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Copyright © 2023 by N.S.

Park
Diagramação: N.S. Park
Capa e todos os outros elementos ilustrados neste livro: N.S. Park
Revisão do Livro: Patrini Viero (@pedaletrarevisao)
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou
mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da autora.

Park, N.S.
Prometa não se apaixonar / N.S. Park. – Romance
1. Ed. — 2023
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OI, VOVÔ

EPÍLOGO

AQUELE EM QUE A ESCRITORA CONHECE A BORBOLETA AZUL

PARTICIPAÇÕES ESPECIAIS

CARTA AO LEITOR

OBRIGADA!

SOBRE A AUTORA

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+16
ALERTA DE GATILHO

Prometa não se apaixonar aborda temas como abuso psicológico e físico/sexual, luto,
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PIRATARIA É CRIME!
GUIA DE PRONÚNCIA

BASH — BÉ-SH
AMY — EI-MI
AMES — EI-MS
CLAUDE — CLO-DE
MOLLY — MÓ-LI
Para a pessoa
Que não é de sorrir,
Não gosta de chorar,
Mas me ensinou o que é viver,
Amar e ser família.
Te amo, vô. Hoje e sempre.
“Não é o tempo nem a oportunidade
que determinam a intimidade,
é só a disposição.”

Jane Austen – Razão e sensibilidade


Contornei sua cintura com as pernas, o puxando para mais perto enquanto minhas mãos se
agarravam à camisa dele. Sua boca reivindicou a minha, a língua em uma dança apressada,
aqueles dedos em minha nuca me enlouqueciam de uma forma que não pensei serem capazes de
fazer um dia.
Não haveria pessoas na cidade para comentar, ninguém se interessava pelas nossas vidas ali,
era apenas nós dois.
Ele me queria.
Estava apaixonado por mim.
Busquei ar quando seus lábios se afastaram, inclinei a cabeça para trás e permiti que
explorasse meu pescoço, beijasse cada centímetro de pele…
— Bash!
Arregalei os olhos e me sentei sobressaltada na cama — batendo a cabeça da prateleira no
processo — quando a voz feminina gargalhou do outro lado, através da parede ridiculamente
fina, me despertando, interrompendo bruscamente meu sonho digno de um romance lindo e
arrebatador. A risada se transformou em… outras coisas. Ah, aquele palhaço colocou a música
alta outra vez, mas a melodia detestável não aplacava os outros sons.
Às vezes, quando ainda estava acordada escrevendo, com humor razoavelmente bom,
catalogava a voz e os gemidos... hm... peculiares e engraçados das companheiras noturnas do
meu colega de quarto. Aquela definitivamente era um esquilo, reproduzia um som agudo e
repetitivo. Esse não era engraçado, era irritante e insuportável. Uma tortura.
E eu teria que trabalhar pela manhã. Damian não perdoava atrasos. Além disso, meu patrão
me assustava o suficiente para eu evitar a todo custo ser motivo de atenção dos olhos pretos e
matadores do editor-chefe. Também contava com o bom senso do homem para me efetivar no
próximo ano. Quem sabe, aceitar publicar um de meus originais na GO. Romance?
Fechei os olhos com força e cobri os ouvidos com o travesseiro macio enquanto me encolhia
de volta no colchão quente e contava os segundos. Me perguntava quanto tempo dessa vez
poderia durar… o ato.
Homem detestável!
Me perguntava sobre os vizinhos, se escutavam no andar de cima ou sentiam as vibrações
sugestivas no andar de baixo. Meu último encontro com a Sra. Mason me confirmava a
possibilidade, pois a mulher reclamara que eu era “barulhenta demais quando estava me
divertindo com o namorado”.
Ele não era meu namorado!
E eu jamais faria sons tão terríveis!
A síndica e dona do pequeno e deplorável prédio não se incomodava quando, vez ou outra, eu
ia até seu apartamento para reclamar. E como poderia culpá-la quando eu era uma escritora de
óculos redondos e senso de moda questionável versus o bonitão de um e noventa, tatuado e de
sorriso irritante? Eu não conseguia argumentar quando Sebastian parecia um guerreiro gostosão
tirado de uma série de fotos indecentes do Pinterest.
Ah, e ele era músico.
Como competir, certo? Eu tinha uma lista de reclamações suficientes para expulsar o cara do
prédio, enquanto Sebastian tinha um tanquinho bronzeado e uma calça odiosa incapaz de parar
na cintura.
A Sra. Hazelwood sequer prestava atenção no que eu dizia quando ele estava perto para se
proteger dos meus protestos.
Argh!
Mais gritos, risadas, gemidos… a cama. Maldição! Qualquer dia desses eu teria coragem para
invadir aquele quarto e me livrar daquela cama barulhenta. Reuniria coragem suficiente a fim de
pagar alguém para fazê-lo. De forma limpa e discreta.
E piorou. Se possível.
Sabia que meu colega de apartamento durava mais de dez minutos, muito mais, se contasse
todo o… processo antes de seguir até o ato final, mas não suportaria mais aquele áudio
indecente. Conseguia aturar normalmente, mas não naquela noite. Não com a mulher esquilo
escandalosa. Teria pesadelos com o som quando tentasse dormir.
Tateei a escrivaninha e peguei os óculos, saltei da cama e escancarei a porta, marchando para
fora, até o quarto ao lado. Descalça, com o cabelo embaraçado e uma expressão nada bonita no
rosto cansado, grunhi ao socar a porta com toda força que pude. Alternei os dois punhos ao
perceber que seria difícil vencer a música e a mulher gritando ali dentro.
Demorou, mas ataquei a porta até o som do cômodo suavizar, até Sebastian abaixar a música.
Madeira rangeu, e ouvi os passos tranquilos, o destravar das trancas. Precisei de todo o meu
autocontrole quando ele apareceu apenas com a calça, o tronco nu tatuado, os cabelos compridos
e pretos meio presos caindo sobre os ombros largos e bronzeados, bagunçados de uma maneira
selvagem, como se alguém tivesse passado as mãos ali diversas vezes.
O canto dos lábios manchados de vermelho – o batom do esquilo, provavelmente – se esticou,
e Sebastian se apoiou no batente da porta e cruzou os braços ao falar, num tom irritante e
sedutor:
— Se não é a minha linda vizinha… — Correu os olhos por mim, pelo corpo coberto por uma
camisola digna da minha falecida avó. O sorriso dele aumentou. Puro e completo deboche.
Ignorei o comentário, ignorei a mulher ruiva enrolada ao lençol da cama lá dentro.
— São. Três. Da. Manhã — ralhei pausadamente, a voz entre os dentes.
Ele me olhou como quem não se importava.
— Preciso trabalhar amanhã. — Meu objetivo era ser firme, cuspir as palavras como a velha
mal-humorada que era às vezes. Mas o que saiu da minha boca foi quase um choramingo de
“podem fazer a gentileza de ser mais silenciosos?”.
— Eu também. — Sebastian deu de ombros.
— Vocês são barulhentos, e já passou da hora de dormir!
Ele riu.
— Me desculpe, mãe.
Grunhi, sentindo o rosto corar com o sangue que fervia por baixo da pele.
Aquela não era uma discussão incomum. Não, não. Aquele momento no pequeno corredor de
paredes descascando, com cheiro de colônia masculina e chuva, era uma constante, uma rotina.
Ele ligava o som e trazia suas amigas; eu batia à porta dele com um bico enorme e irritado.
Pensei nas nossas últimas brigas, nas vezes em que Sebastian me tirara do sério, que não
conseguira me segurar e me alterara. Ao mesmo tempo, me perguntei por que sempre perdia, por
que sempre ficava por baixo e gaguejava no final. Ele nunca elevava a voz, nunca gritava. Eu
acharia até melhor do que os sorrisos presunçosos e a voz grave e sedutora. E meu colega de
quarto sabia disso: quando eu aparecia, Sebastian se recostava à porta daquele jeito relaxado e
me esperava soltar os cachorros.
Suspirei, cansada. Exausta.
Talvez fosse a pior época do ano me deixando rabugenta daquela forma. Definitivamente. Há
muito tempo eu não sabia o que era desfrutar do espírito natalino naquela cidade cinzenta e tão
agitada. Fora mágico em alguma época, quando eu corria para o primeiro andar na casa dos meus
pais na manhã fria de Natal e abria caixas e mais caixas de presente.
Agora, a data não significava nada para mim.
E era uma maldita tortura, pois precisava suportar o Dia de Ação de Graças um mês antes, e
agora...
Faltava pouco para o Natal.
Passara os últimos cinco anos sozinha, uma xícara de chocolate quente para aquecer as mãos e
o estômago, uma caixa de presente embrulhado para mim mesma cuja única função era trazer um
pouco mais daquela alegria ilusória. Claude empoleirado em algum lugar.
E tinha o trabalho.
Era meu primeiro ano na GO. Romance. Nunca pensara em como a editora ficava tão
terrivelmente agitada naquela época do ano. Promoções, lançamentos, contos natalinos para
revisar, publicar e divulgar…
Eu estava esgotada.
Só queria um pouco de descanso. Paz.
Inspirei fundo e tentei não contorcer o rosto em uma careta ao encarar Sebastian com a testa
franzida. A mulher esquilo ridiculamente bonita espreguiçada na cama me olhava meio
emburrada por eu ter atrapalhado a diversão.
Minha presença nunca era um incômodo para elas. Afinal, era mais do que óbvio: a colega de
quarto do músico não passava de um enfeite feio como um dos quadros da parede. Eu estava
longe de ser atraente, claro, longe de ser o tipo de mulher que Sebastian levaria para a cama.
— Sei que todos nós… — Tentei soar calma. — Sei que cada um faz o que quiser da vida. E
honestamente, é legal que você tenha uma vida… é… romântica tão ativa.
Sebastian riu com escárnio.
Eu o ignorei.
— Mas tenho uma reunião importante amanhã, não quero chegar ao trabalho e deixar meu
chefe pensar que passei o domingo em uma noitada e acordei de ressaca. — Isso acontecera da
última vez que meu colega resolvera dar uma festinha. A boca dele se abriu, provavelmente um
comentário debochado, mas eu rapidamente continuei: — O Natal está chegando. Pensei que as
pessoas fossem mais boazinhas nessa época do ano, não?
O sorriso dele não vacilou, e eu quis muito quebrar aqueles dentes.
— Por favor — supliquei. Talvez fosse o sono, talvez fosse a data, não me importei daquela
vez. Precisava dormir. — Só hoje… — Quase chorei ao pedir. — Me deixa dormir só hoje.
Sebastian pigarreou e assentiu, sério, mas com o cinismo dançando nas íris castanhas dos
olhos bonitos. E eu soube o que passara na cabeça dele, o que minha súplica sugeriria em outro
contexto.
— Me pedindo desse jeito… — ronronou as palavras, esticando uma das mãos para ajeitar as
mechas da minha franja bagunçada — …sequer consigo dizer não.
Bufei.
— Você é um porco! — Afastei sua mão com um tapa. Quis xingar mais, xingar de verdade.
Porém, da última vez que tentei, Sebastian riu da minha cara.
Ele sorriu.
— Esse foi melhor — elogiou, como se também se lembrasse. Abri a boca para tentar de novo
e quase deixei a palavra escapar quando fui interrompida. Meu colega de quarto ergueu as mãos.
— Tudo bem. Trégua esta noite. Antes que me chame de calhorda outra vez.
Estreitei os olhos, desconfiada. Da última vez que me arriscara a usar o drama, ele dissera
quase as mesmas coisas e, quando encostei a cabeça no travesseiro, a música recomeçara. Três
vezes mais alta.
Relutante, assenti.
— Certo… Obrigada.
Como despedida, ele me lançou uma piscadela.
— Bons sonhos, Tiānshǐ.
Voltei para o quarto, os olhos pesados, cansados e doloridos. Antes de tirar os óculos, pensei
ter visto Claude – o gato de Bash – encolhido no canto da mesa, ao lado da pilha de livros,
tirando uma soneca. O ignorei, porém, e caí como um peso morto na cama.
Talvez fosse minha aparência deplorável, ou quem sabe Sebastian também não suportasse
outra série de guinchos agudos da ruiva. Quando fechei os olhos, não escutei mais nada por
minutos preciosos. Porém, no instante em que estava finalmente caindo em um sono profundo,
os sons de esquilo ecoaram outra vez.

Naquela quarta-feira a mulher que apareceu na bancada do nosso protótipo de cozinha era
baixa e loira, com cabelos curtos na altura dos ombros. Talvez modelo, garçonete ou uma das
clientes do pub onde Sebastian se apresentava todas as noites. Tinha olhar doce, era gentil e
muito bonita. Um ou dois anos mais nova do que eu e… barulhenta. Muito barulhenta.
A garota da vez era definitivamente um Cisne. Principalmente no clímax, e fora tão engraçado
que eu nem conseguira sair do quarto para interromper os dois na madrugada passada. Cisne se
aproximou, com uma camisa grande demais que eu já vira outras mulheres usarem antes.
— Bom dia — disse, tímida, mas sorrindo de orelha a orelha. Suspirou, apaixonada.
— Bom dia. — Sorri de volta e lancei um olhar para o quarto do meu colega, agora vazio. —
Panqueca?
— Por favor. — Ela puxou uma das banquetas e se sentou, juntando as mãos sobre a
superfície da bancada, onde dois pratos vazios esperavam.
Sebastian era um galanteador e, pelos anos dividindo o apartamento com ele, sabia como
tratava bem suas convidadas, mas não era um príncipe encantado. Definitivamente não. Quando
o sol nascia, aquele bobão saía cedo demais para correr e me deixava responsável pelo despacho.
Da primeira vez, fiz aquilo por pena, pois uma delas aparecera procurando por Bash. Esperando
que pudessem repetir a noite de diversão, mas ele não se apegava a nenhuma delas.
Sabia que meu colega sempre as alertava antes de trazê-las; não tinha dificuldade alguma em
ser sincero, prático, mas algumas simplesmente achavam que eram a escolhida, capazes de
amolecer o coração endurecido dele.
Servi três panquecas redondas e perfeitas, calda por cima. Então, arrastei o prato para a garota
Cisne e lancei a ela meu melhor sorriso.
— Aproveite o café.
— Obrigada! — Quase cantarolou a palavra.
Suspirei com pesar.
— Vou pegar uma toalha limpa para você, pode tomar um banho rápido se quiser. — Conferi
o relógio de bolso prateado, um antigo que meu avô me dera no meu aniversário de quinze anos.
— Preciso sair às sete.
— Ah! — Ela pareceu entender o que quis dizer e corou. — Sebastian, ele…
Essa era a parte que apertava meu coração com um pouco de pena.
— Saiu para correr. — Vamos lá, é como tirar uma cera de depilação da perna: rápido, de
uma vez. Doeria, mas ia passar. — Ele não vai ligar para você. Não costuma repetir encontros.
Então…
A loira de grandes olhos azuis me fitou, finalmente reparando em mim. Na jovem que falava
com ela, no cabelo castanho sem graça amarrado para trás em um lenço, nos óculos grandes e
arredondados demais comprados em uma promoção qualquer da ótica não porque gostei, mas
porque precisava desesperadamente deles, no suéter com cor de ovo estragado e na camisa
igualmente brega por baixo.
Sebastian não precisava de muito para convencer suas visitas de que nós dois não tínhamos
nada. Ele nem me via realmente como uma opção, como uma mulher. E eu estava satisfeita por
isso, por ser uma coisinha apagada e sem graça que as pessoas sequer notavam.
— Você é a agente dele? — Cisne questionou.
A pergunta era frequente também.
— Não, sou só a colega de quarto. — Inspirei fundo, voltando a me concentrar nas panquecas.
A única coisa de fato saborosa que eu sabia fazer. — Mas parece que deixar recados é uma coisa
que faço por aqui.
— Então… Ele não gostou de mim?
Antes que a mágoa brincasse nos olhos dela, respondi:
— Ele gostou, acredite. — Escutei o suficiente para ter certeza. — Mas pense nele como um
lobo solitário. Sebastian não gosta de se comprometer. Talvez saiba que pode te magoar. Mas é
melhor você fugir enquanto pode.
A garota mordeu o primeiro pedaço de panqueca, assentindo. Depois de pensar um pouco e
suspirar algumas vezes, resmungou com a boca cheia:
— Ele é um canalha, não é?
Concordei, colocando uma rodela de massa doce no meu prato.
— Obrigada pelo café… er…
— Amy.
— Amy. — Ela sorriu um pouco. — E por me dar o recado.
Minha resposta foi colocar mais calda no prato dela.
Bash e eu nunca passávamos um tempo considerável juntos: quando eu saía para o trabalho,
ele estava fazendo algum bico por aí; quando eu voltava, meu colega de quarto estava de saída
para tocar no Green’s. Nossas conversas eram limitadas a reclamações sobre a conta de luz e de
internet, as músicas altas no domingo, a cama barulhenta dele às três da manhã… Eu não saberia
dizer se o fato de ele não se apegar era por algum trauma do passado ou apenas canalhice
mesmo, então gostava de florear para as apaixonadas iludidas que só a beleza injusta dele não
valia a pena.
Mas a garota Cisne conversou comigo antes de terminar o café, trocar de roupa e sair. E
pensei que talvez ela fosse a pessoa para Sebastian. Alguém capaz de amolecer seu humor ácido
e sarcasmo
Ou talvez não.

Encarei o cartão-postal em minha mesa ridiculamente pequena, o café agora frio ao lado,
intocado. Senti o olhar da minha colega me estudando. Não conversávamos muito. Naya sequer
conseguia roubar um tempinho do trabalho para descansar. Como assistente de Damian, nunca
parava quieta, era a única que nosso chefe parecia suportar por perto.
Uma vez, pude jurar vê-lo sorrir para algo que ela disse, mas fora tão rápido… E o homem
sequer mostrara os dentes, eu pensei ter sido outra consequência da minha imaginação
extremamente fértil. Naya era o mais próximo que eu tinha de uma amiga e, mesmo assim, se
trocávamos uma conversa curta de cinco frases por semana era muito.
— Sempre achei esse tipo de coisa brega, um desperdício de papel — ela comentou,
arrancando o postal de Natal da minha mão como se soubesse que aquele cartão queimava meus
dedos. — Aposto que sequer ligam para você durante o ano.
— Não ligam — confessei, a garganta seca. — Na verdade… nunca me enviam essa coisa.
Ergui o rosto para observar minha colega. O cabelo acobreado e cacheado fora preso em um
coque frouxo e elegante atrás da cabeça, os óculos quadrados de armação preta acentuavam o ar
intelectual que apenas Naya aparentava ter. Era bonita e bem mais alta do que eu, sempre
parecendo mais velha por conta dos saltos e terninhos que gostava de usar.
Uma vez, me dignei a copiar o estilo dela. Era sofisticado e tão… chique. Mas não funcionou.
A calça ficara justa demais e destacara meu quadril largo, a bainha dobrada não ajudara muito, e
eu me sentira incomodada com os blazers. Ou talvez aquela fosse só mais uma desculpa para não
me arrumar direito.
— Este é seu pai? — Naya perguntou depois de alguns segundos analisando a fotografia da
família.
— Huh. — Meneei com a cabeça, o coração cada vez mais apertado. Depois de todo aquele
tempo… Por que mandaram um cartão de Natal? Pensava que minha família iria querer qualquer
coisa, menos a filha caçula na roda da mesa de uma comemoração tão sagrada para os Sanchez.
Algo havia acontecido.
Algo ruim.
Caso contrário, não se incomodariam.
Não se incomodaram nos últimos cinco anos.
— Você se parece com eles — continuou Naya. — Sua irmã também. Este aqui é o marido
dela? Parece que você vai ser tia…
Senti o estômago embrulhar, as tripas como pano encharcado sendo retorcido.
Minha irmã. Sim. Minha irmã estava grávida.
Mas não era aquilo. Meus pais não me convidariam para o Natal apenas para esfregar na
minha cara que minha irmã bem-sucedida e casada agora estava prestes a conceber o primeiro
neto da família.
Já era cruel o suficiente saber daquela forma.
Algo tinha acontecido. Algo ruim.
— Você claramente não está me ouvindo. — Naya bufou, deixando o cartão vermelho, verde
e dourado sobre a mesa. Então, conferiu o pequeno relógio de couro preto no pulso fino. — E
meu horário miserável de almoço acabou. Alguém precisa alimentar aquela besta terrível.
Aquilo me despertou dos devaneios. Me fez sorrir um pouco.
— Você é a única neste lugar que fala isso dele sem ser demitida.
Os lábios dela se esticaram, convencida.
— Porque ele sabe que não vai encontrar uma assistente tão eficiente quanto eu. — Piscou um
olho, ajeitando o terninho cinza-azulado.
Se a visse na rua, se não a conhecesse, pensaria que Naya era uma advogada importante.
Antes de sair, minha colega me lançou um último olhar carinhoso.
— Se for te fazer mal, não vá, mas se precisa mesmo ir… Erga a cabeça e mantenha os
ombros retos. É tão deprimente quando eles conseguem nos abater. Seja forte.
Sorri.
— Obrigada.
Quando me vi sozinha outra vez, senti aquele cartão-postal – as pessoas sorrindo nele – me
machucar como um ferrete. Já me marcaram daquela forma antes, por isso deixara aquela cidade
minúscula e isolada do mundo. Todos que me vissem caminhar por aquelas ruas outra vez
notariam as cicatrizes em mim. Saberiam quem eu era e o que… tinha feito.
Minha família nunca me perdoara.
Eu com certeza não os perdoaria também.
Antes que meu horário de almoço terminasse, reuni toda a coragem disponível e, com as mãos
trêmulas, digitei o número de meu pai. Ensaiara fazer aquilo nos últimos anos, mas o orgulho me
impedira de realizar as chamadas de verdade. Não suportaria, no entanto, o tom acusatório dos
meus pais caso atendessem. Porque atenderiam. Para me apunhalar mais uma vez. Me marcar
com ferro e brasas quentes de palavras cruéis e desgosto.
A voz grave do meu pai atendeu e, por um segundo, me permiti internalizar aquele som, a
saudade que sentia dele.
Cinco anos. Fazia cinco anos que não escutava aquela voz.
— Oi, pai.
— Amy?
Inspirei, as mãos trêmulas.
— Eu… — Minha garganta se fechou, prendendo as palavras ali. Mas eu não queria ser fraca,
não queria ser fraca, não queria… — Recebi o cartão de Natal.
— Oh! — O homem pareceu aliviado com a notícia. — Isso é ótimo, então você consegue vir
a tempo de…
— Não vou.
Um suspiro. Ele sabia que a resposta seria aquela, não podia achar possível receber outra. Não
se eu estivesse disposta a jogar fora o orgulho já em frangalhos.
— Sabe que não a convidaríamos se não fosse importante.
Aquela frase me atingiu com tanta força que senti meu coração sangrar.
— Sei que não. Mas não vou.
— Amelie… — Não hija[1] ou querida, nunca o apelido carinhoso que um dia usara para se
referir a mim. Por vergonha. Porque não me amava mais.
Contive as lágrimas que começaram a se acumular. Queimavam tanto meus olhos que precisei
tirar os óculos, eles pareciam inúteis àquela altura. O mundo ficou embaçado e distorcido.
— Vi que Jolie está grávida. Deve estar feliz, você e a mamãe sempre quiseram um netinho.
— Doía tanto. Tanto. Tanto. — Espero de coração que vocês…
— Abuelo[2] está doente.
Parei.
O quê?
Meu pai suspirou com pesar.
— Um tumor avançado no pulmão. Os médicos tentaram de tudo, mas ele não quer mais
continuar com o tratamento…
Não quer continuar com o tratamento…
— Quanto tempo? — o interrompi, rouca, sem ar.
— Te mandamos o cartão porque ele quer te ver e...
— Quanto tempo?!
— Os médicos não sabem ao certo, com sorte, alguns meses, se ele…
— Há quanto tempo o vovô está assim? — o cortei outra vez. Lágrimas frias e salgadas já
corriam copiosamente por minhas bochechas. — Por quanto tempo vocês esconderam isso de
mim?
Silêncio.
Se meu pai sentisse qualquer coisa por mim, julgaria que aquela quietude do outro lado da
linha era puro e completo embaraço. Arrependimento. Mas eles fizeram de propósito.
Escolheram não contar.
— Há quanto tempo?! — gritei, ignorando as pessoas ali. Não me importei nem se meu
próprio chefe estivesse assistindo à cena.
— Três anos.
Meu coração se partiu em mil pedaços, estilhaçado no chão onde minha família tão
alegremente pisava.
Talvez eu merecesse. Eu merecia.
Mas meu avô… Ele fora o único que não me abandonara. Não de verdade. Ele me amara até o
fim.
E agora…
Não suportei o lugar, não suportei a voz do meu pai ao celular, apenas me levantei
abruptamente e corri por entre as mesas, por meus colegas que me observavam, mas que eu não
reconhecia. Não sem os óculos detestáveis.
Ao ver as portas duplas do elevador se abrirem, colidi com a pessoa saindo dele e pedi
desculpas com a voz trêmula, sem realmente ligar. Mal me importei quando reconheci a silhueta
embaçada. Era alta e usava as roupas pretas de sempre, e só havia uma pessoa naquela editora
com cabelos tão escuros e lisos. Pálido, sério e assustador.
Meu chefe.
O cara que todos tinham medo de encarar.
A simples menção vã ao nome de Damian era motivo para uma demissão.
Mas não liguei. Não me importava se fosse demitida por fazer tanto estardalhaço.
Estava quebrada bem antes daquela ligação.
Escutei meu chefe respirar fundo, ainda parado diante de mim. Ele fez um gesto com uma das
mãos para alguém. Ouvi passos corridos, e então a pessoa se aproximou e entregou algo ao
editor-chefe. Só soube o que era quando minha visão embaçada ganhou forma outra vez. Até
meus colegas no pequeno espaço de edição pareceram parar de respirar quando Damian Lee
cuidadosamente colocou a armação arredondada de volta ao meu rosto e depositou o celular na
minha mão.
Era assustador vê-lo tão de perto.
Lindo, cruel e forjado para quebrar corações.
Mas não consegui pensar nisso por mais de meio segundo.
Abuelo… Meu vô… Meu amigo…
Eu mal conseguia me manter de pé. Queria sair daquele prédio e gritar de ódio. Chorar de
tristeza e culpa.
Meu chefe aprumou as costas, levando as mãos para detrás do corpo. Ele me observou por
alguns segundos, sério demais, talvez pronto para pedir à Naya que providenciasse minha
demissão. Mas o que saiu da linda boca dele foi:
— Vou te perguntar uma vez e quero que responda com sinceridade.
Assenti, soluçando.
— Está chorando por um homem? — Neguei. — Por uma mulher? — Fiz que não outra vez.
— Não está chorando porque terminou com alguém, então? — A voz grave já me intimidara
antes, mas não daquela vez. Eu queria correr por outro motivo. Depois de negar novamente,
Damian questionou mais baixo: — Perdeu alguém?
Ainda não.
Deus… Só mais um pouco. Dê a ele só mais algum tempo…
Meu choro se intensificou.
— Não. — Um soluço deixou meus lábios, despedaçado, desesperado. Sussurrei: — Mas vou.
O editor-chefe recuou um passo, dando passagem para eu acessar o elevador. Damian apertou
o botão. Para o primeiro andar.
— Então, antecipe suas férias de inverno — ordenou.
Não era um “você está no olho da rua”, eu sabia. Aquele era um ato de misericórdia do cara
mais temido do prédio. Muitos rumores diziam que Damian perdera sua mulher em um trágico
acidente. Até tinham uma lenda sobre a “noiva fantasma” que vivia atormentando o homem. Sem
coração, as pessoas murmuravam. Até já existiam boatos de ele ter causado a morte da amada.
Eu jamais dava créditos a boatos, não quando entendia como machucavam.
Não acreditaria agora, não com aquela demonstração de humanidade.
Ele perdera alguém. Sabia como doía.
E eu logo descobriria também, certo?
O agradeci, correndo para dentro da cabine prateada quando as portas duplas se abriram.
Entrei no primeiro táxi, com forças o suficiente para mandar uma mensagem ao meu pai e dizer
que iria passar o Natal em família.
Com meu avô.
Fui forte até a fileira de prédios comuns e alaranjados aparecer, até descer do veículo e
caminhar para as portas de entrada. Fui firme enquanto subia as escadas, mas os degraus me
deram tempo para pensar, para lembrar daquele abraço que eu recebera antes de partir da casa
dos meus pais. Vovô nunca fora um homem de muitas palavras, quase não se pronunciava. Por
isso, ele não disse nada quando o pior aconteceu, não disse nada quando as pessoas me
apedrejaram e me isolaram. Não, aquele homem de coração enorme não disse nada, não
perguntou nada, mas me abraçou forte e falou apenas o suficiente.
“Se cuida, filha. E não chore muito.”
Era um “eu te amo, minha neta”, porque meu avô sempre soube dizer aquelas palavras de
outras formas.
E agora ele estava partindo?
Agora ele estava com os dias contados?
Aquilo estava me sufocando.
Por que só me notificavam agora? Por que só se importavam que eu soubesse agora? Eu
merecia saber. No dia em que descobriram sobre o câncer, deveriam ter me contado de imediato.
Agora era tarde demais, e só restava dizer adeus?
Minhas pernas se tornaram chumbo, meu coração era o pior peso que tentei carregar até o
apartamento. Me virei contra a parede, senti as forças caírem e quicarem escada abaixo.
Dói tanto.
Não consegui prosseguir, não suportei me mexer. Então, me encolhi nos últimos degraus,
abracei os joelhos e chorei.
Eu estava voltando de uma entrega quando escutei os soluços do alto. Normalmente, ficava
em casa às tardes, mas me sentia entediado nos últimos dias e aceitara o bico de entregador no
restaurante do meu primo durante o horário de almoço. Ele me pagava bem e dava comida de
graça. Porém, não me senti muito animado em voltar para o apartamento quando escutei o choro
agudo e feminino vindo do meu andar.
Espiei, subindo mais alguns degraus. Sabia não ser uma conhecida, ao menos não uma das
minhas companhias noturnas – eu deixava claro que era uma noite, apenas uma; elas só queriam
se divertir, como eu. No entanto, logo reconheci as mechas castanhas, o suéter com cor de folha
seca e roupa antiga, os sapatos e meias bregas que ela geralmente usava.
Voltei os degraus avançados, suspirando. Se subisse, seria grosseiro demais passar por ela –
afinal, Amy estava encolhida no meio do caminho que me levaria para o corredor, para o nosso
apartamento – sem nenhum consolo em mente. Apenas dizer “sai da frente” seria muito rude. Eu
definitivamente não era bom com palavras bonitas.
E tinha aquilo. Aquilo que desestruturava qualquer homem digno do título: as lágrimas caindo
copiosamente no rosto delicado. Me considerava bom o suficiente em contornar qualquer
situação, mas lidar com uma mulher chorando…
Era demais para mim.
Coloquei as mãos nos bolsos da calça jeans escura e me recostei na parede, um lance de
escadas abaixo. Amy não me veria mesmo se erguesse o rosto dos braços que a escondiam do
mundo. Então fiquei ali, escutando o som horrível que me deixava inquieto. A pergunta foi
furtiva, mas justificada para passar os minutos ali: por que ela estava chorando?
Não éramos próximos o suficiente para eu a questionar, mal nos cumprimentávamos quando
nos esbarrávamos por aí. Fora as noites nas quais minha colega de quarto aparecia desarrumada e
emburrada para implicar comigo sobre as músicas altas e as companhias, não conversávamos
muito. Mesmo depois de cinco anos, era a primeira vez que a via chorar. Não que me importasse,
realmente, mas me questionei o motivo de Amy se encolher no meio das escadas daquela forma
tão vulnerável.
Cinco minutos depois, o choro silenciou e só restaram os soluços. Mais três minutos e não
escutei mais nada, nem um ruído dela se mexendo para levantar, nenhum suspiro de sua
respiração. Desejei que minha colega não estivesse mais ali, que entrasse e corresse para o
quarto, me poupasse do embaraço. No entanto, quando virei para subir aquele último lance de
escadas no qual Amy estava, a encontrei encarando algum ponto vazio, como se apenas seu
corpo estivesse ali. Existindo.
Pensei ser um sinal para avançar, talvez ela sequer me notasse passar.
E de fato não notou, mas uma voz irritante cantarolou para eu dizer alguma coisa. Qualquer
coisa. Provocá-la. E talvez Amy me xingasse, fechasse a cara para mim, mas qualquer coisa seria
melhor do que o opaco nos olhos castanhos dela.
Consegui passar por Amy. Poderia seguir para o apartamento, poderia lidar com a consciência
de deixá-la sozinha chorando nas escadas, mas…
Merda.
Dei meia-volta e me sentei ao lado da figura solitária em lágrimas, a chave do apartamento
brincando em minha mão.
— O cara partiu seu coração? — tentei ao inclinar um pouco a cabeça para observar melhor o
rosto dela. Minha vizinha não desviou o olhar daquele ponto perdido, aquele que a sugava para
longe do mundo. O cabelo estava preso como sempre. Porém, dessa vez, havia mechas soltas,
desgrenhadas.
Ignorei a imagem que brincou em minha mente, as provocações que eu poderia e queria fazer.
Ela suspirou, como apenas uma pessoa depois de muito choro e dor suspira.
— Por que tem que ser um cara? — perguntou baixinho, rouca. Me questionei se ela sabia
com quem falava. A armação horrorosa estava em uma das mãos, talvez não me reconhecesse
sem os óculos arredondados. Me lembrei da nota mental que fizera quando a vi assim pela
primeira vez, de como a moça ficava mais atraente sem eles. — Por que… sempre tem que ter
um cara?
— Não tem um cara? — indaguei, paciente.
Ela riu sem qualquer graça, sem qualquer emoção.
— Infelizmente, tem um cara. — Depois, me encarou, mas não pareceu surpresa ou irritada
em me ver. Na verdade, Amy não se importaria mesmo se eu fosse o próprio Pennywise[3]
assentado ao seu lado, conversando com ela. — Mas não é por causa dele que estou chorando.
— Então o que é?
— Acho… que vou perder alguém — sussurrou, rouca.
A observei com cuidado, nunca a vira tão pequena e frágil. Aquele sentimento me visitava
poucas vezes, eu raramente sentia aquele tipo de empatia, raramente tinha vontade de segurar
uma mulher contra o peito para consolá-la.
Não era aquele tipo de cara.
Bem, não mais. Mas talvez o infeliz ainda estivesse vivo dentro de mim em algum lugar.
— Essa pessoa que você acha que vai perder… — Me contive.
A razão voltou ao corpo dela, minha colega se deu conta de com quem falava, acordou para
onde estava.
— Então você não trabalha mesmo? — Foi o que disse ao me observar de cima a baixo. —
São duas horas da tarde, e aqui está.
Franzi a testa.
— Olhe só se não é o sujo falando do mal lavado. Não me fez todo um discursinho sobre
precisar dormir para trabalhar no dia seguinte? — Bufei. — E aqui está você.
— Eu trabalho. — Amy fechou a cara, e uma parte minha não identificada se sentiu satisfeita
por ver a irritação brincar no rosto dela. Dançar nas íris cor de terra dos olhos vermelhos e
inchados de choro. — Eu só… fui liberada mais cedo.
Reconheci a tristeza profunda no tom rouco e oscilante. Eu já ignorara facilmente muitas
outras situações como aquela, mas vê-la chorando me deixava inquieto por algum motivo.
Massageei a têmpora. Não acreditava no que ia dizer…
— Quer… conversar sobre o que está acontecendo? — Parecia ter pregos na garganta.
Amy riu daquele jeito sem vida outra vez.
— Não pensei que tivesse um coração aí dentro.
— Caso contrário, não estaria aqui agora — retruquei com uma piscadela.
— Não precisa ficar para desencargo da consciência, Sebastian.
— Interessante. — A observei, ela sustentou o olhar.
— O que é interessante? — Fungou.
— Pensei que não soubesse meu nome. — Eu raramente a ouvia pronunciá-lo. Normalmente
era Bobão, Palhaço ou Calhorda.
Amy me lançou uma careta.
— Já pode ir — disse, colocando os óculos horrorosos e ajeitando os fios do cabelo ondulado
atrás da orelha. — Estou melhor.
Fiquei de pé e estendi a mão para ela.
Olhos castanhos encararam aquela mão.
Balancei os dedos.
— Não mordo — brinquei.
— Morde, sim — reclamou, me fazendo rir.
— Talvez um pouco. — Busquei a mão delicada e puxei Amy para cima, a ajudando a ficar
de pé. — Mas não você.
Ela assentiu séria, rapidamente se afastando.
Abri a porta e deixei minha colega entrar primeiro. Pensei em dizer algo, oferecer um café,
qualquer coisa que pessoas gentis normalmente ofereceriam a alguém frágil e abatido, mas ela
não esperaria tal coisa de mim.
Então, não dei aquilo à Amy.
A observei atravessar a sala, seguir sem muito ânimo para o próprio quarto e sumir.
Eu era um canalha. Um dos melhores. Recebia tapas na cara semanais por isto: por não ligar
no dia seguinte, por não presentear em datas importantes, por me esquecer dos nomes e rostos
com a mesma facilidade que esquecia qual fora o café da manhã. Mas quando o dia começou e
não vi Amy de pé, se preparando para terminar a primeira refeição e sair, como de costume, não
consegui evitar o aperto no peito ao lembrar a tristeza nos olhos castanho-claros. Só conseguia
pensar no que poderia fazer para tirar aquele sentimento dela. Parar com o choro que eu ouvira a
noite toda.
Pensei em plugar a guitarra na melhor caixa de som e tocar o solo mais agitado do meu
repertório. Irritá-la era sempre a opção mais viável, e com promessa de sucesso. Vê-la brava
comigo seria melhor do que escutá-la chorar outra vez. Desisti da ideia, no entanto. Ela merecia
um pouco de descanso para variar. Então, apenas me forcei a mantê-la longe dos pensamentos.
Eu precisaria ir.
Se eu pudesse apenas… ficar, ficaria. Porque comparecer àquele tipo de evento, há muito
tempo… Apenas não comparecer não era mais uma opção. Como meu pai mesmo dissera: se não
fosse importante, eles não me convidariam.
Não me queriam lá.
Dessa vez, porém, não existia escolha. Eu iria.
Enfrentaria os murmúrios afiados, as fofocas, os olhares acusadores e a presença sufocante de
minha família para poder ver abuelo[4]. Passar um tempo com ele.
Meu coração ainda doía por pensar nos últimos anos longe, e eu não me afastara apenas por
mim. Me mantive longe por amá-los demais. Porque me ter naquela casa, naquela cidade, só
atrairia mais rumores sobre a filha mais nova da família Sanchez. No último Natal com eles,
cinco anos antes, papai perdera muito nos negócios por minha causa.
Por causa do que diziam sobre mim.
Mas eu suportaria aquilo para ver meu avô. Suportaria cada fisgada, pontada de dor e
humilhação para ficar com ele.
Suspirei.
Seria o pior Natal da minha vida.
Os últimos foram solitários e vazios, sem uma mesa recheada de comida e risadas, sem uma
sala com lareira e presentes, sem amigos e histórias, mas pelo menos eu tinha meus livros. Pude
passar os últimos feriados trancada no quarto, escrevendo, lendo e aproveitando minha própria
companhia – e a dos barulhos infernais do quarto ao lado.
Sobrevivi àqueles eventos.
Não sabia se conseguiria suportar este: um Natal em família.
Minha irmã, tios, pais e… ele.
Sim, Sebastian tinha razão: havia um cara.
Para mim, aparentemente, sempre haveria, certo? Me perseguindo nos pensamentos,
independentemente de onde eu estivesse, o quão longe ficasse.
Como eu voltaria depois de todo aquele tempo e o encararia? Aquela cidade era menor do que
o bairro onde eu morava, o Natal era a data mais esperada pelos moradores daquele lugar. Havia
feiras, músicas, competição de melhor peru recheado e sobremesas, jogos, pessoas demais em
um lugar só. Todos se conheciam, todos trocavam presentes, todos sabiam sobre os segredos de
todo mundo.
E ele estaria lá.
Para rir de mim? Para tentar se aproximar?
Da última vez que o vira, com os lindos cabelos castanhos penteados para trás, um sobretudo
cinza e elegante, ele tentara se aproximar. Ele se aproximara. Da forma mais dolorosa e cruel
que eu podia imaginar.
Como apareceria para o Natal da minha família sabendo que o veria de novo?
Seria tão, tão, tão humilhante.
Já conseguia escutar suas palavras quando me vissem, os olhares que eu receberia. “Como ela
tem coragem de aparecer a essa altura?”, “Fugiu porque estava grávida?”, “Ela foi se prostituir
na cidade grande, uma amiga minha que mora em Bay Village a viu entrando num carro prateado
com um homem…”, “Como essa garota ousa jantar à mesa dos pais depois da vergonha que
trouxe para a família?”.
Essas eram apenas algumas entre tantas outras frases cruéis imaginadas por mim. Só
conseguia me preparar para escutar tudo isso quando pousasse na cidade de um clima só, chuva,
muita neve e fofocas. Choraminguei, abraçando o travesseiro apertado contra o corpo. Os olhos
esverdeados do gato me encararam de volta enquanto eu o observava se limpar em um canto do
cômodo.
— Sabe — funguei para o bichano —, é nessas horas que você precisa pular aqui e me dar
consolo, seu animal metido e egoísta.
Claude continuou me olhando com tédio.
— Você é um ingrato, sabia? Te dou carinho, alimento e brinquedos, e é assim que me
agradece?
A resposta dele foi se espreguiçar, pular sobre a escrivaninha e deitar à janela, sobre meus
livros. Talvez fugisse para o quarto do dono ou para a sala quando eu adormecesse.
Bash reclamava que o animal parecia se dar melhor comigo do que com ele, pois passava
mais tempo no meu quarto do que se espreguiçando perto dele. Eu discordava: Quando havia sol
e janelas abertas, Claude passava mais tempo saltando para os apartamentos de baixo, dos nossos
vizinhos, do que aproveitando a vida boa aqui.
Mas ele voltava, sempre.
Uma parte carente e solitária minha fingia que o gato realmente se importava, que sempre
voltava porque sabia o quanto eu realmente odiava ficar sozinha.
— O que eu faço? — murmurei, retornando aos meus problemas: vovô, rever meus pais, lidar
com uma cidade do interior que me odiava e… ele. Ele. Ele.
Me imaginar sozinha em algum momento, com Nolan perto, embrulhou meu estômago. Rever
os olhos azuis tão amados um dia… Talvez zombasse de mim também, talvez sorrisse daquele
jeito ao me ver entrar sozinha e sozinha ficar por todo final de semana. Uma escritora solteirona
de 23 que só vivia romances nas páginas dos livros que lia e escrevia.
Lamentável.
Principalmente quando ele era o núcleo central dos rumores incriminadores ao meu respeito.
Se eu pelo menos tivesse alguém…
Me sentei de forma abrupta no colchão, batendo a cabeça com força – de novo – na prateleira
que eu estupidamente parafusara ali, baixo demais. Mas a pancada não foi o suficiente para
afastar o pensamento. Muito pelo contrário, só me tirou o juízo.
Fiquei de pé.
— É isso! — Encarei as lombadas empilhadas sobre a escrivaninha, o livro sobre o qual
Claude estava deitado. A ideia era clichê e ridícula, mas momentos desesperados pedem… ideias
clichês ridículas. — Preciso levar alguém comigo.
Observei a mala aberta jogada no chão, roupas espalhadas por todos os lados. Eu tinha mais
quatro dias, o voo mais barato que conseguira seria sábado de manhã. Duas horas de voo, e então
eu estaria na cidade do terror de novo. Seria horrível, com certeza estaria nevando, mas se eu
conseguisse alguém para ir comigo… Alguém que topasse fingir por um final de semana
deprimente ser um namorado loucamente apaixonado…
Ridículo.
Voltei a me jogar na cama, desanimada, por dois motivos:
1) Eu não conhecia ninguém capaz de aceitar um absurdo desses.
2) Era uma ideia patética. Patética!
Já era triste o suficiente estar naquela situação, imagine só levar um namorado de mentira
para o Natal na casa dos meus pais? E se descobrissem? Não seria ainda mais humilhante? Mas o
que era um sapato manchado de lama para quem já estava inteiramente sujo? Certo? Eu
realmente não queria chegar sozinha naquela casa cheia de gente. Eu realmente não queria passar
o Natal cercada de olhares tão afiados e venenosos.
Meu peito já espremido no peito se encolheu mais, dessa vez dolorido pela ansiedade do que
eu estava cogitando fazer. Me levantei de novo e, com cuidado, tirei Claude de cima do exemplar
no qual cochilava confortavelmente. Era um lançamento da GO. Romance para o Natal daquele
ano. Fora um sucesso e estava no ranking de melhor romance natalino da Times. Um best-
seller[5]. Me lembro de revirar os olhos diante do título, da ideia do namoro falso, mesmo que
fosse meu clichê favorito na lista de filmes quando me forçava a vê-los.
Dei risada.
Até que o Natal acabe.
Céus… Eu estava mesmo cogitando a ideia.
Mas…
Massageei a têmpora, tentando encontrar o pouco juízo que me faltava naquele momento,
procurando pensar em qualquer outra coisa, qualquer desculpa. Listei os prós e contras, o que
levar um cara para o Natal com minha família significaria. Por que me beneficiaria.
Se fosse sozinha, seria alvo fácil para as cobras à espreita quando eu passasse. Se levasse
alguém, ele seria um alvo tão fácil quanto eu. E as fofocas chegariam ao namorado de mentira.
Ele ouviria os rumores: “Por que está namorando ela? Será que sabe?”, “Pobre rapaz”, “Aposto
que ela o seduziu da mesma forma que tentou seduzir Nolan naquela época”.
Mas seria melhor do que aguentar os outros comentários sozinha, não seria?
Mordi o lábio, com o peito dolorido e agitado.
Se eu ousasse brincar com aquela mentira, precisaria de um cara incapaz de se importar com
fofoca, com a opinião alheia. Alguém de personalidade forte, de preferência um homem alto que
colocasse o terror em quem ousasse olhar na minha direção.
Alguém que me protegesse, mesmo se fosse de mentira.
Ri outra vez. Ri da piada, da imbecilidade em cogitar aquilo.
Como eu convenceria um cara a realizar tal feito? Fingir me amar por três dias e me iludir
para manter as fofocas longe, mas não só isso: me vingar. Era sobre isso, certo? Queria provar
para todo mundo, principalmente ao cara responsável por partir meu coração de tantas formas,
que eu estava bem, estava trabalhando em uma grande editora, meu chefe adorou meus livros e
logo os publicaria – quando eu criasse coragem de enviá-los para Damian. Queria mostrar que
vivia em um apartamento enorme e com vista para a cidade – não um cubículo de quatro
cômodos com um gato que sequer era meu, confirmar que estava em um ótimo relacionamento
com o meu – falso – namorado.
Que havia superado.
Que o passado e os rumores cruéis não me incomodavam mais.
Era idiota, mas a adolescente abandonada dentro de mim implorava por isso. Que eu não fosse
sozinha, esfregasse na cara de todos a virarem as costas para mim que não precisava de nenhum
deles. Que tinha o amor de outra pessoa.
Mesmo se fosse uma mentira.
Só por três dias.
Mas quem? Quem em sã consciência aceitaria fingir ser meu namorado por três dias?
Abracei o livro que ainda segurava, o apertei contra o peito, me perguntei se seria uma boa
ideia fazer um anúncio de “procura-se” no mural da editora para ver se algum colega de trabalho
toparia. Além de Naya, eu não tinha outros amigos. Talvez Joshua aceitasse, o rapaz do
marketing. Mas ele era tímido demais e me abandonaria a qualquer sinal de perigo. Ou quem
sabe Nick, do RH. Ele parecia um homem bacana.
Isso. Talvez Nick aceitasse.
Mas lembrei que Naya me contara uma vez sobre um tarado no RH: ele catalogava “as bundas
mais bonitas” do prédio. Ela falara para Damian, obviamente, e então fomos notificados de que
qualquer mínimo indício de assédio deveria ser reportado ao chefe. Dois foram mandados
embora depois daquilo, não queria arriscar pedir a Nick e descobrir que ele era o tarado por
bundas.
Obviamente não pediria aquele favor ao meu chefe. O homem já me liberara mais cedo para o
Natal depois de ter me visto chorar.
Mas quem? Quem? Céus! Quem?
Fechei os olhos com força, vendo a ideia se dissolver devagar na mente como ondas que,
pouco a pouco, deformavam as torres de um castelo de areia. Me preparei para desistir, mas a
lâmpada imaginária sobre minha cabeça se acendeu quando o arranhado de uma caixa sendo
plugada preencheu o apartamento, e então eu soube o que deveria fazer quando um solo violento
de guitarra começou.
Sorri, colocando a palheta na boca quando as batidas incessantes e apressadas na porta
começaram. Amy fora rápida dessa vez: normalmente, minha colega de quarto contava até dez,
andava de um lado para o outro ou sabe-se lá o que fazia para tentar se acalmar antes de explodir
e vir me implorar para abaixar o som.
Era uma vingança.
Sim, uma vingança.
Eu pensara nela nos últimos cinco dias, não da forma que geralmente me ocupava ao pensar
em uma mulher, mas com preocupação, porque aquele outro lado da parede estava quieto
demais. Sempre fora, e eu não me importava com os sons dos vizinhos – não quando era o mais
barulhento do prédio. Contudo, por algum motivo… parecia quieto. Em geral, o único indício de
Amy no lugar era quando se aprontava para o trabalho pela manhã ou quando voltava de noite.
Mas ela não saíra, nem uma vez. Pelo menos não nas horas em que eu não estava no restaurante
de Jason ou no Green’s.
Ela está bem? Será que está se alimentando? Está chorando agora? A pessoa que ela
pensava perder… morreu? Devo fazer algo?
Tentei silenciar aquele maldito dentro de mim, mas os pensamentos passaram furtivos.
Acabaria com minha reputação aparecer no quarto dela para perguntar se estava tudo bem.
Era muito mais prazeroso, no entanto, encontrá-la com a cara fechada para mim quando eu abria
a porta. Mas não havia irritação no rosto de Amy dessa vez. Ah, não, não. Havia um lindo e
tímido sorriso.
A observei desconfiado, esperei pelo “Está tarde, preciso dormir” ou um “Você não tem
respeito pelas pessoas que vivem aqui? Sabia que o Sr. Gerald, do andar de baixo, tem 82 anos e
pressão alta? Esse tipo de barulho não faz bem para a saúde frágil dele”. O Sr. Gerald era surdo,
mas eu não diria isso a ela.
Cruzei os braços e me recostei contra o batente da porta, esperando com a testa franzida. Amy
soltou um riso baixo e sem graça, como se ela tivesse me acordado no meio da noite, e não o
contrário.
— Música nova? Eu não conhecia essa. — Foi a primeira coisa que disse.
— Esse é seu novo método de me pedir para parar? — questionei, divertido.
Ela usava uma de suas camisolas horrorosas, os óculos no rosto, os pés em um par de meias
igualmente bregas e cabelos castanhos presos (ou quase) em um coque desgrenhado. Amy não
era feia. Longe disso. Mas seu senso de moda era… algo curioso.
— Queria te pedir um favor.
— Um favor? Fazer silêncio? — brinquei, e aquele sorriso se esticou um pouco mais nos
lábios dela.
Acho que foi a primeira vez que a vi sorrir. Não era um sorriso largo e completo, mas algo
considerável. Comigo era sempre um franzir de cenho irritado e grunhidos.
— Ah, você pode tocar um álbum inteiro se desejar. Não é por isso que estou aqui.
A estudei desconfiado.
— Está bêbada? — Era uma opção, apesar de não sentir cheiro de álcool nela.
— Não.
Silêncio. Ela não disse mais nada.
— O que você quer, Amy? — Estreitei o olhar.
Notei suas mãos entrelaçadas sobre o colo. Os dedos finos tremiam um pouco, e se não fosse
bom o bastante em ler aqueles comportamentos, diria que Amy estava apenas sendo doce e
gentil, mas notei o nervosismo em sua voz. As mãos se contorcendo sobre o tecido estampado de
sua camisola.
— Fale — ordenei. — Agora.
Seu olhar amigável vacilou. A respiração ficou mais pesada.
— Certo. Er… — Ela engoliu em seco. Tentou uma, duas vezes, gaguejou e aquilo me deixou
irritado.
— Amy!
Ela fechou os olhos com força, como se para reunir coragem, e então disse:
— Preciso que seja meu namorado no Natal.

Amy mordeu o lábio, inquieta, os olhos grandes sob a armação vermelha me observando com
a expectativa de um filho que pede permissão aos pais para passar o fim de semana na casa do
coleguinha. Ou um filho que fez bagunça e espera os pais dizerem que está tudo bem e ele não se
meteria em encrenca.
— Fale alguma coisa… — choramingou. — Está me deixando nervosa!
— Desculpa — soltei uma risada seca depois de alguns minutos em silêncio —, pensei ter
escutado minha colega de quarto implicante dizer que precisa de um namorado para o Natal.
Loucura, eu sei.
— Não estou brincando!
Minha gargalhada saiu mais espontânea dessa vez.
— Por favor… — Deixei a porta, seguindo para a cozinha. Precisava beber alguma coisa. —
Você só pode estar brincando.
Ela me seguiu.
— Eu sei que é muito… repentino.
— Extremamente — assenti.
— E que não temos um bom relacionamento.
— Razoável, eu diria. — Não encontrei nada que queimasse minha garganta, apenas água e
leite. Optei pela água. Esvaziei a garrafinha em alguns segundos.
— Mas não sei o que fazer! — Amy parou diante de mim no pequeno espaço que
chamávamos de cozinha e me lançou um olhar de cachorro perdido.
— Procure um terapeuta, sei lá. Ou pare de ficar enfurnada no quarto e vá a um encontro de
verdade. — Namorado para o Natal. Minha risada ainda ecoava na mente. Que piada! — Não
vou ser namorado de ninguém.
— Eu… pago você!
— Jura? — Fingi empolgação, os olhos dela brilharam ao assentir. — Não.
— Por favor! — Juntou as mãos, implorando. Aquela seria uma imagem mais interessante se
ela não estivesse sugerindo algo tão ridículo. — Eu não me sujeitaria a isso se não fosse
realmente importante.
— E o que é importante, Tiānshǐ? — Apoiei uma das mãos na bancada, a encarando de cima a
baixo. Serzinho pequeno e curioso. Mas corajoso. Eu devia admitir. Amy era muito corajosa. —
Por que precisa de um namorado para o Natal? Já tentei ver esse filme antes, vários deles, na
verdade, porque é só isso que lançam nesta época do ano. Péssimos, inclusive. — Ela abriu a
boca para responder, mas continuei: — Me deixe adivinhar: família difícil? Querem te casar com
alguém? Ou a melhor: vai reencontrar um cara que te deu um pé na bunda e quer provar para ele
que não é uma perdedora?
Ela encolheu. Encolheu de verdade.
— Eu… — Engoliu em seco. — Não pediria se não fosse… necessário.
Passei a mão no rosto, prendi os dedos entre as mechas do cabelo por um tempo.
— Não. — E aquela seria minha resposta caso ela pedisse de novo e de novo.
Algo como pavor dançou nas íris de seus olhos claros, um desespero me provou que Amy
ficaria ali e insistiria pelo tempo que precisasse.
— Sei que é uma coisa idiota… — Ela fez aquilo de morder o lábio de novo, evitei
acompanhar o movimento por muito tempo. — E você tem razão, é um cara. Um cara que vai rir
de mim e fazer coisa pior quando me vir chegar sozinha.
Aquilo me incomodou de uma forma que não gostaria, mas não deixei Amy perceber. Se
continuasse com aquele discurso sentimental, eu provavelmente acabaria cedendo. E não por ela.
— Olha, não gosto de você. Você é irritante, metido, cínico e um… — ela teve dificuldade
em dizer a palavra que devia ensaiar quando eu ligava minhas músicas — …um canalha.
— Está melhorando — elogiei, sarcástico.
Ela me olhou feio, mas prosseguiu:
— Você também não é lá meu maior fã, sei disso. Mas não conheço mais ninguém, só você.
— Que infelicidade a sua. — Pousei as mãos em seus ombros e a virei, a empurrando para
fora da cozinha. — Não sou namorado de aluguel. E não estou disponível para o Natal.
Amy relutou mais um pouco.
— Eu te pago! — repetiu. — O valor que quiser. Nós podemos… criar regras, limites! —
Conseguiu se virar para me encarar outra vez. — Por favor. Eu… Eu não quero ir sozinha.
A voz dela saiu quebrada. Insegura de uma forma que despertou aquele idiota em meu peito.
Eu não quero ir sozinha.
Havia um cara, e esse cara a magoara àquele ponto.
— Como eu disse — murmurei, porque não gostava de perder, porque a ideia de fingir ser
namorado de alguém, ainda assim, era um incômodo —, não estou disponível para o Natal.
Os ombros dela caíram, desanimados.
— Você… trabalha no Natal? — tentou, ainda com olhos de cachorrinho perdido.
Assenti.
— Noites de véspera e Natal, Ano-Novo e essas coisas me rendem uma grana boa. Então não,
não posso fingir ser seu namoradinho no fim de semana. — Apontei o quarto atrás dela. —
Agora me deixe em paz.
Me preparei para seguir para meu próprio dormitório, mas mãos delicadas seguraram meus
braços.
— Cubro o valor! — insistiu, e eu já estava passando de divertido para extremamente irritado
quando a encarei.
Mas dei a ela a chance de me persuadir, e Amy a aproveitou:
— O que você ganha cantando no Green’s, eu cubro.
Falei o primeiro número que me veio à cabeça, e os olhos dela se abriram, a boca se
escancarou em um “o” de peixinho.
— Por noite — completei.
Obviamente, eu não recebia tanto. Metade, talvez, se fosse uma noite agitada e o público
gostasse. Mas Amy queria um namorado, um homem todo seu por um final de semana inteiro, só
Deus sabe o que eu teria de fazer quando a hora chegasse. Se eu – e eu digo se – considerasse a
ideia, obviamente tiraria vantagem disso. Deveria lucrar com isso.
Amy pensou, e eu esperei de verdade que o valor exigido a fizesse recuar. Afinal, era muito
dinheiro. Muito mais do que ela provavelmente recebia.
E eu queria fazê-la desistir.
Mas eu não a conhecia, não ao ponto de achar que poderia vencê-la sempre.
Ela parou de morder o lábio enquanto pensava e me encarou, decidida, com um sorrisinho
sem graça.
Desista. Desista. Desista.
— Posso parcelar?
Ainda tentava ignorar as tatuagens no abdômen, peitos, ombros e braço que pareciam me
encarar desde o momento em que Bash abrira a porta para mim. Aparentemente, Sebastian não
conhecia muito bem o termo “camisa”, ou talvez conhecesse e simplesmente gostasse de exibir o
resultado de suas horas na academia.
Busquei no quarto uma caneta e um caderno enquanto ele foi para a cozinha procurar o
número da pizzaria. Depois de alguns minutos tentando me convencer de que escolher ele para o
papel de namorado de mentira era uma péssima e ideia e falhar, Bash sugeriu que pedíssemos
comida enquanto discutíamos melhor o assunto.
— Certo. — Me acomodei à bancada quando Sebastian finalizou a conversa ao celular com o
atendente.
Evitei olhar para ele enquanto falava.
— Vamos começar com as informações básicas: partimos no sábado de manhã e voltamos
depois do Natal, na terça.
Vi Sebastian se inclinar sobre a bancada, a pele bronzeada muito à mostra.
Ele contou com os dedos.
— Sábado… Domingo… Segunda… e terça. — Um estalo de língua. — São quatro dias.
— Mas vamos voltar na terça, bem cedo. Assim que chegarmos ao aeroporto, você não vai
precisar fingir mais nada — argumentei, ainda com o coração acelerado. Eu ia mesmo fazer
aquilo. Oh, céus, eu ia mesmo. — Você pode voltar a ser irritante quando entrarmos no avião.
Os lábios impossivelmente lindos e bem desenhados se esticaram para o lado.
— Não se esqueça do calhorda — murmurou, divertido.
— Esqueça o calhorda! — Revirei os olhos. Eu o chamara de calhorda uma vez. Uma vez!
— Vou ter que aturar esperar o voo e então uma viagem de duas horas em um avião
detestável, por que sei que não vamos de primeira classe. — Bom ponto. Sim, era verdade. Foi a
passagem mais barata que consegui, e se eu tivesse algum crédito de misericórdia divina, talvez
conseguisse uma para Sebastian no mesmo horário. Precisava conseguir, ou ele desistiria e me
abandonaria. Ele continuou: — E se estiver nevando no dia em que voltarmos para casa? E se do
aeroporto para cá estiver congestionado e ficarmos presos no trânsito? Terça contará como um
dia inteiro.
Quatro mil?! Eu iria mesmo desembolsar quatro mil em um namorado de mentira só para me
poupar da crueldade de um fim de semana com minha família? Pensei nos rostos. Nas vozes e
conversas que eu escutaria caso fosse sozinha. Um arrepio gelado subiu por minha coluna.
Sim. Eu pagaria o dobro daquilo se Sebastian pedisse. O triplo!
— Então… — Comecei a anotar no topo da folha, abaixo do “CONTRATO” que havia
escrito. — “Namorado de mentira por quatro dias”.
— Noventa e seis horas de serviço — assentiu. Anotei aquilo, e meu vizinho de porta soltou
uma risada. — Coloque o valor e as parcelas. Você deve me pagar todo dia 20.
Abri a boca para contestar. Pensei nas minhas economias, no apartamento do outro lado da
cidade que eu queria, mas teria de deixar para outra hora. Eu ficaria endividada por dois anos
pelo menos. Sebastian não se importou em parcelar aquela quantia, me alertou uma última vez
que seria um erro fechar aquele tipo de acordo, que ele era insuportável com dinheiro e ótimo em
cobrar dívidas. Pensei em Nolan de novo. Ficar em dívida com Sebastian pareceu pequeno se
comparado ao que eu suportaria no Natal.
— Tudo bem. — Escrevi a data.
— Se atrasar… Bem, a taxa é de cinco por cento.
Abri a boca, chocada. Ele sugaria cada centavo que pudesse.
Calhorda! Calhorda! Calhorda!
— Não costumo atrasar minhas contas, e você sabe — ralhei entredentes, escrevendo o 5% no
papel pautado.
O sorriso sem-vergonha no rosto de Sebastian se abriu mais, ele fez um gesto com os ombros
nus.
— Então não teremos problema.
O encarei por alguns segundos, com raiva. Talvez passar um final de semana inteiro com ele
também fosse um outro tipo de tortura.
— Regras — recomecei, rabiscando a palavra, numerando o primeiro tópico. — 1) Nada de
abraços e beijos.
Outra risada.
— Uau. Que casal super apaixonado seremos.
Ele tinha razão. Eu sabia que sim.
Risquei a frase no papel, apertei a caneta com mais força.
— Antes de criarmos regras, me deixe entender de verdade qual é o objetivo real da minha
presença — Sebastian disse, me observando um pouco mais sério, cruzando os braços fortes.
Parecia um homem de negócios, e não o músico insuportável que era. — Vou apenas ser um
acompanhante ou você quer passar alguma mensagem?
— Eu… — Hesitei. Não queria me sentir sozinha. Não queria fazê-los pensar que eu era uma
solitária perdedora completa.
— Se quer que eu minta para sua família por alguns dias, preciso entender o motivo por trás
da farsa.
O motivo.
O que Sebastian pensaria de mim quando soubesse o verdadeiro motivo para eu querer
desesperadamente um namorado de última hora? Talvez ele ficasse do meu lado e simpatizasse
ou, como todos os outros que achavam saber da história, me desprezaria.
Então, disse a meia-verdade:
— É uma cidade pequena. As pessoas conversam demais sobre a vida alheia, são cruéis
quando convém. Minha família… Bem, não temos uma boa relação. — De repente, ficou difícil
falar, a verdadeira seriedade da questão voltou à tona. — Eu não iria se não precisasse. Abuelo…
Meu avô está muito doente, mas só descobri agora. Estou indo por ele. Para passar um tempo
com ele. Mas…
— Tem um cara — Sebastian completou quando não continuei. Assenti. — É o seu ex?
— Podemos dizer que sim? — Suspirei, fazendo um desenho feio de uma guitarra no canto da
página. — O que aconteceu entre a gente foi… complicado. Para dizer o mínimo. Mas
basicamente? Minha família e a cidade toda ficaram do lado dele, defenderam ele, escolheram
ele. Eu… — Minha garganta se fechou, meus olhos arderam, mas me recusei a chorar. Não de
novo, não na frente de Sebastian. — Fiquei como a vilã da história. E talvez eu seja, mas… é
doloroso voltar para lá sozinha.
O maxilar bem delineado e reto de Bash retesou ao trincar os dentes. Raiva perigosa parecia
brincar nos olhos castanhos, mas com um piscar, desapareceu.
Ele inspirou.
Então perguntou baixo, grave e rouco, de uma forma que nunca ouvi dele antes:
— Por que sua família ficou do lado dele e não do seu?
Dei de ombros.
— Ele é muito querido por todo mundo na cidade, a família dele é muito amiga da minha. Eu
era só a filha do padeiro, muito tímida e quieta, um ratinho de biblioteca. Não era muito de ir às
festas da cidade ou conversar com todo mundo na rua, isso eu deixava para a minha irmã mais
velha. Ela, sim, é muito popular. — A voz falhou, mas Sebastian pacientemente escutou. —
Quando tudo aconteceu, ficou difícil defender outra pessoa que não ele. Meus pais o tinham mais
como filho do que eu mesma. Eles disseram, na verdade, que me trocariam por ele se pudessem.
Doía ainda. Talvez sempre doeria saber e lembrar disso.
Mordi o lábio enquanto o olhar sério de Sebastian me observava. Tentei não pensar muito no
que aquela expressão e aqueles olhos intensos demais fixos em mim significavam. Tentei
finalizar, chegar ao ponto realmente importante, mas não consegui falar sem desviar os olhos dos
dele.
— Você não precisa saber os detalhes do que aconteceu. Foi isso, basicamente. Ele era um
príncipe encantado para muitas na cidade, para mim. Nos esbarrávamos quando eu saía para
entregas, então passamos a nos encontrar de propósito, escondidos, porque era mais
emocionante, porque ele queria assim… Bem, uma coisa terrível aconteceu, e ele foi o primeiro a
virar as costas para mim. Ele não me amava da forma certa. Eu sofri, fui humilhada pela cidade
toda, por toda a família, a dele e a minha, e no sábado vou precisar vê-los de novo. Todos eles.
— Enchi o pulmão de ar, me lembrei que Sebastian iria comigo, que eu não chegaria àquela
cidade sozinha. — Quero que saibam que eu não preciso do carinho deles, que existe alguém
capaz de se importar comigo, que não estou sozinha. Por um fim de semana… É o que quero que
faça. Estou te pagando para fingir estar verdadeiramente apaixonado por mim.
Pensei que Sebastian riria da minha cara, debocharia de mim, mas o que encontrei foi um
rosto indecifrável e perigosamente frio. Não queria realmente saber seus pensamentos, só que ele
aceitasse fazer aquilo.
Bash balançou a cabeça, pensativo.
— Se quer convencê-los, então sabe que precisaremos ser convincentes — afirmou, cauteloso.
— Posso ser um canalha, mas não toco em uma mulher sem o consentimento dela. Sem ter
certeza de que ela quer o mesmo que eu.
Assenti.
Ele franziu a testa, esperando uma resposta.
— Eu… — Corei. — Bem, o que sugere? Nunca fingi um namoro antes.
— Você gosta de ler, me diga o que acontece nesse tipo de livro.
Pigarreei. Não, ele não iria querer saber o que acontecia nos livros. Não mesmo. Pensando
nisso, nas cenas e situações que já lera e talvez pudessem acontecer, me concentrei na lista outra
vez e comecei a escrever.
— A casa é grande, mas vai ter muita gente. Você com certeza vai ficar no mesmo quarto que
eu, nos livros sempre acontece aquilo de… só ter uma cama. Então, vamos nos preparar para
isso. Se só tiver uma cama, a gente coloca edredons no chão.
— Tudo bem. Isso não é importante, não quando as pessoas não vão saber o que fazemos no
quarto. — Apesar de o tom da voz dele não ter sido provocador, senti o rosto esquentar ainda
mais.
— Vamos dormir, é isso o que vamos fazer — falei de forma patética, deprimente.
Sebastian riu.
— O que quero dizer, minha doce Amy, é que casais apaixonados se tocam, não querem tirar
as mãos um do outro, querem ficar perto o tempo todo. Se é um casal apaixonado que quer
mostrar para sua família, ao cara que te abandonou, então precisa convencê-los de verdade.
Sim, eu sabia disso.
Fiz uma careta.
— Então, vamos para as regras. Suas mãos — comecei, imediatamente encarando as mãos
grandes sobre a bancada. Divaguei para onde elas poderiam ir. Engoli em seco. — Seu limite é
minha cintura, mas está proibido de tocar… Bem, você sabe.
— Seus seios — ele disse, como se não fosse nada demais. E não era, não para alguém que
via pares diferente deles toda semana. — Acho bom anotar, ou posso esquecer.
O fuzilei, mas fiz o que ele disse, sentindo mais calor nas bochechas ao escrever as palavras.
— Beijos — murmurei, então imaginei – e para o meu crédito, não encarei os lábios de
Sebastian ao falar: — Serão usados em casos extremamente necessários, talvez devêssemos
limitar a um número específico.
Apesar de ter relutado no começo, meu vizinho parecia estar se divertindo muito.
— Quantos você tinha em mente, meu amor? — perguntou com aquele sorriso irritante.
— Não me chame assim. Vamos abordar esse tópico também, mas quanto aos beijos… —
Pigarreei de novo, sentindo a garganta secar mais um pouco. — Três? Um para cada dia que
vamos ficar lá. Assim, ninguém pode reclamar que não tivemos… momentos íntimos.
— Acho três um número muito sem graça e pequeno.
— Acho que você quer tirar proveito da situação — rebati, com o coração bombeando cada
vez mais rápido.
— Tiānshǐ, você está me pagando para te beijar, é claro que estou tirando proveito da
situação. — Riu, mas então fez um gesto com a mão para eu continuar. — Três beijos, se é o que
quer de mim.
— Três… beijos… Um por dia. — Escrevi no caderno, e então sorri ao pensar em algo. — E
se quebrar as regras, vou descontar 10% do valor diário que combinamos.
O sorriso de Sebastian se tornou mais felino, então os olhos castanhos correram até minha
boca.
— Tentador.
— Canalha.
— Olha só… — Suas íris cintilaram com aprovação. — Um final de semana inteiro comigo e
acho que você finalmente vai saber xingar de verdade — brincou, no mesmo segundo em que
escutamos uma batida na porta.
— Pizza! — O entregador gritou.
Sebastian se afastou da bancada e tirou a carteira simples do bolso traseiro de sua calça jeans
preta.
Enquanto seguia para a porta, falou para mim:
— E quanto à nossa historinha de amor? Precisamos de uma.
Certo. Nossa farsa precisaria de uma história. Como nos conhecemos? Como nos
aproximamos? Foi amor à primeira vista? Quem se declarou primeiro? Apesar de desconfiar que
minha família não se importaria com isso. Não ficariam animados com a filha que agora estava
comprometida, mas provavelmente tentariam alertar Sebastian de ficar longe, para o próprio
bem.
— Então? — Meu colega de quarto voltou, com uma caixa que cheirava deliciosamente.
Meu estômago se agitou, dolorido. Estava tarde, talvez passasse das onze. No geral, evitava
comer naquele horário; economizar era o lema. Mas quando Sebastian destampou a caixa
quadrada e revelou a massa, o queijo e o molho, minha boca salivou.
Ergui o olhar para ele, distraída.
— A história que vamos contar caso perguntem — falou.
— Ah! — Encarei o caderno nas mãos, o que já tinha anotado. — Acho que precisamos
misturar a verdade com a mentira para não ficar difícil de lembrar. Podemos dizer que somos
vizinhos, nos esbarramos no corredor, você me chamou para um filme e as coisas aconteceram.
— Eu jamais te chamaria para um filme.
Encolhi. Não pela afirmação, mas… Bem, sim. Pela afirmação. Não sabia o motivo de ouvir
que ele sequer me considerava uma mulher em potencial para um encontro me afetar. Eu estava
com uma camisola horrorosa e confortável, meias felpudas igualmente feias e óculos grandes
demais. Nem queria imaginar como meu cabelo estava. Me comparando com as beldades que
Bash sempre trazia para o apartamento, eu não passava de um patinho feio que deixava recados
para elas pela manhã.
— Não tenho paciência para filmes e detesto cinema — explicou, como se tivesse reparado
em meu desconforto. — Então não te chamaria para um filme.
— Ah! — resmunguei. — Tudo bem. Invente uma desculpa.
— Você me chamou para um filme, eu disse não, então você sugeriu um café, e eu aceitei.
Gelei, mesmo sabendo que Sebastian falava de brincadeira.
— Não. — As vozes voltaram, os sussurros cruéis. O que diziam sobre mim. O que diziam…
Ficou difícil respirar, mas me comportei. Tentei. — Não pode ter sido iniciativa minha. Nunca.
Sebastian franziu a testa.
— E por que não?
— Porque não. — Minha voz tremeu. — Você me chamou para um café, e eu disse sim.
Então, você me chamou para um jantar, e eu disse sim. Você me beijou primeiro. Você me pediu
em namoro.
Ele era esperto, afinal. Sebastian entendeu, mesmo superficialmente, que era importante para
mim ser assim.
— Certo. Podemos ir inventando caso seja necessário.
Assenti.
— Não me chame de meu amor — voltei ao tópico importante.
— Não é assim que namorados se chamam?
— Somos um casal de mentira, invente outra coisa.
Ele pensou.
— Mi vida? — arriscou.
— Se eu não falo espanhol, você também não precisa falar.
— Você não fala espanhol? — Pareceu desapontado. Não respondi. Ele bufou. — Meu
docinho.
— Eca.
Sebastian riu.
— Minha querida.
— Não sou sua esposa. Isso é coisa de velho.
A gargalhada sincera me pegou de surpresa, me fazendo relaxar um pouco.
— Então… Tiānshǐ. — Ele pegou uma fatia de pizza e empurrou a caixa para mim. — Você
nunca pareceu se importar com esse apelido.
— Porque tinha outras questões para reclamar. — Me incomodava, sim, mas nunca retruquei
porque sempre estava ocupada demais me irritando com ele por outros motivos. — Sempre
pensei que estava, não sei, me xingando em chinês.
Sebastian gargalhou.
— O quê? — Arqueei a sobrancelha. — Vai me dizer que é um apelido fofo e carinhoso?
— Huh. — Deu de ombros. — Talvez seja.
— Você deve chamar todas assim, então não faz diferença.
Aquele sorrisinho de lado despontou. Sebastian se inclinou sobre a bancada para me observar
mais de perto.
— Se eu disser que é um apelido exclusivamente seu…
— Diria que é um flerte barato que usa com frequência.
Mordi a primeira fatia da massa com queijo, uma desculpa para ter mais o que fazer e não
encarar aquele erguer único de lábios tão sensuais. Que só se esticou mais.
Havia uma covinha solitária no lado esquerdo. Eu não tinha reparado nela antes. Muito menos
nas pintinhas adoráveis que enfeitavam o rosto dele. Não sardas, mas pintinhas. Como se, na
hora de criá-lo, Deus as tivesse atirado ali aleatoriamente ao sacudir o pincel. Um charme que
Sebastian provavelmente não reparara ter, não com outras armas em seu arsenal.
— Tiānshǐ será, então — ele disse, abocanhando mais pizza.
— E o seu? — perguntei, encolhendo um dos braços em um auto-abraço. Nosso aquecedor
estava estragado há dias, mas nenhum dos dois tivera a iniciativa de mandar consertar. Eu o faria
quando voltasse de viagem... Bash não parecia se importar com o frio de qualquer forma. — Do
que devo chamá-lo? Sebastian é muito sério e formal.
— Calhorda. Definitivamente deve ser calhorda. E em momentos mais íntimos…
Calhordinha.
Não consegui não gargalhar.
— Talvez eu te chame de Calhordinha. — Sorri.
— De onde tirou essa palavra, afinal?
— Li em um livro.
— Um livro horrível, com certeza.
— Sim. Terrível. — Ri.
Por alguns segundos, aquele momento leve e descontraído dançou e brincou entre nós dois.
Havia um sorriso tranquilo e amigável no rosto dele, eu sentia um igual nos meus próprios
lábios. Ao me dar conta disso, de que era a primeira vez em tantos anos que realmente nos
dávamos bem, que eu sorria para um homem, pigarreei e fiquei mais séria.
Deixei a pizza de lado e continuei a me concentrar na lista.

CONTRATO

Namorado por quatro dias.


Noventa e seis horas de serviço
Data de início: 23/12 (sábado)
Término: 26/12 (terça-feira)
$1.000/dia (20x)
Juros para cada dia de atraso de pagamento: 5%

REGRAS:

1) Nada de Abraços e beijos.

1) Mãos – Limite: Cintura (não tocar os seios!!!)


2) Beijos – Apenas um por dia. Total: 3.
3) Cama – Pedra, papel, tesoura. O perdedor fica com o chão.
4) O namorado de aluguel não poderá ficar sem camisa.
5) O namorado de aluguel não pode deixar a namorada de mentira sozinha (banho e
necessidades básicas são exceção!)
6) A namorada de mentira deve fazer cafuné no namorado de aluguel todas as noites.
7) A namorada de mentira deve fazer massagem no namorado de aluguel antes de dormir.

— Definitivamente não — ralhei, tomando a caneta da mão dele.


— O quê? — Mordeu a pizza. — Você vai me ter por um final de semana inteiro, e eu não
mereço uma massagem?
— Peça às suas amiguinhas quando voltar.
— Mas quero as mãos da minha namorada. — Sorriu, provocando.
— Não.
— Então não topo.
Grunhi.
O sorriso de Sebastian ficou maior.

8) A namorada de mentira deve preparar panquecas com muita geleia para o namorado de
aluguel no café da manhã.
9) O namorado de aluguel deve sempre proteger e defender a namorada de mentira e
acreditar nela independentemente da situação.
Eram quase duas horas da manhã quando terminamos. Depois de alguns segundos analisando
a lista, depois de discutir o que seria ou não permitido, Sebastian e eu encaramos aquele caderno
solitário sobre a bancada em silêncio.
Três dias… Quatro se contasse com a viagem de volta na terça. Muitas cenas se passaram na
minha cabeça, situações que poderiam acontecer. O mais preocupante era… Bash. Ele me alertou
sobre o perigo, perguntou diversas vezes se eu tinha certeza de que queria aquilo, se o aguentaria
mesmo por um final de semana inteiro.
Por um minuto, me permiti pensar que conhecia Sebastian, meu colega de quarto, o cara que
gostava de Elvis Presley, guitarras barulhentas e mulheres com gemidos estranhos. Aquele cara
eu conhecia por anos, superficialmente: um jovem de… O quê? Talvez 26 ou 27 anos? Sabia que
cantava bem e tocava no Green’s todas as noites, era um canalha sedutor de sorriso fácil e
irritante… Ah! E não gostava de camisas, pelo visto, já que não se preocupou em colocar uma
enquanto conversávamos. Fora essas coisas… o que eu sabia sobre Bash? Quando chegássemos
na casa dos meus pais, como ele agiria? Arrogante e sedutor? Ou fingiria ser um bom moço?
Eu duvidava.
Não sabia se me importava também. Se eu levasse um príncipe herdeiro de algum lugar, tenho
certeza de que minha família não ligaria. Talvez sequer reconhecessem minha presença na casa.
— Está faltando uma coisa na lista — meu futuro namorado de aluguel falou, pensativo.
— O quê?
— Veja bem. — Me encarou, ainda inclinado sobre a madeira, a tatuagem próxima de mais
do meu rosto. O dragão chinês envolvia o pescoço, o ombro e o braço dele. Havia outros
desenhos também: uma raposa, uma borboleta, um corvo… Sabia que, assim como o braço
esquerdo, as costas e de Bash eram repletas deles, mas o rosto feroz do dragão despontando
sobre o peito parecia me encarar. No entanto, não olhei para ele. Bem, tentei não olhar. —
Vamos passar muito tempo juntos. Vamos precisar fingir coisas. Nos tocar, nos beijar… Isso é
muito perigoso.
Loucura, realmente.
— Estou desesperada a esse ponto, sim.
— Pois bem, anote aí.
Preparei a caneta, esperei ele falar. Sebastian me estudou por mais alguns segundos antes de
se pronunciar, sério como um instrutor de paraquedismo preparando alguém prestes a saltar de
um avião a doze mil pés.
— Fiz teatro quando estudava no ensino médio — confessou de repente. Apenas pisquei,
guardando a informação. — Eu era muito bom. O melhor, na verdade. Sendo assim, você está me
pagando para atuar. E não vou decepcionar.
— Eu agradeç…
— Então, essa é a última e mais importante regra — apontou com o queixo para o papel, para
o número vazio —: não importa quão convincente seja, não importa quão romântico pareça… —
Me encarou fundo nos olhos. — Você precisa me prometer que não vai se apaixonar.
Pensei que ele estivesse brincando, mas não havia qualquer sinal daquele sorriso sarcástico
em seus lábios bonitos.
— Não vou me apaixonar por você — respondi.
Eu não ia mesmo. Tinha mais com que me preocupar.
— Então escreva.
— Não preciso escrever is…
— Escreva — repetiu. — Porque não quero te lembrar caso aconteça.
— Você é bem convencido, não é? — Revirei os olhos, escrevendo em caixa-alta: 10)
PROIBIDO SE APAIXONAR!!!
— Talvez. Mas se estamos criando regras, quero que isso esteja bem claro.
— Está bem claro. — Sublinhei a frase no caderno de novo e de novo.
— Ótimo. — Sebastian pegou a última fatia de pizza e, antes de levá-la a boca, resmungou:
— Acabamos aqui.
Saltei da banqueta, arrancando o papel pautado do caderno e dobrando. Segurei-o firme na
mão, como se aquilo fosse a solução de todos os meus problemas, e não o começo de mais um.
Estava quase na porta do meu quarto quando parei, hesitante. Me virei para Sebastian uma
última vez.
— Você vai mesmo cumprir com sua parte, certo? — perguntei ao observar cada detalhe
daquele lindo rosto. Ele franziu a testa, ainda recostado sobre a bancada. — Não vai me deixar
na mão, não é?
Por um segundo, Bash pareceu hesitar. Por um longo segundo, pensei de verdade que ele
soltaria um “É claro que não vou fazer isso, sua idiota. Só estava tirando onda com a sua cara!”.
Temi aquela resposta, mas um meio-sorriso brincou em sua boca, por fim.
— Parece que você tem uma passagem para comprar. — Piscou. — Vá dormir, Amy.
Quase suspirei de alívio.
— Ok. Er… Boa noite.
Quando voltei para o quarto, Claude não estava mais lá, provavelmente aproveitou que o dono
não tinha visita aquela noite para ficar na caminha que Bash comprara para o gato. Observei a
bagunça ali, livros e mais livros empilhados, aquele que eu pegara por último se destacando
sobre a escrivaninha.
Eu estava exausta.
Quando me deitei, porém, não consegui dormir, e não era porque o som do outro quarto
estava alto demais, mas porque os pensamentos não silenciaram, antecipando a viagem, as
pessoas que eu veria… E mais tarde, bem mais tarde, sonhei com olhos azuis, dia chuvoso e uma
adolescente teimosa e ingênua que um dia fora tola o suficiente para se apaixonar.
Sebastian tinha medo de voar.
Bem, obviamente ele não disse isso em voz alta, seria demais para seu orgulho de macho alfa.
Porém, deduzi que os dedos batucando no joelho, a perna inquieta, os olhos atentos a qualquer
som e pessoas passando pelo estreito corredor do avião fossem um indicativo de seu desconforto.
Já minha ansiedade e nervosismo eram por outra coisa: mal conseguira dormir naquela noite
e, quando finalmente deu a hora de levantar, andei de um lado para o outro na sala antes de
conferir as horas no relógio de bolso e bater à porta do quarto dele. Sabia que implicar por causa
do horário não seria uma boa ideia, ele poderia desistir de me ajudar, mas fiquei com medo de
meu colega ter se esquecido. Então, forçara um sorriso ao vê-lo, oferecendo café e panquecas e
perguntando se precisava de alguma coisa. Bash apenas grunhira. Não falava muito de manhã, e
era realmente cedo quando deixamos o prédio.
O humor dele só piorou depois de decolarmos. Ele tentou esconder, mas vi seu rosto
empalidecer e o maxilar trincar com força, os olhos fechados quando o piloto anunciou que
estávamos a dez mil pés de altura.
— Devemos chegar lá às três, se tivermos sorte com o desembarque e em encontrarmos um
táxi — tagarelei na esperança de distraí-lo. — Quando eu morava lá, nunca conseguia um nesta
época do ano, mas se não estiver nevando, podemos ir andando até a cidade e…
Parei de falar quando os olhos castanhos de Sebastian finalmente deixaram a cortina por onde
a aeromoça passou para me encarar. Estava nervoso.
— O quê? — perguntei, inquieta.
— Estou começando a achar que mentiu para mim e, na verdade, me contratou para me
torturar por um fim de semana inteiro. — Não havia graça no rosto dele. — Primeiro este avião
horrível, e depois quer que eu vá andando do aeroporto até sua casa?
— Você tem um corpo atlético e parece se exercitar bastante, não vai ser problema —
brinquei, incapaz de deixar de me divertir com o nervosismo de Bash. Ele era sempre sorrisos e
provocações, me fazendo gaguejar e ficar irritada. Eu não poderia perder a oportunidade de
devolver o favor. — E esse foi o melhor voo que consegui dentro do orçamento, foi muito difícil
encontrar uma passagem no mesmo horário para você.
Sebastian apenas resmungou alguma coisa que não entendi e voltou a observar o corredor.
— Você tem medo de avião?
— Não.
Refiz a pergunta:
— De voar?
— Não…
Ri.
— Para um cara tão confiante… é engraçado te ver assim.
— Está se divertindo, é?
— Huh. — Sorri.
Ele estudou meu rosto, estreitando os olhos. Então, se preparou para dizer algo afiado quando
a voz pelos alto-falantes anunciou que passaríamos por uma turbulência. O tom bronzeado da
pele de Bash desapareceu por completo. Medo verdadeiro pintou suas feições. Ele recostou a
cabeça na poltrona quando o avião começou a tremer, e consegui notar gotículas de suor
enfeitarem sua testa. Algumas mechas se soltaram do coque e caíam em seu rosto.
Foi estranho ver Bash tão inquieto daquela forma, e a diversão desapareceu quando percebi
seu peito subir e descer de maneira irregular por debaixo da jaqueta. Não pensei muito quando
estiquei o braço e segurei a mão que apertava firmemente o braço da poltrona, os nós dos dedos
brancos com a força. Sebastian se sobressaltou, me encarando no segundo em que minha mão
tocou a sua. Ele franziu a testa, esperando que eu me explicasse.
— Obrigada. — Sabia que consolá-lo para distraí-lo do medo não era o caminho certo. Ele
poderia se esquivar, e seria justo. No seu lugar, eu faria o mesmo. Por isso continuei, falando alto
o suficiente para minha voz sobressair ao medo dele: — Por topar fazer isso por mim, Sebastian.
De verdade, você é meu herói. Não teria coragem de aparecer na casa dos meus pais se estivesse
sozinha.
Por pouquíssimos segundos, ele pareceu se esquecer da turbulência e sorriu um pouco. Não
daquele jeito sedutor, completo, mas uma tentativa de sorriso.
— Eu sou seu herói, então…
Ri.
— Só estou dizendo isso porque parece muito frágil agora — provoquei.
Bash fechou a cara.
— Não estou com medo.
— U-hum, u-hum. — Meu sorriso se abriu mais. — E você não está apertando minha mão.
Os olhos dele correram para nossas mãos entrelaçadas, a dele grande cobrindo a minha como
se Bash segurasse um amuleto da sorte.
Ele me soltou.
— Só… — Sua voz saiu rouca. Sebastian engoliu em seco. — Não estou acostumado.
Assenti com divertimento, alinhando a coluna na poltrona, encarando a janela, as nuvens
pesadas e cinzas lá fora. O avião sacolejou mais uma vez, e eu pressionei os lábios quando
escutei Bash xingar em inglês e praguejar mais algumas coisas em chinês. Não consegui
esconder o divertimento quando a mão grande envolveu a minha outra vez e a apertou.
Conseguimos o táxi, no fim das contas. Depois de uma manhã gelada e um voo infernal –
pensar que precisaria passar por aquele pesadelo outra vez na terça me deixava enjoado e de mau
humor –, não esperamos por um táxi antes de minha colega de quarto pegar a mochila e arrastar
a mala pela calçada, andando sem muita pressa. Desconfiava que Amy queria atrasar a chegada
na casa da família enquanto apontava para os lugares e contava histórias da infância. Mas a falsa
tranquilidade desapareceu e deu lugar à insegurança quando avistei o táxi no acostamento e fiz o
motorista nos levar para a residência dos Sanchez.
Cinco minutos depois, quando finalmente descemos do veículo, Amy encarou a casa grande e
exageradamente enfeitada que parecia mais uma gigante caixa de estoque de luzes coloridas e
Papais Noéis e estacou diante das escadas e das colunas com pisca-piscas dourados como se uma
barreira invisível a impedisse de continuar.
E eu jamais a vira tão pálida.
Ela abraçou a caixa de transporte do gato e arregalou os olhos para a residência.
Quando Amy se trancou no quarto depois de finalizarmos o contrato improvisado, demorei
exatamente trinta segundos para me arrepender de ter concordado com aquilo. Afinal, era um fim
de semana inteiro fingindo ser alguém que eu não era, com pessoas que eu não conhecia e
provavelmente detestaria. Pensara em várias formas de convencer Amy a abortar aquela ideia.
Quando a moça aparecera na porta do meu quarto naquela manhã – às quatro horas! –, cogitei
fechar a porta na cara dela, mas aparentemente o espírito natalino despertara aquele Sebastian
deprimente e cheio de compaixão que queria muito quebrar alguns ossos do ex dela.
Sinceramente, passara boa parte da viagem do aeroporto até a pequena cidadezinha me
perguntando que parte do miserável destruir primeiro. Estava ansioso para conhecer meu novo
amigo, principalmente depois de ver como a garota parada diante da casa parecia apavorada com
a ideia de voltar ao lugar.
— Amy… — Me aproximei dela com uma mochila nas costas, nossas malas nas mãos. —
Está tudo bem?
— Está. Sim. E-eu só… — Inspirou fundo e, por fim, engoliu em seco outra vez. — Achei
que ia conseguir vir aqui depois de tanto tempo, mas… — Ela me olhou, apavorada. — Acha
que podemos voltar?
— Pensei que quisesse ver seu avô.
— Eu quero! — choramingou. — É só que…
— Então erga essa sua cabeça e mande quem te olhar feio à merda.
Um pequeno sorriso se formou nos lábios dela.
— Queria que fosse fácil assim… — Suspirou, soltando mais uma nuvem de ar gélido.
— Se fizer da opinião alheia sua prioridade, então vai ser mesmo difícil ignorar eles. —
Apontei para a varanda. — Mas se focar em outras coisas, fingir que não se importa fica mais
fácil.
— Você é um expert no assunto, não é? — brincou, mais para se distrair do que por gostar de
falar comigo realmente.
— Se não conseguir, faço isso por você — prometi. — Vou latir para o primeiro que falar
qualquer coisa desrespeitosa.
— Talvez pensem que você é meu guarda-costas, não meu namorado.
Sorri.
— Posso convencer eles dos dois.
Antes que Amy pudesse responder, a porta da frente se abriu e, sem reparar em nós de início,
um homem barrigudinho de talvez uns quarenta e poucos anos, calvo e com uma blusa de lã
verde saiu com um machado na mão.
— Você não me preparou para isso — cochichei para Amy, que voltou a adquirir aquele tom
doentio no rosto, o peito subindo e descendo numa velocidade preocupante.
O pai dela, então.
O homem estava seguindo para os fundos da casa quando pigarreei.
Os olhos escuros desviaram do objeto nas mãos para as duas pessoas paradas a alguns metros
de distância da entrada da casa. A pele castanha como a de Amy ficou igualmente pálida quando
ele imediatamente reconheceu a filha.
— Amelie.
Me preparei. Não sabia o que esperar. Na verdade, quando perguntei no avião, Amy não quis
falar muito, pelo menos não sobre a família. Disse que eram educados e adoravam visitas, eram
festeiros e unidos. A ignoravam pelos próprios motivos. Ela não quis me contar porque sua
família se ressentia tanto dela, também não insisti.
Apesar de estar ali, do papel que iria interpretar, não me importei de não saber.
— Oi, pai — minha colega de quarto murmurou, a voz rouca. A notei apertar mais a caixa do
gato contra o corpo, então ela criou coragem e avançou para a casa.
Nada de abraços calorosos. Nada de “Quanto tempo, minha filha!” ou “Como é bom ver você,
querida!”. Eles apenas se encararam, um silêncio que seria constrangedor caso eu não estivesse
tão disposto a acabar com ele. Quando subi os poucos degraus na varanda e deixei as malas no
chão, o homem enfim me notou.
— O senhor deve ser o pai da Amy. — Sorri tranquilamente. — Sebastian Wang. É um prazer
conhecê-lo.
— Julio Sanchez. — Ele devolveu o aperto de mão, me observando de cima a baixo. Reparou
nas tatuagens não escondidas pelo agasalho, os brincos prateados em minhas orelhas,
desconfiado. — O que é da minha filha?
— Namorado — Amy respondeu antes de mim, entrelaçando a mão à minha. A apertei
levemente, uma nota de que não precisava ficar tão nervosa, eu estava ali com ela.
Sr. Sanchez observou nossas mãos entrelaçadas, e novamente aqueles olhos me estudaram. O
desprezo esperado não apareceu. Não. Amy disse que os pais não gostavam dela, mas o que vi
tomar as feições do homem grisalho foi pura e genuína preocupação.
— Entrem. — Foi seu convite, a voz grave carregada de sotaque. Julio deixou o machado de
lado para me ajudar com uma das malas. — Devem estar cansados. E com fome, vou pedir a…
— Onde está o vovô? — Amy o interrompeu.
Julio suspirou, como se lembrasse o motivo real de a filha aparecer ali depois de tantos anos.
— Sua mãe o levou à cidade.
— Ele está… bem?
— Está mais fraco, passa muito tempo sentado na sala, mas seu humor ficou
consideravelmente melhor quando contamos que você viria.
Aquilo pareceu uma mentira para Amy, mas eu acreditei. E poderia apostar minha Honey
Burst[6] que Julio estava emocionado por reencontrar a filha. Apertava as mãos nas alças das
malas ao ponto de os nós embranquecerem para evitar de puxá-la em um abraço. Talvez não
fosse como Amy pensava. Talvez estivesse em sua cabeça, talvez ela tivesse se isolado, e agora
acreditava que não era querida pela própria família.
Mas era um pensamento precipitado. Eu ainda não havia conhecido o restante dos Sanchez, e
não sabia o que acontecera.
Soube do meu erro quando entramos.
— Sua prima Jen e as crianças de Diana vão chegar mais tarde, sua mãe preparou seu antigo
quarto para eles, então… — Julio a olhou com um pedido de desculpas. — Arrumei o sótão para
você.
— Claro. — Amy soltou um riso seco, debochado.
Sr. Sanchez me encarou.
— Você pode ficar no…
— Ele fica comigo. — O homem foi interrompido pela filha. — Não há motivos para
dormimos separados quando já moramos juntos.
Os olhos escuros se arregalaram.
— Vocês…
— Sim — me intrometi. — E ela está certa. Vamos ficar juntos. No sótão.
Se aquele era o olhar paterno típico de “conversamos depois”, Amy não se intimidou. Ou não
notou. Mas eu recebi um também.
Sorri, divertido.
— Não se preocupe, Sr. Sanchez. Vamos nos comportar.
— É você mesmo, Amy? — Uma voz feminina suave preencheu o ambiente, e então a mulher
bem grávida despontou do que eu julgava ser a sala de estar.
Ainda não havíamos deixado o hall de entrada, e quem julguei ser a irmã mais velha de Amy
– ou uma prima – se aproximou com um sorriso emocionado.
— Oh, é você, sim… — Ela tocou o rosto de minha colega de quarto, que mal respirava. —
Olhe só para você! Está tão… — A mulher tentou segurar a careta para as roupas de Amy. —
Tão… diferente.
— Oi, Jo.
— O que aconteceu com seu rosto? Está tão pálida! — Jolie, se minha memória não falhava.
A irmã mais velha, então. Era muito parecida com Amy, mas ao contrário da minha namorada de
mentira, a mulher grávida tinha toda vaidade que a irmã parecia não ter. Usava maquiagem e um
vestido elegante, o cabelo castanho, mais escuro, caindo solto e liso. Argolas grandes e douradas
enfeitavam suas orelhas. — Oh, pobrezinha, ganhou peso ou são essas roupas?
— São seus olhos — interrompi, irritado. Nesse momento, Jolie finalmente me notou, e seu
olhar não foi nem um pouco discreto quando me observou.
Decidi que não gostava dela.
— Pai? — Ela olhou de forma interrogativa para o homem. Ele passara aquele tempo
estudando a caçula, depois eu, então a caçula de novo. — Quem é esse?
— Namorado da sua irmã — respondi.
— Namorado? — Quase riu. — Ora, Amorinha, você não contou que estava namorando.
— Ah, me perdoe. — Amy a fuzilou, usando uma falsa doçura na voz. — E como vai meu
sobrinho? Ou será sobrinha? Você não me contou que estava grávida.
Aquilo pareceu cobrir a casa inteira com gelo, foi o suficiente para calar Jolie. Ela corou
violentamente e desviou os olhos claros.
— Estamos cansados — continuou Amy, embrulhada em três ou quatro moletons, o rosto
ainda sem cor, sem vida. — E com fome, se não se importam. Foi uma longa viagem até aqui.
— Sim, sim. — Jolie apontou a mão cheia de anéis delicados para o cômodo de onde saíram.
— Tia Diana fez canelone no almoço, vou esquentar para vocês.
— Me ajude a levar suas coisas para cima, garoto — Sr. Sanchez disse. — É bom mesmo que
tenha chegado, preciso de ajuda com a lenha.
Amy me olhou apavorada.
Não me deixe sozinha, era o que parecia dizer.
— E quem é esse pequenino peludo? — Jolie enlaçou um braço no da irmã e tamborilou as
unhas pintadas na caixa onde Claude dormia.
— É do Bash. — Amy continuou me olhando enquanto era arrastada para a cozinha.
Acompanhei Julio até as escadas.
“Volto logo”, fiz com os lábios.
Ela assentiu.
No entanto, depois de me mostrar um pouco da casa – que parecia tão enjoativamente
enfeitada quando o lado de fora –, onde ficavam os quartos, os banheiros, o sótão limpo e nada
espaçoso onde Amy e eu dormiríamos, Julio me guiou para os fundos. Do lado de fora, me disse
para arregaçar as mangas. Cortar madeira.
Foi o reencontro de família mais estranho que já presenciei, mas eu não tinha muito com o
que comparar quando não trazia um histórico muito bom. Era só o começo, eu sabia, pois lá
dentro só havia a irmã. A mãe de Amy não estava, o avô também não, e mais gente chegaria.
Tios, primos, vizinhos…
Não pretendia deixar Amy sozinha quando isso acontecesse.
Observei Claude desaparecer pela casa no segundo em que o liberei da caixa de transporte,
sentindo inveja do gato preto. Ele poderia sair livremente e se esconder onde quisesse sem ser
julgado.
Eu queria me esconder.
Queria cavar o mais profundo buraco na terra e desaparecer de vez.
— Então… — Jolie começou depois de nos vermos sozinhas na cozinha, tia Diana fora à
cidade com nossa mãe e o vovô. — Namorado, huh?
Jolie parecia muito diferente desde a última vez que a vira, além da barriga, claro, o rosto
parecia mais fino e abatido. Há muito tempo eu deixara de acompanhar as redes sociais dos meus
familiares porque era doloroso demais, então senti o estômago se contorcer com uma sensação
estranha quando a vi de novo. Ela parecia estranha.
Não mais a irmã que trançava meus cabelos, ou me levava a cidade para fazer compras, ou me
ensinava a maquiar… Quando era pequena, sonhava em ser como Jo, mas agora isso não fazia
sentido. A forma como se vestia e forçava sorrisos, os ombros obviamente tensos, a coluna
perfeitamente reta.
Estranha.
Estar ali, naquela casa outra vez… Me sentia como se nunca tivesse realmente feito parte
daquele lugar.
— Huh — resmunguei, me sentando à bancada enquanto minha irmã esquentava a comida.
Apoiei o rosto na mão conforme a outra girava o relógio de bolso que vovô me dera entre os
dedos.
— Ele parece ser… interessante.
Ri.
— Não tem ninguém aqui, Jo. Apenas diga.
— Onde você arrumou aquele cara? — A testa dela franziu com desgosto. — Fala sério,
Amelie, ele parece um… um…
— O quê? Um guitarrista gostoso e arrogante? — provoquei. — Ele é.
— Mamãe não vai gostar nada disso. — Suspirou. — O que estava pensando quando decidiu
trazer um estranho aqui?
Não respondi, apenas apertei o relógio com força, concentrando minha raiva nele. Havia um
nó sufocante na minha garganta, e me explicar para Jolie era a última coisa que eu queria fazer.
Ela soltou outro suspiro ao se aproximar e tomar minha mão nas suas.
— Só estou preocupada com você, Amorinha. Ele… te trata bem?
Me desvencilhei do toque dela com um sorriso irritado.
— Que graça ver você tão preocupada comigo de repente.
E parecia mesmo, se eu não soubesse o quão excelente Jolie era em atuar. Odiava o fato de
minha irmã se dar ao trabalho de fazer parecer que se importava comigo, quando fora tão
atingida pelos boatos também. E no fim, quando chorei e implorei para acreditar em mim, virou
as costas como os outros.
Percebendo que falar sobre minha vida pessoal não era a aposta certa para matar o tempo,
Jolie desandou a contar sobre os últimos acontecimentos na cidade: o Sr. Jones finalmente
lucrara com as apostas de cavalo e abrira um restaurante; Evelynn Winne se casara com um
estrangeiro e se mudara para Londres dois meses atrás; a Sra. Khalifa falecera na semana passada
de infarto…
Eu não ligava. Apesar de ter me entristecido com a notícia do falecimento da senhora
bondosa, vendedora de biscoitos, não queria saber realmente o que perdera nos últimos anos.
Tentei decidir se agradecia à Jolie por inventar uma desculpa para não conversarmos sobre nós,
sobre o que aconteceu antes de eu partir, ou se me incomodava com o fato de ela agir como se
me visse depois de alguns dias, e não cinco anos.
Deixei minha irmã falar, apenas murmurando qualquer coisa em resposta, sempre de olho na
porta, a tão desejada rota de fuga. Estava ansiosa para ver vovô logo, nervosa por saber que, em
algumas horas ou poucos minutos, veria minha mãe também. Quando Bash e meu pai retornaram
com mais lenha, Jolie serviu o canelone para meu namorado de mentira e começou a enchê-lo de
perguntas. Além disso, tagarelou sobre a própria vida. Apenas o deixei lá depois que ficou difícil
demais continuar na cozinha. O combinado era não permanecermos longe um do outro, eu sabia,
mas Bash pareceu tranquilo quando avisei que tomaria um ar.
Não me importei se ele aproveitou a oportunidade para alfinetar minha irmã – Sebastian
claramente não fora com a cara de Jolie, mas minha irmã sempre fingia não notar as coisas
inconvenientes. Só saí da casa e segui para os fundos, para meu antigo porto seguro.
Suspirei, recostando a cabeça em uma das cordas responsáveis por sustentar o balanço,
observando a paisagem mais linda oferecida pela residência Sanchez.
Aquilo não havia mudado: os pinheiros pareciam mais verdes, a trilha ainda seguia o mesmo
caminho até o lago congelado. Mais abaixo, eu conseguia ver o estábulo do vizinho, Sr. Heillig,
e um arrepio percorreu minha espinha ao lembrar o que eu fazia escondido naquele lugar,
principalmente quando havia festividades na cidade. Com quem eu passava horas lá dentro.
Mordi o lábio, fechando os olhos com força e repetindo para mim mesma que seriam apenas
três dias. Três dias, e então eu voltaria para a segurança do meu apartamento simples e
confortável em Boston.
— Aí está você… — Escutei a voz grave familiar atrás de mim. Talvez eu nunca revelasse a
ele, mas naquele lugar, ter Sebastian por perto era uma bênção.
Senti suas mãos tocarem meus ombros, então aquela mesma voz falou bem perto do meu
ouvido:
— Eles estão olhando.
Não ousei virar para confirmar, mas sabia que uma das janelas da cozinha dava uma visão
bem plana para papai e Jolie do espaço onde estávamos. Sebastian empurrou minhas costas,
fazendo meu corpo se mover suavemente no balanço. O gesto foi tão cuidadoso e carinhoso que
meu coração se apertou.
— Está vendo aquele ponto congelado depois das árvores? — perguntei ao segurar as cordas
que me sustentavam com mais firmeza.
— Huh.
— Abuelo costumava me fazer levantar às seis da manhã quando eu era mais nova para
caminhar até lá. No verão, é um lago muito lindo. Nós nos assentávamos na beira dele e
pescávamos. — Sorri, sentindo aquele aperto de lembrança e saudade me cutucar mais forte. —
Sempre ficávamos em silêncio, éramos muito bons nisso. E eram os melhores momentos da
minha vida. Eu apanhava um peixe, mas nunca conseguia tirá-lo do anzol. E quando conseguia,
olhava seus olhinhos esquisitos e ficava com pena. Com o tempo, paramos de pescar e
simplesmente ficávamos lá, só admirando a vista.
Meu acompanhante me ouviu com atenção, as mãos em minhas costas sempre que o balanço
voltava para ele.
— Parece ser um homem bom.
— Ele é. — Meus olhos arderam. — Ele fez esse balanço para mim… Quando pedi ao vovô,
ele fez uma careta impaciente e disse não, mas então acordei num sábado, escutei ele serrando a
madeira enquanto assoviava, as cordas trançadas jogadas do lado. Me lembro que adorava fingir
ser Elizabeth Bennet[7]: sempre que terminava as tarefas da escola, colocava um vestido longo e
me sentava aqui com um livro.
— Você tem boas memórias neste lugar — Bash comentou, e eu me esqueci naqueles
segundos, contando aquelas coisas, que ele era aquele meu colega de quarto irritante e
barulhento.
— Não era uma vida ruim. Talvez… se meu caminho não tivesse se desviado de forma tão…
abrupta — inspirei e me encolhi quando um vento frio beijou minhas bochechas —, talvez
tivesse ficado aqui até hoje.
— Não sonhava com nada antes? — Antes de tudo acontecer.
— Sempre fui acomodada demais. — Meus lábios se curvaram um pouco. Pensei na Amy de
antes, com seus vestidos godês e batom vermelho. — Gostava da ideia de um futuro calmo, onde
eu pudesse me sentar no fim da tarde em um lugar como este para ler. Às vezes escrevia, e
quando gostava do que lia me perguntava se minhas histórias eram boas o suficiente para tentar
fazer disso minha carreira.
— E hoje você trabalha em uma grande editora.
Eu tinha contado a Bash no avião sobre ter estudado e me formado, então pulado de felicidade
quando Snow – uma bibliotecária jovem e animada com quem estudei – me conseguira um
estágio na GO. Romance. Era um dos selos da maior e melhor editora do país, GO. Sang.
Também revelei a Bash, para distraí-lo do medo de voar, que meu sonho era ser uma escritora de
sucesso quando era mais jovem.
— Acho que o desespero de parar em uma cidade grande, sozinha, finalmente me fez criar
coragem para tentar sonhar.
— Que poética.
Inclinei a cabeça para lhe lançar um olhar feio.
Sebastian sorriu.
— Sei que ainda escreve no seu tempo livre — comentou, me pegando de surpresa. — É o
único som que vem do seu quarto: teclas incessantes do computador.
— Não imaginei que conseguisse ouvir com todo o barulho que faz.
Escutei a risada rouca e alegre, uma diferente das que ouvi em todos aqueles anos.
— Sinto muito ser um colega de quarto tão inconveniente…
Bufei e soprei a franja da testa.
— Não sente, não.
Bash segurou as cordas do balanço.
— Vem. — Parou diante de mim. Franzi a testa para a mão estendida em minha direção. —
Vamos dar um pulo na cidade, sair um pouco deste lugar. Perguntei ao seu pai mais cedo, e ele
disse que podíamos usar a picape do seu avô.
Fiquei de pé.
— O que quer fazer na cidade? — Ainda não sabia o que era realmente pior: ficar em casa ou
ir até o centro lotado de pessoas me encarando e sussurrando.
— Podemos… ir a uma cafeteria, comprar algo quente para te aquecer. — Esticou um pouco
mais a mão para mim. — Encontrar algumas roupas para você usar na ceia de Natal.
O olhei, ofendida.
— Eu tenho roupas!
— Você está parecendo um pinguim, Amy.
Encarei os agasalhos, o suficiente para me fazer rolar se deitasse no chão. As botas de neve
eram grandes demais, mas deliciosamente quentes. E certo: a calça listrada era realmente algo a
se questionar, mas eu não queria ficar bonita.
Nem de longe parecer apresentável.
Aceitei a mão enluvada de Bash mesmo assim.
— Se não sabe, estou endividada até a tampa — falei, tentando afastar a estranheza do calor
da mão grande rodeada à minha. — Não tenho dinheiro para roupas. Vamos apenas ficar com o
café.
Quando ousei erguer os olhos para casa adiante, notei a figura solitária de minha irmã
observando da janela na cozinha. A expressão indecifrável.
Engoli em seco.
Sebastian também notou.
— Bom — a mão dele me soltou, mas apenas para levar o braço forte aos meus ombros e me
puxar para perto. Antes de continuar, ele depositou um beijo na minha testa —, vamos ver o que
podemos fazer em relação a isso.
Repeti mentalmente que aquela era uma belíssima atuação. Então, segurei a mão apoiada
sobre meu ombro e caminhei com Sebastian de volta para a casa.
— Não!
— Ah, qual é, Amy! — Bash pegou o vestido e começou a me empurrar na direção do
trocador. — Só um.
— Eu disse que não tenho dinheiro. Você é muito caro, se não lembra.
Escutei a risada descontraída enquanto era levada para o vestiário mais perto.
— Só um, sem compromisso. Não temos nada para fazer, de qualquer forma. Me tire do tédio
e coloque o vestido.
— Está ganhando comissão por acaso? A vendedora vai te pagar se eu levar?
Sim, o vestido era simples, lindo e cantara meu nome quando passamos por ele na vitrine, mas
colocá-lo significaria que eu estava disposta a levá-lo. E se levasse, Bash não me deixaria em paz
até que eu o usasse.
E se eu o usasse…
— Se não gostar, você coloca esses casacos horrorosos de novo e vamos procurar algum lugar
que venda um delicioso café.
— Sebastian…
— Faça seu namorado feliz, querida… — Sorriu para mim todo sedutor, falando alto o
suficiente para as duas vendedoras escutarem.
Era uma loja pequena, bem no centro da cidade, e pessoas entravam e saíam com sacolas e
presentes para o Natal. Talvez Sebastian só estivesse querendo cumprir com seu papel. Quem
sabe não estivesse fazendo isso porque, no fundo, sabia que meus olhos realmente brilharam
quando viram o vestido, e uma parte apagada minha queria se sentir linda de novo.
— Esse apelido já foi vetado. — Fiz careta.
Ele riu.
— Coloque este lindo vestido vermelho para mim, Tiānshǐ.
— Se eu não gostar… — o que achava bem difícil — …podemos ir embora?
Sebastian assentiu, balançando o cabide com a peça em sua mão tatuada.
— Promete que não vai insistir mais?
Outro aceno afirmativo de cabeça.
Suspirei, vencida.
— Ok! — Tomei o vestido dele e entrei na cabine.
Fazia pouco mais de cinco anos desde a última vez que me permiti entrar em um lugar como
aquele, mesmo quando me mudei, mesmo quando fui para uma cidade dez vezes maior, com
tantas variadas lojas e opções de roupas… Me lembro de ficar uma hora inteira encarando uma
vitrine uma vez, depois de me mudar. O vestido não era nada comparado àquele, e o valor com
certeza era bem maior do que uma universitária desempregada conseguiria pagar, mas desejei
poder usá-lo. Me imaginei em um encontro, com um lindo homem de sorriso gentil que gostasse
de me ouvir falar, que não tivesse problemas em me elogiar… Pensei em cinema, em um balde
de pipocas e chocolate. Imaginei, como a leitora boba apaixonada por romances que sou, uma
noite mágica com alguém capaz de me fazer sorrir, borboletas dançando no meu estômago…
Mas não era só isso.
Queria poder usar um vestido como aquele sem culpa alguma. Para mim, para me sentir linda
e bem comigo mesma.
Mas naquele dia, na loja indecentemente cara, com o vestido absurdamente lindo, lembrei por
que estava parada na calçada, naquela cidade tão assustadora e desconhecida, usando uma calça
de corrida da qual não gostava, moletons de um bazar barato e óculos horrorosos. Assim, virei as
costas e fui embora. Sem entrar, sem experimentar.
A Amy de alguns anos atrás era tão vaidosa quanto Jolie. Me lembrava de esperar minha irmã
sair com mamãe e correr até seu quarto a fim de experimentar as roupas. Naquela época, quando
ainda éramos amigas, quando nosso amor era real, quando eu ainda a admirava e desejava ser
como ela, Jolie me puxava para sua cama depois de colocarmos os pijamas e trançava meu
cabelo, criava penteados lindos e me maquiava, me contava histórias e cuidava de mim. Mas
aquilo era só mais uma das inúmeras coisas boas que me foram arrancadas antes de partir.
— E então? — Escutei a voz de Bash lá fora, um pouco mais distante. Devia ter se
acomodado em uma das poltronas da loja enquanto esperava.
— Só… um instan… te… — Os primeiros minutos foram dedicados a tirar os óculos e
colocá-los em algum canto seguro para me trocar. Então, precisei remover as muitas camadas de
roupas, e depois de empilhar todas elas no chão, peguei o tecido vermelho-sangue dependurado.
Era a peça mais delicada que usava em anos, fiquei com medo de o pano desmanchar assim
quando tocasse minha pele. — Er… Bash?
— Huh?
— Eu… — Suspirei, fechando os olhos depois de estalar os ombros algumas vezes para tentar
encontrar o fecho atrás da roupa.
Era um vestido justo, mangas cumpridas que se fechavam nos meus pulsos. A saia seguia até
dois palmos abaixo do joelho, mas se abria na lateral até metade da coxa. Não era vulgar, o
decote não revelava muito, mas era um vestido que chamaria atenção, definitivamente.
E eu não estava conseguindo fechar.
— Certo. — Desisti. — Não ficou bom.
— Não coube? — Meu acompanhante perguntou, a voz se aproximando. A sombra dele parou
atrás de mim na cortina cinza da cabine. — Vou pedir à vendedora para pegar outro núme…
— Não é isso. Só… não ficou bom.
Antes que eu começasse a puxar a bainha da saia para remover a peça, a cortina se abriu.
Então, Sebastian estava ali dentro comigo, bem atrás de mim.
Não conseguia ver bem seu rosto, mas senti o olhar dele me avaliando.
Prendi a respiração.
— Com licença — ele murmurou e, sem qualquer cerimônia ou hesitação, levou as mãos às
minhas costas, ajeitou o vestido e puxou o zíper que começava na curva da lombar e terminava
no pescoço. Aquelas mesmas mãos tocaram minha cintura e me viraram completamente para ele.
Alguns segundos de agonia e silêncio.
Bash não disse nada por um tempo, apenas me observou.
Desejei ter os óculos no rosto, tentar ler o que dizia sua expressão. Escutei o que seria uma
risada, mas não um riso de deboche e “como está ridícula”, mas um sopro de incredulidade e…
— Ficou perfeito em você, Amy.
Meu coração traidor começou a bater rápido, e eu continuei encarando aquele rosto perto do
meu, nós dois ainda ali, na cabine ridiculamente pequena. Sebastian era grande demais para ela,
estava próximo demais de mim.
E ele não se afastou.
— Está falando isso porque estou te pagando para ser um namorado perfeito? — sussurrei,
ciente das pessoas lá fora, na loja.
Notei o sorriso de lado, o Sebastian que conquistava mulheres todas as noites com aquelas
cantadas bobas. Bash não respondeu à pergunta, apenas se inclinou para mais perto, roçou os
dedos em minha nuca e subiu para a base do lenço que prendia meu cabelo.
— Posso? — murmurou ao pé do meu ouvido.
Engoli em seco ao assentir.
Foi… indecifrável. Não consegui descobrir o que senti quando a respiração quente tocou
minha pele e Bash soltou meu cabelo, passando os dedos entre as mechas e as ajeitando sobre
meus ombros. O coração estava acelerado daquele jeito nervoso porque queria que ele se
afastasse logo?
— Aí está… — disse, de uma forma sedutora. Décima regra. Décima regra. Não esqueça a
décima regra! — Acho que sou um cara de sorte.
— É mesmo? — Minha garganta secou. Era ainda mais difícil me concentrar com a visão
embaçada.
— Ah, sim… — Sebastian acariciou meu rosto com as costas dos dedos, e implorei aos céus
que ele não tivesse notado todo meu corpo se arrepiar. — Você está… encantadora com esse
vestido. Para não dizer outra coisa.
— Outra coisa?
O sorriso no rosto dele aumentou.
— Ah… Você realmente não vai querer saber o rumo dos meus pensamentos agora, Amelie.
Tentei não corar. Tentei não dar aquele gostinho a ele. Foi a primeira vez que ouvi Sebastian
dizer meu nome de verdade, daquela forma.
Aquilo tudo era uma farsa, um espetáculo que eu pagaria Sebastian para apresentar. E aquele
teatro precisava ser assistido pelas pessoas certas. Bash mesmo dissera: não importava o quão
convincente ele parecesse, eu não podia acreditar.
— Você é um safado sem-vergonha — resmunguei, desviando os olhos.
— E você já sabia disso.
— Me deixe colocar os óculos e tenho certeza que vai parar de pensar nessas coisas —
brinquei, e jurei ter visto uma careta de descontentamento no rosto dele.
— Onde está aquela coisa odiosa, inclusive? — perguntou, já se abaixando para revirar
minhas roupas no chão.
— Ali. — Apontei para o canto oposto.
Bash pegou os óculos e voltou a me encarar. Depois, com um suspiro frustrado, afastou as
mechas da franja e colocou a armação exagerada e vermelha em meu rosto. Voltei a enxergar os
detalhes perfeitos das feições de Sebastian Wang: o cabelo comprido liso e absurdamente preto,
os olhos castanhos e arredondados, as pintinhas espalhadas pela testa, bochecha, nariz e boca…
— Podemos olhar outros óculos para você também, sabe — reclamou ao me tirar do transe.
Bash ficava mais bonito quando não se empenhava em me irritar. — Eu realmente prefiro você
sem eles, na verdade.
— Talvez seja mais seguro para nós dois que eu sempre esteja com eles.
Meu namorado de aluguel riu.
Ele me guiou para fora da cabine, então seguimos para o espelho enorme no centro do
pequeno estabelecimento. Sebastian, logo atrás, reparou que eu reparei nos olhares nos
acompanhando. Com isso, voltou aquela mão para a minha cintura quando nos encaramos no
reflexo do espelho.
— Veja por conta própria — falou em meu ouvido, o corpo quase colado ao meu. — Você
ficou linda nesse vestido.
Abri a boca para retrucar, e ele me interrompeu:
— Não estou mentindo, Amy. — Apontou com o queixo. — Você está linda.
Desviei o olhar do dele, encarei o vestido vermelho.
Sim.
Era lindo. Perfeito.
Havia bordados sutis nas laterais, uma trepadeira de rosas que subia até as flores se
encontrarem no decote em coração. Justo na medida certa, as curvas do meu corpo destacadas
pelo tecido cor de rubi. Há muito não me permitia gostar delas, cobria todas com camisas largas
demais e moletons horrorosos.
Eu me sentia linda.
Claro, os óculos não ajudavam muito, mas… Não apagaram a beleza da peça.
Eu me sentia uma linda mulher.
Sorri para o espelho, então para Bash, que também tinha um erguer carinhoso nos lábios.
— Acho que vou precisar de um smoking — disse pensativo, me arrancando uma risada.
— Um smoking ficaria perfeito em você, sim — assenti.
— Certo? — Se colocou ao meu lado, uma mão em minha cintura. Em seguida, fez pose para
o espelho, ajeitando a lapela do sobretudo preto e o cachecol cinza que usava, como se
estivéssemos posando para uma foto no tapete vermelho. — Acho que você e eu ficamos muito
bem juntos.
— Hm… Não sei, não. — Fiz pose também, me virando um pouco e apoiando uma mão em
seu peito, ficando na ponta dos pés. — Você é alto demais.
— Arranjamos um par de saltos para você, sem problemas.
Sorri e, antes de desfrutar mais um pouco da leveza daquele momento, fingindo que estava ali
com meu namorado de mentira flertando comigo e eu com ele, me lembrei do porquê não podia
me dar ao luxo de me arrumar.
De ter vaidade o suficiente para usar um vestido como aquele.
— Não é a filha do sr. Sanchez? — uma mulher no balcão perguntou para a amiga.
Congelei.
Bash também ouviu.
— Oh, é sim! — a outra respondeu, sem se incomodar realmente em ser discreta. — E olhe só
para ela com aquele rapaz… Tsc. Tsc.
— O vestido, olhe o vestido…
Comecei a tremer. E não de frio.
Me afastei abruptamente de Sebastian, sentindo a cabeça rodar um pouco, meu peito sufocar
com o ar que não queria entrar.
— Você ouviu o que ela fez com o…
— Ei, você! — Arregalei os olhos e me encolhi quando Sebastian me puxou contra o peito
com uma mão e, com a outra, apontou para as duas no balcão. — É você mesmo, com esse
cabelo horrível.
As duas mulheres empalideceram.
A vendedora recuou um passo, como se para provar que não fazia parte da conversa. E eu? Eu
senti vontade de me encolher até o chão e cavar um buraco para me esconder do mundo.
— Tenho ouvidos sensíveis — Bash disse com uma tranquilidade fria. — E você não para de
berrar. Faça silêncio, por favor.
— Ora, seu…
— Tome cuidado com o que fala, moça. — Sorriu para ela de um jeito nada gentil, que
também me fez retrair no lugar.
A mulher se calou, e a vendedora não disse nada quando as duas clientes saíram batendo os
pés, reclamando sobre a loja. Sobre Sebastian. Ele se virou preocupado para mim, mas recuei,
me desvencilhando do abraço dele. Evitei encarar seus olhos para Bash não notar a vergonha que
quase me engolia inteira.
Antes que meu colega de quarto pudesse dizer qualquer coisa, olhei para o espelho e me mexi,
desconfortável. Puxei um pouco o tecido em algumas partes do busto e no quadril.
— Sabe o que é? — Clareei a garganta. Não vou chorar. Não vou. — Ficou apertado.
— Amy…
— Me ajuda aqui. — Virei as costas para ele, puxando o cabelo para o lado. — Só até a
metade, por favor. Eu me viro com o resto.
Em silêncio, Bash fez o que pedi, soltando um suspiro quando as mãos se afastaram. Ele não
me impediu quando marchei para a cabine outra vez, e me senti grata pela não insistência ao me
ver de volta às muitas camadas de blusas e à calça de moletom com uma paleta de coisas
estragadas.
Quando estávamos de saída, porém, Sebastian disse que queria olhar uma camisa para ele e
me pediu para esperar. Não suportei, no entanto, os olhares curiosos das vendedoras e avisei que
estaria na cafeteria ao lado.
— Não vou demorar — ele prometeu, e sumiu dentro da loja.
Talvez entendesse que eu estava envergonhada demais para ficar perto dele também.
Quando me sentei nos fundos do Café, mordi o lábio com força, piscando várias vezes e
contando para afastar as lágrimas que queriam vir. Não sabia por que achara uma boa ideia trazer
Sebastian. Por que, céus, pensara que conseguiria voltar àquele lugar, que as pessoas não me
tratariam mais daquela forma?
Sebastian podia, naquele momento, estar perguntando à vendedora sobre o que a mulher
detestável na loja estava dizendo, e a moça do balcão – ela praticamente o despira com os olhos
quando chegamos – poderia estar contando a ele a verdade naquele momento, prazerosamente.
A destruidora de lares, era como alguns me chamavam. O melhor dos apelidos. Vadia,
vagabunda, vergonha dos Sanchez… Apesar de ser uma mentira, apesar de doer, as pessoas
sussurravam aquelas coisas.
Também não deveria ter aceitado a sugestão de Bash de sair de casa. Deveria ter ficado lá,
escondida no sótão até abuelo chegar e eu o vir.
Era por ele que estava ali, afinal.
Passar um tempo com vovô, abraçá-lo (mesmo se ele se sentisse desconfortável), conversar e
aproveitar um pouco do tempo restante juntos.
E então ir embora.
Só queria poder me esconder de novo.
Mas não seria possível, seria? Não naquele fim de semana.
— Amy?
Parei de respirar. Meus olhos se abriram surpresos.
Não…
Oh, céus, não… Por favor, não.
A voz fez meu sangue gelar.
— Amy? — Não ergui o rosto. Não ousei encará-lo. Meu coração bateu rápido, implorando
para sair pela boca.
Um dia. Um dia eu desfrutara daquele nome dito por ele, naquele tom que derretia meu
coração.
Um corpo esguio cobriu a claridade dos vidros, ficou parado diante da pequena mesa onde eu
estava. E antes de eu gritar por socorro, procurar Sebastian, antes que eu pudesse… sair… O
homem puxou uma cadeira e se sentou à minha frente, diferente, igual, detestável e lindo.
Perigoso. Perigoso. Perigoso.
Ele apoiou as mãos sobre a mesa e se inclinou em minha direção, aquele perfume familiar
preenchendo o espaço. Sorriu, aproveitando a mesa isolada e o Café vazio para me encarar.
Nolan sussurrou:
— Quanto tempo, meu amor.
Quando me apaixonei pela primeira vez, senti as borboletas na barriga, como os livros
descrevem. Passava as noites em claro com um sorriso idiota no rosto, segurando a respiração
enquanto esperava a resposta dele às minhas mensagens, ficava o dia todo pensando em quando
o veria outra vez e ocupava meu tempo planejando um futuro perfeito.
Meu “Felizes para sempre”.
Nolan fora meu príncipe encantado por muito tempo. Ele era o herdeiro das fazendas Willis e
sempre visitava nossa família quando o pai vinha fazer negócios na cidade. Nossos flertes foram
sutis, e o primeiro beijo foi mágico. Era um romance secreto e emocionante, e eu me entreguei
completamente à promessa de que seria do namoro ao noivado, e do noivado a até que a morte
nos separe.
Eu fora tola demais para não compreender que aquilo tudo era apenas uma brincadeira, e
estivera cegamente fazendo parte do jogo.
Até ser tarde demais para correr.
Nunca pensei que aqueles olhos lindos que tanto amei fossem agora meu maior pesadelo.
Ainda era difícil acreditar que meu corpo todo paralisaria e sufocaria com aquelas duas palavras.
Meu amor.
Observei em silêncio e aterrorizada a garçonete de cabelos curtos e pretos educadamente
perguntar a ele o que queria beber, o questionar discretamente sobre estar à mesa comigo, me
olhar como se eu tivesse um cheiro ruim ou fosse um monstro venenoso. Nolan fingiu não notar,
disse que estava esclarecendo algumas coisas depois do meu retorno. Mostrou sorrisos, foi gentil
e quis saber sobre a família dela, o marido e os filhos…
A garçonete não me perguntou se queria algo e, quando voltou, deixou o café para Nolan com
um sorriso exibido por todos quando estavam perto dele. Um admirado e carinhoso, carregado de
pena e compaixão.
Era um rapaz nobre e bonito, com uma moça ambiciosa e conquistadora.
— Você está… diferente — Nolan finalmente disse para mim depois de ficarmos a sós,
correndo as íris azuis por mim: o suéter sob o casaco de lã que eu comprara em um brechó perto
do trabalho; o acessório vermelho e exagerado que eu, por anos, havia trocado por lentes; o
cabelo que eu um dia adorei cachear, enfeitar e trançar agora preso em um simples rabo de
cavalo e… Os lábios que eu sempre pintei de vermelho sem qualquer sinal de batom. Meu ex-
namorado fixou os olhos neles. — São tão sem graça sem ele.
O batom, sim. Eram mesmo. Não só minha boca, mas tudo em mim agora.
— O que quer? — consegui perguntar, rouca, trêmula.
Ao mesmo tempo que olhava para a calçada lá fora desejando ver Bash aparecer logo,
implorava aos céus para Nolan partir antes de meu colega de quarto voltar.
— Estou surpreso de te ver aqui, na verdade… — Meu ex se reclinou na cadeira, tombando
levemente a cabeça enquanto continuava analisando cada ponto do meu rosto. — Ouvi dizer que
viria este ano, mas não acreditei. É bem… corajoso da sua parte aparecer.
Nolan não mudara. Possivelmente, parecia ainda mais bonito. A pele clara contrastava com o
castanho do cabelo liso e bem penteado. Ele usava roupas comuns para o frio, estiloso como
sempre. Os dedos das mãos enluvadas batucavam na mesa de forma distraída. Desejei por anos
que ele tivesse se tornado um homem de aparência desprezível de bar fedorento, cheio de
remorso, mas ali estava, tão belo quanto na época em que nos conhecemos.
Isso apenas me fez odiá-lo mais.
Meu coração se partir em mais um pedaço.
— O quê? — Nolan se aproximou na mesa, o perfume dele ofuscando o cheiro do café. —
Vai fingir que não me conhece agora? Passamos por muita coisa para você agir assim, não acha?
— Nolan… — Minha voz oscilou. — Por favor…
— Depois de implorar para ficarmos juntos… Tsc, tsc… — me ignorou ao franzir a testa de
forma arrogante. — Sabe, os boatos ainda correm, mesmo depois de tanto tempo.
Encolhi.
— Vai embora — sussurrei.
— Vai ficar na casa dos seus pais? — continuou, tentando encontrar meu olhar.
Bash, cadê você?
— Eu deveria passar lá mais tarde?
— Nolan, estou implorando. — Reuni coragem e o encarei, sem conseguir controlar as
lágrimas de se acumularem, minhas mãos de tremerem no colo. — Me deixe em paz. Por favor.
Ele suspirou e adquiriu uma expressão séria, notou que algumas pessoas entravam e nos
observavam, curiosas. Se não quisesse seu nome na lama por minha causa, não poderia ficar ali
por muito tempo.
Ele sabia disso.
Nolan sempre fora todo sorrisos, gentil e charmoso. Também era estranho quando me olhava
daquela forma, como se eu fosse mesmo a culpada por tudo. Foi o que ele disse quando minha
vida virou de cabeça para baixo. Me culpou por tudo.
— Tenho coisas mais importantes para fazer, de qualquer forma — disse, com um estalo de
língua. — É uma pena, estou muito curioso para saber o que tem feito nos últimos anos. — Ficou
de pé. — Sabe, disseram uma vez que tinha engravidado de um ricaço em Nova Iorque.
Desconfiei que boatos assim se espalhariam, mas doeu de verdade confirmar.
— Sinto muito pelo seu avô, inclusive. — Nolan colocou uma das mãos no bolso do
sobretudo cinza. — É um bom homem.
Desviei os olhos para a xícara intocada na mesa.
Tremendo dos pés à cabeça, senti o almoço trabalhar para voltar pela minha garganta.
— Ah! — Senti aquele típico sorriso em sua voz antes de finalmente ir. — Tente não fazer
estardalhaço este ano… Foi ruim o suficiente da última vez que esteve aqui.
Então, me deixou sozinha.
E quando saiu pela porta e o sino tocou, me permiti desabar.
Não foi difícil localizá-la na mesa mais isolada da cafeteria, nos fundos, e soube que não
deveria ter voltado para a loja quando vi o rosto delicado de Amy pálido e úmido pelo choro.
Quando me viu, porém, tentou disfarçar o mais rápido que pôde. No momento em que levou as
mãos ao rosto, percebi o quanto tremia.
Não teria como me esconder dela agora, mesmo que choro fosse algo capaz de me deixar
extremamente desconfortável. Tínhamos um acordo, e eu não a deixaria sozinha. Amy forçou o
sorriso quando me aproximei, guiando as mãos trêmulas para debaixo da mesa.
— Conseguiu comprar o que queria? — perguntou, rouca.
— Huh. — Puxei a cadeira e me sentei de frente para ela. — Deixei na picape antes de vir
aqui.
Amy fungou.
— Ah… E o que você comprou?
— Um suéter horroroso para combinar com os seus. — Fiz careta. — Bem casalzinho.
Ela soltou uma risada deliciosa, as bochechas ganhando um pouco de cor outra vez.
— Você só pode estar brincando.
— Ah, você vai ver. — Fingi um sorriso, ainda correndo os olhos por cada detalhe de Amy
com aquela estranha preocupação a me apertar o peito.
E com um raro sentimento de culpa também.
Talvez trazê-la para a cidade tenha mesmo sido uma má ideia, e depois do comentário
daquelas duas mulheres na loja… Bem, talvez uma parte minha estivesse curiosa para saber a
verdade que minha colega de quarto tanto tentava esconder.
Apesar de ter sido tentador, não ousei questionar a vendedora quando voltei.
— Já te contei que fico desconfortável quando vejo uma mulher chorando? — Tirei alguns
guardanapos da caixa de plástico sobre a mesa e estendi para Amy.
Ela aceitou, assoando o nariz com uma risada. Fungou depois.
— Você e outros milhares de homens.
Assenti.
— É algo… Poderoso — confessei. — Você pode me pedir o que quiser agora e eu faço, só
para parar de te ver chorar.
— Own… — Amy sorriu de maneira provocativa, estreitando os olhos úmidos. Me
perguntava se para me enxergar sem os óculos ou por charme. — Qualquer coisa?
— Huh. Qualquer coisa.
— Quero que pare de tocar Baby, what you want me to do e My baby left me de madrugada.
Gargalhei, erguendo as mãos em rendição.
— Vai te fazer se sentir melhor?
— Definitivamente. — Ela sorriu, e aquele nó irritante em meu coração se desfez um pouco.
Suspirei.
— Tudo bem. Trégua.
— Obrigada.
— Posso tocar outras músicas… Sem problema.
Amy revirou os olhos, um sorriso sutil nos lábios que desapareceu rapidamente.
Ficamos em silêncio por um tempo, porque eu realmente não consegui pensar em mais nada
para dizer para consolá-la e porque minha “namorada” controlava o choro que queria sair
mordendo o lábio.
Agradeci uma das garçonetes que ocupou o silêncio perguntando se gostaríamos de algo para
comer. Ela era nova e atraente o suficiente para eu a convidar para sair em qualquer outra
ocasião, mas eu era um cara temporariamente indisponível pelos próximos dias, certo? E de
qualquer forma, me senti enjoado com o sorriso insinuativo lançado pela moça depois de encarar
Amy com tanto desdém e desprezo. Depois que a loira saiu, voltei a batucar os dedos sobre a
mesa.
— Percebeu como sou bem-vinda aqui? — Amy soltou uma risada fraca. — A outra sequer
me perguntou o que eu queria.
Corri os olhos pela xícara de café intocada no centro da mesa, desviando para a garçonete
morena. Ela não tentou disfarçar o desprezo ao nos estudar do balcão.
— Ela só está infeliz porque sou um cara comprometido e seria inadequado pedir meu
número.
Minha colega de quarto forçou o sorriso, fungando.
— Pensei que seria mais fácil… com você aqui — continuou, e soltou outro riso sem graça.
— Você viu agora, como ela me olhou. Vê as pessoas na calçada, murmurando. Na loja
também… — Suspirou, evitando me encarar ao brincar com a armação dos óculos para se
distrair. — E meu pai. Faz cinco anos, e ele não conseguiu me dar um único abraço, ou talvez…
só talvez me perguntar como tenho me saído em Boston. Se estou bem.
Ela piscou rápido, fazendo aquela coisa com os lábios de novo, prensando-os e obrigando-se a
engolir o choro.
— O que fiz… foi tão horrível assim?
— O que foi que você fez? — ousei perguntar.
O rosto de Amy voltou a empalidecer, quem sabe com medo de estar sendo observada pelas
pessoas erradas. Minha colega correu os olhos pelo estabelecimento, pela rua lá fora,
procurando…
— Eu… só queria que me perdoassem. — Fugiu da minha pergunta. — Por ter sido tola. Que
me amassem de novo.
Certo. Eu precisava dizer.
— Acho que se escondeu tanto, que não consegue ver que eles te amam, sim. De um jeito
estranho e distante, mas… — Suspirei. — Fala sério, faz ideia do quanto escutei seu pai falar na
minha cabeça hoje?
A testa dela franziu, confusa.
— O que faz da vida, garoto? Há quanto tempo namora minha Amy? Tem passagem pela
polícia? Quais são suas intenções com ela? Pretende se casar com ela ou só quer se divertir? —
Tentei imitei a voz grave com sotaque do Sr. Sanchez. — E ele estava com um machado na mão,
fala sério… Foi muito difícil mentir sob tanta pressão.
— Ele… — Engoliu em seco. — Ele disse mesmo essas coisas?
— Ainda não conheci o resto da sua família, não quero que me deixe sozinho com Jolie outra
vez ou não me responsabilizo, mas seu pai… — Encarei os olhos castanhos e chorosos. —
Talvez não tenha se aproximado de você por vergonha pela forma como te afastou nos últimos
anos.
Esperança cintilou naquele rosto, e mesmo que Amy parecesse ignorar bem os olhares e
cochichos de quem entrasse e saísse, eu percebi.
Estiquei a mão e enxuguei a lágrima solitária que começou a escorrer por sua bochecha
macia.
— Está deixando seu namorado desconfortável, pare de chorar. — Ela tentou, mas depois de
uma fungada, outra onda de choro veio. Me mexi na cadeira, pigarreando sem graça. — Qual é,
Amy… Cadê aquela senhora de oitenta anos irritada que bate na minha porta toda madrugada?
Ela gargalhou, cobrindo o rosto com ambas as mãos.
— Calhorda — murmurou baixinho.
Meus lábios se esticaram automaticamente.
— Isso mesmo. — Peguei os óculos sob a mesa e afastei as mãos de Amy para colocá-los
sobre os olhos dela. — Agora, coloque um sorriso lindo e peça o waffle mais caro daqui. Por
minha conta.
Ela sorriu, mas de forma debochada.
— Você vai pagar?
— Sim, com o dinheiro que está investindo.
— Nesse caso… — Amy pegou o cardápio. — Quero dois deste aqui. E um desse. E não vou
dividir.
Ri.
— Muito bem.
Estiquei o braço e chamei a garçonete.
Depois do café, Amy decidiu que queria comprar um presente para o avô. Segurou minha mão
e me levou de loja em loja até encontrar um pequeno rádio retrô que a fez sorrir de orelha a
orelha. Mas notei sua inquietação, o olhar aflito para as pessoas ao redor, como se estivesse
sendo seguida, como se alguém fosse atacá-la com uma pedra a qualquer momento. Apesar de
minha colega de quarto tentar mostrar para mim que era forte, que estava bem, ela não era tão
boa em atuar assim.
— Por que não leva um desse? — comecei depois de alguns minutos em silêncio, apenas a
seguindo de perto enquanto Amy se concentrava nos próprios pensamentos.
Peguei do mostruário a tiara de rena e coloquei na cabeça dela. Ela sorriu, tocando um dos
sininhos vermelhos que enfeitavam os chifres.
— Hm… Acho que combina mais com você — provocou, tirando a tiara para se esticar e
colocar em mim.
Meus lábios se repuxaram com diversão. Amy pareceu se esquecer dos problemas por alguns
segundos, e aquele sorriso lindo esticou quando ela afastou uma mecha de cabelo do meu rosto,
me observando de forma curiosa e… outra coisa. Admirada talvez?
— O quê? — Franzi a testa. — Os chifres me deixaram irresistível?
Ela riu, balançando a cabeça e voltando o olhar para a caixa de enfeites de árvore em
promoção. A mão enluvada sondava um por um de maneira distraída.
— Só estou pensando… — Ergueu uma bola de plástico azul com desenhos de flocos de
neve. — Como suas amantes se sentiriam passando um dia com esse Sebastian carinhoso,
divertido e todo romântico?
Revirei os olhos, tirando a carteira do bolso do sobretudo, as notas para comprar a tiara de
rena.
— Elas nunca saberão.
— Por quê? — Amy ergueu uma sobrancelha para mim.
— Porque não vou a encontros.
— Hm… Você não se sente mal saindo para correr e me deixando com a tarefa de despacho?
— Agradeço muito pelo seu atencioso trabalho todas as manhãs. — Sorri de forma
provocativa, guardando a carteira outra vez.
— É sério, Bash… Algumas são bem interessantes… Se você desse uma chance. — Ela
ergueu outro enfeite, um biscoito de gengibre sorridente. Amy sorriu para ele de volta, demorou
para devolvê-lo caixa. — A Cisne com certeza faz seu tipo.
Ela saiu andando, continuou avaliando os produtos da loja, entediada. Não costumava guardar
os nomes das mulheres com quem dormia, muito menos a fisionomia delas, por mais que
tentasse. Portanto, não consegui me lembrar de nenhuma Cisne nas últimas semanas. Era um
nome incomum, eu com certeza me lembraria, mas perguntei mesmo assim:
— Cisne?
— Ah… — Amy soltou uma risada, me lançando um olhar divertido. — A garota loira de
sorriso doce da quarta-feira passada. Ela fazia um som de Cisne quando chegava… lá. Você
sabe.
— O quê? — perguntei, rindo.
Amy parou de andar e se virou para mim no corredor. Ela esperou uma senhora passar por nós
com o carrinho de compras e explicou, dando de ombros:
— Costumo catalogar os sons que suas companhias fazem quando estou com tédio.
Pisquei, incrédulo. Por fim, gargalhei.
— Amy, Amy, Amy… — falei com um largo sorriso ao cruzar os braços sobre o peito. —
Não esperava isso de você. Explique.
Ela riu.
— Hm… — Pensou. — A ruiva, de domingo, era um esquilo. Ela fazia uns sons finos quando
você… — Pigarreou, desviando os olhos, as bochechas corando. — Esquilo. Definitivamente.
Mês passado você trouxe uma morena alta com tatuagem, lembra?
Não.
— Qual era o som dela? — Minha voz saiu com mais uma risada.
— Baleia Jubarte. — Amy assentiu para si mesma.
— E como raios é o som de uma baleia Jubarte?
— Alto e fino… longo… — Ela tentou imitar, e eu instantaneamente soube de quem se
tratava.
Senti os olhos lacrimejarem, a barriga doer. Eu não dava risada assim há anos.
— Por favor, continue.
Amy se animou, com um sorriso de quem esperou muito tempo para contar sua lista para
alguém.
— Uma vez, você levou aquela mulher mais velha, de uns 35… Ela tinha um cabelo liso e
comprido e uma boca de Jolie[8]…
— Que memória impressionante, Ames…
— Ela fazia um som de hiena.
Gargalhei alto, atraindo olhares das poucas pessoas que exploravam a loja do outro lado.
— Céus…
— Você sabe como é o som de uma hiena? — Amy sussurrou. — Eu tive pesadelo com isso.
Sim, eu me lembrava dela. Não tinha como esquecer, na verdade. Não costumava levar
mulheres mais velhas que eu para o apartamento, mas quando descobri a idade dela, fora tarde
demais.
— Também tive pesadelos — confessei, arrancando uma risada sincera de Amy.
— Anoto no celular quando uma mulher tem um som estranho. — Ela passou a palma da mão
enluvada no ar, como se colocasse uma faixa ao exemplificar. — Sexta. Dia 16. Furão.
Ri.
— Não sei se quero saber qual som um furão faz.
— Picado. Como uma risadinha. — E imitou o som, me fez gargalhar outra vez.
— Nunca parei para pensar nessas coisas — falei com sinceridade depois de voltar a andar
com Amy no corredor de enfeites em promoção. — Fico ocupado demais para isso.
— É, eu sei. — Ela bufou.
— Hm… Nem todas fazem sons engraçados, sabe…
— Só coloco na lista as de sons engraçados.
— E você anota isso antes ou depois de ir bater à minha porta toda irritadinha? — perguntei,
divertido.
— Depende muito do meu humor. — Deu de ombros.
Sorri, observando o rosto dela. Aquela tensão de antes parecia ter ido embora, apenas varri
para longe a sensação de alívio que me tomou por vê-la mais alegre para ocupar minha mente
com outra coisa. Foi inconsciente, não senti meus lábios se esticarem mais enquanto corri os
olhos pelo perfil de Amy: as ondas do cabelo castanho sempre preso em um rabo de cavalo
ficaram soltas e bagunçadas em minha imaginação, aqueles óculos vermelhos em algum canto
jogado do meu quarto, ou do dela, junto das camadas de roupas que ela usava para se esconder…
Não… Aquelas roupas, não. Pensei no vestido vermelho que Amy colocara para mim mais
cedo.
Entendi só naquele dia, porque era um idiota arrogante que não se importava até então: ela
não enxergava como era linda. Ou talvez soubesse, mas insistia em se esconder debaixo de dois
ou três suéteres que claramente também odiava. Por algum motivo.
Pensei em batom vermelho nos lábios perfeitamente desenhados, a cor borrada em sua pele
castanha, marcas de beijo no meu pescoço… Amy franziu a testa para mim ao notar o silêncio
repentino e minha atenção total nela.
— O que foi?
Balancei a cabeça, caminhando tranquilamente, as mãos nos bolsos.
— Só estou pensando.
— Em…?
Desviei o olhar do dela para a prateleira de globos de neve.
— Em que tipo de som você faria se estivesse na cama comigo.
Amy parou de andar e, quando virei o rosto para encará-la, notei as bochechas dela atingirem
um tom escarlate.
— O quê? — Sorri. — Você começou.
E apesar de estar brincando, mesmo que tivesse dito para provocá-la, continuei curioso para
saber.

— Me dê isso — Tomei as sacolas das mãos dela assim que descemos da picape em frente à
casa enorme. Havia mais carros estacionados, outros parentes provavelmente.
Amy franziu a testa para minhas compras.
— Você comprou tanto suéter assim?
— Ah, comprei calças de moletom horríveis também. — Pisquei, a acompanhando para
dentro da residência, de onde risadas e conversas ecoavam.
— O modelito completo — ela zombou.
— Tudo para fazer minha garota feliz.
Ela revirou os olhos e me empurrou com o cotovelo. Mas a centelha de descontração e
diversão das últimas horas desapareceu do rosto de Amy quando paramos em frente à porta
branca da casa de seus pais. Minha colega de quarto inspirou fundo.
— Você vai me proteger, certo? — sussurrou.
— Huh. Prometo.
— Vai ser o namorado perfeito?
— O melhor do mundo.
Os olhos castanho-claros se ergueram para mim, e Amy pareceu aquela pessoa frágil e
insegura de novo.
Passei as sacolas para uma mão e, com a outra, entrelacei meus dedos nos dela. Apertei com
carinho.
— Não vou te deixar sozinha, Tiānshǐ.
Ela assentiu.
— Bom mesmo. — Apertou minha mão de volta. — Ou desconto do seu salário.
Ri, indicando com o queixo para ela ir em frente, abrir a porta.
Amy respirou fundo outra vez, segurou a maçaneta e abriu.
Quando entramos, as risadas da sala cessaram, e os rostos novos que eu não conhecera antes
se viraram em nossa direção. Duas mulheres no sofá maior conversavam com uma xícara de chá
nas mãos. Uma delas se parecia muito com Amy, e eu soube que era a mãe pelo tom dos olhos e
o cabelo castanho-claro.
Jolie estava sentada no outro sofá, acariciando a barriga redonda. Três crianças brincavam no
tapete da sala diante da imensa árvore de Natal: dois meninos, oito e dez anos, talvez, e uma
garotinha de cinco, no máximo. Escutei barulho da cozinha também. Com certeza havia mais
gente na casa.
Amy apertou minha mão com mais força, e o silêncio se tornou insuportável enquanto todos a
encaravam surpresos. Corrijo, me encaravam surpresos. Eu não tinha a expressão mais amigável
no rosto, claro, e estava prestes a latir algumas coisas quando uma voz rouca e fraca disse
primeiro:
— Ah, céus… — resmungou o senhor de idade do corredor que levava às escadas do segundo
andar. Ele observou Amy, ignorando completamente minha existência. — Sabia que deveria ter
queimado as roupas da minha esposa depois que ela morreu.
Franzi a testa, conferindo o rosto da minha colega de quarto. Amy engoliu em seco, os olhos
brilharam forte sob os óculos.
— O que raios está fazendo usando as roupas da sua avó, Amelie?
Ela meio riu, meio fungou.
— Oi, vovô.
O homem bufou, balançando a cabeça desapontado, as mãos para trás do corpo magro e
frágil. Ninguém ousou falar nada, até os pirralhos observaram a cena com as testinhas franzidas.
O senhor de uns setenta anos suspirou, abrindo os braços, por fim.
— Venha aqui me dar um abraço, sua garota sensível.
Ela me soltou, ignorou a família que a encarava e correu até o avô.
Se eu chorasse na frente dele, receberia uma repreensão. Estava bem claro que eu já havia
feito aquilo mais cedo (meus olhos ainda apareciam inchados do choro na cafeteria). Apesar de
perceber como eu estava emocionada e como sentia sua falta, abuelo fingiu não notar que eu
estava prestes a desabar. Mas era inteligente o suficiente para saber que ficar naquela sala, com o
olhar de mamãe fixo em mim, com o olhar de todos na sala fixo em mim, não seria bom para
minhas emoções afloradas.
Vovô apenas me soltou e resmungou sobre querer dar uma volta pela casa, pegou seu casaco e
saiu. Quando fiquei parada, o observando, ele apenas disse sobre o ombro: “Você não vem?”
E eu o segui.
Ele estava tão magro… Tão pequeno e frágil. Quando escutei sua voz, tão fraquinha e
diferente do que costumava ser... Quando o vi depois de tantos anos… A mudança e as sequelas
da doença e do tratamento eram nítidas. Meu avô sempre fora um homem saudável e atlético:
saía para correr e, desde pequena, tentava acompanhá-lo. Mesmo depois de crescer, me lembro
de arfar, cansada, e reclamar sobre voltarmos para casa. Ele ria, alegando que eu era nova demais
para ser tão sedentária.
Abuelo era o homem que sabia o quanto eu odiava vegetais e me pagava para comê-los. Como
um incentivo à minha saúde, claro, mas porque o dinheiro comprava um ou dois livros no final
do mês. Ele me levava à livraria na cidade quando me sentia triste; brigava comigo quando eu
caía e me machucava enquanto cuidava dos ferimentos.
Todas aquelas lembranças retornaram para mim quando o vi outra vez. O homem forte,
confiante e sério do qual eu me lembrava parecia tão diferente… A pele antes gritava saúde e
exercícios físicos, chás de plantas amargas para o estômago e boas noites de sono. Agora estava
pálida e mais enrugada, o cabelo mais branco, a barba sempre feita enchia o maxilar fino. Ele
andava tão devagar… Falava tão baixo…
Mordi o lábio, pisquei os olhos para afastar as lágrimas.
— Se for para me seguir enquanto chora… pode voltar — reclamou, os olhos estreitos
focados na pequena trilha que levava para o lago.
Me envolvi em um auto-abraço.
— Não estou chorando — murmurei como uma criança pequena.
— Estou vivo, não estou? Pare com esse drama.
— Senti sua falta também, vô.
Ele finalmente parou, suspirando alto. Por fim, se virou devagar e me encarou, deixando a
indiferença de lado para suavizar o olhar para a neta que não via há cinco anos.
— Como você está, filha?
Forcei um sorriso ao dar de ombros.
Outro suspiro deixou os lábios enrugados. Meu avô voltou a caminhar, tão devagar que quase
sugeri voltarmos para dentro da casa. Mas ele odiava quando o tratávamos como um senhorzinho
de idade frágil, mesmo claramente sendo um.
— Ouvi de tudo desde que partiu… — recomeçou, as mãos ainda atrás do corpo. Ele analisou
minhas roupas de novo. — Menos que tinha adquirido um gosto tão terrível para moda.
Consegui sorrir de verdade.
— O quê? O senhor não gostou? — Alisei o suéter enorme, com cor de ovo podre, que eu
usava. — É tendência em Boston.
— Por favor, me diz que perdeu sua mala no aeroporto e isso foi tudo o que conseguiu quando
veio para cá.
Gargalhei, sabendo que ele não era de contato, mas encaixando meu braço no dele mesmo
assim.
— Acho que combina comigo.
Ele balançou a cabeça e soltou um som resignado. Caminhamos devagar e em silêncio por
alguns minutos, até a ponta do lago congelado ser visível. Enchi o peito de ar frio e criei coragem
para perguntar:
— Como o senhor está?
Ele não respondeu. Por um segundo, pensei que não tivesse escutado, mas suas feições
adquiriram uma tristeza reconhecível. Talvez medo também.
Vovô levou a mão livre até a minha, apoiada em seu cotovelo. Sorriu um pouco.
E só.
— Vô…
— Sei que não é fácil voltar aqui depois de tudo — me interrompeu —, mas estou orgulhoso
por ter vindo. Queria ver seu rosto antes de partir.
Minha garganta se fechou.
— Não diz isso…
— Ora, criança… — Riu baixinho, voltando a encarar a paisagem. — Somos adultos, somos
humanos, e isso faz parte do ciclo: nascemos, vivemos, rimos, choramos e partimos.
O choro que pensei ter contido ameaçou sair com mais força. Meu lábio inferior ressecado,
frio e já ferido pelo mau hábito reclamou quando o mordi com mais pressão, com esperança de
segurar a torrente de lágrimas querendo sair.
— Estou pegando pesado com você, não estou? — Ele apertou de leve minha mão. — Não
vamos falar disso agora, ainda temos tempo.
Funguei.
— Temos?
— Huh. — Voltou a ficar sério, ainda muito habilidoso em esconder as verdadeiras emoções.
Ele poderia muito bem estar com dor naquele exato momento, mas eu nunca poderia saber, não
quando seu rosto estava tão tranquilo e sereno. — Agora, me fale sobre aquele garoto tatuado na
minha sala. Ele fez algum voto para deixar o cabelo crescer?
Gargalhei.
— O nome dele é Sebastian.
— Seu amigo?
— Ele é… — Odiava mentir para abuelo, mas a verdade só levaria a uma conversa que ainda
não estava pronta para ter. — Meu namorado.
Vovô pareceu hesitar, pareceu querer dizer algo. Esperei para ouvir. Talvez um “Você confia
nele? Tem certeza disso? Não vai se machucar de novo?”. Porém, ao invés de me alertar e tentar
me proteger, ele inspirou fundo e disse:
— Me conte sobre vocês dois… Me ajude a decidir se gosto dele ou não.
Sorri. Me aconchegando mais à presença reconfortante de meu avô, comecei a contar sobre
Bash e nossa meia-verdade.
Sorri, espreguiçado na poltrona, quando as mulheres na sala continuaram me encarando de
forma suspeita. A mãe de Amy não tentou disfarçar o desgosto enquanto corria os olhos por
mim, me avaliando. Decidindo algo.
Não me importei em ser educado. Se realmente estivesse conhecendo os pais da minha
namorada, se realmente estivesse em um relacionamento com Amy, iria me aproximar da mulher
e a cumprimentar. Tentaria ser agradável. Mas depois que minha colega de quarto e o avô
saíram, nos deixando sozinhos, depois que a mulher emburrada mandou as crianças partirem da
sala para procurarem os pais, apenas me joguei na poltrona vazia e soltei as sacolas de compras
de lado.
Após o que pareceram horas arrastadas, foi Jolie quem cortou o silêncio com uma risada sem
graça.
— Mãe, esse é o namorado da Amy, aquele que te falei. — E para mim, acrescentou com um
sorriso afetado: — Sebastian, essa é minha mãe, Nora Sanchez.
Assenti para a mulher, que não mudou a expressão.
— É um prazer.
— E eu sou Diana, a tia da Amy e da Jolie — a outra se adiantou, antes de a sobrinha a
apresentar. — É um prazer te conhecer, querido.
Diana devia ter conservados quarenta anos. Tinha um rosto bonito e gentil, diferente de Nora:
apesar de ter características herdadas por Amy e Jolie, carregava um olhar duro e antipático. A
tia das garotas não devia ser parente de sangue dos Sanchez, tinha o cabelo ruivo e uma pele
muito clara. Mas era a mãe dos meninos, com certeza: um deles apresentava o mesmo tom
avermelhado do cabelo. O outro, que seguira o irmão para fora, trazia os mesmos olhos azuis.
Já a garotinha não parecia com nenhum deles, poderia ser uma miniatura de Amy: cabelos
castanhos ondulados e indomáveis, olhos grandes e rosto angelical. A pequena havia oferecido
um sorriso alegre e banguela para mim antes de seguir as outras duas crianças.
Inspirei, me perguntando se seria grosseria demais me levantar e ir para o sótão.
— Antes de chegarem, Jolie nos falou como você e Amelie se conheceram — Diana
continuou, tentando evitar o olhar cortante de Nora. — Faz muito tempo que namoram?
— Hm… Oficialmente? Uns dois anos — contei facilmente nossa mentira. — Amy foi difícil
de conquistar.
— É mesmo? — Nora riu, finalmente se pronunciando. — Que surpresa, levando em
consideração o histórico dela.
Franzi a testa.
— Histórico? — perguntei, tentando não soar tão curioso.
Nora abriu a boca para responder, mas Jolie a interrompeu:
— Amy sempre foi muito reservada. — Ela lançou um olhar feio para a mãe. — Mas era
muito doce e… romântica. É surpreendente que você tenha… hm… demorado tanto para
conquistá-la.
— É surpreendente que ele tenha tomado a iniciativa — cortou Nora.
Sustentei o olhar dela por alguns segundos antes de responder:
— É de se imaginar que uma pessoa brilhante e amorosa fique mais cautelosa depois de ser
abandonada pela própria família — falei ríspido, sem qualquer intenção de esconder minha
impaciência, e jurei ter notado Jolie se encolher. — Precisei ser insistente até ela finalmente
aceitar sair comigo.
Um sorriso amargo moldou os lábios da mãe de Amy.
— É isso que ela disse para você? — indagou, arqueando as sobrancelhas. — Que a
abandonamos? Amelie não dever contado, então, a vergonha que trouxe para nossa família.
Contou?
— Mãe, chega. — Jolie me olhou como quem pedia desculpas, e notei as mãos delicadas dela
tremerem sobre a barriga. — Você prometeu que…
— Se esse estranho deseja aparecer na minha casa para cuspir insultos, merece ouvir a
verdade!
— Que vocês viraram as costas para ela na primeira oportunidade? — Franzi a testa. — Sabe,
Sra. Sanchez, não me lembro da minha mãe, mas cresci pensando que mulheres honradas pelo
título devessem ser amorosas e compreensivas. Um tipo de porto seguro. Mas veja só que
decepção… Parece que me enganei.
Ela grunhiu.
— Você sabe o que aconteceu, garoto? — Diana se intrometeu, cautelosa.
— Você sabe? — rebati.
Não, eu não sabia. Amy não me contara os detalhes e, nas últimas horas, minha cabeça girava
com teorias sobre o assunto, mas eu a vira chorar, estremecer e temer voltar para casa por causa
de fofocas. Amy estava me pagando para interpretar um papel, o que aconteceu ou deixou de
acontecer entre ela e sua família não era da minha conta. Eu só ficaria ali por poucos dias, de
qualquer forma. Não precisava saber.
— Por que a chamou para passar o Natal aqui se não a queria por perto?
— Eu jamais convidaria aquela garota para voltar a colocar os pés nesta casa, foi o avô dela
que…
— Chega! — Jolie falou, fechando as mãos trêmulas sobre a barriga. Ela respirou fundo e
encarou bem a mãe. — Conversamos sobre isso antes de enviar o cartão para Amy. Você disse
que ela poderia ficar aqui, prometeu que a trataria bem.
Estreitei os olhos.
Jolie estava defendendo a irmã mais nova?
— O que aconteceu… fica no passado. Não é hora de brigarmos dessa forma, abuelo está
doente. — Respirou fundo, então me olhou outra vez. Ainda havia a mesma desconfiança de
mais cedo. Ela não me conhecia, era justo, mas não consegui deixar de pensar que Amy talvez
tenha exagerado quanto à irmã também. — Vocês são bem-vindos aqui, Sebastian. Espero que
seja a pessoa certa para a Amy. Ela… merece alguém que a faça verdadeiramente feliz.
Franzi a testa.
O que estava acontecendo ali?
— Não seja tão dura com Amelie. — Jolie se virou para a mãe, que ainda a observava em
choque. — Acho que ela… — concluiu depois de fechar os olhos com força e suspirar: — Já se
castigou por tempo suficiente.
Segurei a pergunta na língua, a curiosidade sussurrando ao ouvido. Diana olhou para Nora
com dúvida, e nos olhos de Jolie… só havia dor. Eu não conhecia o passado de Amy, não
completamente. Minha colega de quarto dissera ter assumido a culpa, a mãe dela claramente a
culpava mesmo, as pessoas murmuraram quando a reconheceram na rua, mas… havia algo.
E por que Jolie parecia tão triste?
Alguém bateu à porta.
— Prometemos não discutir o assunto enquanto Amy estivesse aqui. — Jolie ficou de pé,
acariciando a barriga, a criança que em breve nasceria. Os olhos melancólicos encararam aquele
ponto como se ela pudesse ver o bebê lá dentro. — Vamos apenas fingir que nada aconteceu. Ela
ainda faz parte desta família.
— Filha… — Nora ficou de pé e se aproximou de Jolie.
Jolie a ignorou, seguindo para o hall de entrada. Quando abriu a porta, um homem jovem
esperava sorridente, com uma caixa de presente na mão.
— Cheguei tarde? — perguntou, já se adiantando para entrar na casa, mas não sem antes
cumprimentar Jolie com um beijo carinhoso na boca.
O marido dela.
— Ah, é você, querido… — Nora me lançou um olhar estranho antes de se afastar para
abraçar o genro. — Chegou na hora certa. Jolie disse que você não ficaria para jantar aqui hoje.
Se eu soubesse, teria preparado seu prato favorito.
A doçura repentina no tom de voz de Nora me deixou enjoado.
O homem franziu a testa, lançando um olhar para a esposa.
— É mesmo?
— Não vamos ficar — Jolie respondeu, me encarando de onde estava. Sustentei o olhar. —
Não estou me sentindo bem.
Ele a observou com genuína preocupação, tocando o rosto pálido da esposa.
— Está enjoada?
— Huh… Acho que o almoço não caiu muito bem. — Ela forçou um sorriso.
— Oh, céus, será que foi o molho de tomate? — Diana ficou de pé também.
Continuei na poltrona, observando a cena, a mentira que a irmã de Amy claramente contava.
— Não se preocupe, tia — ela respondeu. — Estava perfeito, eu só… sempre estou enjoada
ultimamente.
— Mas você quase não comeu… — resmungou a mulher.
— É melhor a gente ir. — Jolie pigarreou. — Não vamos ficar para o jantar.
— Mas… — Nora começou.
— Não acho que seja uma boa ideia ficar esta noite. — As duas trocaram um olhar estranho, a
mais nova desconfortável. E Amy nem estava na sala. Ela desviou o olhar para o marido. —
Vamos?
— Não quer tomar um remédio e esperar o enjoo passar? — Ele acariciou o rosto dela.
Jolie lançou um olhar rápido para mim e negou. O recém-chegado acompanhou o gesto,
finalmente me notando no canto da sala. Ele franziu a testa.
— Quem é…
— Namorado da Amy — Jolie respondeu, séria.
— Então é verdade… — O homem me encarou, correndo os olhos azuis por mim. Então, os
desviou para o corredor, como se a procurasse. — Amelie voltou.
Houve um silêncio repentino, e eu me preparei para responder educadamente qualquer
comentário desprezível que o cunhado de Amy tivesse para dizer, mas ele apenas abriu um
sorriso educado para mim.
— Sou o marido da Jolie, Nolan Willis.
— Não ligo. — Sorri de volta.
Ele riu e me observou com curiosidade. Por fim, se virou para Nora e estendeu a caixa de
presente.
— Quis trazer antes que as crianças vissem, é melhor esconder com os outros no sótão.
— Ah… — Nora sorriu. — Você já tinha comprado presentes, não precisava trazer mais.
— Molly disse que queria muito uma boneca de pano, eu não poderia perder a oportunidade.
Jolie continuou me encarando, nervosa. Vez ou outra, desviava o olhar para o corredor.
— Então, vamos embora? — ela disse. — Realmente, não estou me sentindo muito bem.
— Hm… Serão vinte minutos até chegarmos em casa, meu amor — respondeu Nolan,
franzindo a testa. — Tem certeza que não quer ficar aqui e esperar o enjoo passar?
Jolie o observou por alguns segundos, como se tivesse algo a mais para dizer, mas desistiu e
fez que não.
Nolan suspirou.
— Certo. Onde estão suas coisas?
— No meu quarto — Nora se adiantou. — Vou buscar.
— Vamos esperar no carro. — Jolie me encarou uma última vez, pareceu muito com a irmã
mais nova quando ficava apreensiva demais, prestes a chorar. — Até amanhã.
— Oh, querida. — Diana a abraçou com cuidado. — Tente descansar um pouco. O Natal não
tem a mesma graça sem você aqui, então precisa ficar boa.
Jolie sorriu, sem graça.
— Não se preocupe, tia.
Nolan se despediu de Diana também, e me olhou uma última vez antes de sair, com um
sorrisinho no rosto ao dizer:
— Mande um abraço para Amy.
Se o dia de reencontros havia sido horrível, o jantar foi minha tortura maior.
Depois que voltei da caminhada com o vovô, encontrei Sebastian emburrado na poltrona perto
da enorme árvore de Natal na sala, sério e pensativo. Ele não falou muito durante o jantar.
Na verdade, ninguém falou muito durante o jantar.
Por minha causa.
Jolie decidira ir embora para casa. Aparentemente, estava com enjoos e não queria incomodar.
E apesar de saber que provavelmente fora uma mentira, eu me senti eternamente grata por isso.
Por não ter que lidar com ela e com o marido.
Vovô ficara cansado do nosso passeio e fora dormir cedo demais. Meus tios ignoraram o
clima pesado na sala de jantar o máximo que conseguiram, comentando sobre o jogo do dia
anterior, perguntando a Sebastian se ele gostava de hóquei ou algum outro esporte. Meu
namorado de aluguel fez o melhor que pôde para entrosar na conversa, mas seus olhos sempre
focavam no rosto da Sra. Sanchez.
Ela claramente era a mais infeliz com minha presença.
E eu já esperava, claro, que ela me olhasse daquela forma, que não se incomodasse em falar
comigo ou sequer me reconhecesse naquela mesa.
Me senti como nosso antigo cachorro, Caramelo. Mamãe detestava cachorros, mas o aturava
porque meu avô era apaixonado por ele. Então, deixava ração, limpava as fezes e o levava para o
petshop quando ninguém mais podia, porque era a mulher da casa e não suportava bagunça. Se
pudesse, no entanto, se livraria do animal. Eu era o próprio Caramelo naquela noite e, se tivesse
a opção, me enfiaria debaixo da mesa como ele costumava fazer antes de morrer.
Ela não me queria ali e, se pudesse, me colocaria para fora.
Não consegui comer, não com o olhar constante dela em mim e Bash. Era como se soubesse
que havia algo errado entre nós dois, como se soubesse que, na minha mala, existia uma folha de
caderno dobrada com um contrato ridículo. Sebastian retribuiu o olhar e fez de seu objetivo
pessoal infernizar minha mãe com comentários ácidos e sarcásticos sempre que tinha a chance.
Mas depois de um tempo, eu simplesmente não fui capaz de ficar ali.
Havia um nó em minha garganta, me sufocando.
O único som que apaziguava aquela tensão fria e estranha na mesa era a implicância das
crianças, a pequena Molly se lambuzando com a torta de abobora que mamãe fizera.
Sorri para ela. A pequena retribuiu, banguela.
— Não vai comer torta, tia Amy?
— Hm… não estou com tanta fome. — Foi a primeira vez que falei desde que nos sentamos
para comer. Meus tios se calaram para ouvir, minha mãe continuou me encarando daquela forma
que me fazia encolher.
— Então posso ficar com seu pedaço? — Molly lambeu os lábios alaranjados.
Ri, lançando um olhar questionador para minha prima, Jen. Jennifer era mais velha que eu
dois anos. Em nosso último encontro, tinha acabado de dar à luz a Molly. Eu sequer tivera a
chance de segurar o bebê no colo, e senti como se tivesse recebido um soco no estômago quando
vira a menina mais cedo na sala. Aquela culpa e a tristeza de ter perdido muito tempo voltaram.
— Passe seu pedaço para mim, Amy — Jen falou, fechando a cara para a filha. — Essa garota
já comeu demais.
— Mas, mamãe…
— Depois você vai reclamar de dor de barriga… E hoje nem é o jantar de ceia ainda. Guarde
espaço para amanhã.
— Amanhã já é Natal? — Os olhinhos de Molly brilharam.
— Não… Amanhã teremos a ceia, e na manhã seguinte, o Natal.
— Então vou poder abrir meus presentes?
— Huh. Agora, vá lavar esse rosto. — Jen apontou para o corredor. — E não faça barulho, o
vovô está dormindo.
— Mas eu quero ficar aqui… — Fez beicinho.
— Sendo assim, vou começar a contar… — Minha prima enfiou uma fatia de torta na boca,
um dos cachos escuros caindo sobre os olhos. — Um… Dois…
Os ombros de Molly murcharam.
— Tô indo…
Os dois garotos ao lado dela riram.
Tia Diana os encarou com o mesmo tom que Jen.
— Vocês dois também podem ir para a cama.
— Mas, mãe… — disseram em uníssono.
— Um… Dois… — Ela imitou a afilhada.
Jen lançou um sorriso cúmplice para mim. Sorri de volta: quando éramos crianças, nossos
pais também nos mandavam para a cama quando queriam beber vinho ou qualquer outra coisa
proibida para os filhos. Hoje, adultas, estávamos à mesa e poderíamos beber.
Mas meu sorriso durou pouco quando encontrei o olhar de minha mãe outra vez. Pude ver nos
olhos dela que queria começar a contagem ameaçadora também, me mandar sair da mesa. Me
retraí na cadeira. Bash procurou minha mão debaixo da mesa e a entrelaçou à sua.
— Sabe… Sinto ciúmes quando percebo que minha filha se parece mais com você do que
comigo — Jenny disse para mim, levando mais um pedaço de torta à boca.
— Você implicava muito comigo por causa das bochechas e olhos grandes, deve ser karma.
Ela riu.
— Molly gosta de ler como você, e inventa cada história… — Minha prima balançou a
cabeça com um sorriso de mãe orgulhosa e apaixonada.
Abri a boca para responder, comentar que eu adoraria levar Molly para passar um dia na
livraria ou algo assim, mas mamãe falou primeiro, direcionando a taça aos lábios.
— Vamos torcer para as semelhanças entre as duas terminarem aí.
Suspirei, desviando o olhar para meu copo intocado. Bash apertou minha mão com força –
havia uma expressão fria em seu rosto enquanto observava minha mãe –, e percebi que o gesto
não era uma tentativa de me consolar, mas sim de se conter.
— Acho que as duas vão se dar muito bem. — Jen sorriu. — Molly vive se gabando de se
parecer com você.
Aquilo mexeu comigo de uma forma especial. Aqueceu meu coração.
— Mesmo?
— Mas é claro! Jolie morre de ciúmes.
— As duas devem ser próximas… — comentei baixinho.
— Depois que Jolie descobriu a gravidez, começou a visitar Molly com mais frequência.
Coisa de mãe.
Apenas assenti, me mexendo desconfortável na cadeira. Meu pai, Phillip (o esposo de Jen) e
meu tio (marido da tia Diana e pai de Jennifer) não pareceram respirar, como se qualquer som
pudesse provocar uma fagulha. Minha mãe tinha se levantado para buscar o vinho na cozinha,
mas não disfarçou o desgosto em ouvir a conversa quando voltou.
— Ei, vocês podem passar um tempo juntas agora que está aqui, sabe, ir à livraria ou algo
assim. Vamos ir para casa em janeiro. Phill está de férias, podíamos ir à casa do lago do vovô e
fazer um piquenique, como quando éramos pequenas.
Meu coração se encheu de esperança.
Talvez nem todos me odiassem, talvez ainda se importassem.
Me preparei para responder com um sorriso no rosto, mas fui interrompida de novo.
— Amelie volta para casa na terça. — Mamãe se serviu de uma taça de vinho.
— Mas tão cedo? — Jen me encarou com a testa franzida.
— Eu… — Queria ficar. Sentia saudade dela, daquilo, de fofocar e rir por coisas idiotas com
Jen e Jolie. Mas…
— Não há necessidade de prolongar a estadia dela aqui — minha mãe continuou. — Ela
queria ver o avô, já viu.
— Mãe… — Minha voz falhou.
— Não faça este fim de ano ser mais doloroso do que já é, Amelie.
O nó em minha garganta se intensificou, senti meus olhos arderem. Sebastian apertou minha
mão de novo, mas dessa vez não conseguiu se segurar.
— Eu deveria levar sua filha para um hotel, então? — perguntou com a voz grave. Nunca
ouvira aquele tom em sua voz antes, nunca vira tanta raiva e seriedade naqueles olhos, as íris
castanhas pareciam mais escuras. — Não precisamos ficar necessariamente nesta casa, não é?
Mas se Amy quiser ficar aqui até o Ano-Novo ou até dezembro do ano que vem, não é você
quem vai decidir.
— Bash…
— Perdi a fome. — Ele me soltou, ficando de pé. — Essa cara feia da sua mãe me fez perder
o apetite.
Arregalei os olhos, pronta para me desculpar com ela por Sebastian. Mas ele puxou minha
cadeira.
— Vamos.
Engoli em seco, me levantando também.
— Eu… — Encarei minha mãe, ela estava furiosa. Papai olhava para Bash em choque, sem
saber se brigava com ele ou o parabenizava por enfrentar sem medo a fera que era Nora Sanchez.
— B-boa noite.
Passei por Bash e segui para as escadas. Antes de eu chegar ao fim do corredor, porém,
escutei a voz grave do meu colega de quarto dizer na sala de jantar:
— Espero que se arrependa amargamente pela forma como a trata, Sra. Sanchez… Porque o
dia em que se der conta do que está fazendo agora e a perder… vai ser tarde demais.
— Ora, seu…
Ele a deixou falando sozinha e apareceu no corredor. Logo me alcançou, entrelaçando a mão
na minha e me levando para o sótão. Subi as escadas enquanto o encarava, surpresa. Sebastian
continuou andando, os olhos furiosos fixos no caminho adiante.
— Não me olhe assim — murmurou, sério. — Só estou seguindo as regras.

9) O namorado de aluguel deve sempre proteger e defender a namorada de mentira,


independentemente da situação.

Eu deveria repreendê-lo por falar daquela forma com minha mãe? Mesmo que a resposta
fosse sim, não consegui ficar brava, apenas grata. E apesar de ainda tremer e sentir o coração
quebrado bater com dificuldade e tristeza, sorri ao apertar a mão que firmemente segurava a
minha.
— Só tem uma cama mesmo. — Ele suspirou cansado, os braços cruzados sobre o peito.
— Eu avisei.
Sebastian e eu encaramos a cama e a pilha de cobertores.
Aquilo era muito pior do que eu tinha imaginado: não era uma cama só de casal, mas um
único colchão de solteiro. A casa não era tão grande se comparada às outras da vizinhança, e os
quartos tinham sido ocupados por parentes. Bash não aceitara a sugestão de papai de dormir na
sala; pensei que implorar para minha mãe ceder outro colchão ou me arranjar alguns travesseiros
seria humilhante demais, então acabei aceitando que passaríamos a noite daquela forma: um na
cama, outro no chão sobre a pilha de cobertores em um colchão improvisado.
Sebastian ganhou no pedra, papel, tesoura, mas insistiu para eu ficar com a cama. Neguei até
ele desistir. Eu sugerira a regra, e quem perdesse ficaria no chão, era o acordo. Se Bash tivesse
perdido, eu alegremente teria feito ele dormir no chão. Então, apenas fui para o banheiro no fim
do corredor a fim de me trocar e escovar os dentes enquanto meu namorado de aluguel ajeitava
nosso “quarto”.
Quando voltei, Sebastian estava sentado à beira da cama com uma calça de moletom e uma
camisa leve de manga comprida, os pés descalços no chão. Ele era calorento aparentemente, não
ficava coberto de roupas quentes como eu. Bash apoiou as mãos no colchão, o corpo grande
inclinado tranquilamente enquanto os olhos castanhos se estreitavam para mim, os lábios se
repuxavam em um sorrisinho.
— O que foi? — perguntei, franzindo a testa ao abraçar a pilha de roupas dobradas que eu
usara mais cedo.
Pensei que Sebastian debocharia da minha camisola, diria algo sobre as meias felpudas
marrons, mas talvez já estivesse acostumado com minhas roupas. Sequer pareceu reparar nelas
quando disse:
— Cumpri com minha parte do acordo… — E girou os ombros, depois o pescoço, com uma
careta de quem sentia dor. — Você precisa cumprir com a sua agora.

7) A namorada de mentira deve fazer massagem no namorado de aluguel antes de dormir.

Ah!
Revirei os olhos, colocando as roupas sobre a mala no canto do cômodo pequeno. O sótão
sempre fora um lugar bagunçado e empoeirado, mas pelo menos papai o limpara para Bash e eu
dormirmos. Todas as caixas foram colocadas no canto oposto da cama, os presentes das crianças
ocupavam o outro espaço. Havia mais coisas minhas ali também: um violão antigo que eu tentara
aprender porque vovô adorava, alguns livros, e me surpreendi por ver uma caixa com meu nome.
Decidi que a abriria depois, ou apenas deixaria ali, pois explorá-la me faria lembrar do
passado de novo. Passei pelo colchão improvisado no chão e me aproximei de Bash na cama,
subindo nela e me ajoelhando atrás dele.
— Prenda esse cabelo — resmunguei, como uma perdedora.
Ele riu, amarrando as mechas negras – irritantemente sedosas e cheirosas – em um coque
frouxo.
— Seja carinhosa, eu mereço — disse, e mesmo sem vê-lo, senti seu sorriso.
— Vou fazer sem reclamar porque merece mesmo — falei ao posicionar as mãos em seus
ombros largos.
Sim, Sebastian e eu tínhamos passado o dia todo juntos; ele segurou minha mão, me
abraçou… Talvez tivesse sido o calor do momento, os sentimentos tumultuados e a tristeza, mas
não consegui me lembrar de me sentir tão nervosa e inquieta com aqueles toques. Pareceram
naturais até.
Só que agora…
Engoli em seco.
— Estou esperando… — ele cantarolou.
— Tá, tá… — Bufei e comecei a apertar os ombros de Bash.
Tentei esquecer que se tratava do meu colega de quarto irritante, afastei as lembranças do que
ele fazia com suas companhias no quarto da frente, de como era atraente e galanteador, e apenas
imaginei que era uma massagista profissional. Bash era somente um dos meus clientes exigentes.
Quando acreditei na fantasia, ficou mais fácil correr os dedos pelo pescoço dele, aplicar pressão
nos ombros firmes e musculosos.
Sebastian gemeu.
— Você é boa nisso — murmurou.
— Você é um cara de sorte… Pelos próximos dois dias.
— Eu deveria te pagar para fazer massagem em mim sempre?
— Isso arruinaria minha reputação… — Sorri. — Sabe, quando a gente voltar, pretendo
continuar implicando com você como uma velha ranzinza de oitenta anos.
A risada dele ecoou pelo cômodo.
— Quem diria… Nós dois em um sótão minúsculo, em uma cama, loucamente apaixonados
um pelo outro.
Gargalhei baixinho, girando os dois polegares na nuca dele.
— Até que o Natal acabe…
— Hm… — Suspirou, parecia relaxar à medida em que meus dedos o tocavam. — Até que o
Natal acabe.
Sebastian estava mais tenso do que achei que estaria. Talvez o jantar o tenha irritado de
verdade, eu nunca vira aquela expressão no rosto dele antes. Aparentava estar furioso de verdade
com minha mãe, como se as palavras e todo o desprezo dela fossem direcionados a ele, e não a
mim, a filha que a envergonhara tão profundamente.
Às vezes, tentava não a culpar. Mesmo precisando dela, insistia em não me ressentir. Não
quando estava mais do que claro para ela e para todos naquela cidade que eu fora a jovem
responsável por, tão desavergonhadamente, tentar levar o marido da irmã mais velha para a
cama. Mas ela deveria ter ficado ao meu lado mesmo assim. Me amado independentemente de
ser um boato verdadeiro ou não.
Bem antes disso, deveria ter me amado e ficado ao meu lado bem antes disso.
Meu namorado de aluguel não havia comentado sobre aquilo. Talvez o rumor não o tivesse
alcançado ainda ou, se tivesse, Bash só não tinha interesse algum em se intrometer e me
questionar se era mesmo verdade. Ele fora tão gentil e cuidadoso comigo naquele dia – mais do
que eu havia esperado dele – que nutri a esperança de Sebastian ainda não ter conhecimento dos
boatos.
— Posso te perguntar uma coisa? — Minha voz saiu rouca, baixa.
Bash resmungou em confirmação, distraído.
— O que significa Tiānshǐ?
Eu sabia que ele estava sorrindo quando disse:
— Calhorda em chinês.
— É sério! — Dei um soco em seu ombro, o fazendo rir.
Ele me chamou daquilo o dia todo. Na verdade, desde que nos conhecemos. Antes, eu
acreditaria ser mesmo algum apelido engraçado ou debochado, mas não hoje, não depois de se
preocupar comigo.
Bash ficou em silêncio por um tempo, como se questionasse se deveria ou não me contar.
Porém, depois de alguns segundos, falou, mais sério:
— Anjo.
Minhas mãos em seus ombros hesitaram.
— Anjo? — Meu coração parou um ou dois compassos, e então ameaçou derreter naquela
noite fria. Mas era Sebastian, o cara com quem eu brigava todos os dias, o homem que dormia
com várias mulheres diferentes e não se importava em ligar no dia seguinte… Forcei um sorriso.
— Então é mesmo uma cantada barata que você usa com fre…
— Rejeitei todas as candidatas interessadas no quarto. — Ele soltou uma risada rouca. — Não
queria dividir o apartamento com uma mulher, com certeza me traria muita dor de cabeça depois.
Mas então era… O quê? Uma segunda-feira? Você apareceu naquela noite, toda ensopada.
Estava caindo um temporal, e eu não consegui simplesmente fechar a porta na sua cara e mentir
dizendo que já tinha conseguido um colega de quarto.
Minhas mãos permaneceram quietas sobre os ombros de Sebastian enquanto eu segurava a
respiração no peito, surpresa por ele ainda se lembrar do dia em que nos conhecemos.
— Quando abri a porta e vi você pela primeira vez, pensei que se parecia um anjo —
continuou. — Os olhos grandes e lindos eram tão inocentes, puros e perdidos… Fiquei meio
abobado com você, com cada detalhe do seu rosto: nariz, sobrancelhas, bochechas, boca… Sua
boca com certeza é minha parte favorita, não vou negar. Ah, seu cabelo era mais curto naquela
época. — Fez uma pausa. — Não sei, só pensei nisso. Pensei que você se parecia um anjo. Não
reparei nas roupas ou em qualquer outra coisa, só no quanto te achei linda. Meu segundo
pensamento foi te chamar para entrar e beber algo, perguntar se estava bem e precisava de ajuda.
Ele riu baixinho antes de prosseguir.
— Mas então você começou a tagarelar sobre ter visto o anúncio e disse que queria conhecer
o apartamento. Eu pensei: “ah, que droga, não vou poder dormir com ela” ou “se eu dormir com
ela, definitivamente não vou poder deixá-la ficar com o outro quarto. Não podemos dividir o
apartamento”. Mas aí, enquanto falava, você limpou os óculos na barra do suéter mais feio que já
tinha visto na vida e os colocou no rosto. A magia foi embora, como se tivesse me tirado de um
transe. Eu teria te dispensado só para ter a chance de ficar com você aquela noite… Bem, até os
óculos aparecerem.
Abri a boca, chocada. Não sabia se batia nele pela canalhice, se o xingava por contar aquelas
coisas ou se corava diante da revelação.
Ele… Sebastian tinha…
Respirei fundo.
Engoli em seco.
Só depois de limpar a garganta e organizar meus pensamentos consegui dizer:
— Consegui a vaga por causa dos óculos?
— Huh… — Riu, meio sonolento. — E detesto eles.
— Você é um canalha mesmo.
— Um baita calhorda. — Assentiu com a cabeça.
— Espurco — resmunguei, fazendo Bash gargalhar alto.
— Essa é nova…
— Não acredito que ficou interessado em mim quando me conheceu — falei indignada,
afastando as mãos do corpo dele. — Essa é a história mais mentirosa e sem vergonha que já me
contou.
— Já contei alguma mentira para você antes?
Abri a boca, pronta para responder, mas percebi que não. Sebastian sempre tivera um
sorrisinho presunçoso nos lábios, era convencido e sarcástico, mas também era irritante pela
sinceridade descarada. Não se importava se magoaria ou não. Ele nunca mentira, realmente. Não
éramos próximos nem tínhamos compartilhado conversas pessoais e sentimentais antes do
acordo, mas… Eu não conseguia imaginá-lo mentindo.
— Tiānshǐ… — Engoli em seco de novo. — É anjo, então?
— U-hum — murmurou.
Ele me chamara de anjo aqueles anos todos?
— Se tivesse flertado comigo naquele dia, eu teria deixado o prédio sem olhar para trás.
— É, eu sei… — Riu.
Sorri, voltando a massagear os ombros dele.
— Obrigada por contar.
— Você viu o Claude em algum lugar? — perguntei baixinho depois de um tempo tentando
dormir.
Estava encolhida no meu casulo de cobertores no chão enquanto encarava o teto. Sebastian
tentou me convencer a ficar com a cama, mas eu era orgulhosa demais para aceitar. Era uma boa
perdedora, então tentei não gemer de frio enquanto sentia o ar gélido beijar minha bochecha e
nariz. Não havia aquecedor no sótão, e eu duvidava que minha mãe fosse me ceder tal luxo
àquela altura. Principalmente com Bash no cômodo.
— Huh… — Sebastian resmungou. Não me virei para encará-lo. Eu podia fazer isso, mas
todos os móveis do lugar não passavam de um borrão escuro. — Quando subimos, depois do
jantar, o vi tentando derrubar a árvore de Natal.
— Se minha mãe o encontrar por aí, pode tentar jogar ele na rua — bocejei.
— Boa sorte para ela.
Soltei uma risada sonolenta, lutando para manter os olhos abertos. Uma parte minha queria
apagar e fazer aqueles dias passarem mais rápido; outra queria que a noite demorasse para evitar
a necessidade de lidar com o mundo outra vez. Seria inevitável, eu teria de encarar Nolan na
Ceia.
Os olhares seriam tão piores… As pessoas me vigiariam para saber se eu faria algo. E com
Jolie grávida agora… Eu escutara no cafeteria, depois de Nolan me deixar sozinha, a garçonete
comentando que talvez eu estivesse com inveja da minha irmã grávida e bem casada.
Reprimi a risada.
Não sentia inveja de Jolie. Sentia raiva e… pena. Depois de todos virarem as costas,
duvidarem de mim, minha irmã simplesmente me olhara como se eu tivesse tentado tirar tudo
aquilo dela, de fato. Me implorou para ficar quieta; o mínimo que eu poderia fazer era parar de
falar sobre o assunto, segundo ela.
Então, eu parei de rebater os boatos.
Pela felicidade de Jolie, decidi me calar.
Quando descobri que ela estava grávida de Nolan, não senti inveja, mas tristeza profunda.
Apenas desejei que ele fosse diferente com ela, que a tratasse bem, que não a fizesse sofrer como
foi comigo.
— Amy? — Bash me chamou.
Virei o rosto para a cama por instinto, mas não consegui visualizar o rosto dele, apenas a
silhueta do corpo grande deitado de lado. Ele estava me observando.
— Hm?
— Você e sua irmã eram próximas… antes de você ir embora?
Franzi a testa, sentindo o coração hesitar por alguns segundos.
— De repente?
— Só… fiquei curioso.
Bash não dera indícios de que ouvira sobre minha história, ele com certeza seria direto com
relação àquilo quando descobrisse. Eu tinha medo de contar, a verdade era essa, e estava adiando
o momento porque tinha medo de sua reação. Antes não parecia tão importante, fora apenas
vergonha mesmo, mas… Se Sebastian virasse as costas para mim, àquela altura… eu não
suportaria.
Suspirei.
— Melhores amigas — sussurrei, e levei as mãos para debaixo do rosto, encolhendo na
esperança de me aquecer mais um pouco. — Antes de tudo acontecer, éramos inseparáveis… Eu
sempre quis ser como ela. Jolie era a popular na escola, recebia tantas cartas de declarações
amorosas, tinha várias amigas… Eu não conseguia me enturmar tanto quanto ela, preferia ficar
em casa lendo ou sair para caminhar com o vovô. Mas no fim do dia, éramos aquele tipo de
irmãs que pintava as unhas uma da outra, fofocava sobre as novelas que assistíamos ou alguém
da escola… Compartilhávamos segredos… — Hesitei. — Quase todos.
— O cara que te deixou…
Engoli em seco.
Talvez, se eu oferecesse pedaços da história, Sebastian não se surpreendesse tanto com a
verdade iminente. Talvez ficasse do meu lado.
— Jolie gostava dele — respondi, rouca. — Mas não sabia que estávamos juntos, ninguém
sabia. Eu sempre contava tudo para ela, mas… nunca sobre ele. Tinha medo de minha irmã
revelar para nossa mãe e ela me proibir de prosseguir com o namoro por ainda ser menor de
idade. Minha família sempre foi muito conservadora, então… — Suspirei. — Se Jolie
soubesse… Não quis correr o risco.
Bash ficou em silêncio por alguns segundos, e eu estreitei os olhos, desejando identificar sua
expressão e o que pensava. Quase me virei para pegar os óculos do outro lado, mas ele
perguntou, cauteloso:
— Sente falta dela?
Aquele fio frágil e dourado que ainda me ligava à família brilhou em meu peito, envolveu
meu coração com nostalgia e tristeza.
Mordi o lábio.
— Quando éramos pequenas, papai fazia biscoitos de gengibre e cookies com chocolate na
manhã de véspera de Natal — contei baixinho enquanto encarava um ponto da janela ligada ao
teto, a neve caindo lá fora. — Jolie e eu corríamos para a cozinha ainda de pijama e enfeitávamos
os bonecos de biscoito. Colocávamos músicas de Natal e dançávamos pela cozinha. Jen também.
Competíamos para ver quem faria o biscoito mais bonito.
Sorri com tristeza.
Aquelas memórias pareciam tão velhas e gastas, como um livro lido inúmeras vezes, sempre
que sentia saudade. Os momentos não voltariam e, quando eu lia essas lembranças, parecia
reviver todas elas. No entanto, quando as fechava e as colocava de volta na estante, me recordava
de que não eram reais. Não mais.
Continuei falando depois de sair dos devaneios:
— Eu... sinto falta desses momentos. Sinto falta de acordar com o cheiro de biscoito, sinto
falta de cantar as mesmas músicas de Natal… Sinto saudade de correr para a sala no dia seguinte
e abrir as caixas de presente… Depois de me mudar, precisei aprender que Natal se resumia a
pedir comida pelo telefone e maratonar filmes natalinos até apagar. Costumo comprar um
presente caro e dar a mim mesma só para me sentir melhor. Ainda deixo biscoitos e leite na
bancada, mesmo sabendo que o Papai Noel não existe e não vai passar lá para comer. —
Funguei. — O engraçado é que ele come mesmo…
— Pensei que eram para mim — Bash resmungou, me fazendo rir.
— Era só divertido… pensar que era mesmo o barrigudinho de barba branca.
— Vai fingir que não fui eu, então?
— Huh… — Sorri, fechei os olhos, mas logo os forcei a abrir. — Vou deixar cookies e leite
para você no Natal do ano que vem.
— Continue sendo uma boa garota e te levarei presentes.
Ri, puxando mais as cobertas. Procurei por calor, sendo sugada pelo sono mesmo assim.
Bash soltou um suspiro cansado.
— É incrível, não é? — murmurou. — Como alguém que te conhece a vida toda pode se
tornar um estranho em questão de segundos.
Ele estava falando de Jolie de novo.
Um nó se formou em minha garganta, mas a cabeça doía pelo excesso de choro daquele dia.
Não queria derramar mais lágrimas. Não na frente de Bash. Não queria parecer mais fraca do que
já era.
Pigarreei.
— E você? — perguntei. — Como era seu Natal feliz antes de ser só mais uma data
comercial?
Não achei que Sebastian compartilharia, mas arrisquei questionar. Algumas mulheres me
indagavam pela manhã porque Bash não falava sobre sua vida pessoal, e eu nunca tinha o que
responder, porque também não sabia.
Esperei pelo silêncio ou pela mudança de assunto, mas a voz grave de Sebastian voltou a
ecoar pelo cômodo.
— Meu pai me levava para patinar. Eu era bom, na época, mas não acho que consiga ficar de
pé no gelo hoje em dia. — Imaginei o sorriso triste em seus lábios e jurei ter escutado melancolia
em sua voz rouca. — Depois, passávamos na loja de doces. Eu adorava aquelas bengalas
listradas que vendem nesta época. De tarde, seguíamos para a casa da minha avó, e eu
encontrava meus primos. Não tínhamos uma família grande como você: éramos apenas meu pai,
nǎinai[9], meus dois primos e eu. Meus tios morreram quando Jason tinha dois anos, e os de
Drew se divorciaram quando ele tinha seis. Costumávamos pegar os presentes um do outro e
esconder para tentarmos encontrar na manhã seguinte. Depois, só ficávamos no quarto jogando
videogame e tomando gemada[10]. Não era algo extravagante, mas era…
— Tradição — sussurrei.
— Huh.
— Acho… que talvez seja só natural essas datas perderem a magia quando deixamos de ser
crianças.
— É, talvez.
— Isso é… tão triste.
— É, sim. — A voz dele ficou cada vez mais baixa, distante.
— Você… não fala mais com seu pai?
— Ele morreu três anos atrás.
Abri os olhos, encarando aquela silhueta solitária na cama outra vez.
— Sinto muito, Bash — consegui dizer. — Eu… não sabia.
— Você não sabe muita coisa sobre mim, Tiānshǐ.
Meus lábios moldaram o protótipo de um sorriso, mas meu coração se apertou com tristeza,
mesmo batendo mais devagar e sonolento.
— No fim das contas… Acho que você só é tão solitário quanto eu, não é?
Sebastian não respondeu.
Aquele era o ponto final para nossa conversa.
Suspirei, fechando os olhos e me obrigando a dormir, mesmo com o frio.
Se fosse Jolie e Nolan, mamãe teria preparado o melhor quarto, os melhores lençóis e
cobertores. Talvez eu sentisse inveja da minha irmã… Ela sempre fora a favorita da nossa mãe,
mas agora era a única filha que Nora Sanchez tinha no coração.
Trinquei os dentes, me imaginando no meu quarto, no apartamento em Boston, em um
colchão macio e confortável, rodeada por prateleiras lotadas de livros e velas aromáticas. Eu
ficava sozinha, mas não era tão solitário quanto o chão de um sótão.
Escutei Sebastian suspirar.
Fechei os olhos com mais força, tentei não demonstrar que o frio fazia meus pés doerem e
todo o corpo retrair e tremer.
Pensei em chocolate quente e uma lareira. Fingiria que estava aquecida até meu cérebro
acreditar e me oferecer alguma ilusão de alívio.
Me mexi e me enrolei em um casulo com os dois cobertores. Tinha dividido os cinco entre o
chão, usei outros para cobrir o corpo, e Bash só aceitara um. Mesmo assim, era tão
desconfortável…
E sempre fui tão frienta.
E estava com tanto frio…
— Eu disse para ficar com a cama, garota teimosa — meu colega de quarto resmungou.
— Não fiz nada — retruquei num muxoxo.
— Está batendo os dentes.
— Não estou, não.
— Está tremendo, Amy.
— Você que está.
Fechei as mãos com força, encolhi os dedos dos pés. Duas meias não foram de muita ajuda, e
aquele não era meu suéter mais quente. Cogitei deixar o casulo para buscar mais um par de meias
e outro agasalho, mas quando puxei um pouco do cobertor, a lufada de ar gélido me fez voltar a
me proteger.
— Venha para a cama. — Bash não pediu.
— Estou ótima aqui.
— Quer que eu vá me deitar no sofá lá embaixo, então? O que sua família vai pensar quando
me ver lá, huh? Que brigamos?
— Pode ir — desafiei.
Ele bufou, impaciente. Logo, escutei Sebastian se mexer na cama e, quando abri os olhos,
meu namorado de aluguel estava de pé. Antes que eu pudesse piscar, ele se agachou diante de
mim.
— O que você… Bash!
Ele afastou meu esconderijo, e senti uma mão passar por debaixo das minhas costas. A outra
facilmente encontrou caminho debaixo dos meus joelhos. Soltei um gritinho quando notei a mão
fria em minha coxa.
— Me solta! — Arregalei os olhos, sendo facilmente tirada do chão e me agarrando ao
moletom dele instintivamente. — Sebastian!
— Shhh… — Bash me ajeitou nos braços. Não consegui ver seu rosto com clareza, mas senti
os olhos castanhos em mim. — Vai acordar a casa toda.
Soltei um riso incrédulo.
— Como se você se importasse! — ralhei baixinho, fechando a mão no moletom sobre o peito
dele. — Me coloca no chão!
Ele obedeceu.
Bem…
Sebastian se agachou, mas não me soltou.
Trinquei os dentes.
— Pegue os cobertores — Bash ordenou.
— O quê? — Tentei me libertar, mas ele me apertou contra o corpo, me segurando mais forte.
— Pegue os cobertores, Amelie.
— Mas…
— Vai ficar no meu colo até obedecer.
Engoli em seco e cedi.
Soltei seu moletom e estiquei o braço para o chão, tateando até sentir pelo menos um dos
cobertores usados para me cobrir. O puxei ao mesmo tempo em que Sebastian ficava de pé de
novo.
Grunhi.
Ele me jogou no colchão e, por fim, tirou o cobertor da minha mão e o esticou sobre mim.
Então…
Deitou na cama comigo.
Abri mais os olhos, colando as costas na parede.
— O que pensa que está fazendo? — exclamei num cochicho.
Pude jurar ver o reflexo dos dentes perfeitos, os lábios se repuxarem em um sorriso.
— Dormir de conchinha agora está incluso no contrato — respondeu, me puxando de novo.
— Não está, não! — Bati no peito dele ao me afastar. Mas Bash era maior e mais forte e me
manteve presa no abraço facilmente, apertando minha bochecha contra seu peito. — Me solta.
— Vá dormir.
— Você é um babaca.
— Ah… Eu disse que você ia aprender a xingar direito. — Riu, e senti minha respiração parar
por um ou dois segundos quando uma das mãos de Bash acariciou meu cabelo. — Agora vá
dormir, Tiānshǐ.
Engoli em seco.
Meu coração retomou as batidas, mais acordado do que nunca.
— Pensei que não gostasse de dormir de conchinha — comentei com a voz abafada, me
lembrando da vez em que saíra do quarto de madrugada para beber água e encontrara Sebastian
dormindo no sofá do nosso apartamento. Quando o questionara, ele resmungara que sua
companhia da noite não parava de abraçá-lo, e ele não gostava daquele tipo de coisa, não
conseguia dormir.
— Vou abrir uma exceção para você hoje — murmurou, a voz cansada. — Amanhã vamos
roubar um colchão, o aquecedor e uma cortina. Não estou suportando esses pisca-piscas do lado
de fora.
Tentei conter o sorriso, mas falhei miseravelmente.
Quis me afastar, sair da cama e voltar para o chão, mas inspirei o cheiro do moletom macio de
Bash, o perfume do amaciante que ele usava nas roupas misturado ao xampu do cabelo solto.
Liberei o ar, tentando relaxar.
Hesitei antes de deixar minha mão se apoiar na cintura dele. Sebastian não disse nada:
continuou respirando normalmente, tranquilo, como se me ter contra seu corpo não fosse nada
demais.
E não era, certo?
Eu não estava sentindo meu estômago revirar de maneira estranha e nova… Era a fome. Isso.
Eu não jantara direito, mal tocara na comida.
— Você só está atuando? — perguntei num sussurro.
— Huh. — Senti a respiração dele na minha pele. — Sou um ótimo ator.
Suspirei, me aconchegando melhor no abraço de Sebastian. Ele ajeitou o braço, deixou que eu
apoiasse a cabeça na curva de seu pescoço. O coração dele não parecia acelerado como o meu,
Bash não estava nervoso como eu estava. Prometi que não ia me apaixonar por Sebastian, então
afastei a sensação, a emoção que me tomou quando senti o corpo grande dele aquecer o meu.
Proteger.
Mordi o lábio.
Eu não estava sozinha naquela noite.
— Obrigada… — falei, rouca. — Por cuidar de mim hoje.
— Hm… — resmungou, sonolento. — Você me pagou para cuidar de você.
Era vergonhoso, sim. Fiz aquilo, paguei para suprir minha carência, mas… não ligava.
Naquela noite, fingiria ser real. Fingiria que Bash me amava e só se importava comigo, que não
me usaria e me trairia, mesmo se fosse tudo um teatro. Fingiria que era real. Sonharia que era
real.
— Obrigada mesmo assim — sussurrei.
Senti aquela mão acariciar meu cabelo outra vez e, mesmo com Sebastian alegando apenas
atuar, porque era realmente bom naquilo, o gesto me pareceu carinhoso demais, protetor demais.
Como se ele realmente se importasse.
Talvez fosse minha ilusão já tomando forma.
Inspirei o cheiro dele de novo, surpresa por realmente adorar o perfume que eu conhecia bem
há anos, mas parecia tão diferente agora. Era arriscado dizer, e talvez Bash notasse a tolice, mas
como uma adolescente boba e decepcionada, falei mesmo assim:
— Você não me beijou hoje.
Pensei ter sentido o peito de Bash parar de se mover por um instante, a mão que acariciava a
cabeça hesitar. Porém, foi rápido demais para eu ter certeza.
— Verdade. Aquele beijo na testa não foi válido — falou, e senti o sorriso em sua voz quando
acrescentou: — Parece que tenho um na conta.
A Amy de horas atrás o cutucaria e diria que ele perdera a chance; jogaria aquele beijo no
lixo. Só dois restantes agora, para os dois dias em que ficaríamos naquela casa.
Mas não fiz isso.
Apenas fechei os olhos e murmurei:
— Huh… Parece que sim.
Amy, apesar de estar esparramada na cama como alguém que fora jogada ali, realmente tinha
a expressão tranquila de um anjo adormecido. O cabelo espalhado pelo lençol, ondas castanhas
por todos os lados; um dos cobertores estava enrolado na perna esquerda, enquanto a outra,
descoberta, revelava a coxa exposta; os pés se viam livres das meias, que ela acabara perdendo
durante a noite. Mesmo com a serenidade estampada em seu rosto, minha colega de quarto não
me deixou dormir à noite: não só me roubou os cobertores, como me chutou a noite inteira.
Sorri, me inclinando um pouco para afastar a mecha que atravessava o rosto delicado.
Amy suspirou, e minha mente pecaminosa deu lugar à fantasia do dia anterior outra vez. Só
que agora ela estava em uma cama, completamente descabelada e… linda. Mesmo com o suéter
e a camisola de estampa confusa. Corri a ponta do polegar pela bochecha macia, o queixo
arredondado e delicado, a curva para… os lábios entreabertos e macios.
Engoli em seco.
Se eu ousasse, a acordaria com aquele beijo que não usara ontem. Ah… Amy ficaria furiosa e
me odiaria, e era realmente tentador provocá-la daquele jeito… Mas eu não era aquele tipo de
canalha.
Pigarreei, ficando de pé. Antes de me perder naqueles pensamentos com Amy adormecida na
cama comigo de novo, puxei de forma abrupta o travesseiro em que a cabeça dela se apoiava. Ela
acordou assustada, desnorteada, procurando o perigo. Por fim, me localizou e estreitou os olhos.
Quando me identificou, fechou a cara.
— Qual é o seu problema?!
— Me jogou no chão — respondi tranquilamente, apoiando a tigela que segurava contra o
corpo aquele tempo todo. — Então não tem o direito de ficar babando no travesseiro até tarde.
Ela grunhiu.
Me ignorando completamente, Amy se jogou no colchão outra vez e se esticou na cama.
Alongou os braços, gemeu e bocejou enquanto se espreguiçava. E eu esperei pacientemente. Sem
os óculos, tudo que Amy enxergava eram borrões de cores, eu sabia. Então, aguardei o cheiro a
atrair e ela enfim notar o que eu tinha comigo.
Não demorou, no entanto.
Amy parou com os braços no ar, farejou e abriu os olhos, se sentando de repente para me
encarar, localizar o pote verde nas minhas mãos.
— O que…
Sorri e me agachei diante dela, pegando um dos bonecos assados e balançando no ar.
— Disse que queria acordar com cheiro de biscoitos… Fiz alguns para você. — Metade
deixara queimar, mas ela não precisava saber. — Bem, Jen me ajudou com eles.
Amy ergueu os olhos dos biscoitos para mim, surpresa. Havia incredulidade em suas feições,
mas o cheiro não deixava dúvidas: eu tinha acabado de tirá-los do forno e subira com eles.
Pela forma como me observou, pensei que Amy me puxaria para um abraço. Mas ao invés
disso, ela contornou os braços no próprio corpo, como se os contivesse.
— Você… — começou, rouca. — Fez biscoitos de gengibre para mim?
— Sua historinha de Natal me deixou comovido — falei, depositando o homenzinho na tigela
outra vez. — E como fui chutado para o chão às cinco da manhã, não consegui dormir… —
Cochichei, com graça: — Você realmente não quis dividir a cama comigo.
Um delicioso tom de vermelho pintou as bochechas dela.
— Desculpa — falou, envergonhada.
— Vá trocar de roupa. Você disse que queria passar mais tempo com a Molly… — Me
levantei. — Ela está lá embaixo te esperando para enfeitar os biscoitos.
— Pode pegar meus óculos? — Os olhos de Amy lacrimejaram, e ela fez um beicinho fofo
antes de fungar e completar com a voz chorosa: — Não consigo ver se você está mentindo.
Ri, procurando a coisa horrorosa onde me lembrava de ter visto Amy colocar da última vez.
Depois de me agachar e encontrá-los no canto próximo ao colchão improvisado de cobertas,
voltei e os entreguei para ela.
— Nunca minto para você, Tiānshǐ — falei com um sorriso.
Ela colocou os óculos e me observou com olhos estreitos, ondas soltas de cabelo castanho-
claro desgrenhados em todas as direções.
— Não está mentindo… — resmungou. — Mas isso não estava no contrato.
— Huh… — Desviei os olhos para os biscoitos. — Não. Mas encontrei Molly brincando com
Claude na sala quando resolvi descer. Ela pensou que já era manhã de Natal e pareceu
decepcionada por não encontrar as caixas de presentes na árvore. — Dei de ombros. — A única
coisa que me veio à cabeça na hora foram os bonecos de gengibre.
Amy me analisou em silêncio por alguns segundos, então assentiu, desconfiada.
— Fez biscoitos por que Molly estava triste?
Meneei a cabeça.
— Só por isso? — insistiu.
— Crianças chorando me deixam desconfortável.
Ela sorriu, ainda sonolenta.
— E mulheres…
— E mulheres — assenti.
Amy soltou uma risada, voltando a encarar os biscoitos como se não acreditasse em mim, na
história sobre Molly. Não era mentira, eu a encontrara na sala, mas não estava chorando, e sim
infernizando o pobre Claude com as mãozinhas gordinhas e os cafunés. Meu gato pareceu pedir
socorro quando me viu. No entanto, por vingança, deixei Molly o atormentar com sua fofura.
Fiquei observando os dois, escutando os choramingos da criança sobre ter acordado cedo
porque pensou ter visto o Papai Noel correr pela neve naquela madrugada. Falei que o velhote só
tinha passado para confirmar o tamanho da chaminé, pois os presentes poderiam não entrar por
lá.
Ela acreditou, mas continuou triste.
Então, perguntei à Molly se ela gostava de biscoitos de gengibre. A garota se animou tanto
que libertou Claude e correu pelas escadas para acordar a mãe, alegando que ela fazia os
melhores biscoitos “de boneco” do mundo.
— Vou esperar você lá embaixo — falei para Amy, por fim. — Não demore… A bruxa da
sua mãe foi à cidade. Ela pode voltar a qualquer hora e estragar a festa.
— Não fale assim dela… — Amy tentou me repreender, porém seus lábios tremeram.
— Me desculpe — debochei. — Minha adorável futura sogra pode voltar e desejar tomar um
chá comigo.
Ela riu, abanando a mão para a porta.
— Vai, vai.
Segui para o corredor, mas antes de deixar o sótão, virei para Amy e lhe lancei uma piscadela.
— Não demore, querida.
Ela revirou os olhos, mas sorriu.
Tentei não deixar que Sebastian reparasse em como seu gesto havia me afetado. Pela primeira
vez em anos, alguém fazia algo assim por mim. Apesar de Bash insistir que fora por Molly, eu
sabia a verdade. Caso contrário, ele não teria se dado ao trabalho de subir apenas para me acordar
com o cheiro dos biscoitos.
Como quando eu era criança.
Havia um cara sensível e carinhoso por baixo daquela casca arrogante.
Sorri, o observando ajudar Molly a enfeitar um biscoito em formato de coração enquanto Jen
tirava mais uma receita deles do forno. Bash havia prendido as mechas pretas em um coque,
revelando aquela área raspada do cabelo; as mangas da camisa comprida branca foram dobradas
na altura dos cotovelos, e ele usava um dos aventais que papai tinha de reserva na despensa.
Seria a cena perfeita se não fosse mentira: meu namorado interagindo com Molly, provando
que aquele homem de um e noventa, tatuagens e corpo esculpido em beleza e sarcasmo também
sabia ser um fofo com crianças. Eu teria me apaixonado por ele naquele momento se não me
lembrasse sempre que era tudo uma atuação; quando o Natal acabasse, Sebastian continuaria
levando mulheres do Green’s para nosso apartamento.
Suspirei, voltando a encarar meu boneco de gengibre, percebendo que fizera um sorriso de
coringa nele ao me distrair com a risada de Molly para Sebastian alguns minutos atrás.
— Tio Bash? — ela chamou, mesmo que meu colega de quarto estivesse ao lado dela,
apoiando os antebraços no balcão da cozinha.
— Huh?
— Quando for embora, posso ficar com o gato?
Pressionei os lábios para segurar o sorriso. Sebastian franziu a testa para mim com diversão.
Molly acompanhou o gesto e me encarou também.
— Posso, tia Amy?
— Hm… Se você levar ele, vou ficar sozinha. — Fiz um beicinho.
Ela ergueu as sobrancelhas, contrariada.
— Não vai, não. Você tem namorado.
Abri a boca para responder, mas não consegui dizer nada.
Não, eu não tinha.
— Você sabe que não podemos ter um gato, filha — Jen resmungou do outro lado da cozinha.
— Mas eu quero… — Molly choramingou.
— Seu pai tem alergia. — Minha prima voltou para a bancada, recolhendo os utensílios sujos
que não usaríamos mais para levar até a pia. — Ele espirrou a tarde toda ontem.
Fiz uma careta, com culpa. Eu deveria ter levado Claude para a cidade ontem? Mas aquele
gato deixou claro ter odiado a caixa de transporte. Poderíamos ter deixado ele com a Sra. Hoang
durante nossa viagem, mas pedi a Bash que o levássemos, simplesmente para irritar minha mãe,
por rebeldia.
Não sabia que Phill era alérgico.
Molly bufou.
— Vamos nos livrar do papai então, pra eu ficar com o gatinho.
Jen gargalhou, e eu sorri para Bash, divertida. Ele devolveu o gesto.
— Seu pai vai ficar muito feliz em saber disso quando te entregar seu presente de Natal
amanhã.
— Não foi ele quem comprou, foi o Papai Noel.
— Papai Noel não paga as contas, sua garota atrevida.
— Eu quero o gatinho — Molly falou, tristonha.
— Não posso deixar ele com você, princesa — Sebastian interveio, desenhando um símbolo
em chinês no biscoito com o glacê real no saco de confeitar. — Sou muito apegado àquela bola
de pelos, mesmo que não seja recíproco.
— O que é recipocro?
Bash sorriu.
— Hm… Quando uma pessoa gosta de você, mas você não sente o mesmo… Algo assim.
Engoli em seco, voltando a atenção para o biscoito, fingindo estar interessada demais em
enfeitá-lo.
Quando cheguei à cozinha mais cedo, Sebastian estava rindo de algo que Jen contava sobre
nossa infância. Por um segundo, pensei ter visto os olhos dele brilharem com real interesse em
saber mais sobre mim, perguntando à minha prima sobre a Amy criança. Era como se Sebastian
se importasse. E quando seus olhos me encontraram, senti o coração parar por um instante.
Quando sorriu para mim, aquele órgão iludido pulsou mais rápido em meu peito. Então, pisquei e
me obriguei a pensar na última regra.
Um bom ator, sim. Bash era muito convincente.
Gostava de pensar que era mais forte do que o charme dele, não cederia tão facilmente só
porque Sebastian havia me tirado do chão no meio da noite e me abraçado, fazendo cafuné na
minha cabeça até eu dormir e me acordando com biscoitos, pois minha Amy criança sentia falta.
Eu não me apaixonaria por isso.
Aquele sentimento de não querer se apaixonar era recíproco.
— Ah… Acho que sei o que é isso — Molly resmungou, desenhando botõezinhos no seu
boneco. Talvez fosse um astronauta, ou um motoqueiro, já que parecia ter um capacete. — Um
menino da minha escolinha me fez uma cartinha, mas não gosto dele.
Sebastian tentou ficar sério.
— Você deve ter partido o coração dele.
— O que eu podia fazer? — Deu de ombros.

Ri.
— Você está certa. Não pode se forçar a gostar de ninguém — comentei, e ergui meu boneco
para os dois. — O que acham?
A pequena fez uma careta engraçada.
— Pensei que seu senso artístico era melhor — Bash disse com um sorrisinho.
— Está muito feio mesmo, tia Amy. — Molly mexeu a cabeça, desapontada.
— Não ficou tão ruim assim… — Virei o biscoito para mim a fim de observá-lo com mais
atenção. Os olhos pareciam tristes, e não foi uma boa ideia tentar consertar a boca, mas ele não
estava tão feio assim… Só diferente. — Ele é um palhaço.
— Um palhaço assustador — a garotinha resmungou, finalizando o seu. Então, dois segundos
depois, parou satisfeita. Ergueu o dela, toda orgulhosa. — O meu é um astronauta que acabou de
descobrir o planeta Bala de Canela.
— Nossa… — Bash fez uma expressão de surpresa e admiração, conquistando um sorriso
maior e banguela dela. — Bem melhor que o da Amy.
— Ei!
— Não fica triste. — Molly tomou o palhaço de mim e depositou um biscoito sem glacê na
minha mão. — Faz outro, você tava distraída com o tio Bash antes.
Arregalei os olhos.
— Eu não… — gaguejei ao desviar a atenção para Sebastian, que ergueu as sobrancelhas,
questionador, mas com um sorrisinho esnobe despontando dos lábios.
— Está tudo bem — continuou Molly. — Mamãe disse que pessoas apaixonadas ficam bobas.
Minha prima soltou uma risada.
— Não estou apaixonada! — grunhi, sentindo as bochechas esquentarem.
Notei o olhar curioso de Jen, que franziu a testa. Bash cruzou os braços sobre o peito.
— Não? — Tombou levemente a cabeça, a diversão cintilando nos olhos bonitos.
Revirei os olhos, mesmo que meu coração vacilasse. Eu não estava apaixonada!
— É claro que estou, querido. — Forcei um sorriso quando ergui a mão e desenhei um risco
de glacê rosa na bochecha dele. — Sou loucamente apaixonada por você.
Molly riu e, achando a ideia de pintar um rosto de verdade mais atraente do que os biscoitos
na mesa, ergueu o saco de confeiteiro dela para desenhar em Sebastian também, tentando se
equilibrar na banqueta. Ela começou a ajoelhar para alcançá-lo, espalhando e derramando alguns
doces e enfeites da bancada para o chão.
Jen a repreendeu, se apressando em limpar a bancada.
Vendo a possibilidade que Molly corria de cair, Bash a pegou no colo.
— Desenhe na Amy em vez disso — falou, provocando a menina de cinco anos. Ela mudou
os olhinhos de alvo imediatamente. A garotinha imitou o sorriso travesso do meu namorado de
aluguel.
Arregalei os olhos e recuei um passo.
— Nem pense nisso — alertei. — Jen, olha a cara da sua filha! Faça algo.
Jennifer soltou uma risada e apoiou os cotovelos na superfície para observar do outro lado da
cozinha. Ela soprou um cacho escuro do cabelo.
— Isso vai ser interessante — foi o que disse.
Os lábios de Sebastian se esticaram mais, as íris castanhas brilharam com o desafio.
— Pegue ela — cochichou para a menina em seu colo, no mesmo segundo em que avançou
em minha direção.
Soltei um gritinho, fazendo Molly gargalhar alto enquanto os dois corriam atrás de mim pela
cozinha espaçosa.
Minha prima sorriu ao abrir espaço para Sebastian.
— Pare com isso, ela pode cair! — exclamei como desculpa, ciente de que Molly não devia
pesar um pacote de arroz para meu colega de quarto. No entanto, não consegui evitar sorrir ao
som infantil e alegre que ecoou pela casa. — Bash!
Sebastian riu do outro lado da bancada. Parou um segundo para recobrar o ar e reconsiderar as
opções. Fingi que correria para a direita, mas ele não acreditou e conseguiu facilmente me
alcançar pela esquerda, mantendo a garotinha no colo com firmeza. Ela mal conseguia abrir os
olhos de tanto gargalhar.
Recuei um passo, e outro, parando quando senti um corpo atrás de mim. Jen segurou meus
braços.
— Não! — Ri ao tentar me livrar dela.
Os lábios de Bash se esticaram de forma mais afiada.
— É agora, Molly! — falou, convencido.
Arfei.
— Se gastarem o glacê em mim, não vai sobrar para os biscoitos!
— Eu compro mais — Jen interveio, me segurando mais forte.
— Jennifer! — supliquei de novo, mas não houve misericórdia. Fechei os olhos, trincando os
dentes quando Molly soltou uma risadinha e começou a desenhar com o glacê frio em meu rosto.
Não consegui segurar o riso.
— Bigodes — Bash disse baixinho para a garotinha, e ela obedeceu. — Isso, isso. Embaixo,
no queixo também.
Ela desenhou. Ao mesmo tempo, soltou uma gargalhada alta e gostosa, e só se afastou depois
de gastar pelo menos metade do glacê em mim. Na sequência, exclamou animada:
— Agora você!
Sebastian tentou se libertar da garota, mas ela se agarrou em seu pescoço e conseguiu sujar a
bochecha dele. Bash a colocou no chão, com um sorriso largo e sincero no rosto. E foi a cena
mais linda e doce que eu já vira.
Senti o coração derreter como neve no sol.
— Chega — ele falou enquanto limpava o rosto, mas não completamente. — É melhor você ir
se lavar, está toda suja.
— Com medo de uma garota de cinco anos, Sebastian? — Jen questionou, divertida, depois
de me soltar. Ela se aproximou da filha para passar a mão no rostinho alegre e manchado de
açúcar e glacê de várias cores.
— Ela se voltou contra mim muito rápido — ele justificou, parando ao meu lado e passando o
braço forte por meus ombros.
Observei aquele rosto. Não fui capaz de desviar o olhar, talvez muito encantada e boba pelo
homem sorridente e brincalhão diante de mim. Mais sincero e alegre do que jamais se permitiu
mostrar.
Aquilo também era uma atuação?
Escutamos uma buzina do lado de fora da casa, mas não me importei. Controlei minha mão
contra o corpo, querendo desesperadamente tocar Sebastian, afastar aquela mecha que caía em
seus olhos.
— Hm? — Jen virou o rosto para a porta cuja saída era o corredor que levava para a sala. —
Eles devem ter voltado — disse para a filha, que tentava tirar uma mancha verde do vestidinho
rosa-claro. — Vamos trocar esse vestido, ou sua avó vai ficar furiosa quando chegar.
Se virou para nós dois e completou:
— Vocês limpam aqui?
— Fique tranquila. — Bash sorriu, apontando para o corredor. — Pode ir. Obrigado por me
ajudar com os biscoitos.
— Ah… — Jen me lançou um sorrisinho conspiratório, não consegui reparar muito no que ele
quis dizer. — Foi pelos velhos tempos.
Então saiu, me deixando sozinha com Sebastian.
Quando ele fez menção de se afastar, aquela mão teimosa se esticou por conta própria e
limpou o glacê que restava na bochecha dele e, antes de eu ficar ciente do que estava fazendo,
levei a ponta do indicador aos lábios.
Bash acompanhou o gesto.
Saboreei o doce do açúcar derretendo na minha língua, mas ele também. Talvez fosse a
adrenalina de correr pela cozinha, a emoção de passar a manhã com minha prima e sua filha, de
gargalhar pela primeira vez em anos…
Sorri para meu namorado de mentira.
— Você está docinho.
O brilho descontraído retornou ao rosto dele. Bash estreitou os olhos, me estudando
cuidadosamente, o trabalho que Molly fizera com o glacê. Percorreu cada detalhe como se eu
fosse realmente uma obra de arte.
Ele manteve aquele braço ao meu redor, apertando levemente meu ombro, me trazendo para
perto. Sebastian ergueu a mão livre e tirou meus óculos manchados. Não liguei, não pensei no
que ele estava fazendo. Apenas deixei, esperei.
Sebastian se inclinou sobre mim, como se o tempo tivesse parado e não tivéssemos nada para
fazer além daquilo. Fechei os olhos, o coração batendo ensandecido e ansioso. Senti o toque dos
lábios e da língua dele em minha bochecha, limpando devagar, me provando devagar.
— Hm… — resmungou ao virar meu rosto para fazer o mesmo do outro lado, descendo
vagarosamente para o queixo. Senti o sorriso dele quando continuou: — Você também está
deliciosa.
Suspirei, apoiando a mão em seu braço. A de Sebastian deslizou para minha nuca e me puxou
para perto.
Abri os olhos, percebi os dele me observando, mas não fui capaz de ler o que se passava
neles, o que Bash pensava naquele momento.
— Eu deveria cobrar o beijo de ontem? — perguntou rouco, baixo, roçando o nariz no meu.
— É uma boa hora, acho — sussurrei.
— Huh… concordo.
E sem esperar nem mais um segundo sequer, Sebastian Wang colou seus lábios nos meus e
me beijou.
Quando me apaixonei por Nolan, pensei que a boca dele fora feita para se encaixar na minha,
porque eu não tinha outras para comparar, porque cegamente acreditei ser ele meu mocinho
tirado de um livro de romance. Não beijei ninguém além de Nolan até aquele momento, não me
permiti desejar aquelas coisas depois de me mudar para Boston.
As roupas não eram apenas uma escolha ruim para me martirizar de decisões do passado, mas
um aviso de “não sou interessante” e “não se aproxime”. Me obrigara por anos a me concentrar
no mundo irreal, na fantasia e na magia que as palavras me proporcionavam. Sufocava aquele
sentimento de querer ser beijada e desejada no coração e o convencia de que não merecia aquilo,
transportando-os para o papel.
Mas quando Sebastian me beijou… Não consegui recuar.
E eu deveria, mesmo que beijos estivessem inclusos naquele acordo ridículo, apesar de eu
saber que aquilo iria acontecer e ter esperado por isso no dia anterior… Eu deveria me afastar.
Ele não tinha motivos para me beijar ali. Não quando não havia ninguém para mostrar aquilo.
Mas eu queria. Queria ser beijada e amada e cuidada. Queria que Bash me pressionasse contra
qualquer parede daquela cozinha e me tomasse em um beijo avassalador de tirar o fôlego.
Aquele beijo não durou nem dez segundos completos, mas senti todo o corpo reagir. E foi
como se eu vivesse um romance de novo, foi como se ele me quisesse e me desejasse, mas…
Alguém pigarreou.
Me afastei desnorteada, não identificando o primeiro borrão do outro lado da cozinha à porta.
Sebastian continuou onde estava, a mão que sustentava meu pescoço deslizou sem preocupação
para meu ombro, como se não tivessem interrompido nosso momento, como se não estivéssemos
fazendo algo errado.
Como se não se surpreendesse com a pessoa nos observando.
A emoção do beijo desapareceu e, mesmo sem os óculos, ficou fácil identificar o homem alto
ao lado da mulher grávida. Meu coração parou.
— Ah… São vocês — Bash disse sem humor, estendendo os óculos vermelhos para mim.
Os segurei com as mãos trêmulas. Desviei os olhos para o avental de Sebastian, minha cabeça
girou e, como se soubesse que eu precisava de um apoio para continuar de pé, ele manteve uma
mão nas minhas costas.
— Parece que interrompemos vocês. — A voz de Jolie soou desconfiada. — Mamãe não está
em casa?
— Ela saiu com sua tia para algum lugar, não me importei em saber — Bash disse com aquele
humor ácido e sarcástico de volta à voz. — Seu pai disse que poderíamos usar a cozinha.
Eu queria sumir. Embora não enxergasse bem sem os óculos, sabia que a atenção de Nolan
estava em mim o tempo todo. Não conseguia ver seu rosto, saber o que sua expressão dizia. A de
Jolie provavelmente desprezava o comportamento da caçula. Talvez confirmasse o que os boatos
diziam: a filha mais nova dos Sanchez era mesmo uma assanhada sem-vergonha.
Mas não era por isso que eu queria desaparecer.
— Parece que sua irmã está se divertindo — meu cunhado falou, o tom indecifrável. Ele
segurava uma travessa com um peru para assar. Nossos olhares pareceram se encontrar, e eu
sabia que ele sorria quando cumprimentou: — Oi, Amy.
Inspirei com dificuldade, como se uma mão subisse por meu pescoço e o apertasse com força.
Apenas trinquei os dentes, sentindo as pernas amolecerem enquanto ajeitava os óculos na ponte
do nariz. Eles estavam sujos de glacê, assim como eu também sentia o açúcar grudar em minha
pele. Mas não me importei também.
Jolie pareceu observar os bonecos de gengibre na bancada, a nova fornada que Jen fizera
sobre a pia para serem enfeitados. Por um segundo, jurei ter visto uma emoção diferente cintilar
no rosto dela, mas não tinha como saber. Talvez minha irmã detestasse se lembrar dos momentos
em que éramos amigas.
— Nolan insistiu para virmos mais cedo — ela disse para ninguém especial. — Vamos ajudar
nos preparativos para a ceia desta noite e…
— Melhorou do enjoo? — Sebastian perguntou, a interrompendo. Pareceu estreitar os olhos
de forma desconfiada. — Você não estava muito bem ontem.
Jolie não respondeu.
— Ela tomou remédio — Nolan explicou por Jolie, com um sorriso gentil e educado.
Sustentava a travessa com uma mão e, com a outra, contornava a cintura da esposa. — Está bem
melhor. Vocês dois parecem levar jeito na cozinha, porque não nos ajudam com a sobremesa?
Abri a boca para responder, inventar uma desculpa esfarrapada, mas foi Jolie quem disse:
— Amy é péssima na cozinha — falou com um tom brincalhão. — Se ficar, só irá atrapalhar.
Senti as mãos tremerem, meu coração se partir de forma patética.
Mas não… Não consegui me importar com nada daquilo.
Meu coração estava decepcionado por entender que Sebastian talvez já soubesse da
aproximação deles, que nos veriam. O beijo fora uma performance, então.
Bash soltou um riso seco, e sabia que estava pronto para dar uma resposta ácida à Jolie
quando falei:
— Eu já estava de saída. — Clareei a garganta, encarando minha irmã. Ela parecia doente
mesmo, estranha. Distante. Forcei um sorriso de quem não havia sido desprezada de novo. —
Eu… prometi ao abuelo que iria até o depósito agora de manhã.
Era mentira, mas seria uma boa desculpa. Uma ótima distração.
Não voltara àquela cidade para rir enquanto fazia biscoitos, não voltara com a esperança de
ser abraçada pela minha família. Voltara para ficar com meu avô, e faria isso.
Bash franziu a testa para mim.
— Não terminamos com os biscoitos.
— Ah… — Virei o rosto para a forma sobre a pia, os biscoitos assados que esfriavam. —
Você termina para mim? Não quero deixar meu vovô esperando.
Ele me observou, detectando a mentira, aquela mão ainda em minhas costas.
Apenas senti-lo me tocar…
Era demais para mim.
Por favor. Eu quis dizer. Sei que prometemos não deixar o outro sozinho, mas por favor…
— Tudo bem. — Como se lesse aquilo em meus olhos, Bash sorriu um pouco, erguendo a
mão para limpar minha bochecha. — Tem certeza de que não quer me ajudar aqui? Posso ir com
vocês…
— Não! — Me afastei do seu toque, o pegando de surpresa com meu tom. Talvez ele
identificasse a verdade: ficar perto dele por mais um segundo seria humilhante demais. Mas não
consegui evitar. — Não precisa.
E antes que qualquer um na cozinha pudesse dizer outra coisa, me apressei em tirar o avental
e sair.
— Não acredito que me acordou para vir aqui. — Meu avô bufou, reclamando de novo. — O
que raios vai fazer com essas coisas?
Depois de me trancar no banheiro por cinco minutos e lavar o rosto, recobrei os sentidos e
acalmei o coração bobo. Não precisei repetir mais do que três vezes para a Amelie do espelho
que Sebastian só havia cumprido com sua obrigação, eu era uma mulher adulta e podia muito
bem levar um beijo simples só para o lado físico da coisa.
O quê? Eu podia atuar também. Era só fingir.
Não queria ficar naquela casa, não com Nolan ali. Então, precisei sair. Mas também não
queria ir à cidade sozinha e, como precisava ficar longe de Sebastian, levá-lo comigo não era
uma opção. Acordei vovô, então, pedindo que me acompanhasse até a cidade para sair um pouco
de casa. Ele negou, claro, com os olhos fechados. Disse que era véspera de Natal e ele podia
dormir o quanto quisesse. O depósito fora uma desculpa para tirá-lo da cama, já que adorava
inventar e construir. E depois de alegar precisar muito de sua ajuda com uma coisa para a qual só
ele saberia me aconselhar na compra, meu avô bufou, praguejando enquanto se obrigava a
levantar da cama.
Ocupei todo o tempo do caminho da casa dos meus pais até o grande estabelecimento no
centro da cidade repassando a manhã na cozinha, repetindo como um disco estragado as palavras
de Bash: não importava o que ele dissesse ou fizesse, seria tudo fingimento.
Apesar de o toque dos lábios dele ter parecido tão carinhoso.
Doce.
Apenas culpei o glacê.
E não me vi mais no direito de ficar chateada com Bash por uma coisa que o paguei para
fazer.
— Sabe que não vou poder ficar aqui — falei, estudando um casaco de inverno azul. — O
senhor deveria ficar feliz por passar mais tempo comigo.
Ele resmungou ao andar pelo corredor da enorme loja.
A voz de Frank Sinatra começou a tocar nas caixas de som, e Jingle Bells ecoou entre as
prateleiras.
— Só queria aproveitar o pouco de sossego que ainda tenho hoje — disse, andando devagar,
sua voz baixa e rouca. — Logo aquele bando de gente vai chegar e não vão me deixar em paz.
— Mas é Natal… É claro que a casa vai estar cheia.
— Falam demais, bebem demais, se preocupam demais.
Sorri.
— Se o senhor se cansar das pessoas, pode ir comer torta de abóbora comigo no sótão.
Meu avô parou de andar e me encarou.
— Você não se deu ao trabalho de voltar aqui depois de cinco anos para passar a ceia de Natal
no sótão, Amelie.
Engoli em seco.
— Não sei se vou dar conta de tanta gente me encarando num lugar só, vô — falei. No último
Natal ali, eu sequer conseguira ficar na sala. E fora horrível, os poucos vizinhos que apareceram
à convite de mamãe… me olharam como se eu tivesse cometido um crime contra cada um deles.
— Não sou tão forte.
— Mande-os se converter e cuidar da própria vida. — Vovô bufou, balançando a cabeça com
indignação. — Se ainda houver pessoas falando sobre o assunto, então as ignore. Elas não sabem
de nada.
Engoli em seco, o acompanhando pelo corredor. Por um instante, o beijo com Sebastian não
pareceu mais importante.
— O senhor nunca me disse o que pensa sobre… o que aconteceu.
Meu avô não respondeu. Fingiu estar interessado em um par de luvas impermeáveis, uma das
mãos atrás do corpo, o olhar perdido na peça.
— Quando resolver contar a verdade sobre isso, então eu vou ouvir. Até lá, não vou especular
nada. — Ficou em silêncio por alguns segundos. — Mas nunca gostei daquele rapaz, e sua irmã
tem agido de forma estranha com ele bem antes de descobrir sobre a gravidez.
Lancei um olhar pelo corredor, conferindo se havia alguém escutando.
— Estranha como?
Abuelo suspirou, jogando dois pares de luvas – de tamanhos diferentes – dentro do pequeno
cesto de plástico que eu carregava.
— Você devia conversar com ela. — Foi sua resposta. — As coisas ficam mais fáceis quando
as pessoas simplesmente contam a verdade sobre seus sentimentos. Brigam como crianças
porque não conversam.
Soltei um riso fraco, cansado. Às vezes, ainda parecia apenas um pesadelo, e eu ficava com
aquela esperança de acordar. Mesmo que um dia Jolie acreditasse em mim, as coisas jamais
voltariam a ser como antes.
— Por que não veio aqui com seu namorado? — Os olhos escuros do meu avô me
observaram.
Desviei a atenção para o setor de cachecóis. Passei a mão por um de lã vermelha, sentindo
uma vontade instantânea de levar. A cor era a minha favorita, mas eu sentia culpa toda vez que a
usava.
— Ele… — Me beijou, vô. Por isso estou fugindo dele. — Ficou terminando os biscoitos de
gengibre.
— Você adorava enfeitar aqueles biscoitos, por que não ficou com ele?
— Porque… — Pigarreei. — Precisava vir aqui.
— Contou a ele sobre o que aconteceu com você?
Não. E não sabia quando teria coragem de contar.
— Pelo jeito não. — Vovô suspirou. — É melhor contar a verdade antes que o boato chegue
primeiro, por outra pessoa.
— Huh — assenti. — Vou falar para ele hoje.
— Hm… Vocês brigaram, então?
Inspirei, soltei o tão desejado cachecol e encarei o corredor à frente, a prateleira lotada ao fim
dele.
— O senhor está bem falante hoje, não está?
Ele continuou com aquela expressão neutra, o olhar vagando pelos agasalhos e acessórios.
— A quimioterapia me fez virar um velho curioso. — Me lançou um olhar sobre o ombro. —
Você não deixou de aproveitar a manhã com seu namorado só porque precisava comprar luvas.
Por que veio aqui?
Voltei os pensamentos ao meu namorado de aluguel. A ideia tinha surgido no momento em
que Bash me contou, mas tive certeza de que faríamos aquilo quando vi os biscoitos de gengibre.
Sorri.
— Quero patinar no gelo.
Ficar sozinho naquela casa com aquelas pessoas não era uma ideia que me agradava. Mas
depois de beijar Amy – mesmo ciente de alguém aparecendo para interromper –, fiquei feliz por
ter uma desculpa para me afastar dela.
Caso contrário, eu a teria colocado naquela bancada e feito coisas nada decentes.
Mas a forma como ela me olhou antes de sair…
Tentei me convencer de que Amelie só deixara a cozinha daquele jeito porque queria evitar a
irmã, porque precisava passar mais tempo com o avô, e não porque queria fugir de mim. Mas os
olhos dela, a maneira como se esquivou do meu toque…
Engoli em seco.
Amy era esperta, sabia que o beijo e aquele tipo de contato aconteceria, conversamos sobre
aquilo. E quando Jen avisou sobre alguém ter chegado, pensei ser o momento perfeito. Afinal,
éramos um jovem casal apaixonado cozinhando juntos. E ela queria convencer a família.
E eu… queria me convencer de que aquela fora minha única justificativa para beijá-la.
Suspirei.
Seria melhor assim. Apenas um tempo longe um do outro para recobrarmos os sentidos, Amy
se lembraria de que estávamos interpretando um papel.
Mas me deixar sozinho com Nolan e Jolie…
Inspirei fundo, sentindo o cunhado de Amy me escrutinar com os olhos.
— O quê? — murmurei, ainda concentrado nos biscoitos, dividido entre simplesmente
abandoná-los ali ou enfeitá-los e guardá-los na travessa. — Quer saber onde faço minhas
tatuagens?
Assim que Jolie inventou uma desculpa para procurar por Jen na casa, Nolan se prontificou
em ficar para me ajudar e limpar a cozinha. Fiquei tão preso à lembrança de Amy se esquivando
de mim que só resmunguei um “tudo bem”. Porém, depois de alguns minutos de Nolan me
estudando do outro lado da cozinha, não consegui ignorar.
— Podemos encontrar um bom estúdio para você nesta cidade minúscula se ficou interessado
— resmunguei.
Nolan soltou uma risada.
— Me desculpe, eu só… Estou curioso — falou por fim, deixando o saco de confeitar de lado
na bancada. — Não me leve a mal, nem nada, é só que… Bem, estou pensando: você não me
parece o tipo de cara que Amy namoraria.
Franzi a testa, finalmente erguendo os olhos para ele de forma indagadora.
Nolan cruzou os braços e, apesar de tentar parecer amigável, não acreditei no sorriso tranquilo
que tentava estampar no rosto. Ele estava claramente incomodado comigo. E é claro que sim, eu
não estava tentando parecer confortável naquela casa.
Arqueei a sobrancelha, esperando o mané se explicar.
— Os brincos, as tatuagens, o cabelo… — Estreitou os olhos claros. — O temperamento.
Senti meus lábios se esticarem.
— Não sabe o quanto Amy adora esse meu temperamento, amigo. — E só porque não me
importava mesmo e podia, continuei: — E sobre as tatuagens… Não faz ideia de quantas vezes a
peguei viajando nelas. Sabe, tem mais delas por baixo da roupa.
Pensei ter notado o maxilar dele tensionar, o riso parecer forçado, mas sabia que conseguia
provocar a ira das pessoas facilmente. Era um talento natural. Nunca me esforcei de verdade para
parecer agradável, não tentaria agora.
— Você só é… diferente dos caras que ela costumava namorar, só isso.
— Hm… — Sorri. — Nunca te contaram sobre os opostos se atraírem?
— Improvável. Vocês dois — retrucou irritado, aquela fachada educada e amigável dando
lugar à impaciência e à outra coisa que não consegui identificar.
Eu sabia o que Nolan estava fazendo, a tia de Amy fizera a mesma coisa no dia anterior e, em
qualquer oportunidade, Nora também me sondava para descobrir se eu sabia dos boatos. Todos
me observavam com curiosidade e dúvida, como se fosse realmente errado e absurdo minha
colega de quarto ter alguém que se importasse tanto com ela e quisesse ficar ao seu lado.
— Jolie me contou que vocês dois moram juntos — ele continuou.
— Huh — assenti, voltando para os biscoitos. — Não é da sua conta.
Escutei a risada tranquila.
— E você trabalha com o quê?
— Então o Sr. Sanchez te mandou aqui para continuar o interrogatório? — perguntei com um
sorrisinho, sentindo o sangue ferver sob a pele. Quão grave seria se eu acertasse o tabuleiro vazio
na cabeça de Nolan?
— Só estou entediado.
— Vá cortar lenhas, comprar mais presentes… — resmunguei, e fiz uma careta de glacê no
boneco de gengibre, enfim finalizando todos os biscoitos restantes. — Sabe, eu queria muito um
taco de beisebol neste Natal.
Nolan se recostou contra a bancada atrás dele, correndo os olhos por mim outra vez, com
desprezo. Da mesma forma que já vira outras pessoas fazerem.
— Estou apenas refletindo as preocupações da minha esposa quanto ao futuro cunhado dela
— disse, seco. — Não pode esperar chegar nesta casa de repente e pensar que não
questionaríamos se você é ou não um bom partido para Amelie.
Soltei uma risada alta e relaxada.
— Uau… Vocês são mesmo uma peça — falei ao colocar os biscoitos prontos na tigela de
estampa de rena, juntos dos outros. — Tão preocupados com a minha Amy que fico emocionado.
Nolan contraiu o maxilar, seu rosto se transformando em uma máscara fria.
— Você sabe sobre o passado dela? — Ergueu uma sobrancelha.
— Quanto mais me perguntam isso, menos tenho vontade de saber. — Sorri de forma
amigável. — A vida dela não é da sua conta.
Ele grunhiu, e as mãos se apertaram com força sobre o peito, tensionando os braços cruzados.
Aquele me parecia um comportamento estranho para um cunhado que não se importava nem um
pouco. Como todos naquela casa. Assim como pareciam confirmar os temores de Amy, também
contradiziam a ideia de que a desprezavam completamente.
Nolan abriu a boca para falar, e sua voz começou baixa e ameaçadora antes de ser
interrompido pela voz alegre de Jen.
— Aí está você… — disse para mim, ignorando por completo a existência de Nolan. — Jo me
disse que a Amy foi à cidade com abuelo. Pode me dar uma forcinha, ali?
— Claro. — Sorri para uma das poucas pessoas que me convenceram realmente se importar
com o bem-estar de Amelie. — Do que precisa?
— Ah… — Jen ergueu a mão, segurando um punhado de enfeites de visco. — Tia Nora pediu
que Phill colocasse estes viscos nas portas da casa, mas Molly levou Claude para pedir um gato
para ele, e agora meu esposo não para de espirrar e lacrimejar. — Revirou os olhos, suspirando.
— Pode fazer isso para mim?
Se conhecesse Jennifer o suficiente, apostaria que aquela era uma desculpa para me tirar dali.
E não deixei de notar seu puro desdém com o outro homem na cozinha.
— Sem problemas — falei ao jogar o pano de prato no rosto de Nolan. Completei para ele: —
Você termina aí? Valeu.
Não me dei ao trabalho de esperar por uma resposta, apenas segui Jen pelo corredor. Ela me
estendeu os viscos.
— De nada — murmurou.
— Oi?
— Vai me dizer que não pensou em socar a cara dele nos últimos minutos?
Senti o sorriso espontâneo.
— Sou um cara decente, não faço essas coisas — brinquei.
— Pois quando tiver a oportunidade, faça — ela concluiu, irritada. — E quebre alguns dentes
também, ele parece se gabar muito do sorriso.
Franzi o cenho, confuso, mas antes de perguntar sobre aquilo, Molly gritou por ela no
segundo andar.
— Espalhe isso nas portas principais — Jennifer disse antes de subir, apontando para as
plantas nas minhas mãos. Cada ramo era enfeitado por um laço elaborado vermelho e dourado.
Como se já não bastassem todos os enfeites de Natal que já vestiam aquela casa… — Tia Nora
acredita que eles trazem paz e bondade. Mas você sabe, né? Se passar com Amy por debaixo de
um desses, lasque um beijo nela.
Assenti com um sorriso. E quando me lembrei de novo do que acontecera na cozinha antes de
Jolie e Nolan interromperem, dos lábios macios de Amy e da nuca dela se arrepiando com meu
toque… encarei as folhinhas verdes e me senti tentado de novo.
— Isso me faz pensar em algumas fantasias minhas — Sebastian disse, andando devagar e
hesitante pela trilha de neve enquanto minha mão enluvada o guiava pelo caminho. — Só que
nelas você estaria vendada.
— Ha, ha.
O sorriso dele ficou maior.
— Pensei que estivesse fugindo de mim, Tiānshǐ.
Corei, agradecida por Bash ter os olhos cobertos por um cachecol velho que encontrei no
sótão e não poder enxergar a verdade estampada no meu rosto. É claro que eu havia fugido dele
mais cedo, e é claro que Sebastian, esperto como era, saberia disso.
— Eu não estava fugindo de você… — menti descaradamente. — Só queria aproveitar que
estava ocupado para ir à cidade e… fazer essa surpresa.
— Hm… Vou fingir que acredito.
— Você teve problemas com minha família enquanto estive fora? Mamãe brigou com você de
novo? — perguntei, nervosa.
Quando voltei da cidade com vovô, ela já estava em casa, com tia Diana e Jolie na cozinha.
Minha mãe não tinha a melhor expressão no rosto, parecia mais irritada do que o normal. Claude
não tivera sucesso em tombar a árvore de Natal, mas roubara um ou outro enfeite dela.
Mamãe o odiava com todas as forças. Molly o tirou de vista antes que o pior acontecesse.
Avistei a ponta do lago congelado no fim do corredor de pinheiros.
— Ela me perguntou quando eu iria embora — Bash disse com um sorrisinho nos lábios. —
Eu disse que, se ela insistisse demais, ficaria até o Ano-Novo.
Gargalhei.
— E meu pai?
— Disse que precisava buscar algo que sua mãe pediu para a ceia. Não fala muito, não é? Me
parece um homem reservado.
— Ele é. — Suspirei. — Caso contrário, não acho que combinaria tão bem com minha mãe.
— É um homem corajoso e paciente para suportar aquela…
— Sebastian... — o repreendi antes que ele finalizasse a frase. Sabia que ele revirava os olhos
por baixo da venda. — Sim, ela é… difícil de lidar.
— Insuportável.
— Mas — continuei, fazendo careta para ele — ainda é minha mãe. Ela… não é tão ruim
assim.
— Mesmo? — comentou sarcástico, e tropeçou em um galho.
— Mesmo — falei rindo. Puxei Bash para o outro lado, para ele desviar de um toco de árvore
caído na neve. — Ela teve uma infância difícil. Minha avó era muito severa com ela, então…
acho que foi tudo o que ela soube ensinar.
— Podemos aprender coisas novas.
— É… complicado. Mas ela me criou da melhor forma que pôde. E agora que o pai dela está
doente… Bem, tenta lidar com o luto concentrando a dor em outra coisa.
— Você. — Bash bufou.
Não respondi. Era verdade.
— Você era mais próxima dela ou do seu pai?
— Hm… Passava um tempo com meu pai na padaria quando queria algum lugar quieto para
ler. — Quando mamãe estava em casa, percebi. Sempre fugia para qualquer outro lugar para
evitá-la porque tinha medo dela. — Minha mãe sempre gostou de sair, ver as amigas, participar
dos grupos de convívio… Jolie também gostava, acho que por isso elas são mais próximas. —
Dei de ombros. — Sempre fui mais apegada com o vovô.
— Ela devia ir para a terapia, sei lá.
Soltei um riso fraco, tentando afastar o nó na garganta que surgia ao me lembrar do olhar de
desprezo dela.
Suspirei.
— E você? Como era o relacionamento com sua mãe?
— Ótimo, acho. — Bash deu de ombros. — Não lembro.
— O que houve?
— Morreu quando eu tinha cinco anos. Foi em um assalto. Os caras roubaram o carro e
atiraram nela.
Parei de andar, ainda segurando seu braço.
— Sinto muito, Bash.
— Não sinta. — Sorriu daquele jeito descontraído, me puxando para continuarmos. — Como
eu disse, não me lembro dela.
— Mas deve ter sentido falta de tê-la por perto — murmurei, com uma vontade absurda de
abraçá-lo, imaginando o pequeno Sebastian sem a mãe.
Bash tensionou o maxilar, respondendo baixinho:
— Fez.
Quis perguntar mais, saber como tinha sido sua infância, se seu pai fora um homem amoroso,
mas guardei para mim por enquanto. Já estávamos nos aproximando do pequeno rio congelado, e
eu não queria estragar a alegria da minha surpresa.
Nem dois dias haviam se passado, e eu estava ali, ansiosa para ficar sozinha com o meu
colega de quarto não mais tão irritante. Pensei que tentar patinar no gelo seria a atividade perfeita
para nos esquecermos da tensão pós-beijo na cozinha, das pessoas que não me queriam em casa.
Sebastian me fazia rir. Eu queria fazê-lo sorrir também.
— Chegamos — falei quando o soltei, removendo as alças da mochila das costas. — Não tire
a venda ainda.
O sorriso safado que surgiu no rosto dele me fez corar.
— Você só pensa nessas coisas?
— Não… Mas quando estou com você, acontece naturalmente. — Abri a boca para xingá-lo,
mas Bash me imitou primeiro: — Calhorda.
Bufei, me agachando para tirar os sapatos da mochila. Eu conferira o número de Bash antes
de sair para comprá-los, esperava que servissem, que ele conseguisse patinar sem problemas.
Tirei o meu e fiquei de pé depois de ajeitá-los na neve, à beira da nossa pista natural.
— Pronto. — Sorri satisfeita, voltando para perto de Sebastian que esperava com as mãos
atrás do corpo, a expressão tranquila. — Pode tirar.
Ele removeu a venda, piscando e ajustando a visão à claridade repentina. Por fim, encarou o
lago congelado com a testa franzida, correu os olhos automaticamente para os dois pares de
patins no chão.
Bash não sorriu. Pelo contrário, contraiu o maxilar e deixou claro que não era isso o que
esperava. Não estava nem um pouco feliz com a surpresa. Seus olhos castanhos pareceram
escurecer, como se a lembrança de Natal que eu queria reproduzir com ele fosse algo que
quisesse esquecer, e não reviver.
Segurei a respiração, me sentindo nervosa de repente. Ele não disse nada, o silêncio
constrangedor me fez encolher no lugar.
— V-você disse que quando… No Natal, você e seu pai patinavam e… Bem, eu f-fiquei
pensando nisso… Então você f-fez os biscoitos de gengibre para mim e… — Gaguejei,
abaixando o olhar para minhas botas de neve cinzas, fechando e abrindo as mãos sob as luvas
pretas. Murmurei: — Pensei que fosse gostar. Desculpe.
Sebastian enfim me encarou, observou meu rosto como se procurasse alguma coisa. E como
se não estivesse ali nos últimos segundos, piscou. Retornou para a clareira, para a pessoa de
repente insegura que esperava uma resposta.
Ele forçou um sorriso.
— Eu adorei — mentiu, rouco.
— Não precisamos fazer isso se não quiser — me apressei em dizer, sem graça. — Só quis
sair um pouco de casa e pensei que talvez pudesse patinar comigo e… Não foi uma boa ideia.
— Não… — Bash pigarreou, respirando fundo, encarando os patins de gelo outra vez. — Foi,
sim.
Mordi o lábio ao notar uma melancolia repentina nos olhos dele.
— Me desculpa, Bash. Eu não quis…
— Ei… — Os lábios dele se esticaram para mim, seus olhos se tornaram aquela meia-lua
linda. — Porque essa carinha tímida? Não parece a Amy que conheço…
Corei, desviando o olhar de novo.
— É só que…
— Vem — me interrompeu, se agachando diante dos patins. — Sente-se aqui e me deixe te
ajudar com isso.
A voz dele parecia estranha… Ele não queria fazer aquilo.
Suspirei, observando com carinho o rosto do meu falso namorado. O cabelo fora preso em um
rabo de cavalo baixo, escondido pela touca cinza e o casaco. Eu o mandara se agasalhar e ficara
empolgada com a ideia de vê-lo sorrir e gargalhar como fizera na cozinha com Molly, mas ele
parecia tão tenso e congelado quanto aquele lago.
— Sebastian…
— Amelie… — Ele tentou me oferecer um sorriso melhor. — Não vamos sair daqui enquanto
você não levar um ou dois tombos.
Consegui sorrir um pouco, me aproximando dele e me sentando na neve.
Sebastian cuidadosamente tirou minhas botas, revelou as meias mais quentes e sem graça que
encontrei na mala. Assisti em silêncio enquanto Bash colocava os patins nos meus pés e
amarrava os cadarços com firmeza. Então, se preparou para fazer o mesmo com os dele.
Torci para o par que eu havia escolhido na loja não servir e ele poder usar aquela desculpa
para não ficar ali. Mas se estava apertado ou largo, a expressão de Sebastian não o denunciou.
Ele ficou quieto durante aquele tempo, pensando, perdido em algum lugar, e meu coração se
apertou enquanto via aquela névoa fria ecoar sua respiração controlada.
— Podemos voltar para casa — insisti, baixinho.
Ele me ignorou, ficando de pé e me estendendo a mão para me ajudar a levantar também.
— Com cuidado, vem — falou.
— Você ainda sabe fazer isso? — perguntei ao segurar firme a mão dele.
Bash me ajudou a caminhar até o lago, as lâminas dos sapatos afundando na neve.
— Vamos descobrir agora. — E colocou o primeiro pé no gelo.
E o segundo.
E quando se impulsionou na pista… escorregou e caiu.
Segurei o riso, cobrindo a boca com as mãos.
Sebastian me olhou feio, com uma careta de dor ao se sentar, massageando as costas.
— Está rindo de mim? — Franziu a testa e completou, emburrado, fazendo um gesto com a
mão para a pista: — Vá você, então.
Sorri, facilmente me equilibrando. Senti uma surpreendente emoção de nostalgia percorrer da
ponta dos pés até o resto do corpo enquanto deslizava as lâminas. Meus lábios se esticaram mais,
e aquelas imagens esquecidas de vovô tentando ensinar Jolie e eu a patinar no gelo sem que
mamãe soubesse me voltaram à mente.
Jolie reclamava sempre, falando que era perigoso. Na primeira queda, ficou sentada na
beirada, com um bico de quem queria ir para casa, enquanto meu avô segurava minhas mãos e
me guiava no gelo. Eu tinha me esquecido disso até Bash comentar sobre o pai.
Depois de crescer, preferi a segurança dos livros a me aventurar do lado de fora. Vovô
também não tinha mais o mesmo ânimo de sair por aí para patinar. Ele sequer comentara sobre
aquela lembrança quando estávamos na loja, provavelmente tinha se esquecido dela. Estava feliz
em confirmar que ainda me lembrava de como fazer aquilo.
Bash me encarou, embasbacado.
— Como pode ser tão boa?
Ri, me aproximando dele e parando para lhe estender as mãos.
— Vinha aqui quando criança.
Ele soltou um riso surpreso, o frio formando uma nuvem de ar quando falava.
— Parece que não sei muito sobre você também, não é? — Me segurou firme e ficou de pé.
Mesmo sabendo que tinha falhado na tentativa de animá-lo o levando ali, a culpa foi
apaziguada pela diversão de vê-lo franzir o cenho enquanto tentava se equilibrar. Não mais
aquele Sebastian convencido de sorrisinho confiante e sem camisa que se apoiava no batente da
porta para implicar comigo de madrugada, mas meu namorado de aluguel atrapalhado e todo
agasalhado, patinando no gelo.
Ou tentando.
Soltei uma risada enquanto segurava a outra mão de Bash.
— Seus pés estão muito juntos — observei, deslizando devagar e o trazendo comigo como se
fosse mesmo uma instrutora profissional, e não uma amadora qualquer. — Dobre um pouco os
joelhos, as lâminas mais inclinadas e… Isso! Agora tenta me acompanhar, como uma dança.
— Esse lago é seguro? — perguntou com a voz rouca e nervosa. — Sabe, não quero morrer
congelado, tenho muito o que viver ainda.
Dei de ombros, fingindo seriedade.
— Ninguém nunca se acidentou aqui, além dos tombos, claro… Talvez um pé torcido… Mas
há uma primeira vez para tudo. Se as autoridades nos pegarem, teremos um problema.
— Vamos voltar — disse, mais decidido.
Gargalhei ao colocar apenas um pouco mais de velocidade nos pés, impulsionando levemente
o corpo para trás enquanto Bash me acompanhava, seguindo em frente.
— Olha só… Você já está se saindo muito bem! Se o gelo quebrar e você cair… Hm… Você
sabe nadar?
— Amelie! — Ele me olhou sério.
Ri, segurando suas mãos com firmeza.
— Vamos ficar bem. Não vou deixar nada acontecer com você, meu querido calhordinha.
Ele estreitou os olhos na minha direção, ainda tenso.
— Quando estivermos em terra firme vou te mostrar o calhordinha.
Minha risada reverberou alta pela clareira e, pela primeira vez desde que chegamos naquela
cidade cinzenta, senti o coração relaxar de verdade, alegre e sem qualquer culpa ou medo. Ao
redor de tantos pinheiros e neve, patinando sem preocupação com Bash, apenas nós dois…
Parecia que as coisas ruins não existiam, que aquele era um mundo particular, um lugar só nosso.
Depois de aparentemente pegar o jeito da coisa, sempre atento ao movimento dos pés e onde
tocavam, evitando as rachaduras, Sebastian ganhou um pouco mais de confiança. Era como um
bebê aprendendo a andar ou uma criança conseguindo pedalar uma bicicleta sem rodinhas e sem
a ajuda de um adulto.
O olhar dele se fixou em mim, e aquela sombra de antes desapareceu por completo. Ele
encarou minha boca.
— Você está sorrindo.
— Huh… — E automaticamente, meus lábios esticaram mais. — Estou muito feliz agora.
— É?
Assenti.
— Me ver precisar de você te deixa feliz? — provocou.
— Uh-hum… Adoro.
Senti o coração reagir de novo daquela maneira estranha e forte quando ele sorriu para mim
com o jeitinho sedutor e típico de Sebastian Wang. E o movimento dos seus lábios se repuxando
para o lado me fez lembrar de como eram macios e quentes contra os meus. Engoli em seco,
desviando os olhos para nossas mãos unidas.
— Posso te perguntar uma coisa? — falei baixinho, mesmo que só nós dois estivéssemos ali.
— Vá em frente.
— Por que não namora?
Bash franziu a testa, como se não tivesse entendido a pergunta repentina, se concentrando em
acompanhar meus passos pelo gelo e não tropeçar.
— Eu só fico pensando nisso… — expliquei, incapaz de encará-lo. — Você é bom nisso.
Nessa coisa de namoro. Pensei que era um cara egoísta e metido… — Ele riu, me dando
coragem para fitar seus olhos castanhos. — Mas você é um cara legal… Que se preocupa, que…
sabe ser fofo…
— Estou atuando, Amy — me interrompeu um pouco desconfiado, pronto para se esquivar do
questionamento. — Eu disse para você que era bom.
— Não acredito que seja só atuação. Não em relação ao que sente por mim, claro, só… Deve
haver um motivo. Um passado triste para justificar suas noitadas irresponsáveis e todas as suas…
atitudes em relação às mulheres e a se relacionar seriamente com elas.
Sebastian revirou os olhos.
— Escritores… — debochou.
— Quer que eu te solte? Eu solto — ameacei, e ele me segurou com mais força, livrando
minhas mãos para agarrar meus braços com firmeza, sem me dar chance de deixá-lo patinar por
conta própria.
— Por que preciso de um passado triste para justificar minhas escolhas agora?
— Por que tomamos decisões com base no que já vivenciamos. Deve haver uma história por
trás desse seu comportamento libertino. Como uma leitora de romances assídua, não consigo
tirar isso da cabeça.
— Assim como escolher roupas bregas mesmo claramente não gostando delas? — Sebastian
alfinetou, erguendo uma sobrancelha. — Isso também não me sai da cabeça.
Justo. Se eu queria que ele compartilhasse, deveria oferecer algo em troca.
— Sim. Como escolher roupas bregas mesmo odiando elas.
Suspirei e fiz uma pausa, escutando o dueto seco de nossos pés ao deslizarem suave e
tranquilamente pelo gelo. Fechei os olhos por um segundo, inspirei o ar frio e comecei baixinho:
— Ele… — Não consegui dizer o nome em voz alta, não conseguia contar aquela verdade
para Bash ainda. Se ele não reagisse bem… Não queria que me deixasse sozinha naquele lago.
— Ele disse que eu fazia para provocar. Quando me arrumava, quando colocava roupas bonitas e
o batom vermelho que eu adorava… Ele disse que eu fazia para provocá-lo. Mas… Eu era
mesmo vaidosa demais: mesmo em casa, gostava de me sentir bem com roupas bonitas, vestidos
godês… — Um sorriso triste moldou meus lábios.
Bash me encarou sério, ouvindo atentamente.
Dei de ombros.
— Só parei. Só parei de me importar com as roupas, maquiagens, cabelo… Quando me mudei
para Boston, decidi que não usaria roupas bonitas, não chamaria atenção de forma alguma. Seria
apenas uma coisa apagada e sem graça. Minha primeira aquisição ao novo guarda-roupas foram
estes óculos. Peguei o modelo mais ridículo e barato na ótica. Então, fui em um bazar e comprei
os suéteres mais feios que encontrei.
O maxilar de Sebastian tensionou, como se trincasse os dentes para evitar quebrar alguma
coisa. Ele perguntou baixo e muito sério:
— Ele machucou você?
Hesitei.
Sim? Quase? Talvez não fisicamente, por falta de sorte, mas conseguira ferir meu coração e
orgulho de maneiras irremediáveis.
— Não… — Desviei os olhos. — N-não dessa forma — respondi, embora o pensamento me
ocorresse às vezes. Ainda que tivesse medo de Nolan ser mesmo aquele tipo de cara. Porque, no
fundo, eu sabia que se Jolie não tivesse aparecido naquela tarde… Se estivéssemos
completamente sozinhos…
Afastava o pensamento sempre que surgia, porque o pânico de enxergá-lo como aquele tipo
de monstro casado com minha irmã, visitando minha família…
Um arrepio percorreu minha espinha.
Pigarreei, fazendo uma curva suave com Bash enquanto retornávamos à nossa trilha,
completando o primeiro círculo no lago.
— Agora você.
Ele me olhou como quem queria insistir no assunto, talvez finalmente me perguntar sobre o
que acontecera, sobre quem era a pessoa dos meus pesadelos. Mas respirou fundo e tentou
suavizar sua expressão, varrer seus pensamentos – quaisquer que fossem – para longe da mente.
— Qual é sua teoria, escritora?
Pensei, reunindo tudo o que sabia sobre Sebastian.
— Sei que coração partido é óbvio demais… Penso que você provavelmente tenha amado e
confiado em alguém, e aí… quando mais precisou da pessoa, ela te virou as costas? Ou te traiu
com seu melhor amigo?
— Eu amei alguém… — assentiu, com um pequeno sorriso divertido nos lábios. — E essa
pessoa virou as costas para mim quando mais precisei… Mas não, ela não dormiu com meu
melhor amigo. Clichê, eu diria, pense em outra coisa.
— Disse que te amava, mas te deu o golpe do baú e foi torrar a grana em Vegas.
Ele gargalhou alto, me puxando para mais perto quando se desequilibrou.
— Qual é, Amy… Você é mais inteligente do que isso.
— Não consigo pensar em nada além de uma mulher que te fez de trouxa a ponto de te fazer
desacreditar no amor, sinto muito.
O sorriso debochado ficou ali por mais alguns segundos enquanto Bash balançava a cabeça,
decepcionado… Mas depois de umedecer os lábios e respirar fundo, fixou os olhos nos meus
outra vez e contou:
— Meu pai se casou muitas vezes. — E apesar da fala tranquila, conseguia perceber a tensão
em seu corpo. — Ele era um homem bom, mas tinha um dedo podre para mulheres. Depois que
minha mãe morreu, ele não se fechou à possibilidade de casar e ser feliz, mas se abriu muito a
essa ideia. Ele era apaixonado demais por todas elas, e elas… Sempre se aproveitavam da
bondade dele. Eu sentia raiva disso, porque era óbvio que só o queriam pelo dinheiro e status.
— Ele tinha dinheiro?
— Muito dinheiro. — Suspirou. — Conheci muitas mulheres nessa época, desde novo. Todas
elas pareciam as mesmas para mim: sorrisos forçados, roupas vulgares, joias demais, amigas
demais, vinho demais… Sempre que meu pai me apresentava a uma delas, eu fazia questão de
ser o motivo para saírem daquela casa. Quando era criança, me achava na obrigação de defender
meu pai, porque ele se apaixonava fácil, entregava o coração para qualquer uma, mesmo se
soubesse que tinha uma grande chance de ser chutado de novo. Ele não era um ricaço comum,
não ostentava mulheres, mas se apegava a uma e lhes presenteava o tempo todo até elas se
cansarem dele.
Aquilo explicou muita coisa, e para uma criança sem mãe… Conseguia imaginar como deve
ter sido difícil para ele ver o pai quebrar a cara tantas vezes. Pensei que a história era aquela, mas
Sebastian não parou.
— Então, ele conheceu uma mulher diferente. — Bash soltou um riso seco. — Eu estava no
último ano do ensino médio na época, e ela realmente parecia encantadora. Eu já estava cansado
de brigar com meu pai por causa das ex-namoradas, ex-noivas e ex-esposas dele, então apenas
fiquei quieto. Chegava em casa e ignorava os dois…
— Ligava o som nas alturas de madrugada? — tentei brincar.
— Ah, Ames, eu era terrível — ele disse divertido, porém seu sorriso durou pouco. — Mas
depois de alguns meses, pareceu que ela era, sim, a pessoa certa, mesmo que eu a achasse nova
demais para meu pai… Ele tinha cinquenta e sete, e ela uns trinta. Mas aparentava funcionar. Ela
não esbanjava os presentes do meu pai como as outras, era engraçada e parecia realmente se
importar com ele. Então, baixei a guarda. Depois de um ano, os dois se casaram e pareciam
felizes. Meu pai era louco por ela. Ela aparentemente o amava da mesma forma.
Mal reparei que segurava a respiração, senti a velocidade dos meus pés diminuírem aos
poucos, temendo o que viria a seguir.
— Eu estava de férias, me preparando para ir à faculdade. Fiquei mais tempo em casa. — Os
olhos de Bash assumiram aquela névoa escura de novo, se lembrando. As mãos em meus braços
se apertaram um pouco. — Não estranhei no início, quando ela começou a querer se aproximar
mais de mim, desejar saber como foi meu dia, conversar sobre a minha vida, o que eu queria
fazer depois que me formasse, os amigos… Até uma semana em que meu pai viajou a trabalho.
Ela passou aqueles dias me sondando, insistindo em tocar em mim enquanto falava… — Ele
inspirou, fazendo uma pausa. — Briguei com ela, claro. Falei que, se não estava realmente
interessada no meu pai, pedisse logo o divórcio e o dinheiro e partisse como as outras. Ela
pareceu acordar para o que estava fazendo e começou a pedir desculpas, falando que se sentia
sozinha por causa das viagens do marido…
— Mas ela estava mentindo… — sussurrei.
— Huh… Numa noite, saí com meus amigos. Voltamos tarde, eu tinha bebido demais e
apenas desmaiei de sono… — Soltou o ar, com dificuldade para continuar, encarando nossos
braços unidos, nossos pés se movendo. — Acordei naquela madrugada com um peso sobre o
corpo. Minha calça estava desabotoada, e ela…
Estanquei no lugar e arregalei os olhos.
Sebastian quase caiu, mas eu o segurei com firmeza, nossos corpos colidindo.
Ele soltou uma risada sem graça.
— É… isso mesmo — murmurou, sua voz descendo algumas oitavas, rouco. — Eu me
lembro de ficar tão assustado que a joguei da cama, tropeçando para o outro lado do quarto. Ela
sequer estava vestida. Fiquei tão desesperado que não consegui fazer nada além de ficar colado à
parede, encarando a mulher horrorizado.
Céus…
Senti o estômago revirar.
— Foi quando escutamos passos, e ela se transformou, Amy… — A voz dele falhou, mas
Bash tentou recuperar a frieza nela. — Ela começou a chorar e tentar se cobrir…
Ah, não…
— Seu pai chegou.
— Ele não quis acreditar em mim. Viu minha calça desabotoada e notou que eu cheirava a
álcool… — Sebastian desviou os olhos. Sua voz falhou de novo, e notei o brilho de lágrimas ali,
mas ele as segurou o melhor que pôde. Em seu lugar, surgiu uma raiva que só vira uma vez, na
mesa de jantar com minha mãe. — Ele me bateu, e eu deixei. Pensei que era um pesadelo, eu
acordaria. Mas não acordei, e meu pai me odiou. Mesmo quando tentei dizer a verdade, a mulher
dele foi mais convincente. Ele me expulsou de casa e cancelou a matrícula da minha faculdade.
Disse que eu não era mais seu filho.
Senti meu coração se quebrar, dolorido.
Eu jamais imaginei…
— Passei um tempo com minha avó e meus primos… até atingir a maioridade e me mudar
para aquele apartamento.
Continuamos parados no gelo, nos equilibrando nos patins, silêncio total naquela clareira tão
gelada agora que eu sabia a verdade. Não consegui pensar em nada realmente reconfortante para
dizer.
— Descobri que ela ficou grávida dois anos depois de meu pai ter me expulsado de casa. —
Bash fez uma pausa, trincando os dentes de novo para não chorar. — Fiz de tudo, Amy. Tentei
de tudo para conseguir apenas vê-lo de novo… Mas ele nunca acreditou na minha história, na
minha verdade. Por causa de uma vadia mentirosa que abusou de mim. — Respirou fundo,
tentando controlar o temperamento. — Odiei todas as mulheres que passaram por aquela casa,
mas nunca como a odeio.
— Seu pai, ele… — Morreu três anos atrás.
— Deixou tudo que tinha para ela e o outro filho quando morreu. Nenhum adeus, nem uma
mísera carta para mim. — O sorriso triste no rosto de Sebastian partiu meu coração dolorido. —
Ele morreu acreditando nela.
Morreu odiando o filho.
— Eu sinto muito, Bash — sussurrei, erguendo uma das mãos para seu rosto.
Era por isso, então. Sebastian se recusava a ter um relacionamento porque não acreditava
naquilo. Amor… não existia para ele. Porque o próprio pai…
Por isso Sebastian sentia tanta raiva da minha família, por isso odiou minha mãe no primeiro
segundo. Porque ele entendia como era ser abandonado…
É incrível, não é? Como alguém que te conhece a vida toda pode se tornar um estranho em
questão de segundos. Bash me dissera aquilo na noite anterior. Pensei que estivesse se referindo
à Jolie, mas era sobre o pai.
Ele fechou os olhos por alguns segundos, mas quando deslizei o polegar por sua bochecha,
segurou minha mão. Então, me afastou com delicadeza, entrelaçando os dedos aos meus.
— Não pense que isso me traumatizou ao ponto de não querer estar com uma mulher — disse,
tentando sorrir daquele jeito sarcástico. Porém, não chegou nem perto de esticar os lábios direito
—, mas o suficiente para eu não confiar mais em uma.
Assenti.
— Teria sido mais fácil superar, não é? — finalizou, descendo o olhar para nossas mãos
dadas. — Se uma possível mulher que amei só tivesse me traído com meu melhor amigo? —
Suspirou. — Por isso aceitei fazer isso… Quando disse que seus pais viraram as costas para
você… não consegui dizer não.
Eu deveria contar a verdade sobre Nolan agora. Sabia que sim. Era o momento ideal, e eu
quase tinha certeza de que Bash acreditaria em mim.
Mas e se…
Não pense que isso me traumatizou ao ponto de não querer estar com uma mulher, mas o
suficiente para eu não confiar mais em uma.
E se ele não acreditasse? Quando ouvisse… E se Bash pensasse que eu era mesmo a pessoa
ruim da história? Ele poderia facilmente me associar à mulher que enganara seu pai.
— Obrigada por me contar. — Forcei um sorriso. — Sei que não foi fácil.
Ele assentiu.
— Agora conhece meu passado triste. — E se lembrando, disse: — Posso saber o seu? A
verdade completa?
Conta para ele, Amelie!
Engoli em seco.
— Huh...
— Agora?
Não conseguia. Não agora. Mas…
— Mais tarde — prometi. Porque seria inevitável. Ele acabaria sabendo em algum momento.
Por mim ou por qualquer outro. — Mais tarde, te conto tudo.
Sebastian concordou, talvez porque estava esgotado de compartilhar histórias tristes, ainda
preso no próprio passado, sobre o qual o obriguei a lembrar… Ele apenas meneou com a cabeça.
— Então me ensine a fazer curva — disse e, para meu alívio, aquele sorriso maroto retornou
um pouco. — Está mais do que claro que sou péssimo nisso.
Ri, voltando a mexer os pés.
— Dobre um pouco um joelho e estique um pouco mais a outra perna…
Depois de me arriscar a tentar patinar sem o auxílio de Amy e falhar miseravelmente –
sentiria os fracassos refletirem na minha bunda e na coluna mais tarde –, cheguei à conclusão de
que já havia me humilhado o suficiente na frente da minha colega de quarto.
Amy ficara me encarando com aqueles olhinhos de pena desde que contei sobre meu pai, e me
senti incomodado, aquele adolescente frágil de novo. Cair no lago de gelo também não ajudou
muito no meu orgulho. Então, pedi para voltarmos à clareira, e ela prontamente aceitou.
Não abria aquela porta com frequência, aquela em que joguei as lembranças do meu pai e da
fatídica noite com a cobra da esposa dele. Fora uma das poucas vezes em que chorara como uma
criança abandonada, implorando ao meu pai para acreditar em mim enquanto ele me batia. Ele se
esquecera do filho naquela noite, se esquecera das tardes em que me ajudava com o dever de
casa quando eu era pequeno, da vez em que me ensinou a dirigir, da noite em claro que passamos
juntos maratonando Duro de Matar… Esquecera completamente quando me levava para patinar
antes da ceia de Natal na casa da sogra.
Morreu esquecendo que, antes de qualquer mulher, eu era seu filho e estivera ali com ele.
Por isso, senti como se tivesse levado um soco no estômago quando tirei a venda e percebi
que a grande surpresa de Amy fora, na verdade, uma lembrança dolorosa. Mas para não a
desapontar, segui em frente, patinei de novo.
Aparentemente, Amy me fazia quebrar as regras, contar segredos e ficar vulnerável.
E ela também se abrira.
Céus… Eu sabia que as roupas não eram apenas um senso de moda ruim. E quando
encontrasse o desgraçado que a levara àquele ponto… Queria cuidar dela. Pegá-la no colo e não
deixar ninguém a machucar de novo. E o sentimento era estranho, impulsivo e estava me
comendo como um parasita. Quanto mais eu me abria para aquela garota e a conhecia, mais alto
e vermelho soava o alerta na minha cabeça.
— Agora que estamos em melhor termo um com o outro, acha que podemos chegar a um
acordo quanto à quantidade de… visitas que você leva ao apartamento? — ela perguntou,
encarando o céu cinza e claro.
Amy estava esticada no chão da clareira, abrindo e fechando os braços e pernas enquanto
formava um anjo na neve. Sorri, adicionando uma cabeça ao meu boneco congelado.
— Quantas você tinha em mente?
— Bom… Agora que sei que só quer ser um homem livre mesmo… É justo se divertir.
Mas… — Pensou, parando por um segundo. Virou a cabeça para mim. — Uma por semana.
Gargalhei.
— Vou pensar no seu caso.
— Então pode, pelo menos, não ligar a caixa de som enquanto está com elas?
— Prefere ouvir tudo sem uma trilha sonora? — Arqueei a sobrancelha. — Sabe… Você
nunca me contou o som que eu faço.
As bochechas de Amy adquiriram um tom forte de vermelho. Ao lembrar, foi incapaz de me
encarar por muito tempo.
— Não vai me contar? — provoquei.
— É um som feio e grotesco — disse, me fazendo rir.
Mentirosa.
Pensei em cutucá-la mais um pouco, descobrir quantos tons de vermelho conseguiria tirar do
rosto dela, mas então Amy pareceu se recordar de algo engraçado, não conseguindo controlar a
risada.
— Uma vez, você levou uma mulher que, juro, nunca conheci alguém tão linda como ela. Era
alta e bronzeada… Tinha um cabelo enorme e liso, vermelho… Pensei que parecia modelo, até
imaginei ela como uma das personagens para o meu livro. — Riu de novo. — Nesse dia, nem
fiquei brava com você. Pareciam comportados, surpreendentemente. Então, fiquei pensando em
uma história, em como vocês se conheceram, se foi ela ou você quem deu o primeiro passo…
Revirei os olhos.
— Me deixa — ela reclamou ainda sorrindo, animada com a história. — Mas aí a coisa toda
começou.
— Que som ela fazia?
Amy segurou o fôlego, sem conseguir parar de rir.
— Está pronto? — perguntou com um olhar travesso.
Fiz um gesto com a mão para ela continuar.
Amy abriu a boca e reproduziu o som mais agudo, repetitivo e engraçado que já ouvi. Alto,
sua voz ecoando pelas árvores que nos cercavam.
Gargalhei.
— O que raios seria isso?
— Uma zebra! — Ela voltou a moldar o anjo no chão, com um largo sorriso nos lábios
avermelhados. — Eu pesquisei, claro. Para ter certeza. Mas me lembro de rir tanto naquela noite
que precisei cobrir a boca com o travesseiro.
— Você é terrível, Amy… — Balancei a cabeça, gargalhando. — Vai escrever isso no seu
livro?
— Com certeza.
Estreitei os olhos.
— Sabe, quanto mais você caçoa dos sons que elas fazem na cama, mais fico curioso sobre o
seu — falei ao correr os olhos pelo lugar atrás de um graveto. Quando localizei um próximo de
onde Amy estava, fiquei de pé e segui naquela direção. — Seria o de um panda, talvez? Um
corvo? — Me agachei e peguei o galho, partindo-o ao meio. — Não… Tenho certeza de que
seria algo mais intenso… Como um iaque.
Ela mexeu os braços, empurrando a neve para cima, moldando mais e mais as asas.
— E como seria o som de um adorável iaque?
— Algo mais grave, tipo… — Imitei o animal, e ela deixou que um delicioso som alegre
reverberasse pelo lugar, sem medo de ser ouvida.
Amy afundou a mão enluvada na neve para em seguida jogar um bocado em mim.
Desviei.
— Eu jamais faria um som tão horrível!
— Mesmo? Disse que se surpreendeu com minhas convidadas — falei, divertido.
— Não… Como é que você disse? — Me lançou um sorriso sedutor, claramente se
esforçando para me fazer esquecer nossa conversa de mais cedo. — Sou um Tiānshǐ. Meu som é
nada mais, nada menos que algo musicalmente angelical.
Dei risada depois de fincar os dois braços do meu boneco de neve.
— Me dê uma palinha — pedi ao me afastar da estátua de neve para encarar Amy deitada no
chão.
Os lábios dela se esticaram, e foi impossível não concentrar meu olhar neles.
— Você precisa conquistar o som musicalmente angelical.
Controlei o sorriso, sentindo aquele parasita de novo, aquela vontade absurda de provar para
Amy que, se ela permitisse, eu poderia, sim, arrancar muitos tipos de sons daquela boca perfeita.
— Não me provoque, Amelie.
— Não estou provocando… — Franziu a testa, fingindo inocência e voltando a pintar o anjo.
— Só estou dizendo.
Ela estava com aquelas roupas de pinguim, usava os malditos óculos e uma touca horrorosa e
listrada com um pompom gigante na cabeça. E ainda assim…
Ainda assim eu queria descobrir… Ainda assim queria tê-la nos braços.
— Merda — murmurei, irritado.
— Merda?
Inspirei, me obrigando a desviar os olhos daqueles malditos lindos lábios. Ignorei sua
pergunta e fui até a mochila preta onde guardamos os patins, passando uma das alças pelos
ombros.
— Bash? — Amy se sentou, confusa. — O que foi?
— Vamos embora — murmurei sem olhar para ela, deixando-a para trás. Eu não estava tão
preocupado com nossa última regra, mas querer tocá-la ao ponto de perder o controle era o que
estava me deixando irritado daquele jeito.
— Mas… — Amy correu, tentando me alcançar. — Você não terminou o boneco de neve!
Vamos ficar mais um pouco…
— Não. — Respirei fundo, mandei o parasita à merda. — Vamos voltar. Antes que eu faça
uma besteira.
E beije você contra uma dessas árvores.
Sebastian quebrou a regra.
Depois que me apressou a voltar para casa, ele disse que precisava fazer uma ligação, me
deixou sozinha nas escadas da varanda e desapareceu. Repassei nossa conversa na clareira e me
perguntei o que havia dito demais para ele mudar tão repentinamente, mas além de ter tocado no
assunto sobre seu pai, não consegui pensar em mais nada.
Talvez… O provocar tenha sido o problema. Eu não deveria ter…
Fechei os olhos, balançando a cabeça, o afastando dos pensamentos. Ele só precisava de um
tempo. Sabia que fingira estar bem depois de me dizer aquelas coisas, então talvez só quisesse
ficar sozinho.
Quando entrei, a casa cheirava a tempero, peru e Natal. Por um momento, me permiti apreciar
o barulho que vinha da cozinha, as risadas e a conversa. Como antigamente. Os filhos de Tia
Diana jogavam no sofá com seus smartphones, alheios ao mundo, concentrados demais em seus
aparelhos para repararem na jovem recostada contra a parede no hall de entrada; as risadas de
Molly e seu pai ecoavam de algum lugar da casa.
Sorri, desejando poder fazer parte daquilo, ter ajudado a enfeitar a árvore de Natal ou a fazer
torta na cozinha, talvez pendurar os viscos… Mas mamãe deixara claro que não me queria
fazendo nada daquilo, não me queria por perto, e definitivamente não sob o mesmo teto de
Nolan.
Ela ainda o tratava como um filho querido, o genro perfeito que lhe dava flores no aniversário
dela e comprava presentes para crianças em orfanatos no Natal. Antes de começar a encontrar
Nolan escondida, eu o admirava de longe, sempre suspirando quando o via passar, sempre
sorrindo abobalhada quando o assistia ajudar alguém. Sempre tão prestativo e gentil com todo
mundo. Comunicativo e charmoso…
Ficou difícil acreditar na palavra de uma garota que passou a maior parte da adolescência
atrás de um livro, encolhida tímida em algum canto, porque era muito mais interessante interagir
com palavras em um papel do que com pessoas reais. Depois de conhecer Nolan, ele me ajudou
com aquilo e, quando começamos a nos ver escondidos, eu me sentia mais confiante. Contava
minhas ideias e tagarelava sobre as coisas que gostava e não gostava. E ele escutava como se
tudo o que eu dissesse fosse música para os seus ouvidos, me olhava como se eu fosse algo
fascinante, tocava meu rosto como se eu fosse uma joia delicada e preciosa…
Era uma máscara fria e bem moldada ao rosto lindo e cheio de simpatia.
O que havia por baixo… era podre e ruim.
Suspirei, me afastando da parede e seguindo o caminho para o sótão. Apesar de sentir vontade
de visitar meu lugar favorito da casa, o balanço que vovô fizera para mim, sabia que seria
observada facilmente pelas mulheres na cozinha se ficasse lá. Só segui para as escadas, subi os
degraus com um suspiro cansado.
Sentia falta do meu apartamento pequeno e simples, do quarto apertado e cheio de livros, do
som da cidade agitada e carros e buzinas… Aquele caos me confortava de certa forma; a cidade
grande me deixava menor, mais invisível e menos vulnerável a conversas das quais eu não
poderia fazer parte, dos olhares acusatórios e da chance de trombar com…
Ele sorriu no corredor quando nossos olhares se encontraram. Senti o corpo congelar, a
respiração acelerar. Nolan deu um passo para o lado, esticando o braço e indicando que eu
passasse.
— O que está fazendo aqui em cima? — perguntei, rouca.
— O banheiro de baixo estava ocupado, decidi usar o daqui — falou tranquilamente, e não se
mexeu, franzindo a testa e me encarando de cima a baixo. — Foi passear com o seu namorado de
Natal?
Senti o chão sob os pés ameaçar ceder e desejei que me engolisse. Mas sabia que Nolan
poderia estar blefando, me testando.
— Não é da sua conta.
— Mas é claro que é. — Caminhou vagarosamente na minha direção, como um predador
pronto para atacar. — Sou tão parte desta família quanto você.
Não teria doído escutar aquilo se não fosse mesmo verdade.
Senti o nó familiar na garganta, cogitei dar meia-volta. Da última vez que ficara sozinha em
um cômodo com Nolan, fora acusada de partir para cima, de provocá-lo. Mas eu sempre quis
saber… Não conseguia aceitar que, depois de todo o nosso passado, depois de tudo que ele disse
nos nossos momentos íntimos, a forma como me tratava antes…
Perguntei baixinho:
— Por que está fazendo isso comigo?
Ele suavizou o olhar, correu os olhos azuis por meu corpo como se lembrasse como eu era
antes de tudo dar errado.
Nolan suspirou.
— Não sei do que está falando, Amy…
— Me odeia tanto assim? — Eu deveria voltar, ir procurar Sebastian. — O que eu… —
Pisquei, tentando afastar as lágrimas. Sussurrei: — O que fiz para você?
Meu cunhado se aproximou, acabando com a distância que restava entre nós dois. Apesar de
ter passado a odiar o perfume dele, o hálito quente perto do meu rosto, não me afastei dessa vez.
Queria ouvir, queria saber.
— Foi um acidente — falou no meu ouvido quando pegou uma mecha castanha do meu
cabelo e brincou com ela entre os dedos. Não havia mais ninguém no segundo andar. Caso
contrário, Nolan não se arriscaria. Mas se alguém subisse… Trinquei os dentes, me obriguei a
ficar ali. — Era para ter sido você.
Franzi o cenho, o encarando confusa. Nolan levou a mecha de cabelo até a altura do nariz e
inspirou, fechando os olhos por um segundo. Dois.
Meu estômago revirou, senti vontade de vomitar.
Corra, Amy. Apenas saia daí.
— Eu pediria você em casamento… — murmurou, ainda concentrado na mecha ondulada em
sua mão. — Mas acabei encontrando sua irmã apenas uma vez, perdemos o controle e fomos
pegos. Você sabe como as pessoas desta cidade são… — Revirou os olhos. — Se eu desmentisse
que estava com Jolie e te cortejasse… Tsc, tsc… Foi um descuido meu. As pessoas criaram
expectativas, nossos pais imediatamente começaram a pensar no futuro. Não consegui tirar isso
deles. E sabia que, mesmo me casando com ela, ainda poderia ver você… Ter você…
Me afastei abruptamente, o encarando horrorizada.
— Você está mentindo — balbuciei, com dificuldade para respirar.
Ele franziu a testa.
— Estou?
Senti a primeira lágrima cair.
— Você não a ama, então? — questionei, patética. Era claro que não. — Ela está grávida!
— Huh… — assentiu. Simples assim.
— Você é um monstro… — sussurrei, puxando o ar com dificuldade.
Nolan começou a se aproximar de novo, me encurralando contra a parede no corredor, as
mãos detrás do corpo, a expressão assumiu um tom frio e irritado.
— Você me surpreende, sabia? — murmurou, para que apenas eu escutasse. — Trazendo um
cara qualquer para a casa dos seus pais, usando essas roupas… — Riu. — Ah… Pobre Amy. Se
tivesse feito o que eu disse, não estaria nessa situação agora.
O que ele disse…
Segurei o riso estrangulado. Me tornar sua amante? Quando pedi que ficássemos juntos, eu
sequer sabia que ele saía com Jolie também. Quando falei que queria passar o resto da minha
vida com ele, não fazia ideia que minha irmã era seu alvo.
E ali estava.
Eu me recusara a ser uma segunda opção, e sofria com o julgamento errado de minha família.
Porque a palavra de Nolan Willis sempre prevaleceria à minha. Mesmo se eu corresse até a
cozinha naquele exato momento para dizer aquelas coisas que ele havia finalmente revelado…
Jamais acreditariam em mim. Nunca acreditaram.
Eu só queria que alguém… Qualquer um… acreditasse em mim.
— Se já usou o banheiro, então pode descer — consegui dizer, rouca, fechando a mão trêmula
ao lado do corpo. — Não há nada para você aqui em cima.
O sorriso dele ficou largo, e não era nada como aqueles doces e gentis que oferecia para
todos: era frio, cruel e… louco.
Nolan ergueu uma mão até o meu rosto e limpou a lágrima que escorreu.
— Não?
Escutei passos ecoarem das escadas, meu coração desabou. De novo não…
Nolan percebeu o terror completo em meu rosto e riu de maneira debochada, as mãos nos
bolsos da calça, recuando dois passos.
— Quem você disse que estava me chamando? — Ele franziu a testa, como se tivéssemos
acabado de nos ver. Virou o rosto para a pessoa que alcançara o andar e não disse nada. Ele
sorriu. — Ah, oi, sogro.
Fechei os olhos, senti as pernas enfraquecerem. Aconteceria de novo? Papai me questionaria e
pensaria que eu estava tentando me aproximar de Nolan? Eu seria apedrejada de novo?
Eu estava tão cansada daquilo, tão sozinha. Era tão injusto…
Só queria voltar para casa.
— O que está fazendo aqui em cima, Willis? — A voz grave e carregada de sotaque ecoou,
apertando meu coração com força. Não consegui encará-lo.
Nolan disse, despreocupado:
— O banheiro debaixo estava ocupado, então precisei usar o de cima. — Era mentira. Eu
sabia que era mais uma mentira.
— Hm… — meu pai resmungou. — É melhor descer.
— Sim, senhor.
Antes de Nolan passar por ele no fim das escadas, porém, percebi papai segurá-lo pelo braço,
atraindo minha atenção total para os dois. Pela forma como os dedos se afundavam na camisa de
meu cunhado, não era um aperto fraco e casual.
— Evite ficar sozinho com Amelie — disse de forma grave, e aquele era o tom típico de um
pai receoso pela segurança de um filho. Mas sabia que a preocupação não era direcionada a mim.
— Não fale com ela.
Encolhi contra a parede, desviando o olhar para as botas em meus pés. A visão embaçou, mas
não tive forças para erguer o braço, pegar os óculos e limpar o rosto.
— Sim, senhor. — Nolan respondeu, sério, como o filho obediente que era. — Estou fazendo
de tudo para não trombar com ela no caminho.
Só queria que aquilo acabasse…
— Não quero que suba aqui enquanto ela estiver nesta casa, entendeu?
Nolan hesitou, pareceu engolir em seco antes de responder:
— Sim, senhor.
— Desça — foi a última ordem de papai, e logo os passos ressoaram nas escadas, diminuindo
e desaparecendo.
Esperei pela repreensão. Talvez ele dissesse que, se não fosse para me comportar, eu poderia
ir embora para Boston.
Mas ao invés disso, meu pai suspirou.
— Você está bem?
Arregalei os olhos, o encarando surpresa, sem entender.
— E-estou.
Ele assentiu e estudou meu rosto.
— Consegui um colchão para Sebastian. — Apontou, e só então reparei no que ele tinha ali,
contra a parede. — Deve ter sido uma noite difícil e fria… Tentei consertar o antigo aquecedor
portátil, mas não consegui. Então, separei mais alguns cobertores para vocês.
Minha vontade de chorar aumentou, aquele peso no peito ficou confuso, mais difícil de
suportar.
Ele… estava preocupado com Bash? Comigo?
— Obrigada, pai. — Minha voz saiu embargada, não consegui nem tentei disfarçar a emoção.
Papai assentiu, colocando as mãos nos bolsos.
— É melhor você descansar um pouco, se preparar para mais tarde.
— Huh. — Meneei com a cabeça e mordi o lábio, me controlando para não o puxar em um
abraço, chorar como uma criança que acabara de ralar o joelho e queria braços fortes para
carregá-la e cuidar dela. — Vou… Vou fazer isso.
Ele resmungou, ainda correndo os olhos escuros por mim, sondando.
— Vou levar isso, então — falei, rouca, ao me aproximar do colchão de solteiro. — Obrigada.
Papai mexeu a cabeça outra vez, confirmando, me dando espaço. Não disse nada enquanto,
parado perto das escadas, me observava arrastar o colchão pelo corredor. Quando abri a porta
para o sótão, no entanto, ele pigarreou e me chamou.
— Amelie.
— Sim? — Me virei para ele, esperando.
Meu pai me encarou uma última vez, e pude jurar com todas as forças e a última esperança:
aquele era o olhar que Bash alegou ter visto no dia anterior. Carregava arrependimento,
preocupação… amor.
— Estou feliz que veio para casa este ano. Senti sua falta, hija.[11]
Não consegui responder, um pouco chocada demais para reagir de outra forma além de franzir
a testa surpresa e sentir meus olhos encherem, prontos para uma enxurrada.
Antes que eu pudesse responder, meu pai se virou e desceu, me deixando sozinha.

Ainda estava chorando quando escutei, quase meia hora depois, a porta do sótão se abrir e
Sebastian me encarar. Não consegui ler sua expressão e não quis colocar os óculos para verificar.
No entanto, se fosse mesmo boa em identificar as sombras e as luzes, as feições sérias se
transformaram em preocupação quando as sobrancelhas grossas se uniram e ele se aproximou.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou, se ajoelhando diante de mim na cama, afastando
uma mecha do meu rosto, limpando minha bochecha com carinho.
Solucei. E apesar de ainda estar sensível a tudo o que vinha acontecendo, ao que descobrira
sobre Nolan e como papai o mandara ficar longe e se preocupara comigo… Me divertia com o
desconserto de Bash quando ele me via chorar e quis apavorá-lo um pouco:
— V-você me deixou sozinha.
O rosto próximo ao meu pareceu assumir uma tristeza e um arrependimento que, em todos
aqueles anos, nunca vira nas feições de Sebastian Wang antes. Estava brincando, eu quis dizer.
Estava tudo bem, porque eu sabia que ele só queria um tempo para pensar no pai. Mas meu
colega de quarto me pegou desprevenida, me puxando contra o peito e me abraçando forte.
Meus olhos se abriram, perplexos.
— Me desculpe. — Suspirou ao passar a mão pelo meu cabelo enquanto a outra me mantinha
contra seu corpo. Aquilo fez o choro que pensei ter acabado voltar com força total.
Eu não sabia o quanto queria ser abraçada por alguém até sentir o calor dele em mim. Bash
suspirou de novo, se desculpando, falando que havia quebrado a regra e eu poderia descontar do
pagamento. Aquilo me arrancou uma risada fungada e emocionada. Apoiei o rosto em seu
ombro, saboreando o cheiro, o perfume dele.
— O que aconteceu? — Sebastian perguntou, baixinho.
— Fui atacada por lobos — brinquei, e soltei uma risada fraca, os olhos ainda úmidos e
embaçados.
— Não devia ter te deixado sozinha. — Beijou o topo da minha cabeça, me fazendo segurar a
respiração. — Devia ter ficado e mandado todo mundo à merda.
Gargalhei enquanto me afastava de seu abraço, sentindo frio de novo, vontade de ficar
aconchegada nele até o dia acabar.
— N-Não foi isso. — tentei sorrir.
Enxuguei os olhos e respirei fundo conforme ajeitava os óculos no rosto outra vez,
confirmando a expressão angustiada e culpada que estampava o lindo rosto de Bash.
— Tudo bem você ter saído… Sei q-que… a conversa sobre o seu pai te abalou. Está tudo
bem.
Ele desviou o olhar.
— Me desculpe.
— Não… — Balancei a cabeça. — Eu… — Suspirei. — Só tive uma conversa estranha com
meu pai. Ele… disse que estava feliz em me ver. Não pensei que escutaria isso dele. — Sebastian
franziu a testa. Funguei. — São lágrimas de alegria e saudade.
— Tem certeza? — insistiu, ajeitando as mechas desgrenhadas da minha franja com tanto
carinho que quis chorar mais. — Não aconteceu nada ruim enquanto estive fora?
Foi um acidente. Era para ter sido você.
— Huh… — murmurei. — Estou bem, não se preocupe.
Bash estudou meu rosto mais um pouco, tentando detectar a mentira. Mesmo depois do
momento com Nolan no corredor, eu não estava mentindo, não completamente. Sim, chorara na
última meia hora, mas também sentia um peso deixar meus ombros.
Meu pai não me odiava. Ele estava feliz em me ver. Isso bastava por ora.
— E… — Abri um sorriso mais convincente, pegando a caixinha preta embrulhada em fita
prateada sobre o travesseiro. — Bem, minha mãe costuma fazer um Amigo Oculto entre os
convidados, e como obviamente não vamos participar, decidi tirar você.
Os olhos castanhos de Sebastian desviaram dos meus para o presente que eu segurava. Como
no lago congelado, pensei que meu colega de quarto recuaria, não gostaria daquele gesto ou
talvez pensasse que eu estava ultrapassando um limite no nosso acordo. Porém, em vez de
recusar, ele abriu um sorriso lindo e maroto.
— Ora, ora… Quais eram as chances? Tirei você também — disse ao ficar de pé, indo até o
canto onde sua mala estava e tirando de lá duas sacolas iguais às da loja que visitamos no dia
anterior.
Meu coração iniciou um ritmo novo, cheio de expectativa. Franzi a testa, observando-o se
aproximar outra vez e se sentar a cama comigo.
— Me dê o meu primeiro — pediu, deixando as sacolas no chão e estendendo a mão.
Sorri e depositei a caixinha em sua palma. Enquanto Sebastian desfazia o nó do laço, esperei
receosa. Mas quando ele a destampou, tirando o que tinha dentro dela com os lábios repuxando
genuinamente, eu soube: ele havia gostado.
— Quando comprou isso? — quis saber, os olhos brilhando para o boneco de neve, como
aquele que Bash construíra na clareira. Porém, esse segurava uma guitarra preta, um gorro
vermelho sobre a cabeça branca.
— Quando fui à cidade com o vovô pela manhã — falei, tomando o globo de sua mão para
sacudi-lo, devolvendo para ele em seguida. Neve começou a cair lá dentro. — Quando coloquei
os olhos nele, soube que era seu.
— Eu adorei. — Ele soltou uma risada alegre ao girar o globo de neve entre os dedos largos.
Por fim, me encarou, um sorriso lindo e sincero emoldurando sua boca. — Obrigado, Tiānshǐ.
— Por nada, calhordinha. — Pisquei, fazendo meu namorado de aluguel rir. Estiquei as mãos.
— Agora o meu.
— O seu… — O sorriso se tornou malicioso enquanto pegava uma das sacolas no chão e me
estendia. — Gostaria que usasse para mim esta noite.
O encarei desconfiada. Me preparei para encontrar alguma fantasia de elfo, talvez uma
lingerie apenas para me provocar, mas quando espiei o que havia lá dentro e notei o tecido
vermelho bordado com rosas, soube exatamente do que se tratava. A diversão e a desconfiança
desapareceram do meu rosto, dando lugar à incredulidade.
Voltei meu olhar para Bash.
— Vi como você olhou para ele na vitrine… — explicou com cautela. — E também vi como
gostou do que viu no espelho quando usou ele…
— Bash, não posso aceitar — falei, com o coração disparado de novo. Ele voltara na loja
aquele dia não pelos suéteres horrorosos… Mas pelo vestido. Por mim.
— Entendo que vivemos em mundo ruim… E sei que esse cretino tirou algo precioso de você
quando te partiu ao meio. — Me encarou no fundo dos olhos, não desviou uma vez sequer. —
Mas… Você é linda, Ames… Por dentro e por fora. E se quer usar um vestido bonito porque
gostou dele, use. Se quer usar um batom vermelho na ceia de Natal, então faça isso… Se não
gosta desses agasalhos com cor de comida estragada, por favor, então me deixe queimá-los.
Soltei uma risada fraca, desviando o olhar para o presente.
— Eu não… — Minha garganta se fechou. — Não posso.
— Esse vestido foi feito para você. Mas se não usar, eu vou.
Gargalhei alto, o empurrando com o ombro.
— Vai rasgar ele com esse seu corpo enorme — retruquei, tentada a pedir que ele
experimentasse mesmo assim. — Mas… — Suspirei quando tirei o vestido de dentro da sacola,
aquela fagulha rebelde em meu peito se acendendo e dançando de alegria. Eu estava sentindo
tanta coisa naquele momento que não sabia realmente o que fazer. Desdobrei a peça. — Ele é tão
lindo…
— Então vista ele esta noite, arrume o cabelo e… Se quiser, peço a Jen que te empreste algum
batom… — ele disse com a voz carregada de ternura, um tom que eu tinha certeza de que Bash
mal se dava conta de estar usando agora. — E se qualquer um aparecer para te falar qualquer
coisa… vai ter de lidar comigo.
Sorri, passando o dedo por uma rosa bordada no vestido.
Eu queria. Queria me arrumar e me sentir linda. Para mim. E uma parte boba de mim queria
fazer isso para Bash também. Queria dançar com ele, rir e comer torta, cantar músicas de Natal a
noite toda, mesmo se fosse muito desafinada…
Mas…
Foi um descuido meu. As pessoas criaram expectativas, nossos pais imediatamente
começaram a pensar no futuro. Não consegui tirar isso deles. E sabia que, mesmo me casando
com ela, ainda poderia ver você… Ter você…
Aquele brilho que perpassou os olhos de Nolan mais cedo… Se ele me visse com aquele
vestido depois de ter me dito aquelas coisas…
Não.
Eu não queria passar por aquilo de novo.
— Não consigo — sussurrei, deixando o vestido cair sobre o colo, as mãos apertando o
tecido. Eu queria, queria muito me sentir linda naquela noite, mas… — Não consigo, Bash.
— Ei… Tudo bem — Ele apoiou a mão sobre a minha no colo. — Você não precisa usar hoje.
Use quando estiver pronta, ok?
Encarei a mão dele. Assenti, mordendo o lábio, odiando ser tão fraca.
Sebastian suspirou e afastou a mão da minha, deixando o globo de neve de lado para pegar a
segunda sacola.
— Eu não queria chegar a esse ponto, mas você não me dá escolha — disse, resignado. —
Vamos para o plano B, então…
Bash tirou de dentro da embalagem um suéter vermelho com estampa natalina, melhorando
meu humor de imediato. Não era feio; era muito fofo até, mas era… exagerado. Bem… bem
natalino.
— Você comprou mesmo um suéter… — Ri.
— Este é seu, querida. — Jogou em mim e pegou um segundo item ali dentro. Sebastian
puxou outro suéter com a mesma estampa, porém preto. — Eu não ia vestir essa coisa horrível
caso você decidisse usar o vestido… Mas já que decidiu não usar, vamos de suéter. Os dois.
— Bem casalzinho — zombei, mesmo não confessando para Bash que havia gostado do
suéter, de verdade.
Ele sorriu, com uma piscadela.
— Bem casalzinho.
Não me arrisquei ficar na sala quando os primeiros convidados começaram a chegar: alguns
vizinhos, outros amigos da cidade que não tinham com quem passar o Natal e… os pais de
Nolan. Se minha própria família tomara partido para o rapaz sorridente e prestativo que jamais
faria algo de ruim para alguém… Bem, os pais dele me odiavam com todas as forças. E não se
conformaram quando me viram descer as escadas mais cedo.
Ele ficou lá na porta, recebendo os convidados como um verdadeiro genro e orgulho dos
Sanchez, com um sorriso caloroso enquanto falava aos vizinhos e amigos para se sentirem em
casa. Como se eu não estivesse ali, como se as pessoas não tivessem aparecido realmente porque
estavam curiosas para saber se a piranha conquistadora tentaria alguma coisa de novo ou se
redimira.
Foi uma tortura assistir.
Apenas segui para o balanço nos fundos da casa enquanto esperava Sebastian se aprontar.
Inventei a desculpa de que precisava falar com Jen porque não estava pronta para vê-lo sem
camisa de novo. Segui para o quarto da minha prima pedindo uma calça jeans emprestada, pois
usar uma das minhas calças cáquis largas, moletons ou saias acabariam com o brilho natalino do
meu mais novo – e favorito – suéter. Depois de me trocar, não esperei por Bash no sótão, ele
ainda estava no banho quando desci.
Então ali estava eu, impulsionando os pés no chão enquanto gangorreava tranquilamente,
observando a noite chegar. Era minha hora favorita do dia, e senti como se tivesse recebido mais
um presente enquanto o céu mudava de cor. Ali, com a música tocando dentro da casa e as luzes
de Natal piscando ao redor dela, não me permiti pensar muito nas pessoas que precisaria ver
mais tarde, apenas no céu e em como aquela paisagem de pinheiros e neve era incrível.
Mesmo em um dia cinza.
— Imaginei que pudesse estar aqui. — Escutei a voz suave e feminina e suspirei. Sabia que
minha paz não duraria muito enquanto estivesse naquela casa.
Virei o rosto para observar Jolie se aproximar de mim, as mãos sob as luvas marsalas de
couro na barriga, uma expressão tranquila no rosto lindo. Minha irmã sempre seria a mulher mais
linda que eu conhecia, mesmo depois de tudo. Cada detalhe de seu rosto parecia certo, delicado,
perfeito. Ela não precisava de maquiagem para destacar sua beleza. O cabelo escuro estava preso
em um coque elegante. Jolie usava um vestido preto justo que, sob o sobretudo bege e o cachecol
vinho, escondia a barriga proeminente e arredondada.
Ela parou ao meu lado no balanço e encarou a paisagem.
— Sempre me perguntava por que você passava tanto tempo neste lugar. — Sorriu um pouco,
parecendo triste e sem força para fingir ser aquela irmã super preocupada e amável. Estávamos
sozinhas, afinal, não tinha necessidade de fingir. — Hoje sei o motivo.
— Sabe? — Franzi a testa, desviando o olhar dela para os pinheiros outra vez.
— Nossos problemas parecem menores com essa imensidão. Do jeito que você é, com certeza
se imaginava como alguma princesa aventureira, correndo por entre as árvores, fugindo da
responsabilidade de se casar com um príncipe que não ama.
Meus lábios se repuxaram um pouco.
— Ou em uma caça ao tesouro — murmurei. — Uma fada minúscula que facilmente poderia
se esconder entre a imensidão da floresta.
Escutei a risada baixa de Jo.
— Com certeza. — Suspirou. — Depois que se mudou, mamãe quis tirar o balanço.
— É claro que sim.
— Vovô não deixou.
Sorri ao apertar o metal frio do relógio de bolso em uma das mãos sob o colo.
— Então ele vem aqui toda tarde e se senta aí, encarando as árvores, o lago do outro lado.
— Por que está me contando essas coisas? — perguntei sem muito humor. Fixei o olhar no
chão, nas botas de neve cinzas, e então nos pés delicados de minha irmã forrados em meia calça
e sapatilhas pretas com pedrinhas douradas.
— Se lembra quando o vovô levava a gente para patinar naquele lago? — disse, se
esquivando da minha pergunta. — Eu sempre caía e não conseguia acompanhar o vovô, então
ficava na beira dele, só observando vocês.
— Reclamando para voltarmos à casa.
— Só porque ficava irritada que você conseguia e eu não — admitiu, finalmente me fazendo
subir os olhos para ela. Jolie ainda encarava a paisagem, os olhos melancólicos, como se vissem
o lago além das árvores e a neve que o cercava em dias de inverno. — Uma vez, voltei lá sozinha
para treinar. Queria que o vovô se orgulhasse de mim também, como parecia se orgulhar de
você. Queria provar que também era boa em patinar… Mas quebrei o braço e nunca mais quis ir
lá.
— Pensei que tivesse quebrado o braço caindo da escada.
Jolie abriu um sorriso largo. Sincero.
— Eu menti. Fiquei envergonhada demais na época.
— Por que está me contando isso, Jolie? — insisti. Ela estava estranha desde cedo. Na
verdade, estava estranha desde o momento da minha chegada.
Na última vez que nos vimos, havia lágrimas e raiva nos olhos da minha irmã. Jolie me dera
um tapa na cara e dissera que eu sentia inveja dela e queria arruinar seu casamento. Não vi
aquela raiva no dia anterior, mas sim alguém se forçando a ser agradável e carinhosa. Até tentou
parecer preocupada quanto a Sebastian, como se se importasse. Pensei ser um teatro, já que Jolie
sempre gostou de ser aquele tipo de moça comportada que não altera a voz, que mantém a calma.
Amada por todo mundo.
Ela acariciou a barriga.
— Fico pensando nessas coisas, sonhando com dois irmãozinhos que brincam, implicam e
compartilham segredos… — Suspirou e mordeu o lábio. O gesto foi tão familiar que identifiquei
o nervosismo em seu rosto. — Também venho aqui, às vezes, e fico nesse balanço pensando em
você.
— Então é um menino? — perguntei debochada, ignorando a última parte.
Jolie me encarou com arrependimento.
— Me desculpe… por não ter te contado. Te ligado nos últimos anos.
Estreitei os olhos, procurando a mentira, o fingimento.
Nada.
Sua irmã tem agido de forma estranha com ele bem antes de descobrir sobre a gravidez.
Vovô dissera naquela manhã, quando falamos sobre Nolan. Você devia conversar com ela. Será
que Jolie tinha descoberto? Sabia que Nolan não queria mesmo se casar com ela? Que ele… Ele
havia me beijado aquele dia? Que as coisas ditas contra mim eram mentiras?
Abri a boca, pronta para levantar e a confrontar, mas minha irmã inspirou e disse primeiro:
— Quero te perguntar uma coisa e preciso que seja sincera comigo.
Franzi o cenho, contendo o riso sarcástico.
— E você vai acreditar em mim? Independentemente do que seja?
Jolie me encarou, estreitou os olhos e me estudou com cuidado.
— Você confia no Sebastian? — Me ignorou de novo, perguntando mais séria, a voz baixa.
— Eu… — Franzi a testa. Não era o que eu estava esperando. — Do nada?
— Responda.
— Sim. Confio.
— E você gosta dele ou aquele beijo na cozinha foi apenas uma atuação?
De repente, eu estava pisando em ovos. Jolie estava me fazendo perguntas… específicas
demais.
— É c-claro que gosto dele. — Tentei relaxar, mas senti as mãos suarem dentro da luva. —
Por que namoraria alguém de quem não gosto?
Minha irmã soltou um riso baixo e tranquilo, levando uma das mãos aos bolsos do sobretudo.
— Então é melhor esconder isso direito antes que mais alguém descubra. — E revelou o papel
pálido e pautado de caderno, aquele em que eu escrevera as regras do contrato do namoro falso
com Bash.
Meu mundo começou desabar, me senti como se estivesse prestes a cair de um precipício de
novo. Jolie contaria para nossa família naquela noite, e todos os convidados saberiam o quão
patética eu era, ao ponto de contratar um namorado para o Natal. Eles ririam de mim. Nolan…
Céus… Era tudo o que ele queria.
Senti dificuldades para respirar e, antes de me ajoelhar diante de Jolie e implorar que não
fizesse nada, ela pegou a mão que segurava o relógio e depositou o contrato de namoro nela.
— Não vou contar para ninguém — prometeu, e eu quis acreditar nela, mas… E se? E se ela
contasse e aquela noite fosse ainda pior do que eu havia imaginado? — É melhor queimar logo
isso, antes que mamãe encontre e finalmente tenha um motivo para expulsar Sebastian desta
casa. Ela o detesta.
Muita coisa vinha acontecendo naquele dia, minha cabeça girava.
— Você… — Engoli em seco, amassando o papel com raiva. — Você mexeu nas minhas
coisas?
Jolie suspirou e voltou a acariciar a barriga, o filho que carregava.
— Mamãe pediu a Nolan que fosse ao sótão pegar os enfeites antigos de Natal… — Nolan?
Então foi ele que encontrou… Minha irmã se apressou: — Eu mesma fui. Ele disse que não gosta
de me ver subindo as escadas ou carregando peso, insistiu, mas não cedi. Quando estava lá, vi
sua mala e fiquei curiosa para saber quantas roupas horripilantes você trouxe de Boston e… —
Ela corou. — Me desculpe. Acabei encontrando.
— Ele sabe? Nolan sabe sobre o contrato? — Fiquei de pé, pensando no sorriso que vira mais
cedo, no convencimento de que Bash e eu não éramos um casal.
— Não. Eu não disse nada. Mesmo com ele insistindo em não achar que você namoraria um
homem tão… grosseiro.
Suspirei de alívio quando encarei o papel na minha mão.
— Por favor — pedi baixinho. — Por favor, não conte a ninguém. — Ergui o olhar para
minha irmã. — É só até amanhã, então vamos embora. Por favor, Jolie…
Eu não tinha muita escolha além de acreditar nela e temer pelo pior o resto da noite.
Ela estendeu o braço para segurar minha mão.
— Não vou contar.
Jolie se afastou, assumindo aquela expressão severa que a fazia se parecer tanto com nossa
mãe.
— Mas quero que me diga a verdade, Amelie. Você confia mesmo nele?
Confiei nele mesmo antes de pegarmos o avião. E depois daqueles dois dias… Depois de tudo
que descobri sobre Bash…
— Sim. Confio.
Ela suspirou, relaxando um pouco, a severidade nos olhos castanhos desaparecendo e dando
lugar à curiosidade.
— Como se conheceram?
— Ele é meu colega de quarto.
— Então… — Ela franziu a testa. — Vocês realmente moram juntos?
— Huh — resmunguei, e guardei o contrato no bolso da calça jeans. — Há cinco anos.
— Uau… — Jolie balançou a cabeça, desacreditada. — E só estão se apaixonando agora?
— Eu… — Engoli em seco, sentindo o rosto esquentar. — Eu não…
— Não negue, Amorinha. — Riu. — Está estampado nessa sua cara.
— Não estou apaixonada por ele.
— Hm… Assim como não está usando um suéter de rena.
— Eu… — Desviei os olhos. Mesmo que não quisesse discutir o assunto com ela, senti o
coração estranhamente se aquecer com aquele momento. Não conseguia me lembrar da última
vez que Jolie e eu conversamos sobre garotos sem ela esbofetear meu rosto e me acusar.
Ela também pareceu se esquecer disso por um instante.
— Mamãe não gosta dele, mas se ele te faz feliz, então não vejo por que não…
— Não somos um casal de verdade — a cortei. Pela primeira vez, me doeu dizer a frase em
voz alta. Tentei não pensar no motivo, na verdade que Jolie alegava estar estampada na minha
cara. Não queria me machucar de novo. — Bash e eu moramos juntos esse tempo todo, mas ele
nunca me viu como uma… pretendente. Ele não gosta de mim assim.
— Então por que o trouxe para passar o Natal com você? — minha irmã perguntou,
parecendo confusa.
— Não queria ficar sozinha.
A diversão conspiratória desapareceu do rosto dela no mesmo segundo, e aquele
arrependimento e melancolia voltaram aos olhos arredondados e castanhos.
— Amy… — começou, rouca. — Nós precisamos convers…
— Amor?
A voz de Nolan ecoou do outro lado, na porta para a cozinha. Nossos olhares se encontraram,
então ele observou a esposa que – eu tinha certeza dessa vez – não estava nada feliz em vê-lo.
— Meus pais querem te ver — ele disse, parecendo intrigado e – eu sabia – cogitando se
aproximar para fazer parte da conversa.
Quando pareceu dar o primeiro passo, porém, Jolie disse em um tom seco:
— Já estou indo.
Estreitei os olhos para ela.
— Certo — Nolan falou, mas sem entrar na cozinha.
Jolie suspirou, mordendo o lábio daquela forma que eu fazia quando queria segurar o choro
ou estava muito incomodada com algo. Ela respirou fundo, encarou a barriga com tristeza e
acariciou o bebê ali como uma mãe pronta para proteger o filho de qualquer um que quisesse
machucá-lo.
— São gêmeos — sussurrou. — Vão ter um ao outro, certo?
Não soube o que responder, não consegui pensar em nada além do olhar irritado que ela
pareceu lançar para o marido. Vovô dissera que ela estava estranha com ele há um tempo…
Minha irmã sabia de algo?
— Jolie?
Ela piscou, afastando aquela tristeza, e ergueu o rosto para mim com um sorriso.
— Amanhã — disse, decidida. — Conversamos amanhã.
Assenti.
Então, minha irmã virou as costas para mim e caminhou até o marido, que a esperava
apreensivo.
Não imaginei que a casa poderia ser pequena para receber todos. Em algumas horas, o lugar
se encheu de conversa e música e pessoas demais para o meu gosto. Antes que metade delas
tivesse chegado, porém, procurei por Amy e a encontrei na sala com Molly e Claude. Minha
colega de quarto não escondeu o alívio de me ver quando me aproximei das duas, abrindo um
lindo sorriso divertido ao me notar.
Não me importei se usava um suéter brega: ver aquele sorriso fez a brincadeira toda valer a
pena. Eu usaria uma fantasia de duende se isso a fizesse sorrir daquela forma.
Amy segurou minha mão a noite toda e, como prometido, não saí do seu lado em momento
algum. E as pessoas comentaram. A música abafou os burburinhos, mas eu sabia que nos
encaravam, comentavam, julgavam.
No entanto, algumas delas disfarçaram bem ou realmente foram sinceras ao se aproximarem
de Amy e a puxarem para um abraço caloroso. Uma em específico me pareceu bem feliz em vê-
la, comentou ser “uma tristeza que ela tivesse sido injustiçada por algo que com certeza fora um
engano”. Um senhor barrigudinho, ao cumprimentar Amelie, só disse: “mesmo que tenha sido
verdade, todo mundo merece uma segunda chance”.
Senti o corpo de Amy retesar nesses momentos. Sempre que alguém se aproximava, eu a
percebia segurar a respiração.
Apesar de insistir que todos a odiavam e não a queriam ali, não consegui um momento a sós
com ela na primeira hora. A prima dela aparecera para reclamar de uma senhora que não parava
de perguntar se Jen estava grávida de novo, e escutamos a mulher resmungar por minutos
extensos sobre ser difícil voltar à forma original depois da primeira gravidez, tudo bem ter uma
barriguinha.
Amy insistiu que ficássemos perto do avô o máximo possível, então passamos um tempo com
o senhor de idade. Ele também reclamou da casa cheia, alegando que metade das pessoas ali não
se davam ao trabalho de aparecer durante o ano e só tinham vindo para economizar dinheiro e
vasilha para lavar.
Claude, aparentemente, foi a atração da noite, e Molly insistira em colocar um laço vermelho
no gato preto. Ele estava claramente procurando uma rota de fuga. Pude jurar que tinha me
encarado do outro lado da sala uma vez, como se dissesse com aqueles olhos esverdeados: “Se
não me tirar daqui, vou fugir para sempre”.
Sorri para o bichano, pensando que ele era livre para partir.
Ele nunca ia embora, de qualquer forma.
Eu o encontrara na rua ainda filhote. Claude tinha a patinha de trás quebrada e precisou de
cuidados especiais. Desde novo, sempre adorei animais e, mesmo que meu pai não gostasse
muito deles, me deixou ter um cachorro uma vez, alguns passarinhos e até uma iguana verde. Os
passarinhos ficaram na casa quando fui expulso, o cachorro morreu de velhice, e a iguana ele
devolvera depois de duas semanas porque tinha medo dela.
Quando me mudei para o apartamento, encontrei o filhote abandonado e machucado, levei ao
veterinário e cuidei dele. Não consegui ficar sem Claude depois disso. E ele pareceu gostar da
companhia também: apesar de ser um preguiçoso folgado, às vezes se deitava em meu colo e
esperava carinho, me mordia e até deixava um rato ou uma barata em algum canto do
apartamento como presente (para desespero de Amy).
Depois de Amelie chegar, ele passou a apreciar mais a presença dela do que a minha. Não
poderia culpá-lo quando recebia mimos da minha colega de quarto e carinhos em dobro. Era
minha família. E Claude era… o nome do pianista favorito do meu pai. Quando o aniversário de
morte dele chegava, eu colocava Clair de Lune para tocar e fingia que ele não me odiara até o
último momento.
— Tão calado… — Amy observou meu rosto, apertando levemente minha mão. — Você está
bem?
Sorri, aproveitando todos os olhares em nós dois – eu tinha certeza de serem mais em mim, no
cabelo meio solto e nas tatuagens do que em Amy – para beijar as costas de sua mão.
— Eu deveria perguntar isso. — Observei seu rosto com cuidado, sondando. Não encontrei
rastros de choro ou tristeza ali, mas ela perdia o olhar em algum ponto aleatório vez ou outra e
mordia o lábio apreensiva, pensando e pensando. — Você está bem?
A boca dela se esticou, seus olhos grandes e redondos se encolhendo em meias-luas.
— Huh — assentiu antes de apoiar a cabeça em meu braço. — Se você não estivesse aqui,
estaria escondida na despensa me empanturrando de torta.
Ri ao deslizar o polegar por sua pele fria.
— E você? Ficou quieto de repente.
— É a fome. — Tentei disfarçar com uma careta. — Quando vão liberar o jantar?
— Daqui a pouco, acho… O pessoal está ficando impaciente também.
Sim. Alguns até conferiam os relógios e reclamavam.
Amy e eu escolhemos o lugar mais quieto do primeiro andar para observarmos a festa,
escorados à parede do pequeno corredor que levava às escadas para o segundo andar. Depois que
a novidade sobre Amy ter voltado – com um novo namorado mal-encarado cheio de tatuagens e
brincos nas orelhas – havia passado, conseguimos um pouco de descanso. Mas eu estava
começando a ficar irritado e com fome, cogitava seriamente pegar Amy e seguir, furtivos, para a
cozinha atrás de comida.
— Deveríamos roubar o peru assado e levar para o sótão? — Me inclinei para questionar em
seu ouvido.
— Você pega ele, e eu, a torta de abóbora — respondeu no mesmo volume, segurando a
risadinha.
— Fiquei sabendo que tem purê de batata também, acha que consegue carregar os dois?
— Deveríamos recrutar alguém?
— Seu avô com certeza toparia.
Amy gargalhou baixinho e, antes que respondesse, a voz rouca e fraca do senhor de idade
disse atrás de mim:
— Mais tarde. — Amy e eu nos viramos, surpresos por não o ter notado passar antes. Ele
segurava o violão de nylon que eu vira no sótão. Se aproximou. — Minha neta comentou que
você é músico.
A encarei com a testa franzida.
— Toca muito bem… E gosta de Elvis. — Ela sorriu, parecendo orgulhosa. — Não é,
querido?
A fitei, divertido.
— Está decidido, então — abuelo resmungou, empurrando o violão para mim e seguindo para
a sala. — Você distrai esses urubus um pouco, e mais tarde roubamos o jantar.
Soltei uma risada e, quando dei o primeiro passo para acompanhá-lo, Amy segurou meu
braço.
— Tem certeza? — perguntou, incerta.
— Se quero me gabar um pouco da minha voz e das minhas habilidades com um violão para
um bando de gente sem graça? — retruquei com um largo sorriso.
— Sim? — Fez careta.
Toquei rapidamente o queixo dela e lhe lancei uma piscadela.
— Aproveite o show, Tiānshǐ.

Os convidados pararam de falar quando o avô de Amy seguiu para a sala e expulsou um deles
da poltrona em frente à árvore de Natal para eu me sentar. E foi divertidíssimo assistir à boca de
Nora se escancarar quando o senhor de idade anunciou que “enquanto minha filha faz hora para
servir a comida, vamos escutar o namorado da minha neta tocar”.
Me acomodei na poltrona, sentando na beirada dela enquanto afinava rapidamente o violão –
um simples, com madeira desgastada, mas com as cordas de nylon boas o suficiente para fazer
som. Ao mesmo tempo, sentia os olhares dos curiosos em mim. As pessoas espalhadas pela casa
começaram a se amontoar na sala com as taças nas mãos, a pequena Molly empurrou todos eles
com o pobre Claude nos braços para se sentar diante de mim, animada.
Minha pequena fã.
Sorri para ela, tirando uma paleta da carteira antes de começar.
— Algum pedido especial? — Ergui a sobrancelha para vovô, que se sentou no sofá do outro
lado.
— Disse que gosta de Elvis… — murmurou com um sorrisinho. — Me deixe ver o que sabe
fazer.
Assenti.
Ergui os olhos para a sala, procurando Amy. Ela me encarou do início do corredor, com uma
expectativa que não havia visto em seu rosto antes. Se a conhecesse bem, segurava a respiração,
como se fosse a pessoa a se apresentar, e não a espectadora.
Pisquei para ela de novo, e algumas cabeças se viraram naquela direção.
Então, comecei.
Guittar Man foi uma das primeiras músicas que aprendi a tocar em um violão, ainda era um
pirralho quando ganhei o primeiro instrumento de nǎinai. Apesar de meu pai preferir músicas
clássicas e pouco barulho, nunca me impediu de aprender o que eu quisesse.
— Well, I quit my job down at the car wash and left my mama a goodbye note by sundown, I'd
left Kingston with my guitar under my coat…[12] — comecei a cantar, arrancando alguns olhares
surpresos, mas não me concentrei muito neles. Deixei meus dedos facilmente seguirem os
acordes, como se aquilo fosse algo tão simples quanto respirar.
E era.
Depois de ser expulso de casa, abracei a música para não desmoronar. Antes era só uma coisa
que eu fazia para me divertir, um hobby. Hoje, era algo sem o qual eu não poderia viver. Mesmo
que cantar no Green’s não tivesse feito parte do plano quando me formei, gostava de sentar
naquele banquinho sob a parca luz do palco e cantar para as pessoas que entravam e saíam a
noite toda.
— … Hopin' I could make myself a dollar makin' music on my guitar…[13]
Notei quando vovô bateu a mão enrugada sobre o braço do sofá, acompanhando o ritmo. Os
olhos dele brilharam para o violão, minha mão direita se movendo rapidamente, sem erro, sem
hesitação.
Aquele olhar de quem apreciava uma boa música.
Meus lábios se esticaram, e encontrei os olhos de Amy outra vez. Eles se encolheram em um
sorriso cúmplice, como se soubesse que a parte a seguir era minha favorita.
— So I took my guitar and I sat in, I showed 'em what a band would sound like with a
swingin' little guitar man… “Show 'em, son”:[14] — E o solo animado no violão começou, e o
que antes era um burburinho sobre o namorado de Amy e “o que ele está fazendo com ela?”, foi
substituído por um ou outro cantando, alguns batendo palmas para fazer parte da música.
E mesmo que aquela não fosse minha casa, mesmo que não conhecesse aquelas pessoas,
mesmo querendo mandar algumas à merda pelo que diziam sobre Amy, senti um certo tipo de
emoção me tomar quando observei minha namorada de mentira me olhar de longe, a plateia
admirada ao redor de uma árvore de Natal, em uma casa que, sem as fofocas, sem os
julgamentos, seria um lugar quente e aconchegante.
Uma família.
As pessoas bateram palmas quando terminei, e o senhor de idade me olhou satisfeito,
assentindo com a cabeça como se dissesse “bom trabalho”. E era idiota, mas algo antigo e
esquecido se aqueceu em meu peito com aquele gesto. O avô de Amy fez um sinal para mim,
para tocar mais uma.
Não precisei de insistência; eu adorava aquilo, e parecia fazer uma era desde que pegara em
um violão pela última vez.
Então, toquei.
Ver os lábios de Amy se movendo, me acompanhando enquanto cantava Baby, what do you
want me to do fez aquele parasita se alimentar mais, provocar um sentimento estranho em meu
peito. Orgulho por poder chamá-la de minha naquela noite. Desejo por que agora aqueles óculos
não me protegiam mais dos olhos brilhantes e lindos, do rosto angelical e da boca macia e
perfeita. Receio, porque eu sabia ser esse justamente o sintoma de algo que prometera não sentir
por qualquer mulher, por Amy.
Eu queria beijá-la de novo, e fiquei irritado por notar que ela evitava propositalmente as
portas com os viscos. Mais cedo, ela me puxara e trocara a rota apenas para eu não ter aquela
desculpa para trazê-la contra o corpo, na frente de todos aqueles convidados.
E embora tivesse escolhido não usar o vestido naquela noite, Amy soltara o cabelo pela
primeira vez, ondas castanhas caindo sobre os ombros, emoldurando o rosto. Ela não estava com
uma de suas calças horrorosas, e sim uma jeans escura. Mesmo o suéter vermelho que dei para
ela pareceu bonito. E os lábios… Não estavam pintados com o batom vermelho que ela gostava e
queria tanto usar de novo, mas havia cor neles, talvez tivesse pedido algum emprestado para Jen.
Eu queria beijar aquela boca antes de provar, e agora que havia experimentado, não conseguia
pensar em outra coisa.
— Mais uma! — Molly pediu animada ao acariciar a pelagem preta do animal entediado em
seu colo.
Claude gostava dela. Caso contrário, teria brigado para sair e ir se esconder em algum outro
lugar da casa.
Sorri para a pequena antes de erguer os olhos para minha colega de quarto outra vez, e as íris
castanhas estavam fixas em mim, como se apenas eu estivesse naquela sala, como se me quisesse
também. Não pensei muito na próxima escolha, nem se significava algo. Dedilhei a melodia
seguinte, minha versão acústica para aquela música que fora apenas letra para mim até aquele
momento:
— I'll have a blue Christmas without you… I'll be so blue just thinkin' about you… (Vou ter
um Natal triste sem você… Vou ficar tão triste apenas pensando sobre você…) — Cantei
olhando fixamente para ela. Amy não desviou o olhar. — Decorations of red on a green
Christmas tree… Won't be the same, dear, if you're not here with me… (Decorações em
vermelho numa árvore de Natal verde… Não serão a mesma coisa, querida, se você não estiver
aqui comigo…)
Era estranho, muito estranho como ela, a garota reservada e ranzinza às madrugadas, poderia
ter se revelado alguém tão sensível, inteligente e de uma risada encantadora em apenas dois dias.
Era fato que as coisas entre a gente não seriam as mesmas quando voltássemos para casa. Óbvio
que eu não conseguiria tratá-la com o mesmo desdém de antes, apenas falando com ela quando
necessário, brigando sobre a música alta às três da manhã, discutindo sobre a conta de luz e
internet no fim do mês…
Amy sabia muito sobre mim agora para voltarmos a ser apenas dois estranhos em um
apartamento. Eu a conhecia muito mais agora para fingir não me importar depois. Seria perigoso,
e aquela última regra sobre não se apaixonar não se aplicaria mais apenas àquela viagem. Seria
um risco que eu correria todo dia quando a visse pela manhã, quando esbarrasse com ela pela
noite.
E mesmo assim… Apenas me imaginar dividindo aquele cubículo com outra pessoa me
deixava inquieto. Eu sequer conseguiria levar outra mulher para a cama sem pensar naquela que
estaria escutando no outro quarto?
— Decorations of red on a green Christmas tree… Won't be the same, Angel, if you're not
stay with me… (Decorações em vermelho numa árvore de Natal verde… Não serão a mesma
coisa, Anjo, se você não ficar comigo…)
Merda.
Mas que grande, merda.
Droga, Amy…
Ela engoliu em seco, e as pessoas na sala aplaudiram outra vez. Antes que pudessem pedir
mais uma música, Nora se apressou em avisar sobre a comida já ter sido servida na sala de jantar,
fazendo os convidados se dispersarem.
Mas eu continuei ali.
E Amy também não saiu do lugar. Esperou que a sala esvaziasse para se aproximar, tomou o
violão da minha mão para deixá-lo num canto. Ela se voltou para mim, estendendo a mão.
— Vamos roubar a sobremesa antes que seja tarde demais — falou, e em vez de aceitar sua
mão para me levantar, a segurei e a puxei para meu colo.
Amy arregalou os olhos, imediatamente conferindo se tínhamos plateia.
— O que está fazendo?! — cochichou com uma risada.
— Aproveitando o tempo com minha namorada, posso?
Ela revirou os olhos, passando um braço sobre meus ombros enquanto nos acomodava na
poltrona. Não reclamou quando apoiei uma mão em seu joelho, as pernas dobradas sobre meu
colo.
— Abuelo gosta de você — disse, e senti dedos brincarem com as mechas do meu cabelo na
nuca.
Não a afastei. Mas me esforcei para tomar as rédeas do sentimento que o toque provocou.
— É um homem sábio.
Amy sorriu, mas logo sua expressão divertida se desfez e ela me olhou séria, preocupada.
Aproveitou que todos se reuniam na sala de jantar a fim de encher seus pratos para sussurrar:
— Jolie sabe sobre nós dois. — Então era isso que a fizera ficar meio aérea na última hora?
Franzi o cenho.
— Como tem tanta certeza?
— Ela me entregou o contrato mais cedo. Mexeu nas minhas coisas enquanto estávamos no
lago. — Suspirou.
— Não acredito que você trouxe aquele papel na mala, Amelie! — exclamei.
Ela se retraiu em meus braços, como uma criança repreendida.
— Fiquei com medo de você desistir no meio do caminho… — resmungou num muxoxo,
desviando os olhos para o suéter em meu peito. Ela seguiu o desenho com a ponta do dedo,
apertou o nariz da rena enquanto completava baixinho: — Se estivesse com o contrato, onde
você assinou…
— Eu viraria as costas e voltaria para casa da mesma forma. — Bufei. — Esse contrato foi só
uma formalidade. Não me impediria de desistir se eu quisesse.
Ela fez um bico contrariado, ainda sem me encarar, com vergonha.
— E se Jolie contar para todo mundo na mesa agora? — questionei, erguendo uma
sobrancelha.
Amy virou o rosto sobre ombro para conferir o cômodo cheio de gente, e risada, e conversa.
— Não acho que ela vá contar. — Se voltou para mim. — Se quisesse mesmo fazer isso, teria
entregado o papel para nossa mãe, e não para mim.
— Tem alguma coisa estranha nela — resmunguei.
— Huh — Amy concordou, e me fez observá-la com mais atenção.
— É isso que está te incomodando?
— Não. — Ela forçou um sorriso sem graça. — Não é nada. Estou legal. Não quer jantar?
— Amy…
— O quê?
Estreitei os olhos, observando o corredor para a sala de jantar. Umas trinta pessoas no
máximo, a maioria delas fizera questão de nos cumprimentar. Outra parte não se aproximou, mas
nenhum suspeito de ser o cara que Amy mencionara.
Minha colega de quarto o evitaria ao máximo, e eu estive ocupado demais fingindo ser o bom
namorado para prestar atenção nos outros. Se ele havia chegado, eu não tinha reparado. As
pessoas eram descaradas, mas não a ponto de falar sobre o assunto em voz alta para que eu
ouvisse.
— O canalha que te magoou — comecei, sentindo o corpo dela retesar. Amelie segurou a
respiração. — Ele está aqui?
Pude contemplar em seus olhos: o terror de precisar finalmente se abrir. Ainda não era hora
para aquela conversa. Talvez quando estivéssemos completamente sozinhos, mas isso eu tinha
que saber.
Amy engoliu em seco, mordendo o lábio daquele jeito nervoso, cogitando se mentia para
continuarmos bem, com medo de que eu explodisse caso o visse provavelmente. Mas não pedi
para ela apontar ninguém, apenas me falar se o cretino estava sob o mesmo teto que nós. Ela
escolheu dizer a verdade.
— Huh… — assentiu. — Ele está aqui.
Meneei a cabeça, sentindo o sangue ferver um pouco, a vontade de levantar para procurá-lo e
ter uma conversinha. E ela leu isso nos meus olhos.
— Não me deixe sozinha. — Sua voz saiu rouca, suplicante.
— Não vou. — Sorri, apertando levemente seu joelho. — Na verdade, só estava pensando
que, se ele está aqui, é o momento perfeito para você me usar, não acha?
Amy franziu a testa.
— O quê?
Tentei sufocar as vozes em minha cabeça, o coração acelerado por tê-la tão perto, em meu
colo, o cheiro doce e suave do perfume que usava… a raiva por saber que um idiota a tocara um
dia e a ferira, não a valorizara… Fingi um sorriso galanteador e tranquilo enquanto levava a mão
até uma mecha castanha e a contornava atrás da orelha de Amy.
— Está no contrato… — murmurei. — Um beijo por dia.
O peito dela começou a subir e descer com um pouco mais de velocidade, a mão se fechou
sobre meu suéter.
— Já me beijou hoje, lembra? Um show e tanto.
— Aquele foi um beijo de ontem, atrasado, estou falando do beijo que preciso te dar hoje.
— Não tem ninguém aqui.
— Mas eles vão voltar daqui a pouco… — sussurrei ao me inclinar para mais perto, meu
rosto a centímetros do seu. — E vão nos ver juntos.
— Já vai ser o suficiente só nos verem aqui… — respondeu, fechando os olhos.
— Não é o bastante para mim… Quero que me vejam beijar você. — Rocei a ponta do nariz
em sua bochecha macia, desci para o maxilar delicado. — Quero que ele me veja beijar você.
— Bash — disse baixinho, me segurando mais forte, aqueles dedos que antes brincavam com
meu cabelo agora se entrelaçando às mechas da minha nuca.
— Eu quero beijar você. Não… — Beijei seu queixo. — Eu preciso beijar você.
Ela suspirou, e antes que eu pudesse depositar meus lábios em sua bochecha morna para
provocá-la mais um pouco, Amy me puxou para perto e me beijou.
As rédeas que eu tentei segurar se soltaram, aquela sala pareceu deixar de existir por alguns
segundos. Não havia ceia de Natal ou qualquer pessoa, apenas os lábios doces e urgentes de
Amelie nos meus.
E ela me beijou como se também precisasse daquilo. De mim.
Envolvi meus braços nela, a colando contra o corpo, e não me importava se seríamos vistos.
Não foi uma desculpa dessa vez. Me sentia tonto e febril, aquele suéter pareceu quente demais, e
tudo em que eu conseguia pensar era por que demorei cinco drogas de anos para sentir aquela
boca contra a minha.
Cinco anos para tê-la comigo daquela forma.
E pareceu mais certo do que com qualquer outra pessoa, porque aquela não era qualquer
mulher em meu colo, não era qualquer boca beijando a minha, era ela. Eu a conhecia e a
admirava, ela me fizera rir e sentir coisas… Aquele não foi um beijo qualquer.
E se eu realmente estivesse sem controle total sobre meu corpo e mente, teria a carregado
naquele mesmo instante para as escadas, subido com ela para o sótão… Céus, as coisas que eu
queria fazer com ela, fazê-la sentir…
Mas eu não deveria. Não quando ela sofrera tanto.
Não quando ainda estava ferida e carente, apenas precisando de conforto.
Ela não me queria realmente. Queria alguém que cuidasse dela e a desejasse da maneira certa.
Mas era tão difícil parar. Os lábios de Amy se encaixavam tão bem nos meus, e sua língua
provocava a minha, numa dança perfeita…
Ela não era tão tímida assim, era? Sabia o que estava fazendo.
— Bash… — sussurrou, se afastando para recuperar o ar e me olhando de uma forma que
definitivamente não era um pedido para eu parar.
Desci um pouco os lábios para seu maxilar, então os percorri com beijos demorados até o
pescoço. E antes de eu realmente perder o controle e carregá-la para longe, percebi que tínhamos,
sim, uma plateia, e ele nos observava do corredor.
Sem parar de beijar Amy, ergui meus olhos naquela direção.
Nolan nos encarava com uma expressão fria. Os olhos fervilhavam ódio, e um sentimento
estava mais estampado em seu rosto do que toda a tensão em seu corpo: ciúme.
Não… Ciúme não parecia ser a palavra certa.
Ele me olhava como se eu tivesse roubado um brinquedo precioso.
Um olhar obsessivo e violento.
E naquele segundo, eu soube.
Me afastei de Amy, sentindo a cabeça girar.
— Bash?
“E você tem razão, é um cara. Um cara que vai rir de mim e fazer coisa pior quando me vir
chegar sozinha.”
“Ele é muito querido por todo mundo na cidade, a família dele é muito amiga da minha. Eu
era só a filha do padeiro, muito tímida e quieta, um ratinho de biblioteca. Quando tudo
aconteceu, ficou difícil defender outra pessoa que não ele. Meus pais o tinham mais como filho.”
“É o seu ex?”
“Podemos dizer que sim? O que aconteceu entre a gente foi… complicado. Para dizer o
mínimo. Mas basicamente? Minha família e a cidade toda ficaram do lado dele, defenderam ele,
escolheram ele.”
Minha cabeça latejou, como se aqueles últimos dias voltassem com força total, mas com mais
clareza agora. Tirei a venda que me impedia de ver a verdade debaixo do meu nariz… o tempo
todo.
Amy e Nolan…
— Bash? — Ela tocou meu rosto, preocupada. — Você está bem?
Segurei sua mão, afastando o toque, a assustando um pouco quando a soltei. Sua respiração
saía rápida, os olhos me observavam com um novo receio, como se tivesse cometido um grave
erro.
Tentei controlar minhas feições, a raiva e a confusão que me tomavam a mente.
— Preciso tomar um ar.
Decepção e percepção cintilaram nas íris claras, e ela se mexeu em meu colo, se levantando e
se afastando um passo da poltrona.
— Claro… — murmurou ao engolir em seco. Ao abraçar o próprio corpo.
O gesto me quebrou por dentro, mas eu precisava… Não conseguia pensar direito. Precisava
pensar.
— Só me dê um minuto, tudo bem? — Fiquei de pé e conferi o corredor para ver se Nolan
ainda estava ali.
Não estava.
— Eu… Eu fiz algo errado? — Amy franziu a testa.
“Eu fiquei como a vilã da história. E talvez eu seja.”
O que Amy queria dizer com aquilo? O que ela e Nolan…
Fechei os olhos por um segundo, respirando fundo.
— Já volto.
A deixei sozinha na sala. Sabia que, se virasse o rosto para vê-la de novo, ficaria mais
confuso. Precisava pensar. Colocar o que sabia em ordem.
Céus…
Tudo fazia sentido.
Porque a família se ressentia e se decepcionara tanto, e Jolie… Ela tinha um motivo para
odiar a irmã. Era o marido dela!
Eu me sentia um idiota.
Burro.
Um burro idiota completo.
Fui para a cozinha e segui para a porta que levava até os fundos, até o balanço na árvore. Era
com certeza o lugar mais reservado da casa, pois todos ainda se amontoavam em conversa e
comida na sala de jantar.
“Ele disse que eu fazia para provocar. Quando me arrumava, quando colocava roupas
bonitas e o batom vermelho que eu adorava… Ele disse que eu fazia para provocá-lo.”
Senti meu estômago revirar, fiquei grato por não ter jantado ainda.
Não tinha mais apetite algum, na verdade.
Aquela mancha escura em meu peito me levava a questionar Amelie de uma forma que jamais
questionaria, me fez pensar na madrasta que, em uma noite de descuido meu, havia entrado no
quarto e me tocado sem permissão. Ela me procurava sempre, tentava me tocar sempre…
Amy não era aquele tipo de pessoa.
Não conseguia imaginá-la…
Inspirei, fechando a porta com força e sendo recebido por ar gélido e uma noite clara sem
estrelas.
Nolan estava ali também, em pé, encarando a paisagem noturna.
Trinquei os dentes.
“Você só é… diferente dos caras que ela costumava namorar, só isso.” Ele dissera naquela
manhã, e me estudara minuciosamente, me sondara para saber. “Improvável. Vocês dois.”
O rosto de Nolan se virou na minha direção enquanto me aproximava devagar, meu coração
batendo tão rápido e violento no peito que pulsava nos ouvidos.
“Não pode esperar chegar nesta casa de repente e pensar que não questionaríamos se você é
ou não um bom partido para Amelie.”
Por isso Nolan me parecera curioso demais sobre a cunhada, por isso insistira em vir mais
cedo ou ficar para o jantar no dia anterior.
Ele queria ver Amy.
Queria ficar sozinho com ela.
— Essas ceias de Natal são tão chatas quanto parecem, não é? — ele disse, controlando o
temperamento. Mas se precisara sair da casa para relaxar é porque estava realmente incomodado
com minha presença. Com o beijo que dei em Amy na sala.
E na cozinha mais cedo. Nolan tinha visto aquele também.
— É você, então. — Minha voz saiu grave e rouca. — O cara que ela costumava namorar.
Nolan soltou uma risada debochada.
— Ela te contou, você ouviu ou enfim descobriu por conta própria? — Franziu a testa,
levando uma taça de vinho aos lábios.
“Vai me dizer que não pensou em socar a cara dele nos últimos minutos?” Jen me perguntara
depois de me ver na cozinha com Nolan.
Ela sabia.
Estava mais do que na cara, e eu simplesmente descartei a opção.
— Então… — Clareei a garganta, abrindo e fechando os punhos ao lado do corpo. — Sou um
bom pretendente para sua cunhada?
Ele me encarou sério e estreitou os olhos azuis.
— Você só chegou à conclusão do que fomos um para o outro, ou sabe da verdade completa,
Sr. Wang? — Nolan franziu a testa, divertido com minha irritação. — Posso fazer as honras, ou
sua namorada te contou o que fez comigo?
“Ele machucou você?”
Amy hesitara quando fiz a pergunta, sequer conseguira me encarar nos olhos. Talvez eu
estivesse errado, talvez fosse o que todos pensavam ter acontecido. Ela mesma vivia se culpando
o tempo todo, deixava que as pessoas a apedrejassem… Talvez ela tivesse feito algo.
Mas eu ouviria da boca dela.
Nolan riu de novo.
— Você sabe ou não?
— Não… — Flexionei os dedos outra vez. — Mas vou perguntar mais tarde.
Fechei a mão e levei o punho ao rosto dele.
Me joguei na poltrona.
Fiquei desnorteada nos primeiros segundos e mal consegui me mexer depois que Bash
simplesmente me deixou sozinha ali. Depois de ter dito aquelas coisas, ter me beijado daquela
forma.
De repente, a sala pareceu tão fria.
Ele… havia escutado algo?
Meu coração bateu ensurdecedor no peito, machucado, com medo de que algo ruim tivesse
acontecido, que alguém tivesse dito…
Mas não faria sentido Sebastian me puxar para seu colo depois, me beijar tão
apaixonadamente para só então se afastar.
Fechei os olhos com força, tirando os óculos por um segundo para massagear a têmpora e me
acalmar. Ainda conseguia sentir a pressão dos lábios de Bash contra os meus, e ele… fazia
aquilo tão bem que quase me derreti completamente em seu colo, quase pedi para esquecer a
coisa toda de fingir a um bando de gente e subirmos. Desejei ter ele me mostrando os truques
que faziam aquelas mulheres delirarem no nosso apartamento.
Naqueles segundos em que o beijei e senti suas mãos me puxarem contra o corpo… desejei
ser uma das garotas que aparecia no Green’s, para a qual ele pagava um drink e a levava para
casa. Não pensei em absolutamente nada, só no quanto queria que ele me beijasse, me tocasse…
Ele. Eu queria Sebastian todo para mim.
Mas então me afastei. Ele viu algo, pensou em algo, e simplesmente mudou. O calor em seus
olhos se transformou em clareza e frieza, e mesmo que Bash tenha tentado disfarçar…
Minha culpa. Era minha culpa.
Mordi o lábio, sentindo um nó sufocante na garganta.
Algumas pessoas, depois de se servirem, voltaram com seus pratos para a sala, sentaram no
sofá e conversaram. Não coloquei os óculos para saber se olhavam para mim, se conseguiam
perceber o medo e o desejo no meu rosto, se algumas delas tinham visto de relance o que havia
acontecido na sala.
Os sons voltaram como se naquele tempo todo com Sebastian eu estivesse escondida em uma
bolha protetora e aconchegante, e agora tudo o que restava era… frio, pessoas e vozes.
— Você não vai jantar, querida? — Sra. Costello, nossa vizinha do lado, de uns setenta e
poucos anos, se aproximou com um prato na mão. Ela fora uma das pouquíssimas pessoas que
disseram estar feliz em me ver de novo, e a única a me abraçar apertado e dizer que eu ainda
carregava um lindo sorriso no rosto “apesar de tudo”.
— Ah, oi, Sra. Costello. — Clareei a garganta, ajeitando os óculos na ponte do nariz e ficando
de pé. — Não… não estou com fome. Aqui, pode ficar no meu lugar.
— Oh… Muito obrigada. — A ajudei com o prato, esperei ela se acomodar na poltrona para
devolver sua comida. A casa estava cheia, e nunca havia lugar para todos na mesa. Então,
naquela época do ano, ao menos na residência dos Sanchez, era comum ver pessoas espalhadas
pela casa com um prato de comida na mão. — Ah, você continua um anjo…
Engoli em seco e afastei o elogio, quem ele me fazia lembrar.
Eu deveria ficar aqui ou ir atrás de Sebastian?
— Onde está seu namorado, querida? — a senhora perguntou, ecoando meus pensamentos.
— Precisou atender uma ligação urgente — menti, porque “ele parou de me beijar de repente
e me deixou sozinha na sala sem uma explicação” não era muito melhor.
— Ah… — Suspirou, se concentrando por um momento em seu prato de comida. Apenas
duas tiras de carne e muito purê de batata. — Ele é tão bonito. Como vocês, jovens, chamam isso
hoje em dia? Pedaço de mau caminho? — Ergueu os olhos cinzentos para mim e levantou as
sobrancelhas algumas vezes. — Ele com certeza deve ser a estrada toda de perdição, não é?
Consegui soltar uma risada fraca.
— Com certeza — assenti, correndo os olhos entre a cozinha e a copa com a esperança de
encontrá-lo. No entanto, se meu receio estivesse certo, Bash não voltaria tão cedo.
Esperava que não.
Esperava que ele só quisesse se controlar e não ultrapassar a linha, não me evitar porque me
odiava e pensava o pior de mim.
— …tocando esse violão como o próprio Presley… Nossa… — Ela soltou uma risadinha. —
E a forma como olhou para você cantando aquela última música, e você olhando para ele… —
Suspirou. — Tão apaixonados. Me fez pensar na minha adolescência…
Apaixonados.
Talvez Sebastian só estivesse mesmo colocando aquele limite de novo por causa da coisa toda
de não se apaixonar. Talvez soubesse que meu coração batia rápido no peito porque já estava
quebrando aquela regra. E eu entendia que era só questão de tempo até admitir para mim mesma
estar me apaixonando por Sebastian, mas quis entrar na brincadeira, quis me render à fantasia e
fingir que não sairia machucada depois.
No entanto, a forma como ele me olhou… A maneira como afastou minha mão do seu rosto
como se meu toque o queimasse…
— Não fale com as paredes, Costello. — A voz rouca e seca de vovô me despertou do
devaneio. Ele estava do meu lado com dois pratos de comida na mão. — Ela não está escutando
seu desabafo de velhice.
Sra. Costello me encarou desconfiada. Dei à ela um sorriso sem graça.
— Ora, esse seu avô fica mais rabugento a cada Natal.
— Estou morrendo, não ligo para isso. — Abuelo bufou e, antes que eu pudesse repreendê-lo
por dizer tal coisa, varreu a sala com os olhos. — Onde está aquele garoto cabeludo?
Consegui rir diante do apelido e do tom, ainda sem forças para fingir que estava tudo bem,
mas tentando mesmo assim:
— Precisou sair.
— Ele não queria roubar o peru? — Vovô me estendeu um prato. — Como ele pode te deixar
sozinha depois de te lascar um beijo daqueles?
Arregalei os olhos.
— Vô! — Minhas bochechas queimaram, e escutei a risada cúmplice da Sra. Costello.
— Não estou cego ainda, Amelie — disse, deixando alguns grãos de arroz caírem sobre o
pulôver verde-escuro ao levar o garfo à boca. — Dá para ver muita coisa da sala de jantar.
— V-vocês viram?
— Eu vi — a senhora de idade cochichou. — Na verdade, a maioria parou para se amontoar
na mesa e olhar.
Meu coração pesou.
Ah, não…
— Aquele idiota também viu — vovô resmungou com a boca cheia. — Espero que saiba o
lugar dele agora.
— Nolan? — Me virei completamente para ele, sem querer deixando comida cair no tapete.
— Nolan viu?
— Huh… Eu o vi sair todo emburrado da casa.
E Bash também havia saído…
—Tia Amyyy! — Molly saiu correndo da cozinha para a sala. Claude não estava mais com ela.
Não consegui pensar em muita coisa ou escutá-la direito, apesar de a menina gritar para qualquer
um ouvir. Meu coração batia rápido e alto contra os ouvidos, mas quando ela disse o nome, tudo
desabou: — O tio Bash está batendo no tio Nolan lá fora!
Abuelo soltou uma risada.
— Já não era hora…
As pessoas que ouviram Molly no outro cômodo arfaram, se apressando imediatamente para
ir ver.
Mas eu não consegui me mexer.
Estava acontecendo…
Bash sabia.
E agora minha fantasia de Natal estava prestes a acabar.
Não me importei em conferir quem era quando a porta dos fundos se abriu, já era tarde
demais no momento em que as pessoas começaram a se amontoar para ver a briga. Alguns
apenas gritavam para pararmos, mas não ousavam se mover e impedir.
Não consegui controlar minha raiva quando Nolan começou a revidar com o mesmo ódio e
me provocou com risadinhas, perguntando se era aquilo o que eu sabia fazer, se não conseguia
bater mais forte.
Eu bati.
Depois de jogar o corpo do cretino na neve, fiquei sobre ele, segurei o colarinho de seu suéter
e espanquei o rosto como nunca antes havia batido em alguém na vida. As coisas que ele dissera
sobre Amy no último minuto, quando ninguém mais estava olhando…

— Ela só está se fazendo de santa enquanto está aqui, ou usa aquelas roupas ridículas
quando estão sozinhos também? — Nolan perguntou, rindo e cuspindo o sangue no chão quando
o acertei da terceira vez. — Sabe, quando Amy e eu estávamos juntos, não havia nada para
cobri-la. Aquele corpo já me pertenceu uma vez. E… Céus! Os sons que ela faz…

Grunhi, batendo com mais força. Senti o sangue dele e o meu grudarem nas dobras dos dedos
doloridos.
— Pare com isso! — alguém gritou.
— Sebastian, solte!
— Você vai matar ele! Pare!
Eu o mataria mesmo.
E sim, poderia estar fervendo por dentro pensando que ele a tivera em algum momento e
aquele ciúme irracional me corroía, porque eu acreditava nas palavras dele, porque Amy me
confirmara noites atrás sobre os dois terem namorado um dia, mas naquele momento… Não
consegui pensar em lógica, apenas no sentimento que me destruía por dentro: o sentimento de
alguém traído e abandonado pelo pai, de alguém que passara os últimos anos se corroendo de
ódio porque fora acusado injustamente de algo. De um idiota provavelmente apaixonado que,
sem querer, cedera o coração para uma pessoa igual à madrasta...
Não.
Eu não queria acreditar.
Amy não era aquele tipo de pessoa.
Grunhi, ignorando a dor na mão enquanto fazia o rosto de Nolan sangrar. Amy não queria que
eu fosse até aquele lugar e fingisse ser seu namorado apenas para não se sentir isolada da família.
Ela não queria ter a chance de ficar sozinha com ele.
E quando pensei nela sendo tocada por aquele verme, quando a imaginei…
— Pare com isso! — outra voz gritou distante, abafada, como se estivessem dentro da água, e
eu, fora.
E se ela tivesse mesmo seduzido ele? E se, cinco anos atrás, inconformada com o casamento
da irmã com o amado, Amy tenha se deixado levar e tentado algo escondido da família? E se ele
recusou? Mas e se não? E se ela tivesse procurado evitá-lo, mas Nolan a tivesse pressionado? E
se em encontros de família como aquele Nolan aproveitasse momentos nos quais Amy estivesse
sozinha para tocá-la? Para tentar algo?
Senti um gosto amargo e metálico descer queimando por minha garganta, imagens de Nolan
passando a mão pelo corpo de Amy sem a permissão dela pintaram minha mente, a preencheram
com um terror de imaginá-la adormecida em seu quarto, e o desgraçado entrando
sorrateiramente… Seria tão fácil! As pessoas daquela casa confiavam nele, seria fácil demais
entrar no quarto de Amy e tocá-la.
Pontos pretos embaçaram minha visão, e eu já não tinha mais controle dos sentimentos, dos
pensamentos ou dos desejos. Apenas vi o sangue preencher cada ponto do rosto de Nolan,
sentindo bile subir pela garganta, imaginando o pior.
Sempre o pior.
E Amy…
— Sebastian!
Parei, ofegante, o braço esticado pronto para mais um golpe no homem sob mim. Ele mal
conseguia se mexer ou abrir os olhos.
Não me importei se estava morto.
Senti mãos delicadas segurarem meu braço, e de repente ela estava ali, diante de mim, com os
olhos grandes e arredondados, lindos e assustados. Ela segurou meu rosto com ambas as mãos.
— Já chega.
Trinquei os dentes, me esforçando para ouvi-la, para controlar a turbulência de emoções em
meu peito dolorido e sufocado.
— Por favor… — Amy pediu, trêmula. — Chega.
Escutamos a risada fraca e engasgada e, mesmo sob mim, mesmo imobilizado pelo meu
corpo, uma das minhas mãos ainda segurando o colarinho de sua roupa, Nolan abriu a boca de
merda para falar:
— Me bateu porque finalmente descobriu a verdade sobre ela? — perguntou ao iniciar uma
crise de tosse. Então, tombou a cabeça para encarar Amy. — Você também seduziu ele, não é?
Mas fica aí agindo como se fosse uma boa garota…
Trinquei os dentes, fechando a mão machucada em punho outra vez, pronto para silenciá-lo.
Uma voz grave me impediu.
— Já chega! — Sr. Sanchez passou pelas pessoas amontoadas ao redor, se aproximando. —
Parem, vocês dois. Sebastian, solte ele.
— Não, sogro… Deixe que ele explique para todo mundo porque decidiu me bater só agora,
já que teve o dia todo para fazer isso. — Nolan exibiu um sorriso vermelho para mim.
Grunhi.
— Bash… — Amy apertou meu braço, suplicante. — Por favor, pare…
A risada desprezível de Nolan ecoou pelo lugar, e ninguém ousou dar um pio para escutar
quando ele disse:
— Foi isso que ela fez com você, Sebastian? — perguntou ao me olhar irritado, a respiração
lenta, lágrimas escorrendo pelos olhos e se misturando ao sangue. — Sorriu como uma garota
inocente… Te fez se encantar pela doçura e timidez dela? Com aqueles malditos vestidos e o
batom vermelho… Sempre escondida atrás dos livros… — Riu de novo. — Aposto que se
apaixonou por ela, não foi?
Não respondi, não olhei para mais ninguém, sequer conferi quem era realmente nossa plateia.
Apenas fitei o rosto destruído no chão frio.
— Vamos, Amy… — Nolan tossiu, suspirando cansado ao tombar a cabeça para ela outra
vez. — Conte para todo mundo o que éramos um para o outro antes de eu decidir escolher sua
irmã. Conte o que fazíamos quando ninguém estava olhando, como disse que me amava e que eu
não deveria me casar com ela.
Amy estava tremendo, e os olhos jorravam lágrimas, mas não respondeu. Não negou.
— Então, depois que me casei… O quê? Deixou de me amar de repente? — Nolan gargalhou,
fechando os olhos. — Vamos, conte a todos que sou o único culpado disso tudo. Que naquela
noite…
— Chega! — A voz de Jolie o cortou, mas não consegui desviar o olhar de Amy, não fui
capaz de interpretar a expressão de dor e culpa em seu rosto. A filha mais velha dos Sanchez
repetiu, com a voz firme, porém claramente afetada: — Chega.
— Ah, vamos, meu amor — Nolan murmurou, sarcástico, para a esposa. — Você sempre
acreditou em mim, o que está esperando agora?
Silêncio.
“O que eu fiz… foi tão horrível assim? Eu… só queria que me perdoassem. Por ter sido tola.
Que me amassem de novo.”
Eu não conseguia imaginar Amy colocando os sentimentos dela acima dos da irmã. Não
conseguia pensar que alguém cujos últimos dias foram dedicados a reconquistar a atenção da
família fosse mesmo a pessoa que Nolan dizia ela ser…
Mas e se? E se ela tivesse realmente…
Escutei a voz do pai de Amy mandar todos saírem da casa, anunciar que a ceia de Natal estava
oficialmente encerrada. No entanto, antes de as pessoas se dispersarem de verdade e oferecerem
aquela privacidade à família, Jolie falou mais alto:
— Então conte a eles, Amy, o que meu marido fez com você depois que nos casamos.
Os olhos de Amelie se arregalaram para a irmã. Eu sabia que, mesmo com os óculos, não
conseguia enxergar direito com a parca luz e a quantidade de lágrimas embaçando sua visão. E se
eu a conhecesse bem, Amy optaria por correr para dentro da casa e se esconder a ter de encarar a
verdade de uma vez por todas. Ela lançou um olhar suplicante para a irmã. Mas Jolie, ao invés de
encará-la de volta, fitava o marido com ódio e mágoa.
— Encontrei isso na carteira dele há um tempo atrás… — Jolie ergueu uma foto amassada.
Não consegui ver com clareza as duas pessoas na imagem, mas era mais do que óbvio quem
eram, que tiveram mesmo algo. — E fiquei com raiva de você na época, mas… Mas comecei a
reparar que meu marido não era mais tão paciente e carinhoso como antes. — Jolie soltou uma
risada seca, quebrada. — Ele não visitava a casa dos meus pais como antes.
O rosto de Amy estava pálido, eu conseguia perceber: a pressão com que mordia os lábios
para se controlar a feria. Nolan mal se mexia debaixo de mim.
— Então diga, Amy, para essas pessoas finalmente saberem a verdade.
— Por favor… — Amy soluçou, abraçando o próprio corpo.
— Foi ele que a procurou, não foi? — Jolie continuou, começando a se alterar, lágrimas
silenciosas correndo pelo rosto bonito e delicado. — Foi ele quem beijou você naquela noite e te
tocou sem permissão, não é? Você tentou me dizer várias vezes, e eu… Eu pensei que estava
tentando destruir meu casamento. Não confiei em você. Mas ele tentou ter você de novo, mesmo
depois que nos casamos, ele…
— É verdade? — Nora deu um passo à frente. Estava ao lado do marido aquele tempo todo,
mas nenhum dos dois – na verdade, nem os próprios pais de Nolan – conseguiam se mexer diante
de tudo o que estava acontecendo. — O que Jolie está dizendo é…
Amy soltou uma risada rouca, e logo mais lágrimas foram caindo. Seu rosto se transformou
em uma raiva fria e controlada.
— Uau… — Soluçou, virando o rosto para a mãe. — Você só precisava disso?
Nora ficou calada, olhando sem reação para a filha mais nova. Amy se obrigou a ficar de pé.
Suas mãos tremiam ao lado do corpo, mas ela continuou falando:
— Tentei contar para vocês por meses… Meses! — O choro dela se intensificou. — A pessoa
que deveria me proteger… os pais que deveriam acreditar em mim… E só porque agora Jolie
acredita, vocês confiam nela?! — Minha colega de quarto passou as mãos no rosto, tirando os
óculos e limpando os olhos e bochechas molhadas, tão parecida com uma criança desolada e sem
casa, abandonada. — Quando mais p-precisei de vocês…
— Amy… — Jolie tentou, mas a irmã se virou para ela com a mesma expressão de raiva.
— Você bateu no meu rosto quando te disse o que ele havia feito comigo. — Nolan tentou se
levantar e se defender das acusações, mas pressionei seu peito com mais força. O cretino grunhiu
de dor. — Ele passava a mão em mim quando ninguém via… Ele tentava entrar no meu quarto
quando vocês não estavam… E no dia em que tudo ficou um inferno, ele tentou me despir e me
forçar a ir para a cama com ele! — A voz de Amy aumentou o tom, porque ela havia sufocado
tudo aquilo por anos, e agora não conseguia mais se segurar. — Tem razão, eu amei ele, porque
antes de ele se casar com você, Nolan me prometia um futuro feliz. Mas depois que a cidade
soube sobre vocês dois… Depois que nossos pais festejaram o namoro repentino de vocês… Eu
me afastei. Por você, Jolie, eu me afastei.
— Eu… sinto muito — Jolie sussurrou.
— Éramos amigas… — Amy soluçou alto, e eu quase me levantei para ir abraçá-la, quase
deixei o canalha no chão para ir protegê-la. Mas eu desconfiara dela também, mesmo que por um
minuto… — Eu amei Nolan, mas nunca como amei você, Jo. Nunca como amei minha família.
— Amy… — Jolie tentou se aproximar, mas a irmã se esquivou, recuando alguns passos.
— Não precisamos mais conversar, certo? — Fitou a mulher grávida, magoada. — Você
desconfiou dele esse tempo todo, e agora decidiu confiar em mim. Bem, aí está, a verdade que
nunca me deixaram contar.
— Amy!
Ela os ignorou e, antes que os pais pudessem dizer qualquer coisa, antes que qualquer um
tivesse a chance de falar, Amy se afastou de todos. Empurrou o grupo de pessoas reunido nos
fundos da residência e desapareceu para dentro da casa.

Quando alcancei o sótão enfim, Amy estava jogando suas coisas furiosamente dentro da mala,
uma das mãos trêmulas limpando o rosto, os óculos largados sobre os cobertores dobrados.
— Amy…
— Quero ficar s-sozinha. — Soluçou, ainda de costas.
Me aproximei ofegante, não me incomodando em limpar o sangue das mãos ou o rosto
machucado.
— Conversa comigo… — Tentei tocá-la, mas ela se esquivou.
— Eu quero… — repetiu, se engasgando com o choro. — Me deixa sozinha, Bash.
E eu sairia, se sua voz não estivesse tão quebrada e frágil, se ela não tremesse e se controlasse
para não desmoronar. Eu deveria deixá-la em paz depois de ter provocado tudo aquilo, pela
maneira como a deixara sozinha na sala depois do beijo; por ter duvidado dela, mesmo que por
pouco tempo, enquanto batia em Nolan…
A virei, puxando-a contra meu corpo em um abraço apertado.
Amy tentou se soltar.
— Me desculpa — murmurei.
— Me solta, Bash! — Chorou cada vez mais alto enquanto me empurrava. Mas não soltei.
— Não devia ter te deixado sozinha.
— Me solta…
— Devia ter ficado e te perguntado…
— Você duvidou de mim. — Soluçou, e o som me fez abraçá-la mais forte. Beijei o topo de
sua cabeça.
— Eu sei, desculpa.
— Pensou que eu tinha…
— Sim, me perdoa.
— E então me largou na sala e me olhou como se eu fosse uma…
— Eu sei, sou horrível… — Acariciei seu cabelo.
Amy desistiu de lutar, os braços caindo como um peso morto ao lado do corpo, o rosto contra
meu peito, a voz abafada contra meu coração.
— Você bateu nele — murmurou, encharcando minha roupa com as lágrimas. — Agora todo
mundo sabe que…
— Huh — assenti, engolindo em seco. — Todo mundo sabe.
— Seu idiota… — Chorou, rouca.
— Sim, sou um idiota. Não deveria ter perdido o controle daquele jeito.
— Babaca.
— Exatamente, um tremendo babaca. — Prendi a mão entre as mechas de sua nuca, a mantive
colada contra o corpo, sem pretensão nenhuma de soltá-la.
Ela procurou respirar fundo, e me preparei para uma tentativa de se afastar e me mandar
embora de novo. Porém, quando as mãos dela rodearam minha cintura e me abraçaram de volta,
firmes, suspirei de alívio, sentindo o coração voltar ao ritmo normal.
— Calhorda — disse baixinho, fungando.
Ri, fechando os olhos e a apertando um pouco mais forte.
— Huh, o pior deles.
A respiração de Amy foi se acalmando aos poucos conforme minha mão acariciava sua
cabeça. O choro foi diminuindo até que apenas o som de seu soluço cansado restasse. Ela
inspirou, soltou o ar devagar, então sussurrou:
— Quero ir para casa, Bash. — Afundou mais o rosto contra meu peito, como se pudesse se
fundir ali, se esconder em mim. — Não consigo mais fazer isso, ficar aqui… Quero ir embora
para casa.
— Eu sei, Tiānshǐ. — Beijei o topo de sua cabeça de novo.
— Mesmo que eles acreditem em mim agora… Não quero ficar.
— Podemos procurar algum lugar para passar a noite, não tem problema — falei, ao me
afastar para ver seu rosto. O segurei com ambas as mãos, enxugando as lágrimas restantes.
Me sentia mesmo um tolo por cogitar duvidar dela, e não tentei silenciar o sentimento a me
sufocar naquele momento, não afastei o pensamento de mantê-la nos braços e protegê-la, de
levá-la para nosso apartamento e cuidar dela. Não... Apenas pensar em ceder a chance para
qualquer outro cara ficar com ela me deixava inquieto.
Me inclinei e beijei lentamente os lábios úmidos e salgados de Amy, um beijo novo e
carinhoso. Ela retribuiu, lágrimas ainda escorriam por suas bochechas, seus lábios se demorando
e experimentando os meus, como se aquilo fosse tudo o que precisasse naquele momento para
finalmente se acalmar.
— Está quebrando a regra — murmurou, de olhos fechados.
— Faço isso com frequência pelo jeito — respondi, apoiando a testa contra a dela. — Me
perdoe. Por ter pensado em duvidar de você, por me descontrolar e quebrar a cara de Nolan na
frente de todo mundo. Não pensei direito e… Me desculpe, Tiānshǐ.
Um pequeno sorriso desenhou seus lábios.
— Te perdoo por duvidar de mim… — assentiu, se inclinando para me olhar. — Quanto ao
Nolan… Espero que não acorde tão cedo.
— Eu... — Suspirei. — Quase matei ele, Amy. Se você não tivesse aparecido... Eu perdi a
cabeça.
— Ele mereceu, certo?
— Devia pelo menos ter quebrado alguns dentes do cretino... — bufei.
Ela riu sem muita energia, inspirou o ar daquele jeito quebrado depois de um choro doloroso.
— Podemos sair daqui? — pediu.
A beijei outra vez.
— Huh — assenti, me forçando a soltá-la. — Vamos embora.
Ajudei Amy a terminar com a mala e não precisei de muito tempo com a minha, já pensando
em alguns hotéis e hospedarias que vira na cidade mais cedo. Desejava que nosso voo fosse no
dia seguinte, e não na terça-feira.
Também queria voltar para casa.
Amy se manteve atrás de mim enquanto saíamos do sótão com nossas coisas, pronta para
evitar a família que com certeza teria perguntas. Porém, antes de termos a chance de descer os
últimos degraus da escada, um grupo menor de pessoas preencheu o corredor para a sala, em um
alvoroço que me obrigou a parar no lugar. Um choro ecoou do outro lado.
— Chamem uma ambulância! — alguém gritou.
Amy soltou as malas no mesmo segundo.
— Vovô!
Senti o olhar preocupado de Sebastian em mim enquanto eu andava de um lado para o outro
na sala de espera do hospital, apertando aquele relógio de bolso contra o peito em uma oração
silenciosa. Fazia uma hora que ninguém aparecia para me informar o que havia acontecido.
Mamãe esperava no andar superior com Jolie, tia Diana e Jen. Phill estava sentado do outro lado,
com Molly adormecida em seu colo. A menina chorara assustada por todo caminho e acabou
apagando depois de um tempo. Bash e eu aguardávamos com ele no andar de baixo.
Sebastian tentou me consolar e dizer que tudo ficaria bem, mas nós dois sabíamos a verdade:
aquela era uma possibilidade distante. Impossível.
Abuelo estava doente.
Ele estava partindo.
E agora meu coração batia como se fosse perdê-lo naquele exato momento.
— É minha culpa… — murmurei. — Ele escutou tudo, e então…
— Não foi sua culpa — Sebastian falou sério, passando a mão em minhas costas com
esperança de me acalmar.
— E se ele morrer, Bash? — Fechei os olhos e cobri o rosto com uma das mãos. Meu colega
de quarto me puxou para um abraço apertado.
— Ele é um homem forte… Vai passar por essa.
Queria acreditar nele.
Na verdade, queria voltar no tempo em que ainda era uma garota inocente, alguém que só
queria sair para caminhar pela trilha com o avô no outono, pescar com ele no verão, patinar no
inverno… Se eu não tivesse me envolvido com Nolan, tudo estaria bem? Se não tivesse me
apaixonado cegamente, não teria me machucado, não teria saído de casa e não teria perdido cinco
anos inteiros com vovô.
Não.
Eu não podia mais me arrepender daquelas escolhas.
Fora uma medrosa nos últimos anos. Deveria ter voltado para visitá-lo, mesmo com tudo
acontecendo. Vê-lo era mais importante que meu sofrimento.
E agora…
Era tarde demais.
— Amy?
Funguei, limpando o rosto ao me afastar de Sebastian e virar para minha irmã no corredor
branco e tão assustador.
Respirei fundo, esperei pela notícia devastadora.
— Como ele está?
— Estável, por enquanto. Dormindo. Aparentemente, abuelo anda tendo dores no peito e não
contou a ninguém. Ele acabou se engasgando durante o jantar, e isso provocou uma dor aguda
que o fez desmaiar. — Jolie suspirou, o rosto cansado e os olhos igualmente inchados pelo
choro. — O médico disse que ele está bem, mas vai precisar ficar internado até descobrirem
como parar a dor. Vão fazer alguns exames.
Fechei os olhos e assenti aliviada, mas não completamente.
Ele ainda estava com dor. Ele ainda corria risco. Ele ainda estava morrendo.
— Obrigada por me dizer. — Clareei a garganta. — Como mamãe está?
— Desolada. Assustada. — Jo desviou os olhos para as mãos sobre a barriga. — Tudo o que
aconteceu hoje foi demais para ela.
— Claro…
— Podemos conversar? — Ela lançou um olhar para Sebastian. — Só nós duas?
Virei para meu Bash. Ele inspirou, impaciente, como se não quisesse sair do meu lado de
forma alguma, mas concordou.
— Vou buscar café pra gente.
E se afastou, se aproximando de Phill para oferecer uma bebida. Molly abriu os olhinhos
sonolenta, questionando sobre o vovô, mas Bash a distraiu perguntando se a garotinha gostava de
chocolate quente. Depois de ele a pegar no colo, os três saíram atrás de uma lanchonete.
Só restou Jolie e eu no corredor frio.
Suspirei, guardando o relógio que ganhara de vovô no bolso e apontando para os bancos
desconfortáveis.
— Não quer se sentar?
— Que tal uma volta? — sugeriu. — Este lugar me faz lembrar que estarei parindo em breve.
Meus lábios se esticaram um pouco.
Meneei a cabeça.
— Uma volta, então.
— E Nolan? — perguntei depois de sairmos do hospital, sentindo aquele arrepio familiar
percorrer a espinha. Não de frio. Falar o nome ainda me causava enjoos.
Jolie soltou um suspiro cansado e triste.
— Papai disse que ficaria e lidaria com ele. Deve ter levado Nolan para a casa dos Willis,
discutido com eles o que fazer. Não sei. Não quero saber agora.
Assenti. Também não queria pensar muito nele, na forma como sorrira com sangue entre os
dentes.
— Você… gostava dele, então. — Minha irmã encarou a rua, a neve que cobria parte da
calçada, os enfeites de Natal que vestiam as árvores. — Antes de ele e eu nos casarmos.
Eu teria que dizer alguma hora, certo? Esperara por aquele momento por tanto tempo, e agora
que finalmente tinha a chance, não encontrava forças para fazê-lo. Só queria um banho quente e
me deitar na minha cama; acordar em Boston, voltar para o trabalho, esquecer aquele fim de
semana desastroso.
Mas ela merecia saber.
— Eu o admirava na época da escola, todo mundo falava dele… — Suspirei. — Mas era
tímida demais e não queria parecer aquela garota patética falando sobre minha quedinha de
adolescência. Então começamos a nos encontrar depois que ele apareceu na nossa casa para
buscar uma encomenda com o papai. Era bobo, inocente no começo… Um beijo aqui, outro ali…
Mas ele nunca me deixou contar para nossa família, disse que queria me esperar formar primeiro.
Esperar as coisas melhorarem e se encaixarem. — Soltei uma risada debochada. — Quando me
lembro dessas coisas agora, sei que eram desculpas, mas eu era apaixonada demais para notar. Só
confiei nele cegamente.
“Foram meses assim, uns seis meses até eu começar a sonhar demais com a ideia de me casar
com ele. Foi quando… Fiquei sabendo sobre vocês dois. Fiquei péssima, não quis sair de casa, e
quando Nolan e eu tivemos a oportunidade de falar sobre o assunto, pedi que ele confessasse ter
sido um engano, que eles pensaram ser você quando, na verdade, tinham me visto com ele.
Porque eu… o amava sim. Mas ele confirmou, e nossos pais já estavam envolvidos demais. Pedi
que Nolan te contasse, e ele apenas… terminou tudo entre a gente. Fiquei desolada, sim, e me
ocupei mais tempo com abuelo ou com os meus livros, tentei evitá-lo ao máximo…”
Jolie passou a mão no rosto, me olhando desacreditada.
— Pensei que você o evitava porque não gostava dele. Porque não o queria na família…
Nolan apenas disse que talvez você não tivesse ido com a cara dele.
Ri, a raiva embalando toda a culpa dos últimos anos.
— Eu o evitei para esquecer ele — falei, desviando o olhar e observando a fumaça de ar frio
sair por minha boca. Na pressa para ir embora de casa, Bash e eu nos esquecemos de um
agasalho mais quente. Ele também devia estar com frio. — Depois que se casaram, só decidi
fingir que nunca tivemos algo. — Minha garganta se fechou, mas já havia chorado tanto naquele
dia que não consegui derramar nem mais uma única gota. — No começo, ele só tentava falar
comigo. Depois vieram os toques “acidentais” na minha mão, então…
— Não precisa falar.
— Tentei te contar, Jolie, mas você não me ouvia, nossos pais me ignoravam e… Temi que,
se tentasse contar para os outros, o mesmo aconteceria.
— Eu sei. — Parou de andar, segurando meu braço para eu me virar. — Quando confrontei
Nolan sobre isso pela primeira vez, ele foi incrivelmente convincente, Amy… — Suas feições se
tornaram sofridas e repletas de arrependimento, a voz da minha irmã saiu baixa e rouca. —
Também fui iludida por estar cegamente apaixonada. E não, não durou meses, foi coisa de uma
semana antes de a cidade toda saber. Eu avancei, e pensei que ele me quisesse também. Foi… —
Ela fechou os olhos, as bochechas se tingindo de um vermelho envergonhado. — Fui eu quem
avançou com Nolan. Eu o beijei, e ele retribuiu naquele dia, e mamãe viu… Quando as coisas
saíram do controle, Nolan agiu como se me quisesse, e eu estava tão desesperada por isso… para
sair de casa logo, e me casar, e ser livre… Não pensei muito, apenas me joguei na ideia de um
casamento por amor. Eu me apaixonei por ele, pelas palavras doces que dizia… E quando você
apareceu me contando aquelas coisas, quando peguei os dois no quarto naquele dia… Não
consegui pensar que ele estava tentando te machucar, só que você queria roubá-lo de mim.
Roubar a chance dela de sair de casa e da pressão de ser a filha que nossa mãe tanto se
orgulhava.
— Sei que o que fiz com você foi imperdoável… — Jolie tropeçou nas palavras, incapaz de
me encarar por mais de três segundos antes de mudar o olhar. — Quando encontrei aquela foto,
não quis pensar em nada, guardei e escondi. Mesmo desconfiando dele, não quis acreditar que
havia me casado com alguém tão desprezível, porque ele ainda era bom comigo. Apesar de não
ser romântico ou carinhoso como antes, ainda me oferecia um lar só meu, com as minhas
regras… — Ela suspirou, fechando os olhos, a voz embargando. — Então, descobri sobre a
gravidez…
Não consegui dizer nada. Ainda era tudo muito inacreditável para mim. Como duas irmãs
conseguiram se enrolar em uma bagunça tão grande. Ainda sentia a raiva queimar meu rosto,
como se aquele tapa de Jolie tivesse sido permanente.
— Fiquei desesperada com a ideia de que você estava certa. Que Nolan era um homem ruim,
que não me amava e que não amaria nossos meninos… — Soluçou, deixando a primeira lágrima
cair. Desviei os olhos para evitar que o mesmo acontecesse comigo. — Sinto muito, Amy…
Tanto que não consigo dizer em palavras o tamanho da minha vergonha. Pensei que… Pensei
que quando te visse outra vez e te tratasse bem, as coisas poderiam voltar ao eixo, e eu
conseguiria criar coragem para ter essa conversa, mas… Mas eu… — Ela não conseguiu dizer.
Senti o lábio levemente inchado e machucado pelo mau hábito ao mordê-lo, contendo aquela
vontade de explodir outra vez, de gritar para a cidade inteira o que eu sentia naquele momento.
Mas o esforço não valeria a pena.
Eu não pertencia mais àquele lugar.
— Eu sinto tanto, Amy…
Assenti e pisquei os olhos, afastando a umidade e a ardência ali. Esperara cinco anos por isso,
cinco anos para um simples pedido de desculpas como aquele, mas agora que escutara…
— Ainda machuca — sussurrei enquanto encarava o céu noturno e tentava internalizar as
palavras no coração ferido. — Não sei o que quer que eu diga.
— Acha… — Jolie segurou minha mão com as suas. — Acha que consegue me perdoar um
dia?
Controlei o instinto de soltá-la, de me esquivar do toque que por anos desejei. Observei as
luvas quentes aquecerem minhas mãos. Engoli em seco.
— Você não faz ideia do quanto chorei sozinha em um quarto pequeno, aguardando que
qualquer um de vocês me ligasse — confessei baixinho. — Por um ano inteiro, esperei uma
mensagem, qualquer coisa, que me perguntassem se eu estava indo bem, se eu precisava de
alguma ajuda… Fiquei tão sozinha e perdida naquela cidade que meu primeiro instinto foi querer
voltar para casa. Mas então pensei: “Ah, certo. Não sou bem-vinda lá.”
— Amy…
— Pensei que tentar me humilhar para vocês todo ano seria demais, que eu deveria ter um
pouco de orgulho. Que se vocês me abandonaram, só restava eu comigo mesma. — Soltei um
riso fraco. — Preenchi todo meu tempo com os estudos, com a tarefa de trabalhar, me formar e
conseguir o emprego dos sonhos. Fingi, e às vezes me convenci, que não precisava de um abraço
ao chegar em casa, que não fazia falta comer um jantar da mamãe, que a noite de jogos às sextas
era algo brega e sem graça… Fingi que estava tudo bem chegar em um apartamento pequeno e
pedir pizza, que os livros com os quais eu dormia eram a única companhia necessária…
Finalmente a encarei, encontrando o rosto da minha irmã repleto de lágrimas silenciosas. Eu
queria odiá-la. Queria dizer coisas ruins e jogar na cara de Jolie que agora ela tinha o que
merecia, que criar dois filhos de um homem como Nolan e ser mãe solteira era o castigo perfeito,
mas…
Eu não era aquela pessoa.
Ainda sentia pena de Jolie, ainda sentia vontade de abraçá-la e dizer que ela não ficaria
sozinha como eu fiquei, que nossos pais sempre a amaram e cuidariam dela, acolheriam os
gêmeos e não os deixariam sofrer. Mas meu orgulho quebrado só me permitiu erguer a mão livre
para enxugar seu rosto com carinho.
— Não vamos ser como antes — falei ao contemplar seu rosto delicado e abatido. Afastei as
mechas soltas do coque elegante que ela adorava usar. — Sempre vai haver esse peso entre
nós…
Ela assentiu, aceitando.
— Mas… — continuei, tentando sorrir. — Não me importo que me visite em Boston, não ligo
se quiser me ligar para conversar. Vamos… — Respirei fundo. Não era fácil, mas me obriguei a
dizer: — Vamos tentar recomeçar.
Os olhos cor de mel brilharam forte, e novas lágrimas surgiram. Ela sorriu, um sorriso
verdadeiramente sincero que me fez lembrar por que éramos tão parecidas. O sorriso do nosso
pai.
— Eu gostaria disso — sussurrou, apertando minha mão.
E mesmo que aquela parte ferida quisesse por logo um fim naquilo, um ponto final de
“quando o Natal acabar e eu voltar para casa não quero mais saber de você”, me permiti acreditar
que um dia poderia perdoá-la, sim. Sinceramente, desejava que ela fosse capaz de superar as
próprias dores, Nolan e as lembranças das coisas ruins quando os filhos dos dois nascessem, que
ela pudesse amá-los verdadeiramente.
Amy retornou sozinha meia hora depois, carregando uma sacola e uma expressão séria e
cansada no rosto. Seu cabelo tinha sido preso outra vez, e os olhos vazios sob os óculos
encararam o chão enquanto ela caminhava pelo corredor branco do hospital. Quando parou
diante de mim tirou três caixinhas de dentro da sacola e me pediu que estendesse a mão. Ela
depositou duas das embalagens nela e abriu a primeira com lenço úmido, dando um passo para
mais perto, erguendo meu queixo com uma mão. Com a outra, limpou meu rosto.
— Está machucado — murmurou. Parecia exausta.
— Você viu o outro cara? — perguntei, fazendo graça. — Isso aqui não é nada.
— Bash…
— Ames… — Ergui a mão para acariciar seu braço. — Você está bem?
Ela balançou a cabeça.
Não.
— Jen apareceu para dizer que seu avô vai poder receber visita depois que os exames
terminarem, por que não descansa um pouco?
— Tenho medo de relaxar e algo ruim acontecer — confessou conforme passava
cuidadosamente o paninho sobre o ferimento em meu lábio inferior, se demorando um pouco ali.
— O que ele disse para você perder o controle?
Ela estava falando de Nolan agora, e a simples menção ao desgraçado fez meu sangue ferver
imediatamente. Talvez eu conseguisse abrir espaço no coração para odiar mais alguém como
Nolan, e esperava sinceramente que os ferimentos causados a ele infeccionassem e enchessem de
bolhas.
— Não vamos falar sobre ele…
— Fala.
— Algo sobre ter te visto nua e os sons que fazia… Isso me deixou realmente irritado.
Ela revirou os olhos, colocando os lenços de lado para pegar a pomada na minha mão.
— Nunca dormimos juntos.
Era babaquice minha me sentir tão aliviado? Não, se fosse com qualquer outro homem
decente, talvez. Mas descobrir que aquele verme imundo não a tocara daquela forma, que tentara,
mas nunca conseguira…
— Que bom — murmurei.
Então, o cretino mentira para me provocar.
— Mas eu quis — ela confessou, baixinho. — Antes de descobrir sobre ele e Jolie… Eu quis.
E quase aconteceu algumas vezes, mas… Fico aliviada por não ter perdido a virgindade com ele.
— Você é virgem? — Franzi a testa, surpreso.
Ela girou os olhos de novo e aplicou um pouco de pomada no meu maxilar, onde Nolan
acertara primeiro.
— Você só pode estar brincando — respondeu com um riso fraco. — Nolan foi meu primeiro
amor, Bash. Nunca estive com mais ninguém além…
Ela parou, hesitou com os dedos também.
— De mim. — Sorri, mas Amy desviou o olhar, se afastando.
Minha colega de quarto corou um pouco, talvez se lembrando do beijo que não terminamos na
sala. Das coisas que eu disse para ela antes de ver Nolan e deixá-la sozinha.
— Aqui. — Ela pegou a caixa com os curativos. — Coloque isso e passe um pouco de
pomada na mão também.
Franzi o cenho.
— O quê? — reclamei. — Não vai fazer isso pra mim?
— Não… — Fechou as mãos, cruzando os braços como se quisesse se manter longe,
controlando a vontade de continuar de onde paramos.
— Amy?
— Não quero tocar você e perder o controle de novo só para um de nós se arrepender depois,
Bash — disse em voz baixa, para que apenas eu escutasse. — Sei que não éramos os melhores
amigos do mundo, mas não quero perder… er… o apartamento.
Não, não o apartamento, mas a segurança que tínhamos um no outro.
Eu também não queria perder isso.
Apesar das discussões que tínhamos sobre as músicas altas e minhas companhias no decorrer
da semana, Amy e eu funcionávamos bem o suficiente para manter uma boa relação. Não era
uma relação perfeita, mas eu gostava.
Antes, claro.
Era ela no canto dela com o notebook e os livros, e eu no meu com a guitarra e…
Afastei pela primeira vez naquela noite o pensamento furtivo sobre querer Amy comigo, na
minha cama, conhecendo-a mais depois que tudo aquilo terminasse. Me permiti dar lugar àquela
racionalidade outra vez.
Aqueles dois dias foram agitados e confusos, eu me abrira pela primeira vez em anos… Não,
pela primeira vez, dei permissão a mim mesmo de me abrir para uma mulher e confessar
segredos antigos. Ficamos aquecidos pela fantasia de ter companhia naquele fim de semana e nos
permitimos abraçar a ideia de desejarmos um ao outro.
E aquela magia poderia facilmente se apagar depois que o acordo acabasse.
Não queria perder minha colega de quarto no processo. Não queria arriscar nossa rotina e
familiaridade por um sentimento incerto, desconhecido e perigoso.
Mas Amy precisava de alguém que a carregasse naquele momento. Estava estampado em seu
rosto o esgotamento que os dois últimos dias lhe causaram, a vontade de ceder e desabar. Ela
estava certa em hesitar, sabia que estava sensível e que o sentimento por mim agora poderia ser
apenas fruto de sua carência e estresse.
Quando voltássemos para Boston, eu seria aquele colega de quarto barulhento e irritante de
novo, mas naquela noite ainda era o namorado de aluguel que se importava e cuidava.
Deixei as caixas de remédio e curativo de lado e estendi a mão para ela.
— Não vamos perder o controle — prometi.
— Bash…
— Vem cá. — Mexi os dedos para ela se aproximar. — Só me deixe segurar você um pouco.
Amy hesitou por alguns segundos, encarando a palma estendida por um longo tempo antes de
desistir de qualquer argumento e segurar minha mão, claramente cansada para lutar, para ser
durona e fingir estar bem. A puxei para meu colo, como fizemos na sala. Dessa vez, porém, Amy
apoiou a cabeça em meu ombro e se encolheu, permitindo que eu a segurasse em meus braços e a
aquecesse.
— Você é mais confortável do que aquela poltrona — ela sussurrou, com um meio-sorriso. —
Tão grande e quentinho… Como um sofá.
Gargalhei, afastando uma mecha de cabelo de seu rosto e ajudando a garota a tirar a armação
vermelha dos óculos para se acomodar melhor em meu peito.
— Quando te conheci, pensei em você como um guerreiro lendário que destruía centenas de
inimigos, um general irritante e bonito e letal.
Sorri ao observar cada detalhe do rosto dela: os olhos fechados e a boca perfeita.
— É mesmo?
— Huh… — Os lábios dela se esticaram, sonolentos. — Também fiquei a fim de você
quando nos conhecemos.
Ri baixinho, tocando a testa dela com carinho e afastando a franja que a cobria.
— Você pensa em escrever um romance sobre mim um dia?
— É claro… — resmungou, cada vez mais inconscientemente distante, sua respiração
desacelerando aos poucos. — É um romance sem graça sobre um vizinho irritante e barulhento
que não sabe onde guarda suas camisas.
Dei risada outra vez, esquecendo que estava em um hospital.
— E a mocinha?
— A mocinha? — balbuciou. — Ainda não sei o que fazer com a protagonista. Mas… ela
prometeu não se apaixonar.
Engoli em seco, sentindo o peito repuxar com um sentimento estranho e doloroso. Depositei
os lábios suavemente sobre os dela, um beijo demorado e gentil, como uma despedida, como se
eu pressentisse e soubesse que aquele seria nosso último.
— Ele também prometeu.
Duas horas depois, despertei com um dedinho cutucando minha bochecha. Quando abri os
olhos, encontrei o rostinho de Molly, a garotinha me observando enquanto esfregava o olhinho
com a outra mão.
Me mexi no banco de espera e senti o corpo sobre o meu, ainda adormecido. Amy tinha um
sono pesado e não acordou quando a menina disse:
— Tio Bash, a mamãe falou que o vovô quer ver a Amy.
— Ah! — Bocejei e estiquei o braço livre. Tentei, mesmo com Amelie em meu colo, alongar
um pouco as costas. — Obrigado, pequena.
— Ela disse que o vovô vai melhorar e voltar logo para casa. — A menina me ofereceu um
sorriso sonolento. — Conta isso para tia Amy, tá?
Assenti, mesmo sabendo que adultos costumavam mentir para as crianças pararem de chorar e
se preocupar. Tive esperanças de que aquilo fosse mesmo verdade.
— Ah, ainda bem! — Jen apareceu do corredor, ofegante, colocando a mão sobre o coração.
— Falei que era para você esperar seu pai, garota!
— Só vim chamar a tia Amy… — Molly bufou. — Mas ela tá dormindo.
Jennifer se aproximou de nós, segurando a mão da filha e fitando a prima adormecida em meu
colo com a mesma expressão de pena que já a vira lançar para Amy algumas vezes. Phill
apareceu logo depois, com a mesma cara de cansaço de antes, o nariz sempre vermelho como se
tivesse acabado de espirrar.
— Foi um dia bem difícil para ela, não é? — Jen murmurou ao se inclinar para afastar uma
mecha da franja de Amy.
— Foi — respondi, rouco.
Eu gostava de Jen, sabia que era uma boa pessoa. Mesmo assim, fora uma de muitos que se
afastaram por julgar minha colega de quarto mal. Apenas ser boa com Amy naquele Natal não
mudaria o fato de que ela também isolara a prima, também acreditara nas mentiras e também
fizera julgamentos.
Jolie deveria ter comentado com ela as suspeitas sobre o marido, ou pelo menos sobre sentir
que o cara agia de forma estranha nos últimos anos. Talvez por isso Jen não gostasse de Nolan e
tivesse me dito para quebrar alguns dentes dele.
Sabia que Amy a perdoaria um dia ou já tinha perdoado, mas se fosse eu, não conseguiria.
Não reparei que Jen havia me notado a encarando, mas rapidamente compreendeu minha
expressão, o que eu deveria estar pensando, e disse:
— Eu deveria conversar com ela, eu sei. — Sorriu para mim, envergonhada. — Essa sua cara
feia não precisa me lembrar disso.
— Que bom que não precisei dizer, então. — Dei de ombros, sem me incomodar por não ter
disfarçado.
Jen riu baixinho, acariciando a cabeça da filha. A menina poderia facilmente dormir em pé, ali
mesmo. Phil contornou o ombro da esposa, dizendo que poderiam ir agora e voltariam no dia
seguinte para visitar o avô dela. Ela assentiu, se virando para mim outra vez, o olhar observador
em Amy.
— Você faz bem para ela, Sebastian — disse, com o sorriso tranquilo e sincero enfeitando os
lábios cheios e bonitos. Uma herança de família, pelo visto. — Amy merece um cara que cuide
dela assim.
Não consegui responder, porque eu não era aquele cara, não estávamos juntos de verdade.
Apenas confirmei com a cabeça, as mãos inconscientemente segurando minha colega de quarto
mais forte contra o corpo. Porque eu sabia bem, no fundo do coração teimoso: não queria soltar.
Mas teria.
Em breve.
— O senhor me assustou, sabia?! — falei, ajeitando os cobertores sobre ele, mesmo sob seu
protesto. Abuelo odiava quando o tratávamos como uma pessoa frágil… Mas como não? Ele
quase morrera horas atrás! Como eu não me preocuparia, e choraria, e o enchia de beijos e
abraços? — Por que não contou para a mamãe que estava sentindo dores?
Ele bufou, fechando os olhos.
— Porque ela iria me trazer a este hospital — resmungou. — Estou farto de hospitais. Quero
ir para casa.
Suspirei, me aquietando alguns minutos depois de entrar no quarto, finalmente. Eu fora a
última a visitá-lo, Bash ficara na sala de espera com minha mãe e tia Diana.
— Pensei que perderia o senhor — murmurei, segurando sua mão fria e enrugada sob a
coberta.
— Pensei que tivessem chamado minha senha também, mas confundi o número pelo jeito —
retrucou. O comentário me fez sorrir, mesmo naquelas circunstâncias. — Quando vou poder
jantar?
— Hm… Parece que vai precisar ficar de jejum até amanhã, para o seu exame.
Ele praguejou e me olhou feio, como se eu fosse a culpada. Porém, antes de expressar seu
descontentamento, notou o brilho nos meus olhos, a emoção de alívio em vê-lo respirando e a
dor de perceber que mesmo ali, mesmo falando e reclamando, algo dentro dele ainda o levava
daquele mundo, e nada que eu fizesse poderia evitar aquilo.
— Se chorar…
— Te expulso do quarto. — Imitei sua voz, rindo, mas fungando o choro ao mesmo tempo. —
Me desculpe se não fui treinada para guardar meus sentimentos, senhor.
Ele suspirou e apertou minha mão de volta.
— Só não quero te ver sofrendo, filha.
— Bem, igualmente — falei, erguendo a outra mão para remover os óculos e enxugar os
olhos. — Quebrei a torneira desde que fiquei sabendo sobre a doença, então não me culpe, não
consigo fechar.
— Foi por isso que pedi à sua mãe para não te contar.
— O quê? — Franzi o cenho.
Vovô desviou o olhar para a parede, claramente exausto de tudo aquilo. Foram três anos de
quimioterapia, três anos entrando e saindo daquele hospital, tirando sangue, sentindo enjoos,
tomando remédio, se tratando e piorando…
Ele estava cansado daquilo.
— Quando descobrimos, foi a primeira vez que sua mãe quis ligar para você de imediato. Eu
não deixei. Falei que, se ela não havia se dado ao trabalho de entrar em contato nos últimos anos
para saber como você estava, não queria que ela te ligasse para dar uma notícia ruim. —
Respirou fundo e, pela primeira vez em muito, muito tempo, a voz dele embargou, os olhos
pequenos e pretos cintilaram tristeza e arrependimento. — Não queria que você voltasse e se
isolasse de novo, recebia suas cartas… — Riu. — Porque gosta de coisas antigas, não é? E você
parecia bem. Não completamente feliz, mas obviamente não escrevia seus problemas para mim.
Só queria que continuasse voando cada vez mais alto e se esquecesse deste lugar.
Ele pausou, respirando com dificuldade, o peito subindo e descendo rapidamente.
— Não fala… — pedi ao perceber que o esforço o desgastava.
— Também preciso me desculpar com você. Deveria ter te escrito de volta, deveria ter pegado
um ônibus e te visitado… Deveria ter dito que te amo e sou muito orgulhoso por te ter como
neta.
— Se continuar falando essas coisas, vou pensar mesmo que está morrendo, vô…
— Mas eu estou, Amelie… — Ele me deu um sorriso fraco e triste. — Pode não ser hoje ou
amanhã, posso ter mais dois meses ou um ano… Mas quando me engasguei como um velho
naquela sala e percebi minha visão escurecer, a primeira coisa que pensei foi: você ainda deve
um pedido de desculpas a ela.
Senti o rosto umedecer pelas lágrimas outra vez; não conseguia evitar, não conseguia não
sentir aquilo. Eu era mesmo uma torneira quebrada.
— Nunca me ressenti do senhor, vô. Sei que sempre ficou do meu lado, então…
— Eu deveria ter feito mais. Deveria ter confrontado mais seus pais, até aquele garoto
imprestável que te feriu. — Suspirou. — Deus sabe o quanto fiquei satisfeito quando seu
namorado o espancou. Aliás, como ele está?
Soltei uma risada chorada.
— Ele está lá embaixo. Bash disse que subiria mais tarde para te v…
— Não o seu Sebastian, estou falando daquele funesto desavergonhado. — Bufou.
— Ah… — Sorri sem graça. — O rosto dele não deve estar tão bonito agora…
— Ótimo. E meu futuro neto? — Franzi a testa, e abuelo revirou os olhos. — O amor da sua
vida, garota. Ele se machucou?
— E-ele… — Eu não podia contar a verdade para o meu avô agora, não com ele tão frágil,
não quando ele realmente se importava com Bash. — Ele está bem. Só alguns arranhões. É um
cara forte, não se machuca fácil assim…
Vovô estreitou os olhos para me observar com atenção, como se sentisse que algo estava
errado. Como se conseguisse ler meus pensamentos.
— Vocês brigaram de novo?
— O quê? — Ri de nervoso. — Claro que não!
— Você sempre afina a voz quando está mentindo para mim, Amelie.
— Eu… não estou mentindo.
— E eu não estou morrendo.
— Pare de dizer isso! — o repreendi. — Eu não… — Suspirei. — Só estou cansada, só isso.
— Claro, claro. — Balançou a cabeça e fitou a televisão desligada do outro lado. — Você está
pensando em terminar com ele?
Não respondi.
— Não gosta dele?
— Eu realmente não quero discutir minha vida amorosa com o senhor… — Fiz careta,
afastando a mão da dele, cruzando os braços. — Nunca fizemos isso e não temos que fazer
agora.
— Estou entediado, responda.
— Não.
— Você o ama?
— O quê? É claro que não!
— Nossa… — Meu avô fez um beicinho surpreso e debochado. — Dois anos de namoro e
você não o ama? Você é fria mesmo, Amelie…
Minha boca se escancarou.
— Ah, por favor, não haja como um bebê. — Bufou. — Sou velho, mas não idiota. E não
gosto que mintam para mim.
— Eu… — Fechei os olhos. — Sim, é isso. Vou terminar com ele.
— Tsc, tsc… Ele não é bom para você?
— Ele é ótimo, é só que…
— Você está com medo que ele te decepcione como Nolan fez?
— Abuelo… — Suspirei, massageando a têmpora. — Eu te amo. Mas, por favor, não vamos
falar sobre o Sebastian agora.
— Bem, só acho que, se vai terminar com ele, deveria dizer logo e não enrolar o coitado. Ele
parece tão na sua…
Gargalhei, fugindo do significado da frase para quem o disse.
— Onde o senhor aprendeu isso?
— Escutei uns jovens falarem isso por esses dias e achei interessante.
Ri, me inclinando sobre a cama para beijar seus cabelos brancos e encaracolados.
— Senti tanto a sua falta, vovô…
Ele bufou, impaciente de novo.
— Está me paparicando para fugir do assunto — concluiu, emburrado.
— Huh — assenti ao me afastar, mas segurando sua mão outra vez. — Estou.
Ele suspirou e me observou com carinho antes de assentir e falar:
— Só me prometa que, quando voltar para Boston, vai ser uma jovem feliz, com ou sem
namorado.
— Prometo. — Sorri.
— E que vai pelo menos deixar ele tocar mais algumas músicas para mim antes de dar um
chute na bunda dele.
Concordei, divertida.
— Vou falar com ele.
— Ótimo. — Voltou a recostar a cabeça no travesseiro, fechando os olhos. — Agora vá
buscar meu jantar.
— Não pode, vô… — Sorri com tristeza, acariciando sua mão magra e cheia de calos. — Mas
amanhã, quem sabe, não te trago um pedaço da torta de abóbora que mamãe fez?
— Certo… — resmungou. — Então apague a luz e me deixe dormir.
Assenti.
Obedeci, mas mesmo assim não saí do seu lado.
— Sabe, essa coisa de você ouvir sobre tudo o que acontece em uma cidade pequena me fez
definitivamente amar morar em um lugar maior e caótico… — Bash comentou enquanto
arrastava sua mala pela casa. Vovô chegaria do hospital mais tarde, mas eu precisara voltar com
Sebastian para pegarmos suas coisas. Ele estava indo embora. — Sequer lembro os nomes dos
meus vizinhos.
— Sr. Gerald, do segundo andar — lembrei, sorrindo e abraçando a caixa de transporte de
Claude enquanto atravessávamos o corredor para a sala.
— Sim, ele. Mas a única coisa que sei sobre aquele cara é que ele é surdo.
— O Sr. Gerald não é… — Parei de andar.
Bash me olhou sobre o ombro, gargalhando.
— Ele é.
— Mas ele… — Pensei, me lembrando das poucas vezes que interagira com o senhor de
idade. Nunca conversamos, mas eu sempre o cumprimentava quando o via chegar ou sair do
apartamento. — Pensei que ele só não ia muito com minha cara, por isso não me respondia —
murmurei, surpresa.
— Ele não vai com a cara de ninguém… — Meu colega de quarto resmungou ao abrir a porta.
Fomos recebidos por um vento frio, a neve derretia na calçada. — Mas não responde porque é
surdo.
Por isso o homem nunca aparecera na nossa porta para reclamar dos solos de guitarra de
Sebastian, ou da cama irritante…
— Droga — resmunguei com um bico contrariado. — Qual vai ser minha desculpa para te
silenciar agora?
— Bem… — ele iniciou.
Mas eu sabia o que Bash ia dizer quando se virou para mim com aquele sorriso safado no
rosto e ameacei:
— Você nem comece.
Ele riu, encolhendo os ombros.
— Tenho algumas sugestões bem eficazes…
— Vou encomendar alguns tampões de ouvido para quando eu voltar, muito obrigada —
falei, parando em frente ao táxi que aguardava.
Era o Sr. Campbell. Ele estivera no jantar. Eu pedira para ele levar Bash ao aeroporto mais
cedo, e o homem não pareceu nem um pouco incomodado em ajudar. Aparentemente, era um dos
fãs do pequeno show que Bash dera na ceia.
O assunto sobre o que acontecera no jantar já corria e, pelo jeito, muita gente comentava
sobre Nolan e o divórcio dele e Jolie, mesmo que minha irmã sequer tenha se pronunciado sobre
o assunto ainda. Do ponto de vista da vizinhança, a visita dela à casa dos pais do marido no dia
anterior, com as caixas de presente que ele comprara para o Natal, deu o que falar. Segundo os
boatos, minha irmã gritara, chorara e terminara tudo com o esposo. No entanto, eu não conseguia
imaginar Jolie fazendo tanto escândalo; não sentia vontade também, de perguntar pessoalmente
como havia sido.
Bash me avaliou um pouco depois de colocar sua mala no carro, então tomou a caixa de
Claude de mim.
— Tem certeza que não quer ficar com ele aqui? Sei o quanto sua mãe adorou ele.
Gargalhei, me agachando um pouco para observar o bichano adormecido lá dentro. Eu sentiria
falta de Claude, sim, mas não poderia ficar de olho nele o tempo todo. Minha prioridade era
vovô, passar o máximo de tempo possível com ele.
— Acredito que Molly já esteja planejando um sequestro — brinquei quando voltei a encarar
Sebastian, o rosto bonito agora enfeitado por alguns cortes pequenos, a boca machucada e o nariz
reto, as pintinhas que eu adorava e tinha vontade de contar com a ponta dos dedos. Os olhos
castanhos arredondados, lindos e únicos.
Ele carregava desde ontem aquele olhar enigmático e distante. Às vezes, o pegava me
encarando sério por muito tempo, como se estivesse perdido em um questionamento difícil.
Obviamente eu não era boa naquele jogo de olhares e sempre perdia, corando e desviando a
atenção para qualquer outra coisa que não as íris castanhas e tão… intensas.
— Claude também parece sentir falta de casa. Então, para a segurança dele, é melhor levá-lo
com você.
Bash assentiu, respirando fundo.
— Tem certeza de que não quer que eu fique? Posso pedir alguns dias de folga no Green’s.
Coloquei um sorriso presunçoso nos lábios, um que o vira soltar diversas vezes, enquanto
abafava o que meu coração insistentemente implorava.
— Você está com medo de voltar para casa sozinho, Sr. Wang?
— Bem, já que enfim tocou no assunto… — Fez careta, provavelmente pensando em voar
sozinho, em não ter ninguém para segurar e apertar sua mão durante uma turbulência. — Sim,
estou aterrorizado.
Ri.
— Você vai sobreviver.
— Você não sabe disso. Pode se arrepender por ter me mandado voltar para casa sem você e
então descobrir que o avião caiu no mar…
— Uau… Ver você fazendo drama é realmente divertido. — Revirei os olhos. — Ele sequer
vai sobrevoar o oceano, Bash.
— Só… — Ele suspirou, mais sério, colocando o gato no banco de trás do carro. Sr. Campbell
fingiu que não prestava atenção na conversa. — Só quero ter certeza de que você vai ficar bem
sem mim.
Sorri e, apenas para fins de atuação, me aproximei e abracei a cintura de Bash, apoiando o
rosto em seu peito. Ele cheirava a banho e ao nosso apartamento, lar. Aquele perfume que usava,
do qual agora eu sentiria falta enquanto meu colega estivesse longe. Dizer aquilo em voz alta
arruinaria meu plano de permanecer plena e nada triste pela partida dele, como se Bash e eu
estivéssemos mesmo nos despedindo por um tempo indeterminado, como se fôssemos mesmo
um casal e estivéssemos terminando.
Eu queria dizer para Sebastian como meu coração batia forte quando ele estava por perto,
como eu adorava o som de sua risada rouca e sincera e, mesmo depois de passar os últimos anos
reclamando sobre o barulho da guitarra e as músicas tocadas, queria confessar que escutaria ele
cantar Blue Christmas para mim mais duas, três ou cem vezes se pudesse.
Meu coração doía ao pensar que vovô não chegaria a tempo de escutá-lo cantar uma última
vez.
Bash também pareceu decepcionado com isso, quase entrou com o violão na enfermaria e
tocou para todos no terceiro andar do hospital. Ele apenas se contentou em passar a tarde comigo
e com abuelo jogando cartas, conversando com vovô como se fossem amigos de longa data.
Eu tive certeza de que estava apaixonada por Sebastian naquela tarde de Natal. Apesar de meu
desejo não ser ver abuelo deitado em uma cama hospitalar em um dia no qual deveria estar em
casa com a família, fiquei feliz por ter aquele momento só meu e dele, com Bash junto, como se
ele fosse parte daquilo.
Mas eu não diria.
Não confessaria o que ele me fizera prometer não sentir.
“Fiz teatro quando estudava no ensino médio. Eu era muito bom. O melhor, na verdade.
Sendo assim, você está me pagando para atuar. E não vou decepcionar. Então, essa é a última e
mais importante regra: não importa quão convincente seja, não importa quão romântico
pareça… Você precisa me prometer que não vai se apaixonar.”
Sim, ele se mostrara ser mais paciente, carinhoso e sensível do que eu pensara. Bash me fizera
rir, me consolara e me protegera… Foi tão cuidadoso comigo quando vovô foi para o hospital,
tão atencioso no dia anterior… E eu me apaixonei por ele. Por aquele homem alto de corpo
tatuado, cara emburrada e coração enorme.
Mas ele mesmo dissera que cumpriria o acordo e não decepcionaria.
E não decepcionou.
Era hora de pôr fim ao contrato, aproveitar os próximos dias longe dele para superar qualquer
sentimento que eu estava proibida de nutrir.
Bash me abraçou de volta, apoiando o queixo em minha cabeça, mantendo o papel dele até o
último segundo.
— Obrigada por tudo — sussurrei.
Ele resmungou.
— Você me deve algumas massagens — murmurou de volta em meu ouvido. — Vou
adicionar ao seu pagamento.
— Huh — concordei com uma risada baixa. — Pode deixar.
Suspirou, me apertando mais forte.
— Você vai mesmo ficar bem?
— Vou — prometi. — Não se preocupe.
Bash se afastou para me olhar, me fitando desconfiado.
— Se aquele cretino aparecer…
— Ele não vai. — Sorri tranquilamente para confortá-lo. — Meu pai o proibiu de vir aqui. E
você fez um ótimo trabalho com o rosto dele, acho que não vai querer aparecer em público tão
cedo.
— Deveriam prendê-lo — Bash disse, alto o suficiente para seu motorista ouvir. Percebi o
corpo do homem se inclinar um pouco dentro do carro para escutar. — Sabe, por tudo que fez
com você e sua família.
— Não vão, infelizmente. — Suspirei. — É assim que funciona. Eles sempre culpam a
vítima… E mesmo depois de tudo o que aconteceu no jantar, não acho que vão simplesmente
ficar do meu lado. Para alguns, eu sempre serei a vagabunda que tentou levar o cunhado para a
cama. — Engoli em seco, sentindo minha garganta se fechar. — Independentemente se a verdade
veio ou não à tona.
Percebi o maxilar de Bash tensionar.
— Posso fazer uma visita ao Nolan antes de partir? — Ele afastou minha franja com a ponta
dos dedos. O olhar ficou perdido ali, descendo depois para as sobrancelhas, os olhos, a boca…
— Sabe, só uma conversinha entre amigos.
— Bash… — o repreendi.
— Não? — Bufou. — Tudo bem, então.
Sorri, sem conseguir controlar o impulso de tocá-lo uma última vez também. Quando eu
voltasse para casa, não poderia mais usar nosso contrato como uma desculpa para fazê-lo.
Afastei uma mecha de cabelo solto do seu rosto.
— Quando estiver no avião e sentir medo… — comecei com graça, mesmo que meu coração
estivesse louco no peito. — Pense nos sons que os animais fazem quando estão muito felizes.
Sebastian abriu um largo sorriso, aquele que fazia a covinha em sua bochecha aparecer. Ele
segurou minha mão em seu rosto e, ao invés de afastá-la para longe, a levou aos lábios, com um
beijo demorado em minha pele fria.
— Huh… — Assentiu. — Vou pensar.
— Te vejo em duas semanas, Bash. — Puxei minha mão antes que fizesse besteira e
definitivamente quebrasse a última regra.
Ele suspirou, acariciando minha bochecha mais uma vez antes de se afastar.
— Te vejo em duas semanas, Ames…
Então, entrou no carro, fechou a porta e partiu.
Estava puxando uma das caixas empoeiradas com meu nome para ver o que tinha dentro
quando alguém bateu à porta. Jen estava com os cabelos castanhos cacheados presos em um
coque desgrenhado no topo da cabeça, usava uma camisa grande e xadrez que só poderia ser de
Phill e uma calça jeans.
Fazia apenas três dias que vovô havia voltado do hospital, todos nos concentramos em mimá-
lo ao máximo e evitar que se esforçasse muito. Os médicos disseram que não sabiam a causa da
dor e, se piorasse, ele precisaria voltar. Contanto que se exercitasse e se alimentasse bem,
mantendo as prescrições anteriores, abuelo poderia ficar em casa.
Mamãe parecia ainda mais distante desde a ceia de Natal fracassada, e com o pai recém-
chegado do hospital e doente, se entregara àquela desculpa para não falar comigo de forma
alguma. Parecia mais quieta e silenciosa do que nunca. Pelo menos, não fazia mais comentários
ácidos nem reclamava quando eu estava no mesmo cômodo.
Jen era a responsável pela comida desde que tia Diana retornara para casa com o marido e os
filhos. Ela me deixava ajudar vez ou outra na cozinha, mas nós duas sabíamos como eu era um
fracasso naquela área. O máximo que podia oferecer era panquecas pela manhã. Então, não me
incomodava muito em fazer companhia. Minha tarefa era levar vovô para uma caminhada ao
redor da casa de duas a três vezes por dia.
Depois disso, meu tempo era gasto no sótão explorando as caixas fechadas e minhas coisas
antigas. Encontrara uma delas recheada dos meus livros favoritos, vovô não permitira que minha
mãe os jogasse no lixo ou doasse para alguma escola, eu suspeitava. Talvez tivesse esperança de
eu voltar para buscá-los. Naquele dia, a caixa da vez continha alguns objetos aleatórios, como
jornais, ceras e fotos em preto e branco que eu colecionava para fazer colagens quando
adolescente.
— Ei… — Jen fechou a porta, se sentando ao meu lado no chão. — Estão todos jantando,
você não vem?
— Depois — respondi, sorrindo para o caderno onde fazia minhas anotações, com trechos de
livros que eu gostava, músicas e ideias. — Estou sem apetite.
— Hm… Sem apetite ou fugindo de nós?
— Pode me culpar? — questionei, sem a encarar. A verdade é que o silêncio constrangedor
que reinava sobre a mesa nas refeições era tão ruim quanto os olhares duvidosos e o desprezo de
antes. Pareciam sempre desconfortáveis com minha presença. Por vergonha, mas ainda assim…
Minha prima suspirou.
— Sim, somos um bando de hipócritas terríveis — falou, abraçando as pernas. Senti seu olhar
em mim, me observando em silêncio.
— Não precisa se desculpar se isso te deixa desconfortável, Jen — resmunguei ao revirar a
caixa, encontrando uma revista de moda feminina dos anos 50. Folheei as páginas marcadas, os
modelitos que tanto sonhava em usar um dia. — Também não precisa ficar aqui e me fazer
companhia para compensar os últimos anos. Estou acostumada a ficar sozinha.
— Me deixa, Amy… — Bufou. — Nossa, você nem deixa eu tentar me redimir.
Soltei uma risada.
— Claro, fique à vontade.
— Eu só… — Suspirou. — Não sei quanto ao resto, mas sim, estou envergonhada. Por ficar
apenas do lado de Jolie quando deveria ter me aproximado de você também. Jo apareceu na
minha casa quando descobriu a gravidez, foi quando confessou as dúvidas que tinha sobre o
Nolan. Pensei que não deveria me meter, já era tarde demais para falar com você.
— Poupe sua consciência, Jen — falei enquanto dobrava a pontinha de uma página com três
sketches diferentes de vestidos midi com saia de sereia. —Não te odeio nem nada assim. Está
tudo bem.
E estava mesmo. Talvez meu coração só fosse bobo, mas não sentia raiva de Jen como sentira
de minha irmã e dos meus pais. Ela só aparecia uma ou duas vezes por ano depois que se casara
com Phill, e nosso relacionamento se tornou distante depois disso. Receber a notícia de que a
prima era, na verdade, uma sem-vergonha destruidora de lares com certeza a chocara. No
entanto, ela estava longe para ter certeza da minha inocência. Apenas pensei que, se nem meus
pais acreditaram em mim, seria uma perca de tempo tentar convencer o resto da família.
— Posso pelo menos tentar me desculpar com você?
— Claro — resmunguei, deixando a revista de lado. — Só não seja muito melosa, isso não
combina com você.
Minha prima riu.
— Então, olhe para mim enquanto faço um discurso não muito meloso.
Inspirei fundo, não honestamente ansiosa por aquilo. A verdade era que eu só estava naquela
casa ainda por causa de abuelo, para passar o máximo de tempo possível com ele. As pessoas
ainda me olhavam atravessado quando eu saía na rua e, mesmo com Nolan sendo o assunto da
vez, apesar de o foco ser ele, o casamento com Jolie e todas as complicações que os dois teriam
se ele fosse embora, ou se ficasse, ou se divorciassem, ou superassem… As pessoas não faziam
ideia de como um simples comentar sobre o aconteceu com o fulano poderia ser cruel.
Catastrófico.
E agora Jolie sofria com os boatos também.
Ela sabia e deixou a irmã levar a culpa? Ela vai largar ele? Mas será que vai conseguir se
casar de novo? E como vai criar os filhos sozinha? Será que Nolan a traíra com outras mulheres
esse tempo todo enquanto ela agia como a esposa leal e perfeita? Será que o filho é mesmo
dele?
Nolan não se pronunciara sobre o assunto. Pelo jeito, isso afetaria não só o status de bom
moço que ele tinha na cidade como também os negócios da família, aqueles que Nolan tão
orgulhosamente ajudara a gerenciar nos últimos anos.
Eu não tinha vontade de saber.
E uma parte feia e manchada do meu coração desejava profundamente que Sebastian tivesse
danificado tão feio suas cordas vocais para ele não poder mais falar ou quebrado um ou dois
dentes para não poder mais sorrir, que os olhos inchados não voltassem ao normal… Era um
sentimento amargo e, quando eu cedia, ele apertava meu coração com raiva, ódio e uma vontade
enorme de ir até a casa dele apenas para terminar o que meu colega de quarto havia começado.
Suspirei, me afastando da caixa a fim de me virar para Jennifer.
Ela segurou minha mão com as suas, as encarando com uma expressão de perda e
arrependimento. A mesma que vira em Jolie, tia Diana e os outros da casa. Até mesmo Phill,
apesar de ele nunca ter tido uma conversa realmente relevante comigo, mesmo antes de tudo.
— Sinto muito — disse, mais baixo e séria. — Não só por ter sido uma família horrível e
ausente para você, vamos pular essa parte, eu fui mesmo uma vaca… Mas por tudo o que passou
sozinha. — Ela ergueu os olhos escuros para mim, observando meu rosto com carinho e
compaixão. — Não consigo imaginar como deve ter sido… desesperador. Solitário.
Desviei os olhos para a caixa ao meu lado. Eu batera um recorde de três dias inteiros sem
chorar, não o quebraria agora.
— Pode parecer forçado, mas… Fico feliz quando as pessoas falam que Molly se parece com
você. — Jen soltou uma risada chorosa. — Só não é tão delicada e tímida, é muito bagunceira,
porém… Espero que cresça e se pareça com você não só fisicamente, mas no coração também.
Seja corajosa como você.
Droga…
Pisquei os olhos e fitei o teto.
— Eu disse sem discurso meloso, Jen.
— Desculpa. — Ela riu, apertando levemente minha mão. — Só queria que soubesse disso.
Ela adora a tia Amy, e tenho certeza de que vai sentir muito sua falta quando for embora. Eu
também, queria ter sido uma pessoa boa e ter tido mais tempo com você. Te ligado pelo menos
uma vez, saber como estava se saindo ou sei lá. Te ouvir. — Jen fungou, limpando os olhos com
a outra mão.
— Tudo bem — gargalhei baixinho. — Eu… Eu não tenho raiva de você.
— Pare de ser tão boa, Amy! Que droga! — Bufou e chorou mais. — Só grite com todo
mundo e diga que nunca mais vai voltar a colocar os pés neste lugar.
Dei de ombros, limpando o rosto dela.
— Vai me tomar muita energia — murmurei. — Acho que os ver arrependidos é o melhor
que vou conseguir agora. Não preciso de mais nada.
Ela revirou os olhos, me puxando para um abraço.
— Queria que voltássemos a ser crianças… — reclamou, em um tom muito parecido com a
voz de Molly quando me pediu o gato. — O Natal deste ano foi uma droga.
Dei risada ao me afastar dela.
— Foi… — Mas não o pior. Esse Natal fora, sim, uma montanha-russa. No entanto, mesmo
depois de toda a turbulência de emoções e conflito familiar… Minha mente sempre reproduzia
outras cenas. Aquelas que mais ninguém notara, que pertenceram apenas a mim e…
— Triste porque seu namorado foi embora? — Jen questionou, arqueando a sobrancelha.
— Ah. — Forcei um sorriso sem graça quando me voltei para a caixa. — Não. Quer dizer…
Sim. Mas só faz alguns dias, vou viver.
— Hm… — ela murmurou, e senti seus olhos me estudarem de novo. Sabia que os lábios dela
se repuxavam de um jeito malicioso. — Me conta, acha que ele é seu escolhido? Abuelo disse
que você queria terminar com ele.
— Abuelo precisa superar. — Porque ele vivia reclamando sobre aquilo, dezenas de vezes,
parecendo mais triste que eu pela partida de Sebastian.
— Ou você precisa só dizer a verdade.
Franzi a testa ao olhar para minha prima de maneira questionadora.
Jen puxou um papel da calça jeans.
Aquela calça jeans que ela me emprestara na noite da ceia de Natal. Aquela em que eu
guardara o contrato do namoro de mentira. Com tudo o que aconteceu, acabei me esquecendo
completamente de verificar antes de devolvê-la a Jen.
— Fiquei muito confusa no começo, pois costumo pregar peças no meu marido com
frequência. Mas a letra não era minha… E eu não me lembrava de criar limites para Phill tocar
meu corpinho… — Ela desdobrou o papel, correndo os olhos castanhos no que eu havia escrito
ali.
Meu coração parou de bater por alguns segundos, o sangue esfriou e deixou meu rosto. Não
consegui me mexer.
— Mas então tudo fez sentido — continuou. — Porque a última coisa que imaginei foi você
aparecendo aqui com um cara. E a forma como olhou para ele enquanto enfeitávamos os
biscoitos… Não eram um casal de dois anos. Você estava conhecendo aquele Sebastian.
— Eu… É que…
— Mas sabe qual é minha regra favorita? — Jen virou o papel para mim, apontando o último
da lista. — Proibido se apaixonar.
— Jen… — engoli em seco.
— Isso é tão coisa de livro, você não acha? — riu, dobrando o contrato de novo e reparando
no terror em meu rosto. Colocou o papel na minha mão. — Relaxa, Amelie. Não tem por que
fazer escândalo por causa disso quando já terminaram. Mas é tão triste, sabendo que os dois
estão claramente apaixonados um pelo outro e não se dão conta disso.
— Ele não… — Suspirei, fechando os olhos por um segundo para recobrar os sentidos. Eu
definitivamente queimaria aquele contrato de uma vez por todas. — Bash não está apaixonado
por mim. Foi ele quem criou essa regra, para começo de conversa. Ele só é… um bom ator.
— Nossa… — Jen assentiu. — Um ator bem convincente.
— Sim.
Ela riu e, antes de dizer o que tinha em mente, escutamos a voz estalada de Molly a gritando
do andar de baixo. Jennifer suspirou.
— Como se conheceram? — minha prima perguntou, ficando de pé.
— Somos colega de quarto — falei baixinho, e tentei afastar aquele calor e o aperto no
coração, um que fazia meu corpo amolecer e o estômago revirar de saudade, tristeza e euforia.
Porque eu o veria de novo, em breve. — Só… colegas de quarto.
Molly gritou outra vez.
— Então… Quando voltar para Boston, ainda vai estar morando com ele.
— Até eu ter condições de pagar um apartamento maior no centro da cidade? Sim.
Os lábios de Jennifer se esticaram em um sorriso largo e conspiratório. Ela riu, cruzando os
braços e me olhando de cima, divertida.
— Isso vai ser muito interessante…
— O que vai ser interessante? — Fechei a cara, mesmo sabendo a resposta. Não seria.
Quando eu voltasse para casa, continuaria fazendo panquecas pela manhã para as mulheres com
quem ele passava a noite.
— Seu número é o mesmo? Eu com certeza vou te ligar, Amy — ela respondeu enquanto se
dirigia à porta. Foi quando a filha a gritou pela última vez. — Quero muito saber como você vai
estar daqui a alguns meses.
Revirei os olhos.
— Cresce, Jen!
Ela gargalhou, dando um tchauzinho antes de sair para o corredor.
— Quebre as regras, Amy!
Quando cheguei em casa naquela noite, encontrei Claude deitado na cama de Amy. Como de
costume, pelo jeito. Fazia pouco mais de uma semana desde que voltamos para o apartamento, e
ele não parecia muito animado em sair de casa para explorar telhados vizinhos. Até a Sra. Hoang
apareceu para vê-lo porque ficara preocupada, pois o gato não ia mais até a janela dela para lhe
roubar alguns petiscos.
Ele sentia falta de Amy.
Bem, queria poder consolá-lo, mas eu não estava tão melhor que o animal.
— Não te criei para ser um gato alfa que se lamuria por uma mulher, Claude — falei, o
tirando da cama apenas para me deitar no seu lugar e colocá-lo no colo. Ele se espreguiçou,
deitando a cabeça sobre o peito. — Você precisa superar, cara.
Ele miou, como se fosse resposta suficiente.
Vai se ferrar, foi o que imaginei.
Fitei o quarto pequeno com cheiro de livros e algo doce e perfumado. Era engraçado como
dois quartos de um mesmo apartamento poderiam ser tão diferentes. Enquanto o meu era simples
demais, com um ou outro pôster para enfeitar a parede, uma cama de casal e instrumentos no
canto, o de Amy era menor e muito mais cheio de vida. Havia prateleiras de livros por todo o
espaço, croquis de moda com vestidos antigos, pilhas e mais pilhas de papeis para revisar, post-
its com ideias espalhados na parede próxima à janela. A visão dali não era nada encantadora:
apresentava os prédios da frente e uma escada de emergência.
Ainda assim… Era o espaço dela.
Claude passava a maior parte do tempo ali e me infernizara com seus choramingos a noite
inteira. Suspirei, acariciando a pelagem preta e macia.
— Também sinto falta dela — confessei, baixo. — Mas se contar à ela, te mando para a
adoção.
Outro miado entediado.
Se me mandar, talvez eu encontre um humano mais rico, foi o que interpretei.
— Acha que ela está sentindo falta da gente?
Meu gato respondeu lambendo a pata, com os olhos verdes brilhantes distraídos em sua
limpeza diária.
— Também acho — resmunguei, apoiando uma das mãos debaixo da cabeça. — Se não fosse
pelo avô, ela já teria voltado.
A verdade é que eu não estava tão melhor quanto Claude, e aquilo estava me enlouquecendo
aos poucos. Eu ficava distraído o tempo todo, não conseguia trabalhar direito durante o dia e
sempre precisava voltar com um pedido errado pelo menos umas quatro vezes pela manhã. Jason
já me demitira três vezes só naquele dia.
E não era só isso.
Não era apenas uma questão de tédio ou preguiça pós-feriado… Amy não saía da minha
cabeça, eu simplesmente não conseguia controlar quando me perguntava de repente como ela
estaria, o que estaria fazendo, se a família a estava tratando bem depois de descobrirem a
verdade, se o maldito do Nolan tentara falar com ela após a noite desastrosa…
E o Ano-Novo fora uma merda.
Depois que terminava de tocar no Green’s, não descia do palco para o bar atrás de companhia.
Eu seguia para os fundos, guardava minhas coisas e voltava para casa. E isso era lamentável, no
mínimo. Bufei, virando o rosto sobre o travesseiro com o cheiro do sabonete que Amy usava e
observei a estante de livros, os enfeites na frente deles, de acordo com a cor de cada um.
— Ela já leu tudo isso? — Franzi a testa ao observar os títulos. Muitos de fantasia,
provavelmente, alguns de suspense, outros dos quais eu já ouvira falar, romances
contemporâneos, romances históricos, romances… — Claude, acha que é muito invasivo dar
uma olhada nos livros que ela lê?
Ele me ignorou completamente.
— Concordo. — Me mexi, o fazendo deixar meu colo para me acomodar. Porém, quando me
levantei abruptamente, não prestei atenção na prateleira acima, batendo a cabeça com força.
Grunhi, observando a prateleira que, além de ter sido parafusada baixo demais, estava um
pouco torta também. Pensei que deveria ter uma caixa de ferramentas embaixo da pia ou no meu
quarto, em algum lugar. Eu poderia muito bem preencher o tédio consertando aquilo, colocando
as prateleiras no lugar certo.
Amy poderia ter pedido minha ajuda com aquilo. Na verdade, poderia ter me pedido ajuda
com muitas coisas naqueles últimos anos, mas nunca o fez. Nunca me disse quando precisava
montar alguma estante ou mesa, nunca me falou quando estava doente ou com problemas. Ela
preferia se esconder ali dentro e se virar da melhor forma possível. Perceber isso só me fez ficar
ainda pior; queria vê-la de novo e me desculpar por ter sido um babaca nos últimos anos.
Suspirei, passando a mão pelas lombadas na prateleira baixa e torta pregada ao canto da
parede. Havia livros ali também, só que aqueles tinham lombadas parecidas e gastas, como se
Amy os tivesse lido várias e várias vezes e os deixasse ali em destaque. Não estavam com os
outros porque mereciam um lugar de mérito, fácil de alcançar sempre que a dona sentisse
vontade de ler.
Seus favoritos, então.
Esfreguei a cabeça dolorida enquanto me sentava à beira da cama e escolhia um daqueles
livros, o mais gasto e cheio de marcações. Folheei o exemplar de capa verde com desenho de um
pássaro. Havia diversos destaques nele, tanto nas laterais quanto na parte superior, recheados de
tiras coloridas. Quando abria em cada uma delas, visualizava uma parte grifada da qual Amy
tinha gostado. Frases filosóficas, anotações sobre estrutura do texto, palavras que ela ainda não
conhecia, cenas que a fizeram rir e…
Capítulo cinquenta e cinco.
Franzi a testa, abrindo melhor o livro e me reclinando na cama para ler.
Meus olhos correram pelas palavras e, a cada uma delas, eles se abriam mais, até que
compreendi o que os dois estavam fazendo ali, de forma bem detalhada, por muitas páginas.
Muitas.
Meus lábios se esticaram à medida que ia lendo.
— Amy, Amy, Amy… — murmurei ao passar mais uma página com um sorriso largo e
debochado. — Então é isso que gosta de ler quando está sozinha neste quarto?
Continuei lendo e, quando dei por mim já estava folheando um segundo livro, de época dessa
vez. Me peguei muito surpreso pelas coisas que os personagens fizeram em um sofá.
— Pensei que livros de época fossem decentes — comentei para o gato alinhado aos meus pés
na cama de Amy, tirando um cochilo. — Eu deveria anotar algumas ideias…
Percebi o perigo de tudo aquilo quando as mocinhas foram substituídas no decorrer da leitura
e, de repente, não era mais um conde recém-casado e sua noiva nada inocente. Não era mais uma
cabana em uma montanha e uma banheira. Era Amy com aquele vestido indecentemente lindo e
perfeito, sua boca vermelha marcando meu corpo. Quando minha imaginação substituiu
facilmente os nomes no papel, fechei o livro da vez com força.
Eu estava entrando naquela linha perigosa de novo, pensando nela de novo.
“Você precisa me prometer que não vai se apaixonar.”
“Não vou me apaixonar por você.”
“Então escreva.”
“Não preciso escrever isso.”
“Escreva. Porque não quero te lembrar caso aconteça.”
Maldito hipócrita.
Passei as mãos no rosto, afastando as imagens que surgiram em minha mente, a sensação dos
lábios dela colados aos meus, sincronizados aos meus, o corpo de Amy contra o meu, sua
respiração em meu pescoço…
Engoli em seco, ficando de pé e assustando Claude outra vez.
Mas que grande merda!
Bufei e deixei o quarto de Amy, pegando a jaqueta jogada sobre o sofá e a vestindo
novamente.
— Preciso tomar um ar.
— Você não tinha que estar cantando em algum lugar agora? — Jason perguntou enquanto
colocava um copo de vidro na minha frente e o servia com a bebida cor de âmbar.
— Estou de folga — resmunguei, apenas encarando o líquido, como se minha resposta para a
incógnita que me atormentava estivesse lá dentro.
— Então, por que não tira essa bunda fedorenta do lugar dos meus clientes e vai lá pegar um
avental para me ajudar aqui? — meu primo murmurou enquanto passava um pano laranja sobre a
bancada onde preparava as bebidas, resmungando: — Preciso urgentemente contratar um
bartender. Você conhece algum?
— Não. — Girei o conteúdo do copo, distraído.
Talvez fosse o fato de não ter ninguém para infernizar nos últimos dias. Tocar para um
apartamento vazio não tinha tanta graça, Amy não apareceria minutos depois para socar minha
porta até eu parar com o barulho. E eu estava preocupado, oras! Não era um romântico, mas isso
não me impedia de me preocupar com ela ou com seu avô também.
Isso. Eu estava preocupado que algo tivesse acontecido com abuelo e ela não estivesse bem.
Porque apesar de ter o número de Amy salvo, não queria deixar qualquer sinal de que estava
mesmo pensando nela. Apenas isso.
— Você não estava viajando com sua colega de quarto? Como foi?
Esfreguei os olhos.
— Só fiz o que Amy pediu e voltei. Ponto.
Jay sorriu, apoiando os cotovelos sobre a bancada, os olhos se estreitando para mim.
— Ah-ram… E me diga, primo, porque essa cara de quem foi dispensado por uma bela dama?
— É o reflexo do seu rosto deprimente — retruquei. — Você ainda chora quando pensa na
Gina?
Jason revirou os olhos, jogando o pano em mim. Foi quando alguém ocupou a cadeira ao meu
lado, e a atenção do dono do restaurante chinês se desviou para a jovem debruçada sobre a
bancada. Ele sorriu para ela, se inclinando para perto.
— Ora, ora, o que temos aqui.
— Oi, gatinho. — A jovem de no máximo 22 anos devolveu o sorriso para meu primo, e eu
franzi a testa para Jason. — Quero o mais forte que tiver.
Ele me ignorou completamente e se concentrou na cliente de cabelo rosa-pêssego.
— Hm… Não, sei não. Não deu muito certo da última vez que te deixei beber.
— Não estou lembrada disso. — Apoiou o queixo sobre o punho. — Qual é, Jay… Eu tive um
dia difícil.
Ele buscou algo no restaurante, talvez conferindo o movimento de clientes naquela noite.
Então, pensou um pouco.
— Dois drinques, só.
A garota abriu um largo sorriso para ele.
— É o suficiente.
Ela era linda. Linda de uma maneira muito peculiar. A pele era clara e lisa, sem qualquer
mancha, pintinhas ou cicatriz; o nariz era reto e fino, os lábios se repuxavam tranquilamente em
um sorriso. Ela usava um simples vestido curto de alça, de estampa xadrez azul-claro, sobre uma
camisa branca de mangas compridas. O cabelo era definitivamente o que mais chamava atenção,
e tive a leve impressão de já tê-la visto antes, mas com os cabelos loiros e mais longos…
Dessa vez, estavam curtos e rosa.
Mas foram os olhos cor de vinho ou rubi bruto que a tornaram realmente única. Eles se
voltaram para mim, e a jovem virou o corpo no assento, cruzando as pernas e apoiando um dos
braços na bancada. Ela sorriu, confiante.
— El, esse é meu primo Sebastian Wang. Sebastian, essa é Eleanor Beaufay. Ela se mudou
para a cidade algumas semanas atrás.
— Dois Wangs no mundo… Tsc, tsc… — Eleanor me analisou descaradamente, de cima a
baixo, e o rosto lindo assumiu uma expressão sedutora. — É até difícil escolher meu favorito
agora.
Estreitei os olhos e me virei para ela também. Mas foi Jay quem respondeu primeiro:
— Somos três, acho que o Drew vai fazer mais seu tipo.
— É mesmo? — El ergueu uma sobrancelha sob a franja bagunçada, lançando um olhar
divertido para Jason. — E por que diz isso?
— Não sei, você gosta de fazer homens gostosos e nerds gaguejar e corar — ele respondeu, e
em seguida gritou para o rapaz de uniforme que passava atrás de nós: — Mason, mesa quatro,
agora!
— Sim, chefe!
— Khaty! — Estalou os dedos, fazendo um sinal para a garçonete novata que flertava com um
grupo de jovens na mesa sete. — É a segunda vez, querida.
Vou te mandar para rua na próxima, era o que ele queria dizer.
Alguém apareceu da cozinha com uma expressão desesperada.
— Chefe!
Jason bufou, me lançando um olhar suplicante.
— Não — falei apenas. — Eu disse, noite de folga. Estou conversando com uma linda mulher
agora.
Eleanor sorriu, tomando o copo de vidro da minha mão para levar até a boca.
— Converse com a linda mulher do lado de cá. — Ele desamarrou o avental preto da cintura e
jogou para mim. — Anda logo, Bash!
Suspirei, ficando de pé e dando a volta na bancada. Quando o primeiro cliente apareceu, eu o
ignorei, servindo mais daquela bebida que Jason me dera no copo estendido para mim por
Eleanor.
— Então, se ouvi bem, você levou um chute na bunda?
— Ouviu muito mal — respondi ao me inclinar sobre a superfície, tomando o drinque da mão
dela. Ela tinha um cheiro específico de rosa; não um perfume qualquer de flor, mas um que me
lembrou roseiras na primavera.
Aquela não era a primeira vez dela flertando com um homem e, pela forma sutil como
inclinava a cabeça e acariciava o próprio pescoço, sabia o que estava fazendo. E não me importei
se estava no jogo. Eu precisava mesmo de uma distração.
— Bem, você tem aquela cara de quem levou um fora. — Estreitou os olhos rosados. — Ou
talvez… Uma pessoa especial que não te sai da cabeça? Isso é frustrante, né?
Senti meus lábios se repuxarem inconscientemente.
— Você é bem convencida, não é, Eleanor?
— Por quê? — Fingiu inocência. — Acertei?
— Pela forma como sorri para mim agora, sabe que sim.
Ela se inclinou para mais perto.
— Estou curiosa, me conta.
Ri.
— Quer saber como levei um fora? — sugeri, sorvendo mais um pouco da bebida.
— Não… — Ela esticou o braço direito sobre a bancada e pegou a garrafa. Nós dois
ignoramos o homem parado ao lado dela, me encarando irritado pela demora no atendimento.
Eleanor balançou os dedos na direção dos copos de vidro limpos e dependurados atrás de mim.
Peguei um para ela. — Quero saber em quem está pensando.
— Demais para um primeiro encontro, não acha?
— Ah, lindo… Eu só trabalho com primeiros encontros. — Sorriu de forma maliciosa. — E
você não me parece o tipo de cara que compra flores e liga no dia seguinte, por isso a ideia de
saber que alguma garota especial te fisgou é tão divertida. Eu sinceramente morro de medo de
que isso aconteça comigo.
E foi assim que soube que gostava dela. Sincera, sem rodeios, Eleanor falava o que bem
entendia e não estava à procura do amor da sua vida aquela noite.
— Vamos, Bash… — brindou seu copo no meu, dizendo de forma debochada: — Me conte
sobre a pessoa que perturba seus pensamentos.
Eu não contaria antes. Porque antes não havia a possibilidade, sequer a ideia insana, de ter
alguém em mente. Antes não havia vontade de vê-la o tempo todo, de ouvir sua voz, sua risada…
Até os óculos ridículos, eu sentia falta deles.
E isso estava me deixando desesperado àquele ponto.
E pela expressão no rosto de Eleanor, ela sabia que estava certa, não adiantaria negar.
— Talvez eu possa ajudar. — Ela piscou os olhos grandes e hipnotizantes sob os cílios longos
e pretos para mim, esperando.
O cliente impaciente bufou e foi embora.
— Passamos um fim de semana juntos — falei, por fim. — E agora estou nesta situação
deplorável.
— Hm… E ela se declarou para você ou algo do tipo?
— Não… — Esfreguei os olhos, cansado. Quando os fechei por um segundo, o rosto delicado
de Amy me veio à mente. — Foi um namoro falso.
Eleanor riu.
— Não…
— Sim… — Fiz uma careta sofrida, lhe arrancando outra gargalhada.
— Céus… — resmungou desacreditada, quase enjoada. — Isso existe mesmo? As pessoas
fazem isso?
— Pelo visto, sim.
— E rolou uma química, vocês criaram limites, mas não adiantou de nada?
— Ela é minha colega de quarto — expliquei, irritado com a confusão sentimental em que
havia me metido.
— Entendi… — Eleanor conteve o riso outra vez. — Eu estou… fascinada, na verdade. Você
está mais ferrado do que imaginei.
— Obrigado. — Engoli o resto da bebida, esticando o copo para ela encher dessa vez.
— Eu sei que amor é uma droga que as pessoas inventam para vender livros e filmes
bonitinhos, mas… Me conta, por que pensar nessa sua colega de quarto está te fazendo sofrer?
— Não disse que estou sofrendo. — Bufei.
— Só disse que não consegue parar de pensar nela… — A moça de cabelo rosa deu de
ombros. — O que é realmente uma droga.
— Só estou preocupado com ela.
— Mentiroso. — Revirou os olhos. — Vocês, homens, são sempre uns mentirosos. Só fala:
ela me pegou de surpresa, mostrou ser uma pessoa incrível e agora quero pegar ela pra valer!
Ri de sua ridícula tentativa de imitar uma voz masculina, a minha provavelmente.
— Só… — Tudo bem, era uma mentira. — Amelie é a mulher mais incrível e doce que já
conheci. É sincera, sensível e divertida. Não sou o tipo de cara para ela. — Eleanor girou os
olhos. — Não sou. Não quero que ela crie expectativas que não posso suprir. E ela já passou por
muito, só merece uma pessoa melhor.
— Uau… — Minha ouvinte fechou os olhos, fingindo estar tocada. Puro e completo deboche.
— Isso foi… romântico.
Fiz uma careta.
— Eu não sou um romântico — grunhi.
— Talvez não seja mesmo… — assentiu. — Na minha experiência, que é muito rica de
exemplos bem ruins, diga-se de passagem… Se quer mesmo seguir em frente, você supera uma
pessoa com outra.
Corri o olhar pela jovem diante de mim, pelo sorriso insinuativo em seus lábios.
Ela tinha aquele ar rebelde, aquele tipo de mulher que com certeza te levaria à loucura por
uma noite inteira e definitivamente não choraria por você não ligar de volta. Talvez fosse isso
que eu precisasse para esquecer o Natal desastroso. Esquecer o quanto queria e parecia precisar
de Amelie agora.
— É… — murmurei, fitando os olhos de cor estranha e linda. — Acho que funcionaria, sim.
Eleanor umedeceu os lábios, encarou os meus por alguns segundos.
— Sabe, é tentador ter um Wang na lista… — disse em um tom brincalhão. — O outro está
fora de questão.
Ri.
— É mesmo? Jason não faz seu tipo?
— Você trabalha aqui? — Ela arqueou a sobrancelha, ignorando minha pergunta.
— De manhã, fazendo entregas. De noite, tocando no Green’s.
Compreensão cintilou nos olhos dela.
— Claro! Eu sabia que tinha te visto em algum lugar… O vocalista gostoso do Green’s.
— Não me lembro de ter te visto lá. — Mesmo que tenha, sim, achado o rosto familiar, com
certeza me lembraria do cabelo rosa e dos olhos cor de vinho.
Ela sorriu.
— Você não viu.
— Gosta de bancar a misteriosa, Srta. Beaufay?
— Huh… É meu passatempo favorito.
Eleanor me fitou por alguns segundos. Era confiante, sim, eu gostava disso, mas estava claro
o que ela queria também. Seus olhos diziam. E a mulher não estaria flertando comigo daquela
forma se não quisesse.
— Também estou querendo esquecer uma pessoa irritante, Bash.
— Interessante… — Virei mais um gole do líquido que queimou minha garganta, me
preparando para chamá-la, sair do restaurante e seguir até meu apartamento.
Mas aquele sorriso em sua boca perfeita se transformou em algo divertido e presunçoso.
— Mas não durmo com pessoas com quem posso acabar facilmente trombando por aí.
Gargalhei, apoiando ambas as mãos na bancada.
— Você está me dando um fora depois de me provocar?
Ela virou o restante do líquido âmbar pela garganta e cantarolou:
— Hey, ele vai pagar minha conta — falou para alguém atrás de mim, e logo meu primo
surgiu outra vez, com aquela expressão irritada que usava quando estava na cozinha.
— Quantos drinques ela bebeu?
— Dois — resmunguei, enchendo meu copo pela quarta vez.
— E você serviu mais alguém além dela?
— Não.
Jason bufou, tomou a bebida da minha mão, me empurrou para o lado e assumiu uma
expressão sorridente e sedutora quando uma cliente apareceu, solicitando o cardápio de bebidas.
Eleanor riu, ficando de pé.
— Sabe — disse, passando a alça da bolsa sobre o ombro. — Você faz totalmente o meu tipo,
Sebastian.
Me inclinei sobre a bancada e me aproximei dela outra vez, sentindo aquele cheiro de rosas
me embalar.
— Tem certeza de que não quer se divertir comigo esta noite?
— Tsc… — Esticou a mão e tocou meu lábio inferior com o polegar. — Tentador.
Segurei sua mão, a afastando.
— Você também faz meu tipo, Eleanor… por uma noite.
— Uma noite, apenas. — Riu. — Se quer esquecer sua coleguinha, por que não conversa com
a ruiva da mesa sete? Ela está te secando desde que cheguei.
Acompanhei o olhar.
Sim. Bonita, alta, cabelos longos e avermelhados, olhos claros pelo jeito, e sorriu
imediatamente quando nos encaramos. Mas aquele era um rosto que eu definitivamente vira
antes, e não foi a lembrança de mechas ruivas desgrenhadas na minha cama que me veio à
mente. Tentei pensar por um segundo.
— Você já dormiu com ela, não é? — Eleanor cochichou com cumplicidade.
— Não consigo me lembrar.
Ela gargalhou alto, recuando um passo. Dois.
— Te vejo por aí, Bash! — gritou quando virou as costas, sem se incomodar com os clientes.
Sorri, pensando que aquela fora a primeira vez que me rejeitaram tão descaradamente. Mas
antes de me permitir pensar mais nos olhos rosados e no cabelo colorido, imaginar que talvez ela
teria me distraído naquela noite, meu sorriso morreu de imediato. E me lembrei de quem era a
pessoa me encarando da mesa sete.
— Merda! — praguejei baixinho.
— O que foi? — Jay franziu a testa quando me agachei de repente atrás da bancada.
— Zebra — murmurei, fechando os olhos por um segundo e sentindo um arrepio percorrer
meu corpo. — É a mulher que faz sons de zebra!
— Quê?
E ali estava, simples assim: pensei naquela garota de óculos vermelhos e risada encantadora
de novo. Mesmo já traçando uma rota de fuga para fora do restaurante sem a mulher me ver, me
lembrei de Amy.
E sorri.
— Por que me trouxe aqui? — Vovô bufou e se acomodou na cadeira da cafeteria com aquela
cara de quem foi arrancado da cama de novo.
E foi.
— Bem — comecei, sem me sentar à mesa, sorrindo enquanto ajeitava a touca sobre a cabeça
dele —, é meu último dia aqui e queria sair um pouco de casa.
Vovô deu um tapinha na minha mão, me afastando.
— Você só vai amanhã, por que tinha que me acordar tão cedo? — reclamou ao se encolher
na cadeira e enfiar as mãos dentro dos bolsos do sobretudo cinza. — Estava bem quente e
aconchegante.
— Me desculpe se sua neta quer aproveitar mais tempo com você.
— Não… Você não me deixa em paz porque acha que vou morrer a qualquer momento —
retrucou, observando o cardápio, as imagens e opções de café neles. — Mas fique tranquila,
estou me sentindo bem hoje.
— Hm… não sei, n…
— Bem irritado — completou.
Gargalhei, tirando a carteira da bolsa.
— Vou pegar alguma coisa para a gente beber. O que o senhor quer?
— Me dê esse. — Apontou. — Parece bom.
— Sim, senhor.
Aquela era uma cafeteria bem menor e mais simples do que a que fora com Bash quando
chegamos à cidade. Havia até mesmo um espaço com livros reservado para os clientes poderem
ler enquanto tomavam suas bebidas quentes. E apesar de ser bem movimentada, tinha sido meu
lugar favorito nos últimos dias, quando sentia vontade de sair. O olhar das pessoas ainda me
incomodava, mas parte delas parecia mais curiosa do que irritada com minha presença, já não me
tratavam com tanto desdém e indiferença como antes. Mas ainda estava ali, correndo entre os
murmúrios das pessoas que não tinham nada melhor para fazer com a vida.
Eu apenas me sentava no canto mais afastado com um livro e um café, com fones de ouvidos
e Elvis tocando na cabeça. E simples assim, as pessoas desapareciam e ficava mais fácil. Porque
eu deixava de pensar nelas para pensar em outro alguém.
— Bom dia — falei com um sorriso gentil para o atendente. Ele já não parecia mais tão
interessado em ficar me encarando como da primeira vez. — Pode me ver dois Latte Macchiato,
por favor?
— Gostaria de algum lanche para acompanhar a bebida?
— Apenas o café — respondi, depositando as notas sobre o balcão.
— Certo, aguarde aqui, por favor — ele disse, anotando algo e já entregando para a colega.
Ela se aprontou para fazer meu pedido, e o rapaz um pouco mais alto do que eu, de olhar triste e
caído e uma expressão não muito animada, olhou para o cliente atrás de mim. — Próximo.
— O mesmo que o dela.
Paralisei por um segundo ao ouvir a voz, e imediatamente corri os olhos para meu avô do
outro lado do estabelecimento, distraído demais com as paisagens rústicas dos quadros na parede
ao seu lado. Ele não me olhou de volta.
Meu coração iniciou uma corrida desesperada para fora da boca, e não ousei me virar para
Nolan quando ele esticou o braço sobre meu ombro e estendeu a nota para o rapaz atrás do
balcão. O perfume dele me embalou, me deixou tonta e enjoada. O atendente observou meu
rosto, como se conseguisse ver o desespero.
— Se quiser, moça, levo para você na mesa — disse tranquilamente.
Nolan suspirou, se aproximando de mim para ficar ao meu lado, me observar.
— Ah, mas eu queria colocar o papo em dia — ele resmungou para mim, e não virei a cabeça
uma única vez para confirmar se os ferimentos provocados por Sebastian já estavam
cicatrizando. Não havia emoção alguma na voz dele enquanto continuava: — Saber como anda a
vida… O namoradinho que me espancou… Ele já voltou para Boston?
— Moça — o atendente me encarou com um olhar preocupado —, espere na mesa…
— Está incluso no treinamento se intrometer na conversa dos seus clientes? — Nolan
questionou entredentes, impaciente, tão diferente do homem educado e gentil que costumava ser
com as pessoas.
— Não, senhor — respondeu o rapaz, áspero. — Mas posso interromper qualquer tipo de
tentativa de assédio.
Não conseguia respirar. De raiva, de pavor… O que eu mais queria naquele momento era que
Nolan desaparecesse de uma vez da minha vida, que eu parasse de temer encontrar com ele por
aí. Mas…
Era meu último dia. Eu voltaria para casa logo.
Ele riu, desacreditado.
— Não vai me dizer que acredita nos boatos…
— Eu, ela — o rapaz apontou para a colega —, aparentemente aquele cara ali também…
— Você não sabe da verdade — Nolan grunhiu.
— Senhorita… — O atendente usou um tom amigável, educado e extremamente sarcástico
quando disse para mim: — Se sente desconfortável com esse homem conversando com você?
Clareei a garganta, controlando o tremor na voz.
— Huh. Me sinto.
— Gostaria que ele parasse de te incomodar?
— Sim, gostaria.
A outra atendente se aproximou com três copos descartáveis e grandes de café. O rapaz
entregou o de Nolan primeiro.
— Então vou pedir que o senhor pegue seu pedido e se retire, por favor.
O homem ao meu lado não respondeu, e eu imaginei se haveria um sorriso irritado em seu
rosto.
— Se eu quiser, posso me sentar em um desses bancos, ler um livro… Não fiz nada com ela.
Apertei as mãos em punho, sentindo os nós embranquecerem. Encontrei o olhar preocupado
de abuelo, pronto para se levantar. Mexi a cabeça, fiz que não. Ele permaneceu no assento.
— Sendo assim, peço que não a incomode — o garoto disse, apontando uma mesa vazia no
lado oposto de onde eu iria me sentar com meu avô. Ele me entregou os dois copos de café.
— Obrigada.
Quando ameacei me virar para sair, porém, senti um braço forte segurar meu braço.
— Não acha que precisamos conversar, Amy? — perguntou baixo, forçando a gentileza na
voz áspera.
Não consegui evitar o olhar dele dessa vez e, quando encarei seu rosto, senti orgulho de
Sebastian. Estava pior do que eu havia imaginado: o olho esquerdo aparecia rodeado por uma
mancha roxa e esverdeada, indicando o quanto o golpe fora feio. O nariz não parecia mais tão
reto quanto antes. E Nolan aparentava estar miserável o suficiente para deixar a pele bronzeada,
normalmente lisa, agora com a barba por fazer.
— Me solte — pedi baixinho, e indiquei o garoto atrás do balcão. Ele pareceu mais atento
com isso.
— Sr. Willis, é melhor o senhor…
Nolan obedeceu antes do final da sentença, passando as mãos pelo cabelo bagunçado em
frustração. Ele tensionou o maxilar, os olhos azuis brilhando com lágrimas e raiva.
— Está feliz agora? — murmurou, dando um passo à frente.
Não recuei.
— Feliz? — Soltei uma risada seca, com um gosto ruim na boca. — Feliz pelo que você fez
comigo?
— Você arruinou minha vida, Amelie! — explodiu, e chamou a atenção de todos na cafeteria.
O olhar estava vítreo, angustiado e enfurecido.
— Você arruinou a minha primeiro. — Mantive o tom de voz controlado. — E você tem sorte
de não estar na cadeia agora.
— Amy…
— Me deixe em paz! — Me afastei quando ele deu um passo à frente, tentando me alcançar
de novo. Minha voz falhou. — Por favor… — pedi, mais baixo. — Me deixe em paz.
Sua respiração estava alterada, conseguia ver o turbilhão de emoções em seu rosto. O ódio, a
indignação e, principalmente, o desespero. Não pensei sobre isso, não pensei se seria por mim ou
por saber que Jolie não daria uma segunda chance, por saber que não poderia ter a guarda dos
dois meninos a caminho, a família linda que poderia ter construído. Ou talvez nada disso, talvez
o medo e a frustração de saber que a imagem tão meticulosamente construída para si ao longo
dos anos estava ruindo aos poucos.
Não pensei.
Não quis tentar entender.
— Por favor — supliquei uma última vez.
Os lábios de Nolan tremeram, os dentes trincados. Aquele brilho fervilhante nos olhos azuis
se intensificou e, só por um segundo, desejei que fossem mesmo lágrimas de tristeza. Que ele
não estivesse só com o orgulho ferido, porque perdera no final das contas, porque seus planos
fracassaram, mas porque um dia me amara de verdade e se arrependia. Mas seria esperar demais
de alguém que simplesmente não valia a pena.
Virei as costas, com uma vontade imensa de desaparecer para desabar sozinha em algum
lugar. Porque aquele foi um dia o cara amado e desejado por mim, que me fez rir; porque quando
estávamos juntos, jamais pensei que um dia ele seria capaz de me fazer chorar e sofrer.
Quando voltei para a mesa, colocando os cafés sobre a superfície, vovô apoiou uma mão
enluvada sobre a minha, trêmula. Senti os olhares em mim, mas a maioria esperou pela reação de
Nolan.
Ele percebeu que não era bem-vindo ali e, mesmo se tentasse distorcer os fatos, algumas
pessoas acreditariam, sim, na minha história. Apesar de não ser a maioria, apesar de ainda haver
aqueles que confiariam nele. O atendente continuou encarando Nolan, alguns clientes o fitaram
desconfiados também, e quando ele decidiu que não seria uma boa ideia ficar no
estabelecimento, saiu.
Soltei o ar aliviada, fechando os olhos com força.
Vovô apertou minha mão.
— Você está bem?
— Huh. — Forcei um sorriso. — Estou bem.
— Não minta para mim.
— Não, é sério… Eu… — Certo. Não mentir. — Eu vou ficar.
Abuelo suspirou, encarando sua mão sobre a minha.
— Não sei porque se deu ao trabalho de ficar, filha. Não pertence mais a este lugar.
— Quero passar mais tempo com o senhor.
Ele bufou, tomando o café da mesa para levar aos lábios enrugados, sorvendo um pouco.
— E seu trabalho? As férias de inverno terminaram há uma semana! Você disse que voltaria
no fim delas e ficou mais sete dias! Você se esforçou tanto para entrar em uma editora
importante, e agora vai jogar isso no lixo por causa de um velho como eu?
Respirei pacientemente, aquela não era a primeira vez que discutíamos o assunto.
— Expliquei a situação para o meu chefe, e ele compreendeu. E consegui revisar alguns
textos enquanto estive aqui, não vou ser demitida… — Damian descontaria do meu salário? Sim.
Deixara isso claro? Também. Mas ao menos desejou melhoras ao meu avô no final da ligação.
— Se desperdiçar sua vida por minha causa, Amelie… — Vovô parou para respirar, o peito
sempre ofegante quando se esforçava demais para falar. — Me sentirei miserável até morrer.
— Vô… — Suspirei. — Para de drama, eu disse que volto para casa amanhã.
— Pode mentir, como fez da última vez. Comprei o presente de despedida por nada! —
Bufou. — Você ainda estava aqui no dia seguinte.
Dei risada, bebericando meu café.
— E eu adorei! — Balancei as pontas do cachecol vermelho para ele com a mão livre. — Não
faz ideia de como fiquei emocionada quando abri a caixa. Eu queria muito ele.
Vovô apenas balançou a cabeça, desapontado.
— A vida é curta demais para ser desperdiçada, filha.
— Concordo — assenti. — E curta demais para ficarmos longe das pessoas que amamos. Só
quero compensar os últimos anos que perdi com o senhor.
— Já fez isso, agora vá!
Sorri, esticando a mão para apertar levemente a sua.
— Só se o senhor prometer me fazer videochamada todos os dias.
— Não.
— Então vou me demitir e voltar para esta cidade horrível e sem graça para todo o sempre.
O senhor de idade me encarou irritado, e meu sorriso se alargou mais.
— Temos um acordo? — Franzi a testa.
Ele bufou antes de assentir.
— Promete de dedinho?
— O que é isso? — questionou com uma careta, me fazendo rir.
Me inclinei sobre a mesa, tomando a mão enluvada e quente dele para enroscar seu dedo
mindinho com o meu.
— Pronto… Temos uma promessa. O senhor não pode quebrar uma promessa de dedinho —
falei, séria. — Se ficar um dia sequer sem me ligar, pego um avião para cá na mesma hora.
— Garota insuportável — praguejou, e fez barulho ao sorver o café.
— E o senhor me ama tanto… — cantarolei.
— Sim — ele assentiu, finalmente se livrando da carranca habitual para me fitar com carinho,
como se guardasse cada detalhe do meu rosto em sua memória. — Eu amo mesmo.

— Você não vai falar com seus pais? — A voz rouca de vovô disse um tempo depois que
deixamos a cafeteria, andando devagar pela calçada com o braço entrelaçado ao meu.
— Não acho que eu deva falar com eles — resmunguei, concentrada no chão diante de nós,
atenta a qualquer rachadura ou buraco que poderia levar vovô a tropeçar.
— Um dos lados precisa falar primeiro.
— Esperarei sentada.
Ele soltou um longo suspiro, aquele que indicava sua discordância.
— Seu pai chorou o dia inteiro depois de finalizar a ligação com você naquele dia. Esperou
que sua mãe parasse de falar e reclamar e, quando se viu sozinho, chorou. Disse para mim o
quanto se arrependia.
Sim, ouvir aquilo tocava meu coração, mas não o bastante.
— Ele deveria dizer isso para mim, não para o senhor.
— Julio tem vergonha. Está com medo de se aproximar e você o afastar. Porque tem esse
direito.
— Eu jamais o desprezaria, mesmo depois de tudo — falei, com aquele nó familiar na
garganta. — Mas não vou ser mais a primeira a dar um passo à frente. Eu… — Quanto mais
repetia para mim mesma, mais me convencia. — Eu não fiz nada de errado.
— Eu sei, filha. — Meu avô suspirou. — Só não queria que partisse sem falar com eles.
— Isso é uma escolha deles, não minha.
Outro suspiro resignado.
— Ela sequer me perguntou como eu estava, vô. — Ele sabia que agora falávamos da minha
mãe. — E sinceramente? Tenho quase 100% de certeza que ela ainda acredita em No…
— Não — ele me interrompeu com aquele tom de voz autoritário e sério. — Não, ela não
acredita.
— Bom, não parece.
Abuelo inspirou fundo.
— Enquanto seu pai não fala com você por medo e vergonha, sua mãe é orgulhosa demais
para assumir os erros, Amelie. Ela sabe que errou, sabe que você está certa, e isso… é muito para
o orgulho daquela mulher. Dê um tempo a ela e…
Balancei a cabeça, sentindo o sangue esquentar de novo, vontade de xingar e chorar de novo.
— Sabe o que é, vô? — eu o cortei. — Sinto raiva dela bem antes de tudo isso acontecer.
Sinto raiva porque ela claramente sempre preferiu mais Jolie do que a mim. Sempre paparicou
mais Jo porque eu não conseguia me socializar com as pessoas como ela fazia, não conseguia
forçar sorrisos e fingir gostar de um assunto como ela, não me importava em dedicar todos os
dias da minha vida sonhando com um marido rico e de família importante… — Foi fácil engolir
o choro quando a raiva e a mágoa tinham um gosto mais forte. — Sempre percebi o favoritismo
dela por Jolie, sempre soube que não era tão amada pela mamãe, talvez nem um pouco amada
por ela. Nunca realmente consegui fazê-la me ouvir. O que aconteceu com Nolan foi só para me
dar a certeza.
Meu coração estava acelerado, e talvez não fosse o melhor momento de jogar aquelas coisas
em cima de vovô, mas eu havia segurado demais aquele ressentimento para contê-lo agora.
— Não vou tentar ser a filha perfeita e altruísta quando ela não demonstrou uma vez sequer se
importar com o que eu queria. — Parei de andar, fazendo abuelo estacar na calçada também.
Alguns pedestres nos olharam, curiosos, mas os ignorei. — Ou até Jolie! Talvez ela quisesse
viajar para Paris e se formar em moda, não sei… Ser uma empresária de sucesso. Mas mamãe
nunca parou para saber ou se importou com isso, sempre a tratando como um projeto de esposa
perfeita de alguém — finalizei, ofegante. — O que eu mais queria neste mundo era o amor dela,
vô. Mas alguns sonhos simplesmente não duram. Não quando dependem de outro alguém. Não
vou me humilhar pelo carinho da pessoa que me trouxe ao mundo. Da pessoa que deveria me
amar incondicionalmente. Não mais.
Vovô assentiu, voltando a caminhar em silêncio. Pensativo.
Eu o acompanhei igualmente quieta.
Apesar de doer, meu peito parecia um pouco mais leve por ter dito aquilo. Mesmo que para
ele, e não para a minha mãe. Conhecendo vovô, sabia que mais tarde, depois de eu já ter entrado
no avião, ele daria um puxão de orelha na filha.
— Sua avó era assim… — disse depois de alguns segundos.
— Eu sei.
— Pegava ainda mais pesado com Nora do que sua mãe pega com vocês. — Suspirou. — Elas
viviam brigando, e sempre que Nora tentava retrucar, recebia um tapa no rosto. Foi um
casamento arranjado, sabia? Sua avó e eu.
Sabia. Ele sempre dizia isso.
— Eu falhei com Nora… Sabia que ela era solitária e recebia muita pressão da mãe e, como
um esposo obediente, não fiz nada. Apenas cumpri meu papel, amei sua mãe do meu jeito,
deixando sua avó amá-la do jeito dela. — Vi a tristeza nos olhos escuros. — Eu deveria ter me
imposto, ter dado mais carinho, conversado, escutado… Dito à sua avó para pegar mais leve com
Nora. Mas, céus, eu morria de medo daquela mulher.
O tom de sua voz me fez rir.
— Todo mundo tinha medo dela.
— Sinto muito, filha… — falou para mim, apertando minha mão em seu cotovelo. — Queria
que tivesse sido diferente.
— Eu também.
— Espero que se resolvam um dia.
Não consegui responder. Não tinha energia para mentir. Não mais.
— Vamos para casa.

Não consegui parar de pensar no que vovô dissera pelo resto do dia e, apesar de não querer
ceder em relação à minha mãe, de carregar uma mágoa tão antiga e endurecida no peito, não
consegui ficar quieta quando pensei em papai. Eu vira a forma como ele me olhou no dia da ceia,
como disse que estava feliz em me ver e sentia minha falta…
O Sr. Sanchez sempre fora um homem reservado e talvez, como vovô, sentia medo da esposa;
meu pai também parecia intimidado por minha mãe às vezes. Mamãe sempre fora a pessoa que
repreendia e colocava de castigo, enquanto ele era o que limpava as lágrimas e fazia biscoitos
para nos consolar. Mesmo sem falar nada para contrariar a mulher, sempre dera um jeitinho de
mimar Jolie e eu escondido dela.
E eu sentiria falta disso sempre que pensasse nele.
Aqueles momentos não voltariam, no entanto.
Quando desci as escadas naquela noite, o encontrei na cozinha amassando uma receita de
massa sobre a bancada. Ele tinha aquela mesma expressão serena de sempre, mas parecia mais
distraído do que o normal e não notou minha aproximação quando parei de frente para ele.
— Arepa[15]?
Ele me olhou surpreso, franzindo a testa.
— Não te vi aí…
Sorri um pouco.
— Pensando muito?
— Eu… — assentiu, suspirando e voltando o olhar para a massa. — Queria fazer alguns para
você levar na viagem.
Engoli em seco, com o coração apertado no peito.
— Quer ajuda?
Os olhos escuros me fitaram com aquela emoção surpresa de novo, como se não esperasse
mesmo que eu quisesse passar algum tempo com ele.
— Não tem que arrumar as malas?
— Já estão feitas — respondi, me direcionando à pia para lavar as mãos. — Não trouxe muita
coisa, de qualquer forma.
— Ah, claro.
— Estou levando algumas coisas minhas que ficaram aqui, se mamãe quiser jogar o resto
fora… Tenho certeza de que está ansiosa por isso.
Os lábios de papai se esticaram um pouco, em um sorriso triste.
— Foi ela quem empacotou suas coisas e guardou lá em cima, cariño[16].
Me virei para ele, os olhos arregalados.
— O quê?
— Não me pergunte. — Riu sem graça. — Nunca entendo aquela mulher.
— Mas…
— Dê um tempo a ela. Nora tem um jeito estranho de demonstrar os sentimentos bonitos.
Soltei um riso incrédulo.
— Foi assim quando se casaram?
— Huh… — Ele dividiu a massa em quatro, habilidosamente fazendo as bolinhas e as
amaçando em um círculo perfeito. Então as depositou ali, para que eu finalizasse antes de
levarmos ao fogo. — Quando me declarei pela primeira vez, ela disse: “Hm, que bom. É
reciproco.”
Gargalhei, umedecendo os dedos no potinho com água para ajeitar as bordas do disco do pão.
— Você a ama?
— Claro…
— Mesmo com o temperamento?
— Apesar do temperamento.
Assenti.
— Não se arrepende nem um dia?
— De ter me casado com ela e ter tido duas hermosas hijas[17]? — O sotaque dançou nas
palavras quando ele negou, mas sorriu triste ao continuar: — De ter sido um pai covarde? Com
certeza.
Não respondi.
— Você odeia seu pai? — Ele parou de trabalhar na massa para me olhar. Não consegui
encará-lo, meus olhos arderam e eu provavelmente desabaria no choro se o fizesse.
Forcei um sorriso, clareando a garganta.
— Acho que não sou capaz de realmente odiar alguém. Principalmente o senhor.
Silêncio.
E quando a quietude perdurou por alguns segundos, quase minutos, ergui o olhar e o peguei
limpando as lágrimas, farinha sujando as bochechas fartas. Mordi o lábio, contendo meu próprio
choro. Eu não daria o primeiro passo, não o abraçaria, mesmo se quisesse. Seria ele primeiro.
Então, eu daria o segundo.
— Acha que um dia… posso te visitar em Boston? — perguntou do outro lado, e percebi a
hesitação cintilar nos seus olhos. — Ver se aquele garoto Sebastian está cuidando bem de você?
Porque o boato de que terminamos era apenas um receio de vovô. Eu não confirmara nada.
Também não negara. Talvez papai ainda achasse que Bash e eu estávamos juntos. De qualquer
forma, se um dia me visitasse, ele com certeza toparia com meu colega de quarto.
Meneei a cabeça.
— Vou ficar feliz se o senhor me visitar.
— Mesmo?
Sorri para ele, nosso recomeço ali. Nenhum “me perdoe, filha” ou “sei que errei com você”,
mas o caminho para isso. Ele estava tentando se reaproximar, e era isso que importava. Um dia
eu conseguiria, sabia. Não seria fácil, não seria tão sincero sorrir como se nada tivesse
acontecido. Mas um dia eu aprenderia e superaria, até ser capaz de realmente perdoar e esquecer.
Então não doeria mais.
— Mesmo.
Ela se jogou na cama, frustrada, e encarou o teto com indignação. Passei as mãos no rosto,
igualmente irritado.
— Quer dizer… — Felicity começou, se apoiando sobre os cotovelos no colchão, sem se dar
ao trabalho de cobrir o corpo, esconder as peças rendadas ridiculamente pequenas. — Que você
me trouxe aqui para nada?!
— Estou tão desapontado quanto você — murmurei, pegando a camisa cinza dependurada na
porta e jogando para ela. — Eu tentei. Juro que tentei.
Ela riu, desacreditada.
— Não pareceu tão difícil da última vez.
Sim, a última vez. Eu me lembrava dos olhos azuis cor de céu e do cabelo loiro curto e
alinhado ao queixo, mas não me recordava da noite em si… Ou do som que ela fazia. Mas
quando Felicity se aproximou de mim no Green’s naquela noite e me ofereceu uma bebida, não
vi por que não. Pensei que ceder ao conselho de Eleanor poderia realmente me fazer esquecer a
mulher que, por três semanas – três drogas de semanas, 21 porcarias de dias, 504 tortuosas horas
—, infernizara meus pensamentos.
Até no inconsciente, quando eu estava dormindo!
Já bastava disso. Amelie não tinha aquele direito! O prazo do contrato havia acabado, a única
coisa que aquela garota atrevida deveria fazer agora era me pagar o dinheiro do acordo. Mas
não… Precisava sorrir para mim, gemer meu nome e aparecer com aquele vestido maldito nos
meus sonhos. Às vezes, sem ele.
Três semanas.
Parecia uma vida inteira sem vê-la. Sem escutar sua voz.
Eu jamais confessaria que a esperara como uma criança ansiosa quando acordara no dia em
que ela deveria voltar para casa. Mal me concentrei nos afazeres porque esperei impacientemente
a hora de ela chegar, para então receber uma simples mensagem de texto avisando que ela ficaria
na casa dos pais por mais uma semana.
Eu estava enlouquecendo!
Até lera dois daqueles livros indecentes dela. Ficara interessante depois e, quando me dei
conta, pensei em ligar para Amy e perguntar o que aconteceria com a rainha da Noturna.
Era demais para um cara como eu.
Então pensei: que se dane! Essa noite não vou voltar sozinho para casa, e não me importei se
Felicity e eu já tivéssemos dormido juntos, apenas aceitei os avanços, a levei para o apartamento.
Nós entramos, e ela me beijou, eu a conduzi pelo corredor enquanto tirava seu vestido, mas
quando passamos pelo quarto de Amy… Me senti como se a estivesse traindo. Me senti o pior
lixo do universo. Me senti como se tivesse cometido o pior crime da terra.
Prendi o cabelo, andando de um lado para o outro.
— Então o quê? Quer que eu volte sozinha para casa a essa hora? — ela perguntou
emburrada, colocando a camisa que eu deixava reservada para… todas elas.
— Não… — Suspirei, esfregando o rosto de novo. Queria um banho, quebrar alguma coisa,
me humilhar ao ponto de ligar para Amy e perguntar quando ela voltaria. — Você pode dormir
aqui e ir pela manhã.
Ela finalmente cedeu do olhar irritado para a expressão insegura:
— Eu… fiz algo errado?
— Não há nada de errado com você. — Suspirei e me deitei ao seu lado na cama, encarando o
teto. — A culpa é de outra pessoa irritante.
Felicity franziu a testa, ficou de joelhos sobre o colchão e, depois de estudar meu rosto por um
momento, olhou para a porta escancarada do quarto e fitou a porta aberta do outro lado.
— Ela não está aqui… — murmurou. Quando a encarei, notei um sorriso de compreensão
repuxar seus lábios, até Felicity bater a mão em meu peito nu e exclamar alto: — Não acredito!
Apenas grunhi.
— É, isso mesmo. Aparentemente.
— Você gosta da Amy!
— Você se lembra da Amy?
— Claro que sim. — Riu. — Ela fez panquecas para mim da última vez, até trocamos
números. Falamos mal de você por uma hora.
Me apoiei sobre os cotovelos, indignado.
— Como é que é?
Felicity gargalhou, me olhando animada.
— Você está apaixonado por ela? Finalmente?
— Você troca mensagens com ela?!
— Huh — assentiu. — Ela até me deu um apelido fofo…
— Ah, não…
— Cisne.
Comecei a rir, tombando de novo na cama. Amy era mesmo uma coisinha inacreditável.
— Por que ela te deu esse apelido? — perguntei, sem conseguir conter o divertimento.
— Não sei… Mas achei bonitinho. — Soltou um suspiro esperançoso. — Eu me perguntei
mesmo como vocês dois conseguiram dividir apartamento por tanto tempo sem terem ficado pelo
menos uma vez.
— Você já a questionou sobre isso?
— Mas é claro.
— E o que ela disse?
— Que não fazia seu tipo.
Abri os olhos, encarando a garota que fazia sons de Cisne. Sim, eu me lembrava agora. E sim,
ela realmente fazia. Mas realmente não me lembrava de me sentir incomodado, nos divertimos
bastante naquela noite.
— Amy disse isso?
— Uh-hum… Falou que você era mais atraído por garotas ousadas e divertidas, que jamais a
olharia dessa forma. — O sorriso de Felicity ficou maior. — Isso não é irônico?
— Demais — resmunguei.
— E então? — Ela se aproximou de mim na cama, se deitando e apoiando os cotovelos sobre
o colchão e o queixo sobre as mãos. — Como aconteceu?
— Você só pode estar brincando. — Bufei ao ficar de pé.
— O quê? — A mulher riu, se apressando em me seguir enquanto eu pegava um cobertor no
armário, um dos travesseiros sobre a cama e seguia para a sala. — Quero saber como começou
sua paixonite pela colega de quarto.
— Não é da sua conta.
— Bem… Você meio que me deu um pé na bunda agora, e a gente sequer está na cama
repetindo nossa… noite avassaladora. É da minha conta, sim, se não vai dormir comigo porque
está pensando em outra.
Joguei o cobertor e o travesseiro sobre o sofá.
— Boa noite, Felicity. — Virei minha companheira para o quarto, a empurrando naquela
direção.
— Amy começou a sair com outro cara e você ficou com ciúmes?
— Não.
— Acabou vendo ela só de toalha e começou a pensar nela de outra forma!
— Não… — Mas agora eu estava pensando em Amy só de toalha. Droga!
— Qual é, me fala… Ou vou perguntar para ela…
— Não! — falei alto demais, ela me olhou com um sorrisinho. Diminuí o tom de voz. — Não,
você não vai.
— Então me conta… — Fez um beicinho.
— Eu só percebi, ok? Aconteceu. Ela precisou de mim, eu cuidei dela e agora não consigo
tirá-la da cabeça. Feliz?
Felicity assentiu, divertida.
— Agora vá dormir e vá embora pela manhã.
— Rude. — Bufou, caminhando pelo corredor, exibindo as coxas e pernas enquanto rebolava
de volta para o quarto.
— Boa noite — resmunguei, emburrado.
Ela deu um tchauzinho antes de entrar no quarto e apagar a luz.
Me deitei no sofá, esticando de qualquer forma a coberta sobre o corpo, encarando o rack da
TV, o livro que eu estava lendo. Me obriguei a fechar os olhos, a parar de pensar.
O Sebastian de antes não tinha problemas em levar uma mulher desconhecida para a cama,
não teria problema algum de voltar para o quarto e confirmar se Felicity fazia mesmo os sons de
Cisne. E eu deveria agir assim, apenas para provar a mim mesmo que Amelie não tinha qualquer
poder sobre mim. Porém, antes que me levantasse e provasse meu ponto por teimosia, escutei a
risadinha do quarto de novo, e Felicity gritou:
— Sebastian Wang está apaixonado, pessoal!

Percebi o movimento antes de o gato saltar para o sofá. Claude parecia preocupantemente
deprimido nos últimos dias, mostrando que realmente amava Amy e sentia sua falta apesar da
cara emburrada, a ponto de não querer deixar o quarto dela e miar para a porta o tempo todo.
Foi a primeira vez naqueles sete anos que o vi tão para baixo.
E quase usei aquilo como uma desculpa para falar com Amy, pedir que voltasse antes de o
bichano morrer de saudade. Acariciei a pelagem preta, a cabeça apoiada ao meu ombro.
— Devemos ligar para ela e fazer chantagem emocional? — sussurrei para ele, encarando o
reflexo da porta na TV. O céu começava a clarear do lado de fora, a luz da janela solitária
pintava o carpete escuro e sem graça do corredor. — Dizer que você está doente ou algo assim?
Ele miou.
— Certo? Também acho que ela está demorando.
Bocejei, incapaz de apagar por completo até aquela hora, cinco ou seis da manhã. Claude
resmungou de novo, e se Felicity tivesse um sono leve, facilmente despertaria com os
choramingos do animal. Suspirei ao acariciar as costas peludas e macias.
A verdade que me mantivera acordado fora refletir sobre o grito de Felicity para o prédio todo
ouvir. E naquele segundo, não tive forças para negar ou mandar ela ficar quieta, porque quando
ela disse, meu coração concordou.
Então não era mais uma saudade descabida da minha colega de quarto implicante. Era uma
saudade absurda e dolorosa da mulher pela qual eu estava estupidamente apaixonado.
E depois que assumi… me dei conta de que, quando Amy voltasse, eu não diria isso à ela. Ela
não merecia um libertino sem vergonha que levava mulheres diferentes para o apartamento, que
não ligara ou mandara uma mensagem porque era orgulhoso demais para admitir os próprios
sentimentos. Amy merecia um cavalheiro que ligaria todos os dias. Não, alguém sem medo de se
apaixonar, que tivesse se declarado naquele dia mesmo, antes de entrar no carro.
Ela merecia um homem de verdade, romântico e tudo o mais, como os caras dos livros que
tanto adorava. Alguém que não pensaria duas vezes em se arriscar.
Eu era o cara disposto a vê-la conhecer alguém melhor porque… ela merecia.
Pensar nisso me deixava irritado, inquieto e com uma dor estranha e aguda no peito. Mas ao
levar Felicity para o apartamento naquela noite, lembrei o tipo de homem que eu era. O que
prometera para mim mesmo ainda adolescente. O que queria evitar: pensar em uma única mulher
ao ponto de adoecer.
Alguns dias, meses… Era o necessário para esquecer.
Fazia três semanas.
Amy sequer deveria estar pensando em mim como eu pensava nela.
Claude miou outra vez, como se reclamasse que eu havia parado com o carinho em sua
cabeça.
Ri.
— Pelo menos tenho você, não é, amigo?
Recebi a resposta.
Mas eu sabia que ele só estava carente, logo me abandonaria quando a dona dele chegasse.

Acordei ouvindo o chiado de algo no fogo e um cheiro bom de café da manhã. Minha cabeça
latejava quando me obriguei a sentar no sofá desconfortável, girando o tronco e estalando os
ossos doloridos pela noite maldormida.
Eu deveria comprar um sofá maior.
— Bom dia, Bash — a voz de Felicity cantarolou e, quando me virei, encontrei a mulher do
outro lado da bancada, ainda usando minha camisa e misturando algo no fogo. — Está com
fome?
Resmunguei o que era para ser um sim, olhando o relógio acima da porta no hall de entrada.
Nove e meia.
— Pelo jeito, não dormiu muito bem, não é?
— Como uma princesa — murmurei ao ficar de pé, me arrastando até a cozinha, me sentando
na banqueta enquanto Felicity me servia uma xícara de café fumegante. — A quanto tempo está
acordada?
— Faz alguns minutos… — Ela me olhou como quem pedia desculpas. — Fiquei com fome.
Assenti, levando a xícara à boca.
— Seu café está horrível — comentei.
— Obrigada. — Sorriu divertida. — Sou péssima mesmo. Me desculpe se não sou uma Amy.
— Você sabia o cafajeste que eu era quando se aproximou de mim no bar ontem. — Bufei,
apoiei um dos braços sobre a bancada e esfreguei o rosto, fechando os olhos para aliviar a dor de
cabeça.
— Pois é — disse enquanto virava os ovos mexidos sobre o prato que logo empurrou para
mim. — Que trouxisse a minha.
Sorri. E só porque ela era, sim, uma mulher linda, divertida e gentil, falei sinceramente:
— Me desculpe por ontem.
— Nah… — Balançou a cabeça. — Eu sabia mesmo no que estava me metendo. E é divertido
descobrir que não me quis porque estava pensando em Amy. Gosto dela. É a vingança perfeita:
você sempre se divertindo por aí e não se relacionando ou se entregando quando, de repente, está
apaixonado pela garota mais certinha que eu conheço…
— Eu… — Não estou apaixonado. Bufei, desistindo.
Ela gargalhou ao quebrar um ovo na frigideira.
— E é de manhã, você está com uma cara horrível — continuou, raspando a colher de
madeira na panela. — Não é engraçado estar sentado aí agora? Esperando o café da manhã
depois de ter levado um fora?
— Não levei um fora. — Fiz careta.
Felicity soltou uma risada alta e alegre outra vez, um som melódico e doce que combinava
com sua personalidade.
— Mas está todo deprimidinho como se tivesse levado.
— É uma merda — murmurei.
— Ah… Você supera — ela brincou, me fazendo sorrir.
E estava a meio caminho de levar o café até os lábios outra vez quando escutamos a porta se
abrir.
Os olhos castanhos encontraram os meus e, por um longo segundo, meu corpo inteiro reagiu a
eles, ao rosto delicado e lindo que me encarava. O coração se agitou no peito, dolorido,
impaciente, e meu primeiro instinto foi querer levantar, atravessar o espaço até onde ela estava e
puxá-la contra o corpo. Beijá-la, abraçá-la…
Mas me obriguei a continuar ali.
Os lábios dela se esticaram um pouco, em um sorriso tímido e cansado, e Amy se preparou
para falar quando enfim notou a garota do outro lado da bancada, descalça, descabelada e…
Apenas com minha camisa.
Amy não falou nada quando viu Felicity, mas seus pensamentos ao analisar rapidamente a
cena ficaram mais do que claro.
E elas se conheciam. Amy sabia quem ela era, o que já fizemos.
Eu podia jurar que os olhos dela cintilaram com clareza e decepção, mas Amy era tão boa
quanto eu em esconder aquele tipo de sentimento, não é? Ou talvez só não se importasse porque
sabia que eu era aquele tipo de cara.
Mas minha ex-namorada de mentira mordeu o lábio, engoliu o que ia dizer, e os segundos de
silêncio constrangedores me deixaram louco. Quando Felicity finalmente compreendeu o que
havia ficado subentendido ali, os olhos azuis se arregalaram e ela largou a frigideira, gaguejando
e atropelando as palavras.
— A-Amy, não é… Nós não…
— Como foi de viagem? — a interrompi tranquilamente, levando a xícara de café aos lábios
enquanto me inclinava sobre a bancada.
Amy piscou, engolindo em seco.
— Foi… tranquilo.
Senti o olhar agitado da loira em mim, me implorando para explicar a verdade, dizer à Amy
que nada havia acontecido.
Ignorei.
Meu coração estava apertado, sim, tão dolorido que não conseguia respirar, mas mantive
aquela máscara calma no rosto. Era só o Sebastian sendo ele mesmo depois de ter tido uma noite
avassaladora com uma bela mulher.
— E seu avô, está bem?
Amelie forçou um sorriso, assentindo enquanto ajeitava a alça da mochila no ombro.
— Está se recuperando. Meio fraquinho, mas bem.
— Que bom. — Você está bem?
— Amy… — Felicity deu um passo à frente e me olhou, incerta. Fiz um gesto sutil com a
cabeça, negando.
— Bem, foi uma longa viagem, então eu vou… — Amelie começou, com a voz rouca e baixa,
mas foi interrompida quando um vulto preto começou a roçar em sua perna, miando. O sorriso
em seu rosto foi sincero, e ela imediatamente deixou sua bagagem de lado no chão para pegar o
gato no colo. — Ei, garoto… — disse com uma voz dócil, beijando a pelagem preta. Ele miou.
— Também senti saudade… — Riu enquanto Claude lambia seu rosto.
A bochecha, o queixo…
Eu estava mesmo com ciúmes de um gato? Estava. E quis tomar o bichano dela e entregá-lo
de uma vez por todas para a Sra. Hoang. Não me importava se o animal estava claramente muito
feliz em ver Amy, tanto que até choraria se não fosse tão orgulhoso. Apesar de ser a cena mais
adorável que eu já tinha visto, apesar de o sorriso de Amelie fazer meu coração amolecer de
maneira patética.
Eu estava mesmo com ciúmes de Claude.
Queria estar recebendo carinhos e beijos no lugar dele.
Saber se ela também sentira saudades de mim.
Trinquei os dentes, desviando o olhar para o prato intocado de ovos mexidos.
— Eu… — Amy se virou para mim e Felicity, acariciando as pontas dos dedos no cangote do
gato que (eu podia jurar) me olhou convencido, como se jogasse na minha cara que tinha o que
eu queria. — Vou descansar um pouco. Foi uma viagem bem turbulenta.
Assenti ao apertar a xícara com força suficiente para quebrá-la. Ela sorriu para minha
convidada.
— É bom te ver de novo, Cisne.
Felicity resmungou um “igualmente” estrangulado, sem conseguir disfarçar o desespero em
seu rosto bonito, a agonia nos olhos azuis. Quando Amy fechou a porta do quarto, ela soltou a
respiração que segurava, dando a volta na bancada em U para me alcançar.
— Qual é o seu problema?! — resmungou alto demais, me dando um tapa forte no braço. —
Ela vai pensar que a gente… E a gente não fez nada! Porque você estava pensando nela! E agora
ela acha que…
— Se quiser falar um pouco mais alto… — rebati enquanto bebia o restante do café, sentindo
o amargor em excesso na língua.
Felicity estreitou os olhos para mim, aceitando o desafio, e logo seguiu marchando para o
corredor. Para o quarto de Amy.
— A gente não dormiu junto porque ele está…
Me apressei em saltar da banqueta e agarrar o corpo dela, cobrindo sua boca e a impedindo de
gritar o resto.
— Fica quieta! — grunhi baixinho.
Ela resmungou sob a minha mão.
— Não vou contar nada — murmurei, com o coração acelerado. Fechei os olhos. — Você não
vai falar nada.
Felicity tentou protestar de novo, umedecendo minha mão com seu hálito quente, dando
tapinhas no meu braço.
A soltei e esfreguei o rosto, suspirando.
— Você vai deixar ela achar que a gente dormiu junto?! — perguntou indignada, se virando
para mim ao apoiar as duas mãos nos quadris.
— Sim.
Bufou.
— É tão bundão assim? — Ela me encarou, desacreditada. — Mesmo quando está óbvio que
quase faltou chorar de alegria quando a viu agora?
— Isso — comecei entredentes, de olho na porta fechada — não é da sua conta.
— Vou contar para ela — ameaçou, se afastando de novo.
Não deixei.
— Não vai. — Segurei seu braço, e porque sabia que a garota não deixaria passar, porque
sabia que ela mandaria mensagem para Amy mais tarde de qualquer forma, falei sério. Menti o
mais sinceramente possível: — Não estou apaixonado por ela, Felicity. Você precisa tirar essa
ideia bonitinha da sua cabeça. Não a quero assim, não quero me comprometer assim. O que
quero é uma noite apenas, um desejo que vai ser suprido e um único dia. Porque adivinhe só: sou
um homem. E assim que a levasse para a cama, não me importaria mais no dia seguinte. —
Mentir tinha um gosto ruim, me deixava enjoado. Porém, se eu repetisse aquelas asneiras para
mim mesmo, talvez começasse a acreditar nelas. — Se você se importa com os sentimentos dela,
vai deixá-la acreditar que te levei à loucura essa noite, que você vai embora, eu não vou te ligar,
não vamos repetir isso, porque esse sou eu. Entendido?
Felicity me encarou feio, irritada, a respiração rápida.
— É isso que você quer?
— É o que eu quero — murmurei quando a soltei, recuando um passo.
Ela assentiu, passou a mão nas mechas curtas do cabelo e, por fim, soltou uma lufada de ar.
— Tá — resmungou ao voltar para a cozinha, para o que tinha no fogo e queimava. — Mas é
muito babaca mesmo…
Exibi um sorriso arrogante, que desapareceu rapidamente quando lancei um último olhar para
a porta de Amy.
Ela estava de volta.
Eu a queria desesperadamente.
Mas seria melhor assim.
— Então? — perguntei, clareando a garganta e me voltando para o assento à bancada. — O
que você faz da vida, Felicity?
Já era terça-feira, e nada parecia ter mudado. Como se as últimas semanas não tivessem
acontecido de verdade, não passassem de um sonho. Eu ainda me sentava na pequena mesa
vizinha de outras, divididas por paredes de plástico cheias de post-its, ideias, afazeres, frases que
eu havia gostado, fotos que me motivavam a me empenhar mais no trabalho…
Na primeira vez que Naya me levara até aquela mesa, senti que explodiria de felicidade. Mas
depois de alguns meses, comecei a invejar as mesas maiores, as salas de reuniões usadas por
Damian para conversar apenas com seus escritores, editores, capistas… Sempre quis entrar em
uma delas, me sentar em uma daquelas cadeiras e ver no projetor as ideias para o lançamento do
meu livro.
Suspirei, rabiscando aleatoriamente um boneco de neve no que deveria ser a folha de rosto do
meu projeto, a pilha de 350 páginas que sempre ficava sobre minha mesa àquela hora do dia.
Enquanto isso, criava coragem para levantar a bunda da cadeira, encarar meu chefe e colocar
diante dele o rascunho do que eu pensava ser minha ideia mais promissora.
Eu sempre amarelava quando o via voltar do almoço.
Sempre encarava o título por tempo demais até desistir.
Passei a metade do dia ignorando os arquivos para serem revisados no meu computador, as
melhores resenhas dos blogs parceiros que eu deveria ter encaminhado para Damian mais cedo.
Sempre que tentava ser produtiva, minha mente me distraía. Com vovô. Com o Natal fracassado.
Com meu namorado de mentira que não era mais meu. Com as mãos dele me puxando para o seu
colo, os lábios dele explorando meu pescoço…
Com Felicity na cozinha dele alguns dias atrás.
Antes do nosso acordo, Sebastian e eu mal nos víamos no apartamento. Às vezes, nos
esbarrávamos no corredor quando eu me aprontava para sair pela manhã. Muito raramente nos
víamos de noite, quando estava jantando ou vendo TV. Nunca realmente nos importamos em
fazer companhia um para o outro, não era algo que eu esperava dele. Não quando, na maioria dos
dias, acordava tão irritada com Bash que mal queria olhar para sua cara.
Mas agora parecia proposital.
E eu não o vira nos últimos quatro dias porque também o estava evitando.
Felicity não precisara me ligar para me contar o que havia acontecido. O que não havia
acontecido, na verdade. Eu escutei os dois naquele dia. Não entendi todas as palavras, mas
compreendera o recado: Bash não queria que eu me aproximasse.
O contrato terminara, mas a regra continuava muito clara: eu não podia me apaixonar.
Quando o vira pela primeira vez depois daquelas três semanas longe, senti um peso imenso
deixar meus ombros, como se o coração soubesse que estava finalmente em casa. Quis chorar de
alívio, literalmente, porque ver o rosto dele me aqueceu de uma maneira nunca sentida antes.
Mas então Felicity estava ali, e os gemidos e risadas dela voltaram para minha cabeça, as noites e
as mulheres que ele sempre levava para o apartamento. Nesse momento, me dei conta da
realidade: Bash rapidamente retornara à rotina, rapidamente esquecera nossos dias juntos.
Foi como levar um soco forte no estômago.
Me senti deslocada de novo.
Mas notei o olhar ansioso de Felicity. Ela tentou se explicar como se tivesse mesmo feito algo
errado, mas não tinha. Sebastian a olhara como quem pedia para não falar nada.
Eu não era burra.
Acreditava nela: eles não dormiram juntos. E mesmo que Cisne tenha alegado na ligação o
fato de achar que, talvez, meu colega de quarto pudesse sentir algo por mim, entendi o limite
traçado por Sebastian ao pedir para ela não falar comigo sobre o assunto.
O que quero é uma noite apenas, um desejo que vai ser suprido e um único dia. Porque
adivinhe só: sou um homem. E assim que a levasse para a cama, não me importaria mais no dia
seguinte.
Ele queria que as coisas voltassem a ser como antes.
Então, eu fingiria que as coisas estavam normais como antes.
Bufei, encarando o título do meu romance outra vez, cogitando jogá-lo no lixo de uma vez por
todas.
— Coisas que deveríamos dizer… — alguém murmurou atrás de mim, me tirando do
devaneio e me fazendo sobressaltar na cadeira. Naya estreitou os olhos sob a armação dos óculos
elegantes e continuou lendo sobre meu ombro: — Um romance de Amelie Sanchez.
Senti o rosto esquentar.
— Quando chegou aqui? — perguntei ao tentar esconder o título, mas já era tarde demais.
Ela sorriu, voltando à pose de boa secretária. Esticou um copo de café para mim.
— Pensei que essa sua carinha desanimada fosse resultado de uma noite maldormida. Você
está bem?
— Ah… — Sorri sem graça, ajeitando os óculos sobre a ponte do nariz enquanto aceitava a
bebida. — Só estou um pouco distraída.
— Hm… — Ela me observou. — Como foi o Natal com a família Adams?
Ri, destampando o copo térmico e sentindo o aroma delicioso de café exalar dele.
— Acho que você não tem tempo o suficiente para ouvir. — A mulher estava sempre muito
ocupada até para meros cinco minutos.
— Damian e eu vamos até a GO. Sang agora para a reunião do evento de cosplay. Não devo
voltar tão cedo… — Naya suspirou, checando o relógio delicado de couro em seu pulso. — Ele
está com um péssimo humor por causa da seleção de novatos que tivemos na semana passada.
Sim, havia pessoas novas na editora, uma delas, a de cabelos cinzas e tatuagens de ramos por
todo o corpo, começou a trabalhar no nosso andar de edição e parecia bem divertida. Eu nunca
sabia quando Damian estava ou não de bom humor, mas ele claramente não estava muito feliz
nos últimos dias.
— Que tal um almoço na sexta?
— Não é o lançamento daquele autor de fantasia? — perguntei, com a testa franzida. —
Pensei que Damian fosse estar lá.
— Ele pode se virar sem mim. — Fez uma careta de desdém. — Sexta, então?
Sorri.
— Marcado.
Naya bebericou o café, e pensei que aquela era sua deixa para sair e me largar sozinha com
meus pensamentos outra vez. Mas ela correu os olhos castanhos para a pilha de papéis sob meu
braço de novo.
— O que isso está fazendo aí e não na mesa do Damian?
Corei.
— Foi só uma brincadeira. — Forcei uma risada. — Não é nada demais…
— Amy… — Arqueou a sobrancelha bem feita, esperando.
Suspirei e tirei o braço de cima do título.
— Não está bom ainda.
— Já está finalizado?
— Bem… — Mordi o lábio. — Preciso fazer alguns ajustes e…
Naya inclinou o corpo para mais perto outra vez, bisbilhotando o resto da capa, o que havia
escrito nela.
— Isso é do ano retrasado. Tenho certeza que deu tempo de revisar e mudar algumas coisas…
Aposto que já deve ter começado a escrever outro.
— Damian está te chamando.
— Ele não me chama, eu vou de encontro a ele. Agora diga, por que não entregou para o
Damian dar uma olhada nisso ainda?
Comecei a rir, pegando o bolo de papel e guardando novamente na última gaveta. Tranquei
com a chave rosa.
— Pode me culpar? — falei desanimada ao me reclinar na cadeira giratória. — Recebemos
centenas de originais, e ele descarta pelo menos 90% deles… — Fiz careta. — Quem garante que
serei boa o suficiente para estar entre os 10%?
— Bem… — Naya franziu a testa. — Não vamos saber se não tentar, não é? Pense bem: seu
livro está na gaveta há um ano, o mínimo que pode acontecer é ele não gostar e você desistir da
carreira.
Gargalhei.
— Uau. Obrigada.
— Ou… Ele pode adorar e te publicar.
— Improvável.
— Você não sabe.
— Ainda não tenho coragem — confessei num muxoxo. — Depois de tudo o que
aconteceu… Não sei se aguento escutar dele que sou uma escritora horrível.
Naya revirou os olhos.
— Ele não é um bicho-de-sete-cabeças…
— É um vampiro de rosto frio — sussurrei com um arrepio.
Minha colega riu.
— Se dê uma chance — pediu. — Se ele não gostar, você pergunta o que pode fazer para
melhorar. Damian detesta pessoas covardes que desistem de primeira. Tenho certeza de que, se
criar coragem e pedir um conselho profissional, ele não vai negar.
Assenti, não tão convencida assim. Ele era tão sério e fechado que apenas um olhar me fazia
ficar congelada na cadeira.
Inspirei fundo ao encarar a chave entre os dedos, a girando indecisa entre usá-la para abrir a
gaveta, pegar o livro e levar até o editor-chefe ou guardá-la de uma vez por todas.
Depois de passar aquelas três semanas com vovô, depois de a cidade se dividir e algumas
pessoas acreditarem em mim, decidi tentar me encaixar nos trilhos de novo, usar as roupas que
eu gostava e não os suéteres horrorosos, as calças bregas e saias de cortina… Escrever minhas
ideias e sonhar de verdade com a publicação dos meus livros.
Ser feliz.
Fazer amigos.
Me apaixonar…
Engoli em seco, sentindo aquele aperto já familiar no coração, como se faltasse algo para ele
bater direito, energia para pulsar com alegria.
Eu ainda tinha medo, no fim das contas.
E talvez não tivesse forças ainda para ser rejeitada por Damian também.
Suspirei e guardei a chave na bolsa, sem pretensão de usá-la tão cedo.
Amy estava encolhida no sofá da sala escura com um pote de sorvete nas mãos enquanto
assistia a um filme de terror na TV. Os olhos estavam fixos na tela quando cheguei do trabalho
naquela quinta, e ela não notou minha aproximação enquanto segurava a respiração, observando
a cabeça de um gato morto rolar e uma mulher faminta se arrastar no chão.
— Amy?
Ela gritou e soltou a colher que levava à boca dentro do pote.
Os olhos castanhos me encararam, e então minha colega de quarto suspirou, aliviada.
— Porque está assistindo a um filme de terror a essa hora? — Eu chegara mais tarde que de
costume do Green’s para não topar com ela acordada, mas ali estava Amy, às duas da manhã, no
sofá da nossa sala, embalada em um cobertor e com o rosto pálido de medo.
— Não consigo dormir — murmurou, e voltou a encarar a TV. Pegou a colher e enfiou uma
boa quantidade de sorvete na boca.
O garoto correu para dentro do apartamento, a mulher-zumbi tocou a campainha.
— Então, achou que assistir isso te ajudaria? — perguntei, colocando a case da guitarra sobre
a bancada, a mochila no chão.
— Não quero ver romance — respondeu, concentrada.
— Um documentário, talvez?
Amy pareceu pensar do outro lado.
— Isso definitivamente me faria dormir.
Ri, pegando uma garrafa de água na geladeira e me dirigindo ao sofá ao lado dela. Eu deveria
seguir para o quarto e ir dormir, deixá-la sozinha ali, mas apesar de não querer acreditar conhecer
minha colega o suficiente para pressentir algo errado, sabia que estava sem sono por algum
motivo.
Notei o brilho prateado do relógio de bolso no braço do sofá.
Ela estava preocupada. Com o avô provavelmente. Agora que estava longe de novo, não podia
verificar o tempo todo se ele estava bem.
— Nenhuma convidada especial esta noite? — indagou, ainda encarando o garoto na TV. A
mulher começou a berrar de forma bizarra, gritando no corredor sobre estar com fome.
— Estou cansado demais para isso.
— Hm… — resmungou. — Sorvete?
— Está fazendo um frio de morrer lá fora, e você está se entupindo disso?
— É proibido tomar sorvete no inverno?
Abri a boca para responder, mas fechei. Estiquei as pernas, recostando o pescoço no sofá. Não
havia mesmo. Mas eu ainda preferiria que ela estivesse se aquecendo com uma bebida quente ao
invés disso.
Por um tempo, apenas o som da TV e a colher raspando o plástico preencheram a sala, e me
mantive ocupado bebericando a água. Pensava na melhor forma de abordar o assunto.
— Eu estou bem — Amy disse baixinho enquanto fitava o pote de sorvete. Como se lesse
meus pensamentos. — Não precisa ficar aqui se não quiser.
Engoli em seco, sentindo o estômago revirar de novo não de indigestão ou fome; eu
sinceramente não conseguia nomear a sensação. Mas sabia que era um sintoma, um sintoma
muito ruim daquele parasita em meu peito.
Queria puxá-la contra o peito e acariciar as mechas macias do cabelo dela, consolá-la e
distraí-la do que quer que a estivesse atormentando. Eu simplesmente desistira de lutar contra o
impulso de manter Amelie longe dos pensamentos, mas não contra a decisão de me manter
afastado.
— Como seu avô está? — perguntei ao observar o rosto delicado. Os olhos castanhos não se
desviaram para mim, mas notei a boca se contrair levemente.
— Está bem.
— Mesmo?
— Huh… — Sorriu um pouco, me olhando rapidamente antes de se voltar para o filme. —
Ele me liga todas as manhãs, parecia muito bem hoje. Até perguntou de você.
— É mesmo? — Franzi a testa, surpreso.
— Ele gostou muito de você, me xinga todo dia por termos terminado.
Gargalhei baixinho, brincando com a garrafa de água nas mãos.
— Também fui com a cara dele.
Amy me ofereceu um sorriso triste ao mexer a colher sem muita animação no sorvete.
— Só… estou preocupada — confessou, cansada. — Sempre. Com medo de acordar no meio
da madrugada com uma ligação devastadora.
Assenti, porque não era bom com aquilo, não quando era uma situação irreversível. Porém,
não gostava de mentir para Amy. “Não se preocupe, ele vai ficar bem” era uma mentira, porque
os médicos disseram que abuelo não tinha tanto tempo mais. Porque aquele era um ciclo
inevitável.
Mas talvez acreditar em um milagre… Talvez confortá-la dizendo que ele poderia aguentar
mais um ano…
Suspirei.
— Sinto muito — murmurei apenas, sinceramente.
Ele era um bom homem e deveria viver mais do que muita gente de merda por aí. Deveria
viver por mais cem ou duzentos anos. Era injusto que um ser humano como o avô de Amy
tivesse de sofrer tanto antes de partir, enquanto pessoas como Nolan ainda respiravam. Só de
pensar no traste, sentia o sangue esquentar.
— Tem algo que eu possa fazer por você?
Ela negou, mordendo o lábio inferior daquele jeito que a impedia de dizer algo do qual
poderia se arrepender.
— Eu só… — Inspirou para criar coragem. — Queria te perguntar uma coisa.
Hesitei, me preparando antes de assentir, com aquela expressão ensaiada de neutralidade e
não me importo com nada. Ficava sempre ansioso pensando que, em algum momento, aquela
enxerida da Felicity fosse abrir a boca para me dedurar.
Amy virou o rosto para encarar o meu e me observou com cuidado.
Esperei pela pergunta, qualquer que fosse, com o coração bobo acelerado.
Até ela dizer:
— Por que raios você mexeu nos meus livros?
Quase suspirei de alívio. No entanto, ao invés disso, coloquei um sorriso disfarçado nos
lábios.
— Fiquei entediado nas últimas semanas… Li um ou dois. — Agora teria de pedir
emprestado o terceiro.
Amy balançou a cabeça e, pela expressão, sabia muito bem quais eu havia lido. Antes eu a
teria provocado, mas antes teria sido apenas para irritá-la. Agora era uma fantasia minha, e eu
queria que se tornasse real.
— Anda… — Ela franziu a testa com uma expressão presunçosa. — Me diz o que achou dos
livros. Com certeza deve ter alguns comentários interessantes sobre eles.
Dei de ombros.
— Ah, sim… Com certeza. — Sorri. — Aprendi uma coisa ou outra.
Ela gargalhou, e isso atraiu minha atenção para sua boca.
— Posso te emprestar os outros se quiser… — comentou, brincalhona. — Sabe, para fins de
pesquisa. Tenho certeza de que suas amigas vão gostar muito.
Eu não consigo levar mais ninguém para a cama, Amelie, porque a única com quem quero
reproduzir aquelas cenas é você!
Continuei encarando aqueles lábios, sentindo o parasita mastigar meu coração e sufocá-lo
com mais força à medida em que lutava contra o desejo de beijar Amy. De confirmar se os lábios
continuavam tão macios e doces quanto eu me lembrava.
— Obrigada, de qualquer forma… — Pelas prateleiras.
Sim, eu tinha arrumado as prateleiras tortas e as parafusado um pouco mais acima para Amy
não correr o risco de se machucar depois. Era óbvio que a garota notaria a diferença depois de
perceber que não batia mais a cabeça ali ao levantar.
O sorriso divertido no rosto dela morreu aos poucos quando não respondi, e logo encontrei os
olhos claros observando minha boca também. Tão brilhantes e famintos quanto os meus, as
pupilas pareceram se dilatar dentro das íris claras.
Amy engoliu em seco. Seu peito subiu e desceu com mais velocidade.
Pensei em glacê real e biscoitos de gengibre, na manhã que a beijara pela primeira vez.
Naquele dia sua boca estava suja de rosa, verde e branco. Tinha um gosto doce. Agora...
Sem conseguir me controlar dessa vez, estiquei o braço e levei meu polegar ao canto dos
lábios macios e frios, limpando o canto sujo de sorvete e chocolate. Foi inconsciente, e antes que
pudesse pensar no que estava fazendo, levei a boca e provei.
— Você está docinha.
Não tirei os olhos da boca dela, ainda me lembrava da sensação deles e de como se
encaixavam bem nos meus. Passara as últimas semanas pensando do formato deles, em como a
parte superior era mais cheia que a inferior, em como copiavam a forma de um botão de rosa...
Amy segurou a respiração, sem falar nada. Apenas me observou com aquela expectativa
cintilando em seus olhos cor de mel.
Parecia que meses, anos haviam se passado desde a última vez que eu a tocara, a sentira. E eu
a queria, merda! Tanto que minha cabeça girava naquele momento, me deixando tonto com o
cheiro de banho, o perfume do creme usado depois dele ali, impregnado no cobertor e nela toda.
O corpo dela se inclinou minimamente e, antes de eu me dar conta, minha mão seguiu
caminho para aquela bochecha macia, deslizando para a nuca. Ela se arrepiou com o toque. E não
me importei mais se deveria me afastar porque prometi a mim mesmo não ceder, só precisava
beijá-la, ou morreria.
Como uma criança pirracenta e mimada, quanto mais eu negava, mais queria aquilo que não
podia ter. Quanto mais me obrigava a ficar longe, mais a queria por perto.
Era isso, eu estava viciado em Amy.
Mas antes de eu me permitir dar aquele alívio, antes de matar a saudade, Claude, o miserável,
saltou no sofá entre nós dois. O animal se esfregou no colo de Amy para que ela desse atenção a
ele.
Fechei os olhos por um segundo. Eu definitivamente o levaria para a Sra. Hoang amanhã de
manhã.
Encarei o gato com raiva. Claude miou, os olhos verdes brilhando com o que, para mim, só
poderia ser deboche e malícia.
É minha humana, não sua.
— Seu maldito — grunhi baixo.
— O quê? — Amy franziu a testa para mim, igualmente ofegante e confusa. Como se
despertasse de um transe.
— Eu disse que vou para a cama — murmurei irritado, cogitando pegar o gato e jogá-lo pela
janela.
— Ah… — Ela assentiu, corando. — C-claro.
— Boa noite. — Fiquei de pé, deixando a sala apenas por segurança. Minha ou de Claude, eu
não sabia.
Escutei o suspiro resignado atrás de mim.
— Boa noite, Bash.
— Senhorita Amelie Sanchez. — Coloquei mais um vestido dentro do carrinho de compras do
site quando escutei a voz da secretária de Damian falar com seu tom de voz mais profissional ao
telefone. — Poderia comparecer à sala de nosso excelentíssimo editor-chefe, por favor?
Franzi a testa, sentindo o coração bater rápido e ansioso.
— Agora?
— Não, quando tiver uma data disponível na sua agenda. Sei como é ocupada.
Não éramos tão próximas àquele ponto, mas sarcasmo era algo presente no humor único de
Naya aparentemente. E pelo visto, já era tarde demais para pedir o cartão de acesso à amizade e
intimidade de volta.
— Estou indo.
— Muito obrigada. — E desligou.
Ergui a cabeça, espiei a sala de vidro do outro lado e me perguntei o que eu havia feito de
errado a ponto de Damian me chamar para sua sala. Eu trabalhava na editora há quase um ano e
nunca fora chamada para ir até lá. Normalmente, Naya cuidava de tudo, desde repreender
diretamente um funcionário a demiti-los ou contratá-los.
Damian não gostava de interagir de modo direto com ninguém.
Por isso, senti as mãos suarem frio quando me levantei e me encaminhei para a sala, notando
o olhar de Naya em mim, a expressão indecifrável, a do meu chefe ainda pior. Ele era como uma
estátua misteriosa e linda. Nunca conseguia ler o que se passava em seu rosto.
Bati à porta, hesitante, apesar de minha colega ter visto eu me aproximar. Ela não disse nada.
Continuou parada ao lado de Damian, as mãos para trás do corpo enquanto esperava.
— Pode entrar — a voz grave disse. Ele sequer ergueu os olhos do que tinha nas mãos sobre a
mesa.
— Com licença — falei baixo, nervosa.
— Feche a porta.
— S-sim.
Respirei fundo ao chegar perto da mesa do editor, como um animal indo ao matadouro. Sentia
a barriga revirar e doer. Enquanto o silêncio perdurava e Damian não falava nada, lancei um
olhar questionador para Naya. Ela manteve a expressão neutra, como se eu nem estivesse ali.
— Você deve saber que Ravi me confiou esta editora porque não aceito nada além do melhor,
não sabe, Srta. Sanchez?
— Sim, senhor.
Ele suspirou, finalmente me encarando, a testa franzida com um pouco de impaciência. Meu
chefe jogou sobre a mesa um bolo de papéis contidos por uma presilha de escritório e, quando
reconheci o título na primeira página em branco, senti as pernas amolecerem.
— Estou um pouco cansado de romances genéricos. Repetitivos. Por ano, leio cerca de cem
deles. Alguns são bons, aceitáveis, razoáveis para o que o mercado quer, mas raramente algo
excepcional. Tenho a sensação de que estou lendo sempre a mesma coisa, a mesma história.
Meu mundo começou a desabar ali, bem ali, naquela mesa. Eram dois anos pesquisando,
digitando, revisando e fazendo anotações… Era meu melhor romance, minha ideia mais
promissora, aquela da qual eu tinha mais orgulho sendo realmente despedaçada por Damian sem
qualquer pingo de compaixão. Eu quis sumir. Quis me esconder em algum lugar. Falar que não
era meu, que ele se enganou…
Como ele havia conseguido aquilo?
Como ele sabia que eu…
Damian suspirou.
— É por isso que estou muito surpreso e satisfeito com o que fez aqui.
— O quê? — sussurrei confusa, prestes a chorar.
— Quero conversar com você sobre algumas anotações que fiz, é claro… O final me pareceu
um pouco corrido, mas sim, acho bom o suficiente para ser publicado.
— Você… — Observei os olhos escuros, com choque demais para temer encará-los
diretamente. Ele não parecia ser do tipo de pessoa que pregava peças. — Você gostou do que
escrevi?
Ele assentiu, se reclinando na cadeira.
Eu estava sonhando? Porque uma hora estava encarando meu computador como fazia todos os
dias, pensando em um milhão de coisas, me preocupando com um trilhão de outras e, de repente,
meu chefe estava elogiando meu trabalho? Damian Lee queria me publicar?
— Eu… — Tentei engolir a surpresa, a emoção que queria transbordar. Talvez eu devesse me
dar um beliscão, acordar do sonho lindo demais. — Eu não sei o que dizer. Obrigada, acho…
Estou honrada, de verdade.
Damian e Naya trocaram olhares, minha colega deu de ombros.
— Mas? — ele me questionou, com a testa franzida.
— Mas nunca mandei meu livro para…
— Eu mandei — Naya se pronunciou pela primeira vez.
— O quê? — A encarei com raiva. — Você mexeu nas minhas coisas?!
— Na gaveta da empresa — corrigiu, sem um pingo de arrependimento. — Se eu não
mostrasse a ele, você nunca teria coragem, então…
— Como? Eu levei a chave para casa e…
— Por favor, Amy… — Naya revirou os olhos. — Ele gostou, é isso que importa.
— Eu… — Corei, aos poucos acordando para aquela realidade. A realidade em que Damian
tinha gostado do meu livro. E gostou mesmo, caso contrário não teria problema algum em dizer
que estava um lixo. Mas antes de ceder àquela alegria, dei lugar à desconfiança outra vez: —
Mas… você já leu e fez anotações nele? Tão rápido?
Três dias, se Naya tinha conseguido abrir minha gaveta quando eu não estava olhando. Desde
terça.
— Ele não recebe o apelido de vampiro à toa — Naya respondeu por ele. — Esse senhor
rabugento não dorme. Nunca.
Ele sequer deu atenção à jovem, como se ignorar seus comentários fosse algo frequente.
— Te enviarei um e-mail em breve com todas as observações e tudo que precisa saber sobre o
contrato de publicação. Mas como já trabalha aqui, deve estar familiarizada.
— Sim — assenti.
— Seu avô está bem? — Damian perguntou, me pegando de surpresa outra vez.
— Sim, senhor — respondi ao contorcer as mãos na barra do suéter marrom. — Vivendo um
dia de cada vez.
Pensei ter visto a sombra de um sorriso gentil em seus lábios, mas sabia que aquilo era apenas
fruto da minha imaginação fértil.
— Que bom — falou, soltando um suspiro. — Espero que ele ainda viva muito.
Sorri, emocionada.
— Eu também.
Sim, as pessoas comentavam pelos corredores que era irônico demais um homem como ele
dirigir o selo GO. Romance. Que tinha uma pedra no peito e não se importava com os outros…
Mas havia, sim, um coração bondoso por baixo daquela máscara fria. Caso contrário, ele sequer
teria se dignado a ler meu livro. Ou me permitido tirar um tempo extra de folga para ficar com
vovô.
Entregando a pilha de papéis – agora cheia de post-its coloridos e anotações – para Naya,
Damian voltou os olhos pretos para mim, uma expressão séria, porém tranquila.
— Parece que agora você faz parte da nossa família de autores — disse, e dessa vez pareceu
sorrir mesmo. Um pequeno e quase imperceptível sorriso. — Seja bem-vinda à Go. Romance,
Srta. Sanchez.
Meu coração absorveu as palavras, parecendo acreditar dessa vez.
— Obrigada, chefe.
Ele apoiou os antebraços na mesa de vidro, indicando a porta com o queixo.
— Está dispensada.
Assenti, controlando os lábios até sair da sala e voltar para a segurança do meu pequeno
cubículo de plástico. Quando me sentei, escondida pela parede divisória, abri um sorriso largo e
eufórico. Ele gostou! Damian gostou do meu livro! Eu seria uma autora publicada de verdade!
Não mais um rascunho, não mais um sonho distante, ia mesmo acontecer! Soltei uma risada,
segurando o gritinho animado que queria deixar minha garganta.
— De nada. — Naya apareceu na minha mesa um minuto depois, com os lábios esticados em
puro convencimento e satisfação.
— Ainda estou brava por ter mexido nas minhas coisas — falei, sem conseguir parar de sorrir.
— Mas estou feliz demais para te repreender agora.
— Ótimo — ela disse, erguendo o pulso para conferir as horas. — Pode fazer isso no almoço.
Só preciso checar algumas alterações que Damian pediu lá embaixo e podemos ir.
Meneei a cabeça.
— É bom te ver sorrindo, Amy — ela falou antes de sair. — Te deixa mais bonita.
— Não me paparique, ainda te odeio.
Ela gargalhou.
— Nos vemos daqui a pouco.
E mesmo depois que minha colega se foi e me peguei sozinha de novo, não consegui parar de
sorrir. Quis gritar para todos naquele andar, ligar para vovô, até mesmo mandar uma mensagem
para Sebastian.
Mas pensar nele me fez conter os dedos na tela do aparelho, hesitar.
Ele não queria minha aproximação. Então, não deveria incomodá-lo com aquilo.
E me dei conta de que, naqueles dias na casa dos meus pais, Bash havia se tornado um tipo de
amigo, alguém com quem conseguia desabafar meus problemas facilmente, chorar minhas dores,
confidenciar meus segredos…
Pensar nisso fez meu sorriso morrer.
Eu sentia tanta falta dele que doía.
Mas passara tempo demais me deprimindo, e a voz de abuelo me pedindo para ser feliz com
ou sem um namorado me fez encarar a tela do computador outra vez. A pasta que eu enchia de
imagens e ideias…
Sim, eu deveria me concentrar nisso.
Na minha felicidade, no meu futuro leve, livre dos pesadelos antigos, da culpa que não era
minha.
Eu sempre seria grata a Bash por aquele final de semana e, quando fechasse o contrato com a
editora, se as pessoas gostassem do meu livro, talvez conseguisse finalmente me mudar do
apartamento, dar o espaço que ele parecia querer tanto.
Sim. Eu faria isso.
Pagaria minha dívida com ele, alugaria aquele apartamento com duas sacadas e vista para o
rio e o esqueceria.
A ideia apenas me deixou deprimida pelo resto do dia.

— Não! — Arregalei os olhos, parando imediatamente de andar quando identifiquei o


restaurante que Naya havia decididamente escolhido para almoçarmos. Ela acabou se atrasando e
só conseguimos deixar a editora às duas. — Não. Não e não!
— O quê? — Ela me olhou, confusa. — Por quê? É o melhor que tem perto do trabalho, e eu
tô doida por comida chinesa esses dias.
— Então vamos em outro, esse não!
— Ah, qual é, Amy! — reclamou e pegou no meu braço, me arrastando pela calçada. — Eu
raramente consigo almoçar fora com uma amiga. E estou perigosamente faminta! Já disse que
fico insuportável quando sinto fome?
— Não somos amigas! — Tentei me livrar dela.
— Ainda não, mas isso não vai ser uma escolha sua. — Riu enquanto enroscava o braço no
meu. — Só temos uma hora, e dez minutos foram para o ralo. Anda.
Choraminguei, sentindo o coração bater ensandecido no peito. Se Sebastian me visse ali, o
que iria pensar? Que eu o estava perseguindo no trabalho agora?
— O que tem demais? — Naya continuou. — Você não gosta de comida chinesa? Eles
servem outros tipos de comida também.
— Não estou com fome, vamos voltar…
— Olha só! — Sorriu largamente, parando de frente para a faixada elaborada, o dragão
dourado e assustador enroscado ao nome do restaurante. — Já estamos aqui, não vamos
desperdiçar a caminhada.
— Esse é um restaurante elegante — insisti, soltando o braço do dela. — Olha só para mim…
— O que tem você? — perguntou uma voz conhecida atrás de nós. O chefe Wang sorriu para
mim, com uma caixa de suprimentos. — Oi, Amy. Faz tempo desde que te vi.
— Ah! — Corei, sentindo o coração desesperado acelerar mais um pouco. Agora era tarde
demais para voltar atrás. Apontei para Naya, que parecia confusa. — Ela quis vir, então…
Minha colega o cumprimentou rapidamente, e Jason devolveu o sorriso educado.
— O restaurante não fica tão cheio a essa hora. Fechamos daqui a pouco, na verdade, então
não precisa ficar tímida. — Ele passou por nós, seguindo em direção à entrada. Mas antes, me
lançou um sorrisinho que o fez parecer muito com Bash. — Eu não mordo.
— Ha, ha — falei sem graça, ansiosa para voltar logo a editora.
— Entrem — disse enquanto ajeitava o peso da caixa nos braços, um deles tatuado pelo
mesmo dragão que enfeitava o pescoço do primo. Eu nunca havia reparado no desenho antes.
Não que fosse ali com frequência; raramente saía de casa para comer fora. No entanto, vira o
chefe Wang e o outro primo algumas vezes no decorrer daqueles anos, e ele já aparecera no
apartamento em algumas ocasiões, como no aniversário do Bash ou numa noite de jogos. Nunca
trocamos muita conversa, eu sempre me trancava no quarto quando Sebastian levava algum
amigo para lá. — Sebastian está em uma entrega agora, mas assim que ele chegar, aviso que está
aqui.
— Não precisa! — Ri nervosa, fazendo Jason me lançar um olhar surpreso, com a testa
franzida. — Só vim almoçar mesmo, tenho que voltar para o trabalho.
— Ah, mas ele vai gostar de te ver — falou, e entregou a caixa a um rapaz de avental preto. O
funcionário prontamente se adiantou em tirar o peso do chefe, seguindo para a cozinha nos
fundos. Não havia mesmo muito movimento àquela hora, mas o lugar ainda tocava música e
cheirava a um tempero delicioso. — Ficou lamuriando sobre você nas últimas semanas, foi de
dar pena.
— O quê?
Os lábios de Jason se contiveram em um sorriso inocente e falso.
— Me desculpe… Falei demais?
— Como… — Engoli em seco. — Como assim?
— Tsc… Sabe o que é? — O chefe apoiou uma mão em meu ombro. — Ele está apaixonado.
— O quê? — Senti tudo ao redor ficar embaçado e silencioso, nem reparei que Naya sequer
estava mais do meu lado, já sentava em uma das mesas e inspecionava o cardápio. — Ele disse
isso?
— Não… Mas quando você fica gripado, é algo que consegue esconder? — Não respondi, era
óbvio. — Só estou te dizendo isso porque o animal já é insuportável desde que nasceu,
deprimido é pior ainda.
— O que você… — Balancei a cabeça. — Por que está me dizendo isso?
— Fiz uma aposta com Drew e preciso que fiquem juntos até domingo, acha que eu ganho?
— Vocês conversaram sobre mim? — Era demais. Minha cabeça não parava de girar com
tantas perguntas.
Se Bash estava mesmo daquele jeito, por que queria me fazer acreditar que ele e a Cisne
passaram a noite juntos? Por que me evitara a semana toda? Por que não me beijara naquela
noite no sofá? Claude não podia ser a única desculpa, Bash teria me beijado se quisesse.
— Homens bêbados reclamam da vida. — Jason fez uma careta. — E é por isso que evito
chegar a um ponto tão lamentável.
— Você está brincando comigo agora? Por que não tem graça. — Fechei a cara. Ele era um
Wang, afinal.
— Amor, eu jamais brincaria com os sentimentos de uma mulher… De qualquer forma, juro
que vou mandar ele para a rua se errar mais uma entrega esta semana. — Os olhos pretos se
desviaram para algo atrás de mim. — Ele chegou, inclusive. Rápido, aja naturalmente.
Meus olhos se arregalaram, voltando o rosto para a calçada lá fora. O homem alto de cabelos
compridos tirava o capacete, com uma expressão séria e distante demais. Realmente deprimente.
Eu não o via mais pela manhã, muito menos pela noite, com exceção daquele dia na sala e do
filme de terror. Consegui notar o cansaço no rosto dele mesmo ali.
Me virei para Jason.
— Não diga nada a ele sobre essa conversa — falei, decidida.
— Por quê? — perguntou, desanimado. Alguém chamou por ele da cozinha, mas Jason
ignorou. — Você não gosta dele? Vai mesmo dar um pé na bunda do coitado do meu primo?
Não respondi.
— Me promete. — Fechei a cara.
Ele bufou.
— Tá. Que droga.
— Chefe!
— Estou indo! — gritou de volta, apontando com o queixo para o outro lado do restaurante.
— Sua amiga está te chamando.
E antes de ouvir o sininho da porta soar atrás de mim, segui para a mesa.

— Você não parece que ganhou uma promoção hoje — Naya comentou, estudando meu rosto
como se percebesse minha inquietação. Não mais porque estávamos ali, mas pelo que tinha
ouvido.
— Não ganhei uma promoção — resmunguei, tentada a me virar na mesa, procurar por
Sebastian.
Ele sabia que eu estava ali, certo? Por que não apareceu para me cumprimentar? Seria melhor
se ele não se aproximasse mesmo? Fazia mais de meia hora desde nossa chegada. Ele saíra para
outras entregas e voltara, e sequer se dignara a dizer um oi.
— Bem… Não queria ser publicada?
— Sim, mas… — Ele estava mesmo apaixonado por mim?
— Mas você queria é que o Damian tivesse detonado sua escrita — assentiu, fingindo
seriedade.
— Não! — Bufei e tirei os óculos, como se me atrapalhassem a pensar. Ver tudo embaçado
não ajudou muito. — Tem um cara de cabelo longo e tatuagem no pescoço atrás de mim?
Naya inclinou levemente a cabeça para o lado, encarando sem disfarçar.
— Seja discreta! — sussurrei.
— Ele está conversando com uma das garçonetes.
— O quê?! — Girei na cadeira, colocando os óculos de novo enquanto o procurava.
Estava mesmo!
E ela sorria como uma idiota para Bash!
Senti meu coração bater mais rápido, e o sabor da pouca comida que colocara na boca ficou
amargo.
— Ele está brincando comigo? — resmunguei, indignada.
— Você conhece esse cara? — Naya perguntou.
Me voltei para a mesa com raiva, ciúme e uma emoção diferente embalando meu estômago,
subindo para o coração, me dando certeza na mente. As palavras de Jason não me saíam da
cabeça, e sabia que ele não teria dito aquelas coisas para mim se não tivesse certeza delas.
Bem, pelo menos queria acreditar que não.
Sebastian não me parecia o tipo de cara que choramingava sobre uma mulher com os amigos.
Mas ele também não parecia ser o tipo de cara que te tirava do chão quando sentia frio, ou te
fazia cafuné na cabeça até você dormir; te acordava com biscoitos de gengibre só porque
comentou que gostava de enfeitá-los quando criança, ou te comprava suéteres de Natal bregas
porque sabia que isso te faria sorrir…
Bash não precisava ter feito nada daquilo; ele fora além das regras e cuidara de mim como se
eu fosse importante. E eu poderia não ser a voz da experiência sobre leitura corporal, mas tinha
certeza de que vira seus olhos fixos na minha boca noites atrás, o desejo desesperado que eu
também sentia. Ele não teria me tocado daquela forma se não me quisesse.
Bati o punho na mesa, decidida. Eu me escondera por tempo demais, me negara tantas coisas
nos últimos cinco anos…
— Você está me assustando — Naya murmurou ao me olhar desconfiada.
Respirei fundo, meu coração acelerando o ritmo.
— Está livre amanhã? — perguntei para ela.
— Eu… — Estreitou os olhos castanhos. — Talvez esteja, estou curiosa.
— Ótimo — assenti, escutando a gargalhada irritante da garçonete do outro lado. Ele estava
me ignorando de proposito. Usando a garota como usara Felicity para me passar um recado.
Tudo bem, eu tinha entendido. — Vou para sua casa.
— Pensei que não fôssemos amigas… — Estalou a língua. — Não sei se te quero lá.
— Somos amigas — falei, e me senti apreensiva e determinada ao mesmo tempo. Cansada de
ser a Amy medrosa escondida atrás dos livros. Repeti: — Vou para sua casa.
— Tudo bem, e o que vamos fazer no meu humilde apartamento?
Observei o rosto de Naya, a maquiagem delicada, o penteado elegante, as roupas sempre
combinando.
— Vamos ter uma festa do pijama… Um dia de meninas.
Ela sorriu.
— Mesmo? Sou meio solitária, não me iluda.
— Não estou brincando. — Fiquei de pé enquanto tirava da carteira as notas e as batia na
mesa.
Quando me virei, Bash estava recostado sobre a bancada, acompanhando a garota com o olhar
enquanto conversavam e ela limpava uma das mesas. Pela janelinha de vidro da cozinha, vi
Jason lançar um olhar indignado para o primo.
Engoli a mágoa, a forcei a descer pela garganta como um comprimido sem água.
— Mas a gente já vai embora? — Naya perguntou atrás de mim.
— Huh — afirmei. Olhei com raiva para o homem que, habilidosamente, fingia não me notar
ali. Um ótimo ator, de fato. — Tenho que passar em um lugar antes de voltar para a editora.
— Onde?
— Uma loja. — Marchei para fora do restaurante, com a respiração alterada. Me obrigava a
esquecer o sorriso da garçonete para Bash. Ou como doía vê-lo me ignorar daquela forma. —
Preciso comprar uma coisa.
Passei pela porta e me recusei a olhar para o lado, para o vidro e para as duas pessoas lá
dentro. Não ousei confirmar se Sebastian ainda mantinha a pose babaca, se realmente não se
importava ou se estava finalmente me observando partir. Apenas continuei andando até virar a
esquina.
— Ei! — Naya me seguiu, perdida. — Espera aí, garota!
— Desculpa — falei, tentando conter as mãos trêmulas, fechando-as em punho.
— Você está bem?
— Estou — menti.
Calhorda! Calhorda! Calhorda!
— Certo… — ela resmungou, sem acreditar. — O que precisa comprar com tanta pressa?
Respirei fundo, um filme inteiro preto e branco passou na minha cabeça. Um que
sinceramente, com algumas edições, teria sido dramático e perfeito. E apenas uma cor diferente
se destacava naquelas cenas.
Tudo bem. Sebastian pensava que eu ficaria em casa chorando porque ele não correspondia o
que claramente estava tatuado na minha testa? Se sim, então me subestimava muito.
Vê-lo flertando com a garçonete fora apenas a ponta do iceberg.
— Amy?
— Um batom vermelho — falei, irritada. — Preciso urgentemente comprar um batom
vermelho.
Jason não perdeu um segundo para sair da cozinha e se aproximar de mim, com o punho
pronto quando acertou meu ombro.
— Ei!
— Seu babaca desprezível! — Fez um gesto para a garçonete de cabelos pretos e olhos
verdes. Ela saiu para a cozinha, nos deixando sozinhos. Alguns dos poucos clientes que restavam
nos observaram com curiosidade. — O que acabou de acontecer aqui?!
— Não sei do que está falando — resmunguei, ainda recostado contra a bancada.
— Você viu a cara dela quando saiu? — meu primo grunhiu, olhando para mim como se eu
fosse o maior pateta do planeta Terra. — Por que não foi falar com ela?
E talvez fosse.
Me sentia uma pilha de merda tirada do mesmo poço fundo que Nolan. Apesar de não poder
me comparar a um ser tão desprezível, foi assim que me senti quando me forcei a ignorar Amy,
fingir que ela não estava bem ali, a poucas mesas de distância.
— É melhor assim. — Suspirei ao passar a mão no rosto, esfregando a têmpora.
Jason me olhou por um segundo.
— Espero que ela encontre um cara legal — falou. Estalou a língua e ajeitou o avental preto
em sua cintura. — Sabe, um homem de verdade. E que apareça no apartamento com uma rosa e
toda babação de ovo que vai te fazer querer vomitar. E que nesse seu sofrimento desnecessário,
você precise ser o pobre coitado a ouvir sua colega de quarto se divertir a noite toda com o
namorado dela. Ah, e que eles sejam muuuito barulhentos juntos.
Trinquei os dentes, desviando o olhar. Eu me arrependia amargamente de ter contado a ele
sobre a lista de Amy dos sons, ou sobre as brigas dela às três da manhã quando não a deixava
dormir. Sim, eu estava mesmo pagando caro por isso.
— Não ligo.
Jay soltou uma risada.
— É mesmo? — Assentiu, com uma careta debochada. — Vai perder uma garota incrível só
porque seu pai não sabia casar direito?
Lancei um olhar furioso para ele.
Jason ignorou, como sempre fazia, mesmo quando éramos pequenos.
— Você tem 27 anos nessas suas costas largas, Sebastian. Cresce. — Bufou. — Se está
mesmo disposto a ver a mulher que gosta se apaixonar por outro cara porque você tem medo,
então tudo bem. Mas se aparecer na minha casa mais uma vez para reclamar sobre o quanto a
quer, juro, vou quebrar sua cara.
Respirei fundo, cruzando os braços.
— Sabe, esse seu discurso seria bem emocionante se não fosse pura hipocrisia.
Meu primo gargalhou, fazendo um gesto para um dos assistentes da cozinha. O funcionário
apareceu abrindo a boca para chamá-lo. Aquele erguer de indicador era um sinal claro e simples:
agora não.
— O dia que eu olhar no fundo dos olhos de uma mulher e ela me deixar completamente
louco a ponto de não conseguir dormir… Quando eu souber que a quero, que ela é o que
preciso… — Sorriu. — Não vou perder tempo. Não vou ficar me fazendo de difícil porque “ela
merece alguém melhor”. Você não decide isso. Se não está disposto a fazer funcionar, então tudo
bem, continue aí, flertando com garçonetes e fingindo que não se importa. Mas se você sabe que
é ela e faria qualquer coisa para vê-la feliz, então pronto. Seja homem e se declare logo. Não é
tão difícil, é só falar a verdade. — Ele suspirou com a seriedade de um sábio conselheiro até
completar: — E faça isso até domingo, não quero perder duzentas pratas.
Eu estava prestes a retrucá-lo – porque deixar Jay agir como o mais velho e certinho nunca era
uma opção –, mas acabei soltando uma risada incrédula.
— Vocês apostaram. — Eu também me arrependia de ter aberto o bico para Drew.
— É claro que sim. Você finalmente está sofrendo por uma mulher, temos que tirar proveito
disso.
— Idiotas. — Bufei.
Meu primo sorriu, virando as costas para mim.
— Até domingo, Bash! — ele falou, seguindo o assistente para a cozinha. — Ou vou torcer
para Amy encontrar outro.

Andei de um lado para o outro, impaciente.


Fazia exatamente uma hora que eu estava ali ziguezagueando pelo apartamento enquanto a
esperava chegar. Jason tinha razão, afinal. A ideia de pensar em Amy com outra pessoa não me
agradava de forma alguma, e eu fora um tremendo imbecil com ela naquele dia. Devia ter me
aproximado, devia ter dito algo, mas como um burro teimoso, preferi magoá-la no processo. Para
que ela… O quê? Me superasse e seguisse em frente?
Bufei, passando as mãos no rosto de novo, prendendo as mãos atrás da nuca enquanto
esperava minha colega de quarto voltar do trabalho. Normalmente, quando ela estava chegando
da editora eu já estava de saída para o Green’s, mas passara o resto daquela sexta-feira lutando
contra o que meu primo dissera. listei os prós e os contras e, no final, a resposta pareceu clara
como água:
Você é um idiota.
O quê? Usar as esposas do meu pai como desculpa para não me relacionar? Dizer que Amy
me abandonaria depois de me usar? Ela não era aquele tipo de pessoa, muito pelo contrário…
Era leal, mesmo quando seus sentimentos e sua verdade corriam risco. Aquilo não podia ser mais
um motivo para me afastar.
Ela merecia encontrar uma pessoa melhor?
Sim. Com certeza, em algum lugar, talvez devesse existir um cara mais paciente, boa pinta,
educado e de coração puro e romântico capaz de fazê-la feliz, mas a ideia me deixava inquieto.
Se Amy ainda me desprezasse, tudo bem, mas eu sabia.
E adorava aquela garota. Mesmo antes da viagem, sempre precisei evitá-la, irritá-la e levá-la a
me detestar, porque sabia que Amy seria o tipo de mulher responsável por me deixar louco.
Agradecia pelas roupas bregas e os óculos horrorosos, eram minha desculpa para não prestar
muita atenção. Por isso, quando viajamos e fui obrigado a olhar para ela o tempo todo, a prestar
atenção, vi exatamente o que temia: uma mulher linda, corajosa, engraçada e apaixonante.
Não, eu não era o cara perfeito. Sim, poderíamos brigar em algum momento, mas eu tinha
certeza de que queria ser o motivo de seus sorrisos, nunca o de suas lágrimas. Talvez de suas
caras emburradas, às vezes, absurdamente sexys… Queria abraçá-la, beijá-la, escutá-la me contar
suas ideias…
Sim, droga! Eu me tornara aquele cara deprimente.
E precisava vê-la e dizer que se dane a última regra, danem-se os motivos que inventei para
não me aproximar. Queria falar olhando no fundo dos seus olhos que estava apaixonado e faria
aquilo funcionar se ela me quisesse.
Mas ela não apareceu.
O relógio se arrastou para as oito horas da noite, e nada.
Às nove, comecei a me preocupar, mas me obriguei a pensar que talvez tivesse algum evento
da editora ao qual Amy teve de comparecer. Talvez finalmente feito amigas ou…
Um encontro, a voz de Jason cantarolou na minha cabeça.
Claude miou para a porta também, e precisei concordar.
Onde ela estava?

Eu (10:12 p.m.):
Aconteceu alguma coisa?

Ela não demorou nem um minuto para visualizar, mas outro agonizante para responder. Amy
digitou, parou e digitou de novo, e pensei que talvez eu realmente a tivesse a aborrecido. Agora
escutaria um sermão.
Mas ela mandou, simplesmente:
Tiānshǐ (10:14 p.m.):
Vou passar a noite fora.

Pisquei para a tela, a encarei por um longo tempo, tentando absorver as palavras. O que ela
queria dizer com passar a noite fora? Onde? Com quem? Ela nunca passou a noite fora naqueles
anos, sempre ficava no apartamento quando não estava trabalhando.
“Eu espero que ela encontre um cara legal. Sabe, um homem de verdade. E que apareça no
apartamento com uma rosa e toda babação de ovo que vai te fazer querer vomitar. E que você,
nesse seu sofrimento desnecessário, precise ser o pobre coitado a ouvir sua colega de quarto se
divertir a noite toda com o namorado dela. Ah, e que eles sejam muuuuito barulhentos juntos.”
Droga, Jason!
Fechei os olhos por um segundo, respirando fundo e me concentrando na minha resposta. Eu
não poderia simplesmente dar uma de namorado ciumento e perguntar onde ela estava, com
quem passaria a noite. Amy era adulta, cuidava da própria vida, tinha todo direito de fazer o que
quisesse, sair com quem quisesse, dormir com quem quisesse…
Senti os olhos verdes de Claude me observarem do hall de entrada.
E me forcei a digitar:

Eu (10:15 p.m.):
Você está bem?

Tiānshǐ (10:15 p.m.):


Estou. Chego tarde amanhã. Boa noite.

Justo.
Eu a ignorara quando Amy estava no Wang’s com a amiga, era mais do que justo que fosse
seca comigo agora. Mesmo se eu não sentisse nada, deveria ter me aproximado, dito alguma
coisa. Ela estava mesmo brava comigo? Estava passando a noite fora para me evitar? Se vingar?
Se eu ligasse para me desculpar, ela voltaria?
Bufei, apagando o início de um texto humilhante e desesperado perguntando se poderíamos
conversar porque era urgente, se eu poderia ligar porque queria ouvir sua voz e saber se estava
tudo bem, pedir o endereço de onde quer que ela estivesse porque eu precisava vê-la.
Na segunda, então.
Conversaríamos na segunda.
Eu não a sufocaria agindo daquela maneira depois de ter me afastado nos últimos dias.
Suspirei, digitando algo mais simples:

Eu (10:16 p.m.):
Boa noite.

Claude miou outra vez.


Joguei o celular no sofá.
— Ela não vem hoje, amigo — murmurei. — É só eu e você de novo.
O Green’s estava cheio naquela noite de sábado, e usei o burburinho de conversa, talheres
tilintando e a música para distrair a cabeça da inquietação pela espera de a noite acabar logo.
Quando Eddy me oferecera o emprego, alguns anos atrás, eu tocava em um bar pequeno às
sextas por um salário miserável. Fazia para sobreviver. Mas depois de começar a cantar no
Green’s, pude abraçar a música e fazer das noites ali algo especial.
Aquele não era um restaurante qualquer.
Toda a estrutura e o design do lugar foram pensados para um tipo de viagem no tempo. As
paredes de tijolos alaranjados eram enfeitadas por fotos de cantores como Ottis Redding e Jerry
Lee Lewis, com Elvis entre eles, obviamente. Havia discos de vinil espalhados, quadros com
placas de carro e frases de músicas da época. Abajures enfeitavam cada mesa e complementavam
a iluminação romântica do lugar.
Antes, eu aceitara cantar ali porque pagariam consideravelmente bem, mas depois se tornara
uma espécie de casa. Apesar de raramente concordar em sair com os rapazes da banda ou
confraternizar com a equipe da cozinha, gostava de como o lugar me transportava para um tempo
diferente; de como as pessoas sentadas nas cadeiras ou poltronas espalhadas paravam de comer
para me ouvir. Algumas até se levantavam para dançar.
E antes de eu me dar conta do rumo que meus pensamentos seguiam, apenas dedilhando uma
melodia enquanto fazíamos uma pausa no repertório daquela noite, me peguei pensando em Amy
de novo. Em como gostaria de vê-la ali em um daqueles bancos, somente me encarando
enquanto eu olhava para ela.
Na minha fantasia, ela usava aquele vestido vermelho, e não havia mais ninguém ali. Só as
luzes baixas e amareladas dos abajures e piscas no teto, todas as mesas vazias e Amelie na
primeira fila, sorrindo para mim. Como fizera naquela noite de ceia quando cantei para ela.
Um dos clientes pediu para tocarmos algo romântico para a namorada, ele a pediria em
casamento naquela noite. Tive vontade de rir ao microfone porque, semanas atrás, a mesma cena
havia acontecido, e eu tinha revirado os olhos. Passar o resto da vida com a mesma pessoa? Se
prender a alguém que pode, a qualquer momento, virar as costas e levar seus bens? Amor? Que
grande merda! Mas ali estava eu, tomado pela mesma doença, pensando sem querer em como
seria se cedesse finalmente à ideia de que estivera errado o tempo todo, que poderia, sim, me
apaixonar por alguém e pensar nela o tempo inteiro.
Notara o olhar de uma mulher no bar desde o segundo em que ela havia chegado. Os cabelos
pretos estavam presos em um rabo de cavalo, e o vestido azul destacava bem suas curvas. Em
uma noite qualquer, eu desceria depois de uma pausa e me aproximaria. Billy, o bartender,
saberia qual bebida preparar e anotaria na minha conta. Eu perguntaria seu nome,
conversaríamos um pouco sobre o que ela fazia da vida, o que estava fazendo ali sozinha, quais
eram seus planos para o resto da noite. E então eu diria que, se ela quisesse, minha agenda estava
livre para a madrugada.
Eu a levaria para o apartamento, tiraria suas roupas, a faria rir e delirar e escutaria alguém
furiosa bater à minha porta às duas ou três da manhã. Acordaria cedo para correr e encontraria
uma Amy muito irritada na cozinha coando o café, com um bico adorável nos lábios, um coque
desgrenhado na cabeça e uma camisola da era vitoriana.
Automaticamente, a morena do bar não existiu mais, e Amy se tornou a personagem principal
de novo.
— Bash, vamos? — Chuck perguntou, apontando para a lista dependurada na parede ao lado
dele.
— Qual?
O trompetista estreitou os olhos para as músicas, conferindo quais já tinham sido tocadas até o
momento.
— Can’t help falling in love[18].
Soltei uma risada deprimente.
— Você só pode estar brincando.
— O quê? — Ele franziu a testa, confuso. — Pensei que curtisse Presley.
Inspirei fundo, assentindo, ficando de pé e preparando o microfone. Toquei a introdução da
música e ignorei o parasita em meu peito, como se cantasse comigo enquanto danificava meu
coração. Fingi que a letra era algo distante e deixei de lado os casais na pista de dança ao lado do
palco.
Performamos We belong together, My girl, Don’t be cruel, algumas de Louis[19] também.
Toquei e cantei como se recitasse uma receita e não gostasse do que os ingredientes fariam. E
fitei o relógio agoniado, esperando que o ponteiro tivesse compaixão de mim e andasse um
pouco mais rápido.
Estava na primeira estrofe de Hard to handle[20] quando meus olhos vagaram para a recepção.
Eu teria deixado passar despercebido o homem sorridente para a recepcionista se não conhecesse
bem aquele corte de cabelo ou a tatuagem de dragão despontando do peito sob a camisa preta.
Por um breve momento, me questionei sobre o que ele estaria fazendo ali. Meu primo raramente
aparecia no Green’s ou em qualquer lugar público que pudesse evitar aos fins de semana.
Ele não era o tipo de cara que ia a um pub rústico para aproveitar um pouco de música.
Estaria ali sozinho? Talvez algum encontro? Drew disse algo para a recepcionista, que checou o
nome e logo apontou para a direção das mesas dos fundos, com assentos acolchoados. Uma área
mais romântica, reservada para casais. Ele agradeceu e, enfim, se virou para a acompanhante que
acabava de entrar, os ombros e o cabelo cheios de neve.
Ele a ajudou, sorriu para ela, então tirou o sobretudo cinza que a moça usava, revelando um
vestido vermelho e uma cascata de mechas castanhas caindo sobre as costas.
Parei de cantar.
E antes que pudesse associar a peça de bordado de rosas trepadeiras àquela que comprara para
Amy semanas atrás, ela se virou, sorriu para meu primo e o acompanhou em direção à última
mesa vazia.
— De novo, Drew… — falei para ele depois que fizemos nosso pedido. Eu só conseguira
reservar uma das mesas no fundo, um pouco distante do palco, pequena, e os assentos na verdade
eram um sofá em U para o casal ter mais proximidade e privacidade. — Obrigada por fazer isso.
Ele sorriu para mim, exibindo as duas adoráveis covinhas.
— Imagina. É sempre um enorme prazer fazer meu primo passar raiva.
— Claro. — Ri, fechando as mãos com força sobre o colo.
Me sentia exposta, mesmo que toda atenção estivesse na pequena banda no palco, no solista
de um e noventa, tatuagens e uma voz de tirar o fôlego. Os olhos dele estavam fixos em mim, e
eu sabia que deveria estar se perguntando por que raios Andrew estava ali comigo.
Seu rosto sério estampava surpresa, confusão e uma expressão furiosa.
A verdade é que eu tinha visitado Jason no restaurante de manhã, aliviada por não encontrar
Bash lá. Contei ao chefe Wang meus planos para aquela noite. Ele adorou, claro, mas não
poderia me ajudar a executá-lo porque estaria ocupado na cozinha. Então ligou para Drew. O
rapaz parecera relutante quando ouviu que precisaria ir a um restaurante lotado, mas prontamente
aceitou ao descobrir o motivo.
Sabia que Bash saía para o ensaio com a banda do Green’s às cinco da tarde, então esperei até
as seis para voltar ao apartamento e me aprontar. Naya me ajudara com a maquiagem e o cabelo,
e depois de passar uma noite inteira se enchendo de fast food e me ouvindo contar sobre o Natal
com minha família, pareceu animada com o plano e insistiu para ir disfarçada, assistir ao meu
“comeback” – seja lá o que isso significasse. Ela ficaria no bar, mas eu avisei que não
conseguiria fazer nada se a sentisse observando.
Já estava nervosa o suficiente.
Precisei controlar o impulso de trocar de roupa diversas vezes, quase fiz isso antes de escutar
Drew na porta para me buscar. O vestido era perfeito, quase como se tivesse sido costurado sob
medida, mas me senti sufocada nos primeiros segundos. Estava tão acostumada com os moletons
e suéteres excessivamente largos que o tecido vermelho pareceu apertado demais quando Naya
fechou o zíper. Os saltos machucavam meus pés, e eu não estava suportando o peso das lentes,
completamente desacostumada a elas. Parecia ter grãos de areia nos olhos, precisava piscar o
tempo todo para tentar afastar a sensação.
Ter o olhar de Bash fixo em mim não ajudou muito, e toda raiva que senti dele por ontem
desapareceu quando escutei sua voz do lado de fora do Green’s. Precisei de um minuto na
calçada para encher o peito de coragem e entrar.
De repente, o batom vermelho parecia exagerado, e a roupa, muito extravagante.
O que ele pensaria de mim?
Se conhecesse Sebastian bem, diria que ele se controlava para não descer do palco e me tirar
dali. Ou talvez só não gostava do fato de seu primo estar sentado tão perto de mim quando Drew
claramente sabia o que ele sentia.
— Ei… — senti a mão de Drew tocar meu rosto, o virando para ele. Meu acompanhante
cochichou para mim, os lábios bonitos se esticando em cumplicidade: — Isso vai ser mais
divertido se parar de ficar olhando para o palco o tempo todo. Lembra? Precisa ignorar ele.
Assenti, com um sorriso nervoso.
— Sim, desculpa. — Suspirei a fim de evitar morder os lábios ou parecer tão insegura. Eu
podia fazer aquilo. Estava linda naquele vestido. Não havia nada de errado com ele nem meu
cabelo ou batom vermelho. — Eu só… — Expirei, fechando os olhos por um segundo. — Faz
muito tempo desde que me arrumei para um encontro.
Drew me lançou um olhar gentil.
— Se te serve de consolo… Você está linda.
— Obrigada. — Segurei o instinto de olhar para frente, para Bash. A banda só tocava agora,
ele não continuou cantando a música. — Acha que ele vai acreditar?
— Ele não precisa acreditar… — Drew apontou para si mesmo. — Sou eu, já é o suficiente.
Soltei uma risada, e os olhos arredondados e escuros como os de Jason correram para minha
boca por um segundo antes de me encararem de novo.
— Se isso tudo não funcionar e o Bash for só um panaca mesmo — ele se inclinou para mais
perto —, posso te chamar para sair?
— Hm… — Fiz uma careta, pensativa. — Outro Wang? Não sei se estou pronta para isso.
Ele soltou uma risada rouca e sincera.
— Qual é, Amy… Te garanto que sou o melhorzinho dos três.
Apoiei o rosto sobre a mão, o cotovelo na mesa.
Ignorar Bash, sim. Fingir que estava muito interessada em Drew. Fazê-lo provar do próprio
veneno. Eu podia fazer isso, era só fingir que meu colega de quarto não era a pessoa tocando lá
na frente.
— É mesmo? — perguntei com um sorriso. — Como posso confiar em você?
— Bem… Sou o mais bonito, convenhamos — falou, erguendo um dedo e listando. — Sou o
mais educado e responsável, não saio por aí levando garotas diferentes para o meu apartamento
toda semana… Um pouco trouxa, talvez, costumo não entender uma piada logo de cara.
Isso me fez rir.
— E… sempre fui o favorito da nǎinai[21], eu raramente ficava de castigo. Ah, e tenho uma
cafeteria, sou um barista incrível. Se aparecer por lá, tenho certeza de que vai se apaixonar.
Sim, Andrew logo de cara se portara diferente dos primos: não fez cantadas bobas ou se
apresentou com um sorriso debochado quando apareceu no meu apartamento. Prometeu à Naya
que cuidaria bem de mim, me estendendo o braço como um perfeito cavalheiro.
Eu acreditava nele e me lembrava de ouvir Bash e Jason sempre implicar com o primo quando
se reuniam. Sabia que seria um bom amigo no momento em que abriu a porta do carro para mim
e passou o caminho do apartamento até o restaurante me perguntando sobre meu avô, sobre
como eu estava me saindo longe dele – pelo visto, Bash abrira mesmo o bico, como Jason
dissera.
E sim, a beleza injusta de Andrew me fazia pensar que o sobrenome Wang era mesmo um
legado de homens bem-vestidos, de sorrisos perfeitos, narizes grandes e cabelos sedosos. Ele se
parecia mais com Jason; os dois poderiam facilmente ser irmãos. A semelhança com Bash
terminava no cabelo preto liso, no nariz e na tatuagem de dragão em seu peito, é claro, um tipo
de pacto entre os três. Sebastian era o mais alto dos primos, bem mais alto, na verdade; uns dez
centímetros talvez. E tinha uma pele mais escura e bronzeada, uma boca mais estreita e
avermelhada. Os olhos eram mais repuxadinhos para baixo nos cantos e castanho-claros,
enquanto os dos primos eram grandes e arredondados, o côncavo mais demarcado e as íris bem
pretas.
Eu poderia me encantar por Drew se meu coração já não batesse tão forte por um guitarrista
marrento e de sorriso irritante.
— Acho que está inventando tudo isso para me conquistar — provoquei Drew.
— Poderia estar, claro. — Ele deu de ombros. — Mas nós, Wangs, somos muito sinceros. Até
demais.
Fechei a cara, pensando que aquela, sim, era uma mentira. Sebastian poderia ser sincero sobre
muitas coisas, mas era claramente terrível em confessar o que sentia.
— Duvido muito disso. — Bufei, levando o copo de água à boca.
— Bash só está confuso porque você é a primeira mulher a fisgá-lo dessa forma — Drew
falou ao ler minha expressão. — Dê um tempo a ele.
— Ele tem só até o fim desta noite — murmurei. — Ou vou sair com você.
— Bem… Nesse caso… — Os lábios de Andrew Wang se esticaram. — Vou torcer por mim,
então.

— Sabe, ele é o mais sério de nós três — Drew comentou depois de perder o olhar no palco
por alguns segundos. Bash voltara a cantar, mas sempre encarando a última mesa perto do vidro.
— Quando éramos crianças e meu tio o deixava na nǎinai, Sebastian ficava um dia todo sem
conversar, ou até mais, só escutando suas músicas e jogando videogame.
— O pai dele era…
— Um homem muito bom, mas ocupado. E apesar de tirar um fim de semana ou outro para
ficar com o Bash, passava tempo demais saindo com as mulheres dele. Meu primo sempre teve
ciúmes do pai com as esposas, mas a raiva maior era porque sentia falta da companhia. Se
achava menos importante que as amantes do pai.
Não consegui controlar os olhos: eles correram para o cantor no palco, dedilhando
habilidosamente sua guitarra, vez ou outra levando uma garrafa de água à boca, sempre nos
observando como se tentasse entender o que estava acontecendo ali, como acontecera.
Sebastian não era burro, ele sabia que eu só estava ali para provocá-lo. Mas não era um cara
ciumento ou ainda não queria ceder ao sentimento que compartilhávamos ao descer do palco e
vir falar comigo.
Ele precisava trabalhar, afinal de contas.
Suspirei.
— Ele sofreu muito, não é? Quando o pai dele o expulsou de casa?
— Sebastian tende a esconder o que sente quando as coisas ficam difíceis demais e saem do
controle. Ele ficou trancado no quarto por semanas, mas depois saiu de lá como se nada tivesse
acontecido. Eu sabia que ele estava destruído por dentro. Bash tentou ver meu tio na empresa
algumas vezes, mas sempre era enxotado de lá pelos seguranças, como se fosse um qualquer.
Uma vez, o pai dele até ameaçou chamar a polícia, disse que o colocaria na cadeia.
Senti uma vontade absurda de correr até Bash e abraçá-lo. Ele não me contara aquela parte,
talvez não quisesse revelar que havia mesmo se humilhado pela atenção do pai e sido rejeitado
repetidas vezes. Deve ter sido tão difícil…
Meu acompanhante continuou:
— Depois de um tempo, Bash só desistiu de tentar. Quando o pai dele morreu, meu primo não
chorou na frente de ninguém. E não foi ao funeral também, a madrasta dele não deixou. — Drew
soltou um suspiro triste. — Ele não gostava quando Jay e eu tentávamos consolá-lo, então nossa
avó apenas disse para infernizá-lo sempre que possível, assim ele se esqueceria da dor.
Dei um meio-sorriso, brincando com o garfo no prato vazio.
— Ela parece ser uma mulher incrível.
— É uma velha mal-humorada e casamenteira, vive tentando arrumar encontros para nós.
Aquilo me fez pensar em vovô, e senti a saudade e preocupação espremerem meu peito um
pouco mais forte. Eu pedira à Naya que tirasse uma foto minha para ele poder ver que eu
definitivamente me livraria dos suéteres feios. Mandaria uma carta, como sempre fazia. E talvez
contasse a ele sobre o fim que tivera com Bash, se o conquistara ou terminara com ele de uma
vez por todas.
— Ela mora sozinha?
— Huh — Drew assentiu. — Compramos um apartamento para ela perto da casa de Jason,
vamos jogar Mahjong[22] lá todo domingo. Ela prefere passar o tempo com as amigas do bingo e
da hidroginástica do que com os netos.
— Não deve ser verdade…
— Ela disse. Com todas as letras: “Não tem nada para vocês aqui, seus pirralhos. Tratem logo
de se casar e me dar bisnetos, ou então não precisam voltar”.
Gargalhei.
— Eu adoraria apresentar ela ao meu avô.
— Os dois se amariam ou se odiariam muito.
Sorrimos, como se soubéssemos que seria a segunda opção.
Drew observou o primo no palco. Ele se preparava para mais uma música e, quando o olhar
dele encontrou o nosso, meu acompanhante abriu um largo e provocativo sorriso, se inclinando
no assento.
— Posso? — ele perguntou para mim, ainda de olho em Bash.
— O quê?
— Ele está se segurando até agora, acho que precisamos investir mais pesado.
Sorri.
— Como?
Drew passou um braço por meu ombro.
— Passe seu cabelo todo para um lado… Deixe o pescoço exposto para mim.
Franzi a testa, mas obedeci.
— Você tem um pescoço muito bonito, senhorita — elogiou, me fazendo corar.
— Muito obrigada, milorde — zombei. — É algum tipo de fetiche?
— Hm… Pense que sou um tipo de predador, um vampiro, e Bash sabe disso. Você está
expondo seu lindo pescocinho para mim. Vulnerável e muito perto da minha boca. Isso pode
enlouquecê-lo.
Dei risada.
— Não encoste nele, no entanto — falei, passando a mão por meu pescoço exposto.
Seus lábios bonitos se esticaram.
— Agora chegue mais perto — pediu.
Olhei para Sebastian. Por um segundo, pensei mesmo que desceria do palco, mas ele apenas
encarou o primo sério demais, como se listasse as melhores formas de assassiná-lo e onde seria o
melhor local para esconder o corpo.
— Mais duas músicas e ele vem aqui — cochichou Drew pertinho, provocando cócegas na
minha orelha.
Peguei a taça para tentar esconder o sorriso.
— Ele é muito bom em fingir, se estiver mesmo com ciúmes… — Dei de ombros. — Não vai
demonstrar.
Drew virou o rosto para mim, me olhando com uma expressão engraçada.
— Eu sou tapado, Amy… Mas você parece ser mais.
— O quê? — Ri, ofendida.
— Juro que tô vendo fumaça subir da cabeça dele. Ele está se controlando porque sabe que
pode cometer um assassinato… — Seus lábios se esticaram, e então Drew sussurrou em meu
ouvido: — Ele está esperando o lugar esvaziar para vir aqui me esganar.
Gargalhei, e automaticamente meu olhar foi atraído pelo do músico no palco a cinco mesas de
distância.
A pouca luz escurecia suas feições, o deixava mais sério e irritado do que deveria estar, e
sexy. Sim, Sebastian estava indiscutivelmente sexy lá na frente, com o cabelo preso em um
coque frouxo, uma mecha caída em frente ao seu rosto. Os primeiros botões da camisa estavam
abertos e revelavam a tatuagem de dragão que contornava o pescoço e se escondia sob a roupa. A
jaqueta de couro cobria os braços musculosos, as mãos seguravam a guitarra.
Engoli em seco.
— Pare de comer ele com os olhos — Drew debochou do meu lado.
— Não estou.
— Vou diminuir minha aposta: uma música, e o panaca desce.
Sorri, ainda encarando Bash.
Ele pareceu estreitar os olhos. O baixista disse o nome da próxima música, os instrumentistas
se prepararam, mas Sebastian continuou me fitando de longe, como se tentasse decidir algo.
O baterista o chamou.
Bash o ignorou e, quando pareceu certo do que quer que pensasse, sorriu para mim. Aquele
sorriso presunçoso e metido, cheio de certeza. Meu coração parou por um segundo antes de
começar a bater com mais velocidade. Meu colega de quarto se virou para o pianista e falou algo,
os músicos se entreolharam e assentiram para Bash.
— Ah, é agora. — Drew soltou uma risada. Eu segurei a respiração.
A primeira nota aguda do piano soou.
E Sebastian cantou, sem tirar os olhos dos meus por um segundo sequer.
— My fine faded friend with your cute little pranks… I would like to express my thanks… I
trusted you implicitly… (Meu amigo de penas finas e brincadeirinhas fofas… Eu gostaria de
expressar meu agradecimento… Acreditei em você implicitamente…) — Algumas cabeças se
viraram na direção em que o cantor encarava tão fixamente, porque estava mais do que óbvio: ele
estava cantando para alguém. — But what a double-crosser you turned out to be… (Mas que vira
folha você se tornou…)
A batida começou. Reconheci imediatamente a música, é claro, e não consegui me importar
com a atenção que começava a receber. Não quando ele finalmente estava decidindo se declarar.
Da maneira mais sincera possível.
— Stupid cupid, you’re a real mean guy… I’d like to clip your wings, so you can’t fly… I’m in
love, and it’s a cryin’ shame… (Cupido estúpido, você é um cara muito mau… Eu queria prender
suas asas para você não poder voar… Estou apaixonado, e é uma grande vergonha).
Não contive o sorriso: ele cantava como se realmente tivesse brigado contra aquilo (com o
cupido, pelo visto) por semanas. Bash continuou me encarando, continuou me contando:
— …and I can’t think straight… I meet’er every mornin’ ‘bout half past eight… Well, I’m
actin’ like a lovesick fool… (…e não consigo pensar direito… Eu a encontro todas as manhãs às
oito e meia… Estou agindo como um bobo apaixonado…)
Soltei uma risada, sentindo meu coração bobo e apaixonado dançar de alegria.
Não liguei se as pessoas sabiam que era para mim que Bash olhava, não pensei em nada
enquanto ele cantava para mim, como se me revelasse aquele grande segredo com uma revolta
desesperadora. Eu estou apaixonado por você, e a culpa é toda sua, Tiānshǐ.
E se pudesse, diria que também estava apaixonada por ele, que não tinha mais volta.
Nós dois havíamos quebrado a última regra.
O sorriso nos lábios dele se tornou sincero enquanto cantava e, pelo resto da música, foi como
se apenas nós dois estivéssemos ali.
— You messed me up for good right from the very start… (Você me confundiu demais desde
o começo…) — cantou melodiosamente, com uma careta revoltada que me fez rir. — You got
me jumpin’ like a crazy clown […] Well, since I kissed your lovin’ lips of wine… The thing that
bothers me is that I like it fine… Hey, hey, set me free… Stupid cupid, stop pickin’ on me (Você
me fez pular como um palhaço maluco […] Bem, desde que beijei seus lábios de vinho… O que
me irrita é que eu gostei… Ei, ei, me liberte… Cupido estúpido, pare de me perturbar).
Sorri, movendo a cabeça e fazendo que não.
Os lábios de Bash se esticaram mais, seus olhos se estreitaram, divertidos.
— Hey, hey, set me free… Stupid cupid, stop pickin’ on me.
A plateia explodiu em aplausos, alguns olhares desconfiados e curiosos em minha direção. Eu
realmente não liguei.
— Pensei que ele ia cantar algo mais romântico. — Drew, ao meu lado, bufou. — Mas vou
dar um desconto porque é a primeira vez do cara.
Gargalhei, querendo dizer para Andrew que fora perfeito, na verdade. Porque eu estava
emocionada e eufórica e com o estômago revirando em expectativa. Bash não poderia ter
escolhido uma música melhor para dizer o quanto estava bravo comigo por ter se apaixonado.
Antes de eu conseguir comentar qualquer coisa, porém, escutei Sebastian dizer para os
clientes que eles fariam uma pausa e voltariam dali a dez minutos. Então, ele tirou a alça da
guitarra, a colocou no chão e pulou do palco, caminhando decidido na minha direção.
Ela estava me testando.
Pois bem.
Eu queria mesmo saber o que Amy tinha em mente aparecendo ali com Drew.
Naquele vestido.
Use quando estiver pronta…
Uma parte minha estava muito orgulhoso por vê-la superando seu passado, escolhendo usar as
roupas que gostava, soltando os cabelos castanhos ondulados… Pintando os lábios com formato
de botão de rosa com sua cor favorita.
E os óculos não estavam ali.
Amy devia estar usando lentes. Caso contrário, não pareceria estar enxergando tudo tão bem.
Sabia que, mesmo se ela estivesse com eles, eu ainda sentiria a mesma necessidade de me
aproximar, de puxá-la para mim e beijá-la.
E Drew…
Fosse lá o tipo de acordo que tivesse tramado com Amy e Jason… Ele pagaria por isso. No
mínimo perderia a mão por tê-la tocado pelo menos umas dez vezes naquela noite. Segurando
seu cabelo enquanto Amy se inclinava para comer, limpando o canto dos lábios dela, tocando sua
mão, passando o maldito braço sobre o ombro dela tão despreocupadamente.
Ah, ele estava se divertindo…
E Amy? Amy escolhera aquela última carta. Porque eu era um covarde que não conseguia
assumir aquilo, dizer em voz alta que a queria. Fui capaz de suportar um jantar inteiro cantando
no palco enquanto observava ela mostrar aquele lindo sorriso para meu primo, gargalhar de suas
piadas terríveis, assisti-lo ajeitar uma mecha de cabelo atrás da orelha dela.
Sussurrar coisas em seu ouvido…
Aquilo eu não consegui suportar, não quando passara as últimas semanas sonhando em tocá-la
e ficar perto dela daquela maneira. Não depois de Drew saber exatamente o que eu sentia por
aquela mulher.
Eu poderia ter escolhido qualquer outra música, mas apenas uma me veio à mente na hora,
porque Amy sabia que eu estava lutando contra aquilo. Ela sabia, desde o início: eu não queria
aquilo, mas acabou sendo inevitável.
Então, eu cantei.
Contei para ela.
Falei a verdade.
E ela sorriu para mim, e foi assim que a sentença foi finalmente dada.
Não me importei se ainda faltavam mais duas músicas antes da terceira pausa da noite, apenas
caminhei decidido entre as mesas. Sentia os olhares dos clientes curiosos me acompanhando
enquanto andava na direção da última mesa, na direção da linda mulher no vestido vermelho, que
me encarava de volta.
Ela pareceu segurar a respiração, mas não se deixou intimidar, muito menos abaixou a guarda
quando me aproximei. Coloquei as duas mãos na beira da mesa preta e me inclinei em sua
direção. Amelie levantou levemente o queixo, ficando séria e franzindo a testa como se eu
estivesse interrompendo algo muito importante.
Drew apoiou os cotovelos na mesa e me encarou com um sorriso sem-vergonha.
— Oi, primo.
Voltei meus olhos para ele.
— Já pode ir — falei, sério.
— Hm… Quer que eu vá embora porque está com ciúmes ou porque finalmente decidiu tomar
jeito na vida?
Me inclinei para perto de Drew, perguntando com o mesmo tom sarcástico:
— Quer que sua morte seja rápida ou posso te cortar em pedacinhos primeiro?
Ele gargalhou alto ao se recostar no sofá, passando o braço sobre os ombros de Amy de novo.
Ela não se mexeu, apenas levou a bebida aos lábios, e eu pude jurar ver diversão tremular nos
cantos de sua boca.
— Vou esperar a sobremesa chegar.
— Não, você não vai — falei entredentes.
— Qual é, Bash! — Drew revirou os olhos. — Faz tempo que não saio de casa com uma
mulher tão linda e divertida. Você já teve sua chance.
Grunhi.
— Andrew…
— Sebastian… — falou, dramático.
— Vaza.
— Já disse, vou esperar a sobremesa chegar. Então, eu e minha acompanhante iremos embora.
Respirei fundo, lançando um olhar de súplica para Amy, que lutou contra o sorriso. Ela não se
compadeceu. Na verdade, estava se divertindo, aquela espertinha. Muito.
Ela queria me ver suplicar? Implorar?
Suspirei. Tudo bem.
— Quero conversar com ela — pedi, com meu tom de voz mais educado. — Só tenho alguns
minutos. Por favor.
Meu primo se inclinou na mesa, colocando o queixo sobre as mãos, curioso.
— Tudo que pode dizer para ela agora eu tenho certeza de já ter escutado antes, quando você
choramingou bêbado naquele dia.
— Ele choramingou? — Amy perguntou com a testa franzida, fingindo seriedade.
— Como um cãozinho abandonado — Drew assentiu, compadecido.
Ela riu, imitando o beicinho.
— Coitadinho.
Soltei um riso seco, passando a mão no maxilar enquanto pensava qual parte do rosto bonito
do meu primo quebrar primeiro.
— O nariz? — Pensei alto. Ele franziu o cenho, confuso. — Os dentes da frente? Ou talvez
um olho roxo?
Drew riu.
— Você não ousaria…
Estralei os dedos, me inclinando para puxá-lo pelo colarinho.
— Tá, tá! — Gargalhou, levantando as mãos e se rendendo. — Céus!
Apontei com o queixo para a saída.
Andrew bufou, levantando-se do assento ao lado de Amy e ficando de pé diante de mim.
— A conta é sua — disse ao ajeitar a camisa social.
Não respondi. Esperei impaciente que ele nos deixasse à sós. Esperei demais, deixei ele se
divertir, estava no meu limite.
Meu primo se virou para minha colega de quarto, se inclinando para segurar a mão dela e
beijá-la.
Me segurei para não o enxotar à força.
— Foi um prazer finalmente poder passar um tempo com você, senhorita.
Ela abriu um sorriso doce e fez um curto gesto com a cabeça.
— O prazer foi todo meu, milorde.
Os lábios de Drew se curvaram, e ele se demorou com a mão dela até eu pigarrear. Meu primo
revirou os olhos.
— Velho ranzinza. — Bufou quando se afastou. Porém, antes que eu pudesse me concentrar
completamente em Amy, Drew girou o corpo na nossa direção outra vez. — Caso se resolvam,
podem contar para Jason que deu tudo errado? Não quero perder a aposta. Pelo menos até a
próxima semana…
Franzi a testa para ele, deixando claro que, se houvesse mais uma interrupção, eu chutaria sua
bunda para a calçada. Andrew ergueu as mãos de novo, assentindo, se despedindo e
desaparecendo pelas portas duplas, enfim.
O barulho de conversa e a música que tocava baixinho nas caixas de som ficaram abafados
quando voltei os olhos para os de Amelie. As íris castanhas como mel ainda cintilavam aquela
alegria em me ver discutir com meu primo por causa dela.
Por fim, a observei de perto.
Não conseguiria descrever apenas com palavras o quão absurdamente deslumbrante, linda e
angelical ela estava naquele momento. Os olhos brilhavam em expectativa, as mechas caíam
sobre um ombro enquanto um lado do pescoço que um dia eu beijara estava à mostra. Uma
gargantilha fina e dourada o destacava, chamando atenção para sua clavícula, o decote e as
curvas perfeitas…
Ela era linda.
Antes, com os óculos e o amontoado de roupas bregas, meu coração batia forte. Mas agora…
Eu passara as últimas semanas fantasiando quando e como a veria com aquele vestido outra
vez. Ele parecia mais perfeito do que nas minhas vagas lembranças na loja.
Céus… Eu fora mesmo um grande imbecil por ter esperado tanto tempo para notá-la.
Amy também correu os olhos por mim, me analisou de perto. Mesmo que seu peito sob o
decote de coração subisse e descesse rapidamente, ela manteve aquela expressão orgulhosa e
fechada.
— Quer falar comigo agora? — perguntou séria, franzindo o cenho. — É o vestido? Agora
sou o tipo de mulher que você levaria para sua cama?
Senti a apunhalada no peito, e de novo a culpa por tê-la afastado me corroeu com o outro
sentimento dominante.
Engoli em seco.
— Sinto muito por ontem — falei, rouco. — Fui um idiota.
— Um babaca. — A palavra saiu mais natural do que nunca de sua boca vermelha.
Soltei uma risada fraca.
— Sim, um tremendo babaca — murmurei, os olhos fixos nos dela.
Esperei, porque sabia que Amy ia dizer, queria que ela dissesse:
— Calhorda. — Bufou.
— Huh. — Sorri com o nó em meu peito se desfazendo, aliviado. Era o jeito de Amelie dizer
que estávamos bem. — O pior deles.
Amy finalmente cedeu a fachada irritada e arrogante que tentou sustentar, e seu rosto se
transformou em uma expressão ansiosa. Ela mordeu o lábio, revelando o nervosismo.
Aquele gesto que era um sinal, e minha perdição.
— Posso? — Apontei para o lugar vazio ao seu lado.
Assentiu.
Não ultrapassei a linha, deixei aquele lugar vago entre nós dois. Os clientes curiosos
comentavam, claro. Apesar de “disfarçarem”, tentavam descobrir o que acontecia ali.
Amy não pareceu se importar. Ela escondeu as mãos debaixo da mesa, as contorcendo sobre o
colo.
— Bela jogada… — murmurei, olhando para o abajur alaranjado. — Quanto você pagou a
ele?
Amy riu.
— Jason o convenceu.
— Você viria com o Jason? — Céus, teria sido mil vezes pior.
— Huh… Ele precisou trabalhar, então mandou o Drew.
— Você queria mesmo se vingar, não é? — Lancei a ela um olhar divertido.
Amelie deu de ombros.
— Você não pode levar a Cisne para nosso apartamento, flertar com a garçonete e achar que
eu não iria retaliar.
Sorri, colocando a palma da minha mão virada para cima na mesa. Amy entendeu o que eu
estava pedindo e não pensou muito ao depositar a sua própria sobre ela. Entrelacei nossos dedos.
A mão dela era adoravelmente menor que a minha e, mesmo assim, encaixou perfeitamente.
Aquele simples gesto despertou meu coração ansioso.
Acariciei sua pele macia com o polegar.
— Você está linda — falei, virando o rosto para encará-la. — Tão linda que parece que estou
sonhando com você de novo.
Os lábios dela se entreabriram.
— E esse batom… — murmurei, correndo os olhos para ele. — É muito bonito.
Amy soltou uma risada baixa.
— Mesmo? Comprei ontem, sabe, para te infernizar.
— Está funcionando.
Ela abriu um sorriso largo, sincero e encantador.
Era assim então, estar apaixonado. Me perguntava se, com o tempo, me cansaria de vê-la
sorrir para mim daquela forma, se enjoaria de escutá-la falar, gargalhar e apenas existir.
Duvidava muito.
— Senti sua falta. — Fitei seus olhos com carinho e, pelo tempo em que estávamos ali, foi
apenas nós dois. Não parecia haver mais ninguém naquele lugar. Talvez meus colegas de
trabalho pensassem que era só o Sebastian flertando com mais uma, mas eu queria deixar Amy
saber que era a única. — Sabe, de conversar com você, da sua risada e das suas implicâncias…
Ela tentou ficar séria, contrariada.
— Eu não implico com você…
— Implicava antes, como uma idosa de oitenta anos… — Suspirei. — Sinto falta daquela
velha.
Amy gargalhou alto, me empurrando com o ombro. Talvez eu fizesse daquilo a minha
carreira: provocar aquela risada todos os dias. O lucro era incalculável.
Ela suspirou, por fim, escorando a cabeça em meu braço.
— Também senti sua falta.
Meus lábios se esticaram.
— É mesmo? Do que especificamente?
— Hm… — Colocou a mão livre sobre as nossas, entrelaçadas em cima da mesa. Contornou
com a ponta dos dedos os desenhos estampados no meu braço esquerdo. — Do meu sofá.
Gargalhei ao me lembrar do dia em que pegara no colo no hospital e Amy dissera algo
parecido, sobre eu ser grande e confortável. Eu gostava de como aquilo soava, não negaria.
— Ele se sente muito frio e vazio ultimamente — comentei.
— Pode deixar, vou esquentá-lo daqui para frente.
Eu queria isso. Muito.
— Não é estranho? — perguntei, observando e me deliciando com a mão dela acariciando
minha pele.
— O quê? — sussurrou.
— Como pude precisar de você desesperadamente depois de um único fim de semana? —
Beijei o topo de sua cabeça com carinho. — Quebramos a regra.
— Huh. — Riu baixinho e apertou levemente minha mão. — Deveríamos rever o contrato.
— Sim, principalmente a coisa do beijo.
Ela gargalhou, e eu me afastei para observar aquele rosto corado e perfeito. Tudo que eu
queria naquele momento era pegá-la pela mão, sair daquele lugar e correr para o apartamento.
Colocar nosso atraso em dia.
— Falei sério — ergui a outra mão para afastar a franja de sua testa com a ponta do indicador
— na música.
— Quer que o cupido pare de te perturbar? — provocou.
— Huh… Não consigo dormir, não consigo comer… — Bufei. — Até comecei a ler os livros
que ela gosta.
— Posso te contar o final do terceiro livro se quiser, assim não precisa ler.
— Me dê qualquer spoiler, Amelie, e eu te deixo sozinha nesta mesa agora mesmo.
Amy soltou outra risada alta, alegre e deliciosa. Estava realmente aflito para beijá-la, senti-la
de novo. Amelie não fazia ideia de quanto autocontrole eu estava exercendo naquele segundo.
Tudo nela era como uma droga para mim. Me sentia fraco e dependente dela. Viciado.
E aquele perfume… Céus, estava me matando. Cada segundo tentando me comportar, as
últimas semanas sem tocá-la… Eu estava mesmo enlouquecendo.
Engoli em seco.
— Podemos… resolver isso? — perguntei mais sério, ansioso. — Você e eu?
Amy se mexeu para avaliar meu rosto com cuidado, e não havia hesitação alguma ali. Os
olhos exibiam o mesmo sentimento que transbordava em meu peito. Mesmo assim, ela pareceu
pensativa, cuidadosa.
Amelie levou a mão livre ao meu rosto, colocando aquela mecha solta atrás da minha orelha.
— Você tem certeza? — perguntou séria, tranquila. — Naquele dia, na sala… Você disse que
o que sentia por mim era passageiro, que só queria uma noite, e então me esqueceria.
Meu coração parou e trincou, devastado.
— Você… — Clareei a garganta. Merda. — Você ouviu aquilo?
— Huh — assentiu, com um meio-sorriso. — Por isso preciso saber, Bash. Você me quer por
uma noite apenas?
Eu devia ter suspeitado que Amy escutaria a conversa com Felicity, estava tão atordoado com
a volta dela que não pensei naquilo. Isso, claro, se a própria Felicity não tivesse aberto o bico
para contar toda a verdade daquela noite para Amy.
Não pensei na pergunta.
Não havia sequer um resquício de dúvida.
— Sabe que não. — Minha boca secou, e controlei o impulso de beijá-la e prová-la. Se eu
começasse ali, não conseguiria parar. E havia gente demais fingindo que não, mas assistindo. —
Penso em você o tempo todo, Tiānshǐ. — Peguei aquela mão apoiada ao meu rosto e a beijei. —
Quero você todos os dias, sem exceção.
— Sete dias da semana? — Ela arqueou uma sobrancelha, me provocando com um sorriso
malicioso, novo e tentador. — A cada hora, minuto e segundo?
Meus lábios esticaram. Ah… Eu conhecia aquela música. E o resto da letra também.
— Sabe, sempre pensei que você fosse uma garota quietinha e ingênua. Acho que as
aparências enganam mesmo.
— Eu sou. Mas me conta… — Franziu a testa, com uma expressão travessa e insinuativa. —
Você já leu o capítulo cinquenta e cinco?
Gargalhei surpreso, esperando que ela fosse corar ou algo do tipo.
— Ah, Ames… — Desci os olhos para os lábios vermelhos. — Eu não só li como fantasiei
muito sobre todas as cenas românticas daquele livro. E em algumas delas, você usava esse
vestido. Na grande maioria, ele estava jogado em algum canto do quarto.
Ali estava, as bochechas ganhando um maravilhoso tom rosado.
— Você é um safado.
— E você já sabia disso. — Pisquei, beijando o dorso de sua mão mais uma vez. — É sua
última chance para se livrar do contrato, sou um homem apaixonado agora.
Aquele sorriso era o motivo para eu passar as últimas noites em claro, e meu coração bobo
reagiu imediatamente.
— Aquele contrato será revisado, assinado e plastificado.
Ri, me inclinando para perto do rosto dela de novo, pronto para beijá-la, mas Amy recuou.
— Ainda não.
— Não?
Ela fechou os olhos e negou.
— Por quê? — Minha voz saiu mais desesperada do que eu pretendia.
Amy apontou para o palco. Chuck acenava para mim, um sinal impaciente e familiar para eu
parar de flertar e voltar logo lá para cima. Ele sempre fazia aquilo, e normalmente eu não me
importava muito, porque usava aqueles minutos no palco para decidir se levaria ou não a pessoa
com quem estivera conversando no bar para o apartamento. Mas dessa vez, o aborrecimento por
ter sido interrompido ficou nítido na minha cara.
Amy também viu, soltando uma risada.
— Pode ir.
Expirei, impaciente.
— Acha que vou ser demitido se sair com você por aquela porta agora?
Ela se aproximou e beijou minha bochecha, despertando um pouco mais daquela fera faminta
dentro de mim.
— Temos tempo.
— Mas eu sou impaciente.
— Canta mais uma música para mim… — pediu ao se afastar. — Uma mais romântica dessa
vez.
Soltei uma risada nervosa, passando a mão no rosto.
— Huh, pode deixar.
Por impulso, tentei beijá-la de novo, mas Amy já esperava pelo ataque e rapidamente cobriu a
boca, fechando a cara e apontando para o palco.
Revirei os olhos.
— Sim, querida.
Os olhos dela se encolheram em um sorriso, e Amelie me observou me mexer no sofá e
levantar, fazendo um gesto com a outra mão para eu me apressar.
— Vai, vai!
Não consegui nem tentei segurar o sorriso idiota no rosto.
Caminhei em direção ao palco, ignorando facilmente os clientes, desviando das mesas,
pensando na música que dedicaria a ela dessa vez. Subi ao palco e me agachei para pegar a
guitarra, avisando aos rapazes qual música tocaríamos. Fingi não notar suas caras feias para
mim, sorrindo como um palhaço maluco, mesmo. Bobo e apaixonado.
Mas quando me virei para a plateia outra vez, procurando o rosto de Amy na última fila,
encontrei a mesa dela vazia.
Meu sorriso morreu instantaneamente.
Franzi a testa, procurando por ela.
Será que tinha ido ao banheiro?
Esperei um minuto. Dois. Chuck pediu para começarmos. O baterista contou o tempo, mas
não consegui me concentrar e me aquietar enquanto não vi Amy aparecer. Antes que eu pudesse
descer do palco e sair à procura dela, no entanto, um dos garçons se aproximou do palanque com
uma cara de quem estava acostumado a me entregar recados do tipo. Logo, me estendeu um
papel branco, avisando que uma das clientes pedira para entregar.
Quando desdobrei a folha, antes de identificar a letra, reconheci o beijo vermelho no papel.

“Seja um bom menino e trabalhe direito. Estarei te esperando acordada, não se preocupe.”
Soltei um riso incrédulo, fechando os olhos. Aquela garota sabia como me tirar do sério, não
é?
— Sebastian! — Dessa vez, foi Eddy quem apareceu para chamar minha atenção. A cara do
chefe não era a das melhores, e sabia que estava tentado a me demitir depois das faltas e da
desatenção nas últimas semanas. — Música. Agora!
Inspirei fundo, guardando o papel no bolso da jaqueta.
Sim, Amy estava me testando. Me provocando. Atiçando o fogo.
Me aproximei do pedestal, liguei a guitarra.
Ela queria brincar, tudo bem. Eu daria um tempo para Amy correr.
Mais três músicas, apenas.
Então eu voltaria para o apartamento.
— Você está jogando um jogo muito perigoso, Amelie…
Sorri ao atender o celular, quase chorando de alívio quando finalmente pude tirar aqueles
saltos e jogá-los num canto. Claude se aproximou, miando para mim e me encarando com
aqueles olhinhos gigantes e esverdeados. Me abaixei para acariciar a pelagem macia.
— Sabe o que é… — falei para Bash, tranquilamente. — Esses sapatos estavam me
matando… E eu não estou tão acostumada com as lentes, e o vestido…
— Eu espero — ele grunhiu ao me interromper. Pelo barulho ao fundo, deveria estar deixando
o Green’s agora — que você não tenha tirado o vestido ainda.
— Ah, não… Vou deixar você fazer isso.
Houve um momento de silêncio do outro lado.
— Acho bom mesmo.
Suspirei dramaticamente.
— Mas eu estou tão cansada… — murmurei, forçando um bocejo. — Passei a noite em claro
ontem, e foi um dia muito corrido hoje. A gente deveria conversar com mais calma amanhã.
Ele não respondeu de imediato, e o escutei pedir por um Táxi, falando para o motorista o
endereço. Avisou que pagaria o dobro se ele fosse mais rápido.
Gargalhei.
— Você vai pagar muito caro por sair sem mim, Tiānshǐ — disse, realmente tão sério que, se
fosse para qualquer outra pessoa, pensaria mesmo ser uma grave ameaça. — É só um aviso.
— Estou morrendo de medo — cochichei.
Bash soltou uma risada grave.
— Ah, Amy… Espero que tenha se escondido bem, porque quando eu te achar…
— Hm… — Fiquei de pé, sentindo meu estômago se agitar com euforia e nervosismo. — Até
lá então.
E desliguei. Joguei o celular no sofá e corri para o banheiro porque, antes de qualquer coisa…
Eu precisava tirar aquelas lentes. Sabia que os óculos redondos não faziam mais diferença para
Bash de qualquer forma. Mesmo se me achasse mais bonita sem eles, não suportava mais o
incômodo das lentes de vidro nos olhos. Eu as havia encomendado meses antes para um evento
da editora, até me arriscara com um vestidinho leve e bonito, mas não consegui sair do prédio
daquele jeito. Quando me olhara no espelho, começara a ouvir os cochichos das fofocas de novo,
e sabia que não suportaria quando chegasse à sede da GO. Sang e visse aquele tanto de gente.
Apesar de ter ficado nervosa quando saí com Drew naquela noite, não escutei as vozes. Fora
mais a expectativa de superar aquilo, dar oi à nova Amy. E eu gostava dela. Gostava de sorrir e
provocar Bash sem medo, porque tínhamos aquela dinâmica, porque ele havia se tornado meu
amigo.
E à medida em que os segundos foram passando, senti o coração bater cada vez mais rápido,
como se estivesse mesmo em um esconde-esconde com um predador perigoso. A ideia me fez rir
enquanto tirava a lente do segundo olho com cuidado. E sabia que estava perdendo tempo,
porque minutos já haviam passado.
Do Green’s até a nossa rua eram exatamente cinco minutos, mas se o motorista corresse,
como Sebastian pediu… Meu sorriso morreu quando encarei o reflexo embaçado no espelho e
me dei conta de que precisava estar com os óculos antes de procurar um lugar para me esconder,
mas eles não estavam ali.
— Droga — praguejei ao sair do banheiro, estreitando os olhos para o rack na sala. Tentei
lembrar onde deixara os óculos antes de me arrumar para o Green’s.
Meu coração passou de marcha e aumentou a força e a velocidade. Não havia tempo para
procurar por eles. Quando analisei minhas opções, percebi que não havia lugar para me esconder
de Bash também. Eu poderia me trancar no banheiro apenas para aborrecê-lo, mas também
poderia me esconder debaixo de sua cama, o que seria divertido. Porém, aquele era o primeiro
lugar no qual ele procuraria.
Escutei os passos no corredor lá fora.
Meus olhos se arregalaram, corri descalça para detrás do balcão na cozinha a tempo de ouvir a
chave girar impaciente na porta. Segundos após, o barulho da case da guitarra sendo colocada no
chão.
Cobri a boca, escutando o bombear rápido do coração contra o ouvido, os passos de Bash pelo
apartamento. Ele foi ao banheiro, depois seguiu para a sala, do corredor para nossos quartos…
As portas de um guarda-roupas se abriram e fecharam. O guitarrista procurou debaixo da
minha cama provavelmente, para então fazer a mesma ronda no próprio quarto.
Bisbilhotei atrás da bancada, e notei que a porta ainda estava aberta. Eu poderia sair por ela e
ficar no corredor até que…
Os passos retornaram e, como um leopardo sorrateiro e paciente, Sebastian caminhou sem
pressa pelo corredor, porque sabia onde eu estava, porque não tinha como correr agora. Voltei a
me espremer contra a parede lisa e fria da bancada, segurei a respiração enquanto ouvia a porta
se fechar. Bash a trancou. Escutei o ruído de couro, roupa sendo retirada, a jaqueta preta sendo
jogada no sofá.
Então, os sapatos foram retirados e deixados em algum canto.
Pressionei os lábios, fechando os olhos e respirando com dificuldade. O som de passos
retornou e, em um segundo, senti a presença dele se aproximar, a sombra do corpo de Sebastian
pintar o chão. No outro, ele estava parado diante de mim, se inclinando para segurar meu pulso e
me colocar de pé.
Soltei um gritinho quando as mãos dele me seguraram e me colocaram sobre a bancada,
facilmente me prendendo contra seu corpo.
Respirei ofegante.
— Algo a dizer em sua defesa? — perguntou, parecendo tão ansioso quanto eu, os olhos
vorazes encarando fixamente minha boca.
— Eu… — engoli em seco, sentindo o coração acelerar ainda mais. — Não estou vendo sua
cara. Preciso dos meus óculos.
Notei o sorriso embaçado, o rosto dele perto do meu.
Sebastian ergueu uma mão, afastando uma mecha de cabelo do meu rosto, percorrendo aquela
mão fria por meu pescoço e, por fim, prendendo os dedos compridos entre as mechas em minha
nuca.
— Você não vai precisar deles agora.
Puxou meu rosto contra o seu e me beijou.

Foi intenso... Diferente daquele beijo na cozinha da casa dos meus pais, quando Bash limpou
o glacê do meu queixo e se aproximou devagar. Diferente de quando nos beijamos na sala perto
da árvore de Natal, antes de tudo desmoronar. Nada doce e carinhoso como o beijo que me dera
no hospital, quando me pegou no colo e cuidou de mim.
Aquele beijo foi urgente. Como se Sebastian tivesse esperado não alguns dias, semanas, mas
anos para me sentir daquela forma. Não havia ninguém para assistir dessa vez, nenhum pretexto,
nenhuma atuação. Aquilo era real, ele me segurava e me apertava contra o corpo porque me
queria verdadeiramente.
Assim como eu o queria também.
Contornei sua cintura com as pernas, o puxando para mais perto enquanto minhas mãos se
agarravam à camisa dele. Sua boca reivindicou a minha, a língua em uma dança apressada,
aqueles dedos em minha nuca me enlouqueciam de uma forma que não pensei serem capazes de
fazer um dia.
Não haveria pessoas na cidade para comentar, ninguém se interessava pelas nossas vidas ali,
era apenas nós dois.
Sebastian me queria.
Estava apaixonado por mim.
Busquei ar quando seus lábios se afastaram, inclinei a cabeça para trás e permiti que
explorasse meu pescoço, beijasse cada centímetro de pele…
— Bash…
— Me desculpa. — Ele me beijou de novo, na boca, na bochecha, no maxilar, voltando para
os lábios. As mãos seguraram meu rosto. Não conseguia ver nitidamente suas feições, mas
percebia o olhar aflito e ansioso, o desejo cintilar nas íris castanhas. — Me desculpe ter
demorado tanto. — Não hoje, não do Green’s para cá. — Estou loucamente apaixonado por
você, Amelie. — Outro beijo. — Deveria ter dito no momento em que percebi.
Consegui sorrir. Emocionada, sim, mas ainda zonza pelo beijo, tonta e fraca pelo desejo que
sentia por ele, o coração ensandecido gritando o nome dele, pedindo mais, implorando para Bash
não me soltar dessa vez. Podia notar pelo tom de voz que Sebastian não queria interromper o
beijo, que precisava de mais, como eu. Mas queria falar, precisava que eu soubesse daquilo antes
de continuarmos.
— E quando foi? — perguntei, rouca.
— Quando te vi neste vestido pela primeira vez… — disse, a respiração pesada e rápida. —
Ou talvez quando te tirei do chão frio naquela noite e te abracei na cama… — Ele acariciou meu
rosto com o polegar, a outra mão desceu para minha coxa na lateral de seu corpo, na fenda que
revelava a pele. Bash apertou os dedos ali, levemente, mantendo aquela perna presa ao seu
quadril. Notei um sorriso esticar seus lábios. — Quando me contou sobre sua lista de sons, ou
quando imitou uma zebra, não faço ideia.
Gargalhei.
— Foi a zebra, certeza. — Me aproximei para beijar sua boca. — Você não conseguiu resistir.
Bash depositou os lábios macios e avermelhados em meu queixo.
— Definitivamente, a zebra.
Engoli em seco, sentindo os olhos arderem, o coração antes tão sozinho e dolorido bater
alegremente e vivo que precisei dizer:
— Também estou apaixonada por você, Bash. — Encarei seus olhos lindos e embaçados.
Queria poder vê-lo por completo, cada detalhe do rosto lindo. — Desde o primeiro segundo em
que segurou minha mão e cuidou de mim. Quebrei a regra bem antes do nosso primeiro beijo.
Ele sorriu, descendo a segunda mão para a outra coxa.
— Então vou ter que cobrar uma taxa altíssima por isso.
Ri.
— Huh. Acho que minha dívida está muito alta agora, vai precisar parcelar em mais vezes.
— Hm… — Beijou minha boca devagar, me provocando, subindo a saia do vestido. —
Vamos parcelar por uns cinco anos, assim você não precisa se preocupar tanto.
Ri sob seus lábios, me desmanchando muito rapidamente quando Sebastian me beijou outra
vez e deu continuidade de onde paramos. Aquilo era tão bom… Tão bom que minha mente se
derreteu em geleia, e eu só consegui pensar no quanto queria que aquele beijo durasse para
sempre. De repente, me senti enciumada pelas mulheres que o provaram, pelas panquecas no
café da manhã que fiz para cada uma delas.
— Você é meu — sussurrei, deixando Bash percorrer seus lábios pelo meu pescoço de novo,
descendo… Arfei e prendi a mão em seu cabelo.
— Huh… — Ele murmurou sobre a minha pele. — Sou seu. Inteirinho seu.
— Ótimo.
Senti as mãos de Sebastian soltarem minhas coxas, procurarem pelo zíper nas minhas costas,
e não precisei de óculos para enxergar claramente a urgência em cada movimento, o peito largo
subindo e descendo.
Imaginei o que se passava em sua mente naquele segundo.
— Bash?
— Huh? — Ele se afastou para me olhar.
Desviei a atenção para a mão em seu peito, a respiração ofegante. Mordi o lábio, colocando
todo nervosismo e insegurança na voz e expressão.
— Eu… É que…
— O que foi? — Senti seus olhos atentos em mim, a expressão preocupada.
— Eu… — Puxei o ar, mostrei a ele que estava reunindo coragem para falar. — Eu… não sei
se estou pronta ainda — falei baixinho, envergonhada. — Eu pensei que sim, mas… M-me
descul…
— Ei, ei, ei… — Ele me puxou contra o peito, em um abraço apertado. Pressionei os lábios.
Bash acariciou minha cabeça com carinho. — Está tudo bem, não vamos correr. Podemos ir no
seu tempo e…
Ele parou, sentindo o tremor em seu peito, congelando, porque eu provavelmente começara a
chorar e ele não saberia o que fazer…
— Sua… — Ele segurou meus ombros e me afastou.
Comecei a rir mais alto.
Sebastian me olhou desacreditado, e de novo desejei estar com os óculos para ver melhor.
— É bom saber que estaria disposto a esperar — comentei com um sorriso travesso ao colocar
a mão sobre o seu peito de novo, abrindo o primeiro botão da camisa, erguendo sugestivamente
os olhos para os seus.
— Já chega — ralhou impaciente, e não tive tempo algum de antecipar o movimento quando
Sebastian me puxou da bancada e me colocou sobre o ombro.
Gritei, não conseguindo conter a gargalhada.
— Você foi uma garota muito atrevida hoje, Amelie…
— Você mereceeeu… — Dei risada, me segurei às suas costas e fechei os olhos com força
para evitar ver o chão se movendo. Bash me ajeitou nos braços fortes, segurou minhas coxas e
me levou para o quarto. — Ahhh! Não me deixa cair!
— E então? — ele perguntou, chutando a porta para passar e me lançando na cama em
seguida. Afastei as mechas bagunçadas do rosto, com um sorriso enorme enquanto Bash se
ajoelhava à beira do colchão e começava a desabotoar a camisa. — O que vai ser?
— Vai ser o quê? — indaguei, distraída nos desenhos em seu peito, no abdômen bronzeado,
nos gominhos definidos.
Engoli em seco.
— Capítulo cinquenta e cinco ou aquele livro de época ruim? — Jogou a camisa preta de lado
e engatinhou na minha direção. — Você sabe, com a cena do sofá?
Não precisei pensar.
— Precisamos de tintas — falei decidida, e a resposta fez a seriedade e a impaciência de Bash
descerem pelo ralo. — Asas pretas com envergaduras beeem grandes…[23]
A risada grave e rouca dele reverberou pelo quarto.
— Vamos deixar o capítulo cinquenta e cinco para amanhã então. Vou ao mercado bem cedo
comprar as tintas.
Sorri, enlaçando seu pescoço com as mãos, deixei que ele me beijasse. E foi tão carinhoso
dessa vez que quase chorei.
— Vou ir devagar — Bash prometeu baixinho, acariciando meu rosto com as costas dos
dedos. — Me fale quando quiser que eu pare.
Assenti. Mesmo assim, Sebastian não se moveu.
— Tem certeza? — perguntou.
— Você tem? — rebati. — Porque não vou deixar nenhuma outra mulher passar por aquela
porta depois disso.
Seus lábios se esticaram em um sorriso largo de tirar o fôlego.
— Não quero mais ninguém na minha cama além de você, Tiānshǐ… — Ele se inclinou para
me beijar.
Suspirei, pronta para ele, mas…
— Espera! — Virei o rosto, me esquivando. — Antes… Você trocou os lençóis, né?
Ele riu.
— Há muito tempo.
— Certo… — Suspirei, sorrindo de volta. Me ajeitei no colchão. — Ok. Pode continuar.
Percorri meus dedos sobre a pele quente em seu peito.
Sebastian era repleto de tatuagens, desde os ombros e costas musculosas até a perna esquerda
comprida e forte. Ele me explicara que, quando pequeno, era apaixonado por animais. Eles eram
a única coisa que sabia desenhar, o único assunto pelo qual se interessava em pesquisar na
biblioteca. Eu era curiosa, e Bash implicara comigo sobre fazer perguntas demais em um
momento tão importante, mas não consegui controlar a língua quando vi a coxa e a perna tatuada
mais de perto.
Tantos animais lindos, várias espécies de pássaros e felinos, todos perfeitamente alinhados e
encaixados na pele bronzeada como uma só arte. Ele apenas explicou que gostava de observar
como cada um agia diante de uma específica situação, que adorava a beleza única de cada um.
Quanto ao dragão, o desenho maior envolvendo seu pescoço, seus ombros e seu peito, fiquei
um pouco desapontada ao descobrir que não fora feito com um propósito honroso e cheio de
significados místicos. Nas palavras de Bash, Drew era mesmo o mais certinho dos primos.
Acabou perdendo uma aposta para os primos e precisara fazer uma tatuagem, porque eles sabiam
que a avó ficaria furiosa com o neto favorito dela. Porém, Bash e Jason acabaram gostando do
dragão escolhido por Andrew e decidiram fazer também, no fim das contas. O chefe Wang no
braço, e Sebastian nos ombros e pescoço.
Ainda assim, era uma boa história.
Eu invejava o relacionamento dos três. Não consegui deixar de pensar que, se Nolan não
tivesse entrado em nossas vidas, Jolie, Jen e eu poderíamos ter sido um trio divertido como os
Wang.
Senti os olhos de Bash me observarem com atenção enquanto eu contornava a ponta dos
dedos sobre o corpo esguio do dragão que descia em seu ombro esquerdo, seguindo para o lindo
pássaro de penas compridas sobre o coração. Sua respiração ainda estava rápida, o peito largo
subia e descia agitado sob meus dedos, e percebi meu corpo se arrepiar de novo quando os dele
deslizaram suavemente sobre a curva do meu pescoço e ombro.
— Você está bem? — perguntou depois de alguns segundos, recobrando o ar.
Ri, um pouco sonolenta e cansada.
— Huh — murmurei, passando o polegar pela borboleta no centro, pouco abaixo do pescoço.
Bash engoliu em seco.
— Foi… o que você esperava?
Pensei.
Não. Definitivamente não.
Eu era uma leitora de romances adultos, é claro que fantasiara o momento diversas vezes, em
diversas situações. Mas também escutara uma lista gigantesca de reclamações sobre a Primeira
Vez. Eu ficara nervosa, sim, mas Sebastian fora tão carinhoso e paciente… E antes da coisa toda,
é claro… Não conseguiria descrever em palavras como fora incrível. Como me contivera nos
últimos minutos para não pedir que fizesse de novo.
— Foi estranho — falei com sinceridade. O peito de Bash parou de se mover, e sua hesitação
repentina me fez rir. — Mas foi bom.
Houve um momento de silêncio, como se ele tentasse entender o que eu havia dito.
— Essa é a primeira vez que me sinto tão insultado. E dói, porque sou louco por você e não
há muito o que eu possa fazer…
Gargalhei, parando a mão sobre a raposa na costela esquerda para erguer o olhar até ele.
— Foi minha primeira vez, é claro que seria estranho. — Afastei uma mecha de cabelo de seu
rosto corado. — Mas foi surpreendentemente bom.
— Surpreendentemente? — Fez uma careta fofa, realmente ofendida. — Pelos sons que fez,
Tiānshǐ, pareceu gostar bastante.
Corei.
Ainda não queria falar sobre isso, sobre os sons que eu fazia. Embora Bash tenha confirmado
com um sorrisinho que eram mesmo “angelicalmente musicais”, não acreditei. Tentei me segurar
no começo, morder os lábios e ficar em silêncio, porque sentira vergonha de soar tão estranha
quanto a Cisne ou a Zebra. Mas Sebastian disse que, se eu me contivesse, ele pararia.
Bobão.
— Eu… disse que gostei. — Desviei os olhos.
— Disse que foi estranho — retrucou, bufando.
— Estranhamente bom!
Ele resmungou.
Não consegui parar de rir.
— Você quer mesmo que eu explique por que foi estranho?
— Você está mesmo tentando ferir meus sentimentos?
Gargalhei, me inclinando para beijar sua boca.
— Alguém invadiu meu espaço protegido pela primeira vez — falei, divertida. — Mas foi
estranhamente bom, e você foi perfeito comigo. Não pensei que fosse tão carinhoso, sabe…
segundo seu histórico.
Ele me lançou um olhar engraçado, soltando um riso incrédulo.
— Histórico?
— Sabe… Os sons delas eram… muito intensos.
— Bem, vou te dar mais alguns dias para se acostumar, e então poderemos brincar de
verdade.
Ri e voltei a me aconchegar nele.
— Eu gostei — falei, sinceramente. — Fez eu me apaixonar por você ainda mais.
Aquele carinho em meu ombro continuou, seguindo para o braço.
— Que bom. — Beijou o topo da minha cabeça. — Quero que se sinta tão bem quanto eu me
senti.
Sorri, fechando os olhos por um segundo para apreciar aquele silêncio tranquilo.
Sentia os batimentos cardíacos dele voltarem ao normal, os dedos percorrerem deliciosamente
minha pele fria. Percebia meu próprio coração bater rápido com expectativa diante da promessa
de outros dias… meses. Talvez anos?
— O que perdi nas últimas semanas? — Bash perguntou depois de um minuto.
— Hm… Fiz uma amiga.
— Aquela no restaurante?
— Sim. — Sorri sonolenta. — Falamos mal de você ontem, a noite toda.
O peito dele se mexeu ao acompanhar a risada rouca.
— Justo.
— Foi ela quem me deu a ideia de ir ao Green’s com o Jason.
Meu colega de quarto bufou.
— Não sei se gosto dela. — Gargalhei diante do tom, imaginando a careta no rosto dele. — O
que mais?
— Hm… — Pensei. Ah, sim! Ficara tão brava com Bash no dia anterior que a emoção daquela
novidade acabou recostada em um canto. — Meu chefe decidiu publicar meu livro.
Sebastian se mexeu na cama, me afastando para se apoiar no cotovelo e me encarar.
— Sério?
— Huh. — Meus lábios se esticaram. — Ele disse que estava muito satisfeito com a escrita. E
ele raramente gosta de alguma coisa…
O sorriso largo no rosto de Bash foi lindo e sincero. Ele se inclinou, passando um dos braços
por minha cintura e me puxando para perto.
— Estou tão orgulhoso de você, garota — disse, enchendo meu rosto de beijos. Sebastian
grunhiu. — Como pode ser tão perfeita?
Ri.
— Você vai na sessão de autógrafos quando ele sair?
— Se eu vou? — questionou ao inclinar a cabeça para me observar, o rosto a centímetros do
meu, os olhos brilhando em uma emoção que não consegui identificar. — Vou estar com uma
placa de todo tamanho deixando claro que não só durmo com esta mulher incrível como também
serei inspiração para o próximo livro.
Gargalhei alto, sendo atacada por mais uma enxurrada de beijos que desceram para o meu
pescoço e ombros.
— Depois do vovô… — comecei ao acariciar as mechas lisas e desgrenhadas do cabelo dele.
— Você foi a primeira pessoa para quem eu quis ligar e contar.
Bash interrompeu o que fazia para me olhar de novo, mais sério. Parecia, talvez, surpreso. As
sobrancelhas escuras franziram um pouco.
— Mas ouvi você com Felicity e não tive coragem. Você me queria longe, então…
Ele suspirou e deslizou as costas dos dedos em meu rosto, me fitando com carinho.
— Você sabe que menti, não sabe?
— Disse que não mentia — provoquei.
— Eu só… — Soltou o ar, e pude perceber a mesma culpa de mais cedo tomar suas feições.
— Só pensei que merecia alguém melhor. Depois que voltei e você ficou, fiquei repassando
nosso fim de semana juntos e me senti um ser humano horrível.
Franzi a testa, confusa e surpresa.
— Por quê?
— Porque eu fui. Percebi como você ficou sozinha nos últimos anos, como demorei cinco
anos para finalmente me importar de verdade. Eu te irritava de propósito, evitava ficar sozinho
com você no apartamento…
— Você não precisa se desculpar por…
— Não… — Sua voz oscilou, Bash fechou os olhos por um segundo antes de continuar. —
Não consigo parar de pensar nisso. Nas prováveis noites em que ficou doente e eu não soube,
não cuidei de você. Você sempre foi tão fechada e reservada que não me importei em perguntar
como tinha sido seu dia, se estava bem… — Seu polegar percorreu carinhosamente minha
bochecha. — Você me tinha neste apartamento esse tempo todo, mas se sentiu sozinha mesmo
assim. Sinto muito, Ames…
Engoli a emoção, tentei afastar a ardência nos olhos.
— Não era uma obrigação sua cuidar de mim, Bash — falei rouca, segurando a mão em meu
rosto. — E eu te odiava de qualquer forma — brinquei, exibindo um sorriso tranquilo. — Se me
oferecesse ajuda ou algo do tipo, eu te ignoraria. Quase não fico doente… Os Sanchez têm uma
saúde de ferro.
Ele suspirou.
— Mesmo assim…
— Nunca culpei você por isso. — E era verdade. — Você era barulhento demais, de qualquer
forma. Eu passava mais tempo maquinando como quebrar sua cama do que chateada por não me
notar.
— Bem, sobre a cama… — começou com um sorriso malicioso.
— Nem comece — o interrompi, sentindo as bochechas esquentarem.
Bash soltou uma risada baixa e me puxou contra ele outra vez, afundando o rosto na curva do
meu pescoço.
— Não vou te deixar sozinha, Tiānshǐ — prometeu, fazendo meu coração abobalhado e
sensível se expandir, emocionado. — Vai precisar me suportar ainda mais a partir de agora. —
Beijou demoradamente meu ombro. — Não vou te deixar em paz.
Sorri.
— Estou ansiosa por isso.
— Mesmo? — Ele me deitou de costas na cama e, mesmo sem as lentes dos óculos para me
ajudarem, conseguia ver nitidamente os olhos castanhos cintilarem malícia e desejo. — Posso ser
um apaixonado insuportável.
— O que está fazendo, Sr. Wang? — Suspirei, percorrendo a mão sobre a borboleta em seu
peito, descendo para o lobo no abdômen definido quando Sebastian ficou sobre mim.
— Me senti desafiado com a coisa do estranhamente bom.
Soltei outra risada alegre e umedeci os lábios, com divertimento dominando minhas feições.
— Não vamos incomodar os vizinhos a essa hora da noite.
Ele se inclinou para perto, explorando meu ombro, meu pescoço e meu maxilar com a ponta
da língua enquanto mordiscava e beijava.
— Sr. Gerald não vai ouvir — murmurou sobre minha pele.
Soltei uma risada seguida por um gemido contido.
— Mas está tão tarde…
— Ah, Amy… — Beijou minha boca uma vez antes de sorrir e dizer: — Temos a madrugada
toda.
Quando acordei na manhã seguinte, Sebastian não estava na cama.
Eu até me lembrava vagamente de tê-lo visto se levantar e me beijar na testa antes de sair,
mas estava tão cansada e com tanto sono que não tive forças para manter os olhos abertos e me
preocupar. Porém, quando me sentei no colchão e puxei o cobertor para mais junto do corpo, foi
inconsciente sentir o coração parar por alguns segundos e me perguntar rapidamente se ele havia
saído antes de eu acordar porque não queria lidar comigo, como fazia com as outras.
O pensamento furtivo durou pouco, no entanto: segundos depois, escutei o som de Ain’t too
proud to beg[24] da cozinha, a voz bonita de Bash cantarolando, como se fizesse parte da banda.
E o apartamento cheirava a bacon.
Depois que a razão voltou para acalmar meu coração, senti o corpo relaxar e quis
simplesmente continuar na cama o resto da manhã, mas meu estômago protestou diante do cheiro
que o atiçava do corredor. Foi uma luta perdida. Rolei para fora do colchão e peguei aquela
camisa preta que Sebastian usara na noite anterior, sentindo seu perfume delicioso me embalar,
como se ele estivesse bem ali, me abraçando.
Corri os olhos pelo quarto, percebendo a tamanha ironia de ser eu, dessa vez, a pessoa a
acordar ali.
Algumas semanas atrás, eu estava na cozinha, com uma cara emburrada enquanto preparava o
café da manhã para mim e minha nova amiga. A última delas fora Felicity, e eu me lembrava
dela me questionar se Bash era um canalha, e eu confirmara.
Ele não fora nada canalha aquela noite.
Muito longe disso.
Me senti preciosa e importante demais enquanto ele me tocava, me beijava…
O encontrei de costas na cozinha, procurando algo na geladeira, as costas musculosas à vista.
Àquela distância, os desenhos não passavam de um borrão preto, e quase pedi a Bash para ficar
assim, para me esperasse encontrar os malditos óculos e me aproximar dele, tocar aquelas
tatuagens, vê-las com clareza. Apreciá-las de pertinho. Mas antes que pudesse fazer uma ronda
minuciosa pelo apartamento, Sebastian se virou com a caixa de ovos na mão, leite na outra. Ele
me olhou, e pude notar aquele sorriso largo iluminar seu rosto.
— Bom dia, pedrinha adormecida — cantarolou, deixando os itens pegos na geladeira sobre a
bancada atrás dele e se virando para me observar de novo. Apoiou as mãos sobre a superfície de
madeira.
Percebi seus olhos me observarem: a camisa social preta cobrindo meu corpo, deixando
minhas pernas à mostra, os pés descalços. Se estivesse com as lentes, saberia se seus lábios
tinham se esticado mais.
Bash me chamou com o indicador depois de alguns segundos, e eu sorri.
Me aproximei vagarosamente, para provocá-lo, para admirar o corpo glorioso e tatuado de
longe, a calça jeans escorregando por sua cintura, revelando aquela faixa de cueca box cinza.
Dei a volta na bancada em U, e Bash se virou para me receber com os braços esticados,
prontos para me segurar e me colocar sentada sobre a tábua de madeira. Sebastian manteve uma
mão sobre minha coxa, enquanto a outra puxava minha nuca para ele, para que os nossos lábios
se encontrassem.
Meu corpo ainda estava despertando, eu precisaria de alguns minutos para acordar
completamente. E quando Bash me beijou daquele jeito tão carinhoso, se demorando
pacientemente na minha boca, pensei estar sonhando.
Talvez ainda estivesse dormindo.
Passei os braços sobre seus ombros largos e o trouxe para perto, as mãos dele deslizaram para
minha cintura.
— Oi — ele disse, traçando uma linha preguiçosa de beijos em meu maxilar, descendo e
descendo…
Inclinei a cabeça para trás, abrindo espaço para ele.
Suspirei.
— Oi…
— Dormiu bem?
Respondi puxando sua boca para a minha outra vez, sem me importar com o frio que sentia
nas pernas quando as envolvi na cintura dele. E como na noite anterior, Bash me beijou daquele
jeito apressado e faminto, gemendo meu nome baixinho. Percorreu aquela mão por minha perna
e me segurou com força. Parecia melhor que da primeira vez, e cheguei rapidamente à conclusão:
poderia facilmente passar o restante do domingo deixando Sebastian me beijar, me tocar.
Me afastei apenas para encará-lo, implorar que me carregasse para a cama outra vez. Mas em
vez disso, contornei a ponta dos dedos em seu rosto com carinho, passando eles entre as mechas
do cabelo injustamente macio.
— Quero ver você — falei com um biquinho.
Bash riu, e não se afastou muito quando se inclinou para o lado e pegou algo na prateleira,
como se já esperasse que eu dissesse aquilo.
— Encontrei eles debaixo do rack essa manhã — disse ao ajeitar cuidadosamente a armação
vermelha em meu rosto. — Claude deve ter escondido lá.
Sorri.
E como desborrar um vidro cheio de vapor, consegui ver aquele rosto perfeito outra vez, cada
contorno sólido e esculpido do nariz, do maxilar, as pintinhas espalhadas pelo rosto como
estrelas solitárias, a boca que me beijara segundos atrás e fizera coisas incríveis naquela
madrugada…
Toquei seu rosto de novo, delineando o polegar em cada detalhe, sem perceber imediatamente
os olhos castanhos me observando de volta, com uma intensidade de incendiar aquele
apartamento todo. Eram capazes de me deixar inquieta entre seus braços.
Sebastian me encarava como se eu fosse…
— Linda — sussurrou. — Você é tão linda…
Minha garganta se fechou com o sentimento que embalou o coração, aquecendo o corpo,
queimando os olhos com lágrimas repentinas.
— Mesmo com os óculos? — questionei, rouca.
— Mesmo com eles. — Segurou meu queixo e me deu um selinho.
— Perderam o efeito da magia…
— Acho que vai ter que arranjar um mais feio — falou, fingindo seriedade.
Gargalhei baixinho ao enlaçar seus ombros de novo e, antes de Bash e eu darmos
continuidade ao que estávamos fazendo, escutamos um miado.
Virei o rosto sobre o ombro e encontrei Claude nos encarando do sofá, em pé no encosto
almofadado. Ele miou de novo, parecendo irritado, mostrando os dentinhos afiados. Bash
contornou as mãos na minha cintura e sorriu de forma sarcástica e vitoriosa.
— Ela é minha agora.
O gato protestou, saltando do sofá e seguindo para a cozinha.
— Você já teve seu momento, vá arranjar uma gata para você! — Bash disse, revoltado.
Percebeu que o animal traçava o melhor plano para me alcançar na bancada sem se machucar.
— Não acredito — falei, tentando conter a diversão na voz — que está brigando com ele.
— Bem, você pode me culpar? — Bufou, e me encarou irritado. — Você deu mais atenção
para ele nos últimos dias, fazendo aquelas vozinhas e o paparicando com carinho.
Dei risada, prevendo pelo movimento no chão que Claude saltaria a qualquer segundo.
— Posso fazer a vozinha para você também… — provoquei quando passei a mão na cabeça
de Bash como costumava fazer com o gato.
Ele fechou a cara.
Claude saltou, rapidamente marchando pela bancada até me alcançar, se colocando entre o
dono e eu. Não consegui resistir à demonstração de ciúmes do gatinho, muito menos à carranca
de Sebastian quando tirei a mão de seu cabelo para acariciar o pelo preto e macio de Claude.
Bash grunhiu no segundo em que meu celular começou a tocar em algum lugar da sala.
Ele apontou para o gato.
— Você vai ir para a casa da Sra. Hoang amanhã cedo. — E saiu em busca do aparelho que
chamava.
Beijei a cabeça de Claude. Ele pareceu mais manhoso depois de ficarmos a sós.
— Não vou deixar — cochichei para ele, sorrindo.
— É o seu avô… — Bash disse e, antes de eu conseguir saltar do balcão e pedir que ele me
esperasse colocar uma roupa decente, meu colega de quarto atendeu. — Oi, abuelo[25].
Paralisei, me mexendo na bancada para acompanhar Sebastian da sala. Ele estendia o celular
para o rosto com um sorriso alegre, nada preocupado com o tronco nu. Arregalei os olhos,
fazendo “não” com a cabeça, mas fui completamente ignorada.
Sebastian começou a andar em direção à cozinha outra vez.
— Hm… — meu avô grunhiu do outro lado da videochamada. — Minha memória não está tão
boa como antigamente, mas jurava que, da última vez que te vi, você usava camisa, rapaz.
Bash se aproximou da bancada, sorrindo sem vergonha alguma. Em contrapartida, meu rosto
corava violentamente. Me preparei para saltar com Claude da bancada, mas fui impedida por um
corpo enorme.
Ele colocou a mão livre em minha coxa, bloqueando o caminho e me mantendo presa.
Contive o choramingo.
— Eu teria me vestido de forma apropriada se soubesse que era o senhor ligando — Bash
disse tranquilamente, o polegar provocando minha coxa com carícias circulares. Pensei em
chutá-lo, mas isso apenas me denunciaria.
— O que está fazendo com o celular da minha neta? — vovô perguntou, desconfiado. —
Pensei que tivessem terminado.
— Não consegui ficar longe dela, senhor.
— Eu imaginei… Estava na sua cara. — Bufou, como se não tivesse brigado dias atrás
comigo por “abandonar um moço tão inteligente e talentoso”. — Onde está aquela garota?
Fiz que não para Bash outra vez, suplicando para ele inventar uma desculpa, usando Claude
como um escudo para esconder a camisa social preta de Sebastian, os botões abotoados de
qualquer jeito, um dos ombros descobertos…
Ele abriu um largo sorriso.
— Está bem aqui. — Não, não, não… — Vou passar para ela.
Bash virou o celular para mim, e mal me mexi quando o rosto de vovô ficou visível e os olhos
pretos me observaram.
Pelo canto da tela, consegui ver qual era realmente a situação: meu cabelo estava
terrivelmente desgrenhado, a franja parecendo um ninho de passarinho, os óculos um pouco
tortos, a camisa… Céus, a camisa…
Puxei o tecido, tentando esconder o ombro e notando os lábios de Sebastian se esticarem cada
vez mais atrás do aparelho que apontava para mim.
— A-Abuelo[26]…
Ele suspirou, e esperei ouvir um sermão.
— Então vocês se consertaram mesmo… — falou, e pude jurar que parecia tentado a sorrir.
Mas a imagem da ligação não era tão nítida assim, poderia ser apenas uma ilusão.
Meu rosto esquentou mais.
— É q-que… Não é o que o senhor…
— Ótimo. Aproveitem e façam um bisneto para mim hoje.
O olhei chocada. Bash gargalhou.
— Vô!
— O quê? — Ele pareceu revirar os olhos escuros. — Sou burro, por acaso? Ele sem camisa,
e você com a camisa dele… Um mais um, dois… Ou três, se fizerem direito…
Choraminguei, soltando Claude para cobrir o rosto.
— Usamos preservativo, senhor. Fomos cuidadosos — Bash falou ao virar o celular para ele
por alguns segundos. Aproveitei a deixa para abotoar as outras casas da camisa até o colarinho se
fechar em meu pescoço. — Sinto muito desapontá-lo.
— Pode acontecer… — murmurou o senhor de idade.
— Mas não vai! — grunhi mortificada, querendo me esconder em algum lugar.
— Sua irmã deve ganhar logo, de qualquer forma… Mas eu queria um filhote seu também,
querida… — Querida? Vovô raramente usava aquele tom!
Sebastian virou o celular para mim, e eu tomei o aparelho de sua mão com raiva. Ele fingiu
não reparar, pegando o gato em meu colo como se os dois fossem melhores amigos de novo.
Bash se recostou contra a bancada oposta, acariciando a barriga do animal enquanto me assistia,
divertido.
O fuzilei.
— Sua mãe quer saber quando vem nos ver… — Vovô enfim mudou de assunto, me fazendo
encará-lo novamente. Surpresa. — Depois que foi embora, ela pareceu recobrar a razão, e a
culpa também.
Abri a boca para dizer que aquele era o maior absurdo que eu já tinha ouvido, mas escutei a
voz de mamãe reclamar com vovô ao fundo, como se ela estivesse escutando escondido do outro
cômodo enquanto ele falava comigo da sala.
Fingi não a ter ouvido. Fingi que ela não estava ali. Mesmo assim, minha garganta se fechou
um pouco, o coração endureceu, apesar de estar mole por dentro.
— Minha mãe não sente culpa — resmunguei.
— Bem, falei bastante na cabeça dela, então acho que sim.
— É mesmo? E o que ela disse?
— Bem… A peguei olhando algumas fotos antigas de você e Jolie…
— Pai!
— O quê?! — vovô gritou de volta, olhando além da câmera. — Está com vergonha de sua
filha saber que se importa com ela?
Inspirei fundo, tentando acalmar o coração.
— Ela está aí, então — falei baixo, a diversão desapareceu do rosto de Sebastian quando
encontrei seu olhar.
— Estão todos aqui, na verdade — abuelo disse. Ele tentou virar a tela para o outro lado, para
a sala. Papai, Jolie e minha mãe estavam no sofá, escutando a conversa o tempo todo.
Minha irmã pareceu sorrir sem graça. Meu pai estava sério, parecia irritado, mas fez um
tchauzinho. Vovô sustentou o celular na direção da minha mãe, que parecia tão desconfortável
quanto Claude com o lacinho de Molly na ceia de Natal.
— Diga algo para ela, sua garota orgulhosa — vovô resmungou.
Respirei fundo.
— Oi, mã…
— Não você, Amelie! — Bufou.
Mamãe suspirou, parecendo uma criança repreendida. Para minha surpresa, ela se inclinou na
direção do pai e pegou o celular.
— Oi, filha.
Paralisei.
Filha.
Todo rancor que eu lapidava no coração pareceu se reduzir a pó quando a escutei dizer aquilo.
Filha. Eu não me lembrava da última vez que a ouvira me chamar daquela forma. Não conseguia
me recordar de quando parei de ter esperanças de isso acontecer um dia. Meus olhos arderam,
todas as armas preparadas para usar no dia em que a visse de novo não serviram de mais nada.
Filha.
— Você está mesmo uma bagunça… — tentou brincar, me deixando tão paralisada e surpresa
que não consegui responder. Isso a fez ficar nervosa. Mamãe pigarreou. — Seu pai… — Escutei
alguém corrigi-la. Jolie. — Eu e seu pai gostaríamos… — Ela respirou fundo, como se dizer
aquelas coisas, usar outro tom de voz comigo, custasse muito. — Nós todos gostaríamos de
saber… quando você vem nos visitar de novo.
Franzi a testa.
Mesmo emocionada, não consegui confiar no que estava ouvindo.
— Você decorou isso porque o vovô pediu? — perguntei, mais um questionamento choroso
do que seco, como pretendia.
Ela inspirou de novo, reunindo coragem.
— Eu estou perguntando. — Suspirou. — Pensei que pudéssemos ter a chance de conversar
na próxima vez que viesse aqui…
Senti as mãos tremerem, e Bash no mesmo segundo percebeu. Então, deixou Claude no chão
para se aproximar e segurar uma delas, apertando de leve.
— Quero… — mamãe tentou de novo, a voz tão diferente da estranheza e repulsa que
costumava carregar para mim antes. Pensei estar falando com outra pessoa. — Quero me
desculpar. Pessoalmente.
Uma lágrima despercebida escorreu por minha bochecha, e virei o rosto para evitar que ela
visse aquilo, percebesse minha vulnerabilidade.
— Amelie?
Respirei fundo, piscando algumas vezes antes de voltar o rosto para a tela.
Tinha tantas coisas que queria dizer para mamãe, tanta coisa que reunira durante toda a vida e
desejava simplesmente jogar na cara dela, aproveitar para fazê-la se sentir péssima, a pior pessoa
do planeta Terra. Ainda estavam ali: a raiva, a mágoa… Fortes o suficiente para me fazer sentir
vontade de desligar o celular na cara dela.
Mas…
Acima de todo o ressentimento, o coração quebrado e remendado sempre implorou por sua
atenção, mínima que fosse. Que ela apenas dissesse filha com o mesmo carinho que usava para
se referir à Jolie.
Encarei a mulher de conservadíssimos 44 anos, os cabelos castanhos sempre tão bem
arrumados, os brincos pequenos e colar perolado elegante. Mas os olhos… Eles pareciam mais
cansados do que antes. Sabia que, apesar de todo o comportamento e temperamento, mamãe
amava o vovô com tudo o que tinha, estava sofrendo com a doença dele.
Aquela faísca dourada de esperança brilhou em meu peito de novo, como se acendesse uma
vela há muito apagada e esquecida. Talvez aquelas olheiras debaixo dos olhos escuros fossem
por mim também. Noites acordada pensando nas coisas que havia dito, na forma como me tratara
e me ignorara nos últimos anos. Como não ficou do meu lado quando mais precisei…
Talvez ela estivesse arrependida de verdade.
Não seria de uma hora para outra, precisaríamos de tempo, assim como eu precisava de tempo
com Jolie e papai…
Contanto que estivéssemos dispostos a tentar.
Me forcei a engolir a resposta afiada, a desfazer aquele nó sufocante na garganta.
Pigarreei.
— Vou olhar na agenda — falei, por fim. — As coisas vão ficar bem agitadas na editora a
partir de agora, mas… Quero ver o vovô.
Ele bufou do outro lado.
— Claro — mamãe disse, baixo. — Vamos… Vamos te receber bem na próxima vez que vier.
— Mesmo? — Bash perguntou, como se soubesse que aquela era a única forma de me distrair
do choro que queria vir. Sebastian ficou do meu lado, me forçando a virar o celular para ele
também. Mamãe arregalou os olhos para o homem alto, musculoso e sem camisa. — Ou vai
deixar a gente no sótão frio como da última vez?
Como se tivesse treinado a semana toda para aquele momento, minha mãe forçou um sorriso
falso e perguntou, entredentes:
— Você viria também?
— Mas é claro, sogrinha — ele disse carinhoso, exibindo um sorriso que eu sabia ser para
irritá-la. Pressionei os lábios para não rir. — Prometi à Amy que não a deixaria sozinha com
vocês.
— Ora, seu… — Mamãe respirou fundo, gargalhando baixinho, falsamente. Tentou manter
aquela educação ensaiada. — Claro, querido. Que bom que você vai vir.
— E o Claude também.
— E quem seria Claude? — A impaciência dela deu lugar ao pavor quando associou. — O
gato, não! Demorei dias para tirar todos os pelos daquele animal da casa!
— Tsc… — Bash suspirou com pesar. — Claude não fica sem a Amy, sinto muito.
Ri, cobrindo a boca rapidamente.
Minha mãe sorriu amarelo de novo, assentindo devagar.
— Traga o gato.
— Ele vai ficar muito feliz em te ver, tenho certeza — respondeu sarcástico, porque nós dois
sabíamos que Claude odiaria voltar para aquela casa.
— Me dê o telefone! — A voz de abuelo interrompeu. — Vamos deixar os dois namorarem
mais um pouco. Fazer meu bisneto.
Fechei os olhos.
— Vô…
— Sua irmã quer falar com você, mas aposto que para reclamar com mais alguém sobre não
aguentar mais estar grávida e os meninos não quererem sair. — O rosto do meu vô apareceu de
novo. Jolie reclamou do outro lado.
— Ainda faltam duas semanas!
Eu sabia que ela tentava disfarçar a voz; não deveria estar sendo fácil lidar com os
preparativos do divórcio, as fofocas, e ainda ser uma mãe de gêmeos recém-nascidos. Mas em
nossa última conversa, minha irmã disse que não voltaria para a casa dos nossos pais. Ela queria
recomeçar a vida morando em um apartamento confortável com os filhos, estudar e pensar num
futuro bom para eles.
Sabia que Jo daria conta.
Era forte e persistente.
— Passa rápido. — Vovô bufou, me olhando como quem me daria um sermão. — E vocês
dois, não quero saber de brigas, ouviram?
Bash sorriu, passando um braço sobre meus ombros.
— Sim, senhor.
— Façam meu neto.
— Ainda não — Bash respondeu, sem medo.
— Quando eu morrer, então?
Meu peito se retraiu e, mesmo sabendo que ele diria algo assim antes da doença, senti as
lágrimas há pouco contidas voltarem. Meu sonho sempre fora ver meu avô entrando na igreja no
dia do meu casamento, tirando uma foto comigo e meu marido, carregando meus filhos no colo.
Quando tivessem idade, ele os levaria para pescar no verão e patinar no inverno.
Não aconteceria.
Apesar de ele agir como se tudo estivesse bem.
Abuelo estava mais magro do que antes, a voz mais rouca e fraca…
Afastei o rumo de minha mente, me recusei a pensar sobre isso. Aproveitaria enquanto ele
ainda estava aqui. Amaria meu avô com todo o coração até ele partir e descansar.
Engoli o choro.
— Vamos te visitar em breve — prometi.
Ele pensou em abrir a boca para reclamar. No entanto, como me conhecia bem, percebeu a
diferença na voz trêmula. Mesmo longe, o brilho de lágrimas e saudade nos meus olhos.
Vovô suspirou.
— Não se preocupe comigo, filha. — Forçou um sorriso. — Eu vivi minha vida, não
desperdice a sua.
— Não vou — murmurei.
— Vou estar aqui quando vier.
— Vai mesmo?
— Huh. — E se lembrando de uma de nossas conversas, completou: — Prometo de dedinho.
Mordi os lábios com força, os olhos queimaram e a visão de vovô na tela ficou embaçada.
— Eu te amo, vô.
Ele sorriu abertamente.
— Eu também, filha.
E desligou.
Meu braço caiu como um peso morto, e Sebastian, em silêncio, não perdeu tempo em me
puxar contra o peito e me abraçar. Eu estava cansada de chorar. Ainda assim, as lágrimas rolaram
silenciosas, encharcando o peito de Bash. Ele não se incomodou, apenas passou a mão por minha
cabeça, me acalmando.
Estava tudo bem.
As coisas ficariam bem.
Fechei os olhos, abraçando a cintura de Sebastian e me permitindo ficar quieta ali, sem pressa,
sem intenção de soltar.
Puxei o ar com força, liberando-o em seguida.
— Estou bem — sussurrei. E era verdade. Apesar da dor que sempre sentiria ao pensar em
vovô, apesar da surpresa com a repentina confissão de mamãe, apesar de todos os
acontecimentos que giravam em torno da minha vida e me preocupavam… Pela primeira vez,
não me senti sozinha.
Pela primeira vez, tinha alguém ali pertinho para me abraçar com força.
— Posso fazer algo por você? — Bash perguntou, ainda correndo os dedos entre as mechas
embaraçadas do meu cabelo com cuidado, como se eu fosse quebrar a qualquer momento.
Mas não ia.
Eu não me permitira quebrar nos últimos anos, não aconteceria agora.
Enfrentaria cada obstáculo, porque a vida era assim: repleta deles.
Eu viveria e sonharia e sorriria.
Prometera aquilo a vovô.
Puxei o ar, inspirei o cheiro delicioso do homem que me abraçava e criei coragem para
colocar um sorriso nos lábios.
Eu ficaria bem.
Apoiei o queixo no peito de Bash.
— Panquecas.
Ele ergueu as sobrancelhas escuras, afastando as mechas desgrenhadas da minha franja.
— Panquecas?
— Huh. — Passei a ponta das unhas nas costas dele, deliciada com a pele arrepiada sob elas.
— Sempre faço panquecas para suas garotas pela manhã antes de colocá-las para fora.
Ele me observou por alguns segundos, sondando para saber se eu estava bem, se só estava
fingindo.
Não estava.
Bash não ultrapassava os limites, e sabia que mudar de assunto significava que eu não falaria
sobre a ligação agora. Ou nunca. Ele sabia que eu sempre o procuraria quando estivesse pronta.
E me provocar para me distrair era uma de suas melhores habilidades.
Sebastian percorreu aquelas mãos grandes em minhas coxas até encontrarem caminho em
minha cintura e me puxou para mais perto na bancada. O corpo grudado ao meu. Beijou minha
boca com carinho, os lábios se demorando gentilmente nos meus porque, apesar de não tocarmos
no assunto, ele sabia que eu precisava dele.
Ele sorriu daquele jeito malicioso de novo.
— Nesse caso… — começou, percorrendo a ponta dos dedos na lateral do meu pescoço,
descendo para o colarinho da camisa, facilmente abrindo os três primeiros botões. — Farei
panquecas caprichadas para minha única garota e a levarei de volta para a cama.
Umedeci os lábios, sentindo aquela faísca recente e atrevida dançar na barriga. O puxei para
um último beijo antes de liberá-lo para a tarefa.
— É?
— Uh-hm… — assentiu. — Depois quero que coloque aquele vestido de novo.
— E o batom vermelho?
Bash pareceu pensar.
— Talvez devesse usar apenas o batom.
Gargalhei.
— E… — Ele fez uma pausa, dando a volta no balcão para pegar uma sacola deixada de lado
no hall de entrada. Tirou um dos potes de dentro e me fez rir alto. Minhas bochechas coraram.
— Não…
— Eu disse que iria ao mercado.
— Você comprou tintas! — Cobri a boca com as mãos.
— Temos roxo, amarelo, laranja e azul… — Observou a sacola. — Você vai me pintar esta
noite.
— Como no capítulo cinquenta e cinco?
Ele sorriu, os olhos brilhando famintos quando desceram para minha boca.
— Exatamente como no capítulo cinquenta e cinco.
Concordei com um aceno de cabeça, mordendo o lábio, o coração acelerado pela ideia,
completo e ardentemente apaixonado pelo meu colega de quarto.
— Huh… — murmurei, observando os lábios dele também. — Mal posso esperar.
Não sei quando esta carta chegará ao senhor. Espero que possa vê-la em breve. Tenho
novidades!
Sou uma escritora oficial agora!
Não quis te contar na ligação porque queria que fosse um segredo nosso. Uma parte feia
minha quer que esse começo tenha uma entrada triunfante, que as pessoas restantes descubram
sobre isso quando virem meu nome na capa.
Mesquinho, eu sei.
Não se preocupe. Quando a primeira tiragem for impressa, levarei pessoalmente um para o
senhor, autografado e tudo mais.
Ele foi dedicado a você.
Inteiramente.
Não revire os olhos. Tenho certeza de que o senhor vai gostar. O avô da personagem é tão
adoravelmente ranzinza quanto o senhor, mas se importa com a protagonista do seu jeito único.
Apenas registrei no papel parte dos nossos momentos para as pessoas saberem que tenho uma
pessoa incrível na vida para chamar de minha.
Meu avô. Meu pai. Meu amigo.
Sei que o senhor sente dores que tenta esconder. Sinto muito que doa tanto, me parte o
coração não poder tomar esse fardo de você. Sinto falta de caminhar com o senhor, sinto falta de
nossas conversas silenciosas. Foi uma pessoa maravilhosa durante toda a vida, me ensinou tantas
coisas… É injusto que esteja sofrendo tanto neste momento.
Apenas me prometa que tomará os chás da mamãe, mesmo que sejam horríveis, que
continuará caminhando um pouco pela manhã com Jolie ou o papai… Que será mais gentil com
a Sra. Costello (ela tem uma quedinha no senhor, seja cavalheiro. Ela é uma viúva gentil e
solitária).
Estou enviando uma foto para saber que também me livrei dos suéteres horrorosos. Sebastian
me levou às compras na última semana. Meu guarda-roupas está renovado, a começar com os
óculos, troquei eles também. Então não se preocupe. Sou a Amy de antes.
Melhor do que a Amy de antes.
Estou bem. De verdade. Preocupada com você, é claro. Mas, como prometi, vou fazer de tudo
para ser feliz.
Sebastian disse que, na próxima visita, vai tocar uma tarde inteira para você. E também falou
que, se caso se sentir sozinho e quiser ouvi-lo cantar, pode ligar para ele. Vou deixar o número
no verso da foto para você pedir à mamãe para salvar (mesmo que ela odeie a ideia).
Estou com saudades.
Me prometeu que estaria aí quando eu fosse te visitar, então cumpra com sua palavra.
Vamos nos ver em breve.
Prometo.

Com amor,
Amelie.
— Certo… — falei ao guiar Amy pela calçada enquanto ela seguia cegamente minhas
instruções. — Tire a venda apenas quando eu disser. Ok?
— Não me sinto confortável andando vendada na rua, Bash…
Sorri quando a virei para a direita a fim de desviar do homem que passava nos olhando
estranho. Não liguei, nunca ligava. O olhar das pessoas e o que pensavam sobre mim pouco me
importavam quando estava com meu alguém certo.
Amelie evitou esticar os braços, mas vez ou outra tateava o ar na esperança de tocar algo
sólido.
— Estou enjoada, de verdade… — reclamou depois que um ônibus passou por nós,
barulhento.
— Estamos quase lá, prometo.
Eu estava tão nervoso quanto Amy. E isso era novo, na verdade. Não me sentia inseguro,
obviamente, apenas… eufórico com o que preparara para ela. Passara o dia todo carregando
caixas com meus primos, e organizando, e reorganizando… Não os deixei em paz até sentir que
estava certo, e Drew até dissera que eu estava nervoso a ponto de parecer que a pediria em
casamento naquela noite.
Não pediria.
Aquele, sim, era um assunto que eu evitaria, e Amy entenderia. Não estávamos juntos há
muito tempo, sequer tínhamos chegado a tocar no tópico, mas ela era inteligente o suficiente para
saber que me casar, por enquanto, por um tempo, talvez um longo tempo, não seria uma opção.
Mesmo sendo louco por ela.
Não queria estragar aquilo.
Não como meu pai arruinara o significado de uma aliança dourada para mim.
Afastei o pensamento, me concentrei no presente.
Eu também prometera a mim mesmo que jamais me apaixonaria por alguém. E ali estava,
completamente rendido por uma escritora de sorriso gentil e óculos redondos. Por ela, eu
quebrava as regras mais importantes.
— Chegamos. — A forcei a parar. — Bem, não ainda. Agora vamos entrar.
— Onde?
— Se eu disser, acaba com a surpresa…
Ela assentiu, deixando que eu entrelaçasse minha mão à sua e a levasse para dentro do
edifício. Amy arfou, de repente empolgada com uma ideia:
— Aquelas asas que encomendou finalmente chegaram? Vou ver você de guerreiro Illyriano?
[27]

Gargalhei e ignorei o olhar curioso da recepcionista, que sorriu ao ver Amy, sem se dar ao
trabalho de me cumprimentar. Ela já me vira diversas vezes naquele dia, subindo e descendo o
elevador com caixas e mais caixas.
— Ainda não, Tiānshǐ…
Ela bufou.
— Mas já faz um mês…
— Vamos entrar no elevador agora. — Guiei Amy. — Cuidado aqui.
Ela tateou o chão com o sapato de boneca. E eu não negaria que a ideia de a ver vendada
daquela forma me fazia pensar em diversas sugestões de como passaríamos aquela noite, mas me
concentrei no importante. Amy não sabia onde estávamos ou o que faríamos, nem mesmo sabia o
que estava vestindo.
Depois de chegar da editora, pedi à ela para tomar um banho relaxante enquanto eu lhe
preparava uma surpresa. Então, a vendei assim que ela foi para o quarto. A ajudei a se secar –
demoramos nessa parte – e a se vestir e, por fim, após uma tentativa realmente trabalhosa e
distraída de pintar os lábios dela com nosso batom favorito, a levei para fora do apartamento.
Entramos no táxi e seguimos para o local surpresa.
Quando chegamos ao penúltimo andar, apoiei a mão em sua lombar e a guiei pelo corredor, já
sacando do bolso o cartão de entrada. O lugar estava exatamente como eu e meus primos
deixamos, e achei bom mesmo não encontrar nenhum dos dois ali quando entrei com Amy, ou os
mataria por estragarem o momento. Porém, apenas por precaução, pedi à minha namorada para
ficar ali na porta enquanto checava uma coisa e procurava nos cômodos vazios ou atrás das
caixas empilhadas.
Nenhum sinal daqueles idiotas.
— Certo. — Suspirei, tirando o sobretudo e o jogando sobre o único móvel que consegui a
tempo para o lugar. — Vem aqui.
Peguei a mão de Amy e a posicionei no centro do que seria, futuramente, uma sala.
— Eu juro, se isso for uma pegadinha de mau gosto, termino com você — ela murmurou.
Sorri, beijando sua boca antes de me posicionar atrás dela.
— Pronta? Mantenha os olhos fechados e só abra quando eu colocar os óculos em você.
Amy resmungou em confirmação, desconfiada.
— Um… Dois… — Tirei o tecido listrado que cobria seus olhos, ajeitei a armação no rosto
delicado. — Três.
Ela não falou nada, mas senti seus ombros acompanharem a respiração rápida e surpresa
enquanto Ames observava o apartamento cheio de caixas. Havia uma janela de vidro liso de fora
a fora naquele cômodo, com uma vista de tirar o fôlego do céu noturno, as luzes dos prédios
distantes como estrelas. De manhã, conseguíamos ver o rio que cortava a cidade e um vasto céu
azul em dias bons.
O rosto de Amy se moveu, contemplando cada detalhe. Mas ela sabia exatamente onde
estávamos, porque eu estava ciente de que minha namorada passara os últimos anos sonhando
com aquele lugar. O sofá cinza ao lado da planta cheia de piscas que Jason trouxera era o único
móvel enfeitando a parede principal. Havia caixas e mais caixas de algumas coisas que chegaram
e não quis abrir, porque era algo que Amy desejava fazer.
Ter seu canto. Seu lar.
Sabia que ela estava satisfeita com nosso minúsculo apartamento, mesmo que não fosse em
um bairro tão bom quanto aquele e que tivéssemos uma vista arrebatadora dos prédios de tinta
gasta dos vizinhos. Mas quando Amy contou numa noite, aconchegada em meus braços, sobre o
dinheiro que usara para pagar o acordo ser, na verdade, um investimento para aquele
apartamento… Não consegui parar de pensar nisso.
— Bash… — Ela enfim cobriu a boca, emocionada, como se estivesse acordando agora,
vendo a realidade.
Aquilo fora tudo o que conseguira encontrar na casa de nǎinai para enfeitar o apartamento.
Havia piscas por toda parte, algumas bengalas dependuradas, biscoitos de gengibre que Jason
assara e confeitara mais cedo em uma tigela sobre o sofá, com um grande laço vermelho e
exagerado amarrado. Uma pilha de caixas enfileiradas fora forrada com um lençol branco
qualquer e, sobre ela, um banquete de variados tipos de comidas típicas do feriado; o globo de
neve que Amelie me dera de presente no centro da mesa improvisada.
Amy balançou a cabeça, desacreditada, finalmente se virando para mim, enfim notando o que
eu usava.
O que ela usava também.
Nossos suéteres natalinos bem casalzinho.
Ela riu.
— Estamos em março.
— Eu sei. — Sorri, ajeitando a franja lisa sobre sua testa. — Mas nosso último Natal foi uma
tragédia, então…
Amy mexeu a cabeça de novo, desacreditada.
— Esse apartamento… — Sua voz falhou. — Como?
Dei de ombros.
— Tenho economias.
— Tem? — Franziu a testa.
— Minha avó deu para cada neto um valor… razoável quando completamos a maioridade.
Nunca quis usar o dinheiro dela, era meio orgulhoso, mas quando comentei sobre você e este
lugar… — Dei risada ao me lembrar do quanto nǎinai era apaixonada por Amy e como parecera
feliz com a ideia. — Ela me obrigou a usar o dinheiro, sob ameaça de me deserdar também.
Amy sorriu.
— Eu adoro ela.
— E ela adora você. — A puxei pela cintura, me inclinando para beijá-la. — Eu adoro você.
— Não posso aceitar — Amy sussurrou.
— Não disse que era seu apartamento, necessariamente — falei, mordiscando seu lábio,
brincando e roçando minha boca contra a sua. — Você ainda me deve, sabe. Parcela de cinco
anos, esqueceu?
Amy rodeou os braços em meu pescoço.
— Pensei que já tivéssemos entrado em um acordo… Sabe, você quebrou a regra também.
— Você quebrou primeiro, pelo que me contou — rebati.
Ela riu.
— Tudo bem. Depois que os cinco anos acabarem… — começou e, pelo tom, percebi as
entrelinhas na pergunta. — O que vamos fazer?
Cinco anos de namoro. O que vem depois?
— Vamos renovar o acordo.
— É? — Desceu os olhos para os desenhos de rena no meu suéter. — Com os mesmos termos
e condições? Você não vai enjoar de mim?
Observei seu rosto com carinho, ergui o queixo dela para Amy me encarar de volta.
— Vamos renovar o contrato para “prazo de validade: indeterminado”. Não consigo pensar
em ficar longe de você, Amy… E não te traria aqui se não pensasse num futuro do qual você
fizesse parte. — Peguei sua mão, levando-a para os lábios e a beijando ali. — Não vamos pensar
demais nele, no entanto. Vamos viver o agora. Não vou a lugar algum.
Ela sorriu, desviando os olhos para o apartamento outra vez.
— Vamos mesmo morar aqui?
— Huh. A única coisa que não gostei é que não pode incomodar os vizinhos. — Bufei,
arrancando uma risada deliciosa de Amelie. — O povo deste prédio é meio fresco, então vai ter
que ser mais silenciosa.
Recebi um soco no peito.
— Eu não sou barulhenta!
— É, sim. — Me inclinei para beijá-la. Uma vez. Duas. — Muito barulhenta.
— Você que é. — Fechou os olhos e me deixou aprofundar o beijo, explorar sua boca com
lábios e língua, matar a saudade que sentia dela todas as noites.
Não. A ideia de passar o resto da vida com ela não me apavorava nem um pouco. E eu sabia
que o parasita em meu peito só crescia à medida em que os dias passavam. Ele nunca estava
satisfeito, sempre queria mais e mais de Amy, sujeitando meu coração à ela. Completamente.
Era dela. Sempre dela. Inteiramente dela.
— Acho que te amo — sussurrei sobre seus lábios. — Aquele maldito me flechou de novo.
Amy se afastou, os olhos brilhantes e emocionados.
— Você… acha que me ama?
— Huh… — Fiz uma careta deprimente. — Está ficando pior e mais forte a cada dia. Meu
coração quer explodir, então deve ser amor.
Ela soltou uma risada chorosa.
— Sendo assim… Acho que te amo também.
— É?
— Uh-hm. — Sorriu, me puxando para mais perto.
— Isso não estava no contrato.
Amelie assentiu.
— Não previmos isso — concordou.
Meus lábios se esticaram, e eu me abaixei rapidamente para alcançar suas coxas e pegá-la no
colo.
— Não faria diferença — comentei ao encarar bem aqueles olhos castanhos, pensando nas
coisas novas que a faria sentir naquela noite, amanhã. Sempre.
Amy abriu um largo sorriso para mim.
— Concordo. — Afastou uma mecha do meu cabelo, com uma expressão divertida. — Eu
quebraria essa regra também, e você logo em seguida, claro.
Ri, colando nossos lábios outra vez.
E apenas porque era divertido ver Amy acreditar naquela ideia, deixei ela continuar pensando
que fora a primeira a se apaixonar.
AMY
Aquela seria minha primeira tatuagem.
Sim, talvez eu estivesse com dor de barriga, nervosa e com medo, mas outra parte minha se
vira ansiosa durante a semana pensando no que fazer e onde colocar. Obviamente, meu
namorado era o mais animado com a ideia: ele me dera dezenas de sugestões que eu, com
sinceridade, me recusava a sequer cogitar. Não contara a ele o verdadeiro motivo por trás
daquela decisão repentina, então não o culpava.
— Acho que deveríamos fazer uma zebra — falou depois de um tempo na sala de espera do
estúdio. — Você sabe, ela é um símbolo do nosso relacionamento.
O encarei, franzindo a testa.
— Você só pode estar brincando.
— Não… — Ele ergueu o celular para mim, mostrando algumas ideias. — Olha só essa aqui,
é até bonitinha.
— Bash… — Arqueei a sobrancelha.
— Não? Tudo bem, então. — Mas continuou salvando alguns desenhos de zebra mesmo
assim.
Apenas ignorei, nervosa demais, mexendo a perna inquieta enquanto tentava distrair a mente
com qualquer coisa que não a fina agulha tocando minha pele em alguns minutos. Talvez o plano
de ser um pouco rebelde e impulsiva não devesse incluir uma tatuagem. Quem sabe… Não sei,
algo menos doloroso.
Sebastian, ainda distraído com as sugestões de tatuagens na tela de seu aparelho, esticou a
mão livre para segurar a minha, entrelaçando nossos dedos. E eu sabia que era bobeira porque
nos tocávamos todos os dias, dormíamos juntos, acordávamos juntos, mas gestos simples e
carinhosos como aquele ainda me pegavam de surpresa. Como levar café da manhã para mim na
cama no domingo, assistir a “filmes ruins e chatos” comigo no sábado à noite, trançar meu
cabelo enquanto eu lia – porque sabia que eu adorava a sensação de alguém mexendo no meu
cabelo, ele principalmente –, se vestir como meus personagens literários favoritos só para me
animar em dias ruins… E mesmo que meu namorado alegasse não ser um romântico, parecia
contradizer a ideia todos os dias.
Observei distraída o polegar dele acariciar o dorso da minha mão. Logo depois, fitei o perfil
de Bash: o nariz perfeito, o desenho dos lábios, as pequenas estrelas espalhadas em sua pele. Sete
pintinhas no rosto, quatro no pescoço, duas no lóbulo da orelha esquerda, tantas outras que ainda
não conseguira contar no resto do corpo musculoso e tatuado…
Escutei o sininho da porta de entrada do estúdio de tatuagem soar, e um casal de jovens
passou por ela. Os dois deveriam ter minha idade talvez, a garota de cabelos curtos poderia ser
um pouco mais nova. Eles eram tão bonitos juntos que minha mente não conseguiu deixar de
pensar em como haviam se conhecido, há quanto tempo eram um casal e como ele a tratava.
Quando se sentaram no sofá do outro lado, no entanto, não se tocaram, apenas conversaram
como dois amigos, apesar de uma parte minha ser capaz de jurar que havia algo ali. O rapaz com
traços asiáticos tinha aquele brilho de admiração nos olhos bonitos, mesmo que um sorriso
descontraído e debochado pintasse seus lábios.
A garota rapidamente olhou na minha direção, talvez percebendo que eu encarava, e fiquei
um pouco hipnotizada quando as íris douradas me fitaram de volta. Eu conhecia aqueles olhos,
tinha certeza de que já vira aquela garota em algum lugar. Era bonita. Linda, na verdade, com os
cabelos castanho-claros ondulados e curtos na altura do queixo, um olhar sério – talvez
impaciente –, como se aquela fosse sua melhor expressão para dizer que não queria ninguém por
perto. Ela usava calça jeans clara machada de tinta, uma camisa preta de alguma banda que eu
não conhecia, mas os olhos…
Eu já os vira em algum lugar.
— Pare de encarar, Amy — Bash murmurou, ainda distraído com o celular. — Que feio.
Fiz careta, cutucando-o com o cotovelo para ser mais discreto em me repreender. A garota de
olhos dourados escutou.
Bufei.
— Eu só… — sussurrei. — Acho que conheço ela. Tenho certeza, na verdade.
— É?
— Damian me deixou escolher o artista para a capa do livro… — expliquei, vez ou outra
correndo os olhos para o outro lado da sala. — Ele me deu esse portfólio e… Tenho certeza que
escolhi ela. Só que… Ela me lembra alguma modelo também. Estou confusa.
— Sim, Aidwen Summer. Ela trocou de lugar com a irmã gêmea por algumas semanas. Você
não sabia? — Sim, eu ouvira falar. Todo mundo comentara sobre aquilo. Bash finalmente tirou
os olhos da tela para observar a garota. — Particularmente, acho a modelo mais bonita.
Fechei a cara.
— Acha, é?
Ele se inclinou para beijar minha bochecha.
— Mas é claro que minha namorada é muito mais gata. — Sorriu daquele jeito cafajeste,
sussurrando em meu ouvido: — Adoro te ver com ciúmes, Tiānshǐ, então não vou pedir
desculpas por isso.
O encarei.
— O quê? — retrucou, com a testa franzida. — Vai me dizer que não achou o cara tatuadão
do lado dela boa pinta?
Sim. Ele era, sim. Tinha um sorriso muito bonito, uma argola fina no lábio inferior, cabelos
pretos curtos e bagunçados caindo sobre a testa… O tipo de cara que facilmente seria um primo
perdido dos Wangs. Mas não era tão alto, forte e atraente quanto Sebastian. No entanto, se Bash
podia me provocar, por que não?
— Huh… — murmurei pensativa. — Acho que vou me inspirar nele para o meu próximo
protagonista. Ele tem uma vibe meio... badboy, não acha? Bem o meu tipo.
O sorriso presunçoso se desfez, levando meus próprios lábios a se esticarem vitoriosos.
Porém, ao voltar o olhar para os dois de novo, continuei com aquela sensação de ser mesmo a
artista que eu escolhera para CQDD[28].
— Eu deveria ir até lá?
Bash largou minha mão, se concentrando nos desenhos de zebra.
— Para pedir uma foto dele?
— Conversar com ela, Sebastian. — Revirei os olhos.
— Ah! — Lançou um olhar de esguelha naquela direção, para a jovem. Ela com certeza sabia
de quem estávamos falando. — Sim, claro. É importante vocês duas se darem bem, certo?
Assenti com um sorriso, ajeitando rapidamente o cabelo, e então os óculos.
Virei para meu namorado uma última vez.
— Estou com bafo?
Bash faz uma careta engraçada que me fez pensar em Claude.
— Se falar com o gostosão, então sim, sua boca está fedendo a poço de esgoto.
O ignorei, ficando de pé. Mesmo intimidada pelo olhar sério da garota enquanto caminhava
em sua direção, não me deixei amarelar. O rapaz ao lado dela me deu um sorriso gentil, como se
me encorajasse, quase dizendo “pode vir, ela não morde”.
Talvez ela fosse mesmo a gêmea da ex-modelo Summer. Se fosse, deveria estar acostumada
com pessoas se aproximando toda hora para questioná-la sobre isso. Quando encheu o peito de
ar, como que se preparando para dar uma resposta pronta, falei apressada:
— Desculpa. — Sorri sem graça, e ela franziu a testa, esperando. — Raven, certo?
— Sim. — Estreitou os olhos amarelos, desconfiada. — E você é…
— Amelie Sanchez. — Estiquei a mão para ela, ainda nervosa. — Mas pode me chamar de
Amy.
— Certo… — Raven pareceu desconfortável, como se conversar com pessoas a custasse. —
É um prazer, Amy.
Eu não a julgava, não quando tudo o que queria fazer era ficar quietinha no meu canto há
pouco tempo atrás, me esconder.
Mas não mais.
Levei as mãos para a alça da pequena bolsinha dependurada ao lado do corpo, tentando não
recuar ou tropeçar nas palavras quando comecei:
— Trabalho para um selo da editora Go. Sang. Ravi, o dono da editora, decidiu fazer uma
campanha contra as artes de inteligência artificial e selecionou alguns artistas tradicionais para
participarem dos novos lançamentos. Você é uma delas. — Raven franziu a testa, surpresa, e me
deu coragem para relaxar um pouco e continuar: — Meu primeiro livro vai ser publicado em
breve e… Bem, eu simplesmente me apaixonei pelo seu trabalho.
Era ela, sim, eu tinha certeza. Apesar de não haver um nome nas pinturas, Raven assinava
suas obras pintando uma borboleta azul em algum lugar da tela, escondida em algum canto,
como se aquela borboleta fosse um tipo de guardiã de suas telas, ou talvez uma viajante de suas
histórias. Apesar de não ter visto muitas artes retratando pessoas no portfólio de Raven, as
poucas nas telas me lembravam ela, os cabelos curtos bagunçados e a expressão triste de quem
sentia dor.
Não consegui pensar em alguém melhor para fazer a capa do meu livro, sequer analisei as
outras opções que Damian havia me passado.
Raven pareceu confusa, mesmo com os olhos dourados cintilando um pouco.
— Eu… Agradeço. Acho — falou, hesitante. — Mas… Er… Me desculpe, Amy. Acho que
deve estar me confundindo com outra pessoa. Não mandei meu portfólio para editora alguma.
Franzi o cenho.
— Não? Mas tenho certeza de que era você naquela foto de apresentação… — resmunguei.
— Eu não tenho nenhuma… — Ela parou. — Como era a foto?
— Você estava desenhando em um caderno, debaixo de uma árvore grande e…
Clareza perpassou o rosto bonito de Raven e, no mesmo segundo, ela fechou a cara, furiosa.
Lançou um olhar afiado para o jovem ao seu lado. De repente, ele pareceu muito interessado em
uma revista aleatória de plantas.
— Kim Jun Woo.
— Eu... — Ele a olhou de forma indiferente, fingindo não ter prestado atenção na conversa
aquele tempo todo.
— O que você fez? — Raven ralhou baixinho, fechando as mãos com força no livro que
segurava.
Lancei um olhar sobre o ombro para Sebastian: ele observava a cena com diversão. Fiz uma
careta, como se de repente tivesse me metido em encrenca.
Ele deu de ombros.
— Eu não fiz nada — Jun Woo disse tranquilamente, passando a página e parando na folha
repleta de sugestões de tatuagens de ramos de planta, que ele ignorou. — Foi o Adam. Eu só
montei o portfólio. Ele é que mandou para um monte de gente. Brigue com ele.
Raven fechou os olhos, impaciente, grunhindo baixinho.
— Eu disse que não estou pronta ainda para…
— Está, sim! — Me intrometi. — Desconheço um trabalho tão lindo, profundo e cheio de
significados quanto o seu, Raven — falei com sinceridade. — Suas peças me fazem viajar para
um lugar de paz, mesmo parecendo melancólicas. São… um tipo de cura. Saudade. — Sorri ao
sentir um nó familiar na garganta. Aquele que me fazia querer desabar sempre que pensava em
abuelo. — Como um clube particular para corações partidos — completei. — Não vou aceitar
outra pessoa para fazer minhas capas.
Raven me encarou como se ainda não acreditasse.
— Mesmo? — perguntou.
— Não fui a única. Pelo que vi, o pessoal da GO. Sang gostou muito do seu trabalho. Com
certeza vão te chamar. — Sorri, me lembrando do dia em que Damian elogiara meu livro e eu
não consegui confiar que era mesmo real. Via aquele sentimento na expressão desconfiada de
Raven. — Dizem que até mesmo aquele autor de fantasias te elogiou. B. Roux, se não me
engano.
Os olhos avelãs dela se abriram surpresos.
— B. Roux[29]? — Ela fechou o livro que estava lendo: o terceiro volume da Saga Fade. —
Esse B. Roux?
Meus lábios se esticaram.
— Sim. — Ri. — Esse B. Roux. Então… O que acha?
— Eu… — Ela soltou um riso desacreditado, emocionado. — É claro que vou topar.
Suspirei aliviada.
— Perfeito! — Sorri, finalmente relaxando o corpo. — Tenho certeza de que, em breve, o
pessoal da editora deve entrar em contato com você.
Percebi o sorriso largo e orgulhoso no rosto do rapaz ao lado dela, o mesmo que Bash dera
para mim quando contei que seria publicada. Se eu detectara bem, aquele tipo de sentimento
difícil de esconder cintilava dos olhos pretos dele como estrelas brilhantes.
Um apaixonado.
— Amy? — Escutei a voz do meu namorado me chamar. Me virei, e ele apontou para o fim
do corredor. — Sua vez, Tiānshǐ.
Toda a alegria e a leveza de conversar com Raven se desfizeram, dando lugar ao nervosismo
de novo. Pensei na agulha, na dor, na porta atrás de mim que eu poderia usar para fugir.
— Ah… — Puxei o ar com força, sentindo o estômago revirar. — É agora.
Notando minha inquietação repentina, Raven soltou uma risadinha, trocando um olhar
cúmplice com seu amigo.
— Não dói tanto quanto dizem… — falou, tranquila. — Você consegue, Amy.
Suspirei e apertei a alça da bolsa com mais força.
— Você já fez isso antes?
— Huh. — Ela sorriu de maneira sincera pela primeira vez, deixando aquele rosto delicado e
bronzeado ainda mais bonito. Ela era mesmo muito linda. — Essa é minha terceira tatuagem.
Então, ergueu a outra mão direita que o livro escondia, virando as costas dela para mim.
Havia uma borboleta solitária no dorso, aquela borboleta azul delicada que enfeitava seus
quadros.
Sorri.
— É linda.
— E você? — questionou, curiosa, porque… Bem, eu não tinha cara mesmo de quem teria ou
queria ter uma tatuagem. — Por que vai fazer uma?
— Quero… — Pigarreei, sentindo os olhos arderem de novo. — Quero me lembrar de
alguém. Fazer uma em memória de uma pessoa especial.
O sorriso de Raven vacilou por um segundo, e ela pareceu compreender o que o tom em
minha voz significava.
— Sinto muito.
Sorri, e porque suas artes me passavam também aquela triste verdade, sussurrei de volta:
— Sinto muito também.
— Srta. Sanchez? — Uma moça nova, de vinte e poucos anos, apareceu do corredor. Tinha os
cabelos castanhos alaranjados, o braço fechado em tatuagem e um sorriso gentil. — Você está
pronta?
Se fosse apenas por vaidade e para provar que eu era, sim, corajosa, não faria. Mas queria ter
aquilo comigo, algo marcado em minha pele para me lembrar da pessoa mais importante da
minha vida. Daquela que sempre e para sempre me marcaria de diversas formas, me faria sempre
chorar de alegria, culpa e saudade.
Sorri um pouco, engolindo o tremor e a vontade de chorar.
— Sim, estou.
Amy & Bash retornarão ao Nicahverso.
Eleanor Beaufay — Sorry, I’m an anti-romantic (Publicado no Wattpad em 2021 e retirado para revisão). Vem aí.
Jason Wang — Aparece em Sonho de um dia de verão (publicado na Amazon em 2022) e retornará em Sorry, I’m an anti-
romantic.

Kin Jun Woo — Oppa, foi mal (publicado em 2022) e retornará em “TDQA — Irmãs Morgans 2” (Não publicado ainda).
Vem aí.
Raven — Uma troca para o amor — Irmãs Morgans 1 (postado em 2018-2020 no Wattpad, publicado na Amazon em 2021,
retirado em 2023 e será republicado em 2024 com nova edição).
Se você chegou ao Nicahverso através deste livro (PNSA)… Olá, raposinha! Seja bem-vinda!
É uma alegria imensa te ter por aqui e espero de coração que possamos nos ver em outras
histórias.
Mas se você é uma raposa veterana que me acompanha desde Uma troca para o amor,
então… Esta carta é para você.
Pensei muito em como deveria dizer isso, passei muito tempo me forçando a acreditar que
apenas dar meu melhor seria o suficiente e que não decepcionaria vocês outra vez. Mas veja só,
aqui estamos de novo.
Me alegra muito saber que UTPA conquistou vocês de tal maneira que anseiam pela
continuação da vida da nossa querida marrentinha. De verdade, o carinho que vocês têm pelas
gêmeas transborda no meu coração, e eu sempre serei grata pela compreensão e pela paciência de
vocês comigo.
Por isso, decidi escrever uma carta pedindo sinceras desculpas por ter falhado com vocês estar
demorando tanto para lançar o segundo livro. UTPA foi meu primeiro livro e, desde 2018, sei
exatamente o que quero para o restante da série. Mas incrivelmente, escrevê-la tem sido um
desafio. Não vou me demorar aqui explicando por que, até hoje, o livro da Raven não saiu, mas
quero dizer que não consegui ainda.
Às vezes, nossos planos simplesmente não saem da forma como esperamos, e sempre que
sento a bunda na cadeira para finalizar o livro dela, parece que o universo inteiro conspira contra
mim. Um mundo de coisas acontece e me desanima.
Eu sei, lancei outros projetos na frente. De vez em quando, uma história só flui mais do que as
outras, como PNSA, que não demorou nem um mês para ser escrito. Em contrapartida, outras
como UTPA ou YET demoraram um ano inteiro, ou dois.
A vida é feita de altos e baixos, lutas e vitórias, e nem sempre consigo fazer exatamente o que
queria fazer. Seguir as etapas obedientemente.
Me perdoe, leitor.
Peço desculpas pela minha falta com vocês em relação à série das Irmãs Morgans, e peço de
coração que continuem me apoiando.
A partir de agora, não quero mais prometer algo que não sei se serei mesmo capaz de cumprir.
Afinal, minha escrita está intrinsicamente ligada ao meu emocional e às lutas diárias. Não
funciona do meu jeito, não completamente. Então vou apenas pegá-los de surpresa, como fiz
com Amy&Bash. Vou escrever em silêncio, e apenas quando acabar vou contar para vocês.
Combinado?
Raven e Adam são praticamente a raiz do Nicahverso, então não se preocupem: o livro deles
vai sair, e será o evento. Não direi mais quando ou como, mas haverá sinais.
Então, fãs de UTPA, raposinhas que há 84 anos esperam por uma atualização, a única
promessa que faço para vocês agora é esta: continuarei dando meu melhor para escrever boas
histórias e surpreendê-los.
Sigam me apoiando.
E eu seguirei entregando meu tudo para vocês.
Acho que este é o agradecimento mais difícil que precisei fazer. Normalmente, deixo os mais
importantes por último, mas dessa vez quero começar com ele.
Fiquei muito tempo pensando se deveria ou não publicar este livro. Por se tratar de um
assunto muito pessoal e uma dor muito verdadeira, temi que as pessoas julgassem o fato de eu
decidir falar sobre o câncer do avô de Amy em um momento realmente sensível para mim. Mas
eu queria que a memória de seu humor único e sua amizade se mantivesse viva de alguma forma.
Que meus leitores o conhecessem. Terminei, neste exato momento, de revisar o que a Patrini me
enviou. E também neste exato momento recebi uma foto que me destruiu o coração.
Oi, vô. Este livro foi em sua homenagem.
Não sei se terá a chance de ler isso um dia, mas tenho certeza de que me xingaria muito por
ter te colocado neste livro. Seu jeito emburrado e ranzinza, sua forma de expressar o amor e de
cuidar. Obrigada. Obrigada por ser o avô e o pai mais incrível do mundo. Obrigada por construir
vários balanços, casa na árvore e caminhar comigo pelas manhãs. Obrigada por puxar minha
orelha e me ensinar a ser uma pessoa melhor. O senhor foi o pai que eu deveria ter tido, foi o
amigo que me ajudou a levantar. Gostaria de poder te tirar daí agora; sei como odeia as camas e a
comida do hospital, mas também sei que vai voltar para casa. Vai me xingar quando me vir
chorar.
Obrigada por me inspirar e me amar independentemente do que os outros dizem.
Para Deus, um obrigado sincero por me permitir passar mais tempo do que os médicos
previram com a melhor pessoa que conheci. Um dia, o senhor vai finalmente acabar com a dor
que ele sente, sei disso. E sei que, enquanto nos permite viver com ele, está cuidando de tudo.
Minha mãe, aquela capaz de entender minhas crises, conhecer meus segredos e me apoiar nos
momentos mais difíceis. Só Deus sabe como eu gostaria de poder segurá-la no colo agora. Neste
exato momento, a senhora está no hospital com meu querido abuelo, e mesmo assim se esforça
em sorrir em um momento tão difícil. Obrigada por me ajudar e me amar. Prometo sempre estar
por perto quando precisar de mim.
Liz. Sim, minha querida Naya. Você foi a primeira pessoa a ouvir sobre esta história, e eu me
lembro de te ouvir me xingar porque a ideia veio, escrevi três capítulos, você leu, amou e surtou,
e eu nunca mais apareci para te contar o resto. Adoro como embarca nas minhas ideias, mesmo
sem saber se vou ou não as escrever. Você lidou muito bem com minhas crises existenciais nos
últimos anos, e sempre serei grata pelos noventa reels que me manda por dia kkkkk Eu te amo,
irmã. Não vejo a hora de te ter por perto para me infernizar.
Minhas betas. Céus, como amo meu grupo de motoqueiras. Vocês foram muito mais do que
betas esse ano: se preocuparam, e cuidaram de mim, e me pegaram no colo. Foi difícil lidar com
a Nicah esse ano, mas vocês pacientemente me respeitaram e me apoiaram, mesmo quando pedi
para ficarem longe. PNSA não seria este livro incrível sem vocês. Me diverti MUITO com
nossos momentos de leitura e debate e adorei cada segundo de surto no grupo. Vocês são minha
família. Obrigada.
Patrini. Muito mais que uma revisora, uma amiga. Já disse, repeti e vou falar de novo: sou
grata a Deus por ter te conhecido. Obrigada por abraçar meus personagens com tanto carinho e
por topar revisar este livro de última hora. Meus livros não são a mesma coisa sem seu olhar
cuidadoso e sua lapidação. Sempre vou desejar o melhor para você e todo o sucesso do mundo,
que nosso caminho continue a se cruzar por muitos e muitos anos.
Thai, é, você, sua chata mandona. Obrigada por cuidar de mim, mesmo longe, por brigar
comigo, por me empurrar para o desconhecido, por me caçar, sempre que me escondo de você.
Nossa amizade é algo peculiar, e sei que vamos continuar superando os obstáculos. Espero de
coração que tenha gostado de PNSA e que me faça biscoitos de gengibre quando eu for te visitar
aí em algum Natal. O daqui não neva e não tem tanta graça. Pronto, falei.
Para as minhas amigas clientes/escritoras que me apoiaram tanto neste lançamento, vocês
sabem quem são. Obrigada por me incentivarem e me ajudarem a compartilhar o Nicahverso
com o mundo. Vocês são INCRÍVEIS!
E você, obviamente, leitor. Tudo o que faço e escrevo é para você. Não posso estar presente
com cada um, mas, coloco todo amor e carinho nos meus livros para eles poderem te abraçar,
onde quer que você esteja. Obrigada por cada comentário doce e DM de alegria. Obrigada pelos
feedbacks inspiradores e pelas mensagens de apoio. Vocês são tudo para mim, e meu desejo é
que alcancem a felicidade e os seus sonhos.
Sei que, infelizmente, o passado da Amy é a realidade de muitos de vocês, e espero de
coração que tenha o suporte necessário para superar esses traumas. Caso não tenha, meus braços
sempre estarão estendidos para te abraçar, mesmo virtualmente. Mas não guarde, não reprima
aquilo que te machuca. Conte a verdade, viva seus sonhos e permita se curar.
A culpa não foi sua.
Obrigada por ter lido até aqui, obrigada por, pacientemente, esperar novas histórias.
Estou ansiosa para te ver de novo.

Beijos no coração e abraços quentinhos,


Nicah.
N. S. Park, mais conhecida por seus leitores como Nicole da Silva Park, é amante de bons romances e livros de fantasia,
dorameira, ilustradora e fã de desenhos animados. Passa a maior parte do tempo lendo, escrevendo e desenhando sobre os livros
que lê e escreve.

É mineira, mas pode ser encontrada em Terrasen, Velaris, século XIX, Nárnia ou em outros variados mundos fantásticos nas
horas vagas. Tem como inspirações os romances quentinhos de Carina Rissi, guerras e problemáticas dos universos de Sarah J.
Mass e lágrimas e dor dos dramas sul-coreanos.
Tem vinte anos e mais algumas primaveras que decidiu parar de contar. Trabalha duro ilustrando para ajudar em casa, pagar suas
faturas e sushis, mas escreve para aliviar as vozes bagunçadas de sua cabeça.

Seu maior sonho é fazer – seja desenhando ou escrevendo – o maior número de pessoas possível sorrir, amar e acreditar que
começos, meios e finais felizes existem.
OPPA, FOI MAL
+16
Depois de acidentalmente quebrar a câmera de um paparazzi, Helena não esperava conseguir se meter em mais confusão.
Presa ao fotógrafo de sorriso tentador por um acordo, a jovem acaba se vendo em uma confusão amorosa em que não queria
estar. A única solução que encontra é um falso namoro com o cara que poderia muito bem quebrar seu coração frágil, ou ajudar a
remendá-lo de uma vez por todas.

Um romance +16 para arrancar sorrisos e suspiros e aquecer corações.


Um fotógrafo.
Uma estudante azarada.
Músicas... Alguns acordos E outros clichês.

AQUI
SONHO DE UM DIA DE VERÃO
+16
Quando Valentina ganhou uma viagem para comemorar o aniversário na Itália com sua melhor amiga, nunca passou por sua
cabeça roubar uma moeda da famosa Fontana di Trevi só para provar que a única magia existente ali era a beleza histórica de
Roma.

Porém, movida pela culpa, a jovem decide devolver a moeda. Mas por um capricho da Fontana, o caminho de Tina cruza com
o de um lindo italiano antes que ela possa cumprir o objetivo. O que poderia ser apenas mais um dia de verão é agora o escape
inconsciente da bailarina das lembranças cinzas que a perseguem.
Aquele estranho de sorriso caloroso não era apenas uma maravilhosa coincidência, mas a chave para destrancar seu coração.

O dia vai acabar... e a magia dele também. Mas a moeda furtada ainda precisa ser devolvida.
Valentina vai descobrir que ninguém brinca com a Fontana di Trevi, muito menos com a magia do amor.

Uma fonte.
Uma moeda.
Um pedido.
Dois corações quebrados.
E um Sonho de Um Dia de Verão.
AQUI
PROMETA NÃO SE APAIXONAR
+16

Amelie Sanchez só tinha um plano para o Natal: filmes de romances açucarados, cobertores e
chocolate quente. Como companhia, quem sabe o gato preto que sentia pena dela vez ou outra?

Esse plano muda, infelizmente, quando ela recebe um cartão-postal da família que não vê há
cinco anos e uma notícia devastadora.

Abuelo está doente.

Voltar à pequena cidade onde cresceu, apesar de ser só por alguns dias, é a última coisa que
Amy quer para o fim de ano. Mas ela não pode mais virar as costas para a única pessoa que
verdadeiramente a amou, cuidou e protegeu. Mesmo se isso significar encarar a família que a
abandonara e o passado que tanto se esforçava para esquecer.

Desesperada com a ideia de ir para aquela cidade sozinha, Amelie decide alugar um namorado
de mentira inesperado: seu colega de quarto irritante e barulhento. Com algumas condições, é
claro. Sebastian garante que será o namorado perfeito por um final de semana se ela prometer
que, independentemente de qualquer coisa, não irá se apaixonar.

Mas será que ele conseguirá se manter longe dela depois de o Natal acabar?

Uma aspirante à escritora.


Um músico marrento.
Um reencontro de família desastroso e cheio de revelações,
e um romance para aquecer seu coração…
Tente não se apaixonar.

[1]
Filha.
[2]
Avô.
[3]
It, a Coisa – Stephen King.
[4]
Vovô.
[5]
Mais vendido.
[6]
Gibson Les Paul Tribute Satin Honey Burst = guitarra profissional.
[7]
Orgulho e preconceito – Jane Austen.
[8]
A atriz.
[9]
Como os chineses se referem à avó paterna.
[10]
Nos EUA, é chamado de eggnog. Não sei como outras pessoas fazem, mas a mãe da autora que vos fala fazia com leite
quente, gema de ovo, mel e canela. Nos EUA, é bebido no Natal, e alguns adultos até tomam com álcool.
[11]
Filha.
[12]
Bem, larguei meu emprego lá no lava-carros. Deixei para minha mãe uma nota de adeus. Lá pelo pôr do sol, eu tinha
deixado Kingston com minha guitarra debaixo do meu casaco…
[13]
…Esperando que eu pudesse ganhar algum dinheiro fazendo música com minha guitarra…
[14]
Então eu peguei minha guitarra e me sentei, mostrei a eles como uma banda deveria tocar com um pequeno guitarrista cheio
de swing… “Mostre a eles, filho”.
[15]
Massa de pão feito com milho moído ou farinha de milho.
[16]
Querida.
[17]
Filhas lindas.
[18]
Elvis Presley.
[19]
Louis Armstrong.
[20]
Otis Redding.
[21]
Avó paterna.
[22]
Jogo de azulejos chinês.
[23]
Referência ao livro Corte de névoa e fúria — Sarah J. Mass.
[24]
The Temptations.
[25]
Vovô.
[26]
Vovô.
[27]
Referência ao livro Corte de Névoa e Fúria — Sarah J. Mass.
[28]
Coisas que deveríamos dizer…
[29]
Autor fictício do Nicahverso.

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