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Henry leva mais de uma hora para voltar. Nesse meio tempo,
Peter fica com a cara grudada na janela da sala, os pés para fora do
sofá balançando cheio de impaciência. Seu grito de alegria ecoa
pela casa quando o carro prateado embica na garagem e o pai saiu
com duas imensas sacolas em mãos. Sem nenhuma cerimônia,
irrompe porta adentro e entrega uma delas ao menino.
— Você poderia bater com essas botas no tapete? — reclamo ao
ver o chão limpinho acumulando sujeira, mas Henry não me escuta.
Está concentrado em ver Peter lutando com uma sacola grande
demais para uma criança tão pequena. Adianto-me para ajudar
quando o conteúdo cai no chão.
— É uma fantasia do Homem-Aranha! — grita Peter, mais alto do
que nunca. Henry sorri e tira uma segunda embalagem contendo
uma fantasia, muito maior, da sacola que ainda tem em mãos.
— Sim! E comprei uma para mim! — Os gritos alegres de Peter
aumentam. Meu Deus, daquele jeito o meu filho vai ficar sem voz!
Ao pensar que as surpresas acabaram, Henry me encara. —
Comprei uma para você, também — diz, me estendendo a sacola
que julgava vazia. Encaro a fantasia de cenho franzido.
— Essa daqui não é do Homem-Aranha.
— Claro que não. É da Gwen Stacy. Ela é uma das namoradas
do Homem-Aranha. — Ele revira os olhos diante da minha cara de
interrogação. — Caramba, mulher. Em que mundo você vive?
Devolvo a fantasia, batendo com ela em seu peito.
— Desculpe, mas não tenho obrigação de saber quem namora ou
não com o Peter Parker. — O demônio sorri, cheio de sarcasmo, e
preciso me segurar para não falar “Viu, eu sei o nome real do
Homem-Aranha!” Na realidade, achava que a namorada dele fosse
a Mary Jane, ruiva igual a mim, mas acho melhor não prolongar o
assunto. — O que os senhores pretendem fazer com isso?
— Nos fantasiar, mamãe. — Peter declara, como se fosse óbvio.
Fecho a cara para a sua resposta direta e o meu filho se encolhe. —
Desculpa.
— Está tudo bem. — Para confirmar, beijo o topo da sua cabeça.
— Só não façam bagunça, por favor. Acabei de arrumar a casa.
— Não vamos fazer. — Henry pisca para o menino que ri. Menos
de vinte e quatro horas de convivência e já estão assim, unha e
carne. — Vamos nos trocar?
— Vamos! — Peter grita, correndo com a sua fantasia para o
andar de cima.
— Precisa de ajuda? — pergunto, mas ele já desapareceu em
seu quarto. Henry me encara e ergue uma sobrancelha sugestiva.
Reviro os olhos. — Não estava falando com você!
— Eu sei, mas se quiser ajudar…
Olho bem para o seu rosto e, sem dizer nada, dou-lhe as costas e
vou para a cozinha. O almoço não vai se preparar sozinho, com ou
sem Homens-Aranhas em casa, e estou com zero paciência para os
trocadilhos cheios de duplo sentido do meu cunhado. Mesmo de
longe, escuto sua risada rouca enquanto sobe as escadas. Já que
ele inventou, que se vire para ajudar Peter a se vestir.
Leva menos de dez minutos para o meu filho se materializar na
cozinha. Peter deixou os pulos de lado e se arrasta pelo chão feito
uma aranha, batendo nos móveis, fazendo barulho e fingindo soltar
teias igualzinho o personagem do filme. É impossível não sorrir para
a cena. Henry errou o tamanho da roupa e caberiam sem dificuldade
dois meninos naquele amontoado de tecido vermelho e azul, mas
ele não parece se importar.
— Pelo visto o Capitão América deixou de ser o seu favorito —
brinco, lembrando do último Halloween com a presença de Hector.
Passamos diante de uma loja de fantasias e Peter pediu por uma.
Ele veio com aquele papo de na volta a gente compra, se esqueceu
e, no fim, os dois saíram para pedir doces vestidos de vampiros.
Meu rosto esquenta ao lembrar como Hector ficou elegante de
Conde Drácula.
E esquenta ainda mais ao ver Henry descendo as escadas. Ele
teve a capacidade de errar o tamanho da própria fantasia, mas,
enquanto a de Peter ficou grande, a dele ficou pequena. O tecido se
estica pelos ombros largos, delineando o peitoral forte, passa pelos
gominhos da sua barriga e desce sobre imenso volume marcado
entre as suas pernas. É impossível não olhar e Henry, claro,
percebe. O seu sorriso cresce conforme o meu rosto fica vermelho.
— Vou precisar de ajuda — dá de ombros, virando-se de costas.
Respiro fundo e agarro a cabeça do zíper em sua lombar,
subindo-o devagar pelas costas torneadas até a base da nuca. O
tecido fino se estica ao extremo e a costura esgarça em alguns
pontos, mas mantém-se firme. Quando ele se vira, absolutamente
tudo ficou ainda mais marcado. Se eu não tivesse visto o cós da sua
cueca, diria sem pensar duas vezes que ele estava sem uma.
Peter esbarra em suas pernas e corre para a sala de estar,
batendo e tropeçando em tudo o que encontra pelo caminho.
Observo a cena um pouco alarmada, mas meu filho parece bem.
Aquela é a deixa para que o meu cunhado coloque a máscara e saia
em perseguição do menino.
Peter tira a sua, gritando ao ver que o pai está prestes a agarrá-
lo. Sem pensar duas vezes, meu filho tão comportado sobe no
encosto do sofá e pula do outro lado. Só não cai de cara no chão
porque Henry é rápido em agarrá-lo no ar.
— Cuidado, vocês dois! Desse jeito vão se machucar! — alerto,
mas ninguém me escuta.
Aquilo faz o meu sangue ferver. Para que eu não me enfureça
ainda mais, dou as costas aos dois e volto, ou melhor, tento voltar,
aos preparativos para o almoço. Logo vejo ser impossível fazer
qualquer coisa com a gritaria que vem da sala. Tanto Peter quanto
Henry parecem ensandecidos, baques e pulos se misturando às
risadas. Quando um baque mais alto ecoa pela casa, bufo, irritada,
e deixo os legumes cozinhando no vapor aos cuidados de si
mesmos para ver o que raios está acontecendo no outro cômodo.
— O que vocês estão fazendo? — pergunto, mãos na cintura, ao
pegar os dois de pé em cima de um dos sofás. Meu filho me ignora
e continua pulando. Por sorte ele é leve, senão, tenho certeza de
que o assento teria afundado. — Peter, pode parar!
Ele para e me encara, os cabelos ruivos grudados no rosto
suado, o corpinho magro dançando por entre as sobras de tecido.
Faz menção de descer, mas depois muda de ideia. Pega uma das
almofadas pelas pontas e bate com força contra as pernas do pai.
Henry se desequilibra, mas logo se ajeita. Não consigo ver os
seus olhos por trás da máscara, mas sei que estão em chamas
quando ele pega uma segunda almofada e revida. Peter ri e bate
nele de novo. Pronto, uma guerra foi instaurada.
— Parem! — peço, mas continuo sendo ignorada.
Peter se joga de costas no sofá, rindo, enquanto sua barriga
recebe os baques fofos das almofadas implacáveis de Henry. O
homem grita de triunfo e pula no tapete, braços erguidos para um
novo golpe.
A partir daí, não sei dizer o que aconteceu primeiro. Se o tecido
da capa da almofada se rompeu, fazendo com que penas brancas
voassem feito flocos de neve pela sala, ou se Henry caiu de mal
jeito e não conseguiu firmar o pé dentro do tecido fino da sua
fantasia apertada. Só sei que o corpo do homem atravessa a
barreira de plumas ao cair para trás em direção a imensa TV
acomodada em um suporte na parede.
O cotovelo de Henry acerta o centro da tela de LED. O aparelho
estremece no suporte para, então, começar a cair também. Me
adianto, não sei se para socorrer o homem ou a TV, mas a
gravidade é mais rápida. Com um baque surdo, o aparelho cai no
chão, levando o suporte e os cabos consigo.
Uma faísca escapa de um cabo rompido e explodo.
— Olha só o que vocês fizeram! — grito, abrindo os braços em
direção a sala revirada. Peter ri até perceber a seriedade em meu
rosto. Ainda assim, é para o pai que ele olha, como se pedisse
confirmação. Henry o ignora. Massageia o cotovelo com força, o
rosto contorcido de dor quando puxa a máscara de qualquer jeito.
Aponto para ele. — Além de destruir a sala, vocês poderiam ter se
machucado!
— Eu vou comprar outra — diz, erguendo-se do chão. O
cotovelo, pelo visto, sobreviveu intacto. Por sorte, ou azar,
dependendo do ponto de vista, a TV não caiu na sua cabeça. —
Pode ficar despreocupada.
— Não é sobre comprar outra!
— É sobre o que, então? — pergunta, começando a se irritar.
Dou um passo em sua direção, sem me intimidar. Com o canto do
olho, vejo Peter nos observando meio encolhido em um dos cantos
do sofá — Só estávamos brincando, Alicia. Aconteceu um acidente
e vou resolver, ponto final.
— É sobre ter respeito — ergo a voz, mais irritada do que nunca.
— Eu havia acabado de limpar a sala quando vocês começaram
essa algazarra e olhe só — giro o corpo, enfatizando a bagunça. —
Tudo sujo, desarrumado e quebrado, como se as coisas não
tivessem valor!
— É só uma TV! — Henry explode.
— Para você, que sempre teve tudo, isso pode ser só uma TV! —
Explodo de volta, lembrado de como, há muito tempo, um minúsculo
aparelho de tubo, ainda em preto e branco, era um artigo de luxo no
trailer do meu pai. — De onde eu vim, as pessoas precisariam
deixar de comer uma das três refeições diárias para ter a chance de
financiar um aparelho desses!
— Ainda bem que o meu caso é diferente, não é? — solta,
sarcástico. A expressão chocada do seu rosto mostra o instantâneo
arrependimento que vem em seguida. — Alicia, desculpa, eu…
Ele dá um passo para a frente, a mão estendida, pronta para
segurar o meu braço, mas dou um passo para trás. Aprumo a
postura e o encaro.
— Eu não vejo a hora de você ir embora.
— O papai vai embora? — pergunta Peter com a voz lacrimosa.
Agora, sou eu que me arrependo. Não por Henry, mas pelo meu
filho. Ele ficou tão quieto que, por um momento, me esqueci de que
estava ali. Interpreta o nosso silêncio como um sim e começa a
chorar. — Você não pode ir embora — implora, afundando o rosto
contra a própria fantasia. — Por favor, papai.
Henry engole em seco, sem saber o que fazer. Sou eu que me
agacho para consolar o menino, mas ele não quer a mim. Esperneia
quando tento puxá-lo para um abraço e corre para longe,
escorregando ao subir as escadas e ir para o quarto. Ergo-me de
um pulo, pronta para segui-lo, mas a campainha toca.
Estou tão enfurecida comigo mesma e com Henry que nem ao
menos penso. Apenas abro a porta e dou de cara com Judy. É o seu
arregalar de olhos que faz com que eu me lembre que o meu
suposto marido está vestido de Homem-Aranha no meio de uma
sala destruída e cheia de penas flutuantes.
— Uau! — Não preciso acompanhar o seu olhar para saber
exatamente qual parte da fantasia de Henry causou aquela
surpresa. Limpo a garganta e a vizinha, enfim, presta atenção em
mim. — Oi, Alicia! Acho que não cheguei em uma boa hora.
Forço os meus lábios a abrirem o seu melhor sorriso.
— Oi, Judy. É, desculpe, aconteceu um imprevisto e…
— Estou vendo — ri, faceira. Espia Henry mais uma vez. Olho
por sobre os ombros e o vejo plantado no meio da sala, devolvendo
o riso. Nota-se o esforço que a mulher faz para voltar sua atenção a
mim. Dá um passo adiante e faz um sinal para que eu aproxime o
ouvido. — Não que o do Mark seja muito menor, diga-se de
passagem. Mas uau, amiga. Você está muito bem servida.
— Você não faz ideia — retruco, entredentes. — Como posso te
ajudar?
— Imagina, não preciso de ajuda nenhuma. Só preciso que vocês
estejam disponíveis para jantar conosco na sexta-feira.
Ai. Meu. Deus.
— Mark disse que vocês viajam no sábado — comento, como
quem não quer nada. — Não acha melhor marcarmos outro dia?
Depois que vocês voltarem, ou quem sabe, depois do Ano Novo.
Quando Henry não estiver aqui!, minha mente grita. Judy faz que
não.
— Para com isso, Alicia. Vocês nunca incomodam. Só vamos
pedir pizzas, abrir umas garrafas de vinho e pronto! Que incomodo
há nisso?
— Eu não sei. Ainda acho melhor marcar depois — enfatizo. No
momento em que o Henry estiver mais adestrado, por exemplo.
Judy faz um gesto com a mão, indicando que aquilo é uma
grande bobagem.
— Será na sexta e pronto! E não aceito um não como resposta. O
que acha de marcarmos as dezenove horas?
— Acho ótimo — acabo me rendendo. — Eu levo uma
sobremesa.
— E eu levo um bom vinho — diz Henry. Judy assente, satisfeita.
— Perfeito! Até sexta, então!
— Até — murmuro. Judy sorri e me dá as costas. Devagar,
inspiro fundo e fecho a porta, franzindo o nariz em seguida. Para
coroar, a água dos meus legumes secou e eles queimaram. Corro
os olhos pela sala arruinada enquanto o choro de Peter ecoa do
andar de cima. Minha vontade é de chorar, também.
Aliso a frente da camisa ao me encarar no espelho. Cabelos
arrumados com pomada, barba recém aparada rente ao rosto, ar
sério e de poucas palavras. Parabéns, Alicia. Era uma cópia do
Hector que você queria? Aí está. Visto o blazer e bufo para a
imagem. Tudo aquilo para comer uma simples pizza na casa dos
vizinhos.
Pensei que, depois do episódio de terça, Alicia daria um sermão
de três horas sobre como ser ou deixar de ser o meu irmão. Ela não
deu. Ao invés disso, se manteve em um silêncio resignado,
ignorando a minha presença por completo. As perguntas secas
retornaram com respostas monossilábicas. Pouco me importei. Se
para ela estava bom assim, para mim estava ainda melhor.
Mas me importei com o silêncio de Peter. Poderia dizer que o
clima pesado afetou o astral do menino, mas na realidade foi a
perspectiva de saber que eu poderia ir embora. Ele não pediu para
trabalhar comigo quando, naquele mesmo dia, retornei ao escritório
da casa e descobri que um vídeo ameaçando o bar viralizou em
questão de horas.
Na quarta-feira me vi novamente diante do computador e
perguntei se ele queria ficar comigo. Peter se limitou a negar com o
rostinho triste e foi para o seu quarto. Pouco depois, ouvi o menino
chorando, mas fiquei sem jeito para consolá-lo. Eu iria mesmo
embora. Seria de uma hipocrisia imensa agradá-lo sabendo disso.
Ele voltou a se aproximar aos pouquinhos, mas nós dois
sentíamos que não era como antes. As fantasias do Homem-Aranha
permaneceram esquecidas na lavanderia. A da Gwen Stacy
continuou lacrada. E fiquei chocado ao sentir falta da camaradagem
criada naqueles dois primeiros dias com o meu sobrinho.
Solto o ar com força e deixo a engomada imagem refletida no
espelho para trás. Vozes se fazem ouvir da sala de estar. Devagar,
desço as escadas e vejo Alicia conversando com Peter. O menino
parece descontente sentado no sofá. A nova TV reluz ao fundo com
o volume baixinho. A quebrada, causadora de toda a discórdia, foi
enviada para um centro de reciclagem.
— Eu não quero ir — reclama Peter, a voz pastosa de quem está
prestes a chorar. Com a mão livre, Alicia alisa os seus cabelos em
um carinho demorado. A outra segura um pesado casaco que o
menino não quer vestir.
— O Liam estará lá, filho. Não quer brincar com ele?
Peter nega com a cabeça e preciso resistir a tentação para dizer
que eu também não quero ir. Desço o último degrau com um baque
surdo e a mulher volta sua atenção para mim. Devagar, ergue-se do
sofá em uma postura majestosa que faz o meu coração traidor errar
uma batida.
Olho embasbacado para a figura envolta em um vestido azul
marinho que abraça as curvas com a perfeição de uma peça feita
sob medida. O decote em V é discreto para um jantar entre amigos,
mas ainda revelador o suficiente para atiçar o desejo de qualquer
homem. As ondas dos cabelos avermelhados descem por um dos
ombros, entrelaçando-se com o ponto brilhante do colar em seu
pescoço.
Não bastasse a insistente ereção que vem me acompanhando
em todas as manhãs, agora sinto o pau ameaçando ficar duro
apenas por ver a mulher do meu irmão arrumada para jantar na
casa da vizinha. Olha só o que uma semana sem sexo está me
causando.
Reparo que Alicia inspeciona o meu corpo com as pupilas
dilatadas, o leve lamber de lábios comprovando que ela também
está afetada pela minha presença. Aproximo-me dos dois, sem
deixar de encarar o seu rosto, e as palavras escapam da boca antes
que eu possa controlá-las.
— Você está linda.
Alicia arregala os olhos, mas mantém a compostura.
— Obrigada. Você também está.
— Não podemos mesmo ficar em casa? — Peter interrompe.
Desce do sofá e agarra uma das minhas pernas, puxando o tecido
para baixo. — Por favor, papai.
Solto os seus dedos e me agacho.
— Nós precisamos ir. A Judy é legal com você, não é? — Ele
assente. — Então também precisamos ser legais com ela. Seria
uma grande desfeita cancelar o jantar agora.
— O que é desfeita?
Penso por um instante e decido simplificar.
— É meio que uma falta de educação. Ser convidado e não
comparecer. Comprar um presente e a pessoa não aceitar. Isso tudo
são desfeitas.
Peter assente, muito sério.
— Tipo quando a mamãe não quis vestir a fantasia?
Touché! Olho de esguelha para Alicia, mas quem mandou pôr no
mundo uma criança tão inteligente?
— Tipo isso. — A própria diz, entredentes. Seu filho não parece
convencido — Você gosta quando chama o Liam para vir brincar e
ele diz que não pode? — Peter faz que não. — Pois então. Agora
vamos, senão ele vai ficar chateado.
O menino enfim se convence. Limpa os cantos dos olhos com as
costas das mãos e permite que a mãe passe o casaco pelos seus
braços. Alicia alisa a roupa do filho e, dando-se por satisfeita com a
sua aparência, me encara.
— Você poderia pegar a torta na geladeira, por favor? O vinho
está sobre a mesa.
Assinto em concordância e vou para o cômodo ao lado. A torta de
maçã passou o dia testando o meu estômago e a perspectiva de
comê-la em algumas horas é a única coisa que me motiva a ir ao
jantar. Tiro-a da geladeira e, ao me virar, dou de cara com Alicia.
— Está tudo bem? — pergunto, diante a expressão tensa em seu
rosto.
A mulher morde os lábios e se aproxima, casaco já vestido, o
rosto perto o suficiente para que eu possa inspirar o aroma do seu
perfume de rosas, profundo e refrescante como se tivesse acabado
de sair do banho. A imagem dela nua debaixo do chuveiro, com
incontáveis gotas de água escorrendo pelo desenho do seu corpo,
invade a minha mente sem qualquer permissão e faz o meu pau dar
um novo sinal de vida.
— Está — diz, bem baixinho. — Eu só gostaria de lembrar que o
Hector não gosta de tomar cerveja e nem de acompanhar esportes.
— Ele só conversava com o Mark sobre o mercado financeiro?
— Basicamente, sim. — O esboço de um sorriso cruza os seus
lábios. — Mas, na realidade, ele ficava calado durante a maior parte
do tempo. Acho que não será tão difícil imitá-lo, afinal.
Nossa, será. Ela não sabe o quanto será!
— Prometo me esforçar.
Ela assente, aliviada. Coloca um pano de prato limpo sobre a
torta e se encaminha para a porta. Peter aguarda diante dela com o
semblante enfezado. Rio e bagunço o seu cabelo. Em um primeiro
momento ele fecha ainda mais a cara, mas acaba por rir também.
O vento frio açoita os nossos rostos enquanto flocos de neve
descem preguiçosos em direção ao chão coberto de gelo entre a
curta distância da casa do meu irmão e da vizinha, dificultando o
caminhar. Peter agarra a minha mão em busca de apoio. Aperto os
seus dedos contra os meus, ansioso para que aquele seja um
primeiro passo para voltarmos ao que éramos assim que cheguei.
Uma vozinha no fundo da mente diz que é errado, que estou
enganando o menino, mas me esforço para ignorá-la. Menos de
uma semana de convivência serviu para despertar um amor que eu
não sabia existir. Aquele curto trajeto basta para me fazer decidir
que, não importa o que aconteça, estarei presente na sua vida como
o tio que deveria ter sido há muito tempo.
Alicia faz menção de ajustar a torta sobre os braços para apertar
a campainha, mas me adianto, escutando o estridente barulho
ecoando pela casa. Ela me lança um olhar agradecido enquanto
aguardamos, todos juntos, que alguém venha nos atender. Torço
para que não seja Mark, mas acaba que é o próprio que atende.
— Boa noite! — cumprimenta, o vozeirão retumbante ecoando
pela noite. — Saiam do frio! Entrem, entrem — acrescenta ao tirar o
corpanzil do caminho.
Alicia sorri e, com um discreto pedido de licença, avança em
direção ao vestíbulo. Eu e Peter fazemos o mesmo. Olho para a
sala de estar a poucos metros de distância. A configuração dos
cômodos não parece muito diferente da casa ao lado. A diferença
fica por conta do calor que ela emana. Os móveis gastos pelo uso,
os tapetes com as pontas viradas, as paredes com manchas de
canetinhas. Não há desmazelo. Há apenas a evidência de uma
família leve, alegre e unida como em um comercial de margarina,
mas sem a perfeição imposta por ele.
— Ahhh, você fez torta de maçã! — derrete-se Judy, levantando-
se do sofá. Tira a travessa das mãos da Alicia e inspira fundo. — Eu
amo torta de maçã!
— Você poderia ter ficado com vontade de comer isso durante a
última gravidez — comenta Mark, oferecendo-se para tirar o casaco
de Alicia. — Não foi nem um pouco fácil achar uma torta de limão
com chocolate meio amargo às três da manhã!
Sua esposa ri, escandalosa, e leva a torta para a cozinha. Sorrio,
tentando soar simpático, lembrando do conselho de Alicia para me
manter calado. Estou ajudando Peter a tirar o próprio casaco
quando três pares de olhos curiosos surgem no topo da escada.
Duas meninas e um menino que só pode ser o tal do Liam. Ele
desce correndo. Se Peter tem quatro anos, ele tem uns seis ou sete.
Ainda assim, mostra-se animado ao rever o amiguinho.
— Vem, o papai comprou um jogo novo! — comemora, puxando
Peter pela mão. Ele sorri e se deixa guiar andar acima. Mark olha de
cara feia.
— Cadê a educação?
— Ah — faz Liam, quase no topo das escadas. — Oi Sr. e Sra.
Chamberlain.
Os meninos desaparecem antes que possamos responder. As
meninas, por sua vez, descem as escadas e fazem questão de nos
cumprimentar, mostrando as ladies que são. Elas devem ter uma
idade mais próxima da de Peter, quatro ou cinco anos, e com
aqueles cabelos castanhos claros e olhos azuis prometem dar muito
trabalho para o pai.
— Oi, Lisa. Oi Linda — cumprimenta Alicia, olhando para mim.
— Todos com Li — digo para mim mesmo, achando graça.
Engano-me ao pensar que falei baixo o suficiente para ninguém
ouvir. Mark solta uma gargalhada.
— Com tantos filhos, optamos pelo mais fácil de lembrar —
comenta, olhando com carinho para as meninas antes de me
encarar. — E então, Hector, aceita uma cerveja?
Encaro-o de volta. Algo na forma como ele pronuncia o nome do
meu irmão, letra por letra, acende um alerta. Será que Hector
comentou que dividiu o útero comigo? Aposto que não. Não há uma
só foto minha em sua casa, duvido que perderia tempo falando de
mim para os vizinhos. O Sr. Certinho é tão chato que não presta
nem para falar mal dos outros.
Mesmo assim, eu deveria ter deixado as picuinhas de lado e
perguntado a Alicia antes de sair de casa. Agora, só me resta
continuar com aquele circo.
— Não, obrigado. Mas aceito uma taça de vinho — acrescento,
erguendo a garrafa que trouxe.
Mark a olha com aprovação e nos convida a sentar na mesa de
jantar próxima a uma pequena adega. Eu e Alicia o seguimos,
caminhando lado a lado, mas distantes um do outro. Uma nova
dúvida preenche a minha cabeça: qual era o seu comportamento
como casal? Hector teria segurado a mão da esposa? Seria um
perfeito cavalheiro e puxaria a cadeira para ela se sentar?
Por sorte, Mark se adianta e me poupa de refletir sobre a última
pergunta, puxando ele mesmo o assento. Alicia agradece com um
aceno e estou prestes a sentar ao seu lado quando reparo nas
meninas. Imito o seu pai e puxo a cadeira para elas. Elas sorriem e
se atiram contra a mesa, encarando os pratos postos como se já
estivessem cheios de pizza. Uma delas, não sei se Lisa ou Linda,
sorri de forma travessa. Sorrio de volta, curioso para saber se
também são gêmeas, mas freio a língua. Uma parece um pouco
maior que a outra. Devem ter pouquíssima diferença de idade.
A risada dos meninos soa alta do andar de cima quando Judy
retorna com tigelas de amendoim e batatinhas fritas. As meninas
atacam a comida enquanto o seu pai se ocupa em servir o vinho.
Inspiro o aroma seco antes de levar a taça aos lábios.
— Acabei de pedir as pizzas no aplicativo — anuncia Judy antes
de se virar para mim. — Vai voltar a trabalhar apenas no ano que
vem?
Quase engasgo com o vinho. Salvo os dois dias que precisei
ajudar Scott, passei o restante da semana coçando o saco.
— Sim — digo, ao me recuperar. — Como fiquei todo esse tempo
fora, a empresa achou de bom tom que eu passasse o mês de
dezembro ao lado da família.
Para enfatizar, lanço um olhar significativo a Alicia. Ela me
devolve com a sua melhor expressão de alerta. Só falta o banco
onde Hector trabalha ser carrasco a ponto de os colaboradores não
terem tempo nem de ir ao banheiro. Se é, a desculpa cola, pois Judy
parece não dar a mínima ao continuar.
— Que ótimo, não é? E como vocês estão, depois de passarem
tantos meses separados?
— Não seja indiscreta, mulher — ri Mark. — As meninas estão na
mesa!
As meninas estão mais interessadas em devorar as batatinhas.
Para disfarçar, encho a mão com um punhado de amendoim e os
jogo na boca. O anfitrião me observa. Pronto, só falta Hector ser
alérgico àquelas porras.
— Não perguntei nada de mais — Judy cutuca o marido e os dois
trocam risadinhas cheias de segundas intenções. — Só que, depois
de tantos meses separados, era de se esperar que as coisas
estivessem pegando fogo.
— O que está pegando fogo? — Lisa, Linda, ou sei lá qual das
duas, pergunta. A mãe se apressa em acrescentar.
— As nossas pizzas. Não encham as barrigas de batatas, heim!
Elas ignoram, continuando a comer. Pego mais um punhado de
amendoim. Vamos, Alicia! Responde essa!
A mulher parece ler a minha mente.
— Estamos ótimos — diz, me lançando um falso olhar
apaixonado. Devolvo na mesma intensidade e, para melhorar a
performance, deslizo a mão por sobre a sua. Seus olhos faíscam de
leve, mas Alicia segue com o jogo. Daquele jeito ela se daria
bastante bem em Hollywood. — Está sendo ótimo ter o Hector de
volta, não é amor?
Se morasse na costa oeste ela ganharia um Oscar, isso sim.
Decido caprichar.
— Está, sim — sem lhe dar tempo para recuar, planto um rápido
beijo no canto da sua boca. Aquele breve contato é o suficiente para
sentir a tensão em sua pele, mas Alicia aguenta firme, sem recuar.
As faíscas agora se transformam em atiçadas labaredas. —
Estamos mais apaixonados do que nunca.
Judy solta um suspiro enquanto a gargalhada de Mark se espalha
pela casa. Alicia afasta a mão da minha, deixando um vazio tão
gelado quanto o lado de fora, e preciso resistir à tentação de
acompanhar a risada do vizinho. Por sorte, a conversa é levada
para um terreno mais seguro. Conforme instruído, permaneço
calado.
O beijo no canto da boca pode ter sido rápido, mas foi o
suficiente para marcar a pele a ferro, atiçando todas as minhas
terminações nervosas. Sua ousadia me irrita, e não gosto nem um
pouco do calor que sobe pelo meu braço no momento em que Henry
pousa sua mão sobre a minha. E gosto menos ainda do vazio
gelado que fica ao retirá-la, quebrando o contato. Tive uma bela
cota de semanas difíceis ao longo da vida, mas aquela, com toda a
certeza, figura entre as piores.
Fiquei bastante mal após a briga na sala, pensando se precisava
ter ficado brava daquela maneira, lutando comigo mesma entre
pedir desculpas ou esperar que Henry pedisse. Claro que ele não
pediu e, com o silêncio entre nós, permaneci quieta, esperando
onde aquilo iria dar. Ele seguiu agindo de forma gentil com Peter e
não se mudou para o quarto de hóspedes ou o sofá, mas não
trocamos palavras além dos necessários sim ou não. Uma pequena
parte minha gostaria que ele tivesse se mudado. Se já estava
esquisito dormir ao seu lado antes, depois ficou ainda pior.
As fantasias de Homem-Aranha foram removidas e, junto com
elas, toda a alegria da casa. Detesto a forma como jazem inertes na
lavanderia. Fiquei triste pelo meu filho. Tanto por ter acabado com a
brincadeira, quanto por ter aceitado a ideia da sua tia. A separação
entre ele e Henry tem tudo para ser mais devastadora do que
qualquer um de nós foi capaz de prever. Temo por esse momento,
cada vez mais certa de que deveria ter contado a verdade sobre o
seu pai.
Impossibilitada de voltar no tempo, só me resta permitir que
aqueles dias junto com Henry sejam os melhores possíveis. Da
próxima vez, vou deixar que quebrem toda a sala. O importante é
ver Peter contente. O meu cunhado que substitua tudo depois.
Algum comentário feito por Mark faz Henry rir antes de levar a
taça de vinho à boca. Por enquanto estamos indo bem. Hector
nunca foi de fazer grandes demonstrações de carinho em público.
Beijos e toques ficavam reservados à intimidade da casa. O que ele
gostava de fazer, e eu vibrava inteira quando fazia, era tirar o meu
cabelo do rosto. Bastava que uma mecha se soltasse para que ele
estendesse o dedo e a colocasse atrás da orelha. Um arrepio
percorre o meu corpo só de lembrar do contato gerado por aquele
gesto simples que significava tanto.
Sendo assim, minha distante relação de mentira com Henry é o
suficiente para fazer meus vizinhos acreditarem na nossa farsa. Ele
cumpre a missão de só falar o necessário, mantendo nosso segredo
seguro e selando a promessa de que tudo correrá bem.
A campainha toca, anunciando a chegada da pizza. Mark se
adianta para atender a porta e Judy grita escada acima, fazendo
com que os meninos desçam correndo. Se Peter antes não queria
vir, agora temo ter problemas em levá-lo embora. Senta-se ao lado
do pai e começa a contar sobre o novo jogo do videogame do
amiguinho.
— E eu dei um soco nele! — diz, eufórico. Henry ergue a mão em
um high five, mas Judy fecha a cara.
— O que vocês estão jogando? — questiona, olhando para o
Liam. Ele encolhe os ombros.
— O Super Smash Bros, mãe.
— Ah, então tudo bem — tranquiliza-se. — Já disse que não
quero ver você jogando nada muito violento.
Liam assente, o rosto deixando claro que não concorda. Peter
agarra a manga da camisa de Henry.
— Por favor, papai. Deixa eu ter um videogame.
— Eu vou pensar. Preciso conversar com a sua mãe sobre isso,
está bem?
Peter grita como se tivesse recebido um sim. Tão alto, que chega
a fazer com que todos se encolham na mesa. Pula no pescoço de
Henry e começa a beijar o seu rosto, alucinado de felicidade. Meu
cunhado tenta afastá-lo, mas é impossível. Judy entra no coro de
risadas e eu mesma não resisto a sorrir para a cena. Mark retorna
com as pizzas e as deposita no centro da mesa.
— Está mudando de ideia, então? — pergunta. Henry lhe lança
um olhar confuso. — Você sempre falou que não queria que Peter
tivesse um videogame.
— Verdade, até ficava com medo quando ele vinha jogar aqui —
brinca Judy.
Henry abre a boca para responder, mas o chuto por debaixo da
mesa, lançando um alerta para que me deixe contornar a situação.
— Ainda estamos pensando — digo.
— Ah, por favor, mamãe — pede Peter, vindo cheio de dengo
para mim. Resisto a sua investida e me levanto para devolvê-lo a
sua cadeira.
— Conversamos depois. — Sei que vai tentar insistir, então sou
mais rápida. — Lembre-se: o Papai Noel só traz presentes para as
crianças boazinhas.
Peter ameaça ficar emburrado, mas Henry pisca para ele. O
efeito daquela transmissão de olhares é instantâneo e o menino
volta à animação anterior. Aproveito que estou de pé e lhe sirvo uma
fatia. Liam, mais velho, se serve sozinho.
Henry coloca uma fatia em meu prato assim que volto a me
sentar. Agradeço com um aceno de cabeça, o estômago roncando
de fome, concentrada na comida, incapaz de qualquer tentativa de
impedir o que ele faz a seguir. Henry dobra a fatia ao meio e, com
as mãos, a leva à boca seguindo o costume nova-iorquino. O
problema? Hector preferia usar os talheres. A mesa interrompe o
que está fazendo para acompanhar o movimento. Alheio a tudo,
Henry mastiga a comida com satisfação, até perceber que todos os
observam.
— A Inglaterra te mudou mesmo — diz Mark antes de imitá-lo.
Meu cunhado me lança um olhar de “O que foi que eu fiz agora?”
até que a compreensão atinge o seu rosto. Aquele com toda a
certeza é um hábito de infância, mesmo assim deveria tê-lo
lembrado antes de sair de casa. A constatação do meu vizinho
parece ser tudo o que Henry precisava para ligar o foda-se. Com
essa desculpa em mãos, desativa o modo Hector e decide
atravessar o campo minado.
— Mudou — comenta, metade da fatia em mãos. — Mudou
bastante!
Todos aceitam aquilo com tranquilidade e seguem comendo. Os
meninos logo raspam o prato e sobem correndo enquanto as
meninas, cansadas da conversa chata dos adultos, preferem ligar a
televisão e assistir a Frozen. O refrão de Livre Estou se mistura à
cacofonia de vozes cada vez mais altas, lideradas por Mark e Henry.
Ambos foram contaminados com o bichinho da empolgação e
debatem fervorosamente sobre futebol americano e hóquei no gelo.
Tento acompanhar, mas é demais para mim.
Ajudo Judy assim que ela se levanta para recolher os pratos.
Levo-os para a cozinha, coloco todos dentro da pia, pronta para
levar tudo a lava-louças. Judy aparece e segura o meu braço.
— Na-na-ni-na não! Você não vai correr o risco de manchar esse
vestido lindo com gordura!
— Judy, por favor… — peço, mas ela endurece o olhar.
A discussão na sala se torna mais acalorada. Olhamos para os
homens, que gesticulam um com o outro, animados em tentar definir
qual é o melhor time de nem sei mais qual esporte. Judy dá risada e
me encara.
— O seu marido voltou realmente mudado.
— Voltou — respondo, o rosto quente diante da mentira. — Acho
que ele tomou gosto após assistir aos jogos com os colegas
londrinos. Parece que é uma tradição sair do trabalho e ir para o
pub. — Ignoro o fato de que Hector preferia ficar sozinho em
companhia de um livro a assistir qualquer coisa junto de
desconhecidos.
— Que bom — continua Judy. — Ele parece mais feliz assim. E
como vocês estão?
Engulo em seco.
— Estamos bem.
A vizinha ergue uma sobrancelha.
— Só isso? Estamos bem? Mulher, se o meu marido passasse
seis meses longe acho que só um guindaste me tiraria do colo dele
— gargalha, tirando duas garrafas de cerveja da geladeira. Oferece
uma para mim. Aceito mais por educação que por vontade de beber.
Assim como o meu marido, eu prefiro vinho. — Só posso imaginar
que a semana de vocês foi bem quente!
Giro a tampinha metálica entre os dedos, abro a garrafa e bebo
um gole. O amargor gelado desce pela garganta e torço que seja o
suficiente para aplacar a quentura que toma conta do meu rosto.
Imagino qual seria a cara da minha vizinha ao saber que, na
realidade, fizemos uma troca de gêmeos. Estou dormindo com o
meu cunhado irritante, dono de um sorriso sarcástico, corpo
irresistível, braço cheio de tatuagens e um ar dominador capaz de
incendiar o tecido de uma calcinha.
— Foi, muito — respondo, em um tom de quem tenta encerrar o
assunto, mas se Judy percebe, ela ignora.
— Depois preciso mostrar para você o meu brinquedinho novo —
comenta. — Eu te falei, não falei? Que o Mark me deu um vibrador
de presente? É quase do tamanho dessa garrafa — ri de novo,
deliciada. — Você precisa saber como é a sensação de ter os dois
ao mesmo tempo e…
— Ei, amor! Traz uma dessa para mim — interrompe Henry,
apontando em minha direção.
Agradeço a todos os deuses presentes no universo e, com um
rápido pedido de licença, abro a geladeira e pego uma cerveja para
o meu marido. Aproveito para sentar-se ao seu lado e Henry,
despreocupado, passa um braço em torno dos meus ombros,
puxando o meu corpo contra o seu.
O calor da lateral do seu peitoral logo invade a minha pele e
respiro fundo. Ele só pode estar bêbado, mas a voz firme ao criticar
o prefeito de Nova Iorque prova que não está. Judy junta-se a
discussão. A estranheza da proximidade com Henry dá lugar ao
conforto e permaneço ali, só escutando.
Passa da meia noite quando finalmente nos levantamos para ir
embora. Há muito Frozen deu lugar a Moana e as meninas dormem,
tranquilas, entre as almofadas do sofá. Enquanto os homens trocam
tapas nas costas, eu e Judy subimos para saber dos nossos filhos.
Liam ainda está acordado, jogando com o volume da TV baixo, mas
Peter dormiu. Pego o menino no colo, antecipando o momento em
que ele estará grande e pesado demais para aquilo, e desço as
escadas com cuidado.
Ao me ver, Henry estende os braços em um gesto tão natural, tão
idêntico ao de Hector, que por um instante fico paralisada. Ele
franze o cenho, talvez pensando que não quero passar o meu filho
para o seu colo, quando saio do meu estupor e entrego a criança.
Peter se mexe, enroscando-se contra o peito do pai em uma
familiaridade de causar inveja.
Então Henry estende a mão e, devagar, coloca uma mecha de
cabelo atrás da minha orelha. O contato é tão rápido que, se eu não
estivesse prestando atenção, teria passado despercebido. Inspiro
fundo, sentindo os olhos se encherem de lágrimas, feliz por todos
estarem entretidos se despedindo, alheios ao turbilhão de
sentimentos que explode em meu peito.
Com os casacos sobre os ombros, nos despedimos dos vizinhos
e cruzamos o curto caminho de volta a nossa casa. O ar está mais
frio, mas a fina neve que cai continua longe do necessário para
cobrir a rua com o seu manto branco. Entramos no vestíbulo e
somos abraçados pelo delicioso calor do aquecedor central.
— Vou colocar o Peter na cama — diz Henry, ajustando o menino
no colo.
— Tudo bem. Não se esqueça de acender a luz noturna.
O homem confirma com a cabeça, dá alguns passos adiante e
olha por cima do ombro.
— Eu me sai bem, não sai? — comenta, presunçoso. O sorriso
que se abre nos meus lábios é involuntário.
— Se saiu, preciso admitir.
— Ótimo, agora você pode parar de pegar no meu pé — pisca,
de brincadeira. Finjo uma cara feia e ele ri baixinho.
Observo-o subindo com o meu filho nos braços. É estranho ter
aquela certeza em menos de uma semana de convivência, mas já
confio em Henry para colocar Peter na cama. Sigo direto para o meu
quarto e, como tomei banho antes de sair de casa, limito-me a trocar
o vestido por um confortável pijama e me enfio entre as cobertas.
Henry entra instantes depois e finjo que estou dormindo. Sinto o seu
olhar sobre mim, mas o homem não emite palavra. Em poucos
minutos o peso do seu corpo afunda o colchão e ele também se
ajeita para dormir.
Logo escuto o ressoar baixinho de quem caiu no sono, mas
permaneço acordada. Não quero virar para o outro lado e correr o
risco de dar de cara com o seu rosto, então mantenho-me onde
estou, tentando pegar no sono que insiste em fugir. Não sei quanto
tempo se passa quando decido levantar. Sem fazer barulho, coloco
o roupão por sobre os ombros e vou para a cozinha.
A geladeira mostra-se vazia de garrafas de cerveja ou de vinho,
então pego uma nova no suporte do armário. Encaixo o abridor de
aço inox e puxo a rolha, mas por mais que eu me esforce, ela não
vem. Bufo, irritada, e deixo a garrafa sobre o balcão. Não preciso
dela para pegar o material de desenho na última gaveta do armário.
Ajeito o bloco de papel no centro da ilha e me sento em uma das
banquetas com um lápis em punho. Sem nenhuma pretensão,
começo a traçar linhas no papel. No começo da semana me deixei
levar a um desenho surpresa. Hoje, sei bem o que quero desenhar.
Aos poucos um esboço monocromático do rosto de Henry surge
entre um traçado e outro, fazendo com que eu me lembre da
primeira vez que desenhei o seu irmão. Havia suavidade nos traços
de Hector, mas forço os dedos, conferindo um ar mais duro ao olhar
intenso de Henry.
Encaro o esboço, satisfeita, e pego um lápis azul claro do estojo.
Devagar, pinto as suas íris, destacando aquela parte do seu rosto
em preto e branco.
— Ficou muito bom — diz uma voz às minhas costas.
Olho de soslaio para Henry e vejo seus olhos arregalados de
admiração. Dessa vez, não me esforço para esconder o desenho
dele.
— Obrigada. Não queria ter te acordado.
— Não acordou. Levantei para ir ao banheiro e percebi que a
cama estava vazia — dá de ombros. — Como não te achei no andar
de cima, achei melhor descer para conferir se você estava bem.
Sua preocupação aquece o meu peito. Observo enquanto se
aproxima do retrato e, sem pensar duas vezes, tiro o desenho do
bloco e estendo a ele. Sua admiração torna-se ainda mais palpável.
Aceita o presente e observa o desenho por um longo momento
antes de, enfim, falar alguma coisa.
— Você terminou o curso?
— Na universidade? — pergunto. Henry confirma com a cabeça.
— Não, não terminei.
— Por quê? — Seu tom de voz deixa claro o quanto acha a
situação um absurdo. — É muito talentosa. Chega a ser um
desperdício guardar isso só para você.
— Talvez você tenha se esquecido, mas eu fiquei grávida.
Henry me encara.
— Oras, era só voltar depois que Peter nasceu!
Rio, meio amarga.
— Para vocês homens as coisas são tão fáceis. O seu irmão
voltou a trabalhar menos de um mês após o nascimento do filho —
relembro. — Mas eu não queria fazer isso com Peter. Ainda mais
porque Hector sempre deu total suporte para que eu ficasse em
casa.
— E é isso o que você quer? — Seus olhos azuis são
inquisidores. — Ficar o tempo todo em casa?
Encolho os ombros.
— Gosto de cuidar da casa e adoro ter a companhia integral de
Peter— digo, um pouco sem graça. — Houve um tempo que pensei
em dar um irmãozinho a ele — continuo, lembrando do momento em
que expus a ideia a Hector. Fui uma criança solitária e sempre achei
que ter irmãos devia ser o máximo. O meu marido disse que
pensaria a respeito e nunca mais tocou no assunto. — Mas gostaria
de terminar o curso, apesar de não saber como ficou a situação da
minha bolsa de estudos. E agora, com o divórcio, não sei como
ficará a situação da minha vida.
Algo em Henry vacila. Desconcertado, o homem se afasta,
reparando na garrafa fechada com o abridor ainda enroscado na
rolha. Pousa o desenho na bancada de mármore e, com um rápido
movimento dos seus bíceps fortes, arranca a rolha e serve duas
taças. Lança um demorado olhar ao desenho antes de se virar.
— Aposto que você faria sucesso na internet — comenta. — As
pessoas pagariam para ter um retrato desses, Alicia.
Encolho os ombros, meio na dúvida. Henry volta a se sentar e me
oferece uma taça, mantendo a sua erguida e um convite para um
brinde. Olho por cima da borda da minha e, juntos, batemos cristal
com cristal. O som espalha-se pela cozinha, idêntico ao leve badalar
de um sino.
Durante o tempo que leva para sorvermos nossas bebidas, nos
damos uma trégua. Se vai durar, eu não sei, mas, por algum motivo
estranho, gosto do silêncio compartilhado naquela madrugada fria.
— Comporte-se — peço a Peter.
Ele assente antes de me dar um abraço de despedida. Depois
que retornou da viagem no final de semana, Judy decidiu aproveitar
a segunda-feira para levar as crianças ao pequeno parque de
diversões no shopping e convidou o meu filho. Sei que são apenas
algumas horinhas, mas o coração aperta como se ele fosse ficar
longe de mim por semanas.
— Ele estará de volta ao final do dia — diz Judy, compreensiva.
Assinto, mas ainda assim é difícil largá-lo.
Em um primeiro momento relutei em deixar Peter ir. Ele nunca
saiu sem mim e não consigo prever se ficará com medo e começará
a chorar, pedindo para voltar. Mas ele ficou tão eufórico, mas tão
eufórico, que foi impossível dizer não. Judy garantiu que retornará
ao menor sinal de problemas, então relaxei.
Peter começa a rir ao pé do meu ouvido. Olho por cima do ombro
e vejo Henry fazendo careta a poucos metros de distância. Ainda
bem que os dois já se despediram. Não duvido que o meu cunhado
pediria para o sobrinho tocar o terror no shopping. Suspeitando do
pensamento que cruza a minha cabeça, o menino me encara, muito
sério.
— Eu vou me comportar, mamãe.
— É bom mesmo — dou um tapinha de brincadeira em sua
bunda e ele ri mais um pouco.
— Não quer mesmo ir junto? — pergunta Judy.
Quase mudo de ideia. Um par de olhos e mãos extras ajudariam,
e muito, a cuidar de quatro crianças, mas a casa está uma bagunça
e, apesar de amar a companhia do meu filho, algumas horas livres
viriam a calhar. Nego, confiando nos cuidados da vizinha.
— Vou em uma próxima.
Ela assente, compreensiva. Estende a mão para o menino e,
juntos, caminham até o imenso SUV da família. Observo Peter
sendo afivelado na cadeirinha de segurança, tagarelando sem parar
com Liam. Ele acena e, instantes depois, o carro roda em direção ao
shopping.
— Ele nem olhou para trás — desdenha Henry. De tão
concentrada no meu filho nem vi o homem se aproximar.
— Pois é. Se já está assim aos quatro anos, como estará na
adolescência? — comento, preocupada.
— Depende — dá de ombros. — Se puxar ao tio…
— Melhor eu não saber — corto.
O homem percebe meu bom humor e abre um sorriso, mas não
tece novos comentários. As coisas mudaram desde o jantar. Ou,
melhor dizendo, desde que enxugamos uma garrafa inteira de vinho
em uma silenciosa madrugada. O sábado amanheceu diferente,
como se uma inédita compreensão tivesse brotado durante aquelas
poucas horas até o despertar.
Duvido que a culpada seja a conversa regada a vinho, mas
aposto que foi ela quem fez Henry perceber tudo o que precisei
deixar para trás a fim de ter uma família. Tornou-se mais
compreensivo. Durante todo o final de semana colaborou em manter
a casa arrumada e tentou conter Peter caso ele comece a
extrapolar, deixando de se intrometer quando interferi em sua
educação. Ainda cede aos caprichos do menino com mais
frequência do que eu, mas, ao contrário do irmão, Henry não teve a
experiência de aprender a tentar educar uma criança. Está ali para
agradar e faz isso muito bem.
As conversas monossilábicas ficaram para trás e passamos a
compartilhar um pouquinho do nosso dia a dia. Aos risos, Henry me
contou sobre a confusão no bar que divide a sociedade com um tal
de Scott e os demais investimentos que tem na costa oeste. Ouvi
tudo com bastante curiosidade. Mordi a língua por achar, durante
todos aqueles anos, que o gêmeo mau da família Chamberlain fosse
apenas um desocupado mulherengo que vivia às custas da herança
deixada pelo pai.
O que continua me incomodando é o fato de dormirmos juntos. É
confuso, às vezes nem eu mesma entendo, mas depois de tantos
meses sozinha, gosto de ter companhia. O problema está na forma
intensa como Henry me olha antes de se enfiar debaixo das
cobertas, devorando o meu corpo centímetro a centímetro, desejoso
se fazer mais que ficar ali deitado de costas para mim. O problema é
que, cada vez mais, estou gostando daquela atenção.
Em nenhuma ocasião acordei com um braço forte passado por
sobre o meu tronco, ou uma ereção pressionando a bunda, mas
acordei molhada, com o centro da minha feminilidade pulsando de
desejo por conta da presença de um corpo masculino a poucos
centímetros de distância. Falam que os homens pensam com a
cabeça debaixo, mas está cada vez mais difícil pensar com a minha
única cabeça diante de tamanha tentação.
O que ainda não sei responder, e vem me causando cada vez
mais confusão, é: esse desejo vem por Henry ser fisicamente
idêntico a Hector ou por Henry ser quem ele é? Não importa. Ainda
sou uma mulher casada. Preciso me esforçar para ignorar esses
pensamentos de uma vez por todas.
— Alicia? Oh, Alicia! — Alguém estala os dedos diante do meu
rosto e volto ao aqui e agora. Pisco, focando no bonito rosto do meu
cunhado.
— Diga.
Ele franze o cenho.
— Estava no mundo da lua, é? — o sorriso, aquele maldito
sorriso safado, se alarga em seu rosto. — Ou, quem sabe, estava
pensando em… coisas indecentes?
— Vamos, Henry! Não tenho o dia todo — tento mudar de
assunto, sentindo o rosto quente.
Para não lhe dar a satisfação de ver a pele avermelhada, deixo-o
sozinho diante da porta aberta e caminho em direção a cozinha.
Escuto o baque da fechadura contra o batente e os passos firmes
nas minhas costas.
— Vou pegar o carro emprestado, tudo bem? Preciso dar um pulo
em Long Beach.
— Vai fazer o que lá? — Ele ergue uma sobrancelha e me
adianto em acrescentar. — Desculpe, você não me deve
satisfações.
— Vou ver um bar — diz, tranquilo. — Scott viu uma
“oportunidade” — enfatiza, ao franzir os dedos acima da cabeça,
imitando o sinal de aspas — de negócios na costa leste e pediu para
dar uma olhada. Acho que será uma grande perda de tempo, mas
preciso de argumentos para dissuadi-lo dessa ideia e só os terei
depois de ver com os meus próprios olhos.
Aquela é outra coisa que venho descobrindo em Henry. Ele pode
pagar de playboy despreocupado no melhor estilo deixa a vida me
levar, mas se importa de verdade com as pessoas.
— Pode pegar, sim. Você volta ainda hoje?
— Claro — ele hesita por um instante, mas solta a pergunta. —
Quer ir junto?
Faço que não.
— Vou esperar o Peter e, de qualquer forma, preciso arrumar a
casa.
— A casa está arrumada, Alicia — comenta, caminhando de volta
ao vestíbulo. Pega a chave no suporte ao lado do armário de
casacos e os chaveiros tiritiram em sua mão. De repente seu rosto
se torna preocupado. — Vai ficar bem sozinha?
— Ficarei ótima, ainda mais sem dois bagunceiros tagarelando
na orelha.
Henry, em uma atitude muito madura, mostra a língua e vai
embora. Rio e espero até que saia com o carro. Aceno de leve e ele
dá dois toquinhos na buzina, confirmando que viu minha despedida.
Volto para dentro e é claro que estranho o silêncio da casa. Decidida
a não me abater, ponho uma música pop no celular e começo os
meus afazeres.
Só um homem solteiro para achar que a casa está arrumada.
Coloco a louça para lavar, passo um pano nas bancadas e na ilha
central e migro para outro cômodo. Tudo em ordem na sala de
jantar, mas a de estar precisa de cuidados. Aspiro o tapete, espano
o pó da televisão nova e afofo as almofadas. Satisfeita em vê-las
ordenadas no sofá, migro para o andar de cima.
Peter pode ser um menino muito bonzinho, mas é péssimo em
manter o quarto arrumado. Com Henry a coisa piorou. Às vezes eles
passam metade da tarde brincando, descem para o jantar e estão
cansados demais para arrumar antes de dormir, a desculpa perfeita
para deixar tudo bagunçado até o dia seguinte. Balanço a cabeça ao
ver bonecos do Capitão América misturados aos novos do Homem-
Aranha jogados no chão, outros espalhados pela cama, tapete e
mesinha de cabeceira. Pego um por um e os coloco de qualquer
jeito na caixa de brinquedos.
Estou saindo do quarto quando vejo um último boneco, menor,
sobre a escrivaninha. Estendo a mão para pegá-lo e reparo no
desenho feito com giz de cera. Peter gosta de pintar e só o tempo
dirá se ele terá talento ou não, mas imaginação ele tem de sobra.
No centro da folha, um homem com cabelos escuros e olhos azuis
beija uma mulher ruiva com olhos castanhos. Um menininho
intromete-se entre os dois bonecos palitos com um sorrisão de
alegria que atravessa a face redonda.
Lembro-me do beijo rude roubado na universidade. Algo me diz
que, se nos beijarmos de novo, será tão rude quanto. Não há nada
na expressão de Henry que denote suavidade.
— E para que você está pensando nisso, Alicia? — pergunto a
mim mesma. Deixo o desenho onde está, jogo o boneco junto com
os outros e saio do quarto. — Você é uma mulher casada —
relembro. — E Henry é o irmão do seu marido!
A curiosidade persiste e só me resta voltar ao trabalho para
afastá-la. Sei que o quarto de hóspedes está arrumado, então
caminho em direção ao meu próprio quarto. Ignoro o delicioso
aroma de colônia masculina que sobe dos lençóis assim que os
removo da cama. Troco as fronhas dos travesseiros, ajeito o lençol
limpo e cubro tudo com o edredom.
Ao chegar na lavanderia com a roupa de cama nos braços,
percebo que os meus afazeres estão prestes a terminar. Coloco
tudo na máquina de lavar, subo com a roupa limpa, as distribuo em
suas respectivas gavetas e me pergunto se há mais alguma coisa
para limpar, mas sei que a resposta é negativa. Henry tinha razão,
salvo aqui e ali, a casa está arrumada.
Volto para o andar debaixo e encaro o relógio da cozinha. O
tempo passou e nem percebi, mas ainda tenho uma hora até
precisar pensar no jantar. Diante do tempo livre, meu impulso é
retirar o material de artes da gaveta e aproveitar para desenhar.
Coloco uma cápsula de cappuccino na cafeteira e, enquanto o
delicioso aroma de café quentinho preenche o ambiente, ajeito o
bloco de desenho e o lápis sobre a ilha da cozinha.
Pego a caneca, assopro o vapor quente e observo a folha em
branco, imaginando o que posso colocar aqui. Nada vem à mente.
Pouso o café sobre o mármore e arrisco um ou outro traçado, mas a
folha continua vazia. Pelo visto, a inspiração foi embora, como todos
na casa.
Sei que não adianta insistir. Estou guardando tudo quando uma
nova ideia surge: e se eu surpreender Peter e Henry com um bolo?
Algo simples e gostoso, que possamos comer após o jantar. Dou
uma rápida olhada no armário e na geladeira. Tenho farinha, açúcar,
ovos e manteiga de sobra, além de uma travessa cheia de mirtilos.
Empolgada, deixo tudo onde está e corro até o meu quarto, em
busca do celular.
Volto para a cozinha e perco-me no YouTube, entretida com os
vídeos de receitas de recheios cremosos e caldas arroxeadas. O
recheio dará muito trabalho, mas o resto é simples de fazer. Farei
um pão de ló fofinho e jogarei a calda por cima. Meu estômago
forrado apenas por uma caneca de café ronca diante da sobremesa
de mais tarde.
Estou para deixar o celular de lado quando um comichão me
induz a abrir o Instagram. Não sou de postar e, salvo os vídeos de
gatinhos fofos, não há nada de interessante para se ver no feed, até
que uma fotografia na parte de cima do site, circulada por um aro
cor-de-rosa, chama a atenção.
Hector odeia as redes sociais e criou a conta apenas por que a
irmã o obrigou. A desculpa era mantê-lo mais próximo da família,
mas ele nunca postou nada. Por conta disso, estranho que tenha
decidido postar um story.
Para isso você está com tempo, não é?, penso, amarga, ao
lembrar que o meu e-mail contestando o divórcio jamais foi
respondido. Parte de mim quer fechar o aplicativo, mas é claro que
a curiosidade fala mais alto. Torna-se uma necessidade saber o que
Hector postou na rede social, para que todos, sem exceção, possam
ver.
Então levo a ponta do dedo ao canto superior da tela do celular e
abro o story. No mesmo instante outra foto surge e, pela primeira
vez em semanas, vejo o meu marido. Dá para notar que perdeu
peso, mas continua tão lindo como sempre foi, o olhar azul e intenso
fazendo um impressionante contraste com a pele pálida e os
cabelos muito escuros.
A análise dura segundos, pois Hector não está sozinho. Seus
braços passam pela cintura de uma belíssima mulher loira. Ela
possui olhos inteligentes, cabelos escovados à perfeição, o queixo
erguido de quem sabe que está pronta para conquistar o mundo. O
corpo esculpido envolto em um vestidinho vermelho com certeza
nunca passou por uma gravidez. Não sabe o que são estrias, muito
menos celulites. Ela exala volúpia. A loira é fatal.
Por trás da foto, vejo o esboço do meu próprio reflexo na tela do
celular. Leves olheiras tingem a parte debaixo dos meus olhos. Os
cabelos não veem um pente desde a manhã. Meu corpo jamais
voltou a ser o mesmo depois de carregar um bebê por nove meses.
Qualquer homem sensato me trocaria pela chance de trepar com
uma mulher daquela.
O soluço fica engasgado na garganta, mas o choro vem,
arrancando-me grossas lágrimas da mais pura tristeza, levando
consigo qualquer esperança que eu tivesse de salvar o meu
casamento. O soluço enfim escapa em um grito dolorido. Deixo o
celular cair e, devagar, escorrego da banqueta até o chão. Levo as
mãos às laterais da cabeça, tentando me acalmar, mas não consigo.
A angústia toma conta e abraço a mim mesma, a perspectiva de ter
um jantar feliz completamente esquecida.
Coloco o carro na garagem, certo de que não deveria ter perdido
tempo lutando contra o trânsito infernal para ir até a praia. O ponto
que Scott sugeriu é horrível. A menos que deseje inaugurar um
pulgueiro, precisaria derrubar metade do prédio para ter um bar
digno no local. Admiro a vontade de crescer do meu sócio, mas ele
precisa colocar os pés no chão. Vou sugerir que permaneça na
costa oeste. Com tantas praias bonitas para expandir os negócios
por lá, não faz o menor sentido querer vir para o outro lado do país.
Desço do carro e sou atingido por uma rajada de vento frio. A
neve que cai não é o suficiente para forrar o chão de branco, mas
tem a capacidade de gelar as canelas como ela só. Tudo o que
quero é entrar pela porta da minha casa e beber algo quentinho.
Minha casa, não. A casa de Alicia e Peter, lembro a mim mesmo.
Você só está de passagem. Pela primeira vez, uma sensação de
pesar toma conta do meu peito, aumentada quando enfim abro a
porta e não escuto o menino vindo me receber aos gritos de alegria.
O que escuto faz o meu cérebro entrar em alerta. Uma mulher
chora, agoniada, em algum canto da casa. Esqueço de limpar as
botas no tapete e de tirar o casaco ao correr em direção ao som.
Não preciso ir longe: Alicia chora abraçada a si mesma no chão da
cozinha, o celular caído ao seu lado.
Olho para ela, assustado, sem saber o que fazer. Ajoelho-me,
tentando descobrir se está machucada, mas aparentemente não
está. Devagar, ergue os olhos de encontro aos meus.
— Você tem Instagram? — franzo o cenho, mas faço que sim. —
Dá uma olhada no story que o Hector postou.
Um rastro de gelo percorre a espinha, da lombar até a nuca. Ou
ele morreu, ou postou algo muito desagradável. Aposto na segunda
opção. Pego o celular caído no chão e não me espanto ao descobrir
que a tela é livre de qualquer tipo de bloqueio. Volto alguns stories
de gatinhos fofos e encaro o causador daquilo.
Hector teve a pachorra de compartilhar uma foto ao lado de uma
mulher loira. Há muitas daquele tipo na Califórnia. Estonteantes,
donas de sorrisos provocantes, prontas para arrasar na cama ou
fora dela. Aquela encara o meu irmão com o seu melhor olhar de eu
quero que você me foda bem gostoso, meu querido. Há química ali
e só um completo idiota deixaria de ver o óbvio. Um segundo
homem aparece mais ao fundo, provavelmente alguém que saiu de
penetra na foto, mas pouco importa.
O que importa é a raiva que se acende dentro de mim. Nem eu
chegaria a ser cafajeste aquele ponto. Posso ter as minhas
diferenças com Alicia, mas poucos dias bastaram para ver como ela
é uma esposa e mãe dedicada. Aquilo não é justo. Se antes quis
esmurrá-lo pelo que fez com Peter, agora quero esmurrá-lo por
Alicia também.
— Acabou, Henry — ela diz, baixinho a ponto de ser quase
inaudível, os olhos opacos cravados nos quinze segundos
necessários para aquele pesadelo se transformar em outro story. —
Eu ainda tinha esperança, sabe? De reatarmos. Mas agora —
aponta o celular com o queixo. — acabou. Fui trocada por uma
mulher muito mais bonita do que eu.
— Ei, de onde você tirou isso?
Ela abre os braços em direção ao próprio corpo encolhido no
chão.
— Olha para mim. Sou apenas uma dona de casa. Nunca mais
terei uma cintura como essa — volta a olhar para a tela, mas a loira
foi substituída pelos gatinhos. — Para piorar, a minha está tomada
por estrias da gravidez. Que homem quer ver isso? Sem contar que
essa daí deve ser estudada, viajada, culta e inteligente. É claro que
o Hector me trocou.
E volta a cair no choro. Quero dizer a Alícia que ela não tem
olheiras. Que os seus cabelos ruivos são de causar inveja. Homem
nenhum fica caçando estria na hora do vamos ver e, se for do tipo
que fica, deveria era então tomar uma surra. Inteligente? Alicia tinha
uma bolsa para estudar em Columbia! Eu e o imbecil do meu irmão
podíamos pagar, mas se não pudéssemos, não teríamos passado
nem na porta de uma universidade do calibre da Columbia.
Mas não digo nada. Limito-me a puxá-la para um abraço. Alicia
vem sem mostrar a mínima resistência. Agarra meus ombros com
força e esconde o rosto contra o meu peito, afundando-se em mim.
Seus ombros tremem, descontrolados, enquanto as lágrimas
molham o casaco que não tirei, mas não digo nada. Apenas a
abraço forte, afago as suas costas e deixo que chore.
Aos poucos Alicia se acalma, mas permanece onde está. Quando
dou por mim, estou deslizando os dedos pelos seus cabelos. Se
aquilo incomoda a mulher, ela não demostra. Pelo contrário, o seu
corpo relaxa, como se estivesse feliz pelo toque. Com delicadeza,
puxo-a para mais perto, desfrutando do calor do seu corpo contra o
meu.
— Melhor? — pergunto. Ela faz que sim e só então se afasta. Um
vazio estranho, frio, toma conta do espaço antes ocupado por ela.
Alicia limpa os olhos com as costas das mãos e me encara.
— Desculpe, eu…
— Ah para, né — corto. — Você não me deve desculpas de nada!
Não deve ser fácil ver uma foto dessas.
Ela sorri de um jeitinho triste.
— Não, não é. Sabe do que eu tenho medo? — nego com a
cabeça e vejo seus olhos voltando a se encher de lágrimas. — Do
Hector tirar o Peter de mim — a voz falha e ela volta a chorar. — Ele
tem muito mais recursos. Pode contratar um bom advogado e me
mandar direto para um campo de trailers.
Os ombros de Alicia voltam a tremer. Várias fichas caem dentro
do meu cérebro, ensurdecendo-me com o seu tilintar.
— Você morou em um trailer? — pergunto, apenas para
confirmar o óbvio. Ela morde os lábios e assente, o rosto vermelho
de vergonha.
— Foram anos difíceis — comenta, bem baixinho. — Há muita
gente digna vivendo nesses lugares, algumas até que escolhem isso
como meio de vida, mas não era o nosso caso. Estávamos lá
porque não tínhamos dinheiro — soluça. — Às vezes não tínhamos
nem o que comer.
Não sei de onde aquela vontade vem, mas vem como a erupção
de um vulcão: eu preciso proteger aquela mulher. Há muita força em
Alicia, sei que há, mas naquele momento ela é apenas uma garota
assustada. Não gosto de ver o medo latente em seus olhos e vou
fazer o de tudo para tirá-lo de lá, custe o que custar.
— Escuta aqui — peço, quase como uma ordem. Parte de mim
deseja que ela retruque, cheia de marra, mas permanece quieta. —
Prometo que Hector não ficará com Peter, porque se ele tentar,
precisará se lembrar que eu também tenho muitos recursos e não
vou deixar que tire o seu filho. Você nunca mais pisa em um trailer.
Estamos entendidos?
Alicia solta um risinho irônico.
— Não sei se a sua ajuda me deixa aliviada, Henry — diz,
limpando os olhos com as costas das mãos. Empurro o seu ombro
de leve, de brincadeira, e ela ri um pouco mais.
— Estamos entendidos ou não? — insisto, rindo de volta. Com
um sorriso triste, ela assente.
— Obrigada.
— De nada — digo, ao tempo de ouvirmos um carro
estacionando diante da casa — Acho que o seu filho chegou —
indico com a cabeça.
Alicia assente e tenta se levantar. Levanto-me primeiro e estendo
a mão para ajudá-la. Ela a aceita, fazendo com que uma discreta
corrente elétrica suba pelo meu pulso. Desconcertado, ergo-a para
cima, curioso para saber se sentiu o mesmo do que eu.
Uma vontade insana de lhe dar um segundo abraço me domina,
mas, dessa vez, eu não me limitaria a mantê-la quietinha contra o
peito. Resisto à tentação e a observo se distanciando, cabisbaixa,
em direção a porta da sala. Peter grita do outro lado.
Aparentemente, Judy lhe deu um presente. Estou curioso para ver o
que é, mas subo para o escritório antes que Alicia abra a porta. Uma
ideia vem a minha mente.
Quero dar um presente, a Alicia, mas o que? Tento pensar em
alguma coisa, mas meu cérebro parece tomado por um bloqueio
criativo. Bom, se tem alguém na família que é gênio em ter boas
ideias, por mais mirabolantes que sejam, esse alguém é Emilly
Chamberlain.
Tiro o celular do bolso da calça e acesso o contato da minha
irmã. O telefone chama até cair na caixa postal. Bufo, meio irritado,
e faço uma nova chamada. Dessa vez a bonita atende.
— Quem fala? — pergunta, ofegante.
— Misericórdia! Espero que eu não esteja interrompendo uma
sessão de sexo selvagem — brinco. Quase consigo vê-la me
mostrando o dedo do meio para a tela do celular.
— Não, seu idiota! Só estou correndo no Central Park.
— Nesse frio?
— Henry, se ligou para encher o saco, saiba que ainda preciso
correr cinco quilômetros e, como você mesmo disse, está frio —
resmunga. — Desembucha!
— Primeiro, entra no perfil do Hector no Instagram e veja o que
ele postou nos stories.
— Você está de gozação com a minha cara, né? O perfil dele
deve estar criando mofo. Ele nunca posta nada!
— Pois é, mas decidiu postar — digo, soturno. Emilly percebe
meu desagrado. Por alguns instantes escuto apenas os passos
apressados de outros frequentadores do parque e o latido de um ou
dois cachorros, até que minha irmã solta um sonoro puta que pariu e
volta a linha.
— Eu não acredito que ele fez isso com a Alicia!
— Também não acreditaria se não tivesse visto — retruco. Emilly
solta mais alguns impropérios. Ainda bem que está fora de casa. Se
estivesse no apartamento da minha mãe ela a obrigaria a lavar a
boca com sabão. — E, como você deve imaginar, a Alicia já viu.
— Coitada — solta, entristecida. — Ela está bem?
— Não. Está um caco, por isso eu te liguei — resumo o
acontecido e a forma como Alicia se sentiu após ver a foto. —
Pensei em sei lá, fazer algo por ela. O que você acha?
O silêncio do outro lado da linha é ensurdecedor.
— Você, entre todos os homens na face da Terra, quer fazer algo
pela Alicia? — questiona, incrédula.
— Quero. Qual o problema nisso?
— Nenhum! — vibra. Franzo o cenho, sem entender nada. — Eu
fico feliz, de verdade.
— Tá… e você tem alguma ideia? Talvez um presente?
— Acho que você pode fazer mais. Há algum limite de gastos?
— Não.
— Então me deixa pensar um pouco — assinto para mim mesmo
e aguardo enquanto escuto os sons ao fundo. Outro cachorro late,
seguido pelo riso alegre de uma criança. Desvio o foco para os sons
dentro da casa. Peter entrou na casa e Alicia parece conversar algo
com a vizinha. Espero que ainda fiquem um pouquinho no andar
debaixo. Seja qual for a ideia que Emilly vai me dar, quero que seja
surpresa. — Já sei! — diz, por fim. — Você poderia dar um dia só
para ela!
— Como assim?
— Você é lento tem hora, heim? — abro a boca para retrucar,
mas Emilly continua. — Aposto que Alicia é o tipo de dona de casa
que faz tudo. Ela dedica vinte e quatro horas do dia ao filho e ao…
marido, por mais que ele seja de mentira. Limpa, cozinha e está
sempre ali, a postos, para tudo e para todos, menos para ela.
Não preciso nem refletir. Minha irmã acabou de descrever a
cunhada com exatidão.
— É isso mesmo — confirmo.
— Ela precisa de um dia dela — continua. — Um dia em que sua
última preocupação seja a casa ou o filho. Onde ela possa mimar a
si mesma, entende?
— Entendo. — Uma ideia começa a se formar na cabeça. Sei que
posso contar com Peter. Prestativo como é, o menino ficará
deliciado. — Tem ideia de onde eu poderia levá-la? Talvez um salão
de cabeleireiros ou…
— Salão, não! — Emilly solta, indignada. — Um salão sugeriria
uma mudança de aparência que, no presente momento, poderia
deixá-la mais insegura. O que Alicia precisa é de um dia só para si,
para enxergar a mulher maravilhosa que é, sem precisar de
qualquer mudança. Acho que um dia sendo paparicada em um SPA
seria perfeito!
— Ótimo! Tem algum para indicar?
— Tenho. Eu mesma vou agendar. Já já te mando uma
mensagem com a confirmação e com a conta.
— Tudo bem. — Um pensamento louco cruza a minha mente. —
Não é daqueles com massagistas pelados, é?
— Existe um desses em Manhattan? Porque se existir, é nesse
mesmo que vou marcar!
Uma sensação incômoda invade o meu peito.
— Não sei se existe — digo, entredentes —, mas, por favor,
marque um SPA comum.
Emilly percebe. É claro que percebe.
— Pode deixar, irmãozinho — ri, antes de desligar. Tiro o telefone
do ouvido e encaro a tela escurecida, tentando entender o que foi
aquela momentânea onda de ciúmes, mas não tenho tempo. Peter
enfim sobe as escadas e para diante da porta do escritório com um
sorriso de orelha no rosto.
— Papai, olha só o que eu ganhei! — diz, me estendendo um
boneco Funko Pop do novo filme do Homem-Aranha. — A Tia Judy
me deu!
— Que lindo! Você agradeceu a ela?
— Sim — confirma Peter.
— Ótimo! Agora me conta, você sabe guardar um segredo?
Os olhos do menino brilham enquanto ele assente, curioso. Faço
um gesto pedindo para se aproximar e sussurro a ideia em seu
ouvido. Qualquer um diria que é pouco esperto confiar que um
menino de quatro anos será capaz de segurar a língua, mas confio
em Peter. Ao terminar, encaro o seu rosto maravilhado, e tenho
certeza de que ele vai me ajudar.
Abro os olhos, bem devagar. O silêncio no quarto me pega de
surpresa. Após meses dormindo sozinha, logo me acostumei a
acordar ouvindo o ressonar baixinho do homem ao meu lado. Hoje,
sei que não preciso me virar para saber que ele não está ali. A falta
do leve barulho é o de menos. O que sinto falta mesmo é do seu
calor.
Falta? Do Henry? É, acho que sim, por mais difícil que seja
admitir. Ele é irritante, sem-vergonha ao extremo e me fez desejar
chorar de raiva pelo menos três vezes desde que chegou, mas
também é bom para Peter.
E foi bom para mim, depois que cedi ao desespero. Não
esperava ser abraçada contra o seu peitoral forte, os braços em
torno do meu corpo, fazendo com que me sentisse segura como há
muito eu não me sentia. Seria mentira dizer que o amadeirado do
seu perfume tinha um quê calmante. Foi o próprio Henry que me
acalmou e deu um pouquinho de força e, por um breve momento,
relaxei no calor da sua proteção.
Ele ficou atento durante o restante do dia, perguntando vez ou
outra se eu estava bem. Fui sincera ao dizer que estava, mesmo
que apenas dentro do possível. Sua promessa de garantir que Peter
permanecerá comigo não foi em vão. Ninguém faz uma promessa
com tamanha fúria se pretende quebrá-la. Aquilo permitiu que eu
tivesse um sono tranquilo. Espero que os dias até tudo se resolver
com Hector sejam tranquilos, também.
O som de algo metálico caindo no chão, seguido de um
xingamento alto e de uma risada infantil chamam a atenção. Henry e
Peter aparentemente estão na cozinha. Fazendo o que? Só Deus
sabe. Espreguiço-me na cama e me levanto um pouco preocupada,
mas bastante curiosa para descobrir o que está acontecendo no
andar debaixo.
— Mamãe! — vibra Peter, ao me ver entrando na cozinha. Encaro
o menino de boca aberta. O cabelo ruivo tornou-se branco de
farinha. Ergue os olhos em direção aos fios sujos e ri todo alegre
antes de correr até mim. — Estamos fazendo biscoitinhos de limão!
— Estamos tentando — corrige Henry, olhando de cara feia para
a assadeira sobre a bancada de mármore. Corro os olhos pelo piso
e, pela quantidade de biscoitos espalhados pelo chão, ela caiu antes
de ser colocada ali. Volto a focar no homem na cozinha e quase
perco o fôlego.
Assim como o meu filho, Henry tem farinha até nos cabelos,
conferindo um falso toque grisalho aos fios escuros. Uau, se dali a
quinze anos ele mantiver a forma física, tem tudo para se tornar um
quarentão de derrubar queixos e calcinhas. O avental feminino é
pequeno para o seu corpanzil, ajustando-se em seu tronco como
pode, salientando cada parte da cintura marcada e do peitoral largo.
Reparo que mantém as tatuagens cobertas pela manga da camiseta
que usou para dormir, mas, se pudesse, a tiraria sem pensar duas
vezes. Pequenas gotas de suor escorrem pelo rosto. Ele as limpa
com um pano de prato e sorri de orelha a orelha.
Aquilo tem potencial para me atingir em cheio, mas não atinge.
Porque o sorriso idêntico ao de Hector também é diferente, todo
próprio de Henry, o canto dos lábios curvado meio de lado com
aquele toquezinho safado que me enerva de diferentes maneiras.
Sorrio de volta, pela primeira vez feliz por ele estar ali não só por
Peter, mas também por mim. O poço se agita, não tão profundo
dessa vez, mais quente do que antes. E Henry percebe. Claro que
percebe. Um homem como ele está acostumado a ler as entrelinhas
da face de uma mulher. Obrigo-me a quebrar o contato.
— Preciso pegar uma vassoura para limpar essa bagunça —
digo, apontando para a lavanderia. Aquele barulho é o da máquina
de lavar ligada? Não tenho tempo de conferir. Henry segura minha
mão no ar e me encaminha para a ilha no centro da cozinha.
— Pode ficar tranquila que eu mesmo vou limpar. Hoje é o seu
dia de não fazer nada.
Ergo uma sobrancelha.
— Não sabia que donas de casa tem dias de não fazer nada.
— Você tem, vê só que maravilha? — Com um floreio, puxa uma
das banquetas. — Vamos, sente-se aqui que eu e o Peter
cuidaremos do café da manhã e de todo o resto. Acabamos de
colocar a roupa para lavar.
Meu filho assente, animado. Olho de um para o outro,
imaginando de onde tiraram aquela ideia, mas sei que é tempo
perdido. A família Chamberlain, pelo visto, é mestre em ter ideias
mirabolantes.
— Tudo bem, mas só me deixe pegar a vassoura e…
— Não, não e não. Você não vai varrer nada, Alicia — insiste,
muito sério. — Pode sentar, por favor? Detestaria perder a próxima
fornada de biscoitinhos de limão.
Rio para mim mesma e dou de ombros, sentando-me na
banqueta. Henry assente, satisfeito, e volta ao seu posto ao lado do
forno. Salva alguns biscoitinhos da fornada anterior e os coloca em
um pratinho. Cabe a Peter trazê-lo até mim. Sorrio para o meu
pequeno e agradeço, levando um biscoitinho à boca. Estão longe de
chegarem aos pés dos feitos pela Paulina, mas o que vale é a
intenção. Queimaram um pouco, mas estão gostosos, apesar de
diferentes da receita original.
Com o forno sob controle, Henry deixa as finas tiras de bacon
fritando enquanto arruma os pratos e talheres sobre a ilha da
cozinha. Ele se esquece de pegar o jogo de mesa, mas não digo
nada. Deixo que arrume tudo do seu jeito, sem interferir, apenas
mantendo um olho no fogão quente, tremendo que o bacon queime
com a sua distração.
Mas não queima. Henry joga outra frigideira sobre o cooktop e se
ocupa dos ovos. Cubinhos de queijo e presunto, previamente
cortados, são adicionados à mistura. Para finalizar, uma porção de
alho-poró.
— Uau, quem diria que você sabe cozinhar — brinco,
observando-o mexer a mistura com uma espátula de silicone. Henry
olha por sobre o ombro.
— Não se alegre. Só sei cozinhar isso. Os biscoitinhos estão aí
para provar.
— Eu ajudei! — lembra Peter.
— Verdade — diz, soltando a espátula para bagunçar os seus
cabelos. Uma nuvem branca se ergue na cozinha e o menino ri. —
Vai ver por isso a fornada deu errado. Toda a farinha ficou aqui, ó —
enfatiza, dando dois toquinhos com os nós dos dedos em sua
cabeça.
— Estão ótimos — elogio, sem querer chatear ninguém. Henry
me lança um olhar de dúvida e volta a se concentrar. Lembro-me da
máquina de lavar. — Vocês se lembraram de separar a roupa
branca da colorida?
Os dois se entreolham.
— Precisava fazer isso? — Henry questiona. Mordo os lábios e
faço que sim. — Ah, não separamos, não.
— É difícil que um homem que more sozinho não saiba disso.
— E eu lá tenho cara de ser homem que lava roupa? — retruca,
com as mãos na cintura. O bacon estrala em meio ao óleo e Henry
volta sua atenção ao fogão. — Deixa isso para lá e vamos comer.
Só me resta concordar. Em instantes, meu prato está ocupado
por uma generosa porção de ovos e bacon. Henry tira as duas
últimas torradas da torradeira e as coloca em um prato no centro da
mesa, ao lado da segunda fornada de biscoitinhos de limão. Depois,
ergue Peter até o seu lugar, tira o avental e só então se senta.
Encaramo-nos e, sem maiores cerimônias, começamos a comer.
Um hummm involuntário escapa da minha garganta e faz com
que Henry me lance um olhar presunçoso. Ele pode não saber lavar
roupa, mas sabe fazer um ótimo omelete e o bacon está perfeito,
sequinho e saboroso do jeito que eu gosto. Henry me acompanha,
enquanto Peter fica apenas nas torradas com geleia de morango.
Limpo o canto da sua boca com um guardanapo e ele sorri.
Henry termina a refeição e, só então, busca a vassoura na
lavanderia. Ainda sentada na banqueta, resisto a tentação de
apontar o local onde um biscoitinho ficou esquecido próximo a uma
das gavetas ou como as cerdas da vassoura deixaram um rastro de
farinha para trás. Peter pula da banqueta e o ajuda com a pá, indo e
voltando da lixeira, cumprindo sua função com cuidado. Com aquela
missão finalizada, o homem recolhe a louça, lava tudo meio de
qualquer jeito, passa um pano de prato sujo por sobre a bancada
próxima a pia e pronto, a cozinha está “limpa”. Estende a mão para
Peter que pula para acertar o high five. Os dois riem, cheios de
cumplicidade. É impossível não rir também.
— Agora — anuncia Henry — vamos nos arrumar para ir a
Manhattan!
— Para fazer o quê? — pergunto. Os dois se entreolham.
Devagar, Peter passa os dedos pela boca manchada de vermelho,
em um gesto de fechar o zíper. — Ahhh, seu traidor! Você sabe,
então! — brinco.
— Sei, mas não posso contar — confessa. Henry o cutuca de
leve.
— Não, não pode! Você me disse que sabia guardar segredos! —
O menino assente, muito sério, enquanto fico ainda mais intrigada.
O homem volta sua atenção a mim. — Preciso ter algum cuidado
especial para dar banho nesse gambazinho?
— Não quer que eu…
Henry solta o ar com força, perdendo a paciência.
— Meu Deus, mulher! Aproveite o seu dia! Consigo dar banho na
criança, eu acho — acrescenta, baixinho, mas acabo ouvindo.
Encolho os ombros e me rendo. Não faço ideia do que os dois
inventaram para mim, mas decido aproveitar.
— Só precisa tomar cuidado para o shampoo e o condicionador
não cair nos olhos. O Peter faz todo o resto sozinho.
— Faço sim — orgulha-se Peter.
— Ótimo — diz Henry, pegando-o de surpresa e jogando-o por
sobre o ombro. O menino grita de alegria, os braços e as pernas
abertos no ar, como se estivesse voando. — Vou cumprir essa
missão enquanto você troca de roupa. Precisamos chegar em
Manhattan às onze da manhã.
Olho de soslaio para o relógio da cozinha. Aquilo nos dá quase
duas horas. Somando o tempo do trajeto, precisamos sair de casa
em no máximo uma hora e vinte minutos. Faço cócegas nos pés de
Peter e subo, deixando que Henry tome conta do banho. Do closet
escuto os gritos brincalhões dos dois, mas me obrigo a permanecer
onde estou, na dúvida sobre qual roupa usar. Escolho o combo de
jeans e blusinha de manga comprida, torcendo para que seja o
suficiente.
Satisfeita com o look, decido escolher um brinco, até me lembrar
que todos foram dados por Hector. Por algum motivo não quero usá-
los. Quero aproveitar o meu dia de não fazer nada sem a sombra da
sua presença, então mantenho as orelhas nuas. Quando me viro
para ir até o banheiro descobrir se Henry sobreviveu, dou de cara
com o mesmo me observando.
Os intensos olhos azuis deslizam devagar pelo meu corpo,
demorando-se na curva da minha bunda. É a segunda ou terceira
vez que o pego fazendo aquilo e, sendo bem sincera, não entendo o
motivo. Henry deve ter visto traseiros muito melhores por aí ou,
talvez, seja apenas tarado por bundas.
— Deu tudo certo? — pergunto, só então reparando que ele está
encharcado. Ignoro o contorno do seu corpo por debaixo da camisa
colada e me forço a encará-lo. — Parece que Peter também te deu
um banho.
— Deu. Seu filho deve ser a favor do meio ambiente.
— Você não é?
— Claro que sou, ainda mais se for para dividir o chuveiro com
uma mulher — deixa escapar. A temperatura no quarto sobe alguns
graus, mas quando Henry percebe a gafe, é tarde demais. Fecha os
olhos com força antes de voltar a me encarar. — Você poderia vesti-
lo? Eu tentei, mas ele não deixou. Está pulando pelado pelo quarto.
Não queria precisar pedir, mas…
— Pode deixar que cuido disso, e só disso — pisco e ele assente,
aliviado. — Arrume-se, senão vamos nos atrasar.
Não faço ideia do que ele e o meu filho estão aprontando, mas
estou ficando cada vez mais ansiosa para descobrir.
Peter está tão eufórico que leva um certo tempo até conseguir
capturá-lo pelo quarto e convencê-lo a botar uma roupa. Henry nos
aguarda na sala quando descemos, casaco vestido, chave do carro
nas mãos. Em poucos minutos estamos rodando em direção a
Manhattan. A agitação que toma conta do trânsito conforme nos
aproximamos da ilha só confirma o quanto gosto de morar na
tranquilidade de Greenville.
Henry estaciona, descemos do carro e caminhamos pela 5ª
Avenida. Peter começa a pular entre nós dois, olhando deslumbrado
para o topo dos prédios altos. Adianto-me em agarrar a sua mão,
com medo que escorregue na neve fina, corra para a rua ou se
perca entre os apressados pedestres. O menino a segura com
firmeza, mas agarra a mão de Henry também, unindo todos nós em
uma corrente. Meu cunhado envolve os dedos do menino entre os
seus com a naturalidade de quem faz aquilo por anos, não apenas
alguns dias. Quem nos vê de fora jamais imaginaria que estamos
longe de ser um perfeito casal.
Entramos em uma rua paralela e saímos na Madison Avenue.
Mordo os lábios, mais curiosa do que nunca para saber para onde
estão me levando, mas me forço a ficar calada. Henry olha atento
para os prédios, como se procurasse algo, e aperta o passo ao
encontrar.
Paramos diante de uma sóbria fachada envidraçada. Não dá para
ver muito do lado de fora além de uma longa bancada com uma
atendente, prateleiras cobertas de produtos e sofás cheios de
almofadas de aspecto macio. Henry sorri e, com um floreio, abre a
porta. Peter solta as nossas mãos e corre para dentro, mas
permaneço onde estou.
— Você me trouxe a um SPA? — pergunto, olhando para a
inscrição dourada em uma das paredes do estabelecimento. Henry
confirma com a cabeça. — Por quê?
Ele pensa antes de responder.
— Eu poderia dar várias respostas, mas quer saber a principal
delas? — assinto, em expectativa. — Você cuida de todo mundo,
mas não cuida de você. Então decidi dar um… empurrãozinho.
Serão quatros horas para ser mimada como merece. Queria que
passasse o dia, mas foi o melhor que Emilly conseguiu de ontem
para hoje. Ideia dela, inclusive — acrescenta.
— A sua irmã é sempre cheia de ideias — comento, tentando
segurar as lágrimas de emoção. Estende dois dedos em direção ao
meu queixo e o ergue, bem devagar.
— Ei, pelo menos essa ideia é boa. — Ele me encara,
preocupado. — Não gostou?
— Gostei. Eu só não estou acostumada com isso — confesso,
olhando em volta. Peter está fazendo amizade com a atendente que
nos aguarda, cheia de paciência. Volto a encarar o homem à minha
frente. — Obrigada.
Henry faz como se aquilo não fosse nada e, finalmente, me
permito entrar na recepção do SPA. Parte da agitação de Nova
Iorque fica do lado de fora assim que a porta de vidro é fechada,
deixando que apenas os sons mais altos invadam o ambiente com
aroma de lavanda.
— Aproveite, Alicia — diz Henry enquanto Peter vem para perto.
Sorrio para eles.
— Vou aproveitar. E vocês, vão fazer o que?
Ele passa a mão pelos ombros do menino, puxando-o contra a
sua coxa. Peter olha para cima, cheio de devoção.
— Sei lá. Acho que vamos fazer coisas de homens — faço cara
feia e os dois riem. — Até mais tarde.
— Até — digo, seguindo a atendente para o interior do SPA.
Parte da risada do meu filho me acompanha, mas apenas até o
momento em que uma segunda porta de vidro é fechada, cessando
qualquer ruído do mundo exterior. O silêncio, cortado apenas pelo
murmurar de uma fonte de água corrente, reina no SPA.
Por um instante o pânico me invade e quero sair dali. Henry
conseguirá lidar sozinho com o meu filho? E se, em um descuido,
ele soltar a mão de Peter? Nova Iorque é perigosa demais para uma
criança sozinha. Ele pode ser atropelado pelos carros e...
— Bom dia, Alicia — cumprimenta uma voz suave. A atendente
me trouxe até uma sala em meia luz, mas não se encontra mais ali.
Orquídeas decoram uma das paredes enquanto as demais, em
mármore creme, envolvem o espaço em torno do ofurô de madeira.
A água cheia de pétalas borbulha, convidativa. Só então presto
atenção na pequena jovem trajando roupas brancas. Ela sorri, como
se estivesse acostumada a ter a sua presença sobrepujada pelo
ambiente. — Eu sou a Emma, a sua massagista, e será um prazer
atendê-la.
— Desculpe, eu me distraí.
— Está tudo bem — diz, tranquila, se adiando para tirar o meu
casaco. Permito que o faça, mas enrijeço ao perceber que precisarei
tirar tudo para entrar na banheira. Ela percebe. — Você gosta de
chá?
— Gosto.
— Ótimo, vou sair para buscar uma xícara. Fique à vontade.
Emma pendura o meu casaco em um cabideiro e me deixa
sozinha. Toco a água do ofurô com a ponta dos dedos. Quentinha
na medida certa, borbulhando em uma deliciosa mistura cítrica que
começa a se elevar no ambiente. Se eu for rápida, Emma me
encontrará submersa quando voltar.
Tiro a roupa, ajeito tudo em um canto e coloco o pé no primeiro
dos três degraus que levam ao ofurô, encarando-me no espelho
antes de entrar. Uma mulher pálida e com um leve ar assustado me
encara de volta. Devagar, deixo-me submergir na água aquecida,
permitindo que o meu corpo se envolva em meio às flores
flutuantes. Inspiro fundo, deliciada, mas ainda longe de relaxar.
— Eu devia ter prendido os cabelos — comento, olhando as
mechas avermelhadas diante dos meus seios pálidos.
— Não se preocupe. — Emma retorna com uma bandeja em
mãos e, com um sorriso, a coloca ao meu lado. O aroma de limão,
hortelã, mel e gengibre emana do bule de chá e passa a competir
com os sais. Com delicadeza, a massagista puxa os meus cabelos
para trás e os prende com uma presilha. — Temos secador, vamos
arrumar tudo antes de você ir embora. Eles são lindos —
acrescenta, olhando admirada para os fios.
— Ah, obrigada.
— De nada. Você é linda por inteiro — diz, com simplicidade.
Sinto o rosto enrubescendo e, sem saber o que fazer, pego uma
xícara e me sirvo do chá. Levo a bebida aos lábios e solto um
suspiro. Delicioso. Bebo tudo e devolvo a louça. Emma me oferece
mais chá, mas faço que não. Ela afasta a bandeja e envolve os
meus ombros com suas pequenas mãos. Tenciono, mas basta
alguns movimentos de seus dedinhos fortes para aproveitar a
massagem. Pela primeira vez em muito tempo, fecho os olhos e
permito-me relaxar.
Eu e Peter saímos de mãos dadas do SPA assim que Alicia é
levada pela atendente até o clímax do seu dia de não fazer nada.
Daqui a pouco quem precisará de um dia assim será eu. Estou
chocado com a quantidade de tarefas que a mulher faz sozinha. O
café da manhã teria sido tranquilo se não fossem os biscoitinhos
arruinados. Inventei de fazer uma nova fornada e Peter, agitado por
conta da rotina diferente, decidiu me ajudar com a farinha, a receita
perfeita para a confusão.
O resultado catastrófico da minha tentativa de dar banho me
coloca diante do maior desafio daquele dia: como entreter uma
criança pequena por quatro horas? Não faltam atividades em Nova
Iorque e começo a enumerar mentalmente as opções.
Posso levá-lo ao cinema, mas não faço ideia do que está em
cartaz. Filmes natalinos, com certeza, mas pelo o que conheço de
Peter, ele não ficará contente em se sentar por duas horas diante de
uma tela exibindo as confusões de casais apaixonados em meio a
neve de dezembro. Aprendi a gostar das tardes preguiçosas em que
nos sentamos no sofá para ver Patrulha Canina ou Bob Esponja,
mas não estou nem um pouco a fim de gastar duas horas dentro de
uma sala de cinema vendo desenhos.
Peter pula, chacoalhando minha mão para cima e para baixo, em
sincronia com os seus movimentos. Independente do que fossemos
assistir, o menino está eufórico demais para ficar quieto. Sei que
gostou dos brinquedos do shopping, mas decido descartar qualquer
atividade em locais fechados.
Há dias não visito a cidade e, com o Natal cada vez mais
próximo, as luzes brilhantes florescem em meio aos prédios. Inspiro
fundo, enchendo os pulmões com o ar frio e um tanto quanto
poluído, energizado por estar de volta a agitação de uma metrópole
como Nova Iorque, quando tenho uma ideia.
— Você sabe patinar no gelo? — pergunto.
Peter para de pular e me encara. Alicia colocou uma touca azul
marinho sobre os seus cabelos ruivos. Algumas mechas mais
longas escapam pelas laterais, deixando-o com um ar para lá de
fofo. Meu Deus! Eu, Henry Chamberlain, playboy assumido, parado
no meio da rua de mãos dadas com uma criança, achando ela fofa.
Meus amigos da Califórnia ririam daquilo por, no mínimo, três dias.
E quer saber? Eles que se fodam.
— Não — diz Peter, virando o rostinho de lado. — Você sabe
andar, papai?
— Claro que sei — digo, um tanto convencido, puxando-o pela
mão. — Eu fazia parte do time de hóquei da universidade!
O menino arregala os olhos e emite um ohhh baixinho. Não sei se
ele entende o impacto de fazer parte de um time universitário da
primeira divisão, mas sua expressão devotada faz com que eu me
sinta tão bem que não acrescento um detalhe: eu era reserva. Bom
jogador mesmo era o seu pai.
Hector chegaria aos profissionais se não tivesse desistido de
jogar no segundo ano. Nunca entendi o motivo. Na época ainda nos
falávamos e ele se limitou a dizer que estava cansado. Bom,
cansativo era mesmo, mas eu gostava. Fiquei até o terceiro ano,
quando percebi que nada me faria ir além do nível em que estava, e
também desisti.
Há vários rinques de patinação no gelo espalhadas pela cidade.
Poderia levá-lo ao Central Park, mas sempre gostei mais do rinque
do Rockefeller Center. De quebra, Peter poderá ver a tradicional
árvore de Natal diante da pista. Ela é mais bonita à noite, com todas
as luzes coloridas acesas, mas não deixa de ser impressionante de
dia. Puxo-o pela mão e em poucos minutos a árvore entra em nosso
campo de visão.
Peter solta um grito de alegria e faz menção de sair correndo. Por
sorte o seguro com firmeza. Rio da sua empolgação e apresso o
passo, parando diante do rinque com a árvore se avolumando sobre
nossas cabeças. O menino entorta o pescoço até onde consegue,
tentando absorver cada detalhe do imenso enfeite. A boa e velha
nostalgia, a mesma que me pegou quando cheguei a cidade, volta a
tomar conta do meu peito. Se Peter está pirando aqui, imagino como
vibrará ao ser levado para escolher a própria árvore de Natal.
Precisamos fazer isso antes de irmos para os Hamptons.
No rinque, pessoas de todas as idades, em sua maioria casais,
dão passinhos claudicantes sobre o gelo, se desequilibrando vez ou
outra, mas ainda se mantendo de pé. Apenas um deles parece
saber o que está fazendo. O rapaz é alto e loiro, bem apessoado
como um deus nórdico, e se não é jogador de hóquei ou patinador
profissional, com certeza foi. Já a garota tem a pele morena e
cabelos castanhos fartos que escapam por debaixo da touca.
Juntos, cortam o gelo com desenvoltura, tornando o espaço
pequeno para tamanha habilidade.
— Veio patinar com o seu filho? — pergunta uma voz.
Tiro a atenção do casal e foco em uma senhora de uns setenta
ou setenta e cinco anos, cabelos brancos como a neve fina que
cobre o chão, sorriso simpático cheio de rugas. Um cachorrinho
peludo, talvez um Lulu da Pomerânia, late de dentro da bolsa que
leva a tiracolo. Peter desvia a atenção da árvore e olha encantado
para o bicho enquanto eu pisco, desconcertado.
É a primeira vez que alguém de fora se refere a Peter como meu
filho e me surpreendo ao perceber que não estou incomodado.
Gosto de verdade do menino. Às vezes, quando acordo a noite e
tenho apenas a companhia dos meus pensamentos e da respiração
tranquila de Alicia, me pergunto como pude ter sido tão idiota. Uma
briga por conta de um beijo roubado não deveria ter sido motivo
para separar a família daquele jeito. Se eu tivesse me imposto, não
teria perdido quatro anos da boa companhia do meu sobrinho.
— Vim — digo, com um sorriso. É com certo prazer que vejo o
seu rosto enrubescendo. Ela solta um risinho e olha Peter com
carinho.
— Ele é a sua cara. Imagino que a mãe deva ser uma beldade.
O menino franze o cenho.
— O que é beldade?
— Bonita.
Peter finalmente entende e assente.
— Ela é. A mãe mais bonita do mundo!
Com toda a certeza, me pego pensando. O cachorro late de
novo, chamando a atenção da dona.
— Ah, essa é a Honey — diz a senhora.
— Posso fazer carinho nela? — Ela faz que sim e abaixa a bolsa
até a altura de Peter. Honey entra em um frenesi assim que as
mãozinhas do menino se aproximam do seu pelo macio. Fecha os
olhos, deliciada diante do carinho, enquanto Peter vira o rosto em
minha direção.
— Papai, será que o Papai Noel me dá um cachorrinho de Natal?
— E o videogame? — pergunto, tentando voltar para um terreno
seguro. Peter encara Honey em dúvida, mas basta que ela lamba a
ponta dos seus dedos para que uma certeza tome conta do seu
rosto.
— Eu topo trocar pelo cachorrinho. Por favor, papai — pede,
manhoso, arregalando os olhos azuis e colocando a velha máscara
de filhote pidão. Estreito os olhos e sustento o seu olhar. A senhora
ri.
— Acho que trouxe problemas para você
— Não trouxe, não. Precisamos falar com a sua mãe antes de
você mandar o seu pedido ao Bom Velhinho — acrescento, me
virando para Peter. Ele encolhe os ombros e se dá por vencido. —
Agora, se despeça da Honey.
— Tchau, Honey, — Ele dá um beijinho no pelo macio da
cadelinha. A cadelinha late, despedindo-se também. — Vamos
patinar, papai?
— Vamos. Tchau, senhora. Um prazer — estendo a mão em um
cumprimento e a mulher a aperta. Peter faz o mesmo, fazendo com
que ela solte um suspiro.
— Ele me lembra o meu neto — comenta, cheia de saudade. —
Antes que crescesse e, enfim, caísse no mundo. Agora vão, não
quero atrapalhar vocês.
Resisto à tentação de perguntar se o seu neto virá vê-la no Natal,
mas algo me diz que sua única companheira é Honey. Despedimo-
nos com um último aceno e vamos até o rinque.
Pago a entrada, alugo os patins e o equipamento de segurança e,
em instantes, estamos sobre o gelo. Peter agarra a minha mão com
força, com medo de cair, mas o seguro firme. Adoraria dar algumas
voltas completas antes de ensiná-lo, mas sem Alicia ali, não posso
deixá-lo sozinho. Patinar é parecido com pedalar, mas assim como
acontece com uma bicicleta, são necessários alguns minutinhos até
voltar a se habituar por completo.
— Está tudo bem, Peter — encorajo. — Não vou te deixar cair e,
se acontecer, você não vai se machucar — O menino parece um
robô com o capacete, joelheiras e cotoveleiras, mas não se mostra
convencido. — Faz assim — peço, posicionando os meus próprios
pés.
Peter me imita e, pé ante pé, cria confiança. Em meia hora solta a
mão e dá os primeiros passos sozinho sobre o gelo. Observo-o de
perto, com medo de que caia e se machuque. Alicia me mataria se
isso acontecesse, mas sei que não vai cair. Ele leva jeito.
Os outros patinadores param para vê-lo deslizando suave no
gelo, como se tivesse nascido com as lâminas nos pés, não
começado há apenas meia hora. Até o casal profissional interrompe
o que está fazendo para ver. A garota bate palmas, encorajadora,
enchendo Peter de confiança e o meu coração de calor. Dá a volta
em todo o rinque e para a minha frente com tranquilidade.
— Posso dar uma segunda volta? — pergunta. Não resisto a
gargalhar alto.
— Pode. Ainda podemos ficar aqui por um tempo.
— Legal! — diz, saindo sem esperar por mim. Diante de tamanha
confiança, também dou as minhas voltas completas, sem nunca tirar
Peter de vista, mas ele não precisa de vigia. Quero só ver a cara da
sua mãe ao contarmos.
Passa da hora do almoço quando saímos do rinque e
devolvemos os patins. Ao invés de gastar a energia de Peter, a
atividade parece tê-lo ligado na tomada. Ele pula mais do que
nunca, perguntando vezes sem conta quando poderemos voltar. Só
não insiste em ficar mais tempo pois sei que está com fome. Ouvi
seu estômago roncando ao me abaixar para desafivelar os patins.
A escolha sensata seria levá-lo para comer comida de verdade,
mas estou longe de ser sensato, então o levo a uma hamburgueria.
Assim que entramos no estabelecimento, Peter vê uma garçonete
carregando uma bandeja com duas taças de milk-shake de
chocolate e aponta, querendo um também. Deixo que peça tanto o
milk-shake quanto um cheeseburguer gigantesco que viu no
cardápio. Quando a comida chega, duvido que vá comer tudo, mas
Peter come. Bebe até a última gota do milk-shake e me encara
satisfeito. Não faço ideia de onde foi parar tanta comida.
Ao sair, caminhamos tranquilos de volta a Madison Avenue. Alicia
pode aproveitar o SPA por mais uma hora, então que o aproveite
bem. A mãozinha de Peter torna-se frouxa de encontro à minha e
olho para baixo. Ele boceja, cheio de preguiça, confirmando que sua
energia chegou ao fim. Sem nem ao menos perguntar, me adianto
para pegá-lo no colo. Peter vem sem qualquer resistência,
pousando o rosto na curva do meu ombro, tranquilo. Leva alguns
passos até que ele se remexe.
— Olha que bonito, papai — aponta.
Viro o rosto na direção indicada, dando de cara com a vitrine de
uma joalheria. Colares, pulseiras e brincos de ouro cravejados de
pedras preciosas cintilam por trás da barreira protetora. São bonitos,
sim, mas é um discreto brinco de diamantes que acaba chamando a
minha atenção. O par de pedras brilham, tímidos, por sobre o veludo
azul, como se soubessem o seu valor, mas estivessem acanhadas
por estar ali.
É um pouco difícil imaginar Alicia usando joias vultuosas como as
da coroa britânica, mas consigo vê-la usando aqueles brincos. Belos
e discretos iguais a ela. São o presente perfeito.
— Acha que sua mãe iria gostar? — pergunto a Peter, apenas
para confirmar. Ele faz que sim com tamanha convicção que tenho
certeza de que foi para aquele conjunto que apontou no momento
em que passamos diante da vitrine.
Sem pensar mais, abro a porta e entro na joalheria. A vendedora
bem que tenta me convencer a levar uma joia maior, mas insisto no
singelo par de brincos e, minutos depois, estou de volta a rua, com
um menino e uma sacola de presente nos braços.
A atendente do SPA avisa que Alicia ainda levará alguns minutos
para sair, então eu e Peter aguardamos sentados nos sofás da
recepção. Não há muito a se fazer além de ver o celular ou olhar
para a rua. Limito-me a tentar ficar acordado. A tarefa mostra-se
bastante difícil depois de ter patinado por uma hora e meia atrás de
uma criança cheia de energia e enchido a barriga com gordura. O ar
perfumado de lavanda e a música calma da recepção não
colaboram. Peter não resiste. Ressoa baixinho por sobre as
almofadas, uma das mãozinhas agarrada ao meu peito, para
garantir que não vou sair dali. Não saio. Forço-me a manter os olhos
abertos e espero pela vinda da sua mãe.
Estou quase cochilando quando escuto sua voz. Pisco, tentando
levar o sono para longe, e Alicia surge diante de mim. Meu queixo
cai e, de repente, todo o cansaço desaparece. Ela sorri, tímida, mas
ciente do efeito causado.
Seus cabelos ruivos escovados em ondas descem macios e
brilhantes em direção aos seios. Alguém passou um discreto lápis
em uma pálpebra inferior e aplicou uma máscara de cílios,
complementando com um batom rosa claro. A maquiagem é mínima
pelo simples fato de que Alicia não precisa dela. Ela estaria linda de
qualquer forma, as atendentes do SPA só deram uma mãozinha.
O que chama atenção mesmo é o seu semblante tranquilo. Pela
primeira vez desde que a vi abrindo a porta do apartamento da
minha mãe, Alicia está relaxada, sem o menor indício de tensão nos
ombros.
— Uau! — exclama Peter, acordado do cochilo. — Você é uma
beldade!
Alicia ri e se abaixa para beijar o rosto do filho.
— Onde você aprendeu essa palavra difícil?
— Em frente a árvore de Natal. Ela é bem grandona, mamãe! —
acrescenta, abrindo os braços de forma a mostrar todo o seu
tamanho. — E o papai me ensinou a patinar!
Um pouquinho, bem pouquinho, de tensão volta aos seus
ombros.
— Onde?
— No Rockefeller Center. Sinto dizer, Alicia, mas seu filho leva
jeito para jogador de hóquei — digo, saindo do meu estupor.
Ela balança a cabeça e ri. Peter olha dela para mim, depois de
mim para ela, tentando me dar um sinal. É quando me lembro do
presente. Estendo a sacola, meio sem jeito. Estou acostumado a
sair com mulheres, mas não a ficar tempo o suficiente para
presenteá-las. Alicia arregala os olhos diante do logotipo da
joalheria chique, mas aceita o presente sem protestar. Desfaz o laço
e puxa a caixinha aveludada do fundo, a boca formando um “O”
enquanto o rosto se ilumina diante dos brincos de diamantes. As
pedras refletem em seus olhos castanhos marejados.
— Não posso aceitar. — começa a dizer. — Tenho certeza de que
custou uma fortuna. Simplesmente não posso.
Tiro um dos brincos do forro de cetim branco, afasto uma mecha
de cabelo avermelhado e coloco a joia em sua orelha. Ela suspende
a respiração diante do movimento dos meus dedos, lábios
entreabertos, olhos atentos presos aos meus. Faço o mesmo com a
outra orelha e assinto para mim mesmo, satisfeito em ver como os
brincos ficaram perfeitos.
— Você pode e vai aceitar. Por favor, Alicia — peço, quase como
uma súplica. Ela leva a ponta do dedo ao diamante e sorri de orelha
a orelha. É todo o agradecimento que preciso.
Mas ele não basta para Alicia. Aposto que não pensou, por que
se tivesse pensado, não teria feito. Ela envolve o meu rosto com as
mãos macias e planta um beijo no canto dos meus lábios. Não há
nada de malicioso naquele beijo. É casto, inocente, como se fosse
trocado entre irmãos. Um simples beijo que ela escolheu me dar,
mas que queima feito ferro em brasa. Ao se afastar, os olhos de
Alicia cintilam idênticos aos diamantes em suas orelhas, o rosto
indecifrável como o de Monalisa.
A atendente suspira, fazendo-nos perceber que ainda estamos no
SPA. Peter agarra a mão da mãe, depois a minha, e saímos da
mesma forma como entramos. O vento frio bate de encontro ao meu
rosto quente e agradeço mentalmente aos deuses responsáveis
pelo clima. Não fosse o casaco comprido, eu estaria exibindo uma
gigante ereção no meio de Manhattan.
A caminhada até o estacionamento é curta, mas demoramos para
chegar em casa por conta da hora do rush. Não me importo. Peter,
totalmente desperto, diverte-se ao contar o seu dia para a mãe. Ao
contrário do que imaginei, Alicia se empolga diante da perspectiva
do filho se tornar um jogador de hóquei. Tento participar da
conversa, mas a cabeça está longe, pensando em algo que eu
deveria ter feito há muito tempo.
O rádio do carro alerta sobre uma possível tempestade de neve,
mas chegamos em casa antes que ela aconteça. Os primeiros
flocos caem, pesados, assim que fechamos a porta. Peter corre
para o sofá perto da janela e, sem tirar o casaco e os tênis, se joga
entre as almofadas e se debruça sobre a janela. Eu e Alicia o
acompanhamos, ajoelhados nos assentos do sofá, observando o
chão se cobrindo de branco. Ninguém precisa dizer nada. Aquela
neve veio para ficar.
Olho para baixo. Peter está tão entretido olhando para fora que
duvido que vai me ouvir. Viro-me para a sua mãe.
— Alicia? — chamo, baixinho. Ela ergue os olhos em minha
direção. Porra, por que o meu coração está tão acelerado? Melhor
acabar logo com aquilo. — Preciso te pedir desculpas.
— Pelo que? Hoje foi maravilhoso e…
— Pelo incidente na universidade — cuspo, antes que me
acovarde e desista. — Eu jamais deveria ter feito aquilo. Foi uma
brincadeira de mal gosto e, enfim… sinto muito.
Alicia arregala os olhos, mas logo o semblante volta a ficar
tranquilo, o mesmo de quando saiu do SPA. Acaricia o cabelo do
filho e sorri de leve.
— Desculpas aceitas. Obrigada, Henry.
— Não precisa me agradecer e…
— Preciso — interrompe. — Pelas suas desculpas, e pelo dia de
hoje. — Ela hesita, mas a Alicia que eu conheço é valente. — Acho
que eu realmente precisava disso. Obrigada, de coração.
Sorrimos um para o outro. Peter solta uma exclamação e
voltamos a olhar a janela. Os ventos estão mais fortes. Amanhã
cedo os noticiários sensacionalistas se esbaldarão com as avenidas
interditadas, árvores caídas e voos cancelados enquanto nós, do
subúrbio, ficaremos tranquilos em casa.
Olho de soslaio para Alicia, o rosto bonito iluminado pelas últimas
luzes do finalzinho da tarde, um meio sorriso nos lábios pintados de
rosa, os olhos ainda brilhantes como diamantes, o semblante em
paz. Sem querer, acho que me apaixonei pela mulher do meu irmão.
“Acorda”, pede uma voz baixa e sedutora ao pé do meu ouvido.
Sua respiração suave faz cócegas ao desder os lábios, devagar, até
a base do meu pescoço. Sorrio para mim mesmo, sem precisar abrir
os olhos para saber a quem ela pertence. Virado de bruços, a
ereção dura como uma rocha pressiona o colchão, ávida para se
enterrar fundo na ruiva que vem dominando os meus pensamentos.
Começo a me virar, pronto para agarrar Alicia e…
— ACORDA, PAPAI — grita Peter, pulando sobre as minhas
costas. Desperto do sonho e acordo por completo. — ACORDA,
ACORDA E ACORDA!
— O que aconteceu? — pergunta a sua mãe, assustada.
— A neve, mamãe! O chão está coberto de neve! Vamos fazer
um boneco? — implora, chacoalhando as minhas costas com as
mãozinhas fortes. — Vem ver, papai!
— Não estou em condições de levantar agora — resmungo,
afundando o rosto no travesseiro. — Te ajudo a fazer um boneco de
neve mais tarde, tudo bem?
— Mas eu quero agora!
Alicia ri e tira o filho de cima de mim.
— Daqui a pouco. Vem, eu desço para ver a neve com você.
— Eba! — vibra Peter. Viro o rosto e tenho tempo de vê-lo
escapando dos braços da mãe. Corre para o corredor e desce as
escadas em disparada. Alicia ri e se levanta.
— Vou atrás dele. Empolgado como está, não duvido que dará
um jeito de pegar a chave para abrir a porta da sala e sair correndo
pela rua. Fique aí e durma mais um pouco, Henry.
— Já vou me levantar — digo. Ela sorri, veste o roupão e vai
atrás do filho.
Pulo da cama assim que me vejo sozinho, aliviado por todos
terem ido embora. Meu pau balança contra a calça do pijama, a
ereção ainda firme apesar de todo esse interlúdio. Não é a primeira
vez que acordo com a barraca armada desde que passei a dormir
ao lado da minha cunhada, mas até então era uma simples reação
fisiológica de um homem há dias sem contato íntimo com uma
mulher.
Dessa vez a ereção pulsa, dolorosa, cheia de desejo por Alicia.
Invado o closet do meu irmão, pego as roupas que vestirei naquele
dia e vou ao banheiro. Já não diferencio mais as roupas dele das
minhas. Tirando os ternos, todas as demais se misturaram.
Jogo tudo sobre a pia do banheiro e começo a tirar o pijama. Meu
pau pula assim que baixo as calças e sei que tenho duas opções
para dar um jeito naquilo: um banho gelado ou uma punheta. Logo
descarto a primeira opção. Por mais que o aquecedor central esteja
sempre ligado, nem fodendo vou encarar uma ducha de água fria
antes das oito da manhã. Só me resta fechar os dedos em volta do
membro intumescido e movimentar a mão para cima e para baixo.
O alívio vem rápido. Direciono o jato para a privada aberta e
mordo os lábios para evitar gemer alto, desejando despejar o meu
prazer em outro lugar. Há pouca satisfação em bater aquela
punheta, mas pelo menos o incômodo foi embora. Até quando? Não
sei. Limpo tudo com papel higiênico, lavo bem as mãos e termino de
me vestir. Passarei o dia inteiro com uma blusa segunda pele que
vai até o pulso, então não preciso esconder as tatuagens com
maquiagem.
Peter está com o rosto colado contra o vidro da sala, olhando
para fora como se um incrível evento estivesse acontecendo diante
da casa. Jogo-me ao seu lado, o peso do meu corpo chacoalhando
todo o sofá, e ele ri. Bagunço o seu cabelo e olho além da janela.
Um Uau! escapa da minha boca. Já imaginava que a neve seria
firme o suficiente para cobrir tudo, mas não daquela maneira. O
caminhão limpador ainda não passou e toda a rua parece um denso
mar branco. Apesar de cinzento, o céu está limpo, denunciando que
haverá uma trégua até a próxima tempestade.
— A neve deve estar chegando até os joelhos — comento. Peter
bate palmas, empolgado, enquanto Alicia bota a cabeça para fora
da cozinha.
— Aham! E alguém precisará cavar um caminho até a rua.
— É? Quem precisará, Alicia? — brinco.
Ela se faz de desentendida.
— Não sei. Vou fingir que ainda estou no meu dia de não fazer
nada, mas aviso que há pás e um removedor de neve elétrico na
garagem.
Remover neve. Não precisaria nem ao menos pensar nisso na
Califórnia. Mas estou me importando? Nem um pouco.
— Vem me ajudar — digo, dando um tapinha de brincadeira na
bunda de Peter. Ele vira o rosto na minha direção, mas não faz
qualquer menção de se mexer.
— E o boneco de neve?
— Só depois que a gente remover a neve.
Quase consigo ouvir as engrenagens do seu cérebro infantil
processando aquela informação antes do rosto se franzir em uma
careta de dor.
— Eu não quero remover a neve! — chora. Oh merda, eu
confundi o menino. Sei que é maldade, mas meus lábios tremem,
cheios de vontade de dar risada.
— Vamos remover só um pouquinho — explico, tentando
consolá-lo com um abraço. Alicia volta da cozinha, sem entender o
que está acontecendo, mas faço que está tudo bem. — Apenas o
suficiente para abrir um caminho, sabe? Da casa até a rua.
— Ainda vai sobrar bastante para o boneco de neve? —
pergunta, erguendo os olhos azuis para cima. Limpo uma lágrima
com a ponta do polegar e faço que sim.
— Vai. Para fazer até dois bonecos de neve, se você quiser.
— Podemos começar agora? — os pulinhos voltam, obrigando-
me a soltá-lo.
Deixo que a risada escape, encantado com a simplicidade da
alegria infantil. Como sempre morei em apartamento, só podia fazer
bonecos de neve ao ir para os Hamptons, nunca depois da primeira
nevasca em Nova Iorque. Estou para abrir a boca e dizer que sim,
podemos, quando Alicia intervém.
— Só depois que tomarem o café da manhã. E se vestirem direito
— acrescenta, olhando para o pijama do filho. — Você vai ficar
doente se for lá fora sem o gorro, as luvas e os protetores de
ouvido.
— Precisa de tudo isso? — Ela faz cara feia e me encolho.
— Você também. No ano passado o Hec… — Arregalo os olhos
em uma advertência. Alicia para no mesmo instante, ciente do que
estava para dizer. Limpa a garganta e continua. — No ano passado
você ficou doente, lembra?
— Lembro, claro que lembro — concordo, muito sério.
Peter nos encara, cenho franzido, sem entender nada, mas aceita
a imposição da mãe. Nosso almoço no dia anterior foi tão farto que
comemos pouco durante o jantar, mas se o seu estômago estiver
roncando igual ao meu, ele também está com bastante fome.
Vamos todos para a cozinha. Coloco Peter na banqueta enquanto
arrumo os pratos e talheres sobre a ilha, o cheiro de bacon frito
dando água na boca. Alicia serve o café da manhã e em minutos
estamos comendo. A mulher nos observa com carinho. Ao contrário
de nós, desfrutou de um almoço leve e saudável no SPA e a noite
fez um lanchinho substancialmente mais farto.
Ao terminarmos, Alicia sobe para vestir a si e ao filho. Vou para a
garagem e foco nas ferramentas de Hector ao invés de imaginá-la
retirando o roupão e o pijama, ficando nua em nosso quarto, para só
então escolher no closet as roupas que irá vestir naquele dia.
— O que está acontecendo comigo? — resmungo, ao encontrar
uma pá jogada atrás de uma pilha de tábuas de madeira.
O Sr. Certinho, ao contrário do que imaginei, não tem uma
garagem organizada. As ferramentas disponíveis estão guardadas
de qualquer jeito e são as mínimas necessárias para a manutenção
de uma casa, denunciando que Hector pode até gostar da vida no
subúrbio, mas prefere pagar alguém para fazer simples trabalhos de
marcenaria. O cortador de grama está novinho dentro da caixa e
estou desistindo de encontrar o removedor de neve quando, enfim,
o encontro.
Tiro o trambolho de dentro da caixa e o observo por um instante.
Nunca removi neve com aquilo, mas acho que exigirá menos
esforço que a pá. Por via das dúvidas arrasto os dois para dentro de
casa. Alicia e Peter descem as escadas e não resisto a sorrir. Ele
caminha balançando para os lados de tanto agasalho.
— É só ligar na tomada e passar sobre a neve — explica Alicia,
indicando o aparelho em minha mão com o queixo. Ergo uma
sobrancelha.
— Se é fácil assim, por que você mesma não faz?
— Não — diz. Estica as pernas e ergue os braços de forma a
colocar uma touca sobre a minha cabeça, próxima o suficiente para
que eu inspire o aroma de rosas dos seus cabelos. Porra, Alicia. Eu
não posso ter uma nova ereção na frente de vocês! Ela volta à
altura normal e me encara, como se também estivesse incomodada
com aquela proximidade. — Para você ficar bem quentinho —
acrescenta, oferecendo um par de luvas.
Estendo os dedos para retirar as luvas de suas mãos. Demoro-
me no processo, permitindo que nossa pele troque calor para, só
então, puxar as luvas em direção ao meu corpo. Alicia me encara,
as pupilas dilatadas nas íris castanhas, mas não diz nada. Calço as
luvas e visto o casaco enquanto ela limita-se a conferir se o filho
está bem agasalhado para, só então, permitir que saiamos na neve.
Peter grita e se joga para fora, afundando por completo na
imensidão branca. Gargalho alto e me adianto para ajudá-lo.
Conforme previ, as pernas afundam quase até os joelhos na neve
fofa. Resgato o menino e o ponho de pé, touca e protetor de ouvido
perdidos. Coloco tudo de volta na sua cabeça e olho em volta. O
caminhão já passou, arrastando toda a neve para as calçadas, me
dando um vislumbre de até onde preciso abrir caminho.
— Acho que vou começar com a pá — digo a Peter. Ele assente,
mas me dá pouca atenção. Empolgado para fazer o seu boneco,
começa a juntar neve por si só. Alicia nos observa do alpendre com
os braços cruzados, o rosto pálido corado devido ao frio.
— Vou colocar o removedor na tomada — anuncia, antes de
fechar a porta.
Faço um joinha e começo o meu trabalho. Leva poucos minutos
para os meus braços começarem a doer e o suor a se acumular por
debaixo do casaco. Puta que pariu, que trabalho chato! Se qualquer
um passasse ali e dissesse “Por 500 dólares eu limpo esse caminho
para você!”, eu pagaria na maior boa vontade.
O único que se oferece para ajudar é Peter e, bem… Ele não
consegue fazer muito. Mais atrapalha do que ajuda, mas não sou eu
quem vai dizer isso para ele. Deixo que o menino fique pelo
caminho quando ligo o removedor e começo a jogar neve para todos
os lados. Peter ri por debaixo dos flocos, gritando que está nevando,
fazendo com que Judy apareça do lado de fora. Aceno para a
vizinha, lembrando do meu falso papel de bom moço e que Hector,
em toda a seriedade, limparia aquele caralho de neve sem xingar.
Dois vídeos no YouTube depois e, enfim, pego o jeito. Em poucos
minutos um caminho torto vai da porta da casa cinzenta até a rua.
Contradizendo minha previsão pessoal, o céu abriu em um pálido
tom de azul, subindo a temperatura em dois ou três graus. Ainda
está longe de ser o suficiente para derreter a neve, mas pelo menos
permite que eu tire o casaco e fique apenas com as blusas que
coloquei por baixo. Pego a pá, dou alguns retoques e pronto, o
caminho está oficialmente aberto.
— Ficou bom. — Alicia aparece conferindo o trabalho. Nos
braços, uma bandeja com duas canecas fumegantes. Faço uma
mesura.
— Fico feliz que gostou, senhora. O serviço não é reembolsável.
— Ainda bem. Se você dependesse de fazer isso para viver,
morreria de fome — brinca, me estendendo uma caneca. O
cheirinho de chocolate quente com marshmallow aquece o meu
peito antes mesmo que eu leve a bebida à boca.
— Obrigado — bebo um gole e está uma delícia, cremoso na
medida certa, mas não resisto a provocar. — Você sabe que uma
dose de conhaque faria uma revolução nessa belezinha. — Ela faz
uma careta, mas me adianto. — Ah, não. Você-sabe-quem não toma
conhaque!
— Toma, mas jamais colocaria álcool em uma caneca que o filho
corre o risco de pegar — revira os olhos e dou risada. — Falando
nele, cadê o Peter?
— Aqui, mamãe! — grita, saindo debaixo de um monte de neve.
Quase engasgo com o meu chocolate. O menino se enterrou como
faria nas areias quentes de uma praia. — Podemos fazer o boneco
de neve agora?
— Podemos, mas beba o chocolate primeiro — pede, estendendo
a caneca a ele. Peter a recebe e agradece com um sorriso. A mãe
sorri de volta, toda coruja, e volta a me encarar. — Separei algumas
coisas para o boneco de neve. Vou buscar.
Alicia retorna com um velho balde de metal. Peter termina o seu
chocolate e se adianta para saber o que tem dentro. Sua mãe
separou um velho cachecol, uma dúzia de botões pretos e uma
cenoura para o nariz. Ele começa a pular, empolgado. Entrego
minha caneca para Alicia e volto a pegar a pá.
— Bom, mãos na massa! — digo, erguendo a mão enluvada para
um high five. Peter pula, empolgado, e acerta a minha palma.
O único problema? Faz tanto tempo que não faço um boneco de
neve que não me lembro como fazer um. Peter começa com uma
bolinha. Arrasta-a de um lado para o outro, até que fique maior, mas
naquele ritmo vamos levar a semana toda. Eu poderia pegar o
celular e descobrir a melhor forma de começar, mas seria
humilhação demais. Com a pá em mãos, passo a construir um
monte de neve.
Peter entende o que quero de cara. Com as mãos, começa a
reunir a neve em volta do monte, tentando formar uma bola. Vez ou
outra paro o que estou fazendo para ajudá-lo, deixando tudo o mais
redondinho possível. Não demoro a ouvir novas vozes infantis a
nossas costas.
— Podemos ajudar? — pergunta Liam.
Lisa e Linda, ainda não sei qual é qual, sorriem, mãos enluvadas
e toucas na cabeça. Peter grita de felicidade ao ver os amigos e
assente, animado. Abro espaço para todos eles e, juntos,
começamos a realmente dar forma ao boneco.
Em minutos ele fica com um barrigão. Meio torto, mas largo e
redondo o suficiente para servir de base. As crianças discutem entre
si e me pegaria sobrando entre eles não fosse por Peter. Ele pede a
minha ajuda a todo o momento não porque precise, mas porque
deseja que eu participe.
Com a base pronta, falta o corpo e a cabeça. Por serem
menores, o método do meu filho de mentira acaba se mostrando
mais eficaz que a pá. Logo dois pares de crianças estão arrastando
esferas de neve de um lado para o outro. Alicia observa da janela da
sala com um leve sorriso. Tento focar no boneco, mas é impossível.
Ela é um ponto de beleza e calor sobre a neve fria.
— Papai! — chama Peter, forçando-me a parar de contemplar a
sua mãe. — Olha só!
Ele e Liam fizeram uma bola de neve bem grande. As meninas
estão penando com a sua, então corro para ajudar. Acabo tomando
para mim a tarefa de erguer primeiro a maior, depois a menor, sobre
a base do boneco. Afasto-me o suficiente para contemplar o
trabalho semi completo e vejo que ele ficou alto para caramba.
— Vamos enfeitá-lo! — vibra Lisa/Linda.
Os meninos confirmam com a cabeça e saem em busca de
madeira para os braços enquanto as meninas colocam os botões
em sua barriga. Liam volta com dois ótimos galhos e o ajudo a
retirar o excesso, deixando apenas o suficiente para parecem
mãozinhas. Com tudo isso em seu devido lugar, falta o cachecol e o
rosto.
Liam se estica e alcança o pescoço, ajeitando o cachecol com
cuidado, mas Peter e as meninas precisam de ajuda. Ergo um por
um. Uma delas coloca um olho, a outra o outro, e deixam que Peter
se encarregue da cenoura. Na falta de um gorro ou uma cartola,
tomo para mim o cargo de colocar o balde na cabeça careca do
boneco. Afinal, eu também participei.
Reunimo-nos a alguns metros de distância e contemplamos o
trabalho finalizado. O boneco sorri meio torto, é mais gordo de um
lado que do outro, e o balde ameaça cair a qualquer momento, mas
ainda assim ficou legal para caramba. Alicia finalmente sai de casa,
abraçada em si mesma por conta do frio, e se junta a nós.
— Ficou lindo! — diz, e todos assentimos.
O meu olhar cruza com o de Liam. Eu o achei bastante educado
durante o jantar em sua casa, mas uma criança de espírito
encapetado tem a capacidade de reconhecer outra. Os olhos azuis
iguais aos da mãe faíscam cheios de travessuras por debaixo da
franja castanha. Nossos sorrisos se abrem, juntos, e sem que
precisemos dizer nada, nos abaixamos em direção ao chão cheio de
neve.
— Ficou tão lindo que podíamos comemorar com… — começo.
— … uma guerra de bolinhas de neve! — grita Liam, atirando a
primeira delas na irmã.
Ela grita de susto e indignação, mas logo se abaixa para revidar.
A outra corre para longe, mas é atingida nas costas por uma bolinha
de Peter. Lisa/Linda se vira com o semblante sombrio de quem vai
lutar até o último floco de neve.
— Meninos contra meninas — grito.
Alicia bufa, indignada.
— Pelo amor de Deus! Isso é tão sexista e… — Ela se cala,
olhos arregalados em direção a bolinha que acabei de atirar no seu
peito. Rio, provocador, adorando a forma como o seu semblante se
fecha feito uma tempestade. — Seu filho da…
— Ei, ei, ei. Olha só como fala da minha mãe! Ela é uma madame
muito legal — retruco, dando dois passos para trás antes de me
abaixar para fazer uma nova bola. Olho de soslaio para o lado. Liam
e Peter estão massacrando as meninas. Indico as crianças com o
queixo. — Vamos, Alicia. O seu time está perdendo.
Rápida como uma gata traiçoeira, Alicia se abaixa para fazer sua
primeira bolinha. Dou-lhe tempo e, quando estou mirando para atirar
a minha, ela me acerta bem na cara e corre para longe, deixando
um rastro de risadas. Ah, ela quer jogar sujo então!
— Meninas, comigo! — chama. Os dois lados se separaram,
cada um de um lado do boneco, o marco daquela terra de ninguém.
Alicia nos avalia, queixo erguido, e dá a ordem. — Atacar!
As bolinhas voam, descontroladas, de um lado para o outro,
acertando a tudo e a todos. Mais crianças se juntam à guerra e não
demora para que os times sejam desfeitos. Ninguém nem ao menos
sabe de qual lado está, mas sabe que precisa acertar alguém. A
gritaria e as risadas altas aumentam a confusão de neve voando.
Em dado momento meu corpo é bombardeado como se todos
tivessem se virado contra mim, para no momento seguinte atacarem
outra vítima.
Então um rastro vermelho se destaca. Alicia ainda está ali,
valente como só, sem nem ao menos pensar em correr para o calor
do interior da sua casa. Esqueço-me de todos os outros. Ela é o
meu alvo. Faço uma nova bolinha, grande, compacta, perfeitamente
redonda, e acerto a sua bunda. A mulher olha por cima dos ombros
com fúria e me ataca de volta.
De repente somos só nós dois ali, jogando bolinhas um contra o
outro, completamente descontrolados. Alicia me acerta na lateral do
rosto enquanto miro na sua barriga. Estamos cada vez mais
próximos, quase o suficiente para nos tocarmos, mas seguimos em
guerra, bolinhas voando para todos os lados.
Não vejo o que me derruba, mas sinto a bota se prendendo em
algo no chão. Talvez fosse um galho partido durante a nevasca
noturna, ou um brinquedo de Peter esquecido no gramado agora
congelado. Não sei. Só sei que o meu corpo vai para a frente, em
direção a Alicia. Ela estende os braços em uma tentativa de me
segurar, mas sou pesado demais para ela. Caímos juntos no chão.
A queda é amortecida pela neve fofa. Rindo, Alicia não dá trégua.
Enche as mãos de neve a esfrega em meus cabelos, o gorro há
muito perdido.
— Ah, é assim, é? — retruco, tentando revidar.
Rolamos um por cima do outro. Alicia não para. Desisto de pegar
neve e foco em segurar os seus braços, mas ela ágil. Começo a rir,
rendido, enquanto rolamos de novo, e percebo que dessa vez estou
por cima dela.
O meu riso morre. Alicia, que ria também, emudece. Encaramo-
nos, os rostos próximos o suficiente para sentirmos o calor das
nossas respirações enevoadas, seus cabelos ruivos espalhados em
torno do rosto. Ela tenta recolher mais neve, mas dessa vez sou
mais rápido. Seguro suas mãos acima da cabeça e aperto firme, de
forma a mantê-la quieta, mas sem machucar.
Meu corpo toma ciência do seu, menor e cheio de curvas, a
apenas algumas camadas de roupa de distância. A nova ereção é
forte demais para controlar e as pupilas de Alicia se dilatam
conforme meu pau pressiona o seu baixo ventre. Estou para soltá-la
quando ela me encara e entreabre os lábios.
É o convite que eu preciso. Desço a boca sobre a dela e a beijo.
Toda a guerra de bolinhas de neve desaparece à minha volta
conforme Alicia retribui, cheia de desejo, entreabrindo ainda os
lábios para dar passagem. Tomo sua língua na minha com
sofreguidão em um beijo rude, desesperado, cheio de calor. Ela o
devolve da mesma maneira, como se estivesse com saudades
daquela única vez em que isso aconteceu. Porra, ontem mesmo eu
estava pedindo desculpas por aquilo! Naquele momento pouco me
importo. Também estava com saudades.
Paramos para tomar fôlego e voltamos ao caos das risadas e
gritarias infantis. Quero, ou melhor, preciso beijá-la de novo, mas a
razão toma conta do semblante de Alicia. Ela libera os braços do
meu aperto, me joga para o lado, se levanta e corre para dentro da
casa.
Paro de correr apenas ao chegar na cozinha. Agarro o mármore
da ilha central em busca de um pouco de controle. Devido ao
movimento brusco, umas das banquetas cai com um estrondo, mas
não me importo. Meu peito sobe, descontrolado, para cima e para
baixo, a respiração errática diante do que acabou de acontecer. Eu
sabia que algo havia mudado entre eu e Henry na noite passada.
Ou talvez tenha começado antes, quando ele me encontrou nesse
mesmo lugar chorando, sozinha, em busca de algum consolo.
Ele deixou nossas diferenças de lado e me consolou. Cuidou de
mim. Fez com que eu me sentisse especial. Bonita como há muito
eu não me sentia. Para finalizar, o “gêmeo mau” deixou sua
arrogância de lado e pediu desculpas pelo beijo causador de toda a
discórdia familiar. O poço profundo que aos poucos vinha
borbulhando no interior do meu corpo, enfim, entrou em ebulição.
Aquilo foi o que bastou para que eu, finalmente, visse Henry
Chamberlain com novos olhos.
Em menos de vinte e quatro horas ele me beija de novo. Uma
onda de calor desce pela barriga e invade a minha feminilidade. Foi
só um beijo, mas o meio das pernas está encharcado. Contraio as
coxas uma contra a outra, tentando aplacar aquele desejo, mas não
consigo. Ainda sinto o aperto firme dos seus dedos contra o meu
pulso, o calor dos lábios colados nos meus, o sabor da língua ao
invadir a minha boca e a tomar para si, o peso do seu corpo me
afundando na neve, a ereção evidente roçando em minha virilha.
Henry é voraz e dominante, uma tentação em um metro e noventa
de pura masculinidade.
Balanço a cabeça, tentando esquecer o que aconteceu.
Precisaremos conversar sobre aquilo. Não podemos nos envolver e
complicar ainda mais as coisas.
— Alicia? — chama uma voz muito séria. Fecho os olhos com
força. Não quero olhar para ele agora. Não posso olhar para ele
agora. Sei que, se eu fizer isso, estarei arruinada. Henry se
aproxima, a presença marcante mesmo que eu não consiga vê-lo.
— Olhe para mim, Alicia.
— Henry, por favor…
Ele agarra os meus braços e me vira, jogando o meu traseiro
contra o mármore e me obrigando a ficar de frente a ele. Arregalo os
olhos, indignada pelo tratamento, pronta para protestar e mandá-lo
me soltar, mas sou arrebatada pelas chamas ardentes em suas íris
azuis. Os cabelos escuros estão bagunçados e cheios de neve.
Parte dela derreteu e desce pelo rosto, escondendo-se na barba por
fazer.
— Eu pedi desculpas pelo beijo na universidade — diz, a voz
grave com um toque levemente rouco de puro tesão. — Mas não
vou pedir desculpas pelo beijo de agora. Você também queria,
Alicia. Sei que queria.
Balanço a cabeça.
— Henry…
— Nada de Henry. Vamos, confirme! — ordena. — Você queria:
sim, ou não? Porque se você disser que não, eu mudo para o quarto
de hóspedes e juro, por tudo o que é mais sagrado, que nunca mais
vou chegar perto de você. Mas você vai dizer sim, sabe por quê? —
continua, aproximando os lábios do meu ouvido, a respiração
quente deslizando pelo brinco de diamante que me deu de presente.
— Porque você está tão cheia de desejo quanto eu.
— Você não tem como saber — retruco. Ele se afasta o suficiente
para que eu veja o sorriso diabólico, aquele meio de lado, cheio de
malícia.
— Tenho, oh se tenho — desce os olhos pelo meu corpo,
demorando-se na região da minha virilha antes de subi-los de novo.
— Aposto que se eu enfiar a mão na sua calça vou encontrar uma
calcinha arruinada e uma boceta completamente molhada.
Arfo alto e o encaro. Que safado! Ele aguarda pela resposta.
Meus lábios tremem para dizer que não, mas seria mentira. Estou
cansada de segurar os meus impulsos. Chega de mentir para mim
mesma. Só me resta uma resposta.
— Sim, eu queria — a voz sai firme, convicta, levando qualquer
dúvida para longe.
O sorriso de Henry se alarga. Ele solta os meus braços, mas
segura minhas costas com ainda mais firmeza e pressiona a ereção
dura feito rocha contra o meu corpo. Meu rosto esquenta e a boceta
pulsa, cheia de desejo, mas não tenho tempo para pensar. Henry
toma os meus lábios em um beijo profundo. É demais para resistir.
Agarro os seus cabelos gelados e puxo o seu rosto contra o meu.
Ele ri dentro da minha boca e arqueia o quadril, deixando clara qual
é a sua intenção. Não sei qual é a minha. Tudo o que consigo fazer
é gemer contra os seus lábios e arquear o quadril de volta, sentindo
a firmeza da ereção pronta para escapar das calças.
O pouco que me resta de razão faz com que eu me afaste. Henry
me encara, mais intenso do que nunca.
— O que foi? — pergunta, manhoso, fazendo menção de deslizar
uma mão em direção a minha bunda. Agarro o seu pulso e o encaro.
— Ainda sou uma mulher casada, Henry.
— E você acha que eu ligo? O seu marido pediu o divórcio e está
pegando outra em Londres! Você está mesmo preocupada com ele?
Abaixo os olhos para a aliança em minha mão, o símbolo máximo
da nossa união. Hector a colocou em meu dedo, fez o seu
juramento, e não o cumpriu. Henry segue o meu olhar. Segura a
mão na sua e tira a aliança, plantando um beijo onde antes ela se
encontrava. Um arrepio sobe pelo meu pulso e, de uma forma bem
estranha, me sinto livre.
— Ainda assim… — começo, em dúvida. Ele coloca o anel de
ouro sobre o mármore.
— Vamos, Alicia. Somos dois adultos. Eu te quero, você me quer.
Fazem seis meses que você é tocada apenas por si mesma. Você
quer alguém que te foda como você merece — murmura, voltando a
aproximar os lábios do meu ouvido. Suas palavras rudes fazem com
que eu me arrepie inteira.
— Um ano — deixo escapar.
Ele se afasta com o cenho franzido.
— Como é que é?
Balanço a cabeça, envergonhada de dizer aquilo em voz alta. O
ouro dourado capta minha atenção e foco nele, incapaz de olhar
para o homem à frente.
— Hector não me toca há um ano. Não sei o que aconteceu —
engulo em seco. — As vezes acho que ele foi embora por minha
culpa — desabafo, com a voz trêmula. — Juro que eu tentei, mas
apesar de sermos casados há tantos anos, eu nunca…
Henry me encara cheio de paciência.
— Nunca o quê?
— Fiz algo especial. Até comprei uma lingerie, mas…
— E ele fez algo de especial para você? — corta, meio irritado.
Nego com a cabeça e toda a paciência de Henry vai embora. —
Puta que pariu! Meu irmão, com um mulherão como você em casa,
só ficava no básico?
— Ei, eu não estou reclamando!
— Pois devia reclamar! Sabe o que quero fazer? — provoca,
pressionando de novo a ereção contra o meu corpo, a voz rouca, os
olhos mais ardentes do que nunca — Quero te jogar contra uma
parede, meter o meu pau fundo na sua boceta e te foder até as suas
pernas tremerem. Precisarei tampar a sua boca com a minha para
que toda a vizinhança não escute os seus gritos de prazer, Alicia.
Porque você vai gritar, oh se vai, até ficar sem voz.
— Misericórdia — murmuro.
— É, talvez você peça por ela, mas só vou dá-la ao sentir que fiz
um trabalho bem-feito. Sou eu quem tenho que me empenhar para
agradar você, não o contrário — declara, cheio de orgulho. Sem
aviso, agarra a minha nuca e segura a cabeça com firmeza, de
forma que se torne impossível deixar de encará-lo. — Hoje à noite,
vista a lingerie que comprou para o meu irmão e vou te mostrar
como fazer bom uso dela.
Pronto, meu cérebro foi transformado em gelatina com cem por
cento de sucesso. Limito-me a assentir e Henry me beija de novo,
uma mão ainda mantendo a cabeça presa, a outra descendo até a
cintura da minha calça. Fecho os olhos e permito que ele faça o que
quiser enquanto me concentro em agarrar suas costas firmes e
puxá-lo para mais perto. Sinto os seus dedos começando a invasão
em direção ao meu traseiro quando, de repente, ele me solta.
— O que… — começo a dizer, sem entender por que parou, até
ver Peter nos observando da entrada da cozinha. Meu Deus do céu,
nessa confusão toda deixamos uma criança de apenas quatro anos
sozinha em meio a uma guerra de bolinhas de neve! O rosto sujo de
lama e os pedaços de grama e neve derretida presos no cabelo
ruivo denunciam que a batalha foi inclemente — Filho! Você está
bem?
Peter primeiro olha para Henry, cheio de atenção, e depois olha
para mim. O homem se afasta enquanto penso em como lidar com a
situação de ser pega no flagra em um amasso gostoso com o meu
cunhado no meio da cozinha, mas a criança acaba resolvendo o
desembaraço. Um sorriso de orelha a orelha brota antes de soltar
um amontoado de risadinhas contidas.
Ainda está rindo quando Liam aparece. Solto um suspiro aliviado.
Ainda bem que fui pega pelo meu próprio filho. Seria assunto para
os próximos dez jantares, no mínimo, se o filho da vizinha fosse o
responsável por nos flagrar.
— O Peter disse que a senhora fez chocolate quente — diz,
animado.
— Fiz só um pouco, mas posso fazer mais — pisco, feliz em ter
algo comum e seguro para fazer. — Só um minutinho e já levo para
vocês.
Ele sorri em agradecimento. Peter solta mais algumas risadinhas,
mas logo são chamados, ou desafiados, pelas crianças do lado de
fora e saem correndo. Concentro-me na tarefa, mas Henry se
aproxima e me abraça por trás.
— Hoje à noite — repete.
Afasta o meu cabelo e planta um demorado beijo na lateral do
meu pescoço. Fecho os olhos, mas nem ao menos tenho tempo de
pensar duas vezes na proposta. Henry já desapareceu, deixando-
me sozinha com os meus pensamentos.