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Entre Acasos e Destinos (Série Entre Amores: Família Volkiov, Livro II)
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.
Edição Digital | Criado no Brasil.
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Azul.
No lado de fora, admiro a coloração anil no céu, o cruzamento entre o
azul escuro da noite com o laranja-avermelhado do pôr do sol, formando uma
degradê azul-arroxeado contagiante. Essa sempre foi a minha cor preferida.
No entanto, são as luzes do Kremlin que iluminam a cidade,
capturando a atenção dos turistas. Caminho por alguns quilômetros até chegar
ao teatro Bolshoi, ziguezagueio pelas oito pilastras que sustentam a fronte do
edifício e absorvo a melodia dos instrumentos musicais que enaltece as
maravilhas arquitetônicas como um complemento perfeito.
Eu poderia passar horas e mais horas aqui, apreciando as notas, a
beleza, o passar dos minutos, as pessoas e seus comportamentos. Gosto disso,
de assistir a vida acontecendo. Houve um tempo em que sonhei poder viver
disso, de ajudar os outros, de conhecer o mundo através das suas histórias…
Mas não há tempo para isso agora, coisas como sonhos e planos não
são para mim. O que importa é o hoje, e ele tem sido bem ordinário, para
dizer o mínimo. De metrô, concluo o restante do meu percurso até chegar em
casa.
Conseguir uma vaga em qualquer apartamento familiar nos limites do
distrito central é considerado um milagre em qualquer época do ano. A
localização é a única justificativa para o valor absurdo que a síndica recolhe
das moradoras no início de cada mês, porque as moradias tradicionais na
Rússia, de modo geral, são bem modestas em tamanho.
Assim que chego no pequeno prédio de três andares — uma
construção antiga que nunca deve ter recebido nenhum tipo de restauro desde
a sua edificação — a velha e rancorosa senhora Ksenya abre as cortinas para
confirmar se continuo sozinha.
A data limite para pagar o aluguel vence no final da semana que vem,
depois disso estarei no olho da rua. Finjo que não percebi seu rosto curioso
vigiando-me chegar e subo para o meu apartamento, retirando os sapatos
antes de entrar em casa.
— Malévola! — grito assim que tranco a porta, preparando-me para
um ataque repentino. Jogo o molho de chaves em cima da mesa, já que a
cozinha é a recepção da casa. — Cadê você, meu amor?
Acendo a luz dos três pequenos cômodos que compõem o imóvel,
sem contar o banheiro. Os móveis já estavam aqui quando cheguei, por isso
apenas os objetos de decoração foram acrescentados aos poucos. De todos os
locais que morei desde a morte dos meus pais, esse é de longe o mais
adequado.
Nossa casa no velho distrito nunca valeu grande coisa, mas quando
Camillo explicou que eu não tinha nenhum direito na herança, juntei minhas
coisas e parti em busca de independência. Não suportava continuar naquele
lugar, de qualquer forma, com os amigos de Camillo entrando e saindo o dia
inteiro, olhando-me como se fosse um pedaço de carne.
Conviver com o medo de que um deles tentasse alguma coisa só não
era pior do que suportar aquelas lembranças.
No quarto, me jogo em cima da cama, exausta. Poucas sensações são
tão prazerosas quanto relaxar após um dia de trabalho, mas um amontoado
preto e peludo cai em cima de mim, miando e ronronando com seus olhos
díspares cheios de julgamento.
— Não foi dessa vez, continue planejando. — Recebo um miado
rouco como resposta. Malévola é minha única amiga, e seu nome diz muito
sobre nosso relacionamento.
Digamos que o temperamento dela é tão ruim quanto o meu.
— Conheci um gato hoje! — conto para ela; essa gatinha endiabrada
é a única ouvinte que me suporta. — Não adianta me julgar. Ele estava
pelado, isso conta pontos a meu favor, não?
Malévola vira o rosto, mantendo a ponta do rabo balançando.
— Vladimir — digo em voz alta, é um belo nome na verdade. — Ele
deve ser podre de rico, estava na suíte presidencial. A mais cara, em um hotel
cinco estrelas que, por acaso, é meu atual ambiente de trabalho. Misericórdia,
onde eu estava com a cabeça?
Malévola ronrona e abaixa o corpo para que eu acaricie seus pelos.
Não gosto da solidão, ela nunca foi minha aliada. Espero conseguir
arrumar minha vida em algum momento, desfrutar das experiências que o
mundo tem para oferecer, como a de me apaixonar por alguém, entregar o
meu corpo — embora as duas não dependam uma da outra. Ando tão
desesperada que daqui a pouco vou atacar um pobre coitado no meio da rua.
Era bem mais fácil controlar meus sentimentos naquele tempo, eu não
precisava estar tão atenta a mim mesma, porque havia alguém para me dar
apoio, segurar a minha mão e dizer que tudo ficaria bem.
Suspirando, levanto-me, abro a gaveta da cômoda e retiro algumas
blusas até encontrar a velha fotografia de nós dois. Por causa daquele
Vladimir, acabei recordando de uma época que me confunde. Na foto,
estamos abraçados em um banco de ferro fundido no meio do Jardim de
Alexandre.
Eu, muito jovem e descabelada com meus dezessete anos, e aquele
senhor simpático que me ajudou no pior momento.
— Desculpe, Serena, mi doce Corazón. — Leio no verso, passando os
dedos na letra cursiva escrita com o próprio punho do meu velho amigo; logo
abaixo, completo: —De Nicolai. — Malévola se aproxima devagar, senta na
minha frente e faz a sua mágica. Fica ali, olhando, confortando-me. — Eu sei
querida, faz muito tempo.
BOAS INTENÇÕES
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MINHA MÃE COSTUMAVA dizer que nasci com uma predisposição para o
caos. "Você gosta de consertar pessoas quebradas", repetia sempre quando
lhe apresentava um novo amigo maltratado na escola pelos demais alunos ou
chegava em casa com algum animal abandonado.
Talvez tenha sido essa particularidade que atraiu minha atenção para
Nicolai. Dadas as condições em que nos conhecemos, era de se esperar que
aquele homem à beira do desespero parecesse quebrado aos meus olhos. Eu
mesma não reconhecia quantos fragmentos constituam a minha própria
existência.
As dores de uma pessoa não deixam de machucar só porque alguém
possui uma ferida maior; a gente se torna mais sensível aos problemas alheios
quando os nossos são complicados demais para serem solucionados. Minha
vida é marcada por um caminho repleto de experiências assim, com
indivíduos necessitados de um ombro amigo e outros tantos que tiraram
proveito do meu coração frouxo.
O grande problema é que a minha mente não funciona como as
demais, aquele ditado sobre aprender com os erros não se aplica. Se eu
quebrar a cara uma vez, as chances de repetir a burrada são grandes! Grandes
pra caralho.
Vladimir é como um composto explosivo em estado de inércia,
apenas aguardando a substância necessária para entrar em combustão. E eu
— um protótipo piorado da raça humana, perpetuamente idiota e incorrigível
— não consigo ter seriedade o bastante para manter distância.
Modéstia à parte, consigo reconhecer o olhar cobiçoso no rosto de um
homem que está interessado fisicamente por mim, e Vladimir não se esforçou
para esconder. Não é o tipo de pessoa com paciência para joguetes, isso ficou
evidente, mas é cauteloso o suficiente para não agir com irresponsabilidade.
É o presidente de um império, afinal.
Acredito em destino, respeito as escolhas do universo, mas é
sacanagem demais colocar um exemplar desses na minha linha do tempo
tantas vezes seguidas só para me lembrar quais instrumentos ele esconde por
baixo da fantasia de presidente soberano!
Quem estou tentando enganar? O homem é bonito — e outros
adjetivos menos pueris —, mas não é somente isso que chama atenção.
Vladimir está quebrado e é irreal que eu capte sua angústia com tanta
facilidade. Assustador, inclusive.
— Você está bem, meu anjo? — A matriarca da família aparece ao
meu lado. Faltam poucas horas para os convidados começarem a chegar e a
mulher não parou um segundo sequer. Seus olhões são brilhantes e
confundem muito bem a verdadeira idade. É difícil acreditar que seja mãe de
quatro homens adultos. E que homens! — Você estava fazendo umas caretas,
está sentindo alguma dor? Precisa se deitar por um momento? Eu posso
arrumar um quarto se quiser. Temos quartos maravilhosos.
— Perfeitamente bem, senhora Volkiova — esclareço com o máximo
da compostura exigida em ambientes tão requintados. Paro de amassar o
arranjo de flores que gentilmente nomeei como Lord Vlad número um e Lord
Vlad número dois e abro meu melhor sorriso, torcendo para que ela não
perceba o estrago feito nos dois enfeites de mesa. — Não poderia estar
melhor. — Rio de nervoso, acrescentando: — Sabe como é, os pássaros
cantam, as borboletas voam, o sol brilha. Bem!
Bem doida, isso sim!
A mulher arqueia uma sobrancelha, analisando-me de cima a baixo.
De perto, identifico vários detalhes que contribuíram com a genética do
herdeiro mais velho: ambos possuem o maxilar quadrado e a expressão
marcante nas sobrancelhas grossas. Seu cabelo branco não parece um efeito
colateral do passar dos anos; a cor é moderna, um platinado que harmoniza as
poucas linhas de expressão no canto dos olhos. Ela é mais do que bonita, é
única, com certeza chama atenção do público masculino por onde quer que
passe.
— Solteira? — indagada de supetão, arreganhando os dentes como se
fosse me comer viva.
— Sim? — respondo meio incerta, o diálogo fazendo zero sentido.
— É tão difícil, sabe? — divaga abanando a mão no ar. Ao nosso
redor, outras funcionárias escutam a conversa, algumas seguram o riso. —
Casar um filho.
— Eu imagino que sim, deve ser complicado desapegar — comento,
incerta.
— Desapegar? Não, não. O difícil é fazer com que eles se casem! Tão
bonitos, mas tão idiotas! Você não os achou bonitos? Já viu meus três filhos
solteiros mais de perto?
— Você nem imagina! — disparo em um ataque de idiotice súbita. Já
vi mais do que ela pode imaginar. Quase tudo. Droga, não tem como corrigir
a gafe, vida que segue. Pigarreio para disfarçar, orando a todos os santos que
alguém me chame na cozinha. — Quer dizer, claro. Sua família é incrível.
Encaro o chão, com medo que a minha cara de pau entregue o
suficiente para colocar ambas em uma situação constrangedora. Embora não
tenha reencontrado Vladimir depois do nosso embate em seu escritório mais
cedo, meus olhos não desistiram de procurar. O maldito é tão confuso que
parte de mim deseja conhecer mais das suas facetas, mas outra parte só pensa
em estapear aquele sorriso debochado junto com o nariz perfeito, enquanto
uma terceira parte poderia facilmente jogar os princípios morais no fogo para
eu me pendurar em seus ombros másculos.
— Mesmo? — A senhora Volkiova, uma das mulheres mais
conhecidas na alta sociedade russa, gira sobre os saltos e volta a perscrutar
minha aparência com a sobrancelha arqueada no alto da testa. — Você
pretende se casar algum dia? Ter filhos? Teria filhos com um deles?
É o quê?
— Mãe, se continuar fazendo isso as funcionárias vão começar a nos
processar por assédio. — O filho mais novo passa por mim com o semblante
preocupado e as mãos escondidas nos bolsos do paletó. Gente rica é assim,
veste terno dentro de casa e salto alto no jardim. Deus me livre dessa sorte!
Se um dia ficar rica, serei a rica mais pobre que já pisou nessa terra. — Já
recebi três reclamações da gerência do restaurante.
— Andrei, não estou fazendo nada demais. Isso se chama teste de
qualidade. Só estou tentando entender o que há de errado com vocês aos
olhos de outras mulheres. — Os dois se abraçam na minha frente, o rapaz
deixa um beijo na testa da mãe.
Francamente, quantas pessoas precisaram nascer feias só para essa
família existir? E não estou falando somente de beleza física, há uma
vibração na forma como se comportam, como lidam com a vida, que
transforma a atmosfera.
— Acha que existe alguma coisa errada conosco? — pergunta,
fazendo jus ao apelido que as cozinheiras lhe deram. O sorriso dele é
encantador, charmoso e extremamente sedutor.
Mesmo sendo o mais novo dos irmãos, tem praticamente a mesma
altura de Vladimir. O corpo é mais esguio, mas nem por isso menos atraente,
e o rosto tem os mesmos traços fortes do mais velho. Tanta gentileza e
amabilidade desencadeiam um arrepio estranho na minha espinha, e me sinto
exposta por seu olhar afável e analítico.
— Definitivamente — confirmo, minha língua sempre proclamando
independência em situações de apreensão. A doida só joga as verdades no
modo automático. — Digo… nenhum problema, senhor Volkiov. Vocês são
perfeitos.—Andrei solta um sorrisinho que, meu Deus, deveria ser proibido.
— Não! Não foi isso que eu quis dizer…
— Não somos perfeitos? — Ele se diverte, caçoando da atrapalhação.
Preparo-me para despejar mais uma enxurrada de baboseiras, mas o bom
moço me salva ao continuar falando: — É uma brincadeira, não precisa se
explicar. Ninguém é perfeito e nós com certeza também não somos.
— Vocês chegam bem perto — emendo, mais tranquila com a
gentileza em seu tom de voz.
— Não precisa mentir, querida. — Tatiana desdenha, revirando os
olhos.Apoia o rosto sobre os dedos cheios de anéis dourados e unhas longas.
— Vladimir nunca arrumou nenhuma namorada, um homem de trinta e dois
anos de idade deveria ter alguns casos, você não acha?
— Nenhuma? — Gargalho, duvidando. Esse homem não cansa de me
surpreender. — Que desperdício! Eu até suspeitaria da sexualidade dele se…
— Paro no meio da frase bem a tempo de evitar uma catástrofe, mas os dois
aguardam cheios de curiosidade e não posso simplesmente sair
correndo. Pensa rápido, Serena! — Se não estivesse acompanhado daquela
moça tão peculiar no jantar beneficente do senhor Palliermo. Eu estou
trabalhando no hotel dourado durante os finais de semana e coincidentemente
seu filho mais velho esteve lá no evento passado.
E o prêmio de melhor mentirosa vai para Serena Fajardo. Puta
mierda, preciso manter distância dessa família.
— Interessante — murmura Tatiana com o dedo indicador a bater
sobre o queixo, pensativa. — Você viu alguma coisa? Os dois pareciam um
casal? Eles se beijaram?
Socorro, Deus. Me ajuda aqui.
— Você não precisa responder se não quiser. — Andrei se coloca à
frente, as expressões oscilando entre confuso e humorado. A resposta de sua
mãe chega acompanhada de um tapa no braço.
— Não estamos em um tribunal, Andrei! Que inferno! É só uma
pergunta inocente.
— Não se beijaram — respondo, sem nada do entusiasmo de antes. A
vontade de dizer em voz alta é mais forte e dessa vez nem me repreendo. Ele
não beijou aquela mulher mesquinha, mas imaginar a cena causa uma repulsa
física dentro de mim. — Eles não se beijaram em nenhum momento — repito
mais séria. — Tenho que voltar ao trabalho, se me dão licença.
— Espera — chama a patroa. — Qual é mesmo o seu nome?
Abro a boca para responder, mas sou tomada por um instinto de
traição. Vladimir disse que descobriria e quero ver como se sai após ter agido
como unpelotudo[17]. Não devo nada para ele e, mesmo assim, sinto como se
fosse quebrar um pacto se revelasse para alguém sem que tenha a chance de
desvendar por si mesmo.
Não deveria ser tão importante, mas a forma como nos provocamos e
nos aproximamos por causa dessa brincadeira de palavras e gestos me
compele a recear.
— Você assustou a menina, mãe — repreende o ser abençoado que é
o irmão mais novo de Vladimir. Esse menino vai direto para o céu quando
morrer. — Pode ir, querida, não se preocupe.
Agradeço desajeitadamente com a cabeça e saio depressa rumo à
lateral do casarão, ziguezagueando entre mesas redondas e ornadas com
tulipas amarelas e cascatas de samambaias. É um casamento de veraneio,
colorido e caloroso.
A propriedade é extensa o suficiente para suportar um evento desse
porte. A passarela do jardim ficou totalmente reservada ao espetáculo
principal, por onde os noivos caminharão após o beijo de aceitação. Perto do
labirinto, seis estruturas de ferro e lonas brancas foram montadas e qualquer
pessoa a quilômetros de distância consegue visualizar o topo pontiagudo das
tendas.
Duas horas e meia antes do horário marcado para o início da
cerimônia, as garçonetes começam o rodízio para a troca de roupas. Atrás da
mansão, há uma casa menor ao lado das piscinas e todo o espaço foi
desanexado para as necessidades das funcionárias.
Algumas meninas já estão com os novos uniformes quando chego.
Dividem espaço em um grande espelho de parede completa que foi instalado
na sala maior.Não poderemos participar do casamento, o protocolo manda
que deveremos assumir nossas posições na festa apenas depois de todas as
solenidades, portanto, começo a me arrumar com calma.
O conjunto preto é substituído por blazer e saia brancos, meu cabelo
ganha o penteado estático e lustroso do coque padrão cheio de gel destinado a
todas as garçonetes. Por algum motivo, não haverá garçons servindo
o buffet principal.
Estou quase finalizando minha maquiagem quando Raissa surge ao
meu lado com uma expressão traquina. Mesmo sendo quase dez anos mais
velha, minha superiora mantém a jovialidade e o espírito livre, além de uma
boa forma garantida devido à dedicação em práticas de exercícios físicos e
alimentação saudável.
Quando eu crescer, quero ser como ela, mas, no momento, sigo
satisfeita com pizzas na hora do almoço e sanduíches cheios de bacon. Minha
magreza é pura ruindade.
— Ela também perguntou se você é solteira? As meninas estavam
comentando que conversaram por algum tempo, e que até o senhor sorriso
sedutor participou. — Raissa me cutuca com sua costumeira expressão de
segundas intenções. — Parece que o maior sonho dela é casar todos os filhos.
Conto todo o estranho diálogo e Raissa gargalha sem nenhuma
moderação. Não somos amigas íntimas, mas durante os expedientes é a
pessoa com quem mais me relaciono.
— Você não existe, Serena — diz, após se calmar um pouco,
limpando as lágrimas dos olhos com um lenço. — Vai estar livre na sexta que
vem?
— Estou sempre livre para ganhar dinheiro. O que vai ser, mais um
casamento?
— Credo,mulher, você só pensa em trabalho. Estou falando de
diversão! Música, vodca e homens gostosos. Ganhei três ingressos de um
cliente para uma boate chiquérrima na semana que vem. Vai ser divertido! Já
ouviu falar em open bar? Significa diversão gratuita.
Finjo ponderar. Diversão para mim é pagar todas as contas no final do
mês, sobretudo agora que consegui uma dívida de trinta mil dólares que vai
me levar direto para a cova.
Pensando bem, talvez esse seja meu último mês de vida. Só tenho
mais três semanas para arrumar o dinheiro de Maksim e nem cheguei perto de
conseguir alguns trocados para garantir a comida do mês. Talvez esse
corpinho lindo não tenha outra chance de sensualizar na pista — coisa que eu
obviamente não sei fazer. Mas nunca é tarde para aprender, certo?
— Vou pensar — respondo por fim, deixando em aberto. Raissa bufa,
prevendo minha recusa em potencial. — Vou pensar de verdade!
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LEIO PELA CENTÉSIMA vez a mensagem daquela diaba, agora em voz alta
para que meus irmãos — Roman e Andrei, já que Ivan continua em sua lua
de mel — compreendam o nível do meu desespero.
— “Fodeu, Vladimir, e não foi no bom sentido, infelizmente. Não
posso vender a casa, mas aceitarei de bom grado os trinta mil dólares que
ofereceu. Esteja ciente de que só poderei pagar em trinta mil parcelas de um
dólar. Mas isso não será um problema, já que somos amigos, certo?
Obrigada.”
Ignoro as risadinhas dos dois. Eles não conseguem levar a sério toda a
insanidade de Serena. Já perdi a conta de quantas vezes reli essas mesmas
palavras só para ter certeza de que não se tratava de uma alucinação, um
pesadelo como tantos que me perturbaram por meses.
— É só isso? — Andrei força um timbre profissional, mas evita me
encarar. Desde o casamento, todos me olham como se eu fosse um rato de
laboratório submetido a um estudo vigilante de alto risco. — Ela não
explicou os motivos ou deu uma justificativa plausível?
— Nada. Hoje pela manhã fui conferir as mensagens no e-mail da
empresa e encontrei essa barbárie. — Empurro bruscamente o notebook para
frente e por pouco não o derrubo no chão. — Tentei ligar no número que ela
utilizou para marcar a reunião, mas é de um estabelecimento que oferece
serviços telefônicos. Depois, entrei em contato com o buffet, mas disseram
que ela não tem celular e não arquivam o endereço dos funcionários
temporários. Isso é ridículo!
Levanto-me, pelo simples motivo de não conseguir ficar parado.
Minha mente não suporta a estática e todos os meus poros parecem ligados na
alta voltagem desde nosso último encontro dentro dessa mesma sala de
reuniões.
É como voltar no tempo, na época em que assumi a presidência pela
primeira vez. O medo de fracassar, a tristeza por vestir uma personalidade
que ainda não fazia parte de mim. Achei que já tinha superado, que o
concreto da liderança já havia se fundido com a minha pele, mas as
provocações de Serena, suas brincadeiras leves e absurdas sobre beijos e
vampiros, se tornaram dilemas com os quais não consigo lidar sem enxergar
um mar de retrocessos.
Sem me sentir culpado por desviar das obrigações com a minha vida.
Essa empresa é tudo o que tenho sido nos últimos oito anos!
— Essa mulher sabe como se esconder — Roman comenta, sem
agregar muito para a resolução do problema.
Atravesso toda a sala até parar diante das janelas transparentes,
fixando meu olhar sobre a paisagem urbana e colorida de Moscou.
Realmente, Serena é mestre na arte do desaparecimento. Da próxima vez que
nos encontrarmos, eu me certificarei de amarrar todas as partes daquele
pequeno corpo dentro de um quarto trancado e só libertar depois que
resolvermos cada porcaria de dilema causado por seu temperamento
irresponsável!
A imagem tremeluz na minha cabeça na forma de um fetiche. Merda.
Do jeito que é maluca, seria perigoso que gostasse da ideia e ainda pedisse
por mais.
— Não entendo, ela estava decidida a vender… — reflito em voz alta,
obrigando-me a manter a concentração no que importa: nossos negócios.
Meus olhos vagueiam até os ponteiros de uma das torres do Kremlin, que
denunciam a chegada das dezesseis horas. — Ofereci o adiantamento dos
trinta mil dólares justamente por causa disso.
E porque fui tomado por um medo desigual após sua explicação
sobre os perigos ocasionados pelo mau-caratismo de Camillo Fajardo, mas
confessar algo tão íntimo não faz parte do meu perfil. Mesmo com meus
irmãos, evito demonstrar a maioria das minhas fraquezas. Não sei como fazer
isso sem acreditar que estou perdendo o controle.
No começo, os atributos físicos de Serena capturaram minha atenção
da forma natural como geralmente os homens são atraídos por mulheres que
se enquadram nas preferências de cada um. Serena é linda, sensual em escalas
assustadoras, mas seu sorriso, a boca voluptuosa, a curva pecaminosa na
cintura e a mania inconsciente de mordiscar o lábio inferior desmantelam
todas as minhas barreiras. Ela é uma explosão de sarcasmo e descaramento,
do tipo que elimina a minha cautela e todas as implicações negativas que um
envolvimento nosso poderia desencadear.
Mas seu olhar, algumas vezes, por breves segundos, vacila. O
encantamento que existe entre nós é mais do que físico, é interno, profundo e
profano. Quando nossos olhos entram em sintonia, é como se eu estivesse
diante de um quadro muito antigo, pintado em uma época tão longínqua que
incita a divagação a respeito das histórias que se escondem por trás da obra.
Um enigma.
— Você contou que ela estava sendo chantageada e que precisava de
dinheiro — pondera Andrei. Deixo meus dilemas pessoais para outro
momento. — Mas precisamos trabalhar com a possibilidade de ser tudo
mentira.
— Não era mentira — defendo-a, voltando para a mesa. Puxo a
cadeira presidencial e me jogo. Retiro a gravata sobre a cabeça, desejando
estar em qualquer outro lugar. — Tem alguma coisa acontecendo, pois
Camillo também precisava de dinheiro e se recusou a colaborar. Agora, de
repente, a Cora… — Limpo garganta com um pigarro. Droga de apelido! —
A senhorita Fajardo também resolve negar nossa proposta? Isso é muito
suspeito.
— E o que vamos fazer com relação ao dinheiro? — Andrei,
concentrado em seu notebook, faz anotações ágeis da pauta. — Vai depositar
mesmo sem garantias?
Nego sem enunciar as palavras.
Meu irmão mais novo para de digitar, encarando-me com a astúcia
engenhosa do advogado bravio que não mede esforços para expurgar
qualquer ameaça. Roman o acompanha na expressão de interesse por meu
posicionamento, dedilhando os dedos sobre a mesa em um indício claro de
impaciência, enquanto tenta me intimidar com o nariz empinado e os olhos
verdes brilhantes em um desafio mudo.
Roman é o tipo de indivíduo que enxerga em qualquer escolha ruim
um inimigo a ser combatido.
— Não faz merda — debocha, os olhos cintilando. Abre o zíper da
jaqueta de couro, revelando uma camisa de botões com gravata bastante
apropriada considerando seu estilo deveras inadequado para ambientes
formais em noventa e nove por cento do tempo. — Se não transferir o
dinheiro, eu transfiro.
— Você não vai se meter, Roman — confronto, incomodado com seu
instinto de proteção invasivo. Serena é meu problema.
— Presidente — ironiza sorrindo com os lábios tortos —, não estou
pedindo autorização. Você coloca essa empresa acima de qualquer coisa, o
que garante que não vai fazer o mesmo dessa vez?
— A empresa é o centro dessa conversa!
Eles não entendem, nunca precisaram fazer sacrifícios. Meus irmãos
choraram a morte de Nicolai enquanto eu era humilhado por cada maldito
marginal com quem nosso pai mantinha negócios.
Não sabem.
Não entendem!
— Vladimir, se você acredita mesmo em tudo o que ela disse, pode
ser que esse dinheiro salve a vida dela — Andrei intervém com sua sensatez,
mas mesmo ele deixa escapar um pouco de nervosismo na voz.
A expressão de Serena sorrindo salta à frente dos meus olhos, cheia
de vivacidade e contrária a tudo o que me representa. Ela se infiltrou no meu
sistema nervoso como um vírus, se alojou em um esconderijo secreto ao qual
não tenho acesso, que está trancado. Pulou a janela.
Ou talvez eu a tenha trancado lá dentro.
Não me convide para entrar se não tem a chave para destrancar a
porta, foram suas palavras.
— Não vamos transferir porcaria nenhuma por enquanto —
estabeleço. Saia da minha cabeça. — Ela disse que tinha um prazo, menos de
quinze dias agora. Tem que haver outra maneira.
— Podemos tentar conseguir alguma informação através dos dados
bancários — sugere Andrei. — Ou acionarmos a polícia, o que seria a
escolha mais inteligente na minha opinião.
— Era o que eu pretendia fazer a princípio — explico, pois nesse
ponto concordo com Andrei. — Mas depois de tudo o que ela disse sobre
como era a vida naquele distrito, a ideia de que isso acabasse a colocando em
um perigo maior, eu…
— Presidente Vladimir NicolaevitchVolkiov hesitando? Essa é nova.
— Roman retira um cigarro do bolso frontal da calça e coloca na boca, mas
não o acende. — Conta pra gente, qual era o seu plano? Enviar a grana e
esperar que ela se resolvesse sozinha? São traficantes, perigosos,
fazem qualquer coisa por dinheiro. E os riscos, não calculou isso?
— Mas é claro que eu pretendia ajudar, Roman. Cuidado com as
porcarias que você fala. — Sem me alterar ou demonstrar desconforto, sorrio
para meu irmão a fim de acalmar sua adrenalina. Roman acha que ativar o
modo ofensivo funciona comigo, mas me adapto a qualquer diálogo
dependendo do resultado que preciso alcançar, e, nesse momento, um irmão
irritado não faz parte dos meus planos. — Meu erro foi confiar que pudesse
existir o mínimo de racionalidade na cabeça dela. Mas Serena já provou que
não pode ser calculada. Pensei em resolver uma coisa por vez, já que ela foi
enfática ao concordar com a venda. Planejava oferecer proteção e todo o resto
no dia da negociação, já que ela não queria envolver a polícia.
Não é uma mentira completa. Na minha cabeça, Serena jamais se
encontraria pessoalmente com filho da puta nenhum. Mas a pequena
impulsiva nasceu com tendências ampliadas para se meter em confusão e me
colocar à beira da insanidade.
— Da próxima, vez seja mais claro — sugere nosso advogado sem
preâmbulos. Recolhe seus pertences, guardando as anotações e uma maleta
antes de se encaminhar para a saída. — Ela não faz parte do nosso mundo,
não podemos esperar que entenda suas intenções como acontece conosco.
No âmbito profissional, Andrei não decepciona. Eu sei que não faz
isso pela empresa e sim para manter a reputação como advogado, no entanto,
ainda não me acostumei com a ideia de que o menino alegre e boêmio que
vivia enfurnado em festas com nossa cunhada na adolescência — já que Lara
sempre foi sua melhor amiga — seja muitas vezes a voz da razão por trás da
Corporação Volkiov.
Ele está certo, sempre está.
Tenho me deixado enfeitiçar por Serena, mesmo sabendo que ela
jamais entenderia um homem como eu.
— Com licença, senhores. — Elena para na entrada da sala de
reuniões, impedindo a passagem de Andrei. Segura um tablet com as duas
mãos e não entra até receber a autorização de Roman, que faz um sinal com o
indicador para se aproximar. — Vocês precisam dar uma olhada nisso.
Nossos olhares se encontram e, diferente das outras vezes, ela demora
um bom tempo antes de desviar para o chão. Por um segundo, penso ter visto
algo mais do que respeito ou medo em seus olhos perolados, mas não tenho
certeza do que poderia significar.
Andrei pega o aparelho e volta para sua posição, acomodando-o sobre
a mesa para que possamos conferir o que está acontecendo de tão urgente
para Elena interromper uma reunião sem avisar.
Trata-se de um vídeo, uma reportagem sobre a suposta falta de
planejamento na construção do clube, os impactos negativos após tantos
meses de obras ininterruptas para os residentes nos arredores, que dão
entrevistas de cunho depreciativo. É um trabalho sensacionalista com
objetivos evidentes de nos atingir e tirar o mérito do nosso projeto.
Quando o vídeo termina, meu peito sofre com o impacto. Não o
coração, mas meus pulmões, como se alguém os privasse do oxigênio. É
assim que funciona quando a gente acende um pavio às cegas: a explosão
chega em algum momento.
Começo a fazer conexões, pesar os possíveis estragos, listar as
pessoas certas a serem contatadas. O pior de tudo é que os responsáveis pelo
programa conseguiram manter os exageros dentro da realidade. Não
poderemos negar as acusações, somente amenizar a veracidade das
informações fornecidas.
Listar os danos.
Preciso limpar essa sujeira.
Fazer ligações.
Enviar relatórios.
Reunir nossa equipe de advogados.
Tanto trabalho e o rosto de Serena é a única maldita coisa que me
desperta o mínimo de disposição, sua voz sussurrada com o sotaque latino ao
pronunciar a palavra Lord, melódica e sensual.
Lord Vlad…
Lord…
— Presidente, o senhor está bem? — Elena coloca a mão nas minhas
costas, inclinando-se sobre mim para analisar meu rosto de perto. Os cabelos
dourados e vibrantes recaem em cima da tela e o ângulo fornece uma visão
perfeita dos dois primeiros botões abertos em seu terninho verde-limão. Ela
faz parecer natural. — Ficou branco de repente.
— Sim, eu… — Olho ao redor, meus irmãos estão atônitos, tão
preocupados quanto eu. — Andrei?
— Já estou entrando em contato com a emissora responsável. —
Levando o celular ao ouvido, ele sai rumo à minha sala pessoal e, em poucos
segundos, podemos ouvir os murmúrios da conversa acalorada.
Lord Vlad…
— Era só o que faltava! — pragueja Roman. — Em plena sexta-feira,
essa bosta fedendo.
— Todo dia é sexta-feira para você. — Fecho os olhos e massageio as
têmporas, só então percebendo que a mão de Elena continua apoiada no meu
ombro. — Obrigado, senhorita Kokorin, pode se retirar agora.
Ao som da minha voz, Elena se desvencilha como se tivesse sido
atingida por um raio. Pode ser encenação de uma mente ardilosa, como
também pode se tratar apenas de uma jovem ingênua e mimada que não está
acostumada ainda a sobreviver nesse universo de máscaras e dinheiro. Não
acho que a segunda opção esteja correta.
Ou melhor, prefiro nunca subestimar as pessoas que estão ao meu
redor, o golpe da traição costuma ser o mais forte.
— Na verdade… — diz timidamente, contorcendo os dedos na frente
do corpo. — Se me permitirem, tenho um recado do meu avô.
Interessante.
E previsível também. Nos momentos de crise, descobrimos quem são
nossos amigos e quais são os abutres aproveitadores.
— Elena — Andrei chama, retornando com a feição abismada. — É
verdade?
— O que aconteceu? — Roman indaga, rude.
— O senhor Kokorin… — começa o caçula, mas Elena dá um passo à
frente para tomar a palavra.
— Meu avô assumirá tudo. A responsabilidade pelos contratempos
envolvendo o clube vai recair em cima do sobrenome da minha família. —
Diferente dos trejeitos anteriores, cada palavra é agora entoada com firmeza e
maturidade. Ensaiada. Começo a entender. — A nota será expedida pela
manhã se estiverem de acordo.
— Por que ele faria uma coisa dessas? — Andrei chega mais perto
para oferecer uma espécie de condolência.
Ninguém responde, afinal, é um questionamento retórico. Teremos
uma dívida com a família Kokorin e está bem evidente o que esperam em
troca. Acham que podem mesmo fazer esse tipo de movimento sem que seja
eu a comandar o jogo.
Tolos.
— Diga ao seu avô que aceitamos o sacrifício dele — decido, mas as
palavras têm um sabor amargo que não deveria existir. Que porra está
acontecendo comigo?
— Vladimir! — Roman me repreende.
Repreendo-o com um olhar enviesado, que é retribuído com outro
mais furioso e descrente.
— Todos para fora, quero todos para fora agora. — Para que não
possam insistir, encerro a reunião e fico de pé.
Não podemos nos dar ao luxo de negar. Sempre foi o meu plano, de
qualquer forma, é só uma questão de juntar o útil ao agradável. Se pretendem
usar essa estratégia para chegar até mim, posso muito bem fazer o caminho
contrário e me aproveitar da situação. Simples assim…
Mas por que dói tanto? Inferno!
Nicolai me disse várias vezes que a vida é como um botão, basta
um clique impensado e as comportas despejam anos de trabalhos, sonhos e
esforços direto para o limbo.
Eu costumo apertar muitos botões.
Lord Vlad.
Volto para a minha sala, cansado de escutar a voz de Serena na
cabeça. Pelo canto dos olhos, vejo Elena sair sorrateiramente, acompanhada
de Andrei. Fico parado no meio da sala. As cortinas fechadas deixam o
ambiente menos acolhedor, assim como os tons pastéis e frios presentes na
decoração. Ao contrário de quando meu pai trabalhava aqui, agora o
escritório presidencial é um reflexo da minha própria personalidade
estragada.
Não pensei duas vezes antes de aceitar. Mal pensei uma vez!
— Sabe a lixeira que se enfiou, não é? — Roman balança a cabeça,
brincando com o cigarro apagado entre os dedos. — Eles estão de olho em
um matrimônio.
Eu sei.
— Não vamos falar sobre isso. — Respiro fundo, passando a mão na
cabeça. — Isso não é um problema, nunca foi. Você sabe que poderia
acontecer eventualmente. — Espero convencer a mim mesmo com essas
palavras, mas a sensação estrangulada na minha garganta continua se
intensificando.
— Certo, não vou me meter, foda-se. — Roman não obedece ao meu
pedido, o que não é nenhuma surpresa. Continua perambulando pela sala,
visivelmente preocupado. — Vai voltar para casa hoje?
— Não. — Encosto da minha própria mesa, cruzando os braços. —
Eu não suportaria mais um confronto.
— Nossa mãe deve estar com as covas prontas no jardim. — Ele
gargalha baixinho, guardando o cigarro no bolso da frente da jaqueta preta.
— Você não dorme em casa desde o casamento, e Andrei praticamente se
mudou para a casa da namorada, que não quer mais saber da nossa família.
Você não vai conseguir a evitar para sempre. Em algum momento, vai ter que
explicar que confusão foi aquela durante a festa.
— Uma coisa de cada vez, Roman — resmungo, apesar de saber que
está certo.
— Faz quanto tempo que não pega uma mulher, Vladimir? —
pergunta aleatoriamente. — Você precisa sair um pouco, fazer um sexo
selvagem, encher a cara! Vamos?
— O quê? Agora? — Olho para minha mesa, tentado a sentar ali pelo
resto da noite e acompanhar como as notícias se espalham. — Com tanto
serviço para resolver, não posso me dar ao luxo desse tipo de coisa.
— Mulheres, esse é o único luxo que importa. Virar padre não vai
ajudar a empresa, principalmente agora que arrumou uma noiva em potencial.
Puta que pariu! Nossa mãe vai surtar quando descobrir.
Realmente, minha mãe vai fazer de tudo para antecipar o momento.
Porra! Talvez seja bom, beber e me enterrar em uma desconhecida para
retirar aquela espanhola à força do meu sistema nervoso antes que afete o
meu cérebro.
— Tudo bem. — Ouço-me dizer, surpreso comigo mesmo por essa
decisão.
— Ótimo, te espero às onze na frente do seu hotel. Envia o endereço
para o meu celular.
***
Vestido com uma roupa mais casual, acompanho meu irmão boate
adentro. Ternos não condizem com o ambiente, então optei por calça jeans e
camisa polo preta para não chamar muita atenção. O plano é beber um pouco,
encontrar uma acompanhante suportável — o que significa ser muito boa de
conversa ou muito gostosa, de preferência as duas coisas juntas para que as
insinuações sedutoras de Serena sejam erradicadas da minha memória — e
evitar os paparazzi, mas com Roman trajado como se fosse a personificação
perfeita de um delinquente, é impossível não sermos notados.
Péssima ideia!
Algumas pessoas nos cumprimentam assim que entramos, mulheres
na maioria. Guardo vagas lembranças de uma ou outra conhecida de ocasiões
passadas, mas a maioria são rostos novos, possibilidades inéditas. O interior
da boate não é diferente de nenhuma outra que já tenhamos visitado, com
muita gente dançando e se esfregando sob luzes coloridas e frenéticas ao som
de músicas eletrônicas.
Roman se nega a subir para a área vip com o pretexto de que a
verdadeira diversão só acontece no aglomerado, mas aceita ficar em uma
mesa mais reservada em um canto nos arredores da pista de dança.
Durante a primeira hora, bebemos e conversamos sobre coisas banais,
como a falência confirmada dos irmãos Giamatteo, na Itália, e o andamento
das investigações sobre o paradeiro de Tasha — uma busca mantida
sobretudo por Ivan e nossa mãe, já que os dois são incapazes de superar
alguns traumas.
Algumas vezes, meus olhos recaem sobre alguma mulher que passa
por nós, analisando corpos e comportamentos, e começo a ficar preocupado
quando percebo que estou comparando-as com Serena. Nenhuma parece boa
ou atrevida o suficiente, nenhuma tem o seu jeitinho natural de balançar os
quadris como estava fazendo na primeira vez em que nos encontramos.
Só posso estar ficando louco, até mesmo penso identificá-la no meio
da multidão mais de uma vez. Nesse ritmo, estarei fadado a um hospício
antes que a transação seja concluída.
Alucinar é o último passo antes sucumbir e admitir minha derrota.
Mas, porra! Continuo vendo-a sem parar. O corpo com as curvas tão
perfeitas, o longo cabelo preto caindo em ondas sobre os ombros até a metade
das costas. Sem falar na boca que me faz fantasiar com as mais criativas
utilidades.
— Não pode ser — resmungo ao constatar que a mulher mais sensual
no meio da pista é ela de fato, não uma alucinação. Eu mal bebi, pois terei
que dirigir todo o caminho de volta, então não pode ser um efeito colateral da
vodca também. — Só pode ser brincadeira!
Roman acompanha meu olhar, também abrindo a boca como um
babaca. Mesmo longe, o nível da sua embriaguez é tão evidente que eu me
levanto quando ela se desequilibra e um homem a ampara. Os dois gargalham
um para o outro, mas o maldito não a liberta; começa a se aproximar com o
pretexto de dançarem.
O vestido mais parece um pedaço mínimo de tecido vermelho, curto e
justo como uma segunda pele. É sexy para caralho, e minha briga interna
consiste em decidir se é mais prazeroso admirar o desenho curvilíneo no
contorno entre seus quadris e a cintura, ou desejar que tenha trazido um
casaco para esconder tanta pele exposta assim que eu colocar minhas mãos
nela.
Dou o primeiro passo, convicto de que é meu dever interromper essa
palhaçada, mas Serena escolhe esse momento para olhar na minha direção. O
magnetismo é surreal. Ela estreita os olhos enquanto empurra o sujeito — que
sai sem causar confusão — e tenta correr na minha direção.
Tenta, pois o zigue-zague se estende por um longo período até que
alcance a mesa. Sento-me e arqueio uma sobrancelha enquanto ela inclina
para me olhar bem de perto. Seu cheiro de doce invade minhas narinas, junto
com um odor clássico de vodca e limão. Tenho que fazer um esforço enorme
para me distanciar do rosto corado. Ela olha para Roman, estudando nossos
rostos.
Está muito, muito bêbada.
— ¡La puta mierda! — exclama, endireitando o corpo. — São vocês
mesmo, Lord Vlad e o irmão tatuado. Achei que eu já estava bêbada demais!
— Ela dispara a rir, desequilibrando-se outra vez, e puxa uma cadeira para se
sentar, arrastando-a para mais perto de mim. — Devem estar se perguntando
como entrei aqui. Mas eu tenho uma coisa que eu ganhei de uma amiga que
dormiu com o dono dessa boate — sussurra como se fosse um segredo. —
Um convite.
Fecho os olhos para não enfiar essa maluca dentro do primeiro táxi
que encontrarmos. Bêbada não chega nem perto de definir quão profunda é a
situação alcoólica. A porcaria de uma bêbada enfiada em um microvestido
vermelho, que deixa as pernas chamativas em evidência, assim como o
decote profundo nos seios suados. O que porra ela está pensando, afinal?
Vai ser impossível continuar com o plano de exterminá-la da minha
mente depois dessa noite. Parece até uma brincadeira de péssimo gosto do
destino que nossos encontros sejam sempre provações ao meu bom-senso.
— Você não está sozinha, está? — Roman interroga, espelhando
minha preocupação.
— Vim com a minha amiga, mas ela está presa dentro do banheiro. —
No ritmo da música, Serena agita o corpo enquanto conversa. — Um homem
arrastou ela, foi uma confusão, bem cena de filme!
— Arrastou? Como assim Serena? — pergunto, nauseado com a
imagem que me vem à mente.
— Do jeito bom, Lord Vlad, do jeito caliente. — Revira os olhos
embriagados, pega nossa garrafa sobre a mesa e bebe um gole, fazendo uma
careta em seguida. — Isso é horrível, ¡Dios Mio! — Bêbada Serena fica mais
inquieta e seu sotaque mais acentuado. É perturbador o conflito entre estar
diante do suprassumo da excitação e a consciência de que não passa de uma
menina irresponsável. — Aquele e-mail que você mandou partiu o meu
coração. — diz, referindo-se à mensagem que enviei negando o empréstimo
naquelas condições arbitrárias. Seus olhos fecham e abrem devagar a cada
piscada, sonolentos e frágeis.
— O seu e-mail quase nos matou, isso sim! — Roman reclama. A
idade mental dos dois é incrivelmente próxima. — Lord Vlad aqui ficou bem
puto.
Ótimo, mais munição para o arsenal de imaturidade contínua. Daqui
em diante, nada mais me surpreende. Roman nunca mais vai me deixar em
paz.
— Seu irmão disse que me odiava e que nunca me beijaria — mente,
bebendo mais uma vez com a feição chorosa. — Odeio beber, que negócio
ruim.
Puxo a garrafa e coloco perto de mim, ela faz uma careta de desgosto.
— Primeiro, se não gosta, por que está bebendo? — censuro. — E
segundo, nunca escrevi nada sobre não beijar você.
— Então você quer me beijar, Vladimir? Isso seria a terceira ou
quarta realização da minha lista. — Serena passa a ponta da unha comprida e
vermelha sobre os lábios igualmente vibrantes nesse tom, provocando uma
reação instantânea no meu corpo.
Quero sim, como o inferno! Essa endiabrada acha que pode queimar
um demônio no fogo.
— Do que ela está falando? — Roman pergunta para mim, como se
interpretar Serena fosse uma tarefa fácil, mas ela logo se coloca a explicar.
— Já que você se recusou a me emprestar o seu rico dinheirinho —
diz, cruzando os braços sobre a mesa e exaltando o aclive em seu decote
generoso —, eu decidi colocar em prática a minha lista de coisas que preciso
fazer antes de morrer. Tomar um porre, curtir uma ressaca louca, beijar
algumas bocas e perder a virgindade são as metas de hoje.
Ah, não…
Puta que pariu.
Merda!
Não sei se fico mais chocado com a possibilidade de que já tenha
beijado mais de um homem — imaginá-la fazendo isso com apenas um é
perturbador o bastante — ou com o fator virgindade.
Virgem!
— Não precisa fazer essa cara, como se eu tivesse uma
doença, Romanzito. — Serena leva a mão até o rosto de Roman e dá dois
tapinhas, caindo na gargalhada. — Seu irmão não quer a minha virgindade!
Nem me beijar ele quer, fica fugindo.
Ah, Serena, praguejo sozinho, não sabe em que buraco está se
metendo.
— Virgem e bêbada são características que não podem coexistir no
mesmo ser humano. Quem é virgem aos vinte e cinco anos, menina? —
Indignado, Roman vira todo o conteúdo do seu copo, ficando de pé logo
depois. — Boa sorte, não quero me envolver com drama nenhum. — Para
Serena, completa: — Virgens são sinônimo de problema, bebê.
Ele foge para outra área da boate e Serena fica olhando com o cenho
franzido. Até sua confusão é atraente de um jeito fofo. Virando-se para mim,
inclina a cabeça e os cabelos se acomodam sobre o ombro direito.
— Como ele sabe sobre o bebê? — pergunta, genuinamente surpresa;
nem me atrevo a tentar compreender do que está falando.
— Quão pior essa conversa pode ficar, Corazón? Um pouquinho mais
e eu te arrasto para fora daqui.
— Arrastar do jeito bom? — provoca, mordendo o lábio e me
transportando para o mar de tentações dentro do qual estou tentado a
mergulhar. — Adoro quando me chama assim, seu sotaque é sexy.
Amaldiçoo sua impertinência quando cambaleia para o lado, com as
pernas levemente abertas, e arrasta mais a cadeira, encaixando-se entre os
meus joelhos.
— Serena, você é virgem? — indago para ter certeza, mas já não
consigo mais disfarçar o quanto a desejo e minha voz soa como um grunhido
brutal.
Se antes eu tinha dúvidas sobre sua capacidade de cuidar de si mesma,
agora eu estou curioso para descobrir como sobreviveu sozinha por tantos
anos.
Amanhã, quando a ressaca passar, teremos uma conversa muito séria
sobre suas ações. Confiar na bondade alheia não é seguro e nem consigo
pensar no que poderia acontecer com ela nessas condições!
Aquela ideia de trancá-la dentro de um quarto parece cada vez mais
tentadora.
— Você é surdo? — reclama, enrolando a língua. Tenta ficar de pé e
falha; nunca vai conseguir sair daqui sem ajuda. — Sou virgem, mas vai ser
por pouco tempo…
— Quantos imbecis você beijou hoje? — Trinco os dentes para fazer
essa pergunta, segurando suas pernas bem juntinhas para que não consiga
fugir.
— Não tenho certeza… — Começa a contar os dedos e uma raiva
desapiedada eclode em meu peito, um instinto possessivo e egoísta que não
suporta perder o que deseja para outra pessoa. — Estava esperando eu ficar
beeeem bêbada, sabe? Mas as bebidas aqui são fracotes. — Gargalhando
como se tivesse contado uma piada muito engraçada, ela se apoia em mim
para se levantar. Ajudo-a, erguendo-me também, e seguro os dois lados da
sua cintura para que não caia.
— Mais bêbada que isso e vai precisar de atendimento médico. E nem
pense em fazer piadinhas sobre médicos bonitos! — aviso, irritado,
antecipando o que o brilho safado em seus olhos quer dizer. — Vamos
embora, vou levar você.
— Não quero ir embora agora — teima. Solta-se de mim e recua um
passo trôpego. — Aquela casa me dá medo.
— Não vamos para a sua casa, Corazón. — Suspiro, listando todos os
tópicos absurdos que deixa escapar para usar contra ela no dia seguinte. —
Olha, não quero ter essa conversa agora, mas hoje meu dia foi um pesadelo.
Não vou tirar os olhos de você, porque vai desaparecer de novo. Vai ficar
comigo.
Os olhos dela arregalam e o sorriso vai quase até as orelhas. Já sei a
que conclusão acaba de chegar.
— Preciso avisar a Raissa que vamos dormir juntos! É rápido… —
Vencido, concordo sem corrigir a frase ambígua. Ela vai, toda desajeitada,
rumo a um dos toilettes femininos.
Foi mais fácil do que eu esperava, mas não me surpreende. Se tem
uma coisa que eu aprendi, foi que Serena toma decisões rápidas e lida bem
com elas. Enquanto espero, envio uma mensagem para Roman avisando que
estamos indo.
Porém, é como dizem, nunca devemos comemorar antes da hora.
Cinco minutos depois, vejo-me empurrando pessoas para chegar até uma
Serena sorridente e desavergonhada no auge de uma conversa cheia de
proximidade com um rapaz cujo rosto fico cego demais para descrever.
— Serena — chamo, colocando a mão em sua cintura e puxando o
corpo para mais perto. Sem hesitar, ela aproveita a oportunidade para se
equilibrar, entrelaçando nossos braços. — Algum problema?
— Nenhum! — responde com um grito que se sobressai à música,
rindo com ares travessos. — Estou muito bem. Pode voltar para sua mesa. —
Não me movo, contrariado e fervendo com sua audácia. Revirando seus
grandes e belíssimos olhos nebulosos, ela movimenta a ponta dos dedos na
direção contrária. — Passa, Vladimir.
Oi?
Ela não está me mandando passear como um cachorro, está?
— E você, quem é? — pergunta o pedaço de merda com um tom de
superioridade que infla o homem egocêntrico que habita em mim, mas me
recuso a encarar o sujeito.
Não vale a minha atenção.
— Lord Vlad é meu amigo — responde Serena colocando ênfase na
última palavra. — Meu amigão. Esse moço gentil estava se oferecendo para
me levar para casa.
Filha de uma…
— Eu vou levar você embora. — Ergo seu queixo com menos
delicadeza.
— Ei… — O sujeito segura meu ombro. Sua sorte é o autocontrole
inumano que me ajuda a não começar uma briga, ou eu já teria acertado um
belíssimo soco bem no meio do seu nariz.
— Sabe quem eu sou? — Ouço minha voz, o tom debochado e
superior, carregado com o desprezo de quem enxerga as pessoas de cima. —
Não, você não sabe. Essa briga aqui não vai valer a pena para você —
aconselho com calma, embora atento à qualquer investida surpresa, ainda
mais com Serena em meus braços. — Ela está comigo, entendeu? E vai
embora comigo. Não me importa quem é você ou seu nome. Foda-se.
Jogo o ombro, desfazendo seu contato. Deixo o homem assimilar
minhas palavras sozinho. Faço o que deveria ter feito assim que reconheci
Serena: a arrasto para fora.
Não de um jeito bom, como seria caso não estivesse tão bêbada.
— Nossa — Serena arqueja. Eu daria qualquer coisa por uma
mordaça, qualquer merda que a impedisse de continuar falando. — Você
nervoso é ainda mais gato!
Irritado… Não, enfurecido é uma palavra melhor. Tenho lutado
comigo mesmo por dias para não me deixar envolver, evitado jogá-la em
cima da primeira mesa e beijá-la em busca de uma satisfação mútua. E, de
repente, completamente do nada, Serena torna a aparecer na minha vida e
despertar outro redemoinho de sentimentos e desejos.
Foda-se, foda-se!
Não sou a porra do presidente aqui, não é pela empresa que estou tão
irritado. Eu me conheço, entendo o que está acontecendo. Posso escolher a
negação, mas agora só penso que preciso de mais.
Ela precisa.
Mais.
Um pouco antes da saída, tomado por um ímpeto desajustado,
conduzo Serena até uma das pilastras que sustenta o segundo andar. As luzes
coloridas da boate oscilam do amarelo ao verde, depois para o vermelho, e
em todo momento ganho novas imagens dessa mulher pintada sob as mais
variadas tonalidades.
Não existe casa, terreno, clube, dívida. Nada, só nós dois, a minha
fúria e a loucura dela.
— Eu realmente deveria beijar você, Corazón — digo —, como
castigo por ser tão negligente. Merda, eu deveria dar a porra do melhor beijo
que você já experimentou na sua vida. — Aperto um pouco mais seus braços
quando ela começa a mordiscar os malditos lábios carmesins com uma
expressão de desejo descarado. Essa mulher é tentadora demais para seu
próprio bem, e a falta de filtros só amplia meu interesse. Jamais imaginei que
existisse inocência no despudor, muito menos que fosse tão provocante. —
Eu deveria encaixar a minha perna entre as suas enquanto dou o que está
implorando, e seria bom, Corazón, seria realmente gostoso. Eu deveria,
porque amanhã, quando você acordasse, as lembranças da sua vitória seriam
apagadas pelo álcool, e você teria que conviver com o fato de ter
experimentado do melhor, sem saber como foi a sensação de verdade.
— Você se dá muito pouco valor, Lord Vlad. — Serena gira os
braços, agarra meus cotovelos e me puxa para dentro das sombras. — Mesmo
sem ter experimentado ainda, tenho certeza de que nunca, em hipótese
alguma, nem em mil anos ou em outras vidas, eu esqueceria como é ser
beijada por você. Sou uma doida, louca, pirada das ideias, mas as coisas que
desejo ficam guardadas no meu coração, não na minha mente. — O timbre
embriagado não é suficiente para camuflar seus sentimentos. Há sinceridade e
lascívia, mas também uma fragilidade oculta por sua máscara de
independência.
Eu sou o monstro desejando a princesa cujos lábios foram
envenenados para me consumir, e ela cheira à destruição.
À minha destruição.
Ela chega mais perto, encosta o corpo no meu e deposita um beijo na
minha bochecha devagar. Escondidos dos olhos de curiosos, impeço que
realize movimentos circulares com os quadris encaixados nos meus, impeço a
porra toda por sua própria segurança.
É como me submeter por livre e espontânea vontade à uma tortura das
mais dolorosas. Todos os meus filamentos egoístas clamam para se unir aos
dela e reclamar o direito de marcar o meu nome em sua vida para sempre.
— Corazón, isso não vai ficar assim — prometo, imobilizando seu
corpo preguiçoso. — Mas você está bêbada, sinto muito.
Bloqueio sua voz, suas palavras, seu corpo, seus protestos. Fecho-me
para as sensações, os odores e, principalmente, para a minha imaginação que
consegue recriar com uma perfeição assombrosa como devem ser seus
gemidos se estivesse nua junto comigo na cama. De mãos dadas, saímos da
boate direto para o estacionamento.
Ainda bem que não bebi quase nada, ou teríamos um verdadeiro
problema. Abro a porta para Serena, que não para de sorrir um segundo,
como se tivesse ganhado um presente. Estou fazendo tudo errado, mas não
consigo parar. Ela sabe, sabe que eventualmente vai acontecer, que já me
conquistou. Minha cabeça não cansa de recriar cenários, de calcular os danos,
de me alertar sobre consequências e futuras intervenções.
Não consigo desligar essa parte de mim. Serena é uma decisão minha,
uma péssima decisão. Um colapso, um dano no sistema.
Guio o carro pelas ruas, seguido de volta para o hotel, mas o silêncio
me sufoca. O medo também, a culpa. Como posso estar planejando tomá-la
quando acabei de praticamente aceitar um matrimônio com outra mulher?
— Talvez eu me case com alguém — solto no meio do caminho,
afogado com a perturbação mental, os dilemas profissionais em conflito com
minhas atitudes.
Veja como sou um cretino e fuja, Corazón.
— É natural, a maioria das pessoas se casa um dia. — No banco do
passageiro, Serena fecha os olhos, prestes a dormir. Suas pernas expostas
brilham com pontos cintilantes de glitter.
Aperto o volante até que os nós dos meus dedos esbranquiçarem. Se
eu e Roman não tivéssemos aparecido naquela boate, ela estaria dormindo no
carro de algum outro homem desconhecido, um porco aproveitador.
Maldição! É muita coisa para encarar ao mesmo tempo.
— Estou dizendo que isso não será um romance — esclareço,
sentindo-me um tanto patético, já que ela nunca me pediu nada além de um
beijo. — Não deve criar expectativas. Estou dando a você uma chance de
voltar enquanto é tempo.
Ela resmunga, aconchegada no banco.
— Não crie expectativas também, Lord Vlad, não quero partir o seu
coração — murmura com a língua enrolada.
— Meu coração é bem forte — brinco sombriamente,
— Sim — sussurra, quase consumida pelo sono. — Eu sou mesmo
bem forte.
Piso no freio por impulso e o carro diminui a velocidade até pararmos
no meio da rua. Serena, com os olhos fechados, talvez não se lembre amanhã,
mas é verdade.
Ela entrou mesmo.
A vida é como um botão, Vladimir.
A frase que repetia com frequência.
Céus.
Por que estou me lembrando disso agora? Por que Serena parece estar
à beira de algo? Por que eu disse para ela não criar expectativas, quando sou
o único que está ganancioso por mais?
Nicolai me fodeu, acabou com tudo, cuspiu no nome da minha
família. Ele me ensinou a ser alguém que conquista aquilo que deseja, que
manipula e ludibria sem se importar com sentimentos. A única emoção que
me guia é a da ambição pelo poder fornecido por números e posses, o mesmo
que classifica pessoas como troféus, e quantas mais a gente acomoda na
estante do ego, mais distantes ficamos da humanidade.
Sou uma pessoa que não sabe perder. Era esse homem que eu queria
manter afastado de Serena, o monstro. Porque no segundo em que eu
admitisse que a desejava, não desistiria até tomar tudo. Cada pedacinho dela.
Eu a quero com tanta vontade que não restará nada no final.
— Desculpe, Corazón, eu sou um mentiroso. — Acaricio sua face
dormente, coloco o cabelo atrás da orelha e passo o dedo polegar sobre os
lábios que me pertencerão em breve. — Você não tem mais volta — digo no
silêncio da noite, mas seu sono tenro já levou para longe a loucura, o sorriso e
a energia.
A METADE DO CAMINHO
***
***
***
NA PRIMEIRA VEZ que alguém apontou uma arma para a minha cabeça, eu
era um rapaz pouco mais jovem que Andrei.
Nicolai havia morrido, o corpo putrefazia muitos metros abaixo da
terra, mas eu continuava escutando sua voz pelos corredores da mansão; em
cada espelho era o seu reflexo que me encarava de volta. As últimas palavras
que me disse antes de morrer supliciavam meu dias e descobri da maneira
mais difícil que assombrações são feitas de lembranças ruins — elas nos
atormentam mais do que demônios saídos do inferno.
O primeiro cobrador apareceu uma semana após o enterro. Minha mãe
havia se trancafiado no quarto e não permitia que nenhum dos filhos entrasse.
Ivan ainda estava na faculdade, enquanto Andrei era praticamente uma
criança e Roman não ficava atrás. Eu estava sozinho com a empresa em
decadência e a descoberta de que o aclamado Nicolai Volkiov mantinha uma
vida dupla, tanto nos negócios como na vida pessoal
Nem podia brigar com ele para descontar a minha raiva, porque meu
pai estava morto.
Lembro-me de sentir medo, lembro-me de implorar.
Foi a primeira vez que abaixei a minha cabeça, e também a última.
Os olhos de Maksim brilham no escuro, lembrando uma pantera
enquanto se camufla na noite com promessas de sangue e morte, mas nada
cintila mais do que a arma em suas mãos, refletindo a iluminação dos faróis.
Há certa beleza na imagem de uma pessoa desesperada, uma forma diferente
de arte, eu diria.
E Maksim é um homem agonizando no mais profundo desespero.
— Então, finalmente nos conhecemos — diz em tom de deboche,
aproveitando-se da vantagem por saber quem eu sou. Os homens ao nosso
redor soltam risadinhas cúmplices.
Analiso a situação e não encontro nenhum cenário em que eu não
consiga aquilo que vim buscar. Nas duas direções, seus soldados aguardam,
balançando barras de ferro e brincando de simular um tiroteio com suas
armas de fogo.
O braço estendido de Maksim continua imóvel, sua mira alinhada
com o centro da minha testa.
— Devo dizer que estou surpreso, não pensei que apareceria tão
rápido — diz diante do meu silêncio. Sua silhueta balança quando ele troca o
peso dos pés.
Ainda não respondo, preciso desestabilizá-lo um pouco mais antes de
mostrar as minhas cartas. Paro a poucos metros de distância, desdenhando
com um vacilar de ombros, e ofereço toda a minha atenção a nossos
expectadores.
Giro sobre os calcanhares sem sair do lugar, dando uma volta
completa e me demorando de costas sem o respeito que as pessoas
geralmente tributam aos grandes líderes. Um simples movimento que grita
como não tenho medo do seu arsenal.
As risadinhas cessam.
— O que foi? — Maksim pergunta um pouco mais alto, começando a
se afetar com o meu descaso. — O gato comeu a sua língua?
É a minha deixa para instaurar o caos.
Atuo um interesse repentino, como se somente agora notasse sua
presença, ou me importasse com ela.
— Sempre me perguntei — comento, desviando do tópico mais
importante e arrastando meus pés um pouco mais, bem devagar para não
despertar nele ou em seus homens o instinto da proteção — por que as
pessoas usam expressões horríveis como essa para sugerirem coisas simples.
Quer dizer, alguma vez algum gato já comeu a língua de alguém para
justificar essa metáfora?
Um rapaz ruivo, cuja face se esconde atrás de um emaranhado de
barba acobreada, inclina sobre o companheiro ao seu lado e murmura:
— Do que ele está falando?
O restante parece ainda mais confuso. Maksim deixa de me encarar
para analisar a dispersão de seus seguidores.
— Qual o seu problema? — grita para mim.
— Respondendo à sua pergunta — explico cinicamente —, gatos não
comem a língua de ninguém, embora eu tenha ouvido histórias de punições
medievais que incluíam arrancar a língua dos traidores para atirar aos felinos
da rua. — Ele franze o cenho e comprime os lábios, preso em minha manobra
de desvirtuar sua sensação de supremacia. — Não soa como uma ideia
inspiradora? Temo que eu tenha nascido no século errado.
Chego três passos mais perto, ninguém esboça a intenção de me parar.
Maksim ganha novas formas, o rosto se torna nítido, revelando um nariz
ligeiramente anguloso e maçãs do rosto magras escondidas debaixo de
inúmeras tatuagens.
Gostaria de saber se o casaco preto com o capuz cheio de plumagens é
o mesmo que usava quando invadiu o apartamento de Serena. Se as luvas
eram a única coisa entre a sua mão e o rosto dela quando desferiu aquele
golpe.
— É melhor parar com essa brincadeira — ameaça, uma cortina de
fumaça sobe a cada palavra. — Eu sei por que está aqui!
— Sabe mesmo? — gargalho genuinamente. Não lembrava o quanto a
sensação de manipular um indivíduo ordinário podia ser aprazível. — Eu
particularmente gosto muito de metáforas. Meu sobrinho tem uma afeição
peculiar com figuras de linguagem, ele é muito literal.
— Sabe o que mais é literal? — indaga entredentes. — Um tiro no
meio da sua cara.
— Não, Maksim, ameaças não são literais. — Encaro o espaço entre
nós. Consegui me aproximar sem ser impedido por ninguém enquanto se
perturbavam com meus devaneios inocentes.
Três passos nos separam. Seus homens despertam do transe causado
pelo nosso espetáculo de interlocução e voltam a empunhar seus instrumentos
— as pistolas e barras em algum momento sucumbiram, pendendo
molemente em suas mãos entretidas.
Qualquer pessoa me chamaria de louco, mas o tempo e sacrifícios
dedicados em nome do empreendimento que Nicolai construiu me ensinaram
que as pessoas se curvam diante do poder somente quando nós mesmos
assumimos a existência dele. Não demonstrar medo, não demonstrar
preocupação, não demonstrar nada, simplesmente, são as características de
quem está acima das ameaças.
Esses homens não têm a coragem dos poderosos para atentar contra a
minha vida. Não quando tenho o seu líder nas minhas mãos. Não quando eu
sou o rei que corta a língua dos traidores para banquetear os gatos pedintes.
— Presumo que a belíssima irmã de Camillo tenha passado o meu
recado — provoca sem se afastar. Respeito a coragem dele. — Você se
enfiou no buraco errado, senhor Volkiov. Nesse distrito, quem manda sou eu.
Você e seu clube não são bem-vindos.
A edificação se ergue no cenário atrás de Maksim, majestosa e
imponente. Uma sombra inacabada de concreto e início dos meus pesadelos.
Eu me arrependeria desse projeto se não tivesse vido por meio dele que
Serena acabara em meus braços. Se Ivan jamais tivesse me sugerido a ideia
de construir um clube familiar em uma área desfavorecida, minha querida
Corazón estaria enfrentando esses problemas sozinha. Ela não teria ninguém
para pedir ajuda além de si mesma.
O clube pode ser importante, mas não é por ele que estou aqui.
— Sim — desdenho, menosprezando-o com um revirar de olhos. —
Esse clube se tornou uma chateação, mas continua sendo um ótimo
investimento, e não pretendo abrir mão dele até que isso se mostre favorável
para a minha empresa. Mas, adivinhe? Estou aqui apenas para devolver a
agressão que a minha… — Procuro a palavra certa, só uma parece adequada:
— Mulher sofreu.
Vários espectadores gargalham, balançando os corpos magros.
Maksim, para não ser considerado fraco, acompanha o grupo, mas eu enxergo
através da sua risada.
Mesmo não se comparando comigo, ele também sabe como medir a
capacidade das pessoas, o nível de destruição que cada um pode causar.
— E o que faz você pensar que conseguiria sequer encostar em mim
antes que um dos meus homens coloque uma bala no meio da sua cabeça? —
murmura, a voz baixa e revoltada.
— A minha expectativa é que você se ofereça de bom grado —
explico igualmente baixo. Com o canto dos olhos, percebo pescoços
esticando-se para escutar nossa conversa. — E que ordene a seus
cachorrinhos raivosos que fiquem calados enquanto quebro a sua cara.
Atordoado com minha sentença, Maksim engatilha a arma, puxando a
mão para trás. Seus olhos injetados de raiva só comprovam a minha teoria de
que esse homem está no limite de um colapso, desesperado para resolver
algum problema qualquer que Camillo Fajardo tenha causado — essa é a
única parte que ainda não consegui desvendar.
Dou um passo adiante, seguido de outro, e mais outro. A mão dele
treme quando encosto a minha cabeça no cano gelado da arma.
— Ouvi dizer que está em busca de Camillo Fajardo — experimento.
À menção desse nome, percebo a garganta de Maksim subir e descer,
engolindo a saliva em seco.
— Se você acha que pode me comprar, fique sabendo que não estou
interessado em um acordo. — Ele força a arma contra a minha pele e eu
perco a paciência.
Agarro a mão que ele usa para envolver o cabo do revólver, aperto
seus dedos para que sinta ainda mais a textura e a tentação de pressionar o
gatilho.
— Se não vai me matar, é melhor abaixar essa porcaria. Não tenho
intenção de firmar qualquer tipo de acordo com você. Meu irmão já deve
estar entrando em contado com alguns dos vários distritos que estão em busca
do seu pescoço, e ouso dizer que ficarão muito felizes quando souberem onde
Camillo está se escondendo, afinal, ele é uma ponte que leva direto até você,
não?
— Que merda você fez? — sussurra. Seu semblante esmorece e
murmúrios se espalham entre os homens irritadiços que nos assistem
atentamente. Maksim repete um pouco mais desesperado: — O que você
fez, porra!?
— Não devia ter ido atrás dela, não devia mesmo. — É minha
resposta.
Meu veredito.
— Vão matá-lo — diz Maksim, colocando as duas mãos na cabeça
lisa. — Se você entregar Camillo…
— Não me importo com o que acontece com Camillo. — Cruzo os
braços, triunfante, e inicio um lento caminhar ao redor da figura estática de
Maksim. — Essa é a única maneira de tirar você do meu caminho.
— Não tenho medo de você — sibila, suas mãos fechadas em punho.
— Pois deveria ter. Eu tenho Serena, tenho Camillo, tenho Luna,
tenho a casa. Você não tem nada, Maksim. — Retiro minhas luvas; sem me
importar em mantê-las comigo, deixo que caiam no chão silenciosamente. —
É questão de dias até que meu clube esteja sendo terminado. É melhor se
acostumar com a ideia.
— Luna? — Maksim olha para trás, Annia ainda nos vigia da janela,
pálida como um fantasma em uma casa mal-assombrada. — Camillo nunca
vai entregar a casa, muito menos a menina.
É verdade, Maksim não faz ideia de que o terreno nunca pertenceu à
Camillo. Ele ainda acredita que tem alguma chance de vitória aqui.
— Não vai ser preciso. — Dobro as mangas da minha jaqueta, um
braço por vez, erguendo o tecido grosso do couro na altura dos cotovelos. —
Sugiro que retire seus capangas daqui o quanto antes, a polícia vai chegar a
qualquer momento para buscar a sobrinha de Serena. — Ele abre a boca para
protestar, mas continuo falando: — Não, eu não denunciei o seu esquema.
Mas acredito que faça parte do protocolo deles revistar a moradia ao
identificarem que a mãe da criança denunciada faz uso de entorpecentes.
Suponho que você tenha os seus contatos para se livrar desse pequeno
inconveniente.
— Isso não vai acontecer! — afronta, erguendo o queixo com um
resquício de dignidade.
Então eu o acerto.
O soco é forte, ecoa na forma de uma corrente elétrica por todo o meu
corpo. Junto com o barulho do meu punho chocando-se com o maxilar dele,
ressoa a junção de todas as armas sendo empunhadas e preparadas para a
minha aniquilação.
Maksim cambaleia para trás, mas não cai.
Eu o quero no chão, exatamente como Serena ficou.
— Mande que recuem — ordeno, abrindo e fechando meus dedos
dormentes por efeito do golpe. — Agora.
Relutante, Maksim limpa a boca com o dorso da mão enluvada,
deixando um rastro de sangue em toda a extensão da bochecha esquerda.
Seus comparsas diminuem o círculo, todos falando ao mesmo tempo, alguns
em outros idiomas.
— Vai entregar Camillo? — pergunta, ainda esperançoso de que eu
esteja disposto a negociar.
— Não trabalho assim, Maksim. Não vim atrás de um acordo,
entende? Manterei seus inimigos por perto enquanto você continuar me
incomodando. Eles provavelmente já sabem agora que Camillo é um caminho
até você, mas o único com o paradeiro dele somos eu e meus irmãos.
Omito a informação de que não temos uma localização exata.
Sabemos que ele seguiu para Madrid quando saiu do país, e Serena levantou
a hipótese certa vez que ele poderia ter traçado seu destino até Morella.
Somando isso com os endereços que levantamos sobre as antigas moradias de
Serena quando estávamos em busca de seu paradeiro real, é praticamente
certo que algum deles nos leve até Camillo.
Mas deduzir e mentir são as coisas que eu faço de melhor.
A mão sinuosa de Maksim sobe, realizando um giro no ar com o dedo
indicador apontado para o alto. Alguns homens pestanejam, mas em poucos
segundos voltam a tomar distância.
— Annia… — Seu rosto se contorce. — Você sabe que ela vai morrer
na prisão? — A mudança de assunto só não é mais prazerosa por causa do
teor direto de suas palavras. Ouvir a certeza em voz alta é muito diferente do
que supor a possibilidade em silêncio. — É claro que você sabe, como sabe
que esse sangue vai estar nas suas mãos também.
Pela primeira vez, perco as palavras. Eu posso lidar com isso, penso.
— Conto com você para garantir que não encontrem a sua
mercadoria. Também não tenho interesse em ter o nome da minha empresa
vinculado com um terreno contaminado com a sua merda — declaro
enquanto ele termina de se recompor.
— Você é um demônio, igual ao seu pai.
Estreito os olhos, controlando minhas emoções para não entregar que
ele cutucou um ponto sensível. Reprimo a vontade de indagar o que, diabos,
ele sabe sobre Nicolai. Ao invés disso, digo:
— É o que dizem, mas faz bem para o meu ego pensar que sou ainda
pior.
A porta de um carro bate, o semblante de Maksim demonstra sua
preocupação. O primeiro veículo liga, piscando os faróis, até evadir pela noite
hostil de Moscou. Desmoralizar Maksim é apenas um bônus no meu plano
perfeito.
— Só para você saber, não encostei um dedo nela.
— Nesse caso, tenho certeza de que você vai garantir que a minha
retaliação alcance a pessoa certa — declaro.
Ele testa um sorriso danoso, a última coisa que eu vejo antes de
acertar seu rosto mais uma vez, agora mais forte, mais definitivo. A exaustão
começa a transcorrer pelas minhas veias, não um cansaço pelo dia de hoje,
mas pela vida. Exausto de ser assim, e de gostar. Porque, quando minha mão
estrala no rosto de Maksim pela terceira vez — seu corpo cai sobre um joelho
pateticamente —, eu só consigo apreciar.
— Garanta que a criança seja levada — determino. — O que
acontecer com a mulher não é da minha conta. E nunca mais, nunca mais, use
Serena para me atingir.
Ele ri enquanto seus soldados nos encaram com desprezo. Um líder de
joelhos, exibindo seus dentes vermelhos com o sangue acumulado… Eu diria
que também existe beleza nessa cena. Alguém deveria eternizá-la em um
quadro.
— Isso ainda não acabou, presidente.
— Conto com isso — respondo, virando de costas na direção do meu
carro.
***
***
***
***
***
***
— QUE TIPO DE sexo mutante vocês dois fizeram para voltarem com uma
filha desse tamanho? — Roman pergunta assim que ultrapassamos a soleira
da mansão.
— O tipo “guarde seus comentários inapropriados para você” —
responde Vladimir com Luna acomodada em seus braços fortes e protetores;
não me passa despercebido a falta de negativa. — Onde estão todos?
Roman balança os ombros despreocupadamente.
— Andrei e Ivan continuam na empresa, Lara também teve que ir,
porque aquilo sem você beira o apocalipse e, sem ela, se tornaria uma
catástrofe completa. — Ele está sentado no chão diante da mesa de centro
localizada no meio do salão de entrada. Há vários papéis quadriculados com
desenhos arquitetônicos esparramados ao seu redor e dois computadores
ligados, um sobre o sofá e outro ao seu lado, em cima do tapete branco e
felpudo. A camisa desarrumada deixa à mostra aquela tatuagem com o lobo
em fúria, e a gravata desfeita esparrama em seus ombros. — Eu já tive minha
cota de terno para uma vida inteira ontem, por isso estou trabalhando em
casa.
— Então você trabalha de verdade — comento por impulso. O
pensamento escorrega sem que eu perceba, mas Roman gargalha alto ao fim
da minha constatação.
— Claro que eu trabalho, bebê. — Ele pisca um olho galante. — Ou
você acha que essa empresa teria tanto sucesso sem o melhor e mais gostoso
engenheiro de Moscou?
— Da Rússia — Vladimir corrige; há certo orgulho e prepotência em
seu tom. — Você é o melhor do país.
Luna, observando a falação, solta uma sequência de resmungos sérios
como se quisesse participar da conversa. Os dois irmãos olham um para o
outro e sorriem. Vladimir parece sempre direcionar uma atenção curiosa para
minha sobrinha, quase contemplativa. Durante todo o caminho, notei seu
olhar preocupado desviando para o espelho retrovisor, zelando por Luna na
cadeirinha que custou uma pequena fortuna já que Vladimir não possui
nenhum discernimento sobre limites de preço.
— Ela disse que me acha lindo, ouviram? A filha mutante de vocês
sabe das coisas. — Roman se levanta, fechando os botões inferiores da roupa.
Os braços, expostos por causa das mangas dobradas na altura dos cotovelos,
são marcados por músculos e desenhos sobrepostos difíceis de identificar. —
Qual o seu nome, gracinha? — Ele acaricia a bochecha de Luna com a ponta
do indicador, mas não recebe nenhuma reação além dos olhões negros da
pequena perscrutando seu rosto.
— Ela se chama Luna — Vladimir responde enquanto confere
qualquer coisa nos materiais de trabalho do irmão.
— É minha sobrinha — explico, ao perceber que Vladimir não vai
mesmo se prontificar a tanto. — Filha do Camillo.
— Não que isso signifique muito — Vladimir murmura, ríspido.
Não contesto, pois compartilho da mesma opinião. Camillo nunca
conseguiu se cuidar ou me dar o apoio de que precisava. Ainda não entendo
as circunstâncias em que Luna foi gerada, mas tenho certeza de que, se ele
realmente se importasse com a segurança dela, não teria deixado a filha
naquelas condições para desaparecer no mundo.
— Sinto muito que as coisas tenham que ser assim, Serena — Roman
diz. Acho que é a primeira vez utilizando meu nome ao invés de algum
apelido esperto. — Estamos em dívida com você.
— Ela está melhor agora — afirmo com um sorriso amarelo. Suspeito
que não esteja se referindo somente à situação com Luna, mas sim ao meu
relacionamento estranho com seu irmão. Chego mais perto de Vladimir, que
tenta se inclinar o máximo possível para analisar o material de trabalho do
irmão, ao mesmo tempo em que se equilibra com a bebezinha repuxando a
gola da sua camisa como se fosse muito divertida.
— O que são essas coisas? — Vladimir indaga, as expressões faciais
transmutando de brandas para preocupadas.
A boca de Roman se retorce em uma careta ao focar na bagunça
esparramada por toda a sala. Desde a minha chegada, pude perceber que os
únicos que realmente usam os escritórios residenciais para trabalhar são
Vladimir e Ivan — o segundo com menor frequência, já que dedica noventa e
nove por cento do seu tempo livre para agradar a esposa ou brincar com o
filho.
— Bem — diz, sua mão correndo para o cabelo acastanhado, os fios
muitos tons mais claros que os de Vladimir ou Andrei —, eu estava curioso
sobre o que nossa mãe tanto procura naquele almoxarifado e resolvi me
aventurar pelas velharias do coroa. Encontrei essas plantas escondidas em um
baú mofado.
— São da empresa? — Vladimir endireita o corpo, a linha de sua
mandíbula muito comprimida. Qualquer coisa que remeta à empresa faz com
que assuma uma postura rígida.
— São horríveis, uma completa porcaria. Quem desenvolveu essas
plantas deveria estar na cadeia. Estão timbradas com o logotipo da
Corporação Volkiov, mas eu nunca me deparei com um projeto tão ruim.
Acredito que sejam de oito ou nove anos atrás, quando nosso pai ainda lidava
com tudo sozinho. — Ele pega um bloco e mostra para Vladimir; eu me vejo
deslocada no meio do assunto. — Olha essa lista de materiais, uma
construção assim seria o mesmo que assassinato em massa.
Uma sombra rasga o rosto de Vladimir a tal ponto que até Roman fica
momentaneamente sem fala. Seus olhos cintilam como se tivessem o poder
de incendiar o documento. Ele se perde em um pensamento desesperador;
reconheço o tormento, sempre identifico o poço de escuridão porque já estive
lá dentro.
Luna resmunga, completamente alheia ao homem severo que a
sustenta com braços fortes e destemidos. Ela boceja com sua boca minúscula,
a cabeça pende para frente e pousa no ombro de Vladimir.
Tão rápido quanto veio, a reação dele escorre para longe e Vladimir
retoma o controle das próprias expressões, escondendo seja lá qual tipo de
gatilho o fez recorrer ao monstro.
— Era isso o que nossa mãe estava procurando? — pergunta, a palma
da mão acariciando as costas de Luna e suas iniciativas de carinho com ela
são como punhos fechados ao redor da minha saúde emocional.
Quero tanto que ele me escolha. É um sentimento de dependência
grande e profundo demais para ser negado. Burra e burra! Já tinha ouvido
falar que o amor deixa as pessoas um pouco idiotas, mas eu devo estar
batendo algum tipo de recorde. Se existe uma marca histórica para ser
humano mais trouxa no guinness book, então conquistei o primeiro lugar há
tempos.
— Não, não. Quando perguntei, ela disse que queria encontrar uma
fotografia velha e que eu cuidasse da minha vida, arrumasse filhos e o resto
vocês já sabem.
— O que pretende encontrar revirando essas coisas?
— Na verdade, não sei bem. — Roman volta para perto da mesa,
sentando-se no chão, no mesmo lugar em que estava acomodado antes de
chegarmos. Ele pousa o olhar nos itens listados nas folhas em sua mão e um
vinco se forma em sua testa enquanto a expressão indignada aprofunda nos
traços masculinos e incisivos. — Tenho a sensação de já ter visto esse projeto
em algum lugar e acho que acabei ficando um pouco obcecado.
— Avise-me se descobrir alguma coisa — Vladimir solicita, como se
houvesse realmente algo para ser encontrado.
Ele estica a mão e segura a minha, começa a nos guiar para os fundos
da mansão, onde, suponho, pretenda encontrar sua mãe para apresentar Luna.
Porém, antes que tenhamos a chance de ultrapassar o arco de madeira do
corredor principal, a voz de Roman se materializa novamente, fazendo
Vladimir cessar os passos.
— Você conferiu o e-mail que mencionei?
Do que eles estão falando?
Os dois irmãos se entreolham, conversando em silêncio e me
excluindo totalmente de qualquer que seja o assunto. Roman e Vladimir são
muito diferentes fisicamente, apesar de ambos serem fortes e exalarem
sensualidade, mas os dois estão envoltos por uma atmosfera perigosa e cheia
de mistérios.
Se Vladimir se intitula um monstro, o próprio demônio sedento pelo
poder absoluto, imagino que tipo de criatura seria Roman e quais são os seus
desejos.
— Sim. — É tudo o que Vladimir responde, e essa única palavra mais
se parece com um rosnado.
Sem se intimidar, Roman estampa um sorriso cínico e abusado no
rosto; seu canino esquerdo aponta sobre o lábio e os olhos brilham com uma
diversão sem prestígio.
Misericórdia, é muito sex appeal reunido em um lugar só.
— Interessante — ironiza, espreguiçando os braços para trás da
cabeça —, porque ontem eu me lembro de ter ouvido um rumor na empresa
sobre você passar a semana fora. Achei que fosse acabar com essa merda. A
gente não precisa do dinheiro deles de qualquer forma.
Finjo não prestar atenção, mas fica evidente que estão falando sobre o
compromisso de Vladimir com sua pretendente. Imaginar a cena de ele se
casando com outra mulher faz minha garganta arder. Mesmo lutando para ser
forte, o amor germinando no meu coração já criou raízes profundas demais.
Eu gostaria de entender por que o destino foi tão cruel conosco se
nunca existiu um futuro para nós.
Os dedos de Vladimir roçam na minha bochecha e sobressalto ao ser
retirada dos pensamentos de pesar. É uma sensação mágica, o simples toque
do homem que amo assopra o medo do amanhã para longe, e aquele órgão
idiota e vermelho no meio do meu peito começa a pulsar mais rápido.
— Eu vou acomodar Serena e Luna agora. — A iluminação diurna
filtrada pelas cortinas da mansão transforma o azul oceânico dos olhos de
Vladimir em uma turquesa fosca; e, enquanto conversa com o irmão, ele não
desfaz nosso contato visual um segundo sequer, como se as palavras fossem
dedicadas apenas para mim e mais ninguém. — Andrei me adiantou algumas
coisas, mas também fui pego de surpresa com essa viagem. Eu vou resolver
tudo o mais rápido possível.
— O senhor quem manda, presidente. — Roman não se preocupa em
disfarçar o descontentamento.
Vladimir desfaz o toque ao ter seu cabelo puxado por Luna. Arqueia
uma sobrancelha para a menina, como se ela tivesse habilidade para
interpretar expressões faciais, e se coloca a andar corredor adentro,
sussurrando alguma advertência bem-humorada sobre a importância de
manter sua aparência sempre alinhada.
— Serena — Roman diz com o volume da voz várias escalas mais
baixa. Meus pés se prendem ao chão enquanto assisto Vladimir desaparecer
por uma curva. — Você está bem?
— Por que a pergunta? — Cruzo os braços e encosto na madeira que
ornamenta a passagem; minhas articulações doem pela viagem e por toda a
experiência vivida com Vladimir.
— Meu irmão sabe como ser um canalha quando quer, é coisa de
família. — Ele puxa um dos computadores para mais perto e se curva para
voltar ao trabalho, enquanto continuo parada administrando sua tentativa de
consolo. — Estou tentando acreditar que ele não vai ferrar com tudo, bebê.
Vladimir leva a empresa realmente a sério, aquela merda é a vida dele e você
caiu de paraquedas bem no meio do campo minado.
— Nosso relacionamento tem prazo de validade — digo com um
humor forçado e áspero. Roman tem se mostrado um bom ouvinte durante a
minha estadia, talvez por sermos parecidos em nossa propensão de falar o que
pensamos. — E já estou acostumada a me ferrar sozinha.
— Não é da minha conta o relacionamento bizarro de vocês dois,
sabe? Eu não me envolvo com ninguém justamente por causa disso, o drama
é uma merda. Mas se tem uma coisa em que eu e Vladimir somos exatamente
iguais, é que a gente não sabe a hora certa de recuar.
— Agradeço a sua preocupação, mas sei me cuidar.
Um riso nasalado deixa as narinas de Roman, seus ombros
estremecem e a cabeça gira da esquerda para direita em uma negação abatida.
— Não é bem com você que estou preocupado…
Passos reverberam pelo corredor, o som de um sapato pesado assalta
o chão, sobrepujando a centelha de gentileza que Roman estava tentando
oferecer. Olhamos a tempo de ver sua mãe em polvorosa com Luna
desajeitada em seus braços cobertos por joias. O cabelo solto cobre seus
ombros como um cobertor prateado e o macacão esvoaçante e esmeraldino
comprova minhas suspeitas de que Tatiana está sempre vestida para arrasar.
— Veja isso! — Tatiana grita com a voz estridente. Luna sobressalta
e se desmancha em uma gargalhada sonora que atravessa meu coração com
uma dor muito maior do que qualquer outra que já senti na vida. É a primeira
vez que escuto o som da sua risada. — É um bebê! Uma criança, Roman.
Não lembro quando foi a última vez que tive uma dessa em meus braços.
Ela passa por mim e corre em direção ao filho, balançando Luna de
um lado para o outro, exibindo a pequena como se fosse um troféu.
No meio dessas pessoas amáveis e barulhentas, se torna mais evidente
a precariedade da minha vida. Tenho pouco para oferecer a essa criança,
menos do que eu gostaria, menos do que ela merece, e não apenas em termos
financeiros. Duvido que Vladimir nos abandone sem qualquer ajuda, ele é
detalhista, controlador e metódico demais para fazer uma coisa dessas; além
do terreno, que deve me render uma boa quantia. Mas… e o resto?
O conforto dessa família talvez tenha afetado o meu cérebro, que já
não funciona muito bem. Talvez a segurança de Vladimir em suas decisões
tenha impedido que eu pensasse com clareza a respeito da minha capacidade
de assumir responsabilidades pela vida de outro ser humano.
Adotar uma criança, assumir Luna como minha filha, significa que a
minha vida vai estar ligada à dela para sempre. Minha vida, a mesma que
tentei eliminar no passado após a morte dos meus pais.
É seguro?
Eu sou a melhor escolha para cuidar dela?
E se algum dia eu falhar? E se eu falhar com ela? E se eu desistir
outra vez?
— Corazón. — A palma de Vladimir encontra minhas costas e sua
chegada repentina me assusta, fazendo meu corpo recuar por impulso; essa
reação involuntária não passa despercebida por seus olhos astutos. — O que
aconteceu?
— Eu só… — Estava quase tendo o princípio de um ataque de
ansiedade. — Acho que preciso descansar um pouco.
Esfrego as mãos uma na outra. Elas deslizam com o suor frio
acumulado e minha respiração condensa nos pulmões, preenchendo-me com
a certeza de que preciso mesmo de uma consulta se quero manter o
equilíbrio. Já adiei o inevitável por tempo demais e Vladimir não é
exatamente o homem ideal para minha sanidade.
Aliás, duvido que seja ideal para a sanidade de qualquer mulher,
misericórdia!
— Exatamente, precisamos comprar móveis novos — Tatiana
conversa com Roman, que parece colocar ideias na cabeça da mãe. — E
roupas, vestidinhos com muitos babados, um berço grande e espaçoso.
— Quem sabe uma conta bancária para pouparmos dinheiro para os
estudos? — Roman sugere e, apesar do semblante de quem conta uma piada,
Tatiana continua concordando.
Agora entendo o receio de Lara em contar sobre suas suspeitas de
gravidez.
— É uma boa ideia — sussurra Vladimir, empurrando minha
ansiedade um pouquinho mais para a borda de uma montanha muito alta que
engana com ecos de esperanças traiçoeiras.
Fecho os olhos para que os últimos resquícios do medo se dissipem da
minha cabeça. Assuma o controle, Serena, sua idiota. Permanecer ao lado de
Vladimir, mesmo com tudo me dizendo o contrário — inclusive ele mesmo
—, foi a minha escolha final.
A porta da mansão se abre, revelando a chegada dos membros
remanescentes da família. Lara e Ivan, ambos vestidos com roupas formais,
entram abraçados e congelam no lugar como se a cena diante dos seus olhos
não fosse condizente com qualquer dedução — e não é mesmo. O pequeno
Iago, cujo cabelo se encontra impossivelmente comprido e bagunçado para o
alto, franze as sobrancelhas louras, fazendo jus à confusão dos pais.
— Lara, querida! — cantarola a matriarca, avançando sobre a nora e
empurrando Luna em sua direção. — Segure, segure — repete. Lara a segura
com receio e as bochechas da minha pequena adquirem uma coloração
avermelhada com todo o movimento. — Veja, Ivan, como a sua mulher fica
linda segurando um bebê!
É automático: Lara olha na minha direção e sorri. Nem passa pela sua
cabeça a forma como a minha língua contorce para espalhar seu segredo aos
quatro ventos, pobrezinha.
A família se amontoa sobre Luna, cada um com uma ideia diferente
sobre coisas que precisam ser providenciadas. Iago se enfia no meio do
aglomerado e acaba sentado no sofá com Luna em seus braços.
Eles conversam sobre tudo ao mesmo tempo e, depois de Ivan
explicar que a empresa se tornou um verdadeiro pandemônio, Vladimir relata
um pouco sobre as condições do abrigo — Lara demonstra um interesse
particular sobre isso, perguntando detalhes sobre funcionários e
documentações.
Enquanto os assisto, uma movimentação no degrau mais baixo da
escada chama a minha atenção.
Andrei, com as mãos escondidas nos bolsos da calça branca, assiste
ao desenrolar da cena. Não se aproxima como o resto da família, apenas fica
parado, a expressão indecifrável e um pouco sombria, talvez
assustadoramente triste. Como se fosse atraído pelo peso da minha
curiosidade, gira o pescoço e nossos olhares se encontram, mas o irmão mais
novo de Vladimir não se atém. Ele desvia o rosto e sobe as escadas em
silêncio.
***
***
"Ainda bem que tenho dez dedos em perfeito estado de funcionamento e estou
fazendo bom uso deles. Mas obrigada pela intenção, Lord Vlad."
Fico tentada a bombardear Vladimir com um monte de perguntas
sobre o que está fazendo nesse momento, mas na minha mente eu o imagino
em uma sala de reuniões tediosa, escrevendo rapidamente essas mensagens
em segredo com aquele sorriso sincero e raro que nem se compara com o da
revista eletrônica.
Talvez eu esteja me enganando com a esperança de que a contradição
de Vladimir e sua falta de confiança em nós dois sejam, na verdade,
estratégias para me proteger do suposto monstro. Para me afastar. Mas fingir
que meu amor não existe só porque Vladimir está desempenhando seu
trabalho seria imaturo até mesmo para alguém como eu. Ele não deveria
precisar escolher entre mim e a empresa.
O celular volta a acusar um novo recado.
Safado!
Antes que eu tenha tempo para enviar uma proposta envolvendo fotos
íntimas, o universo interfere — ainda bem, porque se eu não tenho limites,
pelo menos o meu anjo da guarda tem um pouco — e o som de um galho
quebrando nas imediações tira minha atenção de Vladimir e nossos
complexos, levando meus olhos a encontrarem um Andrei claramente
constrangido cortando caminho pela lateral da mansão para entrar pelos
fundos.
Ele não tem tempo para disfarçar ou fingir que não me viu, a distância
é curta demais. Olhando para os lados, Andrei se coloca a caminhar na minha
direção, seu cabelo ondulando junto com o vento; a camisa amarrotada é só
um lembrete de que continua não dormindo em casa.
— Não queria assustar você — diz, inquieto, sondando Luna no chão
em seu tesouro de musiquinhas irritantes.
— Não me assustei, só estava distraída — explico, mostrando o
celular.
Andrei, apesar de ser o mais jovem, é tão alto quanto Vladimir e seu
rosto tem os mesmos traços robustos do irmão mais velho. Exceto pela cor
dos olhos, ele poderia muito bem ser uma versão mais jovem do presidente.
É bonito, extremamente gracioso com sua voz rouca, mas o ponto
marcante em Andrei é o sorriso que parece abraçar o mundo inteiro.
Ultimamente, contudo, só o vejo sorrindo de verdade quando está com Lara.
Os dois agem como se fossem irmão, melhores amigos. É uma relação de
confiança diferente e bonita.
Procuro qualquer coisa esperta para dizer a fim de tornar a conversa
mais leve, mas Andrei se agacha perto de Luna, os lábios comprimidos e
sérios.
— Eu posso… eu posso segurar ela?
Há tanta melancolia no tom da sua voz que que meu coração reclama.
Devagar, aquiesço e Andrei se inclina sobre a pequena, segurando-a nos
braços como se tivesse nascido para fazer isso a vida toda. Assim que a tem
acomodada sobre o antebraço, pousa a mão aberta nas costas da minha
sobrinha.
Algo acontece. Luna busca a ponta do nariz de Andrei, apertando de
leve como costuma fazer sempre quando alguém a carrega, e a expressão dele
desmorona. Os lábios tremem e ele vira de costas, mas não rápido o
suficiente para esconder a lágrima que escapa de um de seus olhos.
— Desculpe — sussurra, seus ombros tensos. Não entendo muito bem
pelo que está se desculpando, mas, se antes eu já achava suas atitudes
estranhas, agora estou repensando seriamente em que tipo de confusão está
enfiado para se sentir tão triste. — Nunca tinha segurado uma assim.
Lembro-me de já ter escutado a família conversando sobre o sonho
que Andrei cultiva de construir uma família grande. Ele seria um pai
excelente, não tenho dúvidas. Porém, como a intrusa aqui sou eu, evitei me
aprofundar no assunto. Ele gosta de crianças, o que para mim já é estranheza
o suficiente.
Não que isso seja um defeito, claro. Só não entendo como pode querer
uma coleção delas. Luna já tem tirado o meu sono, imagina duas Lunas?
— Está se saindo melhor do que eu — tranquilizo-o com a verdade.
— Acho que nunca vou me acostumar.
Andrei me encara. O contorno dos seus olhos é grande, expressivo e
marcante, e está agora tingido com uma quase imperceptível tonalidade
rosácea. É incômodo ser examinada por ele, como se fosse capaz de enxergar
coisas que as outras pessoas não conseguem. O olhar de um advogado.
Do melhor advogado do país, como diria Vladimir.
— Annia não vai sair da prisão — diz de repente, começando a
caminhar com Luna em um semicírculo. Se eu pudesse escolher, não
teríamos essa conversa agora, pois a simples menção às minhas
responsabilidades com Luna fazem minhas mãos perderem o calor. — Pelo
menos não pelos próximos três ou quatro anos. É você quem ela vai chamar
de mãe.
Desconfortável com seu tom definitivo e direto, volto a encarar o
celular em minhas mãos, para a mensagem íntima de Vladimir.
Mãe.
Sim, já me conformei com essa certeza desde o dia em que a
buscamos no abrigo.
— Suponho que sim. — Tento parecer descontraída, mas está mais do
que provado que Andrei tem alguma ressalva com relação à minha presença.
Então minhas opções são: fingir demência ou ir direto ao ponto. — Você não
parece gostar muito dessa história toda. Eu entendo se achar que nossa
estadia aqui seja um incômodo…
Suas duas sobrancelhas juntam sobre os olhos, incompreensão
estampada em sua face enquanto tenta processar a pergunta.
— Foi isso o que pareceu? Não, não mesmo. É só… — Atrapalhado,
Andrei se aproxima e se senta ao meu lado, sustentando Luna em seu colo.
As mãozinhas gordinhas logo encontram entretenimento nos botões da
camisa. — Eu sou advogado, ser um pouco intrometido faz parte de quem eu
sou. Com você e sua sobrinha envolvidas nessa confusão, ainda não consegui
enxergar um cenário que seja benéfico para vocês duas. — Andrei acaricia os
cabelos lisinhos, finos e muito pretos de Luna. — Porque confia tanto nele?
Vocês se conhecem há tão pouco tempo.
Porque eu sou louca?
— Essa é uma boa pergunta. A genética de vocês facilita bastante,
claro — brinco. Inclino a cabeça para trás e explico da maneira mais sem
sentido possível, afinal de contas, nada em nós dois tem qualquer coerência.
— Os defeitos dele são muito atraentes.
— Os defeitos? — Andrei gargalha alto. Meu corpo relaxa com o
clima entre nós mais brando e ele vira de lado para me encarar.
— Vamos, não me olha com essa cara como se quisesse me internar
— pestanejo, acompanhando sua risada. — Seu irmão tem um monte de
defeitos: ele é mandão, controlador, exagerado ao extremo, um pouco
dramático, possessivo, mentiroso, manipulador, egocêntrico… Céus, o ego
dele é gigante! Eu devia correr para longe e fingir que nunca nem vi esse
projeto ambulante de arrogância? Sim, claro, com certeza. Mas, e depois? —
sussurro a última parte.
E depois?
— Como assim? — pergunta, ecoando meu pensamento.
— O gosto da desistência é mais amargo do que o da derrota —
explico, insolente e com o queixo erguido. — E dentre essas duas
possibilidades, há uma com a qual não consigo lidar.
Uma que eu não sei controlar sozinha.
Desistir.
Agora o sorriso dele cresce, verdadeiro e fraternal. Andrei empertiga
o corpo, assumindo uma postura mais formal, mas sem cortar o enlevo da
conversa.
— Vejo que sabe se cuidar — diz, cúmplice. Andrei conversa com
Luna, entregando um avião de borracha que berra quando a gente aperta.
Cruzes. — Na verdade, estou surpreso. Não imaginei que existisse alguém
que conseguisse lidar com Vladimir.
— Lidar com o seu irmão? Deus me livre, seria meu sonho. Na maior
parte do tempo a gente só resolve as coisas na base do… Não importa.
Vladimir está lá, eu estou aqui. Não há nada que possamos fazer.
Não queria parecer dependente, não queria o olhar de pena, porque eu
odeio esse olhar, mas Andrei é educado demais para não demonstrar empatia.
Esse menino pode ser bem perigoso para corações ingênuos se quiser, sua
sagacidade e sofisticação o transformam em uma armadilha, porque, no
fundo, vai sempre acabar se aproximando e roubando nossos segredos sem
que a gente perceba.
— Me empresta seu celular? — Pede. Entrego-o, intrigada com
qualquer que seja sua intenção, e Andrei digita alguma coisa antes de se
arrastar alguns centímetros mais para perto. — O que está fazendo?
— Lembra aquilo que eu falei sobre ser advogado? A gente
desenvolve uma certa habilidade para saber o que mais afeta as pessoas. —
Andrei ergue o aparelho, inclina para o lado, encostando o ombro no meu. O
som do clique vem antes que eu tenha tempo para desviar meus olhos do seu
rosto.
— E o que afeta o poderoso chefão? — desdenho, brincando com
uma mecha do meu cabelo, que está todo bagunçado por causa do vento.
Seus dedos ágeis voltam a passear pela tela, fazendo com que Luna
fique muito animada com a possibilidade de atacar mais uma coisa que faz
barulho, mas pego-o antes que a pequena cause algum estrago que eu não
tenha condições de pagar. Confirmo minhas suspeitas de que Vladimir acaba
de receber uma mensagem um tanto inusitada.
— Isso não é obvio? Vocês duas. — Muito seguro do que está falando
e fazendo, Andrei retira seu celular do bolso e espera, espera e espera. Cerca
de vinte segundos depois, ele começa a tocar e vibrar com o nome de
Vladimir destacado no visor. — Está vendo? Previsível.
A sensação é boa, não vou negar, como uma massagem na autoestima
e um leve sabor de vingança. O celular para e recomeça. Andrei fica rindo o
tempo todo, a hesitação que tinha de se aproximar finalmente vencida.
Eles nunca percebem o quanto eu os olho. O quanto eu
os enxergo. Seria bom ter uma família assim. Seria bom para a minha
Luazinha ter uma família assim.
Ela foi salva por eles daquela vida de misérias.
A gente não atende o telefone.
***
***
Sou levado para os armazéns nos fundos da minha casa. O lugar está
cheio, mais que o normal, com montes de barris e caixas de madeira. Há
poucas pessoas. Doze. Não… onze. Onde foram parar os outros?
Maksim dá ordens para que me deixem em um cômodo pequeno,
fechado e claustrofóbico. Dez minutos se passam. Depois mais dez. Eu os
escuto conversando do outro lado, mas não entendo as palavras.
O quarto começa a rodar, balançar, como um navio em alto mar. Não
é a primeira vez que acabo preso aqui dentro; houve algumas situações em
que desejei, inclusive, nunca sair.
A porta se escancara, o metal choca contra a parede e o som estridente
atravessa a minha cabeça como uma perfuração. Cada pequeno ruído parece
se amplificar em largas escalas. Maksim entra acompanhado de dois de seus
homens, eles possuem armas em punhos e uma expressão de piedade nos
rostos. São meus amigos, hermanos.
— Eu deveria matar você. — Maksim coloca as duas mãos dentro dos
bolsos; à meia-luz, suas tatuagens parecem manchas incoerentes de tinta
escura. — Madrid, Morella, Roma, Florença. Férias invejáveis, de fato. —
Ele balança a cabeça, passa as mãos nos cabelos. Faz um sinal para que os
homens nos deixem sozinhos.
— Pensei que se encontrasse uma maneira de provar os crimes de
Nicolai Volkiov, nós poderíamos ir embora. Em Morella, visitei lugares,
casas. As pessoas lá são menos extremistas… — justifico desesperadamente,
sentindo-me muito menor e incompetente ao expor meu completo fracasso.
A expressão de ódio esmorece.
— Você sempre foi um sonhador, Camillo. Alguém como eu só
consegue sair dessa vida de uma maneira: no caixão. Está usando de novo?
— pergunta sentando-se em uma cadeira de frente para mim. Não respondo, é
uma questão retórica. — Só vai sair quando estiver limpo dessa merda.
Não fode.
— Me voy a morir. — Desespero-me. — Não dá para parar assim. Se
me trancar aqui dentro, eu vou morrer!
— Você vai sair disso — determina, retirando uma seringa de dentro
do bolso, a agulha ainda escondida pela capa protetora. É uma dose pequena,
mas, ainda assim, eu a desejo como nunca desejei mais nada na vida. —
Devagar. Vai ficar aqui dentro enquanto eu resolvo a bagunça que você fez.
Amanhã o senhor Kokorin tem uma festinha com Vladimir. Ele pediu para
que continuássemos incitando a vizinhança contra ele. Mas agora os planos
são outros.
— Como assim? — indago, toda essa sua passividade me deixa alerta.
— Serena. Você precisa trazê-la para o nosso lado, Camillo. Ou tudo
terá sido em vão. Você precisa convencê-la a nos ajudar. O senhor Kokorin
disse que se tivéssemos as plantas do prédio, seria tudo muito mais rápido.
Ele está prestes a pedir a neta do velho em casamento e, depois que
provarmos o lixo que são e o presidente for preso, ela herdará metade de
tudo.
— Não — nego, a ideia é perturbadora demais.
— Depois do que Vladimir fez, eu perdi forças, Camillo. Ele ferrou
com o meu distrito!
Nos bastidores do submundo, o que se conta é que Vladimir Volkiov
extinguiu o legado de Nicolai; um algoz para o demônio, e seu ódio foi tão
grande que sua capacidade de manipulação e destruição passou a ser temida.
Maksim é irredutível, não adianta discutir.
A ideia não é péssima, somente assustadora. Mas Serena em breve
saberá o que aquela família tirou de nós, é um destino que não pode ser
evitado.
Maksim se ajoelha e puxa meu braço. Ele não me olha enquanto
amarra o elástico. Não me olha enquanto bate na seringa, preparando o
líquido. Ele também não me olha quando perfura a minha pele e eu sou
tomado pelo alívio mais incrível de todos os tempos.
A química corre pela minha corrente sanguínea, a adrenalina é
imediata.
Maksim joga a seringa para o outro lado do quarto e, em um piscar de
olhos, empurra-me sobre a cama, seus lábios colidindo contra os meus com
agressividade, ressuscitando lembranças de todos os motivos que nos
trouxeram para essa situação.
O pobre menino órfão precisando de ajuda e com uma incomparável
necessidade de vingança conhece o grandioso líder de uma facção criminosa.
Duas pessoas de mundos diferentes que se apaixonaram apesar das
circunstâncias.
Enquanto a anestesia do prazer se intensifica em um turbilhão de
cores e sentidos, eu recordo das suas palavras quando a gente se rendeu pela
primeira vez.
"Maldições são bonitas, Camillo. A rosa na redoma é linda. E quando
eu olho para você, sei que não deveria, que é perigoso, mas estou enfeitiçado
demais".
A rosa na redoma é uma maldição, mas nunca consegui entender qual
de nós dois ela representa.
A VIDA É COMO UM BOTÃO
***
***
Ele inspira, seu nariz trilha um caminho pelo meu pescoço e a mão
aberta ampara meu rosto para que eu mantenha a cabeça inclinada.
— Você vai se atrasar — comento, embora não me importe nem um
pouco.
— Sou o presidente — responde, sem abandonar a minha pele,
projetando-se sobre o meu corpo enquanto me apoia contra a porta fechada
da limusine. Limusine! Esse deve ser o auge da minha vida: estar prensada
contra um carro chique por um ricaço gostoso. Meu Lord Vlad. — Eu faço os
horários, esqueceu?
— Esquecer que você é o presidente? — arfo. Ele deixa que os dentes
alcancem meu maxilar, mordiscando com força assim que chega no queixo
antes de me roubar um beijo cheio de ganância. — Impossível.
Sei que ele não gosta quando o chamo assim — presidente —, apesar
de eu achar incrivelmente sedutor. Nunca vou me cansar do seu lado
sombrio, poderoso e autoritário, por isso não tenho medo de provocá-lo, de
fazer com que seu humor oscile entre o romântico perfeito e carinhoso e um
completo filho da puta mandão, ainda mais quando o último caso consegue
me fazer sentir coisas em partes do corpo que eu nem sabia que existiam.
— Já disse para não falar essa merda — grunhe. Enfia os dedos na
minha nuca, puxando a raiz do meu cabelo para trás em busca dos meus
olhos.
Estamos em um embate de desejos há mais de vinte minutos, com
certeza. Andrei foi direto para a empresa depois que saímos do presídio, e
Vladimir me trouxe para casa. Desde então, ele não deixou de me beijar e
perguntar se estou bem.
— Eu gosto — digo. — Acho muito calliente, el presidente — digo
em espanhol, rebelando-me um pouco em seu território de poderes.
— Preciso aprender essa sua língua esperta — reclama nada feliz,
desconfiado até da própria sombra. — Corazón.
Ainda é cedo, pouco antes do meio-dia. A mansão cria uma sombra
agigantada, protegendo todo o jardim que está florido agora que a primavera
se consolidou. Há funcionários cuidando da limpeza e das folhagens do
pequeno labirinto de arbustos, e Vladimir os olha com frequência como se
reprovasse a presença deles.
A segurança também foi reforçada, há mais guarda-costas com
Vladimir quando saímos e novos vigilantes nos limites da propriedade.
Vladimir pediu para que eu, Lara e a mãe não saíssemos sozinhas, porque
teme uma retaliação de Efrem Kokorin ou algum movimento de Maksim.
Agora que descobrimos sobre estarem trabalhando juntos, temo que
Vladimir ficará ainda mais protetor.
Ele disfarça bem, e nunca vai admitir que precisa de ajuda, mas toda
essa situação me preocupa: sua saúde, seus traumas sobre Nicolai…Guardar
tudo isso deve ser devastador.
Se está preocupado ou com raiva do que Annia confidenciou, não
deixa transparecer.
— Por que mudou de ideia sobre Annia? — pergunto quando recobro
a consciência que ele havia roubado com um beijo invasivo e devasso.
— Aquilo que Annia disse na prisão, sobre as coisas que acontecem
no distrito… — Nega com a cabeça, o brilho da ira cintilando em seus
olhos. — O que poderia ter acontecido com a sua vida, eu… apenas foi
demais para mim.
— Entendo — murmuro, envolvendo suas costas com os braços
enfiados por dentro do seu paletó aberto. — Isso não incomoda você? Nossas
diferenças? O lugar de onde eu vim?
— Financeiramente, você quer dizer? — Ele desdenha com os
ombros, a pergunta o diverte. — Pode ser horrível o que vou falar, mas a essa
altura acho que você já me conhece bem o suficiente para não se chocar. Eu
tenho dinheiro, Corazón. Muito dinheiro. Não pense que estou me gabando
ou algo parecido, mas tenho certeza de que qualquer mulher com quem me
envolvesse, por mais rica que fosse, continuaria tendo menos dinheiro do que
eu. Então a diferença seria apenas pela empresa. Lara é provavelmente a
única que possui tanto capital acumulado quanto nós, pelo menos em
Moscou, mesmo a família tendo perdido muito por causa do pai ela.
Vladimir nos gira, trocando nossas posições e apoiando-se contra a
lataria preta e reluzente do veículo. Não encontro nada do seu habitual
egocentrismo, é um desabafo e uma verdade.
— Aceitar isso faz parte do meu cargo como presidente. Então, se
você quer saber se me incomoda ter mais dinheiro do que a maior parte das
pessoas no país… bem, não exatamente, não posso fazer nada com relação a
isso. Eu sou o que sou, e tenho o que tenho. Se quer saber se me incomoda
estar ao seu lado simplesmente por ser quem você é, e ter o que você tem,
então não. Jamais, Corazón.
— Confuso — reflito. — Porém, justo.
— Sou prático, não vou criar um grande drama sobre algo que já
tenho. Sei como multiplicar dinheiro, Corázon, mas multiplicar você é
impossível.
— Deus nos livre, homem! Imagina milhares de Serenas Fajardo no
mundo? Apocalipse na certa. Terceira guerra mundial. Isso sem mencionar
que eu teria que prender você em um calabouço, porque todas elas iam querer
o meu… namorado? — Franzo o cenho, dizer isso é constrangedor.
— Namorado? — Ele testa, fazendo uma careta. Seus dedos sobem e
descem nas laterais do meu corpo, um carinho inconscientemente que me
preenche de felicidade e outras coisinhas mais. — Isso parece tão… pouco?
— Sim — concordo, inebriada. Sua mão é tão grande, forte e
calorosa. Mas… o quê? — Não, calma! Você disse pouco?
— Bem pouco, Corazón — atiça, mordiscando o meu queixo. —
Quase nada. — Puxa o cantinho do meu lábio inferior com os dentes,
deixando a língua resvalar sobre a pele eriçada e sensível, e minha mente se
liquefaz. A coragem para contrapor sua pressa com o nosso relacionamento
coloca o rabo entre as pernas e fica rindo da minha cara.
— Já disse que você é um monstro vampiro bem esperto e gostoso
hoje?
Vladimir gargalha. Quando faz isso, seus olhos ficam brilhantes,
ressaltando os pigmentos lilases que tanto amo.
— Fica bem até eu voltar? — pergunta, meio segurando a risada. Lá
vem ele com sua maratona de pedidos e perguntas repetitivas. Aposto que vai
me pedir para não fazer nenhuma loucura. — Tenta não fazer nenhuma
loucura, tudo bem?
Eu disse.
— Eu e Lara vamos ao médico daqui a pouco, lembra? Vou cuidar do
nosso probleminha.
Problemão, diz a minha consciência.
Vladimir faz outra careta.
Eu devia bater nele, de verdade. Parece que baixou o espírito da mãe
nele depois que Luna entrou em nossas vidas e, toda vez que a hipótese de eu
engravidar — dele, obviamente — surge, faz com que se anime como um
coelho feliz de dentes afiados e sugador de sangue.
Eu, grávida?
Do Vladimir?
Nunquinha… certo? Eu não quero isso… quero? Um bebezinho, um
barrigão?
Não… certo?
Mierda de hombre!
Acerto um tapa em seu braço e fujo dos seus encantamentos.
— Vai trabalhar, vai. Pare de colocar essas ideias na minha cabeça.
— Que ideias? — pergunta, genuinamente confuso, esfregando o
braço e rindo ao mesmo tempo.
Eu sou um fracasso, não consigo ficar brava com ele por dois
segundos. Ciente de que vamos nos engalfinhar em mais vinte minutos de
amassos — uma hipótese tentadora —, fujo rumo aos degraus da mansão e
jogo um beijo por sobre os ombros. Vladimir afirma com a cabeça, refinado e
sedutor.
Então, finalmente, vai embora assim que entro na mansão.
Rapidamente, começo a me arrumar para a consulta. O encontro com
Annia ainda está fresco na minha cabeça, então mantenho a calma e procuro
pensar em outras coisas para que isso não me deixe ansiosa demais.
Lara envia uma mensagem um tempo depois, dizendo que está a
caminho da clínica. Pego minha bolsa e vou para a saída. Tatiana saiu com
Luna e Iago. Ivan está na empresa desde antes do café da manhã, e Roman
desapareceu assim que Vladimir levantou a hipótese de abrirem uma sucursal
na Itália, há dois dias.
Abro a porta da saída e sou surpreendida por um segurança.
Reconheço-o da portaria, um dos funcionários novos. Em seu crachá de
identificação, há seu sobrenome: Ivanenko.
— Senhorita Fajardo — diz com uma mesura. O uniforme escuro se
destaca em sua pele extremamente branca manchada com muitas pequenas
sardas de coloração laranja. — Há uma pessoa na residência que deseja falar
com você. Disse que é seu irmão.
— Meu irmão? — repito. — Deve haver algum engano.
Camillo é louco, mas não tanto quanto eu. Ele não viria aqui.
O senhor Ivanenko me entrega seu comunicador, mas hesito antes de
pegar o aparelho.
— Aqui, ele insistiu em falar com a senhorita. Mas podemos chamar
o senhor Volkiov se assim desejar.
Seria uma boa ideia…
Mas já estou com o aparelho a caminho do ouvido, certa de que só
pode ser um equívoco. Camillo está desaparecido, ou nas mãos de Maksim.
— Me deixe entrar, mi hermana — suplica através do comunicador, a
voz que já me trouxe conforto e tormento muitas vezes ao longo da
vida. — Déjame entrar.
TODAS AS COISAS JUNTAS
***
***
***
***
Nicolai está sorrindo. Não é algo que faça com muita frequência. Ele
tem um sorriso bonito, igual ao de Vladimir. Os dois são lindos, mesmo que
Nicolai seja mais maduro e robusto, mas é Vladimir o dono do meu coração.
Eu dei tudo a Vladimir, transformando-o no desbravador dos meus
sentimentos e do meu corpo. Não é fácil amá-lo, ele não está acostumado
com o amor. Nenhum de nós dois está, eu acho.
Vladimir não está aqui. Para onde ele foi?
É inverno, está frio. As árvores no Jardim de Alexandre estão nuas,
despidas de suas folhagens. O jardim é mesmo belíssimo nessa época do ano,
quando o céu já não vibra com as cores quentes do verão e nem com as
tintas coloridas da primavera. É reconfortante. Eu gosto.
Nicolai me mostra uma câmera fotográfica antiga, parece animado
com o objeto. Ele abre a boca, pronto para dizer as últimas palavras — não
entendo como, mas sei que serão as últimas, e eu as conheço muito bem.
Desculpe-me, Serena, mi doce Corazón.
Desculpe-me.
Mas, ao tentar dizê-las, Nicolai se engasga, tossindo. Tento ajudar,
mas não o alcanço. Está longe agora, afastando-se, tossindo sem parar. Ele
quer me dizer alguma coisa.
O que é? O que pode ser?
— Fogo!
Acordo tossindo. Minha garganta arde, impregnada com o sabor de
fuligem, e um cheiro forte de fumaça invade minhas narinas, intensificando a
dificuldade para respirar.
Fico de pé, perturbada com o sonho confuso e o cheiro ressequido de
queimado. Apoio a mão na parede até que o acesso de tosse acabe. Meu
celular vibra no bolso e eu o alcanço depressa enquanto saio para o corredor
em direção à cozinha.
Tem alguma coisa pegando fogo…
Há muitas ligações e uma dezena de mensagens, a maioria de
Vladimir. Abro a primeira, enviada pouco tempo depois que adormeci.
Aquele diabinho que mora dentro de mim cutuca meu coração com o
garfo, fazendo as batidas descompassarem um pouquinho. Passo para a
próxima, meus dedos deslizam sobre a tela, tremendo.
"Serena, Ivan e Lara estão em casa esperando você. Por favor, volte."
Ele não cita a si mesmo, o que me faz supor que ainda não foi
liberado da delegacia. Não tenho certeza de como me sinto com relação ao
homem que amo estar sendo acusado por um crime que está vinculado ao
meu passado. E agora não é o momento ideal para pensar sobre isso!
Ouço gritos raivosos vindos do quintal e paro, apavorada com a
perspectiva de ser encontrada. São muitas vozes e o cheio de fumaça vai se
tornando cada vez mais intenso. O que está acontecendo?
Pulo algumas mensagens, estagnada contra a parede para que
ninguém me veja, e seleciono a próxima aleatoriamente, enviada há pouco
mais de meia hora.
Mandão.
Por fim, abro a última, recém-chegada, e a primeira palavra volta a
agredir meu peito com força.
"Corazón, atenda o telefone. Eu sei que não quer falar comigo, ou me ver.
Pode me odiar o quanto quiser. Mas atenda o maldito telefone! Mande uma
mensagem, qualquer coisa!"
NUNCA TIVE MUITA empatia com repórteres, isso é fato. Nas últimas doze
horas, contudo, aprendi que posso muito bem odiar cada um deles — não que
signifique grande merda no momento, considerando que estou com ódio de
qualquer coisa que respire, incluindo eu mesmo.
O carro estaciona na frente da casa de Serena e somos rapidamente
cercados por um monte deles. Abutres malditos, como Ivan costuma dizer.
Confiro o celular mais uma vez, mas Serena não respondeu nenhuma
das minhas mensagens nem retornou às ligações, impedindo qualquer
tentativa de contato. Para meu completo desespero, há mais ou menos três
horas o número dela ficou indisponível e o medo só fez crescer no meu peito
desde então, junto com a culpa.
Eu passei dos limites… em tudo.
E, por causa disso, Serena foi embora.
Um inquérito foi aberto para dar início às investigações contra a
empresa. De acordo com Andrei, não temos nenhuma chance de subverter as
provas à favor da Corporação — e ele não faria isso mesmo que fosse
possível, por ter princípios muito mais dignos que os meus —, então
precisamos nos preparar para uma causa perdida. No entanto, existe uma
maneira para que eu não seja acusado de encobrir os crimes de Nicolai, e isso
envolve declarar publicamente que nos opomos à gestão anterior e oferecer
nosso apoio às famílias prejudicadas o mais rápido possível.
Famílias essas que nunca conheci.
Eu sei que todas as partes do meu irmão não concordam com essa
manobra. Se eu fosse qualquer outro empresário em apuros, ele ficaria
satisfeito em me ver atrás das grades, mas Andrei jamais viraria as costas
para a família. De acordo com ele, desde que eu assuma e conserte meus
erros, posso contar com seu apoio.
Consertar os erros. Está aí uma coisa que nunca aprendi a fazer.
— Nada ainda? — Andrei pergunta, também preocupado com o
sumiço de Serena e visivelmente cansado.
Guardo o celular e nego, olhando para fora enquanto alguns policiais
obrigam repórteres protegidos com máscaras cirúrgicas a se afastarem,
delimitando a passagem deles com uma fita amarela.
— Talvez ela esteja lá dentro — digo, mas a possibilidade faz com
que a frase saia como um grunhido.
— Espero que não. — Andrei abre a porta do carro assim que a
passagem é liberada.
Eu o sigo, ignorando a algazarra de perguntas; muitas são sobre a
minha visitinha à delegacia, outras se referem ao vazamento das plantas e do
edifício que desabou — agora toda a verdade está exposta, não adianta mais
tentar conter a imprensa. Há três carros do corpo de bombeiros na frente da
propriedade e um helicóptero sobrevoa o bairro de um lado para o outro,
contornando a fumaça escura que continua espiralado rumo ao céu mesmo
que o incêndio tenha sido controlado.
— Ivan está a caminho — Andrei diz, guardando o celular no bolso
enquanto entramos na casa. A porta foi arrancada do batente.
Um bombeiro vem ao nosso encontro com as mãos esticadas,
impedindo nossa passagem. Ele usa capacete e uma máscara de respiração do
rosto.
— Desculpe, senhores. A aproximação de civis no foco do incêndio
está proibida por enquanto. Havia muitos entorpecentes e outras drogas
escondidas nos galpões e a fumaça não é segura, mesmo que o fogo tenha
sido controlado.
— Sargento. — Andrei assume a frente da conversa, faz um
cumprimento respeitoso antes de continuar. — Esse é meu irmão, Vladimir
Volkiov. Fomos chamados para conferir os danos causados na estrutura do
nosso edifício.
A postura do homem muda imediatamente, reconhecendo nosso
sobrenome.
— Poderia nos explicar o que aconteceu aqui? — peço o mais
controlado possível à medida que assimilo o estado degradante no interior da
casa.
— Ainda não temos informações oficiais, mas, aparentemente, a
residência estava sendo usada como esconderijo de uma gangue local para o
armazenamento de mercadorias ilícitas. — O sargento do corpo de bombeiros
nos guia para os fundos da casa enquanto prossegue com as explicações. Não
mencionamos nada sobre já sabermos de tudo isso. — Seis pessoas foram
detidas e todas alegaram que um homem chamado Camillo Fajardo iniciou o
incêndio intencionalmente. Os policiais confirmaram que ele morava na
residência, embora ela pertença à irmã.
Meu irmão nega minimamente com a cabeça, alertando para não
insistir no assunto por enquanto ou podemos comprometer Serena de alguma
forma. Mas a preocupação presa nos meus pulmões continua se expandindo.
Recebemos duas máscaras pequenas para nos aproximarmos dos
galpões, que foram reduzidos a cinzas muito rápido; segundo os peritos, por
causa da madeira velha e dos muitos materiais inflamáveis escondidos lá
dentro.
Os danos ao clube foram menores, pelo menos vistos nesse ângulo.
Precisaremos que Roman avalie melhor pelo lado de dentro, mesmo que eu
deteste a ideia de me reunir com ele pela próxima década.
Depois do que pareceram horas — e de enviar mais uma dúzia de
mensagens para Serena — retornamos para dentro da casa bem a tempo de
encontrar Ivan sendo escoltado por outro oficial.
— Como está Lara? — Andrei pergunta antes de qualquer coisa, mas
Ivan abre um sorriso maior do que qualquer outro que eu já tenha visto.
É um daqueles sorrisos que fazem inveja.
— Eu vou ser pai! — anuncia, depois corrige. — De novo. Lara está
grávida de um filho meu.
— De quem mais seria? — Andrei gargalhada, abraçando Ivan.
Mesmo em meio aos sucessivos desastres, a alegria do meu irmão nos
contagia. Pelo menos agora que nós todos já sabemos, poderemos cuidar de
Lara como ela merece.
— Descobriu isso sozinho? — pergunto, abraçando e parabenizando
Ivan, que faz uma careta.
— Todos já sabiam então? — confirmo, sem explicar que Serena
deixou escapar. Dizer o nome dela vai além das minhas capacidades por
enquanto. — Ela fez uma surpresa junto com Iago, que acabou virando uma
reunião de negócios porque aquela mulher só pensa em trabalhar. Talvez eu
precise a prender em casa pelos próximos sete meses. Mas conversamos
sobre isso depois. — Ele faz sinal em direção a saída. — Alguma notícia da
Serena?
— Nada ainda — responde Andrei. — Ela disse que viria para o
distrito, então pensamos que pudesse estar aqui, mas nenhuma notícia por
enquanto. O celular está desligado…
O restante das palavras de Andrei é calado por um policial que passa
por nós com um casaco pendurado nas mãos e uma bolsa dentro de um saco
plástico transparente.
São dela.
— Ei, ei! Onde encontrou isso? — questiono, entrando na frente do
homem, sem me importar com a falta de respeito. Ele me encara com o
semblante rígido, mas responde mesmo assim.
— Estava ao lado do corpo, senhor. A bolsa nós encontramos na
cozinha.
— Corpo? — pergunto, alarmado, avançando para perto do policial.
Andrei coloca um braço na minha frente antes que eu segure o homem e o
obrigue a falar.
— O corpo de Camillo Fajardo foi encontrado na sala com sinais de
overdose — explica. — Ele foi levado pela perícia para ser examinado.
Ela esteve aqui.
— A dona dessas peças, vocês a encontraram? — Ivan é quem faz a
pergunta. Eu estou paralisado, pensando no que pode ter acontecido.
Será que ela sabe sobre a morte de Camillo? É possível que tenha
visto o incêndio? Que tenha se machucado?
Por favor, Deus, ela não pode ter se machucado.
— Sinto muito, não temos essas informações ainda. Não encontramos
ninguém na casa além dos homens que foram detidos.
Andrei começa a interrogar o policial com sua boa e velha lábia de
advogado. Às vezes é assombroso assistir meu irmão, sempre doce e
bondoso, em ação. Se Andrei quisesse e gostasse do poder tanto quanto eu,
ele seria imbatível.
O sentimento de impotência me causa uma angústia surreal. Não
saber onde Serena está e o que está fazendo agora parece desestruturar toda a
minha mente. Não poder ter certeza da sua segurança me deixa ainda mais
irritado e decepcionado comigo mesmo.
Eu causei isso. Eu a afastei, humilhei e julguei. Mandei Serena
embora, porra! Que merda de homem faz uma coisa dessas?
Um burburinho na entrada chama nossa atenção. Roman está
estacionando a moto na frente da pequena escada, discutindo com policiais
como se fosse o dono da rua enquanto retira o capacete. Depois de alguns
gritos, eles abrem passagem ao mesmo tempo em que nos aproximamos.
Não consigo esquecer aquela cena, o beijo, Serena em seus braços.
Mas todo tipo de vingança não parece suficiente ainda. Precisa ser algo à
altura. Roman não é idiota, ele sabe que não vai ficar impune por muito
tempo.
— Você entende que não adianta brigar com ele, certo? — Andrei
sussurra. — É do Roman que estamos falando, aquele beijo não significou
nada, Vladimir.
É claro que sei, bem lá no fundo eu entendo por que Roman a beijou
de volta — primeiro, por ser um imbecil, e, segundo, porque ele faria
qualquer coisa por Serena naquele momento de desespero. Ela estava se
quebrando bem na frente dos nossos olhos, eu a estava despedaçando, e
Roman jamais negaria qualquer tipo de apoio que pudesse mantê-la inteira.
Isso não diminui minha raiva.
Mas meus olhos encontram os dele e toda a preocupação com o beijo
evapora, dando lugar a outra coisa, um sentimento devastador, sem nome,
sem forma. Não preciso de nenhuma palavra para entender que algo
aconteceu.
— Onde ela está? — pergunto. Roman comprime os lábios. Ele
desvia o rosto pálido, deixando o cabelo deslizar sobre a testa.
— Eu sinto muito, Vlad. Serena, ela… — Roman engole seco, a
sombra da tristeza que engloba meu irmão começa a se arrastar na minha
direção. — Encontraram o carro dentro do rio, só conseguiram retirar agora e
entraram em contato através da placa.
Escuto sua voz, mas não entendo. Não quero entender.
— O que você está tentando dizer? — Ivan faz a pergunta no meu
lugar.
Roman aperta o punho no capacete, mas nada preparaia para o que diz
em seguida:
— Algumas testemunhas viram quando ela ignorou um bloqueio na
ponte perto de Novospasskiy. O carro foi flagrado em alta velocidade pelos
sensores de trânsito antes de cair no rio. — Fecho os olhos, não querendo
escutar. Não pode ser verdade. Não ela, por favor. — Serena tentou se matar,
irmão.
Não.
Não.
O que foi que eu fiz?
A risada de Serena me acerta em cheio, uma lembrança reluzindo no
meio da desesperança, junto com declarações de amor sussurradas no meio
da noite. Minha Serena, pequena, machucada, desesperada. Eu deveria ter
protegido a mulher que amo, deveria ter sido a sua força.
Eu deveria… ah, céus.
Corazón, o que foi que eu fiz?
***
***
***
Serena aguarda até que eu diga alguma coisa, mas minha única reação
é encarar seus lindos lábios franzidos e a maneira como ela consegue arquear
as sobrancelhas quando fica ansiosa.
— Como pode ver, nunca houve nada minimamente romântico entre
seu pai e eu, Vladimir. Sendo bem sincera, é claro que ele era bonitão,
charmoso e tinha aqueles ombros largos, mas ele foi como um segundo pai
para mim, nada mais que isso.
Absorvido pelo choque, outras evidências se somam à sua afirmação.
É por isso que Maksim conhecia meu pai e usou isso contra mim na primeira
vez em que nos encontramos, e foi isso o que Elena quis dizer quando
mencionou a forma como havia encontrado Serena na época em que eu ainda
não sabia quem ela era.
— Então ele matou os seus pais, Serena — pontuo com muito
cuidado. Não quero perturbá-la.
Uma brisa suave, vinda da janela aberta, faz seus cabelos dançarem
enquanto ela pensa com o indicador pousado em cima do queixo. As
vestimentas largas do hospital deixam à mostra todo o colo ao redor das
clavículas e, tal como o médico havia afirmado, há alguns mapas lilases
marcados na pele.
Gostaria de beijá-los.
— Talvez — conclui, despreocupadamente. — Isso pode ser uma
verdade, e eu me sinto devastada que ele tenha morrido levando esse
arrependimento.
Não aguentando continuar sentado, levanto-me e caminho pelo quarto
cheio com aparelhos que apitam. Um televisor desligado está acoplado em
uma parede e, ao lado da cama, há uma espécie de balcão.
— Você consegue se ouvir falando? — pergunto. Dessa vez não
consigo disfarçar um pouquinho de rispidez. Ela reage, sorrindo, porque é
doida. — Como ainda pode defendê-lo?
Serena joga as pernas para fora da cama, expondo os pés descalços. A
camisola hospitalar está franzida na altura das coxas e ela não faz questão
nenhuma de esconder, de modo que uma parte do meu cérebro começa a
falhar.
— Estão mortos, Vladimir. — Cruzando os braços, seus seios se
avolumam e um pedacinho da tatuagem foge pela gola da roupa. — De que
adianta odiar um cadáver? Eu não posso trazer meus pais de volta e muito
menos o seu, mas amei todos eles incondicionalmente e não é agora que isso
vai mudar.
Cristo! Por que ela tem que ser tão teimosa?
Mantenho uma distância segura e tento explicar com calma.
— Seus pais morreram. Tudo o que você passou até hoje, foi por
causa de Nicolai e da minha decisão em acobertar o caso. Se vocês tivessem
tido suporte da empresa, talvez você não tivesse… Talvez seu irmão estivesse
vivo.
— Talvez, é verdade. — Interrompe. Vindo até mim, bate o dedo
indicador no meu peito. — Ou talvez, com a falência e um escândalo daquele
tamanho, a Corporação Volkiov tivesse acabado. — Espalmando as mãos
sobre o meu coração, trilha um caminho até o meu rosto. — Ou ainda, quem
sabe, eu tivesse depressão de qualquer forma e, sem o suporte que seu pai me
ofereceu, ninguém conseguisse me impedir de cometer suicídio. Eu não tentei
me matar porque eles morreram, Vladimir, mas porque a minha mente e a
minha alma estavam doentes. Não temos como mudar o passado, mas isso
que estamos fazendo um com o outro agora, as coisas que me disse ontem,
não podemos culpar ninguém além de nós mesmos, e é com isso que estou
preocupada! Você me fez amar você — acusa, sussurrando.
Imito sua pose e também embalo suas bochechas com as minhas
mãos, afagando as maçãs do rosto com o polegar. Ela é tão pequena, teimosa
e doce. Mas ao mesmo tempo consegue ser intensa e forte, olhando-me sem
ter medo, sem julgar os meus defeitos.
Sou mesmo um idiota por ter estragado tudo.
— Precisa parar de ser tão boa, Corazón.
Serena sorri, orgulhosa, arrebitando o nariz como um… ratinho.
E lá vamos nós com as comparações ridículas.
— Olha, eu concordo, gente boa só se fode. É a lei natural da vida.
Mas, apesar de eu claramente me ferrar pra caramba, você precisa entender
que não sou nada boa, Lord Vlad. Ninguém é completamente bom ou
completamente mal, ou o mundo seria um tédio. — Ela diz tudo muito
rápido, quase não consigo acompanhar. — Além disso, não foi pelo seu lado
bom que eu me apaixonei.
Virando-se, Serena dá um passo para longe, na direção da cama. Um
único passo, pouquíssimos centímetros, e meu corpo age por conta própria,
puxando-a de volta.
— Eu perdi você? — murmuro no seu ouvido, suas costas encaixadas
no meu corpo. A respiração acelerada e morna chega até o meu braço que a
mantém presa.
A resposta demora… Muito.
— Sim, presidente — decreta, rodando até ficarmos um de frente para
o outro. Os rostos próximos, as bocas fazendo promessas veladas, é muita
agonia. — Você me perdeu.
Ignoro seu tom desdenhoso, curvando até nossas testas se tocarem.
Ela poderia recusar o contato se quisesse, mas Serena apenas fecha os olhos e
se deixa consolar em nosso estranho abraço. Destruí a confiança que tinha em
mim quando me deixei levar pela cegueira do ódio, e agora não me restam
alternativas a não ser lutar contra as consequências.
— Não devia ter mandado você embora, não foi justo. Me perdoe,
Corazón, por favor, me perdoe — imploro, apertando-a com mais força.
— Não é tão simples — diz e, mesmo sem olhar seu rosto, consigo
sentir o sorriso. — A culpa não é totalmente sua, eu também estraguei as
coisas. Tive a chance de dizer a verdade sobre o seu pai e me acovardei.
Ainda beijei seu irmão. Mesmo você merecendo, foi errado. Eu faria de
novo? Com certeza, mas foi errado.
A lembrança ameaça ressurgir na minha cabeça, assim como o desejo
de acertar Roman com um soco. Eu o amo, mas continua sendo um maldito.
Além disso, soquei Andrei por bem menos…
— É verdade. Você foi bem cruel ao fazer isso.
Ela nem finge se importar.
— Eu já não tenho a mente lá muito certa das ideias, e você me
quebrou, Vladimir. Há menos de um dia, me expulsou da sua vida, escolheu
ser cruel comigo e ainda gostou bastante de incorporar o todo poderoso do
andar de baixo.
— Corazón, eu estava errado…
— Ah, sério? Conta uma novidade. É disso que eu estou falando… —
Serena ironiza, erguendo o nariz em sinal de afronta. Segura meu queixo,
seduzindo como sabe que apenas ela consegue fazer comigo, e passa os dedos
sobre os meus lábios, fazendo promessas que não pretende cumprir,
hipnotizada nessa ligação que nos conecta. — Quer saber? Não consigo
pensar direito com você tão perto.
Dessa vez, ao tentar se afastar, eu permito. Serena vai para a cama, se
senta com os pés pendurados, balançando-os para frente e para trás como
uma criança.
Ela é mesmo fofa.
E sexy.
Ao mesmo tempo.
E grávida, tem um bebê meu dentro dessa coisinha abusada.
— Eu vou conquistar você de volta — comunico, decidido. — Então
não faça isso de novo. Quando eu soube que tinha tentado se…
Não tenho coragem para dizer o restante, até por imaginar que não
seja adequado abordar o assunto assim, tão recente. Porém, pela expressão de
surpresa, eu diria que compreendeu muito bem.
— O quê? Você acha que eu tentei me matar por sua causa?
— A ponte… — explico, igualmente confuso. — Que você se jogou
com o carro. Você… Não fez de propósito?
— Gosto muito da minha vida, e vou gostar mais ainda agora que
você vai me pagar uma pensão bem gorda. Ninguém mandou dar o golpe da
barriga ao contrário.
Assumo meu lugar na cadeira, apoiando os cotovelos nos joelhos e os
punhos no queixo. Assim posso enxergar Serena sem a cascata ondular se
cabelos escuros escondendo seu rosto.
Se ela não tentou se matar, só há uma explicação para ter avançado
contra a ponte. E seja quem for o culpado, não vai sair impune.
— Me conte o que aconteceu.
***
ONDE O DIABO não pode ir, ele envia uma mulher, já dizia minha sogra,
que Deus a tenha…Ou não, existe contradição demais nessa linha de
raciocínio.
Nesse caso, pelo menos, ela tinha razão e merece os créditos.
À medida que avanço pelo saguão da empresa, cabeças e olhares
viram na minha direção, cochichos têm início e alguns mais espertos abrem
caminho sorrateiramente. Aqui é o território deles, meus queridos filhos; o
lugar onde governam como se nada no mundo fosse capaz de atingi-los, e é
por esse motivo que Vladimir tem se escondido no escritório, convicto de que
vai conseguir resolver todos os seus problemas se fundindo com as paredes
do edifício.
Acontece que paciência não é uma virtude que eu admire ou cultive.
Não. Deus me livre ser paciente com aqueles quatro! Só funcionam na base
da ignorância; cópias perfeitas do meu falecido marido. Não bastava morrer e
me deixar sozinha para criar nossos filhos, ele ainda tinha que colocar seus
variados defeitos em cada um deles.
Retiro os óculos escuros e dou uma boa olhada nas recepcionistas,
que se entreolham, as feições admiradas. Bonitinhas, com as sobrancelhas
loiras e os típicos olhos claros de grande maioria das russas. O que estraga
são as alianças nos dedos.
Uma pena, meus filhos ainda não aprenderam mesmo a escolher
funcionárias.
Sem perder mais do meu precioso tempo, me dirijo aos elevadores e
seleciono o andar da presidência a tempo de ver, através das portas se
fechando, a apreensão no rosto das mulheres. As pobrezinhas devem estar se
perguntando se é sábio anunciar ou não a minha chegada. Bem, não que fosse
fazer qualquer diferença.
Minhas noras estão supergrávidas! Finalmente minhas preces foram
ouvidas e começaram a acertar o alvo. Mal posso acreditar que serei avó de
dois novos bebezinhos ao mesmo tempo. Tudo estaria perfeito, se não fosse
meu filho mais velho fazendo aquilo que os russos fazem de melhor:
esconder os sentimentos e fingir cara de paisagem. Ultimamente, só o vejo
em coletivas. Voltar pra casa que é bom, nada.
Assim que chego ao meu destino no último andar, percebo que há
uma reunião em andamento. Vladimir não está em sua mesa como de
costume e vozes irrompem do anexo em uma conversa acalorada sobre as
vítimas do acidente que, por sua vez, tem recebido toda a atenção da
imprensa nos últimos dias. Sair de casa se tornou uma verdadeira missão
especial, dado o número de repórteres e curiosos sempre à espreita.
Antes de fazer a minha entrada, dedico alguns segundos analisando a
sala familiar que tanto me faz lembrar daqueles dois, mas tão logo as
lembranças chegam, as mando para o limbo outra vez. Não é mais sobre
mim, e sim sobre o filho de péssimo temperamento que ainda não enfiou
Serena dentro de um cartório.
Eu, que deveria estar pulando de felicidade, estou quase arrastando os
dois para um casamento de surpresa. Quais as chances de dizerem não no
altar? Não entendo por qual motivo meu filho amado e teimoso decidiu ser
paciente sobre isso, sendo que nunca soube como esperar qualquer coisa que
desejasse por mais de dez minutos antes de derrubar o mundo para conseguir.
Isso Vladimir puxou de mim, então entendo muito bem.
Meu reflexo se forma na porta de vidro à medida que me aproximo, o
terno bordô se destacando em um tom mais claro por causa da iluminação,
mas pouco consigo distinguir do meu penteado, muito preso no alto da
cabeça, ou dos saltos pretos.
Eles não percebem a minha chegada assim que entro. Vladimir
conversa pelo telefone e, a julgar pela irritação em sua voz, fica fácil saber de
quem se trata.
— Não, Corazón. Não saia do maldito prédio. Não, eu sei muito bem
que não mando em você… Droga! Não importa, Serena, os seguranças vão…
— Frustrado, encara a tela do celular, que indica o fim da ligação.
— Mãe? — Roman pergunta, fazendo com que os outros também me
olhem. Colocando-se de pé, ameaça me abraçar, mas dispenso o agrado,
desdenhando com a mão.
— Guarde esse abraço para quem acredita na sua lábia barata, Roman.
Preciso conversar com vocês e, já que que nunca consigo me reunir com os
quatro na mansão, agora que Andrei foi embora… — Lanço meu olhar mais
enfurecido para o caçula, que fez a sua escolha de morar com aquela cria de
serpente. — E já que Vladimir não voltou mais para casa, não me deixaram
opções.
Ocupo meu lugar à direta de Vladimir, onde Lara normalmente se
senta quando não há uma gravidez e um marido superprotetor mantendo-a em
casa. Era aqui que eu costumava acompanhar reuniões maçantes ao lado de
Nicolai, e estar de volta é ao mesmo tempo nostálgico e muito irritante.
Eu era boa nisso tudo — ser boa é apenas inerente em qualquer coisa
que me comprometa a fazer —, não significa que gostava.
— Já encontrou quem tentou matar a sua mulher e seu filho? —
pergunto, indo direto ao ponto mais importante com munição pesada.
Lide com isso agora, querido.
Vladimir, que reage muito bem quando pressionado, trinca a
mandíbula; um rosnado emerge em seu peito, por baixo do terno pomposo e a
gravata vermelha. A rebeldia e aura de poder e controle combinam com ele,
mesmo que pareça ter enfiado o cérebro na bunda desde aquela noite, quando
revelou tudo o que pensava a respeito de Nicolai e Serena.
Serena, que é quase um anjo por aturar — e amar! — esse
dissimulado. Em seu lugar, eu teria me enfiado no primeiro avião para a
Austrália e desaparecido por algumas semanas até que seus ossos fossem
consumidos pelo arrependimento… Qualquer semelhança com a realidade é
mera coincidência.
Pelo menos ela está fazendo um bom trabalho em não voltar para a
mansão e ainda exigir a companhia de Luna agora que o irmão se foi,
deixando-o remoer a própria estupidez sozinho.
— Maksim está se escondendo — explica com a calma velada,
enfiando os dedos em seus cabelos pretos tão semelhantes aos de Nicolai; é a
única característica em que ambos se parecem. — Mas já temos cada maldito
canto dessa cidade sendo revirado atrás dele, sem contar cos policiais e com
uma ajuda extra que Dimitrio enviou a pedido de Ivan. Ele não vai fugir por
muito tempo.
— Maksim não vai escapar — Andrei decreta distraidamente, naquele
tom de justiceiro que geralmente só utiliza para falar sobre seus casos
jurídicos. — Não conseguiremos uma acusação para o que aconteceu com
Annia, mas há muitas testemunhas que presenciaram seu ataque de fúria
contra Serena. É só questão de ser encontrado.
Com minha visão periférica, vejo Vladimir bufar, renegando a
situação hipotética versada pelo irmão. Posso imaginar que tipo de retaliação
espera conquistar, e nenhuma condiz com as expectativas lícitas de Andrei.
Dou uma boa conferida nos quatro. Todos exaustos, ombros
cabisbaixos e roupas amarrotadas. Ivan é o mais composto, com o cabelo
castanho bem penteado e a barba de cortes limpos, mas enxergo em seus
olhos o desejo de se enfiar dentro de casa vinte e quatro horas do dia para
realizar todos os desejos da mulher.
Andrei se isolou, não consigo entender o que seus brilhantes olhos
caramelados revelam, e os cachos negros pendem sobre as orelhas. Uma
cópia mais jovem, cética e honrosa do presidente. Já Roman…Suspiro,
tomada pela sensação de derrota. Ele continua em sua bagunça organizada de
fúria e rebeldia, destoando dos irmãos com os destacados olhos verdes. As
mangas dobradas na altura dos antebraços deixam à mostra suas tatuagens, e
a camisa se ajusta ao corpo, evidenciando a boa forma.
Meus filhos são belíssimos, um orgulho sem precedentes, é verdade.
Mas, algumas vezes, é tão difícil fazer com que entendam.
Eu só quero que sejam felizes.
Casem.
Tenham filhos.
E, depois, tenham mais filhos.
Não é uma equação tão difícil assim!
— Ótimo, porque ela não vai estar segura enquanto aquele criminoso
estiver à solta. — Dedilhando sobre a mesa, minhas unhas emitem estalos
compassados ao bater contra a madeira.
— Como se já não tivesse meia dúzia de seguranças vigiando o
apartamento — ruge Vladimir, parecendo uma fera enjaulada.
Parece que a ausência de Serena tem surtido mais efeito do que eu
imaginava. Depois que o médico insistiu que ela desistisse da ideia de
permanecer no hospital, Vladimir a instalou na suíte do hotel dourado — que
é agora propriedade da Corporação Volkiov — e cercou o lugar.
Entendo que estejam enfrentando muitas merdas, mas a grande
maioria poderia ter sido evitada se não fossem as tendências heroicas de
Vladimir em esconder o quanto conhecia dos antigos negócios do meu
marido. E é por isso que, agora, precisam me escutar, para que não continuem
empilhando tolices em seus mundinhos de suposições.
— Estou aqui para conversarmos a respeito do pai de vocês…
— Nós temos muito para conversar, mãe — Vladimir me interrompe,
esquivando-se como sempre acontece quando tocamos no assunto. — Mas
precisamos cuidar dessa situação primeiro. — Ele aponta para um papel à sua
frente. — A lista com os nomes das pessoas que morreram foi divulgada pela
imprensa antes que nós pudéssemos identificar todas as vítimas. Como sabe,
os pais de Serena estão inclusos, mas isso não é tudo…
— Ah, para o inferno com seus problemas! — Abro a minha bolsa e
retiro a fotografia de Nicolai e Serena, que guardei com muito cuidado, e a
bato contra a mesa. Eles se encolhem rapidinho. — Vamos esclarecer
algumas coisas, e vocês vão escutar com muita atenção o que tenho para
contar.
— Já entendemos essa parte — diz Roman, com uma caneta
rodopiando entre os dedos. Vladimir fulmina o retrato como se desejasse que
fosse consumido por chamas. — O velho se sentiu culpado e ajudou a
menina.
— Sim, sim. Seu pai sempre teve esse lado que sonhava em salvar o
mundo. Na primeira e única vez que vi essa fotografia, ele estava escrevendo
a mensagem atrás dela. Não tive tempo para pressioná-lo quanto a história
por trás da jovem ao seu lado, porque faleceu dias depois e esse registro
desapareceu. Imaginei que estivesse no almoxarifado, junto com todas as
coisas dele. Mas me enganei.
Vladimir balança a cabeça minimamente, compreendendo o cenário,
criando imagens em sua mente enquanto assimila os fatos.
— Sabia no que ele estava envolvido? — Vladimir não consegue
esconder o tom acusatório. — Com as casas de jogos e todas as dívidas com
aqueles criminosos?
Acerto um tapa em sua têmpora. Vladimir arregala os olhos, pego
desprevenido.
— Olha bem para a minha cara, meu filho. Acha que, se eu soubesse
que seu pai ainda mantinha aqueles negócios, teria compactado com a ideia?
Que teria deixado você lidar com tudo sozinho? Não seja idiota.
— O que quer dizer com "ainda"? — Andrei faz a pergunta
astutamente.
E lá vamos nós… Inspiro profundamente antes de começar as
explicações. Esclarecer toda essa confusão não estava na minha lista de
prioridades. Ao menos, não nessa vida. Se Nicolai estivesse vivo, eu
certamente o mataria agora.
É bom que esteja sofrendo aí do céu, seu cretino.
Levantando-me, dou a volta pela ponta esquerda da mesa e escolho
uma das garrafas dispostas em cima do aparador encostado na parede interna.
Sirvo meio copo e bebo, ciente dos olhares atentos às minhas costas. Não é
que precise de coragem nem nada assim, mas eles vão fazer o maior drama
e… bem, tiveram a quem puxar.
— Para entenderem o que vou contar, vocês precisam saber como a
empresa foi criada.
— Conhecemos a história, mãe — Roman reclama, entediado. — A
crise nos anos oitenta…
— Ora, fique quieto e me deixe falar! Seu irmão tem esses… traumas
para resolver ou vai perder a mulher dele! — Cutuco Vladimir um pouquinho
mais. O homem precisa reagir, e se não for na base do seu gigantesco ego, é
possível que o tempo passe e sua chance se perca.
Nem ferrando que vou viver longe dos meus netos — no plural,
porque, conhecendo aqueles dois, impossível pararem no primeiro.
— Não vou perder Serena — garante, grunhindo. — Deviam se
preocupar mais com suas próprias vidas. Com a Serena eu me viro.
Roman, o endiabrado, não perde tempo e coloca mais lenha na
fogueira, deixando arrastar uma risada debochada que não passa despercebida
por Vladimir.
— Tem alguma coisa a dizer sobre a minha mulher, Roman? —
pergunta, cruzando as mãos na frente do rosto.
Ao invés de interferir, volto a me servir de mais vodca. É bom que
queimem um pouco dessa testosterona reprimida. O excesso de
masculinidade tende a afetar o cérebro.
— Até quando vai continuar com esse ciúme ridículo? — Roman
devolve, cruzando os grandes braços na frente do peito largo. — Já me
desculpei, não já? Umas cinquenta vezes! Só quis ajudar, e você estava sendo
um filho da puta.
— Obrigada, querido — cantarolo, erguendo o pequeno copo. Ele
resmunga um pedido de desculpas, sem tirar os olhos do irmão.
— Beijou a minha mulher, Roman. Na minha frente. Vai precisar de
mais do que um pedido de desculpas para me fazer esquecer.
— Ela me beijou, é diferente. — Roman, exasperado, apela para os
irmãos. — Poderiam me ajudar a colocar algum juízo na cabeça desse
maldito?
Ivan nega solidariamente.
— Sinto muito, estou com o Vlad nessa. Tenho a minha esposa,
Roman. Se fizesse uma merda dessas com a Lara… — O semblante de Ivan
se torna sombrio, a voz sempre alegre e otimista se transforma em uma
partitura sanguinolenta. — Só de imaginar, já quero bater em você.
E eu só queria contar uma história, é pedir demais?
— Já chega! — decreto. Essa briga deve durar décadas para ser
esquecida. — É por isso que vivem presos nessa empresa, não conseguem
manter uma conversa. Roman, pare de beijar suas cunhadas e arrume seus
próprios filhos.
— Ninguém falou nada sobre filhos. Está desviando do assunto em
benefício próprio, dona Tatiana — Andrei comenta, distraído com uma folha
diante de si, vendo através das minhas intenções. Estraga prazeres.
— Cunhada, mãe. No singular — Ivan corrige, irritado.
Vladimir, parecendo prestes a explodir, quase derruba a cadeira ao se
colocar de pé.
— Isso é um desastre! — brada, firme e autoritário. — Podemos, por
favor, focar no que realmente importa? Temos uma reunião em dez minutos!
Mãe, seja o que tiver para contar, faça agora antes que eu me arrependa. Nada
do que disser pode mudar o fato de que o odeio, e vou continuar odiando.
Nicolai.
Está falando de Nicolai. Pergunto-me o que meu querido marido
acharia dessas palavras se pudesse escutar o filho nesse momento, tão
acometido por mágoas e remorsos. Isso o destruiria, tenho certeza; nada no
mundo era mais importante para ele do que proteger nossos meninos.
Aguardo até que voltem a respirar sem parecerem touros perdidos no
pasto. Assim que se sentam, em silêncio, prendo o fôlego.
— Muito bem, do começo. Como sabem, meu casamento com Nicolai
surgiu como consequência de um acordo — inicio pelas bordas, virando-me
para observá-los. — Naquela época, odiei a ideia. Ninguém quer ser vendida
como uma vaca leiteira, mas não era algo assim tão incomum. O problema é
que a família do seu pai era conhecida pelo envolvimento com muitas
organizações criminosas. Foi assim que ele herdou todas aquelas casas de
jogos, Vladimir.
— Ah, porra — Ivan xinga, incrédulo, arrastando-se na cadeira para
me encarar de frente. Espero que esse não seja o linguajar que costumam usar
durante as reuniões oficiais.
— A Corporação Volkiov era apenas uma camuflagem para lavar o
dinheiro — continuo, puxando os detalhes da memória. — Foi assim que ela
surgiu, pouco antes de eu ser apresentada ao pai de vocês.
Ivan se junta a mim em busca de uma bebida, mas acaba levando a
garrafa para a mesa, junto com copos para todos.
Não me agrada que descubram dessa forma, mas o plano era que
nunca precisassem saber. Agora que aconteceu, não adianta mais tentar
manter segredo. E, com meus netos a caminho, só espero que isso acabe de
uma vez e Vladimir possa entender que a prioridade deve ser, sempre, a
criança que ele ajudou a gerar.
Andrei me analisa meticulosamente antes de perguntar, ríspido:
— Nunca passou pela cabeça de vocês, quem sabe, assim, só talvez,
contar para os próprios filhos?
Volto para eles, que já têm copos em mãos e olhos curiosos em mim,
como crianças perdidas. Roman, por sua vez, parece tranquilo, com os braços
atrás da cabeça e um leve sorriso de escárnio. Tão lindo, cuida tanto das
cunhadas, seria um ótimo marido…
Não, Tatiana. Esse não é o ponto agora.
— Não foi assim que aconteceu. — Recupero-me das divagações. A
fotografia de Nicolai, ainda em cima da mesa, parece me enxergar. — Isso foi
antes de vocês. Seu pai… — Hesito, é uma grande revelação. — Não era o
único herdeiro da família. Ele tinha um irmão, Valentim. Depois que eu
fiquei grávida de você, Vladimir, seu pai tomou a decisão de se afastar dos
negócios da família, não queria que crescessem no meio daquela realidade.
Então ele e o irmão chegaram a um acordo: Valentim ficaria com as casas de
jogos e Nicolai se desvincularia de tudo junto com a corporação.
Silêncio absoluto.
Os quatro olham uns para os outros, naquela conversa sem palavras
que pertence a irmãos que realmente se amam. Mas eu sei decifrá-los, ler os
pensamentos desconexos, o leve girar de engrenagens em seus cérebros,
entendendo a profundidade de um passado desconhecido.
Reviver o nome e a memória de Valentim é estranho, faz tantos
anos…
— O que deu errado? — Vladimir, que estivera pensativo durante o
meu relato, começa a juntar as peças.
Estão chocados; duvidosos, eu diria.
— Funcionou por muito tempo. Construímos nossa vida longe de
tudo, a empresa se tornou grande. Mas… Valentim acabou morrendo, há oito
anos. A perda do irmão deixou seu pai devastado.
Deixou nós dois devastados.
— Mãe, por acaso não está inventando tudo isso, não é? — Andrei,
cético, expõe o que os outros estão pensando.
— Essa é a verdade. Seu pai foi tragado de volta para aquele negócio
quando soube que Valentim tinha deixado tudo desgovernado. Ele tentou
acabar com as dívidas, mas… Houve complicações que nem eu entendia.
— O desabamento — Vladimir pontua, massageando a base superior
do nariz com os olhos apertados. — E, ao que tudo indica, o irmão de Serena,
junto com Maksim e seus capangas, também contribuíram para ferrar ainda
mais aquele esquema.
Vladimir, agora de pé, expira pesadamente, e posso imaginar que tipo
de imagem constrói em sua mente. Ele guarda tudo, esconde o que está
sentido e sei que não vai nos mostrar o que oculta debaixo da casca de
presidente.
— Vladimir — chamo, dirigindo-me especificamente ao meu
primogênito. — É comum que essa sua natureza molde os grandes líderes em
nosso país. Sorrisos fáceis e gentilezas não movem montanhas, é preciso que
se tornem as montanhas e se movam com as próprias pernas se quiserem que
a realidade seja transformada. Muitas vezes, no entanto, tanta altitude gerada
pela experiência da superioridade faz com que destruam coisas boas pelo
caminho, por não enxergarem mais o que de bom reside lá embaixo. —
Pouso minha mão sobre a dele. — Tive medo que acontecesse com você.
Meu filho encara nossas mãos unidas, o cenho franzido remete ao
pequeno bebê que um dia segurei no colo, pequeno e indefeso. Por ele,
sempre pelos meus filhos, eu pude continuar vivendo.
— Aconteceu — sussurra. — Veja o que fiz com ela.
Sorrio ante à franqueza, sabendo que esse é um momento raro.
— Não, meu querido — tranquilizo. — Eu estava enganada,
completamente enganada. Serena não está embaixo, está no alto. Então você
pode parar de olhar para os próprios pés com medo de nos machucar. Deixe o
peso da montanha para trás e roube a mulher que ama de volta.
— Eu preciso conquistá-la — reflete, acomodando-se pela centésima
vez na grande cadeira presidencial.
O quê?
— Não foi nada disso que falei. Escute, eu disse roubar mesmo, sabe?
Vá até aquele apartamento e case de qualquer maneira. Casar primeiro,
conquistar depois, entendeu?
— Aproveite e seja preso — Andrei ironiza. — Vai ser ótimo para a
reputação. Ouça, mãe, Serena contou que Camillo esteve atrás de um antigo
sócio de Nicolai. — Ele raciocina rápido, juntando mais evidências ao grande
mapa de desencontros e coincidências. — Poderia ser esse Valentim?
Antes que eu consiga evitar, uma imagem de Valentim vem à minha
mente. Os olhos claros, diferentes do irmão, o sorriso pontiagudo e a
personalidade sempre no limite, como se a margem do fim do mundo fosse
sua morada. Nicolai, não; seu lugar era onde eu estivesse. Os dois morreram
praticamente no mesmo ano e ainda hoje não consigo recordar de ambos sem
que alguma revolta inflame. Idiotas.
— Talvez — defino, situando-me no tempo presente. — A morte dele
ou mesmo seu vínculo com Nicolai não são de conhecimento público.
Então… sim, é possível.
— Ele não era… — diz Vladimir, mas o restante da pergunta não
vinga, encoberta por um esgar de desprezo.
Essas informações sobre o passado do pai não devem estar sendo bem
recebidas.
— Tudo o que estão expondo na mídia sobre ele são inverdades muito
severas. Aquele prédio… é impossível que tenha compactuado com as obras.
Dito isso, os quatro se calam, olhando ao mesmo tempo para a folha
que antes estava nas mãos de Andrei.
— Nós temos uma desconfiança — Andrei empurra o papel para
mim. O corpo de Vladimir fica tenso ao meu lado, cada músculo
transformado em pedra. Há vários nomes marcados na frente, incluindo dois
com o mesmo sobrenome de Serena. Mas não é para eles que Andrei aponta.
— Na última linha, veja.
— AlekseiKokorin — leio, sem entender o que está acontecendo. —
Por que um Kokorin estava naquele edifício?
— É isso que estamos prestes a descobrir. Elena está a caminho.
Vamos colocar um ponto final em toda essa história, de uma vez por
todas. — Vladimir confere o celular, irritando-se com a mensagem recebida.
Aproveito a deixa para me levantar. Já disse tudo o que precisava e
precisarão de tempo para assimilar.
— Façam isso. E, Vladimir, ninguém ameaça a minha família. Se
Maksim e Efrem estão juntos, se ambos tiverem alguma mínima relação com
minha nora grávida caindo de uma ponte… — A ameaça fica no ar. Mas eu
sei que Vladimir não deixaria isso passar em branco, sobretudo ao constatar
brilho predatório em suas órbitas azuis.
Primeiro, porque ele nos protege. Como tem feito desde a morte de
Nicolai.
E segundo, porque gosta de reprimir seus inimigos.
Algumas características são impossíveis de mudar, e o gosto pelo
poder está intricado nas entranhas de Vladimir. É por isso que não vai existir
outra mulher capaz de amá-lo como Serena. Só alguém com tanto poder
quanto ele suportaria a intensidade dos seus sentimentos.
Vladimir não ama como os outros.
Algumas pessoas mudam por amor, mas há aquelas cujo amor
transforma a si mesmo, tornando-se algo maior, mais forte, um sentimento
que expõe o conjunto de qualidades enterradas dentro de cada par, escondidas
de todo o resto. É assim que acontece quando o amor nasce das adversidades
e sobrevive às negações do destino: continua sendo amor, mas é mais do que
isso também.
E, com isso em mente, eu finalmente coloco a cereja em cima do
bolo. Não posso perder a oportunidade.
— Diga como se sente.
— Eu errei — admite sombriamente, enquanto me preparo para partir.
— Ela pediu um tempo, e terá a droga do tempo.
— Ah, faça-me um favor! Quem precisa de tempo é relógio,
Vladimir. Serena é jovem, bonita e tem um corpo que faria qualquer homem
ficar de joelhos. Então corra atrás do prejuízo antes que outro tome o seu
lugar!
As risadinhas dos irmãos se fazem ouvir enquanto Vladimir tranca
todas as suas feições. Não sei qual é mais ciumento, mas a notícia boa é
posso sempre usar isso a meu favor.
Digo, a favor de suas lindas futuras esposas.
— Ela está carregando meu filho dentro da barriga — rosna, cerrando
a mandíbula.
— Meu filho, não se iluda. Uma mulher grávida, sozinha e carente,
com todos aqueles hormônios… Não me surpreenderia se arrumasse uma
distração vez ou outra, de preferência uma distração com muitos músculos
nos lugares certos.
— Ela não seria louca… — Vladimir rosna, fechando as mãos sobre a
mesa. A consciência do que acaba de dizer não tarda e logo ele já está de pé,
disparando para fora do escritório. — Maldita coisinha abusada — xinga,
desaparecendo com o celular a caminho do ouvido.
— Mãe, você me assusta — diz Roman, sorrindo sombriamente,
recebendo a concordância de Andrei e Ivan.
— Vá se acostumando. — Sigo o meu caminho para a saída. — Sua
hora ainda vai chegar.
POR TODAS AS VEZES
***
***
***
***
E desligo o celular.
Pronto.
Fico por ali mais algum tempo, recompondo-me antes de voltar para
casa. Luna vai passar a noite com Tatiana na mansão e ficarei sozinha
novamente.
Por todo o caminho de volta, os seguranças recebem chamadas e eu
sei que é Vladimir se certificando que está tudo bem. Quase fico com pena,
mas quero dizer pessoalmente que estou disposta a tentar, que estou pronta
para me arriscar ao seu lado.
Espero estar pronta.
— Volte — sussurro no interior do carro em movimento, encarando
as belíssimas estrelas que prosperaram em meio ao caos.
Ao entrar no apartamento, no entanto, sou surpreendida por Vladimir
descabelado, andando de um lado para o outro. O casaco está jogado de
qualquer jeito no chão, perto de uma poltrona com pés de madeira, e os
primeiros botões da sua camisa estão abertos.
— Que merda é essa, Serena?! — grita, apontando o dedo para a tela
do celular que está preenchida com a minha fotografia.
— Vladimir? — pergunto, espantada com sua chegada.
Ele está possesso! Pior que isso, Vladimir está puto da vida. Preciso
saber se é puto do jeito bom ou puto do jeito ruim.
— Não faça essa carinha inocente! — continua gritando, sempre
dramático.
Arrisco alguns passos para dentro, não me importando com a porta
aberta. Escolho uma abordagem mais segura, não quero que a gente brigue
logo agora que desejo tanto dizer para ele o quanto o amo.
— Eu estava… eu…
— Quero mudar — diz por cima de mim, alto. Espero que tenha
isolamento acústico no prédio, se não daqui a pouco teremos um helicóptero
televisivo sobrevoando o edifício. — Quero ser um homem melhor, mas não
posso fazer isso em um dia ou um mês! Você estava certa antes, esse sou eu!
Egoísta, controlador, ciumento, e quando o assunto é você, fico ainda
pior, Corazón. Você me deixa completamente fora de mim com essa
insegurança, porra!
— Não coloque a culpa toda em cima de mim! — protesto, irritada
com o seu tom e por tirar conclusões sozinho. — Se estou insegura é porque
você fez isso comigo, porque passamos por muitas coisas que…
— Ah, claro! — debocha, maldoso. — Vai culpar o destino também
por sua falta de bom senso? — Assim que as palavras saem, ele fecha os
olhos e pragueja: — Merda! Merda, Serena!
Sem me tocar, vai para a saída e bate a porta, fazendo estremecer as
paredes e janelas.
Não.
Não era isso o que eu queria.
Não era para ser assim.
Eu me enganei, não estava sozinha antes. Isso sim é estar sozinha. Ele
se foi outra vez.
Arrastando os pés até a mesa de jantar, sinto minha garganta se
fechando, os pulmões faltando ar. É como naquele dia, está se repetindo e eu
não tive a chance de me confessar. Encaro minhas mãos escorregadias e
geladas, estão trêmulas.
— Inspire — sussurro, obedecendo ao comando.
O que eu faço? Ligo? Vou atrás dele?
Como uma luz afastando a névoa na minha mente, os olhos de Nicolai
encontram os meus. Nossa fotografia está sobre a mesa, desbotada como
sempre, exatamente como a deixei antes de sair, com nós dois abraçados na
primavera. Sou arrebatada por um maremoto de sentimentos conflitantes
quando viro o verso e releio uma, duas, três vezes aquela frase de despedida.
Estou cansada de me despedir das pessoas que amo.
— Eu perdoo você, Nicolai, é claro que perdoo você — digo,
desesperada, minha voz sozinha cortando o silêncio. — Então me ajude um
pouco, o que acha? Diga o que devo fazer, porque não sei mais. Por
favor, por favor…
Jogo minha bolsa em cima da mesa, sem perceber que estava aberta.
O conteúdo inteiro espalha sobre a madeira, algumas coisas caem no chão,
fazendo a maior bagunça. Não penso em recolher nada agora, quem se
importa? Mas algo chama a minha atenção.
O caderninho preto com a minha lista de coisas para fazer antes de
morrer está caído, por um acaso aberto na primeira página. Tinha me
esquecido dele. Abaixo para pegá-lo e percebo que na primeira linha, acima
do primeiro item — o já realizado sonho de perder a virgindade — há uma
frase que não estava lá antes, que não foi escrita por mim e que faz todo o
meu corpo tremer.
São quatro palavras na bonita caligrafia de Vladimir, e o amor
presente nelas é tão grande, tão intenso e poderoso que minhas pernas se
movem sozinhas em direção à saída. Eu posso fazer o caminho mais uma vez,
uma última vez.
Quando abro a porta, arfante, meu coração estourando dentro do
peito, esbarro em Vladimir parado na porta.
É ele!
Vladimir!
Aqui, na minha frente. Não foi embora.
Ferozmente, ele segura minha mão na frente do copo e enfia um anel
brilhante e de aspecto caro no meu dedo anelar.
Misericórdia que o homem ficou louco de vez. Já não era sem tempo!
— O que está fazendo? — questiono, horrorizada. — Isso é o que eu
estou pensando?
— Serena, eu tentei do jeito certo, comprei flores, presentes, fui
paciente! — Certo, ele ainda está puto. — Agora vai ser do meu jeito. Eu
pretendia ser romântico, dizer coisas bonitas e entregar essa merda em uma
caixinha. Mas que ilusão! Se as coisas com nós dois têm que ser sempre na
base da insanidade, então que seja!
— ¡Diosmío! Você enlouqueceu? — continuo, encarando minha mão,
embasbacada, apaixonada.
— Sim! Eu estou louco! — grunhe, entrando no apartamento. —
Completamente fora de mim, não está vendo? Eu cansei, Serena. Cansei!
Vou levar você agora, então pegue suas coisas! — Vladimir aponta para o
quarto, os olhos infames desafiando-me a não me opor de maneira nenhuma.
— Vlad…
— Não, não! Não quero escutar — nega, olhando à nossa volta como
se procurasse alguma coisa. — Quer saber? Deixe tudo para trás e eu mando
alguém buscar depois; compramos tudo de novo, não importa.
— Mas… — digo, erguendo o caderno para dizer que estar ao seu
lado é tudo o que mais desejo, o único sonho que eu tive de verdade. É claro
que eu quero ir com ele, é claro que estou feliz. Oh, céus, esse é o momento
mais feliz da minha vida!
— Sem "mas", Serena — Vladimir me corta, grosso, sem deixar
brechas para contestação. — Dane-se o destino, o universo, não ligo para essa
merda. Olhe para mim, eu amo você. Cometi um erro terrível, é verdade, e
não sei como corrigir isso agora. Mas vou conseguir, em algum momento
entre hoje e o resto das nossas vidas. Vou corrigir e compensar você. Todos
os dias, de todas as formas inimagináveis.
Dessa vez, não consigo segurar e, na verdade, nem quero. O alívio é
tão grande que enche meus olhos com lágrimas, que transbordam em uma
torrente sem fim. É um choro profundo, mas que não machuca. Alívio e amor
em estado líquido, e tudo só piora quando Vladimir corre e me toma em seus
braços carinhosamente.
Bipolar é pouco!
— Meu amor, não, não. Não chore, me desculpa por ter gritado… —
murmura, beijando meus olhos. — Ei, ei, ei, o que foi? Não diga que não me
quer, por favor, não faça isso comigo.
— Bateu a cabeça? Pensei que tinha desistido de mim — choro,
pulando em seu pescoço e soluçando como uma perfeita grávida
descontrolada.
— Corazón — chama, rindo, segurando meu rosto protetoramente. Eu
já disse que amo esse homem? Eu amo. — O sol vai parar de brilhar durante
o dia e as flores morrerão na primavera antes que eu desista de você.
É assim, comigo desaguando igual uma cachoeira e ele rindo do
sofrimento alheio, que mostro para ele o caderno, especificando o item
número zero com o indicador.
— Você prometeu realizar todos os itens da minha lista de desejos. —
Soluço. — E não posso realizar esse aqui sem você. Sim. Eu te amo, Lord
Vlad. Com ou sem a benção do destino, eu amo você.
— Amo você também, minha linda, maravilhosa, louca e
impulsiva, Corazón. Todos os seus sonhos são meus. — Admirado, Vladimir
acaba com dúvidas e transforma nossas confissões em ações e toques.
Fecho os olhos para receber sua boca, e, no interior das minhas
pálpebras, as palavras escritas por Vladimir dançam no meio da escuridão
onde reside nossa morada caótica e perfeita.
Casar com Vladimir Volkiov.
ENTRE ACASOS E DESTINOS
***
— Você não fez isso! — grita, olhando para baixo, sua voz
sobressaindo ao barulho do helicóptero em nossos abafadores, enquanto o
cabelo agita ao redor do rosto espantado. — ¡Dios mio! ¡Usted se volvió
loco! — continua com o espanhol energético que faz meu corpo reagir de
imediato. Mesmo sem entender uma palavra, tenho certeza de que está me
chamando de maluco ou coisa pior.
— Achei que isso já estava mais do que óbvio, Corazón — respondo
segundo minha dedução, admirando a paisagem que agora nos pertence.
Assistir esse cenário com Serena é diferente, especial de uma maneira única.
— Isso é… — Ela espalma as mãos no vidro, assombrada e, ao
mesmo tempo, maravilhada com a beleza paradisíaca das árvores. — Uma
ilha! Comprou uma ilha, puta merda!
— Nossa ilha — corrijo, só para aumentar seu espanto. Ela abre a
boca, negando enquanto o helicóptero desce na estação de pouso nos fundos
da imensa mansão suntuosa no topo do monte irregular.
Precisamos vir para a Grécia com o jato da empresa, e de lá o
helicóptero fez nosso embarque direto para a ilha. Não é muito grande em
termos territoriais, mas extensa o suficiente para receber novas instalações
em um futuro próximo, além das já existentes que receberão o apoio
necessário para crescerem.
Depois de pensar muito no que minha mãe disse sobre mostrar para
Serena que eu estava disposto a viver ao lado dela em um novo lar —
considerando a estupidez colossal ao despejá-la da mansão —, escolhi fazer
isso da maneira mais impactante possível.
Não sei fazer as coisas pela metade.
No extremo norte da ilha, as rochas se elevam em uma montanha
arborizada que saúda a grande construção em seu cume. Há um ancoradouro
particular invadindo a baía, mesmo que outro maior tenha sido construído na
pequena vila ao sul. O antigo proprietário utilizava os recursos apenas por
lazer, o que fez com que a economia local ficasse parada no tempo em
comparação com as centenas de ilhas espalhadas pelos demais arquipélagos.
— ¡La puta madre! — Serena continua após descermos, abaixando
para fugir do vento causado pelas hélices ainda ligadas sobre nós. — Por que
fez isso? — questiona, vindo para os meus braços. Dois seguranças fazem
nossa escolta rumo à escada de pedras naturais encrustadas em um declive
que desponta no primeiro pavimento da mansão.
Parece uma criança feliz, e não deixo de pensar em Roman e seu
apelido tosco. Um bebê, inocente em praticamente tudo sobre o mundo, tendo
que se desdobrar sozinha para sobreviver. Mas isso agora acabou, Serena vai
ter a vida que merece, não apenas em termos materiais.
— Porque eu posso — respondo, meio brincando, embora não seja
uma resposta muito distante da realidade.
Implicar com Serena e chocá-la com meu dinheiro é divertidíssimo.
Ela sempre fica impressionada e nunca me oferece um olhar acusatório ou de
julgamento, embora não economize em adjetivos espirituosos com sua
boquinha astuta.
— Quanta modéstia, senhor milionário — ironiza, apoiando-se em
mim enquanto descemos juntos.
— Vai dizer que não gostou?
Serena se posiciona na minha frente, com as costas contra meu peito,
e toma uma respiração carregada, observando a vastidão norte da ilha que se
perde de vista no ângulo em que estamos. Mas a mansão é um espetáculo à
parte, com muros brancos destacados contra o verde escuro da vegetação
selvagem.
É maior do que nossa residência na Rússia. O jardim se propaga na
área plana ao redor da piscina, que conta com uma pequena cascata artificial
em sua composição. Há também uma fonte rústica próxima ao portão de
saída, com um casal de mármore e bronze se admirando amorosamente
enquanto a água chove sobre seus corpos talhados.
É romântico, muito diferente do que estamos acostumados, mas a
mistura clássica da arquitetura com alguns melhoramentos mais tecnológicos
e modernos — como as janelas panorâmicas ou as paredes clínicas de vidro
entre alguns cômodos — transformam a atmosfera em algo que combina com
a lógica russa; prática, moderna e, ainda assim, carregada de história.
— É lindo — Serena concorda, virando o pescoço com um sorriso
tenro após circundarmos toda região externa. — Mas, querido, isso é uma
ilha. Uma ilha inteira! — sussurra, exasperada, o sorriso congelado no rosto.
Tão linda.
— Eu compraria o mundo para você, se estivesse a venda — digo,
sincero, escancarando o meu amor sem mais jogos, brincadeiras ou
desafios. Argh! Estou derrotado aos pés dessa mulher e isso nem me
incomoda. — Venha, vamos entrar.
Exploramos o interior do nosso ostensivo refúgio e Serena não
disfarça nem um pouco o quanto acha tudo magnífico como em um palácio.
São três andares, sem contar a torre onde fica o quarto principal, que deixo
para mostrar por último.
— Vai poder decorar como achar melhor. — Passamos pela antessala,
cruzando o portal sob a escadaria bifurcada que sobe majestosa para o andar
superior. — Esse será nosso paraíso particular. Aviões de pequeno porte e
helicópteros não podem sobrevoar a região sem autorização, e todos os
funcionários moram em uma pequena vila de nativos perto da praia. Não
mais do que cem pessoas por enquanto.
Serena não responde, está atônita. Caminha dentro da galeria
fantasiosa que fica bem no meio da residência, entre vasos imensos de plantas
silvestres, deixando as mãos resvalarem na mobília antiga. Entendo que
esteja chocada, e até um pouco assustada, e amo ser eu a trazer essas
sensações novas à sua vida. Estou acostumado ao luxo, o exagero faz parte da
minha essência, e não aceito oferecer menos do que isso para a minha
família.
— Vamos nos casar aqui — aviso, um tanto presunçoso para que não
ouse dizer o contrário. Não discutimos o assunto desde quando exigi que se
casasse comigo, e nem pretendo.
Vamos nos casar. Fim!
Cruzo os braços, apoiando-me em uma coluna que transpassa todos os
andares até o teto. Serena percebe minha pose autoritária, e é claro que vem
toda altiva na minha direção com o olhar provocador e os quadris se lançando
para os lados, transmutada em seu modo diabinha insolente.
— Na ilha? — pergunta, laçando meu pescoço com os braços. É
tarde, o sol começa a adormecer, banhando as vidraças com uma coloração
bonita de laranja e amarelo.
— Sim. — Retribuo seu gesto, abraçando a cintura delgada que quase
desaparece entre os meus braços. Por pior que soe, a constatação da sua
fragilidade física faz cócegas no homem possessivo que habita em mim e que
deseja consumi-la vorazmente o tempo inteiro. Ao invés de fazer isso, desvio
para o romantismo, por enquanto, e digo: — Meu irmão se casou na mansão
a pedido da minha cunhada. Era onde se sentia protegida e amada, e não
queria uma exposição tão grande se locomovendo até uma igreja. Quero que
o nosso casamento seja livre de todas as lembranças ruins. Em um lugar só
nosso, onde construiremos nossas próprias memórias.
— Amo você, Lord Vlad — diz, escorando a cabeça sobre meu
coração disparado. — Não pensei que pudesse me surpreender mais, mas
conseguiu superar as minhas expectativas. Preciso parar de subestimar meu
noivo-quase-marido podre de rico.
Noivo.
Marido.
Porra, ela não tem mesmo noção de perigo! Ou melhor, até tem, mas
adora.
— Bem, essa foi nossa última extravagância por algum tempo, ou
Ivan é bem capaz de entrar em colapso nervoso. — Juntos, rimos da
possibilidade e começo a conduzir Serena para a torre. Haverá tempo para
conhecermos a ilha e o que mais ela quiser, mas agora preciso confiscar toda
sua atenção em nosso quarto até que o cansaço supere a luxúria. — Pense
nisso como um investimento, se isso fizer com que se sinta melhor. Essa ilha
estava esquecida por anos, sem injeção financeira externa ou qualquer outro
atrativo para movimentar a economia local. A mansão precisa de reformas, é
claro, mas a terra é fértil, o terreno é bom, e em breve poderemos expandir a
rede de hotéis que Roman comprou logo ali, na Itália. Quem sabe criando um
resort? Explorar o mercado turístico, sem prejudicar o meio ambiente da Ilha,
vai ser ótimo para a corporação.
— Não é à toa que você é o presidente. Tenho tanto orgulho de
você, Lord Vlad. — Espero a sensação de repúdio se alastrar ao ouvir sua voz
me chamando assim, presidente, mas não acontece. Sempre associei o
sucesso como presidente ao meu lado ruim, mas Serena também mudou isso.
— Desculpe ter dito que não era um homem tão bom quanto seu pai. Você é
incrível.
Pai.
Esse elogio me pega desprevenido. Utilizar o nome de Nicolai como
exemplo de bondade é quase tão absurdo quanto fazer o mesmo com o meu
nome, mas sua fala é tão sincera e amorosa que começo a desejar ser esse
sujeito que Serena acredita existir em mim. Ela continua sendo uma caixinha
de surpresas que nunca esgota, sobretudo no que diz respeito ao seu jeito
prático de lidar com a vida.
— Esqueça isso, não vamos falar sobre nada que tenha separado você
de mim — digo, preciso, não querendo entrar em qualquer assunto que não
envolva Serena e o nosso futuro juntos.
Subimos a escada espiralada até chegarmos às portas duplas, douradas
e ornadas com flores esculpidas em relevo sobre a madeira pesada. Ao
entrarmos, Serena novamente despeja seu extenso repertório de palavras
chulas em espanhol a respeito do majestoso espaço; meu preferido, sem
sombra de dúvidas.
É circular, com uma abóbada de vidro sobre o teto, que pode ser
aberta ou fechada por um mecanismo eletrônico. Há uma sacada que
apresenta a praia particular na lateral da encosta e o aroma salgado do oceano
desliza para dentro do quarto. O chão foi revestido com uma tapeçaria que
lembra muito a do hotel, confeccionada em um vermelho bem escuro, com
requintes de arabescos em forma de flores.
Ao menos aqui, a familiaridade russa me agrada mais, e, pelo olhar
lacrimoso de Serena para os detalhes, presumo que também tenha aprovado.
Ela retira as botas e corre para a cama, jogando-se de costas, com os
braços abertos.
— Isso parece um sonho! — Suspira. — Por favor, se for um sonho,
não quero acordar nunquinha! — avisa, apontando o dedo para mim, como se
eu tivesse o poder de decidir isso.
Jogada sobre lençóis perolados, com a luz opaca do anoitecer
suavizando seus contornos, Serena rola pelo imenso colchão até ficar
ajoelhada na ponta. Os cabelos despenteados junto com o rosto corado pela
alegria deixam-na com aspecto feroz, o que é uma merda, porque sei que sua
cabecinha engenhosa está imaginando as coisas que faremos nesse quarto em
breve.
Ela é tão transparente para essas coisas, ainda mais quando começa a
arfar só com a expectativa. Sua reação exótica faz meus pés ganharem vida e
tão logo estou diante dela, olhando-a por cima.
— Descanse, Corazón — oriento, mas o brilho em seus olhos mostra
que minha rouquidão não passou despercebida. É impossível não ficar atraído
quando começa com seu jeitinho sem vergonha. — Tome um banho e durma
um pouco, ainda tenho mais uma surpresa assim que a noite chegar e espero
que esteja com as energias recarregadas.
— Oh! Misterioso… — Ela segura o cós da minha calça, brincando
com a fivela do cinto. — Vai finalmente revelar que é um vampiro e sugar
todo o meu corpo?
Boa escolha de palavras.
— Não é uma ideia ruim. Você bem que gostaria, não é? — Agarro
seu rosto, no espaço entre o pescoço e a mandíbula, e Serena sorri
jocosamente.
Eu sempre me perco, não tem salvação.
— Espero que isso seja uma promessa, Lord Vlad.
— É um aviso, Corazón. — Curvo-me, provando sua boca com um
roçar suave. — Ficaremos sozinhos nessa ilha por uma semana. Acha que eu
trouxe você só porque sou um homem romântico e atencioso?
— Você é um amor… — ironiza, impiedosa, trincando os dentes para
esconder que odeia a lentidão. Sua fome me enlouquece.
— E você é minha — afirmo, ciente do efeito que essas palavras
ocasionam em seu corpo. Sabemos que isso tem um limite insignificante
quando estamos escondidos dos olhos do mundo. — Toda minha, sem
ninguém para atrapalhar por uma semana inteira.
***
— Ela não gosta quando está calor — digo para minha mãe, que bufa
dramaticamente no outro lado da linha.
— Não tem nada melhor para fazer Vladimir? — reclama. Estamos
conversando há menos de dez minutos e ela já tentou desligar cinco vezes.
— Sei muito bem do que a minha neta precisa. Já disse para não se
preocupar. Graças a Deus sua mulher já está grávida, ou eu estaria ainda
mais frustrada com você. — Alguém diz alguma coisa no fundo, parece a voz
de Roman. Minha mãe troca poucas palavras com quem quer que seja antes
de voltar para o telefone. — Querido, por acaso você não gosta de sexo?
Existem médicos especializados se estiver com problemas de…
— Boa noite, mãe! — Adianto-me, antes que essa conversa piore.
Minha mãe é a mestra da lábia quando quer nos irritar.
— Não ligue! — ordena, desligando em seguida.
— Algum problema? — A voz de Serena soa no quarto escuro. As
cortinas estão fechadas, mas a noite nos assiste do alto, atrás do côncavo
transparente no teto. Iluminada pela lua e pelas estrelas, Serena se levanta,
bocejando e se espreguiçando em uma camisola branca que não esconde a
nudez por baixo do tecido translúcido.
— Minha mãe ligou — conto, descartando o celular sobre a mesinha
ao lado da poltrona em que me sentei para apreciar minha mulher dormindo
tranquilamente. — Está tudo bem, mas Luna estava um pouco inquieta e eu
disse para minha mãe que pode ser por causa dos aquecedores.
Levanto-me da minha posição e me acomodo perto de Serena, só
então consigo enxergar seu olhar tristonho, cabisbaixo, as mãos fechadas nos
lençóis amarrotados.
— Entendo… — murmura, abatida. Tento imaginar o que pode ter
causado essa reação, mas nada óbvio me ocorre e odeio a impotência quando
Serena está envolvida.
— Algum problema? — indago, aninhando Serena entre as minhas
pernas.
— Ela não gosta quando está calor… — Repete as minhas palavras.
— Camillo disse isso antes de… — Não termina de falar, não precisa. —
Essa foram as últimas palavras do meu irmão. Agora entendo, estava falando
sobre ela, nossa Luna.
Cretino, penso, constatando que continuo bem insensível para alguns
assuntos. Mas talvez não seja apropriado admitir isso assim, e muito menos
agora.
— Sente falta dele? — questiono, pesando minhas palavras com
sabedoria, sem deixar que as emoções aflorem e Serena acabe se chateando
por minha causa.
— Não tenho certeza. Acho que tinha esperanças de que melhorasse,
sabe? Que se recuperasse. — Encostando a cabeça entre meu pescoço e a
clavícula, Serena dobra as pernas, abraçando os joelhos. — Acha que sou tola
por pensar assim?
Tento me colocar em seu lugar. É o irmão dela, o pior tipo, mas ainda
assim… Eu morreria por meus irmãos. Mataria por eles, assim como fariam o
mesmo por mim. Mesmo odiando tudo o que Camillo causou, não ouso
atentar contra os sentimentos fraternos.
— Era seu irmão. — É tudo o que consigo dizer para confortá-la. Um
fato que justifica a tristeza da sua perda, sem mostrar como considero a
memória de Camillo tóxica para minha mulher, que já passou por tanta coisa
graças às escolhas dele. — Vem, está na hora do seu presente — informo,
beijando seu rosto antes de levantar e obrigá-la a fazer o mesmo.
— O que é? — sonda, curiosa, deixando o assunto anterior se esvair
junto com a melancolia.
— Surpresa! — De mãos dadas, levo Serena na direção da sacada,
abrindo as cortinas e a porta de vidro.
— O que tem aí? — insiste, ficando na ponta dos pés para bisbilhotar
sobre os meus ombros.
— Você faz muitas perguntas, Corazón.
— Talvez porque meu noivo tenha uma mania irritante de não
responder nada do que eu pergunto. — Serena passa na frente, mas a sigo de
perto para não perder nada das suas reações. Ela contempla primeiro as
estrelas, muito visíveis e brilhantes no céu e no espelho oceânico embaixo.
Só depois percebe o objeto cromado na borda do parapeito de pedras. — Isso
é… um telescópio?
Serena é esperta, não precisa de mais do que isso para tirar suas
próprias conclusões. E eu amo. Porra! Amo demais a sua perspicácia, a
forma como seu rosto escancara todas as emoções em questão de segundos,
indo da incredulidade à indignação, da vontade de me bater à de me beijar.
— Comprou uma estrela! — exclama, toda linda com o nariz
vermelho e um sorriso tenso.
O frio nem se compara ao que estamos acostumados em nosso país,
mas os ventos marítimos são gelados e Serena se arrepia, exposta demais em
seus trajes indecentes e muito aprazíveis.
Pensei por dias em uma maneira única de presentear Serena com algo
significativo. A ilha, mesmo sendo magnânima financeiramente falando, é
parte de um negócio. Eu penso assim, não há o que ser feito; meu cérebro
está condicionado a funcionar segundo a lógica empresarial, e investir em
uma ilha fora da Rússia, principalmente depois de todos os escândalos,
pareceu a escolha mais inteligente. Além do mais, não temos como morar
aqui o tempo todo. Nosso lar é em Moscou.
Mas eu queria algo especial. Uma coisa apenas nossa, tão louco
quanto nós e esse relacionamento cheio de insanidades maravilhosas.
A sacada forma uma meia-lua na frente do quarto, com típicas
espreguiçadeiras em junco acolchoadas e mesinhas com tampos de vidro e
pés de madeira.
— Foi bem mais fácil do que eu imaginava, para falar a verdade —
confirmo, pegando as três pastas bonitas ao lado do telescópio. Entrego as
duas primeiras a Serena. — Essa se chama Luna, uma anã-vermelha, e aqui,
uma gigante-azul, para o nosso filho.
Serena olha as duas pastas. Atordoada, busca palavras, abrindo a boca
e fechando sem parar, mas acaba gargalhando nervosamente. Na primeira,
está o pequeno globo vermelho que representa nossa filha, e Serena leva um
longo momento lendo o nome completo — que já leva o meu patronímico e o
sobrenome dos Volkiov.
— Não é oficial de verdade — explico, para quebrar o silêncio. — Os
nomes científicos continuam sendo os mesmos, então a compra é
emblemática. É possível as encontrar no céu com as indicações de latitude e
longitude do certificado.
— Isso é tão incrível, Lord Vlad. Oh, céus! Se eu já não amasse você,
passaria a amar agora mesmo! — Serena guarda a estrela de Luna e vai para a
próxima, mas hesita, como eu já havia previsto. Certeza de que vai surtar…
— Você escolheu o nome do nosso bebê sem me consultar? ¡Dios
mio! Vladimir, colocou o nome do nosso filho, que não foi escolhido com o
meu consentimento, em uma estrela?
— Leia, Serena!
— Não! E se for algo horrível como… Nikita? — Ela me devolve a
pasta. — Ou, ou.. Galina? Meu Deus, Vladimir, me diga que o nome do
nosso filho não soa como um mugido, ou um cacarejo, e nem com o nome de
nenhum animal em espanhol! — Ela geme, fazendo uma careta, com a mão
em cima da barriga. — Desculpe, bebê, a mamãe promete que isso não vai
acontecer.
Serena é meu teste de paciência particular! Só pode.
— Vai mesmo destruir todas as minhas tentativas de ser romântico?
— digo, irritado. É uma doidinha linda, mas entender sua mente nunca
funciona.
Eu mesmo retiro o conteúdo, mostrando primeiro a massa azul,
vibrante e forte no meio do cosmo galáctico. Depois, entrego-lhe o
certificado, mostrando o nome destacado, e Serena escancara a boca de
surpresa.
— Nicolai? — lê, evocando lágrimas a seus olhos. Serena chorando é
uma visão para a qual nunca estou preparado. — Mas… Você não… — Por
espontânea vontade, Serena me abraça, o gesto demonstrando o que as
palavras não foram capazes.
— Eu amei meu pai, Serena — sussurro com a boca apoiada contra a
sua cabeça. — Durante a minha infância, ele era o meu herói. Com ele
aprendi sobre o amor, mas também sobre como os efeitos do ódio e da
opressão são mais imediatos e duradouros. Mas ele amou você, protegeu e
cuidou. Devo isso a vocês, e quero que seja um recomeço para nossa família.
— Obrigada, eu amei, amei demais. — Ela funga de olhos fechados.
Beijo sua testa, mas frações não são suficientes e busco por seus lábios,
roubando sua boca úmida em uma junção celestial de línguas e respirações
entrecortadas. Ao final, pergunta: — Vladimir? E se não for um menino? —
Agora é ela a implicar comigo.
— Será! — decido, simplesmente.
— Certo. E se não for? — pressiona, mordendo meu queixo.
— Então teremos que continuar tentando até que ele venha. Há muitas
estrelas no céu esperando para serem nomeadas. Mas não vamos desviar do
foco aqui, ainda não acabamos. — Aponto para o telescópio, já posicionado
na frente de uma cadeira larga. Sento-me primeiro, depois coloco Serena em
meu colo e a ajudo a olhar através da pequena lente que já está posicionada
na direção certa. — Essas são estrelas binárias, consegue ver?
Serena curva para frente, arrebitando os quadris para trás, empinando
em cima do meu colo. Não é uma provocação direta, mas o corpo perfeito tão
perto, tão encaixado, tão delicioso, quase me faz pular o restante das
declarações para voltar a preencher seu corpo.
— São duas? — pergunta, impressionada com o par de pontinhos
brilhantes que já gravei na minha mente depois de admirá-los por horas.
Seu fascínio é tamanho que nem percebe minhas mãos aliciando-lhe a
cintura curva, as coxas meio abertas. A resposta à sua pergunta só chega
depressa porque ensaiei inúmeras vezes para ter certeza de que tudo seria
perfeito.
Ledo engano. A mulher consegue me desestabilizar até quando não
tem intenção.
— Sim — rosno, incapaz de me controlar. Serena percebe que a pose
em que estamos não me favorece nem um pouco. Ou melhor, favorece mais
do que deveria, considerando meus planos preliminares. — Elas compõem
seu próprio sistema estelar, duas estrelas solitárias, ligadas por uma órbita
própria. — O corpo quase desnudo de Serena reage ao som da minha voz, e
ela abandona o telescópio para se dedicar inteiramente a mim. — A estrela
primária se chama Corazón, orbitada pela segunda. É assim que me sinto ao
seu redor: existindo porque você existe. — Conduzo minha boca para perto
do seu ouvido, enquanto minhas mãos fazem o caminho da perdição, rumo
aos seios entumecidos tanto pelo frio como pela expectativa da promessa que
o meu corpo faz ao dela. — Assim somos nós, criando nosso universo
particular.
— Você é lindo, louco e completamente apaixonante, Lord Vlad. —
Meu nome é pouco menos que um gemido. — Obrigada por ser tão incrível.
— Agora… — Empunho seu pescoço com brusquidão, forçando-a a
se contorcer em uma posição muito sugestiva e erótica. — Gostaria muito de
ganhar o meu presente também.
Inquieta, Serena faz de tudo para manter o mínimo de controle. Mas é
tarde para nós dois, principalmente quando a ouço dizer:
— Como ganhar o que já é seu?
Levanto-me e a levo comigo. Serena grita com o arrebatamento
repentino, mas segura meu pescoço enquanto a carrego de volta para a cama e
a derrubo sobre os lençóis, afastando seus tornozelos antes de mergulhar
minha boca na umidade pulsante do seu prazer.
— O que vai… — A voz dela se desfaz em um lamento jubiloso.
Serena não tarda a obedecer aos meus silenciosos comandos
corporais, arqueando as costas para que eu desfrute do seu sabor, elevando
todos os meus sentidos a um patamar desconhecido antes dela. O toque dos
nossos corpos exigentes dispara uma corrente de sentimentos bons direto para
o meu coração, enquanto meus ouvidos brindam ao som das suas súplicas
afogadas no mais absoluto prazer. Perco-me no gosto da pele nua como um
homem à deriva faria depois de muitos dias sem saciar a sede da água doce; e
o cheiro… céus! O perfume libidinoso do meu corpo se misturando com o
dela, viciante como uma droga.
— Te amo mucho, Lord Vlad — geme, enfiando os dedos cuidadosos
entre os meus cabelos, forçando os quadris gananciosos em busca de alívio
para a fome que a faz implorar usando meu nome.
Meu nome.
Ensandecido de desejo, não deixo que se perca ainda, apesar do
lamento penoso que emite quando minha boca sobe para a barriga,
resvalando sobre o peito arfante. Nosso desespero entra em sintonia e Serena
pragueja, puxando meu rosto agressivamente para o seu e beijando-me com
fervor.
Ela se arrasta embaixo de mim, facilitando o nosso encaixe magistral.
Desejei poucas coisas com tanto afinco como anseio despejar o nome dela
enquanto proporcionamos o ápice um ao outro.
— Também amo você, Corazón.
Unidos tanto na carne quanto na alma, sustentamos nossos olhares e
reverenciamos o sentimento que se converte em harmonia enquanto nos
movimentamos sempre de encontro ao outro. Aprofundo-me em Serena com
cada vez mais força conforme seu clamor aumenta, e suas unhas arranham
minhas costas a cada investida feroz.
Rápido.
Profundo.
Caótico.
Não importa se o nosso amor estava escrito nas estrelas, eu lutaria
contra o universo se preciso fosse, desde que a tivesse exatamente onde está
agora. Ela prometeu se tornar a minha morada e conseguiu mais do que isso.
Entre acasos e destinos, Serena apareceu na minha vida e mostrou que
não preciso viver na escuridão sozinho. Que ela não é luz para erradicar
minhas trevas, mas que vai sempre me enxergar no meio do breu, assim como
eu sempre a encontrarei nas profundezas mais silenciosas e vazias, porque
juntos somos o próprio caos, que, em uma sucessão agonizante de desastres,
torna-se único, indestrutível e eterno.
DÍVIDA PAGA
ACHO QUE DESSA vez passei dos limites. Não sei, alguma coisa nos
enfurecidos olhos azuis do meu marido diz isso; o rosto vermelho, junto com
a mandíbula enrijecida, também. Ora, o homem todo está prestes a explodir, é
claro que passei dos limites!
Algumas vezes, Vladimir é tão romântico e perfeito que quase me
esqueço da fera escondida por baixo da capa de marido dramático e
superprotetor.
— O que você disse? — grunhe, rangendo os dentes. — Desde
quando essa merda está acontecendo?
Olhando de esguelha, vejo Bóris, nosso psicólogo, entretido com a
discussão ao invés de conduzir a terapia de casal como era de se esperar. O
velho nem disfarça o quanto está pouco se importando com o nosso
confronto.
Talvez não tenha sido uma boa ideia dizer que os colaboradores
ricaços e bonitões — nessas exatas palavras — do abrigo não economizam
elogios ao trabalho que eu e Lara estamos realizando. A ideia era o deixar
orgulhoso, mas mirei errado e acertei em cheio no ciúme.
— Desde sempre — respondo com calma, por mais que a vontade
seja mandá-lo à merda. Hipócrita! — Não sei se você sabe, mas merecemos
todos os elogios! O abrigo tem sido muito enaltecido pela imprensa e o
objetivo é que a ajuda continue chegando cada vez mais. A proximidade com
nossos colaboradores é muito benéfica para ambos os lados, pois assim eles
podem averiguar onde o dinheiro que injetam está sendo investido.
Mas Vladimir ainda não se convence. Hoje ele acordou virado do
avesso, cruzes! Tudo isso só porque dormiu no sofá?
— A Corporação Volkiov faz muitas doações todos os meses, Serena,
e nem por isso fico marcando reuniões privadas com as diretoras de cada
instituição — argumenta, retesando o corpo e jogando um braço para o alto
na tentativa de extravasar a frustração. — Já posso imaginar que tipo de
investimento eles estão interessados em fazer.
— ¡Dios mio! Você é tão homem das cavernas às vezes! — reclamo,
indignada com seu exagero, e apelo para minha carta na manga. — Sou uma
mulher grávida, Vladimir. Olha o tamanho dessa barriga, acha mesmo que
algum homem vai se interessar por mim assim?
Falar sobre a gravidez e, principalmente, sobre a incrível,
protuberante e pesada barriga onde nosso Nicolai segue sem manifestar
nenhuma intenção de sair sempre funciona para acalmar o monstro. Vladimir
abre um sorriso admirado e bastante prepotente no mesmo instante.
— Que argumento ridículo — diz, tocando o topo redondo por cima
do vestido. — Você está linda e gostosa, mais do que nunca.
Meus olhos quase param na nuca. Só espero que esse tesão estranho
pela minha barriga grávida acabe assim que nosso bebê nascer, porque não
estou nem um pouco animada para passar por isso outra vez tão cedo.
Talvez nunca!
— Ridículo ou não, querido, é um fato consolidado que você, sendo
um presidente assediado constantemente pelas cocoricos de plantão, está
exagerando. — Vladimir começa a falar junto comigo, tentando anular meu
contra-ataque, então solicito a ajuda do psicólogo que está sendo pago para se
divertir às nossas custas. — Está vendo? Ele não consegue admitir quando
está errado!
Bóris, o psicólogo da família, um senhor que deve ter nascido mais ou
menos há uns duzentos anos, com seus cabelos brancos concentrados em
cima das orelhas e nenhum no alto da cabeça lisa, empurra os óculos para
cima, fazendo com que seus olhos se agigantem atrás das lentes garrafais.
O consultório é exatamente como eu me lembrava da época em que
Nicolai pagou meu tratamento. Espaçoso, porém escuro demais e nem um
pouco convencional; inclusive, a mobília mórbida e o cheiro forte de tabaco
poderiam tranquilamente ser características de que um psicopata do século
passado faz uso desse aposento.
— Eu admitiria que estou errado se estivesse errado! — brada meu
presidente, que está mais do que perfeito em um finíssimo terno escuro e
misterioso. Não julgo nosso sobrinho por ter confundido o tio com um agente
secreto, ele se parece mesmo com um quando se veste assim.
Um agente secreto misterioso e sexy! Céus, eu podia fantasiar com
isso à noite.
De dia também!
Agora, inclusive.
— Vocês discutem assim com que frequência? — pergunta Bóris de
modo enfadonho, acabando com a minha linha de raciocínio. — Como é a
comunicação de vocês?
— Ótima! — Vladimir se adianta, irritado com essa situação.
— A gente transa — intervenho, sendo mais específica.
— Como eu disse, ótima! — diz meu marido, sorrindo perversamente.
Está bem, não discordo.
Bóris resmunga alguma coisa que soa como "idiotas", abaixa a cabeça
e anota uma palavra em seu bloco de notas — tenho a impressão de que
também escreveu "idiotas" no papel. Os óculos voltam a escorregar para a
ponta do nariz e dessa vez ele não arruma, apenas nos olha sobre as hastes
douradas.
— Pretendem se separar? — pergunta, direto, fazendo-me gargalhar.
Será que ficou doido?
Vladimir grunhe, pronto para ter uma síncope.
— Que absurdo! — responde irritado, como se Bóris tivesse sugerido
que ele desse um tiro no próprio pé. Meu marido é lindo demais, ¡puta
mierda! — Jamais, nunca, em hipótese alguma. Serena, vamos embora, esse
homem não tem ideia do que diz.
Lindo e louco.
— Vlad, meu amor, ele só fez uma pergunta, não mandou que a gente
se separasse. — Tento acalmar meu homem, mas a vontade de gargalhar é
maior e ele fica mais emburrado.
— O que os dois tontos precisam entender é que a terapia de casal
serve para fortalecer a relação! — Bóris explica, bufando. — Para encontrar
um significado, entendem?
— Como eu disse, isso é uma perda de tempo — Vladimir resmunga,
olhando impacientemente o relógio em seu pulso. — O significado é que eu
amo essa mulher, todas as células do meu corpo amam essa mulher, mesmo
que ela teste a minha paciência em noventa e nove por cento do tempo! Acha
mesmo que, se eu não a amasse, estaria aqui?
— E por que estão aqui, afinal de contas? — Bóris se queixa,
apontando para a saída pela quinta vez desde que chegamos.
A consulta foi ideia minha, porque talvez isso nos ajudasse a
apaziguar toda essa onda de poderes se chocando o tempo todo. Não quero
que nenhum de nós dois mude, mas que Vladimir entenda que não precisa
mais se esforçar tanto para compensar seus erros comigo, que isso não
continue sendo um fardo para o nosso amor que é tão lindo.
Mas Vladimir, impaciente, começa a tagarelar com sua pose
autoritária que amo.
— Bem, se o senhor tiver alguma ideia de como fazer com que a
minha mulher pare de ser tão inconsequente e imprudente, para que eu não
precise me preocupar o tempo inteiro, isso seria interessante.
— Não sou imprudente! — protesto, cruzando os braços em cima da
barriga.
Meu marido gargalha, debochando.
— Querida, você saiu sem os seguranças três vezes só essa semana,
brigou com o pai de uma criança que apareceu no abrigo pedindo ajuda e
ficou presa no meio da estrada porque esqueceu de abastecer. Isso sem
mencionar a sua mania de nunca carregar o seu celular que me deixa
ensandecido.
Bóris solta um pigarro solidário. Traidor!
— Detesto os seguranças, você sabe disso. Chamam muita atenção e
não preciso deles quando estou no abrigo — explico, mas sei que não
convenceria nem uma criança. Tudo bem, ele tem um ponto nessa. — E
você? O que me diz da última vez em que discutimos e você voltou para a
empresa como se nada tivesse acontecido?
Esfregando os olhos com força, Vladimir pragueja e respira fundo,
invocando um pouco de discernimento antes de continuar, dessa vez mais
controlado.
— Você me trancou para fora do quarto só porque estava em uma
reunião com Elena Kokorin, e nós dois sabemos que ela me odeia. O que
esperava que eu fizesse, Serena? É por você e Luna que eu volto para casa
mais cedo. Se não posso estar com as minhas meninas, então vou trabalhar.
Ah, tão lindo esse homem, meu Deus. Como pode dizer algo
maravilhoso assim e, ao mesmo tempo, que me estressa tanto?
— Eu estou grávida — comunico, caso não esteja evidente o bastante.
— Você deveria se ajoelhar e implorar.
— Ficar ajoelhado era o meu plano, Corazón, mas a única implorando
seria você. — Seu olhar vibra, perigoso e cheio de malícia.
Misericórdia!
Quero.
Digo, quanta arrogância!
Quero mesmo.
Prepotente!
— Está vendo, doutor? Tudo para ele gira em torno de sexo! —
acuso, fingindo uma indignação que não existe. Até eu me surpreendo com a
minha cara de pau às vezes.
— E para você, não? — Vladimir questiona.
Outro ponto para ele, droga!
— Já chega! — Bóris bate as mãos em cima da mesa; os óculos caem
do seu rosto e ficam pendurados no pescoço por duas cordinhas marrons. —
Eu tenho mais o que fazer, vocês não precisam de terapia, e sim de um
quarto. Andem, sumam das minhas vistas. E diga para aquela velha bruxa que
eu estou aposentado! Aposentado!
Suponho que a bruxa velha em questão seja a minha sogra, que de
velha não tem nada.
— Ótimo, finalmente concordamos em alguma coisa! — Vladimir
sorri para o homem de maneira cúmplice, e Bóris esconde um risinho antes
de fechar a cara e nos despejar outra vez.
Ainda tento insistir, minha ideia era ótima, mas parece que nossa
terapia íntima funciona melhor. É claro que nós dois ainda precisaremos nos
encontrar outras vezes com o psicólogo — não necessariamente Bóris, já que
ele nos odeia —, pois faz parte do meu tratamento que a família esteja
presente.
Depois da morte de Camillo e Annia, tive algumas crises mais suaves.
É sempre assim, basta abrir uma fresta na porta que trancá-la de novo se torna
um martírio. Mas estou conseguindo, aos poucos; já faz bastante tempo que
não acontece e Vladimir tem me ajudado muito com meus medos.
Já no carro, de volta para casa, Vladimir tenta esconder a expressão
de quem ganhou uma guerra e está sentado no trono. A terapia pode ter sido
uma péssima ideia, mas ao menos agora temos o aval de um doutor para
continuarmos solucionando nossos embates da maneira que a gente mais
gosta.
Na cama.
***
***
FIM
Meu Deus, há tantas pessoas a quem desejo agradecer nesse momento
que tenho medo de acabar esquecendo algum nome importante. Caso eu o
faça, peço que me perdoem, mas farei o meu melhor para expressar o quanto
sou grata por todo apoio e carinho recebidos durante o processo de escrita
desse livro.
Agradeço primeiramente a Deus, porque ter me dado a força
necessária para passar por todas as provações, dificuldades, desencontros e
desventuras durante os meses em que estive escrevendo Entre Acasos e
Destinos. Houve momentos em que a vontade de desistir foi grande,
confesso, mas o amor por essa família e por todos que partilham desse
sentimento junto comigo foi mais forte, e isso me deixa imensamente feliz.
Vladimir foi meu grande desafio, e só quem esteve pertinho sabe!
Eu quero agradecer principalmente às minhas leitoras da plataforma
Wattpad, que estiveram ao meu lado por meses, aguardando pacientemente
por novos capítulos, enviando mensagens nos momentos difíceis. Vocês
fizeram esse livro acontecer, obrigada! Também deixo um agradecimento
mais do que especial para todas as meninas do grupo do WhatsApp que me
acolheram não apenas como autora, mas como amiga também. Amo vocês!
Um agradecimento super especial para minha “best”, autora Sara
Fidelis, que não apenas ouviu meu choro, como também chorou junto
comigo, ajudou com conselhos, com incentivos, com nossas caminhadas
literárias, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença (hahaha). Te amo
amiga, obrigada.
Um grande, imenso, e super especial à minha revisora, autora Victória
Gomes, que revisou esse livro EM TEMPO RECORDE! Passou noites em
claro para me entregar a melhor versão que Vladimir poderia ter.
Quero agradecer meu marido e meus filhos, que me apoiam na
ausência, nas noites em claro e no constante mau humor pela falta de sono e
muita cafeína no organismo. Amo vocês.
E por último, mas não menos importante, um super obrigada a todas
as minhas amigas autoras, que sempre estiveram presentes, conversando e
apoiando, dizendo que eu conseguiria. Não citarei nomes, porque não quero
esquecer ninguém, mas vocês sabem!
A palavra que fica é: gratidão! Hoje e sempre.
AMO FORTE
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LIVRO: Entre Perdas e Ganhos
SINOPSE:
"Quando se perde um grande amor, o que sobra no final?"
IVAN VOLKIOV conheceu o amor ainda na infância e aquele sentimento se perpetuou ao
longo da juventude; mesmo que o seu relacionamento estivesse vinculado com os negócios da família,
nada importava desde que ela estivesse ao seu lado. No entanto, um grave acidente em uma madrugada
há cinco anos levou para sempre aquela que acreditava ser sua alma gêmea, e ele agora precisa
conviver com a dor e o ódio de ter perdido tudo.
No meio de todo o seu sofrimento, Ivan sabe que há uma única pessoa a quem culpar. Lara
Ihascova, a irmã de sua amada... e principal responsável pela morte dela.
LARA IHASCOVA, por outro lado, tem passado seus dias como uma sombra desde que tudo
aconteceu. Para se livrar da pressão do pai e conquistar o direito de ficar ao lado da única luz que ainda
brilha em sua vida, Lara aceita prosseguir com o acordo matrimonial que a irmã deveria ter selado antes
da morte. Mas ela não podia contar que Ivan Volkiov voltaria do exílio em Nova Iorque para interferir
nos seus planos e reviver sentimentos há muito soterrados
LIVRO: Picante e Lascivo
SINOPSE:
[1]
Menina louca!
[2]
É você, irmão?
[3]
Menina
[4]
Merda Serena, escute-me!
[5]
nossos pais
[6]
Perdoe-me.
[7]
Trecho da música “Pérdon”, David Bisbal.
[8]
Não sei falar em russo.
[9]
Meu Deus!
[10]
Ah, mãezinha das virgens em apuros
[11]
Coração.
[12]
Que mulher linda!
[13]
Criança
[14]
Eu sinto muito.
[15]
Mas que idiota!
[16]
Tudo bem
[17]
Um idiota.
[18]
Para o inferno com o seu controle, pouco me importa.
[19]
Idiota de merda!
[20]
Equivalente em espanhol ao ditado “Quando a esmola é demais, o santo desconfia”.
[21]
Que homem!
[22]
Fique calmo, Camillo.
[23]
Eu Também te amo muito, Lorde Vlad.
[24]
Muitas coisas irmão
[25]
Não pode morrer, irmão.