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Um Irresistível Segredo de Natal

Copyright © Stella Bianchi


1ª Edição – Dezembro 2022
@stellabianchiautora
Revisão: Stella Bianchi
Diagramação: Stella Bianchi
Capa: L. A. Design Editorial
Imagens de cabeçalho: Vadymvdrobot / DepositPhotos e Halayalex / Freepic
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da
autora. Qualquer semelhança com nomes ou acontecimentos reais é mera coincidência.
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei de Direitos Autorais 9.610/98 do Brasil, bem como demais leis
sobre direitos autorais dos países em que essa obra for adquirida.
Nenhuma parte do conteúdo deste livro poderá ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma sem a
expressa autorização por escrito da autora. Plágio é crime!
Sumário
Nota da Autora
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Epílogo
Bônus
Olá, tudo bem com você?
Seja bem-vinda a Família Chamberlain! Henry, Alicia e Peter
surgiram de maneira inesperada, mas vieram com tamanha força
que me vi obrigada a deixar um projeto pela metade e lhes dar
atenção. Os outros personagens não gostaram, mas o que posso
fazer? Pela primeira vez em muito tempo deixei uma história me
levar e, meses depois, só posso dizer o quanto sou grata.
Eu me diverti horrores escrevendo esse livro e espero, de
coração, que ela possa te divertir também.
Apesar de ser uma comédia romântica leve no melhor estilo
Sessão da Tarde, Um Irresistível Segredo de Natal pode possuir
gatilhos para abandono parental e depressão. Lembrando, é claro,
que esse é um livro recomendado para maiores de 18 anos por
conter palavras de baixo calão e cenas de sexo explícito.
Boa leitura e Feliz Natal!
Stella
Gostaria que todos os dias fossem como o
Natal
E se eu pudesse ter um sonho realizado
Eu desejaria que todo dia pudesse ser, cheio de
paz e harmonia
Gostaria que todos os dias fossem como o
Natal, eu gostaria
I Wish Every Day Could Be Like Christmas – Bon Jovi
Eu sabia que minha vida havia mudado assim que recebi a bolsa
integral para estudar na Universidade de Columbia. Só não
esperava que ela mudasse de novo ao subir, degrau por degrau, a
escadaria até a porta de uma das várias bibliotecas do campus, em
busca de um livro de arte.
De cara me vejo deslumbrada diante de prateleiras e mais
prateleiras recheadas de livros. Deslizo, devagar, a ponta dos dedos
pelas incontáveis lombadas, encontro o que preciso e me ponho a
procurar uma mesa vazia onde possa sentar e ler sem ser
incomodada.
Vejo uma mesa vazia mais ao canto. Corro para lá, livro em
punho, o som dos passos ligeiros se misturando ao ecoar de
sussurros e páginas sendo viradas, mas percebo que a mesa não
está vazia coisa nenhuma. Um homem debruçado em um notebook
encontra-se sentado nela.
A camisa branca falha em esconder o peitoral forte e os músculos
evidentes em seus braços. As longas pernas dobradas debaixo da
mesa denunciam toda a sua altura e, mesmo sentado, algo de
imponente se destaca em sua postura. O notebook de última
geração e o paletó jogado sobre a mesa confirmam o óbvio: ele
exala riqueza. Ao contrário de mim, não deve fazer ideia do que é
depender de uma bolsa de estudos.
Começo a dar meia volta quando o homem ergue os olhos.
Imediatamente me vejo tragada por uma penetrante imensidão azul
celeste emoldurada por longos cílios, capazes de fazer inveja a
qualquer mulher. O maxilar quadrado, coberto por uma barba rente
bem aparada, parece tenso, conferindo ainda mais masculinidade
ao seu semblante perfeito.
Os cabelos curtos, com fios grossos de um tom de castanho
escuro quase negro, estão bagunçados, mas o rosto sério deixa
claro que não é homem de bagunça. Alguma coisa o fez passar a
mão, vezes sem conta, pelos fios, e não quero ser a responsável
por atrapalhar seja lá o que esteja fazendo.
— Desculpe, eu… — começo a falar, querendo sair dali o mais
rápido possível, ao mesmo tempo em que desejo muito ficar.
— Pode se sentar, se quiser. — O timbre grave, levemente rouco,
emerge diante do tom de voz baixo. Para enfatizar, ele puxa as suas
coisas mais para o lado e, sem maiores olhares, volta sua atenção
para a tela brilhante à frente.
Murmuro um curto obrigada e me sento. Focado, ele não me dá
maior atenção, mas preciso lutar contra o meu cérebro teimoso para
conseguir me concentrar no livro diante dos olhos. Tarefa difícil
quando se tem um deus grego exalando poder a poucos
centímetros de distância. Ao terminar o que está fazendo, guarda o
equipamento em uma pasta de couro, murmura um até logo e vai
embora.
Durante os próximos dias estabelecemos uma certa rotina na
biblioteca. Entro no ambiente com o coração aos pulos, esperando
encontrar o misterioso estudante de camisa branca. Quando ele
está sozinho, o cumprimento com um rápido olá e me sento ao seu
lado. Ele se limita em assentir com a cabeça, sempre sério, mas de
alguma forma cordial, como se gostasse da companhia silenciosa.
Às vezes o lugar ao seu lado está ocupado por uma garota com
visível interesse amoroso. De longe sei que a companhia não é
bem-vinda. Sua tensão diante da tagarelice proibida dentro de uma
biblioteca é palpável e, em uma ocasião, o vi fechando o notebook e
se levantando de supetão, a paciência esgotada.
Mas, quase sempre, ele está sozinho. Tal qual um ímã é atraído
pelo metal, eu sou atraída pelo homem. Ao chegar no dormitório,
exausta depois de um longo dia de estudo somado ao trabalho
como garçonete em uma lanchonete de Hell’s Kitchen, tudo o que
quero é tomar um banho quente e desabar na cama, mas não
consigo. A mente ainda encontra energia para pôr as aulas de arte
em prática. Tiro lápis e papel da mochila e faço esboços e mais
esboços do rosto bonito. Uma pequena parte dele que poderia ser
apenas minha.
Para mim, aquilo basta. Jamais teria coragem de tomar iniciativa,
então me contento em estar ao seu lado, mesmo que seja um
desafio. Com os meus cinco sentidos aguçados, a visão teima em
olhar de soslaio para admirá-lo, o olfato se delicia com o aroma
amadeirado do seu perfume caro, o ouvido capta cada mínimo arfar
da sua respiração. O paladar e o tato permanecem desejosos
daquilo que não podem ter.
Naquele dia, chego na biblioteca um pouco mais agitada do que o
normal. Precisei trabalhar até o início da madrugada, cheguei tarde,
dormi demais e me atrasei para a aula. Como bolsista, tudo no meu
comportamento precisa ser exemplar e temo que o olhar
atravessado da professora resulte em uma reprimenda mais
significativa.
Preocupada com isso, a cabeça cheia com as matérias que
preciso estudar e cansada após uma noite mal dormida, só dou
conta de que os meus pés se enroscaram em si mesmos quando
sinto o corpo indo ao chão.
Meus braços automaticamente jogam os livros e cadernos para
longe, adiantando-se em uma tentativa de escorar a queda, mas
insuficientes para tal. Bato com tudo contra o carpete, o baque
audível em um sofrido humpf, o ar expulso por completo dos
pulmões. Tento puxá-lo de volta, ouvindo o som do arrastar de
cadeiras e de passos apressados. Um par de mãos fortes me
colocam sentada antes que eu tenha a chance de respirar de novo.
Enfim inspiro fundo, tentando assimilar a corrente elétrica que toma
conta da região tocada pelo meu colega de mesa.
— Obrigada — murmuro, ainda meio sem ar, piscando para
afastar as lágrimas de susto que brotaram em meus olhos.
O homem ajoelhado encara o meu rosto com atenção. Está nítido
que foi apenas uma queda boba, idêntica à de qualquer mocinha de
um romance clichê, mas o semblante mostra preocupação.
— Dói em algum lugar? — pergunta, descendo os olhos para o
meu corpo e involuntariamente aquecendo cada partezinha dele
antes de voltar a me encarar.
— Estou bem. Obrigada. — repito, mas ele não presta atenção.
Com os olhos arregalados, o homem fita uma das páginas soltas
que pularam para fora do sketchbook. Estende o braço em direção a
folha, trazendo-a para perto com certa reverência enquanto o meu
cérebro grita “Não, não e não!”. Não preciso olhar para saber qual
desenho é aquele. Em lápis preto, o rascunho ilustra um
concentrado jovem e o seu notebook. Tive o cuidado de passar um
lápis azul celeste em sua íris, de forma a destacar a cor não apenas
em seu rosto, mas em todo o traço monocromático.
Devagar, abaixa o desenho, mas ao invés de fazer a clássica
pergunta “Foi você quem desenhou?” ele decide inovar.
— Posso fazer algo que desejo fazer desde a primeira vez que te
vi?
Franzo o cenho, confusa.
— Pode.
Com o desenho em mãos, ele envolve minha nuca com os dedos
compridos e me puxa para si. Antes que eu tenha tempo para
respirar de novo, os lábios pousam sobre os meus, macios, quentes
e sedutores. Se o toque em meus braços foi uma corrente, a sua
boca contra a minha é uma descarga elétrica completa. Suspiro e
entreabro os lábios, dando-lhe passagem. O homem a toma, tão
necessitado quanto eu, em um beijo que só imaginava existir no
cinema. Esqueço-me de todas as preocupações. Já não sei o que é
cansaço. Só sei da sensação deliciosa daqueles lábios experientes
nos meus.
Separamo-nos para tomar fôlego e, sem deixar de me encarar,
ele me presenteia com o seu primeiro sorriso. Sorrio de volta, feito
boba, ainda sem acreditar que aquilo está acontecendo. Como se
para confirmar que sim, é real, ele me beija de novo. Rio contra os
seus lábios e ele interrompe o beijo para rir, também. Encaramos-
nos, meio sem jeito, até que ele se lembra do desenho, agora
amassado, ainda em sua mão.
— Desculpe, amassei o meu desenho. Quer dizer, o seu
desenho. — Faço um gesto indicando que está tudo bem. Quem
deveria pedir desculpas sou eu, por desenhá-lo sem autorização,
mas estou aturdida demais para falar. Ele alisa a folha amassada e,
com cuidado, a coloca sobre a coxa antes de estender a mão a
mim. — Hector Chamberlain, prazer.
Rio mais um pouco e aceito o cumprimento.
— Alicia Smith. — Em um rompante, quero acrescentar que o
prazer é todo meu, mas acho ousado demais. Limito-me a encolher
os ombros e fazer uma pequena brincadeira. — Finalmente
sabemos o nome um do outro. — Hector assente, como se saber
aquele pequeno fato lhe trouxesse imensa satisfação. Volta a
encarar o desenho com o semblante admirado. Aquele rompante eu
não consigo conter. — Pode ficar para você, se quiser.
Ele arregala os olhos.
— Sério? — Confirmo e um segundo sorriso desponta nos seus
lábios. — Obrigado, Alicia.
A forma como ele diz o meu nome naquela voz levemente rouca
é o suficiente para me aquecer inteira. Hector se põe a juntar as
folhas, soltando exclamações admirativas a cada desenho recolhido.
Ajudo-o e, juntos, nos erguemos. Com um terceiro sorriso, me
estende as folhas que rapidamente escondo dentro de um dos
cadernos.
— Obrigada pela ajuda — agradeço, de cabeça baixa, agora um
pouco envergonhada por ele ter descoberto todos aqueles
desenhos. Um par de dedos erguem meu rosto em posição natural.
Para a minha surpresa, Hector também parece constrangido.
— Eu… — começa, parando em seguida para engolir em seco.
Inspira fundo, tomando um longo fôlego, antes de continuar. — Eu…
gostaria de saber… se você… aceita jantar comigo qualquer dia
desses, Alicia.
— Como é que é? — pergunto, pega de surpresa. Hector respira
fundo de novo, mas sou mais rápida — Você quer mesmo jantar
comigo?
— Quero. Mas só se você quiser, é claro… Eu entendo se você
não aceitar e…
É a minha vez de tomar os seus lábios nos meus. Hector arregala
os olhos antes de fechá-los, degustando a boca sem pressa, cheio
de carinho. Ao nos separarmos, ajeito os cadernos em um braço
enquanto estendo o outro para tocar o seu rosto.
— É claro que eu aceito.
O quarto sorriso de Hector é imenso, maior que todos os
anteriores, e só continuou a se alargar depois que ele me levou a
um restaurante de comida mexicana no sábado. Nunca havia
provado uma comida tão apimentada e o homem riu, com gosto,
diante da pouca experiência com o sabor picante.
Reservamos o domingo para um tranquilo passeio no Central
Park. Quando percebi, estávamos de mãos dadas, caminhando
como se fossemos um casal formado há eras, não apenas poucos
dias. Entre beijos e trocas de olhares cheios de significado,
conversamos sobre um monte de coisas naqueles dois dias, menos
sobre o mais importante.
Na segunda-feira, volto ao campus inebriada depois de um final
de semana tão gostoso. Vejo Hector de longe, próximo ao refeitório,
rindo junto a um pequeno grupo de amigos, e abro um sorriso. Mais
tarde diriam: você não percebeu a diferença? E eu responderia:
como perceber? Havia desenhado cada detalhe do seu rosto
incontáveis vezes. Aquele era Hector, sem tirar nem pôr.
Talvez um coração menos apaixonado tivesse percebido, mas
naquele momento só prestei atenção no sorriso devolvido e nos
braços abertos, prontos para me receber em um abraço seguido de
um beijo. Nem ao menos pensei. Apenas fui até ele.
Os lábios que vem de encontro aos meus são mais rudes. A
língua não pede passagem, ela a toma para si e invade a minha
boca com luxúria. Abro os olhos, sinto algo de diferente, mas ainda
assim, delicioso. Então me rendo por completo.
Quando nos separamos para tomar fôlego, vejo Hector
marchando em nossa direção. Franzo o cenho, sem entender nada,
voltando a olhar para o homem diante de mim. Ele me encara de
volta, um sorriso sarcástico de ponta a ponta na sua boca, e a ficha
cai. Espalmo as suas mãos contra o seu peito e o empurro para
longe, horrorizada, sem acreditar que alguém foi capaz de me
enganar daquela maneira.
O soco de Hector vem em seguida, direto no rosto do irmão
gêmeo, atingindo o espaço entre o olho e o maxilar. O impacto o
joga ao chão, mas o homem não parece se importar. Gargalha alto,
como se tivesse feito a coisa mais divertida do mundo.
— Ei, foi só uma brincadeira! — diz, ao tentar se levantar. Hector
agarra o colarinho da sua camisa branca.
— Não, não foi, Henry! — berra. — Você não tem um pingo de
respeito? — pergunta, chacoalhando o irmão com força antes de
soltá-lo de volta ao chão.
Henry se levanta. Alisa a frente da camisa e nos encara.
— Claro que tenho, mas quem em sã consciência negaria um
beijo a uma mulher tão linda como essa? — questiona, abrindo os
braços em minha direção. Os seus amigos riem as suas costas e o
meu horror dá lugar à raiva. Meu beijo não era para ele! O irmão
volta sua atenção a Hector e continua. — Vai me dizer que nunca
pensou em fazer uma troca de gêmeos, irmão?
— Nunca! Sabe por quê? Porque não sou como você!
— Talvez devesse tentar ser — diz Henry, suave.
Uma veia começa a pulsar na testa de Hector. Rápido como um
gato, ele volta a agarrar o colarinho da camisa do irmão. Dessa vez
o outro revida e o agarra de volta. Uma pequena multidão começa a
se formar em volta, todos ávidos para ver uma briga.
— Eu não quero ver você perto da minha namorada, está
entendendo? — Hector sibila. — Nunca mais!
Os irmãos se encaram em uma feroz troca de olhares e temo que
se atraquem de novo, mas Henry o empurra para longe e dá um
passo para trás.
— Foi só uma brincadeira — repete. Encaro-o cheia de raiva,
mas ele se limita a nos dar as costas e ir embora, seguido pelo seu
séquito de amigos.
Mordo os lábios, mas selo a minha vergonha ao não conseguir
conter as lágrimas. Um par de braços me puxa contra um peitoral
forte e, dessa vez, percebo a diferença. São os braços certos.
Agarro-o de volta e afundo a cabeça contra a sua camisa.
— Está tudo bem — Hector murmura, fazendo um carinho em
minhas costas. Sinto-o soltando um dos seus longos suspiros — Eu
devia ter contado que tenho um irmão gêmeo.
— Me desculpa — imploro, entre soluços. — Por favor, me
desculpa.
— Não há o que desculpar. — Hector me abraça mais forte. — Ei,
eu te amo.
Arregalo os olhos e afasto-me o suficiente para encarar Hector,
esperando encontrar sarcasmo nos seus olhos, mas só encontro
sinceridade. Deixo uma última lágrima escorrer pelo rosto e todo o
ódio por Henry evapora por um curto instante. Hector sorri de leve e,
pela primeira vez em anos, sinto-me amada como há tanto tempo
desejava sentir.
Nunca pensei que chegaria o dia em que eu duvidaria daquelas
palavras.
Encaro a tela do notebook enquanto levo uma das mãos à boca,
sem conseguir acreditar no e-mail que acabei de receber do meu
marido. Releio o seu conteúdo, palavra por palavra, mas meus olhos
chocados não se enganaram. É isso mesmo: Hector quer o divórcio
e não volta para passar o Natal com o filho.
Deixo as costas caírem inertes contra o assento da cadeira do
escritório. Essa primeira parte da mensagem não me pega de
surpresa, mas não deixa de ser dolorosa. Nosso casamento estava
longe de ir às mil maravilhas quando Hector recebeu uma proposta
para trabalhar durante um mês na filial do banco em Londres. O “um
mês” se transformou em dois, três, até se estender a seis. Seis
meses longe de casa, as frequentes mensagens cada vez mais
esparsas, se limitando a fazer uma ou outra vídeo chamada para
agradar ao filho.
É a segunda parte da mensagem que realmente me choca. No
dia em que Peter perguntou, cheio de timidez, se o pai voltaria para
o Natal, Hector disse que sim. A voz grave saiu convicta, o sim dito
letra por letra, como se fosse um completo absurdo passar o Natal
longe do filho. Foi o bastante para incendiar a criança de
expectativa. Desde que o primeiro floco de neve caiu em Nova
Iorque, Peter só fala da vinda do pai.
E agora o pai não vai vir.
A realidade nua e crua contida naquele e-mail dói. Muito. Fecho
os olhos com força, tentando lembrar como terminamos daquele
jeito, mas não consigo. Hector foi um namorado atencioso e
dedicado e eu, uma jovem caipira saída de uma cidadezinha nos
confins do Alabama recém-chegada em Nova Iorque, não poderia
estar mais feliz em retribuir tamanha devoção.
Ele esperou, cheio de paciência, até o momento em que senti ser
a hora certa de me entregar por completo. Hector já tinha
experiência enquanto eu, boba de tudo, não sabia o que fazer. Mas
ele me ensinou. Ao unir nossos corpos, a ardência da perda da
minha virgindade em breve deu lugar a uma sensação nova, antes
desconhecida, mas prazerosa.
O meu amor por Hector só cresceu. Estávamos juntos há quase
um ano quando descobri a gravidez. Pensei que os enjoos matinais
fossem provenientes de algum tipo de virose. Confiava na comida
do campus, mas não podia dizer o mesmo da comida da lanchonete
onde trabalhava. Tomava o anticoncepcional certinho e sabia que as
probabilidades de estar grávida eram muito pequenas.
A menos que eu tivesse esquecido de tomar durante a
conturbada semana de provas na universidade. Forcei o cérebro a
lembrar a data da última menstruação e fiz as contas nos dedos.
Batia com precisão. De imediato, fui arrebatada pelo medo. O que
eu faria se Hector não reagisse bem ou, pior, não quisesse assumir
o filho? Ele havia acabado de se formar e estava focado em ter uma
carreira só sua, ignorando a vida de privilégios herdada pela fortuna
da família Chamberlain. Às vezes falava sobre o futuro, mas as
palavras “eu quero ser pai” jamais saíram da sua boca.
Se eu já me sentia assustada diante da perspectiva de ser mãe
aos dezenove anos, ser uma mãe solo me causava o mais profundo
terror. Não tinha dinheiro. Meu trabalho como garçonete mal dava
para me manter. Há uma coisa que as pessoas não falam sobre
serem bolsistas: isso pode ser caro. Muito caro. Estudava de graça,
mas precisava bancar o material de arte, os livros indisponíveis na
biblioteca e todo o resto.
E o que eu faria em relação à universidade? Cursar o ensino
superior era uma realidade tão distante que nunca pensei na
possibilidade. Foram os professores do ensino médio que,
percebendo o quanto minhas notas eram excelentes, me
incentivaram a aplicar em bolsas de estudo com base na baixa
renda da família Smith. Quase não acreditei quando fui aceita. Meu
pai ficou surpreso, mas permitiu que eu agarrasse a oportunidade.
Ele pode ter sido um homem distante, mas não idiota. Sabia que
aquela era a minha grande chance de mudar de vida e permitiu,
sem pensar duas vezes, que eu a agarrasse.
O passado vem à tona, trazendo consigo os anos sombrios que
se seguiram à morte da minha mãe, quando eu tinha apenas seis
anos. Mal me lembro dela, mas lembro que, pouco depois, papai
trouxe uma nova mulher para morar conosco no velho trailer. “Você
precisa de uma mãe”, ele disse, convicto, mas sua questionável boa
intenção não deu certo. Minha madrasta passava o dia fumando no
espaço diminuto, pouco preocupada em me dar qualquer afeto. Ele,
fechado em seu eterno luto, jamais percebeu.
Mas fez o que pode. Eu estava perto de completar dez anos
quando a nossa situação financeira melhorou e mudamos para um
pequeno apartamento. Ainda assim, aqueles anos morando no
trailer pequeno, abafado e cheio de infiltrações, ficaram gravados na
memória. A perspectiva de abandonar os estudos e voltar a viver em
um, com um bebê a tiracolo, sem condições de lhe dar tudo o que
precisava, me causava o mais puro terror.
Tremia ao contar para Hector. Vi seus olhos se arregalaram a
ponto de quase saltarem das órbitas, a boca escancarada em um
chocado “O”, o suor frio brotando na testa enquanto absorvia a
informação. Fechou os olhos, passou a mão no rosto e bagunçou os
cabelos, deixando os fios idênticos à primeira vez que o vi na
biblioteca. Inspirou fundo e reparei que ele também tremia. Bem de
leve, mas tremia, até que me encarou.
— Bom, isso é inesperado — disse, muito sério. Um sorriso
tomou forma nos seus lábios. — Mas estou feliz.
— Mesmo? — perguntei, surpresa. Ele me olhou intrigado.
— Você não está?
Ri, sem conseguir conter as lágrimas.
— Estou, agora estou — confessei, deixando-me levar pela
maravilhosa sensação de que vou ser mãe pela primeira vez desde
que o teste de farmácia deu positivo. — Antes eu estava apenas
com medo.
— Do quê? — Ele compreendeu e voltou a ficar muito sério. —
Vamos, Alicia. Diga em voz alta.
Engoli em seco, mas sabia que precisava dizer.
— De você não querer a criança. De precisar criá-la sozinha.
— Eu jamais faria isso — retrucou, meio ríspido, como se a ideia
o insultasse. — Se eu fosse cafajeste a esse ponto, acha mesmo
que minha mãe e irmã deixariam isso acontecer?
Nego com a cabeça. Perdida em pensamentos, nem ao menos
me lembrei do restante da família. Claro que ele não mencionou
Henry. Os dois jamais voltaram a se falar depois do incidente na
universidade.
— Obrigada — murmurei. Hector me puxou para si e plantou um
beijo nos meus cabelos enquanto, devagar, deslizou a mão pela
minha barriga. Ela continuava tão plana como antes, mas foi bom
senti-lo ali.
— Não há o que agradecer. Eu te amo, Alicia. E amo o nosso
filho ou filha que está crescendo aqui — acrescenta.
Sorri contra o seu peito.
— Eu também te amo.
E amei ainda mais quando, pouco tempo depois, Hector me pediu
em casamento. Nossa cerimônia foi simples, apenas para a família
mais próxima, mas me senti a mais grata e feliz das mulheres ao
subir no altar e dizer sim em alto e bom som.
Continuei a estudar até que a barriga de nove meses se tornar
pesada demais para carregar. Tranquei o curso de Artes e me mudei
para essa casa em Greenville, no subúrbio do condado de
Westchester County, próximo a cidade de Nova Iorque. Achava que
jamais conseguiria amar alguém além do que amava Hector, mas
bastou Peter nascer para provar o contrário. A pequena mistura de
nós dois era o que faltava para eu me sentir completamente plena.
Às vezes sentia falta da universidade, mas me acostumei com a
vida de dona de casa. Gostava de cuidar do que era nosso e de
estar ali pelo meu filho. No início da noite, mesmo que estivesse
exausta depois de um dia difícil, aguardava ansiosa pelo retorno de
Hector. Para ele, eu poderia levar o tempo que quisesse até voltar a
estudar. Era mais do que capaz de manter a casa sozinho e eu não
tinha a mínima pressa de me separar do meu menininho.
Eu tinha um filho lindo e saudável. Morava com o marido dos
sonhos em uma casa grande e confortável. Sentia-me segura e feliz.
Tudo parecia perfeito, mas os anos se passaram, e de repente já
não parecia mais. A felicidade passou a soar estranha. Meu
silencioso marido fechou-se em si. Os sorrisos se tornaram raros. A
paixão esfriou, mas jamais imaginei que se transformaria em um
iceberg capaz de terminar tudo com um gélido e-mail enviado do
outro lado do Atlântico.
Naqueles meses sozinha em casa, tendo como companhia o meu
filho e os meus pensamentos, tentei entender o que estava
acontecendo entre nós. Será que eu tinha feito algo de errado?
Pensei que aquela oportunidade de trabalhar em Londres seria boa.
Talvez a saudade fosse capaz de reacender a nossa chama. De
fazer tudo voltar a ser como era antes.
— Poderíamos ter conversado, Hector — murmuro para mim
mesma, de volta ao presente.
Sinto os olhos se enchendo de lágrimas, o coração apertado de
angústia, o medo latente tomando conta de cada célula do meu
corpo ao se atentar aos aspectos práticos de uma separação.
Mas, o que dói mesmo, é perceber que não sou mais amada.
— Mamãe? — chama uma vozinha infantil. Pisco, tentando
conter as lágrimas. Respiro fundo e me viro em direção a voz. Peter
me encara do lado de fora da porta do escritório aberta com os
mesmos olhos azuis do pai. — Está tudo bem?
— Estou sim — digo, tentando sorrir. Ele sorri de volta e olha
para o monitor.
— É o papai? — pergunta, dando pulinhos no lugar. Nego com a
cabeça. Às vezes me assusto em como ele é esperto para os seus
quatro anos de idade.
— Não, a mamãe estava só lendo um e-mail — deixo escapar,
sem dar nome ao autor da mensagem.
— Ah. — Peter interrompe os pulinhos e pensa um pouco, na
dúvida entre falar ou não, mas meu menino entrou naquela fase em
que fala sem parar e, é claro, ele continua. — O papai vai vir para o
Natal, não vai?
— Vai — respondo, sem nem ao menos pensar em contar a
verdade. Como eu poderia? Peter só fala daquilo, dia após dia, noite
após noite. Não posso simplesmente dizer “Desculpe filho, mas o
seu pai não vem.” dez minutos depois de ler um e-mail cretino como
aquele. Peter ficaria devastado.
Os pulinhos retornam, mas empolgados do que nunca.
— Quando ele chega, mamãe?
— Em breve, meu filho. Em breve — o sorriso, também idêntico
ao do pai antes que deixasse de sorrir, é alegre ao ponto de partir o
meu coração em dois. Peter invade o escritório e abraça a minha
cintura. Pelo menos o meu pequeno ainda me ama, penso, antes
que ele saia correndo, empolgado. — Cuidado com a escada! —
alerto, mas de nada adianta, os pezinhos ligeiros já estão no andar
debaixo. Respiro fundo e releio o e-mail.
O que eu faço agora?
Enterro as mãos na pele macia dos quadris da comissária de
bordo ao meter fundo em sua boceta molhada. Sentada na pia do
banheiro do aeroporto, a mulher geme contra o meu pescoço, as
mãos firmes ao agarrar os fios do meu cabelo comprido. Rio
baixinho, apreciando a forma como a dor desce pela nuca e se
irradia prazerosamente pelas costas.
Em forma de agradecimento, meto mais uma vez, com força o
suficiente para que as costas da comissária batam contra o espelho.
Nada ali segue as normas de segurança de um sexo comum, mas a
pia parece forte, o espelho também, e nenhum de nós aguentaria
segurar o tesão por mais três minutos após um voo de cinco horas
entre Los Angeles e Nova Iorque.
Bastou um único olhar, assim que coloquei os pés na primeira
classe do avião, para confirmar que a mulher estava a fim de foder
gostoso. Eu, claro, também estava. Se há algo que não nego é uma
boa transa, mesmo que ela aconteça por trás das portas trancadas
do banheiro dos funcionários de um aeroporto, com as calças
arriadas de qualquer jeito e a saia da comissária erguida até a
cintura, sua calcinha colocada de lado.
Se dependesse de mim, puxaria a peça para baixo e meteria a
cabeça entre as suas coxas, lambendo as dobras sem pressa antes
de provar o seu clitóris com a ponta da língua. Depois, socaria dois
dedos fundo em sua boceta, até levá-la à loucura. Só então
abaixaria as calças e a levaria à loucura com outro instrumento, por
assim dizer.
Mas a mulher tinha pressa. O seu próximo voo sairia dali a meia
hora e eu, confesso, também não dispunha de todo o tempo do
mundo. Meu celular vibrava de algum bolso da calça arriada em um
lembrete irado de que Emilly, a minha irmã, já havia chegado no
JFK. Boa nova iorquina que é, estava com pressa. Então só me
restou baixar as calças, erguer a saia, encapar o pau, afastar a
calcinha e meter forte na comissária.
Com um novo gemido, ela cruza as longas pernas de modelo ao
redor da minha cintura. Aperto o seu quadril com mais ênfase,
colando ainda mais os nossos corpos, enquanto intensifico as
arremetidas. A mulher puxa os meus fios com força e joga o corpo
para trás, os seios volumosos empinados a poucos centímetros da
minha boca. Mordo um deles, tentando agarrar o mamilo
intumescido por cima da camisa do uniforme e do sutiã, e ela geme
de novo, mais alto, cheia de tesão.
A pressão em torno do meu membro aumenta conforme sua
boceta dá indícios de que está quase chegando lá. Ela arfa, as
mãos soltam os meus cabelos e agarram os ombros, puxando-me
contra si, mas é impossível ficarmos ainda mais colados do que já
estamos. Solto sua nádega direita e agarro o seu cabelo, expondo o
seu pescoço. Deslizo o nariz pela pele e respiro fundo, absorvendo
o delicioso aroma do perfume foral misturado a suor e sexo, e falo
rouco antes de beijar a pele macia abaixo do seu maxilar:
— Vamos, linda. Goza bem gostoso no meu pau.
Meto fundo, mais uma vez, e a mulher joga a cabeça para trás,
solta um gemido misturado a um grito e goza. Agarro-a com mais
força enquanto ela se contorce, as unhas fincadas em meus
ombros, pernas firmes contra a minha lombar, as arremetidas ainda
mais deliciosas entre as paredes contraídas da sua boceta em
êxtase.
Rio, sem perder o ritmo, quando o meu prazer vem com um urro.
As costas da mulher batem de novo contra o espelho, como se ela
fosse uma boneca inerte, exausta de tanta satisfação, o meu pau
pulsando seu gozo dentro do preservativo.
Ficamos ali, os corpos suados e ofegantes ainda exaustos, e o
celular vibra de novo. Oh merda! Preciso ter uma longa conversa
com a Emilly. Impaciente a minha irmã sempre foi, mas aquilo ali é
demais.
— Preciso ir — planto um rápido selinho nos lábios da comissária
e saio de dentro dela. A mulher emite apenas um hum-hum,
desfalecida contra a pia, as costas ainda apoiadas no espelho. Jogo
o preservativo usado no lixo, ajeito o pau semiereto de volta à cueca
boxer e subo as calças. Tiro um minutinho para me olhar no
espelho. Camiseta amarrotada, cabelos bagunçados e cara de
quem acabou de transar. Passo uma água no rosto, mas sei que
não é o suficiente e, no fundo, estou pouco me lixando. As pessoas
seriam mais felizes se transassem mais e cuidassem menos da vida
dos outros. Volto a atenção para a comissária e ela continua na
mesma posição. Começo a ficar preocupado. — Você está bem?
— A-ham — murmura com os olhos desfocados de quem acabou
de ser bem comida. Finalmente, ela se mexe, fazendo menção de
pular para fora da bancada. Aproximo-me, temendo que caia de
cara no piso frio, mas seus sentidos voltaram. Ela fica de pé, ajeita a
saia para baixo e me encara cheia de expectativa, os lábios
carnudos com batom vermelho borrado prontos para emitir as cinco
mais temidas palavrinhas: — Podemos nos ver de novo?
Para evitar uma careta, faço minha melhor expressão de
cachorro desamparado. Nada contra essa beldade em salto alto,
mas para que me envolver se posso optar por não me envolver?
— Desculpe, linda, mas será melhor não. — Há muito não
invento desculpas. Algumas fazem caretas, descontentes com o
meu jeitinho curto e grosso, mas também não me importo.
A comissária dá de ombros. Faz menção de me puxar para um
último beijo, mas sou mais rápido. Com uma mão, agarro a sua
nuca e com a outra puxo a sua cintura, colando nossos corpos
enquanto cubro seus lábios nos meus. Invado a sua boca, beijando-
a com profundidade, tomando o seu fôlego até deixá-la sem ar.
O maldito celular vibra, de novo, e é necessária toda a força de
vontade presente em meu ser para que eu não o arranque do bolso
e o espatife contra o espelho. Interrompo o beijo e obrigo o meu
corpo a se afastar da comissária. Mais três minutos sentindo a sua
barriga se esfregando na minha virilha bastariam para reanimar o
meu pau. Ela permite-se afastar, mas não sem antes sussurrar em
meu ouvido.
— Bem-vindo a Nova Iorque.
Volto a agarrá-la, apenas para ter o prazer de sussurrar de volta.
— Muito obrigado — e caio na gargalhada. Ela ri de volta e,
enfim, nos separamos.
Não poderia receber melhores boas-vindas que aquela.

— Porra, Henry! Finalmente! — grita Emilly, assim que passo pelo


desembarque. — Mais cinco minutos! — espalma a mão no ar e
conta, como se ensinasse uma criança a ver as horas. — Um, dois,
três, quatro, cinco! Mais cinco minutinhos, e eu iria embora!
— Também estou feliz em te ver, irmãzinha — digo, ajeitando a
alça da imensa bolsa de viagem que cruza o meu peito antes de
puxar a caçula para um abraço. Emilly bufa e permite que eu a
abrace, até que a sinto farejando o meu cangote.
— Perfume caro, suor e o inconfundível cheiro de sexo —
espalma as mãos em meu peito, se afastando. A expressão no seu
rosto é uma divertida mistura de nojo e raiva. — Não me diga que se
atrasou porque estava transando com alguém dentro do aeroporto!
— Então não pergunte — pisco. — Mas, se você quiser saber…
— Não, pelo amor de Deus, não! — leva a mão na boca, fingindo
que segura uma ânsia de vômito. De brincadeira, a empurro de leve.
Do alto dos seus um metro e sessenta e oito, Emilly devolve o
empurrão, empregando toda a força que os braços magros, mas
bem torneados por conta das aulas de karatê, conseguem
empregar.
Algumas pessoas nos encaram de cenho franzido e não
resistimos a rir, cheios de cumplicidade. Sempre foi fácil rir com
Emilly, mas nunca pude dizer o mesmo do Hector. Balanço a
cabeça, sem querer falar dele no momento. Estou mais preocupado
em saber sobre a digníssima senhora minha mãe.
— E madame Grace, como está? — pergunto, ao começarmos a
caminhar. Emilly faz uma nova careta.
— Você sabe como a mamãe detesta esse apelido.
Dou de ombros.
— Não entendo o porquê. Ela é uma madame, mesmo.
— É justamente por isso. Mamãe só queria ser uma nova
iorquina comum — comenta Emilly. Seus saltos batem ritmados no
chão, misturando-se aos incontáveis tec tec tec a nossa volta, o
corpo esguio bem acomodado em um terninho impecável. Minha
irmã pode não ter herdado a altura do nosso pai, mas também veio
ao mundo com um par de olhos azuis profundos e uma bela
cabeleira escura que mantém presa em um frouxo coque. Sem
diminuir o ritmo do caminhar decidido, vira o rosto para mim e
continua. — Ainda que seja um pouco difícil ser uma pessoa comum
nessa cidade.
— Por isso que eu repito: ela deveria assumir o posto de
madame e pronto!
Seguimos caminhando pelo aeroporto até a saída para o
estacionamento. Logo encontramos James parado ao lado do sedã
de luxo que dirige para mamãe. E a madame ainda diz que não é
madame.
— Sr. Chamberlain! — o motorista cumprimenta, visivelmente
feliz em me ver. Abro um grande sorriso, ignoro sua mão estendida
e o abraço.
O homem mostra-se surpreso, mas retribuiu. Uns dez anos mais
velho do que eu, mas motorista da família há anos, perdi as contas
de quantas vezes ele me buscou em festas do ensino médio depois
que ficava bêbado demais para pensar em dirigir. Se não bastasse,
James ainda tratava de buscar o meu carro, para garantir que
ninguém desconfiasse das minhas transgressões.
— Como você está, cara? — pergunto, ao nos separarmos.
Cheio de modéstia, James se limita a dizer que está bem e abre a
porta do banco de trás.
Emilly agradece com um aceno de cabeça e entramos no veículo.
Em instantes estamos rodando pelas ruas cheias de carros entre o
Brooklyn e o Queens em direção a Upper East Side, o bairro chique
onde a madame, digo, minha mãe, reside em um apartamento
desde que papai faleceu.
Encosto a cabeça no vidro e encaro as lojas exibindo os
primeiros enfeites de Natal. Faltam cerca de vinte dias para a
celebração e a cidade exala a magia característica que reina
durante essa época. São incontáveis prédios enfeitados com
guirlandas e árvores cheias de luzes brilhantes. Em breve, quando
as nevascas se tornarem mais frequentes e as ruas ficarem brancas
como se polvilhadas por açúcar de confeiteiro, a magia estará
completa.
Inspiro fundo, de repente atingido por uma estranha onda de
nostalgia. Algumas das minhas melhores lembranças são do Natal.
Só elas, e a insistência de mamãe, para me fazerem largar o calor
da Califórnia e vir passar parte do mês de dezembro aqui.
Moro na costa oeste desde que me formei. Cheguei lá com a
intenção de tirar um ano sabático em meio às ondas das praias
californianas, mas acabei me apaixonando pelo clima descontraído
das quentes cidades à beira do Oceano Pacifico. As incontáveis
festas regadas a bebidas e mulheres esculturais me fizeram
perceber a oportunidade de investir dinheiro em bares e casas
noturnas. Fiquei para valer, mas sempre volto para visitar madame
Grace e Emilly.
Mas, desde que fui embora, é a primeira vez que volto para o
Natal.
— Está tudo bem aí dentro? — Minha irmã pergunta, dando dois
soquinhos na lateral da minha cabeça. Olho de soslaio para ela. —
Você ficou quieto de repente e isso não é do seu feitio.
James bem que tenta se segurar, mas uma leve risada acaba
escapando. Viro-me para ela.
— Está tudo ótimo. Só estava lembrando dos Natais em família
nos Hamptons — retruco. — Acho que a mamãe está certa em
tentar reatar a tradição.
Surpreendo-me quando Emilly morde os lábios e encara as
longas unhas pintadas em vermelho escuro.
— Você não perguntou do Hector — comenta.
— Para que eu gastaria saliva perguntando dele? Duvido que
pergunte sobre mim.
— Não, não pergunta — diz, erguendo os olhos. — Na realidade,
Hector não anda falando direito com ninguém, nem com a mamãe.
Dou de ombros.
— Vocês realmente esperavam algo de diferente do Sr. Certinho?
Deve estar seguindo sua carga horária de doze horas enfadonhas
sentado dentro de um escritório na Wall Street, atolado de ações até
o pescoço e…
— Henry. — Emilly chama, baixinho. Emudeço e a encaro, de
alguma forma sabendo que nada de bom sairá da sua boca. — O
nosso irmão ainda não voltou de Londres.
Franzo o cenho. Agora não estou entendendo nada.
— Ué, mas ele não iria passar apenas um mês lá?
— Pois é. Já se passaram seis, e ele mandou um e-mail para a
Alicia dizendo que quer o divórcio. — Meu queixo cai, mas uma
desgraça nunca vem sozinha. Emilly continua, cheia de pesar. — E
que não vai voltar.
— Ele não vai voltar para passar o Natal com o filho? — quase
grito, assustando o motorista. — Desculpe, James.
Ele faz um gesto indicando que está tudo bem e, pela sua
expressão neutra, não está nem um pouco chocado com os fatos
que acabam de ser repassados. Conhecendo a minha mãe, ele
provavelmente ouviu a mesma história umas três vezes.
— Não, não vai — confirma Emilly. Solto um assobio.
— Puta que pariu, a coisa está feia então!
Minha irmã assente e, pela sua cara, adivinho com um certo
desagrado o que está pensando. Aquele é o tipo de atitude que
todos esperariam de mim, o gêmeo mau, rebelde e inconsequente,
não do irmão que jamais ousou pisar fora da linha e sempre se
mostrou tão devoto à esposa e ao filho.
— Ligava para ele todo dia, para tentar convencê-lo ao contrário,
mas Hector deixou de atender. Temo que tenha acontecido alguma
coisa. — Emilly continua a falar, baixinho. — Também estou
preocupada com o Peter. Ele prometeu que voltaria para o Natal.
Assinto. Na última vez que vi meu sobrinho, ele era apenas um
bebê de colo, longe de largar as fraldas. Agora é um menino de
quatro anos. Pelo que ouço mamãe se derreter, além de lindo, é
inteligente para caramba. Talvez ele se contente com a mãe, a avó,
a tia e o tio que ainda não conhece, mas acho difícil. Sei o que é
passar o Natal longe de quem a gente ama.
— Não será fácil contar para ele — comento.
Minha irmã concorda com a cabeça, mas seu rosto preocupado
logo se transforma, dando lugar a uma expressão diabólica. Apesar
dos anos passados na costa oeste, ainda consigo identificar as
engrenagens do cérebro de Emilly trabalhando a todo o valor.
Quando minha irmã caçula bota alguma coisa na cabeça, nada
consegue dissuadi-la do contrário. Antecipando seja lá o que for,
mas pressentindo que não será nada de bom, encolho-me para
longe, pensando nas chances de sobrevivência caso abra a porta do
sedã e pule para fora, mas Emilly é mais rápida.
— Eu tive uma ideia — confirma, e me encolho ainda mais,
arrependido por ter pensado demais.
— E? — incito, apenas para acabar logo com aquilo.
— E se você fingisse ser o Hector até o Natal?
Encaro minha irmã, na dúvida se ouvi direito, e caio na
gargalhada. A risada ecoa pelo espaço fechado do carro, batendo
contra os vidros e voltando a nós, alta a ponto de incomodar os
ouvidos, mas nem Emilly nem o motorista se mexem. Ela continua
me olhando com sua mais séria expressão, e rio até lágrimas
escorrerem pelos olhos.
— Ouviu isso, James? — Tento me controlar, mas é uma ideia
idiota demais sequer para ser cogitada, quanto mais para ser dita
em voz alta. Dou um tapa de brincadeira no ombro do motorista,
mas o homem não devolve a graça, e o riso morre conforme uma
estranha percepção começa a tomar forma. — Você sabia dessa
ideia? — pergunto, sem acreditar. James me encara, rápido, pelo
espelho retrovisor, mas é o suficiente para que eu descubra que ele
sabia e não concorda com aquilo. Volto a encarar os olhos azuis da
minha irmã e sim, ela falou sério. Balanço a cabeça. — Você só
pode estar de brincadeira!
— Estou com cara de quem está brincando? — pergunta, fria.
— Não, não está! E esse é o problema! — quase berro. Emilly se
mantém impassível. — Olha só para mim, irmã! — enfatizo.
Primeiro, aponto para os cabelos que caem em largas ondas até
pouco abaixo dos ombros. Depois, desço as mãos pela barba
comprida, mas bem aparada. Por fim, faço um malabarismo dentro
do carro para conseguir tirar a jaqueta. Não é uma tarefa fácil
quando se tem membros proporcionais à altura de um metro e
noventa. Ao conseguir, a tatuagem tribal desponta pela manga da
camiseta e desce até o pulso, a tinta preta nítida contra a pele
bronzeada. Ela observa tudo, impassível. — Me diga onde que
estou parecido com Hector!
— Nada que uma tesoura não resolva.
Pisco, sem compreender de imediato. Não sou um homem lento,
muito pelo contrário. Mas é tanta informação estúpida sendo
bombardeada no meu cérebro após horas em um avião e uma boa
gozada em uma comissária de bordo gostosa que estou tendo um
pouco de dificuldades de acompanhar. Quando compreendo, meu
peito inflama.
— Você diz… cortar o meu cabelo? — O cabelo que cultivo a
mais de um ano. Que adoro manter solto durante uma transa
apenas para ter o prazer de sentir os fios sendo puxados pelas
mãos fechadas de uma mulher. Emilly ignora tudo isso e faz que
sim. — Nem fodendo! — berro. O motorista se encolhe no seu lugar
do banco da frente, mas minha irmã nem se abala. — E o meu
braço, vai fazer como? Cortar também?
— Não — retruca, cheia de calma. — Pode ficar tranquilo, eu já
pesquisei. Existem marcas de maquiagem feitas especialmente para
esconder tatuagens.
— Ah, que ótimo. Então pesquise alguma que transforme sua
cara na do Hector — solto, cheio de raiva. Emilly pisca, devagar,
enquanto ranjo os dentes. Volto a olhar o motorista e pego James
me observando pelo retrovisor. Ele desvia os olhos no mesmo
instante. — Quem mais sabe? — questiono, voltando a focar na
minha irmã.
— A mamãe e a Paulina.
— Nossa, me espanta que não tenham contado ao prédio inteiro
— desdenho.
Paulina chegou na nossa vida quando eu ainda era um menino
longe de largar as fraldas. Papai desconfiou da história contada em
uma mistura de inglês e espanhol quando a jovem insistiu para ser
contratada como empregada doméstica, temendo que ela fosse uma
imigrante ilegal capaz de trazer problemas. Aceitou contratá-la
apenas por causa da insistência da esposa. Grace Chamberlain
sempre teve um excelente olho para encontrar pessoas de bom
coração e acertou com Paulina.
Pouco mais nova que a minha mãe, recusa-se a aposentar. É sua
melhor amiga, e a mais antiga confidente de Grace. É claro que
estaria a par dessa ideia mirabolante. Fã das tradicionais novelas
dramáticas do seu país, não duvido que a própria tenha dado alguns
pitacos. Tenho certeza de uma coisa: a ideia se transformou num
elaborado plano e depende apenas da minha aceitação.
— Você se lembra da única vez em que fiz uma troca dessas? —
relembro, com uma pontinha de desagrado. — Você talvez tenha se
esquecido, irmã, mas o Hector não gostou nem um pouco.
Emilly revira os olhos.
— Lógico! Naquela vez você foi um completo imbecil — cospe.
Assinto, contra a vontade. O Henry da época pode ter achado muita
graça naquela atitude impensada, mas fico feliz em saber que o
Henry de hoje concorda com a minha irmã. — Acha mesmo que eu
iria sugerir que você trocasse de lugar com Hector sem falar com a
Alicia?
— Ahhh, e o que ela acha da ideia? Porque a Alicia que eu
conheço não suporta nem olhar na minha cara!
— Quem pode culpá-la? — retruca, cheia de desdém.
Solto um suspiro. Eu e Hector estudávamos na mesma
universidade, mas quase nunca nos víamos. Como iríamos nos ver
se eu gastava todo o meu tempo livre matando hora em qualquer
lugar no campus em que pudesse paquerar? O Sr. Certinho preferia
a biblioteca, local que eu sempre mantive distância, diga-se de
passagem. Mas não longe o suficiente para que deixasse de vê-lo
saindo acompanhado de uma morena bonita.
Morena não, ruiva, descobri pouco depois. Um tom escuro de
ruivo, perceptível principalmente quando ela caminhava ao sol, a luz
criando reflexos de fogo por toda a extensão dos longos fios. Uma
visão e tanto para qualquer homem heterossexual com dois olhos
em pleno funcionamento no meio da cara. Ainda mais vindo em sua
direção com um sorriso no rosto, achando que você é o seu ficante,
namorado, ou seja lá qual for o nome do relacionamento que eles
nutriam naquele momento.
E Alicia veio, mochila nas costas, os lábios entreabertos em um
convite, a face rosada de alegria ao caminhar em minha direção, me
confundindo com Hector. Eu deveria ter resistido, sei que sim, mas
foi tentador demais, não apenas pela oportunidade de experimentar
a mulher do meu irmão, mas também para fazer graça com os meus
colegas. Não raro o assunto troca de gêmeos surgia em nossas
conversas e a oportunidade estava bem ali.
Alicia caiu direto nos meus braços e, com um sorriso sacana no
rosto, a aceitei. Quando nos separamos para tomar fôlego, Hector
me socou direto no rosto. Se ele tivesse mirado só um pouquinho
mais para o lado, teria quebrado o meu nariz. O relacionamento com
o meu irmão desandou por completo depois disso. Nunca mais nos
falamos e mantive distância da sua família.
Sei que é Natal, a época perfeita para perdoar e toda aquela
baboseira pregada pelos comerciais de margarina, mas sinto muito.
Não será agora que vou me reconciliar com Alicia e duvido que ela
deseje o contrário. Deu para ver, nas raras ocasiões em que nos
encontramos, o quanto me odeia.
— Desculpe, Emilly, mas não vai rolar — digo, olhando para o
lado de fora da janela. — Sinto muito pelo meu sobrinho, muito
mesmo, mas eu não posso fingir ser o pai dele.
Pelo canto do olho vejo Emilly assentindo. Percebo também que
ela tem outra carta na manga assim que se debruça sobre o meu
ouvido. Fecho os olhos, sem querer ouvir o que vai dizer. Se antes
me arrependi de não ter pulado do carro em movimento, agora me
arrependo de não ter ficado na Califórnia.
— Você se lembra, Henry? — pergunta, baixinho. Ouço-a
engolindo em seco. Não será agradável de ouvir, mas também não
está sendo agradável de dizer. — De como eram os Natais com a
presença do papai?
— Como se algum de nós pudesse se esquecer — murmuro.
Os Natais eram… perfeitos. Claro que esperávamos pelo mês de
dezembro por conta dos presentes, mas era principalmente pelo
algo a mais que a data trazia. Mamãe adorava patinar conosco no
Central Park. Ela era muito boa, chegando a arriscar uma ou outra
pirueta sobre o gelo, e tenho certeza de que só me tornei um
jogador de hóquei razoável na universidade por conta dos seus
ensinamentos. Passávamos horas lá, girando e girando sobre as
afiadas lâminas, focados em nos divertir.
Já o nosso pai, um dos mais ferozes executivos que Wall Street
criou, deixava a armadura composta por terno e gravata na ilha de
Manhattan para se tornar outro homem na nossa casa nos
Hamptons, onde comemoramos a data. Antes disso, íamos para o
interior do estado escolher nosso próprio pinheiro. Com a árvore
cuidadosamente amarrada no teto do carro, seguíamos para a praia.
Mal abríamos a casa e ele corria para o sótão, em busca dos
enfeites usados nos anos anteriores que seriam agregados as
novas bolinhas e Papais Noéis comprados para aquele ano.
De alguma forma o executivo frio e calculista se contagiava com
a energia natalina. Com uma paciência que não víamos no dia a dia,
ele nos pegava no colo, um por um, apenas para que pudéssemos
alcançar os lugares mais altos do pinheiro. Depois de horas,
colocava a mão na cintura e admirava a árvore transformada em
uma imensa mistura de enfeites, festões e pisca-piscas coloridos.
Mas o melhor acontecia quando se deixava levar pelo vinho.
Papai perdia a noção do ridículo. Contava piadas. Falava bobeiras.
Ria de idiotices sem a menor graça. Brincava de pega-pega ou
guerra de almofadas com a gente e tirava a minha mãe para dançar.
Ela ria, pedindo para ele parar, mas ele nunca parava, porque sabia
que era um blefe. Dançávamos a sua volta, cantando e gritando, e
ele entrava no coro, sem se importar com qualquer formalidade.
Esta, só voltava após o Ano Novo.
Um ataque cardíaco fulminante levou nosso pai antes da hora.
Apesar de ser um homem rígido, foi um bom pai, mas o Natal o fazia
um pai muito melhor. Meu peito se aperta de saudade e, de repente,
sei muito bem onde Emilly quer chegar com essa conversa.
— Se você tivesse a oportunidade de ter mais um Natal com o
nosso pai, só mais um, o que você faria?
— Qualquer coisa — digo, voltando a encará-la.
— Então por que não faz pelo Peter? — lágrimas ameaçam cair e
sei que não são de crocodilo. Emilly pode estar me manipulando,
mas ela não é dissimulada a esse ponto. As lágrimas são sinceras,
tão sinceras que ela não consegue sustentar o meu olhar. Encara o
assoalho do carro, deixando que uma delas escape. — Até pela
Alicia, também. Você não tem noção do estado em que ela está.
— Ela já sabe disso? — pergunto. Emilly faz que não. — E o que
te faz pensar que ela vai aceitar?
— O amor pelo filho — convicta, volta a me encarar. — Mesmo
que ela te odeie, sei que vai aceitar por Peter.
Eu tenho as minhas dúvidas.
— Você se esqueceu de um detalhe. — Emilly franze o cenho.
Touché. Algo, enfim, não está nos seus planos. — Eu volto para
Santa Mônica antes do Ano Novo. O meu jovem sobrinho nunca me
viu pessoalmente e talvez caia nessa farsa, mas como vamos
convencê-lo da minha partida? Pelo visto, só Deus sabe quando
Hector volta.
Se voltar.
— Falamos que você precisa retornar ao trabalho — lanço-lhe um
olhar desconfiado e ela se inflama. — Ei, não complique as coisas
de propósito! A intenção é que Peter passe o N-A-T-A-L com o pai
— enfatiza, letra por letra. — Depois do Natal pensamos no resto. E
então, aceita ou não?
O carro vira uma esquina e chegamos à rua ladeada de edifícios
de alto padrão onde minha mãe reside. Esfrego as palmas das
mãos contra o rosto. Misericórdia, eu realmente devia ter ficado na
Califórnia. Solto o ar com força e volto a encarar a diaba da minha
irmã.
— Eu vou pensar.
Seus olhos faíscam, vitoriosos. James estaciona o sedã e desce
para abrir nossas portas, mas não aguardo pela sua gentileza. Jogo
as pernas compridas para fora do veículo e absorvo o ar gelado.
Antes que minha irmã diga qualquer coisa, cumprimento o porteiro e
sigo para dentro do prédio, em direção aos elevadores. A madame
sempre gostou de vista, mas nunca fez questão de uma cobertura,
então subo sozinho até o penúltimo andar. Bato com um dos pés no
chão metálico, impaciente e meio irritado, a cabeça em um turbilhão,
sem saber o que fazer.
O elevador se abre e caminho decidido até a porta do
apartamento da minha mãe. Toco a campainha, ouvindo o som
musical ecoando ao fundo, enquanto uma voz diz que Paulina pode
ficar sossegada, ela mesma vai abrir.
Passos se aproximam, calmos, diferentes dos decididos que me
trouxeram até aqui. Um trinco gira, uma pequena fresta surge e
antes mesmo que a porta se abra por completo sei quem está por
trás dela. Senti o delicioso aroma de rosas que emana dos seus
cabelos apenas uma vez, mas foi o suficiente para que ele ficasse
gravado na memória.
Alicia Smith, agora Alicia Chamberlain, surge no meu campo de
visão. Tão surpresa quanto eu, arregala os grandes olhos castanhos
claros, deixando o queixo cair até o peito. Encaro o seu rosto
emoldurado pelos cabelos ruivos. Mesmo com um aspecto abatido,
olhos menos brilhantes e ar mais cansado, Alicia continua
deslumbrante. Linda, tentadora e proibida. Involuntariamente, passo
a ponta da língua pelos lábios, e é o que basta para que ela feche a
cara em sua melhor expressão de desagrado.
Pronto, eu não preciso mais me preocupar. Alicia jamais aceitaria
qualquer ideia mirabolante envolvendo eu e ela.
E então a mulher começa a chorar.
Ao deixar Peter em companhia dos filhos da vizinha, parti em
direção a Nova Iorque em busca de um pouco de conforto
psicológico. Sabia que o meu menino estaria em boas mãos e que
não precisaria me preocupar com ele pelas próximas horas. Judy, a
única mulher fora da família com quem cultivo uma amizade,
sempre cuidou dele com o mesmo carinho com que cuida das suas
crianças. Vira e mexe os dela ficam em casa, também.
Grace Chamberlain me recebeu de braços abertos. E me deixei
abraçar pela senhora que considero uma segunda mãe. Ela fez por
mim naqueles poucos anos que nos conhecemos mais do que
minha madrasta fez durante uma vida inteira. Deixei-me chorar
enquanto repetia o que havia contado há dois dias por telefone, mas
precisava contar de novo, palavra por palavra, em uma tentativa de
tornar real o que eu não conseguia acreditar.
Ela, com toda a paciência, ouviu. Depois pediu para Paulina
preparar os meus biscoitinhos de limão favoritos antes de me ajudar
a sentar no sofá. Grace se casou cedo e, apesar de ter por volta de
cinquenta anos, a matriarca da família Chamberlain costuma
aparentar dez a menos graças a pele bem cuidada e os olhos azuis
vivazes que transmitiu aos filhos e, mais tarde, ao neto. Hoje ela
aparenta exatamente a idade que tem.
Ainda assim, estava se esforçando para me animar com suas
palavras e, aos poucos, me acalmei. Era bom saber que,
independente de qualquer coisa, eu teria o seu auxílio. Grace era
uma mulher calma, filha da mais fina nata da cidade, mas
demonstrava uma vontade imensa de descer do salto e dar umas
boas bordoadas no filho.
O cheirinho doce da baunilha misturado ao cítrico do limão
começava a perfumar o apartamento quando a campainha tocou.
Sem querer atrapalhar Paulina ou fazer a minha anfitriã se levantar,
pedi licença e me dirigi até a porta apenas para dar de cara com
aquele demônio.
Não sei como houve um dia em que confundi os gêmeos. Na
ocasião do beijo, não me atentei aos sinais que os diferenciavam.
Agora, eles estão evidentes, como se Henry se esforçasse para ser
o oposto do irmão não apenas na personalidade, mas também na
aparência.
Os cabelos escuros, quase negros, descem em ondas meio
bagunçadas até pouco abaixo dos ombros. A barba bem cuidada,
longe de estar cerrada, preenche todo o maxilar forte. Henry
costuma ter um sorriso safado pronto nos lábios, mas ele se limita a
mantê-los fechados, os olhos muito azuis arregalados ao me ver. Os
cabelos, a barba e o poder daquele olhar conferem um ar selvagem
à sua pessoa.
E, se aquilo o difere tanto de Hector, todo o resto os aproxima. A
visão dele ali é demais para mim. Não era Henry que eu gostaria de
ver ao abrir a porta. Só queria que fosse Hector dizendo que mudou
de ideia. Que o e-mail foi um engano. Que vai sim passar o Natal
com a família e que poderíamos nos dar uma segunda chance e
tentar salvar o nosso casamento.
A frustração de reencontrar o irmão tão parecido, mas ao mesmo
tempo tão diferente, é demais para mim. O choro retorna com força
total. Ele balbucia qualquer coisa e estende as mãos, como se
tentasse me puxar para si, mas dou um passo para trás, tentando
me manter o mais longe dele. A última coisa que quero é ser
consolada por Henry.
Escuto alguém falando as minhas costas, mas sou incapaz de
discernir o que. Limito-me a abraçar a mim mesma, tentando conter
sozinha as ondas de dor que batem contra o meu peito e ameaçam
me afogar. As portas do elevador se abrem e passos furiosos ecoam
pelo saguão.
— Você não poderia ter me esperado antes de subir? — ralha
Emilly, olhando feio para o irmão. Por trás da máscara de lágrimas,
consigo discernir quando olha para mim. — Puta que pariu, você
chegou não tem nem cinco minutos e já fez a Alicia chorar?
— Eu não fiz nada! — defende-se Henry, mas ele sai do meu
campo de visão no momento em que a irmã me toma em seus
braços. Por ela, eu me deixo consolar. A voz de Grace entra na
cacofonia.
— Ela está muito sensível, pobrezinha — diz, baixinho, ao afagar
as minhas costas. — Vem, os biscoitinhos ficaram prontos.
— Aqueles de limão? — pergunta Henry, animado.
— Sim, mas não são para você! São para a Alicia! —
Desvencilho-me do abraço de Emilly e me deixo puxar para o sofá
enquanto o homem resmunga algo como “É ótimo te ver também,
mãe!”.
A matriarca ri, mas só cumprimenta o filho depois que estou bem
acomodada entre as almofadas macias. Emilly se senta ao meu lado
e segura uma das minhas mãos. Lanço-lhe um olhar agradecido. Se
sua progenitora é uma segunda mãe para mim, ela é a irmã que
nunca tive.
Aceito o pratinho de biscoitos oferecido por Paulina mais por
educação que por vontade de comer. Podem ser os meus favoritos,
mas desde o e-mail a fome abandonou o meu estômago. Escuto
Henry fazendo festa para a fiel funcionária e a estridente risada
dela, xinga-0 de alguma coisa em espanhol, fazendo os riem ainda
mais. Só depois Henry junta-se à família na sala, um prato de
biscoitos também em mãos, limitando-se a responder às perguntas
da mãe sobre a viagem. Pelo visto ele e a irmã devem ter
conversado o suficiente no carro, pois trocam olhares cheios de
ódio.
Paulina retorna e coloca uma xícara de chá quentinho em minhas
mãos. Assinto em agradecimento e bebo um gole, observando
Henry por cima da borda. Não o vejo desde que Peter era um
bebezinho de colo. Nossos olhares se cruzam e, antes que eu
possa desviar, a pergunta sai dos seus lábios.
— Cadê o meu sobrinho? Gostaria de conhecê-lo — a
curiosidade da sua voz é hesitante. Por algum motivo, Emilly
aumenta a carranca dirigida a ele. Pouso a xícara na mesinha de
centro antes de responder.
— Ficou brincando com os filhos de uma vizinha.
— Ah, que pena. — Ele encolhe os ombros, desapontado. Não
entendo o porquê. Antes disso Henry não fez qualquer esforço para
conviver com o sobrinho, mas possuo o total de zero energia para
trazer o assunto à tona. Hector o mandou ficar longe, sim. Mas
quem tem interesse vai atrás, com briga ou sem briga.
Um silêncio desconfortável cai sobre a sala de estar. Pego um
biscoitinho no prato e levo à boca, sem deixar de reparar na
estranha troca de olhares entre Emilly e a mãe. Grace, elegante, faz
um gesto mínimo com a cabeça em direção a filha. Henry também
percebe e, mais desconfortável do que nunca, se ajeita na poltrona,
como se desejasse estar em qualquer lugar, menos ali. Olho da mãe
para a filha, depois da filha para o filho, sem entender nada, quando
Emilly pigarreia e toma a palavra para si.
— Alicia, eu e mamãe tivemos uma ideia e gostaríamos de expô-
la a você.
— Ah, sabia que a senhora também estava por trás disso —
confirma Henry, lançando um olhar irritado para a mãe. Ela, por
outro lado, mantém a pose austera, sem se abalar. Não é à toa que
os filhos a chamam de madame.
— Só estou buscando fazer o meu neto feliz.
Olho para ela, sem entender nada, mas Grace não consegue
sustentar o meu olhar. O rosto enrubesce conforme abaixa a
cabeça. Paulina aparece por ali, mas disfarça antes de desaparecer
de volta a cozinha, fingindo ter entrado no cômodo errado. Todos
parecem estar por dentro do assunto, menos eu.
— Alguém poderia me explicar o que está acontecendo? — peço,
com a voz cansada. Emilly toma fôlego.
— Todos nós sabemos como Peter estava ansioso para rever o
pai no Natal — começa a falar, devagar, pisando em ovos. — E
sabemos que as chances de Hector aparecer são nulas. — Emilly
tenta trocar um olhar com a mãe, mas ela continua olhando para o
chão. — Eu pensei que talvez fosse interessante que o Peter
pudesse passar o Natal com um outro… pai.
Franzo o cenho.
— Como assim outro pai?
— Eu! — explode Henry, levantando-se da poltrona. Joga os
braços para o alto e bufa, irritado. As longas pernas o levam de um
lado para o outro da sala. A semelhança com um perigoso felino
enjaulado é assustadora. Volto a encarar as mulheres, meu cérebro
entorpecido ainda sem entender, quando o homem para e toma a
atenção de volta a si. — Minha irmã está sugerindo uma troca de
gêmeos!
— Troca de gêmeos?
— Ah, a grosso modo, seria isso — Emilly continua — Em
segredo, claro. A ideia é que Peter acredite mesmo que Henry é o
pai dele. Vocês precisariam conviver juntos, como se fossem um
casal, mas só até o Natal — acrescenta, rápido.
— É lógico que seria até o Natal! Eu já falei que volto para Santa
Mônica antes do Ano Novo!
A irmã o ignora.
— O Peter só fala disso, não é? — confirmo com a cabeça, sem
acreditar que estou ouvindo aquilo. — Imagine falar para ele,
faltando tão pouco tempo, que o pai não virá.
Já imaginei, Emilly, diversas e diversas vezes, penso, as palavras
coçando para pularem para fora da língua. Sinto que Peter já não
está bem. Sua busca por carinho se tornou mais frequente. Duas
vezes o peguei chorando a noite e, ao me sentar ao lado da sua
cama, desejando saber o motivo, ele se pôs a perguntar do pai. Só
se acalmou quando eu disse que ele voltaria em breve. Por outro
lado, será que não seria melhor contar e acabar com aquele
tormento?
— Eu quase falei ontem — confesso, baixinho. — No fim, faltou
coragem.
— Deve ser difícil — Emilly diz. Concordo com a cabeça. É difícil
ver um filho sofrendo. Mais difícil ainda fazê-lo sofrer. — O Hector e
o Henry são idênticos e Peter era muito novo quando viu o tio pela
última vez. Se esse aí — aponta. — se comportar direitinho, acredito
que se passará fácil pelo pai.
— E pelo menos o menino poderia ter um Natal feliz —
acrescenta Grace. — Sei que não é uma coisa fácil de se pedir,
mas…
Encaro o homem em pé a alguns metros de distância. Henry me
encara de volta, os olhos flamejando em labaredas azuis, o rosto
emoldurado pelos revoltos cabelos compridos, a pose dominante de
um homem que jamais aceita ser desafiado. Não, ele não é idêntico
ao Hector. Meu marido pode sim ostentar uma pose daquela, mas
ele jamais parece um predador pronto para dar o bote.
— Peter jamais acreditaria — digo, em uma tentativa de soar
educada. — Os dois podem ser gêmeos idênticos, mas são muito
diferentes e…
— E nada que um corte de cabelo não resolva — insiste Emilly.
Henry abre a boca, mas é interrompido pela irmã. — E já falei que
as tatuagens podem ser cobertas por maquiagem!
— Você tem tatuagens? — deixo escapar. O homem confirma
com a cabeça.
— Enormes, pegam metade do meu peitoral e o braço inteiro. —
Um sorriso safado, o mesmo que ele me deu naquele fatídico dia na
universidade, desponta em seus lábios. Odeio aquele sorriso com
todas as forças. Como se soubesse, ele o alarga. — Imagine só,
Alicia. Quantas horas eu precisaria ficar sem camisa enquanto você
cobre o meu corpo com maquiagem?
— Henry! — ralha a irmã. — Você nunca leva nada a sério?
— Há alguma maneira de levar essa ideia a sério? — devolve,
mais irritado do que nunca.
— Há sim, porra!
— Emilly! Eu não te dei essa educação! — Grace entra na
discussão.
— Não sei nem porque estamos falando disso — reclama Henry.
— Em nenhum momento disse que aceitaria me passar pelo Hector!
— Você disse que iria pensar!
— Pensar é diferente de aceitar!
Deixo os três brigando, tentando processar tudo aquilo. Henry,
fingindo ser Hector, para alegrar o Peter. Fingindo ser o pai do meu
filho. Fingindo ser o meu marido.
— Nós teríamos que conviver na mesma casa — murmuro. —
Dormir… juntos?
Henry me encara. O sorriso agora é tão predatório quanto a sua
aparência.
— Bom, ninguém disse nada sobre dormimos juntos. — Dá de
ombros. Os olhos azuis descem pelo meu corpo. Por um curto
instante sinto-me nua diante dele. — Não que eu fosse negar, é
claro.
O olhar arrogante traz à tona o motivo pelo qual eu o odeio. O ar
de superioridade desmedida de quem se acha capaz de fazer o que
quiser, sem pensar nas consequências. Por mais mirabolante que a
ideia seja, não me sinto ofendida por Emilly, menos ainda por Grace.
Sempre recebi respeito e amor da minha cunhada e sogra. Aquela
proposta é fruto de um ato desesperado para cumprir uma
promessa e ver uma criança feliz. E eu, mais do que tudo, quero ver
Peter feliz. Sinto-me ofendida por Henry. A tristeza dá lugar a raiva.
— Mas eu nego — cuspo. Henry arregala os olhos, surpreso.
Ergo-me do sofá e ele observa, atento, enquanto me ponho à sua
frente. Preciso erguer o queixo para encará-lo, mas o ergo com
orgulho. — Quem você pensa que é para aparecer depois de tanto
tempo e achar que pode me dizer o que quiser? — Olho-o de cima
abaixo, assim como fez comigo há pouco. — Meu filho nunca
aceitaria você como pai!
— Quem disse que eu quero ser pai dele? — diz, como se a ideia
fosse absurda. — Se em algum momento eu quis aceitar a ideia, foi
com a intenção de reparar a ausência como tio. Ausência imposta
pelo seu marido, diga-se de passagem.
Ah, pronto. Era tudo o que eu precisava ouvir.
— Sim, imposta por ele! — sinto as mulheres encolhendo as
minhas costas. — Porque ele, ao contrário de você, foi um homem
de verdade.
Henry se aproxima, de modo a sibilar diretamente no meu ouvido.
— E onde está esse homem de verdade agora?
A minha mão voando é mais rápida do que qualquer pensamento.
O estalo do tapa contra o seu rosto ecoa pelo imenso apartamento.
Emilly e Grace soltam um sonoro ahhh enquanto Paulina vem
correndo da cozinha, dizendo alguma coisa em um rápido espanhol.
Henry abre a boca e aguardo, esperando que ele me xingue de tudo
quanto é nome, mas o homem se limita a gargalhar. Alto e grave,
como se eu tivesse acabado de contar a melhor piada do mundo,
não esbofeteado a sua cara.
— Meu Deus, mulher — tenta se controlar, mas é em vão. A
risada continua, o impedindo de falar, mas ele se esforça — Já levei
uma cota de socos por sua culpa mas Uau!, você tem uma mão
pesada! Coitado do Hector, não me admira que tenha ido embora.
— Vai se foder! — sou seguida em coro por Emilly. Pela
entonação da sua voz, ela está tão irritada quanto eu.
O choro volta, mas dessa vez não é meu. É de Grace. Ela cobre
o rosto com as mãos, os ombros subindo e descendo conforme as
lágrimas escapam por debaixo das palmas. A filha se adianta em
abraçá-la, mas ela a rechaça. Paulina volta para a cozinha,
comentando algo sobre pegar um copo d'água.
— Vocês sabem o que o Natal se tornou para mim depois que o
meu adorado marido se foi — diz Grace, baixinho. Hector
mencionou certa vez que a data nunca mais foi a mesma após a
morte do pai — Pensei em Peter quando decidi reatar a tradição.
Era bom, não era? Ter a família reunida? — pergunta, olhando para
os filhos. Emilly murmura um sim enquanto Henry se limita a
assentir. Fico quieta. Paulina retorna com o copo e a matriarca
agradece com um aceno de cabeça. Bebe um gole e continua
olhando para Henry — Fiquei tão feliz com a sua confirmação! Mas
quando Hector disse que não viria, pensei em cancelar tudo… até
que Emilly teve essa ideia de troca de irmãos. Eu só concordei por
causa do Peter. Sinto muito, minha querida.
— Não precisa se desculpar — digo. O silêncio se instala na sala.
De repente, tudo o que eu quero é voltar para casa. — Preciso ir.
Fiquei de buscar o meu filho por volta das seis — minto.
Grace assente. Meio sem graça, aceno um rápido adeus e
caminho em direção ao vestíbulo. Ninguém me segue e, querendo ir
embora o mais rápido possível, precisando colocar os pés na rua
para tomar um pouco de ar, visto o casaco em tempo recorde. Estou
ajeitando uma das luvas quando sinto uma presença nas minhas
costas.
— Eu topo — anuncia Henry. Enrijeço, mas não me viro em sua
direção. Calço a segunda luva, ainda cheia de raiva, incomodada
pela sua presença. Ele continha. — Se você topar, eu também topo.
Ignoro-o. Estendo a mão para a maçaneta da porta, mas Henry
segura o meu ombro, impedindo que eu saia. Detesto sua atitude, e
detesto mais ainda o calor que se aloja ali. Enfim me viro.
— Será que eu posso ir embora?
— Claro que pode — ele me solta e, logo em seguida, estende
um pedaço de papel. — Esse é o meu número, caso mude de ideia.
— E por que eu mudaria?
O sorriso retorna, cheio de escárnio. Não fosse pela barba, talvez
eu visse a marca de cinco dedos estampada na sua cara,
— Se eu mudei de ideia pela minha mãe, talvez você mude pelo
seu filho.
Mordo os lábios e, apenas para ir embora em paz, pego o papel e
o enfio de qualquer jeito em um dos bolsos do casaco. Antes que
ele aumente o tamanho do sorriso e eu precise resistir à tentação de
esbofeteá-lo de novo, saio porta afora.
Minha cabeça envolve-se em pensamentos durante os quarenta
minutos que levo para sair de Manhattan e seguir em direção a
minha casa. Por mais que tente focar única e exclusivamente no
trânsito, é em vão. Quanto mais eu penso, mas a ideia de Emilly
parece loucura. Eu e Henry convivendo lado a lado até o Natal?
Impossível.
Mas… e se der certo? Meu cérebro insiste em dizer. Bom, a
família está por dentro do plano. Sei que teria todo o suporte para
fazer a ideia funcionar. Pelo menos não pediram para que Henry me
enganasse também.
Entro com o carro no tranquilo bairro onde moro e passo diante
das casas de dois andares com cercados brancos e gramados
cortados à perfeição. A maioria delas exibe pisca-piscas coloridos e
enfeites natalinos como renas ou bonecos de neve iluminados. Em
dias quentes, toda a rua é tomada por crianças em idade escolar
pedalando suas bicicletas ou ensaiando passadas trêmulas nos
patins. No crepúsculo gelado do inverno, a rua está vazia. As luzes
acesas denunciam que a agitação está do lado de dentro. Risadas
escapam de uma janela, mas sigo em frente, até a minha residência
silenciosa.
Não sou uma mulher acostumada a sentir raiva, mas ela cresce
no meu peito e se espalha por todo o corpo, fazendo com que
minhas mãos apertem o volante com força, até os nós dos dedos
ficarem brancos.
Quem agora me enche de fúria a ponto de tornar a visão
vermelha é Hector. Se o meu marido não estivesse sendo um
canalha, eu não precisaria chegar em casa e dizer ao nosso filho
que o pai dele não presta nem ao menos para cumprir uma simples
promessa de Natal.
— Por que, Hector? — falo para mim mesma, enquanto estaciono
o carro diante da garagem. — Por que você está fazendo isso com a
gente?
Claro que ninguém responde, o que me enche ainda mais de
raiva. Esmurro o volante, com força, tentando exprimir toda a ira
sobre o objeto, até que um dos punhos bate bem no centro e aciona
a buzina. O som alto ecoa pela rua vazia. A vontade de chorar
retorna, mas dessa vez travo o maxilar, fecho os olhos com força e
engulo o choro. Naquele momento eu me recuso a derramar uma só
lágrima pelo homem que me abandonou.
Se é para derramá-las, que sejam pelo meu filho. Preciso contar
a ele. Não posso continuar postergando o assunto. Será difícil. Ele
vai chorar, ficará decepcionado e frustrado, mas não tem outro jeito.
Sei que não será o suficiente, mas estarei ao seu lado.
— É isso — dou um último soco no volante, decidida. — Sinto
muito, Peter. Mas é isso.
Pego a bolsa e desço do carro. Devia ter passado em algum drive
thru e comprado o jantar. Peter é muito novo para comer junk food,
mas de vez em quando não faz mal, e talvez a notícia soasse
menos indigesta em companhia de um hambúrguer e uma porção
de batata frita.
O som estridente de risadas infantis escapa da casa ao lado.
Abro um sorriso involuntário. Judy é uma mulher criativa. Foi
professora de educação infantil antes de decidir se dedicar apenas à
maternidade. A paixão por crianças está sempre estampada no seu
rosto e adora inventar brincadeiras para distraí-las. Ela me contou
que só não tenta ter mais filhos porque o marido decidiu encerrar a
fábrica com uma vasectomia. Antes que fosse à falência, segundo o
próprio me contou com uma piscadela divertida.
Basta olhar para a sua casa para comprovar que a falência está
muito longe da família de Mark. Ninguém mora em Greenville se
estiver com a conta beirando o vermelho. Mais risos dão um jeito de
escapar das janelas fechadas. Parte da raiva se dissipa ao ser
contagiada pelas risadas. Ajeito o casaco em torno do corpo e toco
a campainha. É o próprio Mark quem abre a porta.
Arregalo os olhos para a visão. Outro pré-requisito básico para se
morar em um subúrbio de alto padrão é ser bonito. Longe de cobiçar
o marido alheio, mas Mark é um partidão. Foi capitão do time de
futebol americano na Universidade de Harvard e só não chegou aos
profissionais por conta de um rompimento de tendão. Mark se
recuperou, mas não a ponto de alcançar o ritmo de antes. Acabou
desistindo do esporte, mas não de se manter em forma.
Como é de se esperar vindo de qualquer jogador de futebol, o
homem é grande. Muito grande. Com seus quase dois metros de
altura, peitoral largo e braços do tamanho de presuntos, intimida
qualquer um que apareça a sua frente, mas Mark é um gigante
gentil. Com sua altura impressionante, cabelos escuros e olhos
castanhos cheios de simpatia, chama atenção por onde passa.
Mas não é a sua beleza que faz com que eu olhe espantada para
a figura à frente. É o cabelo curto preso com elásticos cheios de
pompons, sombra verde sobre os olhos e batom vermelho borrado
nos lábios. As bochechas cobertas de blush cor de rosa se alargam
ao me ver.
— Oi, vizinha — diz, antes de cair na gargalhada. Ele me
desarma de tal forma que acabo rindo, também. Suas duas filhas
aparecem por debaixo dos seus braços, me espiando com olhinhos
curiosos, batons e pincéis de maquiagem em mãos. O homem
empurra as crianças de brincadeira — Olha só o que essas
pestinhas fizeram!
— Fizeram porque você deixou — ralha Judy. O corpo largo de
Mark se afasta um pouco da porta e a bonita mulher baixinha e
roliça entra no meu campo de visão. Os olhos azuis cintilam,
divertidos, enquanto os longos cabelos castanhos estão presos em
um coque solto no topo da cabeça. — Oi Alicia! Não quer ficar para
jantar?
Pelo delicioso aroma que escapa da cozinha, Judy está
caprichando na refeição. É tentador, mas desejo falar logo com
Peter. Se eu ficar para jantar, ele chegará sonolento em casa e não
quero remoer aquele assunto por mais um dia.
— Agradeço, mas já estou com o jantar encaminhado em casa.
— Judy assente, sem desconfiar da mentira. Olho por sobre o
ombro do seu marido. — E o meu pequeno, onde está?
— Aqui — diz Peter caminhando devagarzinho na minha direção,
o casaco um número maior já vestido por sobre os ombros. Liam, o
filho mais velho do casal, vem atrás com um ar preocupado.
Basta um rápido olhar para saber que aconteceu alguma coisa.
Franzo o cenho. São meninos tranquilos, mas meninos são
meninos, e talvez tenham brigado. Meu filho caminha até mim e
abraça minhas pernas. Deslizo a mão pelo seu cabelo ruivo e
encaro Judy, em busca de respostas, mas é Liam quem as dá.
— O Peter não quis jogar videogame hoje — olha para o amigo.
— Não quis jogar nem Super Mario!
Aquilo é preocupante. Peter não tem um videogame em casa,
mas se tivesse, precisaria ser um Nintendo Switch. Ele é
apaixonado pelo Mario. Mais de uma vez pediu um ao pai, mas
Hector negou, dizendo que ainda era muito novo para ficar com os
olhos grudados em uma tela.
— Quando cheguei, me ofereci para jogar, mas ele também não
quis — comenta Mark. As meninas pulam ao seu redor. — Antes de
ser capturado por essas aqui, é claro.
Judy se aproxima.
— Ele estava mais animadinho antes do Mark chegar — lança
um olhar significativo ao marido. A dúvida cruza o seu rosto, até que
ele entende. Ela diminui o tom de voz, de forma que só eu escute —
Depois que o meu marido chegou, Peter ficou um tempão olhando
para ele. Como se…
— Estivesse com saudade — completo. Minha vizinha confirma
com a cabeça. — Bom, obrigada por cuidarem dele.
— Imagina — devolve Judy, voltando a animação de sempre. —
É um prazer.
Peter é um menino educado por natureza, mas dessa vez não faz
menção de se despedir. Em outra ocasião eu o lembraria das boas
maneiras, mas de repente a visão da família perfeita me observando
da porta se torna opressora. Aceno um rápido adeus e empurro o
meu filho em direção a nossa casa. Peter obedece, sem a menor
resistência, e em poucos passos estamos a sós.
Dentro de casa, ajudo-o a tirar o casaco para, só depois, retirar o
meu. Ajeito tudo sobre o cabideiro no vestíbulo e o observo olhando
para a ampla sala de estar. Se as luzes amareladas da sala dos
vizinhos conferiam um calor a tudo, as minhas, brancas e cheias de
sombras, só colaboram para enfatizar o tom gélido que a casa
adquiriu ao longo dos anos. Peter olha ao redor, como se
procurasse por algo. Sei bem o que está procurando. Respiro fundo,
sem nem ao menos saber por onde começar, então decido adiar.
— O que você quer para o jantar? — pergunto, me dirigindo para
a cozinha. Escuto seus passos enquanto abro a geladeira e pego o
pote plástico com as sobras do almoço. — Olha só, ainda temos
lasanha!
Meu tom alegre soa falso aos meus próprios ouvidos. Peter
encara o pote em minhas mãos e, sem esboçar qualquer emoção,
se dirige à ilha no centro da cozinha. Afasto a banqueta e o ajudo a
subir. Depois de estar bem acomodado, cruza as mãos sobre a
toalha e pousa o queixo sobre os dedos, desanimado. Meu alarme
materno apita. Será que não aconteceu nada mesmo? Coloco o
pote sobre a bancada de mármore e me ajoelho diante da criança.
— Você está bem? — Com delicadeza, tiro a franja do seu rosto.
Ele acompanha o movimento com os mesmos olhos azuis do pai.
Quando não responde, faço outra pergunta. — Aconteceu alguma
coisa? — Ele nega. — Então o que foi, meu filho?
— Eu queria que o papai estivesse aqui — diz, baixinho.
Fecho os olhos, a raiva tornando a se agitar, mas dessa vez a
onda é fraca, desfazendo-se antes de chegar à praia. O que me
domina de verdade é a tristeza. Preciso contar. Inspiro fundo,
tomando fôlego para dizer o que preciso dizer e encaro o meu filho.
— O seu pai…
— Ele mandou mensagem? — Os olhos se acendem em
esperança. — Mandou, mamãe?
Ai meu Deus, eu não vou conseguir fazer isso. Tomo fôlego de
novo. Preciso pelo menos tentar.
— Mandou, filho, mas… — Peter me encara como se a sua vida
dependesse daquela resposta. Fecho a boca. A tentativa fica para
mais tarde e finjo o meu melhor sorriso — Só pediu para você comer
direitinho. — Bato palmas e, de um pulo, me ergo. O olhar do
menino acompanha os meus movimentos. — Então… vamos comer
o restante da lasanha?
Peter é inteligente demais para os seus quatro anos. Aceita a
resposta, mas não está convencido. Para fugir do escrutínio do seu
olhar, viro-me de costas e começo a preparar o jantar. Corto dois
retângulos de lasanha e coloco cada pedaço em um prato. Para dar
um novo ar a massa prestes a ser requentada, acrescento duas
camadas de queijo. Pisco para o menino durante o processo. Se
dependesse de Peter, tudo teria o acréscimo de queijo.
Dessa vez ele não esboça reação diante do meu agrado. Assim
que o micro-ondas apita, retiro o prato, confiro se está quente o
suficiente para aquecer a comida, mas não a ponto de queimar a
boca, e coloco diante do meu filho. Corto a massa em pedaços
pequenos e lhe ofereço o garfo. Há muito ele sabe comer sozinho,
mas ainda se enrola com a faca.
O meu prato sai do micro-ondas e, sentados lado a lado,
comemos em silêncio. Peter deixa metade da refeição de lado, mas
hoje não insisto para que continue comendo. Conhecendo Judy, ela
lhe ofereceu um lanchinho durante o período em que ficou em sua
casa. Quando faz menção de pular da banqueta, ajudo-o a descer.
Deixo que assista televisão enquanto arrumo a cozinha. Não há
muito o que arrumar com apenas duas pessoas em casa.
Ele não vem para o meu colo quando me sento ao seu lado.
Aquilo me chateia um pouco. “Seu pai não está aqui, mas eu
estou!”, quero gritar, mas fico quieta. Deixo que assista ao desenho
em silêncio até perceber que está pegando no sono. Hora de fazer
uma intervenção.
— Vamos tomar banho? — pergunto, fazendo menção de erguer
o seu corpo do sofá. Ele faz cara feia.
— Não — resmunga. Devolvo a careta, mas ele não arreda o pé.
— Está frio, mamãe.
— Só está frio lá fora, e continuará assim até março. Pretende
ficar sem tomar banho até lá? — ele confirma com a cabeça, muito
sério, o que me faz rir. — Meu filho vai virar um gambazinho?
— Vai — ri de volta, e sei que daquela vez eu venci. Faço
cócegas na sua barriga.
— Então quero que vire um gambazinho cheiroso — desligo a
televisão e pego-o no colo. Mais cinco minutos e Peter teria caído
no sono. — Prometo deixar a água bem quentinha.
Sem espernear, permite que eu tire sua roupa e o ajude no
banho. O vapor da água logo cobre todo o banheiro, nos deixando
em meio a uma confortável névoa com aroma de bala de tutti frutti.
Há muito o cheirinho de bebê foi embora, mas a lembrança dele me
enche de saudades.
O calor o ajuda a ficar ainda mais molinho. Peter está quase
dormindo quando puxo o cobertor até a gola do seu pijama do
Capitão América. Fecha os olhos e faço um carinho nos seus
cabelos macios, azulados por conta da pequena luz noturna em
formato de estrela que está sempre ligada no seu quarto. Hoje não
será necessário contar nenhuma história para ajudá-lo a dormir.
E quando penso que entrou no mundo dos sonhos, o menino
arregala os olhos e me encara, completamente desperto.
— O papai vai vir mesmo para o Natal, não vai?
Engulo em seco. Vamos, sua idiota. Agora é a hora de você
responder que não, o seu pai não vem. Só Deus sabe quando ele
vem, pois ele se transformou em um canalha egoísta que pede o
divórcio por e-mail e não responde as mensagens da família.
Vamos! Acabe logo com essa aflição! Respiro fundo, tentando
absorver uma golfada de coragem, mas ela se esvai assim que
meus olhos cruzam os de Peter. Grandes, pidões, cheios de
esperança. Solto o ar e forço um sorriso.
— Ele não prometeu que viria? — O menino assente. — Então
ele virá. — É a vez de ele soltar o ar, aliviado, antes de me devolver
o sorriso. Ao contrário do meu, o dele é sincero. — E o que você vai
pedir de presente para o Papai Noel? — pergunto, tentando mudar
de assunto. Sou uma grande covarde. Talvez, com um videogame, a
dor pelo furo do pai seja amenizada.
— Vou pedir que ele traga o papai de volta — Puxa a coberta
ainda mais para cima, para cobrir o rosto até o nariz, e se acomoda
no travesseiro — Será que ele consegue, mamãe?
Respiro fundo, tentando me acalmar.
— Acho que sim, meu filho.
Satisfeito, Peter fecha os olhos e, em instantes, está dormindo.
Continuo ali, observando-o com o coração esfarelado. A raiva pela
falha de Hector ameaça me dominar de novo, mas me esforço para
afastá-la. Se ele não vai fazer nada pelo filho, eu vou.
Confiro se Peter está dormindo e saio do quarto, deixando uma
frestinha aberta para ouvir caso ele me chame. Caminho decidida
pelo corredor, desço as escadas evitando fazer barulho e sigo até o
vestíbulo. Puxo o papel amassado e o celular do bolso do casaco e
encaro a ambos. Não há mais o que pensar. Disco o número de
Henry e levo o telefone ao ouvido.
Ele chama uma, duas, três, quase dez vezes. Estou para desistir
quando, enfim, a ligação é atendida. Pelo barulho de música alta e
risadas estridentes, o homem só pode estar em uma festa. Resisto a
desligar no momento em que a voz grave ressoa em meu ouvido.
— Alô?
— Oi Henry. Sou eu, Alicia.
— Uau, você mudou de ideia bem rápido — debocha. Aos
poucos, o som ao fundo fica mais baixo. — Então topa participar da
ideia mirabolante da minha irmã?
Só porque não tenho outra alternativa.
— Topo — quase rosno. Ele ri, rouco, e algo se agita dentro de
mim. Quente e acolhedor. Ignoro. Deve ser porque a risada é tão
parecida com a de Hector. — Você pode começar quando?
— Na segunda-feira. — Henry diz. Em seguida, uma voz feminina
o chama. Pelo tom, a mulher está ansiosa para tê-lo por perto. —
Quero aproveitar o final de semana e, como vocês insistem, ainda
preciso cortar o cabelo e fazer a barba.
— Precisa. Vou te mandar uma foto do Hector — ele resmunga
qualquer coisa que ignoro. — E Henry?
— Diga. — Sua voz sai rouca e a mulher chama de novo, mais
perto. O som que eu escuto é o de um zíper se abrindo? Um gemido
escapa da boca de Henry. — Diga, rápido! — implora, gemendo de
novo.
Ah não, não e não! Não é possível que ele esteja recebendo um
boquete enquanto fala comigo pelo telefone! Fecho os olhos e
passo a mão pelo rosto. Só resta ir em frente.
— Lembre-se: isso é um segredo. O Peter não pode desconfiar!
— Segredo. Tá, pode deixar — geme de novo, mais alto do que
antes. Uma parte minha, primitiva e desconhecida, quer continuar
ouvindo, mas a outra toma uma atitude sensata.
— Então é isso. — Um som alto de sucção vaza pelo telefone.
Chega, já ouvi demais. — Tchau, Henry.
Desligo o telefone antes que ele responda, o coração aos saltos
martelando meu peito. Está feito, então. Pelos próximos dias, até o
Natal, meu cunhado detestável fingirá ser o pai do meu filho.
Que Deus nos ajude!
Encaro a imagem no espelho enquanto abotoo a camisa social
branca. Bom, se Alicia queria que eu ficasse igual ao meu irmão, eu
fiquei. Depois da sessão de banho e tosa, como brincou Emilly,
voltei a ter exatamente a mesma cara de Hector. Cabelos curtos,
barba cerrada bem aparada, olhos sombrios. O próprio Sr. Certinho.
Não sei onde estava com a cabeça quando cedi aos caprichos
femininos e topei fazer parte daquela farsa. Se antes eu tinha
dúvidas se deveria ter ficado em São Francisco, agora só tenho
certezas.
Mas estou aqui, terminando de me vestir para começar a
penitência até o Natal. Puxo a manga da camisa, abotoo o punho e
confiro se a tatuagem está mesmo coberta. Está, e preciso avisar a
Alicia que não vou passar pelo martírio de cobrir aquilo todo santo
dia com maquiagem, tinta spray, ou qualquer outra coisa que ela
prometeu comprar a fim de resolver aquele problema. O menino que
aceite uma versão mais radical do seu pai e, quando o verdadeiro
voltar, que inventem qualquer desculpa.
— O Hector usa o cabelo assim — diz Emilly, invadindo o closet.
Sem pedir licença, se estica no alto dos seus saltos e vira o meu
cabelo para o outro lado. Solto um rosnado baixo.
— Eu poderia estar pelado aqui, sabia?
— Garanto que não há nada aí que eu já não tenha visto — ergo
uma sobrancelha. — O que foi, Henry? Você pode comer duas ou
três mulheres por dia enquanto a sua irmã fica trancada dentro de
casa chupando dedo? Desculpe, mas há coisas melhores para se
chupar.
— Poupe-me dos detalhes — interrompo. A visão da ruiva da
festa de anteontem, ajoelhada entre as minhas pernas, chupando o
meu pau cheia de vontade, surge na mente. Mas, quando ela ergue
o rosto, é a face de Alicia que aparece. Balanço a cabeça, sem
entender o motivo daquela troca inusitada e volto a focar em minha
irmã — Antes que eu me esqueça, você me deve uma.
É a vez dela erguer uma sobrancelha.
— Eu? Se eu começar a enumerar as enrascadas que te tirei
durante o ensino médio ou na universidade, nós ficaríamos aqui o
dia inteiro. Você está se atrasando para o seu compromisso, Henry.
— Um sorriso se abre no seu rosto. — Ou será que já devemos te
chamar de Hector?
Ranjo os dentes. Se um dia o Hector voltar ele vai precisar se ver
comigo.
— Há algo que eu precise saber sobre o pestinha catarrento?
Emilly me empurra.
— Ei, não fale assim do Peter — seu tom de voz se torna triste, o
que me faz olhar para ela. — Ele é um amorzinho. Por favor, se
esforce para ser um bom pai para ele.
Aquilo me arrepia todinho. Eu já não sei se seria um bom tio,
pedir para que eu seja um bom pai é exigir demais. Deixo a falta de
resposta no ar enquanto termino de me arrumar. James esteve
ontem na casa de Alicia apenas para buscar aquele terno já que eu
não trouxe nenhum. Ajusto o nó da gravata, coloco o paletó e voilá,
estou igualzinho a um banqueiro de Wall Street pronto para iniciar o
expediente naquela segunda-feira. A ideia consegue me causar
mais arrepios que ser um pai de mentira de uma criança durante os
próximos dias.
— Como estou? — pergunto, me virando para Emilly. Ela me olha
de cima abaixo.
— Igualzinho ao Hector. Parabéns — faço uma careta,
descontente com aquele visual almofadinha. Minha irmã parece ler
os meus pensamentos. — É só hoje. O que foi que você inventou
mesmo?
— Que estarei em home office. — Outra coisa da qual já me
arrependi. Devia ter falado que continuaria trabalhando em
Manhattan, assim não precisaria passar o dia todo trancado em
casa.
— Lembre-se: é segredo. Ninguém além da nossa família deve
saber.
— Falou aquela que contou essa história até para o motorista!
— O James é de confiança — enfatiza, e sei que está certa. — E
como levaríamos isso adiante se ele e Paulina não estivessem por
dentro de todo o esquema?
Pronto, agora falou igualzinho a uma mafiosa. Para mim é
demais.
— Vamos acabar logo com isso, então — resmungo, ciente de
que aquilo está só começando.
Emilly me segue para fora do quarto de hóspedes do
apartamento da minha mãe. Não fosse todo esse esquema, eu
passaria os meus dias em Nova Iorque em um apart hotel, por mais
que uma cama tivesse sido oferecida a mim tanto ali, quanto na
residência de minha irmã. Sou grato pela hospitalidade, mas nada
paga pela nossa liberdade.
Grace Chamberlain me vê chegando do seu lugar no sofá e
arregala os olhos. Por um instante, penso que vai se debulhar em
lágrimas. Bastam dois neurônios interligados para concluir que viu
Hector ali, não a mim, e que aquilo a machuca. Ela e Emilly seguem
tentando falar com o meu irmão, mas ele se limita a responder em
monossílabos. Estavam cogitando a contratação de um detetive
quando ele decidiu confirmar que está bem, só não deseja
conversar.
Enquanto isso eu fico ali, feito um palhaço, fazendo o seu
trabalho.
— Você está lindo — diz Grace, me puxando para um abraço. —
Obrigada, meu filho. Por estar fazendo isso pelo Peter.
— Eu estou fazendo por você, mãe — murmuro. Ela se afasta e
me encara.
— Assim que você conhecer o Peter, verá que está fazendo por
ele.
Paulina, vinda da cozinha, assente. Emilly me olha com a sua
melhor cara de “Eu não te disse?”. Esse Peter deve ser mesmo um
encanto para todo mundo estar puxando o saco dele.
— Acho que chegou a hora de ir embora. — Elas assentem. —
Mais alguma recomendação?
— Não teste a paciência da Alicia. Ela está sensível — pede
Grace.
Assim fica difícil, mamãe. Minha única diversão seria testar a
paciência dela.
— Tente não dormir com ela — recomenda Emilly, indiferente ao
olhar enviesado da nossa mãe.
— Você pode ter certeza de uma coisa, irmã: a última coisa que
passa pela minha cabeça é dormir com a minha cunhada.
A imagem da ruiva com o meu pau na boca brota com tudo na
cabeça. Estou tendo aquela alucinação apenas por conta dessa
coincidência capilar quando me dou conta de um detalhe
importante: a menos que dê algumas escapadinhas, passarei os
próximos dias sem sexo. Solto um gemido frustrado e me despeço
de todo mundo. Emilly me acompanha até o elevador e observa,
atenta, enquanto entro na caixa metálica, conferindo que não vou
fugir.
— Tchau, Hector — diz, assim que as portas começam a se
fechar. Tenho tempo de erguer a mão e exibir o dedo do meio. Ela
gargalha alto, fazendo com que parte da sua risada desça comigo
até o térreo.
James me espera ao lado do sedã. O olhar denuncia como está
surpreso em me ver, mas os anos como motorista ensinaram o
homem a ser discreto. Com um contido “Bom dia. Sr. Chamberlain”,
James pega a bolsa de viagem que carrego em mãos e a coloca no
porta-malas enquanto me sento no banco de trás.
Em poucos instantes as ruas movimentadas de Manhattan ficam
para trás, dando lugar ao ar bucólico do subúrbio próximo a grande
cidade. Eu, Henry Chamberlain, cosmopolita clássico, indo passar
algumas semanas em um subúrbio. Basta olhar para as casas bem
cuidadas, com seus gramados impecáveis, para saber que vou
morrer de tédio.
A menos que… eu me esforce para agitar as coisas. Não sei
quanto ao menino, mas bastaram quinze minutos em companhia da
sua mãe para perceber que Alicia pode se mostrar uma companhia
divertida se for atiçada o suficiente. Talvez a mulher fique um pouco
mais alegrinha se descontar sua frustração em um terceiro, pois eu,
com certeza, vou me divertir em provocá-la.
Fico um pouco mais animado. O GPS no painel do carro de luxo
apita, avisando para o motorista virar na próxima esquerda.
Acompanho o movimento pela janela, encarando as casas que
denotam sucesso familiar e financeiro. A neve fraca da noite anterior
já derreteu e os gramados tentam reluzir em um verde escuro
pálido.
James enfim estaciona diante de uma casa cinza de dois
andares. Com tanta cor bonita para se pintar uma casa, por que
alguém pintaria de cinza? Ignoro esse fato e observo a fachada
bem-organizada da residência do meu irmão enquanto desço. Não
há um brinquedo à vista, ao contrário da casa ao lado, em que um
império de bonecos se espalha por toda a extensão do gramado. As
cortinas cerradas não dão qualquer pista do que irei encontrar no
interior. Estremeço. O local é tão gélido quanto o inverno.
O motorista se adianta para pegar minha bolsa enquanto observo
tudo. O baque da tampa do porta-malas na lataria faz com que uma
das cortinas estremeça e uma cabecinha ruiva apareça, dando
alguma cor à casa, mas mal tenho tempo de ver o menino. Tão
rápido quanto surgiu, o meu sobrinho desaparece.
Filho! Pelos próximos dias, ele é seu filho! Preciso lembrar disso
para não cometer nenhuma gafe quando um pensamento cruza o
meu cérebro: e se Peter não me aceitar? Todas disseram que
aceitariam, mas o pouco contato que tive com crianças serviu para
mostrar que elas são muito mais sagazes do que se permitem
mostrar. Bom, não tenho nada a ver com isso. Se der errado, vou
embora e as mulheres que lidem com ele.
A porta da frente se abre. Pronto, é agora! Pela primeira vez, me
vejo cara a cara com o meu sobrinho/filho de mentira. Ele arregala
os olhos e por um curto instante penso que percebeu a farsa, até
que solta um estridente grito de alegria. É o que basta para que
qualquer pensamento contra a ideia voe para longe.
— Papai! — Antes que eu possa registrar qualquer coisa além de
um rastro avermelhado correndo em minha direção, Peter pula
contra mim. O baque é tão forte que dou um passo para trás, grato
pelo motorista ainda estar segurando a bolsa. O menino agarra o
tecido do casaco e olha para cima, o azul celeste herdado da avó
cintilando por me ver. — Você voltou mesmo, papai!
Meu coração se contorce em angústia. Meu Deus, estou
enganando uma criança inocente! Ainda sem dizer nada, encaro o
rostinho feliz a me olhar com a mais completa devoção. Acho que
bastaria metade daquilo para os deuses antigos se sentirem
adorados. Ninguém nunca me olhou com tanto amor e, já que eu
entrei nessa, acho que só me resta retribuir, ainda que não saiba
bem como fazer isso.
Abaixo-me até a altura do menino e lhe dou o meu melhor
sorriso. É o que basta para que ele me abrace. Sinto o seu
coraçãozinho batendo de encontro ao meu, rápido como o de um
colibri, e por um instante temo que vá passar mal. Meio sem jeito,
envolvo o seu corpo com os braços e a angústia se transforma em
uma sensação misteriosa e ainda sem nome, mas boa. Muito boa.
— Voltei — digo, enfim. Seu cabelo com cheiro de tutti frutti faz
cócegas contra o meu queixo quando ele se afasta.
Agora, sim, consigo observá-lo de perto. É um menino bonito. Os
cabelos ruivos escuros, iguais aos da mãe, fazem um contraste
impressionante com sua pele clara e olhos azuis. Algumas poucas
sardas cobrem o topo das bochechas, lhe conferindo um charme
todo particular. Há algo em seu olhar simpático que me faz gostar
dele instantaneamente.
E, se antes eu não estava dando bola para o comportamento do
meu irmão, agora me preocupo. Só um louco deixaria de passar o
Natal com um filho daqueles te esperando em casa. Algo aconteceu,
e fico curioso para saber o que.
Não tenho muito tempo para pensar nisso. Peter está eufórico
demais para ficar parado e começa a pular no mesmo lugar, me
abraçando e me soltando vezes sem conta, como se precisasse
conferir se sou real. Rio para ele, achando graça, e é o combustível
que o menino precisa para falar sem parar. Meu cérebro tenta
acompanhar, mas é impossível. São muitos assuntos misturados
com desenhos que nunca assisti e brincadeiras que não sabia que
existiam. Precisarei ter uma conversa séria com Alicia para ficar a
par de tudo se quisermos que o plano dê certo
A própria nos observa do alpendre da casa de braços cruzados.
Tudo em seu corpo grita tensão. Ergo uma sobrancelha, deixando
claro que passei no primeiro teste, enquanto recebo a bolsa de
James. Ele acena com a cabeça, em um silencioso desejo de boa
sorte, antes de se afastar e voltar para o carro. Observamos o
motorista se distanciar e, só então, Peter parece se dar conta que a
mãe nos observa.
— O papai voltou! — anuncia, em alto e bom som. Alicia sorri
meio de lado.
— Estou vendo.
Começo a caminhar em direção a ela, com Peter ainda agarrado
em meu casaco, dizendo “O papai voltou, o papai voltou!” sem
parar. Estou a um passo da mulher quando a encaro. Não é para
menos que o menino seja bonito. Com a genética daquela mulher
misturada com a da minha família, seria impossível nascer uma
criança feia.
Alicia tira uma mecha ruiva da frente dos olhos e me encara de
volta, ainda sob o coro animado da tagarelice do filho. Há uma certa
fragilidade nela, mas algo em sua postura denuncia que há muita
força também, e que está pronta para o que der e vier. Ergue o
queixo, como se para confirmar, e sorrio sacana. Aquilo tem tudo
para ser divertido.
— Alicia? Ouvi gritos, está tudo bem? — Alguém pergunta. Pela
direção do som, a pessoa está do outro lado das cercas brancas, na
casa cheia de brinquedos no gramado. — Hector! Você voltou!
O rosto já pálido de Alicia fica branco como uma folha de papel
enquanto todo o meu corpo tensiona. Puta que pariu, ninguém
pensou nos vizinhos! O que eu faço agora? Ou melhor, o que Hector
faria agora? É Peter quem acaba nos salvando.
— Tia Judy, meu pai voltou! — repete, como um mantra.
Ouço-a rindo, deliciada, antes de me virar. Uma mulher baixinha
e gordinha me observa cheia de curiosidade. Armo um sorriso e,
ligado no piloto automático, passo uma mão pela cintura de Alicia e
a puxo para mim. A minha esposa de mentira solta um humpf
indignado.
— Voltei — planto um beijo estalado na bochecha de Alicia. A
pele volta a tomar cor, vermelha idêntica a um tomate — Estava
morrendo de saudades da minha mulher e do meu filho!
Judy pisca, o semblante confuso e, pela forma como nos encara,
aquilo não é algo que Hector faria. Um fio gelado de medo corre
pela espinha. Alicia toma a dianteira e se agarra mais a mim.
Mantenho o sorriso, tentando ignorar o seu corpo quente e esguio
junto ao meu.
— Todos nós estávamos morrendo de saudades — diz, o olhar
sanguinário provando o contrário. Alargo o sorriso e a vizinha
assente, aprovando a nossa farsa.
— Vou avisar ao Mark que você voltou — comenta. — Depois,
vamos marcar um jantar.
Alicia enrijece ao meu lado. É claro que não vou perder a
oportunidade.
— Vamos sim! — enfatizo. Judy acena um adeusinho e volta para
dentro de casa. Basta que sua porta bata para que Alicia me
empurre para longe.
— Nós precisamos conversar — declara, entredentes, com Peter
ainda repetindo o seu O papai voltou!
Bom, pelo menos ele está feliz em me ver, e é isso que importa.
Pela cara de Alicia, a conversa vai ser longa. Bem longa.
Sinceramente? Não estou a fim de escutar. Bastam as
preocupações eminentes já que, pelo visto, além de ser um pai
exemplar, também precisarei ser um bom vizinho. Pensando bem,
quem precisa ter uma conversa com Alicia sou eu!
Mas não há tempo de pensar naquilo agora. Não com um menino
eufórico de quatro anos me puxando para dentro de casa. Olho ao
redor e confirmo que meu irmão quis seguir a cartilha da vida
suburbana por completo. Sala de estar, sala de jantar, cozinha com
ilha central, tudo no melhor estilo de conceito aberto, com móveis
que fariam inveja a qualquer revista de decoração e
eletroeletrônicos de última geração. Pelo menos terei uma TV
gigantesca para assistir as partidas de hóquei antes do hiato de
Natal.
Apesar do ar antisséptico, a casa é também aconchegante. Uma
organizada pilha de lenha aguarda na lareira, porta retratos da
família reunida enfeitam um dos aparadores e almofadas
bagunçadas no sofá denunciam que ali há uma criança pequena
que gosta de brincar. É ela quem adia a conversa entre os adultos.
Mal tenho tempo de tirar o casaco e Peter está me puxando.
— Vem ver meus brinquedos novos, papai — diz, com um sorriso
de orelha a orelha. Sério, o cara precisa ter uma pedra de gelo no
lugar do coração para não sorrir de volta.
— Claro! — Tomo a dianteira e caminho até a escada, até me dar
conta de que não sei onde é o quarto de Peter.
O menino aguarda, esperando que eu suba na sua frente, mas
não sei o que fazer. Alicia percebe. Por um instante, um instantinho
só, temo que ela vai deixar eu me ferrar. Cheia de má vontade,
movimenta os lábios em um “segunda porta à esquerda” silencioso.
Assinto em agradecimento e subo com Peter em meus calcanhares.
Com um floreio, abro a porta destacada e dou de cara com um
banheiro. O menino franze o cenho, mais confuso do que eu. Oh,
caralho! Devo ter entendido errado! Talvez fosse à esquerda para
quem desce, não para quem sobe. Ah, sei lá! Estou pensando em
como remediar a situação quando Peter cai na gargalhada.
— A porta do meu quarto é aquela — aponta para a porta ao
lado. — Você se esqueceu, papai?
— Passei tanto tempo longe que acho que sim. — Para disfarçar,
bagunço o seu cabelo macio. Ele ri de novo e agarra a minha mão,
me obrigando a segui-lo.
Assim que entro no quarto do meu sobrinho, sou levado a uma
mistura muito louca de espaço naves do Star Wars e super-heróis
da Marvel. Filho, Henry! Por enquanto, ele é seu filho!, meu cérebro
grita em alerta, ciente de que posso cometer uma gafe a qualquer
momento.
Peter começa a puxar bonecos e mais bonecos das prateleiras.
Pelo visto, ele é fã do Capitão América, pois os bonecos dele são
maioria entre Thors, Luke Skywalkers e Chewbaccas. Não há a
menor sombra do Tony Stark ali. Balanço a cabeça. É claro que o
chato do meu irmão o ensinaria a gostar apenas dos heróis
certinhos. Preciso remediar a situação comprando qualquer coisa do
Homem de Ferro para ele. Ou, melhor, do Homem-Aranha! Como
que um menino que se chama Peter e coleciona bonecos de super-
heróis não tem um Peter Parker?
— A vovó me deu esses três— ergue os braços, cada mãozinha
segurando um Capitão América. Antes de pegar os bonecos para
ver, eu me sento no chão acarpetado. Seguro o terceiro deles. É um
colecionável bonito, daqueles da mais alta qualidade. Minha mãe
deve ter pagado caro.
— E você fez aniversário três vezes para a sua vó te dar tantos
presentes? — brinco. Ao invés de rir e entrar na brincadeira, Peter
encolhe os ombros.
— Ela me deu porque eu estava triste — diz, baixinho, sem me
encarar. Ele não precisa dizer o motivo. Se o meu coração continuar
se apertando daquela maneira, até o final do dia precisarei procurar
um cardiologista.
— Ei, estou aqui agora.
Peter sorri e volta a dar os seus pulinhos.
— E vai ficar para sempre, não vai papai?
Ai meu Deus, o que eu respondo? Ouço um barulho as costas e
olho por sobre o ombro. Alicia nos observa, encostada no batente
da porta aberta, atenta para o que vou responder. Sinto muito, meu
bem. Você que se entenda com o seu marido depois. Agora, eu só
tenho uma resposta para dar.
— Vou sim.
De um salto, Peter se joga no meu colo e abraça o meu pescoço,
mas dessa vez não dá margem para eu abraçá-lo de volta. Logo se
separa e volta aos bonecos.
— Vamos brincar? — pede, pegando todos eles no colo. Assinto,
a contragosto, olhando em volta. Há anos não seguro um boneco.
Vamos nos entender melhor se ele tiver um Xbox ou um Playstation.
— Onde está o seu videogame?
Ouço Alicia soltando um gemido de desespero enquanto o seu
filho me lança um novo olhar confuso.
— O papai está cansado da viagem, filho — diz Alicia, tomando a
dianteira da situação. — E se esqueceu de que você é novo demais
para ganhar um videogame — acrescenta, me lançando um intenso
olhar de alerta. Devolvo do mesmo modo. Fui instruído a ser o pai
falso do moleque, não um adivinho. — Talvez seja melhor que vocês
brinquem mais tarde.
Concordo. Preciso saber mais sobre ele, ela e a rotina da casa se
quiser fazer o meu trabalho direito. Mas Peter me encara daquele
jeito pidão que só as crianças são capazes de fazer, os olhos azuis
marejados cheios de expectativa, implorando para que fique ali com
ele. É impossível resistir.
— Acho que podemos brincar só um pouquinho — olho para
Alicia em busca de compreensão. Seu descontentamento é nítido,
mas ela também se rende. — Depois, preciso conversar em
particular com a sua mãe, tudo bem?
— Tudo — pula Peter, o sorriso de volta ao rosto. — Qual boneco
você quer?
— O Darth Vader.
Ele arregala os olhos e nega com a cabeça, fazendo não, não e
não repetidas vezes.
— Não tenho ele, papai. Ele é do mal — encolhe-se, como se o
Darth Vader pudesse se materializar ali no quarto. — Tenho medo
de que ele apareça à noite.
Solto um longo suspiro. Eu e Alicia realmente teremos muito o
que conversar.
— Então eu vou ser o Chewbacca — pego o homenzarrão peludo
em mãos. Nem fodendo que vou ser o Capitão América. Volto a me
virar para Alicia e pergunto, provocador — Quer brincar com a
gente?
— Sim, mamãe. Brinca com a gente — pede Peter. A mãe sorri
para o filho.
— Vou deixar que mate a saudade do seu pai. — Para mim, o
seu rosto retorna fechado. — Te espero para conversarmos daqui
uma hora na cozinha.
— Pode deixar — retruco. Alicia se desencosta do batente e, de
queixo erguido, se afasta em direção ao andar debaixo. Volto minha
atenção ao meu filho de mentira — Quer brincar como?
Um sorriso malévolo se abre nos lábios de Peter.
— De lutinha!
Há muito o céu está escuro. Alicia, cansada de esperar, subiu
duas vezes com copos de sucos e travessas de sanduíches.
Primeiro, na hora do almoço, pegando o filho montado nas minhas
costas enquanto eu me arrastava de quatro pelo quarto, relinchando
igual a um cavalo. Ela encarou a cena de olhos arregalados, mas
não disse nada. Seus lábios tremeram de raiva quando perguntei se
ela queria brincar de cavalinho também. Não sabia que alguém
poderia mandar a outra ir tomar no orifício onde não bate sol com o
poder de um olhar até Alicia me encarar daquela maneira.
Depois, retornou durante o café da tarde. Ainda estava resistindo,
mas a exaustão ameaçava me dominar enquanto o moleque seguia
ligado na tomada. Voltamos aos bonecos, que se batiam uns contra
os outros durante uma elaborada trama de vingança.
Eu já havia me desligado há algum tempo, mas pelo que
consegui acompanhar, um dos Capitães América roubou a
namorada do outro Capitão América e cabia ao Han Solo investigar
aquela porra. Com o que sobrava da minha energia, o Chewbacca
estava ali só para grunhir e resmungar. A gravata foi embora há
eras, transformada em camisa de força improvisada do terceiro
Capitão América. Eu me sentiria mais confortável se pudesse abrir
os botões da camisa social e arregaçar as mangas, mas cometi
gafes o suficiente para um dia só. Por sorte a euforia de Peter
encobriu a maior parte delas.
— Filho? — chama Alicia, abençoada seja. — Chega por hoje.
Está quase na hora do jantar.
— Ahhh. — Peter choraminga, olhando para mim. — Vamos
brincar só mais um pouquinho.
É a minha vez de fazer a maior cara de cãozinho desamparado.
— Estou cansado — digo, meio sentado, meio deitado no
carpete. Pouso o boneco no chão e me ajeito. — Amanhã
brincamos mais. — Ele ameaça abrir o berreiro, então mudo de
tática — Você não quer ficar forte igual a um super-herói? Então
precisa jantar.
— E tomar banho — acrescenta sua mãe. — Aposto que todos
esses super-heróis são cheirosos.
Tenho minhas dúvidas em relação ao Chewbacca. Peter me
encara, buscando uma saída, mas não lhe dou nenhuma. Apenas
para confirmar ele solta a pergunta:
— Promete que vamos brincar mais amanhã?
— Prometo — respondo, me erguendo do chão. Espero que
Alicia tenha algum tipo de analgésico em casa. Será difícil brincar de
qualquer coisa com as costas doendo daquele jeito. — Agora seja
um menino bonzinho e obedeça a sua mãe.
Peter assente e vai para junto de Alicia, que o encoraja a seguir
para o banheiro. Aproveito para dar uma espiada na casa enquanto
dá banho no menino.
A primeira porta que abro me leva a um escritório pequeno, com
uma mesa simples e uma cadeira estilo presidente com aspecto
confortável. A segunda, ao quarto de hóspedes mais insípido que
tive o desprazer de visitar. Apenas uma cama com um lençol branco
e uma mesinha de cabeceira em um espaço quadrado e sem graça.
Parabéns, se o meu irmão queria que os hóspedes não se
sentissem em casa, ele conseguiu.
Só então reparo em um amontoado preto que destoa do
ambiente: a minha bolsa. Rio comigo mesmo. Alicia está muito
enganada se acha que vou dormir sozinho naquele projeto de
quarto de hospital. Passo a alça por sobre o ombro e continuo a
fuçar.
O último quarto é a suíte principal e ali Hector caprichou. A cama
king size cheia de travesseiros e coberta com um grosso edredom é
convidativa. Jogo a bolsa de qualquer jeito em cima da cama e dou
uma olhada no closet. Ignoro os ternos e as camisas, mas cresço o
olho em um bonito casaco azul marinho. Já que preciso fingir ser
ele, vou usar as roupas dele também.
Não há muito a se ver no andar debaixo além da sala de estar,
sala de jantar e da cozinha. Batatas borbulham em uma panela
enquanto cenouras e brócolis são cozidos no vapor. Um agradável
aroma de carne assada perfuma a cozinha, fazendo o meu
estômago roncar. Os sanduíches estavam ótimos, mas Peter
realmente consumiu a minha energia.
Sentindo-me em casa, abro a geladeira e dou de cara com uma
garrafa de vinho tinto. Procuro uma taça nos armários e me sirvo,
encostando a bunda na ilha central ao sorver a bebida fermentada.
Por cima da taça vejo Alicia se aproximando. Só para variar, sua
cara não é das melhores.
— Quem te deu autorização para prometer um videogame ao
Peter?
— Uma vez que vou comprar com o meu dinheiro, não pensei
que precisasse de autorização — bebo um gole do vinho e a mulher
se inflama.
— O Hector não queria que ele tivesse um videogame. — Ela
olha por cima do ombro, mas Peter pelo visto ficou no andar de
cima.
— Uma pena o Hector não estar aqui — ironizo, mas me
arrependo quando Alicia dá um passo para trás, os olhos feridos
ameaçando se encher de lágrimas. — Ei, eu…
— Nós precisamos conversar — interrompe, voltando sua
atenção para as panelas. Com a ajuda de um garfo, fura uma das
batatas, afundando a ponta até o punho do talher. Desliga o fogo e
foca nos legumes ao vapor. — Devíamos ter feito isso antes mesmo
de você chegar.
Reviro os olhos, cansado daquela repetição.
— Devíamos, mas não fizemos. Por que você não toma uma taça
desse ótimo vinho comprado pelo seu marido? Você precisa relaxar,
Alicia.
— Pare! — pede, me encarando. — Pare de citar o Hector! Já
está sendo difícil olhar para você, não preciso me lembrar dele a
cada cinco minutos!
Assinto, sem dizer nada. Alicia sustenta o meu olhar e pega a
garrafa de vinho. Ao invés de se servir em uma taça, vira o gargalo
goela abaixo. O cabernet sauvignon desaparece em três grandes
goladas. Com um baque seco, devolve a garrafa à bancada, cheia
de desafio. Meus lábios abertos de surpresa se transformam em um
sorriso sarcástico.
— Posso servir de apoio caso já esteja frequentando o AA.
Alicia me mostra o dedo do meio e o meu sorriso aumenta.
— Não te dei a mínima liberdade para fazer brincadeiras comigo,
Henry — rosna. — Eu nem ao menos gosto de você!
— Assim você me machuca — retruco, levando a mão livre ao
peito em um gesto teatral. — E, já que tocamos no assunto, você
está longe do meu Top 10 de pessoas favoritas.
— Ótimo! — vira-se de costas e se abaixa, em busca de algo nos
armários, e meus olhos são atraídos de forma automática para o
contorno da sua bunda redonda. Ao se erguer com um escorredor
de aço inox em mãos, o rosto vermelho de raiva denuncia saber
exatamente para onde eu estava olhando. — A propósito, fui eu
quem comprei esse vinho.
— Parabéns pelo bom gosto.
E pela bunda linda.
Alicia coloca o escorredor dentro da pia e, sem tirar os olhos dos
meus, despeja as batatas dentro, fazendo com que uma leve nuvem
de vapor se espalhe pela cozinha. Ela queria derrubar a água
quente sobre a minha cabeça? Com toda a certeza. Penso sobre
aquilo quando o estridente toque da campainha soa pela casa.
Aumento o meu sorriso e me adianto para atender, sem dar a
mínima chance de Alicia me impedir.
Abro a porta e dou de cara com um urso em forma de gente.
— Ei, Hector! A Judy me disse que você voltou. — O homem diz
com o seu vozeirão, um sorrisão de orelha a orelha estampado no
rosto. Forço o meu melhor sorriso, já arrependido da peripécia. —
Como você está?
Ele estende a mão em um cumprimento. Meus dedos são
esmagados ao aceitá-la. Respondo cheio de animação.
— Estou bem, cara! E você?
Ele franze o cenho. O que eu disse de errado nessas cinco
míseras palavras? Foda-se. O que me importa é descobrir o nome
dele antes que a conversa chegue ao constrangedor nível em que
ele será necessário. Forço a mente, mas tenho certeza de que
ninguém mencionou o nome do vizinho ao longo daquele dia.
— Bem, também. Há tempos quero te agradecer por aquela
indicação de investimento. Você viu a valorização das aplicações?
— Vi, vi sim. Aplicações ótimas — confirmo, sem ter ideia do que
ele está falando. — E as ações, então? Maravilhosas!
O franzir de cenho se torna mais pronunciado.
— Você comprou as ações? Do que me lembro, disse que não
investiria nelas por serem arriscadas demais para o seu perfil.
Balbucio feito um peixe. Eu tenho ações, mas é lógico que elas
seriam arriscadas demais para Hector. Ainda estou pensando no
que responder quando passos ligeiros descem as escadas.
— Tio Mark! Você viu? O papai voltou — comemora com os seus
pulinhos ao chegar ao meu lado.
— Estou vendo. — Mark me encara, cheio de suspeita, se pela
minha farsa ou pelas ações, eu não sei dizer. Um silêncio
constrangedor se instala, mas ele logo trata de quebrá-lo. — Bom,
só vim mesmo dar um oi. A Judy está louca para marcar um jantar
de boas-vindas.
— Claro, será ótimo — sorrio, tentando ser o bom vizinho que
meu irmão deveria ser. Lembro que haverá jogo no final de semana.
Não lembro se de futebol americano ou de hóquei, mas pouco
importa. — Também podemos nos sentar para tomar umas cervejas
e ver a partida de sábado.
Mark pisca, sem entender, e antes mesmo que ele diga qualquer
coisa, sei que fiz uma grande merda. Abro a boca para tentar
remediar, mas sou interrompido por uma gargalhada que mais
parece um estrondoso rugido.
— Cerveja e jogo? — ri mais um pouco, dando um tapa no meu
ombro que mais parece uma patada de urso — O que os ingleses
fizeram com você?
— Ah, você sabe, né? Muitos pubs. Íamos para pubs todo final de
tarde — me esforço para rir de volta. Mark assente, soando
compreensivo.
— Nesse final de semana não posso porque a patroa quer visitar
a mãe — diz, com certo pesar. — Mas podemos marcar outro dia.
— Claro, claro. E não se esqueça do jantar — acrescento.
Mark confirma com a cabeça e, com uma última patada, se
despede de mim. Bagunça os cabelos de Peter e retorna à casa
vizinha. Fecho a porta, atordoado, e dou de cara com Alicia me
observando da cozinha com ar superior. Nós realmente precisamos
ter aquela conversa.
Henry só parece ter percebido o tamanho da sua
responsabilidade depois que o vizinho se foi. Peter é jovem, ingênuo
e ávido demais pela companhia paterna para notar qualquer
diferença, mas Mark notou. E se Mark notou, Judy também notará.
Os dois fariam comentários e só Deus sabe o que poderá acontecer
a partir daí.
Apenas até o Natal, apenas até o Natal, repeti para mim mesma
durante o jantar enquanto observava um calado Henry fingindo se
interessar pela incessante tagarelice do sobrinho. Ou talvez ele
realmente estivesse ouvindo? Não sei, mas sei que ele pareceu
sincero durante a maior parte do dia, ao brincar com Peter. Ter
encontrado os dois brincando de cavalinho foi o auge. Hector tinha a
maior boa vontade em agradar o filho, mas ficar se arrastando no
chão feito um bicho, sujando a caríssima calça de um terno fino,
com um menino de quinze quilos nas costas? Jamais.
Henry sorri para alguma coisa que Peter diz. O homem está
cansado, mas é incrível o quanto o menino ainda tem energia. E é a
alegria dele que me faz perceber que, aconteça o que acontecer, eu
e Henry precisaremos fazer aquilo dar certo. Apenas esse
pensamento impediu que eu gritasse a plenos pulmões, puxasse
todos os fios de cabelo e saísse correndo pela rua, completamente
enlouquecida durante todo o dia.
O meu filho pode estar se deliciando com a presença do tio, mas
eu não. Era o meu marido que eu queria sentado ali. Meu misterioso
Hector, com seu olhar intenso, sua voz um tom mais rouco e o
sorriso bonito no rosto sério. Depois de tantos meses fora, talvez
sua presença fosse tão esquisita quanto, mas aposto que não. Eu o
receberia com a mesma euforia que meu filho recebeu o tio.
É ele quem pego me olhando do outro lado da mesa de jantar, os
olhos azuis brilhantes como se fossem capazes de ler a minha alma.
Falho ao tentar encarar de volta. O toque livre e selvagem no
semblante de Henry é tão diferente da austeridade do meu marido
que sou incapaz de lidar.
Mas um poço, profundo e esquecido, se remexe dentro do meu
corpo, trazendo um borbulhante calor para o meu baixo ventre. O
sorriso de Henry agora é dirigido a mim, torto, sacana e cheio de
promessas, bem diferente do dado há poucos instantes ao meu
filho. Fecho a cara e desvio os olhos. Sei que ele só quer me
provocar, mas não vou admitir. Não debaixo do meu teto.
Peter raspa o prato. Sua bateria enfim dá sinais de que está
descarregando quando começa a bocejar, o alerta máximo de que
chegou a hora de escovar os dentes e dormir.
— Vamos subir, filho? — pergunto. O menino confirma, mas olha
para o pai.
Uma pequena pontada de ciúmes cutuca o meu peito. Depois de
seis meses de dedicação exclusiva, não está sendo legal ser
colocada para escanteio dessa maneira. Henry me encara e assinto
de má vontade. Sonolento ou não, o menino será incapaz de dormir
se o pai não for junto.
Henry se levanta e, por um instante, penso que Peter vai pedir
colo. Mas não pede. Dá um pulinho para fora da cadeira e segura a
mão do pai. Ele parece desconcertado, mas deixa-se guiar. Só na
porta do banheiro o pequeno traidor se dá conta de que estou ali.
Sem fazer nenhuma manha, escova os dentes como ensinei e vai
para o quarto.
— Boa noite, mamãe — diz, me puxando para um abraço
gostoso antes de se deitar. Devolvo o carinho e planto um beijo
estalado na sua bochecha macia.
— Boa noite — desejo, bem baixinho. Peter devolve o beijo e
olha para o pai.
Henry me encara, os olhos perguntando qual é o próximo passo.
Limito-me a erguer uma sobrancelha. Ele viu o que precisa fazer,
mas, por algum motivo, aquilo o assusta. Dou espaço para que se
debruce sobre o menino e plante um beijo mixuruca no topo da sua
cabeça. Peter pisca, sonolento e visivelmente grato. Faço um sinal e
Henry, desajeitado, puxa as cobertas sobre o queixo da criança.
— Quer que eu conte uma história? — pergunta, inseguro.
Peter faz que não, já dominado pelo sono. Em instantes sua
respiração se tranquiliza e pronto, está dormindo como um anjo.
Henry solta um suspiro cansado e caminha para fora. Sigo-o,
curiosa.
— Qual história você iria contar?
— Eu não faço ideia — confessa, dando de ombros. — Mas
inventaria alguma coisa na hora.
— Espero que sem monstros ou zumbis.
Henry balança a cabeça, desaprovador.
— Falta emoção na vida dessa criança.
— Não falta nada — retruco. Ainda mais agora. Meu cunhado
parece pensar o mesmo que eu, mas não tece comentários.
Ficamos ali, parados no meio do corredor em um silêncio esquisito.
Engulo o meu orgulho e o encaro — Até que você se saiu bem.
— Obrigado — diz, simplesmente. — Acho que vou tomar banho
e dormir também.
— Ah sim, claro. Deixei uma toalha pendurada no suporte ao lado
do espelho — aponto o banheiro do corredor com o queixo. — Vou
descer para arrumar a cozinha e já subo.
— Ok.
— Ok — digo de volta. Dou-lhe as costas e volto para o andar
debaixo.
Em poucos minutos coloco os pratos, copos e talheres na lava-
louças e deixo que ela faça o seu trabalho. Posso ter passado a
maior parte do dia sentada sozinha na cozinha, mas o estresse
emocional cobra o seu preço. Estou exausta. Tudo o que desejo é
tomar um longo banho quentinho, deitar a cabeça no travesseiro e
ter uma boa noite de sono.
Subo as escadas devagar. Pelo silêncio que se espalha pelo
corredor, Henry já saiu do chuveiro. Olho em direção ao quarto de
hóspedes, mas nenhuma luz vaza pelo vão inferior da porta. Sei que
o quarto não é o mais aconchegante do mundo, mas acredito que vá
ficar confortável ali. A ideia inicial era montar um ambiente para
receber Grace ou Emilly, mas a curta distância entre Manhattan e
Greenville fez com que as duas sempre preferissem voltar para casa
após uma visita. Jamais recebemos um só hóspede, então eu e
Hector nunca vimos sentido em melhorar o quarto além do básico.
Solto um longo bocejo e abro a porta do meu próprio quarto.
Franzo o cenho para a luz acesa. Estava tão nervosa de manhã que
devo ter esquecido ligada. Sem dar mais atenção àquilo, caminho
até o closet e pego o meu pijama. Só me dou conta que alguma
coisa está errada quando me viro de volta ao quarto e vejo um
homem saindo pelado do banheiro da suíte.
Abro a boca, mas o grito fica preso na garganta. O poço, vazio e
sem graça no interior do meu corpo, ganha vida e borbulha diante
da visão de Henry nu como veio ao mundo. Ou, melhor, como se
desenvolveu após ter vindo a ele.
Não há dobrinhas rechonchudas em nenhuma parte do corpo do
irmão do meu marido. No lugar, músculos definidos tomam conta do
peitoral largo, dos braços fortes e do abdômen trincado em
gominhos perfeitos. Algumas gotas de água escorrem pelas
tatuagens que cobrem metade do peito e um braço inteiro, do ombro
ao pulso. Meus olhos não resistem a descer um pouco mais, em
direção ao que há no meio das suas coxas grossas, e tinha que ser
justo nesse momento que o homem me pega no flagra. Ao invés de
se assustar, Henry leva as mãos à cintura e faz pose.
— Eu e meu irmão somos realmente idênticos? — questiona,
lançando um olhar avaliativo ao avantajado membro que tem entre
as pernas enquanto sorri daquele jeito sacana. Finalmente acordo
do meu estupor.
— O que você está fazendo no meu quarto?
— Você não respondeu a minha pergunta.
— Foda-se a sua pergunta! — digo, mais alto do que o
necessário, antes de lembrar que meu filho dorme a poucas portas
de distância. — O que está fazendo aqui?
Henry me olha como se a resposta fosse óbvia.
— Me preparando para dormir. O que mais eu estaria fazendo
aqui, Alicia?
O tom sugestivo. O sorriso largo. O olhar intenso cheio de
segundas intenções. Odeio a forma como aquilo me acende por
inteiro. Saudades do contato de Hector, sem sombra de dúvidas.
Porque, tirando a tatuagem, os dois são sim idênticos, mas jamais
vou deixar Henry saber daquilo.
— Sai daqui! — ordeno, apontando para a porta. — Eu deixei o
quarto de hóspedes arrumado para você!
Henry ergue uma sobrancelha e não se mexe, o corpanzil ainda
sem uma única peça de roupa pingando água no meio do meu
quarto.
— Sim, eu vi. Mas me recuso a dormir lá.
— Posso saber o porquê? Aspirei o carpete — começo a
enumerar nos dedos. — troquei os lençóis, deixei tudo limpinho para
você e…
— E continua parecendo um quarto de hospital — corta. — Não
quero dormir lá. Confesso que pensei no sofá, mas minhas costas
doem. — Sem pedir licença, senta-se com a bunda nua, bem
redonda diga-se de passagem, no meu edredom. — E esse colchão
parece muito confortável.
Meu corpo volta a esquentar, mas agora é de raiva.
— Podemos resolver o seu medo de escuro rapidinho. Peter tem
várias luzes noturnas, tenho certeza de que emprestará uma para
evitar uma desagradável visita do Bicho Papão. — Seu odioso
sorriso se alarga conforme desliza as costas de encontro à cama. —
Quanto ao colchão, podemos comprar um novo amanhã.
— Agradeço a atenção, mas vou ficar por aqui mesmo —
ronrona, provocador.
Chego ao meu limite. Dou-lhe as costas e entro no banheiro,
voltando com uma toalha molhada torcida em mãos. Sem pensar
duas vezes, desço a toalha com força contra a lateral do seu quadril,
mas Henry é rápido em rolar para o lado e desviar. Volta a se sentar
e me encara em choque.
— O que está fazendo? Ficou louca?
— Fiquei! Põe uma roupa e sai do meu quarto!
— Eu não vou dormir naquele quarto de hóspedes horroroso!
— Foda-se onde você vai dormir! — esbravejo. — Só sai do meu
quarto!
— Mamãe? Papai? — pergunta uma vozinha do outro lado da
porta. — Vocês estão brigando?
De um pulo, Henry sai da cama e corre para o banheiro. Jogo a
toalha molhada dentro do closet e me adianto para abrir a porta da
suíte. Peter me encara com olhos apavorados, os braços em volta
do travesseiro, agarrando-o com força. Ajoelho-me no chão e puxo o
meu filho para um abraço. Ele vem sem hesitar.
— Não estamos não — tento acalmá-lo. — Só estávamos
conversando.
Ele olha para cima, alguns fios de cabelo ruivo bagunçados
cobrem a testa. Já passou da hora de levá-lo no cabeleireiro, mas
Peter fica tão lindinho assim. Pisca os olhões azuis, cheio de medo.
— O papai não vai embora, vai?
— Não — tento soar simpática, o que exige o resto da minha
energia. — Ele vai ficar bem aqui.
Como se para confirmar, Henry sai do banheiro vestido com um
pijama de mangas compridas. Prefiro não pensar na hipótese de
que está sem cueca.
— Acordou? — pergunta o óbvio. — Se quiser, posso contar
aquela história.
Peter nega com a cabeça.
— Posso dormir com vocês? — mordo os lábios, pronta para
negar, mas ele insiste. — Só hoje, mamãe!
Não ligo que Peter durma comigo, mas Hector ligava. Ele sempre
disse para não encorajar aquele hábito.
— Peter, nós já conversamos. Você tem o seu quarto e…
— Pode sim! — corta Henry, enfiando-se no meio das cobertas.
Meu Deus, eu quero esganá-lo, mas não posso. Não com o meu
filho sendo testemunha. Este solta um grito de alegria, se joga no
colchão e engatinha até o tio, arrastando o travesseiro atrás de si.
Henry o ajuda a se acomodar ao seu lado. Encaram-me, esperando
que eu entre no meio das cobertas também, mas me limito a lançar
ao meu cunhado um olhar assassino e vou para o banheiro.
Precisarei acabar com toda a água quente da casa se eu quiser ter
a mínima chance de relaxar.

O quarto ainda está envolto em sombras quando acordo. Olho


para o lado e confirmo que Henry e Peter dormem tranquilos, o
homem adulto com a cara enfiada no meio do travesseiro e o
menino enroscado ao seu lado, cabelos caídos sobre os olhos. Eles
já estavam em sono profundo no momento em que sai do chuveiro.
Observo os dois. Apenas a presença de Peter não tornou a
experiência de dormir com Henry ainda mais desconfortável. Jamais
imaginei que precisaria dividir a cama com ele. Depois de meses
sozinha, é estranho acordar ao lado de um homem que não seja o
meu marido.
Parte da manga da camisa do pijama de Henry subiu, revelando
o intrincado desenho feito em tinta escura acima do seu pulso. Tento
desvendar as imagens, mas é difícil vendo apenas uma pequena
parte do todo. Nunca senti vontade de fazer uma tatuagem, mas
admiro o toque artístico de quem faz a pele de tela e usa uma
maquininha metálica no lugar do pincel.
Mesmo cheia de curiosidade, abaixo o tecido e ajusto o cobertor
sobre os seus ombros. Pelo visto, os dois ainda vão demorar para
acordar enquanto sei que não vou dormir de novo. Levanto-me,
visto um roupão quentinho e vou para a cozinha.
Puxo as cortinas, abro uma frestinha na janela e deixo que um
pouco do ar frio da manhã renove a casa. Coloco uma cápsula de
cappuccino na cafeteira e pego o meu material de desenho na
última gaveta do armário, a mais escondida, no canto, onde sei que
Peter não vai mexer. Tudo não passa de um simples bloco de papel
para aquarela, um conjunto de tinta em pastilhas, um copo de vidro
velho, um pincel e um estojo de lápis para desenho com diferentes
graduações. Ajeito tudo na ilha central da cozinha, pego a xícara de
café quentinho e me sento em uma das banquetas.
Naquele momento, deixo-me absorver pelo silêncio da casa e
começo a traçar linhas suaves no papel. Não penso na minha
separação. Não penso que, por conta da possibilidade da intrusão
de Peter, precisarei passar as próximas noites em companhia de
Henry. Também não penso em como será difícil depois do Natal,
quando o pai de mentira voltar a Londres e ficarmos de novo
sozinhos. Não penso em nada. Apenas traço linha depois de linha,
sem me preocupar nem ao menos com o que vou desenhar.
Aos poucos, a folha em branco ganha vida, primeiro de um jeito
monocromático, depois em cores. O cappuccino há muito se foi, e
resisto à tentação de colocar mais uma cápsula na máquina e fazer
uma nova xícara. Ao invés disso, troco a água suja do velho copo e
volto a me sentar. Devagar, pincelo os detalhes, sem me preocupar
em cobrir os traços a lápis. Aquela sempre foi uma característica
dos meus desenhos. Ao terminar, encaro um delicado retrato meio
rústico de Henry e Peter dormindo.
— Posso ver? — pede uma voz empolgada às minhas costas.
Sem me importar com a aquarela ainda molhada, fecho o bloco de
desenho. Henry solta uma indagação frustrada. — Ei, eu só queria
ver!
— Mas eu não quero que você veja — retruco, voltando a
guardar tudo na gaveta. Henry observa em silêncio e sei que, se
quiser, bastará pegar o bloco assim que eu der as costas. Estou tão
brava por ter sido flagrada em meu momento particular que pouco
me importo.
— Aposto que estava me desenhando.
O maldito sorriso aparece no seu rosto.
Meu primeiro impulso é o de mandá-lo à merda, mas não resisto
a provocar de volta. Devagar, aproximo o rosto do seu, perto o
suficiente para sentir o frescor mentolado de quem acabou de
escovar os dentes.
— E para que eu gastaria lápis, tinta, papel e energia para
desenhar você?
O homem me encara e cai na gargalhada. Arrependo-me no
mesmo instante. Aqueles dias serão longos, muito longos, e não
posso dar munição para Henry continuar me provocando.
É com certo pesar que vejo Alicia guardando o material de
desenho em uma gaveta semiescondida. Acho que, desde que a
conheço, nunca a vi tão tranquila quanto nesta manhã com a luz
banhando o seu corpo debruçado sobre um bloco de papel, pincel e
tinta em mãos, cenho concentrado, mas tranquilo. Ela
provavelmente ficaria ali por horas se eu não tivesse aparecido.
Rio diante da sua piada, parte de mim feliz por ela ter me
provocado. Só não respondo com um comentário picante pois ouço
os passos apressados de Peter descendo as escadas. Ele entra na
cozinha olhando para os lados, assustado, mas se tranquiliza ao
confirmar que estou ali.
A mãe o puxa para um beijo antes que venha até mim. Olho de
soslaio para Alicia e, com descrição, ela acena com a cabeça, me
encorajando a beijá-lo na testa também. Peter só falta explodir de
alegria. Ajudo-o a subir na banqueta enquanto a mãe prepara o seu
cereal. A forma admirada com a qual me olha, como se estivesse
diante do seu maior ídolo, me desconcerta. Estou acostumado a
receber olhares femininos cheios de segundas intenções, não o
carinhoso olhar de um menino que acha que sou o seu pai.
Peter começa a falar sobre um desenho animado do momento.
Escuto, tento lhe dar atenção, mas não faço a mínima ideia do que
esteja falando, na dúvida se ele mencionou aquele desenho ontem
ou não. Ele parece tentar aplacar seis meses de saudade em menos
de vinte e quatro horas. Aquilo me causa uma certa revolta. Há
quanto tempo Hector não fala com ele? Preciso perguntar para
Alicia.
Consigo entender a vontade de se separar da esposa, mas não a
de abandonar o filho. Olho para a mulher do outro lado da ilha de
mármore, mas ela abaixa os olhos tristes, como se pensasse o
mesmo que eu. Simplesmente não faz sentido.
Os devaneios são interrompidos pelo toque do meu celular em
algum lugar no andar de cima. De um salto, desço da banqueta,
faço bagunça no cabelo de Peter e corro para as escadas. As
pessoas costumam se comunicar comigo por mensagens de texto
que demoro para responder. A ligação só pode ser de Emilly ou de
um dos meus sócios.
Entro no quarto e vejo o objeto vibrando sobre a mesinha de
cabeceira do meu lado da cama, a foto de Emilly estampada no
visor. Deslizo o dedo pela tela e levo o aparelho ao ouvido.
— Já estava quase desistindo — resmunga. — Custa deixar o
celular no bolso?
— Bom dia para você também — cantarolo. Emilly resmunga
mais um pouco. — Credo, irmã. Você é muito nova para já estar
velha desse jeito.
— Vai se foder. E aí, como foi o seu primeiro dia?
— Foi ok — digo, tirando uma boxer limpa, uma camiseta e uma
calça de moletom do interior da minha bolsa de viagem. Depois vou
reservar um tempo para vasculhar o closet do meu irmão com mais
atenção. — O Peter é bem bonzinho — deixo escapar.
— Ele não é uma graça?
— É sim. — Aquilo me surpreende. Cheguei esperando um
demônio em forma de criança e acabei encontrando um anjinho.
— Aposto que ficou superfeliz em te ver e nem percebeu a
diferença.
— Não percebeu, não. Passamos a tarde toda brincando.
— Ahhh — suspira, toda derretida. — Mamãe vai ficar feliz em
saber que vocês se deram tão bem — faz uma pausa, sem saber
como continuar. — E a Alicia?
— Estamos nos acertando. — Ela aguarda do outro lado da linha,
mas é tudo o que digo. Sei que vai dar um sermão de meia hora se
eu admitir que me enfiei nos lençóis pertencentes ao meu irmão e,
sinceramente? Não estou a fim. O celular vibra, anunciando uma
segunda chamada. Afasto o aparelho do rosto. Essa sim é uma
chamada de um dos sócios. Problemas, na certa. — Emilly, preciso
desligar.
— O que você não está me contando, Henry?
— Tchau, irmãzinha! — desligo sob protestos e atendo a outra
ligação. — Fala Scott! Tudo bem por aí?
— Ah… não — diz, hesitante. — Desculpe atrapalhar as suas
férias, mas uma das hostess fez uma confusão danada com alguns
clientes. Eles estão postando mensagens iradas nas redes sociais
e, bem… sabemos como isso pode acabar com um negócio.
— Sabemos também que essa garota estava dando problema
desde o primeiro dia de trabalho — reclamo. Frustrada depois de
uma curta carreira de atriz em Los Angeles, era nítido que não
queria trabalhar em um bar em Santa Mônica. Sugeri que fosse
realocada para outra função, mas Scott insistiu. Bonita como é,
poderia atrair mais clientes e blá-blá-blá. — Deixe-me adivinhar,
algum figurão de Hollywood apareceu folgando por ali e a deixou
puta da vida?
Mesmo a quilômetros e quilômetros de distância escuto o meu
sócio engolindo em seco.
— Se fosse só isso estava bom, mas ela sabotou uma garrafa de
uísque — continua, cansado. Aposto que passou a noite em claro
tentando resolver aquilo — Pensou que o figurão fosse comprar a
garrafa inteira, mas pediu apenas uma dose. As demais foram
servidas aos mais diversos clientes e todos eles vão passar o dia no
banheiro.
Solto o ar com força.
— E você quer que eu faça o que? — resmungo feito um velho,
igual minha irmã. — Até onde sei, contratamos uma relações
públicas para lidar com esse tipo de problema.
— Então… ela também tomou do uísque — confessa. — Só
sobrou você, Henry. Por favor, tente amenizar a situação. Você é
bom nisso.
Odeio, odeio e odeio trabalho burocrático! Sou o cara que prefere
entrar com o dinheiro e me manter afastado, participando das festas
ao invés de trabalhar nelas, mas aquele empreendimento com
Robert “Scott” McAllister foi uma aposta diferente. O escocês só
tinha sua imensa força de vontade para dar como garantia quando
começamos e, agora, dá o sangue, noite após noite, para levar o
sonho de ter um dos melhores bares de Santa Mônica adiante. Não
posso deixá-lo na mão.
— Ok — digo, entredentes. Scott agradece, aliviado, e desliga.
Inspiro fundo e jogo o celular sobre os lençóis bagunçados. Bom,
pelo menos tenho alguma coisa para fazer ao longo do dia. Falta-me
pique para acompanhar Peter em mais um dia de brincadeiras e
depois da experiência de ontem não sei se estou a fim de sair na
rua e me envolver com os nativos suburbanos.
Começo a puxar a camisa do pijama por cima da cabeça quando
escuto alguém entrando no quarto. Alicia bate a porta as suas
costas. Antes de me encarar, os olhos passeiam pelo meu torso nu,
se demorando um pouco mais sobre as tatuagens. Eles deixam
claro o quanto estão curiosos para saber o que significam aqueles
desenhos, mas, principalmente, o quanto sentem falta de um corpo
masculino. A menos que tenha pulado a cerca, coisa que duvido, a
mulher está há pelo menos seis meses sem sexo. Eu teria
enlouquecido.
A ponta da sua língua rosada desliza pelos lábios desprovidos de
batom. Reparo como Alicia é uma mulher bonita ao natural, sem
qualquer ornamento ou maquiagem. Lembro da noite anterior, em
que ela deslizou os olhos pelo meu corpo inteiro.
— Precisamos conversar — consegue dizer, enfim me
encarando. Ergo uma sobrancelha e espero que continue. Alicia
aponta para o meu braço tatuado. — Antes de tudo, isso aí precisa
sumir.
— O que acha de simplesmente dizer ao seu filho que o pai dele
fez uma tatuagem e pronto?
— Não, porque quando o pai dele voltar, não haverá tatuagem. Aí
vou dizer o que?
— Sei lá — dou de ombros. — Diz que apagou com uma
borracha mágica.
Ela leva uma das mãos ao rosto e esfrega os olhos com força.
Sorrio para mim mesmo. Há algo de sádico em fazê-la perder a
paciência.
— Combinamos que iríamos escondê-las com maquiagem —
relembra.
— E você comprou essa tal maquiagem? Porque eu não.
Com um ar superior, vai até a mesinha de cabeceira do seu lado
da cama e retira da gaveta um tubinho de cor clara. Joga a
embalagem para mim. Pego-a no ar e vejo se tratar de uma base de
alta cobertura.
— Segundo o anúncio, em poucos minutos qualquer tatuagem
estará cem por cento coberta pelo produto a prova d 'água. Não
cheguei a testar, mas os reviews são positivos.
— Isso é dermatologicamente testado?
— Bom, vamos descobrir agora — acrescenta, pegando um
pincel de cerdas chatas da mesma gaveta. — Se o seu braço não
cair até o final do dia é um sinal de que talvez seja.
Se Alicia quer passar uma hora do seu dia cobrindo o meu braço
com aquilo, que passe. Obediente como um cachorro treinado,
sento-me na beirada da cama e aguardo enquanto ela abre a
embalagem e despeja um pouco do produto. Com a ajuda do pincel,
espalha a base pela pele.
A cobertura é realmente boa. Talvez seja necessária uma
segunda camada, mas aquela já bastou para cobrir a maior parte,
deixando apenas uma leve sombra escura em alguns pontos da
pele. Um leve aroma de rosas escapa dos cabelos de Alicia e flutua
até mim antes dela se afastar para conferir o resultado. Assente
para si mesma e volta a se aproximar.
— Sabe o que eu acho? — questiono. Ela me encara, em
expectativa. — Você só está usando esse lance de cobrir tatuagens
como uma desculpa para ter a chance de ver o meu corpo nu.
— Você é convencido a um ponto que chega a dar nojo —
desdenha, se abaixando para preencher meu antebraço
— Vai dizer que não gosta do que vê? — provoco. Eu, confesso,
gosto do vislumbre do belo par de seios que o decote do seu pijama
permite que eu veja. Devagar, os olhos castanhos de Alicia se
elevam de encontro aos meus.
— Gosto, Henry. Mas só porque você é idêntico ao seu irmão.
— Ainda não me disse se somos idênticos em todos os lugares
e… Ai! — grito, me contorcendo após ela enfiar a extremidade sem
cerdas do pincel entre as minhas costelas. — Você é perigosa,
mulher!
— Perigosa, não. Só sei me defender.
Será que saberia se defender se eu te agarrasse, te jogasse de
encontro ao colchão e te beijasse com força, como esses lábios
exigem serem beijados? Aposto que não. Franzo o cenho, confuso,
sem entender por que tamanho pensamento invadiu a minha mente.
Alicia me lança um olhar intrigado quando balanço a cabeça,
tentando afastar aquilo.
— Já que vamos passar um tempo aqui, porque não iniciamos
logo aquela conversa — Mudo de assunto. A mulher espalha mais
um pouco de base antes de continuar.
— Precisamos falar sobre você sendo o Hector — levanto um
pouco o braço para que ela deslize o pincel pela parte debaixo.
Aquilo até que está sendo mais rápido do que imaginei. — Sequer
havia pensado nos vizinhos ao aceitar a proposta. Judy e Mark
devem nos convidar para jantar ainda essa semana.
— Talvez eles esqueçam.
— Não vão se esquecer — diz, séria. — E você já deu duas bolas
fora ontem. Hector não assiste a esportes de qualquer tipo e detesta
beber cerveja. Ele também é reservado. Gosta de Mark, mas não o
teria recebido fazendo festa com a alegria de um golden retriever.
— Ei! Eu só estava sendo simpático!
— Simpático demais, Henry. O seu irmão só teria apertado a mão
do vizinho e falado sobre negócios.
— Misericórdia! Por que o Mark seria amigo de um chato desses?
— Alicia não responde. — E o que mais?
— Detesto a ideia de dormir com você — ergo uma sobrancelha
e abro um sorriso sacana, mas a mulher se limita a me lançar um
olhar azedo. — Por causa de Peter, não teremos outro jeito. Algo
parece dizer a ele que você pode desaparecer a qualquer momento
e será pior se entrar no quarto e encontrar apenas um de nós na
cama.
— Não vejo problema nisso. — Ela tenta me cutucar com o pincel
de novo, mas dessa vez me esquivo. — Quanto ao Peter, acho que
estamos indo bem. Aparentemente o seu filho detesta vilões,
adoraria ter um videogame, mas não tem, e assiste desenhos
animados dos quais nunca ouvi falar.
— Posso te passar uma lista, mas do jeito que ele se empolga
com os desenhos, já já você terá decorado todos.
— Aceito. Hector via desenhos com ele?
— Via.
— E há quanto tempo ele não fala com o menino? — pergunto,
sabendo que não vou gostar da sua resposta.
Alicia abaixa a cabeça e retoca o meu pulso com uma gotinha de
base.
— Algumas semanas. Às vezes fico realmente preocupada. E se
aconteceu alguma coisa?
— Minha mãe estava pensando em contratar um detetive — digo,
lembrando da conversa de ontem, antes de vir para cá. — Mas
parece que ele mandou uma mensagem dizendo que não queria
conversar no momento. Tenho certeza de que ele está bem, Alicia
— insisto. Ela não parece de todo convencida. — Qual era a rotina
do Hector?
— Ele se levantava cedo, ia trabalhar e voltava apenas no início
da noite — recita, como se fosse um mantra. — Dava atenção ao
Peter durante o jantar, passavam um tempo na sala vendo
desenhos e, às vezes, brincava um pouco com ele. Era isso.
— E qual atenção ele dava a você? — deixo escapar. A mulher
faz uma leve careta e se afasta.
— Você pode seguir essa rotina ou, se quiser ficar em casa, diga
ao Peter que está de férias ou em home office. Ele ficará feliz com
isso. O braço ficou bastante bom — comenta, sem me dar uma
resposta. — Não acho que precisamos cobrir o peito, a menos que
você queira.
Olho para baixo e faço que não. A camiseta preta com gola
redonda que separei não vai deixar transparecer nada. Alicia dá os
últimos retoques na maquiagem. Quando penso que não vai dizer
mais nada ela abre a boca.
— Por favor, não vá partir o coração de Peter — pede, baixinho.
— Sei que você vai embora depois do Natal, então não seja legal a
ponto de tornar a sua despedida insuportável.
O meu coração aperta, mas faltam-me palavras para responder
aquilo.
— Se ele perguntar, direi que estou em home office. Inclusive,
posso usar o seu computador? — pergunto, lembrando da ligação
de Scott. — Preciso resolver um problema do trabalho.
Alicia me encara cheia de sarcasmo. Fico feliz de trazer aquilo de
volta à nossa relação. A expressão de abandono que tomou o seu
rosto beirava o insuportável.
— Você trabalha?
— Não é porque sou um herdeiro playboy que preciso ser um
completo vagabundo — brinco, jogando uma piscadela. — Sou um
investidor, Alicia. Tirando isso, digamos que eu trabalhe… só de vez
em quando.
Ela balança a cabeça e ri.
— Pode usar o computador do escritório. A senha é 180618, dia
do nascimento de Peter — O barulho alto, de uma tigela caindo, se
faz ouvir no andar debaixo. — Acho que ele derrubou o cereal no
chão.
— Você deixou o menino sozinho na cozinha?
Ela me lança o seu melhor olhar de: você é burro ou o quê?
— Claro que não! Deixei-o na sala, assistindo desenho. — Ele
grita um longo e pronunciado “MÃEEE!”. — Vou ver o que
aconteceu.
Alicia joga o tubo de maquiagem e o pincel de volta à gaveta e
sai do quarto. Toco a cobertura no meu braço, temendo um aspecto
pegajoso, mas está bem sequinho, como se a pele tivesse voltado
ao que era anos antes, sem nenhuma tatuagem. Tiro a calça do
pijama e me visto com as roupas que separei antes da invasão da
mulher. Espero que ela mantenha o Peter lá embaixo. Minha
paciência para lidar com o trabalho é curta e a coisa tem potencial
para ficar ainda mais difícil com uma criança pentelhando.
Vou para o escritório e me sento diante do monitor do
computador. Após colocar a senha que seria o deleite de qualquer
hacker, a tela se abre em um plano de fundo com uma foto da
família. Ao centro, Hector abraça Alicia em um gesto protetor e
Peter está sentado no colo da mãe. Ele está bem menor na foto,
devia ter uns dois anos no máximo. Mãe e filho sorriem para a
câmera, mas Hector a encara de um jeito sério, ainda que dê para
perceber o contentamento por estar ali.
Ignoro os três e me ponho ao trabalho. Quanto mais cedo
começar, mais cedo vou terminar. Para fazer o que depois dele? Ver
desenhos, provavelmente. Acesso o e-mail do bar com o login e
senha e me choco com a quantidade de reclamações.
É, pelo visto, não vou sair dali tão cedo.
— Papai? — pergunta uma vozinha infantil. Solto um gemido
involuntário antes de virar e dar de cara com Peter diante da porta.
Abro a boca, pronto para dizer que não posso brincar agora, quando
o menino dá o xeque-mate — Posso trabalhar com você?
Reparo no que usa no pescoço: uma gravata, mas não é a
mesma que usamos ontem durante a brincadeira com os Capitães
América. Amarrada de qualquer jeito, parte da peça de vestuário se
arrasta pelo chão. Ele percebe a direção tomada pelos meus olhos e
se encolhe.
— De onde você tirou isso?
— Desculpa — murmura, começando a puxar a gravata. — Eu
peguei em uma das gavetas do closet.
Faço um gesto com a mão, pedindo para que ele se aproxime.
Peter vem até mim de cabeça baixa, idêntico a um cachorrinho que
sabe que fez coisa errada. Pego a gravata de seda e sorrio para
mim mesmo. Por mim, o menino pode acabar com todas elas.
Passo o tecido por trás do seu pescoço e, em instantes, finalizo o
nó.
— Agora sim você pode trabalhar comigo. — Ele sorri de orelha a
orelha, e sou rápido em acrescentar. — Mas precisa ficar bem
quietinho, tudo bem?
— Tudo! — diz, estendendo os braços.
Demoro um pouco para entender o que ele quer. Quando a ficha
cai, pego-o no colo. O menino logo se ajusta contra o meu peito.
Olha para a tela com curiosidade e não emite qualquer som.
Respondo uns cinco e-mails, olho para baixo e o vejo ali, feliz
apenas por estar em minha companhia. Não sei explicar o porquê,
mas também me sinto feliz por estar na sua.
Se tem uma coisa que outras mães sempre me disseram é que,
se uma criança está muito quieta, é porque ela está aprontando
alguma. Estranho o silêncio no andar de cima. Peter costuma
vocalizar quando está brincando, mas hoje está quieto. Subo as
escadas pé ante pé, disposta a pegá-lo fazendo bagunça no flagra,
mas encontro-o no escritório junto com Henry.
O homem me lança um olhar divertido. O menino em seu colo
nem se mexe, absorto no trabalho sendo feito na tela do
computador. Reparo que uma das gravatas de Hector está em seu
pescoço. Se o próprio estivesse ali daria uma bronca no menino,
mas Henry, por sua vez, não está nem aí.
— Vem, filho — chamo, preocupada. — Você está atrapalhando o
seu…
Pai. Engulo em seco, a palavra engasgada na garganta, mas
Peter entende. Resmunga um “Eu não quero!” e se agarra ainda
mais ao meu cunhado. Henry dá de ombros.
— Ele está quietinho, não atrapalha em nada.
Algo na forma branda como diz isso me aquece inteira. Não fiquei
atordoada por entrar no quarto essa manhã e vê-lo seminu. Essa
cota de atordoamento foi gasta na noite anterior, depois de vê-lo
pelado. O problema foi passar a maquiagem em seu ombro largo e
braços fortes, a pele com resquícios do bronzeado de verão rija e
quente sob as cerdas do pincel.
Durante um momento fui tomada pela insana vontade de jogar
aquilo longe e sentir os músculos firmes com a ponta dos meus
dedos, mas me segurei, e esqueci metade do que tinha para falar.
Porque um dos pontos era justamente aquele: Henry precisa parar
de subjugar as minhas ordens dadas a Peter. Que autoridade terei
com o meu filho se tudo o que falo é invalidado? Nenhuma. Preciso
voltar a tocar no assunto antes de dormirmos.
Mas, no momento, não há nada que eu possa fazer, a menos que
eu deseje despertar toda a capacidade de fazer birra do meu filho.
Como os dois parecem confortáveis na companhia um do outro,
deixo-os a sós e vou cuidar dos meus afazeres.
Com a desculpa de que a casa é muito grande, Hector insistia
para que eu contratasse uma empregada doméstica. Chegamos a
contratar durante o final da gestação e o primeiro ano de Peter,
momentos em que um bebê demanda toda atenção da mãe.
Conforme ele cresceu, precisava de alguma distração durante os
períodos em que dormia, alheio ao mundo, e eu permanecia sozinha
com os meus próprios pensamentos. Decidi voltar a cuidar da casa
por mim mesma e dispensei a moça.
Olho ao redor. A cozinha está limpa, mas a sala de estar precisa
de atenção. Penso em ligar o aspirador de pó, mas o barulho talvez
atrapalhe Henry, então me contento com a boa e velha vassoura.
Estou terminando de varrer por debaixo de um dos sofás quando
escuto risadas vindas do andar de cima. Sorrio para mim mesma.
Toda aquela convivência estaria sendo bem mais difícil se Henry
não tivesse se apaixonado pelo sobrinho.
Arrasto o sofá de volta ao seu lugar e afofo as almofadas,
tentando não pensar em como o menino ficará arrasado depois que
Henry for embora. Sua risada masculina se mistura à do menino em
um grave, longo e delicioso ronronar. Contra a vontade, estremeço-
me inteira. Estou a tanto tempo sem ser tocada por um homem que
basta que o mais odiável deles dê uma risada gostosa junto do meu
filho para que eu me derreta.
Com a sala pronta, sigo caminhando pela casa, em busca de algo
que possa ser limpo. A menos que eu queira dar um trato na
garagem, tudo está em ordem. As risadas continuam e, intrigada,
não resisto a subir de novo e ver o que está acontecendo.
Henry e Peter estão tão absortos no que acontece no monitor do
computador que nem percebem a minha presença. Em um vídeo do
YouTube, um rapaz vestido com uma roupa de Homem-Aranha faz
peripécias sobre a lâmina de um patins. Vez ou outra ele cai de
bunda no lago congelado, arrancando gargalhadas de quem assiste.
Não vejo graça. Ele poderia se machucar feio em uma queda
daquelas, mas os dois parecem não se importar.
— Sério, Peter. Eu não me conformo que o Capitão América seja
o seu super-herói favorito — comenta Henry, cutucando as costelas
do menino que tenta se contorcer para longe enquanto grita de
alegria. — Você precisava ser fã do Homem-Aranha!
— O Capitão América é mais legal.
Meu cunhado balança a cabeça.
— Pobre criaturinha que não sabe nada do mundo. — Ele, enfim,
me vê à porta. Não está surpreso por me ver ali. Pelo contrário,
parece gostar. Sou eu quem não gosta da labareda que se acende
nos seus olhos. — E se eu conseguir te provar?
— Não consegue, não.
— Consigo sim — insiste. Pega o celular sobre a mesa e faz uma
busca rápida. Sorri com o resultado e me encara. — Alicia, posso
pegar o carro emprestado? Preciso ir rapidinho em uma loja aqui
perto.
Franzo o cenho, mas assinto.
— Pode.
— Ótimo, já volto — bagunça o cabelo do menino e o tira do seu
colo, colocando-o no chão. Peter o encara com reverência.
— Posso ir também?
— Não. É surpresa — pisca. Peter bate palmas e pula no mesmo
lugar, sem conseguir se conter. Ele sorri, visivelmente deliciado com
a alegria do menino, e olha para mim. — Onde está a chave?
— Pendurada ao lado do cabideiro no vestíbulo — Ele assente e
faz menção de passar por mim. Antes de lhe dar licença aponto
para o computador, onde o desastrado patinador ainda cai de bunda
no chão. — Você não precisava trabalhar?
— Ah, já trabalhei o suficiente por hoje — faz um gesto com a
mão indicando que aquilo não é nada. — Meu sócio fez parecer que
a situação era muito pior do que de fato, é. Com a ajuda do Peter —
bagunça o cabelo do menino de novo, fazendo-o rir — cuidei do
pior. Mais tarde cuido do resto.
— Está bem — digo, dando-lhe passagem.
Como se para me provocar, Henry faz com que o corpo grande
passe rente ao meu. Respiro fundo e o observo descendo os
degraus de dois e dois, curiosa para saber que surpresa é essa que
pretende fazer.

Henry leva mais de uma hora para voltar. Nesse meio tempo,
Peter fica com a cara grudada na janela da sala, os pés para fora do
sofá balançando cheio de impaciência. Seu grito de alegria ecoa
pela casa quando o carro prateado embica na garagem e o pai saiu
com duas imensas sacolas em mãos. Sem nenhuma cerimônia,
irrompe porta adentro e entrega uma delas ao menino.
— Você poderia bater com essas botas no tapete? — reclamo ao
ver o chão limpinho acumulando sujeira, mas Henry não me escuta.
Está concentrado em ver Peter lutando com uma sacola grande
demais para uma criança tão pequena. Adianto-me para ajudar
quando o conteúdo cai no chão.
— É uma fantasia do Homem-Aranha! — grita Peter, mais alto do
que nunca. Henry sorri e tira uma segunda embalagem contendo
uma fantasia, muito maior, da sacola que ainda tem em mãos.
— Sim! E comprei uma para mim! — Os gritos alegres de Peter
aumentam. Meu Deus, daquele jeito o meu filho vai ficar sem voz!
Ao pensar que as surpresas acabaram, Henry me encara. —
Comprei uma para você, também — diz, me estendendo a sacola
que julgava vazia. Encaro a fantasia de cenho franzido.
— Essa daqui não é do Homem-Aranha.
— Claro que não. É da Gwen Stacy. Ela é uma das namoradas
do Homem-Aranha. — Ele revira os olhos diante da minha cara de
interrogação. — Caramba, mulher. Em que mundo você vive?
Devolvo a fantasia, batendo com ela em seu peito.
— Desculpe, mas não tenho obrigação de saber quem namora ou
não com o Peter Parker. — O demônio sorri, cheio de sarcasmo, e
preciso me segurar para não falar “Viu, eu sei o nome real do
Homem-Aranha!” Na realidade, achava que a namorada dele fosse
a Mary Jane, ruiva igual a mim, mas acho melhor não prolongar o
assunto. — O que os senhores pretendem fazer com isso?
— Nos fantasiar, mamãe. — Peter declara, como se fosse óbvio.
Fecho a cara para a sua resposta direta e o meu filho se encolhe. —
Desculpa.
— Está tudo bem. — Para confirmar, beijo o topo da sua cabeça.
— Só não façam bagunça, por favor. Acabei de arrumar a casa.
— Não vamos fazer. — Henry pisca para o menino que ri. Menos
de vinte e quatro horas de convivência e já estão assim, unha e
carne. — Vamos nos trocar?
— Vamos! — Peter grita, correndo com a sua fantasia para o
andar de cima.
— Precisa de ajuda? — pergunto, mas ele já desapareceu em
seu quarto. Henry me encara e ergue uma sobrancelha sugestiva.
Reviro os olhos. — Não estava falando com você!
— Eu sei, mas se quiser ajudar…
Olho bem para o seu rosto e, sem dizer nada, dou-lhe as costas e
vou para a cozinha. O almoço não vai se preparar sozinho, com ou
sem Homens-Aranhas em casa, e estou com zero paciência para os
trocadilhos cheios de duplo sentido do meu cunhado. Mesmo de
longe, escuto sua risada rouca enquanto sobe as escadas. Já que
ele inventou, que se vire para ajudar Peter a se vestir.
Leva menos de dez minutos para o meu filho se materializar na
cozinha. Peter deixou os pulos de lado e se arrasta pelo chão feito
uma aranha, batendo nos móveis, fazendo barulho e fingindo soltar
teias igualzinho o personagem do filme. É impossível não sorrir para
a cena. Henry errou o tamanho da roupa e caberiam sem dificuldade
dois meninos naquele amontoado de tecido vermelho e azul, mas
ele não parece se importar.
— Pelo visto o Capitão América deixou de ser o seu favorito —
brinco, lembrando do último Halloween com a presença de Hector.
Passamos diante de uma loja de fantasias e Peter pediu por uma.
Ele veio com aquele papo de na volta a gente compra, se esqueceu
e, no fim, os dois saíram para pedir doces vestidos de vampiros.
Meu rosto esquenta ao lembrar como Hector ficou elegante de
Conde Drácula.
E esquenta ainda mais ao ver Henry descendo as escadas. Ele
teve a capacidade de errar o tamanho da própria fantasia, mas,
enquanto a de Peter ficou grande, a dele ficou pequena. O tecido se
estica pelos ombros largos, delineando o peitoral forte, passa pelos
gominhos da sua barriga e desce sobre imenso volume marcado
entre as suas pernas. É impossível não olhar e Henry, claro,
percebe. O seu sorriso cresce conforme o meu rosto fica vermelho.
— Vou precisar de ajuda — dá de ombros, virando-se de costas.
Respiro fundo e agarro a cabeça do zíper em sua lombar,
subindo-o devagar pelas costas torneadas até a base da nuca. O
tecido fino se estica ao extremo e a costura esgarça em alguns
pontos, mas mantém-se firme. Quando ele se vira, absolutamente
tudo ficou ainda mais marcado. Se eu não tivesse visto o cós da sua
cueca, diria sem pensar duas vezes que ele estava sem uma.
Peter esbarra em suas pernas e corre para a sala de estar,
batendo e tropeçando em tudo o que encontra pelo caminho.
Observo a cena um pouco alarmada, mas meu filho parece bem.
Aquela é a deixa para que o meu cunhado coloque a máscara e saia
em perseguição do menino.
Peter tira a sua, gritando ao ver que o pai está prestes a agarrá-
lo. Sem pensar duas vezes, meu filho tão comportado sobe no
encosto do sofá e pula do outro lado. Só não cai de cara no chão
porque Henry é rápido em agarrá-lo no ar.
— Cuidado, vocês dois! Desse jeito vão se machucar! — alerto,
mas ninguém me escuta.
Aquilo faz o meu sangue ferver. Para que eu não me enfureça
ainda mais, dou as costas aos dois e volto, ou melhor, tento voltar,
aos preparativos para o almoço. Logo vejo ser impossível fazer
qualquer coisa com a gritaria que vem da sala. Tanto Peter quanto
Henry parecem ensandecidos, baques e pulos se misturando às
risadas. Quando um baque mais alto ecoa pela casa, bufo, irritada,
e deixo os legumes cozinhando no vapor aos cuidados de si
mesmos para ver o que raios está acontecendo no outro cômodo.
— O que vocês estão fazendo? — pergunto, mãos na cintura, ao
pegar os dois de pé em cima de um dos sofás. Meu filho me ignora
e continua pulando. Por sorte ele é leve, senão, tenho certeza de
que o assento teria afundado. — Peter, pode parar!
Ele para e me encara, os cabelos ruivos grudados no rosto
suado, o corpinho magro dançando por entre as sobras de tecido.
Faz menção de descer, mas depois muda de ideia. Pega uma das
almofadas pelas pontas e bate com força contra as pernas do pai.
Henry se desequilibra, mas logo se ajeita. Não consigo ver os
seus olhos por trás da máscara, mas sei que estão em chamas
quando ele pega uma segunda almofada e revida. Peter ri e bate
nele de novo. Pronto, uma guerra foi instaurada.
— Parem! — peço, mas continuo sendo ignorada.
Peter se joga de costas no sofá, rindo, enquanto sua barriga
recebe os baques fofos das almofadas implacáveis de Henry. O
homem grita de triunfo e pula no tapete, braços erguidos para um
novo golpe.
A partir daí, não sei dizer o que aconteceu primeiro. Se o tecido
da capa da almofada se rompeu, fazendo com que penas brancas
voassem feito flocos de neve pela sala, ou se Henry caiu de mal
jeito e não conseguiu firmar o pé dentro do tecido fino da sua
fantasia apertada. Só sei que o corpo do homem atravessa a
barreira de plumas ao cair para trás em direção a imensa TV
acomodada em um suporte na parede.
O cotovelo de Henry acerta o centro da tela de LED. O aparelho
estremece no suporte para, então, começar a cair também. Me
adianto, não sei se para socorrer o homem ou a TV, mas a
gravidade é mais rápida. Com um baque surdo, o aparelho cai no
chão, levando o suporte e os cabos consigo.
Uma faísca escapa de um cabo rompido e explodo.
— Olha só o que vocês fizeram! — grito, abrindo os braços em
direção a sala revirada. Peter ri até perceber a seriedade em meu
rosto. Ainda assim, é para o pai que ele olha, como se pedisse
confirmação. Henry o ignora. Massageia o cotovelo com força, o
rosto contorcido de dor quando puxa a máscara de qualquer jeito.
Aponto para ele. — Além de destruir a sala, vocês poderiam ter se
machucado!
— Eu vou comprar outra — diz, erguendo-se do chão. O
cotovelo, pelo visto, sobreviveu intacto. Por sorte, ou azar,
dependendo do ponto de vista, a TV não caiu na sua cabeça. —
Pode ficar despreocupada.
— Não é sobre comprar outra!
— É sobre o que, então? — pergunta, começando a se irritar.
Dou um passo em sua direção, sem me intimidar. Com o canto do
olho, vejo Peter nos observando meio encolhido em um dos cantos
do sofá — Só estávamos brincando, Alicia. Aconteceu um acidente
e vou resolver, ponto final.
— É sobre ter respeito — ergo a voz, mais irritada do que nunca.
— Eu havia acabado de limpar a sala quando vocês começaram
essa algazarra e olhe só — giro o corpo, enfatizando a bagunça. —
Tudo sujo, desarrumado e quebrado, como se as coisas não
tivessem valor!
— É só uma TV! — Henry explode.
— Para você, que sempre teve tudo, isso pode ser só uma TV! —
Explodo de volta, lembrado de como, há muito tempo, um minúsculo
aparelho de tubo, ainda em preto e branco, era um artigo de luxo no
trailer do meu pai. — De onde eu vim, as pessoas precisariam
deixar de comer uma das três refeições diárias para ter a chance de
financiar um aparelho desses!
— Ainda bem que o meu caso é diferente, não é? — solta,
sarcástico. A expressão chocada do seu rosto mostra o instantâneo
arrependimento que vem em seguida. — Alicia, desculpa, eu…
Ele dá um passo para a frente, a mão estendida, pronta para
segurar o meu braço, mas dou um passo para trás. Aprumo a
postura e o encaro.
— Eu não vejo a hora de você ir embora.
— O papai vai embora? — pergunta Peter com a voz lacrimosa.
Agora, sou eu que me arrependo. Não por Henry, mas pelo meu
filho. Ele ficou tão quieto que, por um momento, me esqueci de que
estava ali. Interpreta o nosso silêncio como um sim e começa a
chorar. — Você não pode ir embora — implora, afundando o rosto
contra a própria fantasia. — Por favor, papai.
Henry engole em seco, sem saber o que fazer. Sou eu que me
agacho para consolar o menino, mas ele não quer a mim. Esperneia
quando tento puxá-lo para um abraço e corre para longe,
escorregando ao subir as escadas e ir para o quarto. Ergo-me de
um pulo, pronta para segui-lo, mas a campainha toca.
Estou tão enfurecida comigo mesma e com Henry que nem ao
menos penso. Apenas abro a porta e dou de cara com Judy. É o seu
arregalar de olhos que faz com que eu me lembre que o meu
suposto marido está vestido de Homem-Aranha no meio de uma
sala destruída e cheia de penas flutuantes.
— Uau! — Não preciso acompanhar o seu olhar para saber
exatamente qual parte da fantasia de Henry causou aquela
surpresa. Limpo a garganta e a vizinha, enfim, presta atenção em
mim. — Oi, Alicia! Acho que não cheguei em uma boa hora.
Forço os meus lábios a abrirem o seu melhor sorriso.
— Oi, Judy. É, desculpe, aconteceu um imprevisto e…
— Estou vendo — ri, faceira. Espia Henry mais uma vez. Olho
por sobre os ombros e o vejo plantado no meio da sala, devolvendo
o riso. Nota-se o esforço que a mulher faz para voltar sua atenção a
mim. Dá um passo adiante e faz um sinal para que eu aproxime o
ouvido. — Não que o do Mark seja muito menor, diga-se de
passagem. Mas uau, amiga. Você está muito bem servida.
— Você não faz ideia — retruco, entredentes. — Como posso te
ajudar?
— Imagina, não preciso de ajuda nenhuma. Só preciso que vocês
estejam disponíveis para jantar conosco na sexta-feira.
Ai. Meu. Deus.
— Mark disse que vocês viajam no sábado — comento, como
quem não quer nada. — Não acha melhor marcarmos outro dia?
Depois que vocês voltarem, ou quem sabe, depois do Ano Novo.
Quando Henry não estiver aqui!, minha mente grita. Judy faz que
não.
— Para com isso, Alicia. Vocês nunca incomodam. Só vamos
pedir pizzas, abrir umas garrafas de vinho e pronto! Que incomodo
há nisso?
— Eu não sei. Ainda acho melhor marcar depois — enfatizo. No
momento em que o Henry estiver mais adestrado, por exemplo.
Judy faz um gesto com a mão, indicando que aquilo é uma
grande bobagem.
— Será na sexta e pronto! E não aceito um não como resposta. O
que acha de marcarmos as dezenove horas?
— Acho ótimo — acabo me rendendo. — Eu levo uma
sobremesa.
— E eu levo um bom vinho — diz Henry. Judy assente, satisfeita.
— Perfeito! Até sexta, então!
— Até — murmuro. Judy sorri e me dá as costas. Devagar,
inspiro fundo e fecho a porta, franzindo o nariz em seguida. Para
coroar, a água dos meus legumes secou e eles queimaram. Corro
os olhos pela sala arruinada enquanto o choro de Peter ecoa do
andar de cima. Minha vontade é de chorar, também.
Aliso a frente da camisa ao me encarar no espelho. Cabelos
arrumados com pomada, barba recém aparada rente ao rosto, ar
sério e de poucas palavras. Parabéns, Alicia. Era uma cópia do
Hector que você queria? Aí está. Visto o blazer e bufo para a
imagem. Tudo aquilo para comer uma simples pizza na casa dos
vizinhos.
Pensei que, depois do episódio de terça, Alicia daria um sermão
de três horas sobre como ser ou deixar de ser o meu irmão. Ela não
deu. Ao invés disso, se manteve em um silêncio resignado,
ignorando a minha presença por completo. As perguntas secas
retornaram com respostas monossilábicas. Pouco me importei. Se
para ela estava bom assim, para mim estava ainda melhor.
Mas me importei com o silêncio de Peter. Poderia dizer que o
clima pesado afetou o astral do menino, mas na realidade foi a
perspectiva de saber que eu poderia ir embora. Ele não pediu para
trabalhar comigo quando, naquele mesmo dia, retornei ao escritório
da casa e descobri que um vídeo ameaçando o bar viralizou em
questão de horas.
Na quarta-feira me vi novamente diante do computador e
perguntei se ele queria ficar comigo. Peter se limitou a negar com o
rostinho triste e foi para o seu quarto. Pouco depois, ouvi o menino
chorando, mas fiquei sem jeito para consolá-lo. Eu iria mesmo
embora. Seria de uma hipocrisia imensa agradá-lo sabendo disso.
Ele voltou a se aproximar aos pouquinhos, mas nós dois
sentíamos que não era como antes. As fantasias do Homem-Aranha
permaneceram esquecidas na lavanderia. A da Gwen Stacy
continuou lacrada. E fiquei chocado ao sentir falta da camaradagem
criada naqueles dois primeiros dias com o meu sobrinho.
Solto o ar com força e deixo a engomada imagem refletida no
espelho para trás. Vozes se fazem ouvir da sala de estar. Devagar,
desço as escadas e vejo Alicia conversando com Peter. O menino
parece descontente sentado no sofá. A nova TV reluz ao fundo com
o volume baixinho. A quebrada, causadora de toda a discórdia, foi
enviada para um centro de reciclagem.
— Eu não quero ir — reclama Peter, a voz pastosa de quem está
prestes a chorar. Com a mão livre, Alicia alisa os seus cabelos em
um carinho demorado. A outra segura um pesado casaco que o
menino não quer vestir.
— O Liam estará lá, filho. Não quer brincar com ele?
Peter nega com a cabeça e preciso resistir a tentação para dizer
que eu também não quero ir. Desço o último degrau com um baque
surdo e a mulher volta sua atenção para mim. Devagar, ergue-se do
sofá em uma postura majestosa que faz o meu coração traidor errar
uma batida.
Olho embasbacado para a figura envolta em um vestido azul
marinho que abraça as curvas com a perfeição de uma peça feita
sob medida. O decote em V é discreto para um jantar entre amigos,
mas ainda revelador o suficiente para atiçar o desejo de qualquer
homem. As ondas dos cabelos avermelhados descem por um dos
ombros, entrelaçando-se com o ponto brilhante do colar em seu
pescoço.
Não bastasse a insistente ereção que vem me acompanhando
em todas as manhãs, agora sinto o pau ameaçando ficar duro
apenas por ver a mulher do meu irmão arrumada para jantar na
casa da vizinha. Olha só o que uma semana sem sexo está me
causando.
Reparo que Alicia inspeciona o meu corpo com as pupilas
dilatadas, o leve lamber de lábios comprovando que ela também
está afetada pela minha presença. Aproximo-me dos dois, sem
deixar de encarar o seu rosto, e as palavras escapam da boca antes
que eu possa controlá-las.
— Você está linda.
Alicia arregala os olhos, mas mantém a compostura.
— Obrigada. Você também está.
— Não podemos mesmo ficar em casa? — Peter interrompe.
Desce do sofá e agarra uma das minhas pernas, puxando o tecido
para baixo. — Por favor, papai.
Solto os seus dedos e me agacho.
— Nós precisamos ir. A Judy é legal com você, não é? — Ele
assente. — Então também precisamos ser legais com ela. Seria
uma grande desfeita cancelar o jantar agora.
— O que é desfeita?
Penso por um instante e decido simplificar.
— É meio que uma falta de educação. Ser convidado e não
comparecer. Comprar um presente e a pessoa não aceitar. Isso tudo
são desfeitas.
Peter assente, muito sério.
— Tipo quando a mamãe não quis vestir a fantasia?
Touché! Olho de esguelha para Alicia, mas quem mandou pôr no
mundo uma criança tão inteligente?
— Tipo isso. — A própria diz, entredentes. Seu filho não parece
convencido — Você gosta quando chama o Liam para vir brincar e
ele diz que não pode? — Peter faz que não. — Pois então. Agora
vamos, senão ele vai ficar chateado.
O menino enfim se convence. Limpa os cantos dos olhos com as
costas das mãos e permite que a mãe passe o casaco pelos seus
braços. Alicia alisa a roupa do filho e, dando-se por satisfeita com a
sua aparência, me encara.
— Você poderia pegar a torta na geladeira, por favor? O vinho
está sobre a mesa.
Assinto em concordância e vou para o cômodo ao lado. A torta de
maçã passou o dia testando o meu estômago e a perspectiva de
comê-la em algumas horas é a única coisa que me motiva a ir ao
jantar. Tiro-a da geladeira e, ao me virar, dou de cara com Alicia.
— Está tudo bem? — pergunto, diante a expressão tensa em seu
rosto.
A mulher morde os lábios e se aproxima, casaco já vestido, o
rosto perto o suficiente para que eu possa inspirar o aroma do seu
perfume de rosas, profundo e refrescante como se tivesse acabado
de sair do banho. A imagem dela nua debaixo do chuveiro, com
incontáveis gotas de água escorrendo pelo desenho do seu corpo,
invade a minha mente sem qualquer permissão e faz o meu pau dar
um novo sinal de vida.
— Está — diz, bem baixinho. — Eu só gostaria de lembrar que o
Hector não gosta de tomar cerveja e nem de acompanhar esportes.
— Ele só conversava com o Mark sobre o mercado financeiro?
— Basicamente, sim. — O esboço de um sorriso cruza os seus
lábios. — Mas, na realidade, ele ficava calado durante a maior parte
do tempo. Acho que não será tão difícil imitá-lo, afinal.
Nossa, será. Ela não sabe o quanto será!
— Prometo me esforçar.
Ela assente, aliviada. Coloca um pano de prato limpo sobre a
torta e se encaminha para a porta. Peter aguarda diante dela com o
semblante enfezado. Rio e bagunço o seu cabelo. Em um primeiro
momento ele fecha ainda mais a cara, mas acaba por rir também.
O vento frio açoita os nossos rostos enquanto flocos de neve
descem preguiçosos em direção ao chão coberto de gelo entre a
curta distância da casa do meu irmão e da vizinha, dificultando o
caminhar. Peter agarra a minha mão em busca de apoio. Aperto os
seus dedos contra os meus, ansioso para que aquele seja um
primeiro passo para voltarmos ao que éramos assim que cheguei.
Uma vozinha no fundo da mente diz que é errado, que estou
enganando o menino, mas me esforço para ignorá-la. Menos de
uma semana de convivência serviu para despertar um amor que eu
não sabia existir. Aquele curto trajeto basta para me fazer decidir
que, não importa o que aconteça, estarei presente na sua vida como
o tio que deveria ter sido há muito tempo.
Alicia faz menção de ajustar a torta sobre os braços para apertar
a campainha, mas me adianto, escutando o estridente barulho
ecoando pela casa. Ela me lança um olhar agradecido enquanto
aguardamos, todos juntos, que alguém venha nos atender. Torço
para que não seja Mark, mas acaba que é o próprio que atende.
— Boa noite! — cumprimenta, o vozeirão retumbante ecoando
pela noite. — Saiam do frio! Entrem, entrem — acrescenta ao tirar o
corpanzil do caminho.
Alicia sorri e, com um discreto pedido de licença, avança em
direção ao vestíbulo. Eu e Peter fazemos o mesmo. Olho para a
sala de estar a poucos metros de distância. A configuração dos
cômodos não parece muito diferente da casa ao lado. A diferença
fica por conta do calor que ela emana. Os móveis gastos pelo uso,
os tapetes com as pontas viradas, as paredes com manchas de
canetinhas. Não há desmazelo. Há apenas a evidência de uma
família leve, alegre e unida como em um comercial de margarina,
mas sem a perfeição imposta por ele.
— Ahhh, você fez torta de maçã! — derrete-se Judy, levantando-
se do sofá. Tira a travessa das mãos da Alicia e inspira fundo. — Eu
amo torta de maçã!
— Você poderia ter ficado com vontade de comer isso durante a
última gravidez — comenta Mark, oferecendo-se para tirar o casaco
de Alicia. — Não foi nem um pouco fácil achar uma torta de limão
com chocolate meio amargo às três da manhã!
Sua esposa ri, escandalosa, e leva a torta para a cozinha. Sorrio,
tentando soar simpático, lembrando do conselho de Alicia para me
manter calado. Estou ajudando Peter a tirar o próprio casaco
quando três pares de olhos curiosos surgem no topo da escada.
Duas meninas e um menino que só pode ser o tal do Liam. Ele
desce correndo. Se Peter tem quatro anos, ele tem uns seis ou sete.
Ainda assim, mostra-se animado ao rever o amiguinho.
— Vem, o papai comprou um jogo novo! — comemora, puxando
Peter pela mão. Ele sorri e se deixa guiar andar acima. Mark olha de
cara feia.
— Cadê a educação?
— Ah — faz Liam, quase no topo das escadas. — Oi Sr. e Sra.
Chamberlain.
Os meninos desaparecem antes que possamos responder. As
meninas, por sua vez, descem as escadas e fazem questão de nos
cumprimentar, mostrando as ladies que são. Elas devem ter uma
idade mais próxima da de Peter, quatro ou cinco anos, e com
aqueles cabelos castanhos claros e olhos azuis prometem dar muito
trabalho para o pai.
— Oi, Lisa. Oi Linda — cumprimenta Alicia, olhando para mim.
— Todos com Li — digo para mim mesmo, achando graça.
Engano-me ao pensar que falei baixo o suficiente para ninguém
ouvir. Mark solta uma gargalhada.
— Com tantos filhos, optamos pelo mais fácil de lembrar —
comenta, olhando com carinho para as meninas antes de me
encarar. — E então, Hector, aceita uma cerveja?
Encaro-o de volta. Algo na forma como ele pronuncia o nome do
meu irmão, letra por letra, acende um alerta. Será que Hector
comentou que dividiu o útero comigo? Aposto que não. Não há uma
só foto minha em sua casa, duvido que perderia tempo falando de
mim para os vizinhos. O Sr. Certinho é tão chato que não presta
nem para falar mal dos outros.
Mesmo assim, eu deveria ter deixado as picuinhas de lado e
perguntado a Alicia antes de sair de casa. Agora, só me resta
continuar com aquele circo.
— Não, obrigado. Mas aceito uma taça de vinho — acrescento,
erguendo a garrafa que trouxe.
Mark a olha com aprovação e nos convida a sentar na mesa de
jantar próxima a uma pequena adega. Eu e Alicia o seguimos,
caminhando lado a lado, mas distantes um do outro. Uma nova
dúvida preenche a minha cabeça: qual era o seu comportamento
como casal? Hector teria segurado a mão da esposa? Seria um
perfeito cavalheiro e puxaria a cadeira para ela se sentar?
Por sorte, Mark se adianta e me poupa de refletir sobre a última
pergunta, puxando ele mesmo o assento. Alicia agradece com um
aceno e estou prestes a sentar ao seu lado quando reparo nas
meninas. Imito o seu pai e puxo a cadeira para elas. Elas sorriem e
se atiram contra a mesa, encarando os pratos postos como se já
estivessem cheios de pizza. Uma delas, não sei se Lisa ou Linda,
sorri de forma travessa. Sorrio de volta, curioso para saber se
também são gêmeas, mas freio a língua. Uma parece um pouco
maior que a outra. Devem ter pouquíssima diferença de idade.
A risada dos meninos soa alta do andar de cima quando Judy
retorna com tigelas de amendoim e batatinhas fritas. As meninas
atacam a comida enquanto o seu pai se ocupa em servir o vinho.
Inspiro o aroma seco antes de levar a taça aos lábios.
— Acabei de pedir as pizzas no aplicativo — anuncia Judy antes
de se virar para mim. — Vai voltar a trabalhar apenas no ano que
vem?
Quase engasgo com o vinho. Salvo os dois dias que precisei
ajudar Scott, passei o restante da semana coçando o saco.
— Sim — digo, ao me recuperar. — Como fiquei todo esse tempo
fora, a empresa achou de bom tom que eu passasse o mês de
dezembro ao lado da família.
Para enfatizar, lanço um olhar significativo a Alicia. Ela me
devolve com a sua melhor expressão de alerta. Só falta o banco
onde Hector trabalha ser carrasco a ponto de os colaboradores não
terem tempo nem de ir ao banheiro. Se é, a desculpa cola, pois Judy
parece não dar a mínima ao continuar.
— Que ótimo, não é? E como vocês estão, depois de passarem
tantos meses separados?
— Não seja indiscreta, mulher — ri Mark. — As meninas estão na
mesa!
As meninas estão mais interessadas em devorar as batatinhas.
Para disfarçar, encho a mão com um punhado de amendoim e os
jogo na boca. O anfitrião me observa. Pronto, só falta Hector ser
alérgico àquelas porras.
— Não perguntei nada de mais — Judy cutuca o marido e os dois
trocam risadinhas cheias de segundas intenções. — Só que, depois
de tantos meses separados, era de se esperar que as coisas
estivessem pegando fogo.
— O que está pegando fogo? — Lisa, Linda, ou sei lá qual das
duas, pergunta. A mãe se apressa em acrescentar.
— As nossas pizzas. Não encham as barrigas de batatas, heim!
Elas ignoram, continuando a comer. Pego mais um punhado de
amendoim. Vamos, Alicia! Responde essa!
A mulher parece ler a minha mente.
— Estamos ótimos — diz, me lançando um falso olhar
apaixonado. Devolvo na mesma intensidade e, para melhorar a
performance, deslizo a mão por sobre a sua. Seus olhos faíscam de
leve, mas Alicia segue com o jogo. Daquele jeito ela se daria
bastante bem em Hollywood. — Está sendo ótimo ter o Hector de
volta, não é amor?
Se morasse na costa oeste ela ganharia um Oscar, isso sim.
Decido caprichar.
— Está, sim — sem lhe dar tempo para recuar, planto um rápido
beijo no canto da sua boca. Aquele breve contato é o suficiente para
sentir a tensão em sua pele, mas Alicia aguenta firme, sem recuar.
As faíscas agora se transformam em atiçadas labaredas. —
Estamos mais apaixonados do que nunca.
Judy solta um suspiro enquanto a gargalhada de Mark se espalha
pela casa. Alicia afasta a mão da minha, deixando um vazio tão
gelado quanto o lado de fora, e preciso resistir à tentação de
acompanhar a risada do vizinho. Por sorte, a conversa é levada
para um terreno mais seguro. Conforme instruído, permaneço
calado.
O beijo no canto da boca pode ter sido rápido, mas foi o
suficiente para marcar a pele a ferro, atiçando todas as minhas
terminações nervosas. Sua ousadia me irrita, e não gosto nem um
pouco do calor que sobe pelo meu braço no momento em que Henry
pousa sua mão sobre a minha. E gosto menos ainda do vazio
gelado que fica ao retirá-la, quebrando o contato. Tive uma bela
cota de semanas difíceis ao longo da vida, mas aquela, com toda a
certeza, figura entre as piores.
Fiquei bastante mal após a briga na sala, pensando se precisava
ter ficado brava daquela maneira, lutando comigo mesma entre
pedir desculpas ou esperar que Henry pedisse. Claro que ele não
pediu e, com o silêncio entre nós, permaneci quieta, esperando
onde aquilo iria dar. Ele seguiu agindo de forma gentil com Peter e
não se mudou para o quarto de hóspedes ou o sofá, mas não
trocamos palavras além dos necessários sim ou não. Uma pequena
parte minha gostaria que ele tivesse se mudado. Se já estava
esquisito dormir ao seu lado antes, depois ficou ainda pior.
As fantasias de Homem-Aranha foram removidas e, junto com
elas, toda a alegria da casa. Detesto a forma como jazem inertes na
lavanderia. Fiquei triste pelo meu filho. Tanto por ter acabado com a
brincadeira, quanto por ter aceitado a ideia da sua tia. A separação
entre ele e Henry tem tudo para ser mais devastadora do que
qualquer um de nós foi capaz de prever. Temo por esse momento,
cada vez mais certa de que deveria ter contado a verdade sobre o
seu pai.
Impossibilitada de voltar no tempo, só me resta permitir que
aqueles dias junto com Henry sejam os melhores possíveis. Da
próxima vez, vou deixar que quebrem toda a sala. O importante é
ver Peter contente. O meu cunhado que substitua tudo depois.
Algum comentário feito por Mark faz Henry rir antes de levar a
taça de vinho à boca. Por enquanto estamos indo bem. Hector
nunca foi de fazer grandes demonstrações de carinho em público.
Beijos e toques ficavam reservados à intimidade da casa. O que ele
gostava de fazer, e eu vibrava inteira quando fazia, era tirar o meu
cabelo do rosto. Bastava que uma mecha se soltasse para que ele
estendesse o dedo e a colocasse atrás da orelha. Um arrepio
percorre o meu corpo só de lembrar do contato gerado por aquele
gesto simples que significava tanto.
Sendo assim, minha distante relação de mentira com Henry é o
suficiente para fazer meus vizinhos acreditarem na nossa farsa. Ele
cumpre a missão de só falar o necessário, mantendo nosso segredo
seguro e selando a promessa de que tudo correrá bem.
A campainha toca, anunciando a chegada da pizza. Mark se
adianta para atender a porta e Judy grita escada acima, fazendo
com que os meninos desçam correndo. Se Peter antes não queria
vir, agora temo ter problemas em levá-lo embora. Senta-se ao lado
do pai e começa a contar sobre o novo jogo do videogame do
amiguinho.
— E eu dei um soco nele! — diz, eufórico. Henry ergue a mão em
um high five, mas Judy fecha a cara.
— O que vocês estão jogando? — questiona, olhando para o
Liam. Ele encolhe os ombros.
— O Super Smash Bros, mãe.
— Ah, então tudo bem — tranquiliza-se. — Já disse que não
quero ver você jogando nada muito violento.
Liam assente, o rosto deixando claro que não concorda. Peter
agarra a manga da camisa de Henry.
— Por favor, papai. Deixa eu ter um videogame.
— Eu vou pensar. Preciso conversar com a sua mãe sobre isso,
está bem?
Peter grita como se tivesse recebido um sim. Tão alto, que chega
a fazer com que todos se encolham na mesa. Pula no pescoço de
Henry e começa a beijar o seu rosto, alucinado de felicidade. Meu
cunhado tenta afastá-lo, mas é impossível. Judy entra no coro de
risadas e eu mesma não resisto a sorrir para a cena. Mark retorna
com as pizzas e as deposita no centro da mesa.
— Está mudando de ideia, então? — pergunta. Henry lhe lança
um olhar confuso. — Você sempre falou que não queria que Peter
tivesse um videogame.
— Verdade, até ficava com medo quando ele vinha jogar aqui —
brinca Judy.
Henry abre a boca para responder, mas o chuto por debaixo da
mesa, lançando um alerta para que me deixe contornar a situação.
— Ainda estamos pensando — digo.
— Ah, por favor, mamãe — pede Peter, vindo cheio de dengo
para mim. Resisto a sua investida e me levanto para devolvê-lo a
sua cadeira.
— Conversamos depois. — Sei que vai tentar insistir, então sou
mais rápida. — Lembre-se: o Papai Noel só traz presentes para as
crianças boazinhas.
Peter ameaça ficar emburrado, mas Henry pisca para ele. O
efeito daquela transmissão de olhares é instantâneo e o menino
volta à animação anterior. Aproveito que estou de pé e lhe sirvo uma
fatia. Liam, mais velho, se serve sozinho.
Henry coloca uma fatia em meu prato assim que volto a me
sentar. Agradeço com um aceno de cabeça, o estômago roncando
de fome, concentrada na comida, incapaz de qualquer tentativa de
impedir o que ele faz a seguir. Henry dobra a fatia ao meio e, com
as mãos, a leva à boca seguindo o costume nova-iorquino. O
problema? Hector preferia usar os talheres. A mesa interrompe o
que está fazendo para acompanhar o movimento. Alheio a tudo,
Henry mastiga a comida com satisfação, até perceber que todos os
observam.
— A Inglaterra te mudou mesmo — diz Mark antes de imitá-lo.
Meu cunhado me lança um olhar de “O que foi que eu fiz agora?”
até que a compreensão atinge o seu rosto. Aquele com toda a
certeza é um hábito de infância, mesmo assim deveria tê-lo
lembrado antes de sair de casa. A constatação do meu vizinho
parece ser tudo o que Henry precisava para ligar o foda-se. Com
essa desculpa em mãos, desativa o modo Hector e decide
atravessar o campo minado.
— Mudou — comenta, metade da fatia em mãos. — Mudou
bastante!
Todos aceitam aquilo com tranquilidade e seguem comendo. Os
meninos logo raspam o prato e sobem correndo enquanto as
meninas, cansadas da conversa chata dos adultos, preferem ligar a
televisão e assistir a Frozen. O refrão de Livre Estou se mistura à
cacofonia de vozes cada vez mais altas, lideradas por Mark e Henry.
Ambos foram contaminados com o bichinho da empolgação e
debatem fervorosamente sobre futebol americano e hóquei no gelo.
Tento acompanhar, mas é demais para mim.
Ajudo Judy assim que ela se levanta para recolher os pratos.
Levo-os para a cozinha, coloco todos dentro da pia, pronta para
levar tudo a lava-louças. Judy aparece e segura o meu braço.
— Na-na-ni-na não! Você não vai correr o risco de manchar esse
vestido lindo com gordura!
— Judy, por favor… — peço, mas ela endurece o olhar.
A discussão na sala se torna mais acalorada. Olhamos para os
homens, que gesticulam um com o outro, animados em tentar definir
qual é o melhor time de nem sei mais qual esporte. Judy dá risada e
me encara.
— O seu marido voltou realmente mudado.
— Voltou — respondo, o rosto quente diante da mentira. — Acho
que ele tomou gosto após assistir aos jogos com os colegas
londrinos. Parece que é uma tradição sair do trabalho e ir para o
pub. — Ignoro o fato de que Hector preferia ficar sozinho em
companhia de um livro a assistir qualquer coisa junto de
desconhecidos.
— Que bom — continua Judy. — Ele parece mais feliz assim. E
como vocês estão?
Engulo em seco.
— Estamos bem.
A vizinha ergue uma sobrancelha.
— Só isso? Estamos bem? Mulher, se o meu marido passasse
seis meses longe acho que só um guindaste me tiraria do colo dele
— gargalha, tirando duas garrafas de cerveja da geladeira. Oferece
uma para mim. Aceito mais por educação que por vontade de beber.
Assim como o meu marido, eu prefiro vinho. — Só posso imaginar
que a semana de vocês foi bem quente!
Giro a tampinha metálica entre os dedos, abro a garrafa e bebo
um gole. O amargor gelado desce pela garganta e torço que seja o
suficiente para aplacar a quentura que toma conta do meu rosto.
Imagino qual seria a cara da minha vizinha ao saber que, na
realidade, fizemos uma troca de gêmeos. Estou dormindo com o
meu cunhado irritante, dono de um sorriso sarcástico, corpo
irresistível, braço cheio de tatuagens e um ar dominador capaz de
incendiar o tecido de uma calcinha.
— Foi, muito — respondo, em um tom de quem tenta encerrar o
assunto, mas se Judy percebe, ela ignora.
— Depois preciso mostrar para você o meu brinquedinho novo —
comenta. — Eu te falei, não falei? Que o Mark me deu um vibrador
de presente? É quase do tamanho dessa garrafa — ri de novo,
deliciada. — Você precisa saber como é a sensação de ter os dois
ao mesmo tempo e…
— Ei, amor! Traz uma dessa para mim — interrompe Henry,
apontando em minha direção.
Agradeço a todos os deuses presentes no universo e, com um
rápido pedido de licença, abro a geladeira e pego uma cerveja para
o meu marido. Aproveito para sentar-se ao seu lado e Henry,
despreocupado, passa um braço em torno dos meus ombros,
puxando o meu corpo contra o seu.
O calor da lateral do seu peitoral logo invade a minha pele e
respiro fundo. Ele só pode estar bêbado, mas a voz firme ao criticar
o prefeito de Nova Iorque prova que não está. Judy junta-se a
discussão. A estranheza da proximidade com Henry dá lugar ao
conforto e permaneço ali, só escutando.
Passa da meia noite quando finalmente nos levantamos para ir
embora. Há muito Frozen deu lugar a Moana e as meninas dormem,
tranquilas, entre as almofadas do sofá. Enquanto os homens trocam
tapas nas costas, eu e Judy subimos para saber dos nossos filhos.
Liam ainda está acordado, jogando com o volume da TV baixo, mas
Peter dormiu. Pego o menino no colo, antecipando o momento em
que ele estará grande e pesado demais para aquilo, e desço as
escadas com cuidado.
Ao me ver, Henry estende os braços em um gesto tão natural, tão
idêntico ao de Hector, que por um instante fico paralisada. Ele
franze o cenho, talvez pensando que não quero passar o meu filho
para o seu colo, quando saio do meu estupor e entrego a criança.
Peter se mexe, enroscando-se contra o peito do pai em uma
familiaridade de causar inveja.
Então Henry estende a mão e, devagar, coloca uma mecha de
cabelo atrás da minha orelha. O contato é tão rápido que, se eu não
estivesse prestando atenção, teria passado despercebido. Inspiro
fundo, sentindo os olhos se encherem de lágrimas, feliz por todos
estarem entretidos se despedindo, alheios ao turbilhão de
sentimentos que explode em meu peito.
Com os casacos sobre os ombros, nos despedimos dos vizinhos
e cruzamos o curto caminho de volta a nossa casa. O ar está mais
frio, mas a fina neve que cai continua longe do necessário para
cobrir a rua com o seu manto branco. Entramos no vestíbulo e
somos abraçados pelo delicioso calor do aquecedor central.
— Vou colocar o Peter na cama — diz Henry, ajustando o menino
no colo.
— Tudo bem. Não se esqueça de acender a luz noturna.
O homem confirma com a cabeça, dá alguns passos adiante e
olha por cima do ombro.
— Eu me sai bem, não sai? — comenta, presunçoso. O sorriso
que se abre nos meus lábios é involuntário.
— Se saiu, preciso admitir.
— Ótimo, agora você pode parar de pegar no meu pé — pisca,
de brincadeira. Finjo uma cara feia e ele ri baixinho.
Observo-o subindo com o meu filho nos braços. É estranho ter
aquela certeza em menos de uma semana de convivência, mas já
confio em Henry para colocar Peter na cama. Sigo direto para o meu
quarto e, como tomei banho antes de sair de casa, limito-me a trocar
o vestido por um confortável pijama e me enfio entre as cobertas.
Henry entra instantes depois e finjo que estou dormindo. Sinto o seu
olhar sobre mim, mas o homem não emite palavra. Em poucos
minutos o peso do seu corpo afunda o colchão e ele também se
ajeita para dormir.
Logo escuto o ressoar baixinho de quem caiu no sono, mas
permaneço acordada. Não quero virar para o outro lado e correr o
risco de dar de cara com o seu rosto, então mantenho-me onde
estou, tentando pegar no sono que insiste em fugir. Não sei quanto
tempo se passa quando decido levantar. Sem fazer barulho, coloco
o roupão por sobre os ombros e vou para a cozinha.
A geladeira mostra-se vazia de garrafas de cerveja ou de vinho,
então pego uma nova no suporte do armário. Encaixo o abridor de
aço inox e puxo a rolha, mas por mais que eu me esforce, ela não
vem. Bufo, irritada, e deixo a garrafa sobre o balcão. Não preciso
dela para pegar o material de desenho na última gaveta do armário.
Ajeito o bloco de papel no centro da ilha e me sento em uma das
banquetas com um lápis em punho. Sem nenhuma pretensão,
começo a traçar linhas no papel. No começo da semana me deixei
levar a um desenho surpresa. Hoje, sei bem o que quero desenhar.
Aos poucos um esboço monocromático do rosto de Henry surge
entre um traçado e outro, fazendo com que eu me lembre da
primeira vez que desenhei o seu irmão. Havia suavidade nos traços
de Hector, mas forço os dedos, conferindo um ar mais duro ao olhar
intenso de Henry.
Encaro o esboço, satisfeita, e pego um lápis azul claro do estojo.
Devagar, pinto as suas íris, destacando aquela parte do seu rosto
em preto e branco.
— Ficou muito bom — diz uma voz às minhas costas.
Olho de soslaio para Henry e vejo seus olhos arregalados de
admiração. Dessa vez, não me esforço para esconder o desenho
dele.
— Obrigada. Não queria ter te acordado.
— Não acordou. Levantei para ir ao banheiro e percebi que a
cama estava vazia — dá de ombros. — Como não te achei no andar
de cima, achei melhor descer para conferir se você estava bem.
Sua preocupação aquece o meu peito. Observo enquanto se
aproxima do retrato e, sem pensar duas vezes, tiro o desenho do
bloco e estendo a ele. Sua admiração torna-se ainda mais palpável.
Aceita o presente e observa o desenho por um longo momento
antes de, enfim, falar alguma coisa.
— Você terminou o curso?
— Na universidade? — pergunto. Henry confirma com a cabeça.
— Não, não terminei.
— Por quê? — Seu tom de voz deixa claro o quanto acha a
situação um absurdo. — É muito talentosa. Chega a ser um
desperdício guardar isso só para você.
— Talvez você tenha se esquecido, mas eu fiquei grávida.
Henry me encara.
— Oras, era só voltar depois que Peter nasceu!
Rio, meio amarga.
— Para vocês homens as coisas são tão fáceis. O seu irmão
voltou a trabalhar menos de um mês após o nascimento do filho —
relembro. — Mas eu não queria fazer isso com Peter. Ainda mais
porque Hector sempre deu total suporte para que eu ficasse em
casa.
— E é isso o que você quer? — Seus olhos azuis são
inquisidores. — Ficar o tempo todo em casa?
Encolho os ombros.
— Gosto de cuidar da casa e adoro ter a companhia integral de
Peter— digo, um pouco sem graça. — Houve um tempo que pensei
em dar um irmãozinho a ele — continuo, lembrando do momento em
que expus a ideia a Hector. Fui uma criança solitária e sempre achei
que ter irmãos devia ser o máximo. O meu marido disse que
pensaria a respeito e nunca mais tocou no assunto. — Mas gostaria
de terminar o curso, apesar de não saber como ficou a situação da
minha bolsa de estudos. E agora, com o divórcio, não sei como
ficará a situação da minha vida.
Algo em Henry vacila. Desconcertado, o homem se afasta,
reparando na garrafa fechada com o abridor ainda enroscado na
rolha. Pousa o desenho na bancada de mármore e, com um rápido
movimento dos seus bíceps fortes, arranca a rolha e serve duas
taças. Lança um demorado olhar ao desenho antes de se virar.
— Aposto que você faria sucesso na internet — comenta. — As
pessoas pagariam para ter um retrato desses, Alicia.
Encolho os ombros, meio na dúvida. Henry volta a se sentar e me
oferece uma taça, mantendo a sua erguida e um convite para um
brinde. Olho por cima da borda da minha e, juntos, batemos cristal
com cristal. O som espalha-se pela cozinha, idêntico ao leve badalar
de um sino.
Durante o tempo que leva para sorvermos nossas bebidas, nos
damos uma trégua. Se vai durar, eu não sei, mas, por algum motivo
estranho, gosto do silêncio compartilhado naquela madrugada fria.
— Comporte-se — peço a Peter.
Ele assente antes de me dar um abraço de despedida. Depois
que retornou da viagem no final de semana, Judy decidiu aproveitar
a segunda-feira para levar as crianças ao pequeno parque de
diversões no shopping e convidou o meu filho. Sei que são apenas
algumas horinhas, mas o coração aperta como se ele fosse ficar
longe de mim por semanas.
— Ele estará de volta ao final do dia — diz Judy, compreensiva.
Assinto, mas ainda assim é difícil largá-lo.
Em um primeiro momento relutei em deixar Peter ir. Ele nunca
saiu sem mim e não consigo prever se ficará com medo e começará
a chorar, pedindo para voltar. Mas ele ficou tão eufórico, mas tão
eufórico, que foi impossível dizer não. Judy garantiu que retornará
ao menor sinal de problemas, então relaxei.
Peter começa a rir ao pé do meu ouvido. Olho por cima do ombro
e vejo Henry fazendo careta a poucos metros de distância. Ainda
bem que os dois já se despediram. Não duvido que o meu cunhado
pediria para o sobrinho tocar o terror no shopping. Suspeitando do
pensamento que cruza a minha cabeça, o menino me encara, muito
sério.
— Eu vou me comportar, mamãe.
— É bom mesmo — dou um tapinha de brincadeira em sua
bunda e ele ri mais um pouco.
— Não quer mesmo ir junto? — pergunta Judy.
Quase mudo de ideia. Um par de olhos e mãos extras ajudariam,
e muito, a cuidar de quatro crianças, mas a casa está uma bagunça
e, apesar de amar a companhia do meu filho, algumas horas livres
viriam a calhar. Nego, confiando nos cuidados da vizinha.
— Vou em uma próxima.
Ela assente, compreensiva. Estende a mão para o menino e,
juntos, caminham até o imenso SUV da família. Observo Peter
sendo afivelado na cadeirinha de segurança, tagarelando sem parar
com Liam. Ele acena e, instantes depois, o carro roda em direção ao
shopping.
— Ele nem olhou para trás — desdenha Henry. De tão
concentrada no meu filho nem vi o homem se aproximar.
— Pois é. Se já está assim aos quatro anos, como estará na
adolescência? — comento, preocupada.
— Depende — dá de ombros. — Se puxar ao tio…
— Melhor eu não saber — corto.
O homem percebe meu bom humor e abre um sorriso, mas não
tece novos comentários. As coisas mudaram desde o jantar. Ou,
melhor dizendo, desde que enxugamos uma garrafa inteira de vinho
em uma silenciosa madrugada. O sábado amanheceu diferente,
como se uma inédita compreensão tivesse brotado durante aquelas
poucas horas até o despertar.
Duvido que a culpada seja a conversa regada a vinho, mas
aposto que foi ela quem fez Henry perceber tudo o que precisei
deixar para trás a fim de ter uma família. Tornou-se mais
compreensivo. Durante todo o final de semana colaborou em manter
a casa arrumada e tentou conter Peter caso ele comece a
extrapolar, deixando de se intrometer quando interferi em sua
educação. Ainda cede aos caprichos do menino com mais
frequência do que eu, mas, ao contrário do irmão, Henry não teve a
experiência de aprender a tentar educar uma criança. Está ali para
agradar e faz isso muito bem.
As conversas monossilábicas ficaram para trás e passamos a
compartilhar um pouquinho do nosso dia a dia. Aos risos, Henry me
contou sobre a confusão no bar que divide a sociedade com um tal
de Scott e os demais investimentos que tem na costa oeste. Ouvi
tudo com bastante curiosidade. Mordi a língua por achar, durante
todos aqueles anos, que o gêmeo mau da família Chamberlain fosse
apenas um desocupado mulherengo que vivia às custas da herança
deixada pelo pai.
O que continua me incomodando é o fato de dormirmos juntos. É
confuso, às vezes nem eu mesma entendo, mas depois de tantos
meses sozinha, gosto de ter companhia. O problema está na forma
intensa como Henry me olha antes de se enfiar debaixo das
cobertas, devorando o meu corpo centímetro a centímetro, desejoso
se fazer mais que ficar ali deitado de costas para mim. O problema é
que, cada vez mais, estou gostando daquela atenção.
Em nenhuma ocasião acordei com um braço forte passado por
sobre o meu tronco, ou uma ereção pressionando a bunda, mas
acordei molhada, com o centro da minha feminilidade pulsando de
desejo por conta da presença de um corpo masculino a poucos
centímetros de distância. Falam que os homens pensam com a
cabeça debaixo, mas está cada vez mais difícil pensar com a minha
única cabeça diante de tamanha tentação.
O que ainda não sei responder, e vem me causando cada vez
mais confusão, é: esse desejo vem por Henry ser fisicamente
idêntico a Hector ou por Henry ser quem ele é? Não importa. Ainda
sou uma mulher casada. Preciso me esforçar para ignorar esses
pensamentos de uma vez por todas.
— Alicia? Oh, Alicia! — Alguém estala os dedos diante do meu
rosto e volto ao aqui e agora. Pisco, focando no bonito rosto do meu
cunhado.
— Diga.
Ele franze o cenho.
— Estava no mundo da lua, é? — o sorriso, aquele maldito
sorriso safado, se alarga em seu rosto. — Ou, quem sabe, estava
pensando em… coisas indecentes?
— Vamos, Henry! Não tenho o dia todo — tento mudar de
assunto, sentindo o rosto quente.
Para não lhe dar a satisfação de ver a pele avermelhada, deixo-o
sozinho diante da porta aberta e caminho em direção a cozinha.
Escuto o baque da fechadura contra o batente e os passos firmes
nas minhas costas.
— Vou pegar o carro emprestado, tudo bem? Preciso dar um pulo
em Long Beach.
— Vai fazer o que lá? — Ele ergue uma sobrancelha e me
adianto em acrescentar. — Desculpe, você não me deve
satisfações.
— Vou ver um bar — diz, tranquilo. — Scott viu uma
“oportunidade” — enfatiza, ao franzir os dedos acima da cabeça,
imitando o sinal de aspas — de negócios na costa leste e pediu para
dar uma olhada. Acho que será uma grande perda de tempo, mas
preciso de argumentos para dissuadi-lo dessa ideia e só os terei
depois de ver com os meus próprios olhos.
Aquela é outra coisa que venho descobrindo em Henry. Ele pode
pagar de playboy despreocupado no melhor estilo deixa a vida me
levar, mas se importa de verdade com as pessoas.
— Pode pegar, sim. Você volta ainda hoje?
— Claro — ele hesita por um instante, mas solta a pergunta. —
Quer ir junto?
Faço que não.
— Vou esperar o Peter e, de qualquer forma, preciso arrumar a
casa.
— A casa está arrumada, Alicia — comenta, caminhando de volta
ao vestíbulo. Pega a chave no suporte ao lado do armário de
casacos e os chaveiros tiritiram em sua mão. De repente seu rosto
se torna preocupado. — Vai ficar bem sozinha?
— Ficarei ótima, ainda mais sem dois bagunceiros tagarelando
na orelha.
Henry, em uma atitude muito madura, mostra a língua e vai
embora. Rio e espero até que saia com o carro. Aceno de leve e ele
dá dois toquinhos na buzina, confirmando que viu minha despedida.
Volto para dentro e é claro que estranho o silêncio da casa. Decidida
a não me abater, ponho uma música pop no celular e começo os
meus afazeres.
Só um homem solteiro para achar que a casa está arrumada.
Coloco a louça para lavar, passo um pano nas bancadas e na ilha
central e migro para outro cômodo. Tudo em ordem na sala de
jantar, mas a de estar precisa de cuidados. Aspiro o tapete, espano
o pó da televisão nova e afofo as almofadas. Satisfeita em vê-las
ordenadas no sofá, migro para o andar de cima.
Peter pode ser um menino muito bonzinho, mas é péssimo em
manter o quarto arrumado. Com Henry a coisa piorou. Às vezes eles
passam metade da tarde brincando, descem para o jantar e estão
cansados demais para arrumar antes de dormir, a desculpa perfeita
para deixar tudo bagunçado até o dia seguinte. Balanço a cabeça ao
ver bonecos do Capitão América misturados aos novos do Homem-
Aranha jogados no chão, outros espalhados pela cama, tapete e
mesinha de cabeceira. Pego um por um e os coloco de qualquer
jeito na caixa de brinquedos.
Estou saindo do quarto quando vejo um último boneco, menor,
sobre a escrivaninha. Estendo a mão para pegá-lo e reparo no
desenho feito com giz de cera. Peter gosta de pintar e só o tempo
dirá se ele terá talento ou não, mas imaginação ele tem de sobra.
No centro da folha, um homem com cabelos escuros e olhos azuis
beija uma mulher ruiva com olhos castanhos. Um menininho
intromete-se entre os dois bonecos palitos com um sorrisão de
alegria que atravessa a face redonda.
Lembro-me do beijo rude roubado na universidade. Algo me diz
que, se nos beijarmos de novo, será tão rude quanto. Não há nada
na expressão de Henry que denote suavidade.
— E para que você está pensando nisso, Alicia? — pergunto a
mim mesma. Deixo o desenho onde está, jogo o boneco junto com
os outros e saio do quarto. — Você é uma mulher casada —
relembro. — E Henry é o irmão do seu marido!
A curiosidade persiste e só me resta voltar ao trabalho para
afastá-la. Sei que o quarto de hóspedes está arrumado, então
caminho em direção ao meu próprio quarto. Ignoro o delicioso
aroma de colônia masculina que sobe dos lençóis assim que os
removo da cama. Troco as fronhas dos travesseiros, ajeito o lençol
limpo e cubro tudo com o edredom.
Ao chegar na lavanderia com a roupa de cama nos braços,
percebo que os meus afazeres estão prestes a terminar. Coloco
tudo na máquina de lavar, subo com a roupa limpa, as distribuo em
suas respectivas gavetas e me pergunto se há mais alguma coisa
para limpar, mas sei que a resposta é negativa. Henry tinha razão,
salvo aqui e ali, a casa está arrumada.
Volto para o andar debaixo e encaro o relógio da cozinha. O
tempo passou e nem percebi, mas ainda tenho uma hora até
precisar pensar no jantar. Diante do tempo livre, meu impulso é
retirar o material de artes da gaveta e aproveitar para desenhar.
Coloco uma cápsula de cappuccino na cafeteira e, enquanto o
delicioso aroma de café quentinho preenche o ambiente, ajeito o
bloco de desenho e o lápis sobre a ilha da cozinha.
Pego a caneca, assopro o vapor quente e observo a folha em
branco, imaginando o que posso colocar aqui. Nada vem à mente.
Pouso o café sobre o mármore e arrisco um ou outro traçado, mas a
folha continua vazia. Pelo visto, a inspiração foi embora, como todos
na casa.
Sei que não adianta insistir. Estou guardando tudo quando uma
nova ideia surge: e se eu surpreender Peter e Henry com um bolo?
Algo simples e gostoso, que possamos comer após o jantar. Dou
uma rápida olhada no armário e na geladeira. Tenho farinha, açúcar,
ovos e manteiga de sobra, além de uma travessa cheia de mirtilos.
Empolgada, deixo tudo onde está e corro até o meu quarto, em
busca do celular.
Volto para a cozinha e perco-me no YouTube, entretida com os
vídeos de receitas de recheios cremosos e caldas arroxeadas. O
recheio dará muito trabalho, mas o resto é simples de fazer. Farei
um pão de ló fofinho e jogarei a calda por cima. Meu estômago
forrado apenas por uma caneca de café ronca diante da sobremesa
de mais tarde.
Estou para deixar o celular de lado quando um comichão me
induz a abrir o Instagram. Não sou de postar e, salvo os vídeos de
gatinhos fofos, não há nada de interessante para se ver no feed, até
que uma fotografia na parte de cima do site, circulada por um aro
cor-de-rosa, chama a atenção.
Hector odeia as redes sociais e criou a conta apenas por que a
irmã o obrigou. A desculpa era mantê-lo mais próximo da família,
mas ele nunca postou nada. Por conta disso, estranho que tenha
decidido postar um story.
Para isso você está com tempo, não é?, penso, amarga, ao
lembrar que o meu e-mail contestando o divórcio jamais foi
respondido. Parte de mim quer fechar o aplicativo, mas é claro que
a curiosidade fala mais alto. Torna-se uma necessidade saber o que
Hector postou na rede social, para que todos, sem exceção, possam
ver.
Então levo a ponta do dedo ao canto superior da tela do celular e
abro o story. No mesmo instante outra foto surge e, pela primeira
vez em semanas, vejo o meu marido. Dá para notar que perdeu
peso, mas continua tão lindo como sempre foi, o olhar azul e intenso
fazendo um impressionante contraste com a pele pálida e os
cabelos muito escuros.
A análise dura segundos, pois Hector não está sozinho. Seus
braços passam pela cintura de uma belíssima mulher loira. Ela
possui olhos inteligentes, cabelos escovados à perfeição, o queixo
erguido de quem sabe que está pronta para conquistar o mundo. O
corpo esculpido envolto em um vestidinho vermelho com certeza
nunca passou por uma gravidez. Não sabe o que são estrias, muito
menos celulites. Ela exala volúpia. A loira é fatal.
Por trás da foto, vejo o esboço do meu próprio reflexo na tela do
celular. Leves olheiras tingem a parte debaixo dos meus olhos. Os
cabelos não veem um pente desde a manhã. Meu corpo jamais
voltou a ser o mesmo depois de carregar um bebê por nove meses.
Qualquer homem sensato me trocaria pela chance de trepar com
uma mulher daquela.
O soluço fica engasgado na garganta, mas o choro vem,
arrancando-me grossas lágrimas da mais pura tristeza, levando
consigo qualquer esperança que eu tivesse de salvar o meu
casamento. O soluço enfim escapa em um grito dolorido. Deixo o
celular cair e, devagar, escorrego da banqueta até o chão. Levo as
mãos às laterais da cabeça, tentando me acalmar, mas não consigo.
A angústia toma conta e abraço a mim mesma, a perspectiva de ter
um jantar feliz completamente esquecida.
Coloco o carro na garagem, certo de que não deveria ter perdido
tempo lutando contra o trânsito infernal para ir até a praia. O ponto
que Scott sugeriu é horrível. A menos que deseje inaugurar um
pulgueiro, precisaria derrubar metade do prédio para ter um bar
digno no local. Admiro a vontade de crescer do meu sócio, mas ele
precisa colocar os pés no chão. Vou sugerir que permaneça na
costa oeste. Com tantas praias bonitas para expandir os negócios
por lá, não faz o menor sentido querer vir para o outro lado do país.
Desço do carro e sou atingido por uma rajada de vento frio. A
neve que cai não é o suficiente para forrar o chão de branco, mas
tem a capacidade de gelar as canelas como ela só. Tudo o que
quero é entrar pela porta da minha casa e beber algo quentinho.
Minha casa, não. A casa de Alicia e Peter, lembro a mim mesmo.
Você só está de passagem. Pela primeira vez, uma sensação de
pesar toma conta do meu peito, aumentada quando enfim abro a
porta e não escuto o menino vindo me receber aos gritos de alegria.
O que escuto faz o meu cérebro entrar em alerta. Uma mulher
chora, agoniada, em algum canto da casa. Esqueço de limpar as
botas no tapete e de tirar o casaco ao correr em direção ao som.
Não preciso ir longe: Alicia chora abraçada a si mesma no chão da
cozinha, o celular caído ao seu lado.
Olho para ela, assustado, sem saber o que fazer. Ajoelho-me,
tentando descobrir se está machucada, mas aparentemente não
está. Devagar, ergue os olhos de encontro aos meus.
— Você tem Instagram? — franzo o cenho, mas faço que sim. —
Dá uma olhada no story que o Hector postou.
Um rastro de gelo percorre a espinha, da lombar até a nuca. Ou
ele morreu, ou postou algo muito desagradável. Aposto na segunda
opção. Pego o celular caído no chão e não me espanto ao descobrir
que a tela é livre de qualquer tipo de bloqueio. Volto alguns stories
de gatinhos fofos e encaro o causador daquilo.
Hector teve a pachorra de compartilhar uma foto ao lado de uma
mulher loira. Há muitas daquele tipo na Califórnia. Estonteantes,
donas de sorrisos provocantes, prontas para arrasar na cama ou
fora dela. Aquela encara o meu irmão com o seu melhor olhar de eu
quero que você me foda bem gostoso, meu querido. Há química ali
e só um completo idiota deixaria de ver o óbvio. Um segundo
homem aparece mais ao fundo, provavelmente alguém que saiu de
penetra na foto, mas pouco importa.
O que importa é a raiva que se acende dentro de mim. Nem eu
chegaria a ser cafajeste aquele ponto. Posso ter as minhas
diferenças com Alicia, mas poucos dias bastaram para ver como ela
é uma esposa e mãe dedicada. Aquilo não é justo. Se antes quis
esmurrá-lo pelo que fez com Peter, agora quero esmurrá-lo por
Alicia também.
— Acabou, Henry — ela diz, baixinho a ponto de ser quase
inaudível, os olhos opacos cravados nos quinze segundos
necessários para aquele pesadelo se transformar em outro story. —
Eu ainda tinha esperança, sabe? De reatarmos. Mas agora —
aponta o celular com o queixo. — acabou. Fui trocada por uma
mulher muito mais bonita do que eu.
— Ei, de onde você tirou isso?
Ela abre os braços em direção ao próprio corpo encolhido no
chão.
— Olha para mim. Sou apenas uma dona de casa. Nunca mais
terei uma cintura como essa — volta a olhar para a tela, mas a loira
foi substituída pelos gatinhos. — Para piorar, a minha está tomada
por estrias da gravidez. Que homem quer ver isso? Sem contar que
essa daí deve ser estudada, viajada, culta e inteligente. É claro que
o Hector me trocou.
E volta a cair no choro. Quero dizer a Alícia que ela não tem
olheiras. Que os seus cabelos ruivos são de causar inveja. Homem
nenhum fica caçando estria na hora do vamos ver e, se for do tipo
que fica, deveria era então tomar uma surra. Inteligente? Alicia tinha
uma bolsa para estudar em Columbia! Eu e o imbecil do meu irmão
podíamos pagar, mas se não pudéssemos, não teríamos passado
nem na porta de uma universidade do calibre da Columbia.
Mas não digo nada. Limito-me a puxá-la para um abraço. Alicia
vem sem mostrar a mínima resistência. Agarra meus ombros com
força e esconde o rosto contra o meu peito, afundando-se em mim.
Seus ombros tremem, descontrolados, enquanto as lágrimas
molham o casaco que não tirei, mas não digo nada. Apenas a
abraço forte, afago as suas costas e deixo que chore.
Aos poucos Alicia se acalma, mas permanece onde está. Quando
dou por mim, estou deslizando os dedos pelos seus cabelos. Se
aquilo incomoda a mulher, ela não demostra. Pelo contrário, o seu
corpo relaxa, como se estivesse feliz pelo toque. Com delicadeza,
puxo-a para mais perto, desfrutando do calor do seu corpo contra o
meu.
— Melhor? — pergunto. Ela faz que sim e só então se afasta. Um
vazio estranho, frio, toma conta do espaço antes ocupado por ela.
Alicia limpa os olhos com as costas das mãos e me encara.
— Desculpe, eu…
— Ah para, né — corto. — Você não me deve desculpas de nada!
Não deve ser fácil ver uma foto dessas.
Ela sorri de um jeitinho triste.
— Não, não é. Sabe do que eu tenho medo? — nego com a
cabeça e vejo seus olhos voltando a se encher de lágrimas. — Do
Hector tirar o Peter de mim — a voz falha e ela volta a chorar. — Ele
tem muito mais recursos. Pode contratar um bom advogado e me
mandar direto para um campo de trailers.
Os ombros de Alicia voltam a tremer. Várias fichas caem dentro
do meu cérebro, ensurdecendo-me com o seu tilintar.
— Você morou em um trailer? — pergunto, apenas para
confirmar o óbvio. Ela morde os lábios e assente, o rosto vermelho
de vergonha.
— Foram anos difíceis — comenta, bem baixinho. — Há muita
gente digna vivendo nesses lugares, algumas até que escolhem isso
como meio de vida, mas não era o nosso caso. Estávamos lá
porque não tínhamos dinheiro — soluça. — Às vezes não tínhamos
nem o que comer.
Não sei de onde aquela vontade vem, mas vem como a erupção
de um vulcão: eu preciso proteger aquela mulher. Há muita força em
Alicia, sei que há, mas naquele momento ela é apenas uma garota
assustada. Não gosto de ver o medo latente em seus olhos e vou
fazer o de tudo para tirá-lo de lá, custe o que custar.
— Escuta aqui — peço, quase como uma ordem. Parte de mim
deseja que ela retruque, cheia de marra, mas permanece quieta. —
Prometo que Hector não ficará com Peter, porque se ele tentar,
precisará se lembrar que eu também tenho muitos recursos e não
vou deixar que tire o seu filho. Você nunca mais pisa em um trailer.
Estamos entendidos?
Alicia solta um risinho irônico.
— Não sei se a sua ajuda me deixa aliviada, Henry — diz,
limpando os olhos com as costas das mãos. Empurro o seu ombro
de leve, de brincadeira, e ela ri um pouco mais.
— Estamos entendidos ou não? — insisto, rindo de volta. Com
um sorriso triste, ela assente.
— Obrigada.
— De nada — digo, ao tempo de ouvirmos um carro
estacionando diante da casa — Acho que o seu filho chegou —
indico com a cabeça.
Alicia assente e tenta se levantar. Levanto-me primeiro e estendo
a mão para ajudá-la. Ela a aceita, fazendo com que uma discreta
corrente elétrica suba pelo meu pulso. Desconcertado, ergo-a para
cima, curioso para saber se sentiu o mesmo do que eu.
Uma vontade insana de lhe dar um segundo abraço me domina,
mas, dessa vez, eu não me limitaria a mantê-la quietinha contra o
peito. Resisto à tentação e a observo se distanciando, cabisbaixa,
em direção a porta da sala. Peter grita do outro lado.
Aparentemente, Judy lhe deu um presente. Estou curioso para ver o
que é, mas subo para o escritório antes que Alicia abra a porta. Uma
ideia vem a minha mente.
Quero dar um presente, a Alicia, mas o que? Tento pensar em
alguma coisa, mas meu cérebro parece tomado por um bloqueio
criativo. Bom, se tem alguém na família que é gênio em ter boas
ideias, por mais mirabolantes que sejam, esse alguém é Emilly
Chamberlain.
Tiro o celular do bolso da calça e acesso o contato da minha
irmã. O telefone chama até cair na caixa postal. Bufo, meio irritado,
e faço uma nova chamada. Dessa vez a bonita atende.
— Quem fala? — pergunta, ofegante.
— Misericórdia! Espero que eu não esteja interrompendo uma
sessão de sexo selvagem — brinco. Quase consigo vê-la me
mostrando o dedo do meio para a tela do celular.
— Não, seu idiota! Só estou correndo no Central Park.
— Nesse frio?
— Henry, se ligou para encher o saco, saiba que ainda preciso
correr cinco quilômetros e, como você mesmo disse, está frio —
resmunga. — Desembucha!
— Primeiro, entra no perfil do Hector no Instagram e veja o que
ele postou nos stories.
— Você está de gozação com a minha cara, né? O perfil dele
deve estar criando mofo. Ele nunca posta nada!
— Pois é, mas decidiu postar — digo, soturno. Emilly percebe
meu desagrado. Por alguns instantes escuto apenas os passos
apressados de outros frequentadores do parque e o latido de um ou
dois cachorros, até que minha irmã solta um sonoro puta que pariu e
volta a linha.
— Eu não acredito que ele fez isso com a Alicia!
— Também não acreditaria se não tivesse visto — retruco. Emilly
solta mais alguns impropérios. Ainda bem que está fora de casa. Se
estivesse no apartamento da minha mãe ela a obrigaria a lavar a
boca com sabão. — E, como você deve imaginar, a Alicia já viu.
— Coitada — solta, entristecida. — Ela está bem?
— Não. Está um caco, por isso eu te liguei — resumo o
acontecido e a forma como Alicia se sentiu após ver a foto. —
Pensei em sei lá, fazer algo por ela. O que você acha?
O silêncio do outro lado da linha é ensurdecedor.
— Você, entre todos os homens na face da Terra, quer fazer algo
pela Alicia? — questiona, incrédula.
— Quero. Qual o problema nisso?
— Nenhum! — vibra. Franzo o cenho, sem entender nada. — Eu
fico feliz, de verdade.
— Tá… e você tem alguma ideia? Talvez um presente?
— Acho que você pode fazer mais. Há algum limite de gastos?
— Não.
— Então me deixa pensar um pouco — assinto para mim mesmo
e aguardo enquanto escuto os sons ao fundo. Outro cachorro late,
seguido pelo riso alegre de uma criança. Desvio o foco para os sons
dentro da casa. Peter entrou na casa e Alicia parece conversar algo
com a vizinha. Espero que ainda fiquem um pouquinho no andar
debaixo. Seja qual for a ideia que Emilly vai me dar, quero que seja
surpresa. — Já sei! — diz, por fim. — Você poderia dar um dia só
para ela!
— Como assim?
— Você é lento tem hora, heim? — abro a boca para retrucar,
mas Emilly continua. — Aposto que Alicia é o tipo de dona de casa
que faz tudo. Ela dedica vinte e quatro horas do dia ao filho e ao…
marido, por mais que ele seja de mentira. Limpa, cozinha e está
sempre ali, a postos, para tudo e para todos, menos para ela.
Não preciso nem refletir. Minha irmã acabou de descrever a
cunhada com exatidão.
— É isso mesmo — confirmo.
— Ela precisa de um dia dela — continua. — Um dia em que sua
última preocupação seja a casa ou o filho. Onde ela possa mimar a
si mesma, entende?
— Entendo. — Uma ideia começa a se formar na cabeça. Sei que
posso contar com Peter. Prestativo como é, o menino ficará
deliciado. — Tem ideia de onde eu poderia levá-la? Talvez um salão
de cabeleireiros ou…
— Salão, não! — Emilly solta, indignada. — Um salão sugeriria
uma mudança de aparência que, no presente momento, poderia
deixá-la mais insegura. O que Alicia precisa é de um dia só para si,
para enxergar a mulher maravilhosa que é, sem precisar de
qualquer mudança. Acho que um dia sendo paparicada em um SPA
seria perfeito!
— Ótimo! Tem algum para indicar?
— Tenho. Eu mesma vou agendar. Já já te mando uma
mensagem com a confirmação e com a conta.
— Tudo bem. — Um pensamento louco cruza a minha mente. —
Não é daqueles com massagistas pelados, é?
— Existe um desses em Manhattan? Porque se existir, é nesse
mesmo que vou marcar!
Uma sensação incômoda invade o meu peito.
— Não sei se existe — digo, entredentes —, mas, por favor,
marque um SPA comum.
Emilly percebe. É claro que percebe.
— Pode deixar, irmãozinho — ri, antes de desligar. Tiro o telefone
do ouvido e encaro a tela escurecida, tentando entender o que foi
aquela momentânea onda de ciúmes, mas não tenho tempo. Peter
enfim sobe as escadas e para diante da porta do escritório com um
sorriso de orelha no rosto.
— Papai, olha só o que eu ganhei! — diz, me estendendo um
boneco Funko Pop do novo filme do Homem-Aranha. — A Tia Judy
me deu!
— Que lindo! Você agradeceu a ela?
— Sim — confirma Peter.
— Ótimo! Agora me conta, você sabe guardar um segredo?
Os olhos do menino brilham enquanto ele assente, curioso. Faço
um gesto pedindo para se aproximar e sussurro a ideia em seu
ouvido. Qualquer um diria que é pouco esperto confiar que um
menino de quatro anos será capaz de segurar a língua, mas confio
em Peter. Ao terminar, encaro o seu rosto maravilhado, e tenho
certeza de que ele vai me ajudar.
Abro os olhos, bem devagar. O silêncio no quarto me pega de
surpresa. Após meses dormindo sozinha, logo me acostumei a
acordar ouvindo o ressonar baixinho do homem ao meu lado. Hoje,
sei que não preciso me virar para saber que ele não está ali. A falta
do leve barulho é o de menos. O que sinto falta mesmo é do seu
calor.
Falta? Do Henry? É, acho que sim, por mais difícil que seja
admitir. Ele é irritante, sem-vergonha ao extremo e me fez desejar
chorar de raiva pelo menos três vezes desde que chegou, mas
também é bom para Peter.
E foi bom para mim, depois que cedi ao desespero. Não
esperava ser abraçada contra o seu peitoral forte, os braços em
torno do meu corpo, fazendo com que me sentisse segura como há
muito eu não me sentia. Seria mentira dizer que o amadeirado do
seu perfume tinha um quê calmante. Foi o próprio Henry que me
acalmou e deu um pouquinho de força e, por um breve momento,
relaxei no calor da sua proteção.
Ele ficou atento durante o restante do dia, perguntando vez ou
outra se eu estava bem. Fui sincera ao dizer que estava, mesmo
que apenas dentro do possível. Sua promessa de garantir que Peter
permanecerá comigo não foi em vão. Ninguém faz uma promessa
com tamanha fúria se pretende quebrá-la. Aquilo permitiu que eu
tivesse um sono tranquilo. Espero que os dias até tudo se resolver
com Hector sejam tranquilos, também.
O som de algo metálico caindo no chão, seguido de um
xingamento alto e de uma risada infantil chamam a atenção. Henry e
Peter aparentemente estão na cozinha. Fazendo o que? Só Deus
sabe. Espreguiço-me na cama e me levanto um pouco preocupada,
mas bastante curiosa para descobrir o que está acontecendo no
andar debaixo.
— Mamãe! — vibra Peter, ao me ver entrando na cozinha. Encaro
o menino de boca aberta. O cabelo ruivo tornou-se branco de
farinha. Ergue os olhos em direção aos fios sujos e ri todo alegre
antes de correr até mim. — Estamos fazendo biscoitinhos de limão!
— Estamos tentando — corrige Henry, olhando de cara feia para
a assadeira sobre a bancada de mármore. Corro os olhos pelo piso
e, pela quantidade de biscoitos espalhados pelo chão, ela caiu antes
de ser colocada ali. Volto a focar no homem na cozinha e quase
perco o fôlego.
Assim como o meu filho, Henry tem farinha até nos cabelos,
conferindo um falso toque grisalho aos fios escuros. Uau, se dali a
quinze anos ele mantiver a forma física, tem tudo para se tornar um
quarentão de derrubar queixos e calcinhas. O avental feminino é
pequeno para o seu corpanzil, ajustando-se em seu tronco como
pode, salientando cada parte da cintura marcada e do peitoral largo.
Reparo que mantém as tatuagens cobertas pela manga da camiseta
que usou para dormir, mas, se pudesse, a tiraria sem pensar duas
vezes. Pequenas gotas de suor escorrem pelo rosto. Ele as limpa
com um pano de prato e sorri de orelha a orelha.
Aquilo tem potencial para me atingir em cheio, mas não atinge.
Porque o sorriso idêntico ao de Hector também é diferente, todo
próprio de Henry, o canto dos lábios curvado meio de lado com
aquele toquezinho safado que me enerva de diferentes maneiras.
Sorrio de volta, pela primeira vez feliz por ele estar ali não só por
Peter, mas também por mim. O poço se agita, não tão profundo
dessa vez, mais quente do que antes. E Henry percebe. Claro que
percebe. Um homem como ele está acostumado a ler as entrelinhas
da face de uma mulher. Obrigo-me a quebrar o contato.
— Preciso pegar uma vassoura para limpar essa bagunça —
digo, apontando para a lavanderia. Aquele barulho é o da máquina
de lavar ligada? Não tenho tempo de conferir. Henry segura minha
mão no ar e me encaminha para a ilha no centro da cozinha.
— Pode ficar tranquila que eu mesmo vou limpar. Hoje é o seu
dia de não fazer nada.
Ergo uma sobrancelha.
— Não sabia que donas de casa tem dias de não fazer nada.
— Você tem, vê só que maravilha? — Com um floreio, puxa uma
das banquetas. — Vamos, sente-se aqui que eu e o Peter
cuidaremos do café da manhã e de todo o resto. Acabamos de
colocar a roupa para lavar.
Meu filho assente, animado. Olho de um para o outro,
imaginando de onde tiraram aquela ideia, mas sei que é tempo
perdido. A família Chamberlain, pelo visto, é mestre em ter ideias
mirabolantes.
— Tudo bem, mas só me deixe pegar a vassoura e…
— Não, não e não. Você não vai varrer nada, Alicia — insiste,
muito sério. — Pode sentar, por favor? Detestaria perder a próxima
fornada de biscoitinhos de limão.
Rio para mim mesma e dou de ombros, sentando-me na
banqueta. Henry assente, satisfeito, e volta ao seu posto ao lado do
forno. Salva alguns biscoitinhos da fornada anterior e os coloca em
um pratinho. Cabe a Peter trazê-lo até mim. Sorrio para o meu
pequeno e agradeço, levando um biscoitinho à boca. Estão longe de
chegarem aos pés dos feitos pela Paulina, mas o que vale é a
intenção. Queimaram um pouco, mas estão gostosos, apesar de
diferentes da receita original.
Com o forno sob controle, Henry deixa as finas tiras de bacon
fritando enquanto arruma os pratos e talheres sobre a ilha da
cozinha. Ele se esquece de pegar o jogo de mesa, mas não digo
nada. Deixo que arrume tudo do seu jeito, sem interferir, apenas
mantendo um olho no fogão quente, tremendo que o bacon queime
com a sua distração.
Mas não queima. Henry joga outra frigideira sobre o cooktop e se
ocupa dos ovos. Cubinhos de queijo e presunto, previamente
cortados, são adicionados à mistura. Para finalizar, uma porção de
alho-poró.
— Uau, quem diria que você sabe cozinhar — brinco,
observando-o mexer a mistura com uma espátula de silicone. Henry
olha por sobre o ombro.
— Não se alegre. Só sei cozinhar isso. Os biscoitinhos estão aí
para provar.
— Eu ajudei! — lembra Peter.
— Verdade — diz, soltando a espátula para bagunçar os seus
cabelos. Uma nuvem branca se ergue na cozinha e o menino ri. —
Vai ver por isso a fornada deu errado. Toda a farinha ficou aqui, ó —
enfatiza, dando dois toquinhos com os nós dos dedos em sua
cabeça.
— Estão ótimos — elogio, sem querer chatear ninguém. Henry
me lança um olhar de dúvida e volta a se concentrar. Lembro-me da
máquina de lavar. — Vocês se lembraram de separar a roupa
branca da colorida?
Os dois se entreolham.
— Precisava fazer isso? — Henry questiona. Mordo os lábios e
faço que sim. — Ah, não separamos, não.
— É difícil que um homem que more sozinho não saiba disso.
— E eu lá tenho cara de ser homem que lava roupa? — retruca,
com as mãos na cintura. O bacon estrala em meio ao óleo e Henry
volta sua atenção ao fogão. — Deixa isso para lá e vamos comer.
Só me resta concordar. Em instantes, meu prato está ocupado
por uma generosa porção de ovos e bacon. Henry tira as duas
últimas torradas da torradeira e as coloca em um prato no centro da
mesa, ao lado da segunda fornada de biscoitinhos de limão. Depois,
ergue Peter até o seu lugar, tira o avental e só então se senta.
Encaramo-nos e, sem maiores cerimônias, começamos a comer.
Um hummm involuntário escapa da minha garganta e faz com
que Henry me lance um olhar presunçoso. Ele pode não saber lavar
roupa, mas sabe fazer um ótimo omelete e o bacon está perfeito,
sequinho e saboroso do jeito que eu gosto. Henry me acompanha,
enquanto Peter fica apenas nas torradas com geleia de morango.
Limpo o canto da sua boca com um guardanapo e ele sorri.
Henry termina a refeição e, só então, busca a vassoura na
lavanderia. Ainda sentada na banqueta, resisto a tentação de
apontar o local onde um biscoitinho ficou esquecido próximo a uma
das gavetas ou como as cerdas da vassoura deixaram um rastro de
farinha para trás. Peter pula da banqueta e o ajuda com a pá, indo e
voltando da lixeira, cumprindo sua função com cuidado. Com aquela
missão finalizada, o homem recolhe a louça, lava tudo meio de
qualquer jeito, passa um pano de prato sujo por sobre a bancada
próxima a pia e pronto, a cozinha está “limpa”. Estende a mão para
Peter que pula para acertar o high five. Os dois riem, cheios de
cumplicidade. É impossível não rir também.
— Agora — anuncia Henry — vamos nos arrumar para ir a
Manhattan!
— Para fazer o quê? — pergunto. Os dois se entreolham.
Devagar, Peter passa os dedos pela boca manchada de vermelho,
em um gesto de fechar o zíper. — Ahhh, seu traidor! Você sabe,
então! — brinco.
— Sei, mas não posso contar — confessa. Henry o cutuca de
leve.
— Não, não pode! Você me disse que sabia guardar segredos! —
O menino assente, muito sério, enquanto fico ainda mais intrigada.
O homem volta sua atenção a mim. — Preciso ter algum cuidado
especial para dar banho nesse gambazinho?
— Não quer que eu…
Henry solta o ar com força, perdendo a paciência.
— Meu Deus, mulher! Aproveite o seu dia! Consigo dar banho na
criança, eu acho — acrescenta, baixinho, mas acabo ouvindo.
Encolho os ombros e me rendo. Não faço ideia do que os dois
inventaram para mim, mas decido aproveitar.
— Só precisa tomar cuidado para o shampoo e o condicionador
não cair nos olhos. O Peter faz todo o resto sozinho.
— Faço sim — orgulha-se Peter.
— Ótimo — diz Henry, pegando-o de surpresa e jogando-o por
sobre o ombro. O menino grita de alegria, os braços e as pernas
abertos no ar, como se estivesse voando. — Vou cumprir essa
missão enquanto você troca de roupa. Precisamos chegar em
Manhattan às onze da manhã.
Olho de soslaio para o relógio da cozinha. Aquilo nos dá quase
duas horas. Somando o tempo do trajeto, precisamos sair de casa
em no máximo uma hora e vinte minutos. Faço cócegas nos pés de
Peter e subo, deixando que Henry tome conta do banho. Do closet
escuto os gritos brincalhões dos dois, mas me obrigo a permanecer
onde estou, na dúvida sobre qual roupa usar. Escolho o combo de
jeans e blusinha de manga comprida, torcendo para que seja o
suficiente.
Satisfeita com o look, decido escolher um brinco, até me lembrar
que todos foram dados por Hector. Por algum motivo não quero usá-
los. Quero aproveitar o meu dia de não fazer nada sem a sombra da
sua presença, então mantenho as orelhas nuas. Quando me viro
para ir até o banheiro descobrir se Henry sobreviveu, dou de cara
com o mesmo me observando.
Os intensos olhos azuis deslizam devagar pelo meu corpo,
demorando-se na curva da minha bunda. É a segunda ou terceira
vez que o pego fazendo aquilo e, sendo bem sincera, não entendo o
motivo. Henry deve ter visto traseiros muito melhores por aí ou,
talvez, seja apenas tarado por bundas.
— Deu tudo certo? — pergunto, só então reparando que ele está
encharcado. Ignoro o contorno do seu corpo por debaixo da camisa
colada e me forço a encará-lo. — Parece que Peter também te deu
um banho.
— Deu. Seu filho deve ser a favor do meio ambiente.
— Você não é?
— Claro que sou, ainda mais se for para dividir o chuveiro com
uma mulher — deixa escapar. A temperatura no quarto sobe alguns
graus, mas quando Henry percebe a gafe, é tarde demais. Fecha os
olhos com força antes de voltar a me encarar. — Você poderia vesti-
lo? Eu tentei, mas ele não deixou. Está pulando pelado pelo quarto.
Não queria precisar pedir, mas…
— Pode deixar que cuido disso, e só disso — pisco e ele assente,
aliviado. — Arrume-se, senão vamos nos atrasar.
Não faço ideia do que ele e o meu filho estão aprontando, mas
estou ficando cada vez mais ansiosa para descobrir.

Peter está tão eufórico que leva um certo tempo até conseguir
capturá-lo pelo quarto e convencê-lo a botar uma roupa. Henry nos
aguarda na sala quando descemos, casaco vestido, chave do carro
nas mãos. Em poucos minutos estamos rodando em direção a
Manhattan. A agitação que toma conta do trânsito conforme nos
aproximamos da ilha só confirma o quanto gosto de morar na
tranquilidade de Greenville.
Henry estaciona, descemos do carro e caminhamos pela 5ª
Avenida. Peter começa a pular entre nós dois, olhando deslumbrado
para o topo dos prédios altos. Adianto-me em agarrar a sua mão,
com medo que escorregue na neve fina, corra para a rua ou se
perca entre os apressados pedestres. O menino a segura com
firmeza, mas agarra a mão de Henry também, unindo todos nós em
uma corrente. Meu cunhado envolve os dedos do menino entre os
seus com a naturalidade de quem faz aquilo por anos, não apenas
alguns dias. Quem nos vê de fora jamais imaginaria que estamos
longe de ser um perfeito casal.
Entramos em uma rua paralela e saímos na Madison Avenue.
Mordo os lábios, mais curiosa do que nunca para saber para onde
estão me levando, mas me forço a ficar calada. Henry olha atento
para os prédios, como se procurasse algo, e aperta o passo ao
encontrar.
Paramos diante de uma sóbria fachada envidraçada. Não dá para
ver muito do lado de fora além de uma longa bancada com uma
atendente, prateleiras cobertas de produtos e sofás cheios de
almofadas de aspecto macio. Henry sorri e, com um floreio, abre a
porta. Peter solta as nossas mãos e corre para dentro, mas
permaneço onde estou.
— Você me trouxe a um SPA? — pergunto, olhando para a
inscrição dourada em uma das paredes do estabelecimento. Henry
confirma com a cabeça. — Por quê?
Ele pensa antes de responder.
— Eu poderia dar várias respostas, mas quer saber a principal
delas? — assinto, em expectativa. — Você cuida de todo mundo,
mas não cuida de você. Então decidi dar um… empurrãozinho.
Serão quatros horas para ser mimada como merece. Queria que
passasse o dia, mas foi o melhor que Emilly conseguiu de ontem
para hoje. Ideia dela, inclusive — acrescenta.
— A sua irmã é sempre cheia de ideias — comento, tentando
segurar as lágrimas de emoção. Estende dois dedos em direção ao
meu queixo e o ergue, bem devagar.
— Ei, pelo menos essa ideia é boa. — Ele me encara,
preocupado. — Não gostou?
— Gostei. Eu só não estou acostumada com isso — confesso,
olhando em volta. Peter está fazendo amizade com a atendente que
nos aguarda, cheia de paciência. Volto a encarar o homem à minha
frente. — Obrigada.
Henry faz como se aquilo não fosse nada e, finalmente, me
permito entrar na recepção do SPA. Parte da agitação de Nova
Iorque fica do lado de fora assim que a porta de vidro é fechada,
deixando que apenas os sons mais altos invadam o ambiente com
aroma de lavanda.
— Aproveite, Alicia — diz Henry enquanto Peter vem para perto.
Sorrio para eles.
— Vou aproveitar. E vocês, vão fazer o que?
Ele passa a mão pelos ombros do menino, puxando-o contra a
sua coxa. Peter olha para cima, cheio de devoção.
— Sei lá. Acho que vamos fazer coisas de homens — faço cara
feia e os dois riem. — Até mais tarde.
— Até — digo, seguindo a atendente para o interior do SPA.
Parte da risada do meu filho me acompanha, mas apenas até o
momento em que uma segunda porta de vidro é fechada, cessando
qualquer ruído do mundo exterior. O silêncio, cortado apenas pelo
murmurar de uma fonte de água corrente, reina no SPA.
Por um instante o pânico me invade e quero sair dali. Henry
conseguirá lidar sozinho com o meu filho? E se, em um descuido,
ele soltar a mão de Peter? Nova Iorque é perigosa demais para uma
criança sozinha. Ele pode ser atropelado pelos carros e...
— Bom dia, Alicia — cumprimenta uma voz suave. A atendente
me trouxe até uma sala em meia luz, mas não se encontra mais ali.
Orquídeas decoram uma das paredes enquanto as demais, em
mármore creme, envolvem o espaço em torno do ofurô de madeira.
A água cheia de pétalas borbulha, convidativa. Só então presto
atenção na pequena jovem trajando roupas brancas. Ela sorri, como
se estivesse acostumada a ter a sua presença sobrepujada pelo
ambiente. — Eu sou a Emma, a sua massagista, e será um prazer
atendê-la.
— Desculpe, eu me distraí.
— Está tudo bem — diz, tranquila, se adiando para tirar o meu
casaco. Permito que o faça, mas enrijeço ao perceber que precisarei
tirar tudo para entrar na banheira. Ela percebe. — Você gosta de
chá?
— Gosto.
— Ótimo, vou sair para buscar uma xícara. Fique à vontade.
Emma pendura o meu casaco em um cabideiro e me deixa
sozinha. Toco a água do ofurô com a ponta dos dedos. Quentinha
na medida certa, borbulhando em uma deliciosa mistura cítrica que
começa a se elevar no ambiente. Se eu for rápida, Emma me
encontrará submersa quando voltar.
Tiro a roupa, ajeito tudo em um canto e coloco o pé no primeiro
dos três degraus que levam ao ofurô, encarando-me no espelho
antes de entrar. Uma mulher pálida e com um leve ar assustado me
encara de volta. Devagar, deixo-me submergir na água aquecida,
permitindo que o meu corpo se envolva em meio às flores
flutuantes. Inspiro fundo, deliciada, mas ainda longe de relaxar.
— Eu devia ter prendido os cabelos — comento, olhando as
mechas avermelhadas diante dos meus seios pálidos.
— Não se preocupe. — Emma retorna com uma bandeja em
mãos e, com um sorriso, a coloca ao meu lado. O aroma de limão,
hortelã, mel e gengibre emana do bule de chá e passa a competir
com os sais. Com delicadeza, a massagista puxa os meus cabelos
para trás e os prende com uma presilha. — Temos secador, vamos
arrumar tudo antes de você ir embora. Eles são lindos —
acrescenta, olhando admirada para os fios.
— Ah, obrigada.
— De nada. Você é linda por inteiro — diz, com simplicidade.
Sinto o rosto enrubescendo e, sem saber o que fazer, pego uma
xícara e me sirvo do chá. Levo a bebida aos lábios e solto um
suspiro. Delicioso. Bebo tudo e devolvo a louça. Emma me oferece
mais chá, mas faço que não. Ela afasta a bandeja e envolve os
meus ombros com suas pequenas mãos. Tenciono, mas basta
alguns movimentos de seus dedinhos fortes para aproveitar a
massagem. Pela primeira vez em muito tempo, fecho os olhos e
permito-me relaxar.
Eu e Peter saímos de mãos dadas do SPA assim que Alicia é
levada pela atendente até o clímax do seu dia de não fazer nada.
Daqui a pouco quem precisará de um dia assim será eu. Estou
chocado com a quantidade de tarefas que a mulher faz sozinha. O
café da manhã teria sido tranquilo se não fossem os biscoitinhos
arruinados. Inventei de fazer uma nova fornada e Peter, agitado por
conta da rotina diferente, decidiu me ajudar com a farinha, a receita
perfeita para a confusão.
O resultado catastrófico da minha tentativa de dar banho me
coloca diante do maior desafio daquele dia: como entreter uma
criança pequena por quatro horas? Não faltam atividades em Nova
Iorque e começo a enumerar mentalmente as opções.
Posso levá-lo ao cinema, mas não faço ideia do que está em
cartaz. Filmes natalinos, com certeza, mas pelo o que conheço de
Peter, ele não ficará contente em se sentar por duas horas diante de
uma tela exibindo as confusões de casais apaixonados em meio a
neve de dezembro. Aprendi a gostar das tardes preguiçosas em que
nos sentamos no sofá para ver Patrulha Canina ou Bob Esponja,
mas não estou nem um pouco a fim de gastar duas horas dentro de
uma sala de cinema vendo desenhos.
Peter pula, chacoalhando minha mão para cima e para baixo, em
sincronia com os seus movimentos. Independente do que fossemos
assistir, o menino está eufórico demais para ficar quieto. Sei que
gostou dos brinquedos do shopping, mas decido descartar qualquer
atividade em locais fechados.
Há dias não visito a cidade e, com o Natal cada vez mais
próximo, as luzes brilhantes florescem em meio aos prédios. Inspiro
fundo, enchendo os pulmões com o ar frio e um tanto quanto
poluído, energizado por estar de volta a agitação de uma metrópole
como Nova Iorque, quando tenho uma ideia.
— Você sabe patinar no gelo? — pergunto.
Peter para de pular e me encara. Alicia colocou uma touca azul
marinho sobre os seus cabelos ruivos. Algumas mechas mais
longas escapam pelas laterais, deixando-o com um ar para lá de
fofo. Meu Deus! Eu, Henry Chamberlain, playboy assumido, parado
no meio da rua de mãos dadas com uma criança, achando ela fofa.
Meus amigos da Califórnia ririam daquilo por, no mínimo, três dias.
E quer saber? Eles que se fodam.
— Não — diz Peter, virando o rostinho de lado. — Você sabe
andar, papai?
— Claro que sei — digo, um tanto convencido, puxando-o pela
mão. — Eu fazia parte do time de hóquei da universidade!
O menino arregala os olhos e emite um ohhh baixinho. Não sei se
ele entende o impacto de fazer parte de um time universitário da
primeira divisão, mas sua expressão devotada faz com que eu me
sinta tão bem que não acrescento um detalhe: eu era reserva. Bom
jogador mesmo era o seu pai.
Hector chegaria aos profissionais se não tivesse desistido de
jogar no segundo ano. Nunca entendi o motivo. Na época ainda nos
falávamos e ele se limitou a dizer que estava cansado. Bom,
cansativo era mesmo, mas eu gostava. Fiquei até o terceiro ano,
quando percebi que nada me faria ir além do nível em que estava, e
também desisti.
Há vários rinques de patinação no gelo espalhadas pela cidade.
Poderia levá-lo ao Central Park, mas sempre gostei mais do rinque
do Rockefeller Center. De quebra, Peter poderá ver a tradicional
árvore de Natal diante da pista. Ela é mais bonita à noite, com todas
as luzes coloridas acesas, mas não deixa de ser impressionante de
dia. Puxo-o pela mão e em poucos minutos a árvore entra em nosso
campo de visão.
Peter solta um grito de alegria e faz menção de sair correndo. Por
sorte o seguro com firmeza. Rio da sua empolgação e apresso o
passo, parando diante do rinque com a árvore se avolumando sobre
nossas cabeças. O menino entorta o pescoço até onde consegue,
tentando absorver cada detalhe do imenso enfeite. A boa e velha
nostalgia, a mesma que me pegou quando cheguei a cidade, volta a
tomar conta do meu peito. Se Peter está pirando aqui, imagino como
vibrará ao ser levado para escolher a própria árvore de Natal.
Precisamos fazer isso antes de irmos para os Hamptons.
No rinque, pessoas de todas as idades, em sua maioria casais,
dão passinhos claudicantes sobre o gelo, se desequilibrando vez ou
outra, mas ainda se mantendo de pé. Apenas um deles parece
saber o que está fazendo. O rapaz é alto e loiro, bem apessoado
como um deus nórdico, e se não é jogador de hóquei ou patinador
profissional, com certeza foi. Já a garota tem a pele morena e
cabelos castanhos fartos que escapam por debaixo da touca.
Juntos, cortam o gelo com desenvoltura, tornando o espaço
pequeno para tamanha habilidade.
— Veio patinar com o seu filho? — pergunta uma voz.
Tiro a atenção do casal e foco em uma senhora de uns setenta
ou setenta e cinco anos, cabelos brancos como a neve fina que
cobre o chão, sorriso simpático cheio de rugas. Um cachorrinho
peludo, talvez um Lulu da Pomerânia, late de dentro da bolsa que
leva a tiracolo. Peter desvia a atenção da árvore e olha encantado
para o bicho enquanto eu pisco, desconcertado.
É a primeira vez que alguém de fora se refere a Peter como meu
filho e me surpreendo ao perceber que não estou incomodado.
Gosto de verdade do menino. Às vezes, quando acordo a noite e
tenho apenas a companhia dos meus pensamentos e da respiração
tranquila de Alicia, me pergunto como pude ter sido tão idiota. Uma
briga por conta de um beijo roubado não deveria ter sido motivo
para separar a família daquele jeito. Se eu tivesse me imposto, não
teria perdido quatro anos da boa companhia do meu sobrinho.
— Vim — digo, com um sorriso. É com certo prazer que vejo o
seu rosto enrubescendo. Ela solta um risinho e olha Peter com
carinho.
— Ele é a sua cara. Imagino que a mãe deva ser uma beldade.
O menino franze o cenho.
— O que é beldade?
— Bonita.
Peter finalmente entende e assente.
— Ela é. A mãe mais bonita do mundo!
Com toda a certeza, me pego pensando. O cachorro late de
novo, chamando a atenção da dona.
— Ah, essa é a Honey — diz a senhora.
— Posso fazer carinho nela? — Ela faz que sim e abaixa a bolsa
até a altura de Peter. Honey entra em um frenesi assim que as
mãozinhas do menino se aproximam do seu pelo macio. Fecha os
olhos, deliciada diante do carinho, enquanto Peter vira o rosto em
minha direção.
— Papai, será que o Papai Noel me dá um cachorrinho de Natal?
— E o videogame? — pergunto, tentando voltar para um terreno
seguro. Peter encara Honey em dúvida, mas basta que ela lamba a
ponta dos seus dedos para que uma certeza tome conta do seu
rosto.
— Eu topo trocar pelo cachorrinho. Por favor, papai — pede,
manhoso, arregalando os olhos azuis e colocando a velha máscara
de filhote pidão. Estreito os olhos e sustento o seu olhar. A senhora
ri.
— Acho que trouxe problemas para você
— Não trouxe, não. Precisamos falar com a sua mãe antes de
você mandar o seu pedido ao Bom Velhinho — acrescento, me
virando para Peter. Ele encolhe os ombros e se dá por vencido. —
Agora, se despeça da Honey.
— Tchau, Honey, — Ele dá um beijinho no pelo macio da
cadelinha. A cadelinha late, despedindo-se também. — Vamos
patinar, papai?
— Vamos. Tchau, senhora. Um prazer — estendo a mão em um
cumprimento e a mulher a aperta. Peter faz o mesmo, fazendo com
que ela solte um suspiro.
— Ele me lembra o meu neto — comenta, cheia de saudade. —
Antes que crescesse e, enfim, caísse no mundo. Agora vão, não
quero atrapalhar vocês.
Resisto à tentação de perguntar se o seu neto virá vê-la no Natal,
mas algo me diz que sua única companheira é Honey. Despedimo-
nos com um último aceno e vamos até o rinque.
Pago a entrada, alugo os patins e o equipamento de segurança e,
em instantes, estamos sobre o gelo. Peter agarra a minha mão com
força, com medo de cair, mas o seguro firme. Adoraria dar algumas
voltas completas antes de ensiná-lo, mas sem Alicia ali, não posso
deixá-lo sozinho. Patinar é parecido com pedalar, mas assim como
acontece com uma bicicleta, são necessários alguns minutinhos até
voltar a se habituar por completo.
— Está tudo bem, Peter — encorajo. — Não vou te deixar cair e,
se acontecer, você não vai se machucar — O menino parece um
robô com o capacete, joelheiras e cotoveleiras, mas não se mostra
convencido. — Faz assim — peço, posicionando os meus próprios
pés.
Peter me imita e, pé ante pé, cria confiança. Em meia hora solta a
mão e dá os primeiros passos sozinho sobre o gelo. Observo-o de
perto, com medo de que caia e se machuque. Alicia me mataria se
isso acontecesse, mas sei que não vai cair. Ele leva jeito.
Os outros patinadores param para vê-lo deslizando suave no
gelo, como se tivesse nascido com as lâminas nos pés, não
começado há apenas meia hora. Até o casal profissional interrompe
o que está fazendo para ver. A garota bate palmas, encorajadora,
enchendo Peter de confiança e o meu coração de calor. Dá a volta
em todo o rinque e para a minha frente com tranquilidade.
— Posso dar uma segunda volta? — pergunta. Não resisto a
gargalhar alto.
— Pode. Ainda podemos ficar aqui por um tempo.
— Legal! — diz, saindo sem esperar por mim. Diante de tamanha
confiança, também dou as minhas voltas completas, sem nunca tirar
Peter de vista, mas ele não precisa de vigia. Quero só ver a cara da
sua mãe ao contarmos.
Passa da hora do almoço quando saímos do rinque e
devolvemos os patins. Ao invés de gastar a energia de Peter, a
atividade parece tê-lo ligado na tomada. Ele pula mais do que
nunca, perguntando vezes sem conta quando poderemos voltar. Só
não insiste em ficar mais tempo pois sei que está com fome. Ouvi
seu estômago roncando ao me abaixar para desafivelar os patins.
A escolha sensata seria levá-lo para comer comida de verdade,
mas estou longe de ser sensato, então o levo a uma hamburgueria.
Assim que entramos no estabelecimento, Peter vê uma garçonete
carregando uma bandeja com duas taças de milk-shake de
chocolate e aponta, querendo um também. Deixo que peça tanto o
milk-shake quanto um cheeseburguer gigantesco que viu no
cardápio. Quando a comida chega, duvido que vá comer tudo, mas
Peter come. Bebe até a última gota do milk-shake e me encara
satisfeito. Não faço ideia de onde foi parar tanta comida.
Ao sair, caminhamos tranquilos de volta a Madison Avenue. Alicia
pode aproveitar o SPA por mais uma hora, então que o aproveite
bem. A mãozinha de Peter torna-se frouxa de encontro à minha e
olho para baixo. Ele boceja, cheio de preguiça, confirmando que sua
energia chegou ao fim. Sem nem ao menos perguntar, me adianto
para pegá-lo no colo. Peter vem sem qualquer resistência,
pousando o rosto na curva do meu ombro, tranquilo. Leva alguns
passos até que ele se remexe.
— Olha que bonito, papai — aponta.
Viro o rosto na direção indicada, dando de cara com a vitrine de
uma joalheria. Colares, pulseiras e brincos de ouro cravejados de
pedras preciosas cintilam por trás da barreira protetora. São bonitos,
sim, mas é um discreto brinco de diamantes que acaba chamando a
minha atenção. O par de pedras brilham, tímidos, por sobre o veludo
azul, como se soubessem o seu valor, mas estivessem acanhadas
por estar ali.
É um pouco difícil imaginar Alicia usando joias vultuosas como as
da coroa britânica, mas consigo vê-la usando aqueles brincos. Belos
e discretos iguais a ela. São o presente perfeito.
— Acha que sua mãe iria gostar? — pergunto a Peter, apenas
para confirmar. Ele faz que sim com tamanha convicção que tenho
certeza de que foi para aquele conjunto que apontou no momento
em que passamos diante da vitrine.
Sem pensar mais, abro a porta e entro na joalheria. A vendedora
bem que tenta me convencer a levar uma joia maior, mas insisto no
singelo par de brincos e, minutos depois, estou de volta a rua, com
um menino e uma sacola de presente nos braços.
A atendente do SPA avisa que Alicia ainda levará alguns minutos
para sair, então eu e Peter aguardamos sentados nos sofás da
recepção. Não há muito a se fazer além de ver o celular ou olhar
para a rua. Limito-me a tentar ficar acordado. A tarefa mostra-se
bastante difícil depois de ter patinado por uma hora e meia atrás de
uma criança cheia de energia e enchido a barriga com gordura. O ar
perfumado de lavanda e a música calma da recepção não
colaboram. Peter não resiste. Ressoa baixinho por sobre as
almofadas, uma das mãozinhas agarrada ao meu peito, para
garantir que não vou sair dali. Não saio. Forço-me a manter os olhos
abertos e espero pela vinda da sua mãe.
Estou quase cochilando quando escuto sua voz. Pisco, tentando
levar o sono para longe, e Alicia surge diante de mim. Meu queixo
cai e, de repente, todo o cansaço desaparece. Ela sorri, tímida, mas
ciente do efeito causado.
Seus cabelos ruivos escovados em ondas descem macios e
brilhantes em direção aos seios. Alguém passou um discreto lápis
em uma pálpebra inferior e aplicou uma máscara de cílios,
complementando com um batom rosa claro. A maquiagem é mínima
pelo simples fato de que Alicia não precisa dela. Ela estaria linda de
qualquer forma, as atendentes do SPA só deram uma mãozinha.
O que chama atenção mesmo é o seu semblante tranquilo. Pela
primeira vez desde que a vi abrindo a porta do apartamento da
minha mãe, Alicia está relaxada, sem o menor indício de tensão nos
ombros.
— Uau! — exclama Peter, acordado do cochilo. — Você é uma
beldade!
Alicia ri e se abaixa para beijar o rosto do filho.
— Onde você aprendeu essa palavra difícil?
— Em frente a árvore de Natal. Ela é bem grandona, mamãe! —
acrescenta, abrindo os braços de forma a mostrar todo o seu
tamanho. — E o papai me ensinou a patinar!
Um pouquinho, bem pouquinho, de tensão volta aos seus
ombros.
— Onde?
— No Rockefeller Center. Sinto dizer, Alicia, mas seu filho leva
jeito para jogador de hóquei — digo, saindo do meu estupor.
Ela balança a cabeça e ri. Peter olha dela para mim, depois de
mim para ela, tentando me dar um sinal. É quando me lembro do
presente. Estendo a sacola, meio sem jeito. Estou acostumado a
sair com mulheres, mas não a ficar tempo o suficiente para
presenteá-las. Alicia arregala os olhos diante do logotipo da
joalheria chique, mas aceita o presente sem protestar. Desfaz o laço
e puxa a caixinha aveludada do fundo, a boca formando um “O”
enquanto o rosto se ilumina diante dos brincos de diamantes. As
pedras refletem em seus olhos castanhos marejados.
— Não posso aceitar. — começa a dizer. — Tenho certeza de que
custou uma fortuna. Simplesmente não posso.
Tiro um dos brincos do forro de cetim branco, afasto uma mecha
de cabelo avermelhado e coloco a joia em sua orelha. Ela suspende
a respiração diante do movimento dos meus dedos, lábios
entreabertos, olhos atentos presos aos meus. Faço o mesmo com a
outra orelha e assinto para mim mesmo, satisfeito em ver como os
brincos ficaram perfeitos.
— Você pode e vai aceitar. Por favor, Alicia — peço, quase como
uma súplica. Ela leva a ponta do dedo ao diamante e sorri de orelha
a orelha. É todo o agradecimento que preciso.
Mas ele não basta para Alicia. Aposto que não pensou, por que
se tivesse pensado, não teria feito. Ela envolve o meu rosto com as
mãos macias e planta um beijo no canto dos meus lábios. Não há
nada de malicioso naquele beijo. É casto, inocente, como se fosse
trocado entre irmãos. Um simples beijo que ela escolheu me dar,
mas que queima feito ferro em brasa. Ao se afastar, os olhos de
Alicia cintilam idênticos aos diamantes em suas orelhas, o rosto
indecifrável como o de Monalisa.
A atendente suspira, fazendo-nos perceber que ainda estamos no
SPA. Peter agarra a mão da mãe, depois a minha, e saímos da
mesma forma como entramos. O vento frio bate de encontro ao meu
rosto quente e agradeço mentalmente aos deuses responsáveis
pelo clima. Não fosse o casaco comprido, eu estaria exibindo uma
gigante ereção no meio de Manhattan.
A caminhada até o estacionamento é curta, mas demoramos para
chegar em casa por conta da hora do rush. Não me importo. Peter,
totalmente desperto, diverte-se ao contar o seu dia para a mãe. Ao
contrário do que imaginei, Alicia se empolga diante da perspectiva
do filho se tornar um jogador de hóquei. Tento participar da
conversa, mas a cabeça está longe, pensando em algo que eu
deveria ter feito há muito tempo.
O rádio do carro alerta sobre uma possível tempestade de neve,
mas chegamos em casa antes que ela aconteça. Os primeiros
flocos caem, pesados, assim que fechamos a porta. Peter corre
para o sofá perto da janela e, sem tirar o casaco e os tênis, se joga
entre as almofadas e se debruça sobre a janela. Eu e Alicia o
acompanhamos, ajoelhados nos assentos do sofá, observando o
chão se cobrindo de branco. Ninguém precisa dizer nada. Aquela
neve veio para ficar.
Olho para baixo. Peter está tão entretido olhando para fora que
duvido que vai me ouvir. Viro-me para a sua mãe.
— Alicia? — chamo, baixinho. Ela ergue os olhos em minha
direção. Porra, por que o meu coração está tão acelerado? Melhor
acabar logo com aquilo. — Preciso te pedir desculpas.
— Pelo que? Hoje foi maravilhoso e…
— Pelo incidente na universidade — cuspo, antes que me
acovarde e desista. — Eu jamais deveria ter feito aquilo. Foi uma
brincadeira de mal gosto e, enfim… sinto muito.
Alicia arregala os olhos, mas logo o semblante volta a ficar
tranquilo, o mesmo de quando saiu do SPA. Acaricia o cabelo do
filho e sorri de leve.
— Desculpas aceitas. Obrigada, Henry.
— Não precisa me agradecer e…
— Preciso — interrompe. — Pelas suas desculpas, e pelo dia de
hoje. — Ela hesita, mas a Alicia que eu conheço é valente. — Acho
que eu realmente precisava disso. Obrigada, de coração.
Sorrimos um para o outro. Peter solta uma exclamação e
voltamos a olhar a janela. Os ventos estão mais fortes. Amanhã
cedo os noticiários sensacionalistas se esbaldarão com as avenidas
interditadas, árvores caídas e voos cancelados enquanto nós, do
subúrbio, ficaremos tranquilos em casa.
Olho de soslaio para Alicia, o rosto bonito iluminado pelas últimas
luzes do finalzinho da tarde, um meio sorriso nos lábios pintados de
rosa, os olhos ainda brilhantes como diamantes, o semblante em
paz. Sem querer, acho que me apaixonei pela mulher do meu irmão.
“Acorda”, pede uma voz baixa e sedutora ao pé do meu ouvido.
Sua respiração suave faz cócegas ao desder os lábios, devagar, até
a base do meu pescoço. Sorrio para mim mesmo, sem precisar abrir
os olhos para saber a quem ela pertence. Virado de bruços, a
ereção dura como uma rocha pressiona o colchão, ávida para se
enterrar fundo na ruiva que vem dominando os meus pensamentos.
Começo a me virar, pronto para agarrar Alicia e…
— ACORDA, PAPAI — grita Peter, pulando sobre as minhas
costas. Desperto do sonho e acordo por completo. — ACORDA,
ACORDA E ACORDA!
— O que aconteceu? — pergunta a sua mãe, assustada.
— A neve, mamãe! O chão está coberto de neve! Vamos fazer
um boneco? — implora, chacoalhando as minhas costas com as
mãozinhas fortes. — Vem ver, papai!
— Não estou em condições de levantar agora — resmungo,
afundando o rosto no travesseiro. — Te ajudo a fazer um boneco de
neve mais tarde, tudo bem?
— Mas eu quero agora!
Alicia ri e tira o filho de cima de mim.
— Daqui a pouco. Vem, eu desço para ver a neve com você.
— Eba! — vibra Peter. Viro o rosto e tenho tempo de vê-lo
escapando dos braços da mãe. Corre para o corredor e desce as
escadas em disparada. Alicia ri e se levanta.
— Vou atrás dele. Empolgado como está, não duvido que dará
um jeito de pegar a chave para abrir a porta da sala e sair correndo
pela rua. Fique aí e durma mais um pouco, Henry.
— Já vou me levantar — digo. Ela sorri, veste o roupão e vai
atrás do filho.
Pulo da cama assim que me vejo sozinho, aliviado por todos
terem ido embora. Meu pau balança contra a calça do pijama, a
ereção ainda firme apesar de todo esse interlúdio. Não é a primeira
vez que acordo com a barraca armada desde que passei a dormir
ao lado da minha cunhada, mas até então era uma simples reação
fisiológica de um homem há dias sem contato íntimo com uma
mulher.
Dessa vez a ereção pulsa, dolorosa, cheia de desejo por Alicia.
Invado o closet do meu irmão, pego as roupas que vestirei naquele
dia e vou ao banheiro. Já não diferencio mais as roupas dele das
minhas. Tirando os ternos, todas as demais se misturaram.
Jogo tudo sobre a pia do banheiro e começo a tirar o pijama. Meu
pau pula assim que baixo as calças e sei que tenho duas opções
para dar um jeito naquilo: um banho gelado ou uma punheta. Logo
descarto a primeira opção. Por mais que o aquecedor central esteja
sempre ligado, nem fodendo vou encarar uma ducha de água fria
antes das oito da manhã. Só me resta fechar os dedos em volta do
membro intumescido e movimentar a mão para cima e para baixo.
O alívio vem rápido. Direciono o jato para a privada aberta e
mordo os lábios para evitar gemer alto, desejando despejar o meu
prazer em outro lugar. Há pouca satisfação em bater aquela
punheta, mas pelo menos o incômodo foi embora. Até quando? Não
sei. Limpo tudo com papel higiênico, lavo bem as mãos e termino de
me vestir. Passarei o dia inteiro com uma blusa segunda pele que
vai até o pulso, então não preciso esconder as tatuagens com
maquiagem.
Peter está com o rosto colado contra o vidro da sala, olhando
para fora como se um incrível evento estivesse acontecendo diante
da casa. Jogo-me ao seu lado, o peso do meu corpo chacoalhando
todo o sofá, e ele ri. Bagunço o seu cabelo e olho além da janela.
Um Uau! escapa da minha boca. Já imaginava que a neve seria
firme o suficiente para cobrir tudo, mas não daquela maneira. O
caminhão limpador ainda não passou e toda a rua parece um denso
mar branco. Apesar de cinzento, o céu está limpo, denunciando que
haverá uma trégua até a próxima tempestade.
— A neve deve estar chegando até os joelhos — comento. Peter
bate palmas, empolgado, enquanto Alicia bota a cabeça para fora
da cozinha.
— Aham! E alguém precisará cavar um caminho até a rua.
— É? Quem precisará, Alicia? — brinco.
Ela se faz de desentendida.
— Não sei. Vou fingir que ainda estou no meu dia de não fazer
nada, mas aviso que há pás e um removedor de neve elétrico na
garagem.
Remover neve. Não precisaria nem ao menos pensar nisso na
Califórnia. Mas estou me importando? Nem um pouco.
— Vem me ajudar — digo, dando um tapinha de brincadeira na
bunda de Peter. Ele vira o rosto na minha direção, mas não faz
qualquer menção de se mexer.
— E o boneco de neve?
— Só depois que a gente remover a neve.
Quase consigo ouvir as engrenagens do seu cérebro infantil
processando aquela informação antes do rosto se franzir em uma
careta de dor.
— Eu não quero remover a neve! — chora. Oh merda, eu
confundi o menino. Sei que é maldade, mas meus lábios tremem,
cheios de vontade de dar risada.
— Vamos remover só um pouquinho — explico, tentando
consolá-lo com um abraço. Alicia volta da cozinha, sem entender o
que está acontecendo, mas faço que está tudo bem. — Apenas o
suficiente para abrir um caminho, sabe? Da casa até a rua.
— Ainda vai sobrar bastante para o boneco de neve? —
pergunta, erguendo os olhos azuis para cima. Limpo uma lágrima
com a ponta do polegar e faço que sim.
— Vai. Para fazer até dois bonecos de neve, se você quiser.
— Podemos começar agora? — os pulinhos voltam, obrigando-
me a soltá-lo.
Deixo que a risada escape, encantado com a simplicidade da
alegria infantil. Como sempre morei em apartamento, só podia fazer
bonecos de neve ao ir para os Hamptons, nunca depois da primeira
nevasca em Nova Iorque. Estou para abrir a boca e dizer que sim,
podemos, quando Alicia intervém.
— Só depois que tomarem o café da manhã. E se vestirem direito
— acrescenta, olhando para o pijama do filho. — Você vai ficar
doente se for lá fora sem o gorro, as luvas e os protetores de
ouvido.
— Precisa de tudo isso? — Ela faz cara feia e me encolho.
— Você também. No ano passado o Hec… — Arregalo os olhos
em uma advertência. Alicia para no mesmo instante, ciente do que
estava para dizer. Limpa a garganta e continua. — No ano passado
você ficou doente, lembra?
— Lembro, claro que lembro — concordo, muito sério.
Peter nos encara, cenho franzido, sem entender nada, mas aceita
a imposição da mãe. Nosso almoço no dia anterior foi tão farto que
comemos pouco durante o jantar, mas se o seu estômago estiver
roncando igual ao meu, ele também está com bastante fome.
Vamos todos para a cozinha. Coloco Peter na banqueta enquanto
arrumo os pratos e talheres sobre a ilha, o cheiro de bacon frito
dando água na boca. Alicia serve o café da manhã e em minutos
estamos comendo. A mulher nos observa com carinho. Ao contrário
de nós, desfrutou de um almoço leve e saudável no SPA e a noite
fez um lanchinho substancialmente mais farto.
Ao terminarmos, Alicia sobe para vestir a si e ao filho. Vou para a
garagem e foco nas ferramentas de Hector ao invés de imaginá-la
retirando o roupão e o pijama, ficando nua em nosso quarto, para só
então escolher no closet as roupas que irá vestir naquele dia.
— O que está acontecendo comigo? — resmungo, ao encontrar
uma pá jogada atrás de uma pilha de tábuas de madeira.
O Sr. Certinho, ao contrário do que imaginei, não tem uma
garagem organizada. As ferramentas disponíveis estão guardadas
de qualquer jeito e são as mínimas necessárias para a manutenção
de uma casa, denunciando que Hector pode até gostar da vida no
subúrbio, mas prefere pagar alguém para fazer simples trabalhos de
marcenaria. O cortador de grama está novinho dentro da caixa e
estou desistindo de encontrar o removedor de neve quando, enfim,
o encontro.
Tiro o trambolho de dentro da caixa e o observo por um instante.
Nunca removi neve com aquilo, mas acho que exigirá menos
esforço que a pá. Por via das dúvidas arrasto os dois para dentro de
casa. Alicia e Peter descem as escadas e não resisto a sorrir. Ele
caminha balançando para os lados de tanto agasalho.
— É só ligar na tomada e passar sobre a neve — explica Alicia,
indicando o aparelho em minha mão com o queixo. Ergo uma
sobrancelha.
— Se é fácil assim, por que você mesma não faz?
— Não — diz. Estica as pernas e ergue os braços de forma a
colocar uma touca sobre a minha cabeça, próxima o suficiente para
que eu inspire o aroma de rosas dos seus cabelos. Porra, Alicia. Eu
não posso ter uma nova ereção na frente de vocês! Ela volta à
altura normal e me encara, como se também estivesse incomodada
com aquela proximidade. — Para você ficar bem quentinho —
acrescenta, oferecendo um par de luvas.
Estendo os dedos para retirar as luvas de suas mãos. Demoro-
me no processo, permitindo que nossa pele troque calor para, só
então, puxar as luvas em direção ao meu corpo. Alicia me encara,
as pupilas dilatadas nas íris castanhas, mas não diz nada. Calço as
luvas e visto o casaco enquanto ela limita-se a conferir se o filho
está bem agasalhado para, só então, permitir que saiamos na neve.
Peter grita e se joga para fora, afundando por completo na
imensidão branca. Gargalho alto e me adianto para ajudá-lo.
Conforme previ, as pernas afundam quase até os joelhos na neve
fofa. Resgato o menino e o ponho de pé, touca e protetor de ouvido
perdidos. Coloco tudo de volta na sua cabeça e olho em volta. O
caminhão já passou, arrastando toda a neve para as calçadas, me
dando um vislumbre de até onde preciso abrir caminho.
— Acho que vou começar com a pá — digo a Peter. Ele assente,
mas me dá pouca atenção. Empolgado para fazer o seu boneco,
começa a juntar neve por si só. Alicia nos observa do alpendre com
os braços cruzados, o rosto pálido corado devido ao frio.
— Vou colocar o removedor na tomada — anuncia, antes de
fechar a porta.
Faço um joinha e começo o meu trabalho. Leva poucos minutos
para os meus braços começarem a doer e o suor a se acumular por
debaixo do casaco. Puta que pariu, que trabalho chato! Se qualquer
um passasse ali e dissesse “Por 500 dólares eu limpo esse caminho
para você!”, eu pagaria na maior boa vontade.
O único que se oferece para ajudar é Peter e, bem… Ele não
consegue fazer muito. Mais atrapalha do que ajuda, mas não sou eu
quem vai dizer isso para ele. Deixo que o menino fique pelo
caminho quando ligo o removedor e começo a jogar neve para todos
os lados. Peter ri por debaixo dos flocos, gritando que está nevando,
fazendo com que Judy apareça do lado de fora. Aceno para a
vizinha, lembrando do meu falso papel de bom moço e que Hector,
em toda a seriedade, limparia aquele caralho de neve sem xingar.
Dois vídeos no YouTube depois e, enfim, pego o jeito. Em poucos
minutos um caminho torto vai da porta da casa cinzenta até a rua.
Contradizendo minha previsão pessoal, o céu abriu em um pálido
tom de azul, subindo a temperatura em dois ou três graus. Ainda
está longe de ser o suficiente para derreter a neve, mas pelo menos
permite que eu tire o casaco e fique apenas com as blusas que
coloquei por baixo. Pego a pá, dou alguns retoques e pronto, o
caminho está oficialmente aberto.
— Ficou bom. — Alicia aparece conferindo o trabalho. Nos
braços, uma bandeja com duas canecas fumegantes. Faço uma
mesura.
— Fico feliz que gostou, senhora. O serviço não é reembolsável.
— Ainda bem. Se você dependesse de fazer isso para viver,
morreria de fome — brinca, me estendendo uma caneca. O
cheirinho de chocolate quente com marshmallow aquece o meu
peito antes mesmo que eu leve a bebida à boca.
— Obrigado — bebo um gole e está uma delícia, cremoso na
medida certa, mas não resisto a provocar. — Você sabe que uma
dose de conhaque faria uma revolução nessa belezinha. — Ela faz
uma careta, mas me adianto. — Ah, não. Você-sabe-quem não toma
conhaque!
— Toma, mas jamais colocaria álcool em uma caneca que o filho
corre o risco de pegar — revira os olhos e dou risada. — Falando
nele, cadê o Peter?
— Aqui, mamãe! — grita, saindo debaixo de um monte de neve.
Quase engasgo com o meu chocolate. O menino se enterrou como
faria nas areias quentes de uma praia. — Podemos fazer o boneco
de neve agora?
— Podemos, mas beba o chocolate primeiro — pede, estendendo
a caneca a ele. Peter a recebe e agradece com um sorriso. A mãe
sorri de volta, toda coruja, e volta a me encarar. — Separei algumas
coisas para o boneco de neve. Vou buscar.
Alicia retorna com um velho balde de metal. Peter termina o seu
chocolate e se adianta para saber o que tem dentro. Sua mãe
separou um velho cachecol, uma dúzia de botões pretos e uma
cenoura para o nariz. Ele começa a pular, empolgado. Entrego
minha caneca para Alicia e volto a pegar a pá.
— Bom, mãos na massa! — digo, erguendo a mão enluvada para
um high five. Peter pula, empolgado, e acerta a minha palma.
O único problema? Faz tanto tempo que não faço um boneco de
neve que não me lembro como fazer um. Peter começa com uma
bolinha. Arrasta-a de um lado para o outro, até que fique maior, mas
naquele ritmo vamos levar a semana toda. Eu poderia pegar o
celular e descobrir a melhor forma de começar, mas seria
humilhação demais. Com a pá em mãos, passo a construir um
monte de neve.
Peter entende o que quero de cara. Com as mãos, começa a
reunir a neve em volta do monte, tentando formar uma bola. Vez ou
outra paro o que estou fazendo para ajudá-lo, deixando tudo o mais
redondinho possível. Não demoro a ouvir novas vozes infantis a
nossas costas.
— Podemos ajudar? — pergunta Liam.
Lisa e Linda, ainda não sei qual é qual, sorriem, mãos enluvadas
e toucas na cabeça. Peter grita de felicidade ao ver os amigos e
assente, animado. Abro espaço para todos eles e, juntos,
começamos a realmente dar forma ao boneco.
Em minutos ele fica com um barrigão. Meio torto, mas largo e
redondo o suficiente para servir de base. As crianças discutem entre
si e me pegaria sobrando entre eles não fosse por Peter. Ele pede a
minha ajuda a todo o momento não porque precise, mas porque
deseja que eu participe.
Com a base pronta, falta o corpo e a cabeça. Por serem
menores, o método do meu filho de mentira acaba se mostrando
mais eficaz que a pá. Logo dois pares de crianças estão arrastando
esferas de neve de um lado para o outro. Alicia observa da janela da
sala com um leve sorriso. Tento focar no boneco, mas é impossível.
Ela é um ponto de beleza e calor sobre a neve fria.
— Papai! — chama Peter, forçando-me a parar de contemplar a
sua mãe. — Olha só!
Ele e Liam fizeram uma bola de neve bem grande. As meninas
estão penando com a sua, então corro para ajudar. Acabo tomando
para mim a tarefa de erguer primeiro a maior, depois a menor, sobre
a base do boneco. Afasto-me o suficiente para contemplar o
trabalho semi completo e vejo que ele ficou alto para caramba.
— Vamos enfeitá-lo! — vibra Lisa/Linda.
Os meninos confirmam com a cabeça e saem em busca de
madeira para os braços enquanto as meninas colocam os botões
em sua barriga. Liam volta com dois ótimos galhos e o ajudo a
retirar o excesso, deixando apenas o suficiente para parecem
mãozinhas. Com tudo isso em seu devido lugar, falta o cachecol e o
rosto.
Liam se estica e alcança o pescoço, ajeitando o cachecol com
cuidado, mas Peter e as meninas precisam de ajuda. Ergo um por
um. Uma delas coloca um olho, a outra o outro, e deixam que Peter
se encarregue da cenoura. Na falta de um gorro ou uma cartola,
tomo para mim o cargo de colocar o balde na cabeça careca do
boneco. Afinal, eu também participei.
Reunimo-nos a alguns metros de distância e contemplamos o
trabalho finalizado. O boneco sorri meio torto, é mais gordo de um
lado que do outro, e o balde ameaça cair a qualquer momento, mas
ainda assim ficou legal para caramba. Alicia finalmente sai de casa,
abraçada em si mesma por conta do frio, e se junta a nós.
— Ficou lindo! — diz, e todos assentimos.
O meu olhar cruza com o de Liam. Eu o achei bastante educado
durante o jantar em sua casa, mas uma criança de espírito
encapetado tem a capacidade de reconhecer outra. Os olhos azuis
iguais aos da mãe faíscam cheios de travessuras por debaixo da
franja castanha. Nossos sorrisos se abrem, juntos, e sem que
precisemos dizer nada, nos abaixamos em direção ao chão cheio de
neve.
— Ficou tão lindo que podíamos comemorar com… — começo.
— … uma guerra de bolinhas de neve! — grita Liam, atirando a
primeira delas na irmã.
Ela grita de susto e indignação, mas logo se abaixa para revidar.
A outra corre para longe, mas é atingida nas costas por uma bolinha
de Peter. Lisa/Linda se vira com o semblante sombrio de quem vai
lutar até o último floco de neve.
— Meninos contra meninas — grito.
Alicia bufa, indignada.
— Pelo amor de Deus! Isso é tão sexista e… — Ela se cala,
olhos arregalados em direção a bolinha que acabei de atirar no seu
peito. Rio, provocador, adorando a forma como o seu semblante se
fecha feito uma tempestade. — Seu filho da…
— Ei, ei, ei. Olha só como fala da minha mãe! Ela é uma madame
muito legal — retruco, dando dois passos para trás antes de me
abaixar para fazer uma nova bola. Olho de soslaio para o lado. Liam
e Peter estão massacrando as meninas. Indico as crianças com o
queixo. — Vamos, Alicia. O seu time está perdendo.
Rápida como uma gata traiçoeira, Alicia se abaixa para fazer sua
primeira bolinha. Dou-lhe tempo e, quando estou mirando para atirar
a minha, ela me acerta bem na cara e corre para longe, deixando
um rastro de risadas. Ah, ela quer jogar sujo então!
— Meninas, comigo! — chama. Os dois lados se separaram,
cada um de um lado do boneco, o marco daquela terra de ninguém.
Alicia nos avalia, queixo erguido, e dá a ordem. — Atacar!
As bolinhas voam, descontroladas, de um lado para o outro,
acertando a tudo e a todos. Mais crianças se juntam à guerra e não
demora para que os times sejam desfeitos. Ninguém nem ao menos
sabe de qual lado está, mas sabe que precisa acertar alguém. A
gritaria e as risadas altas aumentam a confusão de neve voando.
Em dado momento meu corpo é bombardeado como se todos
tivessem se virado contra mim, para no momento seguinte atacarem
outra vítima.
Então um rastro vermelho se destaca. Alicia ainda está ali,
valente como só, sem nem ao menos pensar em correr para o calor
do interior da sua casa. Esqueço-me de todos os outros. Ela é o
meu alvo. Faço uma nova bolinha, grande, compacta, perfeitamente
redonda, e acerto a sua bunda. A mulher olha por cima dos ombros
com fúria e me ataca de volta.
De repente somos só nós dois ali, jogando bolinhas um contra o
outro, completamente descontrolados. Alicia me acerta na lateral do
rosto enquanto miro na sua barriga. Estamos cada vez mais
próximos, quase o suficiente para nos tocarmos, mas seguimos em
guerra, bolinhas voando para todos os lados.
Não vejo o que me derruba, mas sinto a bota se prendendo em
algo no chão. Talvez fosse um galho partido durante a nevasca
noturna, ou um brinquedo de Peter esquecido no gramado agora
congelado. Não sei. Só sei que o meu corpo vai para a frente, em
direção a Alicia. Ela estende os braços em uma tentativa de me
segurar, mas sou pesado demais para ela. Caímos juntos no chão.
A queda é amortecida pela neve fofa. Rindo, Alicia não dá trégua.
Enche as mãos de neve a esfrega em meus cabelos, o gorro há
muito perdido.
— Ah, é assim, é? — retruco, tentando revidar.
Rolamos um por cima do outro. Alicia não para. Desisto de pegar
neve e foco em segurar os seus braços, mas ela ágil. Começo a rir,
rendido, enquanto rolamos de novo, e percebo que dessa vez estou
por cima dela.
O meu riso morre. Alicia, que ria também, emudece. Encaramo-
nos, os rostos próximos o suficiente para sentirmos o calor das
nossas respirações enevoadas, seus cabelos ruivos espalhados em
torno do rosto. Ela tenta recolher mais neve, mas dessa vez sou
mais rápido. Seguro suas mãos acima da cabeça e aperto firme, de
forma a mantê-la quieta, mas sem machucar.
Meu corpo toma ciência do seu, menor e cheio de curvas, a
apenas algumas camadas de roupa de distância. A nova ereção é
forte demais para controlar e as pupilas de Alicia se dilatam
conforme meu pau pressiona o seu baixo ventre. Estou para soltá-la
quando ela me encara e entreabre os lábios.
É o convite que eu preciso. Desço a boca sobre a dela e a beijo.
Toda a guerra de bolinhas de neve desaparece à minha volta
conforme Alicia retribui, cheia de desejo, entreabrindo ainda os
lábios para dar passagem. Tomo sua língua na minha com
sofreguidão em um beijo rude, desesperado, cheio de calor. Ela o
devolve da mesma maneira, como se estivesse com saudades
daquela única vez em que isso aconteceu. Porra, ontem mesmo eu
estava pedindo desculpas por aquilo! Naquele momento pouco me
importo. Também estava com saudades.
Paramos para tomar fôlego e voltamos ao caos das risadas e
gritarias infantis. Quero, ou melhor, preciso beijá-la de novo, mas a
razão toma conta do semblante de Alicia. Ela libera os braços do
meu aperto, me joga para o lado, se levanta e corre para dentro da
casa.
Paro de correr apenas ao chegar na cozinha. Agarro o mármore
da ilha central em busca de um pouco de controle. Devido ao
movimento brusco, umas das banquetas cai com um estrondo, mas
não me importo. Meu peito sobe, descontrolado, para cima e para
baixo, a respiração errática diante do que acabou de acontecer. Eu
sabia que algo havia mudado entre eu e Henry na noite passada.
Ou talvez tenha começado antes, quando ele me encontrou nesse
mesmo lugar chorando, sozinha, em busca de algum consolo.
Ele deixou nossas diferenças de lado e me consolou. Cuidou de
mim. Fez com que eu me sentisse especial. Bonita como há muito
eu não me sentia. Para finalizar, o “gêmeo mau” deixou sua
arrogância de lado e pediu desculpas pelo beijo causador de toda a
discórdia familiar. O poço profundo que aos poucos vinha
borbulhando no interior do meu corpo, enfim, entrou em ebulição.
Aquilo foi o que bastou para que eu, finalmente, visse Henry
Chamberlain com novos olhos.
Em menos de vinte e quatro horas ele me beija de novo. Uma
onda de calor desce pela barriga e invade a minha feminilidade. Foi
só um beijo, mas o meio das pernas está encharcado. Contraio as
coxas uma contra a outra, tentando aplacar aquele desejo, mas não
consigo. Ainda sinto o aperto firme dos seus dedos contra o meu
pulso, o calor dos lábios colados nos meus, o sabor da língua ao
invadir a minha boca e a tomar para si, o peso do seu corpo me
afundando na neve, a ereção evidente roçando em minha virilha.
Henry é voraz e dominante, uma tentação em um metro e noventa
de pura masculinidade.
Balanço a cabeça, tentando esquecer o que aconteceu.
Precisaremos conversar sobre aquilo. Não podemos nos envolver e
complicar ainda mais as coisas.
— Alicia? — chama uma voz muito séria. Fecho os olhos com
força. Não quero olhar para ele agora. Não posso olhar para ele
agora. Sei que, se eu fizer isso, estarei arruinada. Henry se
aproxima, a presença marcante mesmo que eu não consiga vê-lo.
— Olhe para mim, Alicia.
— Henry, por favor…
Ele agarra os meus braços e me vira, jogando o meu traseiro
contra o mármore e me obrigando a ficar de frente a ele. Arregalo os
olhos, indignada pelo tratamento, pronta para protestar e mandá-lo
me soltar, mas sou arrebatada pelas chamas ardentes em suas íris
azuis. Os cabelos escuros estão bagunçados e cheios de neve.
Parte dela derreteu e desce pelo rosto, escondendo-se na barba por
fazer.
— Eu pedi desculpas pelo beijo na universidade — diz, a voz
grave com um toque levemente rouco de puro tesão. — Mas não
vou pedir desculpas pelo beijo de agora. Você também queria,
Alicia. Sei que queria.
Balanço a cabeça.
— Henry…
— Nada de Henry. Vamos, confirme! — ordena. — Você queria:
sim, ou não? Porque se você disser que não, eu mudo para o quarto
de hóspedes e juro, por tudo o que é mais sagrado, que nunca mais
vou chegar perto de você. Mas você vai dizer sim, sabe por quê? —
continua, aproximando os lábios do meu ouvido, a respiração
quente deslizando pelo brinco de diamante que me deu de presente.
— Porque você está tão cheia de desejo quanto eu.
— Você não tem como saber — retruco. Ele se afasta o suficiente
para que eu veja o sorriso diabólico, aquele meio de lado, cheio de
malícia.
— Tenho, oh se tenho — desce os olhos pelo meu corpo,
demorando-se na região da minha virilha antes de subi-los de novo.
— Aposto que se eu enfiar a mão na sua calça vou encontrar uma
calcinha arruinada e uma boceta completamente molhada.
Arfo alto e o encaro. Que safado! Ele aguarda pela resposta.
Meus lábios tremem para dizer que não, mas seria mentira. Estou
cansada de segurar os meus impulsos. Chega de mentir para mim
mesma. Só me resta uma resposta.
— Sim, eu queria — a voz sai firme, convicta, levando qualquer
dúvida para longe.
O sorriso de Henry se alarga. Ele solta os meus braços, mas
segura minhas costas com ainda mais firmeza e pressiona a ereção
dura feito rocha contra o meu corpo. Meu rosto esquenta e a boceta
pulsa, cheia de desejo, mas não tenho tempo para pensar. Henry
toma os meus lábios em um beijo profundo. É demais para resistir.
Agarro os seus cabelos gelados e puxo o seu rosto contra o meu.
Ele ri dentro da minha boca e arqueia o quadril, deixando clara qual
é a sua intenção. Não sei qual é a minha. Tudo o que consigo fazer
é gemer contra os seus lábios e arquear o quadril de volta, sentindo
a firmeza da ereção pronta para escapar das calças.
O pouco que me resta de razão faz com que eu me afaste. Henry
me encara, mais intenso do que nunca.
— O que foi? — pergunta, manhoso, fazendo menção de deslizar
uma mão em direção a minha bunda. Agarro o seu pulso e o encaro.
— Ainda sou uma mulher casada, Henry.
— E você acha que eu ligo? O seu marido pediu o divórcio e está
pegando outra em Londres! Você está mesmo preocupada com ele?
Abaixo os olhos para a aliança em minha mão, o símbolo máximo
da nossa união. Hector a colocou em meu dedo, fez o seu
juramento, e não o cumpriu. Henry segue o meu olhar. Segura a
mão na sua e tira a aliança, plantando um beijo onde antes ela se
encontrava. Um arrepio sobe pelo meu pulso e, de uma forma bem
estranha, me sinto livre.
— Ainda assim… — começo, em dúvida. Ele coloca o anel de
ouro sobre o mármore.
— Vamos, Alicia. Somos dois adultos. Eu te quero, você me quer.
Fazem seis meses que você é tocada apenas por si mesma. Você
quer alguém que te foda como você merece — murmura, voltando a
aproximar os lábios do meu ouvido. Suas palavras rudes fazem com
que eu me arrepie inteira.
— Um ano — deixo escapar.
Ele se afasta com o cenho franzido.
— Como é que é?
Balanço a cabeça, envergonhada de dizer aquilo em voz alta. O
ouro dourado capta minha atenção e foco nele, incapaz de olhar
para o homem à frente.
— Hector não me toca há um ano. Não sei o que aconteceu —
engulo em seco. — As vezes acho que ele foi embora por minha
culpa — desabafo, com a voz trêmula. — Juro que eu tentei, mas
apesar de sermos casados há tantos anos, eu nunca…
Henry me encara cheio de paciência.
— Nunca o quê?
— Fiz algo especial. Até comprei uma lingerie, mas…
— E ele fez algo de especial para você? — corta, meio irritado.
Nego com a cabeça e toda a paciência de Henry vai embora. —
Puta que pariu! Meu irmão, com um mulherão como você em casa,
só ficava no básico?
— Ei, eu não estou reclamando!
— Pois devia reclamar! Sabe o que quero fazer? — provoca,
pressionando de novo a ereção contra o meu corpo, a voz rouca, os
olhos mais ardentes do que nunca — Quero te jogar contra uma
parede, meter o meu pau fundo na sua boceta e te foder até as suas
pernas tremerem. Precisarei tampar a sua boca com a minha para
que toda a vizinhança não escute os seus gritos de prazer, Alicia.
Porque você vai gritar, oh se vai, até ficar sem voz.
— Misericórdia — murmuro.
— É, talvez você peça por ela, mas só vou dá-la ao sentir que fiz
um trabalho bem-feito. Sou eu quem tenho que me empenhar para
agradar você, não o contrário — declara, cheio de orgulho. Sem
aviso, agarra a minha nuca e segura a cabeça com firmeza, de
forma que se torne impossível deixar de encará-lo. — Hoje à noite,
vista a lingerie que comprou para o meu irmão e vou te mostrar
como fazer bom uso dela.
Pronto, meu cérebro foi transformado em gelatina com cem por
cento de sucesso. Limito-me a assentir e Henry me beija de novo,
uma mão ainda mantendo a cabeça presa, a outra descendo até a
cintura da minha calça. Fecho os olhos e permito que ele faça o que
quiser enquanto me concentro em agarrar suas costas firmes e
puxá-lo para mais perto. Sinto os seus dedos começando a invasão
em direção ao meu traseiro quando, de repente, ele me solta.
— O que… — começo a dizer, sem entender por que parou, até
ver Peter nos observando da entrada da cozinha. Meu Deus do céu,
nessa confusão toda deixamos uma criança de apenas quatro anos
sozinha em meio a uma guerra de bolinhas de neve! O rosto sujo de
lama e os pedaços de grama e neve derretida presos no cabelo
ruivo denunciam que a batalha foi inclemente — Filho! Você está
bem?
Peter primeiro olha para Henry, cheio de atenção, e depois olha
para mim. O homem se afasta enquanto penso em como lidar com a
situação de ser pega no flagra em um amasso gostoso com o meu
cunhado no meio da cozinha, mas a criança acaba resolvendo o
desembaraço. Um sorriso de orelha a orelha brota antes de soltar
um amontoado de risadinhas contidas.
Ainda está rindo quando Liam aparece. Solto um suspiro aliviado.
Ainda bem que fui pega pelo meu próprio filho. Seria assunto para
os próximos dez jantares, no mínimo, se o filho da vizinha fosse o
responsável por nos flagrar.
— O Peter disse que a senhora fez chocolate quente — diz,
animado.
— Fiz só um pouco, mas posso fazer mais — pisco, feliz em ter
algo comum e seguro para fazer. — Só um minutinho e já levo para
vocês.
Ele sorri em agradecimento. Peter solta mais algumas risadinhas,
mas logo são chamados, ou desafiados, pelas crianças do lado de
fora e saem correndo. Concentro-me na tarefa, mas Henry se
aproxima e me abraça por trás.
— Hoje à noite — repete.
Afasta o meu cabelo e planta um demorado beijo na lateral do
meu pescoço. Fecho os olhos, mas nem ao menos tenho tempo de
pensar duas vezes na proposta. Henry já desapareceu, deixando-
me sozinha com os meus pensamentos.

O restante do dia seguiu tranquilo. Ignorei a devastação causada


na fachada da casa quando sai com a bandeja cheia de canecas
com chocolate quente. O boneco de neve resistiu, firme e forte, mas
o gramado com certeza estará cheio de buracos quando o degelo
acontecer. Apesar de uma ou outra bolinha de neve, as vidraças da
casa resistiram. E, o mais importante, as crianças ficaram felizes. É
isso que importa.
Judy contribuiu com uma fornada de cookies quentinhos.
Comemos e bebemos ali mesmo, na porta de casa, sem se importar
com os vizinhos que passavam e nos olhavam de cara feia. Henry
interagiu com as crianças, riu das piadinhas de duplo sentido de
Judy e se comportou como um lorde. Ninguém mais se importava
com o antigo Hector sisudo e calado. E por que se importariam? O
novo é muito mais divertido.
Dentro de casa a situação se mostrou um pouquinho mais tensa,
pelo menos da minha parte. Depois de um longo banho, Henry
esparramou-se no sofá para ver desenhos com Peter. Os dois riam
das estripulias do Bob Esponja como se aquelas fossem as piadas
mais engraçadas do mundo enquanto permaneci na cozinha,
esperando o anoitecer com uma estranha expectativa.
Um anjinho dizia em um dos meus ouvidos que eu deveria
educadamente dizer ao meu cunhado que agradecia a sua oferta,
mas precisaria recusar. Já o diabinho dizia em alto e bom som que
não é todo dia que um homem gostoso aparece oferecendo uma
noite de sexo selvagem. Que o correto seria mandar o Hector se
foder e aproveitar todo o poder do corpo nu de Henry. Sozinha na
cozinha, a mente em conflito, eu não sabia o que iria fazer, mas
sabia de uma coisa: se rolasse, seria só sexo. Já precisarei lidar
com Peter depois que o meu cunhado for embora. Não preciso me
envolver e lidar comigo mesma.
O jantar transcorreu dentro da normalidade, mas Henry percebeu
que não comi muito. Limitou-se a observar calado do seu lugar à
mesa. Depois da pegação na ilha, não me senti confortável em
comer lá, e ele não impôs objeções. Peter bocejou, vezes sem
conta, mostrando que a agitação do dia estava cobrando o seu
preço. Ao final do jantar já estava molinho de sono.
— Já quer dormir? — pergunta Henry. O menino faz que não.
— Quero ver desenho.
— Mais desenho?
Ele assente e pula da cadeira, caminhando meio trôpego em
direção a sala. Henry o observa de longe, mas sabe que o mais fácil
é segui-lo e fazer o seu gosto. Lança-me um olhar significativo e se
levanta. Adianto-me em baixar o olhar, focada em recolher os pratos
e ajeitar a cozinha. Os dois ainda estão grudados na TV quando
termino. Meu cunhado me encara, mas me adianto em dizer.
— Eu vou subir. Você se importa de colocar o Peter para dormir?
— Não.
— Ótimo. Boa noite, filho — digo, beijando a bochecha macia do
menino. Peter retribui e solta um novo bocejo. Hoje ele está
resistindo, mas agora falta pouco. Mas dez minutos e cairá no sono.
Deixo-os sozinhos e subo as escadas, tentando manter um passo
normal apesar do nervosismo. Fecho a porta da suíte às minhas
costas e respiro fundo. Ainda não decidi se vou mesmo me entregar
a Henry, mas isso não quer dizer que devo ignorar os preparativos.
Vasculho o closet em busca do delicado conjunto de renda preta
que comprei para outra ocasião, ao que parecem anos luz de
distância. Encontro a lingerie esquecida no fundo de uma gaveta e
desdobro a pequena calcinha diante dos olhos. Sensual, bonita e
reveladora, mas de repente não quero mais usá-la. Respiro fundo,
encho-me de coragem e a devolvo ao seu lugar. Ao invés dela, pego
o meu simples roupão atoalhado e vou para o banheiro.
A ducha quente leva parte da tensão embora. Ao sair, encaro o
reflexo do espelho embaçado. A touca falhou em proteger os meus
cabelos da umidade, então os escovo até que estejam macios e
brilhantes. Penso em passar uma sombra sobre os olhos, ou uma
máscara de cílios, mas minhas mãos tremem, incapazes de cumprir
a tarefa, permitindo apenas que eu deslize um batom rosa claro
pelos lábios. Torno a encarar a imagem vestida apenas com os
brincos de diamante. Estou assustada como uma virgem, mas
aquilo vai precisar bastar. Jogo o roupão sobre os ombros e saio do
banheiro.
Henry me flagra da porta do quarto. Desliza os olhos pelo meu
corpo até parar em meu rosto. Ergo o queixo em uma tentativa de
me encher de coragem, mas sei que falho. Devagar e sem fazer
barulho, tranca a porta às suas costas com a chave.
— Peter já dormiu? — pergunto. Ele assente.
— Como uma pedra.
— Ótimo — digo, fazendo menção de abrir o laço que fecha o
roupão. Henry se adianta e segura as minhas mãos.
— Você não tem noção do quanto eu te quero, Alicia — diz, bem
baixinho. — Mas você não precisa fazer isso se não quiser. Eu vou
ficar um pouco triste em me mudar para aquele insólito quarto de
hóspedes, mas continuarei batendo punhetas em sua homenagem
como um perfeito cavalheiro.
— Idiota — dou um tapa de brincadeira no seu braço, fazendo-o
rir. — Eu quero, Henry.
Suas pupilas se dilatam e ele passa a língua pelos lábios,
faminto.
— Então deixa eu abrir esse roupão como se você fosse um
presente.
Solto a mão que segurava o laço e permito que tome o controle.
Devagar, Henry desfaz o nó e as pontas caem, soltas, na lateral da
minha cintura, revelando o meu corpo nu por baixo. Seus olhos se
arregalam. Com certeza ele esperava a lingerie, mas não a cobra.
Pelo contrário, parece deliciado por não a ver ali.
Os olhos em chamas percorrem cada cantinho de pele sem
nenhuma pressa. Quando voltam aos meus, ele entende sem
qualquer palavra algo que eu estava pronta para falar: sua oferta de
me jogar contra a parede e me fazer gritar de tanto gozar é
tentadora, mas preciso que vá com calma. Ele assente e estende
uma mão para a curva entre o meu ombro e pescoço. Desliza o
roupão com displicência, fazendo com que o tecido caia pelos meus
braços e termine no chão. Respiro fundo, completamente nua diante
dele.
— E então? — pergunto, insegura com as leves estrias nos seios
e as mais acentuadas na barriga e cintura. A pele ainda é lisa, mas
está longe de ter a firmeza de uma jovem que não passou por uma
gravidez.
— E então que você é linda, Alicia.
Não tenho tempo para tomar fôlego. Henry avança sobre mim, os
lábios cobrindo os meus, a língua invadindo a minha boca e me
deixando sem ar. As mãos agarram, juntas, minha nuca e bunda.
Ele geme quando a aperta, trazendo o quadril de encontro ao seu.
Nós ainda nem começamos e ele já está duro.
Agarro as suas costas e retribuo o beijo. Henry se afasta apenas
para tomar fôlego e volta a me beijar, uma das mãos mantendo a
cabeça firme enquanto a outra, atrevida, deixa rastros de fogo
contra a pele. Avanço o quadril em direção ao seu, já sentindo
minha intimidade molhada. Sei que Henry clama por urgência, mas
não tem pressa. Nossas pernas atrapalhadas vão para mais perto
da cama e, ao se afastar de novo, é para me jogar sobre o edredom.
Mal tenho tempo para respirar e Henry está em cima de mim, o
corpo grande e quente capaz de cobrir o meu por completo. Deixo
que me beije, mas ao invés de deslizar as mãos pelas suas largas
costas, me esforço para tirar a sua blusa. Ele ergue o tronco,
tomando para si a tarefa. Olho, deslumbrada, as camadas de tecido
revelando o abdômen cheio de gominhos, o peitoral largo e o braço
completamente tatuado. Estendo uma mão, querendo tocar o
desenho, mas ele me impede.
— Depois.
— E se eu quiser ver agora? — retruco, fingindo-me de brava.
Ele sorri cheio de malícia.
— Tem outra coisa que eu quero que você veja agora —
debocha, descendo o corpo pelo colchão. — Mas, antes, eu quero
ver você.
— Mas você já não está vendo e… céus! — surpreendo-me,
quando ele escancara as minhas pernas.
Meu primeiro impulso é fechá-las, mas ele é forte demais. Passa
a língua pelos lábios e, devagar, posiciona-se entre as coxas. Com
os olhos azuis fixos nos meus, morde o interior de uma delas,
fazendo com que a pele macia e delicada se arrepie todinha por
conta do contato dos seus dentes e do pinicar da sua barba curta.
Só então se permite espiar o que há no meio delas.
— Eu não disse que a sua boceta estaria molhadinha? — Sem a
menor cerimônia, enfia a cabeça entre as coxas e fecha os lábios
direto no meu clitóris, chupando o centro do meu prazer com força.
Gemo alto e ele ri, o hálito quente atiçando ainda mais o meu
desejo. — Não se esqueça que o seu filho dorme no quarto ao lado.
— Prometo tentar — digo, mas será difícil. Talvez ele precise me
amordaçar. Henry tem jeito de ser um homem que adoraria
amordaçar uma mulher. — Por favor, pegue leve.
— Isso eu não prometo fazer — comenta, displicente, e volta a
me chupar.
Mordo os lábios e agarro os lençóis com força, tentando conter os
gemidos enquanto ele desliza a língua pelas dobras encharcadas
antes de voltar a se concentrar no clitóris. Intercala sua atenção em
meu pontinho do prazer com suaves beijos e fortes chupadas. Estou
tentando pensar em quantas maneiras ele será capaz de me levar a
loucura quando sinto dois dedos entrando em minha boceta. Estou
tão molhada que eles deslizam com facilidade, para frente e para
trás, cada vez mais rápido.
Algo começa a se remexer dentro de mim, quente e poderoso.
Fecho as pernas, em uma tentativa de conter aquilo, mas é
impossível. Henry ri e me segura firme com a mão livre. Intensifica
as estocadas dos dedos e prende o meu clitóris entre os lábios.
Arqueio o corpo para cima quando o orgasmo vem. Os dedos de
Henry escapam, mas não a sua boca. Ele puxa o meu quadril para
baixo e continua. Cubro os lábios com uma mão em punho para
evitar gritar enquanto estremeço por inteira, completamente
descontrolada. O homem só para no momento em que relaxo de
volta ao colchão, sem forças.
Com uma chupada de despedida em meu centro pulsante, Henry
começa a distribuir beijos pelos grandes lábios, o monte da virilha e
minha barriga. Olho para baixo, ofegante, e me arrepio inteira
quando ele desliza a ponta da língua pela pele fina de uma das
estrias pálidas. Sobe pela barriga, sem pressa, degustando cada
cantinho de pele até chegar aos seios.
Um ele cobre com a mão, o outro cobre com a boca. Circula o
mamilo intumescido como um botão de flor, chupando-o ao mesmo
tempo em que massageia o outro, sem a menor pressa. Gemo
baixinho, deliciada com a sua atenção. Poderia tê-lo ali a noite
inteira.
— Henry…
— O que? — pergunta, a voz abafada, olhando para cima.
— Por favor.
— Por favor, o quê, linda? — sorri, o mamilo cada vez mais
sensível entre os lábios. Ele o lambe com a pontinha da língua,
apenas para me atiçar, e desço as mãos em direção a sua calça.
— Eu preciso de você dentro de mim — imploro, tentando
desafivelar o seu cinto, mas sem sucesso. Ele sobe mais o corpo,
se apoia nos cotovelos e me beija, transferindo o que resta do meu
gosto salgado para a minha boca. Encara-me quando se afasta e
continuo da onde parei. — Queria retribuir, mas…
— Fique tranquila. Teremos tempo — declara, erguendo-se por
completo. Meu corpo logo sente falta do peso do seu, mas sei que é
por pouco tempo. Ele abre o botão do jeans e abaixa o zíper — Se
tem uma coisa que estou desesperado para fazer além de enfiar o
pau por completo na sua boceta deliciosa, é enfiá-lo bem fundo na
sua boca.
Estremeço de tanto tesão. Será que ele é sempre assim tão
direto? Hector era calado até mesmo durante o sexo e… E por que
estou pensando no Hector? É Henry quem está ali comigo e, nesse
momento, é ele quem eu quero.
— Você tem uma camisinha? — pergunto, tentando desviar o
foco. Henry ri.
— É claro que eu tenho camisinhas — enfatiza o plural e, enfim,
abaixa as calças. O contorno do membro volumoso faz-se presente
sob a boxer preta, mas Henry deixa que eu passe vontade antes de
enfim baixá-la também. Seu pau pula para fora, longo, grosso e
muito bonito. Ele olha para baixo antes de voltar a me encarar com
um ar divertido. — Até hoje você não respondeu se eu e meu irmão
somos idênticos em todos os lugares.
— Acho que vou deixar você morrer com essa curiosidade — dou
de ombros.
Henry ri e pega a carteira sobre a mesinha de cabeceira. De
dentro dela, retira um pacote de camisinha e começa a abri-lo, mas
pensa melhor e o estende a mim.
— Gostaria de fazer as honras? — assinto e ele se aproxima de
forma a me deixar cara a cara com o seu pau. Abro o invólucro
prateado e beijo a glande, bem de leve, antes de deslizar o látex por
todo o seu comprimento. Um gemido rouco escapa do fundo da sua
garganta. — Assim você vai me levar à loucura, mulher.
Não resisto a sorrir. Também estou indo à loucura. Sinto a boceta
escorrendo de tanto desejo, meus lábios desesperados para voltar a
beijá-lo. Sei que Henry quer o mesmo. Devagar, volta a cobrir o meu
corpo com o seu, posicionando-se entre as minhas pernas enquanto
desliza as mãos pelo meu traseiro.
Primeiro beija um mamilo, me arrancando um suspiro, depois
sobe em direção a boca. Uma mão toma para si o contato com o
seio, beliscando a pontinha do mamilo e me roubando um gemido
de prazer. A outra se ocupa de encaixar a cabeça do pau na entrada
da minha boceta e, com uma única estocada firme, Henry me
penetra fundo.
Gemo alto dentro da sua boca. Apesar de não conseguir ver, sei
que ele sorri. Sai quase por completo, apenas para entrar de novo,
enterrado o pau grosso até a base. Quero beijá-lo de novo, mas é a
vez de Henry me torturar. Ao invés de tomar a minha boca na sua,
limita-se a morder a ponta do meu lábio inferior, descendo as
mordidinhas pelo contorno do meu maxilar até a base do pescoço.
Agarro os seus cabelos, desejosa de mantê-lo ali enquanto ele
continua se movimentando, as estocadas lentas, mas firmes.
— Você gosta assim? — pergunta, rouco, a voz tomada pelo
desejo. Confirmo com a cabeça e ele belisca o mamilo de novo,
irradiando dor e prazer por todo o meu corpo em uma mistura
deliciosa. — E assim? — pergunta, aumentando a velocidade e a
força das estocadas.
— Gosto.
— Ótimo. — Henry puxa o meu pescoço para trás e morde, com
mais força, como um vampiro. Gemo alto, incapaz de resistir, pouco
preocupada se precisarei esconder qualquer marca ou chupada com
uma blusa de gola alta. — Eu também gosto assim.
Dito isso, mete com força. Um novo gemido alto ameaça escapar,
mas é engolido pelo beijo ávido do meu amante. Puxo os seus
cabelos e o beijo de volta, desesperada, sem acreditar que aquilo
uma vez foi motivo para tanta discórdia. Henry intensifica as
arremetidas. Agarro a sua bunda e o mantenho ali, aquela sensação
quente crescendo em meu centro, aprontando-se para se libertar.
Ele percebe. Aumenta a velocidade e agarra os meus cabelos com
mais força.
— Olha para mim — ordena. — Quero te ver quando gozar bem
gostoso no meu pau, Alicia.
Encaro as íris azuis em chamas, o rosto suado concentrado em
me satisfazer, e com mais uma estocada firme, Henry sai de foco ao
libertar o meu prazer. Ele geme no momento em que as paredes
internas da minha boceta o apertam com mais força e arqueio o
quadril, fazendo com que se enterre ainda mais fundo quando a
explosão de prazer sobe pela virilha e se espalha por todo o meu
corpo. Cravo as unhas curtas em sua bunda e o orgasmo só não me
faz gritar alto porque Henry é rápido em fechar a minha boca com
um novo beijo. Estremeço dos pés à cabeça, os olhos cerrados de
esgotamento.
Henry mete fundo mais uma, duas, três vezes, quando o sinto
pulsar dentro de mim. Reabro os olhos devagar, mas a tempo de vê-
lo alcançando o próprio ápice. Seu rosto se contorce enquanto
geme do fundo da garganta antes de desabar sobre o meu corpo.
Afundo o nariz na curva do seu pescoço e inspiro o perfume
amadeirado, satisfeita como há muito não me sentia.
— Obrigada — digo, baixinho, ao pé do seu ouvido. Ele vira o
rosto, os olhos languidos, mas ainda cheios de energia, um sorriso
ao mesmo tempo carinhoso e safado no rosto. Apoia-se nos
cotovelos e, devagar, tira o pau semiereto de dentro de mim.
— Servimos bem para servir sempre — diz. Rio feito boba e ele
beija a ponta do meu nariz antes de se levantar.
Observo-o indo ao banheiro, a bunda bonita e redonda cheia de
marcas de unha. Volta instantes depois e me encontra na mesma
posição. Penso que vai fazer um comentário engraçadinho, mas
Henry apenas se enfia debaixo do edredom e me puxa contra o
peitoral largo. Acomodo-me sobre si, a cabeça bem em cima do lado
tatuado, e fecho os olhos. Adormeço ao suave som da sua poderosa
respiração, seus dedos acariciando os meus cabelos de fogo.
Acordo, mas me mantenho de olhos fechados, apenas
compartilhando do delicioso calor com aroma de rosas vindo do
corpo feminino junto ao meu. Não preciso olhar para baixo para
saber que Alicia ainda está enroscada sobre o meu peito, os
cabelos ruivos espalhados em volta do rosto, coberta até os ombros
pelo edredom macio. O meu braço debaixo do seu corpo protesta
em um intenso formigar, mas pouco me mexo para remediar a
sensação. Pela respiração calma, Alicia ainda dorme a sono
profundo. Não quero acordá-la.
Perdi as contas de quantas mulheres passaram pela minha
cama, mas é a primeira vez que acordo tão bem. Poderia dizer que
é culpa da falta de sexo. Faço alguns rápidos cálculos mentais e me
espanto ao perceber como o tempo passou rápido. Faltam poucos
dias para o Natal. Parece que foi ontem que sai de terno e gravata
do sedã da minha mãe, sem qualquer animação para passar
algumas semanas em companhia do sobrinho que ainda não
conhecia e da cunhada que me detestava.
Como vamos ficar a partir de agora? Ontem à noite estávamos
tão cansados depois do dia agitado que adormecer se mostrou a
coisa mais natural a se fazer depois de uma foda tão intensa. A
ereção matinal no meio das pernas comprova como estou mais do
que disposto a repetir a dose e, pela avidez de Alicia, aposto que
acordará com tanta vontade quanto eu. Caso contrário, precisarei
enfrentar o quarto de hóspedes. Será impossível dividir a mesma
cama sem possuí-la. Meu pau pulsa, frustrado, só de imaginar a
situação.
Enfim abro os olhos e encaro a mulher. Alicia respira tranquila
com um sorrisinho no canto dos lábios. Meu Deus, que vontade de
beijá-la! Devagar, cheio de cuidado, levanto o braço livre e acaricio
os seus cabelos. Ela se remexe e ergue o rosto, os olhos castanhos
sonolentos, o sorriso ainda estampado no rosto.
— Bom dia.
— Bom dia. Desculpe, não queria te acordar.
— Eu já estava acordada — murmura, ajeitando-se sobre o meu
peito.
De um jeito um tanto quanto possessivo, abraço-a com o braço
dormente, puxando-a ainda mais para mim. Temo que ache demais
e se afaste, mas Alicia me agarra forte. Sorri e desliza a ponta do
dedo pelo meu peito, traçando a linha preta da tatuagem tribal na
pele. O toque é inocente, curioso, e ainda assim capaz de deixar um
rastro de fogo por onde passa.
— Os desenhos são tão lindos — comenta, olhando para cima.
— Tem algum significado?
— Possui alguns. É uma tatuagem maori — explico. — Sempre
as achei fascinantes e, quando conheci um neozelandês
especialista nesse tipo de tatuagem em San Diego acabei fazendo.
Levou quase um ano para ficar pronta.
— Uau. É uma obra de arte — comenta, a voz carregada de
admiração, antes de soltar um longo bocejo. — Desculpe, mas fazia
tempo que eu não dormia tão bem.
Uma gargalhada baixa escapa do fundo da minha garganta.
— Depois do sexo que fizemos ontem à noite eu ficaria surpreso
se você dissesse o contrário.
Para o meu pesar, sinto-a murchar.
— Henry…
— Por favor, não diga que se arrepende.
— Não vou dizer isso — devagar, ela se ajeita sobre os
cotovelos, elevando o corpo sobre o meu. Encara-me olho no olho,
cheia de timidez, mostrando sem querer como é custoso fazer
aquilo — Apesar de tudo, eu ainda sou uma mulher casada. Eu fiz
um juramento, Henry.
— Seu marido também fez — rebato, me recusando a falar o
nome do meu irmão. — E o quebrou. Você é uma mulher livre —
ergo o meu corpo, de forma a aproximar os lábios do seu ouvido. —
Então se você quiser sentar agora no meu pau, você pode — sorrio,
deliciado diante da visão dos peitos de Alicia balançando conforme
ela cavalga sobre a minha cintura. — Assim como também pode
simplesmente se levantar e ir fazer qualquer outra coisa, por mais
que essa segunda alternativa me deixe bem triste.
— Eu nunca fiz isso — diz, bem baixinho. Franzo o cenho.
— O que?
— Ficar por cima.
Quando um homem acha que já ouviu de tudo, uma linda mulher
vem e solta uma barbaridade dessas.
— Bom, a sua chance chegou — brinco, mas ela permanece
séria e um tanto quanto desconfortável. Penso um pouco,
procurando uma maneira de deixá-la à vontade. Uma mecha de
cabelo desliza para a frente do seu rosto e me adianto em arrumá-la
atrás da sua orelha. Alicia me encara, cheia de significado, e uma
ficha cai. — Hector costumava fazer esse gesto.
Ela assente.
— Mas não é em Hector que eu estava pensando na noite
passada, assim como não estou pensando nele agora. É em você,
Henry, mas…
Meu coração dá um salto no peito, fazendo com que todo o meu
corpo se encha de calor. Ela desvia os olhos, mas seguro o seu
rosto com ambas as mãos e faço com que me encare.
— Você está confusa, não está? — jogo a real e Alicia assente.
— Olha, confesso que também estou. Sou o tipo de cara que fode e
vai embora. — Ela faz uma careta, mas sou rápido em continuar. —
E não faço promessas, Alicia. Quem dorme comigo sabe disso. Se
quiser, temos alguns dias para curtir um ao outro e sou sincero ao
dizer que enquanto você for minha, eu serei seu. O depois nós
deixamos para depois.
— Parece fácil pensar dessa maneira — sorri.
Confirmo com a cabeça e acaricio a lateral do seu rosto com o
polegar. É fácil porque precisa ser fácil. Quero lembrá-la que volto
para Santa Mônica depois do Natal, mas mordo a língua. Ela não
precisa ouvir aquilo agora e não gosto, nem um pouco, como soa
desconfortável.
— Você decide — digo, rouco de tesão, em uma tentativa de
levar o pensamento de ir embora para longe. Alicia fecha os olhos e
descansa a bochecha contra a palma da minha mão.
— Me preocupa saber o que a sua família achará disso.
— Do nosso trato de sexo sem compromisso? — Seu rosto se
cobre de vermelho. — Minha mãe não precisa saber. Emilly talvez
descubra, e falará por três horas no meu ouvido sobre o assunto,
mas depois vai achar o máximo.
— Acha mesmo? — questiona, desconfiada.
— Acho. Agora chega de falar da minha irmã — acrescento,
descendo as mãos pelo seu corpo até chegar na sua bunda. Alicia
solta um gritinho quando dou um tapa estalado na pele macia. —
Caralho, como a sua bunda é gostosa! E então, o que acha de dar a
sua primeira cavalgada?
O rosto de Alicia fica ainda mais vermelho. Ah, linda. Você vai
ficar vermelha feito um tomate se descobrir tudo o que minha
cabeça diabólica está planejando fazer para te dar prazer.
— Eu quero — diz, com firmeza. — Mas quero fazer uma coisa
antes.
Os olhos castanhos flamejam e ela desce o corpo, bem devagar,
até esconder-se por debaixo do edredom. Ai céus, ela vai fazer o
que estou pensando? Unhas deslizam pelo meu abdômen, curtas,
mas afiadas o suficiente para arranhar, confirmando que sim, ela
vai. Ontem o pousar dos lábios na glande me deixou só na vontade,
mas pela firmeza com que Alicia agarra a base do pau, hoje está
disposta a fazer o serviço completo.
Ela sobe a mão, devagar, por todo o seu comprimento até a
cabeça úmida de líquido pré gozo. Sinto-a espalhando a lubrificação
pela pele delicada com a ponta da língua enquanto a mão desce na
mesma velocidade com que subiu, sem qualquer pressa. Gemo,
rouco, em completa expectativa. Parte de mim está ávida para
erguer o edredom e encarar a mulher no meio das minhas pernas,
mas a outra parte se delicia com o suspense.
Alicia fecha os lábios e chupa com força. Sou pego de surpresa
e, em um reflexo, impulsiono o quadril para a frente, levando o pau
até o fundo da sua garganta. Ela aperta as bolas, em uma
advertência clara, e recuo. Chupa de novo, até onde alcança, a mão
subindo e descendo em uma masturbação firme e deliciosa.
É difícil manter os quadris parados. Para evitar foder a sua boca,
me obrigo a agarrar o edredom. Alicia sente o meu corpo
tensionando. Tira o pau da boca e desliza a língua pela cabeça em
movimentos circulares enquanto aperta o comprimento com mais
firmeza. Arqueio as costas, as veias do pescoço saltadas, o corpo
todo a ponto de pegar fogo. Ela volta a envolver a glande com os
lábios e a sugar, cheia de vontade, fazendo com que um gemido
estrangulado escape do fundo da minha garganta. Daquele jeito eu
vou gozar direto em seus lábios.
Gosto da perspectiva de fazer isso, mas a vontade que ela me
cavalgue fala mais alto. Obrigo-me a soltar o edredom e afastá-lo do
seu corpo. Alicia olha para cima, os cabelos revoltos em torno do
rosto inocente.
— Não está gostando? — pergunta, lambendo os lábios, a mão
ainda firme em torno das veias saltadas.
— Estou. Ah como estou — gemo. — Mas eu quero essa sua
bocetinha molhada sentada em cima do meu pau.
Com uma última lambida, solta o meu membro e volta a subir o
corpo, os joelhos posicionados na lateral da minha cintura, o olhar
inocente, mas safado, cheio de expectativa. Puta que pariu, eu amo
isso nela!
Sem responder, agarro a sua bunda gostosa e a coloco ainda
mais para cima, o quadril perfeitamente alinhado com o meu pau.
Não é necessário enfiar dois dedos nela e confirmar o óbvio, mas os
enfio mesmo assim, levando-os à boca e sugando o seu mel, cheio
de tesão. Sem deixar de encará-la, chupo as falanges dos dedos
uma a uma, até a ponta das unhas. Alicia assiste a esse movimento
com seriedade e, sem avisar, agarra o meu rosto e me beija.
Com o meu gosto misturado ao seu, entreabro os lábios e lhe dou
passagem. Alicia a aceita com um suspiro, tomando a minha língua
como se sua vida dependesse disso. Dou-lhe tudo o que ela quer
enquanto o pau pulsa de encontro a sua bunda, ávido para adentrar
em sua umidade. É necessária toda a força de vontade do mundo
para evitar que eu a possua sem proteção. Interrompo o beijo e me
viro em direção a carteira sobre a mesinha de cabeceira, em busca
de uma camisinha. Para me provocar, Alicia desce o quadril e se
esfrega contra a ereção, a boca espalhando mordidinhas pelo
contorno do meu maxilar.
— Assim fica difícil resistir — gemo. Ela ri contra o meu ouvido e
afasta o corpo. Enfim, pego o que preciso e abro a embalagem.
Com a habilidade de quem transformou o ato em rotina, deslizo a
camisinha sobre o membro pulsante e estou pronto. Alicia observa,
o rosto denunciando que sabe o que fazer, mas parte de si ainda
está travada. Franzo o cenho. — Está tudo bem?
— Sim. Só estou me sentindo meio devassa.
Não consigo conter o sorriso.
— É assim mesmo que eu quero que você se sinta, Alicia. Agora
vem — convido, dando dois tapinhas nas laterais dos meus quadris.
Alicia ajeita os joelhos e me lança um olhar inseguro, mas
assinto, tentando lhe passar convicção. Devagar, começa a descer o
quadril em direção ao meu pau. Estendo uma mão e o seguro ereto,
bem debaixo da sua boceta. Ergue os olhos castanhos cheios de
desejo em direção aos meus, encaixa a cabeça na sua entrada e
desce com força até a base.
Gememos juntos, as paredes da sua boceta apertando todo o
meu comprimento. Impulsiono para dentro dela, arrancando um
segundo gemido feminino, mas me lembro que lhe entreguei o
comando. Agarro os seus quadris e incentivo-a a rebolar. Alicia
apoia as mãos em meu peito e assim o faz, um pouco tímida, mas
disposta a ganhar confiança.
E a confiança vem. A mulher sobe o suficiente para quase me
tirar por completo de dentro de si e desce de novo, aos poucos
criando um ritmo, mas sem nunca deixar de sentar até o fim. O
contato entre nossas virilhas é enlouquecedor. Agarro os seus
quadris com uma mão e a mantenho ali, grudada em mim, enquanto
subo a outra em direção aos seus seios. Belisco a ponta do mamilo
rosado, roubando um arfar surpreso da sua boca.
Massageio o seio sensível e tomo a sua boca. Alicia devolve o
beijo, cheia de vontade, sem diminuir o ritmo do rebolar, e gemo
contra os seus lábios. Ela sorri e não resisto a sorrir de volta. Depois
de tê-la visto chorar, é bom ser o responsável por fazê-la sorrir.
Sinto o seu corpo tensionar e as paredes internas da sua boceta
apertam o meu pau com ênfase. Agarro a sua bunda com as duas
mãos e a puxo ainda mais para baixo, mantendo os nossos quadris
colados enquanto ela rebola, incansável, até os olhos se tornarem
turvos e o corpo convulsionar de tanto prazer. As coxas tremem de
encontro a minha pele suada quando Alicia deixa um grito escapar
antes de desabar exausta sobre o meu peito.
Agarro a sua bunda com força e meto fundo, em busca do meu
próprio êxtase. Ele não demora para vir. Bastam quatro estocadas
firmes para que eu derrame o meu gozo com um gemido alto. Apuro
os ouvidos, temendo que Peter tenha ouvido, mas a casa segue
silenciosa. Respiro fundo e me mantenho dentro dela, satisfeito com
o peso do seu corpo contra o meu, feliz em acariciar a carne macia
das suas nádegas.
Nossas respirações estão se normalizando quando deslizo um
dedo para o meio do seu traseiro, em busca do seu buraquinho
proibido. Toco-a ali, bem de leve, testando o terreno. Ao sentir que
posso ir além, insiro o dedo indicador, devagar, e Alicia tenciona
contra o meu peito.
— O meu irmão já esteve aqui? — Ela faz que não e arfo alto
antes de entrar um pouco mais, cheio de ousadia. — Desse jeito
você me mata de tesão. Gostaria que eu estivesse aqui? Porque eu
quero muito estar.
— Eu não sei, Henry — confessa, a voz ligeiramente rouca. — Eu
tenho medo.
— De doer?
— Sim.
— Prometo fazer bem gostoso, Alicia. Tão gostoso, que você não
vai nem sentir — Ela ergue o rosto e me encara, cabelos caídos
sobre os olhos, lábios entreabertos de vontade, mas ainda cheia de
dúvidas. — Vamos. Quero que me dê como presente de Natal.
Aquilo a faz gargalhar. Saio de dentro dela e acompanho a sua
risada. Alicia se ergue, sentando-se sobre a minha cintura. É
impossível não olhar para cima e admirar o seu corpo. Ergo uma
sobrancelha, na espera de uma resposta, e ela sorri.
— Você é muito safado.
— Ah, eu sou. E aposto que existe uma safadinha aí dentro —
enfatizo, batendo com aponta do dedo na sua barriga, o mesmo que
acabei de tirar da sua mais profunda intimidade. — Que está curiosa
para saber como é.
Alicia morde os lábios e, sem qualquer palavra, confirma o que
acabei de dizer.
— Prometo pensar — diz, por fim. Estou feliz com a sua resposta.
Melhor um “prometo pensar” que um “não”. Seu semblante relaxado
de repente muda — Isso me faz lembrar que ainda não comprei os
presentes de Natal — comenta, mais para si mesma que para mim.
— Sabe que dia iremos para os Hamptons?
— Minha irmã ainda não confirmou, mas acho que no dia vinte e
quatro.
— Certo. — Para a minha tristeza, ela se levanta. Meu corpo
sente falta do seu calor no mesmo instante. — Preciso ir a
Manhattan para adiantar isso.
— Compre pela internet e evite trânsito, lojas cheias, pessoas
desesperadas… — enumero, fazendo menção de puxá-la de volta.
Alicia ri, mas não se esquiva. Cai sobre o meu peito e a agarro forte,
aumentando as suas risadas.
— Não, eu prefiro comprar na loja — diz, tentando se
desvencilhar. Afrouxo o aperto e ela me encara. — Você poderia
ficar com o Peter enquanto faço isso?
— Ué, pensei que iríamos todos juntos.
— Como, se alguns dos presentes que vou comprar são os de
vocês? — A compreensão toma conta do meu rosto. Isso me faz
pensar que eu também preciso comprar um presente para ela.
Talvez um colar, para combinar com o conjunto de brincos de
diamantes. Depois, um pedido para que ela venha para a cama
vestindo apenas eles. Sim, será isso! Pisco e me dou conta que ela
me olha com uma expressão engraçada. — Gostaria de saber o que
você está pensando.
— Nada — minto, roubando um selinho. — Pode ir tranquila, eu
fico com o Peter. — Ela me beija antes de voltar a se levantar e
entrar no closet. — Alicia?
— Diga.
— Posso dar o videogame de presente para ele?
Ela não responde. Abro a boca para repetir a pergunta, mas sei
que escutou. O rosto está determinado quando volta ao quarto, o
corpo nu por trás dos braços carregados de roupas que usará
naquele dia. Encara-me e assente.
— Pode. Só não dê jogos violentos para ele, por favor.
— É claro que não vou dar.
— Ótimo — declara, dando-me as costas e indo em direção ao
banheiro. Olha por cima do ombro antes de fechar a porta. —
Lembre-se que ele ainda acredita no Papai Noel.
— Vou me lembrar — digo, mas não sei se ela escuta.
Sorrio para mim mesmo, satisfeito. Depois de tudo o que
aconteceu, quem diria que eu e Alicia um dia acordaríamos assim,
com uma bela dose de sexo matinal? Tiro a camisinha usada e, de
um pulo, a sigo para o banheiro.
Abro o chuveiro e deixo que a água quente relaxe a pele. Há
muito o que se pensar, mas naquele momento o meu cérebro se
recusa, então pego o sabonete e decido aproveitar o banho. Viro o
rosto ao escutar a porta do banheiro se abrindo e dou de cara com
Henry.
— Precisa de ajuda? — pergunta, apreciando o meu corpo com
luxúria do outro lado do vidro do box fechado. Gosto quando me
olha daquela maneira. Faz com que eu me sinta linda e desejada
como há muito não me sentia. Sem tirar os olhos dos meus, joga a
camisinha usada na lixeira do banheiro. O bom e velho sorriso
safado desponta no canto da sua boca. — Talvez eu possa
ensaboar as suas costas.
— Talvez — comento, entrando no jogo.
É o convite que Henry precisa para deslizar a porta de vidro e
entrar. O vapor quente imediatamente envolve o seu corpo.
Percebo, chocada, que ele está ficando duro de novo. Sem dizer
nada, entrego o sabonete na sua mão e me viro de costas. Prendo a
respiração quando Henry afasta o meu cabelo e começa a deslizá-lo
pela nuca em movimentos circulares antes de descê-lo pelas
omoplatas.
— Você gosta disso? — Eu, boba, faço que sim. Em um
movimento brusco, Henry cola o corpo no meu. Arfo alto com o
contato do seu pau duro entre as nádegas, a água quente caindo
entre nós, sua mão subindo em direção a um seio. Ele o aperta ao
mesmo tempo em que sussurra no meu ouvido — Ainda não cumpri
a promessa que fiz ontem.
— Qual promessa? — O seu contato libidinoso faz com que o
ontem pareça há anos luz de distância.
— De te prensar contra uma parede e te foder forte.
Meu corpo todo esquenta e o meio das pernas umedece, e nem é
por culpa da água que cai sobre nossos corpos. É culpa daquele
demônio de homem colocado no meu caminho apenas para me
tentar.
Henry aperta o seio de novo, descendo a outra mão pela minha
barriga até chegar à virilha. Adentra a minha fenda e ri contra o meu
ouvido, circulando o clitóris com delicadeza. Arqueio as costas
contra o seu peitoral e gemo alto, torcendo para que o barulho da
água seja capaz de abafar o barulho. Acabamos de transar. Como
posso estar tão desesperada para tê-lo de volta dentro de mim?
— Então cumpra a sua promessa — peço com a voz suplicante.
Henry se afasta. Apesar do vapor que agora ocupa todo o
banheiro e do calor da água aquecida, sinto um imenso pesar com a
sua partida. Olho através do vidro embaçado para a porta aberta e
sorrio quando ele volta com o pau já coberto pela camisinha. Entra
no banheiro cheio de tempestuosidade e me agarra. Em um piscar
de olhos prensa os meus seios na parede fria e cola o peitoral
tatuado em minhas costas. Solto uma exclamação de surpresa.
Henry sabe que eu não esperava aquilo.
— Vou cumprir, oh se vou. E será olhando para essa bunda
gostosa — sussurra, a voz alta apenas o suficiente para que eu a
escute sobre o cascatear da água do chuveiro. — Vamos, Alicia.
Empina ela para mim.
— Assim? — faço como ele sugere. Um gemido rouco escapa do
fundo da sua garganta quando roço no seu pau pulsante.
— Caralho — xinga, passando um braço ao redor dos meus
seios, mas ainda pressionando o corpo de forma a me manter
colada na parede. — Assim, bem assim — consegue dizer.
Com os joelhos, afasta as minhas pernas. Estou completamente
dominada, rendida ao seu abraço. Henry pode fazer o que quiser
com o meu corpo e ele sabe muito bem disso. Com a mão livre,
passa a ponta da ereção no meu buraquinho. Automaticamente
contraio o quadril. No momento não tenho qualquer condição de
decidir se vou dar o que ele pede, e Henry nem me dá chances.
Desce o pau até a entrada da boceta e mete forte.
Sinto seu pau se afundando por completo dentro de mim. Gemo
alto e Henry ri, saindo até a ponta da glande para entrar de novo
com a mesma firmeza. O braço por cima dos meus seios me
mantém presa enquanto o outro volta para o meio das minhas
pernas, as mãos ágeis em tatear as dobras e encontrar o centro do
meu prazer.
Henry massageia o meu clitóris e arremete fundo, sem dar
trégua. A parede fria do banheiro faz um contraste delicioso com o
vapor morno e a quentura do seu corpo contra o meu. O prazer se
avoluma devagar, expandindo-se da minha boceta para o restante
do corpo até que explode e perco o controle. Meu quadril vai para
trás, as coxas tremem, as costas se arqueiam, a boca abrindo-se
em um grito desesperado. Henry a cobre com um beijo profundo,
sem parar de arremeter e dedilhar o clitóris. Quando penso que tudo
passou, a onda vem de novo, mais forte que da primeira vez. Desse
jeito vou enlouquecer de tanto gozar.
— Isso, Alicia. Goza. — Henry ordena, ofegante, entre duas
estocadas. — Gosto de sentir sua boceta deliciosa gozando sem
parar no meu pau. — Os dedos massageiam a região sensível com
mais firmeza, fazendo com que eu empine ainda mais a bunda.
Arqueio o pescoço e agarro o braço em torno do meu peito. Henry
sabe o que vai acontecer antes mesmo que eu saiba. — Isso, goza
pela terceira vez!
E meu corpo obedece, cada terminação nervosa concentrada
apenas no entra e sai ritmado do seu pau e nos dedos sobre o meu
ponto mais sensível. Minha boca se abre, mas o grito é mudo.
Dessa vez Henry me acompanha. Solta um rosnado e, com uma
última estocada, goza junto, pressionando-me ainda mais contra a
parede. Fecho os olhos, as pernas abertas trêmulas, o pau grosso
ainda dentro de mim.
— O que foi isso? — pergunto, ofegante. Henry desliza o nariz
pela lateral do meu rosto e rouba um beijo preguiçoso.
— Uma foda bem-feita. Parabéns, Alicia — diz, fazendo menção
de se afastar. Seguro o seu braço com mais firmeza.
— Não sei se consigo ficar de pé.
Henry ri.
— Vem, eu te ajudo.
Ele tira a camisinha e a joga em um canto. Passa um braço em
torno das minhas costas e me sustenta. Com carinho, pega o
sabonete e continua com o banho como se nada tivesse acontecido.
Minhas forças voltam apenas minutos depois, quando ele começa a
tirar o condicionador dos fios avermelhados. Fecho os olhos e
aproveito o cuidado. Henry só se dá por satisfeito ao me enrolar na
toalha quentinha e conferir, com um ar presunçoso, que consigo
ficar de pé sem ajuda.
Já seca, do lado de fora do box, me dou conta que não fiz o
mesmo por ele.
— Quer que eu te ensaboe? — pergunto. Ele faz um gesto
indicando que está tudo bem.
— Quero, mas não precisa ser agora. Pode ser à noite — pisca.
Rio para mim mesma.
— Então vou descer para preparar o café.
Henry assente e continua com o seu banho, assobiando baixinho.
Enrolo os cabelos na toalha e termino de me vestir. Não faço ideia
de que horas são e talvez Peter já tenha levantado.
Antes de descer, passo no seu quarto e confirmo, com uma onda
de alívio, que o menino ainda dorme. Depois de tantos gemidos e
gritos, temi sair da suíte e dar de cara com ele ouvindo por trás da
porta.
Faço um carinho nos seus cabelos bagunçados e o deixo dormir
mais um pouco. Do corredor, escuto o barulho do chuveiro ligado
com um sorrisinho nos lábios. Os últimos acontecimentos parecem
irreais de tão absurdos.
Chego na sala de estar e afasto a cortina, confirmando que o
boneco de neve ainda está ali. Uma nova nevasca cobriu toda a
devastação do gramado, estragando o caminho aberto por Henry
até a rua. Bom, ele precisará me ajudar com isso e com o carro.
Por um instante, penso em deixar a compra dos presentes para
outro dia. Está frio e com toda a certeza o trânsito de Nova Iorque
estará mais caótico do que já é. Posso resolver tudo pela internet e
passar o dia vendo desenhos enroscada com eles no sofá. Solto um
longo suspiro. A ideia é tentadora, muito tentadora, mas o maior
motivo para sair é arejar a cabeça.
Transar com Henry foi uma guinada em nosso relacionamento de
mentira que ninguém estava esperando. Há poucos dias eu teria
chamado de louco qualquer um que dissesse que em breve
acordaria cavalgando o gêmeo mau da família Chamberlain.
Aconteceu, sinto-me uma mulher satisfeita como há muito não
sentia, mas tudo está acontecendo rápido demais. Preciso ficar
sozinha para colocar os pensamentos no lugar.
Emoções conflitantes passaram a dominar o meu peito. A
saudade de Hector se dissipou no instante em que vi sua foto junto
da loira fatal. Ainda há amor? Não sei. Acho que precisaríamos
conversar cara a cara para conseguir definir quais sentimentos
sobraram em relação ao meu ex-marido. Tudo o que consigo sentir
agora é rancor. Talvez no fundo eu sempre sinta um carinho pelos
bons momentos passados com o pai do meu filho, mas a página
começou a virar.
Com Henry é diferente. É uma paixão bruta, visceral e selvagem.
Não foi por falta de vontade que nunca sugeri ficar por cima de
Hector. Foi por vergonha. Ele nunca pediu, então pensei que não
quisesse. O que ele pensaria de mim se eu me oferecesse? Melhor
não saber. Fechei-me em mim mesma. Henry pediu e a vergonha
logo foi embora, expondo a devassa escondida debaixo das águas
do poço profundo que já não existe mais. Tudo nele transbordou e,
pela primeira vez em muito tempo, me senti confiante para ser quem
eu quisesse.
Mas o que eu sinto por Henry? Temo descobrir. Preciso lembrar
que ele vai embora logo. O próprio Henry já disse para apenas
curtirmos um ao outro e deixarmos o resto para depois. Acho que
ele está certo. Só espero não me machucar no caminho.
Termino de abrir as cortinas da sala, enchendo a casa de luz
natural, e vou para a cozinha. Deixo as fatias de bacon fritando e me
concentro na omelete de queijo e alho-poró. A cozinha logo se
enche com o perfumado aroma do café da manhã. Estou virando a
omelete quando um par de mãos circulam a minha cintura.
— Que gostoso — diz Henry, olhando por cima do meu ombro. As
mãos apertam com mais força. — E que gostosa.
— Você é impossível — brinco. Ele me puxa contra si e roça a
virilha com força na minha bunda.
— Sou, e já estou com fome de novo — devagar, desliza os
lábios pela parte de trás do meu pescoço, deixando leves
mordidinhas pelo caminho. Todos os cabelinhos da minha nuca se
arrepiam. Para provocar, arrebito a bunda. Ele solta um gemido
misturado a um grunhido. — Desse jeito eu vou ficar duro de novo,
Alicia.
Passos apressados começam a descer as escadas. Dou-lhe uma
leve cotovelada, em um pedido silencioso para que se afaste. Peter
está cada vez mais perto de nos pegar de novo em uma posição
comprometedora na cozinha. Quando penso que não vai obedecer,
Henry morde o lóbulo da minha orelha e se afasta com uma risada.
O menino entra na cozinha e, se viu além do necessário, não
demonstra. Abraça as minhas pernas e estica o corpo, curioso para
saber o que há no fogão.
— Pode pôr mais queijo?
— Bom dia para você também — brinco.
Ele ri e corre para o pai. Henry bagunça os seus cabelos e,
juntos, colocam o pão na torradeira. Depois, arrumam os pratos e
talheres sobre a ilha. Sirvo a comida e nos sentamos. Não sei se
Peter percebe, mas há uma atmosfera diferente na cozinha. Pela
primeira vez sinto que somos uma família de verdade.
Passo todo o caminho até Manhattan pensando qual shopping
será a melhor opção para fazer as compras de Natal. Tenho alguns
em mente, mas é incrível como depois de tantos anos ainda me
sinto desconfortável em meio às lojas de luxo preferidas da Família
Chamberlain. Dói na alma pagar quase duzentos dólares em uma
camisa masculina de grife sendo que posso comprar quatro delas
em qualquer loja de departamento.
Opto pelo The Shops at Columbus Circle, local onde fiz as
compras do ano passado. Dentro do shopping, ignoro a estonteante
vista para o Central Park conferida pelos vitrais na entrada. Uma
longa fila de crianças e adultos aguardam a sua vez para tirar uma
foto com o Papai Noel no saguão central enquanto laços de veludo
vermelho e guirlandas enfeitadas de azevinho decoram os
corredores cheios de pessoas apressadas em busca de presentes.
Junto-me a elas, olhando vitrine por vitrine em busca de inspiração.
Sei o que vou comprar para Peter, mas não faço ideia do que dar
para os demais.
Afinal, o que dar de presente para pessoas que já tem tudo?
Talvez eu devesse ter perguntado a Henry se a mãe ou a irmã
precisam de alguma coisa, mas duvido que saberia responder.
Hector teria a resposta na ponta da língua. Ele é o raro tipo de
homem que se liga nesses detalhes. Só não fazia as compras
comigo porque não tinha tempo.
Meu coração se aperta um pouquinho. O meu e-mail não foi
respondido até hoje. Por um momento penso no que vai achar ao
ver os gastos no cartão de crédito deixado em minhas mãos para as
compras da casa. A impotência de não ter a própria renda ameaça
me atingir em cheio, mas tento ignorar a sensação.
Encontro a loja de artigos esportivos e, com a ajuda do vendedor,
compro um par de patins de gelo para dar de presente ao meu filho.
Resisto à tentação de comprar os patins inline para que ele possa
andar no asfalto, junto com as outras crianças da vizinhança. Pelo
que Henry contou, Peter adorou patinar e leva muito jeito, mas temo
que tudo seja fogo de palha. Se ele realmente firmar na atividade,
compro o inline assim que o inverno passar.
Lembro que Emilly pratica karatê e fico tentada a lhe dar um saco
de pancadas. Quase consigo ouvir sua gargalhada ao abrir o
presente, mas sei que seria algo inútil. Ela treina na academia e não
penduraria aquilo no próprio apartamento.
Saio da loja e caminho mais um pouco. Logo vejo uma loja de
chocolates finos e decido que é a opção perfeita para a minha
cunhada. Nem olho o preço. Sei que se eu olhar desistirei da
compra. Simplesmente passo o cartão e continuo a busca. Não
demoro a encontrar o presente de Grace: uma bonita echarpe de
seda. Agora só falta o Henry.
Ando, ando e ando, mas não consigo pensar em nada. As pernas
estão cansadas quando vejo um bonito casaco preto, mas hesito.
Ele parece feliz em ter tomado posse do casaco azul do irmão,
então para que precisaria de outro? O seu celular é de última
geração. Já tem um smartwatch. Não o vejo usando canetas
chiques. Gravata? Nem pensar. Simplesmente não sei o que posso
lhe dar de presente.
Lembro do aroma característico do seu perfume amadeirado e
bingo, é o presente perfeito! Não sei o nome, mas sei como é o
frasco que ele largou displicente sobre a pia do banheiro da suíte.
Vou reconhecer ao ver em uma loja.
Volto pelos corredores, em busca da loja de perfumes, quando
vejo a característica fachada cor-de-rosa da Victoria’s Secret e paro
no meio do corredor, sem me importar com as pessoas apressadas
que quase me atropelam. A voz grave de Henry soa no meu ouvido
com o pedido do seu presente de Natal e arrepio-me todinha. Estou
pronta para aquilo? Não sei, sinceramente não sei. Mas sei que
posso confiar em Henry.
Esqueço o perfume e caminho decidida até o interior da loja. Olho
alguns modelos de lingerie, disposta a comprar um simples conjunto
de renda. São lindas, mas nenhuma delas parece ser a certa.
Queria algo diferente, mas ao mesmo tempo não tão diferente.
Minha autoconfiança começa a esmorecer, na dúvida se aquela será
mesmo uma boa ideia, quando uma vendedora sorridente aparece.
— Procurando algo especial?
Mordo os lábios e confirmo com a cabeça. Ela me olha de cima
abaixo, tira uma fita métrica do bolso e toma algumas medidas.
Pensa um pouco, até que seus olhos se acendem e ela pede para
que eu espere. Ótimo! O momento perfeito para fugir e esquecer
daquela ideia, mas a vendedora é rápida em retornar com uma
caixa rosa claro em mãos. De dentro dela surge a lingerie mais
bonita que eu já vi.
De um tom fechado de vermelho, a renda da parte da frente da
peça de corpo inteiro é transpassada por fitas. A meia taça promete
empinar os seios de forma a deixá-los juntos enquanto as laterais
possuem uma armação iguais a de um corpete. Florezinhas brancas
decoram a beirada da renda, conferindo um toque delicado à
lingerie amarrada nas costas por fitas de cetim, a bunda
completamente exposta devido ao fio dental. Parece o maiô de uma
Mamãe Noel para lá de sexy.
— Veja como combina com o seu cabelo. — A vendedora
comenta, empolgada, ao trazer a peça para mais perto do meu
corpo. Combina, e muito. — E possui as medidas certinhas do seu
corpo. Pensei que não receberíamos mais nenhuma novidade para
o Natal, mas essa peça chegou ontem. É a única disponível —
completa.
Estendo a mão para tocar a peça rendada e consigo me ver ali
dentro, poderosa e sexy, pronta para entregar a minha mais proibida
intimidade ao meu amante. Toda a hesitação vai embora. Abro um
sorriso e encaro a vendedora.
— Vou levar.
Ela retribui o sorriso. Com calma, coloca a lingerie de volta à
caixa e finaliza a venda. O meu lado perverso passa o cartão de
crédito com certa satisfação, desejando que Hector veja em letras
graúdas o nome da loja no extrato bancário. Ele pode achar que é
para ele, mas pode também ficar na dúvida. Que fique.
Acrescento a sacola cor-de-rosa vibrante as demais e caminho
serelepe para fora da loja, mais do que nunca ansiosa para o Natal.
Basta pôr os pés no corredor para dar de cara com Emilly
Chamberlain.
— Oi, Alicia! — cumprimenta, animada. Paraliso onde estou, os
olhos indo automaticamente para a sacola com a lingerie. Tento
escondê-la, mas é tarde demais. Emilly acompanha o movimento e
o seu rosto é tomado por espanto. — Oh céus, você está fodendo
com o meu irmão! — Franze o cenho, confusa. — Quer dizer, você
já fodia com ele antes. Isso ficou confuso!
Balbucio feito um peixe, sem saber o que dizer. A frase: Você é
uma mulher casada! grita em meus ouvidos, dando voz aquilo que
pensei e repensei antes de me deixar levar pelas investidas de
Henry. Não, a culpa não é dele. Eu queria, e não me arrependo, por
mais que tema o quanto sua mãe e irmã possam me julgar. Tomo
fôlego.
— Eu posso explicar e…
— Explicar o quê? — corta. Passa o braço livre pelo meu,
puxando-me para si. O outro está cheio de sacolas. — Você é uma
mulher adulta, Alicia. Se Henry está te fazendo bem, tem mais é que
tirar proveito dele — dá de ombros.
Não tenho resposta para lhe dar, então caminhamos por um
tempo em silêncio, com as sacolas batendo nas pernas. Emilly não
solta o meu braço. Sei que tenta, sem sucesso, transmitir algum
conforto. Aponta para uma cafeteria, um convite mudo para nos
sentarmos e conversarmos, e assinto.
Sentamo-nos em uma mesinha vaga, sendo prontamente
atendidas por um jovem garçom. Emilly se adianta e faz o pedido.
Dois cappuccinos com creme de avelã e cobertura de chantilly.
Sorrio meio sem graça, feliz por ela se lembrar da minha bebida
quente favorita. Emilly sorri de volta e segura a minha mão por cima
da mesa. Minha cunhada sempre foi uma grande amiga dentro da
família e, ainda assim, penso erroneamente que será capaz de me
julgar.
— O Henry está me fazendo bem, sim — começo a dizer, bem
baixinho. — Confesso que jamais pensei que um dia diria isso.
— E que eu ouviria isso. — Seu rosto demostra contentamento,
mas fica sério de repente. — É só sexo ou você está…
Fecho os olhos, temendo que ela fale aquilo que venho tentando
entender desde a noite passada, mas acabo dizendo por mim
mesma.
— Apaixonada por ele? Não sei, Emilly. — Sou sincera. — Há
poucos dias estava esperando pelo retorno do meu marido quando
recebi um e-mail pedindo o divórcio. Agora, estou me relacionando
com o seu irmão gêmeo — solto um longo suspiro. — As vezes é
demais para o meu cérebro processar.
Ela assente, compreensiva, e um sorriso desponta no seu rosto.
Reparo que é meio de lado, charmoso como o de Henry, mas sem o
característico toque malicioso.
— Não vou dizer que entendo, porque nunca passei por uma
situação assim — ri, e acabo rindo também. Quem, afinal, já
passou? — Mas quero dizer que, independente do que acontecer,
estarei do seu lado. Seja com Hector, Henry, ou com os dois ao
mesmo tempo.
— Sua boba — digo, dando um tapinha de brincadeira na sua
mão. Sua risada se torna um gargalhar. Três senhoras sentadas na
mesa ao lado olham, curiosas, e imagino o que elas pensariam
daquela conversa.
O garçom retorna com as nossas bebidas. Agradecemos e, após
um brinde mudo, sorvemos a deliciosa mistura de café com
chocolate. O barista caprichou no creme de avelã. Solto um hummm
involuntário e observamos as pessoas indo e vindo, mas não
consigo me distrair. Emilly, pelo visto, também está em dificuldades.
Pousa a xícara pela metade de volta a mesa, limpa o bigodinho de
chantilly com um guardanapo e me encara.
— O Hector respondeu o seu e-mail?
— Não. Pensei em mandar outro, mas os últimos dias foram tão
corridos e… — engulo em seco, com vergonha de admitir aquilo
pelo simples fato de que não sou assim. Tomo fôlego. — Depois da
foto, comecei a pensar se valeria a pena me preocupar com ele.
— Pensei o mesmo, mas não resisti ao impulso de mandar uma
mensagem comentando que ele estava bom demais para ir em
festas, mas incapaz de dar notícias para a família. — arregalo os
olhos e Emilly dá de ombros. — Mamãe fez a mesma cara, mas
sinto muito. Não sou obrigada a ficar calada.
— E o que ele respondeu?
Emilly tamborila os dedos sobre a mesa.
— Que, pela primeira vez na sua vida, só precisa de um tempo —
responde, pensativa. — Quando perguntei se estava tudo bem, ele
respondeu com um curto sim e se manteve em silêncio desde então.
Parte de mim fica preocupada — confessa. — Às vezes penso que
deveria ter encorajado mamãe a contratar o tal do detetive.
Também me preocupo, mas não vejo como ajudar Hector. Se ele
quer um tempo, talvez caiba a família respeitar. Aquilo me entristece
e traz de volta a horrível sensação de que não fui boa o bastante.
Se fosse, ele não estaria agindo daquela maneira. O pensamento
ofusca um pouco do brilho adquirido pela manhã.
— Ele não precisava estar fazendo isso — deixo escapar.
— Não, não precisava. Mas uma hora ele vai aparecer. — Leva a
xícara de volta à boca. — E só espero que tenha uma boa
explicação quando o fizer.
Concordo com a cabeça e termino o meu cappuccino, mas o
sabor deixou de ser tão doce. De repente, só quero voltar para casa.
Por sorte, Emilly parece desejar o mesmo. Com um gesto
impaciente, impede que eu pague pelo nosso café. Saímos da
cafeteria quando ela me surpreende com um abraço.
— Você é uma mulher forte, Alicia — diz. Com as mãos cheias de
sacolas, faço menção para abraçá-la de volta, mas Emilly se afasta
e me encara. — Detesto conselhos porque, se eles fossem bons,
não seriam dados de graça. Mas posso ser intrometida e te dar um?
— Claro.
— Tome cuidado com o Henry. Transe o quanto quiser com ele,
mas não corra o risco de se apaixonar — alerta, bem devagar. — Vi
a quantidade de corações que ele partiu antes de ir para a
Califórnia. Duvido que tenha mudado.
Engulo em seco e assinto, sem dizer nada. Ela sorri e, com um
beijinho em cada bochecha, se despede. Observo a mulher se
misturando em meio a movimentação do shopping e sigo na direção
contrária, de volta ao estacionamento. Em minutos estou a caminho
de casa.
Antes de sair, Henry usou o removedor de neve para liberar a
passagem do carro, prometendo criar uma trilha até em casa antes
que eu voltasse. É com zero surpresa que retorno e vejo o quintal
exatamente como o deixei. Há uma semana talvez eu ficasse
irritada, mas hoje me limito a descer do carro e pegar as sacolas no
porta-malas. Deixo a da Victoria’s Secret para trás. Apesar do
pedido natalino audacioso, e de ter confiança de que o ganhará,
quero manter o homem em suspense.
Abro a porta do vestíbulo, pronta para perguntar por que a trilha
não foi feita, e flagro Henry brincando com Peter na sala de estar.
Eles devem ter descido todos os bonecos do quarto, pois Capitães
Américas e Homens-Aranhas se misturam aos Han Solos e
Chewbaccas espalhados pelas almofadas.
Os dois duelam aos gritos, cada um com um boneco em mãos ao
virar o rosto em minha direção. Peter ri de orelha a orelha e dá um
golpe em Henry antes de sair correndo. O adulto faz menção de
revidar, mas parece se lembrar da tarefa doméstica e encolhe os
ombros, os olhos fixos em um pedido de desculpas.
Devolvo o olhar, tentando dizer em silêncio que está tudo bem, e
Henry se aproxima até estarmos perto o suficiente para as nossas
respirações se misturarem. O vento frio entra pela porta aberta, mas
de repente o ar esquenta. Devagar, ele pousa os lábios sobre os
meus em um beijo carinhoso.
— Bem-vinda de volta, Alicia — a voz grave sai baixa, sedutora,
cheia de promessas. Encaro o seu rosto bonito e percebo que o
conselho de Emilly foi em vão. Não há por que tomar cuidado com
Henry. Eu já me apaixonei por ele.
— Vamos, Alicia! — chamo, pela décima vez, mas a mulher
continua parada no meio da sala de estar com o celular em mãos.
Sei que dessa vez ela não viu nenhuma foto comprometedora. O
“problema”, agora, é outro. — Ainda não postou a foto do desenho?
Ela morde os lábios, ainda insegura.
— E se acharem horrível?
— Não vão achar — insisto, me aproximando.
Ontem à noite, depois que fizemos as malas para enfim viajar aos
Hamptons, gastamos algumas horas após o jantar distribuindo os
desenhos sobre a mesa. Alinhados com os lápis, pincéis e demais
materiais que usa para criar a sua arte, fotografamos um a um, para
colocá-los no Instagram. A intenção, por enquanto, é apenas
mostrá-los ao mundo, mas como bom investidor, sei que ela pode
fazer uma bela grana se assim quiser. Um passinho de cada vez,
lembro a mim mesmo.
Escuto a risada de Peter do lado de fora. Judy e as crianças
vieram se despedir. Mark apareceu mais cedo, antes de ir trabalhar.
Ao contrário de nós, eles passarão o Natal em casa.
Respiro fundo e tento manter a calma. Nos últimos dias
acompanhei o desenvolvimento de uma jovem mulher insegura até
o seu poderoso desabrochar, mas de vez em quando ela tem
recaídas como aquela.
— Bem, sempre dá para deletar, não dá? — comenta Alicia.
— Sim, e também dá para mandar os trolls da internet irem tomar
no…
— Henry!
— Vamos, me dê isso aqui — ordeno, tirando o celular da sua
mão. Alicia grita em protesto e tenta puxá-lo dos meus dedos, mas
sou rápido em erguer o braço e apertar o botão de “postar”. Em
segundos, o delicado retrato de Peter em meio a uma guerra de
bolinhas de neve está disponível para toda a internet. O menino ri
entre as pinceladas da aquarela e as marcas de lápis escuro,
características da arte de sua mãe. Os cabelos flamejantes estão
em destaque diante do fundo azulado com o boneco de neve em
segundo plano. É impossível que alguém ache aquele desenho feio.
— Pronto! — digo, devolvendo o aparelho. Alicia o aperta contra os
seios antes de encarar a tela. Solto um suspiro. — Desinstale o
aplicativo e só olhe depois do Natal. Talvez assim você se sinta
melhor.
— É uma boa ideia — comenta, pensativa. — Mas acho que só
vou desativar as notificações.
— Então faça isso. — Sem lhe dar tempo para retrucar, puxo-a
para um beijo.
Alicia ri contra a minha boca e retribui, molinha em meus braços.
Quem nos vê no maior chamego facilmente imagina que transamos
feito coelhos ontem à noite, depois que guardamos os desenhos. E
hoje cedo, assim que acordamos. Se pudesse, transaria de novo
agora. O playboy que não repetia mulher agora está viciado em uma
única e exclusiva boceta.
Ela se afasta com um sorriso de orelha a orelha no rosto bonito.
Não, não estou viciado apenas em uma boceta. Estou viciado em
Alicia por inteiro. Posso adorar acordar com o seu corpo enroscado
no meu, ou o som do seu gemido quando fecho os lábios em seu
pontinho do prazer, e quanto grita diante de uma arremetida forte.
Mas o que gosto mesmo são as conversas francas que
passamos a desenvolver após o anoitecer. Da forma zelosa como
cuida do filho, e de mim, mesmo sem ter qualquer obrigação
comigo. A paixão com a qual desenha a alma das pessoas. Até as
suas broncas, quando faço cara feia para os brócolis e dou mal
exemplo para o Peter. E o sorriso, ah o sorriso. Sinto o coração
derreter toda vez que sou responsável por ele. Só quero fazê-la
sorrir, de novo e de novo, sem jamais me cansar.
— Por que você está fazendo essa cara de bobo? — Alicia
pergunta em tom de brincadeira.
Roubo um novo beijo, incapaz de responder, fazendo com que
ela solte risadinhas contra a minha boca, igualzinha a uma
adolescente. Não sei como ela reagirá se eu confessar o real
motivo: estou caidinho pela esposa do meu irmão, e isso me
assusta em proporções avassaladoras. Não sei como ela se sente,
e seria injusto dar esperanças. A passagem foi comprada e dali a
poucos dias retorno para o calor californiano.
— Ohhh mãe! — grita Peter, impaciente.
Não é para menos. Prometi que o levaria a uma fazenda de
árvores de Natal antes de chegarmos aos Hamptons. Seria muito
mais fácil comprar em uma das floriculturas de Manhattan, mas ir
até uma fazenda e escolher o pinheiro que enfeitará a ceia da
família me traz boas lembranças. É algo que quero compartilhar
com Peter e sei que ele vai gostar.
— Estamos indo! — diz Alicia, plantando um selinho na minha
boca antes de se afastar dos meus braços. Detesto o frio que fica
onde antes ela estava, mas forço o meu cérebro a ignorar a
sensação. Conferimos se tudo está trancado e, enfim, saímos.
— Para vocês — Judy estende os braços com uma fornada de
cookies de chocolate, idênticos aos que fez no épico dia da guerra
de bolinhas de neve. Alicia, um tanto sem graça, aceita o presente.
— Desculpe, eu não fiz nada…
A vizinha faz como se aquilo não tivesse importância.
— E nem era para fazer! Aproveitem o Natal, meus queridos —
acrescenta, dando um beijo na bochecha de Alicia. Faz o mesmo
com Peter e, depois, em mim. Sorrio para ela. Em poucos dias de
convivência me afeiçoei à companhia alegre da vizinha.
A criançada se despede e, em poucos minutos, estamos todos
dentro do carro, acenando um “Até logo!” para Judy e sua família
parada no nosso quintal. O boneco de neve, meio desconjuntado
pelo tempo, ainda resiste diante da residência cinzenta. Alicia olha
pelo espelho retrovisor até que viro uma esquina e a casa
desaparece.
— Sabe, acho que vou contratar um pintor.
— É uma ótima ideia — comento.
— Aumenta a música! — pede Peter, amarrado na cadeirinha do
banco de trás. As guitarras de Os Beatles ecoam alto pelo carro. O
menino balbucia a letra de Yellow Submarine, batendo palmas
animado, enquanto a sua mãe balança a cabeça. Limito-me a dar
risada. Pelo menos Hector ensinou aquilo direito.
Não lembro onde o meu pai nos levava para escolher o nosso
pinheiro, então pesquisei no Google e encontrei uma fazenda em
Calverton, espécie de vilarejo próximo aos Hamptons. Assim não
desviamos da rota e o coitado do pinheiro passará menos tempo
amarrado no teto do carro sendo açoitado pelo vento.
Os deliciosos cookies de Judy ajudam a adoçar a viagem e em
poucas horas chegamos diante da fazenda. Por tradição, a árvore
de Natal é montada logo após o Dia de Ação de Graças no final de
novembro, mas minha família foge do tradicional. Por conta do
“atraso”, quase ficamos sem a árvore em determinado ano, então
torço para que essa fazenda tenha pelo menos um pinheiro
disponível à venda.
Eles têm. O proprietário se oferece para nos levar de trator até as
árvores, mas Peter está eufórico demais. Nem a ideia de andar em
um veículo diferente o instiga a ficar quieto, então seguimos
andando mesmo. Ao longe, vejo as fileiras de pinheiros com
saudade da época em que eu e meus irmãos correríamos pelo
campo com a mesma empolgação do meu sobrinho.
— Eu quero esse! — Ele aponta, olhando com carinho para um
pinheiro exatamente do seu tamanho. O proprietário ri e faz que
não.
— Esse ainda é uma bebê, pequeno demais para ser cortado. O
que acha desse? — Um pinheiro imenso, com pelo menos dois
metros de altura, se avoluma na fileira do lado. O homem dá dois
toquinhos no tronco largo. — É da altura do seu pai — acrescenta,
olhando para mim, como se já esperasse algum questionamento do
menino.
Ainda bem que Peter se convence rápido. Está frio demais para
ficarmos além do necessário no meio do campo aberto. Com a
árvore cortada e seguramente amarrada no teto do carro, seguimos
caminho até a casa.
Comemos o restante dos cookies minutos antes de chegarmos
ao nosso destino. Os Hamptons são um conjunto de vilas de alto
padrão em uma das pontas do estado de Nova Iorque. A nossa
casa, há apenas alguns metros da praia privativa, poderia ser
considerada pequena perto das mansões luxuosas ao redor. Atores,
modelos e personalidades do esporte têm casas aqui, mas nunca
tivemos a chance de ver nenhum. Uma vez Emilly teimou em dizer
que viu a Madonna, mas a azucrinei tanto por causa disso que ela
fica vermelha de ódio se ameaço tocar no assunto.
O meu coração se aperta assim que vejo a casa. É a primeira vez
que volto desde a morte de papai. Respiro fundo, tentando conter a
emoção, e fico grato quando os meus olhos se turvam apenas após
estacionar no meio fio. A mão de Alicia desliza por sobre a minha
que agarra, com força, o volante.
— Tia Emilly! — grita Peter, batendo no vidro. Minha irmã faz uma
careta divertida do lado de fora e abre a porta, permitindo que o ar
frio dissipe todo o aquecimento do veículo.
— Oi, oi, oi — cumprimenta, animada, e o sobrinho grita de
alegria.
Percebo quando olha de soslaio para mim, demorando em
nossas mãos juntas no volante. Sem comentar nada, atrapalha-se
em tirar o menino da cadeirinha e puxa Peter para fora antes de
fechar a porta. As risadas dos dois ecoam abafadas para dentro do
veículo.
Alicia massageia a lateral da mão com o polegar em um ritmo
firme e regular. Solto e volante e seguro a sua palma, feliz pelo seu
apoio.
— Imagino que não seja fácil — diz, bem baixinho. Assinto em
concordância, um novelo de lã preso na garganta, ainda incapaz de
falar. Ela aguarda, sem qualquer pressa, quando uma questão brota
na minha cabeça.
— E a sua família?
Um sorriso triste perpassa o seu rosto.
— Mamãe morreu quando eu tinha apenas seis anos. A minha
madrasta… — engole em seco, desconfortável. Aperto a sua mão,
invertendo os papéis de quem está apoiando quem, e recebo um
olhar agradecido. — Digamos que ela não gostava de mim.
— Ela te maltratava? — pergunto, cauteloso.
— Não. Ela só fingia que eu não existia. — Dá de ombros,
resignada, como se aquilo fosse um assunto que precisou aprender
a conviver para não se machucar. — O meu pai jamais se recuperou
do luto. Ele faleceu há dois anos.
— Meu Deus, Alicia! Eu não sabia! Sinto muito! — digo, olhando
para ela. Para a minha surpresa, o seu semblante é sereno.
— Está tudo bem. Nós nunca fomos próximos, sabe? Ele era um
homem triste. Acho que, enfim, ficou feliz ao se encontrar com a
minha mãe. Vocês — acrescenta, olhando para a cunhada e o filho
do lado de fora — são a única família que eu tenho.
Meus olhos se enchem de lágrimas. Puxo-a para perto e Alicia se
deixa vir, descansando a cabeça em meu peito enquanto envolve o
meu tronco com os braços.
— Eu deveria ter sido mais presente — murmuro. Talvez, na
época em que aconteceu, alguém até tenha contado. Grace e Emilly
são fofoqueiras demais para não terem comentado absolutamente
nada, mas com certeza a informação entrou por um ouvido e saiu
pelo outro.
— Está tudo bem — diz ela, se aconchegando. — Você está aqui
agora.
Ah pronto, estou chorando. Alicia se desvencilha do abraço,
segura o meu rosto entre as mãos e cobre os meus lábios com os
seus. Diferente dos outros beijos, cheios de labaredas escaldantes
capazes de fazer o carro entrar em combustão, esse é repleto de
ternura. Envolvo a sua língua e devolvo o seu carinho.
— Ei, vocês vão ficar aí o dia inteiro? — questiona Emilly,
batendo na janela do lado do motorista. Eu e Alicia nos separamos.
Abaixo o vidro de cara feia.
— Você não está vendo que estamos ocupados?
— Estou, oh se estou — revira os olhos, mas não consegue
segurar o sorriso que desponta no rosto. Noto que Peter não está
mais ali. Minha irmã é rápida em acrescentar — Mamãe está
cuidando do seu filho — pisca para Alicia, que ri. — Vamos, homem.
Essa árvore de Natal não será enfeitada sozinha!
— Perdão, Srta. Apressadinha — desdenho. — Estamos falando
sobre as nossas famílias quebradas.
— Desculpem — balbucia, olhando para a cunhada,
completamente sem graça. — Vocês estão bem?
— Estou. — Sem se preocupar com a incômoda plateia, Alicia
planta um beijinho no canto dos meus lábios e alisa o meu braço
com carinho. — E você?
— Vou ficar — digo, puxando-a para mim e tomando sua boca
com luxúria.
Alicia tenta rir enquanto minha irmã protesta, indignada tanto com
o beijo, quanto por não ter ninguém para beijá-la assim, mas não
estou nem aí. Mostro a língua para Emilly assim que nos separamos
e ela revira os olhos.
Mamãe e Peter saem para o alpendre e acenam, nos convidando
a entrar. Aceno de volta e tiro o cinto de segurança. Começamos
com a intenção de dar a Peter o seu primeiro Natal em família. Há
anos não sei o que é isso, mas estou mais do que disposto a lhe dar
o melhor vinte e cinco de dezembro que poderia ter.
Henry parece outro homem quando sai do carro e começa a
soltar as cordas que prendem o pinheiro ao teto. O barulho abafado
das ondas, a poucos metros de distância, me fazem companhia
enquanto observo-o antes de também sair e a ajudar. O vento frio
açoita o meu corpo com força, então me enrolo mais no casaco,
resistindo a tentação de correr direto para a casa quentinha.
Quem olha para aquele homem musculoso com um metro e
noventa de altura jamais imagina o seu lado frágil, e estou feliz que
tenha optado por mostrá-lo. A confiança em Henry só cresceu
durante aqueles últimos dias, então estou com o coração quentinho
por ele ter depositado um pouco da sua em meu colo.
Por um instante penso se Hector se desmancharia da mesma
maneira. Sempre soube que a morte repentina do Sr. Chamberlain
abalou toda a família, mas ele quase nunca falava do pai. Puxo a
ponta da corda, imaginando onde está agora. Sozinho, ou junto da
família da mulher da foto? Não sei. Meu marido se tornou um
completo estranho, mas ainda assim aposto na segunda opção.
— Alicia? — chama Henry, preocupado, do outro lado do carro.
— Está tudo bem?
— Está sim — sorrio, sendo sincera.
Jogo a ponta da corda e Henry a agarra no ar. Peter se junta a
bagunça enquanto minha sogra me puxa para um beijo. Retribuo o
carinho e, com a árvore enfim desamarrada, nos juntamos para
baixá-la e arrastá-la até a sala.
É a primeira vez que piso na imensa casa de praia da família.
Grace Chamberlain ofereceu a chave para passarmos as férias de
verão incontáveis vezes, mas Hector sempre recusou. Apesar de
preferir o campo, não se recusava a ir à praia. Nossas últimas férias
foram em um resort em Miami e ele pareceu genuinamente contente
em deitar-se em uma esteira a beira mar com um drink em mãos,
enquanto eu e Peter fazíamos castelinhos de areia. O problema
estava ali, nos Hamptons.
Surpreendo-me ao ver que a sala pintada de branco, ampla e
com o pé direito alto, é decorada com simplicidade. Todos os móveis
em madeira escura parecem ter um uso certeiro e a decoração é
escassa. Mas, por incrível que pareça, o espaço é acolhedor. Talvez
seja culpa do ar meio rústico da poltrona e do sofá, além do painel
para TV meio fora de moda, ou do aroma delicioso que escapa da
cozinha, mas de imediato me sinto em casa.
— Hummm, torta de maçã — comenta Henry, lambendo os
beiços ao lançar um olhar faminto para a cozinha. Sua mãe lhe dá
um tapa estalado no braço. — Ei, madame! Essa doeu!
— É para doer, mesmo — ralha Grace, as mãos na cintura. —
Acha que me esqueci daquela vez que você comeu metade da torta
sozinho antes da ceia?
— Pelo visto não esqueceu — reclama, puxando a árvore para
dentro.
— Não, não me esqueci. E já falei para não me chamar de
madame — enfatiza.
Henry apenas ri, sem se importar com os pedaços de galhos e
folhas que se espalham pelo caminho. Adianto-me para ajudá-lo
enquanto Emilly empurra do outro lado. Peter só dá risada, mais
atrapalhando do que ajudando, mas quem se importa?
Com a árvore deitada sobre o tapete, começa a discussão sobre
onde está a base. Emilly insiste que está no porão, mas Henry diz,
enfático, que está no sótão junto com os enfeites de Natal. Os dois
saem, cada um em uma direção, dispostos a provar quem está
certo. Peter fica pela sala, acariciando os galhos do pinheiro como
se ele fosse um adorado bichinho de estimação.
— Eu falei que estava no sótão! — grita Henry, triunfante, ao
descer as escadas com a base e uma velha caixa de papelão nos
braços. Teias de aranha flutuam entre os fios escuros dos seus
cabelos, a roupa suja de pó. Emilly reaparece de cara feia.
— O papai sempre guardou tudo no porão!
— Como, se estava no sótão?
— Eu sei lá como!
— Meu Deus do céu — comenta Grace, massageando as
têmporas. — Às vezes paro e penso o quanto sou guerreira por ter
criado esses dois sem ficar louca. Hector, por outro lado, sempre foi
tão quietinho — Seus olhos se enchem de lágrimas. — Acho que
vou voltar para a cozinha. Qualquer coisa me chamem.
— A senhora precisa de ajuda? — pergunto, educada. Meu real
desejo é ficar na sala, no centro da bagunça, mas não hesitarei em
ajudar se a matriarca precisar. Grace faz que não.
— Obrigada por oferecer, querida, mas Paulina deixou tudo
semipronto antes de sair de férias.
Assinto, vendo-a partir cabisbaixa. Volto o meu olhar para a
confusão e encontro Peter pulando eufórico ao lado de Henry. Ele
se esforça para segurar a árvore de pé enquanto Emilly tenta firmar
a base em torno do tronco. Depois de alguns momentos de tensão,
o pinheiro finalmente está erguido.
— O papai fazia parecer tão fácil. — O homem comenta ao
passar a manga da blusa sobre a testa. Noto que o pesar foi embora
da sua voz, dando lugar a uma saudade gostosa. Abraço-o pela
cintura e ele se adianta em beijar o topo da minha cabeça.
— Vocês dois estão um nojo, heim — brinca Emilly, colocando a
caixa de enfeites sobre o sofá.
— E você está morrendo de inveja — desdenha Henry. Ela abre a
boca, em pleno choque ao levar a mão ao peito.
— Eu? Jamais! Acho, inclusive, que a Alicia poderia ter achado
coisa melhor.
Rio quando Henry lhe mostra o dedo do meio. Peter, alheio à
conversa, pula sobre o assento macio e abre a caixa de papelão,
incapaz de conter a curiosidade. Do meio das bolinhas vermelhas e
brancas, puxa um festão dourado carcomido pelo tempo, mas os
olhos cintilam como se tivesse puxado um enfeite reluzente feito
com o mais puro ouro. Henry se aproxima e também vasculha o
interior da caixa.
— Poderíamos ter comprado enfeites novos.
— Mas não compramos, então precisamos nos contentar com o
que temos. — Emilly puxa um bonito cavalinho branco. — Ahhh,
lembro-me desse! O papai trouxe uma coleção deles ao voltar de
um evento de negócios na França.
Henry a ignora, focado em sua busca. Encontra mais cinco
cavalos iguais aos de Emilly, mas um deles está com a perna
quebrada. Mesmo assim, a irmã o separa, olhando para o enfeite
com carinho. Peter corre de um lado para o outro da sala, agitando
o festão acima da cabeça.
— Achei! — grita Henry, puxando dois soldadinhos quebra nozes.
A pintura está desgastada, mas ainda dá para ver que são idênticos.
Não são necessárias palavras para dizer que ele seria um, o Hector
o outro. — Esse aqui a mamãe comprou em uma loja na Quinta
Avenida, eu acho.
— Isso mesmo — diz Grace, voltando da cozinha com uma
travessa de biscoitos de gengibre. — Sua irmã ainda não havia
nascido.
Pegamos os biscoitos e, enquanto mastigamos a crocante massa
polvilhada com açúcar cristal, espalhamos o conteúdo da caixa
sobre o tapete. Passamos o restante da tarde ocupados em comer e
separar os enfeites deteriorados dos que ainda podem ser usados.
Salvo algumas bolinhas partidas e um pisca-pisca com metade das
luzes queimadas, o restante mostra-se em bom estado.
Um a um, colocamos os enfeites no pinheiro. Peter se ocupa da
parte debaixo da árvore enquanto eu, Henry e Emilly distribuímos a
decoração pelo resto. Grace senta-se no sofá e apenas assiste, o
rosto satisfeito em acompanhar aquela missão. Quando se dá por
satisfeito, o meu filho passa a estender as bolinhas para serem
colocadas no alto, apontando a localização certa.
Por fim, Henry lhe entrega uma grande estrela dourada. Com os
braços fortes, iça o menino até a altura necessária para fixar o
enfeite. Peter a ergue acima da cabeça e, com uma risada satisfeita,
finca a estrela no topo do pinheiro. Cabe a Grace ligar os pisca-
piscas na tomada, iluminando toda a árvore. Um Ohhh deslumbrado
se avoluma conforme Henry devolve o menino ao chão e
admiramos, juntos, o fruto do nosso trabalho em família.
— Ficou lindo — comenta Grace com a voz embargada. Emilly se
aproxima da mãe e a abraça pelos ombros. Olho para Henry e o
pego sorrindo de orelha a orelha. Sei que está pensando o mesmo
que eu: ainda bem que topamos participar da ideia mirabolante da
sua irmã.
— Que horas o Papai Noel chega? — pergunta Peter, meio
tímido, como quem não quer nada. Henry solta uma estrondosa
gargalhada.
— Seu interesseiro! — brinca, empurrando o menino. Ele ri e o
empurra de volta. É claro que o homem nem se mexe. — Só meia-
noite, mas você não pode ficar acordado esperando — acrescenta.
— O Papai Noel é tímido. Se ele te ver aqui, vai embora e você fica
sem presentes!
— E ninguém quer ficar sem presentes, não é? — digo,
agarrando-o pela cintura e fazendo cócegas na sua barriga. —
Vamos pendurar meias na lareira para garantir!
— Ótima ideia! — Emilly vibra, mas seus ombros se encolhem. —
Sobraram aquelas meias ali — aponta para a pilha carcomida de
meias natalinas.
— Vamos usar as nossas mesmo — decide Henry. — Antes,
precisamos pegar as bolsas nos carros. Vem comigo — pede, com
uma piscadela. — Peter, fique aí com a sua tia e a sua avó.
O menino franze o cenho, mas Emilly o puxa para si e logo os
dois estão rindo de alguma piada boba. Grace revira os olhos, mas
não resiste a rir também. Enquanto isso, eu e Henry corremos para
o carro. O vento marítimo aumentou ao cair da noite, trazendo
consigo gelados flocos de neve que se juntam aos acumulados no
chão.
— Devíamos ter feito isso mais cedo — reclamo ao puxar a
minha bolsa de viagem do porta-malas do carro.
— E alguém lembrou? — questiona Henry, a alça da própria
bolsa cruzada sob o peito, os braços cheios de sacolas de presente.
— Vamos, Alicia, mais tarde terei o imenso prazer de te aquecer
com meus braços.
Uma onda de calor cresce em meu baixo ventre, espalhando-se
pelo meu corpo quando penso no que preparei para ele. Coloco-me
na ponta dos pés e lhe roubo um rápido selinho.
— Então é melhor nos apressarmos.
Juntos, corremos de volta ao interior aquecido da casa, mas ao
invés de retornar pela porta principal, entramos pela cozinha. Henry
joga todas as sacolas de presente na despensa enquanto me ocupo
das malas. Peter continua tão entretido em dar risada com a tia que
nem ao menos percebe o nosso retorno. Emilly nos vê com as
bolsas e se levanta.
— Vou mostrar o quarto que preparamos para vocês. O Peter
dorme sozinho? — pergunta, olhando com carinho para o menino.
— Mamãe preparou um quarto especial para ele.
— Durmo! — diz ele, orgulhoso.
— Então vem ver — convida, oferecendo a mão. Peter a agarra,
cheio de confiança. Eu e Henry subimos atrás da duplinha.
Primeiro, Emilly abre a porta do quarto do sobrinho. Ele corre
para o lado de dentro e grita de alegria ao ver a decoração
composta por super-heróis, olhando de boca aberta para a colcha
de cama com o tema do Homem-Aranha, o tapete com o escudo do
Capitão América e as prateleiras cheias de bonecos.
— Como é que se diz, Peter? — relembro.
— Obrigado, tia — agradece, correndo de volta para Emilly e
abraçando as suas pernas. Ela ri e faz um carinho no seu cabelo.
— Foi ideia da sua avó. Por que não desce para agradecê-la? —
Ele faz que sim e se adianta, descendo os degraus aos berros de
“Obrigado, vovó!”. Quando o menino está em uma distância segura,
Emilly se vira para nós. — Bem, agora vou mostrar o quarto de
vocês, a menos que prefiram dormir separados — comenta, cheia
de malícia.
— Não, nós ficamos juntos. — Henry retruca, passando o braço
pela minha cintura de uma forma possessiva. Sorrio para mim
mesma. A última coisa que desejo é voltar a dormir sozinha.
— Voilá. — Emilly anuncia, ao abrir uma segunda porta com um
floreio. O quarto, de tamanho médio, segue o estilo de decoração do
restante da casa. Uma imensa janela atrás da cabeceira da cama
queen coberta por um grosso edredom permite que vejamos a neve
caindo preguiçosa. A porta de um pequeno closet, ao lado do
banheiro da suíte, termina de compor o espaço.
— É lindo. Obrigada, Emilly.
— De nada. Por favor, divirtam-se sem fazer barulho.
Meu rosto se cobre de calor enquanto Henry ri, sem qualquer
vergonha. Apenas para provocar, me puxa para um beijo estalado.
Sua irmã revira os olhos, reclamando de como realmente estamos
um nojo. Obrigo-me a afastar aquela tentação em forma de homem
e procuro as meias dentro das malas. Emilly volta ao seu quarto
para fazer o mesmo e, com tudo em mãos, descemos de volta à
sala.
Por sorte, os velhos pregos de outrora ainda estão sobre a
lareira. Penduramos as meias, uma a uma, da maior para a menor,
e nos afastamos para observar o resultado. A de Peter, menor e
toda colorida, está em uma ponta. A de Henry, a maior, em outra.
— Essa lenha é nova? — Ele indica a pilha com o queixo. Sua
mãe assente. — Então vamos acender.
Em minutos um fogo manso crepita na sala aconchegante. Henry
se senta ao meu lado no sofá e deito a cabeça em seu ombro.
Satisfeito, passa o braço em torno do meu corpo e me puxa para
mais perto. Grace nos observa por alguns minutos, o rosto
indecifrável como o de uma esfinge, até que sorri de leve e volta sua
atenção ao neto. Solto o ar que nem sabia que estava prendendo e
relaxo por completo.
— Sabe o que poderíamos fazer? — pergunta Emilly.
— Descansar? — Henry retruca. Sua irmã bufa.
— Não! Fazer uma casinha de biscoito de gengibre! — diz,
tirando o celular do bolso. Destrava o aparelho, abre o YouTube e
vira o celular para o sobrinho. — Temos todos os ingredientes. É só
fazer os moldes, assar e montar!
— Ah, eu quero! — Peter vibra, erguendo-se de um pulo.
Desvencilho-me do abraço de Henry e me ergo junto com o meu
filho.
— Eu também! — Todos olham para mim e encolho os ombros,
envergonhada. — Quando criança, eu sempre quis fazer uma
casinha dessas, mas...
— Então vamos fazer! — anima-se Grace. Henry se levanta,
oferece uma mão para ajudar a mãe e, juntos, vamos todos para a
cozinha.
Fazer uma nova massa de biscoitos acaba se transformando em
uma verdadeira festa. Peter deixa a tigela cheia de farinha cair no
chão. Emilly ri, sem parar, até que escorrega e cai de bunda no pó
branco, rindo mais ainda. Quando tudo está limpo de novo, Henry
derruba o vidro com essência de baunilha. O enjoativo perfume
adocicado toma conta da cozinha, mas ninguém se importa.
Estamos todos felizes demais para se preocupar com detalhes tão
pequenos.
Quando os alicerces da casa estão no forno, levo Peter ao andar
de cima para tomar banho. Ele não para quieto enquanto ensaboo
os cabelos vermelhos tomados pela farinha e faz questão de vestir o
pijama natalino comprado apenas para a ocasião. Emilly enfia os
dois dedos na boca e assobia, alto, no instante em que o menino
desce as escadas parecendo um elfo do Papai Noel. Ele ri sem jeito,
mas sei que, no fundo, adora a atenção.
Grace já tirou os biscoitos do forno. Eles esfriam sobre a bancada
da cozinha enquanto a batedeira trabalha para deixar o glacê no
ponto correto. Henry vasculha os armários em busca de doces e
chocolates e, com tudo pronto, começamos a unir as paredes.
Permito-me voltar à infância. Perdoo a ausência do meu pai.
Perdoo até o desinteresse da minha madrasta. E, sobretudo, acolho
a criança assustada que um dia fui. Ao receber a tarefa de colocar
um dos lados do telhado na casa, sinto que fecho um ciclo. Henry
coloca o outro e me encara, um sorriso carinhoso no rosto. Sorrio de
volta, pronta para começar um novo.
Emilly termina de passar o glacê e deixa a decoração a cargo de
Peter. Com cuidado, ele espalha os quadradinhos de chocolate pelo
telhado para, só então, colocar confeitos coloridos em torno da porta
e das janelas. Com tudo pronto, Grace peneira uma porção de
açúcar de confeiteiro, simulando uma nevasca, e a casa está
finalizada. Batemos palmas, encantados com o resultado. Ficou
realmente lindo.
— Sabe — diz Henry, olhando para a casa com orgulho. — Sei
que a comilança de verdade será amanhã, mas o que vamos comer
no jantar?
Todos se entreolham. Devagar, Grace leva a mão ao peito, como
se estivesse se protegendo de um ataque cardíaco.
— Ai meu Deus, eu não sei. Fiquei tão preocupada com o almoço
de amanhã que esqueci completamente do jantar!
— Então só nos resta comer a casa. — Henry faz menção de
puxá-la para si, mas o olhar horrorizado de Peter o impede. O
menino está prestes a chorar quando acrescenta. — Ei, é
brincadeira! Podemos comer a torta de maçã.
— Não podemos, não! — ralha Grace, colocando-se protetora em
frente a assadeira coberta com um pano de prato.
Emilly abre a geladeira e tenho um vislumbre de uma segunda
assadeira. Pelo formato, é um pernil temperado pronto para ir ao
forno. Ignora a peça de carne e vasculha as prateleiras laterais até
encontrar uma embalagem fechada de presunto fatiado.
— Tem pão de forma no armário. Acho que precisaremos nos
contentar com isso aqui — dá de ombros.
Assentimos, sem realmente nos importarmos. Henry encontra um
pote de maionese e, com a casinha de biscoitos segura ao lado da
torta, comemos os sanduíches em meio a conversa boa e muitas
risadas. Os irmãos caem na nostalgia, relembrando os tempos de
infância, enquanto a mãe só observa calada. Por conta de Peter,
eles têm o cuidado de omitir o nome de Hector. A única cadeira
vazia torna a sua falta palpável. Imagino como deve ser difícil para
Grace passar o Natal longe de um dos filhos.
O relógio marca quase onze horas quando Grace pede licença e
sobe para o seu quarto, deixando um rastro de bocejos pelo
caminho. Pouco depois, é a vez de Peter. Pego-o no colo e olho
para os irmãos sentados na mesa.
— Vou subir.
— Eu também vou — diz Emilly, espreguiçando-se. Um sorriso
cruza o seu rosto e ela diz, bem baixinho. — Estou tão animada
para amanhã!
— Eu também!
Henry se levanta e lança um olhar para a dispensa.
— Podem ir. Vou conferir se a casa está fechada e… — faz um
gesto, indicando primeiro a porta fechada, depois a árvore de Natal.
Emilly faz um joinha com o polegar, assinalando que entendeu o que
ele quis dizer.
— Bem lembrado. Vou fazer o mesmo.
Peter começa a pesar em meus braços.
— Boa noite — digo, deixando os irmãos para trás.
Subo as escadas e entro no quarto do meu filho. Meu coração
fica quentinho diante do cuidado que Grace teve com a decoração.
Devagar, coloco Peter na cama. Ele se ajeita debaixo do edredom
do Homem-Aranha e solta um suspiro satisfeito, caindo
instantaneamente no sono. Sorrio para a imagem angelical, afasto a
franja ruiva e planto um beijo em sua testa. Confiro se a luz noturna
está acessa e vou para o meu próprio quarto.
Só então o calor luxuriante cresce, tomando conta do meu corpo.
Vasculho a bolsa de viagem e encontro o pacote contendo o
conjunto rendado de lingerie. Se da primeira vez estava temerosa
de me entregar a Henry, agora estou cheia de confiança. Ao longo
daqueles poucos dias o homem provou uma devoção completa ao
meu corpo. Sei que vai cuidar bem da minha área mais proibida.
Com a lingerie em mãos, vou ao banheiro, ansiosa para tomar
um rápido banho e me preparar para ele.
Emilly desce com os seus presentes e me ajuda a arrumar tudo
debaixo da árvore de Natal. O imenso pinheiro fica pequeno com
tantas sacolas e caixas ao seu redor. Reparo que a maior parte dos
pacotes contém um cartãozinho ou etiqueta com o nome de Peter.
Sorrio para mim mesmo, encaixando o embrulho contendo um
Nintendo Switch no meio dos demais. O menino vai se dar bem.
— Hoje foi tão gostoso — diz Emilly, olhando com carinho para os
presentes. — Como voltar ao tempo. Quero só ver a carinha de
Peter amanhã cedo, ao ver tudo o que o “Papai Noel” — enfatiza,
fazendo aspas com os dedos — deixou.
— Eu também. Ele vai ficar feliz pra caralho.
— Vai, oh se vai! Agora confesse: a minha ideia foi ou não foi
boa?
Preciso morder os lábios para evitar gargalhar alto.
— Foi boa. Apenas a mamãe parecia um pouco triste —
comento, após me controlar. A raiva por Hector cresce alguns
degraus no meu termômetro interno de emputecimento. Não gosto
daquele sentimento, ainda mais depois de um dia agradável junto da
família.
A única coisa que me consola é que, se ele estivesse aqui, eu
não estaria com a Alicia. Talvez ainda estivéssemos brigados por
conta da brincadeira imbecil feita na universidade e não haveria
nada de agradável em celebrar o Natal em meio a velhas discórdias.
Estou preocupado com o meu irmão, sinto muito pela minha mãe,
mas não consigo ficar completamente triste pela atual situação.
Agora eu tenho certeza: estou apaixonado por Alicia
Chamberlain. Pois é, o playboy cafajeste que não repete mulher foi
arrebatado pela bela esposa do irmão. Ex-esposa, lembro a mim
mesmo.
Saber que voltarei para a Califórnia em pouquíssimos dias
dilacera o meu coração, mas preciso manter a calma. A vontade é
de ficar, mas os acontecimentos se sucederam em um turbilhão,
recentes e rápidos demais. Temo assustar Alicia com uma
declaração. Será melhor ter paciência e conversarmos quando
voltarmos para Greenville. Se por acaso ela ficar confusa, estou
disposto a lhe dar o tempo que for necessário para pensar ao nosso
respeito.
Sem contar que não posso simplesmente abandonar a vida do
outro lado do país. Meu apartamento, e meus negócios, aguardam
pela minha atenção. Cedo ou tarde precisarei voltar.
Balanço a cabeça, sem querer pensar naquilo agora. Ajeito um
presente caído e me levanto. De repente, lembro de uma coisa e
vou para a cozinha. Sobraram alguns pedaços de chocolate
utilizados na casinha de biscoito. Corto-os em quadradinhos e enfio
na meia de Peter. Emilly observa com um sorriso.
— Igualzinho ao que nosso pai fazia.
— Sim — esfrego as mãos uma na outra. Há muito as chamas da
lareira se transformaram em brasas, fazendo com que um
aconchegante calor emane dali. Houve um ano em que papai
comprou marshmallows e passamos a noite diante do fogo, assando
os doces em um espeto. Se eu tivesse lembrado teria comprado. —
Fiquei um pouco emotivo ao chegar.
— Eu também — confessa Emilly, parando ao meu lado e
estendendo as mãos para as brasas. — Vi a Alicia te consolando.
Ela te faz bem, Henry.
Concordo com a cabeça, incapaz de falar. Ela faz, sim. Toda a
necessidade de ir a festas regadas a álcool em busca da foda da
noite desapareceu. Descobri que morar em um bairro suburbano
não é tão entediante quanto imaginei, pelo menos não com uma
cidade como Nova Iorque a poucos minutos de distância. O ponto
que Scott sugeriu em Long Beach era uma merda, mas sei que não
faltam oportunidades e pessoas ávidas pelo dinheiro proporcionado
por um cara como eu. Eu poderia vender parte da minha sociedade
na Califórnia e investir em bares aqui e…
— Vou me deitar — digo. O caminho mais curto para cortar
aqueles pensamentos é subir, tomar um banho quente e cair na
cama. O barulho do chuveiro se extinguiu há uns bons quinze
minutos. Alicia já deve estar dormindo. Beijo a bochecha da minha
irmã. — Boa noite, Emilly.
— Boa noite para você também — devolve, me abraçando.
Retribuo o abraço, sem deixar de perceber que os seus olhos estão
marejados quando nos separamos. — Obrigada por tudo, Henry.
— Não há de que.
Subimos as escadas juntos, pé ante pé, temendo acordar
alguém. Emilly dá um tchauzinho quando chega no seu quarto. Abro
a porta de Peter, apenas para conferir se ele está bem. Ao confirmar
que o menino dorme tranquilo, vou para o meu quarto.
Pisco, confuso, diante da visão sobre a cama, sem saber se
estou enxergando direito. Alicia está deitada apenas de lingerie no
centro do edredom. A delicada renda vermelha pontuada por
florezinhas brancas cobre o seu corpo com sensualidade. O corpete
e a armação do sutiã empinam os seios em um decote tentador.
Passo a língua pelos lábios, já sentindo uma conhecida agitação no
meu baixo ventre.
Ciente do efeito causado, Alicia sorri toda safada e vira-se de
costas, expondo o traseiro "coberto" apenas por um fio dental.
— Pensei em antecipar o seu presente de Natal — diz, ao olhar
por sobre o ombro, a voz doce saindo rouca de tesão.
A ereção é instantânea. Meu pau pressiona a boxer com força,
ávido para se ver livre da prisão do tecido e se enterrar fundo em
Alicia. Tranco a porta às minhas costas e arfo alto, tentando
controlar a respiração, mas é impossível. A expectativa é tanta que
o meu coração dispara no peito. Calma, Henry!, lembro a mim
mesmo. É a primeira vez que ela faz aquilo. Preciso me controlar
para lhe proporcionar uma boa noite de prazer.
Devagar, me aproximo do seu corpo e a puxo para mim, trazendo
o seu traseiro para a minha virilha, roçando a ereção dolorosa nas
nádegas expostas. Alicia geme, mas a sinto um pouco tensa. Afasto
os seus cabelos e beijo o seu ombro, subindo lentamente pela curva
do pescoço até alcançar a orelha. O irresistível aroma de rosas que
emana da sua pele me embriaga. É necessária toda a força de
vontade para evitar puxar o fio dental de lado e meter forte em sua
bunda.
— Você fez o preparo? — pergunto. Alicia assente e um baixo
aham escapa dos seus lábios. Beijo o lóbulo da sua orelha, bem em
cima do brinco de diamantes. — E comprou um lubrificante?
— Comprei.
— Boa garota — digo. — É essa a lingerie que você comprou
para o meu irmão?
— Não. Essa eu comprei para você.
Como se para enfatizar, ela empina a bunda, pressionando o meu
pau por debaixo da calça. Um gemido rouco escapa da minha
garganta.
— Desse jeito você me deixa louco, linda.
— Pensei que essa fosse a intenção.
Devagar, sem jamais tirar os olhos dos meus, Alicia vira o corpo,
ficando de frente para mim. Fecho os olhos, as mãos descendo pelo
meu peitoral até alcançar a barra da blusa. Ergo os braços e permito
que ela tire a peça de roupa, ficando nu da cintura para cima. Alicia
me olha de forma lasciva quando os reabro. Espalma a mão em
meu peito e delineia o seu contorno devagar, se demorando sobre o
desenho da tatuagem. Para a minha surpresa, desce os lábios
sobre o mamilo e o chupa com delicadeza.
Gemo alto, sem conseguir me controlar. Alicia olha para cima, os
olhos castanhos flamejantes, o mamilo ainda na boca. Morde a
pontinha, espalhando uma deliciosa teia de dor pelo meu peito, e
decido que basta. Preciso possuí-la antes que perca o que me resta
de razão.
Agarro o seu corpo e a puxo contra mim. Alicia ergue o rosto, a
deixa perfeita para que eu tome a sua boca. Ela agarra os meus
cabelos e retribui o beijo desesperado enquanto os meus dedos
deslizam pelas costas em busca do laço que mantém a lingerie no
lugar.
Puxo o cetim, fazendo com que a parte de cima da peça rendada
caia diante do seu corpo. Ocupo-me em admirar a beleza dos
mamilos intumescidos como botões de flores implorando para que
eu os chupe. E pensar que um dia Alicia temeu que um homem a
rejeitasse por conta de estrias. Estrias onde? Não vejo estria
nenhuma ali. Só vejo os seios de uma mulher linda.
Desço os lábios sobre um mamilo e chupo com força. É a vez de
Alicia gemer, contorcendo o corpo de forma a roçar a virilha de
encontro a minha. Chega! É demais! Sou incapaz de aguentar mais
um segundo sequer. Viro-a de costas e a jogo sobre a cama.
Alicia ri ao cair sobre o edredom macio. Olha por sobre o ombro e
rebola o traseiro, provocante. Sorrio de lado, contente em perceber
que ajudei a transformar aquela mulher em uma completa devassa.
Abaixo as calças e exponho a ereção dura feito diamante. Seu olhar
caminha por todo o meu comprimento, desde a cabeça rosada até a
base grossa. A ponta da língua desliza pelos lábios entreabertos,
mas o olhar não vacila. Alicia sabe o quanto sou grande, assim
como sabe que não vou me satisfazer até estar completamente
dentro dela.
— Onde está o lubrificante? — pergunto. Alicia aponta a bolsa de
viagem com o queixo.
— Do lado de dentro, escondido no bolso interno.
Antes de vasculhar a sua bolsa, primeiro vasculho a minha.
Encontro o compartimento onde guardei as camisinhas e retiro uma,
abrindo a embalagem e cobrindo o meu pau em seguida. Com essa
missão cumprida, pego o lubrificante. Ótimo, Alicia comprou um sem
sabor. Prefiro mil vezes o seu gosto delicioso ao sabor artificial de
morango ou chocolate.
Subo de joelhos na cama e agarro o seu quadril com força,
colocando-a de quadro e puxando a lingerie com brusquidão. Alicia
arfa em protesto quando a renda cede diante de um tratamento tão
indelicado.
— Fique tranquila. Depois eu compro uma peça nova —
sussurro, deitando meu peitoral sobre as suas costas. Alicia bufa.
— Você sabe que eu não gosto de desperdício.
— Não estou vendo desperdício nenhum — planto um beijo em
sua nuca, deliciado ao ver os cabelinhos ruivos se arrepiando.
Alicia relaxa debaixo de mim e sigo plantando beijos por toda a
extensão da sua coluna, vértebra por vértebra, até alcançar o ponto
de divisão em suas nádegas. Exponho a sua zona proibida e planto
um demorado beijo sobre a região, descendo devagar até a boceta
encharcada. Afundo a boca em seu centro, deliciado em ter a
oportunidade de provar o seu sabor mais uma vez. Com a ajuda da
língua, espalho um pouco da sua umidade mas, ainda assim, acho
prudente fazer uso do lubrificante.
Abro a tampa do frasco e passo uma generosa quantidade pelo
seu traseiro. Alicia se encolhe quando enfio o dedo indicador cheio
de gel em seu buraquinho apertado.
— Relaxe — peço, baixinho. Massageio a lateral do seu quadril e,
devagar, sinto-a mais calma.
Afasto-me o suficiente para envolver o pau com o lubrificante,
jogando o frasco em qualquer ponto da cama. Com os joelhos,
afasto as pernas de Alicia e me posiciono. Mais uma vez lembro a
mim mesmo para ir com calma. Roço a pontinha do pau em sua
entrada enrugada, apenas para que se prepare. Alicia olha de novo
por cima dos ombros.
— Promete parar se eu disser que está doendo?
— Claro — respondo. — Isso tem que ser bom para nós dois,
Alicia. Se doer, é só me falar — abro um sorriso sacana. — Afinal,
existem incontáveis formas da gente se divertir e tenho uma extensa
lista de brincadeiras que podemos testar.
— Seu bobo — ri, voltando a olhar para a frente. Empina a bunda
e rebola. — Estou pronta.
— Ah, eu também estou, linda — digo, a voz naturalmente grave
saindo rouca de tanto tesão.
Roço a cabeça do pau de novo, para cima e para baixo como
uma pincelada, misturando o lubrificante natural com o artificial.
Devagar, pressiono a glande contra o orifício, entrando milímetro a
milímetro até que toda a cabeça tenha desaparecido no interior da
sua zona já não tão proibida. Alicia permanece parada,
aparentemente confortável enquanto me forço a continuar devagar,
torturado pela deliciosa pressão em torno da parte mais sensível do
meu corpo.
Alicia é apertada, muito apertada. Insiro mais alguns milímetros e
ela contrai os músculos dos glúteos, gemendo baixinho. Espero,
apenas para ter certeza de que está tudo bem, e continuo até ter
dois terços do membro dentro dela. Agarro as laterais dos seus
quadris com força, obrigando-me a ficar parado para que ela se
acostume com o meu tamanho. Não vou conseguir ir apenas até ali.
Só vou me satisfazer quando tiver o pau enterrado até a base em
sua bunda.
Quando acho que esperei o bastante, firmo as mãos em sua pele
macia e meto os últimos centímetros, entrando por completo. Solto
um gemido estrangulado, do fundo da garganta, ao sentir o pau
pressionado por todos os lados de forma enlouquecedora. Alicia
geme baixinho, fazendo com que eu abaixe o tronco sobre as suas
costas, até ter os lábios perto do seu ouvido.
— Está doendo? — pergunto, beijando a sua nuca. Ela faz que
não.
— Na realidade, está um pouquinho — tenciono, pronto para sair
de dentro dela. — Mas é uma dor gostosa.
— Quer continuar?
— Quero — rebola, bem de leve, apenas para confirmar.
É a provocação que preciso. Ajoelhado atrás da sua bunda, firmo
as mãos e começo a mexer os quadris, entrando e saindo bem
devagar. Ela geme de novo, e dessa vez identifico como um gemido
de prazer. Seguro a lateral do quadril com uma mão enquanto
deslizo a outra pelo seu abdômen. Círculo o umbigo e, enfim,
alcanço o monte da sua virilha. Insiro um dedo em sua fenda,
encontrando o clitóris inchado de desejo.
Círculo o ponto máximo do seu prazer e Alicia geme de novo,
mais alto. Meto um pouco mais forte, apenas para testar o terreno, e
ela parece aprovar.
— Você gosta disso, é? — pergunto, provocador, ao arremeter
até a base. — De ter o meu pau grosso fincado no fundo da sua
bunda gostosa?
— Gosto — responde. — Gosto muito, Henry.
Dito isso, vem com o quadril com tudo para trás. Gememos em
sincronia e tento me controlar para não gozar antes da hora. O
aperto em torno do meu pau é avassalador de tão firme. Volto a me
concentrar no prazer dela, intensificando o movimento em seu
clitóris.
Alicia se contorce, como se tentasse escapar, e a agarro com
mais firmeza, passando o braço livre por sobre os seus seios e a
puxando para mim, até que suas costas se colem sobre o meu
peitoral enquanto sigo ajoelhado por atrás. Mordisco a base do seu
pescoço, subindo os lábios devagar até a sua boca, tomando todo o
seu fôlego em um beijo profundo. Só a solto quando ambos estamos
sem ar.
Dedilho o seu pontinho de prazer com vontade, metendo forte em
sua bunda, fazendo com que volte à posição de quatro. Seu corpo
vai para a frente e para trás debaixo do meu, cada arremetida
arrancando um curto gemido.
Sem avisar, enfio dois dedos em sua boceta, continuando a
circular o clitóris com o polegar. Alicia arqueia as costas. Entro e
saio forte da sua boceta, sem amenizar as arremetidas, e sinto a
pressão aumentando em volta dos meus dedos.
O orgasmo vem. Alicia joga a cabeça para trás em um grito
mudo, as coxas chacoalhando descontroladas na lateral das minhas
pernas. Seu corpo trêmulo desaba sobre o edredom e a mão cobre
a minha, tentando amenizar a intensidade do contato em sua boceta
ao mesmo tempo em que a firma ali. Alicia está completamente sem
forças quando finalmente tiro os dedos de dentro de si, melados de
tanta lubrificação natural.
Chegou a minha vez. Firmo as duas mãos em seus quadris e
meto fundo. É o que basta para que o meu gozo seja despejado
dentro da camisinha. Mordo os lábios, para evitar gritar e acordar a
casa toda, enquanto sinto o meu pau pulsando até, enfim, estar
esgotado. Devagar, saio de dentro dela e me deixo cair de barriga
para cima ao seu lado.
Encaramo-nos, ofegantes. Alicia sorri de leve, os cabelos
avermelhados grudados no rosto satisfeito. Sorrio de volta.
— Obrigado pelo presente, linda.
— Servimos bem para servir sempre — brinca, repetindo o que
eu disse na primeira vez em que transamos.
Rio e a puxo para cima do meu peito. Alicia se aconchega. Sei
que preciso levantar, jogar a camisinha fora e tomar um bom banho,
mas naquele momento só a quero ali, confortável em meus braços.
Um relógio apita, de algum lugar da casa, avisando as horas.
Pego o celular sobre a mesinha de cabeceira. Meia-noite em ponto.
Ela ergue o rosto, sonolenta. Coloco uma mecha de cabelo atrás da
sua orelha e beijo a sua testa.
— Feliz Natal, Alicia.
— Feliz Natal, Henry — diz, voltando a se aconchegar.
Espero que sua respiração fique pesada e, só quando tenho
certeza de que Alicia entrou por completo no mundo dos sonhos,
tenho a ousadia de me mexer. Ajeito-a sobre o travesseiro de forma
que fique confortável e vou para o banheiro.
Olho para a imagem no espelho, incapaz de me lembrar de
qualquer ocasião em que estive tão feliz.
— AHHH! GANHEI, GANHEI! — Peter berra, fazendo-me acordar
de supetão, completamente assustada. Em um ímpeto, faço menção
de levantar da cama, mas o braço pesado de Henry me mantém
segura no lugar.
— Ele deve ter aberto o pacote com o videogame — resmunga,
meio grogue de sono. — Emilly está com ele.
— Como você sabe? — Volto a me ajeitar debaixo dos edredons,
o coração ainda acelerado de susto.
— Sei por que os dois desceram as escadas com a delicadeza de
uma manada de elefantes — vira o rosto para mim e sorri, os olhos
azuis brilhantes, os cabelos muito escuros bagunçados. É
impossível deixar de retribuir o sorriso de um homem tão lindo. — E
você desceria as escadas assim, peladinha? — questiona,
deslizando uma mão sem vergonha por toda extensão da minha
coxa até a curva do quadril.
— Talvez. Se o meu filho estivesse em perigo.
— Uau! — ronrona, aproximando os lábios do meu pescoço.
Planta uma mordidinha delicada, mas ainda assim capaz de me
arrepiar inteira. — Talvez eu esteja em perigo agora, Alicia —
acrescenta, apertando a minha bunda ao mesmo tempo em que
roça o pau ereto contra a minha virilha.
— Ohhh mãe! Ohhh pai! — chama Peter. Pela forma como o som
chega até nós, ele está ao pé da escada. — O Papai Noel deixou
presentes para vocês também!
— Você vai precisar ficar em perigo mais um pouquinho. — Ele
resmunga qualquer coisa e decido provocar. — Pensei que tivesse
ficado satisfeito com o seu presente — acrescento, indicando a
lingerie rasgada ainda jogada no chão.
— Fiquei sim. Tanto que já quero o seu delicioso corpinho de
novo. — Henry me agarra e planta um beijo estalado na bochecha.
— E de novo — continua, beijando o outro lado. — E de novo —
finaliza, tomando a minha boca em seus lábios.
Retribuo o beijo, a umidade crescente no meio das pernas.
Jamais pensei que poderia haver tanto prazer em sexo anal. Henry
não deixou de lado o estilo dominante e estremeço de satisfação só
de lembrar a sensação do seu membro duro preenchendo todo o
espaço livre dentro de mim. Estou cheia de vontade de passar o dia
inteiro na cama com ele, mas qualquer mãe logo descobre que é
impossível fazer esse tipo de coisa tendo um filho de quatro anos.
— OHHH MÃE! — Peter berra, de novo. Rio contra a boca de
Henry.
— Mais tarde — digo, mesmo que também esteja louca para
fazer uso do seu corpo. Ele assente, compreensível, e acaricia a
lateral do meu quadril antes de permitir que saia da cama.
Abro uma frestinha da porta, grito um “Já vou!”, recolho a lingerie
no chão e me encaminho para o banheiro, para tomar um rápido
banho. Henry está deitado com os olhos cravados no celular quando
saio com a toalha enrolada em volta do corpo. O homem crava os
olhos nos meus assim que percebe o meu retorno.
— Você viu isso aqui? — questiona, virando a tela do celular em
minha direção.
Aproximo-me para enxergar melhor. É o desenho de Peter que
postei no dia anterior. Tiro o aparelho da sua mão e confirmo: pelo
menos uma dúzia de pessoas desconhecidas elogiam como a obra
é bonita, transmite leveza ou as faz sorrir. Dessas, três ou quarto
perguntam se eu aceito encomendas. Leio e releio, na dúvida de
que aquilo está correto.
— Elas querem mesmo encomendar os meus desenhos? —
pergunto a Henry, apenas para ter certeza de que não estou
precisando de óculos. Ele assente.
— Querem. Isso porque você só postou um! — comemora,
levantando-se da cama e me apertando em um abraço. — Poste
outro mais tarde, e mais outro amanhã, e já já você terá milhares de
seguidores e potenciais clientes ansiosos para ter uma arte sua.
— Vou postar — digo, meio boba. — Obrigada pelo incentivo. —
Ele sorri sem mostrar os dentes, o semblante satisfeito em ver o
meu sucesso. Inspiro fundo, tentando tomar um pouquinho de
coragem para falar algo que está enroscado na garganta desde
ontem. — E obrigada por ter topado se passar pelo pai do Peter. Ele
ficou tão feliz ontem, e por esses gritos já dá para notar o quanto
está feliz hoje — sinto a voz embargada de emoção, mas me forço a
continuar. — Nada disso teria sido possível sem você, Henry.
— Não precisa me agradecer. — Ele troca o peso do pé de um
lado para o outro, visivelmente acanhado. Aquilo é tão inesperado
em Henry que o torna um centésimo de vezes mais adorável. — E
saiba que eu faria tudo de novo, Alicia.
Com isso, ele me beija. Não há a fúria da noite passada, apenas
o carinho entre pessoas que se gostam de verdade. O coração volta
a acelerar, assustado de uma maneira diferente, tanto por ter a
certeza de que me apaixonei pelo irmão do meu marido, quanto por
saber que dali a poucos dias ele vai embora. Estremeço ao imaginar
o retorno dos dias solitários em casa. Levanto o rosto para encará-
lo. A menos que eu esteja muito enganada, algo no seu olhar diz
que está tendo pensamentos semelhantes aos meus.
Mas não quero pensar naquilo agora. Primeiro, porque Peter me
espera lá embaixo. Depois de tanta demora, o menino parece ter
desistido de mostrar a novidade. Segundo, estou disposta a
aproveitar esse Natal da melhor maneira possível. Não quero
estragá-lo com pensamentos de como será a minha vida na próxima
semana. Cedo ou tarde precisaremos conversar, mas agora quero
aproveitar o feriado ao máximo.
Sem dizer nada, Henry se afasta e entra no banheiro, deixando
um vazio onde antes o seu corpo grande estava. Foco em me vestir
e, em cinco minutos, estou descendo as escadas em direção a sala
de estar. Um leve aroma de pernil assado perfuma o ambiente,
fazendo com que o meu estômago dê sinal de vida. Olho de relance
para o relógio sobre a lareira. São quase dez horas da manhã. Não
é para menos que eu esteja com tanta fome.
Encontro Peter e Emilly sentados no tapete, tão entretidos com
os presentes que a minha cunhada nem ao menos pensa em me
lançar um olhar malicioso, como se soubesse exatamente o que eu
e o seu irmão fizemos na noite passada. Laços de cetim desfeitos e
embrulhos rasgados espalham-se em torno da árvore de Natal.
Aproximo-me do meu filho e tento plantar um demorado beijo em
seus cabelos bagunçados, mas ele está eufórico demais para
permitir. Ergue-se de um salto e pula sem parar no mesmo lugar, a
caixa do videogame em mãos.
— Olha o que o Papai Noel me deu! Vamos jogar, mamãe? —
pede, estendendo a caixa em minha direção. É uma edição especial
com o jogo do Mario Kart. Assinto, já sabendo que perderei de
lavada, mas disposta a tentar. Nunca coloquei as mãos em um
controle de videogame e esse simples fato é o suficiente para tornar
qualquer jogatina divertida.
— Vamos, mas só depois que você tomar café.
— Eu já tomei — lanço-lhe um olhar desconfiado e ele se vira
para a tia. — Eu tomei, não tomei?
— Se três biscoitos de gengibre e um copo de leite com
achocolatado servirem de café da manhã, tomou sim. — A tia
rebate, ameaçando fazer cócegas na sua barriga. O menino pula
para trás e ri.
— Cadê o papai?
— Já vai descer.
— Falei que eu mesma poderia ligar na televisão — comenta
Emilly. — Mas o bonito quer que o pai dele faça as honras.
Emilly enfatiza a palavra pai, como se ela soasse estranha em
sua língua. Peter não percebe. Com cuidado, coloca a caixa sobre o
tapete e me mostra o restante do presente.
— Tem mais três controles! Podemos jogar todos juntos. — diz,
com um sorriso. — O papai vai demorar para descer?
Sento-me ao seu lado e caio na risada.
— Não vai demorar não, filho.
— Vai, mostra os outros presentes para a sua mãe — ralha
Emilly.
O menino corre para pegar os patins que eu mesma comprei.
Depois, três caixas de jogos, todos do Mario. Lanço um olhar
agradecido à minha cunhada e ela faz que aquilo não é nada.
Também traz o presente da avó: um Lego da Millennium Falcon,
uma das naves de Star Wars. Olho para a imensa caixa,
impressionada. Grace sai da cozinha, e se aproxima com as mãos
na cintura, um sorriso carinhoso nos lábios. Não sabemos até
quando Peter acreditará no Papai Noel e vê-lo eufórico pela visita do
Bom Velhinho é tão fofo que ninguém quer assumir a autoria dos
presentes. Aproveita a sua distração e fala, bem baixinho, de forma
que apenas eu e Emilly possamos ouvir.
— Se vocês tivessem me dito que iriam dar um videogame para o
menino, teria comprado mais jogos.
— Sra. Chamberlain, não precisava se preocupar…
— Claro que precisava — corta, olhando para Peter com carinho.
— Desculpe, minha querida, mas a função das avós é mimar os
netos. Sei que as pecinhas são pequenas — acrescenta, apontando
para a caixa de Lego — mas eu não resisti. Por favor, montem junto
com ele.
— Pode deixar — digo, antevendo que me divertirei mais que a
criança durante a brincadeira. — Obrigada. A vocês duas —
acrescento. Emilly, mais próxima, dá um tapinha no meu ombro
enquanto Grace alarga o sorriso antes de voltar à cozinha. Adianto-
me para ajudá-la, mas Emilly me segura no lugar.
— Abra o meu presente — pede, baixinho, me entregando uma
bonita caixa branca com um laço vermelho. Ela encolhe os ombros.
— Desculpe, mas encontrei o meu próximo aos de Peter e não
resisti. Obrigada pelos chocolates — agradece, sorrindo de orelha a
orelha. — São os meus favoritos!
— De nada — respondo, puxando a ponta do cetim.
O laço se desfaz. Devagar, levanto a tampa, dando de cara com
um vestido verde escuro. Pelas alças finas, tiro a peça da
embalagem e a encaro, boquiaberta. Com um decote em coração, o
vestido tem um intrincado trabalho de delicadas flores bordadas,
lembrando um desenho feito à mão. É lindo e, de repente, me vejo
tão ansiosa quanto o meu filho. Quero subir de volta ao quarto
apenas para vesti-lo, curiosa para saber como ficará no meu corpo.
— Acho que nem preciso dizer que você pode trocar caso não
goste — minha cunhada brinca.
— Não, não precisa. Eu amei, Emilly. — Planto um beijo no seu
rosto, em agradecimento. Ela enrubesce e ri, um pouco sem graça.
Abaixo a peça e vejo Henry parado nas escadas, nos encarando
muito sério. Sei o que ele está pensando apenas pela intensidade
do seu olhar: ficarei linda no vestido que ele adorará tirá-lo da
mesma forma como fez com a caríssima lingerie usada na noite
passada.
— Uau! — limita-se a dizer, provavelmente por conta da presença
de Peter. O menino volta a segurar a caixa do videogame e pula
diante do pai. Abre um sorriso e foca na criança saltitante. — Olha
só o que o Papai Noel te deu! — Henry toma a caixa da sua mão e a
observa, cheio de curiosidade, como se o Bom Velhinho realmente
fosse o responsável por aquela façanha, não ele próprio. — E ainda
mandou um monte de controles extras!
— Mandou! — vibra. — E mandou também os jogos, um par de
patins, e um Lego, e um…
Henry ri conforme Peter mostra presente a presente. Ajeito o
vestido de volta à caixa e, pelas mãos de Emilly, recebo um novo
pacote. O embrulho pesa nas mãos. Pelo pequeno cartãozinho
pendurado no laço, vejo se tratar do presente de Grace.
Abro-o e, por um instante, fico sem ar. Minha sogra comprou uma
resma dos melhores papéis para pintura e uma fina caixa de
pastilhas de aquarela profissional. Sei quanto custa um kit daquele.
Namorei um durante anos, mas nunca tive coragem de pagar. Henry
desvia o foco do menino saltitante e sorri. Sorrio de volta, lembrando
dos comentários no Instagram, feliz com aquele bom presságio.
Talvez a hora de vender a minha arte realmente tenha chegado.
Faço menção de me levantar, ansiosa para correr até Grace e
agradecer, mas mais uma vez sou puxada para baixo. Dessa vez é
Henry. A intensidade do seu olhar permanece nas labaredas azuis
de suas íris.
— Falta o meu presente — diz, baixinho, os lábios roçando de
leve no meu ouvido enquanto se senta ao meu lado. Devagar,
estende a mão até um ponto estratégico na árvore de Natal. Ela
retorna com uma sacola azul marinho, da mesma joalheria em que
vieram os brincos. — Desculpe, Alicia. Mas não resisti a comprar
isso aqui também.
— Henry… — começo, ciente de que seja lá o que for, custou
uma fortuna.
— Abra — pede, a voz mais rouca do que nunca.
Emilly estica os olhos, curiosa para saber o que ganhei. Enfio a
mão na sacola, fecho os dedos sobre a caixa de veludo e a puxo
para fora. Até Peter para de pular e se concentra, curioso para
saber o que o Papai Noel deixou para mim. Devagar, levanto a
tampa e me deparo com um colar de ouro branco com um pingente
de rubi circulado por diamantes. A joia, como um ponto de luz,
faísca cheia de brilho.
— Eu não sei nem o que dizer — solto, olhando encantada para o
presente. — É lindo!
Henry permanece sentado e, de repente, sou tomada por uma
gigantesca emoção. Meus olhos se enchem de lágrimas de alegria e
não resisto a agarrar o seu pescoço e plantar um beijo em seus
lábios. Ele ri e devolve o carinho com luxúria. Nenhum de nós dois
se importa com o “Eca!” de Peter ou o “Ah, não basta presenciar um
presente desses, ainda sou obrigada a ver vocês se beijando? Vidas
solteiras importam!”.
— Fico feliz que tenha gostado — Henry diz, quando nos
soltamos para tomar fôlego. Assinto, ainda incapaz de falar, fazendo
com que uma mecha de cabelo se solte detrás da orelha. Ele se
adianta para colocá-la no lugar, dizendo bem baixinho no meu
ouvido. — Hoje à noite, quero você vestindo apenas ele e os
brincos. Nada mais.
— Ei, eu ouvi isso! — sua irmã reclama.
Ele ri e se afasta, tirando a joia do estojo de veludo e abrindo o
fecho. Afasto os cabelos e permito que coloque o colar em torno do
meu pescoço. Deslizo os dedos pela pedra fria e sorrio feito uma
boba. Posso facilmente me imaginar usando aquelas joias junto do
vestido de Emilly, pronta para arrasar em qualquer evento.
Grace retorna da cozinha com a casinha de biscoito. Empolgado
com o videogame, Peter aceita que ela precisa ser comida e
passamos o restante da manhã mordiscando pedacinhos do telhado
enquanto terminamos de abrir os presentes.
Henry só falta engasgar de tanto rir com o presente da irmã: um
suéter verde listrado cheio de pequenas renas. Faz menção de tirar
a blusa, mas lanço-lhe um olhar de alerta: não passamos a
maquiagem para esconder as tatuagens. Ele percebe a tempo e
corre até o banheiro, voltando vestido a caráter. Batemos palmas
quando ele desfila pela sala, bonito como um modelo em uma
passarela.
Sua irmã antecipou a vingança. Ganha de presente uma pantufa
com o mesmo formato do pé de um tiranossauro rex. Primeiro ela
xinga o irmão, depois coloca o calçado e ri por meia hora. Grace
adora a echarpe e Henry a presenteia com uma bonita bolsa de
couro.
Finalmente, antes que o meu filho tenha uma síncope, Henry
abre a caixa do Nintendo Switch e começa a instalação, fazendo
com que os karts do jogo de corrida apareçam na tela. Peter pula
mais do que nunca, controle em mãos, pronto para entrar em ação.
— Vamos almoçar primeiro — declara Grace, levantando-se do
sofá.
Pelo intenso aroma de pernil que toma conta da sala, a carne
está no ponto. Após uma manhã inteira a base de biscoitos, estou
mais do que faminta por comida de verdade.
— Por favor, vovó. Só uma voltinha — implora Peter, a face
tomada pelos olhos de cachorro pidão. Henry se junta ao filho,
tornando a tarefa mais difícil de resistir.
— Ahhh, vocês dois! Tudo bem, só uma voltinha enquanto coloco
a mesa.
— Eu ajudo a senhora — ofereço.
Emilly junta-se a nós. Em minutos ajeitamos os bonitos pratos
brancos decorados com ramos de azevinho sobre os jogos de mesa
enquanto a matriarca se ocupa de tirar a carne do forno. Com os
talheres e taças a postos, começamos o quebra-cabeça para
encontrar espaço para o pernil, o tender com molho agridoce,
batatas assadas, ervilhas frescas e salada de legumes. Uma garrafa
de vinho, e outra de suco de uva, são tiradas da geladeira, assim
como o eggnog, a tradicional bebida preparada com leite, açúcar,
gema e clara de ovos batidas polvilhada com especiarias. Afastamo-
nos para admirar o trabalho e assentimos para nós mesmas. A
mesa de Natal ficou linda.
— Crianças — grito, chamando os dois na sala. Pelas risadas
misturadas de Henry e Peter, o jogo está muito bom. — Venham, o
almoço está servido!
— Depois jogamos mais — diz Henry, pousando o seu controle
no sofá. O menino faz cara feia e ameaça começar uma birra, mas o
homem age rápido. Pega-o pela cintura e o coloca sobre os ombros,
fazendo com que as risadas continuem. — Pronto — acrescenta,
pousando Peter sobre o seu assento.
— Vamos jogar mais videogame depois?
— Sim, mas só se você se comer tudinho — pisca Henry, olhando
para mim. Confirmo com a cabeça, feliz em ver aquela pequena
regra da educação infantil sendo empregada com sucesso.
Todos nós nos sentamos. Henry de um lado de Peter, eu do
outro. O menino lambe os lábios ao encarar a comida, mostrando
que apesar da euforia com os presentes de Natal, está cheio de
fome. Grace pede que todos deem as mãos e faz uma rápida
oração. Fala tão baixo que as frases chegam incompletas em meus
ouvidos, finalizando com um amém repetido em coro.
Henry se adianta para cortar o imenso pernil quando a
campainha soa. Ele para no meio do movimento e entreolhamo-nos
de cenho franzido.
— Vocês convidaram mais alguém?
— Não. Talvez seja um vizinho precisando de alguma coisa —
comenta Grace, fazendo menção de se erguer da mesa.
— Pode deixar que eu atendo — digo, me levantando.
A campainha soa de novo, mais urgente dessa vez, e sou tomada
por um pressentimento estranho. Ignoro a sensação. Cruzo a sala e
paro no vestíbulo. Uma leve sombra pode ser vista pelo pequeno
vitral encrustado na madeira, mas é impossível dizer quem é.
Devagar, giro a chave e abro a porta.
— Alicia? — pergunta Hector.
Arregalo os olhos, completamente chocada. Ele balbucia feito um
peixe, a língua procurando palavras não ditas, os olhos azuis
cautelosos cheios de medo, os braços segurando firme uma caixa
de presente. Dou um passo para trás e consigo ver Hector por
inteiro. O pesado casaco disfarça, mas é nítido que perdeu peso. O
rosto encovado denúncia que, por algum motivo, o meu ex-marido
passou por maus bocados. Pela primeira vez desde que nasceram,
os irmãos gêmeos não se parecem em nada.
— Quem é? — questiona uma voz preocupada. Sinto a presença
maciça de Henry antes mesmo que ele se aproxime, o caminhar
largo o levando até o meu lado. — Alicia, está tudo bem? —
pergunta, olhando para mim antes de, enfim, olhar para fora.
Hector dá um passo para trás, mas não é o suficiente para conter
a montanha que se avoluma sobre si. Henry o puxa pela gola do
casaco e, antes mesmo que eu possa gritar “Não!”, esmurra o rosto
do irmão.
A força do soco do Henry é tamanha que sou jogado para trás. A
caixa com o presente de Peter escapa dos meus braços e caio de
costas sobre a neve macia. Ainda bem que ninguém se deu ao
trabalho de limpar o curto caminho até a rua, senão teria caído
diretamente no chão.
Não tenho tempo sequer de pensar em me levantar. Em
segundos, Henry está em cima de mim, afundando ainda mais o
meu corpo magro na neve. Alicia grita. Outras mulheres gritam, mas
é a voz de Luke que se sobressai em meus ouvidos. Ele pede,
histérico, que o meu irmão me solte, mas Henry parece além de
qualquer controle. Agarra o casaco pela gola e me chacoalha.
— Como ousa aparecer aqui, agindo na maior naturalidade,
depois de tudo o que fez durante esses seis longos meses? —
berra, armando um novo soco. Encaro-o sem medo. Sou merecedor
de toda porrada que quiser me dar, mas não vou admitir que
atrapalhe os meus planos.
— Eu fiz uma promessa ao meu filho — digo, sem tirar os olhos
dele. — Vim cumpri-la.
Aquilo o inflama, fazendo com que suas íris azuis queimem com
o mais puro ódio. Leva o cotovelo para trás e os gritos aumentam.
Luke tenta segurá-lo, mas Henry o afasta com brusquidão. Estranho
aquela atitude. Sempre fui o calmo da família, mas Henry nunca foi
brigão. Ele deve estar realmente puto para querer me bater.
— Ele não merece um pai como você — rosna. Fecho os olhos e
assinto em concordância, apenas esperando que o soco atinja o
meu rosto.
Mas o que me atinge não é o punho de Henry, mas sim uma
porção de água fria. O meu irmão berra qualquer coisa e me solta,
me jogando com força de volta à neve. O frio ultrapassa a proteção
do casaco e se envereda pelas roupas, atingindo a pele.
Ponho-me sentado, tremendo dos pés à cabeça, e vejo mamãe
caminhando para fora com as mãos na boca, visivelmente chocada
em me ver. Alicia, minha bela Alicia, apenas nos encara, assustada.
Emilly, com um balde vazio em mãos, parece prestes a ser um
ataque histérico.
— Vocês ficaram loucos? — grita, olhando de mim para Henry. —
Parecem dois cachorros brigando na rua!
Pisco, sem prestar atenção no que ela diz, focado no menininho
de quatro anos que observa a tudo da porta. O coração acelera e,
por um instante, penso que vou infartar. Senti falta de todos, mas
não consigo mensurar a falta que senti de Peter. Ele me encara, os
cabelos ruivos caindo por sobre a testa, do jeito fofo que Alicia gosta
de deixar. Parece bem mais alto do que me lembro, bonito que só, e
a vontade de abraçá-lo se torna uma necessidade de vida ou morte.
— Filho? — chamo, baixinho, estendendo os braços para ele.
Peter não se mexe. Olha de mim para o tio, cenho franzido,
completamente confuso, e a ficha cai. — Não! — gemo. — Vocês
não fizeram isso!
— Fizemos! — Henry grita, levantando-se de um pulo, as costas
do suéter completamente molhadas. Não estica a mão para me
ajudar a levantar. Pelo contrário, parece estar morrendo de vontade
de me enfiar ainda mais fundo no chão. — Já que você estava
sendo um pai de merda e queríamos muito dar um Natal feliz ao
Peter, coube a mim assumir a função!
— Vocês não tinham o direito! — grito de volta.
— Ei, a ideia foi minha! — intromete-se Emilly. — Você disse que
não voltaria, então qual alternativa nós tínhamos a não ser fazer o
Henry se passar por você?
O menino começa a chorar, não sei se pelos gritos ou se por toda
aquela confusão. Alicia corre para socorrê-lo, abraçando-o forte
contra o peito e levando-o para dentro.
Uma bola maciça de neve parece se alojar em minha garganta.
Os tremores se espalham pelo meu corpo, mas já não sei dizer se
são apenas de frio. Sinto os braços firmes de Luke ao redor do meu
tronco e, devagar, me ponho de pé.
Henry me dá as costas e também entra na casa. Basta que ele
suma para que mamãe se aproxime e me abrace.
— O que aconteceu com você? — pergunta, o rosto preocupado
contra o meu peito. — Está doente?
Abraço-a de volta, ciente de que talvez ela esteja sentindo cada
um dos meus ossos. Emagreci quase vinte quilos desde que
cheguei em Londres, cinco deles na última semana, tamanho era o
medo de voltar. Se eu visse Grace Chamberlain magra dessa forma
diria apenas uma palavra: câncer.
— Estou bem, mamãe.
— Não, não está — diz Luke, intrometendo-se na conversa com o
seu forte sotaque britânico. Ela e Emilly olham para o homem como
se, só então, tivessem se dado conta da sua presença. — Ele teve
algumas crises depressivas e está em tratamento.
— E por que não disse nada? — pergunta Grace, afastando-se o
suficiente para me encarar. — Nós perguntamos tantas e tantas
vezes como você estava, e você só disse que estava bem!
— Mãe…
— Poderíamos ter ajudado! — continua, ignorando qualquer
coisa que eu tenha a falar. — Nós poderíamos…
— Mãe — corto, segurando-a com carinho pelos ombros. —
Houveram dias em que eu nem conseguia levantar da cama, quanto
mais ter energia para contar tudo o que aconteceu.
Ela pisca, sem entender. Emilly olha com atenção para mim,
depois para Luke.
— E você, quem é?
Luke se encolhe um pouco enquanto solto um longo suspiro.
— Precisamos conversar.
Mamãe assente, o queixo tremendo não sei se de frio ou de
vontade de chorar. Não consigo mais encará-la, então abaixo a
cabeça, o peito preenchido de angústia, detestando o fato de estar
envolvendo todos eles naquilo. Puxo o casaco contra o corpo, mas
molhado como está, perdeu toda a capacidade de me aquecer. Luke
faz menção de tirar o seu, mas Emilly se adianta. Pega a caixa com
o presente do Peter e faz sinal para que entremos dentro de casa.
Desabo sobre a poltrona da sala de estar, exausto, tentando não
absorver as lembranças que o local me traz, mas é impossível. Foi
ali que passei alguns dos melhores dias da minha vida, antes do
tormento começar. Passo os olhos pela imensa árvore natural
decorada com os enfeites da infância, a estrela ainda dourada o
suficiente para brilhar no topo, mas logo os desvio, focando em
Peter sentado no sofá. Agora, ele me olha com curiosidade. Alicia
explica algo ao seu lado, um velho porta retratos em mãos,
enquanto Henry está ajoelhado à frente dos dois, parecendo
arrasado. Pela intimidade da cena, suspeito que se envolveram
além do esperado.
— Por isso você estava mais feliz. — O menino comenta,
acrescentando mais uma rachadura ao meu coração.
Emilly coloca a caixa de presente ao meu lado e sobe para o
andar superior enquanto Henry se levanta, engancha os dedos na
barra da roupa e, devagar, ergue o suéter molhado, exibindo o corpo
cheio de tatuagens.
— É, por isso — diz, chateado. — O meu nome de verdade é
Henry e sou apenas o seu tio. Aquele ali — aponta. — É o seu pai.
Nós somos gêmeos idênticos — o menino franze o cenho, como se
não conhecesse aquela última palavra, e ele se adianta para
explicar. — Isso quer dizer que somos iguais.
— Vocês não parecem iguais — retruca, avaliativo, me olhando
dos pés à cabeça. Mordo os lábios, sem saber o que fazer.
Emilly retorna com um cobertor e duas blusas. Joga uma para
Henry e a outra para mim, estendendo as mãos para me ajudar a
tirar o casaco. Permito que o faça, mas me viro de costas, pouco
animado em exibir o meu físico. Ainda assim, Alicia solta uma
exclamação de surpresa quando puxo a blusa e exibo as costas
magras. Visto-me o mais rápido possível, enrolo-me no cobertor
quentinho e volto a desabar na poltrona. O meu irmão se senta ao
lado do Peter, bem onde eu gostaria de estar.
Grace, sem saber o que fazer, roda de um lado para o outro feito
um pião desgovernado, até que decide se sentar ao lado de Alicia. A
minha esposa, ou talvez ex-esposa seja o termo mais apropriado
depois do terrível e-mail que lhe enviei, me encara com um misto de
preocupação e ressentimento.
— Quem era a mulher da foto? — pergunta, de supetão, atraindo
a atenção de todos. Arregalo os olhos, confuso. — Eu vi a foto que
você postou nos stories e…
— Não se faça de idiota — rosna Henry. — Todos nós vimos!
— Que foto… Ah, da Chloe? — Alicia faz que sim, a expressão
mais ressentida do que nunca, e percebo a merda que fiz. — Oh
céus, você pensou que…
— Queria que eu pensasse o quê, Hector?
Sua voz sai sofrida, mas a postura é firme, de quem está prestes
a superar a questão por completo. Henry passa o braço pelos seus
ombros, possessivo, confirmando o que suspeitei minutos mais
cedo: eles estão juntos. Estou longe de poder julgar, mas ela
precisava se relacionar justo com o meu irmão cafajeste? Respiro
fundo, tentando me acalmar, e deixo para me preocupar com isso
depois. Agora, preocupa-me tomar conhecimento de mais uma dor
que possa ter lhe causado.
— É minha irmã. — Luke se intromete. Tira o celular do bolso de
trás da calça e se aproxima dos dois. — Foi no aniversário dela —
explica, mostrando a tela com outras fotos. — Saímos para
comemorar em um pub e arrastamos o Hector junto, em uma
tentativa de animá-lo. Chloe é meio… — faz uma pausa, na dúvida
de como chamar a irmã. — Exuberante demais, digamos. É
influencer de moda e acha que todo mundo deve ser influencer,
também.
— Ela insistiu tanto para que eu colocasse uma foto nos stories
— digo, desanimado. — Estava tão mal naquele dia que não pensei
na confusão que poderia causar. Simplesmente coloquei para que
ela me deixasse em paz.
Vejo os olhos de Henry se acendendo.
— Então era você que estava no fundo da foto! — Meu irmão o
reconhece. Alicia franze o cenho, sem entender nada. — Talvez
você não tenha visto, mas havia um segundo homem na imagem.
— Eu não vi — confirma Alicia. — Fiquei tão abalada que…
— Mesmo que tivesse visto, não teria como saber — comento.
— E você, quem é? — Henry questiona, encarando Luke.
Emilly se senta no sofá e cruza os braços, esperando a resposta
da mesma pergunta. O homem se encolhe e volta para o seu posto
ao meu lado. Não o culpo. Qualquer um se encolheria diante do
olhar assassino do meu irmão. Prendo o ar por três segundos, igual
ao ensinado pela terapeuta, e solto-o devagar pela boca.
— Vou explicar quem ele é, mas preciso que vocês tenham um
pouquinho de paciência — começo, lançando um olhar para Luke.
— Não é ótimo estar de volta, filho? — Mamãe pergunta, cheia
de carinho. — Estou tão feliz! Sabia que ainda teríamos um Natal
nesta casa que nos traria tantas lembranças felizes e…
— Não — corto. Luke aperta o meu ombro, dando-me forças. —
Há muito essa casa deixou de trazer qualquer lembrança feliz.
Todos me encaram, atentos. Até Peter. Penso se aquela é uma
conversa séria demais para uma criança de quatro anos, mas ele
sempre foi esperto. Por mais que o emocional esteja em frangalhos,
o racional sabe que ele só não está me reconhecendo porque me
afastei por seis meses e Henry chegou justamente quando ele mais
precisava. Ele vai entender, sei que vai. Só espero que aceite.
— E por quê? — pergunta Emilly. Encolho os ombros e os
encaro, um a um.
— Sério mesmo que vocês nunca perceberam algo diferente? —
Todos, com exceção de Peter, fazem que não. Solto um longo e
cansado suspiro. Estremeço, de medo, frio e vergonha. Ah, a
vergonha. Começo a recitar, como um robô, em uma tentativa de
pôr fim àquilo. — No nosso último Natal aqui, papai me pegou no
maior amasso na garagem.
— Ah, ele me pegou uma vez também. — Henry comenta.
— Pois é — digo, amargo. — Mas ele me pegou beijando um
garoto.
Um curto “Ohhh!” escapa da boca de alguém. Todos me encaram
com os olhos arregalados. Mordo os lábios e abaixo a cabeça, o
rosto tomado por um desconfortável calor.
— Um garoto? — pergunta Grace. Confirmo com a cabeça e um
novo “Ohhh!” flutua pela sala.
Luke aperta o meu ombro de novo e penso se todos já somaram
um mais um. Se somaram ou não, preciso continuar.
— Sentia-me atraído pelas garotas, mas pelos garotos também
— continuo. — Gostava de ficar com elas, mas o desejo só crescia
e, enfim — dou de ombros, sem querer prolongar o assunto além do
necessário. — Quando pintou o clima com um dos Andersons, eu
me deixei levar. E o papai descobriu.
— E ele fez o quê? — É a vez de Emilly questionar.
Fecho os olhos. É como se toda a cena se desenrolasse de novo
à minha frente.
— Papai agarrou o garoto pela nuca, o jogou do outro lado da
garagem e mandou que sumisse dali. Depois, se voltou contra mim.
Pela primeira vez na vida pensei que fosse me bater, mas não
bateu. Continuei deitado no chão, com medo de levantar. Ele disse
apenas cinco palavras com a voz enojada: você é uma vergonha,
Hector.
Vergonha.
Essa pode se tornar uma palavra pesada, mas aos quinze anos,
dita para um adolescente inseguro sobre a sua sexualidade, ela se
tornou pesada demais. Papai era o homem que eu mais admirava. A
forma como aquelas poucas palavras foram ditas, misturadas ao
olhar de desprezo e a postura repulsiva, como se eu fosse um
inseto nojento digno das profundezas de uma tubulação de esgoto,
piorou toda a situação. Não preciso me esforçar para ouvi-lo
repetindo cada uma delas.
— Foi por isso que você ficou tanto tempo lá. — Emilly comenta,
lembrando-se do episódio.
— Foi. Papai me deixou sozinho na garagem, onde permaneci
por uns trinta, quarenta, cinquenta minutos, não sei dizer. — Todos
me olham, espantados. — Só sei que Emilly apareceu dizendo que
estavam me procurando. Voltei para o interior da casa com o rosto
quente, sem saber se papai havia dito algo. Logo descobri que não,
mas o seu olhar gritou, claro como a água, que seria a última vez
que toleraria aquele comportamento.
— O papai não teria feito isso — começa Henry, indignado.
— Pois ele fez — reafirmo, convicto. — Talvez você não se
lembre, mas ele sempre foi um homem rígido.
— Eu me lembro, sim! Mas ele não seria rígido a ponto de…
— Mas ele foi! — berro, erguendo-me da poltrona. Ajeito a
coberta sobre os ombros e encaro Henry. Quem está furioso agora
sou eu. — Ele talvez não fosse tão rígido com você, o filho
extrovertido que chegava em casa rindo ao contar sobre todos os
amigos populares que tinha, ou todas as garotas que pegava! — O
seu rosto fica vermelho como o de um tomate e ele olha de soslaio
para Alicia. Ela me encara, impassível. — E o que eu tinha para
contar? Que passei o intervalo trancado na biblioteca estudando
com a intenção de lhe mostrar um boletim apenas com A enquanto
você — aponto, acusador. — podia chegar com um C e ser recebido
de braços abertos quando eu recebia olhares atravessados diante
da mera ameaça de um B!
Henry me encara, mudo, e volto a me sentar.
— Eu jamais tive a chance de sair da linha — continuo, bem
baixinho. — E no único dia em que fiz isso, em uma tentativa de
descobrir quem era, fui pego.
— Por que você não me contou? — pergunta Emilly.
Dou de ombros. Eu e ela nos dávamos bem, sei que poderia ter
contato. Mas, no fundo, algo me dizia que ela podia comentar com
Henry. Sempre caguei para a opinião do meu irmão, mas queria que
ele soubesse. E, principalmente, que mamãe descobrisse. Já
bastava viver sob o peso da vergonha do meu pai, seria demais
viver sob a dela também.
— Porque eu sentia vergonha — digo, simplesmente.
Quando papai morreu, seis meses depois, decidi que esqueceria
aquilo de uma vez por todas. Na época não entendi que talvez ele
passasse tanto pano para Henry porque era seu filho favorito. Só
entendi que precisava honrar a sua memória, tornando-me tão digno
quanto ele foi, e faria isso sem envergonhá-lo.
Continuei a estudar com afinco e fui admitido na Universidade de
Columbia. Ignorei o fato de que Henry, mesmo se empenhando
menos, tenha conseguido o mesmo. O meu foco era me formar com
honras, conseguir um bom emprego e construir a minha própria
família, exatamente como o meu pai fizera.
— Pensei que a vida na universidade seria fácil, mas não foi —
continuo. — Saia com algumas garotas, gostava delas, mas também
queria sair com os rapazes. Decidi focar no hóquei, mesmo que o
assédio das maria patins fosse incômodo. Pelo menos, para mim.
Os outros caras se esbaldavam com a quantidade de mulheres
dispostas a se entregar a eles — Henry morde os lábios. Mesmo
ele, como reserva, tinha a garota que quisesse aos seus pés. —
Mas eu gostava tanto de treinar que não me importava. Segui
assim, até o capitão do time desconfiar.
— Ele desconfiou? — Henry pergunta e confirmo com a cabeça.
— O que você fez?
— Nada, mas ele disse que ou eu saia, ou ele espalharia pela
universidade inteira — recordo. Na época fiquei arrasado. Agora,
aquela é só mais uma triste lembrança.
Os anos seguintes foram miseráveis. Eu vivia entre as salas de
aula e a biblioteca. Não tinha amigos. Preferia não tê-los a correr o
risco de me sentir atraído por eles. Apenas no último ano uma
fagulha de esperança cruzou as largas portas da biblioteca e
acendeu uma chama adormecida. Encaro o rosto de Alicia. O
ressentimento desapareceu do seu semblante, sendo substituído
por pena.
— Nunca vou me esquecer da primeira vez que te vi, caminhando
tranquila pelos corredores da biblioteca, em busca de um lugar para
se sentar. — A sombra de um sorriso cruza os seus lábios, os
bonitos olhos castanhos se enchendo de lágrimas. — Se eu fosse
apenas um pouquinho corajoso teria te chamado, mas covarde
como sou, esperei que você visse o lugar vazio ao meu lado. Ainda
assim fiquei sentado feito um idiota, sem entender por que o meu
coração estava tão acelerado — sorrio, meio triste, mas feliz
também. Aquela é uma lembrança que gosto de recordar. — Eu me
apaixonei por você à primeira vista, Alicia.
— Por que não disse nada? — pergunta. Espero que ela
acrescente um “E por que fez o que fez?”, mas sua dúvida atual é
apenas essa. — Você só se declarou depois que tropecei e derrubei
os desenhos.
— Insegurança, talvez? Não sei — encolho os ombros e ela
assente, compreensiva. Alicia sempre foi tímida e, de alguma forma,
um inseguro reconhece o outro. — Só sei que pela primeira vez em
muito tempo eu tinha um motivo para ficar feliz — olho de soslaio
para Henry.
Não são necessárias palavras para dizer por que fiquei tão puto
quando ele a beijou. O soco foi por fazê-lo sem consentimento. Todo
o resto foi por medo dele conseguir tirar de mim a única garota que
fez o meu coração bater com vontade.
— O sentimento foi de verdade — admito, olhando diretamente
para Alicia, incapaz de conter a voz embargada. — Juro que foi de
verdade. E os primeiros anos foram maravilhosos, não foram? —
Ela morde os lábios e confirma com a cabeça. — Porque eu
realmente estava ali, conectado com você. Mas de repente não
estava mais. Passei a me esforçar, tentei reacender a antiga chama,
mas foi em vão. Aos poucos a minha infelicidade fez você infeliz, e
só não pedi o divórcio antes de viajar porque pensei que os meses
longe pudessem nos reaproximar. O “problema” — faço aspas com
os dedos, para enfatizar — foi que, pela primeira vez longe de todos
que eu poderia envergonhar, eu me senti livre para ser quem eu
quisesse.
Olho para o homem ainda de pé ao meu lado. Luke assente e
tomo forças para terminar aquela história.
— Conheci Luke enquanto bebia sozinho em um pub londrino,
em minha segunda semana na cidade. Assim como o capitão do
time de hóquei, ele também desconfiou, mas ao invés de me
ameaçar, Luke me acolheu. — Sorrio, da mesma forma como fiz
com Alicia. — Eu me sentia triste e solitário, culpado por me sentir
assim, mesmo tendo uma família maravilhosa me esperando do
outro lado do mapa. Mas o coração bateu mais forte e, ao dar por
mim, estava completamente apaixonado.
Ninguém se mexe. Ninguém nem ao menos pisca. Olho,
temeroso, para Peter, mas o menino está entretido analisando cada
ponto do rosto bonito do meu namorado. Luke acena e o menino
acena de volta.
— Por isso você demorou tanto tempo para voltar? — pergunta
Alicia, cautelosa. Faço que não.
— Estava tecnicamente pronto para voltar quando o final do
primeiro mês se aproximou. Tinha tudo planejado: voltaria, te
contaria e daríamos um jeito. Mas não estava pronto para a imensa
vergonha que me dominou. Como eu iria te encarar? — A voz falha,
mas me forço a encará-la, pelo menos daquela vez. — Como eu iria
encarar qualquer um de vocês?
Enfim, escondo o rosto entre as mãos e desabo, meses e meses
de aflição enfim liberados. A terapeuta disse que eu me sentiria
mais leve ao contar, mas ela mentiu. O imenso peso em meus
ombros continua, denso feito chumbo. A vontade é de abrir a porta,
correr de volta à neve e desaparecer.
— O Hector estava no aeroporto, pronto para embarcar, mas teve
uma crise. — diz Luke, bem baixinho, a voz suave e tranquilizadora.
— Ele ficou muito mal.
Muito mal é pouco para descrever aquelas primeiras semanas em
que eu não comia e nem levantava da cama. Depois de tantos anos,
sentia que absolutamente tudo havia caído sobre mim. Não fosse
pelos cuidados de Luke e a vontade de rever Peter, teria desistido.
Por mais longe que eu estivesse, o meu filho era a luz do farol que
eu precisava alcançar a quilômetros e quilômetros de distância.
— É isso — finalizo, a voz saindo abafada. — Ainda estou me
descobrindo, mas aparentemente sou bissexual, com preferência
por homens.
Todos me encaram em silêncio. Quero explicar os detalhes,
contar mais sobre aqueles seis meses, mas não agora. É demais
para um dia só e sei que por enquanto aquilo é mais do que o
suficiente. Há outra coisa que eu preciso dizer, com tamanha
urgência que seria capaz de explodir.
— Eu realmente sinto muito — abaixo as mãos molhadas do
rosto. Olho um a um até chegar em Peter. Devagar, pego o presente
que Emilly deixou ao lado da poltrona. Ergo-o nos braços. — Filho,
por meses você pediu um videogame, mas fui egoísta em não lhe
dar. Comprei um agora, aquele que você queria — acrescento,
estendo a caixa embrulhada, torcendo para que a queda não tenha
quebrado nada. — Comprei com aquele jogo de corrida com o
Mario. É do Mario que você gosta, não é? — pergunto, inseguro.
Peter pisca e vejo a confusão no seu rosto indo embora. Olha
para o tio, como se precisasse ter certeza, e pula para fora do sofá.
Henry o empurra, gentil, encorajando-o a vir até mim. E Peter vem.
Com cuidado, tira o videogame das minhas mãos e o coloca no
chão antes de subir no meu colo. Encara-me, olho no olho, e sorri.
— Obrigado, papai.
Sorrio de volta e o abraço. Instantaneamente todo o peso, dúvida,
medo ou vergonha acumulados em meses, ou melhor, anos de
aflição, vão embora. Desde que Peter esteja comigo, eu estou em
paz.
Observo Peter abraçado com o pai de verdade e tento absorver
todas as informações despejadas naquela conversa. Ela, pelo
menos, explica muita coisa. O semblante fechado, o ar calado, a
melancolia inerente, até a falta de desejo sexual. Hector viveu infeliz
durante anos negando a si mesmo. Aquele é um fardo muito pesado
para se carregar sozinho.
Se alguém perguntar nesse exato momento como eu me sinto,
não vou saber responder. Uma mistura gigantesca de emoções
circula desgovernada no meu peito, mas pelo menos estou aliviada.
Hector está de volta. Longe do seu melhor, mas de volta. Parte das
preocupações foram embora.
Grace Chamberlain se junta ao abraço e os três riem, juntos,
suas risadas reverberando pela casa. Parece ser a deixa para Emilly
acrescentar os seus braços no abraço coletivo enquanto Henry
apenas observa, olhos fixos na cena que se desenrola à frente. Por
pouco não escuto as engrenagens do seu cérebro girando, mas
permanece calado, pensativo.
— Por que você comprou esse videogame se o Papai Noel
entregou o outro? — Peter pergunta, apontando para o aparelho
instalado no móvel da TV. Hector lança um rápido olhar para Henry
antes de responder.
— Porque… ah… — pensa.
— Pensei que fossem de graça. — O menino comenta ao descer
do colo do pai. Abre a embalagem e pula no mesmo lugar, assim
como fez com presente do tio. — O Papai Noel cobra uma taxa?
— Ah… cobra — Hector resume. — Podemos deixar um aqui, já
que você ganhou dois — comenta, meio sem graça.
Os pulinhos de Peter se intensificam, demonstrando que gosta da
ideia. Solto um suspiro, aliviada. Desde que eu e Henry topamos a
troca de gêmeos, mantendo segredo do menino, evitei pensar como
seria o momento em que precisaria explicar a ele todo aquele rolo.
Em nenhuma das vezes em que meu cérebro foi invadido por esses
pensamentos, Henry e Hector estariam juntos. Passado o susto
inicial, Peter parece bem. Encara o pai com curiosidade.
— Então quer dizer que você gosta de meninas e de meninos?
Hector me lança um olhar com o mais puro pânico, mas se ele
não sabe conduzir aquela conversa, eu muito menos. O suor frio
começa a brotar na sua testa. Respira fundo e toma uma nova dose
de coragem.
— Sim — diz, com a voz mais firme que consegue manter.
Engole em seco e continua, como se precisasse urgente de uma
confirmação. — Está tudo bem para você, filho?
— Está sim — sorri. — Agora podemos jogar videogame?
Solto o ar que nem sabia que estava prendendo enquanto Henry
deixa escapar uma estrondosa gargalhada. Aquilo melhora o clima
de um jeito que não sei nem explicar. Todos, automaticamente,
parecem se sentir mais leves.
— As crianças são tão simples — ri, sem conseguir se conter. —
Os adultos é que complicam as coisas.
— Concordo — Emilly bagunça o cabelo do sobrinho.
Hector sorri de leve, encontrando o meu olhar.
— Adoraria jogar, mas eu e a sua mãe precisamos conversar. Em
particular — acrescenta.
Henry intensifica o aperto em meus ombros antes de me soltar.
Lanço-lhe um olhar agradecido e me levanto, indo em direção às
escadas. Hector faz o mesmo, erguendo-se devagar da poltrona.
Sinto-o nas minhas costas, me seguindo com seus passos
silenciosos escada acima. Penso em abrir qualquer porta do
corredor, em busca de um possível escritório, desconfortável em
conversar com ele no quarto que estou dividindo com Henry, mas o
escritório parece frio demais para uma conversa entre marido e
mulher. Acabo abrindo a porta do quarto mesmo, dando espaço
para Hector entrar.
Ele agradece com um aceno de cabeça e, devagar, arrasta a
coberta para dentro, deixando-se cair na beirada da cama. Olha
para os lados, assimilando as bolsas de viagem juntas, as roupas
misturadas e toda a intimidade compartilhada com o seu irmão.
Agradeço mentalmente por ter recolhido a lingerie rasgada antes de
descer e Henry ter estendido o edredom sobre a cama. A visão de
lençóis revirados poderia tornar tudo ainda mais constrangedor.
Algumas gotas escapam do cabelo molhado de neve e deslizam
preguiçosas pelo rosto de Hector. Fecho a porta às minhas costas e
corro para o banheiro da suíte em busca de uma toalha. Ele sorri
quando deslizo o tecido felpudo pela sua cabeça, tentando secar os
fios. A lateral do rosto começa a inchar pelo impacto do punho do
irmão.
— Você sempre cuidou bem de mim — murmura, me encarando
com os tristes olhos azuis.
Assim, tão próximos, consigo ver cada traço do seu semblante
abatido. Se antes da sua aparição eu estava pronta para jamais
voltar a olhar na sua cara, agora meu coração se aperta de
compaixão.
— Sempre tentei dar o meu melhor — murmuro de volta. Hector
assente, solta um longo suspiro cansado e abaixa a cabeça.
— Enquanto eu só te dei motivos para me odiar.
— Não te odeio, Hector — ele balança a cabeça, sem acreditar.
Ajoelho-me à sua frente e o obrigo a olhar para mim. — Estou
falando sério. Você poderia ter feito as coisas de um jeito diferente
— confesso. — Mas entendo por que fez como fez. Não deve ter
sido fácil conviver com essa dúvida durante todos esses anos, mas
éramos casados. Você podia ter confiado em mim.
— Sei disso, mas… — encolhe os ombros, mais cansado do que
nunca. — Como um homem fala para a esposa que, na realidade,
acha que é bissexual e sente desejo por outros homens? Ou como
explicar isso para o meu filho pequeno?
— Você explicou agora e ele entendeu, não entendeu? —
pergunto com a voz cheia de simpatia. Hector morde os lábios. —
Poderia ter explicado para mim também.
— Eu sei. No fundo, eu sei. Mas estava tão empenhado em ser o
marido americano padrão que simplesmente…
Hector ajusta as cobertas em torno do corpo magro, voltando a
desviar os olhos. Desconfortável na posição em que estou, sento-
me ao seu lado, o colchão afundando sob o nosso peso.
— Senti a sua falta — confesso. — Muito.
— Acredite, eu também — diz, se encostando-se em mim. Os
tremores passaram e ele parece bem quentinho.
Permanecemos alguns instantes em silêncio, apenas curtindo a
presença um do outro. Sorrio para mim mesma, lembrando como
aqueles momentos de quietude eram constantes em nossa casa,
mas nunca desconfortáveis. Às vezes ficávamos horas sentados na
ilha da cozinha. Eu desenhando, ele fazendo hora extra no
notebook, Peter dormindo no andar de cima.
— Não esperava essa reviravolta em relação a Chloe — começo,
sentindo-o encolher ao meu lado. Se pudesse, acho que
desapareceria debaixo do colchão, mas essa conversa precisa ser
cem por centro franca para dar certo. — Pensei que estava há todos
esses meses te esperando enquanto você me traia com ela, Hector.
— Juro para você que não estava. Quer dizer… — acrescenta,
cauteloso. — Eu traí, sim. Mas com o Luke.
— É diferente.
— Diferente por quê? Só porque ele é homem?
— Não. Porque você tinha uma questão profunda para lidar —
confesso, torcendo para que aquilo soe da maneira correta. — Só
queria que você tivesse falado comigo antes. Fiquei completamente
sem chão quando recebi o e-mail e, depois, quando vi a foto nos
stories.
— Sinto muito — diz, a voz embargada. — Eu me arrependi
daquele e-mail assim que cliquei no “enviar”. Poderia ter te
mandado outro, explicando que conversaríamos melhor quando
voltasse, mas estava tão mal que não sabia quando aconteceria e…
— Engole em seco, sem saber como continuar. Seguro a sua mão,
dando-lhe força. Hector aperta os meus dedos e prossegue. — No
fundo, não queria que ficasse presa a mim, mas não consegui me
expressar nem em relação a isso.
— Bom, pelo menos conseguiu agora — sorrio. Ele se esforça
para sorrir de volta, mas a preocupação toma conta do seu rosto.
— Você só poderia ter escolhido alguém melhor que o meu
irmão. A menos que tenha mudado, Henry era um mulherengo sem-
vergonha. — Hector me encara, de repente cheio de força, como se
ele próprio estivesse pronto para esmurrar o gêmeo. — Não quero
que ele te machuque, Alicia.
— Emilly já disse coisa parecida, e garanto que jamais tivemos a
intenção de ficarmos juntos. Não acho que ele vai me machucar —
digo, um pouco sem graça, desviando para longe o pensamento de
que, em breve, Henry irá embora. — Eu odiei toda essa ideia de
troca de gêmeos. Só aceitei por causa do Peter. Depois, bem…
aconteceu.
— Igual eu e o Luke — deixa escapar. O ar divertido foi embora
ao voltar a me encarar, os olhos trêmulos de medo. — Eu realmente
sinto muito, Alicia. Por tudo.
— Você o ama? — pergunto baixinho. Hector aperta a minha mão
e faz que sim. — Então está tudo bem.
— Só isso? Você não vai esbravejar? Ou me xingar, ou tacar
coisas? Esmurrar o meu rosto? — parece ansioso para que eu faça
qualquer uma daquelas ações. Limito-me a negar com a cabeça. —
Por que não?
— Porque eu não sou assim, e você sabe disso. — Ele confirma
com a cabeça. — Não estou com raiva de você. Poderia ter lidado
com tudo isso de outra forma? Sim, mas não posso te julgar. Só
você sabe a dor que sentiu. A raiva ficou para trás — acrescento,
sincera, tirando uma mecha de cabelo do seu rosto. — Estou feliz
que, finalmente, você tenha se encontrado e voltado para nós.
Desde que entrou na casa, Hector parecia encurvado, como se
carregasse incontáveis fardos cheios de chumbo nos ombros. Um a
um, os fardos caíram, e aquilo parece despencar os que ainda
restam.
— Você me perdoa? — A voz sai em um fiapo. O homem abatido
que me encara parece um rapaz dez anos mais novo, inseguro,
temeroso da resposta que pode obter. Respiro fundo, pronta para
fazer a pergunta que vem apertando o meu peito.
— Antes me responda uma coisa, e preciso que responda com
sinceridade. — Ele me encara, mais ansioso do que nunca,
enquanto o meu coração martela as costelas e o medo desliza pela
coluna. Forço-me a encará-lo e disparo. — Você me amou de
verdade?
Nada em Hector hesita. Pousa os lábios nos meus em um beijo
delicado. Há amor ali. Muito. Mas o desejo foi embora. Nem a
mínima partícula do meu corpo se acende como acontece durante
os beijos com Henry, em que tudo à nossa volta parece prestes a
entrar em combustão.
Interrompo o beijo e Hector encosta a testa fria na minha, nossas
respirações quentes se misturando no quarto silencioso.
— Amei — confirma. — E uma parte minha sempre vai te amar.
Mas…
— Agora amamos outras pessoas — completo, com um sorriso.
Ele sorri de volta, mais firme dessa vez. Seguro o seu rosto com as
mãos, fazendo um carinho nas bochechas cobertas pela barba por
fazer. — Eu te perdoo — declaro, bem baixinho.
Em um engasgo angustiado, ele liberta o que estava preso em
seu peito. Hector me puxa em um abraço apertado e cai no choro.
Abraço-o de volta e massageio as suas costas, sentindo-me leve.
Não há como ser diferente, e estou grata por aquilo.
— Obrigado — consegue dizer. — Muito obrigado.
— Não há o que agradecer.
— Há sim, Alicia — ele se afasta e me encara. Cheio de
delicadeza, estende o polegar e limpa uma lágrima no meu rosto,
ignorando o próprio, todo molhado. — Já deve ter dado para
perceber que estou em tratamento para depressão — confirmo com
a cabeça e ele continua. — Eu perdi o meu emprego. Tomo três
remédios por dia. Dei mancada com todo mundo. Deixei você triste
e quase quebrei uma promessa feita para o meu filho. Foi difícil
voltar porque além de sentir vergonha, não sabia o que iria
encontrar. Mas jamais imaginei encontrar tanta compaixão.
— Então você se esqueceu da família que tem. Sua mãe quase
mandou um detetive atrás de você. Todos nós ficamos muito
preocupados — ele ergue uma sobrancelha e sei de quem está
desconfiado. Acrescento, rápida — Até o Henry.
— É difícil de acreditar.
— Acredite — faço um carinho na sua bochecha molhada
enquanto ele revira os olhos. Não resisto a rir. Henry reviraria os
olhos pelo mesmo motivo.
— E… ele está cuidando bem de você e do Peter? — questiona,
sem jeito.
— Está sim.
— Fico feliz em saber — suspira, visivelmente aliviado.
— Assim como eu fico feliz em saber que o Luke está cuidando
bem de você.
Hector sorri daquele jeitinho tímido dele, e me lembro de um dos
motivos pelo qual me apaixonei pelo homem calado da biblioteca.
Todo o meu ressentimento foi embora e fui sincera ao dizer que sim,
o perdoo do fundo do coração.
— Sabe do que eu tinha mais medo? — Ele pergunta. Faço que
não. — Que você me impedisse de ver o Peter.
Mordo os lábios, mas a risada escapa, alta e estridente. Ele
franze o cenho, sem entender nada, mas aguarda em silêncio. Logo
consigo me controlar.
— E eu que você o tirasse de mim. Cheguei a pensar que seria
expulsa de casa e teria como única alternativa voltar a morar em um
trailer.
Hector empalidece. Sabe o quanto aquilo me traumatizou durante
a infância.
— Eu jamais separaria vocês dois!
— E eu vocês dois.
Os olhos de Hector voltam a se encher de lágrimas. Aquilo
visivelmente significa muito para ele. Um Papai! abafado soa do
outro lado da porta e o homem se ergue de um pulo, arrastando a
coberta atrás de si. Gira a maçaneta e dá de cara com Henry e o
filho segurando um controle de videogame.
— Pedi para ele esperar vocês desceram, mas… — o meu
cunhado dá de ombros.
— Vamos jogar? — Peter ignora o que ele está falando e pula,
animado. O sorriso de Hector aumenta quando deixa a coberta cair
pelas suas costas e se abaixa para pegar o menino no colo.
— Vamos — dá um beijo estalado na bochecha do filho, mas
encara o irmão. — Obrigado.
Vejo Henry arregalando os olhos. Ele sabe pelo o que está sendo
agradecido. Hector talvez dissesse: ei, não precisa agradecer. Mas
Henry não é Hector, Hector não é Henry. Ele aceita os
agradecimentos e, sem dizer nada, abraça o irmão. Peter ri no meio
dos dois e não resisto a rir também. Agora, tudo vai ficar bem.
Descemos as escadas juntos. Hector e Peter na frente, eu e
Alicia atrás. Ela passa o braço pelo meu e sei que está tudo bem.
Aquilo aquece o meu coração de tantas maneiras que não sei nem
ao menos explicar. Passado o ódio inicial por rever Hector depois de
tudo o que ele fez, o que sobra após a sua longa explicação é
compaixão.
Emilly me encara do outro lado da sala e sei que está pensando o
mesmo: nós poderíamos ter percebido. O fato de Hector ter se
fechado em si mesmo, tornando-se cada vez mais calado, não
colaborou com a situação, mas somos irmãos, porra. Irmãos se
ajudam.
— Hector? — Ele olha por sobre o ombro. — Desculpe.
— Pelo soco? Não se preocupe, está tudo bem. Eu mereci e…
— Não, não mereceu — corto. — Na realidade, peço desculpas
por tudo. — Olho de soslaio para Alicia, lembrando do episódio na
universidade. — Já me desculpei com ela, também.
— Está tudo bem — repete, convicto. — É impossível mudar o
passado, Henry. Mas podemos fazer diferente no presente.
Ele com certeza ouviu aquilo da terapeuta. Concordo com a
cabeça e estendo a mão em um cumprimento respeitoso, como se
selássemos um trato. Hector a aceita, apertando a palma com
firmeza. Instantaneamente me sinto mais leve.
— A Alicia já contou que estamos juntos? — questiono, antes de
soltá-lo. Hector faz que sim. — Ótimo, então não precisaremos
brigar nunca mais — acrescento, em tom de brincadeira. Alicia
revira os olhos.
— Você não tem jeito.
— Não, não tem — intromete-se Emilly.
— A menos que você a trate mal — Hector menciona, muito
sério, indo para perto de Luke. — Aí terei motivos para brigar.
— Vamos ou não vamos jogar videogame? — Peter, meio irritado,
corta a conversa. Coitado. Esperou pelo videogame por tanto
tempo. O mínimo que pode desejar é jogá-lo em paz.
— Depois que todos almoçarem — diz mamãe, tomando o
controle da sua mão. O menino fecha a cara e ameaça chorar. Ela
devolve a carranca, as mãos na cintura. — Você vai ter o restante
do dia para jogar com o seu tio e o seu pai!
— Mas eu quero jogar agora!
— Depois — digo, empurrando-o para a cozinha. Seu rosto é
tomado por um bico de tucano. — Vamos, seja bonzinho. Senão o
Papai Noel leva os seus presentes embora.
— Leva nada!
— Leva sim!
— Leva não! — A voz se torna chorosa e preciso morder os
lábios para não rir.
— Às vezes eu me pergunto quem realmente tem quatro anos
nessa família — Alicia comenta. Cutuco as suas costelas e ela se
desvencilha, tão brava quanto o menino. Hector observa com
curiosidade. Duvido que eles fizessem esse tipo de brincadeira.
Voltamos à mesa e mamãe leva as fatias cortadas de pernil para
o forno micro-ondas. Emilly engata a conversa que estava tendo
com Luke na sala. Enquanto o casal conversava no quarto, ele
revelou que é enfermeiro em uma clínica londrina. Foi o que bastou
para que a minha irmã o questionasse sobre a realidade das séries
médicas que assiste nos streamings, descobrindo outro viciado por
Grey's Anatomy. Os dois debatem os episódios e riem juntos, a
conversa acalorada de quem se conhece há anos, não apenas
alguns minutos.
Observo o enfermeiro com atenção, constatando como é um
homem atraente. Talvez três ou quatro centímetros mais baixo do
que eu e o meu irmão, cabelos loiros escuros cortados curtos, olhos
castanhos esverdeados e simpáticos.
Meio acanhado, Hector se senta também. Dá para perceber que,
apesar de tudo, está pouco à vontade. Peter faz questão de sentar-
se ao seu lado, perninhas balançando para fora da cadeira, e me
encara, esperando que eu me sente do lado vazio. Sorrio para o
menino e assim o faço, bagunçando o seu cabelo em seguida. Ele
ri, pega o garfo e a faca diante de si e começa a batucar no prato.
Apesar de estar ansioso para jogar videogame, toda aquela
agitação parece ter lhe dado bastante fome.
Meu irmão olha para o filho com tamanha devoção que, por um
instante, sinto-me mal por ter me passado por ele. Alicia senta-se ao
meu lado e instantaneamente a sensação vai embora. Em um
multiverso de possibilidades talvez ainda estivéssemos brigados. Ali,
estávamos juntos.
— Você não se incomoda mesmo? — Hector pergunta de
repente, intrigado. Primeiro penso “Com o que?” quando a ficha cai.
Faço que não.
— A vida é sua, Hector. Por que eu me incomodaria? — ele dá de
ombros. — Sabe o que me incomoda? Você ter sido infeliz por
tantos anos por conta de uma atitude preconceituosa do nosso pai.
— A mim também — intromete-se Emilly. — Não sei o que pensar
sobre ele agora.
Assinto em concordância, infiltrado no mesmo dilema que o da
minha irmã. Em um instante todos os bons momentos passados ao
seu lado perderam um pouco de brilho ao saber que, por conta dele,
a luz do meu irmão se tornou mais fraca. Hector parece ler o meu
pensamento.
— Não houve apenas infelicidade — diz, olhando de soslaio para
Alicia enquanto arruma os fios bagunçados do cabelo ruivo do filho.
— E eu já perdoei o papai.
— Já? — pergunto, surpreso. Ele assente.
— Não ganharia nada odiando-o.
— Isso é algo muito bonito de se dizer, filho. — Mamãe se
aproxima, abraçando-o por trás. Hector fecha os olhos e se deixa
abraçar. — Estou me sentindo tão culpada.
O Sr. Certinho sorri, tranquilizador.
— Não se sinta, mamãe.
— O vovô era bravo? — Peter pergunta. Penso por um instante,
imaginando como seria o seu comportamento junto ao neto. Algo
me diz que, talvez, ele não tivesse aceitado a gravidez inesperada
de Alicia tão bem quanto o resto da família.
— Era um pouco — digo. Peter assente, muito sério.
— Ainda bem que a vovó é boazinha — sorri. Grace só falta se
derreter.
O micro-ondas apita. Mamãe beija o topo da cabeça de Hector
antes de ir até o eletrodoméstico para retirar a travessa quente. Faz
menção de aquecer o tender também, mas depois de uma conversa
tão tensa, todo mundo está faminto. Ela resmunga quando nos
servimos de carne e batata fria, mas ninguém se importa. Ao ver
que Hector pega apenas uma fatia de perfil, toma o prato de sua
mão e começa a enchê-lo de comida.
— Você está muito magrinho — reclama, colocando mais dois
grossos pedaços de carne de porco no centro da porcelana. —
Vamos, quero que você coma tudo.
— Eu não consigo comer muito, mãe — olha com aflição para as
três batatas colocadas ao lado do pernil. Madame Grace não se dá
por satisfeita e ainda acrescenta uma generosa porção de legumes.
— Faça uma forcinha. Você está só pele e osso, filho!
— Mãe... — começa Emilly, lançando-lhe um olhar de alerta.
— Nada de mãe! Tome — Hector pega o prato cheio e não diz
mais nada. Peter avalia a montanha de comida.
— Eu também só posso jogar videogame se comer tudinho —
resmunga, fazendo com que toda a mesa caia na gargalhada. O
menino franze o cenho, sério, sem entender o motivo da piada.
Volta-se para mim. — Agora eu tenho dois pais?
Oh céus, as perguntas difíceis precisam surgir bem na hora do
almoço? Olho para Alicia, mas ela não vai me salvar daquela vez.
Limita-se a servir o filho, cortando a carne e os legumes em
pedaços bem pequenos. Resta então olhar para Hector. Ele, pelo
menos, tem a resposta na ponta da língua.
— Tecnicamente ele é o seu tio, mas acho que pode ser o seu pai
também — sorrio para ele, feliz por sua consideração, e ele sorri de
volta, satisfeito.
— Ahhh. E o Luke?
— O Luke é seu... — Hector morde os lábios, sem conseguir
definir.
— Ele pode ser meu pai, se quiser. Deve ser legal ter três pais —
Peter comenta, antes de levar o garfo cheio de legumes à boca.
— Ai meu Deus, ele é tão fofo — derrete-se Luke do outro lado
da mesa. Lança um olhar pidão a Alicia. — Por favor, dê permissão
para ele passar uns dias na Inglaterra com a gente no próximo
verão — implora. — Minha mãe vai surtar!
— Dou, sim. Mas só imagino o que vão pensar de mim se o meu
filho sair por aí dizendo que tenho três maridos — Alicia comenta,
servindo a si mesma. Engasgo com um pedaço de batata enquanto
Emilly solta uma gargalhada histérica. Mamãe balança a cabeça.
— Vocês estão confundindo o menino.
— Não estão, não — diz Peter. Sorrio para a sua simplicidade. É
incrível ver ele aceitando tudo com tamanha facilidade.
— Hector — chama Emilly. Ele ergue a cabeça e, com mamãe
distraída, Luke rouba uma das suas batatas. Ele, mais do que
ninguém, sabe tudo o que o meu irmão passou. Está na cara que
não vai conseguir comer aquela refeição inteira. Pisco e roubo a
outra, deixando apenas uma no prato. O enfermeiro me lança um
olhar agradecido. — Desculpe, mas não comprei presente para
você. Estava puta com aquela foto e, como disse que não viria,
acabei não comprando nada.
— Olha a boca! — reclama mamãe.
— Tudo bem — Hector diz, baixinho, para que o filho não escute.
— Eu mesmo só comprei presente para o Peter. Desculpem.
— Não precisa se desculpar — Grace comenta, colocando
apenas uma fatia de pernil no próprio prato. — O maior presente é
ter você aqui.
— Ah, ninguém disse isso para mim — provoco, tentando
amenizar o clima na mesa.
— Muito menos para mim — debocha Emilly, entrando no jogo. —
Mas tudo bem, estou acostumada a ser a filha renegada só porque
não tenho uma irmã gêmea.
— Ainda bem. Já pensou termos que aguentar duas de você?
Emilly mostra a língua e, do outro lado da mesa, joga um pedaço
de batata assada em minha direção. Pego-a no ar e a coloco no
prato de Peter. O menino a devolve. Estou para devolvê-la de novo
quando o garfo de Alicia invade o meu prato, acabando com a
brincadeira. Mamãe balança a cabeça.
— Incrível como apenas sete minutos de diferença entre um
nascimento e outro colocou no mundo irmãos tão diferentes. Acho
que teria enlouquecido se Hector fosse uma criança agitada igual a
você, Henry.
— Há! — grita Emilly, dando-se por vencida. Luke, durante esse
tempo todo, se esforça para comer sem cair na gargalhada.
— Apesar que talvez tivesse sido melhor se o Hector fosse
menos quieto. — Mamãe complementa, pensativa.
— Já posso ir jogar videogame? — corta Peter.
— Não. — Alicia responde. — Como você mesmo lembrou, só
depois de comer tudo.
— Já comi — declara, mostrando o prato vazio.
— Então come mais um pouquinho — provoco, lhe oferecendo
uma nova batata. Ele a aceita, enfiando o tubérculo inteiro na boca.
Seu pai lhe lança um olhar atento, preocupado com a possibilidade
dele engasgar.
— Filho? — chama Grace. Hector volta sua atenção a ela. —
Você vai morar em Londres agora?
— Apenas por mais alguns meses — diz, olhando com carinho
para o namorado. Ele retribui. — Mas queremos nos mudar para cá.
Não vou aguentar passar muito tempo longe do Peter.
— E embarcam que dia? — Emilly pergunta, curiosa.
— Dia vinte e nove. — Luke comenta. — Vamos passar o Ano
Novo com a minha mãe.
Engulo em seco, a carne descendo rasgando pela garganta.
Sinto Alicia tensionar ao meu lado, como se pressentisse a data do
meu embarque. Em mais uma daquelas coincidências da vida, a
minha passagem também foi comprada para o dia vinte e nove.
Ainda não conversamos, mas mais do que nunca precisamos
conversar.
Relaxo quando ninguém pergunta sobre o meu retorno. Antes de
dar qualquer declaração pública, quero conversar em particular com
Alicia. O almoço envereda para temas mais amenos. Luke é
simpático e nos contagia com o típico humor inglês. Rimos sem
parar ao contar sobre um paciente que fugiu da clínica, pelado, só
porque precisaria passar por um exame de toque retal.
De vez em quando lanço um olhar de soslaio para Hector. É da
sua índole ser mais calado, mas gosto de vê-lo relaxando na mesa,
misturando-se a conversa. Esporadicamente faz um breve carinho
no cabelo de Peter, olhando-o cheio de saudade daqueles seis
meses que não conseguirá recuperar.
Mamãe retira as travessas agora quase vazias e Peter bate
palmas, animado porque finalmente chegou a hora dos doces. Alicia
e Emilly preparam uma nova rodada de eggnog enquanto abro uma
segunda garrafa de vinho. Luke me acompanha, mas Hector e Peter
ficam no suco de uva. Fazemos um brinde desajeitado.
— Meu Deus, vocês já estão bêbados — diz Alicia, colocando os
copos da tradicional bebida natalina na mesa.
— Se já é difícil aguentar o Henry sóbrio, imagine bêbado —
Emilly provoca. Mostro o dedo do meio para ela e mamãe me dá um
tapa antes de pegar a tão aguardada torta de maçã.
— Não estou bêbado coisa nenhuma — reclamo. — E todos
vocês estão contra mim! Justo eu, que sou tão bonzinho. Não é
Peter?
— É sim. — O menino confirma, olhos fixos no doce à sua frente.
— Viram só? Ainda bem que posso contar com o meu filho —
levo a taça aos lábios e, só então, percebo a gafe. — Quer dizer, o
meu…
— Filho, sobrinho — Hector dá de ombros. — Chegamos em um
ponto que tanto faz diferenciar.
— É impressão minha ou alguém comeu uma casquinha? —
Grace pergunta, olhando para a superfície da torta com olhos de
águia. Devagar, os desvia em minha direção. — Heim, Henry?
— Por que a senhora está olhando para mim? — pergunto,
olhando um a um, indignado. — Eu não fiz nada!
— Fez sim que eu vi — atiça Emilly.
— Mentira! Fiquei na sala desde a hora que desci! — rebato,
estreitando os olhos. — Você vai ver só, irmãzinha! Isso vai ter volta!
— Oh mãe, o Henry está me ameaçando! — faz, imitando a voz
de uma criancinha desamparada. Aquilo pega Alicia de surpresa,
fazendo com que solte uma risada no meio do gole de eggnog. A
pobre mulher engasga, soltando líquido pelo nariz. Dou um tapinha
nas suas costas e ela ri ainda mais.
— Olha só o que você fez! — digo, massageando o ponto entre
suas omoplatas enquanto eu mesmo me seguro para não cair na
gargalhada. — Oh mãe, a Emilly está matando a cunhada de tanto
rir!
Mamãe revira os olhos, pedindo a Deus paciência para aguentar
aquelas pestes que pois no mundo. Luke deixa a educação de lado
e ri, alto, como se estivesse na própria casa. Hector finalmente
relaxa e entra no coro enquanto uma mãozinha pálida se esgueira
pela mesa e puxa uma segunda casquinha de torta.
— Acho que encontramos o culpado — diz, cheio de carinho. O
menino lhe lança um olhar travesso e puxa a mão de volta, jogando
a casquinha na boca.
— Ah, se foi o Peter então está tudo bem — Grace conclui.
— Só bêbado para aguentar injustiça dessas — brinco, bebendo
um gole de vinho.
— Não seja exagerado! — Dito isso, mamãe corta a primeira fatia
de torta. Penso que ela virá a mim, mas é claro que a madame
serve primeiro o neto.
— Desse jeito vamos assustar o Luke — Emilly menciona. O
homem faz que aquilo não é nada.
— Acredite, a minha família é pior.
— Não é, não. — Hector se intromete.
— É sim — insiste Luke.
Alicia ajuda mamãe a servir a torta, fazendo com que o maior
pedaço venha até o meu prato. Lanço-lhe um olhar agradecido e
volto a encher a taça de vinho. Sei que aquele é o meu limite,
mesmo que esteja longe de ficar bêbado. As mulheres pegam novos
copos de eggnogs enquanto Hector serve suco de uva a si e ao
filho. Luke, com a taça ainda cheia, apenas observa. Peter olha para
a sua fatia de torta e corta um pedacinho com o garfo.
— Esse é o melhor Natal da minha vida.
Todos caímos na gargalhada diante da declaração de um menino
de apenas quatro anos de idade. Hector ri, até chorar, e pela
primeira vez desde que ele retornou, sei que está plenamente em
paz. Seguro a minha taça e a bela mulher ao meu lado assente com
um sorriso encorajador. Ergo o copo em um brinde.
— A família reunida? — pergunto. Todos assentem. Até Peter,
que se põe de pé na cadeira e ergue o seu copinho de plástico do
Homem-Aranha.
— A família reunida — repetem, em uníssono, quando as taças e
copos se chocam, produzindo um delicioso som musical que se
espalha por toda a casa.
É final da tarde quando o almoço termina e, enfim, nos reunimos
na sala para jogar videogame. Conforme previ, não me acerto com
os controles e chego em último lugar em todas as corridas. Emilly se
sai melhor e grita por quase meia hora ao ultrapassar Henry a
poucos metros da linha de chegada, conquistando o primeiro lugar.
Até Grace se arrisca, rindo sem parar quando um adversário joga
uma bomba em seu carrinho.
A noite adentra e, cansada depois de um dia tão emotivo, a
matriarca deseja boa noite e sobe até os seus aposentos, mas não
sem antes dar um demorado abraço em Hector. Depois, é vez de
Emilly. Antes de subir, avisa que o irmão e o namorado têm um
quarto reservado no final do corredor, o único ainda vago.
Enquanto Henry, Hector e Peter disputam a corrida
acirradamente, eu e Luke travamos uma disputa diferente, tentando
decidir quem dormirá no sofá primeiro. Decido vencer pelo menos
aquela partida.
— Vou subir — anuncio, me despedindo de todos com um beijo.
Henry me lança um olhar de Quer que eu suba também?, mas faço
que não. — Divirtam-se, mas não vão dormir muito tarde —
acrescento.
Minutos depois, estou sozinha na cama, banho tomado e pijama
vestido, olhando pensativa para o teto, o sono de repente
desaparecido. A curta conversa com Hector foi apenas a primeira de
muitas que precisaremos ter até a saída do divórcio. Mesmo que ele
tenha tudo para ser tranquilo, haverão reuniões a serem feitas e
questões a serem decididas. Sei que não vai me deixar na mão,
mas me pego pensando onde vou morar caso decida vender a casa.
Gosto tanto de Greenville que não consigo me imaginar morando
em outra vizinhança.
Mas o que tira o meu sono neste momento não é Hector, a
resolução do divórcio ou qualquer outra coisa envolvendo o meu
casamento. É Henry. Senti todo o seu corpo tensionando quando o
irmão anunciou a data de retorno para a Inglaterra. O homem se
manteve calado, mas sei que está com a passagem comprada,
escondendo a data do seu retorno. Viro-me na cama, olhando o
espaço vazio ao meu lado, o corpo reagindo em um espasmo de
dor, como se já estivéssemos separados.
Fecho os olhos e tento pegar no sono. Minutos depois, escuto
passos subindo as escadas e se arrastando pelo corredor. Luke.
Estou feliz pelo meu marido ter encontrado apoio em um cara tão
legal. Resisto a tentação de olhar o celular sobre a mesinha de
cabeceira sabendo que, se o fizer, o sono jamais virá. Permaneço ali
por um bom tempo até que, enfim, adormeço.

Uma fresta de luz entra pela cortina, iluminando um pequeno


pedaço do quarto. Abro os olhos, ciente de que não estou mais
sozinha. Henry dorme com o rosto enfiado no travesseiro, mas a
mão veio até mim, encostada na lateral do meu corpo como se
precisasse ter certeza de que estou ali. Observo-o dormindo
pesado, a casa plenamente silenciosa, imaginando o quão tarde
todos foram se deitar.
Levanto-me para ir ao banheiro, mas antes espio pela janela. O
dia está bonito. A neve parou de cair e uma fresta de céu azul pode
ser vista no firmamento. Não é o clima ideal para um passeio ao ar
livre, mas até março dificilmente terei oportunidade melhor do que
essa. Calço as botas, visto o meu roupão e, com um último olhar ao
homem adormecido, saio do quarto.
Desço as escadas devagar, sem fazer barulho, feliz em constatar
que é cedo o suficiente para que nem Grace esteja de pé. Adoro
estar entre pessoas, mas preciso desse momento sozinha. Na
minha casa, aproveitaria o tempo para desenhar, mas resisto à
tentação de abrir o belíssimo kit de pintura que ganhei de Natal e
usá-lo ali mesmo. Hoje a melhor solução será caminhar.
No vestíbulo, coloco o casaco por cima do roupão e abro a porta
da sala. O vento frio invade a casa, então me adianto em fechá-la,
preservando o calor do interior enquanto saio para o lado de fora.
Esfrego a mão uma contra a outra, em uma tentativa de me
aquecer, mas é em vão. Com parte do céu azul ou não, o inverno de
dezembro segue rigoroso com um ventinho frio capaz de arrepiar
toda a espinha.
Guiada pelo barulho das ondas, caminho em direção ao mar,
admirando as casas vizinhas cobertas de neve. Sorrio ao lembrar da
casinha de biscoito. Foram tantos acontecimentos no dia anterior
que a sua construção com farinha, açúcar e manteiga parece a anos
luz de distância.
A bota faz um barulho engraçado de encontro a areia congelada,
como se a quebrasse em mil pedacinhos. As ondas cinzentas
arrebentam, calmas, anunciando que estaremos livres de
tempestades naquele dia. Não há um mísero pássaro dividindo
espaço comigo na praia. O silêncio é absoluto, cortado apenas pelo
suave marulhar das ondas.
As mechas soltas dos meus cabelos açoitam o meu rosto, mas
cruzo os braços para me aquecer e as ignoro, concentrada em
admirar o mar. Escuto passos ao longe, mas demoro a perceber que
eles vêm até mim. Só quando estão mais altos, próximos o
suficiente para que eu sinta o calor daquele que caminha, percebo
que Henry me seguiu.
— Está tudo bem? — pergunta, preocupado. Cola o peitoral firme
as minhas costas enquanto passa os braços pelo meu peito, me
puxando para si. Seu queixo roça na lateral da minha cabeça, mas
permaneço quieta, grata por ele respeitar o meu silêncio. Leva
alguns minutos até decidir quebrá-lo.
— Quando você volta para a Califórnia, Henry?
— Dia vinte e nove de dezembro — diz, sem hesitar. — No
mesmo dia em que Hector volta para a Inglaterra.
— E você não iria me contar? — pergunto, exasperada. — Você
disse ao seu irmão que estávamos juntos, mas vai embora daqui
poucos dias e não iria me contar?
Ele me vira, obrigando-me a encará-lo. Arregalo os olhos ao
perceber o quanto suas íris azuis estão sofridas.
— Iria. Claro que iria. Mas…
— Mas o que?
— Precisava esperar o momento certo — murmura, apenas um
pouco mais alto que as ondas. — Há menos de um mês estava
louco para que o Natal passasse e eu pudesse retornar a
ensolarada Califórnia. — assinto, ciente daquilo. — Pensei em adiar
a viagem para passarmos o Ano Novo juntos, mas eu realmente
preciso voltar.
— Eu sei…
— Mas também preciso de um motivo para ficar — diz, me
olhando fundo nos olhos, a voz grave levemente rouca. — Sei que
tudo isso aconteceu muito rápido e que você tem muitas questões
para lidar. Eu não tenho pressa. Espero o tempo que for necessário,
mas quero que você seja minha — declara, me puxando contra si.
Mesmo vestindo o meu casaco e ele o dele, ou melhor, aquele que
roubou do irmão, sinto a sua ereção rígida pressionando o meu
baixo ventre. — Não é só desejo. É amor, Alicia. — acrescenta,
desesperado. — Eu adoro a Califórnia. As praias. O povo. Tudo.
Mas não consigo me imaginar feliz lá, nem por um minuto, se não
for com você. Quero voltar e ficar com você aqui em Nova Iorque.
— Mas… você abandonaria tudo o que construiu lá, para ficar
comigo? — pergunto, com um fiapo de voz. Ele faz que sim.
— O que eu construí além da reputação de cafajeste e alguns
bares? — ri, abrindo um pequeno sorriso nos lábios. — O que eu
realmente tenho está aqui. Gosto de Nova Iorque. Gosto da ideia de
ficar mais perto da família. Sei que posso ganhar dinheiro aqui da
mesma forma que ganho lá na costa oeste. Então me dê um motivo
para voltar, Alicia. Um só. E eu garanto que volto para ficar com
você e com o Peter. Para sempre.
O meu coração deixou de bater. Agora ele martela o meu peito
com brusquidão. Com os olhos embargados de lágrimas agarro a
gola do casaco de Henry e o puxo para um beijo desesperado. Ele
retribui, tão desesperado quanto eu, parecendo um homem que saiu
do mar e eu fosse o ar que o impede de se afogar. Paramos apenas
para tomar fôlego, suas mãos firmes em minhas costas, um sorriso
aliviado no rosto.
— Volte — peço. Ou melhor, imploro, erguendo as mãos até o
seu rosto, a barba por fazer pinicando a minha palma. — Eu te amo,
Henry. Por favor, volte.
— Ah, como estou aliviado em ouvir isso — ri, baixinho, me
abraçando com força. — Eu também te amo, linda.
Uma parte do meu peito, que eu nem ao menos sabia que estava
vazia, se enche de calor.

Pelo lado de dentro das largas janelas de vidro, Peter olha


espantado para os aviões que taxiam tranquilos pela pista. Cinco
pares de olhos adultos o observam, atentos, mas o aeroporto está
tranquilo. Não tivemos nenhuma nevasca depois do Natal.
Claro que Grace ficou chateada quando descobriu que os dois
filhos iriam embora ao término das festas. Após aproveitar o feriado,
deixamos os Hamptons no dia vinte e oito pela manhã. Eu e Henry
insistimos para que Hector e Luke ficassem em casa, mas nem o
meu ex-marido quis encarar o insólito quarto de hóspedes.
Preferiram ficar em um hotel no coração de Manhattan. Está
decidido que, assim que o tempo melhorar, chamarei um pintor para
dar um jeito na casa inteira, mas ali, no aeroporto, aguardamos em
uma melancolia estranha. Luke olha as horas e se vira para Hector.
— Precisamos ir.
— Eu sei — murmura, olhando triste para o filho. — Detesto
despedidas.
— Você puxou a mamãe — Emilly comenta. — Por isso desistiu
de vir. Disse que iria inundar o aeroporto de tanto chorar ao ver os
dois indo embora.
— Quanto drama — Henry resmunga. Dou uma cotovelada nas
suas costelas e ele se encolhe. — Ei, eu volto daqui quinze dias!
— Mas o Hector vai demorar mais — retruco.
— Vou — diz, chateado. Luke faz um carinho em seu braço. —
Mas prometo que, dessa vez, vou mandar mensagens todos os
dias. Também quero fazer vídeo chamadas com o Peter, se você
não se incomodar — acrescenta, olhando para mim.
— Claro que eu não me incomodo, Hector. Filho? — chamo. O
menino olha por sobre os ombros, a atenção finalmente desviada
dos aviões. — Venha se despedir do seu pai.
Peter vem, meio acanhado, também contaminado pelo clima de
despedida. Mas, antes de dar adeus ao menino, Hector volta a se
virar para mim.
— Eu só devo voltar a Nova Iorque no meio do ano, para o
aniversário de Peter. Mas saibam que vocês estão mais do que
convidados a irem para a Inglaterra.
— Moro em um apartamento pequeno em Londres — Luke
complementa. — Mas mamãe reside em um casarão no interior. Ela
ficará feliz em receber todos vocês.
— Um casarão tipo o de Os Bridgertons? — Emilly pergunta,
interessada. Luke assente.
— Menor, mas bem parecido.
— Ah, eu quero! — diz, animada, se adiantando para abraçar o
namorado do irmão. — Obrigada pelo convite.
— Enquanto isso — Hector continua — os advogados darão
continuidade ao divórcio. Se tudo sair conforme o planejado,
estaremos oficialmente separados até o meu retorno.
— Tudo bem — assinto.
— Há mais uma coisa. — Ele troca o peso de um pé pelo outro.
— Tomei uma liberdade e, do fundo do meu coração, espero que
ninguém se incomode — lança um rápido olhar ao Henry e ele
franze o cenho, confuso. Depois de confirmar que o irmão mudou,
Hector parece ter aceitado o nosso relacionamento com
tranquilidade. Não entendo por que ficaria desconfortável agora. —
Mas tomei providências para passar a casa de Greenville para o seu
nome, Alicia.
— Você o que? — balbucio, sem saber se ouvi direito.
— Sei o quanto você gosta da casa — diz, sorrindo. — Agora ela
é oficialmente sua. — Dá um passo adiante, de forma que apenas
eu escute. — Assim você nunca mais precisará ficar com medo de
voltar a morar em um trailer.
A casa é minha? Quero pular e gritar, assim como o Peter faz
quando está feliz, mas me contenho. Puxo o meu ex-marido para
um abraço apertado.
— Obrigada por tudo, Hector.
— Eu que agradeço — murmura, se afastando.
Despede-se de Henry com um abraço seguido de alguns
tapinhas nas costas e, depois, de Emilly. A irmã está quase
chorando ao soltá-lo, mas Hector só se torna emotivo na vez de
Peter. O menino o encara um pouco triste quando o homem se
ajoelha até ficar na sua altura.
— Vou sentir a sua falta, papai — diz, baixinho. Hector morde os
lábios e o puxa para si, enterrando o rosto nos cabelos vermelhos.
— Eu também, mas vamos nos falar todo dia. O que acha?
— Acho legal! E vamos jogar videogame também! — Hector
encara o menino e assente. Depois de muita discussão, ficou
decidido que um dos Nintendo Switch voltaria temporariamente para
a Inglaterra, assim pai e filho poderão jogar online.
— Vamos — confirma Hector, com a voz embargada. Está para
se levantar quando agarra o filho de novo. Peter se deixa abraçar,
meio confuso, mas contente pela atenção. — Eu te amo, viu?
— Eu também, papai — diz, dando um beijo no rosto barbado do
pai.
Hector sorri feito bobo e, enfim, se levanta. Faz menção de ir
embora mas retorna no último segundo, parando diante de Henry.
Os gêmeos se encaram e ele toma fôlego.
— Por favor, cuide bem deles.
— Prometo cuidar — responde Henry. Devagar, um sorriso
desponta em seus lábios. — Mas garanto que esses dois — meneia
a cabeça em minha direção — se cuidam muito bem sozinhos.
— Sei disso — Hector confirma. Parecendo mais tranquilo, acena
um último Até logo! e, junto de Luke, caminha em direção ao
embarque. Observamos o casal até que ambos desaparecem na
multidão.
— Chegou a minha vez — Henry comenta. — Se vocês
quiserem, podem esperar o avião de Hector decolar. Eu vou sozinho
e…
— O seu terminal é outro, não é? — corta Emilly. O irmão faz que
sim. — Então vamos todos juntos.
Ele assente. Passa o braço pelo meu e caminhamos até o outro
lado do aeroporto em silêncio. Faltam apenas quinze minutos para o
seu avião subir aos ares quando, enfim, encontramos o local certo.
Henry olha para as pessoas embarcando com certa melancolia,
lembrando muito o irmão. Sei que ele não quer ir.
— Ei, para que tanto drama? — brinco. Ele sorri de lado, ainda
um pouco triste. — Em duas semanas você estará de volta.
— Eu sei. Gostaria que estivesse indo comigo — murmura.
Parte de mim também gostaria, mas no fundo, nós dois sabemos
que aquela não é uma viagem a passeio. Henry passará os
próximos dias resolvendo os seus negócios. Eu e Peter mais
atrapalharíamos que ajudaríamos.
— Vamos em outra ocasião — digo, o puxando para um abraço.
— Vou sentir a sua falta, Henry.
— Céus, eu também! — Sem aviso, me puxa para um daqueles
seus beijos de cinema. Agarro os seus cabelos e beijo de volta,
desejando que ele os deixe crescer um pouco, voltando a ser o
homem rebelde que chegou há um mês em Nova Iorque. — Já
estou sentindo, Alicia.
— Você vai sobreviver — brinco, temendo os dias silenciosos em
minha casa. Emilly passará o réveillon em uma festa com as
amigas, então decidi ficar com Grace, para que nenhuma de nós
precise iniciar o Ano Novo sozinha. — Juízo, heim!
Ele ri.
— Prometo, ter — diz, aproximando os lábios do meu ouvido. —
O meu pau é completamente seu, Alicia.
— Eu ouvi isso — Emilly revira os olhos. Dou risada e a puxo
para um abraço.
— Até mais, irmãzinha.
— Até. Como Alicia disse: juízo.
— Tá, tá, tá — brinca, voltando-se enfim para Peter. Assim como
o pai, Henry se ajoelha à sua frente e o puxa para um abraço.
— Você vai jogar videogame comigo também? — pergunta,
esperançoso.
— Desculpe, mas só quando eu voltar.
— Ah — suspira, triste. — Você joga melhor que o papai.
— Eu sei — pisca, voltando a ficar de pé. — Mas prometo fazer
videochamadas.
— Então tá — Peter vibra. Henry sorri, emocionado, e se vira
para mim de novo.
— Promete que vai ficar bem?
— Prometo. Agora vai, senão perderá o voo!
Henry não parece preocupado com isso, mas acata o meu
pedido. Dá dois passos em direção ao embarque, mas retorna,
acelerado, agarrando a minha cintura com as mãos fortes e me
puxando para um último beijo. Emilly murmura um “Depois o Hector
que é dramático!” enquanto Henry ri na minha boca. Eu, claro,
retribuo cheia de avidez.
— Obrigado.
— Pelo que? — pergunto.
— Por me dar tantos motivos para voltar — diz, apertando o meu
traseiro. Rindo, devolvendo um tapa estalado na sua bunda, alto o
suficiente para que alguns passageiros se virem na nossa direção
com o cenho franzido, mas nenhum de nós se importa. Henry ri alto
e, enfim, cruza o portão de embarque. O único pensamento que
vem à cabeça é: como vou aguentar ficar quinze dias longe dele?
— Quinze dias, Scott! Quinze! Como que vou aguentar ficar todo
esse tempo longe dela?
Do outro lado do balcão do bar, o meu sócio me encara de cenho
franzido. Os cabelos precisando de um corte caem sobre os olhos,
conferindo um charme especial ao escocês. Ele afasta os fios com
as costas das mãos e, sem dizer nada, saca um copo de uísque
debaixo do balcão e despeja uma generosa dose. No fundo, nem
gosto tanto de uísque, mas foda-se. Viro a dose dupla de uma vez
só, sentindo o líquido âmbar descendo feito fogo pela garganta.
Âmbar. Fogo. Ruiva. Meu pau da sinal de alerta a mínima
menção de Alicia. Vou agonizar diante dos próximos dias!
— Desculpa perguntar — Scott começa, cauteloso. — Mas o que
Nova Iorque fez com você?
— Nova Iorque? Nada. Mas a Alicia, ah a Alicia…
— Ela não é esposa do seu irmão?
Solto um longo suspiro, percebendo que desde que cruzei as
portas do bar, não fiz outra coisa a não ser reclamar da ausência da
mulher que amo. Nossa, acho que virei um macho emocionado.
Estou há apenas seis horas separado de Alicia e parece que uma
cratera do tamanho da lua inteira se abriu no meu coração. Desci no
aeroporto de Los Angeles e vim direto para cá.
— Bom, é uma longa história — começo.
Scott ergue as sobrancelhas e serve uma nova dose de uísque,
acrescentando mais um copo ao balcão. Ele não é de beber em
serviço, mas o movimento está baixo e, de alguma forma, percebe
que só meio embriagado para assimilar tudo o que tenho para
contar.
Começo a narrar a saga que se iniciou com a minha chegada a
Manhattan e os seus olhos se arregalam, mais e mais, conforme a
história avança. O expediente se encerra e os garçons se
despedem, deixando-nos a sós. Passa das dez da noite quando
enxugamos a garrafa e termino de contar tudo.
— Caralho — diz Scott, o forte sotaque escocês que tenta
esconder mais pronunciado do que nunca. — Essa história daria um
filme do Hallmark.
— Daria — brinco, bebendo a última dose. Meu sócio faz menção
de abrir uma nova garrafa, mas faço que não. — É por isso que
preciso voltar.
— Entendo.
É mentira, sei que não entende. Robert "Scott" McAllister detesta
o Natal. Se alguém quiser deixá-lo irritado é só falar da vez em que
precisou se vestir de rena para um comercial gravado em Los
Angeles. O homem geralmente tranquilo entra em um estado de
fúria devastadora. Ele preferiria cortar a mão com uma faca cega a
fazer o que fiz, mas quem sou eu para julgar? Há menos de um mês
soltaria uma alta gargalhada se alguém contasse aquela história
para mim.
— Você deve estar pensando nos nossos negócios — digo,
mudando de assunto.
— Confesso que estou, sim — confirma, meio inseguro.
— Bom, ainda não pensei no que fazer com os sócios dos outros
bares — testo o terreno, devagar. — Mas sei que você consegue
tocar isso aqui sozinho, Scott.
Ele me lança um olhar surpreso.
— Mas estou longe de quitar a minha parte!
— Eu sei. E também sei que é mais do que capaz de fazer isso.
Então pensei nisso aqui — tiro um guardanapo cheio de rabiscos do
bolso e estendo a ele.
É um plano que tracei durante a viagem em uma tentativa de me
distrair. A prudência grita para que eu deixe aquilo para a manhã
seguinte, quando não estiver meio bêbado de saudade, mas sei que
posso confiar em Scott. Ele ouve a explicação com os olhos
marejados e assente, visivelmente grato.
— Não sei o que eu seria sem você — comenta, baixinho. — É
muita generosidade, Acho que, no fim, o gêmeo mau da família não
é tão mau assim — comenta, com um sorriso de lado. — Obrigado.
— De nada — levanto-me da cadeira e sinto o mundo girar. Scott
corre para me apoiar enquanto rio. — Nem um dia completo longe
da minha mulher e olha só — digo, abrindo os braços. — Estou
bêbado.
— Ainda quero abrir um negócio em Nova Iorque — diz, divertido.
— Mas confesso que estou com medo de voltar no mesmo estado.
Vem — acrescenta, pegando as chaves do carro e desligando as
luzes do bar. — Eu te levo para casa.
Assinto, agradecido. Em minutos estamos rodando de carro pelas
largas avenidas de Santa Mônica. A cidade está longe de ter a
movimentação de Nova Iorque, mas vibra cheia de vida mesmo no
inverno. Passamos diante do píer, com sua imensa roda gigante
ligada com suas luzes coloridas, e sinto que começa a minha
despedida. Não fiquei em apenas um lugar desde que cheguei ali.
Morei um tempo em San Diego. Depois, em São Francisco.
Algumas poucas semanas em Los Angeles quando, enfim, me
encontrei em Santa Mônica. É estranho constatar que vou sentir
falta, sim, mas nada comparado a falta que estou sentindo de outra
pessoa.
— Obrigado Scott — agradeço, quando ele estaciona diante do
prédio onde fica o meu apartamento.
— Eu que agradeço, cara. Por tudo — diz, com um raro sorriso.
Dou um tapinha amigável em seu braço, saio do carro, pego a bolsa
de viagem no porta malas e, meio cambaleante, subo em direção ao
meu apartamento. Desabo na cama tão logo abro a porta e entro no
quarto.
Os próximos dias são agitados. Não sou tão generoso com os
demais sócios como fui com Scott. Aos poucos percebo que o
escocês é um dos poucos amigos verdadeiros que fiz aqui. Olhares
enviesados, e até mesmo raivosos, são trocados ao dizer que estou
retirando a minha sociedade.
Já as mulheres trocam olhares confusos ao darem em cima de
mim e não serem correspondidas. Recuso todos os convites para as
festas de réveillon e passo a virada do ano em meu apartamento
que já coloquei à venda, tendo a companhia Alicia, Peter e Grace
através de uma vídeo chamada a milhares de quilômetros de
distância.
Depois do Ano Novo, eu e Alicia seguimos nos falamos todo dia
por mensagem. Quando sobra tempo, deixo o texto de lado e faço
uma vídeo chamada. Depois de contar que Judy riu por meia hora
quando revelou a troca de gêmeos e Mark gritou, em triunfo, que
desde o começo desconfiou que havia algo de esquisito em mim,
Alicia diz, emocionada, que fechou sua primeira encomenda
artística. Jamais duvidei de que conseguiria.
— Sabe — diz, baixinho. — Estava pensando em voltar a
estudar. Fiz uma rápida pesquisa e consigo retomar minha vaga em
Columbia. Só não descobri como fica a questão da bolsa.
— Eu pago — digo, sem nem pensar.
— Henry, você sabe como é caro. Talvez eu possa ir para outra
universidade e…
Também sei o quanto aquilo é importante para ela. Evito dizer
que aquele montante pouco vai fazer diferença na minha conta
bancária por medo de soar arrogante, mas irei insistir, caso ela diga
o contrário.
— Não. Por favor, Alicia. Veja se consegue a bolsa, senão, deixe-
me fazer isso por você.
Ela morde os lábios, em dúvida. Mas está estampado em seu
rosto o quanto quer aquilo. Decido atiçar.
— Sei que você está pensando além da questão financeira,
assim como estou longe de ser o homem mais ocupado do mundo
— brinco. — Posso cuidar do Peter enquanto você estiver lá.
— É muito gentil da sua parte, mas não é só isso.
— O que é, então?
Ela fica acanhada de repente.
— Você sabe que tenho vontade de dar um irmãozinho ou
irmãzinha para o Peter — confirmo com a cabeça, lembrando de
uma das nossas primeiras conversas. — Pensei que, bem... agora
que estamos oficialmente juntos, talvez você quisesse acelerar o
processo.
Meu peito se aquece diante da perspectiva. A mente viaja longe,
pensando se o bebê viria ruivo igual a mãe ou se, dessa vez,
herdaria os cabelos castanhos escuros do pai. Sorrio para mim
mesmo, mas sou sincero quando digo:
— Não precisamos acelerar, nada. Faltam o que? Dois anos para
você se formar?
— Sim, se eu conseguir antecipar algumas matérias.
— Então podemos esperar até lá. Enquanto isso nada nos
impede de ir treinando — pisco, cheio de malícia. A mulher ri.
— Obrigada, Henry.
— De nada, linda — olho para o contorno dos seus seios sob o
pijama justo e, imediatamente, deslizo a mão para o interior da
minha calça. — Agora, me diga uma coisa: a porta do seu quarto
está trancada?
— E se eu disser que está? — responde com outra pergunta,
maliciosa.
— Se você disser isso, vou pedir que abra botão por botão desse
pijama e me mostre esses peitos gostosos. Depois, que deslize a
mão para dentro da calça e massageie o seu pontinho do prazer
com força, assim como estou fazendo com o meu pau.
Alicia arfa alto e, devagar, atende o meu pedido, abrindo botão
por botão do pijama em um delicioso streap-tease até estar com os
seios expostos. Gemo de prazer e afasto o celular, para que ela
possa ver minha mão subindo de baixo para cima por todo o meu
rígido comprimento. Ela faz o mesmo, abaixando as calças e
expondo a boceta aberta para a câmera.
— Não acredito que estou fazendo isso — diz, meio alarmada. —
Esse vídeo não corre o risco de vazar, corre?
— Não — gemo, apertando o pau com mais ênfase enquanto me
imagino entrando com força em sua boceta molhada. — Isso tudo
faz parte da tática para te transformar em uma grande devassa.
Agora vamos, dedilha o seu clitóris para mim.
Ela circula o pontinho inchado com os dedos, espalhando a
umidade por suas dobras. Meu pau pulsa de desejo e intensifico a
masturbação. Alicia faz o mesmo, enfiando dois dedos na boceta e
os retirando apenas para se encharcar ainda mais.
— Mais rápido — peço, e os seus dedos obedecem, friccionando
o clitóris com força, o quadril indo para cima e para baixo, tentando
acompanhar os movimentos dos dedos. — Agora, aperta um
mamilo, bem devagar.
Alicia obedece e é o que basta para que um rosnando escape da
minha boca e eu goze sobre os lençóis feito um adolescente. Ela
precisa de mais um pouquinho de estímulo até que suas pernas se
contraíam e goze, também. Suas costas caem de encontro aos
travesseiros enquanto aguarda que a respiração normalize.
— Estou com tantas saudades — deixa escapar, bem baixinho.
Fecho os olhos e assinto para a câmera, o coração dolorido pelo
mesmo sentimento. Ainda faltam dez dias para eu voltar, mas
parece toda uma eternidade.

A comissária de bordo insiste em me lançar olhares sedutores.


Encarei-a tempo suficiente para ter certeza de que não era a mesma
do voo anterior, aquele que terminou com uma foda rápida sobre a
pia de um banheiro no JFK, há anos luz de distância. Não porque
estivesse desejoso de repetir, mas apenas para ficar em alerta.
Ao confirmar que é outra comissária, me limito a olhar para a
janela, mas tudo o que vejo é uma vastidão branca. Um dos pés
bate de forma ritmada no chão. Estou ansioso para que aquelas
cinco horas passem o mais rápido possível. Uma nevasca atrasou o
meu retorno para Nova Iorque em três dias. Não quero esperar
mais.
Graças aos céus o avião aterrissa sem qualquer problema sob o
ar gélido de Nova Iorque. O simpático taxista paquistanês tenta
contar, em um inglês precário, como a neve atrapalhou o início da
semana. Não preciso entender tudo o que ele fala para acreditar. Os
vestígios da nevasca ainda podem ser vistos pela neve acumulada
na cidade.
Dessa vez, a única coisa que vejo pela janela do carro amarelo
são os prédios nus. A cidade não perde tempo e, em um piscar de
olhos, toda a decoração de Natal desapareceu. O trânsito segue
insuportável por toda Manhattan até a estrada que leva a Greenville.
Nunca antes desejei tanto chegar na tranquilidade de um subúrbio.
O caminho que leva em torno de quarenta minutos em um dia
normal hoje se arrasta por quase duas horas devido ao trânsito. O
motorista fica cada vez mais alarmado. Meu estado ansioso deve
estar pressionando o coitado, mas sou incapaz de me controlar.
Pulo no banco assim que ele vira o carro na rua em que mora Alicia.
— Ali — aponto em direção a casa cinza.
Por incrível que pareça, o boneco de neve ainda está lá, mais
desmantelado do que nunca, mas ainda de pé. Sorrio, lembrando
daquela guerra de bolinhas de neve que mudou tudo. O motorista
estaciona diante do gramado coberto de branco e faz menção de
sair para me ajudar. Digo que não precisa e lhe estendo o
pagamento. Ele arregala os olhos para a alta gorjeta. A corrida ficou
um absurdo de caro, de qualquer forma.
— O senhor tem certeza?
— Tenho — digo, dando um tapinha no seu ombro antes de sair.
Levanto a tampa do porta-malas e retiro a bolsa. O motorista dá
uma buzinada e se afasta enquanto me viro para a casa. Dessa vez,
vejo com clareza o rosto que me observa da janela. Ouço Peter
gritando “O papai chegou!” mesmo que, tecnicamente, eu seja o seu
tio. Passo a bolsa pelos ombros e me adianto a passos largos, mais
ansioso do que nunca para, enfim, estar perto deles.
A porta de entrada se abre e, ao invés de uma ruiva de
semblante fechado, olhar assassino e braços cruzados, sou
recepcionado pelo abraço quente de Alicia. Puxo-a contra o meu
corpo com força, deliciado em sentir o seu calor e o inconfundível
cheiro de rosas dos seus cabelos, feliz em enfim estar de volta.
Peter pula ao nosso redor, controle de videogame em mãos,
perguntando quando poderemos jogar. Rio, alegre, pegando-o no
colo ao mesmo tempo em que puxo Alicia para um beijo.
Como é bom estar em casa.
Meses depois…
Há semanas os dias frios de inverno ficaram para trás. O Natal
tornou-se uma doce lembrança e Peter, agora com cinco anos, já
pergunta sobre o próximo dia vinte e cinco de dezembro. Não sei se
ele ainda estará acreditando no Papai Noel quando a data chegar.
Espero que sim.
Mas ainda é agosto, e o do sol fim do verão reina soberano sobre
a Universidade de Columbia enquanto observo os alunos chegando.
Logo de cara dá para diferenciar os jovens calouros dos que estão
ali pelo segundo, terceiro, quarto ou até quinto ano. São os que
contém os rostinhos mais animados, apesar de um pouquinho
temerosos de começar aquela nova jornada em suas vidas. Sinto-
me próxima a eles, apesar de estar dando continuidade ao curso
que iniciei há tanto tempo.
— Dá até vontade de fazer uma pós-graduação ou mestrado —
comenta Hector enquanto caminhamos pelo campus. Henry balança
a cabeça.
— Não dá, não.
Balanço a cabeça e dou risada. Depois de me incentivarem a
voltar a estudar, os dois fizeram questão de me acompanharem no
meu primeiro dia de aula. Estou feliz por voltar. Conforme Henry
previu, os meus desenhos continuaram a fazer sucesso e, hoje,
tenho fila de espera para novas encomendas. A maioria são de
mães interessadas em terem um retrato em aquarela do filho.
Espero conseguir conciliar a vida de estudante com a de mãe, dona
de casa e artista, como o meu namorado gosta de me chamar.
Lanço-lhe um olhar carinhoso e ele me devolve com um sorriso.
Henry, deslumbrante em uma camisa de manga curta, chama
atenção das garotas que olham com cobiça para as tatuagens
expostas no braço musculoso. Vejo-as murchando quando ele não
lhes dá maior atenção. Conforme previsto, Henry não demorou para
encontrar pessoas interessadas em seu dinheiro e, assim como fez
na Califórnia, está por trás de alguns dos melhores bares que
despontam em Manhattan.
Hector também chama atenção com sua camisa social erguida
até os cotovelos e a calça social escuta perfeitamente alinhada nas
pernas compridas. Impossível não chamar. Ao longo daqueles
meses, ele recuperou a maior parte do peso. Está tão bonito, e
saudável, como sempre foi. Mais cedo, disse com orgulho que
deixou um dos remédios para trás. Eu, Luke e toda a família ficamos
no seu pé, mas não é necessário. Hector sabe qual é o caminho
para ficar bem e, principalmente, sabe que tem todo o apoio da
família. Dá para perceber o quanto está feliz, mesmo que continue
sendo o gêmeo quieto, mas não mais tão calado.
Ele e Luke se mudaram para Nova Iorque. O enfermeiro
conseguiu uma vaga no prestigiado Presbyterian Hospital e Hector
se realocou em um novo banco em Wall Street. Apesar de tudo, é
aquilo que ele gosta de fazer. Aprecio a forma como se empenha
para ser um bom profissional e seguir por si mesmo, independente
de toda a herança que o pai lhe deixou.
— Uau — diz Peter, quando passamos diante da Butler, a maior
biblioteca do campus. — Posso estudar aqui também? — pergunta,
deslumbrado.
— Um dia você poderá, sim — digo, pegando-o no colo e
plantando um beijo estalado na sua bochecha. O menino ri,
deliciado. Aproveito enquanto posso. Sei que em breve ele estará
pesado demais para vir aos meus braços.
— Legal! — pula de volta ao chão e sai correndo, passando por
entre duas garotas. Elas riem, achando graça do menino. Henry
franze o cenho para três caras atraentes mais adiante.
— Não gosto da maneira que eles olham para você — comenta
com um leve rosnado. Pego-o pelos ombros e lhe roubo um selinho.
— Eles podem olhar o quanto quiserem. Eu só tenho olhos para
você.
— Às vezes concordo com a Emilly — Hector comenta com um
sorriso. — Vocês dois são um nojo.
— Ah, você diz isso só porque não consegue enxergar a si
mesmo com o Luke. Nunca vi tanto chamego! — o irmão retruca. O
rosto de Hector adquiri um adorável tom vermelho.
— Estamos apaixonados! — rebate, na defensiva.
— Nós também estamos — diz, me puxando para um beijo de
verdade. Devolvo-o com vontade, sentindo o corpo todo se
aquecendo em excitação. Soltamo-nos e ele ri. — Isso me lembra
uma coisa.
— Que coisa? — pergunto, curiosa. Henry e Hector trocam um
olhar. — O que vocês dois estão tramando?
Olho em volta e percebo que caminhamos exatamente até o local
onde toda a briga com os irmãos começou. Peter se aproxima e nos
encara com expectativa, denunciando que ele também está por trás
daquela tramoia. Franzo o cenho, mais curiosa do que nunca, mas
Henry se adianta. O coração bate forte quando, devagar, ele tira
uma caixinha de veludo azul do bolso de trás da calça jeans e se
ajoelha.
— Eu poderia dizer que comprei esse anel apenas para finalizar o
conjunto de diamantes que te dei de presente ao longo dos meses
— brinca, erguendo os olhos azuis brilhantes para mim. — Mas é
mentira. Comprei porque desejo que você seja completamente
minha. Porque eu, você pode ter certeza, sou completamente seu.
Então — continua com um sorriso, aquele sorriso safado capaz de
incendiar uma calcinha — você aceita se casar comigo? Não agora
— complementa, olhando em volta. — Agora você precisa focar nos
estudos.
— Fica difícil focar nos estudos assim — rio. Peter pula de alegria
enquanto Hector apenas sorri. O nosso divórcio saiu há algumas
semanas, fruto da vantagem de ter muito dinheiro. Volto minha
atenção a Henry que aguarda em expectativa — É claro que eu
aceito!
O seu sorriso se alarga. Ele se ergue e, com cuidado, retira o
anel de ouro branco com um diamante e o coloca em meu dedo.
Aplausos se espalham no ar e, só então, olho em volta, rindo toda
tímida ao ser agarrada com força pela cintura. Um Uauuu! se
avoluma sobre a plateia conforme Henry cola os nossos corpos e
me encara com luxúria.
— E então, Sra. Chamberlain? Vai me dar um beijo ou precisarei
roubá-lo?
— Dessa vez eu vou te dar — digo, entre risos, tomando a sua
boca na minha.
Ele ri de volta, mas me beija com avidez, até ambos ficarmos
sem fôlego. A plateia solta vivas quando nos separamos. Henry
encosta os lábios no meu ouvido, a respiração quente fazendo
cócegas na pele arrepiada.
— E o que mais você vai me dar?
— Não sei — respondo, maliciosa. — Depois da aula penso
nisso.
— Estarei te esperando — declara, se afastando com os olhos
em chamas.
As pessoas começam a se dispersar e, por um instante penso em
abandonar a aula, segurá-lo pela mão e correr até a igreja mais
próxima, em busca de um sacerdote que possa nos casar, mas
resisto, firme. Já moramos juntos. Teremos muito tempo para
planejar as formalidades.
— Preciso ir.
Olho para o prédio onde terei a minha primeira aula e Henry
assente, dando-me um beijo na bochecha. Hector, na outra. Peter
estende os bracinhos para um abraço gostoso.
— Boa aula, mamãe.
— Obrigada, meu filho — digo, plantando um beijo nos seus
cabelos.
Ele ri e se separa, colocando-se entre Henry e Hector. É
automático. Cada irmão segura uma das suas mãos, o menino
como um elo entre os adultos. Aceno um Até logo! e sigo o meu
caminho. Antes de passar pelas grandes portas do prédio histórico,
olho por sobre o ombro e vejo os três parados, juntos, me
observando com atenção. Sorrio e eles sorriem de volta, quase que
em sincronia. Aceno uma última vez, o diamante faiscando ao sol, e
vou para a aula cheia de expectativa, feliz em perceber como um
irresistível segredo mudou a nossa vida.
— Pelo amor de Deus, Hector. Você é muito ruim! — rio olhando
de soslaio para o meu irmão. Ele resmunga qualquer coisa e
balança a cabeça, apertando todos os botões do controle do
videogame ao mesmo tempo. — Sinto lhe dizer, mas não vai
funcionar. Isso não é um jogo de luta.
— Sei muito bem que não é um jogo de luta — reclama. — Culpa
desse controle — acrescenta, olhando para o objeto em mãos.
Balanço a cabeça em negativa.
— Não ponha a culpa no controle. Você é ruim e pronto, acabou.
— Falou o expert do videogame!
— Se na sua juventude tivesse ficado menos tempo estudando e
mais tempo jogando, não estaria passando por esse vexame —
comento, quando o seu personagem cai para fora da pista colorida.
Pobre Mario. Já morreu umas cinquenta vezes.
Estamos sentados no sofá, jogando Mario Kart. Peter, com a
pontinha da língua de fora e o olhar fixo na televisão, ocupa o
espaço entre nós, concentrado a ponto de nem piscar. No começo
toda a família nos acompanhou, mas se cansaram e, um a um,
foram dormir. Antes de ir, Alicia pediu para que não deitássemos
tarde, mas o menino está longe de desistir, ainda mais agora que
chegamos na Rainbow Road, a fase mais difícil do jogo.
Hector volta à jogatina, aperta um botão aleatório e consegue
soltar o casco de tartaruga vermelho preso em seu kart, um dos
acessórios que pode ser utilizado para atacar qualquer outro
jogador. É claro que o casco acaba acertando o meu carrinho com o
Luigi, fazendo com que eu saia para fora da pista e perca o primeiro
lugar.
— Oh, merda!
Ele me olha de cara feia.
— Ei, não se esqueça que o Peter está na sala!
— Ele já está acostumado — digo, bagunçando o seu cabelo. O
menino nem se mexe enquanto Hector arregala os olhos.
— Como é que é?
— Ah, vai me dizer que você não soltava um palavrão dentro de
casa?
— Claro que não! Eu sou um homem educado! — retruca, com ar
superior.
— Você é um chato, Hector.
— Ah, vai se fo…
Peter ultrapassa o vilão Bowser e grita de alegria, tornando-se
dono do primeiro lugar. De volta a pista, penso em atrapalhá-lo com
outro casco, mas opto por jogá-lo no seu pai de verdade.
— Você sabe que eu te amo, não sabe? — dou um soquinho no
braço de Hector, apenas para enfatizar. Ele me encara, o rosto
abatido coberto de surpresa, os olhos cheios de lágrimas. Morde os
lábios e assente, visivelmente desconcertado.
— Eu também te amo — consegue dizer com a voz embargada.
Um sorriso sacana brota nos seus lábios e o rosto se ilumina. —
Mesmo que você seja um idiota — acrescenta, em tom de
brincadeira. Soco o seu braço de novo, mas ele é rápido em desviar.
— Ganhei! — corta Peter, jogando os braços para cima em
comemoração assim que o seu Toad passa pela linha de chegada.
Eu e Hector nos entreolhamos e caímos na gargalhada.
FIM

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