
essa vivacidade e usa esse tom de voz divertido, toca em um lugar tão fundo que até eu
desconhecia. Ela quebra meu coração quando chora e nocauteia minha razão quando está brava,
mas quando sorri… tira todo o fôlego dos meus pulmões.
— Você não me pega! — brinca, com sua voz rouca ecoando pelo estacionamento,
intercalando corridinhas com passos longos, até perceber que não vou correr atrás dela.
É mais gostoso assisti-la brincar de me provocar, livre assim, desfilando, balançando a
bunda, sorrindo, alegre e safada. Não preciso correr na direção dela, estamos indo para o mesmo
lugar.
Vou pegá-la no elevador.
Ela entra primeiro, rindo mais por se dar conta do quão encurralada está a cada passo lento
que eu avanço, com a minha calma deixando-a mais histérica, minhas mãos no bolso a fazem
gritar por socorro de um jeito que eu não me surpreenderia se a polícia batesse em nossa porta.
Em seus olhos, é visível a sua curiosidade quanto ao que vou fazer quando pegá-la, e é
exatamente por isso que não faço, com o semblante neutro. Talvez seja uma brincadeira com seu
antigo Dono e eu não quero imitá-lo. Podemos inventar as nossas próprias.
— Espera, espera, espera — suplica entre risos, me vendo entrar, a porta se fechar, e
ficarmos face a face. — É... — Morde os lábios, se perdendo no personagem, então tenta me
beijar, e eu desvio de um jeito que adiciona outro nível de dificuldade ao seu joguinho. — Sabe o
que é, Dono? — deita a cabeça no espelho do elevador, me encarando de um jeito que me deixa
tremulo de vontade de partir para cima dela.
— Me chama só de Damon, lembra? — minha voz sai rouca, pesada de tanto tesão. — O
quê?
Ela gargalha, e é a coisa mais rica que já ouvi na minha vida. Aproxima-se do meu ouvido e
põe a mão na frente, para sussurrar como um segredo.
— Minha calcinha está me incomodando, Damon. — Finge seriedade, escondendo o sorriso
nos lábios fechados.
Sinto que é um erro perguntar.
— Por quê?
Sua boca praticamente toca no lóbulo da minha orelha, de um jeito que vejo, pelo reflexo do
espelho, a curva do seu corpo gostoso.
— Está muito encharcada.
A campainha do elevador toca.
— Chegamos! — tenta se esquivar, prolongando a provocação.
Não permito que se afaste, colocando o braço na frente, prendendo-a entre o meu corpo e o
espelho. Então nossos olhos se encontram outra vez e é como se o desejo fizesse uma corrente
elétrica ao nosso redor, penetrando cada célula com o nome do outro. Aleks morde os lábios
enquanto eu lambo os meus, salivando por ela.
Desvio o olhar das suas íris para o seu corpo, decidindo se vou arrancar esse vestido agora,
mas, se eu ver seu corpo, nossa brincadeira vai escalonar, e ela parece estar se divertindo muito,
com a respiração apressada, os olhos brilhando e os lábios molhados.
As minhas mãos, que estavam no bolso, estão ao lado do meu corpo, de modo que ela só
percebe o movimento que faço quando meus dedos tocam as suas coxas. Aleksandryia arfa com
o calor das minhas palmas subindo pelos seus músculos, ao passo que eu mesmo preciso me
concentrar muito para manter o toque sutil, arrepiante, em vez de pesar minha mão e apertar com
a força que eu desejo usar na hora que eu estiver metendo meu pau nela.
Quando alcanço a sua calcinha, enrosco meu dedo nas tiras finas e a puxo de uma vez,
rasgando-a com toda a facilidade do mundo. A bailarina se encolhe com a natureza violenta do
gesto, mas o sorriso continua no seu rosto, ainda maior.
Subo a calcinha até o meu rosto. É tão minúscula que eu começo a rir também, como se
tivesse ganhado o maior prêmio do mundo. Fecho em minhas mãos, sentindo a região molhada,
fazendo Aleksandryia gargalhar como se tivesse deixado escapar. Levo até o meu rosto,
cheirando o perfume viciante da boceta dela.
— O que está fazendo, Do... Damon? — pergunta, com uma inocência forjada.
Eu não quero mais brincar. Quero jogá-la no sofá e a macetar tanto que vai cansar de revirar
os olhos.
Mas a minha bailarina parece outra, presa dentro do seu país das maravilhas, e eu desejo
surpreendê-la de todas as formas, assim como ela fez comigo, em todos os dias desde que ganhei
o convite para o seu espetáculo.
— Gravando o seu cheiro. — Caminho para fora do elevador e ela me segue, até o
interruptor mais próximo, onde desligo todas as luzes. — Tente se esconder.
Espero ela se afastar, mas não é difícil saber para onde ela foi. Propositalmente, Aleks não
tirou as botas, e os saltos tilintam toda a escadaria, até o segundo andar, e mesmo depois que ela
se esconde, os seus cachorros me mostram atrás de qual porta ela está, no quarto principal.
Finjo que estou a procurando ao entrar no quarto e passear por todos os cantos do cômodo,
menos perto da porta. Ela começa a arfar alto, como se quisesse me dizer o quanto está ansiosa
por mim.
— Eu vou te pegar...
Fecho a porta antes de ligar a luz, e agora sinto sua respiração perto. Decido dar mais do que
ela gosta. Surpreendo-a. Seguro-a e puxo-a para mim, tateando seu corpo ao mesmo tempo, em
que procuro sua boca com a minha.
Nossos corpos se chocam com o impacto e, no instante em que ela abre a boca, sedenta para
dizer algo e continuar o joguinho com a ferocidade da sua língua afiada, vou com a minha. Calo-
a com um beijo, adentrando forte e pungente, demonstrando que eu também sei derramar todo o
meu tesão, esbarrando nossos corpos até achar a luz.
Fito-a por breves instantes. É agora. Ela vai ser minha.
— Olha bem para mim. — Ordeno. — Eu sou o Damon, e você é a minha bailarina. — Dói
ser tão firme, mas preciso. — Se você miar, eu vou parar, tudo bem?
A bailarina parece desconcertada com a calma em minha voz, com os lábios entreabertos, o
peito subindo e descendo rápido, o coque bagunçando e o olhar excitado.
— Não quero que pare.
Não resisto e a invado com um beijo molhado, guiando nossos corpos até a cama, mas
apenas eu me sento, na ponta dela. Aleks fica em pé, na minha frente, enquanto eu deslizo as
mãos pelo seu corpo em busca da abertura do vestido. Está nas costas.
— Vira.
Antes de abrir o zíper e deixar a peça cair inteira no chão, levanto a saia só para brincar com
a visão proibida da sua bunda sem a calcinha, provocando e passando a mão. Que delícia. Então
tiro o seu vestido, com meu pau doendo só de ver seu corpo, depois de namorá-lo a distância em
todos os banhos de Aleks. Deslizo as mãos pela sua espinha dorsal, conhecendo cada pintinha
que decora a pele branca, as covinhas no quadril e, finalmente, sua bunda.
Seguro seu quadril e trago sua bunda para minha boca, mordendo, lambendo e beijando cada
centímetro, ao mesmo tempo em que afundo as minhas mãos, apertando-as e as abrindo, ficando
ainda mais louco com a vista, o calor da sua pele, o perfume do seu corpo, a maciez...
Vejo um movimento no meio das suas pernas e desço o olhar, encontrando a mão dela na
sua boceta.
Aleksandryia está se masturbando.
Prendo meus dedos em seus quadris e a viro-a de uma vez, ficando cara a cara com seus
peitos, subindo minha mão pela sua cintura fina, observando as pintas, o desenho perfeito dos
músculos da sua barriga, branquinha. Levo os dedos até seus mamilos, lembrando do strip-tease,
quando os vi pela primeira vez. Seios pequenos, empinados, com o bico no tamanho perfeito. É
um prazer senti-los com a língua.
— Ahhh... — Ela geme e eu o mordisco levemente antes de chupá-lo como se pudesse
engoli-lo, abocanhando metade do peito, enquanto esfrego o outro com o polegar, e então troco o
lado, sugando o outro enquanto massageio o molhado de saliva com meus dedos. — Por favor...
— começa a implorar, mas estou muito longe de matar toda a vontade que tenho deles, mamando
de um jeito que minha barba esfrega na sua pele sensível. — Dono...
Estou muito concentrado no seu corpo, com a boca ocupada, levando minhas duas mãos até
sua bunda, apertando-as a cada impulso que meu corpo dá. Noto suas mãos navegarem da sua
barriga em direção a própria boceta, movendo-as em vai e vens que a fazem dançar mais na
minha boca, me deixando mais louco de tesão.
Seguro o seu pulso, tirando o seu toque da região e encontrando seus dedos completamente
molhados e melados. Fito-a, de baixo para cima, com minha pálpebra pesada, e ela arfando, com
o mesmo olhar safado.
— O que isso significa, cisne negro? — minha voz sai com dificuldade.
— Não estou mais aguentando... — solta, trêmula e rouca.
Mantendo nossos olhares presos, levo os seus dedos até a minha boca, sugando-os,
chupando-os e gemendo de prazer com o gosto dela enquanto ela sorri, à beira da loucura.
— Vai ter que aguentar. — Com a sua mão, faço devagar o caminho da sua barriga até a
região molhada. — Eu ainda nem cheguei na minha parte favorita. — Sorrio, deslizando os
nossos dedos pelo seu clitóris inchado, fazendo suas pernas bambearem com o nosso toque
conjunto.
Esfrego seu clitóris e ela tomba a cabeça para trás, em um gemido vindo da alma, abrindo a
perna em um cambré, para eu ir mais fundo, mas continuo no clitóris, sem desviar o olhar do
rosto dela porque se ver a sua boceta, o feitiço vai se voltar contra mim, e eu quero que ela nunca
se esqueça.
Ela nunca mais pensar que houve outro.
— Ah, ah...
— Eu gostaria que você lembrasse da nossa primeira noite, Aleks, porque eu gozei rápido
demais. — Meus movimentos circulares alternam de velocidade, guiados pelos sons dela. —
Gozei na sua cara. E precisamos equilibrar os pontos, não acha?
— O que significa...?
Afundo a cara na sua boceta, ao mesmo tempo em que manobro uma das pernas dela,
posicionando nas minhas costas, me dando abertura para colocar cada detalhe da sua carne na
boca, com sua lubrificação escorrendo na minha língua. Minha borboleta russa inclina a pelve
para frente, desesperada para ser abocanhada, como se meus lábios fossem tudo o que precisasse
para se contrair inteira, em um arquejo longo, com um gemido que me tira da atmosfera, e agora
eu quero ficar surdo de tanto ouvi-la repetir esse grito.
Afasto-me, subindo beijos, limpando minha barba no seu corpo, até ficar em pé. Aleks está
ainda mais sorridente depois do seu orgasmo, e me assiste em silêncio desabotoar a camisa. Seus
lábios se entreabrem quando ela percorre os olhos pelo meu peitoral e abdômen, mas não perde a
pose.
Até eu desafivelar o cinto, abrir o zíper da calça e ficar só de cueca.
— Tem mais? — sua pergunta é tão sincera que eu rio.
— Olha o meu estado, amor... — Seguro no meu pau. — Eu nem comecei.
A Boneca-russa faz um movimento de se ajoelhar e eu a impeço com o gesto, a proibindo de
chegar com a boca perto.
— Boa tentativa, mas não vou cair no seu truque de novo. — Ela fica na minha frente e eu
estalo um tapa na sua bunda, apontando para a cama. — Pode escolher a posição.
Ela não vai para a cama, escolhe o chão.
Aleks mantém a perna esquerda apoiada no chão, na ponta do pé, e joga o corpo todo para
frente, com as mãos dando o suporte para erguer a perna direita, abrindo um grand ecarte. A
posição é impecável, lindíssima, e, à medida que me aproximo, com um ângulo deslumbrante da
sua boceta, penso que nunca transei de verdade. Nada perto disso, nada como o que vou fazer
hoje.
Desço com boca mais uma vez, sem me conter, segurando firmes em seu quadril para que
ela não caia com as investidas esfomeadas da minha boca. Meu pau lateja outra vez, pedindo
para entrar, então afasto, fico em pé e o posiciono. Prendo a respiração, esfregando-o nas suas
carnes, molhando-o enquanto curto cada segundo disso antes de afundá-lo em Aleks, com
cuidado e atento a qualquer sinal de desconforto na minha garota, que mantém a pose.
— Você é tão gostosa, amor… — Deslizo os dedos pela sua bunda, enquanto a sensação de
penetrá-la, molhada e quente, me devasta com a visão dos deuses que é o meu pau entrando e
saindo da sua boceta, penetrando e brincando com meus dedos, atrás.
Ela volta a gemer. No início é silenciosa, bem diferente dos suspiros que dou tentando
segurar o orgasmo, alto e sofrido. Também controlo os movimentos. É uma delícia fodê-la
depressa, com o som dos nossos corpos batendo, nossos sexos molhados, e os gemidos arfados
dela, quase gozo duas vezes e preciso tirar para não correr o risco.
— Não para, Dono… — choraminga com uma voz diferente, bêbada de tanto tesão ao ponto
de não conseguir raciocinar. — Continua.
Estalo um tapa forte na sua bunda.
— É Damon.
Sinto a sua boceta se contrair, me apertar e me lambuzar. Deslizo os dedos para sua boceta,
até o seu clitóris, esfregando-o enquanto a penetro com força e ela luta com o próprio corpo para
não se contorcer e continuar na pose, equilibrando no seu próprio clímax, em arquejos longos e
deliciosos.
— Damon... Ah!
Fico mais excitado quando sinto a sua sensibilidade me apertar. Vou devagar e
profundamente, e, sem tantos barulhos para me distrair, me sinto mergulhado no corpo dela,
ficando ainda mais louco de desejo à medida que assisto a lubrificação que molha minhas bolas,
escorrer pelas suas pernas, pingando em nossos pés.
No começo, tento me segurar, tento pensar em coisas ruins e a voz da médica surge na
minha mente, mas não demora até que meus instintos convençam cada célula do meu corpo a se
soltar, a relaxar, e a se perder no corpo da minha gostosa, no cheiro de sexo e no meu pau,
estimulado cada vez que eu o tiro quase todo e penetro de volta, até a base, batendo nossos
corpos de um jeito que ela perde o ar.
— Ahhhh! — aperto a bunda dela, mordendo a sua perna enquanto assisto o meu pau
inundar a boceta dela com a minha porra.
É a coisa mais gostosa que eu já vi.
Não entendo as ordens que minha excitação me dá, de continuar metendo, só para ver a
porra escorrer no meu pau, deixando o sexo ainda mais molhado, grudento e barulhento, e eu
fico com ainda mais tesão, com a sensibilidade intensificando as sensações que me invadem,
dominando minha mente com a voz, o cheiro e o corpo dela.
Ela começa a miar.
Saio de dentro dela, mas o impulso de fodê-la me deixa com ainda mais sede, ao ponto de
que é impossível parar, de modo que eu a ajudo a levantar com uma mão e trago sua boca para a
minha com a outra, prensando-a contra a parede. Ela não vai me confundir me fitando.
Quando meu olhar alcança o seu, afogo-me em tanto azul.
— Meu tesão por você não acaba, meu amor. — Murmuro contra os seus lábios. — O que
eu faço?
Sorri com os lábios inchados.
— Me fode mais. — Levanta a perna em um cambre, enquanto eu coloco o meu pau nela,
adentrando com um movimento que a faz arquejar. — Eu sou sua.
É o que faço, por mais tempo do que consigo contar, com nossos corpos parando o tempo,
nos tornando muito mais do que toques físicos, mais do que se pode descrever. Etéreo. Entrego-
me para que ela libere todo ardor que prendeu em si, surpreendendo-me com a intensidade
estonteante que dispara meu coração e me faz perder completamente os sentidos e trazer algo
visceral à tona — beijos, sugadas, mordidas…
Gosto de como nossos rostos estão próximos, com nossos narizes se encostando, nossos
lábios se beijando e mordiscando o do outro entre os gemidos e as provocações que cuspo na
boca dela.
— Você é, para sempre, minha. — Meto rápido, com os gemidos dela ecoando pelo quarto.
— Seu corpo é meu, sua boceta é só minha… — Sinto suas estruturas se contorcerem, arrastando
as minhas para a mesma correnteza. — Me olha, Aleks. — Não há azul nas suas íris, apenas a
escuridão de prazer que circunda a minha, anunciando outro orgasmo. — Goza o meu nome,
amor. — Soco mais forte e mais fundo, fazendo seus olhos revirarem. — Grita o meu nome.
— Damon…— Sinto toda a força do seu corpo se alojar na sua boceta, apertando o meu pau
de um jeito tão gostoso que eu também estremeço, aliviando a pressão em um jato. — Ah!
Damon! — Grita, sentindo meu pau inundá-la, enquanto perdemos a força juntos, segurando no
corpo do outro para não cair.
PRESENTE DO REI

Ela enrosca os seus braços no meu pescoço, trêmula demais para manter o cambré. Minha
boca ainda está na sua, e nós movemos nossas línguas cansadas, estalando nossas mandíbulas
com toda a vontade que evoca de dentro da minha alma.
— Não sabia que meu corpo era capaz de explodir de prazer tantas vezes seguidas...
Eu também não.
É como se, de alguma forma mística, conhecêssemos cada segredo no corpo do outro, como
se fôssemos feitos para esse amor.
— Cansei você? — provoco.
Depois de outro orgasmo, sinto minhas estruturas se dissolvem, e penso que é impossível as
terminações nervosas de Aleks transformarem esse sentimento em eletricidade pura outra vez,
então aperto a sua bunda e ela está pronta para outra, de novo e de novo.
— Não o suficiente.
Respondo atacando sua boca, impedindo que fale ou pense em qualquer outra coisa senão na
pressão que eu faço contra seu corpo, colando suas costas na parede, fazendo-a arfar. Deslizo a
língua por seus lábios, sugando todo o doce sabor que Aleks exala em beleza e prazer. Desço as
mãos até suas coxas e a ergo, no meu colo, ao mesmo tempo em que entrelaça suas pernas em
torno da minha cintura, com nossos sexos encaixados, fechando os braços em torno do meu
pescoço, apertando contra si na mesma intensidade. Levo-a até a cama, onde a deito, enquanto
nossas respirações entrecortadas soam como uma poderosa canção que suspira por mais fôlego.
Nossas íris se encontram; a obscuridade presente em nossos tons adquire forma e potência.
De repente, eu não preciso de luas que guiem meu caminho nas madrugadas gélidas ou de
estrelas que tornem as noites de verão quentes, só preciso dela. Não pode ser normal sentir algo
tão poderoso assim.
No segundo seguinte, Aleks me beija como se estivesse tentando me convencer a nunca a
deixar. Seu corpo parece saber exatamente o que fazer, tudo o que faço é assistir que seus
instintos a guiem, subindo em mim com as pernas bambas, lambuzando minha barriga com sua
boceta pingando, pronta para me satisfazer pelo resto da noite, me fazendo gravar a sensação do
seu corpo deslizando em cima do meu, assim como ainda sinto o meu pau dentro dela, mesmo
quando apenas se esfrega em mim.
Põe as duas mãos no meu peito para empinar a bunda de um jeito tão sexy que meu pau
reage, com o prazer despertando os meus sentidos exaustos. Seus peitos apontam na minha
direção, apertados pela maneira como ela está com os ombros juntos, dando foco para a curva do
quadril, maior com as pernas uma de cada lado.
Seu penteado é ainda mais bonito, bagunçado desse jeito, e a maquiagem borrada pelas
lágrimas que escaparam dos orgasmos e das estocadas, me deixa excitado pra caralho. Levo
minhas mãos até a sua cintura, acariciando seu corpo com adoração, enquanto o impulso de
movê-la para frente e para trás, traz de volta a força dos meus braços.
A cavalgada começa lenta e silenciosa, mais para Aleks do que para mim. É ela quem fecha
os olhos e põe charme nos movimentos, dançando no meu pau, totalmente entregue aos instintos
do seu corpo, me seduzindo de um jeito que meu membro corresponde, mais duro a cada vai e
vem em que ela entrega toda a energia sexual que prende dentro de si.
Morde os lábios, rebolando mais forte, intensificando a fricção molhada nos nossos corpos a
cada onda de prazer que inunda o meu pau, com uma intensidade estonteante que dispara meu
coração.
Encaixamos nossos corpos em uma nova dinâmica. Ela sobe até minha glande, e eu a desço
mais forte com as mãos fechando sua cintura, batendo nossos corpos, e Aleks arqueja,
empinando a bunda de um jeito em que eu deslizo até suas nádegas, aperto-as e estalo um tapa
que a faz pular, descendo com força, e ela choraminga de prazer, mexendo o quadril em
rebolados rápidos.
— Eu adoro quando dança no meu pau, amor... — Gemo, sem tirar os olhos do corpo dela,
seus peitos balançando e o sorriso lindo que seu rosto me dá, me fitando com os olhos azuis-
escuros.
— E eu adoro dançar em você, amor...
Subo os dedos até sua nuca, trazendo sua boca para a minha, com avidez e desespero. Tento
beijá-la e ela recua, me provocando, então me atraco aos seus peitos, mamando nos bicos. Com a
mão na cintura, deposito mais força, penetrando-a com uma profundidade que a faz se arrepender
de fugir da minha boca, porque é ela quem me atraca em um beijo díspar de tudo o que já
experimentei. Forte a ponto de cortar meus lábios, com uma intensidade que leva embora todos
os meus sentidos, deixando apenas uma sede insaciável, e eu enfio minha língua mais fundo,
com nossos gostos se misturando na saliva do corpo, enquanto os barulhos dos nossos corpos se
intensificam e o tesão fica mais forte e frenético até que ela solta um gemido longo entre os meus
lábios, me fazendo derramar junto em outro gozo.
Permanecemos algum tempo com nossos lábios colados, enquanto eu recupero a força
mínima para prender o toque na sua cintura e a puxar, a derrubando com um movimento
brincalhão e impensado, ao mesmo tempo em que encaixo o seu corpo no meu, como se pudesse
protegê-la com a minha concha maior, prendendo minhas pernas com as suas, fazendo meu braço
de meu travesseiro, minha pelve colada na sua bunda vermelha de tanto apanhar.
Aleks me fita tão perplexa que fico com medo de perguntar.
— O que foi? — O calor do meu hálito toca a sua nuca de um jeito que ela se encolhe,
sorridente. — Não vai me dizer que seu antigo Dono não se deitava com você. — Desafio,
deixando escapar os resquícios do nojo do maldito.
Aleks suspira de um modo que não sei se é muito cansaço físico ou mental, para pensar no
assunto. Então desvia o olhar para o emaranhado que nos tornamos, e se encaixa mais, meio
triste, perdida. Entrelaço minha mão a sua e ela se sente confortável para contar.
— Tinha uma Dama que se deitava com ele. — Aperta minha mão como se quisesse ter
força para o momento, fechando os olhos para gravar a delícia que é a junção dos nossos cheiros.
— Eu dormia na caminha de gato.
Abraço-a mais forte, como se pudesse fazê-la se esquecer de todas as merdas que seu antigo
Dono a fez passar, enquanto penso em como gostaria de descobrir quem é o filho da puta. Beijo
seus cabelos bagunçados no que restou do coque, e começo a acariciar todas as curvas do seu
corpo, do côncavo da cintura ao revelo dos ossos do quadril e as coxas, como se estivesse
brincando de carrinho com os dedos.
— Como era essa mulher? — pergunto, como se não tivesse nenhuma pretensão. — Você
lembra?
— Eu não tinha permissão de ver o rosto. — Sua voz está rouca e cansada, se agarrando a
pronúncia russa, me deixando ainda mais apaixonado a cada palavra que eu demoro para
entender. — As mãos dela... — me fita, por cima dos ombros. — Eram completamente
queimadas.
A incredulidade domina meus pensamentos, e por um momento, sinto como se o tempo
tivesse congelado. A cor desaparece do meu rosto, tornando minha barba castanha mais escura
do que é, e ela se inclina para passar as mãos pela pele, notando esse detalhe.
— Dono? — demonstra preocupação.
Todos os Sangue em Ascensão a conhecem.
A mulher que Aleks está se referindo é a Dama mais forte do Jogo, Madeleine Kühn, a mãe
de Cherrie. Uma onda de choque percorre meu corpo ao perceber a verdade. A bailarina era
escrava de George Young.
O homem que a dilacerou foi o Rei do Tabuleiro.
— Você a conhece?
— Não se preocupe, Oceano. — Beijo sua mão.
— Mas você parece preocupado.
Tento responder algo, abalado demais para pensar em qualquer coisa, e faço a única coisa
que desejo. Abraço-a, deliciando-me com a sensação de tê-la, depositando em meus braços todo
o consolo que eu gostaria de expor com a informação que ela não pode saber, enquanto assimilo
tudo o que isso significa.
Não é razoável a proporção que Aleksandryia toma dentro do meu peito, não é legítimo
gostar tanto do que temos, e, acima de tudo, não é justo termos algo tão poderoso e raro, tão
frágil — sempre a um fio de quebrar em meio aos nossos cacos.
— Não importa, minha bailarina.
Ainda assim... É impossível olharem seus olhos azuis e não enxergar muito além do que vi
até então, e amá-la.
— Você é minha agora. — friso.
Como se pudesse provar isso a mim mesmo, deslizo as mãos pelo seu corpo, gravando cada
detalhe, até chegar nas suas coxas e encontrar tudo melado pelas nossas gozadas. Só então me
dou conta de que esqueci a camisinha.
— Acho que precisamos de pílula do dia seguinte.
Não que eu fizesse questão, mas, nesse momento, a ideia de um filho com Aleks parece
impossível e insana. Novamente a voz da psiquiatra martela a minha consciência, com
pensamentos sobre como não deveríamos estar aqui, assim. Então a informação sobre ela ter sido
de George me ataca com violência, e eu volto a tremer de ódio. Não sei o que vai ser de nós.
— Não posso ter bebê. — Revela, com melancolia. — É a endometriose, meu outro Dono
nunca usou preservativo comigo.
Acho que eu deveria perguntar se tem tratamento ou qualquer outra coisa, mas não consigo
pensar na ideia agora, então apenas puxo os edredons, nos cobrindo, a aninhando, enquanto
desejo ter para sempre o seu corpo colado ao meu. Acho que estou com medo de perder minha
borboleta russa.
Ela parece adivinhar os meus pensamentos.
— Damon? — fito-a, tentando disfarçar minhas preocupações. — Promete que vou ser para
sempre sua?
— Você já é, eu prometo. — Selo seus lábios, com os meus frios de preocupação. — Ainda
tem dúvida, bailarina?
Ela, com toda a sua sensibilidade, parece estar na mesma frequência que a minha, e fala em
voz alta os meus medos.
— Não quero voltar para o meu antigo Dono. — Pede-me, encostando a cabeça no meu
peito. — Quero ser a sua Boneca. — Encaixa seu corpo quente no meu. — Quero que repitamos
para sempre o que fizemos hoje. Quero você.
Meu coração se derrete.
— Consegue ver a diferença entre mim e ele, agora?
Faz que sim.
— Ele gostava de ver chorar, você gosta de me ver sorrindo. Eu acho.
Sua frase faz ainda mais sentido se eu lembrar dos boatos que dizem sobre George. Ele é
sádico. Abraço-a mais forte.
— Mas eu errei com você, Aleks. — Admito, por mais que eu odeie concordar com a
médica. — Eu estava te sufocando, a gente precisa ir com calma.
Os olhares se cruzam por um breve instante, e um sorriso terno se forma nos lábios dela.
Aconchego-me mais perto, e minha outra mão encontra o caminho até sua nuca, onde os dedos
brincam com os cabelos, criando uma sensação reconfortante.
— Não quero que nada mude. — Seu timbre é quase uma forma de tentar me convencer,
sensual e genioso, como o meu cisne negro.
Observo seus olhos enquanto a minha mão se move em círculos reconfortantes em sua pele,
criando uma conexão silenciosa.
— Isso não é saudável, Oceano. — Acompanho a curva delicada do seu rosto, e meu polegar
traça padrões suaves sobre sua pele. — Como você disse, eu quero você sorrindo, bem. Livre.
Não suporto a ideia de te fazer sofrer.
Penso no meu pai e na minha mãe, compreendendo-os de um jeito que dói na minha alma.
Papai achou que tê-la por perto seria melhor, e isso acabou com a alma dela.
— Eu estou sorrindo agora, não estou?
Não é fácil tentar convencê-la de algo que nem eu acredito, então desisto, pego em uma
mecha de cabelo solta enquanto a assisto fechar os olhos até pegar no sono, com algo maior que
a exaustão pesando o meu corpo. E, por mais que eu não queira sair de perto dela, afasto-me
delicadamente, levanto, visto a cueca, e pego o celular, em direção a porta.
Assim que a abro, os três cavaliers, que estavam dormindo à espera da dona, invadem o
quarto, o casal subindo na cama para cheirá-la e beijá-la.
— Aonde vai? — Indaga, despertando assustada.
Volto, pego a filhote e a ponho na cama.
— Atender uma ligação.
Segura a minha mão com a sua.
— Não me deixa sozinha aqui. — Pede, chorosa.
O trauma da cama...
Sinto o calor subir pelo meu corpo, uma sensação intensa que começa no peito e se espalha
como fogo. Minhas mãos tremem e os músculos se contraem involuntariamente. Uma onda de
raiva, crua e poderosa, toma conta de mim a medida em que lembro de tudo o que o Rei fez com
ela.
Espero Aleks dormir, dessa vez abraçada a Meldora, vou até o corredor e deixo a porta
entreaberta, para observá-la, enquanto ligo para Cartier, andando de um lado para o outro.
Eu não posso fazer nada contra o Rei, porque, se eu fizer, o Jogo acaba e, por mais que eu
goste da ideia de afundar algo perverso como o que faziam com Aleks, e foder esses Jogadores
malditos que a usavam, o Jogo também é a minha casa, é tudo o que eu sou.
Mas também, se o Rei cai, o tabuleiro quebra, e as Peças caem.
Eu, a Torre, Cartier, o Bispo. Meu irmão, Peão, Cherrie, Zaki. Meus tios, meus avós. Aleks e
as outras Bonecas, os Coroados...
E, se as Peças caem, nossas empresas quebram, e se nossas empresas quebram, a economia
mundial entra em colapso, em um espiral onde mais e mais pessoas sofrem, e meu problema com
o Iraque vai parecer bem pequeno.
— São três da manhã... — Cartier atende.
— Descobri quem é o filho da puta.
— Quem? — sua voz está grogue de sono.
— Quem é o maior filho da puta?
Cartier fica em silêncio para xingar baixo.
— Porra, não!
É como se uma tempestade escura se formasse dentro de mim, obscurecendo qualquer traço
de serenidade.
— Ela disse que o cara sempre estava com uma mulher que tem as mãos queimadas. —
Repasso a informação com o timbre baixo. — Conhece alguém assim na sua família?
— Tia Mad... — Tudo ressoa como um eco irritante na minha mente.
— Como vou foder o Rei do tabuleiro?
— Cala a boca! — me corta com uma seriedade profunda. — Nunca mais repita uma merda
dessas, entendeu?
A respiração fica mais curta, e sinto a tensão nos músculos do rosto.
— Mas é o que eu quero fazer, Cartier! Ele violentou a minha Aleks, ele fodeu a cabeça
dela. Não posso simplesmente ficar quieto e aceitar...
— Ele fode com a cabeça de todo mundo, ele pode, ele é intocável!
— Me ajuda a pensar em uma forma...
Cartier respira tão ruidosamente que me calo.
— Esquece a vingança, foca na sobrevivência dela. O que é mais importante para você? —
enfatiza com o silêncio que faço. — Coloca essa garota em um avião e manda ela de volta para a
Rússia!
— Eu não vou fazer isso! — Grito com tanta indignação que Aleks se mexe na cama.
— Você vai! — devolve no mesmo segundo.
— Não!
Inspira lentamente.
— Damon...
— Não!
— Você vai perder sua bonequinha!
— O Rei me deu ela! — lembro, atropelado. — Ela está com o pingente que o Rei me deu
de aniversário.
— Qual a chance de ele ver ela nos seus braços e querer de volta? — fico em silêncio. — E
outra, por que no dia que você falou dela, ele disse que ela não estava no catálogo e ficou
confuso?
Lembro do Rei citando o nome Zoya, não Aleks, na minha festa surpresa. Ignoro esse
detalhe.
— Ele me deu ela de presente. — Foco nos fatos. — Ele não volta atrás.
Cartier solta mais palavrões em alemão.
— Tem alguma coisa errada nessa história, Damon! Será que você não está vendo?
— Damon? — Aleks chora, se levantando da cama.
— Estou aqui, Oceano. — Entro no quarto, acalmando-a.
— Oceano, Damon? — Cartier ri do tom amoroso. — Você está muito fodido. Muito
ferrado e nem eu nem ninguém vai conseguir te ajudar.
— Cartier, vou ter que desligar.
— Você vai perder ela, Damon.
— Obrigada por me fazer passar raiva.
Desligo a chamada, voltando para a cama. Aleks levanta o edredom para me convidar,
enquanto me encaixo no corpo da minha bailarina e a beijo mais, disputando a atenção com a
filhotinha nos braços dela. Fitamo-nos na meia-luz do ambiente em plena madrugada, e ela faz
carinho no meu rosto, como se quisesse gravar cada traço.
— Lembra a borboleta que eu te dei?
Os dedos dela deslizam gentilmente sobre os meus, e nossas mãos se entrelaçam de forma
tensa.
— O que tem ela?
Estamos envoltos pelo calor dos lençóis, aconchegados, com nossos corpos se entrelaçando
naturalmente.
— Eu queria você parasse de sentir medo da liberdade, por isso te dei a borboleta.
Ela pensa por um pouco, então se encaixa no travesseiro, sonolenta.
— Não gosto dessa ideia.
Começo a acariciar seus cabelos, apreciando a sensação reconfortante que cada movimento
proporciona. Seus olhos se fecham lentamente, como se a carícia despertasse uma paz interior.
— Por quê?
Ela pega os meus braços e os abraça.
— Porque, se eu fosse livre, não estaria aqui.
CONQUISTA

Eu sempre fui dedicado.


Na escola, eu sempre consegui as notas mais altas, para mim e para o meu irmão, mesmo
que isso significasse fazer duas redações e sempre encontrar um jeito de passar as respostas para
Dylan, do outro lado da sala.
No ballet, eu conseguia ficar em ponta alta mesmo que não fosse exigido para garotos. No
hipismo, consegui ser escalado para a Kentucky Derby, a maior corrida de cavalos do mundo,
com quatorze anos, e apenas não venci porque tive uma crise de pânico e não entrei com o
cavalo.
Na faculdade de administração, fui o orador da turma, e na de direito, me formei com honra,
e estou no processo de sucessão da empresa. Cheguei na posição mais alta do Jogo aos vinte e
cinco anos.
É o que estou tentando dizer. Sou dedicado às coisas.
Mas nada, no mundo, se compara ao quanto estou me dedicando à minha Borboleta Russa.
Não que seja difícil agradá-la. Dei a ela uma estante de livros em russo, e ela ficou satisfeita
apenas com os quatro volumes da Jane Austen. Agora, quando ligo a câmera e ela não está
ocupada nas suas aulas particulares, ou no ballet, ou com seus cachorros, ou viciada na TV, está
com Persuasão na mão. Isso também ditou seu gosto para filmes e séries. Ou são desenhos da
Disney, ou são romances de época. Existe pessoa mais fofa do que a minha Aleks?
Mas também me sinto em débito. Parece que não há nada que eu possa fazer para que a
mereça o suficiente. Como vou convencê-la que seu lugar é comigo? Me assombra a ideia dela
me aceitar apenas porque sou uma sombra do filho da puta do George. Meu coração arde com a
ideia.
E eu quero provar que sou diferente, até ela se esquecer de todas as coisas terríveis que o
desgraçado fez com ela.
Por isso, uma das coisas que faço, depois do trabalho, é passar na melhor floricultura da
cidade, e escolho as melhores rosas, brancas e delicadas como a minha borboleta russa. Quando
chego, ela está me esperando em frente a porta.
É tentador. Aleks está cheirosa, linda, com lacinhos de seda nos cabelos castanhos escuros,
robe de frufrus e lingerie combinando, tudo ajustado milimetricamente em seu delicioso corpo.
Minha respiração falha, a boca enche d’agua e meu coração bombeia todo o sangue para um
único lugar, que pulsa dentro da calça. Nunca desejei nada como a desejo, ao ponto de ser
doloroso. Quero com todas as minhas células repetir o que fizemos há uma semana, ter o corpo
dela para mim, beijá-lo, tocá-lo, a ideia me enlouquece, mas estou pensando no que é melhor
para a minha bailarina.
No dia seguinte após nossa primeira vez, voltei na Dra. Lauren, me rendendo, e a psiquiatra
me explicou muitas coisas sobre Aleks, como o fato de que ela era vítima de love bombing.
Basicamente, Aleks era privada de muitas necessidades básicas, e uma delas era a interação
social. Isso a tornava suscetível a manipulação, somada ao bombardeio de dopamina que ele a
ministrava, para mantê-la na corda bomba da obediência, quando ela começava a dar pequenos
sinais de que iria reagir aos abusos.
Isso significa que, se eu não quero confundi-la com o Dono e bagunçar sua mente, é melhor
ir com calma na hora do sexo.
— Bem-vindo, Dono.
Fecho a porta lentamente, respirando fundo. Adoraria puxá-la para um abraço e afundar meu
nariz em seus cabelos, beijá-la e contar no seu ouvido quantas vezes pensei nela, mas não posso.
Se eu premiar o comportamento de Aleks, ela vai continuar agindo como um pet, e vai
continua me enxergando como Dono.
— Não precisa me esperar, Oceano — explico com cuidado, me virando. — Trouxe para
você.
Aleks ainda não sabe muito bem como reagir espontaneamente, como se uma parte dela
precisasse de comandos. É como assisti-la se redescobrir, e fico ainda mais apaixonado por
presenciar cada pequeno avanço.
— Eu gosto de te esperar, Dono. — Segura o buquê maior que ela. — Obrigada. Eu amo as
flores.
Talvez eu ainda esteja a premiando quando dou as flores. Sinto uma vontade de desistir de
tudo, jogá-la no sofá e fazer do corpo dela a minha recreação dessa sexta a noite.
Tento cobrir meu volume com o casaco.
— Por que você não faz uma coisa diferente nesse horário? — pergunto enquanto ela coloca
as flores no vaso que eu dei. — Você pode... — desvio o olhar pelo ambiente, a procura de algo
interessante o bastante, e vejo o livro na poltrona. — Ler?
— Eu leio após o almoço.
— Dançar? — coço a nuca.
— Faço ballet a manhã toda, você vê pelas câmeras — me fita desconcertada. — Não quer
que eu te espere?
Sou salvo por barulhos de patinhas.
— Vamos passear com os cachorros?! — sorrio com a ideia, me ajoelhando para acariciar
Meldora, que trocou os laços e só fica mais cheirosa.
Ela balança a cabeça, confusa.
— A babá levou eles enquanto eu estava na aula de ciências.
Aponto para o pôr do sol atrás dos janelões, mexendo as orelhas da cadelinha para
convencê-la.
— Com essa vista?
A bailarina desvia a atenção para as janelas.
A sala está escura, tomada pela penumbra do crepúsculo, todo o enfoque para o céu e seu
degrade do lado de fora das janelas, com uma marca laranja-fogo refletindo nos prédios a frente.
— Vou ter que me trocar. — Reluta, como se quisesse me fazer percorrer os olhos pelo traje
que escolheu especificamente para eu tirar.
Minhas pernas tremem.
— Coloca um casaco por cima. — Sugiro a primeira coisa que vem à mente, e ela obedece
ao pé da letra, sobe com passos irritados para o segundo andar.
Quando volta, está com um grosso casaco branco, meias calças brancas e sapatos de boneca,
acompanhada dos cachorros nas coleiras. Peço com um gesto para segurar a de Meldora e
Conrad, e Aleks vai com a filhotinha.
Entramos no elevador em silêncio.
— Se você não quer ir, podemos ficar. —investigo. — Sua opinião importa, lembra?
— Fazendo o quê? — Ela está brava?
A porta se abre e ela desce no hall na frente, de modo que coloco as duas coleiras em uma
mão para segurar a dela com a outra.
Ela aceita o meu toque, mas atravessamos a rua em direção ao Central Park em silêncio, com
os seguranças atrás.
A atmosfera tem uma serenidade tranquila a medida que o agito do dia começa a desvanecer,
dando lugar à calmaria da noite que se aproxima. O ar, antes aquecido pelos raios solares,
começa a esfriar ainda mais, anunciando a transição entre a luz do dia e a chegada da noite.
As árvores com poucas folhas e muitos galhos e os edifícios lançam sombras alongadas,
criando um jogo de luz e escuridão que acrescenta um toque de mistério ao ambiente. A cidade,
pulsante durante o dia, parece desacelerar, e as pessoas estão indo embora, para o lado oposto ao
nosso.
Ao meu lado, Aleks caminha com uma graça única, e os três cavaliers nos acompanham
alegremente, cheirando tudo. A energia contagiante deles parece adicionar uma trilha sonora
mais animada ao passeio.
— Podemos ir ao cinema. — sugiro, fitando-a de soslaio.
Suspira, pesarosa.
— Fomos quase todos os dias da semana, Damon.
Definitivamente algo está a incomodando, e eu sei o que é.
— Podemos ir jantar...
— Vai dormir comigo, depois? — ela tem que ser, além de tudo, direta.
A minha espinha gela de uma única vez, e eu desvio o olhar dela para os cachorros, criando
coragem de negar um pedido desses.
— Vou ter que ir para casa, me preparar para o Treino de amanhã.
Não estou mentindo. Ignorei as ligações do Rei a semana inteira, meus avós tentaram falar
comigo e Fred Harding está esperando eu responder uma mensagem desde segunda.
Aleks se aproxima até ficar frente a frente comigo, e inclina a cabeça.
— Você não gostou de ficar comigo? — seu timbre é sério quando ela franze as
sobrancelhas e me fitando com a profundidade dos seus azuis.
Levo os dedos até suas bochechas rosadas, a ponta do nariz arrebitado está vermelhinha pelo
vento gelado que invade nossos pulmões, enquanto os seus olhos percorrem os detalhes do meu
rosto.
— Foi o melhor sexo da minha vida, Aleksandryia. — As maçãs do seu rosto se elevam em
um sorriso orgulhoso.
— Mas você não me procurou mais. — Faz biquinho.
Passo meu braço livre em torno da cintura dela e, agora, voltamos a caminhar de volta
abraçados. Penso no que vou dizer para não magoá-la ou fazê-la perder a confiança na médica.
Também não vou dizer que devemos “ir com calma”, porque já tentei e ela não gosta dessa frase.
— Eu imagino que com o seu ex Dono isso era tudo no relacionamento.
Ela demora uns minutos para concordar.
— E com a sua ex mulher? — se lembra, me fazendo sorrir com o gesto.
Penso em Ellie e é engraçado como as memórias dela estão distantes, como se tudo o que
tivéssemos vivido fosse em outro tempo. Também é engraçado como parece cinza perto do que
sinto pela minha bailarina, em cores vibrantes.
Beijo o topo da cabeça dela.
— Também. — Conrad começa a latir para algumas pessoas que passam perto. — Não acha
que seria legal se a gente tentasse algo diferente?
Ela franze a testa, com vergonha de admitir.
— Eu não sei como.
Tiro uma mechinha de cabelo que cobre seu olho.
— Eu também não, mas pelo menos vamos aprender juntos.
Aleks balança os cabelos de um jeito tão meigo que eu não resisto, abaixo a cabeça e roubo
um selinho nos seus lábios gelados. Então ela me fita com seu olhar de cisne negro por alguns
segundos antes de cortar o contato, permitindo que Gulnara a guie até perto da cesta de lixo.
No caminho de volta, eu pergunto como estão suas aulas.
— Não sabe o que eu aprendi em história. — Comenta, com um ar curioso, atravessando a
rua. — Que oito famílias foram responsáveis por salvar o país da Grande Depressão.
Estou desenrolando as coleiras de Meldora e Conrad, que enlaçaram, na porta do prédio.
— Quais? — finjo uma surpresa que a faz rir.
Pedimos o elevador.
— Eu não sabia que os Duncan eram tão importantes assim. — Ela pega Gulnara no colo.
A porta se abre.
— Você me subestima, bailarina.
— E tem outras, que são Waddel, Young, Kühn... — não dou a resposta, deixando-a pensar.
— Vannozza, Isakai, Harding...
— Lloret. — Acrescento. — Eu também sou um Lloret, sabia?
— Sangue em Ascensão duas vezes? — sussurra, eufórica.
Abro um sorriso divertido.
— A maioria de nós somos. — A porta se abre. — São as alianças com as Damas.
Vou explicar mais, talvez contar sobre a minha aliança com Beatrice e como tudo deu errado
no nosso namoro de adolescência. É sexta à noite, posso contar todas as coisas que me
arrependo, como o aborto que fiz Beatrice fazer ou as traições que cometi com Ellie, usando Bea.
Não posso negar que minhas palmas estão suadas com o medo do que minha bailarina vai pensar
de mim, mas estou disposto a expor a ela todas as minhas facetas.
No entanto, não há como ela me ouvir.
Esse apartamento parece tremer com a música alta, e os cachorros estão desesperados.
— O que é isso? — grito na direção dela, que coloca os três cães no banheiro abafado.
Ela aponta para a cobertura, deixando evidente que esse fato é corriqueiro, tanto na mansão
Kühn, quanto aqui. Volto para o elevador e Aleks me segue, vai perguntar o que é quando me vê
apertando o botão da cobertura. Ela tem a senha da cobertura.
Não vou dizer que não estou esperando ver mulheres peladas quando a porta se abre. Eu já
vi Cartier em situações deploráveis na universidade, quando pertencíamos a Casa em Ascensão,
uma espécie de fraternidade elitizada financiada pelo Jogo. Nossos quartos eram vizinhos. Já vi
sua bunda loira mais vezes do que gostaria, por isso é natural trazer Aleks para meus braços e
colocar as mãos nos olhos dela, tampando-os.
Ela ri, se divertindo com a situação, e eu também quero só ver que tipo de orgia meu canalha
favorito inventa com as Bonecas dele.
E mais uma vez sou surpreendido.
Solto as mãos dos olhos de Aleks, porque não tem ninguém sem roupa. Cartier está no chão
da sala, com o controle do videogame, jogando Red Dead Redemption 2, enquanto as suas
Bonecas dão as instruções com o mapa nas mãos. Tirando a música que estouras os tímpanos, a
coisa mais criminosa que há na cena é a quantidade de comida com cheddar, na mesa de centro.
— Aleks! — Uma das meninas repara, chamando a atenção das outras.
O loiro me vê, aperta pausa no jogo e abaixa a música.
— Esse barulho incomoda os filhotes da Aleks. — Reclamo, me ajoelhando para pegar
algumas batatas com queijo, e estico a bandeja primeiro para a Aleks, que enche a mão, no canto
do sofá, sendo sufocada por duas meninas.
— Por que você acha que eu comprei um apartamento abaixo do meu?
— Mas a Aleks mora lá, agora.
Ele sorri e volta a jogar.
— Ganhou um teto seguro para sua mulher e quer colocar regra, é? — desvia o olhar da tela
para mim.
E eu desvio dele para as meninas, vendo-as tratarem bem a bailarina, que conta algo porque
todas parecem concentradas no seu tom baixo. Sento-me ao lado de Cartier.
— O que a Cherrie disse sobre essas cópias que você fez dela?
Ele sustenta o semblante sério, mas quer rir.
— Não são dela, são da Europa.
Encho a boca de comida. Só consigo imaginar Europa rolando de rir ao saber que o Kühn é
louco por ela a esse ponto.
— E ela sabe?
Cartier aperta pausa novamente.
— Se você contar, eu conto para a sua bailarina sobre o aborto. — Pisca algumas vezes,
ouvindo o que saiu da sua boca, mas não pede desculpas, embora seja óbvio que está
arrependido.
Olho Aleks animada com as garotas, ao ponto de que, agora, o mapa está no sofá, então o
pego, procurando a posição de Cartier. Levo ele de uma emboscada a outra, até que ele perceba a
minha vingança e desligue o jogo.
— Amanhã tem o Treino, já sabe como vai reagir quando ver o Rei?
— Estou evitando o assunto.
Nós dois começamos a conversar sobre teorias que expliquem todos os pontos soltos dessa
história, mas é difícil não citar o papel gigantesco da Europa, e eu sei que, se eu contar, ele vai
atrás dela e Europa vai ter mais um motivo para ferrar com a minha vida.
Demora um tempo até as meninas se cansem de conversar e Aleks ocupe o lugar ao lado do
meu. Uma das Bonecas de Cartier recepciona as pizzas e as abre, para que a gente coma
enquanto conversa. Cartier conta coisas engraçadas sobre mim para Aleks, e eu retruco com os
podres leves dele, fazendo todas rirem.
É estranho que, em um contexto tão bizarro quanto o nosso, temos o momento mais normal
em muito tempo. Quando Aleks começa a bocejar, nos despedimos e eu a levo para o
apartamento debaixo de braços dados.
— Ainda vai embora? — ela pergunta, sendo recepcionada pelos seus cachorros.
Faço que não.
— Tem uma coisa que quero te dar.
Subimos até o quarto, onde eu vou ao closet e procuro na bolsa de pertences pessoais que
separei para quando dormir aqui, o diário russo dela, de quando tinha quatorze anos.
— Fecha os olhos. — Peço, sentando na cama onde ela está, colocando o diário entre mim e
ela. — Pode ver.
Ao olhar nos olhos dela, vejo a mistura de emoções: surpresa, incredulidade e, finalmente,
alegria ao perceber do que se trata. Aleks arregala as pálpebras em uma expressão de surpresa e
um sorriso lindo, emocionado quando abraça o caderno simples.
Ao entregar o diário, percebo que não é apenas um objeto da sua história que estou
devolvendo, mas sim uma parte essencial da sua identidade. Vejo a gratidão em seus olhos
enquanto ela folheia as páginas, reconhecendo os momentos que ela pensou ter perdido para
sempre.
— Meu livro de poesias, Damon, obrigada. — Encara-me com os olhos cheio de lágrimas
antes de me afogar com um abraço.
É um momento de conexão única, onde o passado dela se encontra com o presente, e eu
tenho a honra de ser o mensageiro que trouxe de volta algo tão significativo para a minha
bailarina.
— Guardei comigo desde a vez em que fui à Rússia. — Explico, sentindo seu corpo se
espremer contra o meu. — Só estava esperando o momento certo de te devolver.
Enquanto folheia suas palavras, posso sentir a importância desse diário para ela, como se
fosse um pedaço perdido de sua alma, e tudo o que faço é assisti-la ler todos os poemas. Ela
começa feliz, e até para e me explica os detalhes sobre sua antiga vida, o Bolshoi e sua avó,
conta como a amava e como foi perdê-la, e eu faço o mesmo contando sobre como minha mãe
era.
Então começa a ler as poesias do Dono e irrompe em uma crise de choro que não cessa.
Mando uma mensagem para a médica e ela me dá instruções de oferecer apenas água com
açúcar e calmante floral, porque faz parte do processo de Aleks se dar conta da gravidade do que
aconteceu com ela, por mais que doa ver a minha borboleta russa chorar até perder o ar.
Não resisto e a abraço, fazendo conchinha, apertando-a forte enquanto ela chora até se
acalmar, pegando no sono, nos meus braços.
Mas eu não durmo.
O Jogo que me dá tudo, rouba tudo de outras pessoas. Ele arrancou a alma da mulher mais
incrível e talentosa que já conheci. A destruiu de todas as formas. Como vou continuar no
Tabuleiro? E as outras Bonecas? Quantas possuem Donos bons como Cartier? Quantas possuem
Donos ruins como George?
Penso na minha mãe e no quanto ela era fenomenal, em como a sua alegria foi tirada. Sua
vida foi tomada. Com quantos anos ela virou uma Boneca? Será que ela teve um Dono antes do
meu pai? O que a dilacerou ao ponto de desistir da própria vida?
No outro dia, quando o despertador toca, decido que, pela primeira vez na minha vida, vou
faltar a um Treino.
Já escolhi de qual lado vou ficar.
E não é o do Rei.
CARTA CORINGA

Finalmente, os sinais do meu incêndio surgem como pequenos focos, por todos os lados,
pondo em xeque a paz que sempre reinou nas Oito Famílias.
Estamos todos na sala quando papai puxa O assunto.
— É impressão minha ou o Damon está estranho comigo? — Balança o braço de um modo
que o relógio de ouro da sua coleção brilha, me hipnotizando.
— Comigo também. — Mamãe nos surpreende, levando nossa atenção para os traços
imponentes do seu rosto contornado pelos fios dourados, colocando uma mecha atrás da orelha
queimada.
Todos desviam o olhar para Damon, que sorri como se não quisesse arrumar briga, tentando
manter a calma, embora seu semblante demonstre uma mistura de determinação e desconforto.
Ele se afunda no sofá.
Há duas semanas Damon veio me questionar se a sua Boneca-Russa foi a bailarina de porta-
joias de George Young. Foi no primeiro sábado de Treino que ele apareceu desde que voltou de
viagem, e ele não parecia nem um pouco feliz de estar com a família, porque faltou vários
Treinos.
Precisamos falar sobre como bocetas destroem lares.
Eu estava na sala, com os Jogadores, bancando a Cherrie, no colo de papai, quando Damon
me puxou para um canto e me encheu de perguntas, transtornado com a ideia de abaixar as
orelhinhas e colocar o rabinho entre as pernas para o monstro que devorou a bailarina dele.
Primeiro, eu disse:
“Se está tão preocupado, pergunte você a ele.”
Mas ele não quer fazer isso, porque, se George olhar na cara dele e dizer que sim, e Damon
não aguentar e dar um soco no Rei, ele vai conhecer o inferno, sim, mas vai descobrir que o
inferno dói muito mais quando os torturados são as pessoas que você ama.
E, convenhamos, a bailarina já sofreu demais nas mãos do seu monstro.
Também tem o risco de Damon perguntar e o Rei dizer que não deu Aleksandryia de
presente, afinal “ela não estava no cardápio” (palavras dele, não minha). E tomar o brinquedo
de volta.
Nesse último, não menos importante, existe a opção de o Rei ficar com raiva da insinuação e
acabar com a brincadeira da Torre.
O ponto é, em algum momento da vida, todo mundo aqui perdeu algo para o Rei. Eu perdi
Cartier, Cherrie perdeu Cameron e mais um zilhão de coisas, Phillip Waddel teve a primeira
esposa morta, Erin perdeu a Charllote e depois se perdeu. Franklin perdeu Lizzy e eu consigo dar
uma lista imensa de histórias de amor com finais trágicos, e serei bondosa se citar apenas o amor
nessa lista.
E pensar em todas as Bonecas que não tiveram a sorte de Aleks de ter um bom Dono e
encontrar o Damon delas...
O xadrez é uma metáfora sobre guerra, e a guerra é sobre escolher quantas perdas uma
pessoa suporta até desistir da sua humanidade e se tornar um animal movido a instintos.
Essa é a verdadeira Ascensão.
Se bem que o Rei já está perdendo a paciência.
— Qual é a pedra no seu sapato, filho? — provoca George, diante de todos.
A troca de olhares é intensa, carregada de emoções não ditas, e o silêncio tenso é
interrompido apenas pelos comentários mordazes de outras Peças, como meu irmão. Damon
cruza os braços, sem desviar os olhos dele.
— Acho que você sabe, Vossa Majestade. — Não soa educado, soa sarcástico.
Dylan faz um movimento para se aproximar do irmão, querendo mandar ele calar a boca por
osmose, mas eu levanto e o seguro, abraçando-o para que ele não perceba o quanto quero que
tudo pegue fogo.
— Deve ser sobre a Boneca-Russa. — Provoco com um sorriso de fora a fora, subindo meu
olhar para encarar o Duncan comprimir os lábios com irritação por minha impertinência, ao
expô-lo dessa forma.
Todos sorriem, pois conhecemos Damon e sua obsessão de brincar de amor verdadeiro.
— Não gostou do presente? — Papai contesta com a exasperação que imaginei, dobrando as
mangas da camisa com um sorriso largo no rosto. — Podemos trocar, posso te dar uma melhor.
Damon sorri, com raiva, e Cartier discretamente se aproxima com um copo de vodca, mas
em vez de beber e calar a boca, Damon devolve a provocação.
— Cuide das suas.
O silêncio total anuncia o choque pela resposta que a Torre deu para o Rei, e aos poucos o
eco de comentários se fortalece, alguns expressando preocupação, enquanto outros sussurram.
Alguns Sangue em Ascensão parecem hesitantes, discutindo o que fazer diante da situação
delicada que se desenrola diante deles, surpresos.
Invejo Damon pela coragem, e decido apostar quais semblantes entregarão quando
descobrirem que cada passo que dei, não passou de um conjunto de estratégias para manipulá-
los.
Uma reação é certa — eles vão enlouquecer.
O Rei, no entanto, poderia ter qualquer reação, e é isso o que torna George Young tão
espetacular, esse frisson de nunca saber se ele vai gritar, gargalhar ou esfaquear você. O ar
parece eletrificado, como se a menor faísca pudesse incendiar a situação. A espera por cada
palavra, cada gesto, adiciona camadas à tensão crescente.
— Você está vendo, Gerard? — Aponta com sua bebida, rindo. — A gente dá a vida por
esses meninos, eles crescem e ficam ingratos desse jeito.
Damon ainda tenta manter a compostura, mas vejo o aperto firme de seus punhos, a
mandíbula cerrada em uma tentativa de resistir à provocação. Há uma expressão de desafio em
seu olhar, e uma sombra de vulnerabilidade também.
— Vá se foder, George. — Paralisa todo mundo.
A única pessoa que xinga George e ainda está vivo, é Francis Kühn, de castigo no Leste
Europeu.
Damon, no entanto, parece muito irritado para se importar, e se levanta lentamente, pronto
para sair do ambiente carregado de tensão.
Por um milagre, Damon pegou meu pai de bom humor.
— O que foi que eu fiz? — Está rindo com a situação, mas não vai atrás.
A postura do Rei o torna ainda mais adorado. Ele não precisa se preocupar, não precisa
gritar, tudo está na palma da sua mão e Damon não passa de uma criança mimada que não soube
valorizar o brinquedo. George está com o mesmo sorriso de quando acordou, impassível, e todos
estão gratos por ele deixar passar a ofensa e não enfiar um pau no cu de Damon.
— Damon quer assumir essa Boneca. — Gerard Duncan anuncia, com vergonha.
A indignação se forma diante dos meus olhos, toda a família agindo como se estivessem
assistindo uma derrota no Superbowl.
— O quê? — Phillip Waddel indaga com seus olhos azuis-esverdeados.
— Lá vem o Erin 2.0 — minha irmã, Crystal, ri com Scarlet.
Eleanor abraça Aarona, dando condolências como se o anúncio fosse o de uma morte.
— E Beatrice? — alguém diz. — Ele vai quebrar a aliança?
— Esquece... — a ruiva se esquivou, piscando para Ahren de um jeito que faz eu me
perguntar se elas vão ter coragem de assumir. — Estou em outra.
— Já temos o EuroOásis, se não for para honrar a aliança, que fique longe dela. — Defende
Richard, beijando sua filha, sem imaginar que a jovem Dama está a um passo se tornar a
vergonha da família.
— Isso não pode acontecer de novo. — Papai parece colapsar, lembrando-se do seu melhor
amigo indo para o buraco e levando todo o tabuleiro, por causa de uma única Boneca-Miss.
Que Deus a tenha, Charllote Duncan.
— Se alguém quiser impedir, fique à vontade. — Aarona deixa claro que não se importa em
como vamos resolver esse problema, desde que ele deixe de existir. — Ele está protegendo a
menina a sete chaves.
— Que lástima. — Minha mãe comenta, estalando seus dedos queimados.
Seguro o riso. Esse é o tipo de coisa que faz meu interior vibrar, quase como se fosse
impactado com uma turbulenta tempestade solar. E significa um quase clímax, para alguém que
praticamente não possui atmosfera interna.
Sento-me no encosto do sofá, acariciando o tecido plissé da minha saia comportada,
fingindo que meu objetivo ali não é arquitetar meu gran finale.
— A gente precisa conhecer ela, não acham? — dou um sorriso malicioso.
Aarona e as outras Damas concordam.
— Até parece que Damon vai trazer sua Boneca aqui para acontecer com ela o que ocorreu
com Charllote. — Cartier corta, sem imaginar que é esse o gatilho que quero ativar.
Todos ficam em silêncio, pensativos.
O Rei se aproxima de mim, no encosto do sofá, acariciando o meu rosto com força nos
dedos.
— Alguma ideia, princesa? — Fita-me com seus olhos verdes gélidos.
Finjo pensar.
— O próximo passo do EuroÓasis não é apresentar o projeto aos Jogadores, para conseguir
mais investidores? — Papai pisca para mim.
— Planeje algo com Damon. — Me dá o aval. — Se a garota sobreviver, Damon fica com
ela.
Mais risadas, porque não há a menor chance de os Sangue em Ascensão deixarem uma
Boneca bonita como a bailarina, escapar.

E é então que eu finalmente arquiteto o grande espetáculo.


Passo as próximas semanas montando cada detalhe, fazendo ligações e entregando convites.
Como em toda arena, os competidores têm direito à defesa, e chamo Damon para uma reunião
comigo, a sós, para entregar o escudo dele.
E é óbvio que ele aparece, ele precisa de mim.
Entra sem bater, bem-vestido, como sempre, e com seu olhar de fúria.
— Pare de enviar caixas ensanguentadas para o apartamento da minha Aleks! — lança a
caixa na minha direção, desvio e ela derruba meu castelo de cartas. — Eu não vou participar
disso e não vou colocar minha bailarina no meio disso!
Mal o fito, focada em reconstruir as paredes do meu glorioso castelo de cartas.
— Por qual outro motivo acha que eu te dei a sua bailarina?
Ri, nervoso.
— Porque é uma vadia, vagabunda, desgraçada, maligna. — Sorrio em agradecimento pela
sua fúria.
— Bem mais que isso, dei propósito a sua vida, como prometi!
Semicerra os olhos.
— Não pode achar normal as coisas que aconteceram com ela...
Reviro os olhos. Lembro:
— E continuariam acontecendo se eu não tivesse conseguido ela de presente para você. —
Pisco.
Ele fica quieto, bufando, enquanto eu continuo recolocando as cartas uma sobre as outras,
com a mesma destreza que um médico-cirurgião cortaria em volta de um emaranhado de veias e
artérias, com a firmeza de não resvalar em nada que entornasse sangue.
— E o que você quer com isso? — põe as mãos na cintura, impaciente.
Meneio a cabeça. Alguns fios de cabelos lisos e sedosos caem em torno do meu rosto, e
inclino a cabeça para trás, para que saiam da frente dos olhos.
— Eu te dei ela com um objetivo, Damon, e acredite, não tenho interesse nenhum em
machucá-la mais do que o necessário, diferentemente de outras pessoas.
Ele está vermelho agora.
— Você não quer saber o que aconteceu com sua mãe? — Corto-o, entregando meu olhar
de assassina antes de focar com a mesma violência nas estruturas conectadas das cartas.
A cor desaparece do seu rosto.
— O que aconteceu. — É uma pergunta ou um ataque?
— Calma, irmão, primeiro me escute. — Obedece, engolindo as palavras que estavam na
ponta da língua. — Vou te ensinar a se vingar em camadas.
Solta o ar de uma vez.
— E se eu não quiser?
— Está vendo essa carta coringa aqui? — Aponto para o castelo. — O coringa é uma carta
que pode representar qualquer outra no Jogo, adicionando um elemento de surpresa e estratégia.
— Eu sei o que é a porra de uma carta coringa, não preciso que me...
— É Aleksandryia. — Ele para de respirar. — Aqui, ela está segurando o castelo de cartas,
está vendo como ela é valiosa? — A palavra faz seus olhos brilharem. — Mas, se eu quiser...
Retiro a do meio com uma agilidade impressionante, que me lembra um ataque na esgrima.
Leve e assassino.
O castelo continua intacto, mas a carta, nas minhas mãos...
Acho que ele entendeu o recado.
BARREIRA

Eu continuo recebendo borboletas em redomas de cristal, mas, agora, os bilhetes escritos em


russo são à mão.
O amor,
seja ele como for,
deve ser livre,
como as asas de uma
Papilio machaon.
Sorrio com a tentativa dele de fazer poesia, observando o espécime escolhido. Na maior
parte dos dias ele me manda borboletas azuis, mas a de hoje possui asas grandes e coloridas, que
exibem uma variedade de tons de amarelo-claro com desenhos preto e azul.
No começo eu sentia medo desses presentes, mas agora só consigo sorrir ao ver a borboleta
tentar bater suas asas enormes. Estar presa parece muito doloroso para ela, me levando ao ponto
de, em vez de assisti-la morrer, como em todas as vezes, solto-a, e ela voa pelo apartamento.
Não consigo nem acreditar que tive essa coragem, e a ideia de esperar por Damon o restante
do dia para compartilhar minha pequena vitória me consome, em uma morte lenta e dolorosa.
Sento-me na cadeira da mesa de jantar para ouvir a ideia que sussurra em minha mente.
E se eu for visitá-lo no trabalho?
Ainda não me acostumei com a ideia de ir para qualquer lugar que deseje. O mais longe que
vou do apartamento sem meu Dono é no Central Park, tornando a ideia de encontrá-lo em seu
império ainda mais deliciosa.
Não posso negar que a ideia de sair de casa me empolga, e de não precisar vestir casacos me
faz bagunçar todo o meu closet a procura da roupa perfeita para acompanhar o clima ameno de
início de primavera. Escolho um minivestido Dior, solto, fofo, balonê, com alças finas, azul-
bebê, combinando com um par de sandálias de bico fino, Chanel.
O destaque vai para um laço que prende metade do meu cabelo, caindo pelo meu rosto, da
mesma cor que o look, e a maquiagem levo quarenta minutos para acertar o delineado duplo, na
pálpebra superior e inferior, dando um aspecto dramático aos meus olhos, efeito boneca. Finalizo
com o perfume Chanel Coco Mademoiselle.
Meu estômago se contorce de ansiedade e um ardor sobe das pontas dos dedos dos pés até
incendiar meu corpo e minha alma quando imagino a reação de Damon assim que me ver, e
mantenho um sorriso no rosto durante todo o caminho até a empresa, no banco de trás do Jaguar
blindado, imaginando que ele finalmente vai ceder ao desejo que vejo em seus olhos.
Isso não acontece desde a nossa primeira vez.
Ele disse que seria legal aprofundarmos o nosso relacionamento de outras maneiras, mas eu
sei que foi a psiquiatra que colocou essas ideias na cabeça dele, porque ela sempre conversa
comigo sobre como estou me sentindo com relação a abstenção de sexo. Não conto a ela sobre as
masturbações, e Damon finge que não vê, mas, se eu me cubro, durante as madrugadas em que
gemo o seu nome, ele me manda mensagens falando que está calor.
Aceitei que meu Dono tem essa preferência e, preciso admitir que, por mais que eu queira
que ele me possua, gosto do que estamos construindo. As conversas de madrugada, os filmes e as
idas ao cinema, os jantares e as brincadeiras.
Mas penso no seu pau todos os dias, e estou olhando para a foto dele, com os lábios
salivando, agora.
— Chegamos. — Avisa o motorista.
Não preciso dar meu nome na recepção — assim que me veem, um funcionário vem me
acompanhar pessoalmente até a sala de Damon. Não sei o que ele falou sobre mim para que
todos parassem de respirar, me observando atravessar o saguão com os dois seguranças e o
funcionário em um silêncio que acentua o tilintar do meu salto ecoando pelo piso frio.
Todos os funcionários se espremem para me dar espaço no elevador, e o silêncio é quase
uma reverência. O perfume dança no ar, marcando minha presença antes mesmo de eu soltar um
suspiro de contentamento, com a vista.
Ao subir, a vista panorâmica revela cada andar que passa, trazendo uma antecipação
crescente, e o elevador é uma cápsula de luxo com luz natural e design refinado.
Uma mulher ruiva me aguarda de terninho e sorriso social.
— Dama Aleksandryia. — Pronuncia meu nome errado. — Sou Mare Steward, a assistente
de Damon Duncan, e estou aqui para auxiliá-la no que precisar.
Fito o andar. O corredor espaçoso conduz a uma área de recepção onde móveis de design
refinado e obras de arte elegantes criam uma atmosfera que mescla modernidade e tradição. A
iluminação cuidadosamente planejada destaca recortes de momentos importantes da Duncan.
— Vim ver o Meu Dono. — Sorrio com confiança, mas a mulher arregala os olhos. —
Damon. — Corrijo no mesmo segundo, mordendo a língua. — Vim ver Damon Duncan.
Balança a cabeça com um sorriso amarelo.
— Sinto muito, ele não está no momento. — Toca nas minhas costas, me conduzindo. —
Mas pode esperar na sala dele...
Torno a observar a mulher, confusa.
— Mas são 10h da manhã. — Aponto para um relógio na parede. — Por que ele não está no
trabalho a essa hora?
À medida que caminhamos pelo andar, sinto o olhar de todos ficarem presos em mim,
principalmente quando passamos por uma sala de vidro e eu reconheço o homem que está em pé
por ser tão parecido com o meu. Dylan abre um sorriso e acena em um oi tímido, de modo que
todos os que estão sentados em suas mesas param o que estão falando para observar a Boneca de
Damon.
É engraçado que Damon tenha um irmão gêmeo.
Se o corte rente no cabelo de Damon e a barba cerrada transferem seriedade à sua postura, os
fios mais longos e bagunçados de Dylan passam uma aura charmosa e despretensiosa. O rosto
liso o rejuvenesce surpreendentemente, por isso os óculos de grau caem bem. O nariz de Dylan é
mais bonito, com uma curvinha, e seu rosto é mais arredondado, enquanto o de Damon é
esculpido. Dylan é esbelto como um corredor, e se veste engraçado, mas é quase tão bonito
quanto o meu Dono. Quase.
— Essa é a sala do senhor Duncan. — Me convida a entrar. — Posso te trazer uma bebida?
Ao adentrar, as portas maciças se fecham com um som sólido, isolando este espaço do
restante do mundo corporativo nos corredores, e no centro da sala, uma mesa de trabalho
imponente domina o espaço, feita de materiais luxuosos.
— Estou bem.
Ela assente e me deixa só, de modo que observo ao redor com a curiosidade me dominando.
As paredes são revestidas com painéis de madeira ou outro material nobre, adornadas com
quadros que contam a história da empresa, e há uma parede espelhada na parede que leva ao
lavabo, fazendo com que eu me aproxime para observar meu reflexo.
Damon me disse que viria trabalhar, como todos os dias, por que ele não está?
Encosto na mesa, notando os porta-retratos. Há uma fotografia dele, Cartier, Dylan, um
homem de pele escura e um de olhos claros, abraçado a uma linda mulher de olhos verdes. Tem
outras fotos na mesa, e em uma Damon até está abraçado a ela. Fico estranhamente incomodada
com ela. Quem quer que seja, conversamos sobre tantas coisas nas últimas semanas... Por que eu
ainda não sabia da existência de outra?
Por que ele me escondeu ela?
Vejo um envelope parecido com os do Jogo, na mesa, azul aveludado, e pequenas gotas
vermelhas fazem um rastro pelos contratos, até o lixo, com um papel ensanguentado amassado.
Uma onda de desconforto varre meu ser. O primeiro impulso é de repulsa, uma reação
visceral ao símbolo do sangue, o coração dispara e uma sombra de ansiedade envolve meus
pensamentos.
O medo, como um visitante indesejado, se instala, e as memórias do meu passado, sejam
elas conscientes ou subconscientes, dançam nas barreiras da minha mente. Tento racionalizar,
lembrar a mim mesma de que é apenas papel sujo com tinta e, numa tentativa de provar isso,
pego o papel do lixo, lendo as palavras amassadas.
É um convite para um espetáculo em nome do EuroOásis, no nome de Damon e no meu. Fui
convidada para algum lugar com ele? Por que tem sangue no convite? Será que foi meu Dono
quem convidou?
O remédio está me ajudando, mas, nesse momento, é como se meu antigo Dono ainda
estivesse dentro de mim. É poderoso e sombrio. Uma parte de mim que eu não consigo esquecer,
por mais que tente, mas também não consigo lembrar, e estou exausta de sentir medo de algo que
não sei.
A voz grossa no momento em que a porta se abre me paralisa. Damon passa por ela,
concentrado no telefone ao ponto de não me ver na mesa e seguir, gritando no telefone, até o
lavabo, enquanto tira o terno e lança no sofá.
— Acabou, Cartier, acabou. — Vou atrás, silenciosamente, observando-o abrir a torneira da
pia e jogar água no rosto. — Não vou arriscar. Melhor ela ir embora.
— O quê? — estou trêmula.
Ele para de falar e vira-se lentamente, percorrendo os olhos por mim atentamente, enquanto
as gotas de água escorrem até sua boca, entreaberta, deixando os lábios brilhantes e molhados.
— Vou desligar agora. — Avisa calmamente, jogando o celular na mesa mais próxima.
Eu conheço cada detalhe do meu Dono — não que seja difícil estudá-lo, talvez eu tenha me
tornado perita nele. É um prazer estudar tanta beleza em 1,80, e fácil, quando o seu homem tem
uma boca enorme que não para de dizer coisas bonitas e de te beijar, e um sorriso maior do que o
rosto.
Mas ele não está sorrindo agora.
Sua postura sempre impecavelmente ereta está desfeita, fazendo seus ombros parecerem
muito menores do que são, seus lábios estão tremendo e os lindos olhos de chocolate brilham
mais do que deveriam.
— Que surpresa te ver aqui. — É o melhor que consegue.
— Não gostou? — estou sem voz.
Damon se aproxima a passos lentos e apoia o quadril na mesa, me convidando a ocupar o
seu lado, em frente ao espelho. Seu timbre me dá calafrios, é tremulo como se ele estivesse
querendo chorar.
— Eu queria falar uma coisa séria com você, Oceano.
Parece tão sufocado que eu tomo a iniciativa de ficar na sua frente, entre suas pernas, tirar a
gravata e abrir os botões da sua camisa, observando o desenho do pescoço onde a barba castanha
termina. Ficamos ainda mais próximos, a uma distância em que nossas respirações se
complementam e, ainda assim, a parede invisível nos separa como um espelho que não consigo
enxergar o outro lado.
— O que houve?
— O que você faria se fosse livre?
Engulo a resposta mais rápida, por mais que ele adore quando sou mal-educada. Detesto
quando Damon me obriga a pensar e a imaginar um futuro em que ele não está presente,
dominando cada batida do meu coração. Só a ideia de não tê-lo faz meus olhos se encherem de
lágrimas.
— Não penso nisso.
Damon me fita com seus carinhosos olhos castanhos, e, embora possa dar comandos, ele
está pedindo. Ele disse que faz isso porque quer que venha da minha alma, espontaneamente.
— É a última vez que vou perguntar, Aleks. — Seu timbre falha. — Prometo.
Não entendo o porquê isso dói no meu coração, como se alguma parte de mim gostasse da
sua insistência em me tirar da zona de conforto, porque se não fosse isso, eu não estaria
avançando no meu tratamento e enxergando coisas novas no mundo.
Ainda assim, não deixo que meu Dono perceba, cruzo os braços e falo de uma vez.
— Bailarina. Bolshoi. Rússia.
Ele sorri com uma expressão confusa que se parece tanto com dor.
— O que mais? — incentiva, e desvia os olhos para que eu não perceba as linhas d’água
marejadas, mas é óbvio que eu noto, e toco no seu rosto, acariciando sua barba.
— O que você quer ouvir? — meu próprio timbre sai trêmulo.
Eu o vi feliz nas maiorias das vezes, mas também o vi bravo, se trancando no quarto para
brigar ao telefone sem que eu me assustasse. Vi Damon desconfortável, irritado, excitado e
cansado. Não tinha o visto triste, não desse jeito, deitando o rosto na minha mão como se
quisesse gravar na memória cada linha da minha palma.
— O que você faria, me conta. — Insiste, e o timbre que é sempre imponente, parece
quebrado. — Eu quero imaginar você.
Eu não quero me imaginar sem você.
Fito o nosso reflexo no espelho. Seu corpo grande perto do meu, pequeno, suas roupas
sociais o deixando ainda mais poderoso, contrastando com o vestido azul bebê, delicado. Mexo
no cabelo, só para acompanhar o olhar de Damon nos meus movimentos.
Forço a imaginar como seria a minha vida se meu ex-Dono não tivesse me encontrado e me
tirado de Moscou. Não é como se eu nunca tivesse desejado que tudo fosse diferente. Só nunca
tive coragem de colocar para fora.
— Namoraria um bailarino, teria amigas, cachorros. — O olhar dele, uma vez tão familiar e
reconfortante, agora parece distante. — Por quê?
Ao mesmo tempo em que demonstra alívio, parece profundamente triste, e suas próximas
palavras soam como uma sentença.
— Porque vou te levar para a Rússia, Aleks. — O som das palavras ecoa em meus ouvidos
como uma sinfonia dissonante, desafinada e dolorosa, e minha reação mais rápida é parar de
respirar com o golpe. — Vou te levar para a sua casa. — Cada palavra pronunciada parece
perfurar meu peito, deixando uma dor que é quase tangível. — O lugar onde você foi arrancada.
É como se o chão desaparecesse sob meus pés, e eu me encontro em queda livre, sem
controle, de modo que me agarro aos seus braços, sem evitar as lágrimas impedindo-me de ver a
tristeza no rosto dele. Pergunto:
— Você vem junto, não vem? — pisco para que as gotas caiam dos meus cílios.
Dá um óbvio sorriso que diz não.
É uma faca afiada, dilacerando a segurança que um dia compartilhamos, e eu sinto o meu
coração se estilhaçar com uma dor que me faz perder o fôlego e respirar cada vez mais
ruidosamente.
— Você não me quer mais, é isso? — minha voz treme, soltando dele. Não sei como
consigo falar, sem ar. — Está me jogando fora?
Segura meu queixo.
— Nunca mais diga isso. — Ordena com um tom que nunca vi.
A sensação de ser descartada por ele depois de poucos meses como meu Dono é como uma
onda gelada que me faz tremer por dentro, de um modo que recuo para trás, como se ficar perto
dele me rasgasse.
Eu não sou bonita o bastante? Não sou jovem o bastante? Ele enjoou do meu corpo? Mas
como, se nem o usou?
— Você não gostou de transar comigo, não foi? — A sala ao nosso redor se torna um palco
para a tristeza pesada pairando no ar. — A gente só fez uma vez e agora você está descartando...
Não consigo terminar a frase.
Sinto sua pegada forte em minha cintura, e antes que eu perceba, sou puxada para seus
braços, com a adrenalina disparando meu coração. Toda a abstinência nos lava com uma vontade
insaciável, e as palavras que estavam na ponta da minha língua se perdem no instante em que
seus lábios encontram os meus, com sua saliva quente me inundando de tesão, feito uma onda
que se desfaz na praia, com um único toque.
O calor da sua boca contra a minha faz com que o turbilhão de emoções se dissipe, ao ponto
de o mundo ao nosso redor desaparecer, e tudo o que ouvimos são os nossos corpos clamando
pelo do outro.
Tudo o que consigo pensar é que não quero viver sem Damon. Não vou. Por isso dói tanto,
ele sabe quão dependente sou dele, a psiquiatra já disse várias vezes. E, se mesmo assim ele quer
me largar no outro lado do mundo, sozinha, é porque ele não se importa.
— Você quer que eu morra? — Minha voz quebra feito um copo de cristal com o soluço que
dou entre os seus lábios.
Consigo enxergar que as lágrimas são mútuas, e o homem que me protegeu esse tempo todo
revela diante de mim sua parte mais frágil.
— Eu quero que você viva, Oceano... — Soluça como se sentisse uma dor física. — Por
isso estou pensando no que é melhor para você. Mesmo que isso destrua a minha felicidade, eu
quero você viva, Aleks, não posso suportar a ideia de ver você morta, de novo...
Nesse instante, o medo fala mais forte do que qualquer outra coisa, e uso a única arma que
tenho. Eu. Sexo. Tomo seus lábios com toda a força que possuo, é a única forma que conheço de
ser ouvida, e eu preciso, desesperadamente, que meu Dono escute o quanto necessito dele.
Enrosco meus braços nele, prendendo-o a mim.
Damon revida o ataque avança sobre mim, mostrando que a sua ganância não existe apenas
quando se trata de dinheiro e poder, em um beijo diferente de todos os outros que já me deu,
forte a ponto de cortar meus lábios, com uma intensidade que leva embora todos os nossos
sentidos, deixando apenas os que batem pelo nosso amor.
Em um único movimento, agarra minha cintura com uma mão, deitando-me na mesa de
madeira maciça ao mesmo tempo em que, com o outro braço, derruba tudo no chão, sem se
importar com o barulho do monitor da Apple caindo. E então me fita, com os lábios vermelhos,
entreabertos, molhados, o tórax movendo-se com a respiração rápida. Desço o olhar para o seu
volume, estourando na calça, e abro as pernas.
Não preciso pedir duas vezes. No segundo seguinte, ele está em cima de mim, me prensando
entre a mesa e o seu corpo, me fazendo sentir seu volume duro na minha barriga, e eu deixo
escapar um sorriso que o faz percorrer os lábios pelo meu rosto molhado de lágrimas em direção
ao meu pescoço, enquanto, como se estivesse faminto, passa as mãos pelas minhas pernas, por
dentro do vestido, coloca a calcinha de lado e desliza seus dedos gostosos pela minha boceta
molhada, pronta para ele.
— Eu te amo... — me penetra com dois dedos, sorrindo com a forma como estou me
derretendo de amor nas suas mãos. — Ah, meu cisne negro... — geme, abocanhando meus
lábios enquanto me masturba com uma rapidez que amolece minhas pernas. — Eu te amo tanto...
Aperto-me contra ele, o abraçando com a mesma impetuosidade que suas mãos percorrem o
meu corpo, como se quisesse entregar à correnteza toda a tristeza que sentimos com a hipótese
de nos afastar, enroscando nossas línguas. Ele não consegue evitar transparecer, pela forma como
respira desesperado, pelos movimentos ágeis da sua boca e na maneira como me toca, que ele me
quer tanto quanto sonho com ele.
Entrelaço minhas pernas em torno do meu Dono, desejando mostrá-lo o porquê o que temos
é tão precioso, e convencê-lo a nunca me deixar, caprichando na forma como deslizo a língua
pelos seus lábios, gemendo enquanto ele me devora com sua boca, arranhando meu rosto com a
barba. Deslizo meus dedos pela sua nuca e os enrosco em seus cabelos curtos, puxando-os.
Percorro as mãos pelos seus braços fortes, prendo os dedos nos botões da sua camisa,
arrancando-os, afoita para vê-lo pelado e passar as mãos pelo seu peitoral e cada gomo do
abdômen até a região da calça.
É difícil me concentrar o bastante para desafivelar o cinto, com ele lambendo o meu rosto,
pescoço e colo, enquanto passa as mãos na minha boceta, circulando o meu clitóris inchado e me
penetrando em seguida. Facilito as coisas para ele, desço a minha alcinha e puxo o vestido para
baixo, dando a vista de metade dos meus mamilos.
— Ah, cisne negro... — geme, abocanhando com fome.
Devolvo o barulho excitado, fechando os olhos para sentir as sensações que me inundam nos
pontos mais sensíveis, com a barba dele arranhando toda a pele por onde seu rosto passa e os
seus dedos duros afundando em mim. Volto as mãos na sua calça, mas agora quando passo a
mão por cima, sinto minha boceta latejar de vontade de sentir esse pau, duro, dentro de mim.
— Tira a calça — Peço contra os seus lábios, me deliciando com o gosto da sua saliva
quente, abrindo mais a boca para ir mais fundo com a língua, sentindo a dele me explorar com a
mesma vontade. — Eu preciso que você me foda, Damon. Forte.
Mudo de ideia no momento em que ele tira a calça e a minha boca enche de saliva. Estico a
mão em torno do seu pau grosso, apertando-o só para me excitar mais com o quão duro ele está
por mim.
— Eu quero te chupar. — Ajeito-me na mesa, deitando minha cabeça para fora dela, de um
jeito que meus cabelos com o laço caem. — Quero sentir o seu pau na minha garganta. —
Explico com o meu melhor sorriso e uma voz que o faz obedecer imediatamente.
Eu estou de ponta cabeça agora, por isso, quando Damon para na minha frente e coloca o
seu membro em minha boca, agradeço o fato das suas bolas me asfixiarem, assim a glote está
livre e as ânsias não me impedem de engoli-lo o mais fundo que posso. Adoro o gosto da sua
pele na minha boca, desde a base até a macieza da glande, quando ele se move, gemendo alto e
me permitindo respirar.
Ao mesmo tempo, suas mãos percorrem o meu corpo, procurando a saída do vestido,
desesperado para ser estimulado com a visão do meu corpo na sua mesa presidente. Quando
percebe que a única forma de me ver seria saindo da minha boca, rasga a delicada peça Dior
usada uma única vez, passando a mão para ver meu corpo. O seu pau endurece e lateja na minha
língua, suas pernas bambeiam por um instante e, no segundo seguinte, Damon continua em pé,
mas se inclina mais sobre a mesa, indo tão fundo na minha garganta que meus olhos se enchem
de lágrimas.
Eu só não imaginei que seu intuito seria se debruçar sobre o meu corpo para lamber meus
peitos e descer a língua pela minha barriga.
— Você é tão gostosa. — Murmura, passando os dedos com vontade antes de afundar a
boca em minha boceta.
Todos os impulsos que eu tenho de gemer são substituídos por sugadas profundas, que ele
retribui com lambidas vigorosas, que me fazem choramingar de prazer com seu pau na boca, e
ele me devora mais intensamente, intercalando a macieza dos lábios com textura da barba, e os
dedos. Enquanto Damon suga meu clitóris, me penetra, brincando com a minha boceta, mais
excitado com o barulho molhado que solto.
Nossos corpos entram em um ritmo próprio. Tudo o que escuto é o meu coração seguir a
intensidade dos gemidos dele, e ele também perde a noção do tempo em mim, brincando de
quase me levar ao ápice e recuar, mordendo minha coxa. Quando é a sua vez de quase gozar, ele
tira o pau da minha boca e se ajoelha a minha frente, me invadindo com um beijo único, de ponta
cabeça, com os nossos gostos se misturando.
— Eu deixaria você me chupar para sempre, — murmura contra minha boca. — Eu te
chuparia para sempre. — Sorrio e ele se aproxima do meu ouvido. — Mas, agora, eu vou te foder
bem gostoso.
Damon morde meus lábios com a provocação e dá a volta na mesa, segura minhas pernas e
me puxa para cima, dando descanso para o meu pescoço. Encaixa-se no meio das minhas pernas,
colocando o pau na minha entrada, me provocando, só para que eu mova o quadril, fazendo-o me
preencher em uma tortura lenta.
Abro minhas pernas completamente, só para fazer charme de bailarina, e meu Dono solta
todo o ar em um gemido único, mergulhando completamente, ainda mais excitado com a
sensação molhada o esmagando. Tensiona o corpo, usando os músculos do braço e das pernas
para me foder com mais força, segurando minhas pernas para cima.
Inclino o meu rosto e ele abaixa o pescoço de um modo que nossas bocas se encostam a
cada estocada que faz a mesa, meu corpo e meus peitos balançarem. Lambemos a boca do outro,
com nossas respirações ficando mais ofegantes a cada vai e vem que enfraquece minhas
estruturas, e eu abraço o seu corpo, sentindo em minhas mãos os músculos das costas, enquanto
o nosso calor se materializa em movimentos intensos e lentos, com sua boca devorando a minha
e sua barba marcando o meu rosto.
— Você está tão gostosa, amor — morde meu lábio inferior. — Está tão molhada.
Sorrio no meio do beijo.
— A culpa é toda sua.
O seu pau fica mais duro e ele começa a gemer mais alto à medida que minha boceta
encharcada o convida para mergulhar mais fundo, me fazendo choramingar de tanto prazer que é
tê-lo entre as minhas pernas, e nossas vozes se complementam com os ecos da sala, sem nos
importar com o resto do mundo do lado de fora do andar. Estamos muito concentrados segurando
nossos clímaxes até o limite dos nossos corpos.
Damon abaixa a cabeça, próximo do meu ouvido, para murmurar o quanto me ama e o
quanto ama me foder, o quanto é louco por mim e pela minha boceta, com sua respiração trôpega
saindo quente, arrepiando a minha nuca, com minhas pernas tremendo para aguentar as estocadas
do seu pau gostoso me preenchendo fundo.
Fito no espelho da parede a nossa frente, a bagunça que nos tornamos. Nossos corpos
metade com roupa e metade sem, a coxas e a bunda musculosa de Damon e as minhas próprias,
entrelaçadas. Abraço o seu corpo para ver os seus ombros largos me afogando, seus braços
flexionados segurando-nos a mesa, o nosso cheiro, e ele vira a cabeça, como se quisesse apreciar
a mesma vista que a minha, antes de voltar a me beijar até que quase atinjamos o orgasmo com
nossas línguas presas.
Então ele faz algo especial.
Damon tira os meus braços do seu pescoço, estendo-os acima da minha cabeça, esticando os
seus, de modo que damos nossas mãos, entrelaçamos nossos dedos, e ele praticamente se deita
em mim, na mesa. Parece que estamos respirando o amor do outro, com nossos olhares presos. O
prazer com sua pelve se esfregando em meu clitóris enquanto seu pau alcança o meu útero me
leva ao orgasmo no mesmo segundo em que ele também se derrama dentro de mim, me fitando e
me beijando com selinhos.
— Ainda acha que eu não te desejo? — afunda o rosto em meu pescoço, mordendo-o de um
jeito que a barba faz cócegas.
— Vou precisar que repita muitas outras vezes — murmuro com a voz cansada, apaixonada,
mas ele parece ainda mais triste.
Tenta parecer forte, mas quase chora, acariciando meu rosto.
Eu odeio essa parte. O momento em que ele sai de dentro de mim. Como se não suportasse
ver a minha reação, meu Dono para na minha frente, de cabeça baixa e as costas curvadas, de um
modo que eu consigo ver cada músculo, cada desenho na pele clara, e o adoro mil vezes mais a
cada detalhe.
— Tem a ver com essa mulher? — Aponto para a foto, assustada. — O que ela é sua?
— Um pesadelo. — Tensiono os músculos.
— O que aconteceu? — tento de novo. — É o convite com sangue? — Ele me fita sério. —
Por isso quer me deixar? — começo a entender.
— É o melhor para você, Aleks.
Passo o próximo minuto em silêncio, pensando em como vou convencê-lo do contrário.
— Você sabe que no dia em que me deixar, vou me matar, né? — Minhas palavras saem
provocativas e sinuosas.
Damon me devolve um olhar tão frio que me assusta.
— Vai fazer chantagem emocional com o seu Dono?
Paraliso, sem saber o que dizer, mas ele abaixa a cabeça e balança, fazendo com que eu me
levante da bagunça na mesa para ver se ele está chorando mesmo. Damon está sorrindo.
— Não tenho maturidade para ver você mostrando suas garrinhas, Aleks...
— Vou fazer o que for preciso para te impedir com essa loucura. — Estou falando sério
agora, e ele nota, para de sorrir e me fita. — Eu vou morrer se você me deixar, então não me
deixe.
Damon segura na minha mão.
—Só estou pensando no que é melhor para você, porque as coisas vão ficar pesadas no Jogo.
Isso me assusta, mas não deixo transparecer.
— Não foram sempre pesadas?
Balança a cabeça.
— Aquela festa de apresentação do EuroOasis, o espetáculo.
Então o meu doce homem mostra novamente a parte que tenta esconder de si mesmo. Seu
olhar é sangrento, e sua voz, contida, me faz imaginar uma fera enjaulada.
— Eu preciso que você esteja segura quando o espetáculo acontecer, Aleksandryia, e a essa
altura, isso significa longe de mim.
Apoio a cabeça nas suas costas despidas, e a gente fica em silêncio por um tempo. Eu
mesma não entendo o porquê não estou tremendo, mas vivi de medo a minha vida inteira, e
agora que tenho um Dono que faz com que cada centímetro de mim se sinta seguro, nada vai me
separar dele.
— Nós dois estamos presos ao Jogo, então vamos fazer isso juntos. — Fito suas íris
castanhas, com os cílios longos decorando. — Eu quero ficar do seu lado, Damon. Quero estar
com você em todos os lugares que você vai, quero respirar o mesmo ar que o seu. — Minha voz
embarga. — Eu vivi onze anos escondida, com um Dono que me fazia esperá-lo atrás de uma
porta, como um gato, por meses, que vinha só para me machucar. Eu sentia inveja da mulher
com ele, e agora que você me trata como ele tratava ela...
Ele me aninha em seus braços.
— Aleks, sou uma Torre, todo mundo no Jogo me conhece, os Jogadores que te usaram
estão sempre nos mesmos eventos. — Então me entrega transparência. — Eu vejo o seu ex
Dono. — Suas microexpressões demonstram nojo, mas ele quebra outra vez, com seus orbes se
enchendo. — Porque ele é o maldito Rei. — Paraliso com a revelação. — Eu o vejo toda semana,
e me sinto culpado, tenho ódio de mim, porque quero muito acabar com aquele filho da puta,
mas eu não posso e...
Abraço Damon, consternada com o seu choro. Eu não sei o que dizer, mal sei o que pensar a
respeito disso, porém as batidas do meu coração sabem, e elas sobem até meus lábios.
— Hoje eu não matei a borboleta, eu a soltei.
Ele sorri, entendendo o significado.
— Sério?
Faço que sim com a empolgação de uma criança.
— Sabe aquele namorado bailarino que falei que teria em uma vida diferente?
Ele me encara através das lágrimas.
— Seria você. — Dou meu melhor sorriso para ele. — Porque é você, sempre vai ser. Se
nossa vida fosse diferente, mas não é.
— Aleks... — deita a cabeça no meu peito, e eu gosto tanto da sensação que acaricio seu
rosto e seu cabelos.
Continuo com o carinho na cabeça consolando-o enquanto Damon põe para fora todos os
sentimentos que segurou sabe se lá há quanto tempo. Ver um homem desse porte, frágil e
exposto, só aumenta a admiração, o carinho e o respeito que sinto por ele, ao ponto de doer no
meu coração.
Ele ri entre as lágrimas.
— Do Royal.
— O quê?
— Eu seria um bailarino do Royal. — Sua voz está anasalada.
É incrível como o imagino perfeitamente nessa posição.
— E eu do Bolshoi.
Não precisamos dizer mais nada. Nós dois estamos pensando em como seria lindo, se não
existisse o Jogo em nossas vidas, apenas nosso talento e nossos sonhos.
— Você viria para o Royal. — Ele continua. — Já percebeu como todos os melhores
bailarinos do Bolshoi vão para o Royal? — Comenta. — Royal paga mais.
Acho engraçado como ele consegue pensar em dinheiro em todas as situações.
— Não me importo com dinheiro. — Provoco, embora não seja isso.
A verdade é que eu aprendi a gostar do dinheiro quando ele era a única coisa que me fazia
aceitar as coisas a que meu antigo Dono me submetia. Ele colocou o dinheiro como uma
necessidade na minha vida, assim como Damon aprendeu a viver por esse estilo de vida. É o
Jogo.
— Então eu iria para o Bolshoi. — Diz.
Deixo escapar uma risada.
— Você nunca passaria nas audições do Bolshoi, Damon.
A diferença entre as duas escolas é que a técnica do Bolshoi torna os passos muito mais
leves, enquanto o Royal prioriza a expressividade corporal, e Damon tem muita força, ele
demostra sua força quando dança ballet comigo, nas nossas aulas diárias, ou mesmo quando não
está tentando, como agora, com o peitoral despido e o abdômen a mostra. Ele não consegue ser
leve.
— É impressionante como você acredita no potencial do seu aluno. — brinca, divertindo-se
com a minha afirmação.
Mas estou bem séria.
— Você tentaria ir ao Bolshoi se eu não fosse para o Royal? — reflito, abrindo um sorriso
com a constatação. — Você não me deixaria nunca! — Inclino-me para beijá-lo em forma de
agradecimento. — Você não vai me levar para a Rússia. Como vai fazer com o espetáculo?
Ele fita o fundo dos meus olhos.
— Vou pensar em algo, Oceano.
A TEMPORADA DE CAÇA SE INICIA

Estou deitada na mesa presidencial de Damon, assistindo-o vestir a camisa enquanto


mantenho a posição, e ele não parece nem um pouco preocupado se a porra que escorre de mim
está sujando o que restou dos documentos. Ele desvia a atenção dos botões da roupa para me fitar
como se estivesse orgulhoso de me ver assim no seu trono de poder.
Sem dizer nada, caminha até chegar bem perto, passa os braços em torno da minha cintura e
me ajuda a descer da mesa. No segundo em que me levanto, percebo que em algum momento
minha calcinha foi rasgada, de modo que seu orgasmo desce pelas minhas pernas, mas me sujar
inteira não é o único problema.
— Damon, você rasgou trinta mil dólares. — Aponto para a peça azul no chão. — E agora
terei que voltar nua.
Ele põe a mão na cintura, com a gravata solta no colarinho. Então vai até o chão e levanta o
vestido.
— Trinta mil dólares nisso?
Endireito a coluna, sem compreender a sua postura. Será que meu novo Dono não gosta que
eu gaste dinheiro com roupas?
— E-eu gosto de moda. — Explico, com o rubor subindo. — Esse é Dior, coleção de verão
do ano passado. Meu Dono antigo...
Faz que não.
— Aleks, trinta mil não é nem o meu café da manhã. — Joga a peça no lixo. Vem até mim
outra vez, como se houvesse um imã que o puxa. — Se tudo der certo. — Acaricia meu cabelo,
atento nos detalhes do meu rosto. — Posso te levar na Semana de Moda, assim você escolhe
peças exclusivas direto com os estilistas.
O brilho nos meus olhos se acende.
— Sério? — sorrio com a ideia. — Você iria comigo?
— A minha mãe era uma modelo muito famosa, — pega um porta-retrato. — Papai sempre
ia assisti-la e as vezes nos deixava dar boa sorte para ela nos backstages.
Fico mais tempo do que o normal observando cada detalhe do rosto da mulher que Damon
tanto fala. É óbvio de onde vem sua beleza e seu sorriso, a mãe dele tinha o sorriso mais lindo
que já vi, preenchia todo o seu rosto, com os gêmeos pequenos no colo.
— Ela parece ser muito feliz por ter vocês. — Mostro, e ele se aproxima do porta-retrato,
mas não o devolvo, sem tirar meus olhos dela.
— Eu a conheço de algum lugar. — Comento, tentando lembrar.
— Ela foi o maior ícone aqui na América. — Fala, empolgado. — Ela era muito querida e
famosa, até hoje as pessoas falam dela.
Balanço a cabeça.
— Deve ser. — Devolvo a fotografia.
Vou até o banheiro, estou no meio do meu xixi quando repenso as palavras do meu Dono.
— Damon?
Ele aparece na porta.
— Você disse “se tudo der certo” — faço aspas. — E se não der?
Damon não tem a resposta.
Ele fica comigo até a secretária aparecer com outro par de roupa, mas está muito
concentrado no seu celular, mandando mensagens, sem reparar em mim andando só de laço na
cabeça, pela sala dele a procura de algo para perguntar sobre sua vida. Fito o convite no lixo.
— O que é esse espetáculo? — pergunto, indo até o seu colo.
Ele desliga o celular quando chego perto, e o deixa com a tela para baixo.
— Em teoria, o evento de apresentação do EuroOásis. — Me abraça, olhando perdidamente
para os meus peitos.
Não faço ideia de como é o mundo corporativo e Damon parece perceber.
— Vou te mostrar.
Inclino a cabeça para o lado.
— Tem como?
Depois que a assistente entrega a peça e eu me visto, Damon me leva a outro passeio pela
empresa.
— Mare — chama a mulher cuidadosamente. — Arruma a minha sala, por favor.
Dessa vez, a sensação de ser observada é ainda maior, com o CEO me guiando com as mãos
na minha cintura, a roupa diferente e meu penteado bagunçado pela mesa em que Damon me
comeu.
Nos seus braços, é como se estivesse vivendo um sonho, e eu só consigo pensar em como é
bom me sentir assim, valorizada.
— Por que pede por favor quando deve mandar? — indago, quando entramos no elevador.
— Minha mãe me ensinou. Seu antigo Dono não conhece, eu sei.
É para ser engraçado, mas a menção dele me faz lembrar do convite.
— Foi ele que enviou o convite?
— Não, Oceano. — Sente pesar, como se fosse ainda pior. — Foi aquela mulher. Europa.
A porta do elevador se abre, porém continuo paralisada.
— Mas está exatamente do jeito que meu antigo Dono enviava para mim.
A princípio, Damon não responde. Apenas estende a mão, pedindo a minha. Encaixamos os
nossos dedos e ele desfila comigo por um andar silencioso, cheio de pessoas com computadores
e impressoras de objetos, até uma porta transparente.
No centro de uma sala espaçosa, iluminada por uma luz suave e focada, há uma maquete
imponente que simula o EuroOásis da Arábia Saudita aos países europeus por meio de uma
extensa rede de tubulações.
O terreno da maquete, uma representação em miniatura do vasto território, exibe detalhes
impressionantes. Os campos de petróleo e gás na Arábia Saudita são habilmente esculpidos, cada
torre e plataforma refletindo a magnitude da riqueza energética que impulsionará o projeto. A
maquete segue as linhas geográficas, traçando o caminho intricado das tubulações que cortam
continentes e oceanos, e as Miniaturas de cidades possuem detalhes arquitetônicos distintos e
iluminação LED que destaca os centros urbanos.
— Esse é o EuroOásis. — Liga a maquete, com painéis touch screen que fornecem
informações em tempo real sobre a capacidade de produção, as reservas de gás e os marcos
importantes do projeto. A iluminação da sala também é ajustada para simular as diferentes fases
do dia, ressaltando a ideia de uma operação contínua e ininterrupta. — Você precisa saber que eu
roubei esse projeto de Cherrie, e a Europa quer se vingar de mim, usando você.
Então Damon me conta que ela armou o nosso encontro, cada detalhe, para que
terminássemos aqui, juntos, e agora ela exige que eu vá no espetáculo, o que Damon acredita ser
uma armadilha.
— O que ela tem a ver com o meu ex Dono?
— Ela é a filha dele, e acredite, eles são loucos pelo outro.
Respiro fundo. Então foi ela quem matou Corsário e enviou o corpo dele de presente de
Natal. Ela pediu para meu Dono fazer essa maldade comigo? E ele fez, só para mexer com
Damon? Meu coração bate forte, carregado de tanta mágoa. Lembro de estar no banheiro do
hospital, de ver as marcas e a dor no xixi e raciocinar que ele nunca fez nada parecido antes.
Como se ele tivesse deixado as marcas de propósito.
— Ele tem filha? — estranho a ideia.
— Ele já te disse algo?
Balanço a cabeça, que não.
Ele me explica mais algumas coisas sobre o EuroOásis, como o impacto geopolítico e a
revolta da mídia, explica como nunca desejou fazer parte disso, mas ainda assim aceitou, pela
liberdade que ganharia como Torre. Eu o abraço e o conforto, todos fazemos coisas que não
queremos, às vezes, isso não nos torna maus, apenas humanos.
Damon me abraça e agradece pelas palavras, por entendê-lo tão bem. Aproveita o horário e
me leva para almoçar em um restaurante de comida francesa, e é delicioso. Parece que, enquanto
estivermos juntos, nada de ruim pode acontecer a nós dois.
Ele precisa voltar ao trabalho, mas promete ir me visitar mais tarde. Minha tarde também vai
ser cheia, tenho terapia logo em seguida. Conto a Dra Lauren sobre o meu Dono, Europa, o fato
de eu sentir um buraco vazio nas minhas memórias e o medo do que meu antigo Dono pode
contar para Damon, ou a sensação constante de alerta.
A médica explica que a culpa não é minha. Esses pensamentos que vem sem controle, sem
que eu os chame, manchando os melhores momentos com sangue, bagunçando toda a minha
mente com lembranças assustadoras, são do TOC e do TEPT.
É que eu estou cansada de ter medo.
— Tenho vontade de puxar esses monstros de dentro de mim, — exponho, com a mão na
boca, movendo os pés. — Arrancá-los do lugar escuro que meu antigo Dono os escondeu,
entende?
— Seria bem mais fácil mandar em nosso cérebro do que deixá-lo decidir o que é melhor
para nós, não é?
— E se... — suspiro e ela encoraja com um gesto de cabeça. — E se você usar a hipnose
para clarear o que está na escuridão?
A psiquiatra demora um tempo antes de se pronunciar.
— Para introduzir esse assunto, gostaria de contar uma das coisas mais fascinantes que eu
aprendi na faculdade e o motivo pelo qual sou especialista em estresse pós-traumático. — O
semblante dela se ilumina quando começa, feito uma criança que quer contar sobre o seu
brinquedo novo. — Nosso cérebro acessa memórias o tempo todo. — Fita-me em busca de
exemplos. — Onde estão as chaves do seu carro, o nome do seu cachorro, qual o número do seu
calçado… — Aponta para o meu pé. — Mas isso não significa que elas são cem por cento
confiáveis.
— Não?
— Nossas memórias ficam guardadas no hipocampo e são como fios de conexão que
relacionam as informações aos nossos neurônios. Quando você precisa lembrar alguma data, por
exemplo, aquele caminho é ativado e entrega a informação correta. — Começa a desenhar
rabiscos no papel. — O tempo todo, a cada memória, ele precisa encontrar o caminho. O
problema é que nosso cérebro precisa que esse “estacionamento” e essas “ruas” estejam livres,
para chegar no caminho, então ele trabalha o tempo todo escolhendo o que apagar. Desde
coisinhas pequenas e insignificantes a eventos horríveis que o cérebro entende que é melhor
apagar para garantir nossa saúde mental.
Assusto-me com a informação.
— E é aí que entra a memória persistente. Ela nasce de uma falha na memória, na
recuperação de informações perturbadoras que gostaríamos de ignorar, e leva a fobias
infundadas, traumas e estresse pós-traumático, entende?
Balanço a cabeça.
— Ela apaga experiências muito, muito ruins, mas deixa o rastro. É isso?
— Exatamente. O problema é que, não raramente, precisamos lembrar de coisas que ele
esqueceu, e aí entra outro hemisfério. — Faz o rascunho de um cérebro no papel. — Para dar
sentido à história, ele recorre ao que puder usar de caminho, à imaginação ou, ainda, a outras
opiniões.
— E onde entra a hipnose?
— Existem muitos caminhos dentro do nosso cérebro, que apenas nosso inconsciente tem a
chave. Com a hipnose, todas essas portas, esses caminhos ficam livre, e é muito perigoso deixar
todas as nossas barreiras desprotegidas. Dá para tirar ou colocar qualquer coisa dentro do nosso
cérebro.
Suspiro, perdida. Lauren promete que, com a terapia comportamental cognitiva, meu cérebro
vai sarar e dar as respostas que preciso. Mas, quanto tempo vou ter que esperar?
Volto para casa pensando nisso. Meldora e Conrad estão me esperando na porta do elevador,
e eu me ajoelho para receber lambeijos. Chamo por Gulnara, mas ela deve estar dormindo em
algum lugar, subo para o quarto, tomo banho, e desço para a minha aula particular de física.
Aleks: por que uma bailarina precisa estudar física?
Damon me manda um link de um vídeo explicando a física por trás dos fouettes, mas só
assisto depois que a minha professora vai embora, e mando mensagem para Damon, perguntando
se ele vai levar os cachorros para o passeio da tarde comigo, mas ele diz que não vai conseguir,
então pego as coleiras e coloco, um a um.
Não encontro a Gulnara.
Um frio percorre a minha espinha. Chamo as funcionárias e a babá explica que fez o passeio
da manhã com os três, me ajudando a procurar. Meu coração dispara só de pensar no pior, e o
suor frio nas palmas das minhas mãos manifestarem o tamanho do meu desespero a cada vez que
a chamo e não encontro a minha filhotinha.
Meus olhos se enchem de lágrimas quando lembro que recebi minha família com cinco
cachorros, mas dois filhotes já foram mortos e a Gulnara era a minha filha favorita, a que vivia
no meu colo e que eu fazia de bolsinha de água quente quando sentia cólica. Os funcionários
tentam me acalmar e ligam para Damon.
Não sei se está doendo por Gulnara ou por lembrar de como foi perder Odalisca e Corsário.
O buraco cresce no meu peito a cada vez que continuo chamando e ela não aparece. Sinto meu
coração se devastar, os olhos ardem, pesados de lágrimas que teimam em cair como gotas
salgadas de desespero.
Damon está comigo no segundo seguinte.
— Traz um calmante. — Ordena para as funcionárias, antes de segurar no meu rosto com as
duas mãos e me pedir para respirar. — Nós vamos achar ela, ninguém entrou aqui no seu
apartamento, ela deve ter entrado no elevador.
Há uma sensação de vazio profunda quando penso nela sozinha, assustada e machucada, e
um buraco negro no centro do peito suga toda a minha esperança e alegria. Damon me entrega o
remédio e eu recuso, então ele dá o comando, colocando na boca e pedindo para eu engolir.
Damon me leva até o sofá e coloca Conrad e Meldora para ficarem comigo, enquanto briga
com a equipe de segurança usando um tom de voz que desconheço. No restante do tempo, fica
fazendo ligações e se trancando no banheiro para xingar no telefone.
Algum tempo depois Dylan chega, se senta perto de mim e sorri com condolências, depois
um homem chamando Zaki se apresenta e, por fim, Cartier.
Zaki também é magro, o mais alto dos quatro por causa do pescoço. Ele tem a pele escura e
olhos retos com um olhar afiado de navalha, com traços nativo-americanos mesclados a traços
leste-asiáticos, a boca grossa. E eu acho que ele e Cartier são primos, embora os olhos de Cartier
sejam bem menores, a boca mais fina e cabelos dourados como o sol.
Dos três, o loiro é o que me dá mais medo, de uma maneira irracional. Deve ser a sua
aparência. Cartier é alto como Zaki, mas tem o triplo de músculos. Ele é enorme e exala uma
coisa animalesca que me faz sentir pena das suas Bonecas, o que é engraçado, pois elas parecem
ser loucas por ele.
Ele também é o mais irritante. Insiste que eu volte para a Rússia.
Dylan se levanta, irritado.
— Quer dizer que ela perde metade da vida, perde a inocência, perde o namorado, perde os
cachorros e perde a vida nova? — Argumenta, enquanto Damon mantém a mão na cintura. —
Ela tem que ficar onde ela quiser.
Cartier sussurra, mas eu leio seus lábios.
— Em um caixão serve?
— Não tem porque a Europa fazer tudo isso, também. — Zaki se pronuncia. — Ela iria
perder a Ascensão de qualquer jeito.
— Não faz sentido o George perder a amizade com uma Torre a troca de nada, só porque a
filha pediu. — Cartier argumenta.
— Sendo que ele é o Rei. — Damon frisa. — O responsável por negar a Ascensão a
Cherrie, é ele.
— Tem algo que estamos deixando passar...
Os três estão discutindo sobre isso quando um funcionário avisa que chegou um maldito
presente, e Damon pede para eu subir, mas nego. Dá o comando e eu, aos prantos, imploro para
ver a Gulnara, nem que seja morta.
Cartier é quem coloca a caixa na mesa, idêntica as que meu Dono me dava, grande o
bastante para ter o corpo dela, inteiro ou desmembrado, e sou tomada por uma raiva que queima
dentro de mim, me impulsionando a reagir e a tomar a frente, apesar das tentativas de Damon de
me segurar.
— Deixa ela. — Os meninos defendem.
Ondas de adrenalina lavam meu corpo com tremores, no instante em que seguro a tampa da
caixa e a abro, preparada para o pior.
Tudo o que tem dentro é uma carta.
Meu coração para de bater.
Em um movimento, Damon tenta tirar da minha mão e eu desvio com um passo de dança,
me afastando enquanto abro o envelope aveludado.
— Aleksandryia, me dê! — ele exige, com a voz trêmula de desespero.
Mas eu não vou obedecer, eu preciso ler o que meu Dono escreveu.
É a carta mais longa que ele já me deu.
— Leia em voz alta. — Alguns deles pede, e eu faço que não, me afastando em busca de
silêncio.
“Querida Aleksandryia,
Recebi um convite para um espetáculo, e confirmei minha presença.
Ouvi dizer que você vai dançar.
Você deve estar se perguntando o motivo de tudo, e acho justo te contar, olhando nos seus
olhos, de igual para igual. Sei que você tem receio. Não se preocupe, eu te dei a Damon, não
vou tirá-la dele, assim como te dei seus cachorros, e quero, mais que tudo, te devolver a
Gulnara, sã e salva.
Contarei as horas.
Seu, para sempre.”
Subo a atenção para Damon, e seu olhar brilha por alguns segundos, como uma estrela-
cadente que atinge seu auge antes de cair e desaparecer.
— Me dá a carta. — Ordena.
Não sei o que estou pensando quando coloco a carta na boca, a mastigo e a engulo.
XEQUE-MATE

Tudo o que consigo pensar enquanto assisto Aleks reagir a carta é que ela vai me trocar por
George quantas vezes for preciso.
— Vou nos Young ver se a cadelinha está lá. — Cartier avisa.
— Está falando da Europa? — Zaki tira uma piada da situação.
Encaro o loiro estender a mão para um cumprimento que aceito com o melhor sorriso que
tenho.
— Obrigado, amigo.
— Vou junto. — Zaki me dá um toque das mãos.
Levo-os até a porta, mas meu irmão fica absorto em pensamentos, observando a vista dos
janelões. Dylan também tem motivos para estar triste.
— Desculpas não ter falado da Europa antes. — Assumo que seja o motivo. — Eu devia ter
contado que era ela...
Ri, com mágoa de si mesmo.
— Eu devia ter percebido que não era a minha Cherrie. — Fita-me com os olhos cheios de
lágrimas. — Como eu posso dizer que a amo, se nem sequer percebo quando ela vai embora?
Desvio o olhar dele para Aleks, feito um zumbi no sofá da sala.
— Você é um bom namorado. — Lembro de todas as vezes que ele cuidou e deu a Cherrie o
que mais ninguém é capaz de oferecer à garota que tem o mundo. — Ela ficou dois anos estável
e sem crise dissociativa, foi um recorde.
Balança a cabeça, negativo.
— Ela cuidou de mim, nesses dois anos. Ela me entendeu, nesses dois anos. — Sua voz
embarga. — Ela fez tudo por nós, nesses dois anos.
— Não é verdade...
Suspira profundamente.
— Para eu não perceber, nosso namoro não existe há muito tempo, Dam.
Fico quieto porque, de fato, Dylan não ter reparado, sendo que eu percebi no momento em
que ela pisou na América, evidencia que a cabeça dele está longe.
— Tira um tempo para rever as coisas, pensar em tudo, quando ela voltar vocês conversam.
Se ela voltar. Sinto um arrepio com a ideia.
— E você cuida dela — aponta para Aleks. — Sobre o espetáculo...
— Não vou levá-la.
— Vai ser pior. — Alerta. — Se você não a levar, e não fazer do jeito que a Europa quer...
Ela vai se vingar.
Tornamos a observar a bailarina e eu sinto no meu coração uma ferida ser reaberta, fazendo
com que o vazio pulsante ecoe através de cada batida.
— Eu vou perder Aleks para ele. — Como dói me dar conta disso, e ele fica em silêncio,
porque sabe não posso competir com o Rei. — Não importa quantas vezes eu faça de tudo para
salvá-la... — Meu timbre sai quebrado. — Você viu como ela ficou, só com uma carta dele?
— Você está fazendo tudo o que pode, Damon. Não vai poder esconder ela para sempre.
É, e sentir que tudo não é o bastante enche meus ombros com uma carga de sensações
pesadas, como se a tristeza se manifestasse fisicamente, infiltrando-se nos meus ossos.
— Eu achei que estava fazendo tudo para a mamãe, também. — A frase reverbera ao nosso
redor.
Ele deita a cabeça no meu ombro, e permanecemos assim por alguns minutos, dando suporte
emocional um ao outro.
É impossível não sentir a nossa união por lembrar de todas as vezes que choramos juntos,
com o luto dela, e depois o de papai, que eu suprimi, de ódio, e ele entrou em depressão. Mesmo
nessa situação terrível, me sinto grato por tê-lo.
— Estamos na merda juntos. — Ele ri no meio de uma fungada de tristeza.
— Finalmente estamos quites. — Brinco.
Ele estava bem, solteiro, enquanto eu vivia o meu relacionamento mais tóxico, com
Beatrice. Ele estava bem com a Cherrie enquanto eu lutava por Ellie até não ter mais forças
E, agora, cá estou eu, fazendo tudo outra vez, numa intensidade muito maior.
Meu celular vibra com a mensagem da psicóloga, me orientando a como lidar com essa
situação.
— Vou indo — faz carinho na minha cabeça, se afastando. — Cuida dela.
É o que decido fazer, a vendo no sofá, olhando para um lugar fixo, embora um lado infantil
dentro de mim deseje fazer birra até ela sair do transe e perceber que eu também estou sofrendo
com tudo o que ela está passando, para que sinta por mim qualquer coisa forte o bastante para
que não ouse me deixar morrer na praia.
Sento-me ao seu lado e ofereço toque físico no seu ombro.
— Vamos para cima? — ela demora para responder.
Guio-a até o seu quarto, onde ela me espera na cama, preparar um banho com água quente,
como a médica orientou, perfumada como a bailarina gosta. Ajudo Aleks a tirar a roupa e a
entrar na água. Peço rapidamente para uma das funcionárias, na porta do quarto, a sopa de
beterrabas que ela gosta, mas, quando volto ao banheiro está tentando se afogar na banheira.
— Aleks! — puxo-a com o grito preso na garganta.
Ela sorri um sorriso que não é dela.
— Eu gosto de mergulhar. — Fala calmamente, com o rosto e os cabelos molhados, os
lindos olhos azuis perdidos.
E tenta imergir de novo, porém não deixo.
— Para com isso! — Brigo com a voz sussurrada, e então a abraço tão forte que ela se
debate para alguns instantes antes de me abraçar forte e liberar o choro preso desde que leu a
carta.
Aleks faz muitos porquês enquanto chora, inconformada com o fato dele tê-la machucado.
Diz:
— Eu dei tudo para ele.
— Eu sei... — acaricio seus cabelos molhados. — Eu sei, Oceano.
Depois que ela se acalma, visto-a com o roupão fofinho e a guio até a cama. Aconchego-a, e
brinco sobre como Meldora e Conrard estão nos travesseiros, esperando pela mamãe deles. Ela
os abraça e chora mais, agora por Gulnara.
Batem na porta com a sopa russa, e eu sento-me na pontinha da cama para dar na boca de
Aleks. Ela sorri quando sente o aroma, com Meldora no colo, e meu coração se derrete em ver
que a minha borboleta russa está voltando ao normal.
— Eu consigo comer. — Sorri, mas abre a boca para receber as colheradas.
Percorro os olhos pelo seu lindo rosto, e, de repente, nada mais importa além dela. Não
tenho mágoa, mas sim paciência e disposição para dar tudo de mim, todos os dias, por ela, assim
como faria tudo de novo para minha mãe, mil vezes mais, se soubesse que a perderia.
— Eu amo cuidar de você, Oceano. — Sorrio, emocionado. — Amo você.
Ela abaixa o olhar, reflexiva, abrindo a boca para ganhar mais comida com uma graça que eu
não resisto, porém torna a me fitar com seriedade.
— Dono. — Seu semblante é convicto. — Vou no espetáculo com você.
Sinto o ar que preenche meu pulmão ficar pesado.
— Ele pediu?
— Eu vou me apresentar no espetáculo.
Coloco a sopa na mesa de cabeceira, por causa das mãos trêmulas.
— Ele deu o comando?
Então Aleks segura no meu pulso, e eu nunca vi esse olhar nela. É confiante.
— Vamos nos apresentar no espetáculo. — Corrige, resoluta. — Pas de deux, Odile e
Siegfried, a variação da traição, o Pas de deux negro. — Se ajeita na cabeceira da cama, com as
costas eretas. — Vamos mostrar a eles que também sabemos jogar esse Jogo.
Estou boquiaberto.
— Um dos pas de deux mais difíceis do ballet? — acho fofo ela achar que consigo. —
Aleks, voltei a fazer ballet agora, com você, depois de anos parado. Não tenho tanta técnica.
— Você tem muito talento, só precisa desenferrujar. — Acaricia minha barba. — Eu te
ensino, não acha que consigo?
Não quero desanimá-la.
— Não é só chegar e dançar, Aleks. E depois?
Faz carinho nas orelhas de Meldora.
— Ele disse que não vai me machucar.
Inclino a cabeça para o lado, pesando as pálpebras.
— Depois de tudo o que ele te fez, você ainda acredita?
Seu olhar cruza o meu.
— Queria que ele me visse com você. — Confessa com um sorrisinho entre os lábios
fechados que me faz inclinar a cabeça e beijar sua boca vermelha. — E ele vai me devolver
Gulnara, — explica, abraçando Conrad.
Levanto-me, agitado demais para ficar na mesma posição.
— O Cartier foi na casa do seu ex Dono buscar Gulnara.
— Foi? — dá um largo sorriso.
Aproximo-me dela outra vez.
— Pode dormir. — Acaricio seus cabelos, beijando sua testa. — Vou ficar falando com ele.
Ela me encara no fundo dos olhos e eu penso que finalmente vou ouvir um “eu te amo”.
— Obrigada por cuidar tanto de mim.
Nossas íris se encontram. A essa altura, já compartilhamos um repertório de olhares, e esse
diz quão forte e mútuo é o que nutrimos um pelo outro. Fico na poltrona ao lado da cama,
pensando no quanto não aceito perder o evento mais lindo e raro que cruzou minha existência.
Não vou perder Aleksandryia,
Arrepio-me com a ideia insana que me faz abrir um sorriso. Não posso matar o Rei sem
derrubar o tabuleiro, porém, quando as peças caem, o Jogo recomeça. Será que é tão ruim assim?
Ninguém conseguiu dar xeque-mate até agora, é verdade, mas tenho semanas até um grande
espetáculo acontecer.
Vou preparar um show especial para George Young.
ABERTURA DO ESPETÁCULO

Enquanto me encaro pela última vez no espelho, o agridoce se fortalece em meu paladar, um
misto de alegria e medo. Fecho os olhos e inspiro tão profundamente quanto consigo, na
tentativa de compreender o motivo das emoções que guerreiam dentro de mim.
Passo os dedos pelo corselete que desenha minha silhueta, contornando o busto com o
decote coração que desce e agarra minha cintura em centímetros menores do que sua
circunferência natural, tornando custoso respirar, apertando meus seios sensíveis com a tensão
pré-menstrual latente.
Existem muitos motivos para eu estar com medo e o fato da minha menstruação descer no
meio da festa deveria ser o menor deles, mas não é. Desde o evento catastrófico, só menstruei
uma vez, e a funcionária que cuida de mim auxiliou nas trocas de absorventes, de modo que a
única gota de sangue que vi foi a dos lábios do Damon, que não me assustou. Além disso, estou
tratando a endometriose e, pelo meu atraso, provavelmente meu ciclo desregulou.
Existem coisas muito piores do que meu próprio sangue me esperando no espetáculo.
Meu antigo Dono estará lá.
Quando penso nisso, o medo tenta me puxar para trás, envolvendo-me em suas garras frias,
mas a coragem me empurra para frente, instigando-me a dar voz aos sentimentos que até então
permaneceram calados, em algo mais forte que a mágoa, parecido com fúria.
Tento esquecer os pensamentos e voltar para o mundo real, passando a mão no corpete. A
frieza presente nas pedras bordadas no tecido firme me traz a nostálgica ansiedade que me
impulsionava a dar meu melhor antes de entrar no palco, quando eu era bailarina de porta joias.
Sinto um enjoo frequente, todas as vezes que minha mente me traz flashes das coisas que
vivi, nos últimos anos, de modo que emagreci alguns quilos, nas últimas semanas, ansiosa por
esse evento.
O medo é como uma sombra que se estende por minha mente, projetando imagens sombrias
de possíveis consequências. A incerteza do que está por vir cria um frio na espinha, uma
hesitação tenta me fazer recuar para a segurança dos braços de Damon.
Ao mesmo tempo, a coragem é como uma centelha que teima em iluminar o escuro. É como
se eu estivesse na borda de um abismo, com o medo sussurrando que qualquer passo em falso
pode me levar a uma queda irreversível, mas, ao mesmo tempo, eu quero saber o que tem lá
embaixo.
Desço a mão, acariciando o tutu preto, feliz por ter coragem de vestir o traje completo de
Odile, após tanto tempo.
Treinamos incansavelmente nas últimas semanas e isso nos aproximou muito. Quando
estamos na sala de dança, Damon me deixa no comando. Meu Dono se coloca na posição de
aluno e me deixa exigir cada movimento, de cabeça baixa, obediente. Ele também é muito
dedicado, e eu sei que dá conta da apresentação.
Estamos prontos, agora.
Subo o olhar para o reflexo do meu rosto. As íris azuis parecem mais vivas com o realce que
o delineado preto proporciona, os cílios estão cheios e negros e as maçãs do meu rosto, rosadas.
É bom ver tantas cores vivas e vibrantes no meu rosto após anos vivendo em meio a escombros
acinzentados.
Trago o batom na altura dos olhos, quase fascinada pelo bastão vermelho bordô como
sangue coagulado e fito-o por vagarosos segundos até desfocar a vista dele para a minha
aparência no espelho. O espelho. O vermelho. Meu rosto. O vermelho. Meu rosto; o espelho. O
espelho; o vermelho. Meu antigo Dono.
Meu cérebro trava.
Como meu antigo Dono vai reagir quando me ver?
Balanço a cabeça, mandando embora o pensamento, mas meu estômago se contorce de
ansiedade e um ardor sobe das pontas dos dedos dos pés até incendiar meu corpo e minha alma.
Parece que, ao mesmo tempo em que meu corpo está prestes a entrar em combustão, meu cérebro
tenta, usando como arma as minhas piores lembranças, me manter congelada no espaço-tempo,
afogada no fundo do oceano Ártico.
Levo o batom para os meus lábios, pensando no quanto esse espetáculo representa e, ao
sentir a coragem crescer dentro de mim, passo-o com voracidade, colorindo não apenas a boca,
mas principalmente a alma. Borro os cantos pelo excesso de emoção exteriorizada nos contornos
e, em seguida, mancho os dedos de vermelho, limpando os cantos. Dedos sujos com vermelho.
Meu rosto. O espelho. O vermelho.
— Você está tão linda. — A voz de Damon reverbera atrás de mim, de modo que me viro
assustada para encará-lo.
Depois de meses convivendo com esse homem, estou acostumada com sua beleza,
entretanto, quando me viro para encará-lo, consigo perder o fôlego. Admiro-o dos pés à cabeça.
Ele parece um príncipe de repertório com os trajes de Siegfried. A camisa branca, com seus
delicados bordados, ressalta a beleza dos seus ombros e peitoral, com botões dourados que
parecem reluzir à medida que ele caminha na minha direção.
O colete azul profundo acrescenta uma dimensão de nobreza ao conjunto, destacando sua
postura imponente, e a capa acrescenta uma aura majestosa, transformando-o em algo misterioso
e poderoso.
E o meu detalhe favorito, as calças de veludo negro, com o tecido se ajustando em cada
músculo da perna além do volume definido no meio delas.
— Dono... — chamo sua atenção com um sorriso no rosto. — Suas calças.
Damon acompanha o meu olhar, então me fita com um sorriso safado que incendeia cada
célula de mim.
— Eu esqueci desse detalhe. — Ele está duro, muito duro. — O que faço? — pergunta,
brincalhão.
— Vai passar. — Provoco, colocando a maquiagem e absorventes em minha clutch.
No instante seguinte, ele está atrás de mim.
— Olha para você, Aleks. — Sua voz sai rouca. — Não vai... — Abraça-me por trás. —
Vou te desejar a noite inteira...
Viro-me, ficando de frente para ele. Com uma ousadia despretensiosa, coloco a mãos dentro
da sua calça, seguro no seu pau e o aperto, com a boca ficando cheia d’água só com a sua
sensação de tê-lo nas mãos, e Damon me assiste mexer o volume com a respiração falha, até que
eu o esconda em um truque que bailarinos fazem.
E, então, nos encaramos por mais alguns segundos, nossos olhares sintonizados em um canal
de comunicação para que nossas almas dialoguem. Sorrimos um para o outro.
Pergunto-me se, ao final da noite, seremos mais ou menos humanos do que somos agora.

Na entrada de Old Westbury, é possível ver trânsito construído por jaguares blindados
enfileirados, o modelo exclusivo dos Sangue em Ascensão, chegando para o espetáculo com suas
hordas de seguranças.
Damon está estranhamente calado, mas quando vou perguntar, somos interrompidos pelo
imenso chafariz jorrando vermelho-sangue, no coração da vila privativa mais luxuosa dos
Estados Unidos, coração da economia mundial — o lar dos Sangue em Ascensão.
Sinto, no fundo do meu coração, que esse espetáculo foi orquestrado para me enlouquecer.
— Que droga. — Ele xinga baixo. — Eu proibi os chafarizes...
Mas ignoro a intuição.
— Tudo bem. — Viro para o outro lado. — De quem é essa mansão?
Por fora, mantenho a pose e a compostura na tentativa de fortalecer e convencer o meu Dono
a não desistir do evento mais importante da sua carreira, sem deixar transparecer que meu corpo
inteiro sucumbe a temores e arrepios que precedem crise.
Eu só quero ser forte na minha conversa com meu antigo Dono.
E, à medida que passamos na frente das mansões magnificentes, todas com seus
deslumbrantes chafarizes esculpidos com detalhes de xadrez jorrando vermelho, com as
iluminações das fachadas entregando um rubro quase encantado, pergunto-me se há como ficar
mais sinistro do que isso.
Então o carro se aproxima e o suntuoso portão de bronze marcado por desenhos de pedrarias
abre-se para nós.
— Essa é a minha casa. — Ele apresenta.
E, embora, por fora, se assemelhe a todas as mansões vizinhas, o interior da propriedade
Duncan expressa a personalidade e a excentricidade que se espera do território de um Sangue em
Ascensão.
Damon desce do carro e estica a mão para me ajudar a descer, explicando a rota de
segurança. No segundo em que aceito o seu toque, fito o céu escuro acima da minha cabeça e
imploro por coragem, embora saiba que clamor nenhum vai me ajudar, se eu vim por livre e
espontânea vontade para a toca dos monstros.
— Seguranças de azul são os meus, as câmeras estão em todo lugar para dar cobertura ao
vivo ao evento, então, se sentir medo, fique perto de uma e você será protegida pelos Estados
Unidos todo. Tudo bem?
— Tem certeza de que esse é um bom plano? — indago, embora tenha cansado de ouvi-lo
nos últimos dias.
Acontece que os Sangue em Ascensão fogem da mídia assim como vampiros correm de sol.
Eles são como vultos cuja silhueta apenas outros super ricos conhecem.
Curiosamente, império dos Kühn é um conglomerado de mídia, e ele ajudou Damon a
montar o esquema.
Tudo foi planejado nos detalhes.
Eu e Damon apenas não esperávamos o que vemos quando alcançamos o majestoso jardim
da mansão Duncan, onde a festa foi montada.
Somos os únicos com fantasias.
Todos os outros estão com máscaras.
Minha retina é tomada pela escuridão ao redor, completa e substancial por trás dos corpos
cujas vestimentas de milhares de dólares brilham; lindas Damas com peles de seda que brilham
feito diamante, incrustadas de joias por cima de vestidos majestosos, ao lado de homens que
refletem nos ternos o poder de suas mentes obscuras.
Um intenso perfume luxuoso e sombrio preenche o ar. Quando percebo a mão de Damon
firme em minha cintura, o fito de soslaio, ele desce o rosto e sorri em encorajamento.
— Quer mesmo fazer isso?
Não é como se pudéssemos desistir agora.
As pessoas que nos veem, encararam-nos, admiradas e perplexas, e eu sinto que deveria ir
embora nesse momento, dar meia-volta e recuar enquanto estou perto da porta de entrada.
Entretanto não quero. Meu Dono está me exibindo como o seu maior prêmio, me sinto
importante ao seu lado. Quero enfrentar meu trauma, dançar diante de todos os que me
destruíram e mostrar como eles foram estúpidos.
Vou mostrar ao meu Dono, um a um dos que eu me lembrar.
— Ainda está disposto a me dar mãos de presente?
Ele sorri, porque a noite é nossa.
— Esperei ansiosamente pelo momento que você me daria os nomes.
— Damon! — um homem, com a esposa nos braços, feito um presente que ele usa para
ganhar mais destaque. — Todo esse espetáculo é influência dela? — indaga com sarcasmo.
— Gostou, vovô? — Meu Dono sorri em provocação, abraçando-me. — Aleks, esse é
Gerard Duncan e Aarona Duncan, meus avós.
O casal retira as máscaras para que eu veja seus rostos.
Gerard deve ter uns sessenta, mas nem assim deixa de ser bonito como um Duncan, com um
belo sorriso, maxilar desenhado e postura imponente, e a mulher, Aarona Duncan, irradia
elegância e sofisticação. Vestida em um deslumbrante e impecável vestido de alta costura que
destaca sua silhueta esguia, a Dama me fita de cima a baixo enquanto decide se vai me
cumprimentar, de um jeito que seus cabelos dourados caem suavemente sobre os ombros,
conferindo-lhe um ar de glamour. A maquiagem, sutil e refinada, destaca seus olhos expressivos
e realça seus traços delicados.
— Então você é o novo problema da família? — ela pende a cabeça para o lado, em um tom
que Damon, conversando com o avô, não ouve.
— Não acho que eu seja um problema novo. — Admito, desejando que ela não perceba
quão nervosa estou. — Apenas um que estava escondido.
Ela sorri com a minha resposta, se solta de Gerard e cruza os meus braços, para me levar
para longe, enquanto conta.
— Sabe qual era a brincadeira favorita de Damon? — Damon impede que ela dê mais um
passo, com as mãos nos meus braços.
Aarona balança a cabeça para ele.
— Eu quero contar a ela sobre você e sua infância. — Seu timbre é o som mais sinuoso que
já ouvi na vida.
Damon continua me segurando.
— Outro dia, vovó. Ela será minha esposa, então terão muitos momentos juntas.
Desvio o olhar dela para ele, e sorrio com a declaração, sem entender a dimensão dela. Ele
está falando de casamento? Meu coração dispara com a ideia, lavando meu cérebro com a
enxurrada de dopamina, de modo que só me lembro de Aarona quando ela dá as costas.
— Espera! — paraliso-a. — Qual brincadeira?
A mulher está com a máscara quando se vira.
— Tic-tac.
Minha espinha congela com a ideia que me vem à mente, e eu continuo com meus olhos
fixos em Damon, porque, com ele sorrindo e exalando intimidação a todos os que se aproximam
para nos cumprimentar, sinto que tem algo a mais, só não consigo identificar o que.
— Que brincadeira é essa de tic-tac?
— É uma versão de esconde-esconde que as crianças Sangue em Ascensão brincam. Não
tem nada de mais.
Assinto. Eu e ele brincamos muito de esconde-esconde no último mês, eu adoro, mas, ainda
assim, estico-me para alcançar um dos incontáveis garçons impecavelmente vestidos, que passa
com uma bandeja de bebidas, e bebo toda a taça de champanhe de uma só vez. Duncan me
analisa com preocupação.
— Você não pode beber, Aleks.
— É para eu não perder a cabeça.
Ele diria algo, porém um casal chega, abraçando-o com intimidade. Dão tapinhas nas suas
costas, e sorrisos curiosos para mim.
— Titio, Dama, essa aqui é a próxima Dama Duncan.
Dama? Meu coração dispara.
— Sou Leon Vannozza — ele se apresenta antes de tomar minha mão, sem perceber que
meu corpo inteiro congela com seu toque. — Essa é minha esposa, Bárbara Duncan Vannozza.
— A mulher beija meu rosto, sorrindo majestosamente, sem imaginar que eu já transei com o
marido dela.
— Duncan? — repito. — São parentes? — indago a Damon, chocada. Mais, horrorizada.
— Eu sou irmã gêmea do pai dele. — O homem, atrás dela, parece rir do meu assombro.
Assim que saem, pergunto:
— Jogador ou Peça?
— Peça Forte. Cavalo. — Não entendo bem.
— Ele continuaria Jogando sem as mãos?
O queixo de Damon cai, mas a forma como ele trava o maxilar me excita.
— Só tem um jeito de descobrir...
Alguns funcionários da sua equipe chegam e eles iniciam uma breve conversa de sussurros
inclinados em ouvidos, impossibilitando que eu ouça uma só palavra, principalmente porque uma
orquestra toca e as notas agudas do violino trazem tensão suficiente para me deixar à flor da pele,
com um inebriante palco que embala minha alma.
Trêmula, me coloco a observar a decoração para me distrair. O gutural verde escuro do
gramado arrematado pela noite contrasta com a delicadeza do telhado composto por fitas de
penas de cisnes. Românticas mesas redondas estão alocadas em centímetros estratégicos, com
suntuosos arranjos de flores pretas e brancas, somando às toalhas cintilantes no centro. As luzes
trazem uma atmosfera áurea, e paredões de flores preenchem o baile com um lirismo
condescendente.
Entre as mesas, estão as atrações dos espetáculos, como o palco, a esquerda, um luxuoso
carrossel de prata e azul, casa de espelhos e outros que não conseguimos chegar perto, pois todos
querem falar com Damon a todo momento, tentando afastá-lo de mim.
Isso está errado meu subconsciente repete mais alto.
Sempre que eu pisco, sinto o olhar do meu Dono sobre mim, de modo que torço o pescoço à
procura dos seus olhos. Será que ele está escondido por trás de uma máscara nesse evento? Será
que ele já me viu?
Entorno outra taça quando Damon está de costas, mas ele repara em minhas mãos trêmulas,
porque as toma e as beija, ignorando o casal a sua frente.
— Sua médica está te esperando no estacionamento caso você precise, tudo bem? —
murmura em meu ouvido, preocupado.
Concordo, reunindo coragem para continuar enfrentando meus pesadelos. Ciente de que eu
preciso sair desse ciclo.
Quanto mais adentramos, o corredor de rosas brancas, por cima do espelho de vidro que
expõe o que as máscaras não cobrem, mais olhares caem sobre nós, sedentos e famintos, embora
o luxo sacie.
É curioso que, enquanto eu me desmancho ao seu lado, o Duncan mantém sua postura de
Torre, deixando-me ainda menor com seus ombros posicionados e peito aberto para conquistar
todas as opiniões sobre sua pessoa, sorrindo com inclemência. Uma muralha. Inconscientemente,
tento me esconder atrás do seu braço. Sei que ele vai me proteger. Não deixaria ninguém entrar.
Certo?
Então nos dão o cronograma da noite. Vamos abrir o evento com o nosso pas de deux,
depois Damon irá discursar e apresentar o EuroOásis, e o jantar será servido.
— Está pronta? — Damon me fita com preocupação. — Quer mesmo fazer isso?
É um misto de nervosismo e excitação que dança no meu estômago, criando uma sensação
borbulhante de antecipação.
— Vamos.
Enquanto os funcionários nos levam até a entrada, a luz intensa dos refletores parece
iluminar ainda mais a expectativa que paira no ar, a cada passo que Damon e eu damos, e mais
pessoas nos observam. Cada respiração é acompanhada por uma pontada de ansiedade, como se
meu corpo estivesse sintonizado com a iminência do que está por vir.
As mãos ficam ligeiramente trêmulas, e as pernas, que durante os ensaios se moviam com
confiança, agora sentem uma leve instabilidade, enquanto tento acalmar Damon. Os músculos
estão alerta, prontos para entrar em ação, mas o frio na barriga é uma recordação constante de
que este momento é um marco em nossas vidas.
O clima é carregado de tensão e drama quando entro no pas de deux como Odile, a vilã
sedutora de "O Lago dos Cisnes". Damon, está à minha frente, e a intensidade de nossos olhares
cria uma conexão magnética, silenciando toda a plateia a medida em que a música se eleva, me
impulsionando para um jogo complexo de sedução e traição.
Cada passo e cada gesto meu é um movimento calculado, uma dança intricada de engano.
Imagino que os convidados reconhecem muito bem.
Meus olhos encontram os de Siegfried, e o olhar de Damon é profundo, cheio de promessas
que Odile não vai deixá-lo cumprir. Cada movimento do meu corpo é uma provocação, uma
tentação que desafia a virtude que ele jurou a Odette, a verdadeira princesa cisne.
A coreografia é um equilíbrio perigoso entre a elegância e a traição, onde cada passo um
testemunho da nossa habilidade em manipular as emoções. As minhas piruetas são rápidas e
ardilosas, os arabesques são cheios de malícia, enquanto envolvo o meu Siegfried em uma teia
de falsas promessas.
A atmosfera é eletricamente carregada, e a música parece conduzir nossos corpos em um
dueto de emoções conflitantes. Nosso contato é carregado de uma tensão que ecoa entre nós
como uma sinfonia trágica, e a energia da traição nos envolve como uma sombra, um lembrete
de que neste pas de deux, a manipulação é uma forma de arte.
A amiga dele, Europa, vai se sentir lisonjeada.
Então chegamos ao clímax, onde a traição atinge seu ápice. Damon consegue fazer seu olhar
de adoração se transformar em desespero, quando percebe a gravidade do engano. A música
atinge um crescente dramático, e o pas de deux culmina em uma pose final, onde a traição é
revelada em toda a sua glória sombria.
Todos se levantam para nos saldar com palmas.
Eu pisco e todos se parecem com meu Dono, mas, nesse momento, Damon segura na minha
mão, me dando mais força e coragem. Eu preciso encarar, eles deveriam estar com medo, não eu.
Aproxima os lábios do meu ouvido e, com sua voz grave, diz:
— Obrigado pelo momento mais inesquecível da minha vida. — Então ele me encara
profundamente com seu intenso olhar doce, e me dissolvo em sentimentos. — Eu te amo, cisne
negro.
Deito a cabeça em seu ombro no mesmo segundo, tentando recuperar a compostura,
aceitando parecer profundamente apaixonada pelo meu Dono. Por um instante, sonho com a
ideia de que vamos ficar bem. Dentro do palco, Cartier e Dylan esperam para me levar até a
mesa e cuidar de mim, enquanto Damon se prepara para o discurso, e os Sangue em Ascensão me
observam caminhar em passos de bailarina até a mesa.
Damon sobe no palco de terno e gravata borboleta, tudo preto, como a maioria dos homens.
— Senhoras e senhores. — A voz de Damon suga a atenção de todos. —Preparei esse
espetáculo para compartilhar com vocês um projeto que não apenas marcará um ponto de virada
para a Harding Company, a Duncan e a Young Management mas também terá um impacto
significativo na autonomia energética da Europa.
Observo sorrisos surgindo nos rostos das pessoas, e os olhares se encontrando em gestos de
aprovação. O rosto de Damon brilha com os flashes.
— Como todos nós sabemos, a energia é o motor que impulsiona o crescimento econômico,
a inovação e o progresso. É com esse entendimento profundo que um grupo de pessoas que
vocês conhecem muito bem — todos riem, buscando a mesa de pessoas de olhos verdes, e
Europa pisca para mim. — Se dedicou a criar algo que não só atenda, mas ultrapasse as
necessidades energéticas da Europa.
Alguns erguem as sobrancelhas em reconhecimento, outros trocam olhares de aprovação, e
as expressões de surpresa refletem uma compreensão coletiva de que o EuroOásis não é apenas
mais um projeto, mas algo que eleva o padrão do Jogo.
— Este projeto não é apenas sobre dutos e infraestrutura; é sobre construir uma base sólida
para o futuro energético da Europa, e estamos comprometidos em proporcionar uma fonte
confiável e sustentável de gás natural, reduzindo a dependência externa e fortalecendo a
resiliência do continente.
Uma salva de palmas emerge, expondo a empolgação dos convidados quanto ao que o
projeto de Damon significa, embora eu mesma fique confusa. Damon, no entanto, sorri
largamente, de uma forma que ninguém imaginaria o quanto ele está odiando aquele palco, além
de mim e de Dylan.
— Termina logo, cara. — Dylan murmura.
— Agradeço aos investidores que tornaram o EuroOasis uma realidade, aos nossos parceiros
estratégicos que compartilham nossa visão e a todos os envolvidos neste empreendimento
visionário. Juntos, estamos inaugurando uma nova era na história energética da Europa.
A salva de palmas dura longos minutos, me enchendo de orgulho, por isso, quando Damon
sai do palco, eu me levanto e aviso, afoita para estar do lado do meu Dono.
— Estou indo até ele.
Damon está no nosso campo de visão e estamos no meio das câmeras, então Dylan e Cartier
concordam. Eu só não esperava que, poucos metros atrás de Damon, uma silhueta mais alta que a
de todos os outros se sobressaísse. A máscara negra destaca os seus olhos claros.
Reconheço-o, desde a postura até os ombros largos, o porte dos braços e o modo de andar.
Meu estômago torce com tanta força que pressiono o estômago. Não posso vomitar aqui.
É meu antigo Dono.
TIC TAC, BORBOLETA

Além do coração disparado e do tremor, o ar evapora dos meus pulmões, de modo que eu
busco uma rota vazia pela qual possa escapar do centro das atenções, desviando o olhar para a
figura sombria, que vagueia a atenção à procura da distração para o tédio. Não há tempo.
Dou as costas, rumando em passos largos para o outro lado do gramado, onde as atrações do
espetáculo divertem o público. Dou uma mirada por cima dos ombros, apenas para ter a certeza
de que o meu antigo Dono também está me vendo.
Ele para onde está e assiste meus passos em câmera lenta, feito um felino que se diverte com
a sua borboleta de asas quebradas antes de a devorar.
Nessa fração de segundos, seu olhar me rasga como suas garras. Minhas pernas perdem
momentaneamente a força e eu perco o ar, com o gosto metálico de sangue na boca.
Solto um soluço agudo, enquanto ordeno cada célula do meu corpo que continue a andar,
calmamente, sem chamar a atenção das pessoas que, de tão acostumadas com espetáculos como
os que o de Cirque du Soleil faz nas alturas, parecem mais interessadas em me observar sangrar
na corda bamba.
Sou surpreendida por um cuspidor de fogo, que brinca com uma chama no instante em que
dou um passo. As labaredas fazem eu inclinar meus ombros para trás, e as pessoas próximas do
espetáculo riem, convertendo o meu medo em algo poderoso o bastante para me fazer olhar para
trás.
Ele caminha lentamente em minha direção. Seu sorriso perverso me diz exatamente o que
ele está pensando, afinal, já ouvi seus fetiches o suficiente para reproduzi-los com perfeição.
É perturbador o quão sincronizados somos. Mesmo no meio de uma multidão posso ouvir
sua respiração, contida, se deliciar com a minha, desesperada. Não precisa mostrar o relógio para
que eu saiba que está no seu bolso.
Tic-tac.
Ele quer me pegar. Tic-tac. Ele quer me devorar. Tic-tac. Ele quer saborear o gosto de cada
gota do meu suor assustado. Meu medo o excita e, por alguma razão, apenas meu corpo sabe,
sinto espasmos disso se alojarem na minha calcinha.
É sobrenatural o nível de dominação que ele exerce sobre mim ao ponto de, por mais
assustada que eu esteja, apenas o fato de ser o alvo da sua atenção ser capaz de seduzir partes que
achei que ele tivesse matado. Pedaços da minha alma que vivem apenas para ele.
Assim como na vez em que me hipnotizei e o confundi com Damon, não consigo pensar em
qualquer coisa que não seja meu Dono, como se meu cérebro fosse lobotomizado, em uma
profunda hipnose. É mais difícil traçar uma rota de fuga quando meus pés parecem obedecer à
pessoa errada.
O que resta do meu emocional tenta sair desse transe enquanto desvio das pessoas e das
barracas, porém me sinto presa em minha própria mente, atordoada pela droga psíquica que é o
seu amor doentio.
As únicas coisas que falam mais alto que o grito do meu corpo para ser rasgado, são as
batidas do meu coração, perdidas e erradas. Os meus passos, que tentam me manter segura,
minha respiração, ofegante e trôpega, e as gotas que eu não sei se são lágrimas, suor ou chuva.
Meu racional grita para que Damon me salve, mas, quando finalmente alcanço o carrossel e
me sento, perco completamente as esperanças.
Damon se aproxima do meu Dono e o cumprimenta com o seu sorriso íntimo. Meu Dono
sorri de volta e eu já não sei se a tontura é pelo carrossel que gira, ou pela minha mente
bagunçada. Meu tórax dói tanto que mal consigo respirar. Eles se abraçam. Fecho os olhos.
A dor me atinge feito uma traição. Como ele pôde chorar nos meus braços de ódio do
homem que me violentou, se está o abraçando e sorrindo? Como ele pode ser tão falso?
Damon não quer me salvar, Damon não tem raiva dele. Damon estava fingindo.
Os dois são iguais.
Preciso fitá-los uma última vez antes de sentir cada célula do meu corpo ordenar para que eu
corra.
Descer do carrossel, nessas condições, é um erro. Minhas pernas estão mais bambas do que
eu imaginava e o meu corpo inteiro se contorce em uma ânsia. Vomitar na lata de lixo me atrasa
e, quando levanto a cabeça, os dois estão vindo juntos na minha direção.
Sou inundada por uma sensação tão devastadora que perco a consciência, como se cada
célula ficasse em chamas e, de repente, não sou mais eu. Sou algo muito mais primitivo do que
um ser humano, tateio meu corpo inteiro procurando por algo que alivie esse fogo que me
consome, mas o collant é fechado. As lágrimas rolam dos meus olhos. Desço os dedos até a parte
inferior da peça e os pressiono contra a minha boceta.
Vozes externas me lembram que estou em público e que há crianças em todo lugar. Estou
com medo de olhar para trás, aterrorizada pela ideia de encontrar os dois combinando qual parte
do meu corpo vão dividir para o jantar e, ao mesmo tempo, fricciono uma perna contra a outra,
sem entender como aliviar a sensação que me devora.
Meus dois Donos se separam. Minha mente me entrega inúmeros cenários sobre o que eles
planejam, indo cada um para um lado, como quando duas pessoas se juntam para caçar um
animalzinho indefeso. Enfio uma mão dentro do meu busto só para brincar com meu mamilo
enrijecido enquanto mantenho os dedos contra a boca. Minha intimidade lateja tanto que entro no
primeiro lugar que encontro.
Sei qual é a única forma de sair desse domínio. Preciso me aliviar com a minha coleira.
Está escuro e silencioso aqui dentro. O único ruído que existe é o de um ponteiro,
amplificando a ilusão dos espelhos.
Estou em uma luxuosa casa de espelhos.
Ainda com a mão dentro do busto, esfregando e apertando meu mamilo tão forte que
gemidos escapam da boca e eu os seguro com mordidinha nos lábios, transito entre o labirinto de
corredores estreitos e distorcidos, onde cada parede reflete uma imagem diferente de mim em
cores que mudam a cada tic-tac.
Não me reconheço em nenhuma delas.
Uma dessas ilusões conquista a minha atenção. Não tenho dúvidas sobre o que estou
fazendo quando desço as mãos até os botões da parte de baixo do collant, abrindo-o. Rasgo a
meia-calça, fazendo um buraco. Sei que posso só colocar a calcinha de lado, mas estou em um
estado em que qualquer sinal de timidez não me sustenta.
Desejo ver minha boceta lambuzada se abrir enquanto enfio os meus dedos dentro. Quero
imaginá-la sendo fodida enquanto a fodo com a minha mão.
Não há nada além de outro espelho distorcido atrás de mim, mas não ter onde me apoiar não
me atrapalha. Sou flexível. Levanto a perna o mais alto possível.
Mantenho-me em pé, com a perna esticada em um devellope enquanto me penetro e gemo.
Estou quente, molhada e inchada, entrando e saindo com facilidade e rapidez, completamente
concentrada nos meus próprios estímulos, quando um gemido vence o meu.
Meu Dono está na porta.
Posso ver em seus olhos o quanto a minha imagem o devasta de tesão, na mesma intensidade
com que me ataca. Observo os sinais de racionalidade deixarem os traços do seu rosto esculpido,
assim como os meus me abandonaram no momento em que decidimos ser dois lados da mesma
moeda, caça e caçador.
Isso me lembra de que ainda não acabou. Eu ainda corro perigo e sei que, se cair nas mãos
do meu Dono novamente, perderei o avanço. Meu pulmão se comprime de medo, decepção e
excitação. Quero, mas não posso.
— Continue, cisne negro. — Ele balança a cabeça com uma cara de quem não gostou nem
um pouco de ser poupado dessa visão. — Eu não mandei parar.
Desço lentamente a perna.
É engraçado. Qualquer um poderia dizer que não reconhece a figura que tomou posse do
homem doce, educado e contido, príncipe, cavalheiro nobre. Não eu. Eu o conheço ao ponto de
saber que meu Dono é como um animal enjaulado, lutando contra a própria essência.
Não há motivos para ser civilizado agora.
— Continue o espetáculo, borboleta russa. — Sua voz rouca o torna ainda mais ameaçador.
De repente, não existe mais ninguém entre nós. Não há outro, apenas ele, meu único Dono, e
eu sei qual brincadeira ele me ensinou a gostar.
Deslizo pelos corredores sinuosos da casa de espelhos, com meu coração pulsando pela
urgência da fuga e do prazer. Ainda sinto meu baixo-ventre latejar e a música do ponteiro tocar
mais alto, me enfeitiçando.
Tento correr, o que funciona nas duas primeiras curvas, e então a cor das luzes mudam,
refletindo vermelho. Nesse tic-tac, percebo que a ilusão não está nos espelhos. A cada tic-tac, o
reflexo muda, alterando o labirinto.
— Acho uma pena você querer brincar de se esconder comigo, bailarina. — Meu Dono
arranha o vidro, do outro lado, fazendo um barulho ainda mais grotesco contracenar com o tic-
tac. — Nós fizemos outras vezes, não tem como vencer, eu sempre vou te achar.
Os corredores estreitos criam uma sensação de claustrofobia, enquanto as superfícies
espelhadas capturam e multiplicam a luz, gerando uma atmosfera psicodélica.
— Eu sinto o seu cheiro, bailarina… — A sombra distorcida do meu perseguidor parece
dançar entre os reflexos famintos que multiplicam sua presença ameaçadora. Tento me esquivar
e tropeço.
— Eu vou te encontrar… — Cada reflexo revela um vislumbre diferente da figura que me
caça, me deixando cada vez mais excitada. — Quando isso acontecer… — Não tenho tempo de
me levantar. — Tic-tac…
Começo a rastejar, sem me importar com o meu joelho, ralando. Meu Dono não parece
contente com isso. O som dos espelhos quebrando reverbera, aumentando a intensidade do
momento.
— Estou te vendo pelos espelhos, Aleks. — Cantarola, de um jeito que minha pele se arrepia
com a respiração ofegante do meu caçador. — Estou vendo sua bunda gostosa. — Quebra mais
um espelho. — Eu vou te pegar.
Minha respiração se mistura com a dele, enquanto a aura sensual entre nós intensifica a
atmosfera carregada dessa emoção proibida que faz minhas mãos suarem em contato com o piso
frio. Cada espelho que se despedaça é um fragmento do quebra-cabeça dessa dança perigosa.
— Ah, Aleks, eu não tentaria fugir… — A minha fuga, agora, é mais como uma valsa
distorcida do que uma tentativa desesperada de fugir. — Você não vai escapar, mesmo. Você é
minha.
Meu corpo colide com um espelho distorcido, deixando-me encurralada no labirinto de
sombras. Estou em uma encruzilhada entre os reflexos dos nossos desejos com as sombras do
meu predador, no limiar entre o desejo e o medo.
— Não tente correr, vai ser pior. — Arregaça as mangas, revelando as veias das mãos e
antebraço. — Vou te pegar de qualquer forma, borboleta. Você vai aprender a não fugir de mim.
Levanto-me com os joelhos trêmulos, mas aceito o fim da linha. Isso significa que ele pode
fazer o que quiser comigo, fui condicionada a aceitar qualquer condição, por mais degradante e
humilhante. Aprendi que meu corpo não é meu, e sim um meio de satisfazer meu Dono. Só isso
já é o suficiente, vou me submeter com perfeição, mesmo que doa, mesmo que sangre, mesmo
que eu me despedace por dentro.
Estou pensando quais são as formas que ele irá me sodomizar quando meu Dono ordena que
eu levante a perna em devellope. Seu timbre é ainda mais dominante do que na primeira vez,
denotando que a caça só o deixou com mais fome.
Obedeço. Só não espero o que ele faz em seguida.
Meu Dono caminha lentamente, até ficar frente a frente comigo. Seus lábios estão molhados
e, ainda assim, passa a língua por eles, fazendo-me acompanhar o movimento enquanto desfruto
do seu hálito quente e do perfume misturado com testosterona e suor. A demora me deixa ainda
mais ansiosa e preocupada. Ele não me toca, ele não me beija, ele…
Fica de joelhos.
Perco completamente o ar.
Meu Dono se ajoelha para mim.
Solto um gemido atropelado quando ele abocanha minha boceta com uma fome
avassaladora, apertando minha coxa levantada com uma mão e segurando minha bunda com a
outra, dando alguma sustentação ao meu corpo já que sua boca me devora com tanta avidez que
me sinto desmanchar na sua língua gulosa.
— Puta que pariu, Dono… — seguro em seus cabelos, puxando-os. Solto: — você vai
arrancar um pedaço meu…
Ele mordisca meu clitóris inchado, respondendo meus gemidos com ainda mais vontade e
gula. Meu Dono lambe e engole a minha boceta, colocando tudo na boca antes de deslizar a
língua pelos lábios maiores e menores, sugando toda a minha lubrificação, mamando cada gota
do suco do meu prazer.
— É o mínimo que você merece por tentar fugir de mim.
Ouvir isso só intensifica ainda mais o tesão de vê-lo se lambuzando inteiro com o meu
gosto. Minhas pernas tremem tanto que tenho a sensação de que vou cair e ele segura a minha
bunda com mais força, me estimulando com tanta intensidade que é impossível me concentrar
em qualquer outra coisa além da minha respiração ofegante, do meu cheiro alastrando e dos
nossos reflexos nessa sala distorcida.
Sinto a tensão se alojando com mais pressão na boca dele. Meu Dono não para de me chupar
nem para respirar. Seu calor afobado contra a pele sensível da região e a aspereza da sua barba
funciona como um estímulo extra que contracena com a macieza dos lábios e da língua. Meus
gemidos já deixaram de ser civilizados há um bom tempo.
Sinto meu corpo inteiro se arrepiar em doses cada vez mais intensas e em janelas de tempo
mais curtas. Estou segurando os seus cabelos com toda a força enquanto assisto sua silhueta na
luz azul.
— Ah, eu vou gozar… — confesso, sentindo meu coração apertar mais forte a cada batida.
Em vez de continuar nos movimentos circulares, Meu Dono morde a minha coxa.
— Eu disse que você iria sofrer. — Provoca e sorri de um jeito que meu ventre baixo lateja
de tesão.
Minha reação mais honesta é inclinar a pelve para frente, resvalando minha boceta na boca
gostosa dele que, surpreso, não tendo autodomínio o suficiente para resistir à tentação, voltando
a me chupar.
— Ah… — reviro os olhos com o arrepio que atravessa a minha espinha. — Ahhhh — me
contraio e meu Dono faz menção a me provocar, porém sou mais rápida.
Desço a perna e a coloco por cima do seu ombro, prendendo em suas costas, enquanto ganho
desenvoltura o bastante para mexer a pelve, me esfregando na cara de Damon, que geme de
prazer e fica ainda mais sedento.
— Damon… — explodo em um gemido agudo enquanto sinto o desfiladeiro de prazer
irradiar da minha boceta até as extremidades dos meus pés, contorcendo-os em um plie.
— Aleks… — Meu Dono geme junto. — Que delícia... — solta, sem saber se sobe o olhar
para assistir meu rosto se contorcer de prazer, ou se observa minha boceta contrair.
Por fim, simplesmente a abocanha para beber todo o líquido que me lava em um squirting,
escorrendo para a sua boca. Quando percebe que estou o assistindo, me fita safado com seus
deslumbrantes olhos castanhos antes de sair da sua posição e ficar frente a frente comigo.
Estou completamente sem reação. Minhas pernas tremem tanto que agradeço quando sua
mão passa pela minha cintura. A outra segura no meu queixo, puxando minha boca para um beijo
molhado que me faz sentir meu próprio gosto em abundância na sua língua, melando meu rosto
com sua barba em tanta intensidade que parece me devorar. Começo a rir, de tanta leveza.
É ele, agora o vejo.
— Damon. — Ele também abre um sorriso no beijo. Desvio. — Você vai me engolir.
Concorda, selando meus lábios com os seus, vermelhos e inchados, mas continua me
observando com admiração, e então desce as mãos até o body, não é para terminá-lo de arrancar,
e sim fechá-lo.
— Não quero que ninguém veja.
— Mas você não quer terminar? — coloco a mão no seu volume, duro como pedra desde o
começo da noite.
Acaricia meus cabelos.
— Ah, Aleks… — suspira, com suas íris fixas nas minhas. — Você é tão valiosa, Oceano.
— Rouba outro selinho e não satisfeito, beija minhas bochechas em uma explosão de carinho que
me desnorteia. Diz em meu ouvido. — Ter você brincando de esconde-esconde e gritando meu
nome no orgasmo já me satisfaz, bailarina.
Então entendo o porquê não quero sair daqui.
— Damon… — Ele franze o cenho, sem entender meu desabafo. — Estou com medo.
— A festa está cheia de seguranças, tem câmeras.
Cruzo os braços, cedendo a mágoa.
— Quem era aquele homem que você conversou?
Trava o maxilar ao falar dele.
— Quem? — Parece confuso. — Eu conversei com muita gente.
Eu também não sei, então suponho.
— O Rei.
— Não se preocupe com ele, Aleksandryia. Ele é assunto meu.
Não entendo o porquê ele parece irritado com o assunto, se foi todo sorridente para cima do
meu antigo Dono, e isso me magoa, mas eu não sei como confrontá-lo além de cruzar os braços.
— O que foi, borboleta?
— Vocês são amigos.
Faz cara de nojo.
— Não, eu o suporto essa noite porque ele é o maior responsável por trás do EuroOásis. —
Pende a cabeça para o lado. — O que foi, meu amor?
Não respondo e ele me abraça, murmurando palavras fofas, mas é como se irrompesse algo
ruim dentro de mim, refletindo uma dor física.
Uma pontada de cólica.
— Banheiro. — Peço, arregalando os olhos. — Banheiro.
— Desceu?
Vou na frente e ele segura minha mão, como se me pedisse para ir com ele.
— Não sei.
Damon e eu atravessamos todo o espetáculo até o banheiro do salão de festas cheio de
mulheres.
— Quer que eu entre? — pergunta.
— Eu vou ver se é e te chamo.
Ele continua me fitando, sério.
— Tudo bem mesmo?
Solto sua mão.
Eu não deveria ter soltado a sua mão.
DANÇANDO NA TOCA DOS LEÕES

Adentro o banheiro, assustada com a hipótese de menstruar agora, mas tudo o que encontro
é a minha calcinha molhada da minha lubrificação transparente.
O alívio percorre as minhas células, e eu me sento na privada, respirando profundamente
enquanto faço xixi e me recupero do turbilhão de emoções que inundaram minha mente. Minha
cabeça ainda está pesada, como se os resquícios da hipnose ainda estivessem dominando alguns
espaços, como se o tic-tac estivesse com a mão nas maçanetas proibidas. Permaneço sentada por
alguns minutos, até que as batidas do meu coração estejam calmas e sincronizadas com a minha
respiração.
Seco-me bastante, procurando resquícios de sangue, e não encontrar nada me deixa
estranhamente irritada. Parece até que alguma parte de mim quer ver sangue.
Puxo a descarga e abro a porta da cabine, levando um susto com o que vejo na pia. Há uma
mulher debruçada sobre o mármore carrara, inalando uma carreira de pó branco. Suas costas
estão completamente nuas, e são lindas, com o desenho da dorsal fazendo a curva perfeita, até o
quadril, onde um laço enorme, vermelho, causa a sensação de que sua bunda é um presente,
seguindo uma saia longa vermelha-sangue.
Aproximo-me da outra pia e ela vê reflexo no espelho, levantando-se enquanto coça o nariz.
Seus longos cabelos, castanhos, estão meio-presos de um modo sexy, e o seu rosto, com as
proporções delicadas, quadradas, acompanhadas com uma boca pequena de lábios grossos e os
olhos grandes e delineados, suga a minha atenção.
Eu a reconheço.
— Kitty! — Ela sorri com uma alegria fabricada. — Lembra de mim?
Faço que não, só para ouvir seu nome e ter certeza.
— Sou Bunny! — E me abraça com as luvas vermelhas contracenando com o decote
vermelho que sustenta os seios volumosos. — A gente já participou de muitas surubas.
Começo a lavar a mão, assustada.
— Não lembro.
— É... — Apoia-se no mármore. — Você estava hipnotizada.
Desvio a atenção das minhas mãos para ela, pronta para questionar quando vejo a gota de
sangue saindo do seu nariz, então minha reação mais rápida é usar o lenço de papel na minha
mão para colocar no seu nariz, tentando não me desesperar.
— Está sangrando. — Mexo os pés.
Ela sorri com uma alegria doce, e se vira para o espelho.
— Papai me proibiu de usar coca. — Mexe com o papel no fundo do nariz, de um jeito que
sinto aflição e não consigo me mover, paralisada. — Daí, sempre que eu uso, acontece isso, me
denunciando... — Tira o papel ensanguentado e eu abaixo a cabeça, lutando contra uma barreira
invisível que quer ver. — É como se cada pedacinho de mim obedecesse ao Rei, mesmo que eu
não queira, tamanho é o seu poder. Você sabe, isso é uma delícia, né?
Franzo o cenho.
— Está falando do Dono?
— Não, é o papai. — Corrige, jogando o papel no lixo — É como ele gosta de ser chamado.
Essa constatação me causa um mal-estar tão repentino que meu cérebro gira. Dou dois
passos para trás e meu corpo impacta com a parede, sentindo um impulso de me afastar.
Murmuro:
— Foi um prazer vê-la, Bunny.
Só que Damon não está na porta como combinamos.
Perco completamente o ar e o rumo.
Ele me deixou sozinha.
— Damon! — chamo por ele, sem me dar conta do quanto minha voz e presença soam
ensurdecedoras, porque a atenção de todos os presentes, homens e mulheres, se volta para mim.
— Damon...
Estar nesse espetáculo, como a acompanhante do anfitrião, é como ser uma gazela bebendo
da fonte no território dos leões, e eles não parecem satisfeitos com a ideia de dividir aquilo que
os sacia.
Por isso, levanto a postura e dou meu melhor sorriso, afinal, se sentissem o odor de medo
exalar dos meus poros, me devorariam todos ao mesmo tempo. E, se isso acontecesse, não
restaria nem mesmo uma última carcaça para Damon.
— Está sozinha?
Um estrondo me assusta e uma série de explosões de fogos no céu clareia os limites da
propriedade decorada com luxo e mistério, na velocidade de um piscar de olhos.
— Não. — Digo para Bunny, e o seu sorriso doce começa a parecer assustador.
Olho ao redor, procurando Damon, completamente sozinha no meio dos Sangue em
Ascensão que me fitam como se eu fosse a atração da noite.
— É muito perigoso uma moça gata como você ficar sozinha, hoje à noite. — Continua ela.
Um arrepio percorre toda a minha espinha dorsal e eu me afasto dela, tentando não me
perder na riqueza do ambiente. O jazz sombrio preenche o ar; o perfume de comidas finas
enrosca-se com o de perfumes caros e acresce, misturando-se ao de tecidos elegantíssimos que
estão sendo usados pela primeira e última vez. Famílias que, embora não cheguem a duzentos
convidados, pesam mais quilates que nações inteiras.
— Tem muitos seguranças.
— Coroados. — Corrige. — São tão corruptos quanto nós.
Ignoro-a e ela continua.
— Somos as únicas Bonecas desse lugar, devia ficar comigo.
— Obrigada. — Não paro de andar.
— Eu não devia falar. — Ela está fumando. — Mas estão planejando muitas coisas quando
pegarem você. Alguém andou espalhando que é gostoso te ver chorar com esses lindos olhos
azuis-escuros... — acaricia meu rosto pálido com... prazer?
Meus músculos se contraem instantaneamente, e meu coração pula em meu peito como um
tambor descontrolado. Uma onda de arrepios percorre minha espinha, e uma sensação gelada se
espalha por todo o meu corpo.
— Quem? — afasto sua mão.
— Todos. — Assopra a fumaça no meu rosto. — Damas, Peças, Jogadores... — O tempo
parece congelar, e meus sentidos estão aguçados ao máximo, alertas para qualquer movimento.
— Menos eu, você devia ficar comigo.
Fito novamente ao redor.
É simplesmente impossível encontrar a silhueta do Duncan em meio a tantos ternos pretos e
cabelos castanhos escuros. Observo minha única opção de escolha, sorrindo e piscando para
Jogadores, nem um pouco confiável.
— Por que você me protegeria?
Enrosca um braço no meu feito teia e, embora parecesse solícita e simpática, eu sei que é
desse modo que os Sangue em Ascensão enroscam suas vítimas. Primeiro, com gentileza e
cordialidade, retiram nossas armaduras, deixando-nos expostos. Depois, a generosidade que
encanta e embebeda enquanto manipulam nossas mentes e fazem das nossas personalidades
massinha de modelar.
— Não estou dizendo que te protegeria, estou dizendo que deveria ficar comigo. — Joga a
bituca no chão. — Eu não quero com você a mesma coisa que eles querem.
Paro de andar.
— E o que você quer comigo, Bunny?
Viro a cabeça, buscando Damon na multidão que cresce na selva de bilionários. A vontade
de chorar de medo por não o ver em canto nenhum cresce, mas eu lembro que isso vai excitá-los
e engulo.
Então meu inconsciente me faz uma pergunta que quase me leva a um colapso:
Qual a pior coisa que poderia acontecer com uma presa em uma cova de leões?
Bunny me fita com sangue nos olhos translúcidos e eu entendo que o Rei ficou com ela
porque viu na garota uma letalidade idêntica à dele.
— Sou ciumenta, não gosto de dividir a atenção com outra Boneca.
Solto dela, indo para o lado contrário.
— Obrigada, mas...
Meu corpo esbarra em outro.
— Bailarina, bailarina… — Arrepio-me com a voz do Jogador na minha nuca. — Achei que
nunca mais te veria.
Viro para o homem, que tira a máscara para que eu me lembre de cada objeto que enfiou em
mim, e a raiva me faz fechar os punhos.
— Por que achou uma coisa dessas? — retruco, assustada e irritada, espantando-me com
como o tempo foi cruel com ele. Muito velho.
— Porque você morreu para nós — explica tranquilamente. — E, dentre os Sangue em
Ascensão, a regra é clara: ninguém toca em assuntos enterrados.
Sua frase efervesce minha alma.
— Estou aqui hoje nos braços de Damon Duncan, onde pretendo continuar. — Minha voz
sai aguda e, para camuflar o medo que escapa com o timbre, cruzo os braços e levanto os
ombros. — Não podem me tratar como se eu fosse um fantasma para sempre.
Ele ri, aceitando a aposta.
— Você se surpreenderia com a quantidade de pessoas que adora filmes de terror por aqui,
garota.
Uma descarga de adrenalina me atinge assim que suas palavras me tocam, causando um
tremor que eu não consigo controlar. Meu coração bate descompassadamente, ecoando o ritmo
frenético dos meus passos ao dar as costas e recuar, torcendo para que ele não venha atrás.
O ar torna-se denso, e o som da minha respiração acelerada ecoa como um tambor pulsante.
A luz fraca tremeluz, lançando sombras distorcidas que dançam ao ritmo do meu medo.
Viro-me e um Jogador está praticamente em cima do meu corpo.
— Há quanto tempo não nos vemos, Aleksandryia! — Cumprimenta, fazendo-me pular de
susto e já tomando a minha mão. — Como vai?
Não consigo responder. Meu coração bate tão rápido e forte que eu sinto os espasmos
impactarem minha caixa torácica e me deixarem sem ar.
— Procurando alguém? — Sua esposa me cumprimenta com gentileza, ignorando o fato de
eu estar pálida. O que eles querem comigo? — Porque Damon está atrás de uma linda moça de
olhos azuis idênticos aos seus. — Sorri ternamente.
Meus olhos brilham de esperança.
— Onde ele está?
— Por ali. — Aponta para uma direção vazia e sombria.
Contudo, antes que eu possa mover um dedo, o Jogador segura em meu braço e se aproxima,
cortando a distância. Alerta:
— Querida, você sabe que está na toca dos leões, não sabe? — Assinto, e um medo súbito
de olhar em seu rosto domina as minhas ações, então permaneço estática. — Sabe o que isso
significa?
Uma agonia revira meu âmago.
— Que vão me devorar ainda hoje?
A luz de todo o lugar apaga, deixando o ambiente em densa escuridão por cinco segundos.
Quando volta, ele está sorrindo.
— Que você só tem uma chance de sair viva.
Encaro seus olhos cinzas.
— E qual é?
Sua ameaça é tão sutil quanto ameaçadora.
— Não. Faça. Movimentos. Bruscos.
Faço o oposto — desvencilho-me da sua mão com desespero e viro na encruzilhada de
fortunas e violência sem perceber estar indo exatamente na direção que sugeriram.
O suor frio escorre pelo meu rosto, e meus músculos imploram por uma fuga mais rápida,
enquanto eu mantenho a compostura diante dos olhares. Cada vez que viro a cabeça para trás, os
olhos dos monstros parecem mais próximos e a escuridão se fecha ao meu redor.
Finalmente, quando acho que não posso mais suportar, do lado oeste da propriedade,
encontro uma piscina, cuja água balança com a brisa violenta.
Os músculos, até então tensos, se acalmam, e eu respiro lentamente, sentindo as pernas
bambas. A única coisa que ilumina o breu das terras milionárias é a lua cheia ao longe.
Com as mãos trêmulas. desamarro as sapatilhas e imerjo os pés, sentando-me na borda. O
frio por submergi-los me traz um bem-estar acalentador. Em um exercício de respiração, começo
a movimentar os pés em elevés debaixo d'água, aumentando a intensidade das pequenas ondas,
que vão de uma ponta a outra da piscina.
Inspiro e suspiro diversas vezes até sentir que estava revertendo a crise, orgulhosa por não
ter quebrado e chorando na frente deles.
Então escuto passos e me inclino na direção do ruído. É uma mulher de cabelos escuros,
sentando-se ao meu lado. A barra do seu vestido forma um desenho bonito na água que me
lembra alguma espécie rara de musgo marinho.
— Te encontrei. — Sorri, desamarrando a máscara.
Surpreendo-me com a beleza do seu rosto, tão bela que não parece real. Parecida com as
Bonecas de Cartier, a mulher nos porta retratos de Damon.
Europa Young.
— Te encontrei. — Sorri, aliviada, afastando os fios que dançam pela sua face.
O ódio se acende dentro de mim como o fogo vivo de uma lamparina, quando lembro de
tudo o que ela fez. Faço um gesto para me levantar, mas, quando me viro, há seguranças na
entrada da porta, e Europa emerge os pés na água comigo.
Penso em tudo o que ela fez, em tudo o que ela tem poder para fazer e mal consigo respirar,
despreparada, frágil e vulnerável para lidar com essa situação.
— O que vai fazer comigo? — pergunto, com a voz trêmula.
Fica quieta e eu volto a atenção para a piscina, de cabeça baixa, encarando os meus pés
quando ela começa a mexer os dela, de um lado para o outro, de um jeito que toda a água da
piscina forma ondas relaxantes, para lá e para cá, e ela começa a cantar calmamente.
— Hum-hum. Hum-hum. — No ritmo da água, batendo de uma ponta a outra.
O peso em meu corpo cai de uma vez, como se apenas agora eu sentisse a pancada de
emoções que me devorou a noite inteira. Estou com a cabeça dolorida, com pontadas de cólicas,
e com meu corpo exausto de segurar a atenção e a minha mente muito cansada por tudo o que
vivi no espetáculo.
Estou com tanto medo, que guardo minhas energias para resgatar Gulnara e me concentro no
que os movimentos causam na piscina, sentindo uma estranha serenidade se infiltrar nos recantos
mais profundos da minha mente à medida que a melodia sutil e envolvente da sua canção parece
acalmar até mesmo o mais furioso dos meus temporais internos. É boa a sensação.
— O que está fazendo? — pergunto, caindo em mim, em um susto.
Ela desvia a atenção da piscina para mim, e seu olhar hipnótico me prende, verde-
amarelado. Vejo-me incapaz de desviar os olhos enquanto ela canta baixinho e a água obedece.
Os seguranças atrás permanecem impassíveis, seus olhos vazios refletindo apenas a obediência
cega. É como se a própria atmosfera estivesse impregnada com o hum-hum dela.
Tento desesperadamente me afastar mentalmente disso, focar em pensamentos de
resistência, mas a música e a água formam uma simbiose irresistível. Meus olhos se fixam nos
dela, perdendo a batalha contra a corrente suave de encantamento que ela faz.
— Shh, querida. Hum-hum. Relaxe. Tic-tac. Não há mais necessidade de lutar.
Europa continua a mexer os pés, e a piscina responde obedientemente às suas ordens. As
ondas se tornam mais intensas, o balé aquático me hipnotiza cada vez mais. O ódio, antes
fervente, é suprimido pela mágica insidiosa que ela exerce. O que me resta é uma aceitação
catatônica, meu corpo se move em sintonia com os acordes que fluem da boca dela.
— Não há mais necessidade de lutar.
Sua voz sussurra nos recantos da minha mente, e eu me entrego à corrente, meu corpo
flutuando passivamente enquanto Europa, como uma sereia sedutora, exerce o seu feitiço através
da água hipnotizante da piscina.
— Todo mundo tem a sua forma de relaxar, Aleksandryia. Quer ver a minha?
— Não sei. — Minha voz soa perdida.
Sem interromper sua melodia tranquilizadora, de repente, uma expressão de dor atravessa
seu rosto. Ela ergue uma lâmina, cortando o pulso, deixando que gotas de sangue se misturem à
água da piscina. Uma sensação de desconforto inunda meu ser, mas eu continuo paralisada,
incapaz de desviar o olhar do sangue pingando em seu braço.
— É a única forma que eu encontro de sentir alívio. A dor física me faz esquecer o que sinto
me devorar por dentro. Já experimentou?
O líquido rubro se espalha pela água, formando padrões abstratos que ecoam como sombras
dançantes. Uma energia estranha parece emanar dessas gotas vermelhas, infiltrando-se na
atmosfera e encontrando ressonância dentro de mim.
— Não. — Minha voz sai trêmula.
— Por que está chorando, Kitty?
O ódio que eu havia suprimido é substituído por uma avalanche de sentimentos, cada um
mais intenso do que o anterior.
— Eu não posso ver sangue.
— Por quê, Kitty?
É como se o sangue na água tivesse agido como um catalisador para os meus gatilhos mais
sensíveis.
— Eu não gosto.
Ela se corta mais, pega minha mão e encosta no seu braço.
— O que sente quando pensa em sangue?
A dor latejante na minha cabeça se intensifica, uma pulsação rítmica que sincroniza com a
melodia perturbadora da água da piscina. Uma sensação de náusea se insinua, retorcendo meu
estômago em espasmos desagradáveis. A piscina, em tons vermelho perto dos meus pés, parece
ter adquirido uma textura sinistra, como se cada onda fosse uma manifestação tangível da minha
própria angústia.
— Culpa, eu me sinto mal... Me sinto horrível. Meu Dono cuidou de mim.
Eu tento resistir à avalanche emocional, mas a dor de cabeça se torna cada vez mais
insuportável. As lembranças, antes confinadas, agora fluem desordenadamente, misturando-se
em uma colagem caótica de imagens e sentimentos.
— Você acha que não merece o cuidado que seu Dono te deu? — Cada movimento dela,
cada corte, é como um golpe direto na minha resistência. — Por isso sente culpa?
A sensação de mal-estar se intensifica, como se o próprio ambiente estivesse conspirando
contra mim. A piscina se transformou em um mar de emoções tumultuadas e dor física, e eu me
sinto submersa em um turbilhão de tormentas, lutando para manter a compostura.
— Você acha que alguém fez mal a você, Kitty? — aponta para o braço. — Olhe. — Leva o
sangue do seu braço até meu rosto, esfregando o corte. — Ou você sente que fez mal a alguém,
por isso sente culpa e nojo de sangue?
O vermelho do sangue se torna o foco central das minhas lembranças, provocando uma
sensação de pânico visceral. A lembrança é vívida: uma mulher, a culpa, o choro e o amparo do
meu Dono, de algo que eu desejava esquecer.
Eu relembro o cheiro metálico, a visão do líquido escarlate manchando o chão e as mãos
trêmulas que não puderam evitar o inevitável.
De repente, uma onda de imagens e emoções invade minha mente. Recordações dolorosas,
medos profundos e anseios enterrados ressurgem.
— Sim. — Fito-a, consternada. — Eu acho que sim.
Acho que matei alguém.
PRAZER, CHARLLOTE

Um movimento na cama me desperta.


E meu instinto é rolar na direção do calor que o corpo dele transmite e o abraçar com força.
Senti tanta falta desse contato nos últimos meses que enrosco meus braços e minhas pernas nesse
homem, não dando margem para fuga.
— Llote, preciso levantar — resmunga com um tom de voz que transmite embriaguez de
sono.
— Não, não precisa — murmuro de volta, apertando-o contra mim.
Em um único movimento, passa seus braços pela minha cintura e me afunda no colchão.
Não sei se sua pele tem alguma característica rara que faz com que seu cheiro bilionário se
impregne em cada fio do lençol ou se é o meu olfato que adora tanto o seu perfume natural a
ponto de eu sentir sua presença em cada centímetro daquela cama. Tão inebriante…
— Adoraria ficar com você, Llote — responde, escondendo o seu rosto em meu pescoço
para inspirar o meu perfume, mostrando-me que a saudade é mútua —, mas não posso dar nem
um motivo para comentários, agora que você está em casa.
— Não me deixe sozinha, eu imploro.
Ouvir meu próprio pedido inconsciente me faz lembrar do motivo dele, levando assim todo
o resquício de sono embora. O coração dispara e a boca seca tão rápido que não tenho força na
língua nem para sugar saliva suficiente que alivie o rasgo na garganta. Sento-me com a mão
sobre o peito, puxando o ar com desespero, porque parece que todo o ar dos meus pulmões se
esvaiu.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
— Charllote, não se preocupe, amor, você está segura. — Abraça-me apertado. — Você está
em casa.
É tarde. Os sentimentos ruins já se apoderaram de cada célula do meu corpo. Tombo de
volta na cama, buscando o calor dos edredons, já que o corpo de Erin não vai ser capaz de
proporcionar o cuidado que preciso sentir. Ele suspira de preocupação antes de levantar e volta
com uma pílula e um copo de água. Explica:
— O médico disse que você poderia tomar em último caso, quando não se sentir bem.
Agradeço e engulo imediatamente, desesperada para ser enevoada pela aura pesada e escura
que me impede de sentir o peso da realidade. Abraçada em travesseiros, observo meu marido se
vestir e conversar comigo, tentando me distrair, mas é em vão. Por mais que os remédios sejam
fortes, não são capazes de me fazer esquecer da minha própria vida.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
Antes de sair do quarto, Erin me fita fixamente e, em vez de atravessar a porta, senta-se na
ponta da cama ao meu lado.
— Será que não consegue, pelo menos, fingir que está tudo bem? — Muitas palavras vem à
minha mente em resposta, porém opto por deixar que o silêncio lhe diga que seu pedido é
absurdo.
— Não é como escolher que maquiagem vou usar, Erin. — Não resisto. — Não posso fingir
que não vi o que vi.
Seu maxilar trava.
— Se não consegue por mim, faça pelos meninos — espinha-me com a culpa.
— Não use eles para me manipular. — Encaramo-nos fixamente.
— Não estou manipulando, estou tentando te fazer pensar, Llote. Eles estão em uma fase
que precisam de você; passaram os últimos meses sonhando com o momento que você voltaria
para casa. — Engulo em seco, arrependida por ter respondido com grosseria. — Se não consegue
de verdade, sorria e faça de conta. Eu também faço isso, todo mundo que discorda com o que
está acontecendo faz.
Seu pedido me soa como uma crítica recorrente: se todo mundo vive uma vida de mentira,
não devia ser tão impossível para que apenas eu não conseguisse. O que eu tenho de tão especial
e superior que os outros? Por que eu não consigo ser egoísta e pensar em mim e na minha família
apenas?
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
— Vou tentar.
Ele me beija ternamente, fitando-me com seus olhos castanhos,
— Eu amo você, estrelinha. — Sussurra gostoso.
Levanto-me, visto o robe e vou até o quarto de Dylan. Sinto um lampejo de esperança me
fortalecer ao encontrar um lindo adolescente adormecido no meio do escuro, sereno e seguro.
Abro as cortinas do seu quarto porque, além de amar belas paisagens, adoro excepcionalmente a
vista da sua varanda, que dá para uma árvore centenária, da qual alguns fragmentos de folhas
sempre colam na janela.
Acho tão bonita a forma como a natureza se relaciona com Dyl.
Nesse horário da manhã, um feixe de luz dourada invade o ambiente, e o vidro está suado
pelo contraste quente do quarto com o frio da rua. Chapada, perco alguns minutos observando
gotas do vapor escorrerem pelo vidro e formarem desenhos abstratos; achando tão bonito.
Lembro o porquê estou aqui.
— Dyl, acorda. — Puxo seu edredom, porém o adolescente resmunga alto e o toma de volta.
Vira para a parede e se encolhe contra ela em busca do vão escuro entre o gesso e o travesseiro.
Deito-me no espaço vago, pois a cama parece gostosa e convidativa, apesar do odor fraco do
suor hormonal do meu filhote. Abraço-o em conchinha.
— Mãe? — indaga sorrindo, inclinando a cabeça para olhar meu rosto, na dúvida se sou um
sonho ou real.
— Tudo bem, acho que podemos dormir mais uns minutinhos — o tranquilizo, os olhos
pesam tanto…
— Mãe! — A voz irritadiça de Damon me tira da escuridão agradável. — Mãe! Dylan!
Vamos nos atrasar!
Damon está elegantemente trajado com o uniforme azul bem passado, abraçando os próprios
braços e tamborilando os dedos sobre a camada de roupa. Em seis meses, ele mudou
completamente, de garoto para homem. Acho graça do seu ciúme.
— Então me ajude a levantar, Dam. — Estendo a mão. Quando sinto seu toque nela, puxo-o
para a cama conosco. Encaixo minha cabeça em seu cangote, sentindo-o amolecer com a delícia
do momento que é nós três juntinhos,
— Mamãe — chama, sem se mover, pois não quer levantar, quer carinho. — Não podemos
nos atrasar hoje, temos um trabalho para apresentar e Cherrie nos mata se nos atrasarmos…
Ouvir o nome dela é o suficiente para me despertar dos meus sonhos e ser transportada
diretamente aos meus pesadelos.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
Levanto-me e eles erguem a cabeça para me observar sair daqui. Tento não correr, não quero
aparentar todo o meu desespero. Vou até o banheiro da suíte em busca da embalagem do remédio
que Erin me deu mais cedo. Engulo outro comprimido a seco e coloco a boca na torneira da pia
— a água desce aliviando o incômodo causado pelo gosto amargo.
Quando desço as escadas, encontro Dylan comendo cereal de olhos fechados, apoiando o
cotovelo na mesa e o rosto na mão e Damon tão ereto quanto o pai ao lado. Encho um copo de
vitamina e bebo na tentativa de ser fortalecida pelos nutrientes. Erin sorri quando me vê engolir
até a última gota e gesticulou um obrigado. Busca acariciar minha mão, porém quando a toca, eu
desviei do contato. Meus olhos encontram com os de Damon, levando-me a crer que ele assistiu
ao recuo, pois parece triste em perceber que não estamos tão bem quanto aparentamos ontem.
Ele sempre percebe tudo.
— Quais os planos para hoje? — disfarço, sentindo a neblina de torpor tomar forma em meu
organismo.
Dylan e Damon se intercalam para falar, animados, quais aulas terão na escola e o que estão
aprendendo. Querem que eu me sinta orgulhosa por ver que, mesmo sem mim, foram aplicados
aos estudos no último semestre. Damon falou ainda que quer me mostrar uma coisa que
aprendeu, e pisca, deixando claro que é ballet.
— E você, mamãe? — indaga Damon. — O que vai fazer hoje?
— Não tenho plano algum — falo, porque não posso expor em voz alta que mal posso
esperar para ficar sozinha e poder voltar para a cama.
— Hoje temos uma Partida nos Young. — Erin dá a notícia de uma vez, com um semblante
triste e preocupado.
— Temos? — Meus olhos enchem de lágrimas com a insensibilidade dele. Depois de tudo o
que aconteceu, tudo o que eu quero é nunca mais pisar em um evento dos Sangue em Ascensão.
Como Erin não percebia?
— Sei que é difícil, não pediria se não fosse ordens do Rei. Ele quer te ver.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
Minha boca seca e o sangue desaparece do meu rosto, então Erin pede para os meninos irem
para a aula, para que não vejam o meu estado. Ele me leva para o quarto e fica comigo o tempo
que pode, antes de ir trabalhar, mas pede para uma funcionária pertencer ao meu lado, mesmo
que tudo o que eu faça seja dormir.
— Senhora Duncan. — Ela me desperta. — As Damas vieram vê-la.
Simplesmente concordo, exausta de explicar que as esposas Sangue em Ascensão não são
minhas amigas. Não suporto a falsidade delas, mas quem eu quero enganar? Sou igual.
Todas sabemos os segredos do Jogo e não fazemos nada para mudar.
Visto-me depressa e passo blush, mas só consigo descer após ingerir outro comprimido
calmante, o que é um erro, porque fico tão grogue que não consigo dar atenção a elas.
Apesar disso, quando desço as escadas, um frio atravessa a minha dorsal no instante em que
meus olhos cruzam com os de Madeleine Kühn.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
A Dama de fogo me aguarda ao lado de a Dama de sangue, Lizzy Kühn, com seus sorrisos
sanguinários e um buquê de rosas vermelhas.
— Lá vem a Dama de cristal. — provoca Lizzy, mastigando um chiclete.
— Como está, Boneca-Miss? — pergunta Mad, com seu timbre grave e aveludado, mas não
é de preocupação, ela não se importa com nada além da sua própria psicopatia.
Aproximo-me com meu melhor sorriso.
— Estou ótima. — Sorrio com sarcasmo. — As férias foram incríveis.
Lizzy ri tão abertamente que seus olhos asiáticos se tornam menores, mas Mad me fita de
cima a baixo como se soubesse onde cada hematoma se esconde debaixo da minha roupa.
Elas me levam para tomar brunch com as outras Damas, mas fico em silêncio. Tudo o que
sinto é o peso do silêncio completo dentro de mim, e é tão bom senti-lo, apesar do barulho das
suas vozes, das risadas altas e das…
— Vou ao banheiro. — Levanto-me com a minha bolsa.
Dentro da cabine. tomo só mais unzinho comprimido, só para suportá-las, o que é ótimo,
pois assim não surto quando Madeleine cita sua filha.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
— Descobrimos o que Cherrie provavelmente tem.
Todas subimos os olhos até os ambares dela, atenta.
— Transtorno de Múltiplas Personalidades[11].
— O que é? — pergunta Suzi, a Dama das armas.
— Então por isso ela mudou completamente na noite da festa? — Eleanor indaga, com todo
o instinto materno que eu invejo.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
— Ela ficou muito louca... — Lembra Lizzy, com calafrios.
Madeleine assente.
— A versão maluca voltou ontem, quando soube que a Llote saiu da clínica.
E eu vou morrer, morrer, morrer.
— Por quê? — pergunto, com o coração batendo tão forte e descompensado que sinto que
vou ter um ataque cardíaco. — Como ela está?
E eu vou morrer, morrer, morrer.
Mad dá de ombros, com um pedaço de bolo na boca.
— Ela está bem. Desde o seu surto, George está superprotegendo a garota de uma maneira
doentia. Não sei mais o que é ficar a sós com meu marido, porque ele não a larga nem por um
único minuto.
Louise Harding opina:
— Não entendo por que ele não pode contratar um segurança e pronto, como faz com
Crystal.
Madeleine concorda com a amiga.
— Ele está com medo. Segundo ele, Cherrie está ficando bonita demais para ele confiar em
qualquer outro homem. Nem segurança, motorista, nada, ele a leva e a busca da escola e de todos
os compromissos. Se eu quero qualquer coisa com ele, preciso me ajustar à agenda de uma
menina de quatorze anos…
E eu vou morrer, mo…
— O Rei está cuidando dela — compreendo, sorrindo aliviada. — Que bom que ele está
cuidando dela — repito, lembrando-me do dia em que, há seis meses, George me abraçou e
agradeceu em todos os idiomas que existiam em seu vasto vocabulário.
E depois me jogou no hospício...
— Sim, é medo, preocupação; ele mesmo disse isso — admite. — Ele é grato por você.
Eu iria morrer?
Despeço-me pensando nisso. Quando chego em casa, Damon está no sofá me aguardando,
ansioso, costurando sapatilhas novas para mim.
— Mãe! — sua voz está grossa e, quando me abraça apertado, não me acostumei com o
quanto ele cresceu em menos de seis meses. — Quero te mostrar uma coisa que treinei enquanto
você estava fora.
— Então você continuou fazendo ballet? — indago, disfarçando minha voz grogue.
Ele dá um sorriso lindíssimo com os dentes alinhados, pega na minha mãe e me leva até a
sala de dança, explicando o quanto treinou e que agora vamos conseguir fazer pas de deux de
Kitri e Quebra-nozes.
Aceito as sapatilhas e agradeço por tê-las costurado para mim, mas deixo claro que não vou
conseguir dançar.
Ele insiste que eu as coloque, como se soubesse o quanto isso vai me animar, enquanto
coloca as meias e se posiciona no palco. Sento-me com as costas apoiadas no espelho até a
melodia Dance of the Wilis começar a tocar.
Trata-se da cena que Albrecht tenta convencer a Rainha dos espíritos a ter misericórdia, mas
ela nega e ele dança até morrer. Sem dúvidas, é a variação mais difícil do ballet masculino.
— Finge que você é a Myrtha — ele brinca, alegre como um Golden Retriever. — Vou
tentar te convencer que mereço viver.
— Tá bom. — Abraço minhas pernas, empolgada.
Sua entrada em cena revela um desenvolvimento de pé com uma transição suave para um
arabesque penché, exibindo uma linha corporal elegante. À medida que avança para a sequência
de giros, Damon dá algumas piruetas, não perfeitas, mas bonitas.
Ele se joga na atuação com expressões fáceis exageradas só para me fazer rir, e seus
développés são muito bons.
— Uau! — Dou palmas.
A conclusão da dança da morte é marcada por uma série de saltos, incluindo entrechats e
sauts de basque, que me deixam embasbacada, embora ele não aguente seguir toda a sequência e
fique de joelhos, morrendo com a queimação nas coxas e fazendo caretas engraçadas.
Vou até ele, deitando a cabeça no seu corpo esbaforido.
— Você me deixou morrer, Myrtha. — Ele brinca, acariciando meus cabelos.
— É que você morreu muito bem, amei essa atuação.
Rimos mais.
— Estou fazendo teatro na escola. — Conta.
— Sério? — Fito-o.
— Abriu uma vaga depois que a Cherrie deixou o teatro.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
— Ela deixou? — meu timbre é triste. — Ela amava atuar.
— Ela fica estranha as vezes, mãe, não parece ela.
Sento-me, saindo da posição com nervosismo. Mudo de assunto e saímos da sala de dança, e
passo o restante da tarde assistindo a filmes com os gêmeos, agarradinha aos dois.
Nossa programação foi interrompida por Erin, que chega do trabalho com flores e me enche
de beijos e abraços. E elogios e declarações. E os três começam a falar ao mesmo tempo e, de
repente, a sala parece o palco de disputa para ver quem vai me agradar mais e ter mais de mim
como troféu. Erin vence e me leva para o quarto. Diz tantas coisas lindas em meu ouvido
enquanto me beija e me ama que cometo o erro de acreditar
Peço que, se for verdade, desista de me levar a tal Partida para que ficássemos em casa
assistindo a algum filme bobo com as crianças, feito uma família normal. Porque eu não quero
morrer, morrer, morrer.
— Llote, estou tentando muito te manter viva. Você compreende que esse é o único jeito?
Balanço a cabeça.
— Fingir ser um deles.
Ele me abraça, murmurando o quanto me ama e não quer me perder.
Visto-me com um vestido que no último verão encaixou perfeitamente, mas que agora está
demasiadamente largo. Agarro-me à embalagem de calmantes como a âncora que me vai me
manter presa ao cais, apesar de droga alguma ser o suficiente para aplacar o terror que sinto
quando passo pela entrada e os vejo.
Eu iria morrer, eu iria morrer, eu iria morrer.
Eu iria morrer, eu iria morrer, eu iria morrer.
O Rei estava com o bispo, a Dama de fogo e Cherrie no seu colo embora não haja mais
nenhuma criança na festa, os três no meio da sala, fazendo de suas presenças suntuosas o show
business da noite. Solto dos braços de Erin no mesmo segundo e corro em direção ao banheiro,
concentrada em não surtar. Não como o que provoquei há seis meses. Não quero morrer na
frente de todos…
Eu vou morrer, eu iria morrer, eu iria morrer.
Assim que entro, fecho a porta. Vou até a pia e lavo o rosto na tentativa de acordar, porque a
névoa densa e obscura deve estar me fazendo ver coisas. Não é possível que ele esteja nesse
lugar. Erin jurou que eu estaria segura. Molho as pontas do meu cabelo no processo, estragando
as ondas perfeitamente elaboradas mais cedo. O que isso importa, Charllote? Irrito-me com como
me perco nos detalhes. Fito-me no espelho — a maquiagem borrou inteira e escorre pela pele
clara do meu rosto, manchando-a, sem esconder os olhos vermelhos que insistiam em derramar
lágrimas mesmo quando eu não sinto mais dor alguma.
Eles arrancaram a minha alma.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
Tudo o que eu sinto é medo.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
Por isso meu peito sobe e desce bruscamente. Calmantes! Preciso das minhas pílulas e tudo
vai ficar bem! Pego a elegante carteira na bancada e, quando abro a embalagem, os que restam
caem no ralo. Um soluço sai alto com a constatação. O medo de não ter o remédio me desespera.
Eu não vou conseguir enfrentar. vou surtar. De novo não, não! Eu não quero ser internada outra
vez.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
Meu choro alto provoca um eco assustador nesse imenso banheiro, e a confusão me
confunde e abala.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
— YA mogu pomoch' vam?[12] — uma voz melodiosa, com um sotaque carregado em russo,
quebra o meu pranto.
É de uma menina com lindos olhos azuis-escuros, com longos cabelos castanhos e uma
magreza e postura similar à minha. Parece um anjo que veio me salvar.
O que uma garota estrangeira está fazendo na casa do Rei?
Todo o peso cai sobre os meus ombros. Então todo mundo me enganou com a historinha de
que o problema havia sido resolvido. O monstro continua à solta e o inferno continua
acontecendo entre quatro paredes, atrás das obras de Van Gogh, Monet e Renoir.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer.
— Meus remédios! — Mostro a embalagem vazia. O horror me dominava, pois, sem as
pílulas, eu não vou conseguir me enganar e, sem me vendar, eu vou morrer.
A garota se ajoelha no chão para procurar os remédios, de um jeito que reparo na coleira em
seu pescoço. Tento falar com ela, mas ela não sabe inglês. É alta, esguia, magra e nova, tão nova
que meu coração se estraçalha. Deve ter a idade de Damon, se não for mais nova. Uma
adolescente. Pedófilos nojentos.
Não posso fingir que isso não é problema meu. Se ninguém ajudar essas meninas, a idade só
vai diminuir, cada vez mais.
Desejo tanto alertá-la, mandá-la embora, que a única coisa que faço, sem comunicação, é
procurar uma caneta na minha clutch e anotar o meu número, torcendo para que ela entenda e me
procure. A garota sai do banheiro enquanto eu espero ficar chapada o bastante para enfrentá-los.
Mas cometo o erro de procurar por ela pela última vez.
Sinto o meu coração subir até a boca e pressiono a mão na frente para não o vomitar,
completamente apavorada com o que vejo.
Ela está conversando com Cherrie, nos braços do Rei e do Bispo, e eles estão me fitando
como se esperassem o meu próximo surto.
A garota de olhos azuis foi uma emboscada.
E, se eu achava que minha vida estava, até então, por um fio. Nesse momento, escuto o
barulho do barbante romper.
A garota entregará o papel a eles.
E eu vou morrer, morrer, morrer.
SANGUE EM ASCENÇÃO

Eu realmente acho que está tudo sob controle.


Uma figura excêntrica como George Young consegue aliados na mesma proporção com que
tem inimigos, e existe uma lista de Jogadores que foram mais fodidos por ele do que eu,
presentes nesse espetáculo, porque fiz questão de os convidar. Quem vai desconfiar da pacífica
Torre, queridinha do tabuleiro?
A minha postura nos últimos meses foi suspeita, por isso, há duas semanas, pedi desculpas e
fiz a minha melhor atuação. Era o trabalho e a pressão do EuroOásis. Não foi a primeira e nem a
última vez que usei a minha fachada de Jogador exemplar para agradar as pessoas, eu só nunca
tinha feito isso por um objetivo tão valioso.
E eu não sabia que Europa colocaria máscaras no dress code, mas ouso dizer que foi a
melhor decisão que ela poderia tomar por mim. Troquei o figurino de bailarino para um terno
preto, discreto, e consegui uma máscara. Vou chamar George para uma conversa na casa de
espelhos, o local está sem câmeras, vou abrir a cabeça dele na frente do espelho onde fiz sexo
oral na minha borboleta russa. Ninguém vai saber.
Só estou esperando o momento certo, do lado de fora do banheiro em que Aleks está, em
uma das extremidades da propriedade, observando o espetáculo acontecer adiante, vislumbrando
o cenário panoramicamente. O espetáculo que o Cirque du Soleil faz nas alturas, com os metros
de tecidos, que de tão vermelhos brilham na escuridão do céu estrelado; a banda com seu jazz
meticulosamente retrô, a decoração exagerada, as comidas raras e as bebidas de coleções
exclusivas... Cada detalhe meticulosamente escolhido para uma seleta lista de duzentos
convidados.
Tudo é sobre aparência.
Não pude contar sobre meu plano para os meninos, porque eles me impediriam. É loucura.
Eu nunca matei uma pessoa enquanto ele adora sujar as próprias mãos. Por exemplo, na noite em
que minha mãe surtou, ele matou todos os Coroados responsáveis pela segurança da festa. Eram
trinta e sete, e não significou nada para ele, mas eliminar a ameaça dele representa tudo para
mim.
A minha bailarina vai estar protegida, nada mais importa.
O que George tem com experiência em luta, eu tenho com força. Ainda estamos falando de
um homem de cinquenta e sete anos contra um de vinte e seis, no auge da força muscular, com
ódio o bastante para descontar na cara dele todas as merdas que ouvi a bailarina me contar nos
últimos meses.
Só preciso esperar o momento certo.
E talvez seja esse o problema.
Não tenho tempo.
Nesse segundo, braços fortes passam pelo meu ombro, fazendo todas as minhas estruturas
estremecerem com o susto. Subo o olhar e esse terror se acentua ao ver um rosto parecidíssimo
com o de George Young em uma versão mais jovem. Alto, com cabelos tão negros quanto os de
Cherrie, e os mesmos olhos verde-oliva assassinos de Europa.
— Como você está, amigão? — questiona George Jr., o primogênito dele, sorrindo para
mim. — Venha, vamos conversar um pouco — sugere, já me arrastando.
Vê em meus olhos que vou reagir, porque em um único movimento prende o meu pescoço
com o antebraço, cortando quase toda a entrada de ar. Antes que eu consiga reagir, dois Sangue
em Ascensão seguram, cada um dos meus braços. Edwart Waddel, o primogênito sucessor a
Rainha, e Radcliffe Isakai, o sucessor a Bispo.
— Hey, Ed — O Young sorri para seu melhor amigo. — Gostando da festa? — comenta,
puxando assunto. Tento aproveitar para me desvencilhar, entretanto eles são mais rápidos e me
abraçam com mais força. Apesar disso, tomado por um instinto orgulhoso, não desisto de me
mexer. — Já foi na Casa do horror?
— Estou no Caça ao Tesouro — Ed explica, sorrindo para ele. Depois paira os olhos verde-
azulados em mim. — Como você está, cara? Gostando da sua noite? — Como se não estivessem
me imobilizando.
— Valeu por trazer a Boneca para o Jogo — Radcliffe comenta com um tom de privilégio.
— A noite está tão emocionante!
Não sei como consigo impulso o bastante para soltar um braço e afundar o cotovelo no
estômago de Edwart, que perde o fôlego, sugando o ar enquanto tropeça nos próprios passos.
Projeto o ombro para trás, impulsionando para frente, na direção de Radcliffe, que perde o
equilíbrio, mas não cai. George Jr., no entanto, aperta o mata leão em volta do meu pescoço, me
enforcando tão forte que enche meus olhos de lágrimas involuntárias pela dor na glote.
— Para de fazer drama, Damon. — Me joga para o lado, fazendo com que eu perca a força e
fique ainda mais a mercê do seu braço. — Está cheio de câmera, não quer aparecer na televisão
desse jeito, não é?
Odeio-me em um único segundo. Fui muito inocente por acreditar que as lentes do público
os inibiriam. Eles estão amando o palco.
É difícil ver o que está acontecendo diante dos meus olhos quando as lágrimas do
enforcamento borram o campo de visão, mas eu não me importo, continuo me debatendo e sendo
arrastado para dentro da minha própria casa, onde cada passo acentua o peso em meus ombros,
com o aperto ao redor do meu pescoço.
— Achou mesmo que conseguiria segurar as rédeas do Jogo com os Coroados do Rei como
Seguranças?
Eu paguei por fora!
— Eles não estão no Jogo por dinheiro, DamDam — George Jr. parece ler minha mente. —
Estão no Jogo para pagar o que devem. Eles não têm escolha. Sempre irão obedecer ao Rei.
— E o showzinho na TV? — Radcliffe brinca.
George Jr. ri no meu ouvido.
— Torre, Torre, você é tão inocente, nem parece que é Sangue em Ascensão. — Fala GJ,
arrastando-me escada acima. — Até parece que você não entendeu que o Tabuleiro é nosso.
— A gente faz o que quiser.
Os três riem com malícia.
— Mas não se preocupa, ninguém vai te machucar — Então se entreolham. — Já ela...
Os três me seguram com mais força, felizes por estarem tendo êxito com o terror
psicológico.
— Tudo nessa vida é aprendizado. — Radcliffe provoca. — Na próxima bonequinha,
verifica se ela está dentro das Regras antes de apresentar para a família.
O meu coração martela no peito, e cada som mínimo parece ser um eco do meu desespero.
— Não fique chateado, DamDam, são ordens de cima, do Rei. — GJ abre a porta de um dos
quartos. — Somos apenas Peões fazendo o nosso trabalho. Você sabe, já vendeu sua alma para
sair do nosso lugar.
Jogam-me dentro e fecham a porta.
O som reverbera nas paredes desse quarto. Minha respiração, acelerada pelo ódio, parece se
perder na garganta enquanto massageio o pomo de adão, mas, à medida que o tempo passa e a
sensação de desespero me avassala em um nó apertado no estômago que se intensifica à medida
que me dou conta do que está acontecendo.
Lanço-me contra a porta, tentando abri-la e chutá-la, mas mesmo quando a maçaneta quebra,
continua emperrada. Vou para trás e tento empurrá-la com o peso do meu corpo, mas trata-se de
madeira maciça. Meu corpo dói mais a cada golpe, até eu perceber que só está me cansando e eu
paro, arfando de desespero.
É como se o ar estivesse sendo sugado para fora do ambiente, queimando lentamente com o
fogo que me arrebata por dentro.
Aleks.
Eu a coloquei em risco, deixei que meu orgulho e presunção falasse mais alto, subestimei o
monstro que a devastou tantas vezes. Que outra escolha ela teria se não viesse? Mas, agora, que
escolha tenho preso nesse quarto enquanto ela está à mercê dos vilões. Aproximo-me da janela,
observando a beleza das luzes do espetáculo do lado de fora, como um infindável labirinto de
segredos ensanguentados.
Procuro por Aleks, Cartier ou Dylan e, eu a vejo, andando sem rumo com seu tutu preto
entre as mesas de jantar. Grito, socando a janela, descarregando nela toda a ira acumulada,
enquanto imploro pelo milagre dela me ver, no andar de cima. Praticamente colo meu rosto
contra o vidro, com meu coração pressionando a garganta de modo que tento engoli-lo.
Rio em um misto de raiva, revolta e arrependimento. Meu cérebro me entrega as imagens
dela machucada e a ideia de isso acontecer de novo me enche de adrenalina.
Vou sair daqui.
Olho ao redor, em um quarto que conheço intimamente e uma fagulha de esperança vibra no
meu peito. Idiotas. É o quarto onde vovô guarda seus presentes, e não preciso procurar muito
para encontrar em uma gaveta, alguns exemplares de calibres raros.
Decido começar por eles.
Alguns revólveres são ornamentados com marfim, outros com desenhos feitos em ouro.
Estão empoeirados e, obviamente, descarregados. Algo me diz que estou me distraindo com essa
esperança boba, entretanto apenas ouço a intuição quando perco tempo considerável estudando
as peças. Meu sangue esquenta quando percebo sua inutilidade, de modo que vasculho todas as
gavetas da cômoda e das mesas de cabeceira em busca de munição. Claro que não encontro
nenhuma bala.
— Pensa, Damon.
Viro o banheiro do avesso em busca de qualquer coisa, em vão outra vez. Não tem
absolutamente nada que me auxilie em um escape. E, agora… Não! Volto para a janela, vendo
Aleks no meio de Jogadores. O que esses filhos da puta estão falando que ela se encolhe?
— Aaaaaaaaaa! — brado, batendo com a testa na janela.
O barulho do impacto leve do meu crânio contra o vidro temperado aguça uma ideia. Com
os dedos, toco o vidro outra vez apenas para constatar que ele pode quebrar.
Meu coração volta a bater com a intensidade de uma orquestra inteira. A adrenalina torna a
correr pelo meu corpo feito uma chuva e começo a tremer com a esperança que me atinge. Em
um segundo, encaro as armas estiradas no chão; no outro, pego a que tem o maior cano e,
denominando-a como alguma ancestral de espingarda, aproximo-a da janela, posiciono sua
coronha contra o vidro e dou o primeiro golpe.
As janelas vibram, intactas.
Repito o golpe.
As janelas vibram, resistentes.
Bato novamente.
As janelas vibram; o barulho é alto, me impulsionando a continuar. Bato outra vez com toda
a minha potência e uso a voz, sintonizando a força do meu timbre com a dos punhos e braços.
As janelas vibram; a luz oscila repetidas vezes, deixando não apenas eu no quase breu
completo, golpeio mais depressa, com mais ímpeto.
As janelas vibraram; inquebráveis.
A cada estocada, eu ganho mais coragem de usar todo meu furor no processo. Começo a
suar, a cansar. O cano, escorrendo da minha mão, diminuindo o impacto.
As janelas vibram; parece impossível.
Vejo a minha bailarina do outro lado e golpeio vezes seguidas.
— Vai, vai, vai.
As janelas vibram; um trinco se abre.
Sorrio com o orgulho de ter conseguido e busco o impulso para quebrar a janela de uma vez.
A música alta do evento invade o cômodo, acentuadas pelo vento. Alguns cacos voltam na minha
direção e provocam mini cortes no meu rosto, então fecho os olhos, enquanto a maioria dos
estilhaços cai para o lado oposto.
Quando coloco a cabeça para fora, levo um susto inicial por notar que eu estou na janela
acima de escadaria externas, entre o segundo e o terceiro andar. Não há parapeitos e os
ornamentos exteriores que rodeiam as janelas são de gesso, frágeis. Não consigo descer, e por
mais que eu grite, ninguém me escuta com a música, além disso, ninguém olha para essa direção,
quando há um espetáculo de acrobatas em tecidos do céu, do outro lado.
A decepção me envolve quando percebo que foi atoa, e meus ombros, que carregavam a
confiança de alcançar o sucesso, agora se curvam sob o peso da frustração.
Solto um suspiro profundo, aceitando dolorosamente a realidade, e dou alguns passos para
trás.
Meu corpo colide com a parede.
Como não pensei nisso antes? Tateio o relevo do papel de parede aveludado com leves socos
à procura dos ecos. A parede é de gesso. Encarei o potencial daquela fuga — se consegui quebrar
o vidro, abro a parede com socos e chutes.
Entrego toda a minha força e o meu desespero nos golpes. É bem mais fácil, apesar de ser
mais barulhento e doloroso. No primeiro soco, faço uma brecha; no segundo chute, abro uma
cratera.
Tento ser mais rápido, acompanhando a intensidade das batidas do meu coração. Estoco o
gesso com as mãos repetidas vezes, o pó subindo, o barulho das estruturas se abrindo, brechas
aumentando, teias nas vigas grudando em meus dedos, palmas suadas e grudentas, os frisos
cortados da pele suja de sangue.
Começo a descortinar a parede com as unhas, ignorando as ranhuras que os pedaços do
gesso causam nos meus dedos e debaixo da unha, com o medo de não conseguir a tempo
guerreando com a ansiedade mesclada à adrenalina de estar quase do outro lado. O buraco já é
grande suficiente, mas não tenho certeza se o bastante para passar meu corpo. Chuto duas vezes,
aumentando o rombo.
Passo uma perna, um braço, a cabeça, alcanço o quarto de visita. Só então percebo que a
minha respiração entrecortada é carregada de um misto de ansiedade e raiva. O ódio queima em
meu peito, uma resposta visceral à tentativa que tiveram comigo.
A determinação ardente é alimentada por uma chama que queima com a ideia de acharem
que podem ferir a minha mulher. Os músculos contraem e a respiração acelera, com a mente
focada em um único propósito: minha borboleta russa.
Aproximo-me lentamente da porta, mas não a abro. Assim como fazia quando era criança,
ajoelho-me para ver o outro lado do trinco, apenas para confirmar minha suspeita. Há um
Coroado de segurança. Levanto-me, recuando alguns passos, enquanto penso.
Eles têm treinamento militar, não me garanto em uma luta corporal, e não vou tentar
suborná-lo depois do que George Jr. disse. Sorrio com a ideia que se forma, volto ao outro
quarto pelo buraco e pego o calibre sem munição, com as mãos doloridas e suadas escorrendo no
cabo.
Aponto na altura da cabeça do coroado com uma mão enquanto abro a porta com a outra,
escondendo o tremor pela adrenalina e o medo de não dar certo.
— Mão na cabeça ou o seu cérebro vai fazer companhia para o Dali Salvador na parede. —
Digo me referindo ao quadro.
O homem apenas levanta lentamente enquanto assimila o susto, enquanto eu me aproximo
com os ombros erguidos, demonstrando uma confiança que não tenho. Chego perto o suficiente
para surpreendê-lo, com o calibre na sua cabeça, quando em um movimento retiro a pistola de
segurança do seu cinto. Também não sei que destreza é essa que me arrebata, quando lanço no
chão a falsa e destravo a verdadeira, para no segundo seguinte atirar, a queima-roupa, em sua
coxa.
O funcionário cai no mesmo segundo, com gemidos altos, mas eu mantenho a frieza e o
chuto.
— Vai para o quarto. — Aponto para a porta em que sai. — Rápido, vai. — Chuto suas
costas várias vezes, para que se arraste até o cômodo e eu o tranque.
O suor escorre pela minha testa em uma resposta direta à intensidade da emoção que me
consome, guiando as ações que preciso fazer.
Eu os subestimei, mas eles também me subestimaram, e vão saber disso.
Ajusto a máscara preta no meu rosto, tirando o blazer sujo de pó, assim como limpo as
mãos, tentando esconder os recentes hematomas nos dedos.
A imagem da minha Aleks clareia minha mente como avisos que me dão mais foco, e eu
vagueio pelo andar com agilidade e leveza, conhecendo o labirinto dessa casa com a perspicácia
de uma criança que sabe todos os esconderijos entre as paredes, em um jogo de esconde-esconde
com os convidados e seguranças.
Quando alguém se aproxima demais, escondo-me atrás de uma parede ou dentro de um
quarto.
Como uma brincadeira de fases, a intensidade aumenta à medida que caminho pelos
corredores e desço o andar. As escadas são a parte mais difícil, perto da escada principal, está
muito difícil não ser visto.
Prestes a descer a escadaria que me leva para o centro da festa, o térreo, assim que viro em
um corredor, esbarro com um homem.
Subo lentamente a atenção.
O reconheço pela barba de três tons antes mesmo de cruzar meus olhos com o dele, verde-
oliva. Os meus músculos se contraem, os punhos se cerram automaticamente, e a respiração se
torna mais rápida e superficial à medida que o coração começa a bater mais rápido.
Não penso o que vem em seguida.
Projeto toda a força do meu corpo para frente, prendendo-o na parede mais próxima
enquanto uso a coronha da arma para acertar sua têmpora, e um dos braços para acertar seu
estômago, arrancando o seu fôlego de uma vez só. A adrenalina me impede de sentir dor, ao
contrário, sinto-me vivo quando levo meus dedos para o meio da sua cara.
É tudo tão rápido que o Rei tem um delay muito grande na hora de tentar me devolver. Ele
ergue os braços para me desferir um golpe e eu acerto outro, dentro da sua costela, usando o
outro braço com a coronha para prendê-lo na parede usando o antebraço. A cada soco, desconto
o ódio de cada lágrima da Aleks, mais forte e mais forte, e ele aqueia, cuspindo sangue.
Afasto-me, tremendo dos pés à cabeça, apenas para deixá-lo cair em toda a sua glória.
— Vossa majestade. — Minha voz sai regada pela raiva, entrecortada, enquanto faço uma
reverência, passando a língua pelos lábios com suor escorrendo. — Achei que seria mais difícil.
— Solto uma risada genuína, fora de mim com a adrenalina, levantando a arma na direção da sua
cabeça. — Você está mais acabado do que imaginei.
Ele tosse sangue, fitando-me com um olhar inexplicável enquanto tira máscara. Há ódio, há
prazer, há amor, há desprezo, a cada nuance que me entrega, e eu sei que preciso fazer rápido
então aponto o projétil.
Ele solta uma risada.
— Uau, vai matar o homem que te ensinou a usar uma arma. — Dá o seu largo sorriso de
orgulho, com o sangue manchando os dentes brancos. — Talvez você possa ser o novo Rei.
Chuto-o com o bico do sapato no rosto, e o velho tomba a cabeça, rindo.
— Quando o Jogo acaba, as Peças são reorganizadas. — Explica, deixando-me sem entender
o motivo. — Você pode ser a Peça que quiser.
Eu atiraria no seu corpo, para que pare de falar, mas faria muito barulho, então aponto a
arma para a sua cabeça e vou direto ao ponto.
— Não quero poder, quero vingança. — Lembro de Aleks e devolvo outro chute na sua
costela, fazendo-o deitar-se de bruços, cuspindo sangue. Agacho-me diante dele e levanto sua
cabeça com um puxão de cabelo enquanto falo. — Foi bom rasgar ela enquanto ela estava
desacordada, seu filho da puta? — Uso a força para levar sua cara no chão, batendo seu rosto
com toda a força contra o mármore suntuoso. Fito-o no chão, com o desprezo me inundando de
coragem e aponto a arma na sua cabeça. — Foi um prazer servir a coroa.
No instante em que meus dedos tocam o gatilho, ele ri, gargalha deliciosamente como se
fosse uma piada muito boa, com a cara ensanguentada no chão.
— Desculpe não poder responder a sua pergunta, filho. — Usa a força para virar a cabeça,
me fitando com o sangue escorrendo em abundância pelo nariz e lábios. — Mas você está
cometendo um grande engano, criança. — Cospe um dente, rindo ainda, embora o seu olhar
mude a cada segundo, da diversão a um ódio profundo, quando fala pausadamente: — eu não
sou o Dono dela, seu burro.
JOGO DE PODER

A essa altura, você deve ter percebido que não sou uma narradora confiável.
Ocultei informações, manipulei fatos, fiz do Tabuleiro o meu parquinho de diversões, e
agora estou aqui, refrescando os pés na piscina enquanto ele pega fogo.
Todos estão achando que sou uma puta, mas não ligo. Acharam o mesmo de Cherrie e ela
não era. Transformo qualquer xingamento em meu escudo.
É assim que as coisas funcionam dentro do Jogo. Ou você brinca com a cabeça deles, ou eles
fodem com a sua. Sei que você queria que houvesse outra maneira, mais justa e mais limpa, mas
todas as Peças Brancas são derrubadas assim que se levantam.
Gostaria com toda a minha alma que Charllote Duncan provasse o contrário, mas ela foi a
única que não quis engolir essa porra, e a silenciaram.
Então, aqui estou eu, manipulando tudo e todos enquanto rasgo o meu braço com o estilete,
observando meu sangue escorrer como escape por todos os segredos que ficam presos dentro de
mim.
E se só me machucar fosse o suficiente...
Ainda se Cherrie pudesse gritar, eu não existiria, mas eles só escutam os estragos, então
ofereço o melhor da casa.
Nas mãos, o estilete me diz que o triunfo está entre meus dedos, e eu me mantenho nessa
espécie de transe dissociativa, desligada de outras sensações e pensamentos ao ponto de não
sentir a dor física, até uma sombra me cobrir.
— Cartier?
E, então, retira a máscara, evidenciando sua beleza marcante nos ossos do rosto, com uma
garrafa do meu champanhe favorito em uma mão e duas taças em outra. Põe a garrafa com as
taças ao meu lado e, com um fraco sorriso contrariado, despe-se do smoking preto e justo para
ocupar o meu lado com mais versatilidade.
Meu homem possui ombros largos demais para caber confortavelmente dentro de uma
alfaiataria de alta costura.
— Parabéns para Europa Young. — Comemora com a voz aveludada, sentando-se. — Mais
uma vez, você conseguiu tudo... — vê o meu braço e me fita assustado. — O que está fazendo?
Reviro os olhos com sua preocupação, me machucando.
— Tentando ficar mais um pouco. — Aponto com o olhar para a bebida. — Estava te
esperando para comemorar.
O Kühn sorri fracamente, trazendo sua mão até o meu rosto. Desenha meus traços com seu
dedo indicador, do meu queixo às maçãs do rosto. Seu toque praticamente se desfaz em contato
com minha tez, tamanha a minha letalidade.
— Estou tonta. — Confesso, e ele aproveita a deixa para tirar o estilete, mesmo que isso
signifique dar voz a dissociação que me inebriada.
— Deve ser o sangue que saiu.
Sorrimos tristes para o outro. Não é. Estamos acostumados com despedidas como essa.
Eu só fico no front até cumprir meu objetivo. Sempre entrego o caos nas mãos de Cherrie, e
sinto os sinais de que estou indo embora. Nem consigo mais nem fazer piada.
— Porra — solto, deitando minha cabeça nos ombros dele, com os olhos fechados, o calor
da sua camisa em minha testa, meu nariz sentindo o seu perfume. — Eu devia ter ido mais
devagar com o plano.
Segura a garrafa e faz pressão com os dedos até que a rolha estoure, caindo longe na piscina,
dentro da água, mas eu não desvio o olhar para Cartier, analisando suas íris douradas como fogo.
— Foi perfeito, minha vadia. — Agora, nossos rostos estão tão próximos que sua respiração
quente me toca, demonstrando toda a emoção por me ter em seu território. — Eu amei cada
segundo de você aqui. — Sela meus lábios. — Uma pena você só ter me contado nas últimas
semanas.
Encaro-o, com ódio de mim mesma por isso.
— Mas você teria me deixado fazer tudo o que fiz com a coitadinha?
Dá de ombros e mostra a mão cheia de mordidinhas de cachorro.
— Roubei um cavalier, não?
Cartier é tão bom que não deveria ser considerado homem.
Ele faz o que precisa fazer, aguenta a porrada e não tem medo da dor, e ele sabe amar de
verdade, o tipo de amor altruísta, que não precisa de reciprocidade, o que existe
independentemente de quanto tempo passe. Ele me ama há anos, em minhas passagens rápidas, e
sei que vou embora hoje, mas, daqui dois, cinco ou dez anos, quando eu voltar, ele vai continuar
igual, e vai me amar não importa a merda que eu invente fazer, e vai me ajudar, se estiver ao seu
alcance, porque esse é Cartier.
— Eu te amo, droga. — Lanço-me sobre o seu corpo, abraçando seu pescoço, e ele nos
deita, eu em cima do corpo dele, envolvendo seus braços fortes em meu entorno.
— O monstro demonstrando sentimentos? — brinca, mas me encaixa, de um jeito que
ficamos com a cabeça deitada fitando as estrelas, sem conseguir esconder a tristeza penetrando o
momento.
Sempre sou forte, exceto nas despedidas, e minha reação mais vulnerável é ficar de mãos
dadas e fechar os olhos, desejando curtir cada segundo da sua companhia enquanto a dor
emocional vai se tornando física.
Começa com os efeitos de que estou fora do meu corpo. A dor no braço desaparece
completamente e o toque da mão dele também. Sinto partes do meu cérebro se desligarem em
pequenos apagões, causando pontadas na cabeça.
— Eu não queria te deixar — murmuro, observando o céu. — Queria ficar com você todos
os dias. Seríamos a turminha do mal.
Apenas sei que beijou minhas mãos porque as vejo na boca dele, é uma sensação meio
assustadora, mas me acostumei.
— Eu também, mas e a Cherrie?
É pior pensar nela. Pensar que ela vai ficar sozinha com os monstros, e ela não vai pedir a
ajuda de ninguém, vai ferrar o psicológico e vai se estraçalhar fazendo tudo três vezes mais só
para ser enxergada como um Peão pelos olhos do papai que não dá a coroa que ela nasceu para
receber.
Esse é o ponto.
Tudo o que eu fiz com Damon foi para foder o reinado desse filho da puta. Faria de novo mil
vezes, usaria todas as Bonecas do jogo com prazer, nesse caralho.
— Tenta cuidar dela. — Peço, com um zumbido crescente.
— Não se preocupe, minha gostosa.
A dor me faz estremecer cada vez mais. É como uma enxaqueca que faz seu cérebro sair
pelos ouvidos e olhos, tamanha a pressão. Dói também na alma, tudo o que somente eu, Europa,
sei a magnitude do que aconteceu, de um modo que sinto cada centímetro de mim ser quebrado
com flashes de vezes que precisei me ferir para estabelecer os limites, de quando Cherrie era só
uma menina de quartoze e quinze anos, e foi traída da maneira mais sórdida, pelas pessoas que
mais amava, e mataram a única ajuda que ela teve: Charllote.
Dói tudo o que não tenho o direito de viver, porque não posso simplesmente existir e ficar
abraçada a Cartier como uma pessoa normal, tenho que ser essa máquina de matança, não tenho
outra opção. Dói cada trauma de Cherrie. Dói muito ser apenas uma parte dela que ela exclui,
sabendo que seríamos muito melhores se fôssemos as duas, juntas. Inteira.
Cartier percebe que estou chorando e faz uma última coisa, na tentativa de tornar o meu pior
momento em algo bom como um sonho.
Traça a maciez dos meus lábios com a ponta dos dedos para, enfim, tomá-los enquanto suas
mãos sobem até meus cabelos. Ao se aproximar do meu pescoço, inspira o meu perfume antes de
atacar minha boca com apetite. Como se eu fosse o seu veneno e, ainda assim, o bebesse com
prazer.
Fecho os olhos, caindo em um abismo terrivelmente assustador, e escuro e silencioso, e o
choro se intensifica porque nesses momentos eu sinto a morte e não importa quantas vezes
aconteça, sempre vou sentir a dor de estar morrendo de novo e de novo, em um espiral que
embaralha a minha mente, bagunça os meus sentimentos, me faz sentir muitos cheiros e...
Busco todo o fôlego dos meus pulmões, como se estivesse submergindo de um oceano
profundo e escuro, sentando-me enquanto coloco as mãos contra o peito em uma tentativa falha
de obter mais ar e parar de chorar.
Meus olhos se abrem e eu tento entender onde estou, me deparando com a feição de Cartier
Kühn inundada por lágrimas. Abaixo o olhar, encontrando nossas mãos entrelaçadas em um forte
aperto, e tento entender as minhas unhas grandes e afiadas, o vestido, a piscina dos Duncan...
— Cherrie? — a voz do Kühn capta minha atenção, carinhosa, embora anasalada. — Bem-
vinda ao Front.
Ele está com o rosto liso e, sem a barba loira, o maxilar a boca e o formato do nariz tornam o
seu conjunto ainda mais único.
Sorrio em agradecimento, tentando acalmar as batidas do meu coração.
— Mon Soleil... — acaricio sua face tomada por lágrimas, limpando-as enquanto crio
coragem de perguntar. — O que aconteceu?
O loiro expressa uma feição conturbada.
— Qual a última coisa que se lembra?
Concentro-me por vários minutos na resposta.
— Estávamos na Ilha, no Torneio. — À medida que falo, obtenho mais detalhes, e sorrio. —
Eu iria apresentar o EuroOásis — então meu timbre abaixa, e eu sinto um aperto no peito. —
Damon roubou a autoria do projeto. Ele roubou o meu projeto.
É a vez do loiro acariciar minha face.
— Estamos no jantar de apresentação do EuroOásis, oito meses depois, Europa preparou um
espetáculo, fodeu Damon de todos os jeitos. — Morde os lábios, pensando em como explicar. —
Lembra daquela Boneca que seu pai tirou do catálogo?
Meu cérebro lateja com a confusão.
— Papai tira muitas do catálogo.
— A Boneca-russa. — Inclino a cabeça, atenta por mais informações. — A bailarina de
porta joias.
Meus olhos se arregalam quando me recordo de Aleksandryia, com um enjoo se apoderando,
amargando o meu palato.
A com envolvimento no caso de Charllote?
— Ela e Damon estão juntos.
Meu queixo cai. Não. Não. Não.
— Aqui?
Ele assente.
— Seu pai estava surtando.
Sinto meu coração disparar em movimentos mais rápidos a medida em que assimilo o caos,
e me levanto tão rápido quando consigo, com a tontura e os pés molhados, então um peso
descomunal no braço faz eu me assustar quando me deparo com a tragédia que ele se tornou,
completamente ensanguentado com rasgos em diversas direções.
O sangue sujou toda a minha roupa.
— Ai... — escapa, antes que eu me dissocie da dor, focando no que é mais importante. —
Papai!
Cartier aponta a outra direção.
Perco o fôlego quando encontro a estrutura da festa, e, por um instante, agradeço a Europa
porque, só de imaginar que esse momento deveria ser meu, sou tomada por uma vontade de
matar Damon dos jeitos mais dolorosos, e torno a atravessar as atrações em busca do meu
homem de máscara.
Dylan cruza comigo, usando um terno de bom caimento em seu corpo esguio, os ombros
largos e as pernas longas.
— Europa, seu braço!
Puxo para o meu corpo, escondendo-o.
— Cadê papai?
Meu namorado puxa a máscara e eu me perco na aparência do seu rosto, com todos os
detalhes que amo.
— Cherrie? — fica consternado.
— Papai precisa de mim. — Explico que tenho pressa, procurando-o por todos os lados.
Ele compreende com perfeição.
— Você viu uma bailarina vestida de cisne negro andando por aí?
Faço que não.
— Cobre a ala leste, vou para a oeste — sugiro e ele abre um largo sorriso.
Sem que precisemos dizer mais nada, cada um vai em uma direção com um silêncio
cúmplice. A certa altura, busco por ele, no exato instante em que ele me fita.
— É bom te ver, meu amor — se declara, sem se importar com as pessoas ao redor.
Mando um beijo para ele.
Não encontro meu pai na área externa da casa. Do lado de dentro, a primeira pista que me
chama a atenção é o rastro de sangue no corredor, e eu o persigo, imaginando ser de alguma
vítima do Rei.
Não é o que eu encontro quando abro a porta.
Papai está apoiado na mesa do escritório de Gerard Duncan, enquanto mamãe limpa o
sangue do seu rosto.
Eu já vi muitas pessoas que ele machucou, mas nunca o vi ferido.
— O que aconteceu com o papai? — meu timbre sai esganiçado.
Os dois me fitam.
— Europa, sai. — Ordena mamãe, com um olhar de águia e seu cabelo loiro em cascata no
penteado.
Adentro alguns passos, com o coração doendo à medida que me aproximo e encontro o meu
pai nesse estado. Sua linda barba grisalha está vermelha, segura gelo em um dos olhos e seus
lábios estão inchados e cortados.
— Pai? — meus olhos se enchem de lágrimas.
— Europa... — ele rosna, com o timbre de quando está realmente bravo, e eu paraliso.
— É a Cherrie.
Tenta rir e cospe mais sangue.
— Depois de meses fazendo todo mundo de trouxa, no dia que você causa mais estrago,
acha que é só dizer que é a Cherrie?
Ela fingiu ser eu?
— Cherrie, sai. — Mad tenta de novo, mas é George quem aponta a porta para ela.
— Querida, sai você.
A loira ri, consternada.
— Não vou deixar vocês sozinhos...
Papai começa a tirar o cinto.
— Aproveita que seu irmão veio da Hungria para esse espetáculo, e o tempo que te resta
com ele.
Madeleine e eu nos fitamos preocupadas.
— Quer saber? Vou mesmo. — Expõe impaciência, em direção a saída. — Nos encontramos
no hospício.
Não estou com medo quando ela fecha a porta e papai está me fitando com aquele olhar.
Todo mundo sabe que o Rei e a sua princesa têm uma relação doentia, ninguém quer imaginar o
porquê.
— Europa...
— Cherrie.
— Você foi longe demais dessa vez, Europa.
Minha postura é de submissão, de cabeça baixa. Ele quer punir a Europa.
— Ela sempre vai, papai.
— Como acha que estou me sentindo?
Meus pelos se eriçam.
— Aceito e concordo, papai.
— Então sabe o que fazer. — E se vira de costas, para que eu me dispa do vestido.
Sento-me no meio do tapete, segurando os cabelos para frente e a bunda inclinada, dando-
lhe as minhas costas em sacrifício. Quando ele se vira, e se aproxima, a tensão percorre o meu
corpo como ondas elétricas que se alojam em um único lugar.
— Por que você tem que ser assim? — dá a primeira cintada, com a fivela acertando minha
pele em cheio e depois o calor no açoite formigando com potência em minhas costas.
Dá outra. Todo o meu corpo esquenta com a sensação, e eu perco o ar na expectativa da
próxima cintada, que irradia pelo tecido.
— Eu não entendo, juro que não entendo! — diz entre os golpes. — Tudo o que eu faço por
você! — fala mais alto que os estalos que me fazem arquear, embora eu não sinta dor o bastante.
— Como você prejudica o Tabuleiro desse jeito?
E eu tento me concentrar nos açoites para evocar a dor física, mas a cada vez que eu olho
por trás dos ombros e o vejo descontar a sua raiva em mim, sou inundada por um prazer que
enche minha boca de saliva.
— Por quê? — pergunta.
Açoita-me tão violentamente que um arquejo escapa dos meus lados.
— Por que fez isso?
A fivela arranha minha pele, mas é ele quem geme.
A verdade é que ele sempre vai encontrar um motivo para me surrar, e eu sempre vou
aceitar, feliz e excitada por ser a válvula de escape do Rei.
— Por que, Cherrie?
Encaro o fundo dos seus olhos verdes com os meus. Não fui quem planejei esse acidente,
mas sei que meu coração ecoa a mágoa do Torneio como se fosse ontem, e ouvir o ruído da festa
que deveria ser minha faz uma lágrima saltar do meu rosto.
— Porque esse é um jogo de poder, mon père, e, nele, eu sou o Rei.
Fito-o com os lábios entreabertos, desejando mais violência por essa resposta, ansiando que
meu pai perca o controle e me quebre de todas as formas mais criativas que seu cérebro genial
pensar, mas ele se ajoelha com um olhar de adoração enquanto arfamos pelo outro.
Não sei se é ele quem me beija primeiro, ou se sou eu quem busca os seus lábios
machucados. Não importa, nos instantes seguintes nossas línguas estão dentro da boca do outro,
e o gosto da sua saliva com sangue é tão delicioso que não posso evitar os gemidos que escapam.
— Eu te amo, papai...
Todo o meu corpo, que permanece desligado mesmo com os açoites, parece vivo agora,
brilhando por cada centímetro onde seus dedos correm, e não há nada mais poderoso do que o
amor que sentimos quando ele me puxa para o seu colo, abraçando-me fortemente enquanto me
penetra, e está dentro de mim, e nós somos um só, ele me beija, e o prazer se mescla ao amor,
adoração e todas as memórias de cada um dos meus momentos de vida, com ele ao meu lado.
Ninguém pode proibir esse sentimento.
Nem mamãe, nem Cameron, nem Europa e nem Charllote Duncan.
Esse é o segredo que matamos para proteger.
PRAZER, DONO

— Você já estrelou o Quebra-Nozes? — Europa indaga, com nossos pés na piscina.


— Deixe-me em paz, eu imploro — suplico, entre os soluços.
— Assisti pela primeira vez quando era criança, no final do ano. Charllote nos levou ao
teatro; ela sempre nos levava para ver ballet… — Europa continua. — Qual papel você fez,
Aleks?
— Clara... — murmuro. — E a Rainha dos Doces.
— Ah… a Rainha! Era a minha personagem favorita. — Europa conta no meio do hum-
hum. — Ela era tão hospitaleira por oferecer à protagonista aquele espetáculo todo, não acha,
Aleks?
Encaro-a brevemente.
— Sabe o que eu mais gosto no Quebra-Nozes?
Franzo o cenho, atordoada.
— O quê? — indago, sugestionada pela hipnose.
— É a moral da história, Aleks. Pode me dizer qual é?
Penso um pouco.
— Que nada disso é real? — Europa sorri.
— Não esqueça disso. — Pisco, e faz um gesto para os seguranças.
Em minha mente, o cenário é transfigurado para um episódio do National Geographic, no
instante em que o cervo pisa em um graveto e faz barulho.
Os leões acordaram,
E eu vou ser destroçada.
Estou lutando com o meu próprio corpo e minha mente quando mãos masculinas agarram os
meus braços, e eu sinto meus pés se arrastarem no chão, com o barulho da música da festa se
tornando mais forte à medida que o canto de Europa fica distante. O vento noturno impacta em
meu corpo e os pés molhados, me fazem sentir frio.
Não dá tempo de reagir. Alguém abre a porta e me joga dentro, e o carro começa a se mover
rápido. É só quando tento abrir a boca que percebo que estou tremendo, tanto ao ponto do meu
queixo parecer deslocado, e as palavras enrolam na minha língua.
— Para onde está me levando? — pergunto ao motorista que, como sempre, ignora.
O ódio me eletriza, transformando o medo em fúria, na velocidade de um piscar de olhos
chuto o seu banco com toda a minha força.
A arma que aponta na minha direção é o lacinho que Gulnara estava usando.
Seu recado é claro. Ele está me levando para a minha filhotinha. E, apenas a hipótese de ela
estar viva faz a esperança se iluminar no meu coração, me fazendo sentar direito no assento com
postura de bailarina e concentrar minhas energias para o momento em que estivermos juntas.
Além disso, o trajeto é basicamente atravessar a rua, e em um piscar de olhos estamos
adentrando a mansão da frente. O carro estaciona e as portas destravam, me convidando a descer.
A arquitetura da mansão me dá calafrios. Se o calor aconchegante dos janelões, portas e
batentes de madeira maciça dos Duncan me abraça, a decoração obscena e quente, com estatuas e
fotografias de corpos femininos nus, no hall de entrada, torna essa casa como o próprio deserto,
febril, de tão quente.
E eu até me questiono o porquê estou adentrando, mas quando ouso dar as costas, latidos me
conquistam, fazendo-me seguir em passos apressados pelo piso em direção ao som, feito um
labirinto que adentro sem me preocupar com a saída, até cruzar uma sala, e perder
completamente o ar com o que vejo.
E esquecer como se respira.
Gulnara está em pé, com as duas patinhas em frente ao corpo, a língua para fora e o rabo
abanando. A sua frente, um homem, com terno e uma máscara que cobre todo o rosto, me pede
cinco segundos me silêncio com os dedos, e então entrega um biscoito para Gulnara, que late de
alegria, dando voltinhas, tão entusiasmada que não percebe a presença da própria mãe.
— Muito bem. — Ele premia, acariciando-a. — Boa menina.
Sua voz me atravessa com mais intensidade que os raios, e seu timbre aveludado dispara
meu coração com mais ímpeto que os trovões mais severos que balançam tudo na terra.
Sinto um medo profundo de encará-lo e abaixo a cabeça, sem saber se vou para cima dele ou
se corro para o lado oposto.
— Pode me olhar. — Dá o comando, levantando-se e caminhando, lentamente, até mim. —
Não há mais motivos para você não ver.
Começo dos pés. Fito as pernas, reconhecendo com perfeição a sua altura, e o desenho da
cintura contrastando com o peitoral e ombros largos, os braços fortes, monstruosos, as mãos
enormes. Preciso me esforçar para subir os olhos pelo seu pescoço, a máscara preta com os olhos
âmbares.
Eu só não imaginava que ele iria levar as mãos até o queixo da máscara, e a arrancar de uma
forma que seus cabelos curtos, dourados, brilham, antes, levando minha atenção para a sua
barba, dourada em sua maioria, com partes brancas nos pontos certos.
Ele sorri largamente para mim, com lábios médios, rosto oval, covinhas em uma das
bochechas, acentuadas pelas linhas de expressão. É como se uma porta no meu cérebro fosse
derrubada com o gatilho e, em um segundo, lembro-me de como me senti quando o vi pela
primeira vez. Lembro do nosso primeiro beijo e de como eu adorava o seu sorriso, fazendo com
que meus olhos se encham de lágrimas.
Quão cruel foi ter arrancado as partes boas, de mim?
Ele ainda lê a minha alma.
— Apenas escondi o meu rosto porque foi necessário. — Sorri, simpático outra vez. — Os
segredos acabam essa noite, então não precisa ser assim.
Estica a mão, pedindo a minha, mas não consigo reagir, é como se ele sugasse todo o meu
ar, e ele entende, porque recua da intimidade, e aponta para a cachorrinha.
— Ensinei alguns truques para ela, seu tapete não será mais mijado.
Ajoelho-me para receber Gulnara nos meus braços, com a felicidade de encontrá-la viva me
inundando, e faço carinho nela, sentindo seu pelos macios, sorrindo com o quanto ela está
elétrica, sorridente e... viva.
Trago-a para os meus lábios, fechando os olhos de tanto que a beijo, tentando fingir que não
me importo com ele me assistindo, apenas com o coraçãozinho batendo embaixo da asa em que a
seguro.
Não consigo descrever o quanto a existência dele mexe comigo e a dimensão dos
sentimentos conflitando dentro de mim. A mágoa me devora primeiro.
— Por quê?
É tudo o que não sai da minha cabeça, desde que recebi a caixa ensanguentada para o
espetáculo de Damon, sem ter merecido. A forma como ele me machucou sem aviso algum,
como matou Corsário, cada pequena coisa que faz meus olhos encherem de lágrimas, fazendo
com que eu me odeie mais por parecer vulnerável desse jeito.
— Kitty... — sorri, e dá batidas no sofá ao lado do seu. — Sente-se aqui.
Não me movo e ele bate outra vez no assento.
— Vim da Hungria te dar explicações, não vai querê-las? — Usa o mesmo timbre que um
pai raciocina com sua criança.
Abraçada a Gulnara, atravesso a sala até o extenso sofá, mas não sento onde ele mandou, e
sim mais afastada, como se eu tentasse, a todo custo, sair da gravidade dele, sem fitá-lo, porque
ver seu rosto me deixa triste, embora não ver faça eu ser conduzida para a ideia de que ele ainda
é meu Dono, e eu não quero obedecê-lo.
Ele observa minha luta interna enquanto mexo os pés freneticamente, entregando o nível do
meu abalo, demonstrando que meu organismo já liberou uma descarga de adrenalina no caminho
e, logo, os hormônios vão começar a evaporar e vou ficar sem forças para lutar contra.
— Você foi a minha única Boneca, sabia? — mente, olhando nos meus olhos com aquelas
malditas íris incandescentes.
Balanço a cabeça para os lados, desviando o olhar, incomodada com sua proximidade e
fixação, e percebendo que é isso o que ele vai fazer o restante da noite, tento ir em direção à
porta, mas não consigo dar dois passos inteiros até sentir o seu toque ardente e rude sobre a
maciez do meu braço. Dá um passo à frente, cortando distância, ficando a centímetros do meu
rosto, a uma distância que nossas respirações se encontram e eu sinto o hálito quente de uísque.
— Estou disposto a ser delicado com a sua natureza, mas não preciso, Kitty. — Encaro-o
com medo; ele, com tranquilidade. — Se você quiser, o relógio está no meu bolso.
Sinto tanta raiva que levo as mãos até seu peito e faço movimento para empurrá-lo, em vão.
Ele me segura com mais força, exercendo ainda mais poder mental do que físico.
— Você me conhece mais do que conhece a si mesma, Kitty, sabe que eu só faço o que é
necessário, quando é necessário. — Penetra com o olhar o fundo da minha alma.
— Então por que me machucou daquele jeito? — minha voz embarga, Lágrimas brotando
dos olhos outra vez.
Solta-me com cuidado e delicadeza, para que eu me sente,
— Porque precisávamos abalar Damon, e você precisava acordar no sangue, para despertar
seus gatilhos.
Tocar nesse assunto me congela completamente e meus olhos se enchem de lágrimas,
inundando a linha da água e escorrendo pela tez das maçãs do rosto.
— Por quê?
— Você sabe, Kitty, que eu jamais faria isso se não fosse necessário.
— Necessário me estuprar?
Dá de ombros com tranquilidade.
— Precisava ser algo grave e revoltante, e eu não iria espancar esse lindo rosto. —
Semicerra os lábios em um sorriso afável. — Eu iria fazer com você acordada, mas quando a vi
com cólica, não tive coragem. — Luto para segurar o choro, mas estou desmoronando na mão
dele feito um castelo de areia perto da margem. — Eu me importo com você, Kitty. — Admite
nos meus olhos. — Do jeito que um psicopata consegue, eu sei, mas me importo.
— Não sou sua Kitty. — Faço menção de me levantar, contudo ele toca em meu ombro para
lembrar que não tenho escolha.
— Só não está me chamando de Dono porque não faço questão. — Lembra com uma frieza
calculada.
Também já não tenho mais energia para sustentar a batalha contra o dourado das suas íris,
então abaixo a cabeça.
— Por quê? — lembro de perguntar.
Sobe a mão até o meu ombro, onde pesa alguns gramas
— Como eu estava dizendo, você é minha única Boneca. — Reforça a informação. — Eu
escolhi ficar com você por um motivo muito específico.
Cada palavra que sai da boca dele tem o objetivo de me esgotar mental e emocionalmente, e
ele está conseguindo, afinal, estou me esforçando tanto para ouvir sua voz, cuja entonação é
mínima, que mal consigo ouvir meus próprios pensamentos.
Meu sistema grita com o alerta e eu tento novamente, levantando-me em outro estrondo, e
ele entra na minha frente outra vez, segurando meu braço e deixando bem claro que eu estou
presa com ele.
— Qual?
Faz um gesto para que eu me sente, e obedeço.
— Como está sua depressão, Kitty?
— Boa, Damon cuida de mim. — Meu peito sobe e desce pela respira ção agitada.
— Ele fez muito por você, não é, baby girl? — Algumas lágrimas escorreram pelo meu
rosto e ele aproveita para tocar em uma mecha do meu cabelo de um jeito que, no passado, eu
amava. — Ele é um bom menino, por isso eu dei você a ele, para que ele cuide de você e você
ajude-o a se recuperar.
Meu coração para de bater.
— Se recuperar do quê?
— De toda a dor que você causou na vida dele, continua causando. — Meu peito estilhaça
com a menção abrupta e lágrimas começam a descer, mais intensas. — Ele precisa da verdade,
você deve contar do seu trauma a ele.
Encaro-o com uma expressão desacreditada. Tanto porque ele é a única pessoa que sabe o
quanto esse assunto me sensibiliza, quanto por …
— O que tem a ver?
— Sabe por que eu escolhi ficar com você, depois do que você fez? — É tão cruel ele tocar
nesse ponto a essa altura que eu fico em choque e não tenho mais forças nem para pedir que ele
pare de falar. — O Rei me mandou descartar você, mas como eu faria? Você estava tão
assustada, era só uma menina, todos cometem erros. — Continua brincando com meu fio de
cabelo. — Eu me arrisquei muito para mantê-la viva, Aleks, eu te escondi do próprio Rei.
Enquanto decido se peço para ele parar de falar ou o deixo continuar, ele acaricia levemente
minhas bochechas molhadas com as costas dos dedos, e eu não posso evitar me sentir acolhida
por quem conhece a minha parte mais feia.
— Em todos esses anos, Kitty, cuidei de você sem esperar nada em troca. Escolhi cada
refeição, cada peça de roupa, te liguei todos os dias... — Ele sabe como estraçalhar minha alma,
porque só em lembrar a dor que senti, me desmancho. — Porque eu sabia que, na hora certa,
você seria útil. Faria por mim o que fiz por você.
Tento lutar para não acreditar em cada palavra que ele diz e perco, afinal, sou condicionada
a isso.
— E o que você quer? — minha voz sai fraca.
— Estamos esperando Damon. — Levanta-se, indo até o minibar. — Quero que conte a ele
o que você fez.
Minha cabeça lateja de tanto tentar me recordar o que aconteceu. A conversa com Europa
clareou minha mente, sei que machuquei uma mulher, e que meu Dono me encontrou, me limpou
e me salvou.
— Por que contar a Damon? — raciocino, vendo-o escolher uma bebida. — Não devia ser
um segredo nosso?
Ele sorri largamente.
— Ah, sim, mas era a mãe dele.
Escuto meu coração se estraçalhar no vazio do meu peito.
— Mas... — a boca seca e eu perco a fala. — Ela não se matou?
Senta-se novamente ao meu lado, com ainda mais presença, e apoia os braços no encosto do
sofá, sufocando-me.
— Ela se matou, sim, mas tudo tem um motivo. — Oferece o copo, mas eu nego. — Vocês
conversaram e ela surtou na mesma noite. Seis meses depois tirou a própria vida.
Franzo o cenho.
— Em que ano?
— 2011.
Minhas mãos estão suadas ao ponto de Gulnara subir em meu colo, querendo lambê-las, mas
eu não me mexo, completamente perdida dentro de mim. Encaro-o, confusa.
— Ela falava russo?
Meu Dono demora alguns segundos para responder.
— Não, mas Cherrie sim, e vocês estavam juntas. Mais perguntas?
Balanço a cabeça devagar.
— Estávamos fazendo o quê?
Seu sorriso malicioso me congela.
— Uma pena você não lembrar, Kitty. — Acaricia meu queixo. — Foi tão bom.
Permaneço com o olhar perdido.
— De quem era o sangue? — minha voz praticamente não sai.
Então meu Dono se levanta. Tira o terno e, encarando o fundo dos meus olhos, desabotoa os
botões da camisa, um a um, permitindo que eu veja o corpo que tanto adorei. Mas, antes que eu
me encolha no assento, ele se vira, dando-me a visão das suas costas largas, marcadas por um
monstro que abriu cada centímetro de pele com as unhas em formato de açoites.
— O sangue era do seu próprio Dono.
A VERDADE

Ainda estou trêmulo, dos pés à cabeça, pela adrenalina que corre pelo meu corpo, tanto pela
briga física quanto para o que vem depois dela.
— Você deveria me matar — George me orienta, quando me vê paralisado com a
informação de que o Dono não é ele. — Porque, você sabe — cospe sangue no chão ao seu lado.
— É questão de sobrevivência. — Seu timbre não denota raiva de mim, ao contrário, ele está me
aconselhando assim como fez no dia em que escolhi me casar com Ellie. — Nem se eu quisesse,
poderia deixar passar o que você fez com o Rei. Você quebrou muitas Regras, Damon. Você
quebrou a mais importante.
Se sou uma ameaça ao Rei, significa que pertenço ao outro lado do Tabuleiro.
Sou uma Torre Branca.
Devo ser eliminado.
É um desses momentos na vida em que um minuto muda tudo. Ao meu redor, tudo parece
um silêncio concentrado. Estou a um triz de apontar o calibre na testa dele e garantir que não seja
mais um problema que vai me perseguir no futuro e ameaçar a paz de Aleks, quando minha
audição denuncia passos atrás.
Se for George Jr. ou qualquer outro Sangue em Ascensão, estou morto. Mas, quando viro
lentamente o pescoço, é uma Dama que encontro.
A Dama de fogo.
Ela retira a máscara dourada enquanto se aproxima a passos lentos. Não grita por ajuda, não
pergunta nada, apenas mantém o semblante divertido quando toca no meu ombro com suas mãos
queimadas e pergunta:
— Não vai terminar? — Não é um convite, nem uma ameaça. É uma pergunta sincera.
George também está se divertindo com a situação.
— Não. — Admito, abaixando o revólver. — Peguei a pessoa errada — explico a ela. — Ele
não é o meu alvo.
Madeleine não me deixa guardar o projétil.
— Tem certeza? — seu timbre frio me assusta. — Mesmo sabendo as consequências?
Isso aperta o meu peito, mas, quando fito George...
— Você não fez nada para mim, ainda. — Recuo. — Não vou matar um inocente.
Mad acaricia a minha barba.
— Você é tão parecido com sua mãe. — Aperta minhas bochechas com suas unhas longas,
me causando um frio na espinha, e então me solta. — Que tenha mais sorte do que ela.
Dá-me as costas para ajudar o marido a levantar, e dou passos para trás, observando-os, até
me virar em direção a festa, que ainda acontece como se tudo estivesse normal, o que me
atrapalha porque as pessoas querem me cumprimentar e conversar como se o meu mundo não
desabasse um pouco mais a cada segundo em que não encontro Aleks em nenhum canto.
No entanto, acho meus avós bem rápido.
— Saiu do quarto? — vovó está com uma bebida nas mãos, enquanto vovô cumprimenta
cada pessoa que vai até eles me elogiar.
E pensar que ela cedeu um quarto para me prenderem.
— Por que a senhora fez isso, vovó?
— Estou te protegendo, Damon. — Sorri para um casal que se aproxima. — Cansei de tentar
te alertar. Você está cavando a sua cova.
Vejo nos seus olhos o medo de me perder igual perdeu meu pai, e odeio ser compreensivo
ao ponto de entender que ela está cuidando dos Duncan como qualquer outra Dama cuida da sua
família. A fala de George torna mais pesado o argumento de vovó porque, realmente, talvez eu
esteja a um passo de morrer.
Aproximo-me e beijo a testa da mulher que cuidou de mim dos quinze em diante, antes de
dar as costas.
Eu preciso encontrar a minha bailarina.
Vou para a área de segurança da noite, e os Coroados, que assistiram pelas câmeras todos os
meus movimentos impensados, me fitam com os olhos arregalados de medo.
Eu os contratei com um objetivo e todos nessa festa falharam.
— Onde está a Aleksandryia? — indago, com um timbre de quem não tem nada a perder, se
eles não responderem a única pergunta.
Nenhum responde.
Assinto com o coração vazio e dou as costas, rumo ao carrossel, embora esteja tremendo
sem saber como vou fazer, e a vontade de chorar arranhe na garganta com o sentimento que me
devasta com a ideia de a coisa mais preciosa da minha vida estar sofrendo agora, nas mãos de
qualquer um.
O desespero começa a bater, desfocando a minha visão e tornando a minha respiração falha.
Estou com medo e ele cresce a cada segundo nesse lugar cheio de monstros, sozinho,
desprotegido e com o Rei planejando arrancar minhas tripas.
— Torre.
Viro-me com a voz grave. Trata-se de um Coroado com terno azul e uma arma de elite nos
braços. No instante em que nossos olhos se cruzam e encaro os detalhes do seu rosto, a pele
negra, os lábios grossos e o olhar cerrado, o reconheço das fotografias que o detetive me deu
sobre as traições de Ellie.
Eu sempre desconfiei que era um funcionário.
— Ela foi levada de carro. — Explica, embora não ajude, pois todos os carros são iguais. —
Posso apurar a informação.
Cruzo os braços.
— O que você quer? — indago, desconfiado.
Ao redor, a horda de seguranças se mantém neutra.
— Eu vi pelas câmeras que você vai precisar de ajuda. — Esboça um sorrisinho insurgente.
— E eu acho que estou te devendo.
Abro um sorriso fraco, aceitando que ele vá até a guarita enquanto eu opto por ficar na festa,
procurando-a para ter certeza de que não vamos sair da festa e deixá-la de bandeja, quando
Europa vem na minha direção.
Sem máscara, desfilando como a única da festa.
Fecho os punhos no mesmo segundo e avanço na sua direção, até a estrutura onde está a
maquete do EuroOásis, com uma vontade insana de derrubá-la em cima e ver tudo ruir como
começou.
Vou com as mãos nos seus dois braços.
— Cadê a Aleks? — pergunto entredentes.
Seus olhos verdes, sempre ardilosos, transmitem inocência.
— É a Cherrie. — Sorri docemente, com um timbre angelical que Europa não conseguiu
chegar perto, mesmo tentando com toda a alma. — Oh, mon Chouchou... — enlaça-me com seus
braços machucados, e deita a cabeça no meu peito, desarmando todas as minhas estruturas. —
Ouvi dizer que ela fez coisas horríveis com você. — Pisca e, agora, seu olhar reflete preocupação
genuína. — Como você está?
Meus olhos se enchem d’água, sem entender como ela consegue puxar tudo o que eu sinto
do vazio da minha alma. Abraço-a no mesmo segundo, ansiando pelo consolo que ela me traz.
— Foi horrível sem você. — Admito, sem conter a intensidade de emoções caindo com toda
a força dentro de mim. — Eu senti tanto a sua falta! — beijo sua cabeça, trêmulo. — Eu me
arrependo tan...
— Shiii. — Pede, acariciando minha cabeça. — Não chore, DamDam, vamos conversar e
fazer as pazes, ok? — enlaça seus braços nos meus.
Travo no lugar, procurando o Coroado que falou que iria me ajudar.
— A Aleks. — Lembro. — Preciso achar...
— Eu sei onde ela está, bobinho. — Me tranquiliza, e começa a me puxar em direção as
atrações.
Sou inundado por um misto de alívio e ansiedade.
— Então me leva. — Imploro, fitando-a com brilho nos olhos.
A morena de olhos verdes dá um dos seus sorrisos idênticos ao de George.
— Primeiro eu quero que você me mostre cada detalhe desse evento. — Ordena como um
pedido simpático. — Quero ver tudo o que eu perdi.
O peso em meus ombros fica mais asfixiante, porque ela está certa. Tudo isso deveria estar
no nome de Cherrie Young, a mente brilhante que criou o EuroOásis do zero, e que montou um
dos maiores Rosebuds de todos os tempos, contando que ele seria sua passagem para Ascensão a
Rei, se o projeto não fosse roubado na noite de véspera do Torneio, pelo seu melhor amigo.
— Posso te contar um segredo? — coloco seu cabelo atrás da orelha.
Ela nunca resiste. Cherrie ama segredos.
— Todos. — Faz um gesto para entrarmos na casa de espelhos.
Ao cruzar o umbral, somos recebidos por um labirinto de reflexos distorcidos, com uma luz
azul de fundo.
— Tentei voltar atrás, no Torneio, depois da apresentação. — A luz suave destaca nossas
silhuetas em cada espelho, criando uma ilusão de movimento constante. — Mas as Peças Fortes
me convenceram a ficar com o projeto, seu pai também. — Fito-a preocupada, mas ela está
sorrindo largamente, para nossas imagens que se multiplicam, se distorcem e se fundem em um
espetáculo visual único. — Eles disseram que não te aceitariam como Rei, de qualquer forma,
então era melhor eu pegar e não desperdiçar.
A iluminação diminui, lançando sombras sinistras sobre as molduras douradas dos espelhos.
— Eu sei, Damon. — Fala, como se não importasse, mas os espelhos luxuosos, em vez de
refletirem sua alegria, agora parecem esconder segredos obscuros.
— Posso te dar a liderança do EuroOásis — continuo, tentando equiparar essa situação. —
Eu adoraria, na verdade. Ele é seu, você precisa cuidar. — Sugiro e nossos próprios reflexos
parecem desafiar nossa presença, movendo-se de maneiras que não controlamos.
O clima se torna tenso e uma sensação de que estamos sendo observados intensifica a
atmosfera. Reflexos perturbadores começam a surgir, sugerindo presenças invisíveis nos
espelhos.
— Você acha mesmo que eu não monto um projeto muito melhor para o ano que vem,
Dam?
Sinto pena dela.
— Não é isso, Cher. — Coloco as mãos no bolso, com a boca secando de preocupação. —
Não importa quantos projeto incríveis você faça... — perco a fala, mas ela precisa ouvir. — Você
é mulher. — Fita-me com um olhar sanguinário. — Seu pai não vai permitir que você seja Rei
em um Jogo que usa Bonecas como moedas de troca.
É visível, por milésimos de segundos, o quanto ela está com ódio, mas, no reflexo seguinte,
ela é adorável, estendendo os braços para ganhar um abraço de consolo, lançando os braços em
meu entorno, prendendo-me em um laço impossível de afastar. Encosta a cabeça no meu peito e
aconchega-se, bagunçando seus cabelos escuros na minha camisa de uma maneira que faz eu me
sentir amado, exatamente como mamãe fazia.
Fecho os olhos, quando ela passa as mãos por dentro do meu terno, murmurando:
— Oh, mon Chouchou — usa o timbre amoroso, e se desequilibra da sandália de salto, de
um jeito que meu corpo impacta no espelho atrás. — Acho que você tem seus próprios
problemas para se meter nos meus.
Sinto o cano do meu revólver subir, com um calafrio lavando o meu interior, até o meio da
minha costela, então ela me fita com um sorriso maior que o rosto, e eu me perco no verde dos
seus olhos. Tento me mover e ela afunda mais o cano na minha pele, deixando claro que devo me
manter parado, enquanto me entrega o olhar de que me ama profundamente.
A selva é devoradora, sempre fazendo vítimas dos pobres desavisados que adentram
encantados com sua beleza visceral.
— O que você está fazendo? — meus lábios tremem, paralisando.
— Você sabe o que estou fazendo, Damon. Eliminando problemas da Coroa.
A selva traz consigo o princípio da seletividade: os mais fracos são engolidos, os
sobreviventes, fortalecidos.
É tudo muito rápido, movo-me com a delicadeza de um movimento de ballet para tentar me
afastar do calibre e segurar nas suas mãos, e ela não titubeia, aperta o gatilho, sem se importar
onde vai me acertar, cega por seus propósitos.
Sinto a minha pele se romper com o calor da bala, a dor me rasgando com a intensidade que
arranca todo o meu fôlego, e a vista escurece, mas tudo aconteceu em um segundo e estou com
os pulsos dela nas mãos, então concentro a dor em força nos punhos, fazendo-a gritar e abrir as
mãos, derrubando o projétil, que chuto.
Mais rápido do que consigo contar, Cherrie deposita sua força em uma cotovelada na ferida
do tiro, e as lágrimas que estavam inundando a minha vista caem pelo rosto, enquanto tento
respirar, empurrando-a contra os espelhos, que caem com ela, estilhaçando os dois.
Levo as mãos ao ferimento enquanto uso a adrenalina que me resta para pegar a arma no
chão, apesar da tontura pela agilidade do movimento, e aponto para ela, nos espelhos quebrados.
Coloco o cano na testa dela, trêmulo de dor.
Em um único segundo, vislumbro todas as vezes que dividi a vida com Cherrie. Desde a
nossa infância alegre, a adolescência e as descobertas de dores e amores… até as conquistas e
decepções da vida adulta. A forma como o nosso mundo depende dela, como tudo gira em torno
dela, como ela sempre faz parte de tudo, fazendo meu coração triplicar de tamanho.
E eu odeio admitir que entre, nós dois, eu morreria pela minha amiga.
Nessa fração de momento, entendo o poder do Rei no Tabuleiro e o motivo de tantas Peças,
Coroados e Jogadores se curvarem para George, dando suas almas para protegê-lo,
independentemente do que ele faça.
O poder que exala dele é o mesmo que Cherrie e Europa carregam, fazendo de todas as
histórias enredos delas. Eu me curvaria a elas.
— Não vou te matar. — Aviso com dificuldade e ela sorri, confiante.
— Eu vou acabar com você, Mon Chouchou. — Promete.
— Não, não vai. — Provoco, com a respiração falha. — Você precisa de mim.
Ela abre um lindo sorriso.
— Desde quando?
Dou o melhor sorriso que consigo em meio a dor, sem perder a pose.
— Você vai ser o Rei das Peças brancas, Cherrie. — Informo, sentindo o sangue da camisa
molhar minha mão. — E eu vou te proteger com um Roque[13]...
— Ir contra meu pai? — seu timbre é satírico seguido de uma risada, que se transforma em
uma gargalhada assustadora ecoando pela casa de espelhos, mas, em seguida fica em silêncio
profundo, imóvel.
— Cherrie?
Pede tempo com um gesto nas mãos, como se estivesse se descongelando em movimentos
mecânicos, e então me fita com seu olhar assassino.
— Eu amei a ideia, Damonzinho! — sorri largamente, arfando como se estivesse correndo.
— A gente precisa foder com todos esses filhos da put... Ai! — leva as mãos até a cabeça,
gritando de um jeito que desperta dores do meu próprio corpo, me fazendo gemer e apertar mais
forte. — Aiiii!
Deitando no chão em cima dos espelhos, se contorcendo, então paralisa e se senta, tirando os
cacos dos espelhos de seus braços machucados, me fita inexpressiva, se levantando
vagarosamente.
— Ouviu o que eu disse? — indago com dificuldade, levantando a camisa para ver o
estrago. A bala foi na minha cintura, perfurando a região abdominal, mas não estilhaçou dentro e
sim atravessou pelo outro lado, em um pequeno furo.
Assente com frieza.
— Sinto muito, mas você vai estar morto até o final da noite, Torre.
Franzo o cenho.
— Europa?
Cherrie me fita de volta, confusa.
— Vamos brincar de tic-tac? — sugere com um timbre brincalhão e inocente. — Quem
achar a bailarina primeiro, leva?
— Você não quer ser o Rei? — volto o assunto, buscando minhas mãos apenas para vê-la
ensanguentada e compreender que estou perdendo muito tempo nessa conversa.
Então ela sobe o olhar violento como o escuro de uma mata fechada, e eu sei que é Europa.
— Ela não quer, mas é o melhor, Damon. — Seu timbre é sério, agora, e a fala atropelada
como se estivesse muito atrasada. — O Cartier é um excelente bispo e... Ai! — põe as mãos na
cabeça, arquejando. — Por favor, promete que... Aaaaaaa! — grita, de dar dó, em profunda
agonia. — Ela não quer por causa do..., mas o George precisa morrr... aaaaaaaaa! — cai no chão,
de joelhos, vê um pedaço do espelho e se estica para alcançar.
Com muita dificuldade, tateia o próprio corpo como se não soubesse onde está cada
membro, alcança a coxa e crava o pedaço do vidro na perna. Eu não sei o que ela está fazendo e
isso me assusta, mas estou paralisado na mesma posição, para minimizar a dor do disparo, e o
máximo que consigo fazer é assisti-la.
— Escuta, Damon! — fala, tremendo também, enquanto se rasga lentamente. — O motivo
de eu ter feito tudo isso é para você descobrir os segredos, para movimentar o Tabuleiro e tirar o
peso do Rei. Ai! — Berra com a pontada na cabeça que a faz abaixar, e eu faço o meu melhor
para me ajoelhar na frente dela e acudi-la antes que... — O que foi? — Seu olhar é doce.
Sento-me no chão, perplexo, sem saber como reagir.
— Tirar o peso do Rei? — sai dos meus lábios.
— Europa disse isso? — balança a cabeça com seu sorriso perfeito. — Você não está
acreditando naquele monstro, está? — então olha para o meu estado e depois para o seu próprio.
— Não se esqueça do quanto ela é mentirosa. — Tira o pedaço da coxa e se levanta, com
dificuldade, para estender as mãos na minha direção e me ajudar a levantar como se não tivesse
atirado em mim. — Vou te levar para a sua bailarina agora.
Quando aceito o toque da sua mão e me levanto, ela fica estática.
Entendo o padrão. Cherrie é desligada do corpo, Europa é arrancada dele.
— Que caceteeeeeee! — Europa enfia os dedos no rasgo da perna, encarando-me com o
queixo trêmulo. — Não acredita na Cherrie ela vai matar a Aleks, porque a Aleks sabe que a
Charllote foi morta porque descobriu as surubas que George fazia com Cherrie, Aleks e Francis
— fala sem pausa, o mais rápido que consegue, se machucando mais, e sorri em meio a dor.
Sinto o peso me atingir com violência. Como se minha pele fosse rasgada, os músculos
serem esmagados e os ossos, estilhaçados. Escuto o barulho da carne sendo moída, e o estalo de
cada partícula da tíbia e da fíbula sendo trituradas com o peso do vazio.
— A Charllote ficou indignada porque eram adolescentes e o pai com a própria filha e... Ela
tentou fazer algo, ela deu a vida dela tentando fazer alguma coisa, Dam.
A potência do baque abre um buraco imensurável, sua densidade se compara à de um buraco
negro e, somado à gravidade, meus olhos se enchem com mais lágrimas, e então Europa me olha,
com as lágrimas pulando dos olhos verdes dela.
— Ela era um Cavalo Branco, sozinho no Tabuleiro, lutando com todas as Peças mais fortes
que existem desde 1920 — e abre um sorriso lindo — ela, uma miss, fez o que ninguém mais
nessa merda de Jogo tem coragem...
Soluço alto, me ajoelhando no chão com a dor alucinante que despedaça minha alma.
Lágrimas escorrem pelos meus olhos na intensidade de uma cachoeira, lavando meu rosto,
deixando-me encharcado pela dor. Não vejo mais nada senão o sofrimento colossal que me rasga
de dentro para fora.
— Eu estava na Hungria com o Francis, ele sabe de tudo, cedeu a Aleks para eu manobrar
porque o George colocou toda a culpa da morte da Charllote nele e o exilou do tabuleiro, e essa
porra tá muito fácil do George botar o terror. Ai! — Não sei se sou eu quem estou arfando ou se
é ela, ou nós dois. — Eu ia deixar você descobrir sozinho, mas — começa a chorar alto. — Eu
não sabia que você tinha coragem de se levantar como Peça Branca, Damon, porque não é justo,
esse caralho não é justo... E eu queria tanto fazer parte, botar fogo nesse tabuleiro... — Geme alto
e eu não sei se é dor física ou tristeza. — Mas a Cherrie precisa mais do que eu e...
Abraço Europa com toda a força, e choramos juntos. Não entendo como toda a dor que ela
sente está doendo tanto dentro de mim, só me entrego a uma dor amarrada bem, no fundo, que eu
tento esconder de mim. Choro como nunca. Mal ouvimos aos sons do lado de fora até que ela se
acalma, e não precisa olhar nos meus olhos para que eu saiba que é Cherrie.
— Damon? — arregala as pálpebras ao ver o meu estado, preocupada. — O que a Europa
disse?
Tiro as mãos do meu ferimento, levo até o seu rosto e beijo sua testa com todo o amor do
mundo, admirando a beleza dos seus traços, então me levanto, ignorando a dor física que já não
faz sentido, mancando em direção a porta.
O meu Coroado está fazendo a guarda. Ordeno:
— Mantenha a Cherrie dentro.
— Aonde você vai? — O grito dela sai esganiçado.
Não paro de andar, fechando o terno para que ninguém perceba o furo na minha barriga.
— Buscar a minha mulher.
ENTRE DONOS

Não sei em que momento tirei a máscara, mas todos me fitam agora, enquanto atravesso o
extenso gramado do meu espetáculo até o portão da mansão Duncan, sem reconhecer quem eu
era quando cheguei aqui, de mãos dadas com a minha bailarina.
Durante todos esses anos, desejei o amor como se soubesse que era isso o que precisava
conhecer para me transformar no homem que nasci destinado a tornar-me.
Nesse momento, o que sinto pela minha mãe me mantém em pé, fortalecendo a cada passo
com um poder que irradia pelas minhas veias com coragem e senso de justiça.
Sei que vou terminar o que ela começou, e isso preenche o peso do vazio que sua morte me
deixou.
O que sinto por Aleksandryia, anestesia tudo e qualquer sentimento que me impede de
atravessar a rua em direção a mansão mais perigosa do tabuleiro com apenas quatro tiros no
bolso e os punhos fechados.
Eu farei o que for preciso para estar com a minha bailarina nos meus braços quando o sol
nascer.
Não preciso pensar, o que sinto move os meus passos.
O portão se abre para mim, como se estivessem me esperando, o contorno da mansão
imponente se destaca contra o céu da madrugada, e a fachada impecável revela detalhes
arquitetônicos que ecoam o estilo Art Deco dos Sangue em Ascensão.
Eu não vim muitas vezes aqui, brincar com Cartier quando era criança. A decoração exala
sexo, e mamãe sempre criticava com papai o fato de uma criança morar neste ambiente
depravado.
Ele está na sala agora, mas foco vai todo para o meu majestoso Cisne Negro, como se os
holofotes estivessem nela, abraçada a cavalier filhote, chorando em toda a sua linda melancolia.
A linda maquiagem que ela fez questão de passar a tarde toda elaborando, como se as
sombras e os pinceis fossem os brinquedos que não foram arrancados dela, quando decidiram
que podiam tirar sua inocência antes da hora, escorreu com as lágrimas que derramou, e as
escuras gotas grossas continuavam lavando o seu rosto.
Imediatamente, minha atenção desvia para o homem ao seu lado, que passa o braço por ela,
pelo encosto do sofá.
Meu corpo todo tensiona, como o de um animal que se prepara para estraçalhar seu alvo.
Meu campo de visão fica ainda mais resumido, como se o vermelho pincelasse um quadro com
fúria. Minha respiração fica curta e desregulada pela dor no abdômen, sincronizada com o meu
coração.
Só então vejo o rosto dele.
Francis Kühn, o Bispo exilado pelo Rei.
Até os meus quinze anos convivi com ele, nos Treinos e eventos, a distância. Ele era o
Conselheiro de George. Francis, Madeleine e George eram inseparáveis. Então, na mesma época
em que mamãe morreu, aconteceu algo sobre as peças Fortes, e soubemos que ele se exilou na
Europa.
Que azar da minha borboleta russa, cruzar com um monstro desses.
— Vem cá. — Chamo-a com um timbre sério e amoroso. Ela faz um movimento e ele toca
no ombro dela.
Ele tem quase as mesmas proporções alemãs que Cartier, o que significa que, mesmo com a
idade, é maior do que eu. Lembro do que calculei com George. Sou mais jovem, mais rápido e
mais forte.
— Você está sangrando? — A minha bailarina pergunta, fazendo-me abaixar a cabeça e me
deparar com o meu sangue pingando no chão, lembrando que eu não estou tão bem quanto minha
autoconfiança tenta passar.
Não importa, dou mais um passo.
— Sente-se, Torre. — Aleks estremece com a voz dele, parecida com a de Cartier. — Eu
estava te esperando.
Encaro-o com olhos carregados de fúria, meu coração pulsando com uma intensidade que
quase abafa o som ao meu redor.
— Por que não vai dar comandos para as adolescentes que você treina como pet? — ele
arqueia a sobrancelha com um sorriso de quem está em vantagem, ao me ver estourado enquanto
permanece sereno. — Só assim para te obedecerem, né. — Rio com sarcasmo. — Quero ver
mandar em um homem.
Seus olhos encontram os meus, e por um momento, o ar parece mais denso, impregnado
com a eletricidade carregada pela hostilidade.
— Eu só quero conversar com você, Damon. — Envolve a Aleks, que solta Gulnara com o
susto, e eu dou passos até ele. — Eu te presenteei com a minha valiosa Boneca, acho que mereço
ser ouvido. — Cada palavra maliciosa que sai de sua boca é como um eco de um tempo que
nunca deveria ter existido.
— Vai ter que me hipnotizar se quiser que eu ouça as merdas que saem da sua boca. —
Continuo andando.
— Calma. — Cartier pede e eu devolvo a ele um olhar frio.
— Por que você está sentado, quando poderia tirá-la daqui?
O meu melhor amigo arqueia a sobrancelha loira com seu melhor sorriso.
— Assim como eu fiquei sentado ouvindo você roubar o projeto da vida de Cherrie. —
Mantém o olhar fixo por trás da postura contida. — E não quebrei a sua cara na frente de todos
os Jogadores, como você merecia.
As palavras ásperas dele criam uma nuvem de desespero e desconfiança que ameaça
obscurecer a nossa amizade, mas não deixo que ele perceba, e permaneço com os ombros eretos.
Estou perto de Francis e Aleks agora. Estico a mão para ela enquanto o encaro fixamente,
sentindo o calor da raiva pulsando em minhas veias, em uma mistura de indignação e frustração
que ameaça transbordar a qualquer momento, e torno a fitá-la, inundado pelo que sinto.
— Licença, meu amor, quero me sentar aqui. — Ela franze a sobrancelha, mas busca o aval
dele, que concorda e ela vai para o lado.
Francis não tira o braço, nem muda a postura quando eu ocupo a posição, e nós ficamos
próximos, olho no olho, com nossas respirações se tocando.
Sinto a tensão se acumular em cada músculo, minhas mãos cerradas em punhos apertados,
enquanto resisto à vontade avassaladora de confrontá-lo com toda a fúria que habita dentro de
mim, travando o maxilar.
— Sei que não quer me ouvir, mas acho que vai querer ouvir ela.
Ele apenas fita Aleks e a bailarina abre a boca com sua voz trêmula de melancolia e dor.
— Eu... Eu preciso te contar uma coisa que eu fiz. — Explica entre soluços, partindo meu
coração. — O meu trauma com sangue, Dam, é porque eu fiz uma coisa muito má... — O
silêncio entre as palavras é preenchido pelo som de soluços contidos. — A sua mãe... — me olha
com seus lindos orbes inundados, como se me implorasse desculpas. — Eu a conheci, e, eu sou
responsável pelo que aconteceu com ela.
Ouvir que minha mãe foi morta dói tanto quanto ver a minha borboleta russa chorar como se
fosse culpada de algo que ela seria inocentada apenas pela idade, quanto mais com as palavras de
Europa martelando no meu cérebro tudo o que Francis não imagina que eu sei sobre todas as
merdas que ele fez com a minha mulher.
Meus instintos de proteção entram em ação, e a necessidade de confortá-la torna-se
avassaladora, e a fúria dentro de mim toma as dores da bailarina porque, no segundo seguinte
estou em cima dele, esmurrando a cara do Dono dela. Aleks grita com a violência e uma parte de
mim a busca de soslaio para saber se está bem, e Francis me chuta na ferida do tiro, derrubando-
me no chão.
Aleks está atrás de Cartier, que nos assiste como mediador. Francis fica em pé muito mais
rápido do que eu, atordoado com a falta de sangue e energia, mas fico em pé depressa.
O Bispo Exilado não vem para cima de mim. Em vez disso, me provoca:
— Pensei que fosse ficar bravo com ela. — Tira sarro, mas não é isso o que me faz partir
para cima dele outra vez, e sim a mirada que dá em Aleksandryia.
O impacto do meu corpo na sua direção, nos leva até a parede mais próxima, encurralando-o
em uma série de joelhadas e socos que desconto com uma fúria descomunal, ao ponto de, por um
momento, não sentir dor, apenas ódio, pronto para ser liberado com meus punhos.
— Eu entendo se você não quiser mais ser o meu Dono, mas queria que você soubesse que
eu te amo e eu quero muito uma chance de provar que eu posso ser melhor do que os meus erros.
Diferentemente de George que foi pego de surpresa e não tentou se defender, Francis se
protege dos golpes na cabeça com os braços apenas, mas não tenta me empurrar ou sair da
posição, como se quisesse que eu desferisse todos os tipos de golpes nele.
A cada soco no estômago, lembro de mais um motivo para dar outra joelhada na sua costela,
e antecipo o próximo ataque nele, depositando uma força maior nos punhos e pernas.
Ele nem sequer encosta o dedo, como se soubesse que meu próprio corpo se voltaria contra
mim e, no meio de uma joelhada, uma fisgada no abdômen me faz perder todo o ar e ver estrelas,
de modo que retrocedo um passo, colocando as mãos no joelho para buscar mais fôlego, arfando,
e todo o cansaço corporal pesa nos meus ossos.
É nesse momento que ele vem para cima de mim e eu fico em posição, mas ele não tenta me
acertar na cara, em um único movimento de luta que não consigo calcular, Francis me segura e
me lança contra a parede, impactando minha costela e a área machucada, com tanta força que
meus olhos se enchem involuntariamente de lágrimas, atordoando minha vista.
Novamente, não desfere um único golpe sobre mim, em vez disso, segura o meu colarinho,
prensando o corpo dele contra o meu enquanto me entrega um sorriso safado.
Todas as minhas estruturas gelam de uma única vez.
Seu pau está duro.
E ele quer que eu saiba, por isso se esfrega no meu corpo antes de me soltar e colocar as
mãos na cabeça, imaginando que isso vai me enraivecer e eu vou partir para cima ainda mais
furioso, porque isso vai excitá-lo mais, e quanto mais forte eu bater, mais ele vai amar. Dessa
forma vou abrir minha ferida, perder mais sangue, e ele vai continuar sendo a porra de um
sadomasoquista.
Ele é gay?
Desvio o olhar para Cartier, que está no telefone, perto da janela que expõe o início da
aurora, e para a bailarina, encolhida em pé perto da pilastra, vendo a cena com Gulnara no colo.
É assim que eu vou perder?
— Vamos, Torre, aproveite o seu momento de glória.
Levo a mão na ferida do abdômen, e abro a mão na região, calculando o estrago antes de
partir para cima dele. E, então, o frio do cano do revólver eletriza a minha pele dentro da calça
social e não sei como consigo esconder o sorriso porque ...
Ainda estou com a pistola.
Não deixo que ele perceba. Entro no seu jogo, estalo os ossos da mão e volto para cima dele,
e ele não recua, me observa me aproximar com desejo nos olhos, até ficarmos perto o bastante, e
eu usar da minha desenvoltura para aplicar as técnicas de leveza que a professora de balé que me
assiste, ensinou, e ele só percebe o revólver quando o canto toca o pescoço dele, levantando seu
queixo.
Preciso ser rápido o bastante para que ele não revide com a experiência que deve ter, seguro
o gatilho e dou um breve adeus.
— Divirta-se no inferno.
No instante em que vou apertar o gatilho, ouço gritos. Primeiro do Cartier.
— A Aleks!
Depois, do Rei do tabuleiro.
— Solta o meu brinquedo que eu solto o seu.
Encaro de soslaio a cena, com meu coração disparando mais à medida que vejo o coque de
Aleksandryia nas mãos de George, ela expressando cara de dor pelo puxão de cabelo e o revólver
na têmpora dela.
Meu mundo para de girar.
— Solte o meu bispo. — Ordena pausadamente.
Nem penso, apenas empurro Francis, tirando a arma da posição. Mas o Rei não solta dela, ao
contrário, puxa o seu cabelo de um modo que seu lindo rosto retorce de dor, enquanto ele sorri
para mim.
— Sinto muito, Damon. — Encara Francis com dureza. — Ela já deveria ter sido morta há
muito tempo.
E é a vez dele de segurar no gatilho.
— Não! — A voz de Francis soa com autoridade, e ele desce dois degraus na direção dos
dois. — Solta a minha Boneca.
George devolve exatamente o mesmo olhar.
— Não está aberto a discussão, amor.
Francis cruza os braços. Manda:
— Solta ela, George.
— Ela deveria ter sido morta.
Francis fica quieto por um segundo.
— Sou eu quem decide quem morre e quem vive, esqueceu, Rei?
— Ela vai ser um problema para nós. — Ele reitera e Francis ri.
Parecem irritados como uma discussão de casal.
— Ela não é problema nenhum, amor. — Francis frisa. — Ela nunca deu trabalho nenhum,
solta a minha Boneca!
George aponta para mim.
— Agora é dele e ele, sim, é um problema.
— Não é. — Cartier se mete. — Ele vai honrar o privilégio de ter a Boneca dele. Não é,
Damon?
Os três me fitam.
— Por favor, Rei. — Imploro com toda a sinceridade do meu timbre. — Me deixe ficar com
Aleks. — Junto as palmas em súplica. — Prometo ser leal a Coroa.
George pensa por um tempo antes de finalmente a soltar, mas, antes que eu desvie os olhos,
aponta para a Gulnara e explica:
— Isso é por você ter me respeitado.
Aleksandryia está mais perto e, no segundo em que a bala vai atravessar a cavalier filhote, a
bailarina põe a perna na frente, defendendo sua filha de quatro patas, e o tiro se aloja em sua
coxa.
Atingiram a alma da minha bailarina.
O PESO DO VAZIO

— Minha perna não, minha perna não, minha perna não! — Aleks agoniza, no caminho para
o hospital. — Me diz que não é minha perna. — Chora mais.
Sem controle algum, flashes de todas as vezes que presenciei Alex dançando vem à minha
mente enquanto o sangue em sua coxa me desespera com mais ímpeto do que penso suportar. Os
eventos do dia me atacam com tanta intensidade que eu não consigo ser forte por Alexia, e choro
com ela todo o percurso.
Assim que o motorista estaciona na garagem do hospital, o médico e o socorrista pedem
licença e começam a manuseá-la, colocando-a na maca para adentrar o hospital. Aleks pergunta
da perna, implora pela perna, atingindo meu corpo inteiro com uma dor transcendental. O que vai
ser da minha bailarina sem a perna?
— Por favor — peço aos profissionais. — A perna dele, cuidem da perna dela. — Clamo,
enchendo os olhos de lágrimas.
Ela sobe o olhar azul escuro inundado até o meu e eu tento transmitir força, mas estou
morrendo por dentro quando eles a levam para a ala médica e me deixam do lado de fora. — Eu
pago qualquer coisa. Apenas...
— Vamos tentar, senhor.
Quebraram as asas da minha borboleta russa.
Ele não vai mais poder voar com seus Jetés.
Lembro de nós dois há poucas horas dançando no espetáculo, e em todas as cenas que
presenciei dela dançando ou vivendo o ballet. Como eu amo assistir à maestria com que Aleks
move o corpo, porque a alegria que ela sente com a ballet é a coisa mais linda de admirar em
toda a terra.
A minha bailarina é perfeita em cada passo. Jetés, tendus, rond de jambés no ar, grand
battements… Ela respira o ballet e, apenas em imaginar vê-la sobreviver sem isso, é a minha
alma que se destroça.
— Hey, Damon. — É o Cartier, com as mãos no bolso e uma expressão de
orelhas caídas, sentando ao meu lado. — Eu vim logo atrás.
Meu coração está doendo demais a cada batida, com uma intensidade que eu me esforço até
para respirar, quanto mais para falar com home que podia me ajudar e não fez nada.
Não consigo evitar a mágoa, encarando o meu sol.
Queima a derme e sua excessividade causa estragos, mas, ainda assim, seu
calor abraça a vida humana.
Eu amoEle ama o sol.
Por isso dói tanto e eu o ignoro com a atenção fixa no movimento do hospital, porém tenta
se justificar.
— Eu estava lá para cuidar dela, Dam, não iria deixar meu tio machucá-la.
Quero perguntar o que ele acha do estrago agora, contudo apenas o fito com desconfiança.
— Você sabia que ela era do seu tio?
Ele se esquiva.
— No começo não, só quando Europa me disse.
Sinto uma breve vontade de comentar sobre o quão surpreso estou com relação a
personalidade de Europa, mas então respiro e a dor me sufoca, e eu lembro que Aleks está nessa
situação porque ele não me ajudou, e que ela deve estar querendo morrer de tristeza dentro
daquela sala e impessoal, e sou varrido pelo mesmo sentimento.
— Você precisa ver esse machucado, Damon. — Tenta me alertar. — Já está aqui...
— Não se preocupe comigo. — Mantenho-me sério, observando a porta por onde Aleks
entrou, apesar dos pontos salpicados de preto que aparecem na minha vista.
Cruza os braços.
— Você roubou o que Cherrie tinha de mais importante — devolve com rispidez. — E não
fui eu quem deu o tiro em Aleksandryia, ao contrário, estava lá para ajudar.
— E eu levei um tiro de Cherrie. — Conto com a voz cansada, virando o rosto para encarar
nos seus olhos, finalmente. — Então não precisa mais tomar as dores dela.
— Sério? — Observa minha expressão e tenta se levantar, mas eu seguro o braço dele,
fazendo careta. — Você precisa de atendimento.
Aponto para a porta em que ela entrou.
— Preciso de Aleksandryia. — minha voz embarga. — Preciso que ela esteja bem, primeiro.
Ele toca levemente no meu joelho, entendendo o meu desespero.
— Sei como é. — E se ajeita no assento, pronto para esperar comigo.
Ficar em silêncio me faz pensar em todas as coisas ruins que descobri essa noite, então me
rendo a uma conversa que me faça sentir algo bom preencher minhas células, por um momento
nessa sala de espera de hospital.
— Ela não é tão má.
Cartier sorri largamente, revelando anos em que guarda esse segredo.
— Cherrie é muito pior.
Estou decidindo por onde começar quando uma voz semelhante à minha me impacta.
— Cherrie o quê? — É meu irmão, com a máscara acima da cabeça e Zaki atrás.
Eu e Cartier nos encaramos mais uma vez e, em silêncio, decidimos guardar os segredos
dessa noite conosco, assuntos de Peças Fortes Brancas, Bispo e Torre.
Preciso falar com ele sobre o Contra-ataque.
— Ela voltou para o front. — Cartier disfarça o assunto e eu analiso os detalhes do rosto do
meu irmão apenas para sentir pena de ver sua alegria inocente, sem fazer ideia de quem é a
namorada e muito menos o com quem ela o trai.
Por isso o namoro dos dois é tão distante.
Penso também em nossa mãe e em como vou contar para Dylan que ela foi morta por se
opor a relação incestuosa e pedófila de George com Cherrie. Uma coisa é certa: de todos aqui,
ele é o que mais vai sofrer, e só de pensar nisso são os meus olhos que se enchem de lágrimas.
Vou poupá-lo com toda a minha alma. Não suportaria vê-lo perder sua alegria. Dylan é o
meu chão.
Dentre todas as coisas que ele amava no Planeta Terra, estava o solo. Tinham um elo
especial, eram formados do mesmo material genético. Ele se expunha enquanto a biodiversidade
permanecia escondida e protegida. Em contrapartida, o solo se mantinha rico e saudável, afinal,
era o respiro de todo aquele ecossistema.
— Eu finge ser você para os convidados meio bêbados. — Conta com um sorriso bobo. —
Espero que não se importe.
Deito a cabeça no seu ombro.
— Aleksandryia? — O médico chama pelos responsáveis, de modo que nós quatro
levantamos. Eles primeiro, e Cartier me ampara, me ajudando a andar até o médico. —
Primeiramente, gostaria de expressar que a sua...
— Mulher.
Assente.
— A sua mulher está sob cuidados médicos e estável, mas há algumas questões que
precisamos discutir. — Concordo, gelando a espinha. — O ferimento na coxa foi revolvido
durante a cirurgia. Isso significa que tivemos que realizar procedimentos adicionais para lidar
com a complexidade do trauma.
— Ela é bailarina. — Explico, afoito, e todos os x-herdeiros parecem não respirar. — Isso
vai prejudicar?
— Não pegou em nenhum nervo, ela vai ficar bem.
Sinto um suspiro profundo escapar dos meus lábios, como se carregasse consigo o peso que
finalmente se dissipou, e Dylan me abraça, enquanto a onda de alívio varre meu corpo, liberando
as tensões que se acumularam nos meus ombros por tanto tempo, enquanto Cartier e Zaki
também sorriem.
Mas o médico continua sério.
— A principal preocupação neste momento. — Paro de respirar. — É que o revolvimento do
ferimento na coxa torna a situação mais desafiadora devido aos riscos de intervenção durante a
gestação.
Os três me fitam e é como se o tempo se suspendesse por um instante, e minha mente tenta
processar a magnitude da notícia. O tremor que me acompanhou nas últimas mais terríveis horas
da minha vida, é tomado por um sentimento bom.
— Gestação?
O médico sorri.
— Ela está grávida de nove semanas e... — Desiste de falar, com um semblante animado ao
ver meu susto. — O senhor quer ver?
Eu sonhei tanto com esse momento.
Preparei um plano nos mínimos detalhes.
Fui além, projetei minha vida inteira com um único objetivo: deixar tudo perfeito para
quando a hora chegasse, mas Ellie me enganou de todas as formas.
É como se meu corpo inteiro congelasse, incluindo o misto de sensações que me percorre
com tanta violência. O medo evapora e a ansiedade que até então me consume toma outro sabor,
agora, o frio na barriga me provoca uma crise de risos involuntária.
— É tudo o que eu mais quero. — Estou sorrindo.
Cartier toma a frente.
— Ele precisa ser tratado. — Dedura. — Ele levou um tiro também.
Meu irmão, que estava abraçado a mim, pula de susto, fitando-me com cenho franzido.
— Onde? — procura no meu corpo, fazendo-me gemer.
Não desvio a atenção do médico, principalmente quando a notícia parece flutuar no ar, quase
irreal, e meu coração bate mais rápido.
— Eu quero ver ela primeiro. — Meu timbre revela a minha ansiedade, mas o médico segura
meu ombro, guiando-me. — Acho que você não vai querer estar sentindo dor nesse momento.
Enquanto o médico limpa o ferimento e faz os pontos, minha mente gira com essa
informação, as mudanças que vão acontecer na minha vida e o milagre que está acontecendo
dentro da minha bailarina, sem que nos déssemos conta.
Amo-a mil vezes mais só de pensar que vou ser pai do filho da mulher que mais amo.
Vamos ser uma família, eu, os cavaliers, uma criança e a mulher dos meus sonhos.
— Está preparado? — traz-me para a realidade.
Gostaria de perguntar para a minha mãe como ela estava no momento em que descobriu que
estava grávida de mim. Se era normal ter tanto medo. Mal posso suportar o pensamento de que
ela só não está aqui e em todos os meus momentos importantes da minha vida, porque
arrancaram-na de mim. Fecho os punhos, mas, quando me leva até a sala de ultrassom, meu peito
queima de amor e alívio assim que abro a porta e encontro Aleks com os lindos olhos
arregalados, com a coxa enfaixada.
Já visitei tantos lugares; de balão, sobrevoei a Capadócia; de barco, desvendei o Mar Morto.
Inúmeros pores do sol nas Maldivas e nasceres do sol em Bora Bora. Fiji, Indonésia, Deserto do
Atacama… Tantas vistas deslumbrantes que, perto dela, parecem borrões insignificantes.
Meus passos até a minha Aleks chegam a falhar.
Fitamo-nos e, compreendendo as emoções no olhar um do outro, me aproximo e a envolvo
em um abraço emocionado.
A bailarina não entende.
— O que foi? — sua voz é tensa.
Meu coração para fora do peito a cada passo que dou e direção ao meu tão desenhado sonho,
o meu Cisne negro com roupa de hospital. Sinto um sentimento mais forte que alívio penetrar
minhas veias em saber que ela está bem, que não corre mais perigo e que vão deixá-la em paz,
jurando a mim mesmo que a minha borboleta russa nunca mais vou sofreu, porque eu vou ser a
Torre dela, enquanto eu viver.
Dessa vez, quando a abraço, algo forte e pungente se apodera da minha alma, e tenho certeza
de que eu vou dar conta, de que vou cuidar bem de Aleksandryia — serei meu melhor por ela,
todos os dias.
— Como você está, meu amor? — pergunto com os olhos cheios de lágrimas.
Seu queixo treme.
— Você me perdoa? — sorri ansiosamente, com mais lágrimas descendo pela face.
Encaro a médica e peço por alguns minutos, para falar com a minha bailarina. Quando a
porta se fecha, encarando o fundo azul do mar de Aleks, tento argumentar.
— Se você tivesse uma filha... — Uso a metáfora, pois ela abriu mão da perna por um
filhote de cachorro. — E ela passasse por tudo o que passou, exatamente do mesmo jeito, você
pensaria que ela é culpada de alguma coisa?
Aleks chora mais à medida em que raciocina.
— Não... — Murmura.
— Então por que se sente culpada, meu amor?
Ela se debulha em alegria, mas nem todas são tristezas porque ela sorri em meio ao choro.
— Era a sua mãe...
Seguro em sua face com as duas mãos.
— Ela enlouqueceu pelo que fizeram com vocês, não pelo que você disse ou fez.
Aleksandryia me abraça, chorando e agradecendo, então eu massageio as suas costas, até
que ela se acalme naturalmente, como a psiquiatra orientou. Então seguro forte em suas mãos,
expondo o meu amor.
— Eu te amo, Oceano, com toda a minha alma e nada vai diminuir esse amor. Nunca, nada
vai me separar do amor que sinto por você. — Beijo seus dedos, com as lágrimas saltando dos
meus olhos.
Ela também está tremendo.
— Obrigada por me amar assim, Damon... Mesmo quando tudo o que eu fazia era fugir de
você. — Fala entre os soluços de alegria, me derretendo em mais lágrimas. — Eu te amo, você é
a Brisa que me trouxe o fôlego da vida.
Abraçamo-nos de novo, apertado, e ficamos assim até a médica voltar, pedindo licença para
passar gel na barriga dela, e Aleks fica tensa, sem entender.
— Será que é a endometriose?
Eu e a médica cruzamos olhares, e ela aceita participar da surpresa, por vai discretamente até
o celular e liga a câmera.
— Talvez. — Digo, para dar emoção.
Aleks bufa, com o timbre choroso.
— Será que você me deixaria fazer uma segunda cirurgia?
— O que você quiser, não precisa pedir. — Beijo sua testa, sentindo uma mistura de
nervosismo e excitação enquanto a médica inicia o procedimento, segurando a mão calorosa da
minha bailarina. O ambiente está impregnado de expectativa, e o som suave da máquina de
ultrassom ecoa, preenchendo o ar com uma melodia reconfortante.
É a melhor sensação do mundo a forma com que a vida se torna instantaneamente mais
colorida, leve e com uma nota deliciosa de alegria pura, eu mal consigo me segurar.
— O que é isso?
A médica e eu sorrimos enquanto desliza o transdutor delicadamente sobre a barriga dela.
— Sabe o que é isso? — retorque a doutora. — É o som do coração do seu bebê.
Sou eu quem quebra com a frase, me ajoelhando diante de Aleks enquanto choro de alegria,
tomado por algo inédito que, embora assuste, me fortalece por tamanho poder e devoção. Dou
risada em voz alta ao perceber que agora não existem mais apenas meus próprios desejos no
mundo, e compreendo imediatamente o que é ser um homem. Tudo pode desabar, mas se Aleks e
esse pequeno coração estiver bem, eu também vou estar.
— Ops. — Ela interrompe nossos soluços de alegria com tensão e, assustados, fitamos a
mulher. — Desculpem, cometi um erro.
Nossas mãos dadas, gelam, e seguramos a palma do outro com mais força.
— Não é um som de um coração, não. — Morde os lábios, enquanto eu e Aleks paralisamos.
— E o que é? — A voz de Aleks mal sai.
A médica sorri largamente para nós dois.
— São dois corações. — Não sinto o chão. — São gêmeos, olha. — Desliza o aparelho e a
imagem começa a se formar na tela, revelando não apenas um, mas dois contornos em um saco
gestacional.
Nossos olhares se cruzam e a ideia de nós quatro vivermos algo parecido com uma família
preenche nossos corações com esperança e amor, preenchendo nossas almas com luz o bastante
para fazer a escuridão fugir de medo.
Eu nunca pensei que poderia ser melhor, muito melhor, do que nos meus melhores sonhos.
Nesse momento só há espaço para elas, que tomam uma proporção gigantesca dentro de
mim, acima da minha razão ou qualquer outro sentido, dissipando o peso do vazio.
— Meu Oceano — sussurro para Alexia, com o peito transbordando por compreender
que, embora tenha perdido tanto, finalmente tenho o único poder que eu preciso para vencer o
Jogo.
Amor.
— Para sempre, minha Brisa. Para sempre.
A Torre se reergueu.
A história continuará.
[1]
Um projeto de fornecimento de gás para a Europa por meio de tubulações da Arábia Saudita.
[2]
[3]
Pessoas fora do universo dos Sangue em Ascensão.
[4]
Eventos anuais onde um Peão recebe a Ascensão no Jogo.
[5]
Denominação ao projeto em que peões disputam a Ascensão.
[6]
Território dos Sangue em Ascensão.
[7]
Posição dos Duncan dentro do Jogo.
[8]
Refere-se a uma situação na qual um jogador é colocado em desvantagem porque é obrigado a fazer um movimento.
[9]
Uma matriosca ou boneca-russa, é um tradicional brinquedo russo. Constitui-se de uma série de bonecas, feitas
geralmente de madeira, colocadas umas dentro das outras, da maior até a menor. A palavra provém do diminutivo do nome
próprio matriona.
[10]
O método Vaganova é uma técnica de balé e um sistema de treinamento desenvolvido pela bailarina e pedagoga russa
Agrippina Vaganova. Foi derivado dos ensinamentos do Premier Maître de Ballet Marius Petipa, ao longo do final do século
XIX.
[11]
O o termo deixou de ser usado em 2013, porém esse capítulo se passa anteriormente ao ano.
[12] Você está bem?
[13]
O Roque é uma jogada especial que envolve a movimentação de duas peças em um único lance, o rei e uma torre. O
objetivo da jogada é proteger o rei, tirando-o do centro.

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