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Por Justiça e Redenção

Copyright © 2024 por Mariana Vaz

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

Capa: Designer Tenório


Diagramação: Mariana Vaz
Revisão: Mariana Vaz
Assessoria: Clavi Assessoria Literária
Ilustrações: Vayse e Llibiarts

Todos os direitos reservados.


São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou
intangível — sem o consentimento da autora.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Edição Digital
Goiânia - Brasil
1ª Edição
Fevereiro de 2024
Sinopse
Nota da Autora
Prólogo
Justiça
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Redenção
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Epílogo
Agradecimentos
Sinopse

Lucas Maldonado está mergulhado em escuridão.


Ele está morto por dentro.
Ela só quer viver.
Gabriella Alves está encrencada.
Determinada a esconder-se de criminosos, ela se abriga em uma fazenda intrincada em
um vale isolado. Jovem e destemida, vai ter seus planos alterados ao conhecer seu novo vizinho:
um viúvo doze anos mais velho, de olhos vazios e acusado de matar a própria esposa.
Lucas Maldonado é um dos fazendeiros mais prósperos de sua região.
Só que nem todo o dinheiro do mundo foi capaz de salvar sua esposa ou de lhe conceder
justiça. Agora, o que resta em sua vida é só culpa e dor.
Um homem rude e de palavras brutas, que faz de tudo para manter-se recluso.
Isso, até a chegada de uma certa “loirinha” disposta a invadir suas terras e testar seus
limites.
E enquanto Gabriella tenta se proteger das ameaças que a perseguem, irá aventurar-se
desvendando os segredos dos Maldonado, até perceber que Lucas também pode se tornar um
perigo.
O maior e mais letal de todos eles.
Nota da Autora

Para você, o que é Justiça?


E o que você consideraria como Redenção?
Por Justiça e Redenção é uma história sobre várias coisas, mas duas delas estão
evidentes.
Justiça a qualquer preço, e como a sua busca pode afetar nossos caminhos;
Redenção como uma meta quando nada mais parece importar na vida.
Fora essas duas questões, é um livro que também fala de luto, culpa, solidão e dor. De
confiança e amizade, e em como nossos maiores inimigos podem estar dentro de nós.
Quando Lucas quis contar sua história, tive raiva dele. Não eram esses os planos, mas
ele tanto insistiu, que tive de passá-lo na frente. No fim, me vi rendida por esses dois, e arrisco
dizer que são um dos meus casais favoritos dentro do Mariverso.
É uma história que me emociona sempre que penso em seus detalhes, que me deixou
esgotada durante a escrita e com a qual muito aprendi. Como pessoa e como autora.
Quero deixar claro que não estou aqui para concordar ou condenar a conduta dos meus
personagens. Na verdade, acho que esse é justamente o cerne deste livro: até que ponto somos
passíveis de julgar as escolhas do outro quando estas são tomadas em razão de uma “reparação”?
Devo avisar que encontrarão cenas de violência, uso de armas de fogo, consumo
excessivo de álcool, além de possíveis gatilhos para pensamentos suicidas.
Sem mais delongas, Por Justiça e Redenção pode tirar algumas de vocês da zona de
conforto, assim como me tirou.
É exatamente isso que eu espero.
Mariana Vaz
Esse livro é para você, Lucas Maldonado.
Hoje entendo seu desespero em jogar essa história pro mundo.
De fato, ela é única.
Prólogo

As chamas alcançavam mais de cinco metros de altura e minhas faces ardiam com o
calor. O fogo crepitava, soltava faíscas longe, e fazia a madeira ranger metros à frente.
Eu poderia me jogar em direção às chamas.
Acabar com tudo e transformar culpa, solidão e dor em pó.
Pó.
É o que eu era.
Um grão miserável.
Adoecido.
Podre.
Culpado.
Sempre, o culpado.
O álcool já não fazia mais efeito.
Há tempos que o álcool não fazia efeito.
Será que as chamas dariam um fim definitivo a tudo?
E se eu me jogasse?
Só que eu não era capaz.
Há que se ter muita coragem para se jogar em direção a uma casa em chamas.
E eu era um covarde.
Mirei minhas mãos. Sujas de fuligem e marcadas pelo trabalho incessante.
Fechei os punhos, ainda sentindo a maciez dos cabelos loiros, marcados em minha
memória.
Ah, loirinha...
Uma das pilastras da varanda cedeu, e a viga caiu em um estrondo ruidoso, fazendo os
cães se eriçarem em latidos desesperados.
A casa ia ruir.
Memórias queimavam dentro dos cômodos.
Um raio cruzou o céu, e me dei conta que em breve uma chuva aplacaria tudo.
Até que as gotas caíssem, que tudo virasse cinzas.
Eu não queria mais lembrar.
Me aproximei das chamas. As faces mais quentes. O corpo febril.
Os cachorros aumentaram os latidos, prevendo o perigo.
“Quando você acordar, eu não passarei de uma lembrança para você. Tenho certeza de
que você se lembrará de mim por todos os dias, Lucas, enquanto eu, nem por um segundo,
voltarei a me lembrar de você.”
Você estava certa, loirinha...
Nem todo o whisky do mundo era capaz de me fazer te esquecer.
Justiça
Capítulo 1

Existem momentos da vida em que você se dá conta da sua insignificância.


Momentos em que percebe que sua vida, na real, não vale nada.
Eu era uma miserável, cuja existência poderia ser descartada a qualquer segundo, e
ninguém na face da Terra se importaria.
Ninguém se importava.
Ninguém se lembraria.
Um segundo, e tudo muda.
Em um dia você está “feliz” com sua insignificância, vivendo uma rotina de merda
como caixa de um supermercado em uma cidade que ninguém te dá a mínima.
No dia seguinte, está jurada de morte.
Escutei a buzina alta do ônibus do lado de fora. Terminei de ajeitar meus cabelos
molhados e fiz uma careta para o reflexo que vi no espelho do banheiro da rodoviária.
Ok, Gabriella. Até que você não ficou tão estranha loira.
Eu gostava dos meus cabelos naturais. Uma cascata de mechas castanhas e de ondas
sutis.
Acontece que a Gabriella de Dom Cervantes estava morta.
Enterrada.
Esquecida no tempo.
Agora, eu era uma sem-teto que partia para a casa dos padrinhos distantes,
únicos que foram capazes de me acolher.
Nunca me senti tão... insignificante.
Um grão de merda.
Nova buzinada do ônibus e girei nos calcanhares, saindo às pressas do banheiro e
correndo para o local de embarque, temendo ser deixada para trás.
Eu tinha cinquenta reais no bolso e nada mais. Se perdesse aquela viagem, teria que
pedir dinheiro na rua para me alimentar, ou ir em busca de uma carona para meu destino.
A viagem até Sibipiruna era longa. Dom Cervantes, a cidade em que vivi por anos e, por
um tempo, julguei que fosse meu lar, ficava no interior do Paraná, quase na divisa com Mato
Grosso do Sul, enquanto meu destino era bem ao norte, em uma cidadezinha esquecida no
interior de Goiás.
Dom Cervantes era feita de gente retrógrada. Cheia de preconceitos e egoísta. Fria na
maior parte do ano, tinha o clima compatível com o humor de seus moradores.
Eu nada sabia sobre Sibipiruna. Só que era uma cidadezinha minúscula e que vivia do
agronegócio, como muitas daquela região interiorana do país.
O que uma garota como eu faria num lugar daquele?
Não fazia ideia, mas no momento, eu só queria sobreviver.
Me sentei na minha poltrona ao fundo do ônibus e observei a movimentação dos outros
passageiros.
Passava de duas da tarde e eu só tinha comido um salgado horas antes. Precisava
economizar ao máximo para qualquer emergência. O casal de jovens sentados à minha frente
conversava baixinho enquanto eu me afundava no meu moletom, escondendo os cabelos recém-
pintados.
Vai que alguém nota que eu entrei naquele banheiro morena e acabei saindo loira?
Eu não era uma foragida da justiça, mas as pessoas que estavam atrás de mim tinham
contatos.
Uma movimentação no canto da rodoviária chamou minha atenção. Não sei em que
cidade estávamos, mas notei quando duas viaturas da polícia pararam alguns metros à frente e
começaram a conversar com o dono de uma lanchonete.
Me encolhi instantaneamente.
Notei que os dois jovens sentados nos assentos da frente fizeram o mesmo. Ele, bem
alto, tatuado e de fisionomia marcante, girou o rosto na direção contrária enquanto ela também
pareceu se esconder, mantendo-se sentada exatamente como havia ficado durante toda a nossa
viagem.
Não liguei muito para eles, e observei os policiais.
Fardados e espreitando tudo, aproximaram-se da área de embarque, como se vigiassem
os passantes.
Estariam atrás de mim?
Não duvido, já que Dom Cervantes não era tão longe de onde estávamos.
Ajeitei o capuz, jogando algumas mechas do cabelo loiro para fora. Talvez estivessem à
procura de uma morena, e isso faria com que se afastassem logo.
Uma dupla de policiais conversava com o funcionário da lanchonete quando um deles
pareceu notar nosso ônibus, girando o rosto na nossa direção e demorando os olhos no veículo.
E então, para meu completo desespero, ele começou a caminhar.
Senti meus pelos se arrepiarem de ansiedade a cada passo que o policial dava em
sentido ao ônibus. As portas já estavam fechadas; o motor, ligado, mas o motorista ainda não
tinha saído do lugar.
Vamos! Saia logo daqui!
Eu queria gritar. Implorar que ele partisse, mas temia me expressar e deixar evidente
meu nervosismo, chamando ainda mais atenção.
O homem fardado seguiu devagar. Seu olhar percorria as janelinhas do ônibus, como se
procurasse algo.
Eles estavam me procurando!
Me desesperei. Grudei as mãos no assento, pronta para sair correndo a qualquer instante
e vendo, paralisada, a aproximação do oficial.
Foram segundos intermináveis em que o motorista não saía do lugar e eu só conseguia
reviver a noite de horror que passei em Dom Cervantes quando jogaram uma bomba na porta da
minha casa com um aviso:
“Abra o bico e vai acordar com a boca cheia de formiga.”
Mais um passo do policial, e me lembrei dos tiros. Do corpo desconhecido caindo na
esquina da minha casa, inerte, e do som abafado que ele fez no cimento frio.
Um inocente.
O mundo era injusto.
Outro passo do policial e eu rememorei os dias seguintes, em que fui burra ao ponto de
acreditar que poderia contar com a polícia de Dom Cervantes só para descobrir, horas depois,
que os assassinos eram os próprios policiais.
Eu estava sozinha. Havia testemunhado um crime, e agora fugia como uma criminosa
pois aqueles que deveriam buscar por justiça na verdade eram os assassinos.
Mais um passo e o oficial da rodoviária estava a menos de um metro do ônibus.
Eu suava frio. Minha respiração mal saía quando escutei um grito vindo dos últimos
assentos:
— Essa joça sai ou não sai? — algum passageiro mais impaciente trovejou.
— Tô saindo! — o motorista respondeu, resmungando um palavrão e, enfim,
começando a dar ré.
Ele manobrou com lentidão, passando com a janela em que eu estava a centímetros do
policial parado na calçada de embarque, ainda de olhos presos no veículo.
E eu só respirei novamente quando saímos daquela cidade.
Que Deus me ajudasse a chegar em Sibipiruna viva.
E que eu me mantivesse longe de problemas.
Principalmente da polícia.
Capítulo 2

A poeira acumulava-se entre as prateleiras do mercadinho do Pintor, e precisei bater o


pó que tampava as inscrições do preço do saco de ração.
— A prefeitura fez um buraco na rua para arrumar os canos da rede de água e estão
levando um século para tampar. Por isso tanta poeira.
— Hum... — resmunguei uma resposta. Era o máximo que o comerciante teria de mim.
— O senhor bem que podia conversar com seu cunhado.
Não me dei ao trabalho de encará-lo, continuando a tarefa monótona de empilhar os
sacos de ração na entrada do estabelecimento. Levaria logo uns cinco para não precisar voltar ali
tão cedo. Com aquela matilha de cães famintos, daria para dois meses e olhe lá.
— Imagine só se a festa da cana acontecer com a cidade assim, caótica! O povo das
cidades vizinhas não tá acostumado com esse descaso não.
— Pintor... — comecei, desistindo no meio do caminho.
O nome dele não era Pintor. Óbvio. É só que ele era... o pintor da cidade.
Cidade pequena era assim. Você era conhecido pelo que fazia, como o Miro Pintor, ou
pelo que vendia, como a dona Gercinda das verduras, ou por seus familiares.
Como eu, que nunca era chamado de Lucas, mas sim de “cunhado do prefeito”.
Ou “viúvo Maldonado”.
Esse era quase um xingamento.
Abracei o último saco de ração e percebi que estava furado. Apontei para o local e
esperei por uma fala do Pintor, que jogou um olhar plácido para os grãos vazando e formando
um rastro no chão e simplesmente disse:
— Devem ser as galinhas. Elas amam essa ração.
— Porra... — resmunguei, cansado daquele lugar. — Quanto ficou?
Pintor aproximou-se da pilha, anotando em sua caderneta os valores. Ele me disse e eu
levei as mãos ao bolso da calça, buscando ali minha carteira.
— O senhor não quer abater no crédito dos Siqueira?
— Essa compra é minha, e não deles.
— É que a dona Sofia certa vez falou que você também poderia comprar na caderneta,
na conta deles.
Respondi batendo algumas notas no balcão do estabelecimento, deixando claro que não
usaria conta de ninguém.
O homem pareceu contrariado, mas não disse nada. Não se ofereceu para me ajudar a
levar os sacos até a carroceria da caminhonete, e eu também preferi assim. Coloquei os sacos um
a um na parte traseira e então peguei o resto das compras que havia feito, ajeitando tudo de modo
que não tombasse na viagem penosa na estrada de chão. Ali tinha o suficiente para eu me manter
pelo próximo mês sem ter que voltar àquele lugar.
Ao atravessar a calçada, vi do outro lado da rua um de meus desafetos.
Um dos inúmeros.
O delegado Antenor conversava com duas senhoras. Sorria simpático e passava as mãos
limpas e de unhas aparadas no cabelo escorrido em gel.
Eu sentia o cheiro de engomadinho mesmo à distância.
Bléh!
Me virei enojado, evitando chamar sua atenção, mas foi tarde demais.
O homem vestido como coroinha de igreja aproximou-se com um sorriso falso, gritando
por meu nome:
— Lucas! Você em Sibipiruna?!
— É que eu moro aqui — ironizei.
— Nem parece! — Ele não pareceu se importar com meu tom nada amistoso. — Vive
enfurnado naquela fazenda.
— Tenho muito o que fazer.
Na verdade, eu não tinha nada a fazer a não ser beber e...
Beber e...
Beber.
Isso me lembrou que eu precisava passar no bar.
Sem me despedir, rumei em direção à praça da igreja, onde o bar do Careca ficava na
esquina.
Ignorei os chamados do delegado, e principalmente os olhares enviesados que as
senhorinhas que saíam da igreja jogaram em mim, como se eu fosse o demônio encarnado.
Talvez eu fosse mesmo.
O nome do dono, Careca, era... exatamente por esse motivo.
Me deu seu maior sorriso amarelado de cigarro quando entrei no salão escuro e
cheirando a éter, passando as mãos na cabeça lisa e sem um fio de cabelo sequer.
— O de sempre, Maldonado?
Fiz um aceno que sim, vendo-o retirar meu uísque favorito da prateleira e despejar uma
dose pura, sem gelo, no copo minúsculo.
Entornei tudo de uma vez. O álcool rasgou minha garganta, dando aquela sensação
aconchegante de dormência que só ele me dava nos últimos quatro anos.
Era um anestésico.
— Mais um — pedi, deixando o copo bater no balcão de fórmica lascada.
— Começando cedo hoje, Maldonado? — escutei uma voz atrás de mim.
César...
Um judas em minha vida.
O prefeito da cidade.
Meu cunhado.
— Não é da sua conta — rosnei de volta.
— Quando você carrega meu nome e a memória de minha irmã, é sim.
— Porra, seu...
Me voltei para ele. Meus olhos ficaram injetados e senti a fúria de sempre, controlada
com as doses de uísque, mas sempre prestes a entornar a qualquer instante.
— Não gosto de briga no meu bar — Careca reclamou, nem aí para nós dois.
— Vai embora, prefeito. — Tentei ignorar o homem que se aproximava. — A cidade
está cheia de buracos para você tampar.
— E as terras da minha família, que até hoje esperam pelo dia em que voltará a ficar
sóbrio para prosperarem?
— Então por que não as toma de mim? — esbravejei, jogando meu corpo em sua
direção e apanhando seu colarinho branco e cheirando a perfume barato. — Por que não pega de
volta as terras da sua família, já que está tão preocupado com o destino delas?
— Você sabe que não posso — ele cuspiu, me mirando com sarcasmo.
— Está mentindo. Você não quer. Sabe que se ficasse responsável por aquele lugar o
perderia em dois tempos, assim como perdeu sua parte da herança dos seus pais.
Ele me estudou com ódio. César não disfarçava seu escárnio.
Eu não disfarçava meu ressentimento.
Ainda que no íntimo eu soubesse que somente eu era culpado pelo fundo do poço que
minha vida se encontrava, César deu seu empurrão para me jogar lá embaixo.
— Vamos, César! — insisti. — Pegue tudo de volta. Eu não ligo para aquele dinheiro
nem para aquelas terras. São amaldiçoadas.
— Você as amaldiçoou quando matou minha irmã!
A acusação ecoou pelas paredes do bar na mesma velocidade e fúria com que os meus
dedos se fecharam em punho e acertaram um soco no rosto familiar e que me doía encarar.
César tinha as mesmas feições de Tereza, e isso era doloroso.
Era como uma maldição ser obrigado a encarar os olhos castanhos, os cabelos
enrolados, pretos, e as sobrancelhas longas que perseguiam meus sonhos mais embriagados em
um mundo em que ela não existia.
Uma confusão formou-se ao nosso redor, e senti uma gosma de sangue em meus dedos
quando me ergui lentamente.
César era um homem de fisionomia comum. Tinha cerca de um metro e setenta e devia
fazer algum exercício ridículo e enfadonho de repetição na academia da cidade.
Com meus mais de um metro e noventa e músculos formados pela lida na fazenda, eu
era capaz de desfazer aquele rosto cretino em quatro ou cinco socos.
Parei no primeiro.
— Eu deveria mandar te prender! — César gritou possesso. Tampava o rosto com uma
mão e ajeitava a camisa engomada com a outra.
— Quer que eu chame o delegado? — incitei. — Ele tá lá na porta do Pintor.
— Vai se foder, Lucas! — ele gritou. — Era o que eu deveria fazer. Mandar te prender e
deixar você mofar no fundo de uma cela. Só não faço em memória à minha irmã. — E porque
tem o rabo preso, seu covarde. — Ninguém aguenta mais você nessa cidade, mas não temos
escolha.
É. Eles não tinham escolha.
Eu também não.
Estava fadado a viver ali porque, querendo ou não, aquele era meu lar. O lugar que me
abrigou quando precisei fugir. O lugar que semeei sonhos, e também o lugar que descobri quem
era de fato.
Eu era o maior fazendeiro daquela maldita região. Por isso, me aturavam.
Porque, embora eu não lidasse mais com o campo há anos — exatos quatro anos,
quando tudo ruiu — eu ainda era o responsável por aquele lugar, de certa forma, existir.
Cuspi no pé do prefeito, e ele que me prendesse se se sentisse ofendido.
Vários olhos arregalados se desviaram quando percorri o salão do bar, voltando para
meu banco cativo e pedindo mais uma dose.
— Uma dupla dessa vez.
Careca engoliu em seco e obedeceu, me servindo logo duas doses de uísque e deixando
a garrafa parada à minha frente.
Hoje eu só sairia daquele lugar bêbado.
Me perguntei por um segundo se já não entrei ali assim.
Capítulo 3

Quando o ônibus parou no ponto em frente à pracinha da igreja, eu não tinha muitas
malas para descer. Só uma mochila nas costas e o moletom amarrado na cintura.
Diferente de Dom Cervantes, que ficava numa região serrana e era fria e chuvosa em
grande parte do ano, Sibipiruna era quente.
A poeira vermelha tingia as fachadas das poucas casas do vilarejo, e um grupo de
crianças brincava descalças na pracinha de meio fio recém pintado de branco. Ao centro da praça
cheia de bancos de madeira, um imenso pé de sibipiruna manchava o chão de amarelo, e ali
entendi o nome da cidade.
Fora a pintura impecável da calçada da igreja, tudo ali parecia meio abandonado.
Havia um bar na esquina mais distante, com homens sentados em cadeiras de plástico
observando o movimento e bebendo cervejas. Uma padaria com a fachada desbotada trazia o
desenho de um pão meio deformado e uma passagem bíblica sobre partilha e abundância.
Do outro lado, uma rua mais larga e com o asfalto todo quebrado, onde canos e
manilhas aguardavam na calçada algum reparo a ser feito. Galinhas atravessavam a rua e duas
senhorinhas olhavam para mim com curiosidade.
Que fim de mundo...
— Procurando algum lugar, gracinha? — um dos homens do bar me chamou,
esfregando a mão na calça imunda.
Fiz uma careta de nojo e então virei na direção oposta.
Eu não disse quando chegaria aos meus padrinhos, então ninguém foi me buscar.
Analisei a praça da cidade por mais um tempo antes de me decidir. Marchei até as crianças que
brincavam na rua. Crianças sempre eram curiosas. Saberiam me ajudar.
— Boa tarde! — Tentei soar amistosa. — Sabem onde moram Sofia e José Siqueira?
Os meninos se entreolharam fazendo careta.
— Sei não, tia — um deles murmurou.
— Como eles são? — outro perguntou de maneira curiosa.
— Atrás de quem, mocinha? — Uma das velhinhas que observava a tudo com seus
ouvidos atentos aproximou-se, xeretando.
— Sofia e José Siqueira.
— Ah... — Ela fez um som longo de reconhecimento. — Os vizinhos do Maldonado.
— Eu não sei — respondi um pouco perdida.
— São eles sim — ela disse taxativa. — Você é o que deles? — perguntou, cada vez
mais curiosa.
— Eu sou... — Meus lábios emudecerem quando percebi que deveria evitar contar
demais sobre mim. — Sou uma conhecida.
— Veio de onde? — Ela estudou minhas roupas.
— Da capital — menti.
Qualquer cidade era maior que aquela ali, e foi fácil convencê-la que eu vinha da cidade
grande.
— Eles moram numa das fazendas arrendadas pelo viúvo Maldonado. — A mulher
apontou para uma rua comprida que acabava em uma estrada de chão. — Você segue toda vida
naquela estrada até chegar na usina de cana. Daí, vira pra sua esquerda e continua até passar um
mata-burro. É a estrada que leva pros Maldonado. Os Siqueira vivem na casa ao lado.
— Sabe mais ou menos a distância até lá?
Eu estava com fome e cansada da viagem de ônibus.
— De carro dá uma meia hora.
Merda!
Senti minhas pernas fraquejarem diante do desafio. Seria uma longa caminhada até a
casa de meus padrinhos. O sol batia a pino, e já passava de três da tarde. Talvez eu chegasse lá já
com o cair da noite.
Força, Gabriella. Isso aqui é fichinha perto do que já passou.
Respirei fundo e me muni de coragem. Atravessei a pequenina cidade sob alguns
olhares curiosos, e em menos de quinze minutos eu já estava nos seus limites, entrando na
estrada de chão que levava às fazendas.
Caminhei devagar, apreciando a paisagem bonita e bucólica da região.
Os campos apinhados de plantações e os pastos açoitados pelo gado. Matei minha fome
em um pé de manga cujos galhos quebravam-se abundantes na direção da estrada, e me deliciei
com pequenos cajuzinhos que encontrei no caminho.
Eu amava cajus.
Andei sem pressa, pois pela primeira vez em dias não me senti sendo perseguida ou
vigiada. Por mais pitoresco e seco fosse aquele lugar, me deu uma sensação estranha de... paz.
Eu não tinha familiares ou amigos preocupados com meu destino, então meu celular
havia sido deixado em Dom Cervantes para evitar que a polícia me rastreasse. Parti só com roupa
e documentos, e havia avisado meus padrinhos só a possível data da minha chegada. Por isso,
não precisava de pressa. Ninguém se desesperaria se eu me demorasse um pouco mais na estrada
observando as vacas ou colhendo frutas direto no pé.
Pela primeira vez, eu me sentia livre.
Enchi a mochila com algumas mangas e colhi algumas flores no caminho. Me distraí
com os pássaros e, pela ausência do celular, mal me toquei das horas quando escutei o primeiro
trovejar no céu.
Havia escurecido e eu nem percebi, e agora ameaçava chover.
Maravilha.
Pelo que a senhorinha da cidade me orientou, ainda faltavam alguns quilômetros até
meu destino, já que em nenhum momento eu vi a tal usina de cana. Caminhei e caminhei,
estranhando o fato de que, durante todo o meu trajeto, nenhuma viva-alma cruzou por mim na
estrada.
Estaria no caminho certo?
A mulher não exagerou quando disse que era pra seguir “por toda a vida”.
Já estava prestes a desistir quando as primeiras gotas molharam meus cabelos pintados.
Perfeito!
Muito bem, Gabriella! Nada pode ser pior.
Ao menos a chuva aplacaria o calor e tiraria a poeira que se grudava em minha pele.
Andei poucos passos com a chuva caindo fininho. Havia uma árvore frondosa mais à
frente que pensei em usar para me abrigar, mas logo me recordei das matérias de televisão que
orientavam a nunca permanecer debaixo de árvores em tempestades, pois eram chamariz de
raios.
Comecei a correr mais depressa quando a chuva engrossou até que, pela providência
divina, escutei o ronco alto de uma caminhonete vindo na mesma direção que eu seguia.
As nuvens pesadas tornavam tudo escuro, então não conseguia enxergar quem dirigia o
imenso veículo de rodas robustas, frente intimidadora e carroceria lotada de itens cobertos por
uma lona.
— Ei! — Comecei a acenar do canto da estrada, tentando chamar a atenção do
motorista. — Uma carona, por favor!
Chovia de maneira intensa e a água pesava em minha calça jeans e também na camiseta.
Meus cabelos estavam pregados nas costas e, muito provavelmente, meus pertences estavam
todos ensopados.
O carro, que seguia com os faróis ligados e ofuscando minha visão, desacelerou um
bocado ao me ver. Ele parou poucos metros à frente, e sob a luz das lanternas que ainda me
cegavam, vi a silhueta de um motorista alto — provavelmente um homem — usando chapéu de
aba dobrada. Estava sozinho.
— Graças a Deus você passou a essa hora! — exclamei, correndo na direção da janela
oposta a do motorista. — A chuva está pesada.
Ao parar do lado da cabine e olhar no interior do veículo, paralisei alguns segundos.
Céus, que homem lindo!
Vestido de maneira simples, com uma camisa de botões surrada e encardida, uma calça
jeans com um rasgo no joelho, e um chapéu escondendo os cabelos castanhos e grossos, era o
homem mais... visceral que eu já vi.
Tinha uma barba grossa e curta escondendo parcialmente o rosto, mas o pouco que vi de
suas feições me fez puxar o ar com força.
Olhos profundamente castanhos de um tom escuro como seus cabelos, sobrancelhas
marcantes, um nariz levemente torto e os maxilares pronunciados, mesmo por baixo da profusão
de pelos do rosto.
O pomo de adão era imenso sob a gola amarrotada da camisa, e os ombros eram
gigantes. Monumentais. Aquele homem mal cabia no assento daquele carro, e olhe que era uma
caminhonete robusta.
Me perdi no tempo ao descer os olhos pelos braços. Fortes e firmes, assim como todo o
resto. Marcados de sol , o que indicava que ele deveria ser trabalhador em alguma
fazenda da região.
As mãos calejadas seguravam o volante com uma força que me fez engolir em seco.
— B-boa noite — como uma imbecil, gaguejei.
Ele não me saudou de volta. Só me fitou.
Puta merda!
A feição era intimidadora, e tudo o que vi no seu olhar foi... vazio.
Ele tinha os olhos avermelhados e, instintivamente, recuei um passo.
— Eu... — Minha voz saiu fraca, e não entendi muito bem o porquê. — Estou
procurando a fazenda dos Maldonado.
Parte do vazio e frieza de seu olhar sumiu e ele, pela primeira vez, pareceu me olhar de
verdade.
— Quem é você? — questionou com a voz mais rouca e carregada que já escutei na
vida.
— Gabriella... — Emudeci ao perceber que quase falei meu sobrenome para ele. — Eu
estou procurando por José e Sofia Siqueira. Me disseram que eles moram lá.
Ele enrugou a testa de uma maneira sutil, quase imperceptível. Me analisou por
milésimos de segundos antes de resmungar, voltando os olhos para a estrada:
— Ainda tem uma meia hora de caminhada.
E então, para meu mais completo choque, o homem simplesmente subiu o vidro do
carro e arrancou com o motor na chuva torrencial, me deixando feito uma paspalha, sozinha, no
meio da estrada enlameada.
— O... o que?! — exclamei chocada, ainda paralisada no mesmo lugar, enquanto a
caminhonete arrancava com tudo, seguindo sabe-se lá Deus para onde. — BABACA!
Ensopada até os ossos, não me restava outra opção que não seguir à pé.
O único carro que cruzou aquela estrada parece ter ido no mesmo caminho, mas preferi
acreditar que ele entrou em algumas das porteiras que ficavam na beira da estrada, por isso não
me deu carona.
Mais alguns minutos e finalmente encontrei a tal usina de cana. Parecia abandonada, o
que justificava o trânsito inexistente de veículos. Encontrei também o mata-burro instruído pela
senhorinha da cidade e, enfim, entrei em uma estradinha vicinal que levava a um declive, como
um vale no meio de uma pequena serra.
Foram cerca de vinte minutos descendo sob a chuva incessante antes que eu visse ao
longe as luzes de uma moradia. Cansada e com fome, apertei o passo.
Cachorros latiam ali perto quando abri a última porteira. Pareciam vir de algum sítio
próximo. Logo vi a silhueta de um casal surgindo em uma varanda modesta de uma casa com
pintura recém-feita.
Se não forem meus padrinhos, que se foda! Vou pedir abrigo de todo jeito.
— Quem é? — O homem gritou em minha direção com certo receio.
— Gabriella — gritei de volta, parando ao lado da cerca e esperando que eles me
escutassem sob o barulho das gotas de chuva. — Estou procurando Sofia e José Siqueira.
— Gabriella! — a mulher exclamou com certa empolgação. Pela forma como reagiram,
acho que eram eles. — Por que não nos avisou que chegaria hoje?!
— São vocês? — Da última vez que os vi, eu tinha quinze anos. Isso foi há nove anos.
— Eu não tinha um celular para ligar, então vim direto da cidade.
Andei mais alguns metros e o homem pegou um guarda-chuva escorado ao lado da
varanda. Saiu em busca de me ajudar e me protegeu das gotas nos metros que separavam o
jardim da entrada. Não adiantaria muito, já que eu estava ensopada, mas foi uma boa recepção.
— Veio caminhando? — ele perguntou um pouco chocado, me analisando de maneira
cuidadosa.
— Sim. Até não me preocupei muito em andar. O problema foi quando começou a
chover.
— Meu Deus, você está ensopada! — a mulher exclamou ao me ver subir os degraus do
alpendre.
— Desculpa molhar sua varanda — murmurei acanhada.
— Não se preocupe com isso! — Ela correu para dentro e logo voltou com uma toalha.
— Se seque um pouco ou vai pegar uma gripe.
Enquanto eu me secava, observei meus padrinhos por algum tempo.
Aos poucos os reconhecia, já que o tempo não parece tê-los atingido.
Sofia Siqueira era uma negra bonita, de lábios grossos e cabelo crespo. Pele lisinha e
sorriso doce e acolhedor. José, seu marido, era negro também, só que de pele mais clara e
cabelos um pouco brancos. Tinha olhos de um tom castanho claro e semblante mais reservado.
Lembro-me de vê-los em meu aniversário de quinze anos. Nunca foram muito próximos
de minha mãe. São daqueles padrinhos que seus pais — no caso, minha mãe — escolhem por
ocasião da data, na falta de familiares. Com os caminhos da vida, acabaram se afastando da
afilhada, mas foram os únicos a me acolher no momento de maior necessidade.
— Meu Deus, como você se parece com sua mãe quando tinha sua idade — Sofia
murmurou ao analisar minhas feições. — Está com quantos anos?
— Vinte e quatro.
— Mas e esse cabelo? — Ela apontou para os fios tingidos. — Me lembro que eram
castanhos.
— Quis mudar. — Abri um sorriso discreto.
— Bom... — Ela me estudou. — Ficou... bom.
Estava uma merda. Era oficial.
— Vamos entrar, Sofia — José nos apressou. — A chuva tá apertando.
— Vai durar a noite toda — ela profetizou, enquanto me levava para a sala simples, com
um sofá vermelho coberto por uma manta quadriculada, e uma estante em madeira cheia de
porcelanas miúdas e pequeninos forros de crochê.
— Vem — Sofia me chamou com carinho. — Vou te mostrar o banheiro e depois o seu
quarto. Está com fome?
— Faminta.
— Aqui jantamos cedo. Vou te esquentar a comida.
Concordei, seguindo-a.
O meu quarto era pequeno, com uma cama de solteiro e uma cômoda espelhada, mas
estava tudo limpo e o colchão era aconchegante. Tomei um banho no único banheiro da casa,
todo em chão batido e encerado de vermelho. Ao sair, ela tinha tirado todas as minhas roupas da
mochila molhada, colocando-as estendidas no varal de uma pequena área de serviço ao fundo da
casa. Fiz o mesmo com minha mochila antes de me sentar à mesa e comer como uma faminta
que não via uma refeição decente há dias. O que era exatamente como eu estava.
Depois, esgotada, me deitei na cama. Eles não me fizeram muitas perguntas. Sabiam
que eu estava cansada e simplesmente disseram que eu poderia ficar à vontade.
O certo era eu me sentar com eles e explicar, minimamente, o motivo daquela viagem,
mas meu corpo parecia prestes a entrar em pane. Deitei na cama de solteiro e praticamente
apaguei.
Despertei no dia seguinte, já com o sol varando a janela com força total. O silêncio
reinava, e percebi que estava sozinha na casa pequena. Depois de comer uma banana de uma
fruteira ao centro da mesa, me sentei na varanda para observar com mais cuidado o local que
agora seria meu lar. À noite, tudo o que vi era escuridão.
De frente para a casa dos Siqueira, havia um imenso gramado com algumas roseiras e
flores. A chuva da noite ensopou o chão, e poças acumulavam-se no passeio que dava para a
porteira de entrada. Um curral erguia-se vários metros distante, e percebi que havia uma outra
cerca que dava para um caminho estreito, na direção do que me pareceu serem plantações de
milho.
Sei que eles viviam daquela cultura, então imaginei que estavam no campo, lidando com
o operacional da plantação.
Suspirei, observando ao redor. O céu estava límpido aquela hora, e a promessa era de
um dia quente e ensolarado.
Era um vale lindo, com uma pequena encosta no canto direito da vista, após uma
vastidão de pastagem verde e bem cuidada. Na mesma direção da estrada de acesso por onde
cheguei na noite anterior, pedras gigantescas escondiam a entrada do vale, como duas guaritas de
proteção.
Demorei alguns minutos para perceber a segunda propriedade do vale escondido. Mais
distante, quase na encosta da montanha.
Era grande. Suntuosa. Parecia ter dois andares, e era rodeada por varandas imensas.
Curioso... Não notei as luzes acessas na noite anterior.
Observando melhor, constatei que a grama mais verde era da propriedade vizinha, que
era toda cercada por telas carregadas de farpas.
Enxerida, caminhei até o limite do terreno dos Siqueira, me aproximando ao máximo do
pasto verdinho e muito bem aparado.
De longe não dava para ver muita coisa, mas notei que além do casarão principal havia
um galpão e um celeiro.
Seriam os tais Maldonado?
O local parecia abandonado, e ao chegar na cerca que dividia os sítios, levei uma das
mãos ao arame farpado.
Imediatamente, um barulho de sino começou a badalar, como que provocado pelo
movimento das cordas da cerca.
Cães surgiram do nada, latindo raivosos em minha direção.
Antes de me distrair com os cães, ainda observando a propriedade alheia, julguei ter
visto uma sombra entre os janelões distantes.
E só então notei que havia um carro estacionado dentro do galpão.
Em questão de segundos, os cinco cães chegaram aos limites da cerca, latindo
enlouquecidos. Recuei assustada, só que meus olhos seguiam presos ao carro estacionado.
Os cachorros babavam e avançavam na cerca, deixando claro que, se eu ultrapasse
aqueles limites, viraria trapo compartilhado entre eles.
Mas a caminhonete...
Uma traseira imensa. Agora, de dia, eu conseguia ver a cor. Vermelha. Ainda estava
com a lona escura na sua carroceria que na noite anterior serviu para proteger o que quer que ela
tenha carregado da chuva torrencial.
As lanternas traseiras, exatamente as mesmas que fitei sumirem na estrada enquanto eu
me ensopava da chuva e era obrigada a percorrer todo aquele trajeto à pé.
Que desgraçado...
Antes de recuar, olhei mais uma vez para os cães.
Não restavam dúvidas.
Eram exatamente iguais ao dono.
Capítulo 4

Passava de dez da manhã quando despertei. O gosto de ressaca já me era habitual, e tudo
o que eu sentia era a mesma sensação de desamparo de sempre.
Me levantei com sofreguidão, arrastando meu corpo enrolado ao lençol até o banheiro.
Depois, desci as escadas só de calça, parando no batente central e mirando a cozinha caótica.
Em outros tempos, aquele lugar teria cheiro de pão assado e chá de erva-doce. As
cortinas estariam todas lavadas e sem rasgos do tempo, e no fogão algumas panelas já
começavam a chiar cozinhando o feijão.
Agora, tudo o que restava eram panelas com crostas de sujeira na pia, garrafas e mais
garrafas de bebida acumuladas num canto ao chão e alguns cacos de vidro de copos quebrados.
A fazenda Olhos d’Água já foi a joia preciosa daquela região. Tornou-se meu mausoléu.
Me aproximei sem qualquer interesse da geladeira e de lá retirei o último galão com
água gelada. Teria que enchê-los de novo.
Esvaziei o recipiente em um gole só, espalhando água por todo o tórax, e então retornei
para a sala, comendo um dos pães que comprei no dia anterior no mercadinho do Pintor.
Foi quando os cachorros começaram a latir como loucos.
Imediatamente, todo meu corpo se retesou. A tensão pulsou minhas veias e me
aproximei com atenção da janela, espiando o lado de fora na direção dos latidos.
Ela...
A loirinha miúda que encontrei na noite anterior na estrada, pedindo carona.
Os Siqueira não me comunicaram sobre a chegada da garota e, embora aquelas terras
fossem cedidas para que eles fizessem o que bem entendessem, eu tinha dado orientações claras
de que não desejava estranhos rondando meu casarão como a desconhecida fazia agora.
Não reparei na loirinha quando a vi durante a tempestade na estrada. Mal consigo
recordar como cheguei até a fazenda, já que depois da discussão com César no bar me afundei
em uma garrafa de Jack Daniels.
Ninguém em Sibipiruna questionava o fato de eu dirigir embriagado até o sítio. Na
verdade, lá no fundo deviam torcer por um acidente e minha consequente morte. O prefeito
herdaria todas as terras dos Maldonado — e que ele perdeu por sua incompetência — e fariam
festas imundas nas varandas da sede. Torrariam todo o dinheiro, até que só restassem os cães.
Mas eu não daria aquele prazer a nenhum deles.
Sobrevivia isolado, cumprindo meu único papel naquele lugar: manter aquelas terras
férteis.
A loirinha de estatura raquítica permaneceu por alguns segundos na cerca, curiosa e
inconveniente.
Eu continuei do lado de dentro do casarão, observando-a. Esperei que se afastasse das
cercas que dividiam a minha propriedade com as terras cedidas aos Siqueira antes de me virar
para o outro lado.
Teria que conversar com os Siqueira. Saber quem era a loirinha, e se ela traria
problemas.
Esperei que ela sumisse no terreno vizinho antes de abrir a porta da frente, chamando
pelos cães. Naqueles quatro anos, os animais foram minha única companhia. Cinco vira-latas de
porte médio a grande, com suas misturas de raças e pelugens que iam do branco encardido ao
negro azulado.
Os dois mais antigos eram do tempo de Tereza. Lembro-me que o mais velho deles
chegou em uma caixa de sapatos. Minha mulher tinha um sorriso imenso ao me mostrar a
bolinha de pelos trêmula de medo. Ficamos com ele, e na primeira noite o deixamos dormir no
nosso quarto, tudo pela clemência de Tereza.
Ela escolheu o nome: Trovão, pois tinha o pelo negro feito a noite, e olhos cinzentos
como uma tempestade.
Trovão era o mais leal da matilha, e também o mais protetor.
Parecia imprestável, sempre deitado na soleira da porta, observando a movimentação de
mosquitos ao redor do seu pelo, mas era o mais atento e astuto de todos os cinco.
Depois dele, adotamos a Estrela. A única fêmea do grupo foi castrada no primeiro ano.
Ela comandava os demais, até mesmo Trovão.
Havia também o Perverso, uma mistura de pastor com qualquer outra raça igualmente
territorialista. Tinha esse nome pela perversidade com que matava as galinhas do terreiro,
deixando as carcaças espalhadas depois de depenadas, sempre a troco de nada. Levei mais de um
ano para ensiná-lo a não matar as crias da fazenda, mas ele seguia caçando animais desavisados
que se aventuravam dentro dos limites da cerca.
O mais novo era o Sombra. Dei esse nome, pois quando chegou me seguia por todos os
cantos, feito uma sombra. Tinha uma pelagem caramelo e olhos preguiçosos, mas não deixava
que absolutamente ninguém atravessasse aquelas cercas. Era sempre o primeiro a latir ao menor
sinal de intrusos e sempre o último a baixar a guarda.
E dos cinco, o mais agressivo e, até mesmo para mim, perigoso, era o Juiz. A escolha do
nome foi proposital. Quando o vi, olhos sombrios e ar traiçoeiro, me lembrei logo de homens de
beca e sua justiça enviesada. Juiz era fiel a quem o alimentasse como a maioria dos homens da
lei, ou que se diziam defensores da verdade. Nunca me mordeu ou fez qualquer coisa, mas
simplesmente porque eu lhe dava comida.
A justiça era feita por quem tinha a ração que alimenta os cães.
Ao menos ali, eu alimentava os cães.
Dispus as vasilhas cheias de ração na varanda. Trovão aproximou-se, alisando o pelo em
minhas pernas, seguido de Sombra que também adorava fazer o mesmo.
Me sentei na cadeira de balanço enquanto eles se alimentavam e observei os pastos à
frente da propriedade. Havia roçado tudo na semana anterior, mas com a vinda do período das
chuvas, talvez precisasse pegar a roçadeira de volta em pouco mais de duas semanas. As plantas
cresciam com vigor.
Estiquei as pernas no parapeito de madeira da varanda, fazendo a cadeira ranger ao
balançar-se com meu peso.
Minha cabeça não doía mais de ressaca. Era como se eu vivesse num eterno porre, então
sequer me preocupei em tomar um banho. Fiquei ali um tempo, observando os cães e me
afogando do vazio que eram meus dias.
Olhei para a propriedade ao lado e me lembrei dos tempos em que as terras eram
cobertas não por uma plantação de milhos, mas sim os girassóis que Tereza gostava de cultivar.
As flores inundavam as cercanias da sede dos Maldonado, e ao abrir a janela do nosso quarto
tudo o que se via eram seus miolos redondos e laranjas multiplicando-se no horizonte.
Ah, Tereza... Por que tinha que me carregar de tantas lembranças?
Trovão sentou-se aos meus pés, como se também se lembrasse dos tempos felizes, e
continuei ali, mirando a plantação de milho dos Siqueira.
Eles faziam um excelente trabalho com a terra. Se continuassem assim, logo teriam seu
próprio terreno.
De onde estava, vi quando uma silhueta pequenina e pouco servida de curvas atravessou
o pátio da casa ao lado. Ela encaminhou-se até a porteira que dava acesso à plantação, recebendo
o casal de agricultores que voltava do campo.
Não dava para ver muita coisa, pois a distância entre as duas casas era grande. Mesmo
assim, não pude deixar de notar que quando o sol batia em seus cabelos estes reluziam de
maneira gritante. Um amarelo exagerado e excessivamente tingido, o que só a tornava ainda mais
intragável.
Me levantei de uma vez, irritado. Não gostava de mudanças em minha rotina, e a
loirinha já tinha bagunçado com tudo, fazendo alvoroço com os cães e xeretando onde não devia.
Voltei para a sala e lá peguei a camisa usada no dia anterior. Ainda estava suja do
sangue de César. Melhor assim, para que todos vissem que Lucas Maldonado poderia estar meio
bêbado, mas ainda não tinha morrido ao ponto de ouvir desaforos e ficar quieto.
Peguei as chaves do carro e saí mais uma vez, sendo seguido de perto pelos cachorros.
Eu nem me preocupava em trancar a casa, já que eles sempre vigiavam tudo na minha
ausência.
Arranquei com a caminhonete na direção da estrada, pegando o caminho até a usina. De
lá, seguia pela estrada oposta, que dava ao galpão administrativo da fazenda, onde também ficava
a sede da cooperativa criada e gerida por mim e vários fazendeiros.
Desde a morte de Tereza, a usina estava desativada, mas a fazenda Olhos d`Água seguia
sendo a maior produtora de cana da região. Com meus contatos, consegui que toda a produção de
Sibipiruna, que antes era processada na nossa usina, seguisse para uma usina parceira, que moía
as touceiras e transformava tudo em álcool e açúcar. Sem meus contatos e minha gestão, aquele
lugar estava fadado ao ostracismo, já que a cana só tinha serventia se fosse processada e ninguém
ali, além de mim, tinha uma usina disponível.
Encontrei alguns peões conferindo os rodotrens. Eram caminhões extremamente
compridos e pesados, com dois a três reboques acoplados e que transportavam o máximo de cana
de uma só vez para a usina.
Como os caldeirões dos Maldonado foram todos desativados, a produção da região
seguia por uma estrada interna até a cidade vizinha, onde eram processados. Estávamos no início
da safra, então ainda demoraria algum tempo até que as estradas da região ficassem talhadas de
reboques.
Aquela carga do dia era uma sobra da safra anterior, armazenada para ser vendida nessa
época, a preço mais caro.
A cooperativa era o único lugar em que o “antigo” Lucas parecia surgir das profundezas
do meu coma em vida. Ali, eu assumia um modo automático e profissional, conversando com
funcionários, intermediando safras e negociando com agricultores locais.
O dia seria quente, e o rodotrem levantou uma fumaça pesada e marrom ao dirigir-se ao
setor de estoque. Dada a movimentação dos carros, não havia mais sinal da chuva da noite
anterior a não ser pelas latarias dos veículos sujas de barro seco até sua metade.
Adentrei no corredor do primeiro andar, dirigindo-me para minha sala. Era onde eu
ficava quando estava sóbrio, e me sentia sóbrio demais naquela manhã. Se a porta estivesse
fechada, todos saberiam que eu não queria ser importunado.
Antes de conseguir trancá-la, no entanto, fui surpreendido por Salazar que adentrou de
uma vez, feito o touro gigantesco que era. Usava uma camisa xadrez de tons de vermelho e roxo
e uma calça colada às pernas.
— Maldonado! — Me alarmou com sua voz potente. Os cabelos crespos estavam
maiores do que me lembro, sinal de que não nos víamos há dias, e a pele negra tinha marcas da
lida na roça, como todos que ali viviam. — Acabei de vir da usina. Acho que vai querer saber.
— Não — revidei. Sempre que chegava afoito assim, Salazar só trazia más notícias. —
Eu não quero saber.
— Entraram lá outra vez. — Revirei os olhos com a informação. — Funcionários da
fazenda dos Paulistas viram quando um carro saiu essa madrugada de dentro de um dos galpões
abandonados.
— E o que eles fizeram?
— Parece que quebraram tudo do primeiro andar. — Ele me olhava com pesar, mas eu
detestava sentimentos assim, então o ignorei. — Devem ser arruaceiros de fora. Entraram lá,
fizeram a farra, e se mandaram.
— O estrago que fizeram não deve ser maior do que o que o tempo já fez. — Fiz pouco
caso. — Aquele lugar é um cemitério.
Em todos os sentidos.
— Porque você quer, sabe bem disso.
— Ah, não, Salazar. Você também não.
— Está passando da hora de você superar, Lucas.
— Está passando da hora de eu morrer — revidei, amargo.
Me ergui de uma vez, buscando a única que me compreenderia. A bebida.
Salazar suspirou alto atrás de mim e falou:
— Ainda estamos no início da safra. Todos os que trabalhavam na usina são moradores
aqui da região que tiveram que buscar emprego em outro lugar. Dá pra reiniciar as operações em
dois meses, a tempo da colheita.
— O prefeito te mandou aqui?
— Sabe que eu também não gosto dele, mas nesse caso César está certo. A cidade
precisa da usina, e você é o único que pode reativá-la.
Bufei em tom de descaso diante das palavras, já tão ensaiadas por todos. Salazar era um
dos produtores mais prósperos da região. Em tempos antigos, éramos amigos, mas a culpa me
tragou por completo, e nem mesmo as amizades fui capaz de alimentar.
— Para de beber, Luca.
— Não me chama assim, porra! — gritei descontrolado. Salazar me analisava com seu
jeito astuto, ciente de que poderia pisar nas minhas feridas sempre que pudesse.
— A Tereza não ia gostar de te ver assim...
Eu odiava essa frase.
Com todas as minhas forças.
Era a pior forma de querer me tirar da merda, pois sempre que diziam isso para mim eu
só conseguia pensar:
“Eu só estou assim porque não posso mais vê-la...”
— Sai daqui, Salazar.
Antes que ele saísse ou eu o expulsasse, ouvimos uma movimentação vinda do lado de
fora. Aproveitando-se da porta entreaberta, delegado Antenor aproximou-se com aquele ar de
certinho da capital. Sempre tão justo e educadinho, conquistava as senhoras da cidade e era visto
como herói pelos demais.
Não passava de um merdinha pra mim.
— Quem chamou a autoridade? — ironizei, e Antenor me olhou de maneira irritada,
como se não aguentasse me ver.
Era recíproco.
— Ligaram na delegacia pra avisar da invasão à usina. — Seu tom de voz parecia
insinuar que eu tivesse alguma culpa na invasão. — O dono não parece se preocupar com a
segurança do lugar, mas os vizinhos estão cansados.
— Nada aqui é da sua conta, Antenor.
— Quer ser preso por desacato à autoridade? — ele me desafiou.
— Se não me prendeu ontem depois que soquei o prefeito, vai fazer agora? — Na
verdade, se eles me prendessem eu nem acharia de todo ruim.
— É exatamente o que ele quer — Salazar pareceu ouvir meus pensamentos ao dizer.
— Eu vim aqui trabalhar! — rosnei. — Tra.ba.lhar! Vão me deixar em paz ou não vão?
— Você deixou a usina às traças, Lucas! — Antenor iniciava seu discurso ensaiado. Me
sentei, já previamente cansado da ladainha e entornando um gole de bebida. — O lugar está
atraindo a atenção de bandidos que à noite se aproveitam da estrada vazia para fazer baderna e
roubar na região.
— Isso é culpa da prefeitura que não reforça o policiamento. Está falando com a pessoa
errada.
— Se a usina estivesse funcionando, haveria movimentação e segurança pra essas
bandas.
— E agora eu tenho que fazer o seu trabalho? — Tomei mais um gole. — Vai à merda,
Antenor. Tá cheio de moleque em Sibipiruna pra você assustar com seu giroflex.
— Eu vou na usina ver o que eles fizeram — ele me cortou, fingindo não ligar. Odiava a
maneira como ele se fazia de educado na frente dos outros. Eu conhecia a face imprestável do
engomadinho, e ela não era nada boa.
— Não me interessa o que eles fizeram — concluí. — Não quero as pessoas naquele
lugar. Não quero ninguém lá!
— A autoridade aqui sou eu, Lucas Maldonado — Antenor deixou transparecer parte do
que era. — Se não quer ajudar, então não faça nada. Inclusive, não atrapalhe.
— Vá perguntar ao prefeito o que ele vai fazer sobre esses vândalos que você ganha
muito mais — o desafiei. — Não quero saber de vocês, ou dos invasores, ou de qualquer outra
merda que envolva a usina!
— Certo, mas nessa hora você não decide. — Antenor mostrou quem era. Aproximou-se
de mim na pequena sala de escritório e completou, agora com o desafio transbordando por seus
olhos: — Eu só vim te avisar, já que as terras são suas, ainda que não faça o mínimo para
protegê-las.
E saiu, me deixando falando sozinho.
Aquele seria um dia longo.
Melhor pegar mais bebida.
Capítulo 5

Meus padrinhos retornaram da plantação no meio da manhã.


Eu passei todo o tempo sozinha conhecendo o local. Explorando a casa e também o
terreno ao redor.
Havia um riacho a menos de um quilômetro da chácara, e molhei os pés na água gelada
e transparente. A mata ciliar era densa e o Sol não entrava, então me abriguei ali e senti o frescor
sentada em algumas pedras.
Depois, voltei para a fazenda e fiquei esperando pelo casal.
Minha madrinha aceitou ajuda para o almoço, enquanto meu padrinho foi cuidar dos
porcos e galinhas que eles criavam, perdendo-se nos currais.
Eu nunca fui uma garota do campo. Nasci numa cidade metropolitana, da grande região
de São Paulo. Fui filha única de uma mãe solteira. Éramos pobres, e logo minha mãe precisou se
mudar para o Paraná em busca de outras oportunidades. Saltamos de cidade em cidade sem
nunca nos fixarmos de vez. Sem que nunca eu encontrasse um lugar para chamar de lar. Foi
numa dessas moradas que ela resolveu me batizar, chamando o casal de vizinhos que nos
ajudava, os Siqueira.
Em Dom Cervantes, ficamos por mais tempo. Ela tinha parentes distantes — primos
morando ali —, e aquele parecia ser o nosso lar definitivo até que um dia, inesperadamente,
mamãe sentiu fortes dores no peito.
Ela enfartou de maneira fulminante, vindo a falecer em poucas horas. Fiquei sozinha aos
dezessete anos de idade e fui abrigada por vizinhos. Ali percebi que nenhum daqueles parentes
me socorreriam na hora do desespero.
Tive a prova de que era verdade anos depois.
Acabei não entrando na faculdade, pois precisei procurar um emprego para me
sustentar. Trabalhei de caixa de supermercado, que é o que aquela cidade pequena oferecia, e
assim permaneci até a fatídica noite em que tudo mudou.
Por isso, eu não sabia fazer muita coisa.
Não poderia ajudar meus padrinhos com a lida da roça, mas estava disposta a aprender.
Faria o que estivesse ao meu alcance para recompensar o teto que me ofereciam.
— Eu e José cuidamos de tudo com tranquilidade — minha madrinha dizia. — Não
precisa se preocupar. — Ela fazia um arroz branco e eu a ajudava com o frango. — Terminou os
estudos?
— Completei o ensino médio — contei, sentindo-me envergonhada. — Eu tentei curso
superior por duas vezes, mas só consegui particular e não tinha dinheiro para bancar as
mensalidades e outras despesas.
— É uma pena. Lembro quando você e sua mãe eram nossas vizinhas, você era uma
menina muito inteligente.
— Obrigada.
— Se quiser ficar por conta dos estudos, eu e José não conseguimos pagar uma escola,
mas podemos ajudar no que precisar. Já estamos acostumados a fazer todo o serviço. Não se
preocupe em recompensar.
— Ah... — gaguejei, tocada por aquele gesto. — Obrigada, mas não quero incomodar.
Vocês já fizeram muito em me abrigar nessa... situação.
Sofia e José pouco sabiam dos motivos da minha fuga de Dom Cervantes. Ela me olhou
com seriedade, fechando brevemente o cenho e me aguardando continuar:
— Quanto menos vocês souberem, melhor — completei, encerrando assim o assunto.
— Ok. Como você preferir. Está segura aqui.
— Eu sinto que sim — disse com sinceridade. — Prefiro que as pessoas da cidade não
saibam meu sobrenome ou os motivos que me fizeram vir pra cá.
— As pessoas daqui são curiosas, mas é só inventar uma historinha triste que todos
acreditam — ela minimizou.
— Podemos dizer que fiquei sozinha depois que mamãe morreu e vocês decidiram me
abrigar, o que é uma verdade.
— Isso basta. Vou avisar o José, mas acho que não precisa se preocupar com isso.
Moramos ao lado do viúvo Maldonado. As pessoas dão a vida, mas não se aproximam dessas
terras. Ninguém vem pra essas bandas. Está segura.
— O homem que vi numa caminhonete vermelha é viúvo? — Não gostaria de deixar
transparecer a curiosidade em minha voz, mas foi mais forte do que eu.
Então ele já foi casado?
Teria filhos?
Vivia sozinho naquele casarão?
Apesar do corpo bem definido e cheio de músculos, ficou visível em suas feições que
ele era alguns anos mais velho.
Senti uma comichão na pele e um arrepio na espinha.
— Lucas Maldonado — Sofia disse de uma maneira eloquente, como se anunciasse um
rei. — É o dono de todas as terras da região. Inclusive, da usina desativada que você viu no
caminho.
— Ele mora sozinho? — Remexi o frango com afinco, fingindo desinteresse na
conversa, como se falasse de uma notícia do jornal.
Só que Sofia era esperta, e me estudou com seus olhos de águia antes de advertir:
— Não se aproxime dele, Gabriella.
— Nem se eu quisesse. — Na verdade, eu queria. — Aquele bando de cachorros
raivosos parece estar disposto a matar qualquer um que cruze a cerca.
— É como ele prefere viver. Eu e José respeitamos esse jeito do senhor Maldonado. Ele
quer distância. Então mantemos distância. Se você respeita o espaço dele, é uma boa pessoa.
— Mas por que ele é assim? — Eu gostaria muito de saber.
— Dizem que foi depois da morte da mulher. — A panela de pressão chiava, e Sofia a
retirou da chama para resfriá-la na torneira. — Antes, ele era amigo de todos e um homem da
comunidade, mas depois do assalto, mudou.
— Assalto?
Ela voltou a me fitar, percebendo minha gigantesca curiosidade.
— Eu e José não morávamos aqui na época. Quando arrendamos esse pedaço de terra,
Lucas Maldonado já era o homem que é hoje. Por isso, não fazemos perguntas ou nos
interessamos em saber. A única coisa que sabemos é que a cidade o odeia desde então.
— Por que?
— Não sabemos se o que dizem é verdade, então é melhor não espalhar mexerico. Para
nós, não importa. E acho que para você também não.
Permaneci muda, entendendo que não arrancaria mais qualquer informação dela.
Aquilo, ao invés de aplacar minha curiosidade, só servia para me deixar ainda mais ansiosa. Da
janela da cozinha via-se parte do terreno vizinho, e acabei sendo traída por minha curiosidade ao
observar o lugar.
— A única coisa que precisa saber é que aqui é seguro.
— É só o que eu preciso — falei esperançosa.

Os dias que se seguiram foram calmos e muito semelhantes ao primeiro.


Eu acordava de manhã já sozinha na casa pequena, com meus padrinhos na lavoura. Por
dois dias tentei acompanhá-los, mas parece que eu mais atrapalhava do que ajudava. Preferi me
mostrar útil na casa, arrumando-a na ausência deles e cuidando dos preparativos da comida antes
da chegada de Sofia, que gostava de cozinhar tudo, mas aceitava minha ajuda.
Depois do almoço eles se recolhiam por um tempo e então voltavam a sair. Às vezes,
iam para a cidade. Em outras, voltavam à plantação para finalizar alguma coisa que ainda
precisava ser feita.
Eu preferia me manter na fazenda, pois ainda temia estar sendo seguida. O único lugar
que me oferecia segurança era aquele pedaço de chão, fosse pela tranquilidade dos moradores; ou
por sua geografia, possibilitando que qualquer pessoa que chegasse fosse vista ao longe passando
pelas pedras gigantescas da estrada; ou por conta dos cachorros vizinhos, que latiam a qualquer
sinal de movimentação.
Lucas Maldonado continuava uma incógnita. Sequer o vi nos dias que se passaram. Sei
que saía no meio da manhã pelo ladrar dos cachorros e retornava tarde da noite, quando se ouvia
sua caminhonete atravessando o pasto com motor potente.
Não sei o que fazia até tão tarde na rua, mas Sofia e José nunca quiseram me contar.
Também não contei a eles como foi meu primeiro encontro com o viúvo. Que ele me
deixou na estrada sozinha e na chuva, e que qualquer que fossem os boatos que motivavam o
ódio dos moradores de Sibipiruna no homem talvez fossem reais, dada minha interação com ele.
Passaram-se duas semanas e eu me sentia mais segura, quase acreditando ter fugido de
vez.
Acontece que eu não era burra, e sabia que as pessoas que estavam atrás de mim eram
espertas e, principalmente, pacientes. Eles não desistiriam tão fácil.
Estava decidida a permanecer o máximo de tempo no sítio quando uma certa tarde
minha madrinha me chamou animada, vestida com um conjuntinho azul e uma bolsa a tiracolo:
— Vamos comigo na cidade? Você precisa sair desse sítio.
— Não, eu... me sinto bem aqui.
Ela fez uma careta, negando com a cabeça e não aceitando minha recusa.
— Vamos! Vou fazer as compras do mês e preciso de ajuda para carregar.
— Ah, então eu vou.
Ainda que temerosa, decidi acompanhá-la. Pegamos seu carro pequeno e empoeirado e
seguimos na estrada de chão.
Pela primeira vez, fiz de volta o trajeto tortuoso e demorado que havia feito à pé em
minha chegada. Me pareceu igualmente longe de dia, só que mais quente e assolador.
Chegamos em Sibipiruna e a acompanhei até uma vendinha pequena, que parecia ser a
única do vilarejo. O dono, que ela chamou de Pintor, conversava animadamente sobre todos os
acontecimentos dos últimos dias, e perguntou por mais de três vezes o que eu fazia ali.
Percebendo minha ansiedade com tantas perguntas, Sofia disse que eu estava ali para
ajudá-la e ao marido, e que era filha de uma conhecida antiga.
Aquilo deixou o Pintor satisfeito, que voltou a fofocar sobre todos de Sibipiruna.
Ele contou de um casamento à vista. De uma mulher que flagrou a traição do marido
atrás da igreja, dentro de um carro, e de uma briga que aconteceu dias antes dentro do bar da
praça principal. O protagonista dessa fofoca foi Lucas Maldonado, e talvez por isso foi a única
que me despertou interesse.
— Deu um soco no prefeito sem motivo algum! — Pintor falava, e algumas pessoas ali,
que pareciam não ter nada para fazer, aproximaram-se contando suas versões.
— O prefeito também não é lá um santo — alguém opinou. — Esse buraco da via
mesmo. Quando vai tampar?
— Político nenhum presta — uma mulher exclamou. — Mas o viúvo Maldonado não é
lá flor que se cheire.
— Aproveitador e assassino! — uma velhinha toda coberta de preto, delatando ser
viúva, disse de maneira eloquente. — Aquele lá nunca me enganou.
— Assassino? — exclamei chocada, arregalando os olhos e fitando a velha.
Eu esperava qualquer coisa daquele homem, mas assassino?
— Vem, Gabriella. Vamos embora — minha madrinha me chamou, séria.
A segui a contragosto, pois a velhinha que ignorava o calor escaldante do local com
aquelas vestimentas quentes continuava a despejar xingamentos e pragas ao vizinho dos meus
padrinhos.
Sofia terminou de pagar as compras às pressas e me fez segui-la para a rua, ainda sem
qualquer resposta para aquela revelação.
— Não acredite no que a dona Fortunata diz — ela aconselhou bem baixinho enquanto
colocávamos as coisas no Uno velho. — Ela é do tipo mexeriqueira, e que adora espalhar
inverdades por aí. Passa os dias na igreja e julga todos que não vivem como ela.
Concordei em silêncio, me lembrando de senhoras assim em Dom Cervantes. Gente
mesquinha, que me virou as costas e ainda me julgou quando tudo aconteceu.
— O que essa gente diz não deve ser levado em conta — Sofia concluiu.
— Certo.
— Vem. Quero passar na casa de uma amiga.
A acompanhei por uma das poucas ruas de Sibipiruna. Seguimos reto até uma estrada de
chão, parando em uma casa humilde com inúmeras plantas na varanda e uma cadeira de fio
parada na calçada. O portão estava aberto, e Sofia entrou batendo as mãos e chamando:
— Ô de casa!
Logo uma outra mulher surgiu. Caminhava com dificuldades, e sentou-se no beiral da
varanda, abrindo um sorriso.
— Sofia! Quanto tempo!
— Pintor me falou que esteve internada.
— A perna de novo! — A mulher apontou uma perna inchada e com talas enfaixadas.
— Mas “vamo indo”!
— Essa aqui é minha afilhada. Gabriella. — Sofia me apontou com simpatia.
— Muito prazer, Gabriella. Meu nome é Margarida.
Margarida e Sofia sentaram-se na varanda e dispararam a conversar. Me sentei ali ao
lado delas, entediada por não compreender nada do que diziam já que desconhecia as pessoas
citadas.
Andei um pouco distraída na varanda, e logo notei uma estante escorada em um canto
com tijolos servindo de pés e mais plantas alojadas em sua parte mais alta.
No seu interior, vi inúmeros livros e que chamaram minha atenção.
Tinha romances, clássicos e algumas apostilas de colégio.
Eu sempre adorei ler, mas precisei fazer escolhas quando mamãe morreu, então nem ao
menos esse passatempo tive nos últimos anos. Os poucos livros que juntei, abandonei em minha
fuga de Dom Cervantes.
— Sua afilhada gosta de ler? — Escutei Margarida questionar e, ao me virar, vi que as
duas me observavam.
— Eu adoro — contei.
— Quantos anos tem, mocinha? — ela perguntou.
— Vinte e quatro.
— E terminou os estudos?
— Fiz o ensino médio.
— Aí tem alguns livros que eu gostava de ler e umas apostilas do meu filho de quando
estudava para concurso. Ele acabou dedicando-se à fazenda e depois à vida política, mas
terminou a faculdade.
— O Salazar é um excelente filho — Sofia elogiou, referindo-se ao filho da outra.
— Casado, encaminhado... Nunca me deu problema. — Ela se voltou para mim mais
uma vez. — Pode pegar os livros que quiser. Ninguém aqui usa mais.
— Eu posso? — perguntei maravilhada.
— Sim! — ela insistiu. — As apostilas talvez estejam um pouco desatualizadas, mas
tem muita coisa aí. — Mirei as prateleiras cheias de livros e de lá puxei uma apostila de
Português. Tinha também Direito, Filosofia e outros conteúdos.
— Lá dentro eu tenho alguns livros da época que lecionava na cidade vizinha. Posso te
dar também.
Ela sumiu arrastando a perna enfaixada para dentro da casa e eu fiquei lá fora, junto de
Sofia. Quando retornou, trazia uma pilha de livros e apostilas. Havia romances e cadernos em
branco. Tudo foi despejado em minhas mãos, e agradeci por finalmente ter algo com que me
ocupar no sítio.
A mulher nos serviu café com bolo e contou um pouco da vida do filho.
— Há dois dias, Salazar e um primo tiveram que entrar no meio da mata atrás de uns
vagabundos que estão fazendo arruaça pelas fazendas.
— Continuam invadindo as chácaras? — minha madrinha perguntou, ciente do assunto.
— Sim. Invadiram a usina há duas semanas, e a casa dos Ribeiro no domingo enquanto
eles estavam na missa. A cidade está um caos, comadre Sofia.
— Só por Deus que nunca chegaram perto lá do nosso sítio.
— Porque ninguém é doido de se meter com o viúvo Maldonado. Aquele lá é capaz de
matar quem invadir as terras dele.
Mais uma vez o nome daquele homem sendo dito com certa reverência e assombro,
como se ele fosse um monstro capaz de executar inimigos.
Me remexi inquieta e curiosa, e continuei ouvindo a conversa.
— O Lucas que eu e José vemos todos os dias não se parece com esse homem que a
cidade toda teme — Sofia o defendia.
— Só que ele existe — Margarida disse com ar sábio. — O Lucas generoso e o Lucas
implacável. Vi aquele menino virar homem, e conheço cada um deles.
Observei a mulher, tentando pensar em maneiras de fazê-la falar mais. Minha
curiosidade incontrolável disparou a pergunta antes que eu pudesse processar o que acontecia:
— Uma mulher na vendinha falou que ele é um assassino. Por que ela disse isso?
Margarida me olhou. Parecia ser alguém transparente e respeitada, daquelas que não
precisava mentir ou omitir as coisas de ninguém.
Talvez por isso eu soubesse que ela responderia.
Sem julgamentos, sem tomar partido, só dizendo as palavras que ecoariam em minha
mente pelos dias seguintes:
— Dizem que ele matou a esposa.
Capítulo 6

As luzes adentravam as janelas do terceiro andar do prédio da usina, e Tereza despia-se


lentamente à minha frente, dançando e rebolando de maneira hipnotizante.
O expediente já tinha acabado, mas ela quis permanecer mais tempo. Primeiro,
trabalhando com os últimos detalhes da colheita. Segundo, para darmos nossa usual... escapada.
Eu não permitia namoro e safadezas entre os funcionários nos prédios da usina de cana,
mas entre nós era diferente. Tereza era minha mulher e... bem... nós éramos os donos.
Os beijos que ela me dava eram pudicos e recatados, como os primeiros que trocamos
na adolescência, quando eu estava com quase dezoito e ela tinha seus dezesseis anos. Ela gemia
em meus braços quando escutamos cacos de vidro se quebrando no chão.
Me ergui alarmado, olhando o relógio. Passava de sete da noite e o local deveria estar
vazio.
— Eu vou descer para ver o que está acontecendo — falei para ela, acalmando-a.
Mas Tereza não parecia preocupada. Só eu me sentia ansioso e com o coração aos pulos.
Meu peito estava apertado, como um mau presságio, e minhas mãos suavam enquanto eu descia
as escadas.
Ao chegar no térreo, me deparava com uma confusão em imagens distorcidas.
Dois homens quebravam tudo à sua volta, atirando cadeiras e pastas por todas as
direções. Eles gritavam como loucos e quebravam os vidros das janelas, os computadores e o que
mais pudessem encontrar.
Eu tentava me aproximar, mas eles estavam ensandecidos. Transtornados. E tudo que
ficava à frente dos dois virava vítima de sua fúria.
Um deles tinha olhos e cabelos bem escuros, uma tatuagem aparecendo em seu pescoço
e uma cicatriz de corte no braço, enquanto o outro era mais baixo e com uma marca profunda em
uma das bochechas. Ao me verem, assumiram uma postura diferente. Tornaram-se frios.
Assassinos.
O de rosto talhado ergueu um braço em minha direção. Em suas mãos, vi o brilho de
uma arma. E então, um estampido surdo.
Me preparei para sentir a dor do disparo, mas ela não veio. Em seu lugar, vi o corpo de
Tereza caindo à minha frente. Ensanguentado.
E ao invés de socorrê-la ou mesmo correr atrás dos bandidos, eu paralisei.
Fiquei ali alguns segundos, vendo-a agonizar.
Quando finalmente ergui a mão para ampará-la, foi com assombro que vi uma arma
entre meus dedos. Eu queria tocá-la. Dizer que tudo ficaria bem e ela sobreviveria, mas agora era
eu quem apontava uma arma em sua direção.
Tereza me olhava com pavor. Seu corpo não estava mais nu, mas trajado com as roupas
que ela usava quando a vi pela primeira vez.
Não era mais a Tereza adulta, mas a jovem menina que conheci quando eu também não
passava de um moleque sem barba.
A menina suplicava por clemência, mas minhas mãos tinham vida própria. Eu tentava
controlar meus músculos, mas eles ignoravam meus comandos. Vi com espanto meus dedos
soltarem a trava do revólver, por mais que minha mente desejasse fazer diferente.
Eu só queria protegê-la.
— Eu só quero protegê-la — murmurei, diante do seu olhar apavorado.
— Por favor, não me mate — ela implorava.
— Eu só quero protegê-la...
E eu atirava.
Eu só queria protegê-la...
Despertei do pesadelo sentindo a garganta seca com os próprios gritos. Meu corpo
tremia em descontrole, e o lençol estava grudado em minha pele molhada de suor.
Foram minutos até que a respiração se controlasse. Até que as imagens parassem de
invadir minhas retinas e que o gosto amargo na boca desaparecesse.
Era sempre o mesmo pesadelo.
Há quatro anos.
Eu só queria protegê-la...
— Terezaaa! — gritei descontrolado. Enfurecido e injustiçado.
O corpo dela ainda quente rebolando no meu. Seu sorriso discreto e cheio de pureza...
Era tudo tão real e, no segundo seguinte, deixava de existir.
Eu a matei. Nas duas vezes.
Certo de que o sono não voltaria, me levantei. Arrastei o corpo até a mesinha que ficava
no outro extremo do quarto, me servindo da garrafa que já ficava ali para noites assim.
O uísque desceu doce em minha garganta se comparado ao amargor das lembranças, e
aquilo me anestesiou.
Era sempre assim.
Ele me anestesiava, mas nunca fazia a dor passar por completo.
Aquela dor nunca passaria.
Fitei pela janela a madrugada que ia escura.
Com meus gritos, os cachorros despertaram e agora latiam enlouquecidos no pátio.
As notícias de Salazar de que novas invasões aconteceram em fazendas vizinhas me
deixaram assim.
Alarmado.
Talvez isso justificasse a volta do pesadelo recorrente, já que há semanas eu não
sonhava com aquela noite.
Desci as escadas depois de constatar que minhas mãos já não estavam tão trêmulas, ou
que minha mente não parecia tão traiçoeira, capaz de fazer eu me arremessar dos degraus diante
de uma imagem qualquer de Tereza que surgisse em minha frente.
Abri a porta da entrada e assobiei pelos cães, acalmando-os. Eles vieram todos,
cheirando e lambendo minhas mãos, como se quisessem se certificar de que estava tudo bem.
Até mesmo Juiz parecia preocupado.
Sem sono e sentindo todos os músculos doerem, decidi permanecer na varanda.
Devia ser por volta de duas da manhã, e o vale onde estava localizado o sítio estava no
mais completo breu.
A não ser por uma das janelas dos Siqueira.
Olhei a luz ao longe, intrigado.
Sofia e José tinham o costume de dormir cedo, como todos que moravam na roça, e
como eu conhecia os cômodos daquele casebre, calculei que as luzes vinham do segundo quarto,
o de hóspedes.
Só poderia ser a loirinha...
Duas semanas se passaram e ela seguia abrigada na residência vizinha.
Questionei com José Siqueira quem era a garota, e ele pouco disse. Contou que era
afilhada deles e que precisava de abrigo depois que a mãe morreu. Pela primeira vez, não
pareceu ser muito sincero, o que despertou meus sentidos.
Aquela garota era um chamariz para problema, eu poderia sentir.
Não gostava da sua presença, e detestava vê-la rondando as cercas que dividiam as
propriedades.
Afundado em meus pesadelos e dores, a ignorava como fazia com todos os demais
habitantes da Terra. Àquela hora da noite, no entanto, a curiosidade me pegou desprevenido.
O que a loirinha fazia acordada àquela hora?
Provavelmente passava as noites insones, talvez no celular, enquanto durante o dia os
padrinhos faziam todo o trabalho de lida do campo. Nunca a vi acompanhando Sofia e José na
plantação, então talvez fosse uma aproveitadora da bondade do casal humilde.
Mas aquilo não era problema meu. Alisei os pelos escuros de Trovão que havia deitado
aos meus pés e desviei os olhos, mirando a noite negra mais uma vez.
Salazar havia me pedido que o acompanhasse em uma busca na mata pelos vândalos que
cometiam pequenos furtos nos sítios, mas recusei. A possibilidade que aqueles invasores de
agora fossem ligados aos que invadiram a usina naquela fatídica noite do passado me
assombrava constantemente.
Eu não suportaria viver tudo aquilo outra vez.
— O sono escafedeu-se como aquele porco-do-mato que vocês perseguiram mês
passado — falei com os cães. Eram minha companhia. — O que acham de uma caminhada?
Os animais responderam com latidos animados.
Todos que moram na roça sabem que caminhar pelos pastos no meio da noite é
arriscado. Há cobras e outros animais peçonhentos só esperando por um descuido seu.
Naquele momento, eu procurava o descuido.
Às vezes, minha parte perversa fazia isso. Testava a segurança da vida, quase
implorando para que algo desse errado e eu morresse.
Sentir a adrenalina pulsando forte nas veias parecia me trazer de volta, e eu não me
sentia tão... morto.
Era fácil desafiar a vida quando se percebia o pouco que ela poderia valer.
Enquanto os cães iam na frente, farejando e correndo animados, eu simplesmente
andava a esmo. Vaguei pelo pasto, caminhando devagar, e ao chegar no início da estrada, andei
até a primeira porteira localizada pouco antes das imensas pedras que protegiam o vale.
Aquele lugar era uma fortaleza, e mesmo assim não consegui salvá-la.
Andei.
Andei e andei. O nervosismo e a culpa me assolavam enquanto eu andava, pois estava
sóbrio, e ficar sóbrio era ruim. Eu deveria ter pego o uísque. Com ele, a caminhada seria menos
lúcida, e naquele momento me doía enxergar com clareza a noite e as estrelas caindo em cascatas
no céu.
Na volta do trajeto, passei perto dos limites da cerca dos Siqueira, parando por alguns
segundos para observar a propriedade.
As luzes do quarto de hóspedes ainda estavam acesas e agora, mais de perto, consegui
ver uma silhueta miúda por trás da cortina.
Ela parecia paralisada. Em choque, e eu seguia ali também, meio sem reação.
Não pensei que estava sendo observado e nem julguei que ela pudesse me ver, já que a
noite ali era de um breu absoluto.
Ainda assim, ela parecia me ver.
Nitidamente.
Por completo.
E o grande problema em tudo isso é que, quando acordei daquele pesadelo e decidi
descer as escadas e depois caminhar, eu estava nu.
Capítulo 7

Ver um homem todo nu, caminhando em um pasto à noite e rodeado de uma matilha de
cães jamais estaria nos sonhos eróticos de uma mulher.
Agora, povoava meus pensamentos mais obcenos.
Lucas parecia integrar-se ao bando. Como um selvagem. Um ser sem racionalidade e
desprovido de qualquer apreço pela vida.
Aquilo era visceral. Uma beleza pura e sem exibicionismos.
Era real. Um homem real e... admirável.
Claramente ele seria o líder da matilha, andando sempre à frente dos outros e expondo-
se aos perigos.
Sem a proteção de um pelo grosso ou roupas, parecia o mais vulnerável.
Só parecia.
Seu corpo era ainda mais intimidador daquela forma, e eu o seguia hipnotizada, incapaz
de olhar em qualquer outra direção.
Não dava para ver muita coisa, claro. A noite naquele vale era a mais escura e silenciosa
que já presenciei, mas vi quando ele estava na varanda, e lá as luzes mostraram seu corpo com
relativa clareza.
Mesmo à distância, vi os contornos de coxas torneadas, o tônus firme da barriga
trincada, e o...
Gabriella, não faça a mulher pudica agora! Você sequer é virgem!
Só que ele era intimidador. Quase assustador.
Tinha um... volume impressionante.
E sim. É claro que eu o vi, mesmo à distância.
Obviamente foi o primeiro lugar que mirei quando percebi que estava nu.
Quem é o maluco que sai pelado no meio da madrugada vagando pelo pasto junto de
cinco cachorros?
Ao que parece, Lucas Maldonado era essa pessoa.
Ali, ele se mostrou sem medo de nada. Ao mesmo tempo, me soou um pouco
desamparado, como se buscasse algo que perdeu de sua vida naquela pequena caminhada.
Não conseguia ver os contornos do seu corpo no meio do pasto, mas sabia exatamente
onde estava pela orientação dos barulhos dos cães. Eles não latiam, mas passavam com o corpo
arrastando-se pela vegetação, o que ajudava a localizá-los, além do brilho da noite que batia
naqueles de pelo mais claro.
Foi assim que percebi a aproximação dele da cerca que dividia as propriedades.
E mesmo ciente de que ele estava perto, não me escondi. Continuei de pé ao lado da
janela, exatamente como eu estava desde que ouvi os cachorros latirem, atrapalhando a minha
leitura e chamando minha atenção.
Fiquei tão empolgada com os livros dados por dona Margarida que nem vi a noite
avançar. Já era madrugada e eu seguia imersa em palavras quando fui atraída pelo peladão dos
pastos.
Lucas me viu. É claro que viu.
E eu não me afastei.
Jamais me afastaria.
Queria vê-lo de perto.
Bem de perto.
Tão perto ao ponto da minha imaginação ser enfim alimentada pela realidade.
Céus, estou maluca!
Levei uma mão à nuca, aplacando o calor que surgiu ali.
Lucas ainda me olhava, parecendo furioso com o fato de eu observá-lo.
O que é? Da próxima vez que for caminhar pelado por aí, tente não fazer tanto barulho
com os cachorros.
Continuei fitando-o. Quase o desafiando.
Lucas me olhou e então virou-se, do nada.
Não vi se tinha uma bunda durinha, pois estava escuro, mas percebi que andava como
um rei, ainda que sem roupas.
Minha respiração ainda estava suspensa quando ele retornou para o sítio vizinho.
Quando subiu os degraus do alpendre com as luzes acesas, voltando a ficar com o corpo
visível para mim, assobiou baixo dispensando os cães, que foram abrigar-se em todos os cantos
da varanda.
Eu não respirava quando ele se voltou, olhando exatamente para o ponto em que eu
estava.
Paralisada.
E então, em um toque sutil à testa, ele me reverenciou. Como se tocasse a aba do seu
chapéu imaginário, curvou-se levemente em um cumprimento e então entrou novamente na
residência, sumindo na escuridão.
Não consegui dormir tão facilmente.
As informações dadas por dona Margarida sobre o nosso vizinho misturavam-se com a
imagem que tive dele nu, no meio da madrugada.
Eu gostaria de montar um quadro exato de Lucas Maldonado, mas tudo o que recebia
eram peças confusas e desconexas.
No dia seguinte, acordei com uma sensação de ressaca. Ainda tinha minha mente
povoada por imagens do homem caminhando e me encarando no meio do pasto. Dona Margarida
disse que ele matou a esposa. Esse era o boato espalhado aos quatro cantos de Sibipiruna.
Ele me parecia sim capaz de matar alguém, mas a própria mulher?
Sofia não acreditava nisso. Passou o trajeto de volta me convencendo de que aquele era
um boato infundado. Ela insistia em dizer que Lucas Maldonado amava a mulher, e que tudo o
que aconteceu foi uma fatalidade.
Eu ainda não sabia o que de fato aconteceu, pois ninguém se dispôs a me contar. Os
segredos de Lucas Maldonado eram proibidos para todos.
Pela manhã, ainda afetada pela visão da noite anterior, tentei me distrair nos afazeres do
sítio.
Cuidei de toda a casa e ajudei no preparo do almoço. À tarde, resolvi descansar voltando
para os livros.
Me sentei em uma rede na varanda, lendo e apreciando os sons da mata do riacho. O
clima era gostoso e ventava suavemente enquanto eu me balançava.
Acabei me distraindo mais uma vez com o terreno do viúvo.
Havia um pé de caju carregado de frutos do outro lado da cerca no auge da sua
produção, fazendo os frutos caírem ruidosos no pasto denso.
Eu amava cajus, e aqueles eram os maiores e mais amarelos que já vi em toda a minha
vida. Caíam em explosões barulhentas o dia inteiro, chamando atenção.
Tentei ignorar a tentação dos cajus como eu ignorava o vizinho peladão da madrugada.
No meio da tarde, José me chamou para acompanhá-lo na cidade. Estava animada com
os livros que ganhei no dia anterior, e aceitei fazer-lhe companhia.
Saímos na velha caminhonete simples deles. O casal tinha um Uno e a caminhonete para
os trabalhos da roça. Estavam prestes a colher a safra do milho, que parecia não coincidir com os
demais produtores dos arredores, em sua maioria plantadores de cana.
José foi à cidade para conversar com alguns peões que o ajudariam na colheita, e me
deixou à vontade para conhecer a região enquanto ele negociava.
Não havia muito o que explorar, mas eu gostava de ir ao pequeno vilarejo. As pessoas
eram mais receptivas que em Dom Cervantes, e o clima seco e quente parecia forçar todos a
ficarem sempre em suas calçadas, apreciando o parco movimento. Assim, eu via senhoras
tricotando preguiçosas, crianças jogando bola e homens gritando ao redor de uma sinuca no bar à
frente da praça da igreja.
Estava entretida em um grupo de crianças na pracinha quando um desconhecido
aproximou-se. Vestia-se com roupas claras e bem passadas, e os sapatos reluziam de tão
encerados, contrastando com todo o cenário ao redor.
— Boa tarde...? — O estranho chegou cheio de interesse.
— Oi. — Abri meu melhor sorriso.
— Nunca te vi aqui em Sibipiruna — ele comentou, me analisando dos pés à cabeça. Eu
usava uma calça jeans e uma camiseta branca. Os cabelos, que já havia me habituado a vê-los
loiros, estavam comportados em uma trança, pois o calor ali me impedia de deixá-los sempre
soltos.
— Eu moro com os Siqueira.
— Ah! — Ele pareceu ter um brilho diferente nos olhos ao saber disso. — É a famosa
afilhada de Sofia e José?! Muito prazer. César Maldonado. — E me estendeu a mão sem calos ou
arranhados.
Mais um Maldonado para me importunar?
Juntei as sobrancelhas, observando-o melhor e tentando encontrar traços semelhantes a
Lucas, mas eles eram completos opostos.
Enquanto o viúvo tinha grossas sobrancelhas, cabelos e olhos quase negros, e feições de
um nórdico selvagem com seu nariz meio torto, César tinha traços mais leves, com cabelos
levemente cacheados, um olho de tom amendoado e um nariz fino e alinhado.
— É algum parente do viúvo que mora ao lado dos meus padrinhos?
— Cunhado — ele respondeu de pronto. — Ou ex-cunhado, já que não temos mais essa
ligação.
— Sua irmã é a falecida... Sinto muito.
— Tudo bem. É algo que já superei depois de quatro anos.
— O seu cunhado parece ainda não ter superado.
Falei demais.
— Não superou — César não pareceu se ofender com o que eu disse. Abriu um
sorrisinho meio de lado, e então continuou: — E nem posso culpá-lo, levando-se em conta como
tudo aconteceu.
Eu me corroía de curiosidade, e aquela parecia ser a pessoa mais próxima de me dizer o
que aconteceu com Lucas Maldonado no passado.
Resolvi sondar:
— Como era o nome da sua irmã?
— Tereza Maldonado. — Ele deu um suspiro longo, como se puxasse memórias na
mente. — Era a mulher mais linda dessa cidade. — Parou. Me olhou. — Obviamente porque
você não morava aqui.
Foi uma... cantada?
Que descarado.
— Bem, eu... Nem sei quanto tempo devo ficar em Sibipiruna — fingi ignorar a cantada
barata.
E era uma verdade. Cheguei naquele lugar fugindo de outras pessoas. Forçada. Ali ainda
não era um lar. Temia pelo dia em que me encontrariam e eu precisaria fugir novamente, dessa
vez sem destino certo ou padrinhos para me amparar.
Eu sequer planejava meu futuro, pois mesmo as próximas semanas eram uma incógnita.
— Está só de passagem? — ele perguntou visivelmente interessado.
— Sim. — Parei por um segundo, reconsiderando. — Na verdade, ainda não sei. Minha
mãe faleceu e fiquei sozinha no mundo. Então, Sofia e José me acolheram. Gosto deles, mas não
quero incomodá-los por muito tempo.
— Tenho certeza de que eles também gostam da sua companhia. — Uma nova estudada
em meu corpo, como se me escaneasse. — Só espero que a vizinhança não a deixe assustada. —
Ao dizer isso, ele apontou para o outro lado da rua, onde uma caminhonete vermelha e bem
familiar estacionava.
Lucas desceu pisando duro. As botas de couro escuro massacravam o cascalho solto na
rua malcuidada. Usava uma calça jeans preta e extremamente gasta. Havia um rasgo em cada
coxa torneada, e um cinto grosso afivelado na cintura completando a peça. A camisa branca
estava mais amarrotada do que a que vi no dia em que o conheci debaixo daquela chuva, e o
chapéu de abas dobradas era mais marrom e encardido que o próprio asfalto da cidade.
O engomadinho à minha frente nem chegava aos pés do homem bruto que se
encaminhava em direção ao bar, e olhe que nunca fui do tipo que prefere os... chucros.
Ao atravessar a rua, ele passou por nós. Perdeu míseros dois segundos fitando César e
então seus olhos caíram em mim.
Era muito bonito, apesar de sua aparência gritar desordem, como se quisesse afugentar a
todos. Tinha olhos muito escuros, de um castanho quase preto, e os cabelos eram tão grossos que
a poeira assentada neles possibilitava contar os fios um a um.
Me lembrei imediatamente da noite anterior, em que o vi sem roupa alguma vagando
pelo pasto. Meus olhos, traiçoeiros, desceram exatamente para onde não deviam.
Se ele percebeu não sei, pois continuou me olhando e então limitou-se a questionar:
— Se conhecem?
Era a segunda vez que ouvia sua voz.
E pela segunda vez, senti o mesmo arrepio com o tom rouco e grave.
— Estamos nos conhecendo nesse instante — César falou. Foi sutil, mas percebi uma
diferença em sua voz. Pareceu mais seca e agressiva.
Lucas quase juntou as sobrancelhas ao nos analisar. Mediu nossas distâncias e então
estralou a língua no céu da boca, fazendo pouco caso.
Sem um “boa tarde” ou qualquer outro cumprimento, afastou-se, deixando-nos sozinhos
novamente. César soltou uma risada nervosa e eu não soube como agir, ajeitando a trança para
trás do corpo e remexendo as mãos, incomodada.
— Não liga para ele — César falou. — Meu ex-cunhado é assim com qualquer ser vivo.
Menos os seus cachorros.
— Ah, eu já percebi que ele gosta dos cães — comentei, ainda com os olhos presos no
fazendeiro de botas gastas que adentrava o bar escuro sem olhar para trás. Sem conseguir mais
me controlar, perguntei: — O que aconteceu com sua irmã?
César desfez parte do sorriso amistoso, me estudando como se quisesse saber minhas
intenções antes de contar, agora com a voz mais baixa e triste:
— Um assalto na usina da empresa. Lucas trabalhava até mais tarde, pois era época de
alta produção, e um dia Tereza foi visitá-lo depois do expediente. — Ele mirou o chão, como se
custasse me olhar. — Estavam só os dois no prédio quando criminosos desgraçados invadiram o
lugar armados. No meio da confusão, minha irmã levou um tiro no peito.
— Eles a mataram?
Ele negou com a cabeça. Vi seus olhos assumirem um tom meio sombrio, e que eu
jamais julguei ver do ser engomadinho.
— Ela não morreu no assalto. Lucas, incapaz de conviver com minha irmã acamada, a
matou depois. — Havia dor e ódio quando ele ergueu os olhos para mim, deixando uma lágrima
rolar. — Ele a matou com uma seringa de ar.
Dei um passo para trás, chocada.
Meu Deus!
— Mas... mas... não é possível.
— Pergunte para qualquer um da cidade e todos vão concordar comigo.
— Mas se ele a matou, não deveria estar preso?
— Eu nunca consegui provar que ele aplicou a seringa. Lucas diz que encontrou minha
irmã já caída, e que foi ela quem deu fim à própria vida. — Meu Deus! — Acontece que minha
irmã ficou com sequelas do assalto. Ela não conseguia mover braços e pernas. Era impossível
que aplicasse a seringa em si mesma.
Eu estava chocada.
A história era muito pior do que imaginei.
Lucas Maldonado seria capaz de matar a própria mulher que estava totalmente indefesa?
Era cruel demais.
Mas justificava o vazio que vi em seus olhos.
Somente um homem sem qualquer valor à vida seria capaz disso.
Ainda imersa em pensamentos, não percebi que César agora me observava. Ele esperou
alguns segundos, como se deixasse eu me habituar com a história, antes de dizer:
— Mas não precisa ficar assombrada com essa história. Sibipiruna é uma cidade segura.
— Será mesmo? Acabou de me contar a história de um assalto a mão armada. Ontem, vi
algumas pessoas comentarem sobre vândalos que têm invadido fazendas da região.
— Isso acontece em todo lugar. — Ele deu de ombros.
— Mas aqui é tão pequeno. — Apontei para as ruas pequeninas. — Mal tem asfalto em
todas as esquinas, e a rua principal tem um buraco imenso de uma obra inacabada desde o dia
que cheguei. A impressão que dá é que a falta de segurança não é o único problema daqui.
Ele alçou uma sobrancelha, parecendo ofender-se com minhas palavras.
— Você por acaso é política? — ele questionou de modo áspero.
— Não, eu...
— Essa cidade é pequena, e exatamente por isso é difícil para gerir. Os recursos são
quase zero, e as empresas não têm interesse em se estabelecer nesse fim de mundo. — Me olhou
de cima abaixo. — É formada em que?
— Eu... — Me senti humilhada com o tom da pergunta. — Não fiz faculdade.
— Ah... — Ele deu uma risadinha. — Bem... Desculpe se a pergunta te incomodou, mas
a forma como disse, me pareceu até uma pessoa com interesses políticos.
— Eu só mostrei aquilo que vejo.
— Entendo. — Voltou a me estudar. — Sibipiruna é uma cidade pequena e com alguns
problemas, como qualquer outra cidade desse país. Mas temos coisas boas e únicas a oferecer.
Daqui alguns meses, teremos a festa da colheita. Espero que ainda esteja aqui para ver.
Moradores das cidades vizinhas lotam as ruas, e a folhagem dos pés de cana-de-açúcar enfeitam
os ranchos instalados no meio da praça. É muito bonito.
— Eu imagino.
Um silêncio estranho pesou entre nós. Não gostei da mudança brusca do seu
comportamento, e ele pareceu perceber. Mostrou-se mais amistoso ao final, mas eu permaneci
calada.
— Bom! — César disse após um tempo. — Foi um prazer conhecê-la, senhorita... Só
agora percebi que não disse seu nome.
— É Gabriella.
— Bonito nome. — Ele ergueu a mão na minha direção e repetiu: — Foi um prazer
conhecê-la, Gabriella.
O cumprimentei de volta. Nos despedimos e logo o meu padrinho aproximava-se,
provavelmente tendo encerrado seus assuntos com os trabalhadores.
— Bem que Sofia disse que você logo se habituaria a Sibipiruna — José dizia. — Já
está até amiga do prefeito.
— Prefeito?
— Sim. César Maldonado. Prefeito de Sibipiruna e inimigo declarado do nosso vizinho.
Ah... Por isso a agressividade quando eu critiquei sua preciosa cidade.
É... Parece que eu, Gabriella de sobrenome impronunciável, estava fadada a ter
encontros incômodos com os Maldonado.
Capítulo 8

O licor oferecido por Careca era doce demais, mas despejou o açúcar que meu corpo
precisava.
— Cinco invasões — Salazar reclamava ao meu lado, e eu via vultos ao redor moverem-
se agitados. — Menos de um mês e tivemos cinco invasões a fazendas.
— Eu não estou interessado — resmunguei.
E não estava mesmo.
Entrei ali para minha dose diária de anestésico, e me surpreendi ao ver o bar lotado.
Homens vestidos com suas botas mais reforçadas, chapéus e armas presas na cintura,
amontoavam-se nas mesas, proseando e contando vantagem. Eu só queria beber em paz em mais
um fim de tarde, mas assim que me viu, Salazar aproximou-se, querendo me resgatar do fundo
do poço que eu me encontrava e me fazer juntar-me a eles em mais uma caçada.
— Seus cães poderiam ajudar — ele insistia.
— Crie você os seus.
— Lucas. — Salazar deu um longo suspiro, como se se sentisse cansado. Cansado
estava eu daquela vida. — Algumas pessoas descreveram os vândalos. Não são os que invadiram
a usina e atacaram você e Tereza naquela noite. É gente nova tocando o terror na cidade.
Precisamos mostrar para esse povo que aqui bandido não se cria.
— Eu não quero saber, Salazar. Tenho mais o que fazer.
— Como o que? Se embebedar até cair e então voltar para aquele caixão aberto que
você transformou o sítio?
— Cale a boca, Salazar.
— Eu não. Estou no bar, não na sua casa. Posso falar do que eu quiser. Precisamos de
reforço nas buscas na mata.
— E cadê o delegado e o prefeito a essas horas?
— O prefeito... Você sabe, Lucas. — Salazar me olhou daquele jeito confidente e
amigo. — E o Antenor está viajando. Disseram que foi auxiliar na busca de um fugitivo em
Santa Emília.
— Tão longe? — me surpreendi.
— O delegado é um conhecido dele, e você sabe que Antenor gosta de ajudar.
— Ele gosta de aparecer.
— Não coloque seus ciúmes acima disso.
— Ciúmes é o de menos. Nós dois sabemos que, por Antenor, eu teria passado os
últimos quatro anos na cadeia.
— Não quero discutir isso.
— Melhor mesmo manter sua boca calada e me deixar em paz.
As portas do bar se abriram e logo alguém entrou, provocando um silêncio imediato.
Não me interessei em ver quem era, mas o cheiro de perfume importado e a risadinha que eu
odiava trouxeram logo a resposta.
— Sem brigas dessa vez — Careca murmurou, me fitando com seriedade.
— Posso saber o que todos os homens de Sibipiruna fazem aqui no Careca a essa hora?
— César questionou olhando ao redor.
— O que a prefeitura não se dispõe a fazer — resmunguei baixinho, mas César era bom
dos ouvidos.
— Como se você se importasse com essa cidade.
— Sua boca tá com saudade do meu soco? — provoquei César, pois ele estava pedindo.
— Dessa vez vou te deixar dormir na cadeia, Lucas.
Me virei para ele. Sem qualquer humor ou vontade de agradar. Finquei os pés no chão e
o encarei, deixando bem claro que não recuaria ou deixaria que ele crescesse pra cima de mim.
— Me faz esse favor, César. — Ele engoliu em seco e o cravei com meu olhar. — Só
que se você algum dia mandar me prender, é bom que esteja bem longe de Sibipiruna quando eu
sair, ou torça pra eu morrer na cadeia antes de conseguir te alcançar.
— Você devia ter tomado o tiro no lugar dela — ele vomitou, incapaz de esconder quem
era.
César me odiava porque eu sempre mostrava a ele o merda que ele era capaz de ser.
— Devia — concordei.
— Ficou com todo o dinheiro e prestígio dos Maldonado e agora está acabando com
tudo na bebida.
— Melhor do que na jogatina. — Cuspi no chão, bem perto do seu pé direito. A vontade
era sujar o sapato encerado.
— Você não tem moral para falar de mim.
— É. Não tenho. Porque você é o filho e irmão perfeito, que se dedicou aos estudos na
capital enquanto a irmã cuidava da fazenda. Coisa que é muito mais fácil, óbvio. Difícil é morar
num apartamento na cidade com tudo pago, carro de tanque sempre cheio e festinhas todo fim de
semana, tudo às custas da usina que você diz que fede carniça. Você é um bom homem, César,
mas foi corrompido pela cidade grande e se afundou nos jogos e apostas. Uma vítima. Sempre
preocupado com a irmã, tanto que assim que voltou dos estudos, tentou convencê-la a largar o
marido roceiro com quem ela casou para que ela ficasse com seu amiguinho da cidade, que anos
depois viraria delegado. Um homem à frente do seu tempo, é isso que você é! — Alguns homens
riram em suas mesas, e vi César trincar os dentes de ódio. — Um homem íntegro e doador, que
sempre amou Sibipiruna. — Mais gargalhadas, e o vi cerrar os punhos. — Ganhou a eleição por
quem você é, e não porque seu vice é um conhecido de todos e o candidato da oposição teve o
mandato cassado depois de uma denúncia providencial nas últimas semanas da campanha,
quando ele vencia com folga. — Salazar tentou me conter, mas nenhum deles deveria ter mexido
comigo. — Você adora dizer que sou odiado nessa cidade, César, e sou mesmo. — Meu ex-
cunhado parou à minha frente com fúria nos olhos, e eu me ergui da cadeira para encará-lo como
ele merecia. — Acontece que seu dia vai chegar. Vão descobrir o monte de merda que você é, e
você vai ser tão ou mais odiado que eu.
— Era pra ter sido você aquele dia — ele repetiu.
César sempre dizia isso, e eu concordava.
Era para ter sido eu.
Deveria ter sido eu.
Mas não foi.
Ele perdeu a irmã e única parente que restava viva.
Eu perdi todo meu rumo.
— César — Salazar se meteu entre nós, chamando o outro. — Vamos organizar uma
busca nas matas perto da cidade. Invadiram outra chácara noite passada.
— Dois homens. O Antônio do Café viu — outro homem falou de uma mesa ao fundo,
e agradeci por finalmente ser esquecido. — Eles iam roubar a caminhonete dele quando os
cachorros começaram a latir.
— O Antônio disse que eles não pareciam armados, pois saíram correndo quando ele se
aproximou — Salazar informou. — Mesmo assim, é um perigo para nossa cidade.
— Eu já conversei com Antenor — César começou a dizer. — Ele disse que estão
fazendo rondas todas as noites nas estradas rurais. O problema é que o efetivo é pequeno.
Sibipiruna só tem uma viatura, e ela não pode se ausentar muito tempo da cidade.
— E quanto às câmeras que a prefeitura ficou de instalar nas entradas da cidade? Com
certeza essas pessoas passam por aqui. Todo mundo aqui se conhece. Um estranho seria
facilmente identificado.
Demorou até que eu percebesse que aquelas falas vinham de mim.
Droga...
Eu odiava esses despertares do antigo Lucas.
Do Luca.
Salazar tentou conter um sorriso, e vi que César odiou minha intromissão, assim como
eu.
— Não temos dinheiro para essas besteiras — César resmungou. — Vai cuidar da usina
desativada que é o melhor que você sabe fazer, cunhado.
— Eu acho que o Maldonado tem razão — alguém falou. E curioso como todos sabiam
que ele falava de mim, e não de César. — Ninguém entra nas estradas que levam pra usina sem
antes passar pela praça de Sibipiruna. Uma câmera resolveria.
— A prefeitura não é como a casa de vocês — César tentou falar de maneira mansa,
mas eu percebi sua raiva incubada. — Não posso simplesmente pegar um cartão de crédito e
comprar uma câmera. É preciso ter uma licitação. Pesquisar um programa de monitoramento...
— Na verdade, dá para fazer sim com o cartão corporativo em caráter emergencial —
Salazar, que era o vice prefeito, opinou.
— É... — César fez uma careta, mas não contrariou seu colega de bancada. — Vamos
definir isso na prefeitura semana que vem. — Me olhou com ainda mais ódio do que quando
entrou e aquilo, por um segundo, me deu uma onda de prazer. Se eu sentisse prazer. — Conheci
sua nova vizinha — finalizou.
Meu corpo inteiro se eriçou, e confesso que não entendi o sentido daquela reação.
Parecia fruto de um instinto animal. Como uma fera que prevê perigo ou algo que
parece estar a olhos vistos, mas só para quem sente ou fareja.
— Eu não tenho vizinhos — devolvi, voltando a encarar meu copo e fazendo um sinal
para Careca me servir mais.
— A afilhada dos Siqueira.
— Ah, deve ser a moça que minha mãe não para de falar há uns dois dias — Salazar
comentou. — Dona Sofia foi visitá-la e levou a afilhada.
— O que sua mãe sabe sobre a jovem? — César questionou com interesse, e aquilo
chamou minha atenção.
— Disse que ela é sozinha no mundo. Perdeu a mãe há algum tempo, e os Siqueira a
chamaram para morar com eles. Minha mãe também disse que a garota adorou uns livros antigos
dela. Parece gostar muito de estudar. — Salazar me fitou. — Mamãe falou que se lembrou de
você quando chegou aqui.
— Por que ela se lembraria de mim? — perguntei. — Eu me mudei para Sibipiruna
muito mais jovem.
E na época, estava fugindo.
— Não sei, Lucas. — Salazar deu de ombros, afastando-se de mim e de César. — Acho
que pelas circunstâncias. Ou pela vontade de aprender. Mamãe é meio mística. Você sabe. Se ela
diz que se lembrou da sua chegada aqui, tem lá seus motivos.
Dei de ombros, pois não me importava. Na verdade, quaisquer que tenham sido os
motivos que levaram aquela loirinha a buscar Sibipiruna como morada, talvez devesse repensar.
Aquele lugar não tinha futuro para uma garota jovem como ela, e atrair a atenção de César
jamais seria um bom presságio.
Voltei a focar meu copo de uísque — mais uma vez vazio — enquanto Salazar voltava-
se para os demais:
— Bom! Já que você não vai nos acompanhar, estamos saindo. — Se virou para César.
— O prefeito vem também?
— Tenho uns despachos para fazer no gabinete.
É claro que o engomadinho viciado em jogatina não vai se aventurar no meio do mato
buscando pistas de invasores.
— Como autoridade da cidade, e na ausência do delegado, tenho que pedir a vocês para
não fazerem justiça com as próprias mãos — ele falou, e não escondi a risada irônica. — Não
quero ninguém morto na minha cidade.
— Jura, prefeito? — Escarneci.
Ele me olhou de um jeito sombrio. Nós dois sabíamos do que eu falava, e por mais que
um odiasse ao outro, ninguém ali tocaria naquele assunto na frente de tanta gente.
— Volta pra sua cova, Lucas — ele murmurou com extrema raiva.
E eu voltei.
Pedi a Careca que despejasse mais uma dose enquanto o bar ia esvaziando aos
pouquinhos, com todos os homens de Sibipiruna partindo na caçada aos invasores.
O nome era “caçada”, mas ninguém mataria os bandidos, ainda mais que Salazar
tomava a frente das buscas. Era um homem íntegro demais para fazer justiça com as próprias
mãos.
Coisa que eu e César não éramos.
Capítulo 9

Duas coisas me atraíam no terreno vizinho.


O proprietário das terras e o imenso pé de caju que ficava a alguns metros da sede de
dois andares.
O primeiro com mais insistência que o segundo, mas desse primeiro eu também sentia
certo medo.
A história contada na cidade e replicada pelo prefeito de que Lucas matou a própria
esposa era pesada demais. Parecia real, mas ao mesmo tempo, algo me dizia que alguma peça
não se encaixava ali.
Certo, Gabriella! Isso não é da sua conta. Vá cuidar da sua vida e esqueça o bruto
gostoso do seu vizinho.
Eu só não conseguia me desapegar da imagem do homem nu caminhando com os cães
no meio da madrugada. Era intenso demais para mim, que passei minha parca vida sexual me
contentando com os homens sem graça de Dom Cervantes.
Tive minha primeira vez com um amigo de escola, em uma experiência mais entediante
do que prazerosa, e depois namorei um colega de trabalho, também atendente de caixa, com
quem ia para a cama quando sua mãe não nos vigiava.
Em Dom Cervantes, qualquer mulher com uma vida sexual mais ativa era olhada de
viés.
E como eu mal podia me aproximar do meu vizinho sem querer cruzar as pernas, focava
nos cajus.
Quando cheguei à cidade, os frutos estavam pequenos, ainda verdes. Acompanhei seu
crescimento à distância, com meu interesse crescendo em mesma medida.
Eu amava cajus e aqueles eram, sem dúvida, os mais amarelos e suculentos que já tive o
prazer de por os olhos. Pareciam pintados de ouro, brilhando dourados no sol quente de
Sibipiruna.
Durante as tardes, eu costumava me aproximar das cercas que dividiam os dois terrenos
e admirava os frutos. Imaginava o quanto eram suculentos. Talvez fossem azedos, mas eu
apreciava isso. Sentiria aquele aperto bom na mandíbula e talvez os comesse com um pouco de
sal, como costumava fazer com as mangas meio verdes.
Não me atrevia a ultrapassar os limites do terreno do viúvo Maldonado, mas o desejo —
e a curiosidade — só cresciam.
Comecei a observar a rotina do vale, entendendo aos poucos como as coisas
funcionavam ali.
Assim que Lucas Maldonado saía todas as manhãs, seus cães também ausentavam-se da
proteção da casa por um tempo. Perdiam-se no meio da mata do córrego, voltando horas depois,
pouco antes da chegada do dono. Era quando eu ficava completamente sozinha no sítio, e
costumava me perder nos livros doados por dona Margarida.
Talvez eu conseguisse pegar alguns cajus naquele período.
Mamãe sempre disse que eu era curiosa demais, e ela tinha razão. Teimosa e um imã
para problemas.
Quando tudo aconteceu em Dom Cervantes e precisei fugir dos que tentavam me matar,
me culpei por um tempo.
Claro que a culpa era minha! Eu que fui curiosa e, depois, teimosa o suficiente para
tentar fazer justiça.
Só me fodi.
E agora, como se todos os problemas que eu tinha não fossem o bastante, queria me
estrepar mais, enquanto media com os olhos a distância que deveria percorrer da cerca até o pé
de caju.
Eu era maluca! Uma suicida! Se aqueles cães me pegassem, eu viraria banquete para os
cinco.
Mas quem disse que sou prudente?
Isso, de fato, nunca fui.
Vê só a merda que tá minha vida! Tudo, imprudência!
— Não vou me arriscar por um bando de cajus... — murmurei para mim mesma depois
do terceiro dia seguido naquele dilema.
Mas olha só pros cajus pesando os ramos do pé! São tantos e tão grandes que alguns
galhos quase tocam o chão! E o viúvo amargurado nem para colhê-los, deixando-os estragarem
no pé e formarem um lamaçal de frutos podres ao redor da árvore.
— Eu consigo correr até lá. — Me encorajei. — Posso correr, pegar alguns só para
experimentar, e então voltar antes dos cães perceberem minha presença.
Eu já vinha testando aquilo. Passava as mãos na cerca com sinos espalhados e observava
a reação dos cachorros. No início, eles vinham como loucos em minha direção, mas com o passar
dos dias pararam de latir, só me olhando à distância.
Talvez já estivessem acostumados comigo, certo?
— Tá! — Me decidi. — Vou tentar!
Era meio da manhã e fazia um sol absurdo. Meus padrinhos tinham ido para a lavoura e
não voltariam para o almoço, pois a colheita aproximava-se cada vez mais.
Juntou a solidão, o tédio, a curiosidade e, principalmente, o desejo, e resolvi me arriscar.
Minha vida ultimamente era um imenso mar de riscos, e nunca fugi de nenhum deles.
Quer dizer... fugir é exatamente o que eu fazia quando me mudei para Sibipiruna, mas
nunca me privei de vivenciar o perigo.
E a adrenalina de tentar pegar os cajus venceu, pois, obviamente, prudência inexistia em
minhas veias.
Eu tinha me preparado.
Amarrei os cabelos em um rabo de cavalo e vesti uma bermuda justa e elástica, que me
permitia atravessar os arames farpados da cerca sem me cortar.
Testei mais uma vez a atenção dos cães, passando os dedos na cerca e provocando o
tilintar dos sinos.
Nada.
Olhei para o pé de caju ao longe.
Dava mais ou menos uns cem metros de onde eu estava até a árvore. Se eu fosse ágil,
chegaria lá, pegaria só uns cinco cajus, e voltaria correndo antes de ser alcançada.
Respirei fundo e murmurei, afastando um fio loiro do rosto:
— Isso é só pelas lombrigas do meu estômago. Não tem nada relacionado com o dono
do lugar e minha curiosidade de entrar no casarão...
Suspirei mais uma vez, levando uma perna para o terreno vizinho. Abaixei a coluna e
passei no vão do meio da cerca, onde o espaço era maior. Tentei ao máximo não fazer os sinos
soarem, mas era missão impossível, e os avisos colocados pelo morador solitário ecoaram mais
que tudo.
Só que nem sinal dos cães.
Comecei a atravessar. Primeiro cautelosa, e logo levemente apressada. Não quis correr
muito rápido e chamar atenção, então tentei ir de maneira mais discreta possível.
Já estava na metade do caminho e continuava viva, e eu quase baixei a guarda.
— Talvez eu tenha me preocupado à toa. Estou a dias querendo esses cajus e era só
entrar...
Malditas palavras.
Mal elas saíram, escutei as pisadas rápidas e furiosas dos cães vindo em minha direção.
Merda!
À frente de todos estava um de pelo escuro e jeito feroz. Logo em seguida, um baixinho
e de boca espumando parecia o pior de todos.
Nem quis ver os demais. Eu só corri.
O caminho de volta me pareceu quilométrico àquela hora, então resolvi fazer o inverso.
Completar o trajeto e seguir até meu destino: o pé de caju.
Era mais perto e eu não teria que passar pelos arames cortantes, só precisava escalar o
pé.
Corri com toda a minha força, com mais vontade ainda de sobreviver do que no dia que
precisei fugir de assassinos. Naquele momento, eu preferia encarar meus perseguidores.
Corri e corri. No caminho, perdi uma sandália e precisei cruzar o pasto descalça. Como
os cachorros estavam na mata, a distância deles até a árvore era imensa, e consegui chegar ao pé
de caju antes de ser alcançada.
Foi por milésimos de segundo, pois cheguei a sentir as mandíbulas de um deles
cruzando o ar a centímetros do meu pé assim que subi na primeira bifurcação.
Acho que nunca escalei uma árvore tão rápido em toda a minha vida. Nem sei como
consegui, pois o pé era alto e sem pontos fáceis de apoio, mas o que importava é que subi.
Com a respiração entrecortada e o coração aos saltos, escalei o máximo que pude, me
protegendo em dois troncos centrais da árvore.
No chão, os cachorros pulavam como loucos, mas nenhum deles pareceu disposto a
escalar o pé atrás de mim.
O que foi que você fez, Gabriella!, a voz da razão gritou em minha mente.
E se aqueles cachorros resolvessem escalar a árvore atrás de mim? Estava sozinha no
vale, e ninguém me socorreria se um deles decidisse fazer da minha garganta chiclete de mascar.
Eu fui muito maluca nessa empreitada em busca de um mísero caju.
Mas, como disse, prudência nunca foi meu forte, e de uns tempos para cá virei um imã
para problemas.
Perseguida e ameaçada de morte eu já era. O que poderia ser pior?
Talvez, ficar presa em cima de um pé de caju enquanto cães raivosos rodeavam a
árvore e mostravam todos os dentes para você. Isso, sem qualquer possibilidade de socorro
pelas próximas horas.
Lucas Maldonado costumava sair de manhã e voltar só ao fim do dia, quando enterrava-
se em seu casarão sem dirigir uma única palavra aos vizinhos.
O sol batia com tudo entre as folhas do cajueiro, e os cães latiam e rondavam o tronco
da árvore, como se torcessem pela minha queda.
Eu estava muito fodida...
Suspirei, tentando me sentar no galho grosso e alcançando o primeiro caju.
Extremamente azedo, porém com uma sensação de saciedade ao fim que só os desejos
mais absurdos de uma mulher poderiam proporcionar.
Por isso ninguém se aproximava do pé.
Só eu e meu gosto peculiar para desejar provar aquilo.
E querendo saciar ao máximo meu desejo, ainda que o medo e a adrenalina pulsassem
mais que tudo nas veias, comi mais alguns. Enquanto me fartava, jogava as caretas nos cães, que
voltavam a latir irritados com minha petulância.
— Acostumem-se comigo, seu bando de raivosos, pois vou domar vocês — gritei para
eles.
Se brincar, domo até o seu dono.
Olhei para a casa do viúvo, atraída pela mais pura curiosidade. De cima do pé dava para
ver com mais detalhes a varanda e o interior de uma das janelas.
O local parecia meio abandonado, com caixas jogadas na parte externa, galões de
combustível em um canto, e cordas amontoadas em outro. Lá dentro, pouco pude observar.
Parecia ser uma casa espaçosa. De perto, via-se que era imensa e bem construída, mas as cortinas
tampavam o interior, e o lugar mais lembrava um mausoléu encoberto por um lençol.
Me arrepiei inteira observando o local, pois não parecia ter boa energia.
É claro que não tem, Gabriella. Ele matou a mulher lá dentro!
Ainda espionava tudo quando ouvi o som característico da caminhonete robusta do
vizinho.
Estou salva!
Me empolguei, feliz da vida com minha sorte. Por algum motivo qualquer, Lucas
decidiu voltar mais cedo para casa, e eu não morreria mais sendo devorada por seus cachorros.
Isso, se ele não me matasse pela invasão.
Sem tempo para pensar no que aconteceria, comecei a acenar para o veículo, gritando
feito maluca enquanto os cães voltavam a latir sem arredar do pé de caju.
— Ei! Me ajuda aqui! — gritei ao vê-lo estacionar a caminhonete ao lado do casarão.
O homem desceu e precisei engolir em seco, sentindo a garganta pinicar dos cajus.
Lucas Maldonado usava uma calça jeans surrada e uma camisa de botões marrom. De
um tecido grosso, apesar do calor. A barba estava maior que da última vez que o vi, na pracinha
da cidade, e os olhos meio opacos, como se estivesse cansado.
O homem atravessou o pasto com o semblante incrédulo, olhando o tempo inteiro para
mim, que seguia empoleirada lá em cima.
Bom, ao menos consegui arrancar uma reação dele. Era a primeira vez que via em seus
olhos algo além de... nada.
Vi Lucas percorrer a distância até o pé de caju com as sobrancelhas erguidas. Me olhava
de uma maneira sombria, e chegou a levar uma mão à arma que levava na cintura, decidindo-se
logo depois a largá-la no cinto, ajeitando a calça e então parando ao lado dos cães.
— O que faz nas minhas terras?
Ok. Preciso me habituar com essa voz maldita de grossa.
— Eu... — comecei a gaguejar ao perceber que não tinha argumentos além da
humilhante verdade. — Eu vi os cajus apodrecendo no pé e...
— E? — Havia raiva em sua voz.
— E achei que não faria mal pegar alguns.
Era a verdade.
Tá que eu ignorei os evidentes e gritantes sinais de que aquela era uma terra proibida?
Sim, mas e daí?
— Pegar alguns? — ele repetiu minhas falas como se eu fosse uma criança. Seu olhar
era duro em mim, e as sobrancelhas uniam-se no rosto sério. Vendo-o de cima até parecia menos
intimidador, mas a forma como me fitava dava a certeza de que, naquele momento, ele
representava mais perigo que os cinco cachorros juntos. — Tem noção do que fez?
— Pulei uma cerca e comi alguns cajus. Foi só.
O homem riu. Um sorriso amargo e sem qualquer traço de humor. Azedo, feito os cajus
que eu teimei em colher.
Sem voltar a me responder, ele deu um assobio alto. Daqueles que o ouvia fazer para
chamar os cães.
Imediatamente, todos pararam de latir, voltando sua atenção para o dono.
Bom. Ao menos não mandou eles avançarem em mim.
Sem qualquer comando em minha direção, ele apontou para a varanda e então virou as
costas, indo na direção da sede da fazenda e sem dizer se eu poderia ou não descer.
— Ei! — gritei. — Dá para prender os cachorros? Eu preciso descer.
Ele parou no meio do caminho. Vi seus ombros largos moverem-se como se negasse
com a cabeça, e então ele falou. Sua voz era tão grossa e potente que parecia nem fazer força
para ser ouvido:
— Você subiu aí sozinha. Vire-se para descer.
— Mas... — Chocada, voltei a gaguejar: — Mas... E se eles me atacarem?
— Pensasse nisso antes de pular a cerca por alguns cajus.
— Eu adoro cajus, tá? — gritei quando os cães voltaram a latir, ainda rodeando a árvore
enquanto o dono deles afastava-se, indiferente. — É um pecado ver o pé carregado de frutos se
perdendo.
Ele seguiu, inabalável.
— Eu só queria provar! Me ajuda, Lucas!
Ele se virou. Sem voltar a aproximar-se, falou acima dos latidos ensurdecedores:
— Você se arriscou ao atravessar um limite que claramente não deveria ter sido
ultrapassado. Agora, tenha coragem para fazer o caminho de volta sozinha.
E então, voltou a se afastar, seguindo para a varanda do sítio e me largando lá, sentada
no tronco da árvore e debaixo de um sol implacável.
Que miserável!
Com ódio do viúvo imbecil, tive que aturar mais meia hora de latidos.
Minhas pernas começaram a se cansar da posição e tentei me ajeitar melhor.
Será que se eu me jogasse na boca daqueles cachorros e eles me atacassem, ele se
culparia?
Não, sua tonta! Ele matou a esposa. Deixar você virar patê de cachorro é fichinha...
É... parece que eu não tinha escapatória. Viraria comida de cachorro ou seguiria sendo
humilhada, empoleirada feito galinha no tronco da árvore.
Esperei mais um tempo, buscando uma estratégia. A manhã passou e logo chegou a hora
do almoço. Ou o que eu julgava ser a hora do almoço, a considerar pelo meu estômago, que
agora roncava.
Lucas não voltou a sair do sítio, e aquilo chamou minha atenção. Nunca o vi nas terras
aquele horário, e tentei tirar proveito da minha desgraça, espiando-o o máximo que eu podia. De
cima da árvore, ao menos, tinha visão privilegiada.
Vi quando, no meio da tarde, ele entrou no casarão de dois andares e passou um tempo
lá. Depois, como se fosse um dia normal e ele não tivesse uma mulher trepada no seu pé de caju,
ele saiu e foi para o pequeno galpão ao lado da casa.
Sem camisa.
Que atrevido!
O corpo estava dourado de sol. Não sei como ele conseguia aquela firmeza e rigidez nos
músculos se tudo o que fazia era beber no bar da cidade. Era para ter uma pança de barril, e não
um tanque de fazer inveja em lavadeiras do país todo.
Lucas cruzou o pátio com suas botas pesadas e desapareceu no interior da construção
anexa à sede, surgindo logo depois com uma enxada.
Ele a jogou em um dos ombros e começou a caminhar na direção do pé de caju, ainda
me ignorando.
Abusado, parou bem ao lado da árvore e, assobiando baixo, começou a capinar o
terreno.
Foi quando eu fiquei puta.
Tentei descer para um dos galhos mais baixos. Minhas mãos estavam dormentes das
horas segurando os galhos lenhosos, e senti uma farpa atravessar meu dedo.
— Merda! — xinguei, chamando a atenção dos cachorros, que estavam deitados ali
embaixo e voltaram a latir, agora entediados.
Nem eles aguentavam mais aquela situação. Pareciam só permanecer ali por uma ordem
do dono ou instinto besta, quando na verdade eles queriam mesmo era voltar pra mata para caçar
um bicho mais interessante.
— Custa prender eles por cinco minutos? — perguntei, no limite da minha paciência.
O fazendeiro com pinta de cowboy seguiu me ignorando.
Era assim que ele ia me provar que era perigoso, mostrando que não tinha coração?
Pois eu ia mostrar pra ele quem eu era.
Para ele, e também para aqueles malditos cachorros, que me fizeram passar o dia quase
todo naquela árvore, debaixo do sol e sem sequer beber água.
Munida de mais raiva do que coragem, cansei de ser humilhada. Comecei a descer os
troncos do cajueiro, ouvindo os latidos agudos e cada vez mais altos.
Lucas parou sua tarefa de arar a terra e apoiou-se no cabo da enxada para me observar.
Olhando diretamente para ele — pois se eu olhasse para os cães, talvez desistisse — eu
saltei. Pulei no chão sem deixar de fitar Lucas, para que fossem meus olhos a última coisa que
ele visse se aqueles animais me machucassem.
Prudência nunca correu em minhas veias.
Foram milésimos de segundos. Uma lufada de ar soprou entre minhas pernas, indicando
que um dos cachorros ia com tudo em minha direção, quando finalmente o maldito homem
gritou:
— Estrela!
Tinha que ser a fêmea do bando. Sempre as mais corajosas.
Ao menos ela parou.
A centímetro da minha canela, mas parou. Seu pelo malhado de branco e preto estava
arrepiado e os dentes todos à mostra, deixando evidente que ainda era capaz de me atacar.
Eu não deixei de olhar Lucas para ver se outro cão ameaçava me morder. Ali percebi
que ele tinha o comando. Bastou que ele gritasse com uma, os demais sequer fizeram menção de
se aproximar.
Só que perceber que eu não seria mais mordida pelos cães me deu outra certeza:
O perigo agora era o dono deles.
Largando a enxada no pasto, Lucas deu alguns de seus passos imensos, aproximando-se.
Não havia nada em seu rosto. Nem raiva, nem divertimento, e muito menos interesse.
Ao chegar bem perto, o suficiente para perceber uma cicatriz acima de um de seus
olhos, meu coração disparou e um calor maluco e inapropriado tomou todo meu corpo.
Seu olhar, talvez pela primeira vez, me analisou. Olhou os pés descalços e as mãos
vermelhas de segurar os galhos. Ele levou um tempo maior olhando os cabelos e então pareceu
me perfurar com seu olhar.
Era para eu ficar com medo, e não excitada.
— Você tem quinze segundos — ele deu o comando antes de se virar.
O que? Eu ainda vou ter que sair correndo?
Mas nem morta!
Continuei parada. Esperando o seu prazo acabar.
Ele achou que fosse sair dali afugentada, mas continuei quieta, e logo ele teve que se
virar outra vez para mim.
— Saia já das minhas terras! — ordenou, dessa vez num tom ameaçador e que fez três
dos cães voltarem a rosnar para mim.
Desafiada, cruzei os braços.
Ele pareceu estranhar minha reação. Não devia estar acostumado a ser enfrentado assim.
— Já passei por coisa pior do que ser ameaçada por um viúvo imbecil, Lucas
Maldonado — falei depois de um tempo. — E não vou deixar me escorraçarem de novo.
Ali entendi de onde vinha a coragem.
Era do sentimento de injustiça represado desde que fui obrigada a fugir de Dom
Cervantes.
Correndo, amedrontada, praticamente só com a roupa do corpo.
Exatamente como ele tentava fazer comigo agora.
— Então vai ficar aqui? — Ele apontou para o vale.
Abri um sorriso.
— Sim. Eu vou ficar. Acostume-se com isso.
E só então me virei.
Comecei a caminhar no sentido de volta da cerca, ciente de que os cachorros me
seguiam de perto enquanto Lucas me vigiava.
Não me dignei a sair em busca das minhas sandálias perdidas e percorri todo o trajeto
descalça, sentindo vez ou outra uma pedra afundar-se em minha pele. Ainda assim, não manquei
ou demonstrei fraqueza.
Segui devagar e firme até os limites da propriedade dos Maldonado.
Ao tocar a cerca de arame farpado e provocar os sinos dos alarmes, os cães deram um
último latido, como se avisassem para eu nunca mais cruzar aqueles limites.
Só que eu nem ligava.
Quem ultrapassa os limites da prudência uma vez, sempre é capaz de ultrapassar de
novo.
Passei pela cerca e vi quando eles se afastaram, finalmente livres da tarefa de me vigiar
e indo em busca de água e um pouco de comida.
Lucas ainda me observava.
Não me prestei a olhá-lo de novo.
Era fim do dia e eu estava cansada. O sol o dia inteiro sobre mim pareceu pesar todo de
uma vez, e eu corri para beber água e depois tomar um banho. Morta de fome, comi o que tinha
pronto na geladeira e, esgotada, me deitei.
Acho que a adrenalina e o medo finalmente tomaram meu corpo, e eu acabei
adormecendo. Só acordei na manhã seguinte, sem sequer ver meus padrinhos.
Eles também estavam cansados e devem ter chegado tarde e ido direto para a cama.
Como já era meio da manhã, estava sozinha novamente.
Me espreguicei e vaguei pela casa vazia, paralisando na cozinha com a surpresa que
encontrei.
Em cima da mesa, uma cesta cheia de cajus. Todos maduros e recém colhidos do pé.
Olhei para a porta da cozinha, indignada.
Eu não posso andar nas suas terras, mas ele pode invadir a casa que eu moro enquanto
eu durmo? Muito justo!
A vontade que deu foi de jogar os cajus todos para os porcos do curral.
Só não o fiz porque eu realmente adoro essa fruta.
Suspirei, saindo na varanda e flagrando o momento em que a caminhonete saía na
pequenina estrada que levava à entrada do vale. Por um instante ele pareceu parar e, se aquele
não fosse o homem que no dia anterior me obrigou a passar horas em cima de um pé de caju, eu
diria que estava olhando para mim pelo retrovisor.
Só que logo ele arrancou novamente o carro, e eu fiquei mais um dia ali sozinha.
Ao olhar para o terreno vizinho, vi que os cães estavam deitados ao lado da cerca, como
se me vigiassem.
Bufei indignada.
— É assim que vocês preferem, não é? — gritei para a matilha, que começou a latir
enlouquecida com minha presença. — Pois agora é questão de honra! Eu vou adestrar todos
vocês.
Estrela rosnou, como se desaprovasse a ideia, e os outros a acompanharam na
indignação.
Eu só cruzei os braços.
Ia mostrar a eles quem era Gabriella Alves.
E eles que se acostumassem com minha presença.
Capítulo 10

Loirinha insolente...
Corajosa, isso eu tinha que admitir, mas ainda assim insolente.
Atreveu-se a invadir minhas terras. Ignorou todos os sinais de que deveria manter
distância, e enganou meus cachorros.
Tudo por meia dúzia de cajus.
Poucas vezes vi pessoas tão imprudentes assim. Dispostas a qualquer coisa para atingir
um objetivo. Lembrava um pouco o Luca do passado. Aquele que faleceu junto de Tereza.
Não sei que idade a loirinha tinha, mas sei que era um bocado de anos mais nova. Eu já
estava com trinta e seis e julgava, pelo que Salazar contou, que ela tivesse seus vinte e poucos.
Era magrela e o cabelo pintado em um tom amarelo ressecado me dava nos nervos.
Provavelmente não sabia nada sobre plantação e colheita, já que nunca acompanhava os
padrinhos, e passava os dias fazendo inúmeros nadas naquele sítio.
No fundo da minha bebedeira, a ignorei por semanas, assim como ignorava o resto do
mundo. Sei que ela permanecia ali. Que era o elemento estranho em meu vale solitário, mas ela
nunca mais tentou contato, então achei que estava seguro.
Até ela decidir escalar meu pé de caju.
Por sorte, naquela manhã voltei mais cedo para o sítio, pois ao chegar no local de
descarga dos caminhões que carregavam a cana para a usina vizinha, me deparei com os homens
da cidade conversando sobre a tal caçada, e me incomodei com o que ouvi.
Eles não tiveram êxito nas buscas, mas encontraram dezenas de pistas dos invasores.
Aquilo me despertou um alerta.
Moradores da mata sabiam andar por aquelas bandas sem deixar rastros. Um grupo que
acampa na mata e deixa para trás a fogueira ainda parcialmente acesa só pode ser formado por
amadores.
Gente da cidade grande.
Meus instintos de alerta e preservação gritavam, querendo que eu fizesse parte das ações
de buscas, mas uma parte minha ainda relutava. Eu não queria saber de nada daquela cidade.
Preferia continuar anestesiado, pois assim a dor soava menor.
Acontece que ninguém parecia enxergar os sinais, e isso me incomodava. Sei que
Salazar me contava sobre as buscas numa tentativa de me integrar à comitiva, só que eu não
queria fazer parte. Por isso, decidi voltar mais cedo para o sítio.
E ao chegar lá, me deparei com uma mulher agarrada aos galhos do meu pé de caju.
Os frutos estavam perdendo, ela tinha razão. Muita coisa ali se perdia no tempo e
ninguém mais ligava. Em outras eras, eu cuidava daquelas terras e daquela casa com todo meu
empenho. Adorava a lida do campo, e me encontrei como administrador da usina de cana e de
todas as terras da fazenda Olhos d’ Água.
Todos diziam que eu era o melhor da região. Consegui multiplicar o negócio dos
Maldonado, que se resumiam a uma plantação seca e com baixos lucros, quando cheguei em
Sibipiruna, transformando tudo em terras férteis.
Eu fiz parte da emancipação da cidade, que antes não passava de uma corruptela
dependente do município vizinho. Era o homem mais respeitado daquelas ruas depois da morte
dos meus sogros, quando assumi tudo e construí a usina.
Só que tudo ruiu quando Tereza morreu e César espalhou para todos que eu a matei por
dinheiro.
Tereza era a mulher mais amada daquele lugar. Todos lamentavam o que aconteceu com
ela no assalto e, querendo ou não, ela era uma moradora que nasceu ali.
Eu nunca seria um sibipirunense de verdade. Poderia ter fundado a usina. Poderia ter
levado investimentos que culminaram na criação da cidade. Poderia ter enriquecido todos eles.
Seria sempre um forasteiro que usurpou as terras dos Maldonado e matou a sua filha
preciosa.
Por isso, preferia a solidão.
E a loirinha não iria atrapalhá-la!
Deixei que sofresse um pouco em cima da árvore. Eu nunca vi Trovão e os outros
cachorros atacando um invasor, mas apostaria parte das minhas terras de que eles eram sim
capazes de fazer isso. Eu, em seu lugar, não me jogaria na boca dos “leões”.
Só que a maluca se jogou.
Como se não temesse nada, saltou no meio do bando, bem na minha frente.
Corajosa...
Sua atitude me assombrou. A atitude e suas palavras, de alguém que já passou por
coisas na vida.
E só por isso eu colhi os cajus que ela quase deu a vida para pegar. Um balde cheio, já
que eu não comeria dos frutos mesmo e agora tinha uma... vizinha que faria melhor proveito
deles.

Demorei dois dias para perceber que havia algo de errado com os cães.
Eu chegava e eles não estavam na varanda como de costume, mas sim parados ao lado
da cerca que dividia meu terreno com o dos Siqueira.
Talvez ainda estivessem receosos com a presença da loirinha depois do episódio na
árvore, ou talvez os invasores de Sibipiruna estivessem rondando o terreno.
Na tentativa de descobrir o que era, voltei mais cedo para o sítio, só para flagrar a
loirinha aprontando mais uma vez.
Ela estava sentada do lado da cerca. Tão concentrada em sua tarefa que mal notou
minha chegada. Usava uma bermuda justa no corpo e uma blusa de alças fininhas. Ao seu lado,
um balde com ossos de vaca fervidos e descarnados que ela erguia acima da cabeça enquanto
dava comandos:
— Você, pretinho — ela apontava para Trovão, que tinha os olhos cravados no osso e
babava como um faminto. — Sentado!
O traidor sentou de pronto, como um cachorrinho de madame.
— O nome dele é Trovão — a corrigi, assustando-a com minha presença.
A garota pulou apavorada, erguendo-se de uma vez e limpando o tecido do short do
mato e terra.
— Eu não sabia o nome dele, então comecei a chamar de pretinho — falou um pouco
tímida, me olhando de viés. Eu estava do meu lado da cerca, e vários dos cães aproximaram-se
animados, com Trovão permanecendo sentado como se ela fosse sua dona.
— Trovão! — o chamei, indignado com a trairagem.
— Ele é um fofo — ela disse de uma maneira ridícula.
— Trovão não é fofo.
— É sim — insistiu, apontando para Estrela. — Já deu para perceber que ele e a Estrela
são os líderes.
Boa observadora.
— O marrom, que parece um pastor, é o mais agitado e distraído de todos.
— Perverso — nomeei.
— Você quem escolheu esses nomes?
Revirei os olhos, fitando-a.
— Claro — ela mesma concluiu. — Gosto do caramelo. — Apontou para Sombra. —
Tem um jeito de dócil e amistoso, mas é muito fiel a você. Recusou todos os ossos.
Cruzei os braços, deixando-a prosseguir.
Ela realmente estava contando, na cara dura, que tentava domar os meus cães?
— De todos, o que mais tenho medo é esse pastor preto de orelhas em pé. — Era o Juiz.
— Ele é silencioso demais e minha mãe sempre dizia: cuidado com cão que não late, pois esses
mordem sem piedade.
— Juiz. — Apontei para o traiçoeiro do bando. O que nem mesmo eu confiava.
— Ah... Excelente escolha do nome.
Um chiado incomum escapou da minha garganta e eu sorri. Coisa que não acontecia há
um bom tempo.
Ela me admirou. A boca era pequenina, e abriu-se um pouco enquanto me observava.
Não tinha pudor ao escrutinar meu corpo, analisando as marcas da calça e parando no meu rosto.
A vi sorrir acanhada, como se quisesse baixar minha guarda, e então a questionei com
minha voz mais seca:
— Por que está tentando amansar meus cachorros?
— Posso te dar inúmeros motivos.
— Me convença com um.
Ela ergueu o queixo ossudo. Os cabelos amarelos gritantes batiam no meio das costas,
escorridos, e ela cravou as mãos na cintura.
— Eu passo os dias aqui sozinha, e acho que eles podem me fazer companhia.
— São cães de guarda e não brincadeira de criança.
— Olha aqui! — começou a dizer, altiva. — Eu...
— Ah... faça-me o favor... — Comecei a sair, impaciente.
— Ei! Espera aí! — ela começou a gritar.
Ignorando-a, dei as costas, indo em direção à sede. Foi quando escutei o barulho dos
sinos da cerca denunciando que ela escalava o cercado, tentando atravessar os arames farpados.
— Se passar pro lado de cá, eu mando eles te atacarem! — ameacei.
— Você não teria coragem! — ela revidou, incrédula, ainda encurvada no meio da
cerca.
— Sombra! — dei o comando, apontando para a cerca.
A loirinha tinha razão. Sombra era o mais bondoso, mas o mais fiel a mim. Faria o que
eu mandasse.
O cão disparou na direção da mulher que saltou para trás assustada, permanecendo do
seu lado da cerca.
— É pra pegar! — gritei para os cães e imediatamente todos começaram a latir,
rosnando furiosos na direção dela, quase ao ponto de morderem a cerca.
— Você é um chucro imbecil! — ela xingou acima dos latidos.
— E não tente mais domesticar meus cachorros! — bradei, me afastando.
— Eu vou sim! — a aporrinhação em pessoa insistiu. — E vai ser antes do que você
imagina!
Capítulo 11

Eu tinha cinco anos quando ganhei meu primeiro e único animal de estimação. Viveu
conosco por pouco tempo, pois logo minha mãe cansou-se dos latidos do pequeno Tobias e
acabou dando-o para uma vizinha, que o levou para sua roça no interior da cidade onde ele teria
mais espaço para correr e não ficaria estressado.
Chorei por dois dias seguidos, e mamãe resolveu me dar uma boneca para “compensar”.
Acabei me esquecendo do Tobias, mas todas as memórias ressurgiram naqueles dias em
que tentava conquistar a confiança dos cães do viúvo Maldonado.
Eu adorava animais, e era essa a centelha que me fazia crer que Lucas não era um
completo desalmado. Ele cuidava bem de cinco cães.
Tá que eles mais pareciam mensageiros do apocalipse, mas eram bem tratados por seu
dono e pareciam fiéis e confiáveis.
Depois que Lucas me flagrou tentando fazer amizade com eles, tive de praticamente
recomeçar. Eles voltaram a ficar ariscos comigo, e vez ou outra o viúvo desgraçado surgia no
sítio de repente, só para atrapalhar minha evolução.
Ele me olhava com aqueles olhos castanhos capazes de perfurar um rosto com a
intensidade e então apontava em minha direção, mandando os cães montarem guarda.
O engraçado é que parei de ter medo. Via em seus olhos pura raiva e impaciência e isso,
por algum motivo, me motivava.
Não eram como os olhos vazios que vi no dia em que nos conhecemos, debaixo da
chuva e no meio da estrada.
Eu gostava mesmo é do desafio, e Lucas Maldonado era um gigantesco desafio. De
peito largo e braços fortes. Olhos e lábios bonitos e uma voz que, vez ou outra, passava a povoar
meus sonhos mais íntimos.
Depois de uma semana tentando me reaproximar dos cinco cães, certa manhã decidi
descansar dando um mergulho no rio.
Meus padrinhos estavam na roça, e eu seguia lendo os livros e apostilas de dona
Margarida, além de ajudando-os com os afazeres da casa. Fazia um sol quente naquele dia —
como na maioria dos demais — e eu tomei um banho longo e demorado. Como sabia que estava
sempre sozinha, costumava ficar só de calcinha e sutiã.
A água do córrego era gelada, pois ali o sol quase não batia. Havia uma parte mais
profunda, onde eu ainda tinha medo de me aventurar, e uma rasa, com pedras escuras e
escorregadias onde costumava me deitar e apreciar o barulho da correnteza.
Tinha levado algumas frutas e uma garrafa de água para o canto da margem, e admirava
um grupo de macaquinhos nos galhos lá do alto quando escutei um farfalhar do outro lado da
margem. Um pouco distraída, olhei na direção do som bem a tempo de ver uma silhueta alta e
escondida entre as árvores.
Meu coração praticamente parou e me ergui depressa, gritando:
— Quem tá aí?
Foi muito rápido. Algumas folhagens se mexeram e a silhueta sumiu, incorporando-se à
mata.
— Quem tá aí?! — repeti, mais alto, e recebi como resposta somente o canto dos
pássaros.
A garganta secou e a sensação de pânico que vivi nos meus últimos dias em Dom
Cervantes voltou com tudo.
— Quem é você? — gritei, e só havia medo em minha voz. — O que quer?
Seriam os assassinos atrás de mim?
Teriam me encontrado?
Trêmula de pavor, comecei a caminhar de ré, tropeçando nas minhas roupas jogadas
pelo caminho e então correndo desesperada, largando tudo para trás.
A adrenalina corria por todo meu corpo, e eu só me lembrava da noite de pavor que vivi.
Eu, acuada em meu quarto.
Pedras jogadas na minha janela e em uma delas, o recado:
“Abra o bico e vai acordar com a boca cheia de formiga.”
E depois, uma bomba que explodiu no primeiro andar e as tochas que jogaram na sala,
que incendiaram praticamente todas as minhas coisas.
Tudo aconteceu um dia antes do meu depoimento.
Depoimento esse que nunca dei, pois precisei fugir.
Não havia justiça no mundo, e eu era a prova disso.
Tentando puxar o ar, eu corria. Sentia o pasto seco açoitar meus pés descalços, mas nem
ligava.
Eles tinham me encontrado.
Os assassinos daquele inocente tinham me encontrado e fariam comigo o mesmo que
fizeram com ele:
Execução sumária e sem piedade.
Estava tão empenhada em fugir da possível ameaça que não vi um cupinzeiro no meio
do pasto e acabei tropeçando. Caí com tudo, batendo com a boca no chão e sentindo um gosto de
sangue na língua. Meu joelho ardeu, mas nem liguei. Voltei a me levantar, correndo o máximo
que podia.
Foi quando um pensamento maluco cruzou minha mente.
Se realmente estivessem atrás de mim, iam me seguir. E como meus padrinhos estavam
na lavoura, eles poderiam invadir tranquilamente a fazenda e me matar. Estava completamente
sozinha e indefesa. Mais segura estaria se estivesse junto dos cães assassinos do viúvo.
É isso!
Sem pensar por meio segundo ou talvez me arrependesse, rumei com tudo na direção do
terreno vizinho. A cerca que dividia os limites da terra dele acabava na mata do córrego, que
passava pelas duas propriedades. Corri no sentido da cerca e, movida de pura adrenalina, a saltei
em seu vão mais alto.
Senti um rasgo na lateral do braço direito, mas sinceramente nem liguei. Segui correndo,
apavorada. Tenho certeza de que vi a silhueta de um homem na mata, e só isso me importava.
O que um homem faria naquele lugar àquela hora a não ser me observar?
Eles tinham me encontrado! Era fato.
— Eu não vou morrer, eu não vou morrer, eu não...
Os primeiros latidos começaram a erguer-se metros à frente.
E pela primeira vez, não tive medo deles. O medo vinha da sombra que me espreitava na
mata.
Gritei com os cães, chamando-os pelos nomes:
— Trovão! Estrela! Sou eu!
Acho que fui imprudente demais, pois eles não pareciam nada amistosos. Avançavam
com tudo sobre mim, os dentes todos à mostra e a baba escorrendo por suas bocas arreganhadas.
Uma segunda vez, caí.
Me estatelei no chão, na verdade. Uma desastrada que mal conseguia correr sem desviar
dos cupinzeiros.
Essa segunda queda foi mais suave que a outra, mas aconteceu perto demais dos cães.
Eu ainda estava caída quando eles me rodearam, latindo feito loucos. A única coisa que me
restou fazer foi proteger meu rosto, aguardando a primeira mordida.
Que não veio.
Todos eles pararam ao meu redor, me farejando e rosnando baixo. Porém, nenhum
avançou. Nem mesmo Juiz, que claramente ainda parecia desconfiado.
Permaneci quieta, evitando mexer um único músculo — até porque vários deles doíam
— quando um assobio alto cruzou o vale.
Lucas Maldonado.
Os cães fecharam as bocas salivantes, como se cumprissem uma ordem, e Trovão e
Sombra chegaram a sentar no lugar em que estavam, como se esperassem pelo meu próximo
movimento.
Paralisada, me sentei. Não sei se meus músculos que trabalharam lentos demais ou se
Lucas que foi muito ligeiro, mas em um piscar de olhos ele estava de pé ao meu lado.
— Eu não te disse para nunca mais invadir minhas terras? — rosnou com uma mistura
de ódio com indignação.
— Tinha... — comecei a dizer, mas a respiração não saía direito. Precisei recomeçar: —
Tinha uma pessoa na mata. Um homem. — No auge do meu desespero, acabei falando demais:
— Eles sabem que estou aqui, e estão atrás de mim.
Imediatamente, a postura de Lucas mudou.
Foi curioso ver aquilo de baixo. Ele aprumou os ombros e vincou as sobrancelhas,
parecendo ainda mais intimidador do que já era.
Maluca e depravada como eu era, imaginei ele em cima mim.
Nu, como na noite do pasto.
— Você o viu? — ele perguntou, alerta. Nem por um segundo pareceu duvidar.
— Sim! — Parei, tentando controlar meus pensamentos. — Quero dizer... Eu vi um
vulto do outro lado da margem. Parecia de um homem me observando, mas não vi seu rosto.
Quando eu gritei, ele sumiu na mata.
Lucas levou a mão ao cinto, e só então notei o coldre de uma arma alojado na cintura.
Meu corpo inteiro se arrepiou, e algo parecido aconteceu com os animais, que
começaram a rosnar e mover-se agoniados, como se sentissem a tensão no ar.
Eu ainda era incapaz de me erguer. Ao mesmo tempo, queria fugir ao máximo daquele
lugar, pois na minha mente, a qualquer momento os dois homens que mataram aquele rapaz em
Dom Cervantes surgiriam na minha frente prontos para cumprirem a promessa feita a mim.
— Na mata! — Lucas falou baixo, mas de uma maneira que fez os cães ficarem ainda
mais alertas, começando a farejar o chão e espiando na direção do córrego.
Continuei sentada, observando-o descer alguns metros até bem perto da cerca. Sei que
havia um acesso à mata que não era cercado, e era por lá que os cachorros costumavam passar
para dar seus passeios matinais.
Ele os levou até na direção desse acesso e os deixou farejar por um tempo, até que
recomeçou a subir, ainda segurando o cano da arma e seguido dos cinco animais, todos de
orelhas e rabos de pé.
Com suas botas pesadas e o jeito bruto, parou ao meu lado, voltando a me fitar.
— Levanta! — Lucas ordenou impaciente, e meu corpo reagiu ao comando de imediato.
Me pus de pés e então cambaleei, sentindo novamente a fisgada no joelho que bati na primeira
queda.
Os cães já não estavam focados em mim e sim na mata, e precisei me apoiar nos joelhos
para não cair.
— O que foi isso? — Lucas perguntou de repente, apontando para meu braço direito.
— Ah... — Só então eu vi o corte imenso que sangrava. — Eu acho que raspei na cerca
no meio da fuga.
Ele olhou para meu rosto, e tudo o que vi foi raiva e repreensão. Estava bravo por ter
sido importunado.
— Não consegue correr sem se espatifar toda? — Apontou meus joelhos.
— Eu estava fugindo, caramba! Não dava para pensar muito.
— Na verdade, era só correr.
E então, sem nem pedir, ele rodeou um de meus braços com sua mão imensa e calejada,
fazendo um estremecimento percorrer todo meu corpo.
Quando percebi, estava sendo puxada com brusquidão.
— Ei! — reclamei. — Aonde vai me levar?
— Tenho álcool e curativos.
— Não precisa! — Puxei meu braço de volta, me soltando de sua mão quente.
Céus, era para eu estar apavorada com o vulto que vi na mata, e não com vontade de
dar pra esse homem!
Tentei dar um passo, mas meu joelho realmente doía. Minha perna falhou e Lucas agiu
rápido, me laçando com aquele braço gigantesco e me erguendo com a facilidade com que ele
levantava a enxada no dia em que fiquei presa ao pé de caju.
Assim como fez com a enxada, ele me jogou em um dos ombros e, como se eu fosse sua
propriedade, começou a andar na direção da sede.
— Ei, seu doido! Me coloca já no chão.
— Como era a sombra que você viu? — Ele me ignorou.
— Eu... Não sei. Só sei que era alto, e parecia ser um homem.
— E como tem tanta certeza de que ele estava te observando?
— Porque... — Parei, tensa. Se contasse minhas suspeitas para ele, teria que revelar o
que eu fazia naquela cidade.
— Diz logo, loirinha!
— Eu tenho nome! — Bufei, batendo com as mãos nas suas costas.
Os músculos eram mais firmes e definidos do que imaginei.
Aquilo devia fazer estragos na juventude.
De nada adiantou relutar. Lucas era muito mais forte e me carregou até a varanda do seu
sítio. Me despejou numa cadeira de balanço como quem se desfaz de um saco de batatas, e então
fincou as mãos na cintura, me olhando de alto a baixo.
Então, em silêncio, ele entrou no casarão deixando os cachorros ao meu redor como se
me vigiassem. Quando retornou, trazia álcool e um pedaço de algodão que ele molhou com o
líquido inflamável e começou a passar no corte do meu braço, sem qualquer cuidado ou aviso.
— Ai! — reclamei com a primeira ardência. — Isso arde pra cacete!
— Lembre-se disso da próxima vez que for atravessar essa cerca.
— Eu estava fugindo! Achei que o cara estava atrás de mim.
Ele me fitou por alguns segundos, mudo, e então voltou sua atenção para o machucado.
Depois, sua mão calejada desceu até meus joelhos, e só então eu vi o estrago em minha perna.
Além do imenso ralado no joelho, haviam pequeninos cortes causados pelo pasto nas
duas pernas. Uma das canelas tinha uma marca de pancada, e provavelmente o lugar ficaria roxo
mais tarde.
As mãos pesadas de Lucas limparam toda a área, e de repente o calor tomou meu corpo.
Minha boca salivou ao imaginar que aqueles cortes eram causados não por uma fuga
tresloucada minha, mas pelo meu corpo sendo açoitado no pasto enquanto ele montava sobre
mim.
Ele devia ser bruto. Do tipo que dá tapas sem piedade e arranca tudo de uma mulher.
Provavelmente usava o cinto que sempre vestia com sua fivela imensa, e imaginei se algum dia
tornaria a vê-lo nu.
Quis muito vê-lo pelado outra vez, só que em outras circunstâncias.
Lembrei que estava molhada do banho no córrego. Vestindo só calcinha e sutiã. Ainda
assim, ele parecia não me ver. Olhava com precisão para os ferimentos nas minhas pernas, e mal
se dignou a reparar em meu corpo.
Eu, ao contrário, não parava de observá-lo enquanto ele me torturava com aquele
maldito algodão com álcool. Reparei na entrada da camisa de tecido pesado. No vão negro de
onde escapavam alguns poucos fios grossos, e que escondiam um corpo de entalhes perfeitos.
Tinha os olhos bem escuros, e os cabelos só um pouco mais claros, talvez resultado do sol e da
lida no campo. A barba aparada não tinha fios brancos, mas as sobrancelhas carregavam toda a
sua idade no semblante sério.
Lucas Maldonado era bonito. Muito bonito. E por mais que não parecesse enxergar um
palmo à sua frente, continuava sendo um homem digno de desejo.
— O que tanto olha? — ele perguntou do nada, e dei um pulinho assustada ao ser pega
no flagra.
— Só nunca imaginei que fosse capaz de cuidar de alguém.
— Não estou cuidando — ele cuspiu. — Você já vai embora.
— Obrigada pela hospitalidade.
Ele não revidou. Mirou meu rosto com raiva, e eu escondi uma risada. Só de
provocação, ele forçou o algodão cheio de álcool em um corte mais fundo da minha perna, e eu
gritei com a ardência. Pensei ter visto um brilho de contentamento em seus olhos, mas seria
muita loucura. Mesmo assim, eu sorri.
De repente, havia me esquecido do perigo na mata.
— É porque estou de lingerie? — perguntei de repente, depois de mais de um minuto de
silêncio.
— O que? — Ele fez uma cara totalmente perdida.
— Porque você me viu quase nua — expliquei. — Por isso resolveu cuidar de mim.
Lucas revirou os olhos, como se sentisse tédio.
— Já vi melhores — rechaçou, perdendo menos de um segundo em admirar meu corpo.
Mas que...
— Olha! — revidei, possessa. — Você também!
— O que tem eu?
— Você também — repeti, tentando terminar a frase. — Já vi...
Não, Gabriella. Com toda certeza você nunca viu melhores.
Como ele não parecia ligar para mim, continuei cutucando:
— Quem desdenha quer. Já viu esse ditado?
Ele baixou os olhos um pouco, pairando-os em meu corpo e então soltando uma
bufadinha irritada.
— Toma. — Me entregou o algodão sujo de sangue e terra. — Já está bem grandinha e
sabe se virar.
Terminei de me limpar sozinha enquanto ele me aguardava, agora de pé à minha frente.
Sentia seu olhar pesar em mim, mas não me atrevia a olhar de volta. Por isso, levei um baita
susto quando escutei sua voz potente questionar do nada:
— Agora me diz, loirinha. De quem você está fugindo?
Capítulo 12

É claro que ela estava fugindo de alguém. Dava para ver nos olhos assustados e também
na maneira alucinada com que ela chegou ao pasto, como quem corria da própria morte.
Ela não fugia de um perigo desconhecido.
Ela fugia de um perigo bem conhecido, e isso sempre era pior.
Nos últimos quatro anos, me cerquei de proteção naquele vale. Os cachorros. A cerca.
Tudo feito para impedir a aproximação de humanos. Fossem eles bons ou ruins. Principalmente
os ruins.
E se aquela garota tinha chegado em Sibipiruna fugindo de problemas, eu precisava
saber, ou minha paz fantasiosa estaria ameaçada.
— Não sei do que está falando — ela mentiu descaradamente.
Era abusada como um cão sem dono. Atrevida e insolente, isso eu já sabia.
Soube desde o dia em que a vi escalando meu pé de caju.
Desde então, passei a observá-la mais. Chamava-se Gabriella, mas nunca disse o
sobrenome ou mesmo de onde veio. Parecia um pouco sem rumo passando os dias sozinha
naquele sítio, mas logo descobri que ela lia e estudava, ainda que não fizesse faculdade ou coisa
parecida.
Se gostava tanto de estudar, poderia ter se matriculado no colégio de Sibipiruna para
fazer um dos cursos on-line oferecidos no turno noturno. Se não o fez, é porque se escondia.
— Você disse mais cedo que ele estava atrás de você — lembrei de mais um indício.
— Porque eu estava tomando banho e vi um vulto me observando! — Ela cruzou os
braços, fingindo revolta. — Se não era pra fazer mal a mim, então ele estava ali pra pescar?
— Talvez.
— O que?
— A essa hora da manhã, com o dia claro e fácil de ser vista, não acho que uma pessoa
invadiria terras para fazer mal a alguém. Ainda mais essas terras, que são minhas. Provavelmente
era algum passante querendo se refrescar, assim como você, e que vinha da outra margem do
córrego.
— E por que ele se escondeu?
— Porque você começou a gritar. Ou porque...
A possibilidade que assolava minha mente não me abandonava.
— Quem você acha que era? — ela perguntou.
— Baderneiros estão invadindo fazendas da região.
— E você acredita que eram eles do outro lado do córrego?
Não respondi, passando os olhos pela fazenda em busca de algum sinal dos invasores.
Eu gostaria de dizer que não eram eles, mas não tinha essa reposta.
— Meu Deus — a loirinha murmurou. — Padrinho José bem que me contou que tem
um bando causando medo nas fazendas da região, mas achei que eles jamais teriam coragem de
se aproximar daqui.
Eu também pensava assim.
— Na hora, nem me lembrei desses invasores — ela remendou.
— Porque você tem seus próprios perigos. — Voltei-me para ela. — E quero saber
quais são.
A mulher engoliu em seco, tirando os olhos de mim e observando os cães, como se
tentasse desviar do assunto.
— Cometeu algum crime? — insisti. — A polícia está atrás de você?
— Eu não fiz nada! — ela gritou descontrolada, e Sombra e Estrela rosnaram com a
reação. — Só estava no lugar errado e na hora errada, e como esse mundo não tem justiça,
precisei me virar.
O mundo era injusto, e provei disso ao menos duas vezes na vida.
Até que decidi fazer justiça com as próprias mãos.
— Não vai me contar? — a forcei.
— Conto se me disser o que aconteceu com sua mulher. As pessoas na cidade contam
uma coisa, mas meus padrinhos dizem que é mentira. Gostaria de saber da única pessoa que sabe
a verdade.
Ela tentou barganhar, mas tudo que conseguiu foi me enfurecer.
Me voltei para ela espumando ódio. Sentindo a dor invadir meu peito sempre que aquele
assunto era tocado. Até os cachorros perceberam, pois começaram a granir baixinho, como se
previssem a ameaça.
— Você não quer saber! — bradei. — Vai já embora daqui!
— Se você tem seus segredos, então eu também tenho os meus! — Ela empinou o nariz.
Percebi como era fino e delicado. Tinha bochechas rosadas e olhos arregalados que, por mais que
tentassem, não conseguiam esconder o medo.
— Saia já das minhas terras! — Apontei para o outro lado da cerca. — E se não vai me
dizer de onde vem, então não é bem-vinda aqui!
— Nem se eu ficar nua na sua frente serei bem-vinda aqui! — Ela apontou o próprio
peito, e mais uma vez precisei desviar os olhos.
Ela achou que seu corpo foi indiferente a mim, mas não foi.
Continuava sendo uma magrela de cabelos mal pintados?
Com toda certeza, mas não poderia negar que era um corpo de mulher que habitava as
camisetas e bermudas que ela usava.
As coxas eram firmes. Nem grossas, nem finas demais. A cintura, leve como uma
pluma, e os seios, pequenos. Só não eram menores que o sutiã que a loirinha usava. Branco e
ainda molhado do córrego, revelando aréolas rosadas que escapavam do tecido miserável.
A calcinha também era uma porcaria de tecido minúsculo. Aquilo ali e nada era quase a
mesma coisa.
De pernas esfoladas e braço sangrando era bem real e tentadora. O sangue que escorria
dos joelhos ossudos era da mesma cor dos lábios, e o contraste de vermelho com pele rosada
despertou partes que julguei estarem mortas em mim.
— Ninguém é bem-vindo para você, Lucas — ela continuou falando, e tive que mirar
em seu rosto. — Você deixa isso claro todos os dias.
— E por que você ignora?
A loirinha me mediu. Seus olhos, de um castanho amendoado como o uísque que eu
bebia, tinham um misto de medo e imprudência. Descalça, quase nua, molhada e cheia de
ralados, ela aproximou-se de mim munida de uma inesperada coragem.
— Algo em você me atrai, Lucas Maldonado.
Sua voz saiu como um sopro. Uma sentença. Ela parecia resignada com aquela atração
enquanto eu, no fundo do meu poço, só senti mais incômodo.
O vermelho do seu sangue. O castanho dos seus olhos. O amarelo falso dos cabelos.
Tudo me agitava.
— Não quero você rondando meu pasto. Vou falar com os Siqueira. — Me virei de
costas para ela, começando a seguir na direção do galpão onde estacionava meu carro. Se ela
pretendia ficar ali, que ficasse sozinha. — Não vai me dizer do que está fugindo? Pois então terá
que encontrar outro abrigo.
— Eu... — ela praticamente gritou, correndo em minha direção e parando na minha
frente, me impedindo de seguir. — Eu não tenho para onde ir!
— Não me interessa! — bradei, passando por ela e seguindo em direção à caminhonete.
Chega! Essa garota estava mexendo com minha rotina me obrigando a voltar mais vezes
para casa, adestrando meus cães e invadindo meu terreno. Agora, aparecia ferida e quase nua na
minha frente e mexia com minha cabeça — e meu corpo — de maneiras que há anos não me via
mexido.
Ela era um imã para problemas, isso era perceptível em sua falta de bom senso e nos
mistérios que me escondia.
Não a manteria perto de mim por nem mais um dia!
Ignorando-a mancando às minhas costas, entrei na caminhonete. Os cachorros latiam ao
redor, e percebi que ela não tinha mais medo deles.
Sim, ela seria um grande problema no futuro.
— Lucas! Espera! — ela pedia em tom desesperado, mas estava decidido. Iria falar com
os Siqueira.
Liguei o motor e arranquei, obrigando-a a afastar-se.
Porque precisava falar com urgência com os Siqueira.
E não porque o corpo quase nu e molhado me afetava.

Cheguei na lavoura onde Sofia e José trabalhavam com alguns ajudantes cerca de cinco
minutos depois. Eles observaram minha aproximação, e foi Sofia quem me cumprimentou
primeiro, demonstrando um pouco de seriedade ao me ver ali.
— Aconteceu alguma coisa, senhor Maldonado?
Eles eram bons vizinhos. Sempre discretos. Na deles. Nunca fizeram perguntas ou se
meteram nos mexericos da cidade. Arrendaram as terras próximas à sede pois eram as únicas que
nunca usei para a produção de cana. Antes, abrigavam os girassóis de Tereza. Um capricho bobo
de minha mulher, que gostava das flores e fazia questão de ter a vista carregada por elas.
Depois que ela faleceu, preferi deixar as terras sem serem tocadas por um tempo, até
que os Siqueira surgiram e resolvi tentar abafar aquela lembrança.
— Preciso falar com vocês. — Apontei para o marido de Sofia, e a mulher aumentou as
rugas de seriedade. — É sobre a sua afilhada.
— Aconteceu alguma coisa com a Gabriella? — José Siqueira questionou, chegando
mais perto.
— Sim, e eu gostaria de saber o que é.
Os dois se entreolharam.
— Como assim? — Sofia perguntou.
— Cedi minhas terras a vocês em um voto de confiança, e nunca me deram problema.
Acontece que vocês estão abrigando uma desconhecida, e não estou gostando disso. Sei que
disseram que ela não traria confusão, e eu autorizei a estadia dela antes, mas não a quero mais lá.
Sofia cruzou os braços, claramente na defensiva, enquanto José assumiu uma postura
séria.
— Ela fez alguma coisa que o desagradou?
Ela invadiu minhas terras, vem ensinando meus cachorros a se habituarem com sua
presença, e agora a pouco saiu correndo quase nua por meu pasto.
Era muita coisa, mas não quis dizer a eles.
— A garota esconde alguma coisa. Eu sei — falei. — Não quero problemas para mim.
Sofia e José emudeceram.
Eles sabiam de algo, mas também não quiseram falar.
— Ela não tem para onde ir — José murmurou de forma humilde. — Perdeu a mãe e
nunca conheceu o pai.
— E a única família que ela achava que tinha lhe virou as costas quando ela mais
precisou — foi a vez de Sofia completar.
Eu senti compaixão pela garota. Quase identificação ao me lembrar de como cheguei em
Sibipiruna. Tão ou mais sozinho. Desamparado e sem rumo, até que os Maldonado me
abrigaram. Nessa época, César, o filho mais velho, já morava na capital, e eu me tornei a
constante na vida de Tereza.
Fomos amigos e depois namorados.
Nos casamos e achei que nunca mais seria infeliz.
— Do que ela está fugindo? — perguntei aos Siqueira.
— Não sabemos — Vi sinceridade no olhar de Sofia ao me responder. — Ela disse que
era melhor não nos contar.
— E se for perigoso? — argumentei.
Se eu tinha medo? Nem um pouco. Eu só queria motivos para afastar a loirinha dos
meus olhos.
— Mais um motivo para abrigá-la — foi José quem disse.
— Senhor Maldonado — Sofia me chamou com seriedade. — Arrendamos suas terras e
sabemos das condições, mas ela é nossa afilhada, e é nossa obrigação cuidar da Gabriella.
— Posso pedir as terras de volta quando eu quiser — os lembrei.
— Então já fica com essa colheita. — José apontou para as fileiras de milho. Sempre foi
um homem quieto, e pela primeira vez vi seu destempero. — A menina nos ligou um dia, no
meio da noite, apavorada. Disse que iriam matá-la se continuasse na cidade em que vivia. —
Então era mais sério do que imaginei. — Ela largou tudo. Nem tinha o que vestir ou comer, e não
vamos dar as costas para ela.
— Só nos dê alguns dias, e saímos os três — Sofia também foi enérgica.
Eu estava sem saída.
Gostava dos Siqueira. Por isso, eram os únicos que mantive tão perto.
Não me importunavam, não faziam perguntas e não se importavam com as histórias
espalhadas sobre mim na cidade.
Tão diferente da afilhada insolente.
Sem alternativa, olhei ao redor, vendo os peões da fazenda lidando com os campos e
então perguntando ao casal em tom de voz mais baixo:
— Há alguma chance dos invasores que estão rondando a cidade serem as mesmas
pessoas que estão atrás dela?
Eles se entreolharam e Sofia quase sussurrou, me forçando a aproximar-me dos dois:
— O que tá atrás da Gabriella é bem pior que um bando de ladrões de galinha. Por isso,
não vamos deixá-la só.
Como eu suspeitava.
É provável que o vulto que ela viu tenham sido os arruaceiros, e isso era um problema.
Agora, ainda teria que me preocupar com uma possível ameaça ao meu sítio trazido pela
garota de cabelos cor de ovo.
Me virei furioso, seguindo em direção ao meu carro.
Ia dar um jeito nisso.
— Quando devemos sair? — Sofia perguntou atrás de mim.
Paralisei, temendo estar tomando a pior decisão da minha vida.
Meus instintos gritavam perigo, mas os ignorei ao dizer:
— Podem ficar. Vocês e a... loirinha.
Capítulo 13

— Eu vi um homem ser executado.


Era a primeira vez que eu dizia aquilo em voz alta. Com todas as letras.
A sensação foi de medo. O mesmo que senti no dia em que tudo aconteceu.
Sofia e José arriscaram o local em que viviam por mim. Chegaram na fazenda contando
que Lucas quis que eles me expulsassem de lá, mas o casal recusou-se a ceder.
O mínimo que eu poderia fazer era lhes contar a verdade.
Vi minha madrinha remexer-se no sofá incomodada, e prossegui diante do silêncio dos
dois:
— Era noite. Eu morava em um quarto que ficava no segundo andar de uma lanchonete.
Estava na janela me refrescando, pois a noite estava quente, quando vi um homem atravessando
a rua.
Eu nem precisava fechar os olhos para relembrar tudo. Eram cenas tatuadas em minha
mente e que dificilmente se apagariam.
— Não havia mais ninguém ali, e era uma região de poucas casas. O homem caminhava
sozinho quando, de repente, foi cercado por outros dois que vieram de moto. Aconteceu tudo
muito rápido. O garupa ergueu um dos braços e simplesmente atirou a queima-roupa. Vários
tiros. Eles não disseram nada. Só chegaram e... o mataram.
Senti um estremecimento com a lembrança, apertando as mãos, que estavam geladas.
— Depois que o homem caiu, provavelmente já morto, eles desceram da moto e
começaram a mexer nos bolsos dele. Achei que era um assalto ou algo assim. Eles pegaram a
carteira do homem e então começaram a conversar. Não dava para ouvir o que era, mas em um
momento os dois tiraram o capacete. Pareciam nervosos. Acho que pensaram que não tinha
ninguém na rua para se exporem assim. Foi quando consegui ver o rosto dos dois, já que a luz do
poste batia exatamente onde eles estavam.
— Você chamou a polícia? — José perguntou, e eu soltei uma risada amarga.
— Calma que piora — tirei sarro da minha desgraça. — Um carro se aproximou da
esquina, então eles montaram na moto de novo e saíram antes de serem vistos. O pessoal desse
carro viu o homem caído e o socorreu, mas ele já chegou sem vida no hospital. No dia seguinte, a
história que se espalhou em toda Dom Cervantes foi de que o homem morreu em um assalto, já
que levaram sua carteira. Mas eu vi como aconteceu. Sei que foi execução. Eles levaram a
carteira dele pra despistar.
Fiz uma pequena pausa e então prossegui. Melhor contar tudo de uma vez:
— Eu fiquei em dúvida se contava o que vi ou não. Soube, pelos jornais, que o morto
era um jovem entregador humilde. Nunca esteve envolvido em nada, e tinha a ficha limpa.
Tinham matado uma pessoa de graça. Eu já morava só e tinha medo de algo acontecer comigo se
eu contasse o que vi, mas a mãe do homem que morreu fez um apelo no jornal, pedindo para
ajudarem a descobrir quem matou o filho dela. Foi quando eu decidi contar tudo para a polícia.
“Fui na delegacia na manhã do dia seguinte. O delegado não estava lá, e eu contei a um
escrivão rapidamente o que fui fazer ali. Ele ia me levar para uma das salas para colher o meu
depoimento, quando olhei pro lado e vi os assassinos na minha frente.”
— Eles foram presos? — Sofia perguntou.
— Eles eram da polícia.
Vi no rosto de meus padrinhos um espanto semelhante ao que senti aquele dia na
delegacia.
— Duda! Beto! — o escrivão chamou os dois policiais sentados em um banco ao lado
de um bebedouro. Um deles era tatuado de maneira discreta em um braço e tinha a cabeça
raspada, enquanto o outro tinha olhos claros e cabelos tom de mel. Uma barba pronunciada e
corpo pesado, com a barriga crescida. — Temos uma testemunha pro crime de quinta à noite.
— Temos? — Os dois se entreolharam alarmados.
— Essa moça aqui viu tudo. — O homem apontou para mim, e meu sangue esvaiu-se
inteiro do corpo. — Disse que eram dois homens em uma moto.
Os policiais me fitaram de uma maneira apavorante, e eu senti o gosto de sangue em
minha boca como se tivesse levado o tiro no lugar daquele jovem.
— Deu pra ver os rostos em algum momento? — o escrivão perguntou, gerando ainda
mais interesse na dupla de executores.
Só consegui acenar que sim. A voz era inexistente.
E tive a confirmação naquele instante de que olhava para os mesmos homens de
capacete, pois o sorriso que um deles abriu seria minha sentença de morte.
— Tem certeza de que viu? — um deles perguntou. — Pense bem. Nós estivemos lá
depois que encontraram o corpo. Era uma rua erma e sem muitas casas ao redor.
— Ela disse que mora em um quartinho no segundo andar da lanchonete da esquina —
o escrivão me delatou, e percebi que estava sem saída.
Merda! Merda! Merda!
Dei um passo para trás, recuando.
— Eu... — comecei a dizer. — Não tenho certeza se...
— É claro que você não tem certeza — o outro policial falou. Tinha um claro tom de
ameaça na voz, mas que só eu percebi.
— Talvez a gente devesse acompanhar o depoimento, já que o delegado não está — o
segundo deles disse.
Olhei para o escrivão, que pareceu pesar aquela possibilidade, e então me desesperei,
guaguejando:
— Na verdade, eu prefiro falar depois. Direto com o delegado.
Os policiais me olharam enquanto eu recuava, buscando desesperadamente a porta da
rua.
— Tem certeza? — o escrivão pareceu perdido.
— Sim, eu... — Engoli em seco. — Volto amanhã.
E nunca mais voltei.
Naquela mesma noite, uma bomba caseira foi arremessada no comércio do primeiro
andar, além de tochas de fogo que quase incendiaram meu apartamento. Eles deram o recado
deles, e eu compreendi.
Iam me matar se eu contasse o que vi.
Sem proteção e sozinha, fugi.
— Liguei para vocês no meio da noite, depois que pedi ajuda aos primos de minha mãe
e eles se recusaram a me abrigar. Disseram que fui inconsequente de me meter com a polícia, e
que resolvesse meus problemas sozinha — finalizei o relato aos Siqueira. — Eu só tive tempo de
pegar as poucas roupas que sobraram e sair antes que eles soubessem. Peguei carona até uma
cidade vizinha e de lá encontrei um ônibus que seguiu para cá.
— Tem certeza de que não foi seguida? — José questionou com cautela.
— Quase cem por cento. Eu parei em várias cidades antes de chegar aqui. Mudei minha
rota e pintei o cabelo no meio do caminho. Acho que o que eles queriam com aquele ataque era
me afugentar e... conseguiram. Ficou parecendo que era uma ação de pessoas querendo assaltar a
lanchonete, pois eles quebraram todo o primeiro andar também, então ninguém ligou para mim
ou o meu paradeiro. E como eles eram da polícia, podem dar a versão que quiserem do que
aconteceu.
Vi meus padrinhos se entreolharem. Engoli parte do medo e fiz a pergunta:
— Vão me expulsar daqui?
— Nossa palavra é uma só — Sofia murmurou segura. — Você é nossa afilhada, e fica
aqui pelo tempo que precisar.
— Obrigada. — Soprei aliviada. — Agora entendem porque não quero contar a
ninguém quem eu sou. Até a polícia daqui pode me prejudicar.
— Sim. Entendemos.
— O viúvo Maldonado não gostou quando perguntei sobre a esposa dele. Por isso
reagiu daquela forma.
Era no que eu acreditava, depois da sua reação intempestiva.
— Não se meta mais nos problemas dos Maldonado — meu tio aconselhou com um
leve tom de reprimenda. — Nós só moramos do lado do viúvo porque respeitamos as vontades
dele.
— Ele realmente matou a esposa? — questionei.
— Isso não é da nossa conta — Sofia disse.
— É que ele parece sofrer tanto pela morte dela — argumentei. — Por que a mataria?
José e Sofia se entreolharam. Foi ele quem retomou:
— O que sabemos é que ela levou um tiro em um assalto à usina de cana e perdeu os
movimentos das pernas e braços. Um dia, a encontraram morta com uma seringa vazia ao seu
lado. O próprio Lucas a encontrou. Segundo ele, a mulher não estava bem. Não aceitava seu
estado e resolveu dar fim à própria vida. Os médicos depois confirmaram. Ela morreu de uma
embolia causada por uma bolha de ar. Uma coisa horrível.
Olhei para meus joelhos. Um deles, ainda avermelhado da queda de mais cedo. No
braço, ainda sentia o ardor do corte do arame farpado.
Me lembrei de Lucas ajoelhado à minha frente. Uma mistura de raiva com delicadeza ao
cuidar de mim.
Seria ele capaz de matar a própria esposa?
Eu duvidava muito.
— Eu não acredito que ele tenha matado a mulher, mas ela conseguiria dar fim à própria
vida? — questionei.
— Essa é a pergunta que toda a cidade faz nos últimos quatro anos — José falou. — O
delegado tentou por tudo incriminar Lucas, mas nunca conseguiu provar que foi ele.
Concordei com um aceno. Lucas tinha um passado sombrio, assim como o meu.
Me lembrei mais uma vez das mãos calejadas raspando o algodão em minha pele. Do
corpo nu no meio da madrugada. Dos olhos negros e vazios de vida.
Era como um abismo me chamando para a queda livre.
E eu ia me jogar.
— Mantenha distância do senhor Maldonado, Gabriella.
— Vou manter — disse só por costume.
Lá no íntimo, eu só imaginava quando teria a oportunidade de confrontá-lo de novo.

A chance surgiu dois dias depois.


Uma movimentação diferente tomou conta do sítio dos Maldonado quando Lucas
apareceu no meio da manhã acompanhado de dois homens.
Os cachorros, desacostumados com a presença de estranhos, começaram uma barulheira
sem fim, enquanto eu observava tudo do meu lado da cerca.
Vi um homem com cerca de trinta anos, pele negra e porte atlético acompanhado de
outro, mais velho, descerem após Lucas dar o comando, fazendo os cães sentarem-se
comportados. Eles trocaram algumas palavras até que o mais novo olhou em minha direção,
acenando e sorrindo.
Acenei de volta e ele afastou-se dos outros dois, vindo em minha direção. Nem sei quem
era, mas ele parecia me conhecer.
— É a afilhada dos Siqueira, não é? — o homem perguntou de maneira amistosa.
— Isso.
— Sou Salazar. Filho da Margarida.
— Eu adorei a sua mãe! — exclamei animada. — Ela me falou de você! Inclusive, me
deu alguns livros que disse ser da época em que você estudava para concursos.
— Sim. — Ele sorriu. — Tentei vaga nas cidades vizinhas por um tempo, mas acabei
ficando por aqui. Gosto de Sibipiruna, apesar de parecer um lugar meio...
— Arisco? — arrisquei.
— Exato. — Ele riu mais. — Acho que encontrou a palavra certa. Sibipiruna é uma
cidade arisca, mas que vale viver.
— Estou gostando daqui.
— Minha mãe disse que você gosta de ler. Que ficou empolgada com os livros que eu
usava para meus estudos.
— Sim. Muito!
— Tenho outros livros se quiser. — Meus olhos devem ter brilhado, e ele percebeu
minha empolgação. Como eu sentia falta de ler e aprender! — Temos uma biblioteca na escola
municipal. Pequena. Pode ir lá sempre que quiser. Só fazer sua ficha.
Minha empolgação morreu um pouco.
Tudo o que envolvia revelar minha identidade ainda me causava receio. Tentei disfarçar,
dizendo:
— Verei depois.
Pelo canto do olho, vi a aproximação do protagonista dos meus sonhos mais safados.
— O que está fazendo, Salazar?
Lucas era grosso com qualquer um, e aos poucos eu percebia ser um comportamento de
defesa.
Eu gostava cada vez mais daquilo.
— Conversando com sua vizinha — o tal Salazar disse. — Mamãe fala sempre de
Gabriella. Diz que há muito não via alguém tão feliz com livros nessa cidade.
Vi Lucas me analisar por quase três segundos. Foi o recorde de tempo que ele olhou
para mim desde que nos conhecemos, e só por aqueles segundos, tive uma prova do que era ter a
atenção daquele homem.
Era quase devastador.
— Ela não é minha vizinha — resmungou.
— Oi, Trovão! — Acenei para o cão de pelo escuro, que se aproximou animado e
abanando o rabo para mim.
Eu fazia evoluções espetaculares com os cachorros. Até mesmo Sombra e Juiz me
aceitavam sem mostrar os dentes enquanto Estrela, a que quase arrancou minha perna no
primeiro dia, abanava o rabo e parecia me considerar uma “de casa”.
— Já está até amiga dos cachorros — Salazar concluiu, parecendo divertir-se da minha
interação com os animais.
— Porque é desobediente e atrevida! — Lucas me acusou, fazendo as sobrancelhas
juntarem-se e fechando o cenho. Voltou-se para o outro homem e o apressou: — Vamos logo,
antes que eu repense a ideia de levar os cães.
— Aonde vão levá-los? — perguntei por pura curiosidade.
Se pudesse, Lucas me matava com o olhar.
Salazar, ao contrário, virou-se para mim e respondeu de pronto:
— Estamos há dias buscando pistas de alguns baderneiros que estão invadindo fazendas
da região. Já chamei seu vizinho inúmeras vezes para nos acompanhar na caçada e ele,
milagrosamente, resolveu nos ajudar essa tarde.
— Vocês vão matá-los? — Apontei para as armas na cintura.
— Não. — Salazar riu. Era a simpatia em pessoa. — Isso aqui é só um costume do
pessoal de Sibipiruna que nem o delegado Antenor conseguiu mudar. Mas é todo mundo da paz.
Ninguém vai matar ninguém.
Concordei com ele, observando Lucas nos virar as costas e seguir rumo ao sítio.
— Não repara no jeito dele — Salazar murmurou.
— Já me acostumei. — Bati uma mão no ar.
— Bom. — Salazar me olhou uma última vez. — Mamãe gostou muito de você. Disse
que é para visitá-la quando voltar em Sibipiruna.
— Obrigada! — exclamei. — Diga que vou lá assim que puder.
— Salazar! — Lucas gritou com grosseria, e o outro despediu-se fechando a cara para o
amigo.
Será que eles eram amigos?
Lucas não parecia ser amigo de ninguém.
O vi orientar dois dos cachorros a subirem na carroceria da sua caminhonete robusta
enquanto os demais ficaram na varanda.
Antes de sair, o homem me olhou e fez um sinal na direção dos cães, como se me
indicasse que eles continuariam vigiando o terreno. Balancei os ombros, nem ligando.
O carro deu a volta na frente do sítio antes de sair mais uma vez na estrada, me
deixando sozinha.
Me voltei para Sombra, Estrela e Juiz, que ficaram. Claro que ele deixaria os mais
ariscos comigo. Vai ver, eu representava mais perigo que os invasores da cidade.
Estrela me olhou e Juiz lambeu o focinho, me encarando à distância.
— O que acham de um mergulho no córrego? — convidei, vendo-os erguerem-se de
imediato, todos prontos para me acompanhar. — Guardei ossos para vocês do almoço daqui de
casa.
Sombra abanou o rabo e Juiz espreguiçou-se inteiro antes de correr na direção da cerca.
— Ótimo! — falei, aceitando aquilo como uma resposta. — Vou só trocar de roupa e
desço.
Se Lucas Maldonado achava que iria me afastar mantendo aqueles cachorros ali para me
amedrontar, estava redondamente enganado.
Capítulo 14

Não encontramos nada significativo.


Cedi parte dos cães em troca de um grupo que vistoriasse as margens do outro lado do
córrego que serpenteava meu terreno. Alguém realmente passou por ali, pois Trovão achou lixo
jogado às margens, coisa que morador da região jamais deixaria, além de marcas de pneus.
As estradas ao redor de Sibipiruna eram sempre vazias e tranquilas, e dificilmente
alguém tenha visto o carro que andava rondando as fazendas. O ideal era que o prefeito
instalasse logo câmeras na entrada da cidade, ou jamais pegaríamos aquelas pessoas.
Peraí. Por que estou me preocupando com isso?
O incômodo por estar preocupado com alguma coisa retornou feito uma ressaca amarga.
Era como se algo me forçasse a despertar daquele coma que a morte de Tereza me
provocou.
Só que eu ainda não queria acordar.
Me debatia, inconformado, e buscava no álcool a dormência e, principalmente, a
ausência de consciência que eu me afundava nos últimos anos.
Eu não queria me importar com aqueles invasores, nem com aquela cidade e seus
moradores ou...
A loirinha.
Mas jamais admitiria que foi por ela que decidi fazer aquelas buscas.
Se ela fugia de algo tão perigoso, precisava me certificar de que não estava perto. E de
que realmente não eram eles os mesmos que metiam medo em Sibipiruna.
Depois de uma tarde inteira no meio da mata, retornei com Trovão e Perverso. Teria
preferido levar Sombra e Estrela no lugar do último, mas optei por deixar os mais guardiões para
vigiar o vale e os dois sítios.
Estacionei a caminhonete já de noite e, pela primeira vez em muitos meses,
completamente sóbrio. Os cachorros correram para se alimentar e beber água fresca, enquanto eu
observava se tudo estava em ordem. Na residência vizinha, todas as luzes estavam acesas, sinal
de que os Siqueira já tinham voltado. Foi então que reparei que Juiz e Sombra estavam parados
ao lado da cerca que dividia as chácaras, bem longe da sede.
Assobiei para os cães e fui ignorado.
Comecei a xingar, já imaginando que eles estavam ali por culpa da loirinha e me
aproximei. No meio do caminho, vi a mulher de cabelos pintados surgir de dentro da porta.
A maldita usava um vestidinho capenga. Um trapo de pano pequeno, mal cobrindo as
pernas e braços. Sei que Sibipiruna era quente, mas no vale costumava esfriar à noite. Aquilo era
pura provocação.
Gabriella marchou na direção dos cachorros, segurando algo que não consegui ver pela
escuridão da noite. Levava uma lanterna consigo, e os cães começaram a latir e abanar o rabo
quando a viram.
— É só uma fêmea — resmunguei contrariado para os machos imbecis que não paravam
de abanar o rabo, deixando evidente que estavam trocando de time.
— Oi, Lucas! — ela exclamou animada e me mantive calado. — Prometi alguns ossos
pra eles, e estão aqui esperando.
Sem me consultar ou pedir, ela simplesmente jogou cinco ossos gigantescos do meu
lado da cerca. Nem mesmo Estrela, a única que parecia imune à loirinha, deixou essa passar.
Todos saltaram como famintos nos ossos, cada um pegando o seu e saindo rebolando com seus
prêmios.
— Pare de fazer isso. — Deixei evidente toda minha raiva na voz.
— Como foram as buscas? — ela devolveu com uma pergunta, ignorando meu mau
humor.
— Não se meta nesse assunto — falei.
— Sei que vocês estavam do outro lado da margem — ela insistiu. Corajosa. Teimosa.
A garota crescia a cada dia, e estava ficando insuportável compartilhar o ar com ela. —
Encontraram pistas do homem que eu vi?
— Sim — cedi ao ver apreensão em seu olhar. — Marcas de pneu e restos de comida
que ele deixou. Provavelmente estava usando a margem para descansar e se esconder, mas
ninguém viu nada.
— Droga — ela lamentou, bufando baixinho.
— Conseguiria descrever o homem que viu?
— Não deu para ver seu rosto.
Parei, observando-a. O corte causado pela cerca cicatrizava no braço, e ao olhar para
suas pernas, só vi traços dos ferimentos de dias atrás. Voltei a fitar o braço enfaixado e
perguntei:
— Tá cuidando disso daí?
Ela sorriu feito uma diaba.
— Tô sim. — Me olhou daquele jeito quente e carregado de algo que eu tentava ignorar.
— Quer comer com a gente? — Apontou para o sítio vizinho. — Tem arroz com suã.
Recuei um passo.
Uma refeição compartilhada era algo que eu não fazia há quatro anos.
A sobriedade do corpo falou mais alto, e meu estômago roncou. Se estivesse bêbado,
não teria aquela reação.
Gabriella percebeu, pois abriu mais o sorriso de naja e comentou:
— Deve estar com fome depois de passar a tarde no meio da mata.
— Prefiro ficar sozinho. — E eu realmente preferia.
— Aceita — ela insistiu. — Madrinha faz o melhor curau que eu já comi.
— Não. — Me decidi, virando as costas para a mulher e seguindo na direção contrária.
Os cães começaram a latir e me virei a tempo de vê-la atravessar a cerca.
Mas que loirinha mais...
A vontade que tive foi de mandar os cinco para cima dela, mas algo me dizia que eles
não me obedeceriam.
Jogando a luz da lanterna no chão, ela aproximou-se, sorrateira feito o demônio.
— Loirinha... — rosnei, vendo-a parar à minha frente.
Mal batia em meu peito com seu vestido minúsculo e a lanterna nas mãos pequenas. Os
cabelos chegavam quase na bunda ao me mirar. O que vi foi pecado em seu rosto quando ela
sorriu e então provocou:
— Viu? Eles já me aceitam. Agora só falta você. — Piscou de um jeito que fez minha
virilha formigar.
Que porra tá acontecendo?
— Eles te toleram.
— Você me tolera? — perguntou.
— Não.
E me virei de costas mais uma vez, até que ela me tocou.
A mão delicada agarrou meu braço, e tudo queimou ao redor.
— Gabriella. — Meu tom saiu ameaçador ao sentir os dedos incendiarem meu bíceps.
— Eu só estou te chamando pra jantar, Lucas. Sei que quer ficar sozinho, com seus
cachorros, mas não precisa ser assim todas as noites.
Baixei a cabeça, fitando o pasto negro à minha frente.
Eu não merecia companhia.
A solidão era meu castigo.
Eu a matei.
Com a mão livre, do braço que ela não segurava, puxei a aba do meu chapéu mais para
baixo, escondendo o rosto.
— Meus padrinhos pediram para te chamar — ela mentiu. Tenho absoluta certeza que
mentiu. — Lucas...
A mão apertou meu braço. Sutilmente, mas de uma maneira que pareceu me rasgar.
Anos imune a tudo.
Aos antigos amigos, às lembranças, ao trabalho...
E tudo parecia querer desmoronar com um simples aperto em meu braço.
Gabriella deu um passo na direção das minhas costas. Senti o corpo pequeno aquecer
minha lombar e estremeci.
Sem conseguir mais aguentar, a puxei.
Com um único tranco, fiz a mulher ficar à minha frente. O queixo cheio de provocação
quase bateu em meu peito, e as mãos se ampararam em mim, piorando a sensação de
sufocamento.
— É um último aviso — sussurrei. — Não. Atravesse. A. Cerca.
Minha barba encostou pela primeira vez na pele delicada. A vontade foi de me enfiar
inteiro em seu corpo. Descarregar a maldita raiva que eu sentia dela e de mim.
Seus olhos no meio da noite eram feito o conhaque que me viciava.
Eu me viciaria facilmente por eles.
Cheia de uma coragem que era incomum em alguém tão... frágil, a loirinha murmurou:
— Acontece que eu já atravessei.
— Uma hora vai se arrepender de ter feito isso.
— Vou mesmo?
E ela deu um passo.
Não para trás, mas em minha direção.
Os olhos batiam na altura do meu peito, e as mãos pairavam mais embaixo, pouco acima
do abdômen. A boca era vermelha como o sangue que tingiu seus joelhos no dia que fugiu de um
estranho na mata.
Era tentador...
E eu estava sóbrio.
Pro inferno! Eu estava sóbrio demais para me lembrar depois.
— Eu vi você aquela noite — a garota sussurrou. Tinha um hálito fresco como um
riacho.
Eu sei do que ela falava, mas me mantive calado para não confirmar.
— Naquela madrugada, junto dos cães. Eu te vi — ela insistiu, respirando bem perto da
minha camisa. Minhas terminações ardiam com o simples toque do ar quente que escapava de
sua boca. — E eu quero ver de novo.
Sóbrio demais para me lembrar disso...
— Gabriella...
— Quero ver de perto — ela sussurrava, como quem confessa um pecado mortal. —
Quero...
Seu olhar desceu sobre meu corpo. As bolas de tom castanho vagaram pelo peito e
pareceram invadir minha camisa. A mão enfim tocou meu peito, pressionando-o de leve
enquanto todo seu corpo pendia na direção do meu.
Com o chapéu enterrado no meio dos cabelos, desci meu rosto até quase tocar o seu.
Minha barba raspava na pele acetinada da sua testa quando falei:
— Não queira algo sem ter a certeza de que é capaz de aguentar.
— Você não me conhece ainda, cowboy. — Com ironia na voz, ela tocou a aba do meu
chapéu. — Não sabe o que já passei nessa vida ou o que sou capaz de “aguentar” quando quero
alguma coisa.
A encarei. Deveria estar mais sério que o meu normal, mas aquela era a carapaça para o
que eu sentia por dentro.
Quatro anos vivendo de solidão haviam me ensinado a fingir não mais sentir.
— Não terá nada de mim, loirinha.
— Algo me diz que terei. — Ela seguia inabalável.
— E como tem tanta certeza?
Ela empinou o queixo e se aproximou antes de soprar:
— Porque sua mão ainda não soltou meu braço. — Engoli em seco. Era verdade. —
Porque seus olhos não conseguem olhar em outra direção. — A garganta estava travada. — E
porque você até tenta me afastar, mas é feito sua matilha. — Seu nariz arrebitado quase tocou
minha camisa quando ela finalizou: — Você já me deixou ultrapassar a cerca.
Maldita loirinha.
Meu rosto desceu mais, e toquei os lábios na pele quente dela. Sim, meus dedos ainda
rodeavam um de seus braços, e os usei para trazê-la para mais perto. Tudo parecia me sufocar
quando meus lábios se aproximaram de seus cabelos, e sussurrei bem perto de um de seus
ouvidos:
— Ainda posso te expulsar.
— Só que você não vai.
Com essas palavras, ela sentenciou nós dois.
E condenado, rocei a barba nas maçãs de seu rosto. A senti estremecer, enquanto todo
meu corpo parecia despertar de um profundo e demorado coma. Tudo acordou, ainda que aos
poucos. Lento e dolorido.
Mas estava acordando.
A respiração dela batia no meu peito, e eu sentia o frescor que vinha de seu pescoço. Os
cabelos, que ainda julgava loiros demais, estavam úmidos e exalavam um aroma de shampoo. A
boca estava entreaberta, a centímetros da minha. Como se me esperasse chegar mais perto para
me atacar.
Por alguns segundos, me esqueci de todo o resto. Dos cães ali perto, da escuridão ao
redor, ou dos perigos daquele lugar. Tudo o que senti foi o desejo...
O maldito desejo que me assolava a dias.
Que me sondava, perigoso.
Que crescia sempre que via os cabelos tingidos e a postura atrevida.
Minha boca quase tocou a dela. Senti seu hálito invadir o meu, mas não avancei. Ainda
havia uma grande parte minha que estava morta. Adormecida e embriagada.
Essa parte era mais forte, e lutou contra o resto.
Mirei seus olhos, tão perto que mesmo naquela escuridão os enxergava com clareza.
Não havia medo nem pudor, ou qualquer outro sentimento que eu quisesse que ela
sentisse ao me ver.
O que vi foi tudo o que tentava repelir de qualquer pessoa.
Era curiosidade.
Interesse.
Desejo.
Os lábios vermelhos me chamavam, mas resisti. Olhando dentro do fundo dos olhos de
Gabriella, me decidi:
— Não.
Rosto quase colado ao meu, ela sorriu. A aba do meu chapéu também encobria o rosto
dela quando seus dentes brancos apareceram no sorriso, e ela pareceu quase dizer:
“Vou fazer você dizer que sim.”
Soltei seu braço, mas ela não recuou. Bufando, eu mesmo a afastei, empurrando-a de
leve pelos ombros até que estivesse a uma distância segura.
— Volte para sua casa — ordenei.
— Eu vou. — Ela ao menos permaneceu parada, mas vi seu olhar descer sobre meu
corpo sem qualquer pudor. — Mas ainda vou te convencer a fazer uma refeição com a gente.
— Você está se iludindo. — Dei um passo na direção do meu sítio, já que era inútil
tentar expulsá-la dali, e ela me seguiu. — Eu não vou te aceitar, assim como os cães não te
aceitaram. Eles não gostam de você, só estão se aproveitando da comida que você dá.
— Eles gostam sim. — Ela me seguia de perto, e estralou dois dedos na direção de
Trovão que rapidamente começou a abanar o rabo para ela. — Viu?
Nos aproximávamos da varanda do meu sítio, e percebi que ela não pararia no meio do
caminho. Foi quando me voltei, disposto a estabelecer um limite.
— Pare agora! — esbravejei. — Daqui você não passa!
— Nossa, mas...
— Nem mais um passo, loirinha.
— Não me chama de loirinha! Eu nem ao menos sou loira.
— Pouco importa como você seja. — Minha voz saiu ameaçadora. — Ouça bem o que
vou dizer, está me entendendo? Você ultrapassou a maldita cerca, mas continua não sendo bem-
vinda. Só volte para seu lugar e me deixe em paz!
Ela parou.
Finalmente!
Olhou para mim daquele jeito que era atrevido e desafiador, e que nunca vi em outra
pessoa antes.
As mulheres com quem convivi eram mais tranquilas e amenas. Minha avó, que foi
quem me criou por anos, era religiosa e pacata. Mostrou-se resignada com os desafios, e acredito
que jamais enfrentaria o mundo de queixo erguido como aquela garota.
Tereza já era mais inconstante. Alternava entre uma personalidade depressiva e, por
vezes, vestia uma capa de orgulhosa e indiferente. Não conseguia imaginá-la insistindo tanto em
permanecer em um lugar que não era bem-vinda.
Por que Gabriella persistia?
— Você diz para eu te deixar em paz, Lucas, mas o que você não percebe é que você
não está em paz agora.
E assim, ela se afastou.
Virou-se com sua lanterna e seguiu o sentido contrário, voltando para o sítio dos
Siqueira.
Da escuridão da noite, eu só conseguia ver a luz pequenina que guiava seu caminho,
enquanto as palavras reverberavam em minha mente.
“Você não está em paz agora”.
É. Eu não estava.
Minha mente era o próprio inferno.
Capítulo 15

Era uma manhã ensolarada e as cortinas bordadas de madrinha Sofia não barravam o
vento fresco que entrava. Os pássaros cantavam e eu me espreguiçava sonolenta quando ouvi
passos na cozinha.
Pelo horário, meus padrinhos já estavam no campo, então me levantei alarmada. Ao
chegar no portal que dava para o cômodo, paralisei assustada ao ver Lucas.
Ele carregava um balde cheio de cajus. Imensos e maduros. Deixou o chapéu em cima
da mesa e limpou as mãos na calça jeans, fazendo um manto de poeira se erguer ao seu redor.
As botas sujaram o chão encerado da cozinha, e ele abriu um sorrisinho antes de dizer:
— Gostaria de pedir desculpas pela maneira como reagi ao seu convite ontem.
Enruguei a testa, estranhando o comportamento cortês.
— É você mesmo? — perguntei.
— Claro que sou eu. — Ele caminhou em minha direção. Eu usava uma camisola de
algodão simples e estava descalça enquanto ele tinha calças grossas e botas gastas, além de uma
camisa de manga comprida que havia sido dobrada até o cotovelo. Seu porte e a maneira como se
aproximava davam a impressão que ele tinha o dobro do meu tamanho.
E poderia fazer o que quisesse comigo.
— E o que mais quer aqui? — perguntei quando ele parou na minha frente. A camisa de
botões era de um xadrez que mesclava vermelho e bege, e a cor da sua pele parecia ainda mais
bronzeada com aquela roupa de tecido grosso.
— Eu quero aquilo que você queria ontem à noite — ele sussurrou. A rouquidão da voz,
que aos poucos eu me acostumava, ficou ainda mais grave. Carregada de tesão. — Quero você,
Gabriella.
E então, ele me beijou.
De uma maneira que fez meu corpo inteiro amolecer e perecer enquanto ele me
carregava na direção do quarto.
Nem vi o instante em que a porta se fechou, ou que ele arrancou a camisa e logo depois
a calça. Só sei que em um instante ele estava ali, nu, na minha frente.
Exatamente como naquela madrugada, só que agora bem perto. Ao toque das minhas
mãos.
Seus beijos eram intensos e brutos, exatamente como a personalidade do homem.
Ele mordia meus lábios ao ponto de doer, e então chupava minha pele. Sugava o lábio
inferior enquanto passava as mãos grossas por todo o meu corpo, também nu.
Como ele arrancou toda a minha roupa sem que eu percebesse?
Lucas me puxou os cabelos e mordiscou meu pescoço. Lambeu minha pele e me fez
gemer seu nome, enquanto ele também gemia o meu. Sua boca passava por mim e provocava
ondas de calor, deixando um rastro de seu hálito quente e dominante.
Eu sentia seu pau, firme e grosso, arrastar-se por mim, como se marcasse terreno.
— Eu quero, Lucas — supliquei, e ele concordou.
Soltou um som profundo e rouco antes de passar uma perna por meu corpo, debruçando-
se sobre mim. Ele raspou a barba em minha pele, e senti seu cheiro dominar tudo. Seus cabelos
eram grossos, cheios, e enterrei minhas mãos no meio deles quando mordiscou meu seio.
Fechei os olhos e o senti me lambuzando. Me mamando e me provando de uma maneira
que poderia enlouquecer qualquer mulher.
Que com certeza me enlouqueceria.
Ele me beijou. Voltou a sugar meus mamilos e então se esfregou em mim.
Eu chorava por seu pau dentro de mim, e ele continuava me provocando. Me queimava
com o toque entre as pernas enquanto as mãos firmes seguravam meus quadris.
— Lucas... — chamei. — Lucas, eu vou gozar.
Ele não respondeu. Só continuou me beijando e provocando e sugando meus seios. E
quando eu estava prestes a gozar, quando meu corpo começava a sentir a primeira onda de
estremecer suave, o canto alto de um galo se fez na janela do quarto, e eu por um segundo olhei
para fora, pensando que era a primeira vez que eu ouvia aquele galo cantar naquela manhã.
E foi nesse instante que eu acordei.
A ave maldita e destruidora de sonhos eróticos voltou a cantar, e percebi que ainda era
cedinho. Apesar de frio, meu corpo queimava, e levei inconscientemente uma mão até o meio
das pernas trêmulas.
Molhada.
Tão molhada como se Lucas tivesse realmente passado por ali. Eu ainda era capaz de
sentir o peso do corpo imenso sobre o meu, e os pelos arrepiados eram prova viva de que aquele
sonho, para os meus sentidos, foi bem real.
O desejo era real, assim como a respiração ofegante e o pulsar na boceta.
Arfando, massageei o tecido da calcinha com um dedo.
Céus, se o sonho já era bom, o que seria a realidade com aquele homem?
Ou será que ele seria uma completa decepção?
Meu indicador friccionou o tecido de algodão encharcado, e fechei os olhos ao sentir a
sensação gostosa de estremecer da pele.
Gemi, pensando no peito largo e de pele bronzeada, e me lembrando da sensação que
era sentir a barba cheia atiçando minha pele.
A voz grossa e carregada de dureza não me expulsava de seu terreno em minha
imaginação, e sim dizia sacanagens.
Seria Lucas um homem depravado na cama? Que diz sacanagens e esgota a mulher?
Eu estava cansada de imaginar. De sonhar com aquele corpo gigantesco e nu sobre
mim, ou de desejar aquela voz potente sussurrando o que quisesse em meus ouvidos.
Ele poderia me chamar de filha da puta e me expulsar quantas vezes quisesse. Se o
fizesse falando bem perto do meu ouvido, como fez na noite anterior, eu iria adorar.
Deixei escapar mais um gemido ao me lembrar da sensação de seu hálito invadindo meu
rosto. Me lembrei do sonho e de como o beijo imaginado era bom. Toquei um dos seios e o
apertei enquanto a outra mão afastava a calcinha e se enfiava em mim.
O galo voltou a cantar e o ignorei, pensando naquela boca imensa cobrindo todo meu
seio. Tive de morder os lábios para esconder o gemido mais alto e então gozei de uma maneira
que não acontecia há meses.
O corpo estava febril e a mente vagava enquanto eu tentava respirar. A sensação foi tão
boa e libertadora que, ao invés de me saciar, me deu mais desejo.
Eu precisava saber se o que minha imaginação criou de Lucas era real, e faria o que
estivesse ao meu alcance para descobrir.
Esperei as coisas se acalmarem em meu corpo e fui ao banheiro. Me limpei e, como o
corpo estava totalmente desperto, decidi me levantar. Ao chegar na cozinha, meus padrinhos
tomavam o café.
— Caiu da cama hoje? — madrinha Sofia perguntou simpática.
As manhãs no vale eram frias, e caía uma garoa fina no momento em que saí na porta
para apreciar o pasto molhado.
Ao longe, vi a caminhonete vermelha estacionada ao lado do sobrado de dois andares.
— Tive um sonho e perdi a vontade de dormir — contei, ainda fitando o terreno
vizinho.
— Vou em Sibipiruna hoje à tarde fazer umas compras — padrinho falou. — Se quiser,
venha comigo. Você passa muito tempo enfurnada aqui nesse vale.
— Não tenho lá muita opção. — Dei de ombros. — Já me ofereci para acompanhar
vocês na plantação...
— E já dissemos que não precisa — foi minha madrinha quem disse. — Continue lendo
as apostilas que Margarida deu. Uma hora, você não vai precisar mais fugir, e quando isso
acontecer pode ir atrás de um futuro melhor do que colher milho.
— Não acho um futuro ruim viver da terra — opinei, finalmente me virando para eles.
— Estou gostando de Sibipiruna. — Retorci as mãos, aproximando-me da mesa em que eles
estavam. — Não sei por quanto tempo querem me dar abrigo, mas por mim, eu ficaria para
sempre.
Sofia e José sorriram. Nossa rotina não era a mais afetuosa. Eles passavam muito tempo
na lida do campo, mas quase sempre almoçávamos e jantávamos juntos. Eu acompanhava os dois
sempre à cidade e, pouco a pouco, me afeiçoava ao casal.
— E pode ficar — padrinho disse. — Mesmo assim, achamos que aqui em Sibipiruna
existem oportunidades melhores para você.
Concordei, me sentando à frente deles na mesa.
Não sei que oportunidades uma mulher que nem ao menos podia revelar seu sobrenome
por medo de ser encontrada pela polícia poderia ter em uma cidadezinha como aquela.
O café da manhã foi tranquilo, e depois que os dois saíram, me distraí com os afazeres
da casa.
Organizei tudo e me sentei na varanda. Padrinho José dizia que as chuvas responsáveis
por “inchar” os grãos de milho já estavam para chegar, e ele de fato tinha razão.
O dia estava abafado, e uma nuvem escura tampava parcialmente o céu. Olhei para o
pasto e percebi que a caminhonete vermelha continuava estacionada no mesmo lugar.
A essa hora, ele já deveria ter saído. O que ainda fazia ali?
Me lembrei do sonho de manhãzinha e senti o corpo inteiro estremecer enquanto
caminhava rumo à cerca de arame farpado.
O que eu tinha a perder, não é verdade?
Estava longe de querer algo sério com alguém. Tudo o que eu buscava era saber quanto
da minha imaginação correspondia à realidade.
Àquela hora, os cães estavam espalhados. Toquei o cercado, fazendo os sinos soarem e
chamarem por todos de uma vez. Bem ao longe, vi uma cortina no segundo andar tremular na
casa do Maldonado.
Trovão e Perverso sequer latiram para mim quando me emborquei e passei entre dois
arames. Eu sempre me perguntava porque do nome Perverso, já que aquele era um dos mais
dóceis.
Juiz me rodeava silencioso. Eu já não tinha medo dele, mas seguia atenta aos seus
movimentos. Era um cão calado demais.
Estrela e Sombra me farejaram e deram latidos altos, voltando-se para a residência do
seu dono e delatando minha invasão.
Claro que eles, ainda que tolerassem minha presença, seguiriam fiéis ao chucro sem
educação.
Caminhei devagar, sentindo o chão meio encharcado de orvalho molhar minhas canelas.
Ao chegar no pé de caju, já bem perto do sítio de dois andares, parei e observei o local.
A árvore ainda estava carregada de frutos, e não resisti a pegar um bem maduro que vi ao alcance
das mãos.
— Você tem algum problema para entender o que os outros dizem? — Lucas
questionou do alto da varanda. Estava bem longe, mas consegui ver que tinha o rosto e cabelos
molhados, como se tivesse acabado de sair do banho, e usava uma camiseta surrada e com
respingos de água nos ombros.
Que homem!
— Eu só estava pegando um.
— Aqueles que te dei não foram o bastante? — Ele estava bravo com alguma coisa.
Seus olhos estavam vermelhos, e seus punhos travados ao lado do corpo.
— Isso foi há dias! — argumentei, dando alguns passos na direção da casa, e recebendo
de volta um olhar fechado.
Ele ergueu a mão, como se me mandasse ficar quieta no lugar, mas o ignorei. Foi
quando começou a descer a escadas, rumo em minha direção.
Seus passos firmes ressoaram no pasto fofo, e vi que o cinto da calça estava
desafivelado. Não consegui mais desviar os olhos daquele ponto enquanto ele se aproximava. O
olhar era penetrante em mim, e a barba também estava cheia de respingos, só tornando-o ainda
mais tentador.
Meu Deus, eu preciso beijar esse homem.
Lucas parou a alguns metros, falando com uma voz baixa e levemente pastosa:
— Quando quiser comer cajus, vá na cidade e compre. — Ele enterrou as mãos na
cintura e seus ombros pareceram crescer. Mirei o peito grandioso e me lembrei de como parecia
me prensar na cama no sonho de mais cedo.
— É um pecado deixar o fruto perder no pé enquanto outras pessoas poderiam comer.
— Eu não ligo. — Ele parecia com raiva de mim. E só por conta de um mísero caju.
— Eu não tenho culpa, Lucas Maldonado, se esse é o meu desejo.
Confesso que não falava de cajus ali.
— Eu não ligo para seu desejo. Quero que você entenda, de uma vez por todas, que nem
tudo o que quer, terá.
Acho que ele também não falava de cajus.
— E por que? — insisti. — É só uma vontade boba, fácil de ser saciada. — Empinei o
nariz para ele, enfrentando-o. — Não vou fingir que não quero quando todos os dias sou
obrigada a ver aquilo que mais desejo.
Ele parou.
Me fitou.
Ficou evidente que entendeu, pois tornou-se ainda mais bravo e selvagem,
aproximando-se alguns passos e analisando meu corpo.
— Ninguém liga pros frutos desse pé.
— Gosto do sabor deles. — Mirei a boca carnuda do homem emoldurada pela barba
aparada. — É peculiar. Marcante.
— Eles não são para você.
— E também não são de mais ninguém.
— Acho que está errada, loirinha. — Sua voz soou glacial. Fria e distante. — Esse lugar
aqui tem dono.
— E dona? — provoquei.
A reação que vi desencadeou um pulsar entre minhas pernas. Lucas chegou bem perto.
Tão perto que vi o brilho molhado ao redor de seus cabelos. Ele cheirava a sabonete fresco e
barato, e isso, misturado ao aroma do pasto e daquele homem viril, era o mais excitante de todos
os cheiros que já encontrei.
— Talvez ele ainda tenha — O vi sussurrar, baixando o rosto para mim.
— Eu não ligo, Lucas — falei. — Não quero tomar as terras de ninguém. Só quero me
saciar um pouco com os frutos.
Foi quando um raio me atingiu.
Uma tempestade inteira em formato de homem, que avançou em minha direção e
descarregou tudo.
Não.
O beijo imaginado no sonho não era nada parecido com a realidade.
Era aquém. Muito aquém.
Lucas Maldonado não beijava. Ele descarregava tudo em mim.
Ele me provava que por trás dos olhos escuros e cheios de dor e crueza, havia ainda
mais.
O beijo não tinha carinho nem compaixão. Talvez sequer tivesse desejo da sua parte.
Era só... raiva, ódio, dor e culpa.
Sua boca tomou a minha com uma violência assustadora. Suas mãos pareciam não
querer tocar meu corpo, mas tocaram. Se ele não me amparasse, eu cairia ali com sua força.
Como uma descarga elétrica que joga tudo de uma vez, foram mãos e língua e todo o
resto pesando em mim. A barba arranhou meu rosto, e seus dentes morderam com ódio minha
boca.
Ele não sentia nada por mim. Ao mesmo tempo, parecia sentir tudo ali.
Correspondi ao beijo, pois acho que nunca mais seria beijada daquela maneira. Com os
lábios sendo massacrados por uma boca imensa e afoita. Com uma barba espinhosa querendo me
marcar sem dó, e com mãos grossas e calejadas me apertando até o limite dos ossos.
Eu gemi quando a palma imensa agarrou todos os meus cabelos de uma vez e os puxou.
Doeu, mas eu quis mais.
— Lucas... — gemi, sentindo-me encharcada de imediato. As imagens da realidade se
misturando com o sonho de mais cedo.
O seu nome dito em gemido pareceu despertá-lo, e Lucas afastou-se alguns centímetros,
só para me mirar e dizer:
— Maldita loirinha...
É... eu realmente deixaria ele me xingar todinha.
A voz era rouca feito o latido de um cão, e aquilo fazia as sensações se misturarem em
mim. Eu devia temer, mas só queria mais.
E antes que eu respondesse ao “apelido educado”, fui novamente engolida por seus
lábios. E não foi Lucas quem se aproximou de mim. Ele me puxou de uma vez, fazendo uma
mão enveredar-se mais em meus cabelos enquanto a outra quase queimava minha cintura.
Fechei os olhos, beijando-o de volta e me fartando dos lábios cheios de vontade.
Tanto ódio assim só poderia ser porque ele também desejava.
E ele odiava me desejar naquele momento.
Meu corpo inteiro estava trêmulo, e percebi quando ele me ergueu em seu colo. Rodeei
sua cintura com as pernas e ele me amparou com facilidade, me segurando pela bunda.
Seus lábios desceram na direção do meu pescoço, e senti a barba arranhar a região.
Gemi mais uma vez quando o rosto marcado invadiu meu decote. Eu estava usando uma blusa de
alcinhas finas, e ele desceu uma delas para expor meu sutiã.
— Trapo de roupa miúda — ele rosnou, mirando por meio segundo meus seios, não
entendi se satisfeito ou não com a lingerie que eu usava.
A boca firme e cheia de vontade alcançou um seio. A aréola saltou para fora e ele a
mordiscou, fazendo minha boceta pulsar e eu agarrar seus cabelos.
Estava esquecida de tudo perdida naqueles braços. Nem me lembrava mais de onde
estava ou que fazia. Só sei que o simples ato de Lucas sugar um de meus seios estava quase me
fazendo gozar.
— Vai gozar, loirinha? — ele percebeu, afastando o rosto do meu colo e friccionando
meu corpo na sua virilha. O toque me incendiou toda ao sentir a firmeza de seu volume entre as
pernas.
Ele ajeitou parte dos meus cabelos, que deviam estar uma bagunça, e então voltou a
saborear meu colo, perdendo-se ali.
Invadida em todas aquelas sensações, deixei meu corpo pender para trás, enquanto meus
cabelos eram puxados com selvageria e meus seios engolidos. Era como um turbilhão que
devastava meu corpo, e que culminou em um orgasmo capaz de apagar minha mente.
Bem ali. No meio do pasto, em plena luz do dia, e nos braços de um homem que parecia
me domar com um simples toque.
Eu estava perdida.
Lucas não parou. Com largas passadas, ele percorreu a distância que levava ao alpendre
do sobrado, subindo os poucos degraus comigo no colo.
Ele não queria parar, e eu também não.
Meu corpo foi colocado sobre a grade da varanda, e me segurei em seus ombros,
enquanto sentia o peito nu ser atingido pelo vento morno da manhã no vale.
— Eu avisei, loirinha — Lucas sussurrou mordaz. — Disse para não se aproximar ou se
arrependeria.
— Ainda não me arrependi.
— Pois vai se arrepender já, já.
E em um tranco só, puxou meus cabelos. Expus o colo e fechei os olhos. Foi quando
senti uma ardência no seio direito.
Demorei a entender o que havia acontecido, até que abri os olhos e o vi admirando meus
seios.
Ele me deu um tapa?
A mão imensa e calejada surgiu novamente, atingindo o seio por completo e então
agarrando o mamilo.
Minha reação foi involuntária. Gemi abrindo as pernas e empinando mais os seios.
Lucas me fitou, ciente de que eu havia gostado. Pontos negros de seu olhar ficaram
ainda mais sombrios, e ele abriu um sorriso perverso.
— Não me provoca, loirinha... — E outro tapa. Agora mais forte.
Era previsível que Lucas Maldonado fosse uma fera no sexo. Eu que me preparasse
mesmo.
— Você gosta de bater, é? — provoquei, porque só se vive uma vez.
— Não. — Ele mirou meus seios. Estavam vermelhos e com marcas de dedos
gigantescos. — Eu gosto de marcar.
E sua mão imensa encobriu o peito inteiro, apertando-o com vigor e depois empurrando
o sutiã para mais baixo.
Sua mão escalou por meu corpo, parando em minha garganta. Os dedos calejados a
rodearam com uma delicadeza inesperada. Seus olhos pousaram em meu rosto e vi suas
sobrancelhas se juntarem quando me fitou. O sorriso perverso ainda estava ali, mas de uma
maneira estranha, eu não tinha medo.
Olhando no fundo dos meus olhos, senti sua mão se fechar em meu pescoço. Foi sutil e
devagar. Tão, mas tão sutil que nem pareceu real. O ar ainda passava, mas a pressão de seus
ossos era tão firme e dominante que eu esqueci de respirar.
E então, como se aquele fosse um limite intransponível, Lucas me soltou de repente.
Balancei na cerca da varanda, amparando meu corpo na grade com rapidez ou teria
caído. Quando me equilibrei, olhei para o homem à minha frente.
Seu rosto estava caótico. A barba arrepiada, assim como os cabelos grossos. Sua
respiração saía ruidosa e seus punhos estavam fechados ao lado do corpo. O pomo de adão
parecia travado, e em seus olhos vi uma tempestade confusa e sem definição.
De repente, eu parecia ser o demônio encarnado para ele.
— O que foi? — perguntei.
— Só... — Ele respirou algumas vezes. Seus olhos dançavam por todo meu corpo, ainda
meio desesperados. — Você ainda vai ser meu inferno, loirinha.
— Gabriella — o corrigi. — Eu posso sim ser o seu inferno na Terra. E meu nome é
Gabriella.
Parecia outro homem. Vazio e cheio de dor.
Acuado e transtornado.
Ele me estudou alguns segundos, como se não conseguisse acreditar que eu ainda
estivesse ali. Então, soltou de maneira quase desesperada:
— Vá embora.
Olhei meu seio ainda exposto.
Vermelho.
Marcado.
Por ele.
— Você já me marcou. — Apontei a pele avermelhada.
— Eu não quero. — Ele negou com a cabeça. — Não queira se aproximar de mim.
— Por que, Lucas?
— Porque... — Ele parou, deixando os ombros caírem. — Porque eu matei a minha
mulher.
Capítulo 16

Eu a matei.
Eu matei Tereza quando a chamei para ficar comigo até mais tarde aquele dia na usina.
Era para ter sido eu. Só eu. Tereza jamais teria tomado o tiro se não tivesse ido me ver.
Eu era o culpado e me martirizava por sua morte pois, de uma coisa César tinha razão:
Eu não passava de um usurpador daquelas terras. Por isso, não conseguia mais
comandar a usina. Não conseguia ganhar dinheiro e trabalhar com algo que nunca foi meu de
fato.
Eu a matei por duas vezes, e era meu destino perecer naquela culpa.
Depois de Tereza, me entreguei a pouquíssimas mulheres. Não porque não sentisse
prazer, mas porque o prazer me parecia errado.
Eu posso realmente seguir feliz depois da morte dela?
O sexo tornou-se mecânico. O desejo morreu, fosse ele carnal ou mesmo sentimental.
Eu sequer sentia prazer em minhas comidas favoritas.
Até que veio a maldita loirinha.
Ela me incitava. Provocava meu corpo de um jeito que fazia doer nos ossos.
Relutei por semanas, até que simplesmente não consegui mais resistir.
Depois de quase beijá-la na noite anterior, bebi todo o álcool que tinha em casa para
esquecê-la. Passei a noite inteira tendo pesadelos com Tereza e isso atormentou minha
madrugada.
Vaguei pelo casarão como o amaldiçoado que eu era. Quando amanheceu, não quis
saber de nada, nem mesmo das obrigações básicas da cooperativa. Minha intenção era passar o
dia trancado em casa, bebendo, quando ouvi os latidos denunciando a invasão dela.
O problema é que a raiva acumulada converteu-se em desejo quando a vi mais uma vez
roubando meus cajus.
E a beijei.
Quis massacrar seu corpo bem ali para me esquecer de tudo e expurgar o desejo.
Quase o fiz, mas algo despertou em mim quando mirei o rosto delicado e segurei seu
pescoço.
Me lembrei de Tereza e das crises de falta de ar que ela sentia na cama, poucas semanas
antes de morrer.
Meu pesadelo retornou, só que eu estava acordado e sóbrio. Vi o rosto transtornado da
minha mulher perecendo na cama, como um lembrete de que eu não tinha o direito de ser feliz
novamente.
O rosto da mulher que eu amei se fundindo com o rosto da que tinha o dom de me
desestabilizar.
Elas sequer se pareciam. Por que se misturavam?
— Você a matou? — Gabriella questionou com um sussurro. Não parecia com medo,
mas sim cautelosa.
— Eu a matei — repeti. Quando voltei a mirar seu rosto, tudo o que via era Tereza.
Despejei tudo naquela miragem amaldiçoada: — Não é isso o que todos dizem na cidade? Que
eu a matei?! Por que não acredita neles e se afasta de mim?! Me. Deixa. Em. Paz!
Quem me respondeu não foi a assombração de Tereza, mas sim Gabriella:
— Eu não acredito no que dizem pela cidade. Meus padrinhos também não. — Ela deu
um passo em minha direção. Ajeitou a roupa, recolocando o sutiã, e então murmurou: — Dizem
que você a encontrou morta. É verdade?
— Não toque nesse assunto! — explodi. — Não fale de Tereza nunca mais!
— O que fez você parar? — ela perguntou. A mão percorreu o pescoço, tocando as
marcas de meus dedos.
Tinha os lábios inchados dos beijos que trocamos e a pele marcada da minha barba nas
maçãs do rosto.
Eu precisava beber urgentemente.
Endireitei o corpo, ajustando o cós da calça e passando a mão nos cabelos.
— Isso não vai acontecer de novo — prometi.
Gabriella sorriu num claro desafio.
— Eu vou fazer acontecer, cowboy. — Os olhos me observaram em puro atrevimento.
Fixou o olhar em meu peito e então diminuiu nossas distâncias, parando à minha frente. —
Esteja avisado.
Respirei fundo, segurando a irritação por aquela mulher e a vontade de avançar em seu
pescoço.
Não para matá-la.
Jamais para matá-la.
Sem insistir ou dizer algo mais, ela afastou-se. Parecia triunfante com o beijo que
trocamos, e saltitou contente na direção das terras vizinhas.
Meu sangue borbulhava enquanto ela atravessava a cerca.
Meu peito ardia. A respiração era uma merda.
— Isso não vai acontecer de novo — murmurei, batendo o pé com força no chão de
tábuas. Os cães latiram, agitados, e eu entrei dentro do casarão.
Uma vez lá, contemplei o caos.
Os móveis cheios de poeira. O chão gasto e sem limpar. As garrafas acumuladas ao
canto da cozinha.
Minha arma estava no coldre da calça desprezada em cima do sofá.
Quantas vezes pensei em acabar com tudo?
Inúmeras.
Quantas vezes fui capaz de tentar?
Nenhuma.
Pois eu era um covarde.
Um covarde que tem medo de morrer e ter que enfrentar a justiça de seus atos.
Não havia justiça terrena, mas quem sabe ela existisse no céu.
Ou no inferno.
Vasculhei a cozinha em busca de álcool. O cheiro da minha camisa era o da loirinha, e
aquilo me sufocou. Arranquei a peça com raiva, pegando o último vidro de uísque que encontrei
e despejando-o direto na garganta.
O líquido queimou ao descer, mas era como um amigo sincero. Ele até poderia arder ao
primeiro gole, mas era o único que aliviava minha dor.
Bati com a garrafa no tampo da mesa e olhei ao redor.
Tereza ainda estava lá.
Nas cortinas brancas, ainda que agora estivessem imundas.
Nos móveis e objetos, todos dos Maldonado.
As fotos na parede.
Os arranjos nos armários.
Os pratos, talheres e louças.
Tudo me lembrava os Maldonado.
Me mudei para Sibipiruna com quinze anos. Fui trabalhar como peão na fazenda dos
Maldonado e acabei virando o braço direito do pai de Tereza. Quando o casal de ricaços morreu
em um acidente repentino, eu jurei no túmulo deles que cuidaria de tudo. Das terras e da sua
filha.
Não consegui.
Tudo era culpa minha, e aquilo me sufocava.
Entornei mais um gole, sentindo a presença dos meus sogros naquele lugar. Meu peito
ardia, e cenas do beijo trocado com Gabriella passavam como flashes em minha mente.
O cheiro dela era tão bom...
A boca, maravilhosa.
A pele, acetinada.
Cocei a barba, sentindo até mesmo ali seu aroma.
Era só um desejo carnal, mas mesmo isso me desesperava. Eu não tinha o direito de ter
desejos.
Não tinha!
Furioso, bati com tudo a mão no tampo da mesa. A garrafa de uísque balançou antes de
cair, espatifando-se e quebrando-se em mil no chão.
Imediatamente o ambiente foi dominado pelo cheiro do álcool.
Frustrado, olhei ao redor.
Precisava ir no Careca.
Peguei o molho de chaves da caminhonete e saí mais uma vez, evitando ao máximo
olhar na direção da propriedade dos Siqueira.
O céu estava carregado em nuvens, mas o tempo era abafado.
Como meu peito, onde uma tempestade também estava prestes a cair.
Salazar e todos os outros já tinham desistido de me orientar para não dirigir bêbado, só
que pela primeira vez, ao pegar no volante, senti que meus reflexos estavam afetados. Cocei os
olhos e liguei o motor, arrancando com tudo ao som dos cachorros que latiam atrás de mim.
A estrada estava seca, e uma poeira densa erguia-se por onde a caminhonete passava.
Cruzei as terras que circundavam o vale e também pelos prédios da usina. Ao chegar em
Sibipiruna, rumei direto ao bar, parando o carro de qualquer jeito na praça e cruzando as ruas
asfaltadas da cidadezinha sob o olhar julgador de alguns moradores.
— O que é? — bradei no meio da rua. — Bando de urubus que só sabem viver de
tragédias.
Duas senhoras saíam da igreja. Uma eu conhecia bem. Uma das viúvas da cidade, que
fazia questão de dizer a todo mundo que cheguei naquele lugar sem um tostão no bolso, e tudo o
que fiz foi para tomar as terras dos Maldonado. Inclusive, matar a filha deles.
A senhora me analisou de alto a baixo. Havia desprezo em suas feições, e ela fez o sinal
da cruz.
— O que quer de mim? — perguntei raivoso. Estava cansado daqueles olhares
enviesados.
— Deus tenha piedade da sua alma pecadora — ela murmurou com certo escárnio,
como quem cospe no chão sujo. Não era uma benção. Mais parecia uma maldição.
— Eu não acredito no seu Deus! — gritei. — E se ele existir, não passa de um moleque
insensível que tem por prazer brincar com as vidas dessa Terra. É como um garoto com um
isqueiro nas mãos queimando formigas vivas ao seu bel prazer.
— Que heresia! — Ela arregalou os olhos em choque. — Vai responder por tudo isso na
justiça divina.
— Não existe justiça divina! — bradei. — Muito menos justiça dos homens. Existe
justiça feita pelas próprias mãos, e cada um usa as armas que tem.
— Lucas... — Senti alguém tocar meu braço com cuidado.
Era Salazar. Me olhava com preocupação e tentava me puxar para perto.
— Para, Lucas — ele pediu com seriedade. — O que veio fazer aqui? Por que não foi
para a administração hoje?
— Eu preciso esquecer — murmurei e ele entendeu. Soltou meu braço.
Eu teria seguido rumo ao meu destino sem mais contratempos se outra pessoa não me
chamasse no meio da rua:
— Acho que é melhor você voltar para seu sítio, Maldonado — delegado Antenor disse
em tom de comando.
Odiei a maneira como ele quis se mostrar autoridade, e me virei furioso.
— Faço o que bem quero, Antenor.
— Eu sou a autoridade aqui — ele disse de maneira pomposa, fazendo as velhinhas
fofoqueiras endireitarem-se e abrirem sorrisos imbecis. — Não quero briga na cidade.
— Não vou brigar com ninguém. — Comecei a me afastar, seguindo na direção do bar
do Careca.
— Eu já fecho os olhos para o fato de você dirigir bêbado por essas estradas, Lucas. —
Ele me seguia de perto, assim como Salazar que não saiu do meu lado e me olhava com cautela.
— Não vou admitir bagunça na praça.
— É só me deixar em paz, Antenor — resmunguei, ignorando todos os olhares da
cidade voltados para nós.
— Vá pra casa, Lucas — ele insistiu, agora com um tom mais enérgico. — Ou vou te
prender.
Paralisei no meio da rua.
As botas batiam no cascalho solto do asfalto quando me virei lentamente e fitei a
“autoridade”.
— Então me prende, seu bostinha da cidade.
— Lucas... — Salazar avisou, mas era tarde demais.
Eu precisava de uma distração. Precisava mesmo de uma distração.
E ela veio quando Antenor avançou com tudo para cima de mim.
O soco estralou meu queixo, fazendo meu rosto girar para o lado. Não estava preparado
e precisei recuar, mas logo me recuperei. Antes que ele partisse para o segundo golpe, eu me
erguia e fechava o punho em sua direção.
— Lucas!
Escutei o grito de Salazar no instante em que meus punhos acertaram o rostinho liso e
de barba sempre feita do miserável. Antenor caiu no meio da rua com o baque e, no auge da
minha fúria, deixei que os instintos domassem tudo. Mandei o racional para a merda e avancei
com tudo para cima dele, pronto para atropelá-lo sem piedade.
Eu já iria preso mesmo. Ao menos o deixaria cheio de “boas lembranças”.
Antenor não era forte como eu, e sei que não passava de um covarde. Ao ver minha
reação, ele rapidamente levou uma mão ao coldre, sacando a arma e apontando para mim, ainda
estirado no chão.
— Mais um passo e eu atiro, desgraçado!
Ergui as mãos, deixando meu peito exposto.
— Talvez seja um favor — falei. Eu nada sentia nos punhos depois de socá-lo. Em
compensação, meu peito doía sem parar.
Era sufocante.
Sangue escorria entre os lábios partidos de Antenor, e ele cuspiu uma bola vermelha no
asfalto negro.
— Não vou te dar esse prazer, viúvo imprestável — ele escarneceu, aproveitando minha
trégua para erguer-se com a ajuda de dois passantes que pararam para ver a briga. — Vai
continuar vivo, e vou fazer você pagar pelo que fez hoje.
Minha risada foi de desdém.
— Faça o seu melhor, Antenor. — Dei de ombros. — Não consegue me deixar pior do
que já estou.
Ele me mediu de alto a baixo. Havia profundo rancor em seus olhos. Nunca nos demos
bem. César o levou para a cidade e desde o início tentou por todas as maneiras fazer com que
Tereza me largasse para ficar com o amigo da capital.
— Não preciso fazer muito, Lucas — ele falou depois de um tempo. Ainda apontava a
arma para mim, e o vi pegar as algemas no bolso de trás. — Você mesmo está cavando sua cova.
Continuei sorrindo, enquanto via o prazer no olhar dele e de todos os outros. Nem
mesmo Salazar conseguiu esconder o alívio ao me ver sendo preso. Eu não tinha mais ninguém.
Consciente demais, segui caminhando até a delegacia.
Algemado e para a apreciação de toda a cidade.
Seria um belo espetáculo, e fiz questão de torná-lo ainda maior, erguendo os ombros ao
máximo e fitando todos os curiosos.
Sibipiruna era uma cidade tão pequena que só tinha uma cela. Essa, vivia vazia, e foi lá
que Antenor me jogou.
— Não vai me fichar? — provoquei quando ele nem ao menos pegou meus documentos.
— Em Sibipiruna? — Ele riu. — Nem ao menos temos um juiz.
Seu rosto estava inchado do meu soco, e eu talvez também tivesse marcas dos seus
punhos por baixo da barba. Do outro lado das grades, ele me olhou uma última vez, sempre com
desprezo e raiva, e então escarneceu:
— Posso deixar você mofando aqui que ninguém vai ligar. Não preciso te fichar para
isso.
Não seria a primeira vez que algo assim aconteceria em minha vida.
— Acha que tenho medo de uma cela? — me sentei no chão imundo, tentando ignorá-
lo.
— Não. — Ele me mediu por inteiro. — Você tem medo das lembranças. Da sua culpa.
— E mostrando o homem que era, Antenor virou-se de costas, finalizando: — Passe um ótimo
dia com elas. A culpa e as lembranças. — Parou na porta que dava para a recepção. — E sem a
bebida para te ajudar a esquecer.
O maldito tinha razão.
Eu ia me afundar em lembranças naquelas horas.
Só que pela primeira vez, as lembranças não se resumiam a Tereza, o assalto e sua
morte.
Pela primeira vez, havia também uma loirinha para me atormentar a mente.
Capítulo 17

Soube que ele foi preso por intermédio de dona Margarida.


Lucas simplesmente sumiu depois do nosso beijo. Tentei não me preocupar com o
homem turrão ao vê-lo partir com tudo em sua caminhonete vermelha, mas foi em vão.
Eu pensava cada vez mais no viúvo. Me via atraída por ele por motivos que, eu sei, não
se resumiam ao desejo carnal.
Gostaria de entender melhor aquele homem e seus segredos. Suas dores. O que vi depois
do nosso beijo foi dor e não prazer, como se o ato de me tocar remexesse suas feridas.
Fugida de assassinos, eu já tinha problemas demais. Ainda assim, tentava compreendê-
lo, por mais que tivesse consciência de que jamais teríamos algo íntimo.
Lucas era inacessível. Ponto.
Não havia maneira de trazê-lo daquele luto e eu, sinceramente, não estava interessada
nisso.
Só queria aplacar parte do meu desejo e matar a curiosidade.
De resto, ele que continuasse preso a sua falecida mulher.
Mesmo assim, quando dona Margarida nos contou da prisão, quis no primeiro momento
visitá-lo.
— Mas o delegado vai mantê-lo lá por quanto tempo? — madrinha Sofia quis saber.
— Não sei. — A outra senhora deu de ombros. — Salazar conversou com Antenor e
tentou amenizar as coisas, mas Lucas passou dos limites. Deu um murro no delegado na frente de
toda a cidade.
— Isso, depois de levar um soco do policial — a lembrei.
Ela me fitou. Parecia ler a minha mente quando murmurou:
— Lucas não é um santo. Sim, ele está passando por um momento difícil, mas as
pessoas ao redor não têm culpa.
— Ele me parece atormentado — opinei. — Preso em si mesmo.
— E ninguém pode tirá-lo de lá a não ser ele mesmo. Socar o delegado no meio da rua,
beber até cair e passar os dias enfurnado naquele sítio não vão trazer Tereza de volta.
Fiquei calada, pois eu pensava o mesmo.
— Ele e Antenor têm brigas do passado — Margarida continuou. — Muita coisa entre
eles nunca foi dita, e por isso o delegado deve mantê-lo lá por uns dias. Um castigo besta.
— Lucas não deve estar gostando — madrinha Sofia opinou.
— Não acho que ele deva estar sentindo alguma coisa — dona Margarida falou. — E
também, não será a primeira vez que ele dorme numa cela.
— O que a senhora quis dizer com isso? — perguntei. A curiosidade dominando a
precaução.
Dona Margarida me fitou. Era sábia demais, e gostava disso nela.
— Isso é história do Lucas. Ele quem tem que contar, e não eu. Só digo que tem a ver
com seu passado. — Como se me conhecesse de outras vidas, a velha senhora me observou antes
de finalizar: — Você não é a única que Sibipiruna acolheu depois de uma injustiça, Gabriella.
Esse lugar pode ser um fim de mundo, assim como pode se tornar o lar de qualquer um disposto
a viver aqui.
Ela sabia sobre meu passado?
E qual seria o passado de Lucas?
Ele teria ainda mais a esconder além das circunstâncias da morte da mulher?
Voltamos para casa e alguns dias se passaram, até que a caminhonete vermelha surgiu
entre as pedras que protegiam o vale na manhã do quinto dia.
Ele chegou devagar. Estacionou no galpão ao lado do sobrado e sequer olhou para os
lados. Parecia tenso, e a primeira coisa que fez foi chamar pelos cachorros, averiguando um a um
com lentidão, como se procurasse machucados e conferisse se estavam famintos.
Um homem que cuidava tão bem de seus animais não haveria de ser tão ruim como
pintavam.
A chuva que ameaçou cair durante toda a semana não passou de um chuvisco na noite
anterior. Padrinho dizia que as águas estavam demoradas naquele ano, mas que ainda havia
tempo para “as cheias”. De fato, o céu continuava nublado todas as manhãs, limpando ao longo
do dia e tornando-se quente e com sol implacável.
Eu estava sozinha no sítio, como sempre, e decidi atravessar a cerca para ver como
Lucas estava. Esperei que ele entrasse e se organizasse. Cerca de uma hora se passou e então ele
saiu de novo, agora com outra roupa e carregando os potes dos cães cheios de água fresca.
Os sinos do cercado anunciaram minha intenção de me aproximar, e ele virou meio
segundo para me fitar, voltando a olhar para os cachorros e me ignorando por completo. Os cães
nem ao menos latiram. Nos dias em que ele esteve ausente me aproximei ainda mais dos cinco, e
agora era aceita como parte daquele lugar.
Caminhei devagar, atravessando o pasto até parar a alguns metros da sua fazenda.
— Dei comida para eles enquanto você esteve fora — murmurei.
Lucas continuou afagando o pelo dos cães, fingindo não notar minha presença.
— Eles se comportaram bem, mas uivavam toda noite sentindo sua falta — continuei.
Ele permaneceu mudo.
— Não achei justo ele te deixar preso todos esses dias sem direito de defesa — opinei,
retorcendo as mãos. — Policiais têm o dom de se acharem donos do mundo.
Essa última parte era mais sobre mim.
Lucas se levantou, caminhando a passos largos na direção do estábulo. Lá, ele pegou um
saco de ração e começou a encher algumas vasilhas para os cachorros. Eu o segui de perto,
insistindo em iniciar uma conversa:
— Está com fome?
Foi quando ele se virou e me fitou pela primeira vez.
Ele estava mais calmo do que na última vez que nos vimos. No entanto, a tempestade
dos seus olhos continuava ali. Talvez ainda mais negra e densa, como se tivesse se acumulado ao
longo daqueles cinco dias, transformando-se em algo similar a um pequeno tornado.
Aquele homem afundava cada vez mais.
— Loirinha. — Ele suspirou.
Eu odiava ser chamada assim, porque só estava loira por motivos alheios à minha
vontade. Eu odiava ser loira.
— É Gabriella — o corrigi.
— Loirinha — ele insistiu. — Pare de atravessar a porra da cerca e eu paro de te chamar
de loirinha.
Abri um sorriso.
— Então vou ter que me acostumar com esse apelido idiota.
Ele soltou um som rouco da garganta. Algo bem perto de uma risada, mas sem humor
algum.
— Você não desiste, não é?
Neguei com a cabeça.
Eu o beijei dias atrás e ainda sentia meu corpo quente só de lembrar. Precisava provar
aquilo de novo, fosse ele um ex-presidiário, assassino ou o escambau.
O vi caminhar lentamente, meio derrotado. Ele ajeitou as vasilhas de ração em um canto
protegido do tempo e depois saiu do galpão, seguindo até o gramado. Ficou ali, admirando o vale
abafado das nuvens de chuva e meio perdido em pensamentos, até que murmurou:
— Tentei me afastar de você nesses cinco dias, mas você continua aqui.
— Está falando da sua esposa? — perguntei.
Ele virou o rosto para mim. Deu para perceber que tinha tomado um banho. Estava com
a barba maior e os cabelos um completo caos, ainda meio úmidos do chuveiro. Uma camiseta
branca com gola surrada e uma calça jeans de um azul bem claro, destacando a pele bronzeada e
os tons negros dos cabelos.
Lucas me estudou um pouco, até que sussurrou como uma confissão:
— Estou falando de você, Gabriella.
— Por que foge tanto de mim?
Ele permaneceu em silêncio. Dava para ouvir os cachorros respirando com as línguas
para fora por conta do calor.
— Vai adiantar pedir para você se afastar? — Parecia uma última tentativa.
Dessa vez, fui eu quem permaneci calada.
Ele já sabia a resposta.
E provando que de fato já estava ciente do que eu poderia responder, Lucas balançou a
cabeça, como se meu silêncio fosse o que precisava ouvir. Ele levou uma mão à fivela do cinto,
ajeitando a calça e então aproximando-se com seu porte intimidador.
— Certo — ele disse depois de dar vários passos em minha direção. — Vamos fazer
como você quer, e lide com as consequências depois.
A mão calejada encaixou-se de primeira em meu pescoço, enquanto os lábios...
Ah, os lábios...
Eles praticamente se jogaram em minha direção.
Nunca o vi tão sóbrio.
Assim como nunca o vi tão louco de desejo.
A boca tomou a minha, mal me dando tempo para pensar.
Sua outra mão agarrou minha cintura, e tudo ao redor desapareceu. O calor da pele
grossa fez meus pelos se arrepiarem, e ao sentir os dedos se enterrarem em meus cabelos, tive a
sensação de que eu caía em uma armadilha montada por mim mesma.
Fechei os olhos, apreciando o toque da sua língua em minha boca. O sabor gostoso da
saliva trocada. Também mergulhei minhas mãos nos seus cabelos. Eram de um tamanho bom
para agarrar e puxar, e minhas pernas se trançavam com suas coxas firmes enquanto eu usava seu
corpo como apoio.
Ele agarrou minha nuca, puxando meu rosto para junto do seu. Sua respiração era
quente e os olhos quase negros me fitaram com uma seriedade que faria outras pessoas se
afastarem.
Talvez eu também devesse me afastar, mas permaneci ali.
— Você é... — ele começou a dizer, passando o polegar pesado por minha bochecha. E
como se não conseguisse terminar o raciocínio, negou algumas vezes, voltando a me beijar.
Nosso beijo foi demorado e selvagem. Explodiu em um desejo meio irracional.
Era irracional da minha parte me envolver com um homem tão cheio de dores e
afundando em escuridão.
Parecia ser irracional da parte dele, mas não saberia dizer por quais motivos.
Só sentia que a racionalidade não existia e sequer precisava se fazer presente.
Em meu corpo, só habitava o desejo. Queimando. Incontrolável.
Me fiz cativa dos seus braços, com seus dedos aprisionando meus cabelos e me
forçando a elevar o rosto ao máximo. Sua barba arranhava minha pele, e seus dentes não tinham
piedade dos meus lábios.
Ele me beijava de língua e então mordia minha boca, como se alternasse desejo e raiva.
Puxava meus cabelos com a força de quem queria me afastar e, ao mesmo tempo, me fundir ao
seu corpo. A dualidade daquele homem era sentida em cada movimento seu enquanto eu,
perdida, me entregava por completo.
Senti as tábuas dos degraus da varanda baterem em meus calcanhares quando ele me
guiou na direção do sobrado. Mal pisava no chão quando fui erguida, sendo levada para dentro
da casa de dois andares.
Estava tão perdida no meio dos seus braços que nem perdi tempo em olhar ao redor.
Sempre tive uma curiosidade imensa de saber como era dentro daquele casarão, mas agora pouco
importava.
A única coisa que eu queria era aplacar o desejo insano que Lucas Maldonado me
despertava.
Ele parecia querer o mesmo, pois mal trancou a porta. Os cães não entraram, e ele
afastou um pouco seus lábios dos meus para jogar seu chapéu bem longe, em um ponto qualquer
no chão. Depois, voltou a atacar minha boca com a mesma brutalidade de antes.
Gemi quando a mão calejada adentrou o meu vestido, puxando o sutiã para baixo, junto
de alças e o que mais encontrasse.
— Dizem que eu sou endemoniado, mas o diabo aqui é você — ele sussurrou,
apreciando meu corpo.
— Passou esses dias na cadeia tentando me esquecer? — provoquei, passando a mão
por seus bíceps e sentindo os músculos firmes e suados.
— Não vou te dar esse prazer, Gabriella. — Ele assumiu um tom sombrio, como se
fosse capaz de vestir uma carapaça e esconder o que ia em sua mente. — Só quero satisfazer a
porra de um desejo irracional.
— Pois satisfaça a porra do seu desejo. — Grudei minhas mãos em seus ombros,
puxando-o para mim.
Lucas me tomou com força, me empurrando na direção de uma das mesas da imensa
sala. Meu coração disparava à medida que meu corpo era levado para mais fundo daquela
escuridão onde só residia o prazer.
Com os seios expostos, senti ele mordiscar meu pescoço. A barba passou devagar na
região do colo, e o hálito quente atingiu meu corpo quando ele sussurrou, como se falasse para si
mesmo:
— Essa vez. — E beijou meu pescoço. — Vai ser só essa vez. Depois, volte para seu
lado da cerca e não me provoque mais.
— Vai se contentar com uma vez? — murmurei, afundando o rosto nos cabelos cheios
enquanto ele raspava a barba entre meus seios.
— Eu só preciso de uma. — E avançou com as mãos para o bolo que era meu vestido,
puxando-o com brusquidão para baixo da minha cintura.
— Posso viciar você, cowboy. Feito o uísque que você toma.
Lucas admirou meu corpo. Agora, inteiramente nua para ele, ainda com as roupas
emboladas em minhas pernas. Suas sobrancelhas se juntaram, sérias, e ele parecia incomodado
com aquela visão.
— O que foi? — perguntei. — Não gostou do que viu?
Quando me fitou, seus olhos pareciam de um bicho.
— Pelo contrário — ele sussurrou depois de alguns segundos de maneira rouca e meio
arrastada. A voz parecia de um bêbado. — Gostei mais do que deveria.
Encorajada pelo seu olhar faminto, me afastei da mesa e me aproximei dele. O homem
ainda estava vestido, e eu queria despi-lo. Passei os dedos pela barra da camisa, tentando erguê-
la por seus braços, mas ele me impediu.
— Não — disse sério. — Eu te avisei, loirinha. Vou fazer o que você quer, mas é do
meu jeito.
Algo pulsou dentro de mim com essas palavras.
O homem bruto não me esperou raciocinar, voltando a me empurrar para a mesa.
Praticamente me jogou lá em cima, agora retirando todas as minhas roupas. Era injusto, pois há
dias eu sonhava com o momento em que o veria nu novamente.
Só que longe de mim reclamar enquanto era mais uma vez engolida por seus lábios. As
mãos rudes grudaram-se nos seios e logo uma delas desceu por meu ventre. Ao chegar entre as
pernas, senti um estremecer com o toque firme e quente.
Lucas não me esperou estar preparada. Enveredou com um dedo para o interior da
minha boceta, soltando o ar devagarinho e abrindo um sorriso perverso antes de dizer:
— Molhada feito o riacho ali dos fundos. — Seus cabelos caíam nos olhos, e seu dedo
aventurou-se mais, me fazendo gemer baixinho. Lucas olhava para suas mãos entre minhas
pernas, e de repente ordenou: — Abra as pernas, Gabriella. Ainda tô enxergando meus dedos.
Apoiada na mesa, abri mais as pernas. Foi quando senti um tranco e meu corpo foi
estirado no tampo de madeira. Lucas afastou minhas pernas de maneira brusca, e senti mais um
dedo ser introduzido. Da minha posição deitada e exposta, eu vi o instante em que sua outra mão
ergueu-se um pouco acima do meu corpo e então caiu certeira no alto da minha virilha.
O tapa foi forte, mas sei que não era nem um por cento da força que aquele homem era
capaz de empregar. Mesmo assim, ardeu.
E eu gemi.
Lucas, transformado e cheio de desejo, desceu outro tapa enquanto eu pulsava
internamente.
— Gosta... — ele murmurou baixinho, indo e voltando com os dois dedos em meu
interior, como se testasse a umidade que escorria ali. — Você gosta bastante...
Era um teste. Entendi ali.
Mais um tapa, esse na lateral dos meus seios, e eu quase fechei as pernas, tamanha onda
de prazer cruzou meu corpo.
— Lucas... — implorei. O homem era um maldito.
— Do meu jeito, loirinha — repetiu, nem um pouco preocupado comigo. Ergueu o olhar
para mim e tinha um ar quase sacana no rosto. — E eu preciso saber se você gosta do meu jeito.
Mais um tapa, esse bem no mamilo, e eu gritei louca de desejo. Só que Lucas não queria
ir rápido. Seus dedos me penetravam devagar, como se quisessem sentir meu pulsar lá dentro e
só.
Depois do tapa, ele acariciou o seio atingido, friccionando de leve os dedos calejados no
bico endurecido.
Gemi mais uma vez, querendo tocá-lo e provocar nele um décimo do que eu sentia, só
que ele não deixou. Voltou a afastar minhas mãos, agora juntando-as acima da minha cabeça e
segurando-as por alguns segundos.
— Vou ter que usar o cinto, diacho?
Pelo amor de Deus! Use o cinto!
Movi as pernas, abraçando o corpo dele que estava de pé à frente do meu. Ele recuou.
Não aceitava nada que eu tentava fazer, como se tudo viesse dele.
Com firmeza, empurrou minhas pernas para baixo, abrindo-as de maneira a me deixar
mais exposta, e então dando um tapa em minha coxa, como se fosse uma punição.
Desesperada de prazer, levei uma mão até seu peito. Lucas rosnou, voltando a agarrar
meu pulso e me prendendo na mesa. Os dedos no interior da minha boceta tornaram-se
vingativos, indo e voltando de uma maneira vigorosa e rude.
— Vou fazer você gozar, Gabriella. E quero que faça isso olhando nos meus olhos.
Eu olhei. Lucas me fitava com uma intensidade que parecia tirar parte do ar. Era como
se ele fosse capaz de roubar tudo. Por um milésimo de segundo pensei na burrice que poderia ser
me entregar àquele homem, tão sem amor e carregado de sombras. Mesmo assim, minha vontade
era maior e sobrepujou a racionalidade.
Seus dedos iam e vinham, e eu pouco conseguia me mover. Lucas prendia minhas
pernas com o peso do seu corpo, enquanto a outra mão segurava meus pulsos com uma firmeza
impossível de se lutar.
Revirei os olhos ao sentir o primeiro estremecer mais forte, e ele soltou meus pulsos
para me dar um tapa nos seios.
— Goza olhando para mim! — ordenou, e obedeci de imediato.
Outra onda aproximou-se e levei as mãos, agora soltas, ao peito dele. Mais um tapa,
agora em um dos lados da minha bunda, e senti meu interior se aquecer em um orgasmo
desesperado.
Gemi, ainda fitando-o, quando Lucas segurou meu queixo. A mão imensa pegando
quase todo meu rosto e o erguendo, enquanto ele se aproximava lentamente. Sua boca desceu
devagar, até chegar aos meus lábios e morder um deles, ao mesmo tempo que os dedos iam e
viam num torturar gostoso em meu interior.
— Vai gozar na minha mão, loirinha — ele murmurou, passando a língua devagar por
meu pescoço e depois por minha orelha. — E se continuar gemendo gostoso assim, vou te fazer
gozar no meu pau. Você quer?
Eu não consegui responder. Só gemia com o vai-e-vem delicioso de seus dedos.
— Você quer? — ele repetiu em tom imperioso, descendo um tapa mais forte em minha
coxa.
— Que-quero...
Me sentia tonta de prazer. Embriagada, prestes a entrar em um coma alcóolico, enquanto
Lucas seguia pleno e sério, trabalhando com seus dedos.
Era muito injusto que eu ainda não tivesse visto seu pau de perto, e resolvi reclamar:
— Quero ver você como naquela madrugada. — Algumas ondas ainda atravessavam
meu corpo, e parecia difícil respirar. — Sem roupas...
Não consegui continuar, pois seus dedos tornaram-se mais vigorosos, e a mão que
estapeava meu corpo, subiu com tudo até meu pescoço. Ele apertou bem pouquinho, e então
negou com a cabeça, sussurrando:
— Não. Para você aprender de cara que jamais vai ter tudo o que quer.
Senti que era parte de seus escudos, como se estabelecendo o controle assim, ele
blindasse qualquer coisa que tentasse escapar do seu peito.
A questão é que eu pouco ligava para isso, e então sorri.
— Então como vai ser? — perguntei.
— Vou te mostrar.
A mão em meu pescoço se fechou mais. O ar ficou rarefeito.
Me lembrei que foi exatamente nesse ponto que ele se afastou da outra vez, como se
fosse um limite que ele não quisesse ultrapassar.
E o Lucas daquela manhã conseguiu passar essa barreira, assumindo um olhar de puro
desejo ao me fitar para dizer:
— Porra, loirinha. — A voz era tão rouca que eu gemi só com ela. — Você gosta
demais disso.
Seus dedos dançavam dentro de mim, testando minhas reações, e ele percebeu quando
estremeci a um agarre mais forte no pescoço.
É... Parece que eu gostava.
Ele sequer precisava das duas mãos. Só uma e se fazia um colar em meu pescoço.
Mais forte...
Mais forte...
E mais forte...
Apertando pouco a pouco enquanto passava os dedos lambuzados entre meus grandes e
pequenos lábios. Ele rodeou a região do clitóris, provocando, e o cinturão em meu pescoço quase
me fez pedir por ar, me fazendo agarrar seus braços.
Lucas percebeu e parou de fechar as mãos, agora concentrando-se no que seus dedos
faziam entre minhas pernas.
Um avanço. Uma provocação. Era tudo intenso demais. A sala estava mergulhada em
sombras, e eu via minha consciência ir e vir quando gozei mais uma vez.
Meu corpo sentiu quando foi coberto pelo seu. Um eclipse total, em que o homem bruto
e gigante, ainda vestido, debruçou-se sobre mim, finalmente retirou os dedos de minha boceta e
os levou até bem perto do meu rosto.
A centímetros da minha boca, ele chupou um dos dedos. Os olhos cravados em mim.
Sua outra mão ainda em meu pescoço, e então sugeriu:
— Quer provar teu gosto, loirinha?
Tentei gemer, mas era coisa demais acumulada. Só acenei que sim, e ele raspou o
indicador em meus lábios, fazendo o aroma impregnar-se em meu rosto. Quando abri a boca,
senti um tapa suave em minha face direita, provocando mais um pulsar em mim. Meu rosto ficou
melado de gozo, e ele mesmo enfiou o dedo entre meus lábios, me admirando enquanto eu o
chupava.
— Tá me deixando com vontade — ele falou, retirando os dedos da minha boca e
sugando o resto. Depois, sem avisar ou pedir, subiu com um dos joelhos no tampo da mesa,
grudando sua virilha na minha boceta.
Percebi que ele tinha abaixado as calças e quis me erguer para ver, mas a mão em meu
pescoço tornou-se mandona, me pressionando com força e me mantendo ali.
Levei uma mão à sua camisa, tentando arrancá-la, e ele negou.
— Quieta, loirinha, ou vou te castigar.
Por que não avisou antes?
O explorei com mais vontade ainda, e imediatamente senti a glande do pênis encostar
em minha boceta.
Oh, merda!
Era quente. Feito brasa. E me parecia tão dura e bruta quanto o resto do homem.
— Eu tô sem camisinha, Gabriella — Lucas falou de repente. Parecia meio dividido,
como se a razão tomasse conta de seu corpo só um pouquinho. — Tem quinze segundos para
tomar uma decisão.
Parei para pensar, tentando calcular a data da minha última menstruação, só que tudo era
tão bagunçado dentro de mim que não consegui raciocinar.
Eu só precisava aplacar o desejo de senti-lo em meu interior, me preenchendo. Por isso,
simplesmente falei:
— Eu quero mesmo assim.
Como já disse, prudência nunca correu em minhas veias.
Lucas também não quis pensar muito. Avançou sem pestanejar, introduzindo o pau de
uma vez, o que me fez retorcer em cima da mesa.
Porraaaaa!
— Lucas — gemi, e ele agarrou mais meu pescoço.
Aquele homem seria meu fim, eu tinha certeza.
— Quieta, Gabriella. Você tomou sua decisão. Agora vou me satisfazer.
Era isso.
Lucas tinha chegado aonde queria. Ia expurgar sua dor em mim.
E confesso que, por mais impessoal e frio que aquilo parecesse, não me incomodou. Era
como se cada um desse ali tudo o que pudesse oferecer.
Ele me daria sua dor e eu, meu desejo.
Os dois cientes disso.
Nada de envolver o coração.
O senti me penetrar com força. Rude. Decidido, e então começando a se mover.
Como era bem grande, ele me alcançava com facilidade deitada na mesa. Suas pernas
iam e viam em minha direção, enquanto ele continuava me rodeando o pescoço com uma das
mãos. A outra massageava meu corpo vez ou outra, passeando pelas curvas e me apertando com
firmeza, deixando um rastro rude de seus polegares.
Gritei quando ele estapeou meu seio e depois agarrou a ponta do mamilo. Seus quadris
num ir e vir crescente, bruto e que parecia dar tudo de si.
Ele entrava e saía. Seu pau, avançando e recuando mais e mais. Expandindo minhas
paredes e então voltando. Me esticando e preparando.
Meu corpo retorcia-se, e o ar faltava naquele turbilhão de sexo. Eu poderia morrer ali.
Acreditei que fosse morrer, pois se Lucas apertasse meu pescoço só mais um pouco, eu veria a
consciência se apagar.
A constrição de oxigênio parecia me privar dos movimentos, e eu senti um pulsar no
canal vaginal.
— Droga — Lucas gemeu pela primeira vez, no meio do palavrão. — Você gosta disso,
Gabriella. — Ele se moveu ainda mais rápido, como se meus reflexos internos o estimulassem.
— Gosta tanto que acho que vou me arrepender.
— Não — falei um pouco sufocada. — Você não vai.
Senti um tapa no vão dos meus seios, e aquilo me fez pular assustada e de tesão. Lucas
deu uma risada carregada de perversidade e então resmungou, convicto:
— Tem razão. Não dá pra se arrepender disso.
Um segundo tapa ardeu entre meus peitos e eu gritei. Lucas continuava a avançar sem
dó, me impedindo de sair daquela posição pois continuava agarrado ao meu pescoço.
— Vai gozar, loirinha. — Não era uma pergunta, nem mesmo um pedido. Era só uma
afirmação. — Vai gozar no meu pau como gozou nas minhas mãos, e depois, eu vou gozar em
você.
Às vezes, seu olhar encontrava o meu. Fez isso naquele momento, e percebi que ele, ao
seu jeito, questionava se podia mesmo gozar em mim.
Lucas definitivamente não era um homem de concessões ou diálogos, mas mostrou
racionalidade ali.
— Goza em mim — falei. A razão indo embora quando ele apertou meu pescoço mais.
— Go... — Tentei falar, mas a sensação era de quase morte. — Lucas...
Então, só acenei com a cabeça concordando.
— Você que pediu, loirinha.
O homem assumiu um tom mais bruto. Seus movimentos ficaram mais firmes e sua mão
parecia me queimar a pele. A mesa rangia debaixo de nós, e meu corpo debatia-se enquanto ele
me fodia com toda sua força, como se descarregasse algo represado há anos.
Não tinha paixão, conexão ou mesmo amor.
Era só o sexo mais carnal e intenso que já experimentei.
Duvidei que um dia tivesse outra transa assim.
Meus ossos doíam. A mão em meu pescoço era maldita de forte, e eu cheguei a ver
estrelas cintilando ao redor dos olhos.
A alma pareceu se desprender do corpo e relaxei por completo, gozando novamente e
sentindo tudo se apagar ao redor.
Eu desmaiei?
Morri?
Não. Continuava consciente, e Lucas seguia avançando, implacável, como um touro
atiçado por um pano vermelho.
Incapaz de mover qualquer parte minha, senti quando minhas paredes internas
receberam seu orgasmo numa sensação de acolhimento quente e... gostosa.
Tentei respirar, mas Lucas estava sobre mim com todo seu tamanho. A mão gigante em
meu pescoço pesou um pouco mais e aquilo me deu a última gota de prazer, antes dele me
libertar e afastar-se de maneira um pouco desajeitada.
Vi o homem de feições sempre fechadas pela primeira vez mais leve e sem a sombra
negra no olhar. Parecia só um ser que acabou de se satisfazer sexualmente.
Continuava lindo, com os cabelos caindo quase na altura dos olhos e a cicatriz de um
corte no alto da face esquerda.
Ainda trêmula, me sentei na mesa e observei o homem de pé à minha frente, todo
vestido.
Um pecado.
Levei uma mão até seu peito, querendo arrancar sua camisa, só que ele, mais uma vez,
não deixou.
Afastou-se um pouco mais, parando no meio da sala e me impedindo de tocá-lo.
Estava sem o ar sombrio e perturbado, mas enxerguei com clareza o instante em que se
encheu de escudos novamente.
— Melhor você ir — falou com tom indiferente.
— É que eu sequer vi você direito...
— Eu te avisei que seria do meu jeito. — Me fitou com dureza. — Não vai dizer que se
arrependeu.
— Não me arrependo. Pelo contrário. — Me ergui da mesa e comecei a juntar minhas
roupas no chão. — Quero repetir mais vezes.
— Não tem “mais vezes” para nós dois — ele me cortou resoluto. — Era só essa e
pronto.
— Tem certeza disso, cowboy?
— Não me chame assim. — Ele rangeu os dentes. — Aqui não é o Texas.
Dei risada, pois gostava de provocá-lo com aquele apelido.
— É só não me chamar mais de loirinha. Já falei que não gosto.
O homem me mediu. Aproximou um passo e tocou meus cabelos. Eu sei o quanto eram
horríveis com aquele tom todo errado de tintura que em nada combinava com meus olhos ou
pele, mas Lucas não pareceu se importar. Puxou uma mecha para perto do rosto e aspirou os fios,
esfregando-os entre os dedos. Depois, me olhou de alto abaixo, ainda nua, e sussurrou:
— Pequena feita um preá. — Quis rir da comparação, mas na voz dele me soou muito
condizente. — O cabelo é amarelo igual milho. — Soltou a mecha e se afastou devagar de mim.
— O apelido condiz.
Fechei a cara para ele, e ele deu mais um passo para trás, caminhando na direção de uma
escada.
Foi só naquele momento que notei parte da arquitetura interna da casa.
E como o lugar parecia abandonado!
Tinha uma sala grande, porém escura e cheia de roupas e garrafas jogadas em um canto.
De onde estava não vi muito da cozinha, mas senti o cheiro forte de uísque e vi marcas de bebida
no chão, além de alguns cacos de vidro. As cortinas estavam todas cerradas, gastas e com rasgos
imensos. Era tudo pesado e meio esquecido do tempo.
O interior daquela casa era como o coração dele.
— Vista-se e volte para sua casa — ele falou ao afastar-se mais. Parou ao lado da escada
e me fitou uma última vez. — Quando eu descer, não quero ver você aqui... loirinha.
Provocador barato...
O vi subir as escadas sem olhar para trás. Me vesti, em partes irritada por ser deixada
assim. Em partes, satisfeita por ter conseguido o que desejei por semanas.
Lucas Maldonado continuava um bruto imbecil cheio de sombras na alma e sem
coração?
Com toda certeza.
Mas fodia como ninguém.
Capítulo 18

Meu pau ainda estava duro enquanto eu o esfregava debaixo do chuveiro tentando
esquecer a loirinha dos infernos.
Não deu. Eu tentei, mas não deu.
Os cinco dias que passei na cadeia, comendo aquela refeição que mais parecia a
lavagem dos porcos e vendo Antenor destilar todo seu desprezo por mim não ajudaram.
Deveria ter ajudado. Mudado meu foco ou me feito esquecer do beijo que dei em
Gabriella.
Só que não fez.
Eu passei malditos cinco dias querendo agarrar de novo os cabelos amarelos. Poderiam
ser de uma cor que me irritava, mas eram macios feito o capim molhado de orvalho. Imaginei
que a raiva por ficar detrás das grades sem sequer ser fichado faria tudo aquilo desaparecer, mas
o problema é que eu fiquei sóbrio demais. Na cela não tinha meu uísque e, com isso, não
consegui fugir das minhas maldições.
De noite, sonhava com Tereza morrendo por um tiro dado por mim.
De dia, eu via a maldita loirinha em cada canto que olhava.
A filha da puta sabia que era desejada, e assim que voltei para o sítio, correu para me
atiçar.
Foi quando eu deixei tudo explodir. Cansei de fugir da porcaria do desejo e, enfim, o
saciei, imaginando que com isso não pensaria mais nela.
Ledo engano.
Agora, a queria mais depois de ver como era estar dentro do corpo quente feito lava.
Parecia que eu estava preso há anos, e não só cinco dias. Meu corpo doía enquanto eu
descarregava tudo nela.
E eu senti coisas que não nomeava há tempos.
Desde que fiquei viúvo, era como se não sentisse mais desejo.
Sim, eu transei com outras mulheres, mas não havia em mim aquele pulsar sem controle
do corpo. A vontade de marcar a mulher e descarregar no corpo traiçoeiro todo o tesão que ela
me despertava.
A última vez que senti isso foi com Tereza e, ainda assim, era diferente.
Era diferente, pois com Tereza sempre havia amor. Nos apaixonamos no início da
minha vida sexual, e me acostumei a associar o sexo a esse sentimento.
Nunca foi bruto e carnal como foi com a loirinha.
Era como se com ela eu atingisse um estágio novo em minha vida. Nem tão dormente
como quando estava com outras mulheres, nem todo entregue como quando vivi com Tereza.
Com a loirinha, eu queria estar ali e que se dane o coração.
Eu a queria.
E queria mais.
Continuei querendo depois que ela se foi, e a vontade só aumentou quando desci as
escadas e vi a mesa vazia, sem seu corpo franzino.
Tome tento, Lucas! Ela nem é tão franzina assim! Tem mais curvas que as estradas da
usina, e a boceta é mais quente que um caldeirão em pleno vapor!
Droga!
Procurei pela casa por algo para comer.
O lugar estava um chiqueiro, e encontrei uma panela com arroz velho na geladeira.
Precisaria fazer uma carne, mas no momento só queria me alimentar. Fui atrás de macarrão, e no
caminho passei pelos cacos da garrafa que quebrei no dia que beijei a loirinha pela primeira vez.
Estava na cozinha quando ouvi as rodas de um 4X4 atravessando o pasto. Os cachorros
latiam enlouquecidos, e o carro parou na primeira cerca que dava acesso ao sítio, ciente de que
poderia ser atacado se avançasse.
Olhei pela janela e reconheci o segundo a importunar meu dia:
Salazar.
Resmunguei um palavrão e abri a porta da frente, caminhando com vagareza até a
porteira. Ainda de dentro do carro, o vice-prefeito de Sibipiruna gritou:
— Dá pra trancar os cachorros? Não quero perder um braço.
Revirei os olhos, virando-me para Trovão e ordenando:
— Pra dentro!
Ele entendeu a ordem e parou de latir, voltando para o gramado em frente à varanda.
Como era o líder, todos o seguiram sem que eu precisasse dizer mais.
Me voltei para Salazar e disse:
— Pronto. Agora me diz o que quer.
— Saber como está depois da... — Ele parou um pouco, como se reconsiderasse as
palavras. — Depois da sua estadia tendo Antenor como anfitrião.
Bufei um pouco irritado. O rostinho lambido do delegado dos infernos voltando com
tudo.
Me dei conta que nem me importava mais com aquela prisão.
— Ele mostrou quem é. Um covarde babaca que usa o cargo para se impor.
Salazar desceu do carro e me acompanhou de perto enquanto descíamos o pasto na
direção do sítio. Olhei de relance para as terras vizinhas e não vi movimento.
Onde estaria a loirinha?
— Dessa vez você extrapolou, Lucas — escutei Salazar dizer ao meu lado. — Não
devia ter brigado com Antenor no meio da rua.
— Gastou sua gasolina para vir aqui me aporrinhar? — reclamei, olhando uma última
vez para o terreno dos Siqueira. Quando não encontrei movimento algum, me virei sem paciência
para o homem ao meu lado. — Não quero ouvir seu sermão.
— Eu só quis saber como está. Ficou cinco dias na cadeia e veio direto para cá. Tentei te
liberar antes, até falei com o César, mas...
— Você falou com César? — Me voltei para ele, agora eriçado.
— Ele e Antenor são amigos.
— E César me odeia. Talvez, tenha sido dele a ideia de me deixar lá sem motivo.
— Por César você não sairia tão cedo.
Olhei para Salazar e deixei evidente meu desprezo por meu ex-cunhado. Parei ao lado
da varanda e esperei que Salazar prosseguisse.
O homem parou e me mediu. Estudou meu rosto um tempo e então murmurou, agora
mais baixo:
— Você tá estranho... — Colocou as mãos na cintura. — Achei que ia te encontrar caído
de bêbado.
— Lá não tinha álcool para os presos.
— Esses dias. — Ele parou, como se medisse as palavras. — Trouxeram lembranças do
passado?
Sim.
Toquei a cicatriz em meu rosto, sentindo tudo voltar só que sem a força de antes.
— Não foi como da outra vez — falei. — Eu não sou mais um moleque, Salazar. E não
tenho medo de Antenor.
Ele concordou em silêncio, ainda me observando.
— Eu gostava do moleque do passado — disse de repente. O olhei com ar de descrença,
mas Salazar prosseguiu: — O garoto inconsequente e cheio de ideias que chegou aqui em
Sibipiruna pronto para revolucionar essa vila.
— Esse moleque morreu.
— É uma perda para a cidade — ele lamentou, passando os olhos ao redor do pasto. —
Mas ainda acho que um dia ele pode voltar.
— O Luca não vai voltar — falei, citando meu eu do passado.
Aquele nome só era conhecido por quem sabia de toda a minha história. Dona
Margarida, Salazar, Tereza e seus pais.
Provei da injustiça dos homens algumas vezes antes de chegar em Sibipiruna. O
suficiente para acreditar que a única justiça existente era a feita com as próprias mãos.
— Luca morreu, Salazar — continuei. — E isso foi há mais de vinte anos.
— Mas e o Lucas Maldonado? Ele também era cheio de vida, assim como Luca. — Ele
me olhou com seriedade. — Vai mesmo se enterrar junto de Tereza?
— Nenhum de vocês entende — rosnei com raiva. Eu odiava aquele assunto, e Salazar
era um dos que insistia nele.
— Todos nós gostávamos de Tereza. Ela era amiga da minha mulher. Saíamos os quatro
juntos. Fazíamos planos para nossas famílias. É claro que eu entendo, porque eu também senti a
morte dela.
— Não, Salazar! — gritei, agora irritado. — Você não sentiu. Só eu estava lá quando ela
tomou aquele tiro, e que deveria ser meu. Você não sujou suas mãos com o sangue dela, gritando
por socorro quando ninguém te ouvia. Você não recebeu o diagnóstico dos médicos, nem teve
que comunicar à sua mulher que ela jamais recuperaria os movimentos do corpo. Você não a
limpou nos últimos dias de sua vida ou escutou seus gritos de dor na madrugada. Não secou suas
escaras e muitos menos suas lágrimas, suplicando para morrer. Você não viu a dor dela e nem o
desespero de uma mulher presa em um corpo que não queria mais. Você não a viu dar o último
suspiro, Salazar, nem fechou seus olhos sem vida. Você jamais entenderia.
Ele suspirou, como se estivesse cansado. Olhou para o interior da casa, como se
esperasse que eu o convidasse para entrar.
Desde que fiquei viúvo, ninguém entrava ali.
A primeira pessoa a entrar o fez quase toda nua, e poucas horas atrás.
— Bom. — Salazar aprumou-se de repente, como se percebesse que de nada adiantaria
permanecer ali. — Eu só vim... — Apontou para mim e então reconsiderou. — Na verdade, vim
também para te dar uma notícia. Diana está grávida.
Diana era a esposa de Salazar. Amiga de Tereza e, por um tempo, amiga minha também.
Só que afastei todos.
A notícia de que meu amigo seguia a vida trouxe uma sensação amarga na boca. Um
misto de felicidade por ele e... raiva por todo o resto.
— Eu... — Tentei felicitá-lo, mas nem isso eu conseguia.
— Não precisa dizer nada — ele me interrompeu um pouco ferido. — Só vim contar.
Acho que lhe devo isso depois de tudo que já vivemos.
Concordei, incapaz de responder.
Houve um tempo em que aquele era o meu maior sonho.
Ser pai.
Construir uma família imensa, que enchesse todos os quartos do imenso sobrado e
ocupasse a mesa gigantesca do primeiro andar.
Tereza adiou ao máximo esse sonho, pois gostava mesmo era de sua liberdade. Dizia
que teríamos o nosso filho, mas só depois que ela passasse dos trinta.
O problema é que ela me deixou antes disso.
E eu fiquei sozinho. Desprezado por toda uma cidade, e apontado como o assassino de
minha mulher.
Não dava para ser feliz vendo a vida de meu amigo seguir quando a minha própria
estava afundada em um lamaçal sombrio. Poderia ser egoísta, mas era como eu estava.
— Tenho que voltar pra prefeitura — Salazar anunciou, caminhando de volta para seu
carro. — Só vim me certificar de que você... bem...
Paralisei, finalmente entendendo o motivo da visita.
— Achou que eu pudesse me matar ou coisa assim porque passei cinco dias naquele
chiqueiro? — perguntei, incrédulo.
— Achei que as lembranças do que você passou no passado, antes de vir pra Sibipiruna,
pudessem ser demais. Desde que Tereza se foi, é como se você não estivesse aqui.
— Eu não estou — resmunguei, olhando para Trovão que aproximava-se atento. — Mas
não consigo fazer o que Tereza…. — Suspirei. — Não consigo acabar com a dor assim. Sou
covarde.
— Não. Você não é. Permanecer vivo não é covardia, Lucas. — Olhando para o sítio
meio caindo aos pedaços, ele completou: — Mas desistir de seguir em frente é.
Não estava a fim das suas filosofias. Virei as costas para ele e o guiei até seu carro. Não
precisava de ninguém ali com piedade das minhas escolhas.
Ele me seguiu resignado e logo partiu. Voltei para o terreno e olhei uma última vez para
o outro lado da cerca.
Ainda sem sinal da loirinha.
Intrigado, me aproximei mais da divisa.
Nem por um decreto que eu atravessaria aquela cerca para ir atrás dela...
Virei as costas, voltando para minha casa e conseguindo não olhar mais para trás.
Terminei de preparar o macarrão e comi de pé mesmo, parado ao lado da janela da sala e
vigiando o vale cercado em nuvens pesadas.
Os dias no colchonete imundo da cadeia não massacraram meu corpo mais do que
aqueles quatro anos vivendo no limbo. Ainda assim, senti um cansaço me abater e decidi subir
para meu quarto.
Caí esgotado na cama.
Na roupa, o cheiro de Gabriella e seu corpo miúdo.
Na mente, lembranças do que fizemos na sala.

No dia seguinte, acordei agoniado. Meu corpo parecia febril após mais um pesadelo.
Era o mesmo de sempre. Eu e Tereza estávamos na usina e, de repente, o caos
começava. Depredavam tudo e, quando eu ia ver o que acontecia, ela tomava um tiro em meu
lugar.
A diferença desse sonho para os anteriores é que Tereza estava grávida. Tinha uma
barriga gigantesca e redonda que eu acariciava enquanto estávamos juntos no escritório.
Acordei sobressaltado, sentindo o mesmo vazio na alma e o gelado nos ossos que me
acometia dia após dia.
Tereza nunca esteve grávida. Ficou na cama meses antes de morrer. Tudo aquilo era só
um indício do meu caos interno, criando mais e mais inocentes para perecerem em meus
pesadelos.
Me levantei todo suado e tomei um banho. Ao descer as escadas, a mesa da sala me
chamou a atenção. O tampo liso e sem qualquer enfeite nublou as imagens do pesadelo recente.
Do nada, tudo foi substituído por um corpo pequeno e de dona atrevida. Me lembrei dos olhos
cor de uísque e minha boca salivou.
Pela primeira vez, não olhei para o bar onde as garrafas de cachaça e uísque se
acumulavam.
Olhei para fora, pela janela, na direção do sítio vizinho.
Algo em mim comichava, e a vontade foi de sair e ver o sol. Depois, me aproximar da
cerca de arame farpado e ver como estava uma certa loirinha.
O lado sombrio protestou, louco para se recolher. Para permanecer nas sombras.
Vaguei pela sala até achar uma garrafa esquecida de rum. Tomei um gole sentindo o
álcool queimar tudo. Forte e marcante. De um jeito que deveria apagar tudo, como sempre fez,
mas pela primeira não conseguiu.
O cheiro dela continuava lá.
Em quatro anos isso nunca aconteceu.
Por que acontecia agora?
Balancei a cabeça, afastando a vizinha abusada da mente e decidindo que precisava
reabastecer meu estoque. Dessa vez, sem encontrar com delegados imbecis.
Segui direto para a caminhonete, travando o pescoço para a frente e, assim, não olhando
pras terras dos Siqueira.
Decidi ir até Coralina, a cidade vizinha. Lá ao menos não fechavam a cara para mim ou
faziam o sinal da cruz ao me ver.
A estrada que levava para lá era oposta à de Sibipiruna. O caminho era quase todo na
terra, e uma nuvem de poeira subia sob as rodas pesadas de alguns rodotrens que cruzei no
caminho. Aquele lado era mais movimentado, e vi que a safra seria excelente.
O Lucas do passado, aquele que Tereza costumava chamar de Luca, estaria ocupado
com as negociações da safra, conferindo a segurança dos caminhões, averiguando com as
prefeituras a qualidade das estradas...
O Lucas que restou não fazia nada disso.
Cheguei à Coralina no meio da manhã. Era bem maior que Sibipiruna, e tinha ruas
asfaltadas, além de um comércio robusto e diversificado.
Entrei na mercearia onde costumava fazer compras e comecei a escolher algumas
garrafas de uísque, quando alguém aproximou-se por trás e me chamou:
— Lucas Maldonado! É um milagre vê-lo aqui!
Me deparei com Danilo, empresário da região e dono da usina de beneficiamento onde
as safras de Sibipiruna eram encaminhadas por meu intermédio.
— Precisava de algumas coisas. — Dei de ombros, escolhendo algumas bebidas e então
caminhando na direção do armazém. Precisava de um pouco de arroz e feijão, além de carne e
também produtos de limpeza.
— Como anda Sibipiruna? — ele perguntou com interesse.
— O mesmo de sempre. — Não quis prolongar o assunto, andando pelas prateleiras sem
esperá-lo.
— Soube das invasões às fazendas — o homem insistia em enredar conversa. — As
coisas parecem agitadas por lá.
— Por aqui não tiveram invasões? — Parei pela primeira vez e o fitei.
— Não. — Danilo foi direto. — Até o momento, não soube de nenhuma reclamação dos
fazendeiros.
Aquilo era estranho. As cidades eram próximas. As fazendas, muitas vezes, se
misturavam. Por que só Sibipiruna era alvo dos arruaceiros?
— Isso não faz sentido — murmurei. — O que o delegado daqui tem feito?
— Reforçamos o policiamento. O prefeito conseguiu mais viaturas com o secretário de
segurança e estão sendo feitas rondas nas estradas que fazem limite com Sibipiruna. Até
conseguimos ver alguns suspeitos.
— Viram gente suspeita? — Agora ele tinha toda a minha atenção.
— Quatro homens desconhecidos foram vistos por um criador de vacas parados na
estrada há uns dois dias. Até comuniquei ao Antenor. Não fizeram mais buscas por lá?
— Não sei. Estava... incomunicável esses dias.
Danilo parou, talvez interpretando aquilo como mais um excesso de bebedeira minha,
em que eu me enfurnava no sítio. Não quis mudar sua impressão, e deixei que ele continuasse:
— Fizemos algumas buscas, mas não descobrimos nada.
— Acho que Sibipiruna vai precisar de reforço para encontrar esses baderneiros.
Parecem sempre saber onde e quando aparecer.
— Se precisarem de ajuda, sabem que podem contar com a gente.
Os moradores daquela região eram assim. Ajudavam uns aos outros.
Talvez por isso, resolvi arriscar uma pergunta:
— Pelo pouco que viram dos suspeitos, acha que podem ser gente perigosa?
Danilo percebeu a apreensão em minha voz, e questionou preocupado:
— Do que está suspeitando?
— Não sei. — Tentei disfarçar. — Acha que pode ser gente de outra cidade com
intenções específicas, talvez encontrar alguém, e que está fazendo essa bagunça só para despistar
todo mundo e chegar no seu objetivo?
— Estão atrás de você? — ele foi direto.
A preocupação não era comigo, e sim com uma certa “forasteira”.
— Ninguém tem coragem de chegar perto das minhas terras — desconversei, e Danilo
logo acreditou. — Só não acho que essas invasões são escolhidas na sorte.
— Nisso eu concordo, mas não sei dizer o que poderia ser de verdade.
Concordei, frustrado. Terminei de fazer minhas compras e me virei para Danilo,
tomando uma decisão que esperava não me arrepender:
— Vou organizar algumas buscas para tentar achar esses criminosos. — Me voltei para
um Danilo que me fitava incrédulo. — Como o pessoal daqui afirma tê-los visto uma vez, talvez
possam ajudar.
— Finalmente está acordando — ele murmurou.
Neguei com a cabeça, fingindo não entender. Danilo me acompanhou, agora bastante
animado:
— Vou falar com alguns fazendeiros. Só me dizer o dia e nos juntamos nas matas
vizinhas. — Concordei. — Sabe, Lucas. Foi muito bom te ver. Fico feliz que esteja de volta. —
Ele deu um soquinho em minhas costas. — Você faz falta pra essas terras.
Eu ia corrigi-lo, mas desisti. Lucas Maldonado não estava de volta.
Mas aos poucos, era como se estivesse despertando.
Capítulo 19

Aos fins de semana, uma feirinha amistosa funcionava na única rua asfaltada de
Sibipiruna, reunindo produtores locais e de outros municípios. Eu adorava ir à cidade nesses dias
e perambular pelas bancas de lona e estrutura de ferro, sentindo o cheiro de fruta fresca e
temperos deliciosos.
Enquanto meus padrinhos conversavam com um produtor de queijos, eu escolhia
algumas batatas e outras verduras. Na roça, produzia-se grande parte do que se consumia.
Mesmo assim, aquele comércio de troca era muito comum, já que nem todos tinham tempo ou
terras para plantar de cebola a tomate. Meus padrinhos, por exemplo, sempre levavam parte da
produção de milhos para aquela feira. Parte era vendida, parte trocada. Fosse por carnes, serviços
ou outros produtos.
Havia uma banca de um fazendeiro cheia de frutas que me fez salivar. Mangas durinhas,
laranjas, goiabas e melancias imensas, todas exalando um aroma doce e divino. Só que o que fez
minha boca aguar foram os cajus — sempre os cajus — de um tom alaranjado e respingados de
água fresca.
Me aproximei da banca, sentindo o cheiro característico. Não pude esconder um sorriso
ao me lembrar do dia em que escalei um certo cajueiro e quase morri no processo.
Eu até poderia voltar lá e comer dos cajus de Lucas Maldonado. Inclusive, fazia isso
sempre que ele se ausentava. Acontece que aqueles da banca pareciam apetitosos.
Enquanto eu escolhia alguns vi uma mulher muito bonita aproximar-se e parar ao meu
lado, escolhendo também vários frutos.
Ela tinha olhos castanhos e cabelos curtinhos, cortados no estilo chanel, de um tom
escuro e viçoso. Pele dourada de sol e um sorriso imenso e simpático. Sem se virar para mim,
puxou conversa:
— Estão cheirando por toda a feira — disse, referindo-se aos cajus.
— Eu colhi ainda hoje, dona Diana — o fazendeiro anunciou para ela.
— Ah, faço questão de levar. Ainda não estou na época de ter os desejos, mas senti a
boca salivar só com o cheiro. — Olhei de relance para ela e ela prosseguiu: — É que estou
grávida.
— Parabéns! — a felicitei animada. Mesmo sem a conhecer, o sorriso me cativou. —
De quanto?
— Bem pouquinho. Eu e Salazar descobrimos semana passada.
Salazar? Esse nome...
— Seu marido é o...?
— Vice-prefeito — ela disse com visível orgulho.
— Ah! O filho de dona Margarida!
— Conhece minha sogra? — Ela mostrou-se interessada.
— Sim, minha madrinha sempre vai visitá-la quando passamos aqui na cidade. Sou
Gabriella, afilhada de...
— Dos Siqueira! — ela me interrompeu. — Dona Margarida realmente falou de você.
Salazar também, disse que a conheceu em uma das visitas que fez a Lucas.
A menção ao viúvo chucro me fez estremecer, mas consegui disfarçar.
— Isso — confirmei. — Conheci os dois. Inclusive, sua sogra me deu alguns livros que
eram do seu marido.
— Ela disse. Está super empolgada por ter encontrado alguém na cidade interessado em
ler seus livros e apostilas.
Sorri acanhada e ela prosseguiu:
— Dona Margarida disse que você terminou o ensino médio. Sabia que temos uma sala
de informática na escola municipal onde alguns moradores estão estudando?
— Ela disse sim.
Eu era doida para voltar a estudar. Acessar um computador e expandir um pouco a
mente, mas jamais faria isso se implicasse em entregar meus documentos.
— Eu... — Minha mente trabalhava a mil pensando em alguma desculpa. — É que perdi
meus documentos na viagem para cá. Roubaram minha bolsa no ônibus. — Era só uma mentira
inocente. — E como nasci em outro estado, não consigo tirar novos documentos por agora. Por
isso ainda não fui lá.
Diana me estudou por uns cinco segundos. Pareceu pesar minhas palavras, mas logo
acreditou. Abriu um sorriso sincero e então decidiu-se:
— Eu sou professora lá. Posso te ajudar se quiser. Aqui em Sibipiruna tem pessoas que
nunca tiraram uma certidão.
Olhei para ela com esperança renovada.
— Jura que pode fazer isso? Eu adoraria!
— Claro! — Ela era simpática feito o marido e a sogra, e me senti acolhida. — Só me
procurar semana que vem na escola. — Apontou para uma construção larga e de um único andar,
com janelas gigantes e uma quadra cimentada logo à frente. — É bem ali.
Concordei animada, feliz por ter algo que fazer na semana seguinte.
Foi quando vi o rastro de uma caminhonete vermelha e robusta. Bem familiar. Meus
olhos se desviaram do colégio e acompanhei o carro que parou um pouco afastado do início da
pequena feira, já quase de frente para o bar.
Mas nem no sábado esse homem parava de beber?
Distraída com a presença marcante, observei Lucas descer e bater as botas pretas no
asfalto, atraindo o olhar de várias pessoas. Sua presença era tão imponente que ninguém era
capaz de ignorar. Ele usava uma camisa xadrez dobrada nos cotovelos e uma calça preta como
piche. Na cintura, um cinto grosso e marcado segurava uma arma bem visível.
Muitos ali andavam armados, o que estranhei de início, mas aos poucos me acostumei.
No entanto, ver Lucas armado me causava um frisson diferente.
O viúvo desceu do carro e atravessou a rua, passando os olhos de maneira enfadonha
pela feira. Foi quando seu olhar cruzou com o meu e ele pareceu paralisar.
A poeira vermelha ao redor de seu rosto marcado tornava-o ainda mais bonito, e sua
cicatriz estava visivelmente mais avermelhada aquela manhã, como se o Sol a irritasse. Ele
vagou os olhos por mim e então paralisou nas minhas mãos, fechando o cenho meio confuso.
Desci os olhos e percebi que eu ainda segurava os cajus. Lucas me fitou e pareceu me
questionar algo, mas não consegui compreender. Então, como se desperto do nada, ele negou
com a cabeça e retomou seu caminho, entrando no bar sem olhar para trás.
Continuei paralisada por alguns segundos, me lembrando do aroma de capim e uísque
que ele tinha misturado ao sabonete masculino e o couro dos sapatos.
A boca tinha gosto de conhaque, e a pele era mais quente que o asfalto de Sibipiruna ao
meio dia.
— Uau! O que foi isso? — Diana sussurrou ao meu lado. Devo ter ficado vermelha, pois
ela riu como se me pegasse no flagra.
— Do... do que está falando?
A grávida apontou na direção do bar onde Lucas tinha desaparecido e então disse:
— Conheço Lucas há alguns anos. Eu e Tereza éramos amigas, sabe? Estudamos juntas
e crescemos nessas ruas. Quando ele ficou viúvo, eu me arrepiava sempre que o via, pois era
como se os olhos dele só refletissem morte. — Virou-se para mim com um sorrisinho pequeno.
— Hoje ele pareceu um pouco diferente.
— Continua o mesmo desde que o vi pela primeira vez — revidei, voltando minha
atenção para os cajus.
— É. — Ela agora me estudava. — Salazar comentou que você ficou amiga dos
cachorros. Não acreditei quando ouvi.
— Mas eles são uns fofos! Impossível não fazer amizade.
— Fofos? — Diana riu. — Só convivi com os dois mais velhos. Todos, da época de
Tereza. Depois que ela morreu, tornaram-se feras do apocalipse. Assim como o dono.
Escondi uma risada, murmurando e olhando outras frutas:
— Depois que você passa a conviver, percebe que é tudo instinto de defesa.
— Está falando dos cães? — Ela ergueu uma sobrancelha para me analisar.
Dei um sorriso amarelo e resolvi continuar a conversa. Percebi que ela era aberta e
falante, então decidi tirar proveito:
— Disse que foi amiga da esposa de Lucas. — Pausei alguns segundos, pensando na
melhor forma de perguntar. — Como... como era a relação deles? — Diana me olhava intrigada,
e emendei rapidamente: — É que todos dizem que ele matou a mulher, mas eu e meus padrinhos
não acreditamos muito nisso. Ele parece sofrer tanto pela morte dela. Por que a mataria?
— Vai ver o sofrimento dele é justamente porque a matou — Diana disse com
seriedade.
— Acredita mesmo que ele fez isso?
— Não sei. — Ela negou algumas vezes. — Mas conheci o Lucas antes de se tornar
viúvo. Ele nunca foi o mais brincalhão, mas era amigo de todos e sempre solícito. Depois que
Tereza morreu, ele se afundou na escuridão e na bebida. — Ela apontou para o bar. — Veio pra
essa cidade sozinho, fugido de coisas que só ele, Salazar e Tereza sabiam. Ele conquistou a
confiança dos Maldonado, mas vai saber o que aconteceu no seu passado?
— Por isso desconfiam dele?
— Por isso e porque César faz questão de dizer para todos que ele matou a irmã. — Ela
suspirou. — Eu visitei Tereza algumas vezes antes dela... enfim. Ela ficava o tempo todo deitada
na cama. Movia parcialmente as mãos e sentia parte das pernas, mas era incapaz de se virar
sozinha. É meio difícil de acreditar que ela tenha conseguido pegar a seringa na mesinha ao lado
e injetado em si mesma.
— Mas nunca provaram nada.
— Porque Lucas foi a única testemunha. Tudo o que sabemos é o que ele diz. Que saiu
para alimentar os cachorros e quando voltou ela estava caída ao lado da cama, já com a seringa
no braço. — Ela deu de ombros, desviando os olhos para algumas frutas da banca. — Como
Tereza tinha certa sensibilidade, foi impossível para os médicos concluírem se ela seria capaz de
realizar ou não aqueles movimentos.
Permaneci em silêncio, tentando me colocar no lugar de Lucas. Deveria ter sido horrível
presenciar a mulher que amava partir daquela forma.
— Ele ainda ama ela — comentei, me lembrando da maneira como ele reagia sempre
que eu tocava no nome da sua ex-mulher.
— Deve amar — Diana opinou. — Lucas foi o primeiro e único homem de Tereza. Ele
se mudou para Sibipiruna com quinze anos e foi morar direto com os Maldonado, trabalhando no
campo. Virou amigo dela, de Salazar, e logo passou a ser o braço direito do velho Maldonado.
Os dois logo se apaixonaram e casaram algum tempo depois. Houve um tempo em que saíamos
os quatro: eu, Salazar, Lucas e Tereza. Íamos nos rodeios da região e eventos pelas cidades. —
Ela suspirou. — Eram bons tempos.
— E quanto ao irmão dela?
— Você é bem curiosinha — ela comentou e senti as faces queimarem, mas Diana não
ligou. — César morava na capital por essa época. Fez faculdade e, por um tempo, achamos que
nunca mais colocaria os pés aqui. Até que ele começou a... — Ela pausou alguns segundos, me
fitando. — Acho que estou te contando coisa demais.
— É que espalham tanta coisa. Gostaria só de saber as verdades no meio de tanta fofoca.
— Bom. — Diana endireitou a postura, mas continuou me olhando com desconfiança.
— César precisou voltar e quando o fez, já se estranhou de cara com Lucas. Eles se odeiam, essa
é a verdade. Lucas nunca engoliu César, e César acha que Lucas tomou toda a herança dele.
— Por que é Lucas quem vive no sítio, e não César?
Diana agora sorriu de maneira irônica, murmurando entre os dentes:
— Por que não me conta de você também? Estou começando a me sentir num
interrogatório.
— Bom, eu... — Como contar sobre mim sem dizer que só parei ali porque presenciei
um assassinato cometido por dois policiais? Nada da minha vida antes disso era empolgante. —
Nasci em São Paulo e fui filha única. Minha mãe faleceu há algum tempo e fiquei sozinha, até
que meus padrinhos decidiram me abrigar. Fora mamãe, nunca tive alguém.
— Ah! — Ela me olhou com pesar. — Sinto muito!
— Tudo bem.
— E onde morava antes de vir para cá?
— Gabriella! — A voz de padrinho soou no corredor da feira. — Já estamos indo.
Salva pelo gongo!
— Bom, eu já vou — me despedi da mulher simpática.
— Foi um prazer, Gabriella. E apareça na escola. Vou adorar te ajudar.
— Obrigada. Vou sim.
Me afastei, sentindo os olhos astutos da grávida em mim e tendo a sensação que, depois
da nossa conversa, a pessoa que de fato coletou informações não fui eu, e sim ela.
Voltamos para o sítio e preparamos um almoço farto com arroz, feijão, galinha, milho e
quiabo.
Eu me balançava de maneira preguiçosa na rede da varanda enquanto meus padrinhos
roncavam no quarto quando vi uma movimentação bem ao longe, do outro lado da cerca de
arames.
Continuei deitada na rede enquanto observava Lucas descendo o pasto com vagareza.
Ele carregava um balde imenso nas mãos com facilidade, e os cachorros o rodeavam fazendo
algazarra.
Desde que transamos naquele dia em que ele saiu da cadeia, não mais atravessei a cerca.
Não que eu não quisesse. Eu queria muito. Acontece que sabia o momento de recuar e esperar
um pouco. Lucas me tratou como um nada naquela manhã, e eu até gostei. Não queria dele
declarações ou romantismos, mas também sabia o meu valor.
O vi aproximar-se da cerca junto dos cães. Ele me viu deitada na rede e começou a me
fitar de maneira insistente, deixando claro que eu era seu foco.
Continuei me balançando até que ele parou na cerca e então deu um assobio, fazendo
um sinal com as mãos em concha e me chamando.
Agora eu sou parte da matilha para ser chamada no assobio?
Continuei quieta, vendo-o impacientar-se. Ele bateu os pés, incomodado, mas continuou
ali, parado e me esperando. Quando percebeu que eu não levantaria tão fácil, gritou em tom
imperativo:
— Loirinha!
Meu interior fervilhou com aquele simples chamado. Rouco e potente como tudo que
vinha de Lucas. O corpo, reagindo como um submisso e erguendo-se de imediato, enquanto os
olhos escuros do viúvo se cravavam em mim.
Caminhei lentamente, atravessando o pasto e olhando para o céu. Havia chovido um
pouco nos últimos dias, e o milho granava nas fileiras da plantação. Ainda assim, padrinho dizia
que não era a chuva torrencial que os ventos pareciam querer trazer todo dia ao fim de tarde.
Me aproximei da cerca e de Lucas. Ele usava as mesmas roupas de manhã, e tinha a
calça suja de terra e grama. Como ele nada disse, murmurei, cruzando os braços e fingindo
enfado:
— O que é?
Ele apontou para o balde ao seu lado, mudo e com uma expressão imperturbável. Desci
os olhos e deixei cair o queixo com o que tinha lá dentro.
O recipiente estava cheio até a boca com cajus. Os mais amarelos e apetitosos que
alguém poderia colher.
O mirei perplexa, ainda sem entender o que acontecia.
— Quando quiser comer não precisa comprar na feira.
Meu choque aumentou, e não disfarcei o espanto enquanto ele seguia ali. Parado. Me
olhando. Parecia odiar aquela situação.
— Não vai me escorraçar se eu atravessar a cerca para pegar seus cajus?
Ele cruzou os braços, deixando os bíceps saltarem sob a camisa xadrez.
— E adianta fazer isso? — fez chacota.
Escondi um sorriso de lado e murmurei, olhando os frutos:
— Então posso pegar sempre que eu quiser?
Lucas bufou, como se aplacasse a impaciência:
— É só pedir e te dou.
— Hum... — Soltei um murmúrio dúbio e longo. — Se estiver fazendo isso porque
ficamos aquele dia...
— Não é por isso — ele me interrompeu com impaciência. — Vi que você estava
comprando e não precisa. Os frutos estão perdendo no pé.
— Sempre foi meu argumento para atravessar a cerca.
Ele crispou os olhos em uma expressão injuriada e eu não disfarcei a risada. Como
Lucas não me expulsava aos gritos, decidi aproveitar, passando entre os vãos do meio da cerca.
Pela primeira vez, ao invés de xingar ou me expulsar, ele permaneceu calado, mas não
escondeu a cara contrariada.
— Não pode oferecer a mão para você — murmurou meio indignado.
— Vim pegar o balde. — Apontei para os cajus.
— Eu levo — ele insistiu, e acabamos os dois pegando na alça ao mesmo tempo.
Como Lucas era incrivelmente mais alto, seu queixo bateu em minha cabeça, e eu me
ergui de pronto, chocando meu corpo no peito largo e com aroma de campo.
Senti o homem se retesar. Sua respiração saiu mais ruidosa e ele desceu os olhos até
meu rosto, parando na altura dos meus lábios.
— Não vamos repetir aquele dia — ele falou de repente, e eu soltei uma risada.
— Parece que alguém não para de pensar naquele dia — murmurei baixinho, sentindo o
ar quente que escapava do seu hálito bater contra meus cabelos.
— Você é uma diaba — ele sussurrou com rouquidão.
— Se quiser, deixo você fazer como da outra vez. — Me aproximei de seu corpanzil,
sentindo os poros queimarem com a aproximação. Toquei o peito imenso e então desci as mãos
até a altura da fivela do cinto. Senti o tecido rijo da calça, como se fosse demais para suportar o
volume de dentro, e mordisquei o lábio antes de encerrar: — Do seu jeito. Pode fazer o que
quiser.
Quando morava em Dom Cervantes, fui julgada por perder a virgindade antes do
casamento. Me lembro de me culpar por um tempo, até que quase fui morta por policiais
assassinos e percebi que, no final das contas, ninguém de fato liga para você ou o que você faz.
As pessoas só querem apontar o dedo, e se você se preocupa demais com o que pensam, vê a
vida passar sem ter feito nada.
Por isso, gostava tanto de Sibipiruna. Ali, eu poderia ser quem eu quisesse, pois
ninguém me conhecia de antes.
E naquele momento, eu queria muito ser a mulher que era “usada” por um viúvo cheio
de dores.
Algo em Lucas me atraía desde o primeiro segundo que o vi, e se aquilo era tudo o que
teria dele, que seja. Eu também tiraria meu proveito.
Lucas parecia guerrear em seu interior. Os olhos escuros me sondavam com uma crueza
capaz de arrepiar qualquer um.
Minha mão escorregou um pouco mais, resvalando no volume da calça e sentindo o
calor que emanava ali. Lucas sequer se moveu, ainda paralisado e me olhando. Ergui o rosto para
encará-lo quando senti sua mão rude afastando com sutileza uma mecha de cabelo de meu rosto.
Ele olhou no fundo dos meus olhos e murmurou:
— Alguém já te falou que seus olhos têm cor de uísque?
Dei uma risadinha.
— Não.
Ele continuou me fitando. Suas pernas se aproximaram e o vento do pasto pareceu
desaparecer.
— Uísque e rum — ele sussurrou. A barba resvalou meu rosto, e os dedos se enfiaram
nos meus cabelos. Seu cheiro era de capim e couro, e meu peito batia em descompasso. —
Parece até uma pegadinha do diabo, pois com você nem o álcool faz efeito.
Capítulo 20

A boca vermelha e carnuda tremia a poucos centímetros da minha. Os olhos eram como
um copo de Jack Daniels cheio, puro e sem gelo.
Descia queimando.
Aplacava a dor.
Matava a sede.
Tonteava a alma.
Minha barba pinicou com o contato da pele, e minha boca resvalou a testa. O toque era
tão quente que gemi.
Porra! Eu gemi só de tocar a pele sedosa, sentindo o cheiro doce e o toque suave dos
cabelos loiros.
Meus lábios pousaram no topo da sua cabeça e resmunguei, embriagado:
— Sabia que o rum é feito de melaço? Pois você tem cheiro de melaço de cana, loirinha.
Desci os lábios por seu rosto e então beijei o canto da boca, sentindo o gosto
inconfundível de Gabriella.
— Estamos longe do sítio, mas... — ela começou a dizer e parou, estremecendo e
passando os lábios bem devagar sobre os meus. — Meus padrinhos podem ver a gente.
Afastei o rosto, analisando-a e me decidindo:
— Vou te levar para dentro, mas será só mais essa vez.
Ela deixou o corpo pender em minha direção. Os dedos atrevidos alcançaram meu pau
sob a calça e o tatearam com destreza.
— Claro. Só dessa vez. — Sua voz era de uma víbora prestes a dar um bote. E eu ia cair
feito um patinho. — Assim como da primeira, que também não se repetiria.
Gabriella ficou na ponta dos pés para alcançar minha orelha. Minha nuca se arrepiou, e
tudo pareceu girar em minha mente, como se eu estivesse dentro de um turbilhão.
Totalmente embriagado de desejo.
Puxei a garota em um movimento só, fazendo seu corpo se chocar no meu e agarrando
sua cintura. Gabriella era miúda, e um único braço meu quase dava a volta completa em seu
corpo. Sem dificuldade, a guiei na direção do sítio. Os dois, rodeados dos cães.
Ao chegar no alpendre de madeira, minha boca não mais conseguiu se conter. Grudou-
se na dela de jeito faminto, aliviando o desejo que tentei por tudo aplacar.
Eu não conseguia mais domar o meu corpo quando estava com ela. Aquilo era quase
desesperador.
A vi toda graciosa na feira, usando um vestido que mal cobria as coxas e com os cabelos
amarelos brilhando no sol. Escolhia a porcaria de um caju insosso, como se não tivesse aqui em
casa um pé inteiro que ela pudesse saborear.
Eu estava ficando maluco. Meio alucinado naquela mulher.
Não sei. Talvez fosse os olhos cor de uísque. Ou mesmo o cheiro de melaço que ela
tinha. Tudo em Gabriella parecia se encaixar em meus desejos, e isso ainda seria meu fim.
Entramos na sala do primeiro andar e bati a porta com o pé, sem desgrudar nossas
bocas. A loirinha saltou em meu colo, rodeando minha cintura com as pernas e pendurando-se
em meus ombros.
Agarrei suas coxas e senti a carne macia entre os dedos. Fechei os olhos e a beijei mais,
mordendo a boca carnuda e molhada. Os lábios desceram pelo pescoço, alojando-se e provando o
suor doce que ela tinha.
— A vontade que dá é te punir por fazer eu me sentir assim... — resmunguei, passando
a barba no tecido do vestido, entre seus seios.
— Faça o que você quiser, cowboy.
— Tem certeza? — Mordi a ponta do mamilo através da roupa e ela soltou um gemido
mais alto e rouco. — Eu não vou ter dó, loirinha.
— Não quero sua piedade — ela disse com segurança. Me segurou pelo queixo,
erguendo meu rosto que estava enfiado em seus seios. — Eu quero o que tiver a me oferecer.
— Eu só tenho culpa e dor — murmurei. Tão baixo e rouco que por um segundo me
senti frágil.
— Então me dê todas elas.
E eu entreguei, grudando a boca na dela e puxando seu rosto com um tranco. Minhas
mãos se fartaram dos cabelos tingidos. Continuava achando-os amarelos demais, mas a maciez
me acalmava. O cheiro, me embriagava. A maldita, até no que antes parecia me repelir,
conseguia me enfeitiçar.
Na primeira parede que encontrei apoiei seu corpo enquanto arrancava o tecido do
vestido colado à pele.
Gabriella me ajudou, levando uma mão para trás e desfazendo o fecho do sutiã. Os seios
pequeninos saltaram arrebitados, e me encurvei para beijá-los.
Mais doce que o melhor rum que já tomei.
Amparei seu corpo com um braço, enquanto a outra mão seguia entre seus cabelos. A
loirinha esfregava-se em mim. Arfava e gemia, mostrando-se pronta para o que eu quisesse fazer.
Como um viciado que descobre uma nova droga, avancei com tudo, afoito. Cobri seu
colo de beijos. Minha boca lambuzando os seios e avermelhando a região com a barba.
As pernas pequeninas rodeavam minha cintura, e o bolo do vestido em seu ventre
impedia que eu acessasse o corpo por completo. Atravessei o cômodo com ela no colo, jogando-
a com certa brutalidade no sofá antigo da sala.
No momento, as memórias daquele lugar pareciam apagadas. Era como quando eu
estava chapado de bêbado. Meio anestesiado, sem que a dor me acessasse.
Só que agora, eu sentia o coração bater disparado, ainda que só de tesão. Meus músculos
pareciam vivos e minha mente rodava a mil.
Ao meu redor, tudo era embaçado, e eu só via a loirinha. Pequena e safada,
contorcendo-se no sofá enquanto arrancava o resto do vestido e a calcinha.
Porra de mulher bonita...
Sem dar mais tempo a ela, me ajoelhei na sua frente. Gabriella me encarou com aqueles
olhos de uísque e sussurrou:
— Tira a camisa. Preciso muito te ver.
Obedeci, puxando o tecido xadrez por cima e ficando só de calça. Ela mordeu os lábios,
esquadrinhando meu corpo. Sem lhe dar mais tempo, avancei mais, grudando nossas pernas e
descendo o rosto até tocar a barriga delicada.
Mordi o centro do ventre, subindo até alcançar o meio dos seios. Suas pernas me
rodearam mais uma vez, e senti a umidade quente entre as coxas grudar-se em minha calça.
Segurei seu queixo com firmeza, assumindo o comando, e parando acima dela. Mirei o
rosto delicado e perverso. Os cabelos bagunçavam-se no meio da testa, e afastei alguns fios.
Estiquei suas pernas no sofá e rodeei seu corpo com as minhas, travando-a deitada e deixando
bem claro quem comandava ali.
Ela gostava...
Gostava tanto que se remexeu toda. O olhar assumiu um tom mais claro. As pupilas
pareceram se dilatar e ela empinou os seios, como se os oferecesse para mim.
— É tudo meu, loirinha — murmurei, passando os dedos no vão dos seios. — Não
precisa oferecer porque eu já tomei para mim.
Me debrucei e os suguei. Ainda segurando firme seu queixo. Senti sua respiração
acelerar entre meus dedos, e aquilo inflou meu desejo. O sangue correu depressa em minhas
veias, e senti vontade de descarregar tudo de uma vez.
A mão entre os seios desceu mais, num rastro contínuo até o centro das pernas
delicadas. Um dedo tocou o vão úmido e doce, enquanto ela seguia travada entre minhas coxas.
Ergui parcialmente o corpo, só para apreciar o seu todo nu e arrepiado.
Aventurei um indicador por seu interior e Gabriella gemeu alto, levando uma mão até
minhas calças. Ela tateou até encontrar meu pau, duro e sedento por ela, firme sob o jeans.
— Por que não tira a porra dessa calça? — perguntou agoniada.
— Porque eu não quero — respondi com deboche, dando um tapa em sua mão que
tentava abrir meu zíper.
Ela me olhou meio bravinha, mas sei que gostava daquilo.
Gabriella tentou se erguer, mas aproveitei o movimento para mergulhar meu dedo em
sua boceta. Foi quando ela caiu de novo, como se atingida por um tiro. Suspirou e gemeu,
entreabrindo a boca e me olhando.
Com um dedo tateando suas paredes, sentindo a carne macia de seu interior, eu avancei.
Enfiei um pouco mais, descendo a mão que estava em seu queixo até um dos mamilos. Belisquei
e então estapeei a ponta rosada, fazendo-a gritar.
— Lucas! — Ela tentou impulsionar os quadris em minha direção, mas eu ainda a
travava entre minhas pernas.
— Quero que se acostume com meu jeito, loirinha. — Desci o rosto devagar até bem
perto do seu. Meu dedo em seu interior começou a ir e voltar com vontade. — E meu jeito de te
comer é até ver suas pernas tremerem. Até ver você ficar fraca e incapaz de falar ou me desafiar.
É até te ver sem ar. — Levei a mão até seu pescoço e apertei só um pouco. — E ainda assim
implorando por mais.
— Lucas...
Soltei seu pescoço para dar um tapa suave em sua face, interrompendo-a. Gabriella
estremeceu e revirou os olhos, recomeçando:
— Luc...
— Quieta! — Mais um tapa em seu rosto. Esse mais forte. E o que recebi de volta foi
uma chama viva em seus olhos. — Eu ainda nem comecei.
Ela engoliu em seco, mas seus olhos continuavam queimando em minha direção. Meu
dedo a fodendo tornou-se mais rápido, e ela gemeu baixinho, ainda sem tirar os olhos de mim.
Como se desafiado, intensifiquei os movimentos, sentindo seus fluidos me encharcarem os
dedos.
A outra mão deu mais um tapa em seu rosto delicado antes de descer para o pescoço
delgado. Os dedos pinicavam de vontade de enforcá-la e deixei tudo vir, sem controle.
Da primeira vez que fiz aquilo, passado e presente se misturaram em minha mente,
como uma brincadeira perversa do desejo. Em anos, aquele era meu primeiro rompante de querer
algo, e talvez por isso, a culpa protestou. Tentou enveredar-se nos cantos do tesão e quis fundir
ali toda a dor que me matava por dentro. Por isso, paralisei.
Agora, eu não conseguia mais parar.
O corpo de Gabriella, submisso e entregue ao meu, parecia me libertar. Pouco a pouco,
sempre que a tocava. A fazia gemer ou a marcava com meus dedos.
Ele me desprendia da dor e me trazia para mais perto do prazer. Só o prazer.
E me parecia o suficiente, pois, pela primeira vez, eu respirava algo que não era
sofrimento.
Apertei sua garganta, retirando parte do seu ar. Se ela sentisse o sufocar que eu sentia
mirando seus olhos cor de bebida já estaria recompensado. Eu só precisava que a loirinha
entendesse que ela me embriagava. Me afogava de algo que não era dor.
E aquilo era libertador.
Levei o indicador o mais fundo que consegui de sua boceta. Senti suas paredes
apertarem meu dedo e sorri, extasiado. Louco para provar seu gosto e fazê-la estremecer e gozar
em minha boca.
Antes, ia me esbaldar com todo o resto.
Retirei os dedos de sua boceta e os passei em seu ventre, deixando um rastro molhado
da sua lubrificação. A outra seguia em sua garganta, mantendo-a presa no lugar. Gabriella
parecia só sentir a aproximação de meus dedos, e entreabriu a boca quando eles chegaram em
seu rosto.
A fiz provar o próprio sabor, e a abusada respondeu de pronto, passando a língua de
maneira lenta e pecaminosa por toda a extensão do meu indicador.
— Quero ver você fazer isso com meu pau — falei. A voz saiu mais rouca do que eu
gostaria.
— Isso? — perguntou a diaba, levando a língua para fora e rodeando a ponta do meu
dedo bem devagar, sempre com os olhos grudados em mim.
— É. — Em resposta à provocação, apertei mais seu pescoço. — Bem isso.
— Então me deixa... — Senti sua mão tatear minha calça, e a impedi de avançar,
esfregando meu corpo nela e negando com a cabeça.
Por Deus, eu queria demais ver a loirinha ajoelhada e com meu pau todo dentro da boca,
mas eu precisava primeiro esgotar tudo dela.
Aumentei a pressão em sua garganta, descendo agora a outra mão para um dos mamilos.
O belisquei e apalpei, depois partindo para todo o corpo. Mantendo-a cativa, distribuí tapas entre
os seios e no alto da virilha.
Gabriella gemia e gritava, enquanto eu me sentia sufocado com tanto desejo. O meu
peito retumbava. Eu ainda tinha um coração! E era ele quem bombeava sangue para o centro da
minha virilha, me deixando insano de vontade de meter com tudo em seu corpo.
Distribuí tapas entre suas coxas, alternando entre um alisar gostoso no meio dos lábios
úmidos da boceta e uma fricção enlouquecida na pele arrepiada. Marquei seu corpo com minhas
mãos, e seu pescoço com meus dedos. Ela mal respirava, mas seguia firme. Gemendo e
implorando por mais e mais.
A loirinha tinha meu número na forma do desejo.
Confiava em mim, deixando eu montar nela como um bicho e domar cada célula sua.
Depois de distribuir tapas e privá-la do ar, voltei a enfiar o dedo entre suas pernas.
Agora, ela estava molhada feito um rio. Escorria tesão quente e grosso, e bastou um pouco indo e
vindo com o indicador que ela gozou, gemendo baixo e retorcendo-se sob mim.
Admirei o corpo com marcas vermelhas e o beijei. Entre os seios, na barriga e então no
alto da virilha.
Minha língua chegou bem perto da boceta melada e eu gemi com o cheiro.
Até ali ela parecia uma bebida.
Provei seu gosto como um alcoólatra, mais uma vez sentindo aquela coisa sufocante que
Gabriella despertava. O sabor me tomou por completo, e avancei como um faminto, sugando sua
boceta e limpando toda a bagunça que ela fez quando gozou em minhas mãos.
Gostosa...
Ela enterrou as mãos nos meus cabelos e suas pernas se abriram, me posicionando
melhor entre elas. Saboreei o mel de suas dobras e provoquei a região do clitóris com a língua,
descendo um tapa suave vez ou outra no ponto mais alto da virilha.
— Meu pau tá doido para se enfiar em você, loirinha — falei no meio das suas pernas.
— Mas antes, quero que goze na minha boca.
Ela choramingou, apertando mais meus cabelos e direcionando meu rosto mais para
baixo. Lambi tudo. Da região da boceta até bem perto do cu, apreciando seu corpo cada vez mais
suado e trêmulo debaixo de mim.
Indo e vindo com a língua até vê-la estremecer em um orgasmo lento e marcado por
suas unhas se cravando em meu crânio. Doeu sentir ela puxando os fios, e foi bom para cacete.
Depois de vê-la gozar, me ergui, passeando pelas curvas sinuosas dela, e apreciando a
expressão esgotada e entregue.
Beijei os lábios com fome e então me levantei, retirando a calça na sua frente.
Gabriella pareceu renovar suas energias, sentando-se no sofá e me observando enquanto
eu me despia. Uma vez nu, me aproximei, pegando sua mão direita e a guiando até meu pau,
rígido de desejo.
— Quero ver fazer o que fez com meus dedos — provoquei, me aproximando mais,
com ela ainda sentada.
A vi endireitar-se no sofá e envolver meu membro com as duas mãos. Com vagareza,
começou a massageá-lo, puxando a pele da glande e resvalando a ponta do polegar na região
exposta.
Gemi com o toque suave, e ela lambeu os lábios antes de receber meu pau como a
faminta que era. O engoliu inteiro de uma vez, com a boca vermelha tomando tudo como se
fosse dela.
Meus olhos se fecharam ao sentir os dentes passarem devagar por toda a extensão, e
então ela provou mais. Foi e voltou em um movimento rítmico e que fez uma onda de
estremecimento percorrer minha lombar.
Senti sua boca me engolir. E me mamar. Me sugar e abocanhar. Indo e indo. Lambendo
e sugando. Tudo, para me enlouquecer. Me afogar mais no uísque dos seus olhos que, malditos,
não se desgrudavam dos meus.
Ali ela controlava, me chupando com a mesma vontade com que mordia os frutos
maduros do cajueiro. Ela se lambuzava e eu queria gozar. Segurei seus cabelos e comecei a
mover sua cabeça sob meu ritmo, num vai-e-vem que tornava tudo pior para aguentar. Sufocava
e, diferente da dor e da culpa, era bom.
Fodi sua boca enquanto ela me fodia a mente.
Meus quadris se movendo e ela engolindo tudo, safada e deliciosa.
Agarrei mais forte seus cabelos e então fui mais rápido. Mais rápido e mais forte,
ouvindo-a gemer ao engolir meu pau.
Quando alcancei o limite, me afastei e agarrei sua perna, puxando-a para a beirada do
sofá. Abri suas pernas e me encaixei, descendo devagar. Me encaixando aos pouquinhos,
enquanto a boca vermelha de Gabriella brilhava à minha frente.
Beijei seus lábios quando a penetrei uma primeira vez. Suas paredes internas
desaparecendo com o resto da dor. Era como uma cura imediata. Era tão intenso, que nem a
mente restava.
Eu só estava ali...
Fodendo...
E, por mais mundano que seja, aquela era a melhor motivação para viver que encontrei
nos últimos quatro anos.
Fui e voltei, sentindo suas paredes se expandirem ao meu avanço. Eu estava mergulhado
em seu corpo, e o que havia em volta não importava muito. Escutei seu gemido e mordisquei sua
boca, sugando a ponta dos lábios e murmurando contra seu rosto:
— Rebola, loirinha.
Ela remexeu-se debaixo do meu corpo, e senti seus quadris irem e virem com suavidade,
enquanto meus músculos tencionavam-se em sua direção. A pressionei contra o sofá e ela
gemeu, aumentando os movimentos do corpo e grudando as unhas em minhas costas.
Entrei no ritmo dela, indo e vindo em sua boceta. Mordi o lóbulo da orelha e então dei
um tapa em sua bunda, sentindo o pulsar de seu interior massacrando meu pau.
Me movi mais rápido. Provocando o bater do sofá na parede de trás. A poeira
acumulada no móvel que quase ninguém usava fez uma nuvem dourada e bonita ao redor dos
cabelos loiros dela. Seu corpo suava abaixo do meu, e eu sentia meus músculos cada vez mais
carregados de tesão.
Quando ela parecia prestes a gozar mais uma vez, segurei seu pescoço, erguendo o rosto
para que ficasse de frente para o meu e a provocando:
— Vai ficar com as marcas dos meus dedos no pescoço, Gabriella.
— Eu não me importo — ela revidou atrevida. — Pode marcar mais.
A mão se fechou com o convite, e ela revirou os olhos, engasgando antes de formar um
sorriso ladino no rosto. Os olhos pareceram escurecer, e o uísque virou um tom amadeirado.
Subi os dedos um pouco mais, sentindo agora os cabelos acariciarem minha mão. Meus
quadris recomeçaram a se mover, e eu mordi sua boca enquanto a fodia sem piedade. Os
gemidos se fundiam, e era impossível dizer se vinham de mim ou dela. Me perdi no seu corpo,
mergulhando mais e mais fundo, até que seu interior fosse como um rio de tão encharcado e
profundo.
Me movi feroz, arrancando gritos de sua garganta sufocada. Cada vez mais e mais
baixos, até que não passassem de lamentos. Suas pernas tremiam ao meu redor, e senti o
estremecer de seu corpo quando ela gozou mais uma vez, agora com meu pau dentro dela ao
máximo e minha mão a prendendo no sofá.
Meu avanço tornou-se mais intenso, e Gabriella agarrava minhas costas com o resto de
suas forças. Choramingava e parecia em busca de ar, como se estivesse afogada em prazer.
Assim como da primeira vez, meu orgasmo veio sem aviso. Intempestivo. Meio
incontrolável, como se eu tivesse coisa demais para vazar. Coisa demais represada.
Gozei dentro dela, sentindo nossos líquidos se fundirem em um rio quente e que adorei
me esbaldar.
Ainda me movi um pouco mais, com minha mão como um colar em seu pescoço
enquanto a outra passeava pelo corpo debaixo do meu.
Soltei um a um dos dedos que rodeavam sua garganta e me afastei, me levantando do
sofá e admirando-a de pé, enquanto a mulher ainda estava esgotada, o rosto meio caído, com os
cabelos tampando parte da face esquerda e a boca entreaberta. Seu pescoço tinha marcas visíveis
de minhas mãos, assim como seus seios e as laterais da bunda. A boca estava inchada dos meus
beijos, e entre as pernas meu gozo escorria.
— Do jeito que eu gosto de ver — murmurei para mim mesmo, me dando conta que
adoraria rever aquela cena. Talvez no meio do mato, ou mesmo em minha cama.
Os pensamentos pareceram se tornar íntimos demais, e fechei o punho, recuando um
passo enquanto minha mente ainda vagava no corpo escultural.
— Não vai se sentar? — ela questionou, percebendo que eu tentava me afastar. — Pode
ficar tranquilo. Não vou te morder.
— Não é isso, loirinha...
— Eu sei. — Ela endireitou-se no sofá. Ainda parecia um trapo de esgotada, mas seus
olhos astutos me fitaram com firmeza. — Não quer deixar ninguém se aproximar. E na verdade
eu nem ligo. — Deu de ombros, passando os dedos nas marcas em seu pescoço. — Tudo o que
quero de você, acabou de me dar.
Fechei o cenho, ainda ressabiado. Só que seu corpo nu me atraía, e eu ainda estava tonto
depois do sexo. Puxei uma cadeira da mesa e me sentei de frente para ela. O mais distante
possível.
— Eu não tenho o que te oferecer, Gabriella. Nem agora, e nem depois.
— Acho que você tem sim. — Ela esquadrinhou meu corpo com o olhar.
Permaneci em silêncio enquanto ela preenchia aquele espaço da sala com sua voz. Seu
cheiro.
— Posso te fazer uma pergunta? — disse de repente, e eu neguei com a cabeça, já me
erguendo para fugir da intromissão. — Ei! — ela gritou quando viu que eu me afastava. —
Espera aí! Juro que não vou perguntar nada sobre... ela.
Parei e me voltei para ela, encarando-a. Levei as mãos nos quadris e esperei.
— Onde vivia antes de vir para Sibipiruna?
Paralisei no lugar.
Ela não sabia, mas essa parte também era algo que eu tentava esquecer. Resolvi usar a
curiosidade dela a meu favor.
— Respondo se você me disser o mesmo. De onde veio, loirinha? E do que está
fugindo?
Foi a vez de ela fechar-se em uma expressão séria.
— Não tenho mais interesse em saber de você — ela revidou emburrada.
— Me diz logo quem está atrás de você, Gabriella! — Passei as mãos nos cabelos de
maneira impaciente.
Eu tinha ido ao bar naquele sábado pela manhã para conversar com alguns homens. Pela
primeira vez, me movimentava pela cidade para algo que não fosse beber, e tudo para montar
uma caçada que tentasse encontrar os baderneiros da cidade. Precisava me certificar de que não
era deles que ela fugia.
Às vezes eu torcia que fosse.
— Não vou dizer. — Ela cruzou os braços sobre o peito nu. Os bicos dos seios se
juntaram e minha atenção se perdeu ali alguns segundos. — Você não é nada meu, e não lhe
devo satisfação. O que fiz da minha vida antes de vir para Sibipiruna não lhe diz respeito, e
prefiro que continue assim.
— Diacho...
— O que é? Você também não vai me contar nada de você. Por que eu me abriria?
— Meu passado não coloca meus vizinhos em risco.
— O meu também não! — Vi a dúvida atravessar seus olhos. — Já disse, Lucas. Não
posso contar.
— Não confia em mim para contar?
— Você confia em mim para contar sobre seu passado? — ela questionou com altivez.
Permaneci calado, pois de fato não confiava.
Levei tantas rasteiras na vida que estava corroído de desconfiança. Não enxergava uma
mão estendida à minha frente, fosse ela amiga ou traiçoeira.
— Semana que vem — comecei a dizer, virando as costas para ela e tentando mostrar
indiferença —, vamos fazer novas buscas na mata atrás dos invasores às fazendas. Alguns
fazendeiros da cidade vizinha viram quatro homens suspeitos em um carro outro dia, na estrada.
Pensei em pedir um retrato-falado deles e mostrar para você, para confirmar se são as pessoas de
que você se esconde.
Quando me virei, ela me olhava ressabiada. Parecia ponderar se faria aquilo ou não.
— Não sei se é boa ideia.
A fitei com desconfiança.
— No que você se meteu? — perguntei. — São bandidos? Traficantes? Você estava
envolvida com droga? Encrenqueira do jeito que é, não duvido nadinha que esteja bem fodida, e
por culpa sua.
— Falou a pessoa que passa os dias bêbado e fingindo não ter problemas. — A vi
levantar-se e começar a juntar suas roupas. — Não vou te contar, Lucas Maldonado. Esqueça
isso.
— Faça como quiser. — Me decidi. — Vista-se e volte para o seu sítio. Não quero você
aqui de novo.
Ela olhou para mim. Também parecia brava. Mostrei a ela o que era cutucar suas
feridas, e ela ficou mexida.
— Vou te deixar em paz, cowboy!
Ela passou o vestido pela cabeça com raiva. Os cabelos bagunçaram-se mais, e senti a
vontade sem sentido de enfiar as mãos ali mais uma vez. Ela estava toda bravinha e queria me
enfiar na sua boceta. Como pode?
A vi bater os pés até bem perto de mim, então erguer o rosto para me encarar e dizer,
séria:
— Se algum dia eu ao menos suspeitar que estou trazendo perigo para meus padrinhos,
serei a primeira a sair desse vale. Não se preocupe.
Seu olhar prendeu o meu, firme e decidido, antes de ela se afastar. Gabriella apanhou
suas sandálias e saiu, batendo a porta da frente e me deixando sozinho.
Da janela de cortinas rasgadas, admirei o corpo esguio atravessar o pasto pisando duro e
rodeada dos cães, como se já integrasse a matilha.
Me lembrei dos cajus queimando no sol dentro do balde, e que ela ignorou ao passar.
Capítulo 21

A chuva forte caiu na manhã de segunda-feira.


Foi um dia inteiro preguiçoso e nublado, com o vale encoberto por uma densa nuvem e
com as gotas batendo incessantes no chão de terra batida.
Meus padrinhos foram para o campo, apesar de tudo. Estavam acostumados com aquilo
e diziam que era preciso verificar se a chuva não assolaria parte do terreno ou derrubaria algumas
fileiras de milho.
Enquanto eles trabalhavam, fiquei no sítio quieta, lendo e me distraindo com as
apostilas velhas de Salazar.
Quando mais nova, sempre pensei que fosse me tornar professora. Só porque gostava de
ler, e foi numa sala de aula que descobri aquele prazer. Passei a associar escolas a livros, e
imaginei que meu futuro estivesse ali.
Agora, lendo as apostilas de estudo de Salazar, me interessava por outros campos. Os
estudos de Direito eram legais, mas eram as questões de Administração que me faziam brilhar os
olhos. Comecei a imaginar que, quem sabe um dia, eu pudesse realmente fazer uma faculdade.
Talvez Direito ou Administração, e atuar no serviço público.
Sonhar não parecia ser um direito meu há tempos, mas eu insistia.
Me sentei na varanda com a chuva acalmando e alguns livros ao meu redor quando ouvi
os latidos dos cães na mata.
Começou com o mesmo barulho de sempre, mas logo tornou-se uma confusão
assustadora, com granidos e rosnados que fizeram meu coração bater enlouquecido.
Pelo horário, Lucas estava na cooperativa da antiga usina, e eu me via sozinha no vale.
Fiquei alguns segundos parada, esperando os latidos cessarem, mas eles logo ficaram
maiores. Parecia uma briga, e ouvi quando um dos cães começou a granir, como se estivesse
ferido.
Sobressaltada, saí correndo no meio da chuva.
Desci o pasto com tudo. Meu corpo molhando-se inteiro, e sentindo a lama encharcada
sujar minhas pernas. Antes de entrar na mata ciliar do córrego, parei para ouvir de onde vinham
os gritos. Os cães pareciam estar num ponto mais embaixo, numa região de vegetação mais
densa.
Estava um pouco escuro pela total ausência de Sol, e gritei:
— Trovão! Estrela! — Os latidos cessaram por alguns segundos. — Sombra!
Um novo granido e um rosnado. Corpos pareceram se chocar e latidos desesperados
reiniciaram.
— Trovão! — voltei a gritar. Eu não sabia qual deles estava ferido, se eles brigavam
entre si ou com algum invasor. — Juiz!
O primeiro a aparecer foi Sombra. Tinha o pelo todo molhado da chuva e a boca aberta
com a língua para fora. Me viu e, carinhoso como sempre, aproximou-se abanando o rabo.
— O que aconteceu? — questionei ao notar que seu pelo estava sujo de sangue.
Olhei ao redor, levemente apavorada, e então escutei um choramingo curto de um dos
animais.
Um deles estava ferido, e eu tinha que entrar lá para ver.
Adentrei a mata com Sombra me seguindo de perto e apontando o caminho.
Logo, Juiz e Estrela juntaram-se a ele. Assim como o primeiro, estavam molhados e
sujos de lama, e pareciam ter machucados em algumas partes do corpo. Estrela mancava, e Juiz
lambia a pata com insistência.
Ainda faltavam Perverso e Trovão.
Desci um pouco mais pela mata. O lugar estava frio, e meu corpo quente da corrida
sentiu a mudança brusca de temperatura. Espirrei, mas ignorei aquilo ao seguir. Com a densidade
das árvores, a chuva ali parecia mais forte, pois as folhas acumulavam a água que caía. O chão
era escorregadio com as folhas caídas e o musgo grudado nas pedras e raízes, e acabei me
desequilibrando e caindo.
Me levantei, limpei as pernas imundas e continuei, seguindo com cada vez mais cautela.
Não demorou muito e encontrei os dois últimos cães em um cenário que mais parecia de
filme de carnificina.
Trovão estava quieto, em guarda, vigiando o companheiro Perverso, que estava deitado
em uma imensa poça de sangue e pelos. Seu rosto estava irreconhecível, com centenas de
espinhos brancos enfiados por todo lugar.
— Meu Deus! — Levei as mãos à boca, engolindo parte do asco com a cena.
Um porco-espinho gigantesco estava partido ao meio, e entendi logo que era dele o
sangue que manchava os pelos dos cinco cachorros. Trovão tinha alguns espinhos nas patas e no
rosto, mas Perverso era o mais atingido de todos. Parece ter digladiado com o animal feito um
louco, e era difícil saber quem levou a pior naquele cenário.
Ok. O porco-espinho morreu, mas Perverso não estava nada bem.
— Agora entendi o porquê do seu nome. — Apontei para o cão coberto de espinhos no
rosto. Estrela aproximou-se e me deu a pata, e vi que ela mancava porque também tinha sido
atingida por alguns espinhos. — Me diz o que vocês tinham na cabeça para sair de casa no meio
da chuva e vir procurar encrenca com um porco-espinho?
Todos abaixaram a cabeça, meio culpados, e eu ri.
— Vem, vamos voltar.
Comecei a fazer a volta, mas Perverso não nos seguiu. Me preocupei, e acabei voltando,
indecisa sobre o que fazer.
Estava sozinha, e ele era um dos maiores da matilha. Poderia estar mais ferido do que
aparentava, e seria cruel deixá-lo assim debaixo da chuva e no meio da mata.
Suspirando, me voltei para Trovão:
— Fica aqui com ele. Eu já volto.
Fui acompanhada por Juiz e Sombra no caminho de volta. Estrela ficou no meio do
caminho, e julguei ser porque as patas estavam doendo.
Entrei na casa dos padrinhos e procurei por algo que pudesse usar para cobrir o cão.
Achei uma manta velha na despensa e voltei no meio da chuva, que agora caía implacável.
Ao parar ao lado de Perverso, o encobri com cuidado. Queria protegê-lo e também
proteger a mim dos espinhos. Quando o ergui no colo vi como era pesado, mas não recuei. Subi
devagar e constante o pasto de volta, sendo acompanhada dos demais, todos cabisbaixos e meio
culpados.
Por um segundo tive dúvidas de onde seguir, mas logo me decidi. Fui direto para o sítio
dos Maldonado, sentindo o vento cada vez mais frio assolar meu corpo e a chuva encharcar até
meus ossos.
Sem me importar em soar invasora, entrei na sala escura do primeiro andar sendo
seguida pelos cães, que fizeram um lamaçal bagunçado por onde passaram.
— Não que o dono de vocês vá se importar, já que esse lugar mais parece um chiqueiro
— comentei, deixando Perverso deitado em um canto no chão ao lado do sofá e procurando por
algum interruptor.
Liguei as luzes da sala e comecei a inspecionar o cão, ainda que não soubesse bem o que
fazer.
Ele tinha alguns ferimentos no corpo, além dos espinhos. Brigou bravamente com o
animal antes de vencer a batalha, e parecia com sede quando lhe ofereci um pouco de água.
À luz da lâmpada, os ferimentos não pareciam profundos, e o que mais o incomodava
eram os espinhos.
— Espero que Lucas saiba tirar isso — murmurei, tocando com cuidado os espetos que
enchiam o focinho de Perverso e o deixavam irreconhecível.
Tentei procurar entre as gavetas da cozinha algo para retirar os espinhos, como um
alicate, e nada encontrei. Só restos de garrafas e pouca comida. Os talheres eram escassos e as
coisas pareciam fora do lugar. Aproveitei para inspecionar mais a casa. Encontrei uma despensa
aos fundos da cozinha com garrafas vazias e pratos, além de ração para os cães e alguns
mantimentos, como arroz, feijão, milho e ovos.
Lá, procurei por algum tecido em que pudesse secar as feridas de Perverso. A chuva
encharcou a manta que usei para abraçá-lo, e eu queria limpá-las com álcool para ver melhor a
dimensão dos machucados.
Como não havia nada, voltei para a sala e entrei na primeira porta destrancada do
primeiro andar. Ficava logo abaixo da escada, e parecia ser um quarto de solteiro. A cama era
bem alta, de armação em ferro, e um colchão fino estava coberto por um lençol branco. Não
deveria ser trocado há anos, pois cinzas e fuligem acumulavam-se sobre o tecido, já cheio de
manchas do tempo.
Ao lado da cama havia uma mesinha de cabeceira alta, e nela, um porta-retratos.
Me aproximei da foto por simples curiosidade, e paralisei quando percebi do que se
tratava.
Me sentindo uma invasora de lembranças alheias, vi um retrato de Lucas, sorridente e
mais jovem, abraçado a uma belíssima mulher. De pele clara e olhos castanhos, era magnífica.
Alta e exuberante. Tinha os cabelos volumosos e um sorriso altivo no rosto.
Ninguém precisava me dizer que se tratava de Tereza.
Olhei mais uma vez para a cama, deixando a ficha cair em meu cérebro. Possivelmente
foi ali onde ela viveu os últimos instantes de sua vida.
De repente, o quarto tornou-se gélido. Senti um arrepio na espinha com um vento frio
que entrou pela porta e percorreu meu corpo, e era como se todo meu interior se apagasse. Como
se aquele lugar sugasse energias e tornasse tudo menos vivo e mais doloroso.
E então, um baque surdo me fez pular assustada.
— Que porra tá fazendo aqui?! — Mal tive tempo de me recuperar ao ouvir os gritos
tresloucados de Lucas, que invadia o quarto como um touro. Arma em punho e rosto
transformado em cólera.
— E... Eu... — comecei a gaguejar, tropeçando nas próprias pernas e caindo de bunda
no chão.
— Você é louca?! — Ele parecia fora de si. A arma balançava em suas mãos e eu não
conseguia compreender o que aquilo queria dizer. — Quantas vezes te falei para manter
distância, Gabriella? O que pensa que está fazendo entrando aqui dentro?
Era como se eu tivesse libertado um bicho. Um louco e ferido animal que passou anos
enjaulado.
— Eu só estava... — Solucei. — Procurando...
— Encrenca! É o que você procura! — Ele guardou a arma no bolso, mas seguia seu
surto de raiva. — Pois você achou, loirinha. — Ele me fitou com uma dor profunda nos olhos, e
tudo o que senti foi medo daquela dor chegar em mim também. — Conseguiu uma encrenca
daquelas por ter entrado aqui. Ninguém entra aqui!
— Não foi minha intenção! — gritei. Sentia meus olhos arderem, mas não daria a ele o
prazer de me ver chorando apavorada. — Eu só estava procurando álcool para limpar os
ferimentos do Perverso!
Lucas parou. Fitou meu rosto por alguns segundos, ainda transbordando raiva. Seu olhar
desceu para meu corpo e ele franziu a testa, como se só agora visse as manchas de sangue e barro
que empapavam minhas roupas.
— O que aconteceu? — perguntou devagar. A voz continuava fria, mas agora saiu
controlada.
Ainda tremendo de susto, me levantei. O frio ainda assolava meu corpo, e me senti
levemente febril, como se pudesse adoecer. Ignorei a sensação ruim e parei à sua frente, calada.
— Por que você está suja de sangue? — ele me analisou de alto a baixo. Agora, poderia
até dizer que havia um traço de preocupação em sua voz.
— Os cães brigaram com um porco-espinho na mata — contei com a voz rouca e
trêmula. — Eu escutei os latidos e choros de um deles e fui ver o que era. Perverso está na sua
sala cheio de espinhos no rosto e alguns ferimentos. Estrela e Trovão também se feriram.
Lucas girou o corpo e olhou na direção da sala, como se procurasse pelo cachorro.
— Está chovendo e não quis deixá-lo sozinho na mata — expliquei. Não gostaria que
minha voz saísse tão frágil. — O trouxe para cá e estava em busca de algo para limpar e secar as
feridas. — O fitei sem disfarçar o tom machucado na voz. — Eu não quis bisbilhotar ao entrar no
quarto. Não sabia que era dela.
Vi parte da dor e raiva voltarem a endurecer seu rosto, mas dessa vez ele nada disse.
Ferida com algo que eu nem saberia dizer o que era, passei por Lucas e saí do quarto, como se o
cômodo me sufocasse.
Aquele lugar parecia um mausoléu fechado, e não gostei da sensação.
Ele me seguiu até a sala, onde Perverso seguia deitado num canto. A porta da frente
estava escancarada e a chuva caía forte lá fora, motivo pelo qual não ouvi sua chegada.
— Eu não o vi aqui — Lucas disse com a voz controlada ao aproximar-se do cão ferido.
Ajoelhou-se e analisou o focinho cheio de espinhos. — Quando cheguei, vi as luzes acesas, os
cães todos do lado de fora, na chuva, e sujos de sangue... A porta aberta... — Ele me fitou. —
Achei que tinham invadido a casa.
— Por isso aquela arma apontada para mim? — Deixei a mágoa vazar.
— Eu não apontei para você, eu só...
— Tudo bem, Lucas. — Ergui uma mão em sua direção. — Eu entendi. Esquece.
Ele respirou, como se tentasse reestabelecer algum controle.
— Loirinha...
— É Gabriella. — Me agachei para observar o animal ferido, mas mantendo distância
do homem. — E estou mais preocupada com o Perverso.
— Ele vai ficar bem. Eu acho. — Lucas analisou o cão. — Não é a primeira vez que ele
faz isso, não se preocupe.
— Você consegue tirar os espinhos?
— Vou levá-lo no veterinário que fica na cidade vizinha.
— Seria bom levar os outros. Estrela está mancando e acho que Juiz também se feriu.
Lucas concordou. A fera parecia mais calma, e seu olhar não queimava de ódio em mim.
Ao contrário, me pareceu quase humilde ao me fitar, questionando:
— Você se machucou de alguma forma?
Abri um sorriso irônico.
— Não da maneira que você pensa.
Me sentia ferida por dentro. Pela maneira como ele gritou e me acusou, e por perceber
como o passado ainda era presente em sua vida.
Repeti tantas vezes para Lucas que não me importava em ser usada por ele que foi um
baque ver aquela foto na mesinha de cabeceira e perceber que, sim, eu me importava.
Meu corpo não ligava em ser objeto de prazer de um homem machucado, mas meu
coração se feria aos pouquinhos. E ao ver aquela foto e sua reação, era como se as feridas fossem
lavadas com álcool, exatamente como ele fez no dia em que me machuquei. E com isso, eu
tomava ciência delas.
Eram machucados pequenos. Superficiais.
Mas que já existiam.
— Está toda molhada e suja. — Escutei a voz rouca e profunda de Lucas murmurar em
minha direção. — Vá se secar ou vai acabar adoecendo.
— Quero ir com você — teimei. — Preciso saber se ele vai ficar bem.
— Eu já disse que vai. Perverso tem esse nome justamente porque tem mania de
guerrear com galinhas e outros bichos. — Ele se virou para o animal, afagando-o atrás da orelha.
— Parece que faz por prazer.
— Mas eu vou. Posso ajudar a carregar os cães. São muitos.
Lucas se levantou. Aproximou-se de mim com seu corpo intimidador e me escrutinou
com os olhos. Perdeu vários segundos entre meus seios e na minha boca, e então sussurrou de
maneira controlada:
— Fica, Gabriella. Precisa se secar. Eu já estou acostumado a levar todos e... não
sabemos se as pessoas de que você foge podem te ver na outra cidade.
Ele tocou no meu calcanhar de Aquiles, e concordei em silêncio.
Preocupada com os cachorros e sentindo o corpo trêmulo dos acontecimentos, recuei um
passo, voltando-me para a porta e saindo em silêncio. A chuva caía torrencial lá fora e senti o ar
gelado do pasto úmido encharcar meus pulmões. Os cães estavam todos na varanda, protegidos
da tempestade, e eu acenei brevemente para eles, me despedindo.
Dei um passo na direção do chão de pura lama quando senti uma mão pesada e de dedos
grossos rodear meu braço, me puxando de volta.
— A chuva engrossou. Espere um pouco.
Em um arranque, livrei meu braço e o fitei, dizendo:
— Leva os cachorros, Lucas. Eu sei que não sou bem-vinda aqui.
E comecei a correr na direção da cerca, me protegendo dos pingos que caíam em meu
rosto com as mãos.
O chão estava escorregadio de tanta água, e tive de ir devagar e com cuidado para não
cair. Atravessei a cerca de arame farpado, que parecia até mais pesada com a umidade, e então
caminhei até o sítio dos Siqueira.
Ao chegar na minha varanda, vários minutos depois, me voltei para o terreno vizinho.
Lucas guiava os cães até a carroceria da caminhonete. No meio da chuva, ele instalou a
capota de proteção e então correu para dentro da casa, buscando Perverso e colocando-o dentro
da cabine, na frente.
Antes de sair, o viúvo parou alguns instantes, olhando na minha direção. Mesmo
distante, pareceu observar cada detalhe meu, então bateu com sutileza a aba do chapéu
encharcado, antes de entrar no carro e partir.
Senti um estremecimento no corpo e cruzei os braços, observando a caminhonete
manobrar no lamaçal e voltar pela estrada molhada.
Me lembrei da cama vazia e da foto em cima da mesinha de cabeceira escondidas no
quarto do primeiro andar.
Eu poderia até tê-lo sobre mim no sofá mais uma vez, como dias antes.
Mas jamais deveria deixá-lo entrar em meu coração, ou eu me arrebentaria inteira.
Capítulo 22

O veterinário levou horas para limpar e arrancar todos os espinhos do rosto de Perverso.
Os demais não tinham machucados muito sérios, então pude voltar com todos ainda no mesmo
dia.
Ao chegar de volta no sítio, já no meio da tarde, me voltei para o cão meio grogue que
estava deitado no banco ao meu lado.
— Deu sorte dessa vez. — Alisei o pelo amarronzado e com tons caramelo. — Além
dos espinhos, poderia ter se estrepado feio se aquela mordida que o porco te deu na garganta
tivesse sido mais profunda. — Ele usava um imenso abajur de proteção no pescoço e me olhou
com enfado, como se nem ligasse. — E se a loirinha não tivesse te achado, poderia ter morrido.
Quando vai parar de caçar animais por aí? Me diz qual o prazer de matar os bichos inocentes?
De dentro da cabine, olhei para a varanda da casa ao lado.
A chuva já tinha cessado, e restava uma nuvem densa e acinzentada no céu.
— Ah, loirinha... — murmurei, me lembrando do pânico em seus olhos.
Era isso o que eu causava.
Dor e medo.
Ninguém jamais tinha entrado naquele quarto depois da morte de Tereza. Só a polícia
quando se atreveu a fuçar nas coisas dela para investigar sua morte.
Quando vi a casa toda aberta, os cães eriçados e a luz do quarto do primeiro andar
acessa, me transformei. As dores do passado voltaram todas de uma vez, e enxerguei tudo com
lentes do ódio.
Achei que invadiam o sítio. Profanavam aquele lugar, onde pela última vez vi Tereza
viva.
O lugar que nem mesmo eu tinha coragem de entrar, pois me sentia sufocado, revivendo
noite após noite aquele dia.
Foi como enfiar o dedo em uma ferida aberta. Vi tudo retornar com força e me
descontrolei.
Balancei a cabeça, afastando a imagem que assolava minha mente.
A de uma mulher pequena e atrevida molhada de chuva, suja de lama e me olhando com
medo.
Pela primeira vez, algo me carregou de culpa, e não era a morte de Tereza.
Voltar a sentir desejo.
Voltar a ter o peito carregado de culpa.
Voltar a me importar com algo...
Eram muitas primeiras vezes de novo.
O Lucas do passado iria atrás de Gabriella. Pediria desculpas e perguntaria se ela estava
bem. Afinal, saiu com o corpo ensopado de chuva e, pelo estado dos cães, o resgate a Perverso
durou um longo tempo.
O Lucas do passado quis muito fazer isso. Lutou com o viúvo Maldonado, mas este
venceu, e entrei no sobrado de dois andares. No térreo, o quarto de Tereza continuava aberto.
Como um buraco negro que me suga em direção à escuridão, me aproximei do
pequenino espaço.
Antes, ali era uma espécie de quarto de hóspedes, mas quando Tereza levou o tiro,
julguei mais fácil mantê-la no primeiro andar. A ideia era levá-la para ver o pasto todas as
manhãs. Eu a colocaria na cadeira de balanço da entrada e ficaria com ela ali, apreciando o
nascer do Sol e o orvalho pesando as árvores.
Tudo isso ficou nos meus planos, pois Tereza nunca quis sair do quarto. Negava-se a
sair daquela cama, e foi lá que passou os últimos meses de vida.
Eu tentei. De todas as formas possíveis, eu tentei.
Chamei amigas para visitá-la; Sugeri nos mudarmos para a cidade; Pesquisei cadeiras de
rodas e todo tipo de equipamento que pudesse dar a ela qualidade de vida; Conversei com
médicos opções de tratamento e recuperação...
Nada.
Nada devolveu a Tereza o que se perdeu no assalto.
Ela era outra, e eu não reconhecia minha mulher.
Médicos a visitaram. Psicólogos e psiquiatras.
Ela rejeitava todos. Sem exceção.
Lutei por Tereza até o fim.
Até ver que não havia mais como lutar.
Ela havia vencido.
Me aproximei do porta-retratos apoiado na mesinha. Não tive mais coragem de olhar em
seus olhos depois de sua morte. Me fazia relembrar seus últimos segundos, e isso era demais. Eu
sentia falta de ar e a presença da morte todas as vezes.
Sumi com todas as fotos e só mantive aquela, que coloquei no quarto em que ela
dormia. Fechei tudo e prometi nunca mais entrar lá.
Até aquele dia, pensei que cumpriria a promessa.
Na foto emoldurada, o Lucas do passado sorria. Parecia um homem capaz de conquistar
tudo o que quisesse, e o que preenchia seus olhos era amor e vida.
— Esse homem morreu — murmurei, passando os dedos na marca da minha cicatriz
visível na foto. Toquei o mesmo ponto, agora em meu rosto do presente. Parecia mais profunda,
como se o tempo tivesse acentuado as marcas da injustiça.
Suspirei e saí do quarto, trancando-o. Cansado daquele dia exaustivo, retirei o chapéu e
a camisa imunda de pelos dos cães e me encaminhei para a dispensa.
Tinha cheiro de melaço.
Certeza que a loirinha passou por aqui...
Vasculhei as prateleiras e encontrei uma garrafa cheia na mais baixa. A peguei e levei
para a mesa da cozinha, onde a coloquei, espalmando as duas mãos no tampo da mesa e
encarando a bebida.
Perverso, que estava dentro de casa por conta dos medicamentos, aproximou-se com
passos lentos e parou ao meu lado, também olhando para a garrafa e então choramingando.
— O que é? — perguntei para o animal. — Você tem seus vícios de estripar galinhas e
porcos-espinhos. Eu tenho os meus. — Perverso deu um latido baixinho e prossegui: — A merda
é que... Não sei se é o que quero.
Frustrado, abri a garrafa e cheirei o conteúdo. O aroma me trouxe lembranças de um
olhar cor de uísque. Dois corpos nus e suados sobre o sofá.
— Merda! — Entornei um gole direto na boca. — Posso não querer, mas estou
precisando.
Bebi mais um pouco e então limpei a boca, indo até a janela e espiando o terreno ao
lado.
Quieto demais.
Balancei a cabeça.
Chega de pensar na afilhada dos Siqueira!
Como o uísque parecia não fazer efeito, subi os andares até meu quarto. Tomei um
banho demorado e, ao sair, me deixei cair na cama de armação em ferro. Desde que fiquei viúvo,
cuidava de tudo sozinho, e aquele quarto era o único lugar que mantive mais organizado. Fui
incapaz de trocar a cama e o colchão, então dormia no que um dia foi o quarto dos meus sogros.
Era preferível ali do que no quarto ao lado, que compartilhei com a filha deles.
Era um lugar neutro, sem lembranças ou dor. Talvez por isso, eu conseguia limpar.
Apalpei os travesseiros e tombei a cabeça de lado, imaginando o corpo delgado de
Gabriella ali, esquentando a outra metade do colchão.
— Porra! — gritei, socando o colchão e esfregando as mãos nos cabelos. — Assim vou
ter que descer e pegar todo o estoque de uísque!

Os latidos dos cães chamaram minha atenção. Eu estava do lado de fora do sítio,
roçando o pasto ao redor do terreno, quando ouvi o barulho.
Entrei calmamente, passando por Estrela e Trovão que estavam deitados ao pé da porta.
Atravessei a sala e fui direto para o quarto do primeiro andar, percebendo que sua porta
estava aberta. Avancei assustado, e ao entrar no cômodo me deparei com uma cena que julguei
nunca mais enxergar:
Tereza estava de pé.
Ao lado da cama, usando um de seus conjuntos de jeans e camiseta, e com as mãos
segurando algo na mesinha de cabeceira.
— Você está viva! — exclamei, ainda sem acreditar na cena.
— Não. — Ela tinha uma voz incomum. Indiferente e sem o amor de antes. — Eu
morri, Luca.
— Não me chame assim, Tereza — pedi. — Alguém pode ouvir.
— Você me matou, Luca — ela insistiu. Seus olhos, sem vida como no dia em que ela
se foi, me fitaram, e notei que o objeto que ela segurava era a arma que eu carregava no cinto
desde sua morte. — Por que fez isso?
— O que? — questionei para a assombração com certo pavor.
— Por que fez isso comigo, Lucas? — ela perguntava. Lágrimas escorriam por seu
rosto. — Por que fez isso comigo? Por que não pode me ajudar?
Me dei conta que estava em um pesadelo, mas aquelas falas pareciam reais.
Elas foram reais.
— Por que, Lucas? Por que fez isso com nós dois? Por quê?
Meu coração batia em galope, e eu sentia as costas frias de suor. Lágrimas ameaçaram
cair quando me ajoelhei, implorando:
— Tereza... Me desculpa.
— A culpa é toda sua. — Ela apontou para minha cicatriz. — Sempre foi, Luca. Você
sempre foi o culpado de tudo de ruim que acontece ao seu redor.
— Eu não quis... Você sabe.
— É tudo culpa sua! — Seu rosto pareceu se transformar e vi feições de César ali. A
raiva começou a me tomar. — Sua culpa!
— Eu não sou o culpado — me defendi.
— Você é! — A voz que um dia eu amei estava irreconhecível. — E vai pagar por isso.
Justiça tem que ser feita.
A arma foi erguida em minha direção. Parecia estar em câmera lenta, mesmo assim fui
incapaz de me afastar. Permaneci ali, parado, vendo o dedo de Tereza se afundar no gatilho e um
estouro dolorido atingir meu peito.
Acordei suando e com a respiração acelerada. Minha cabeça doía com o álcool que
tomei e meu corpo parecia lento.
Tentei deitar novamente, mas imagens do sonho se formavam ao alcance de minhas
mãos. Me levantei e fui até a janela, de onde observei o tempo.
Havia parado de chover, e os primeiros raios de sol despontavam atrás das pedras que
ladeavam a entrada do vale.
Suspirei, sentindo o cheiro de terra molhada e admirando as nuvens baixas que
tampavam toda a vista.
Eu amava aquele lugar. Só por isso não procurei uma casa em Sibipiruna.
Certo dia, pouco antes de morrer, meu sogro segredou que me considerava como um
filho. Estava feliz por eu ter me casado com sua filha, e reforçou que já eu fazia parte da família
bem antes do casamento, desde o dia que me acolheram.
Foram tempos felizes, mas que jamais voltariam. Tereza e seus pais estavam mortos.
Respirei devagar, sentindo a calma tomar conta aos pouquinhos, e então desci as
escadas. Preparei algumas coisas na caminhonete enquanto os cães me rodeavam. Mediquei
Perverso e alimentei os demais, saindo ainda cedo e sem um café.
A ideia era passar na administração da cooperativa, ver como andavam as negociações
da safra, e então ir até Sibipiruna. Lá, Salazar já tinha combinado com alguns fazendeiros de se
encontrarem no Careca. Sairíamos todos ao fim da tarde para rastrear pistas em uma mata perto
da usina.
Durante toda a manhã me entretive com a cooperativa, e só após o almoço consegui
seguir para a cidade. Encontrei o bar relativamente cheio e, enquanto comia uma porção servida
por Careca, observava as conversas ao redor.
— O padre viu um grupo passando de madrugada pela estrada da usina há dois dias —
alguém contava. — Ele voltava do terço na casa da dona Solange e viu o carro estranho.
Salazar aproximou-se de mim e questionei de modo que só ele ouvisse:
— A prefeitura tem condições de instalar câmeras na praça? Acho que seria mais fácil
ver quem são essas pessoas.
O vice-prefeito abriu um sorrisinho sem sentido para a situação e murmurou:
— Sabe quem é o prefeito. César diz que não temos verba.
— Por que aceitou se candidatar com ele?
Outra vez um sorriso surgiu no rosto de Salazar.
— Você estava tão ocupado com sua dor que sequer viu as coisas acontecerem, não é?
O outro candidato queria coisas absurdas. — Me olhou de viés e continuou: — Te tomar a usina
e reativá-la contra a sua vontade era uma delas.
— Ele não poderia fazer isso!
— Ele tentaria. — Salazar deu de ombros. — Ninguém gostava das propostas. Eu não
queria me candidatar. Quem sempre quis ser prefeito é César. Então, dos males o menor.
Careca trouxe um copo d’água e tomei tudo de uma vez, depois apontou para a
prateleira de bebidas. Neguei com a cabeça. Ao me virar, percebi que Salazar me observava.
— Tenho gostado da prefeitura — ele falou de repente. — Passei anos estudando para
os concursos achando que minha vida seria fora daqui, mas hoje sei que não era. Diana está
grávida, sou feliz na prefeitura e quero continuar cuidando dessa cidade. — Quando viu que
tinha minha total atenção, finalizou: — A vida segue caminhos que não dá para prever, Lucas.
Seguir em frente é nossa única opção.
Suspirei.
— Fico feliz que você parece estar finalmente fazendo isso — ele finalizou, apontando
para o copo de água vazio. Permaneci em silêncio e ele afastou-se.
Um tempo se passou e chegou a hora de nos reunirmos na praça. Vários homens
dividiram-se entre carros e caminhonetes, e uma pequena multidão formou-se ao redor. Não quis
perder tempo olhando para aquelas pessoas, mas logo uma cabeça loira chamou minha atenção,
meio espremida entre os curiosos e observando o grupo de homens que se organizava com seus
imensos olhos de uísque.
É só você ignorá-la, Lucas...
Só que a diaba tinha algum poder obscuro sobre mim e, quando vi, cruzava a
aglomeração de pessoas e parava à frente de Gabriella.
Ela usava um vestido curtíssimo e de saia folgada. Me perguntei se estava tão quente
assim para alguém usar tão pouca roupa.
— O que faz aqui, loirinha? — minha voz saiu rouca demais. Lembrei de seu corpo
molhado na noite anterior e observei com afinco seu rosto, constatando se não havia algo de
errado.
— Eu vim ver Diana. — Ela apontou os muros da escola, do outro lado da pracinha da
igreja. — Ela me disse que eu poderia estudar um pouco nos computadores da escola, e padrinho
me trouxe.
Concordei, escrutinando com os olhos as coxas esguias e a cinturinha de pilão. Tão
pequena que eu rodeava com um único movimento.
Gabriella mordeu o lábio e me encarou, esperando que eu dissesse algo.
— Perverso está bem — soltei de repente, coçando a mão na cabeça quando ela abriu
um sorrisinho safado.
— Eu sei. — Me olhou de maneira travessa. — Fui lá ver como ele estava hoje de
manhã.
Meu rosto parecia enferrujado, e o sorriso que deixei escapar movimentou músculos que
pareciam adormecidos.
— É claro que foi — murmurei. — Engano meu pensar que você não entraria mais lá.
— Por que não entraria? — Me olhou com curiosidade.
Desviei os olhos, e ela entendeu. O clima desde que ela entrou no quarto de Tereza
estava estranho, e enfiei as mãos nos bolsos, focando em minhas botas.
— Gabriella! — Uma voz que eu odiava cantarolou o nome dela, e aquilo me causou
um arrepio na espinha. Me virei a tempo de ver César parar ao meu lado. Seu rosto que tanto
lembrava Tereza sorria em uma alegria forçada, e ele admirava sem pudor as coxas todas à
mostra de Gabriella.
De novo, eu me pergunto: Por que tão pouca roupa?
— O prefeito! — Gabriella exclamou sem muito entusiasmo. Me olhou de viés e então
voltou a falar com César. — Ainda lembra meu nome?
— Jamais esqueceria. — A voz aveludada de César tinha o mesmo timbre do chocalho
de uma cobra. — Soube que vai usar os computadores da escola para estudar.
— Como soube? — Gabriella parecia alarmada.
— As coisas correm em Sibipiruna. E também, eu sou o prefeito. Tenho que saber de
tudo que acontece na minha cidade.
Bufei, incapaz de olhar na direção no imbecil. César percebeu e virou-se para mim.
— Soube também que essa última caçada foi organizada por você, Lucas. — Percebi
que ele estava irritado com isso e me virei. — Do nada resolveu se importar?
— Algum problema nisso?
— Por que quer pegar tanto essas pessoas? — ele perguntou com desprezo.
— Porque alguém tem que fazer alguma coisa por essa cidade — rosnei, girando meu
corpo por completo para encarar César. Pelo canto do olho, vi que Gabriella estava tensa, mas
nada disse.
— Não precisa bancar o morador exemplar de Sibipiruna. Todo mundo sabe que você
não passa de um bêbado aproveitador. — Senti o sangue ferver nas veias. — Aproveitou-se de
meus pais quando veio para cá, só Deus sabe fugido de onde. — Quis socá-lo. — Aproveitou-se
de Tereza quando ela ficou sozinha.
— Não sobrou muito para você se aproveitar, não é? — falei com escárnio. — Sua parte
da herança, que torrou todinha em jogos e apostas, não foi o suficiente. Precisa do que ficou para
mim.
— Ei! Vocês! — Salazar gritou de sua caminhonete, correndo em nossa direção. Ao
parar, observou César e eu antes de anunciar: — Já estamos saindo.
Acenei em concordância, olhando mais uma vez para Gabriella. César surgiu com um
sorriso babaca, erguendo uma mão na direção da loirinha e fazendo um convite que azedaria meu
dia:
— Tenho que ficar na prefeitura para cuidar de tudo, mas posso te acompanhar até a
escola.
Meu olhar grudou nas mãos sebosas que tocaram nos dedos de Gabriella e, mais uma
vez, lá estava eu sentindo coisas novas.
E o sentimento do dia era a vontade de acabar com aquela intimidade de uma maneira
que só Perverso se atreveria. Arrancar a mão seria boa ideia?
Continuei travado. As mãos nos bolsos enquanto César aproximava-se mais e mais do
corpo com cheiro de melaço.
Uma ova que eu ia deixar outro homem sentir aquele cheiro!
— A loirinha sabe andar sozinha — rosnei, fechando a cara e fitando o perfeito de um
jeito que faria qualquer um temer.
Menos Gabriella.
A mulher me olhou em desafio. Seus olhos adquiriram um tom mais vivo, quase
triunfante, e ela abriu um sorriso de naja.
— Eu sei andar muito bem, mas nada impede o prefeito de me acompanhar.
Minhas sobrancelhas se juntaram, encarando a atrevida.
— Vai se juntar com esse tipo de gente, loirinha?
César me olhou com ódio, mas havia algo mais ali. Ao invés de responder a provocação
com xingamentos, ele sorriu.
— Melhor você ir atrás da sua caçada — disse com menosprezo. — Eu cuido da sua
vizinha. — Seu olhar vagou por Gabriella, e aquilo fez partes minhas adormecidas despertarem
no ódio. César aproximou-se de mim, e então finalizou com a voz mais baixa: — Depois, volte
para sua cova rasa. Melhor continuar lá e sozinho, Lucas. Você só atrai desgraça.
— César — Salazar murmurou, mas eu me limitei a negar com a cabeça.
César me pegou sóbrio, e eu estava focado nas buscas aos invasores da cidade. Olhei
mais uma vez para Gabriella e fechei a cara para a loirinha, deixando claro que se aproximar
daquele rato era um problema que ela se metia.
Ela só me observou de uma maneira que não soube desvendar. Parecia indecisa quando
aceitou a mão de César e saiu com ele, indo em direção ao prédio da escola municipal.
— Tem alguma coisa que quer me contar? — Salazar murmurou quando ficamos à sós.
Eu ainda seguia os outros dois com os olhos.
— Não. — Foi difícil desviar os olhos das pernas bonitas da loirinha. E também da
sensação de insegurança que ver ela com César me dava. — Vamos logo — concluí, me virando
meio puto e voltando para a caminhonete.
Era até bom fazer essas buscas com tanta raiva.
Ajudava a encontrar os desgraçados.
Capítulo 23

César era simpático, mas não gostei da maneira como falou com Lucas. Parecia ter
prazer em cutucar a dor do outro, e eu não confiava em pessoas assim. Deixei que ele me
acompanhasse até a escola e, quando vi Diana, dei um jeito de dispensá-lo.
O prefeito ainda ficou um tempo conosco. Estava interessado, e isso era bem óbvio.
Acontece que eu tinha um só interesse naquela cidade.
Depois que ele saiu, fiquei mais à vontade com Diana.
Ela era muito simpática, e adorei passar algumas horas em sua companhia. Nos
computadores da escola, me ensinou como acessar alguns cursos online de Administração e
outras matérias. Todos, usando as plataformas de estudo que o colégio mantinha. Segundo ela, se
eu estudasse um pouco todos os dias, poderia fazer as provas da faculdade no fim do ano, e até
tentar uma bolsa.
Me empolguei com a ideia, e conversamos por um longo tempo. Mal vi a tarde passar
quando padrinho José me chamou e voltamos para o sítio.
Ao chegar, o dia já tinha acabado. Tomei um banho e os ajudei com o jantar.
Depois, me deitei na rede do lado de fora e fiquei ali, esperando.
E esperando...
Não deveria me preocupar com o vizinho chucro. Não mesmo.
Ele era um homem adulto e muito responsável por seus atos.
Acontece que estava apreensiva com a tal “caçada”. Diana me tranquilizou dizendo que
tudo não passava de uma força-tarefa buscando pistas dos invasores às fazendas, mas continuei
com o coração apertado.
Lucas não levou os cães. Talvez porque preferiu que eles se recuperassem depois da
aventura com o porco-espinho, então eu tinha medo por ele.
Permaneci na rede, observando o escuro da noite que avançava no vale, até ver as luzes
da caminhonete vermelha cruzando o pasto.
O chão ainda estava barrento com a chuva que tomou o dia anterior, e o vi manobrar
com cuidado, desviando das poças maiores de lama. Da minha varanda, observei quando o
homem que usava camisa preta e calças de um tom jeans escuro estacionou o carro ao lado da
entrada da casa de dois andares e desceu, parando alguns segundos para ajeitar a calça. Ele
pareceu olhar na minha direção e então pausou. Mesmo à distância, percebi seus olhos em mim,
e me encorajei.
— Madrinha! — gritei sem tirar os olhos de Lucas. — Eu vou ali rapidinho, mas já
estou de volta.
Sofia surgiu no vão da porta com o olhar intrigado.
— Aonde vai nessa escuridão?
— Só vou... — Apontei na direção do terreno vizinho. — Vou ver se o cachorro que foi
atacado pelo porco-espinho está bem.
Eu tinha contado para eles sobre o caos que os cachorros fizeram no dia anterior.
— Se afeiçoou mesmo a esses cães — ela murmurou, e em seu olhar vi certa
curiosidade. — Mas não está tarde para ir se engraçar na casa do viúvo?
— Madrinha...
— Não sou besta, Gabriella. — Ela me olhou de uma maneira protetora, como só minha
mãe costumava me olhar. — Você já é adulta e sabe o que faz da vida, mas como sua madrinha
vou te dar um aviso: cuidado com o Maldonado.
— Pode deixar, madrinha — murmurei sem graça. — Eu sei onde estou me metendo e,
se ver que as coisas estão saindo do controle, vou me afastar.
— Não tive muito contato com sua mãe antes de ela morrer, mas vou cumprir a
promessa feita no seu batismo, Gabriella. Vamos cuidar de você. Então, se eu precisar te dizer
não, eu vou dizer não.
— Está certo, madrinha — disse num sussurro.
Não quis mostrar como suas palavras me emocionavam, então virei o rosto na direção
do pasto.
Esse cuidado todo era algo que eu não sentia há anos. Desde que mamãe faleceu, fiquei
desamparada em Dom Cervantes. Ninguém ligava para como eu estava ou me sentia. O pequeno
gesto de preocupação presente atrás de um “não” era algo que eu não tinha mais. Vivia sozinha e
abandonada, passando os dias no caixa de um supermercado, me distraindo com namoros sem
futuro, e sem grandes expectativas do que viria depois.
Eu precisava de um lar. Um lugar em que as pessoas fizessem questão da minha
presença e, mais do que isso, sentissem minha falta caso um dia eu me ausentasse.
— Eu vou lá para dentro com o José — Sofia informou e me voltei para ela. — Quando
entrar, feche a porta.
— Fecho sim, não se preocupe. — Me levantei, esperando-a entrar na casa simples e
pegando a lanterna para atravessar o caminho escuro do pasto.
Caminhei devagar, olhando para o chão e buscando possíveis animais, mas aos poucos
me acostumava com a vida no campo. Aprendia a caminhar no pasto irregular e a me proteger
dos perigos.
Cheguei na cerca de sinos e balancei dois dos arames, provocando um ruído que
chamou a atenção dos cães. Todos saíram correndo feito loucos, prontos para enfrentarem o
perigo, mas ao se depararem comigo, transformaram os latidos em saltos animados e rabos
abanando sem parar.
Atravessei a cerca e fiz o restante do caminho guiada por quatro dos cinco cachorros.
Perverso continuava de molho, ainda com o colar cervical.
Vi quando as luzes do primeiro andar da casa dos Maldonado se acenderam e logo
Lucas surgiu no vão da porta. Sério como sempre, cruzou os braços sobre o peito largo e me
esperou, fazendo um vinco surgir entre as sobrancelhas grossas.
— Não pode ficar atravessando o pasto a essa hora — me repreendeu. — Uma cobra ou
escorpião podem te atacar.
— Sei me virar. — Bati as mãos no alto, e ele revirou os olhos. Já deveria ter se
acostumado com meu jeito meio inconsequente. — E os cachorros ficam diferentes quando há
bicho no pasto. Já notei.
Ainda de braços cruzados, ele me observou. Desceu os olhos por todo meu corpo e
então parou em minhas pernas, como se as medisse.
— O que quer? — perguntou. Sem a agressividade de sempre, mas parecia se esforçar
para não ser cortês.
— Ver como Perverso está. — Antes que ele respondesse, prossegui: — E saber se
correu tudo bem nas buscas aos invasores de Sibipiruna. Fiquei...
— Ficou o que, loirinha?
— Fiquei preocupada — revelei, nem aí se assim me expunha mais do que deveria. —
Você saiu furioso daquela praça. Sei lá se faria uma loucura se cruzasse com esses homens.
— Eles deram sorte de não cruzar comigo — Lucas revelou com um tom meio sombrio.
— Não foi hoje, mas não vai demorar. Encontramos garrafas de bebida e cigarro em uma clareira
no riacho dos Porcos.
— E o que vão fazer quando os encontrarem? — perguntei receosa. Meu medo era que
aquelas pessoas fossem as que estavam atrás de mim.
— Não se preocupe, loirinha. — Lucas deu um dos seus raros sorrisinhos sarcásticos. —
A ideia é só fazer aquilo que o prefeito não faz.
— Vocês dois parecem se odiar.
— Acho que odiar é pouco.
— Isso tudo por conta das terras?
— Por conta de muita coisa do passado. — Ele desviou os olhos de mim. — Seus
padrinhos sabem que está aqui?
— Sabem. — Me sentei apoiada no beiral da varanda e dois dos cães se deitaram em
meus pés. Continuei: — E realmente vim saber sobre a caçada. E também sobre...
— Desembucha logo, Gabriella.
— É que você disse na praça que César se envolveu com apostas. Isso é verdade?
— É o que ele fazia na cidade nos tempos em que estudava. Demorou o dobro do tempo
para se formar por isso, e depois que os pais de... — Vi uma sombra negra cruzar seu olhar e ele
desviou os olhos de mim, mirando a noite. — Depois que ele recebeu sua parte da herança,
torrou tudo quitando as dívidas que tinha feito na capital.
— E hoje ele ainda joga?
— Diz que se redimiu, mas eu duvido.
Parei por alguns segundos, pensando na melhor maneira de perguntar sem vê-lo se
fechar mais uma vez.
— Ele deu a entender que você veio para cá fugido de algo. — Lucas me olhou com
desconfiança, mas prossegui: — Não é a primeira vez que dão a entender isso e... gostaria de
saber.
— Por que eu diria?
— Gostaria que você pudesse confiar em alguém — murmurei, e percebi que seu olhar
me escrutinava de uma maneira crua e dura, como se quisesse me ferir por cutucar suas feridas.
— Eu sei que nada sabe sobre mim, Lucas, mas... ninguém consegue viver sozinho em tamanha
dor.
— E você vai me salvar dessa dor?
— Não, Lucas. Eu não vou te salvar — revidei com agressividade, ofendida pelo tom
carregado de sarcasmo. — É que também cheguei aqui fugindo. Acho que já percebeu isso. E se
você conseguiu transformar esse lugar em um lar, quero saber se pode ser seguro para que eu um
dia faça o mesmo. Precisava me certificar de que esse lugar realmente é capaz de acolher uma...
— Criminosa? — ele tentou.
— Não. — Estufei o peito. — Uma pessoa acuada.
— Se acolheu um criminoso. — Ele deu de ombros, e sei que falava de si mesmo.
— Então é sobre isso que dona Margarida se referia quando disse que você já foi preso?
Ele me estudou alguns segundos. Por um momento eu achei, de todo o coração, que ele
fosse me contar, mas tudo o que Lucas fez foi alçar uma sobrancelha para mim e então se afastar,
murmurando com seu jeito defensivo:
— Quer saber quem pecou mais? Eu ou César? Está tentando escolher um lado? — ele
devolveu com certa sordidez. — Quer ser coleguinha do prefeito e não sabe se pode confiar?
Juntei as sobrancelhas, analisando-o. O homem parecia bravo comigo, e não disfarcei o
tom irônico ao perguntar:
— Está com ciúmes?
Seu cenho se fechou, e o vi desviar os olhos, resmungando:
— Não.
Disfarcei o sorriso em meu rosto, andando até parar na sua frente e tocando seu braço
imenso endurecido da lida do campo e ainda cruzado sobre o peito.
— Você pode ser grosso e de poucas palavras, mas é uma lástima quando o assunto é
mentir — sussurrei, chamando sua atenção e fazendo-o descer os olhos negros em mim.
Tão mais alto e forte, eu batia no meio do seu peito, e toquei com os lábios o braço
cheio de pelos grossos e com aroma de mato.
Como era visceral e dava tesão...
— Sai daqui, diacho... — ele rosnou, como se lutasse contra uma entidade.
Não era a mulher dele quem assombrava seus dias.
Era eu.
E eu poderia ser bem pior que uma morta presa em um porta-retratos.
— Tá com cheiro de mato — comentei. — Eu gosto.
Ainda de braços cruzados, mas agora com o olhar todo sobre mim, hipnotizado, Lucas
murmurou com leve rouquidão:
— E você tem cheiro de coisa que vicia.
Abri um sorriso.
Ele fechou ainda mais o cenho, mas senti sua ereção se avolumar dentro da calça bem
no ponto em que minha barriga se encontrava com seus quadris.
— Lucas... — comecei a dizer. Quase implorar.
— Não, Gabriella.
— Não para o que, Lucas? — Me aproximei mais, colando seu corpo ao meu. — Não
para o desejo que eu sinto, ou não para o que você sente?
— Não para tudo o que quer fazer.
Os olhos negros não eram mais vazios como no dia em que o conheci sob a chuva
naquela estrada. Eram cheios. Lotados de tanta coisa que parecia transbordar.
Lucas poderia me escorraçar um milhão de vezes.
Em todas elas, ele também me desejava.
— Não estou te pedindo em casamento — murmurei. — Nem sei se quero me relacionar
com um viúvo que passa os dias enfiado em bebida.
Seu rosto formou um sorriso de desdém. O corte perto de um dos olhos ficou torto, e me
perdi naquela marca do seu passado obscuro.
— Então por que vive atravessando a cerca?
— Porque sei que nunca vai passá-la. — Passeei com a mão em seu braço, e ele enfim o
descruzou, perdendo parte dos escudos. — E porque gosto do que tem do lado de cá. — Senti a
mão calejada rodear minha cintura, e travei um gemido na garganta. Aquele homem me
incendiava com um só toque. — Eu gosto do teu sexo, Lucas. Gosto dos teus beijos. — A mão se
fechou em meus quadris, e uma lufada de ar quente escapou de seus lábios grossos, atingindo
meu rosto. — Gosto disso. E só preciso disso.
— E se você se apaixonar, loirinha? — A outra mão avançou por meu pescoço,
alojando-se no meio dos meus cabelos. Ele passou os dedos pela extensão, me fitando. — Não
tenho nada para te oferecer. Estou vazio por dentro.
— Terei um coração quebrado e não vou te culpar por isso.
— Gabriella — ele murmurou, como se o assunto o incomodasse. — Não quero que...
— Você acabou de dizer que está vazio. Que não se importa.
— Não me importo. — Era como se ele tentasse convencer a ele e não a mim.
— Então só viva. Aproveite o privilégio que é não se importar com ninguém.
Fiquei na ponta dos pés. Meu rosto mais baixo que o dele, e o corpo disparado ao sentir
as mãos acariciarem minhas curvas.
Havia um carinho em seus dedos que não combinava com as falas de insensível, mas eu
não queria me atentar àqueles sinais. Fechei os olhos e me inclinei em sua direção. Sua mão
apanhou parte dos meus cabelos, enquanto a outra me puxou para o alto pela cintura.
Nossas bocas se chocaram, e o beijo me pareceu o melhor de todos que já demos.
Lucas tinha um cheiro bom de mato. As mãos grossas me mapeavam daquele jeito cheio
de posse, e sua língua adentrava minha boca como se tudo ali fosse seu domínio.
Era tudo parte de seu domínio.
Eu atravessava a cerca, mas quem ganhava terreno era Lucas.
Meus pés já não tocavam o chão, e era bom sentir meu corpo todo refém daquela
selvageria que ele exalava.
Sua boca escorregou em meu pescoço, mordiscando e sugando a pele com a voracidade
de sempre.
Meus cabelos eram bagunçados por sua mão, assim como minha mente tornava-se caos
na maneira como sua boca tomava a minha. Os gemidos que escapavam da minha garganta mal
tinham tempo de virar som, pois Lucas parecia querer todos, me calando com seus beijos.
Fui prensada contra uma das pilastras da varanda, e senti o tecido da sua camisa
esfregar-se em meu corpo. Abracei sua cintura com minhas pernas, facilitando o acesso. Eu
usava um vestido e o tecido subiu até minha bunda, expondo a calcinha e meu corpo em contato
direto com o dele. Lucas me desceu um pouco, encaixando o volume rijo do pau entre minhas
coxas e fazendo tudo fervilhar.
Eu parecia um rio em chamas perecendo em calor, umidade e desespero.
A mão em minha cintura começou a se mover, direcionando meus quadris para cima e
para baixo. O calor da fricção me melou mais. Senti minhas pernas amolecerem e joguei a
cabeça contra a pilastra, empinando os seios na direção de sua boca.
Pelo tecido da roupa, Lucas desceu os lábios até um mamilo. Mordiscou tudo com sua
boca imensa. Pele e tecidos. Ofeguei, e ele forçou minha cabeça para trás, passando a língua por
meu colo e lambuzando minha roupa com seus beijos e mordidas.
Eu dançava sobre ele. Minha calcinha estava ensopada, e sua mão em meus quadris
forçava os movimentos do meu corpo, ditando o ritmo.
Com a boca grudada em meu pescoço, ele começou a dizer:
— Eu não vou me apaixonar, loirinha. Meu coração está morto. Mas saiba de uma coisa.
— Ele afastou-se para me fitar. Seu olhar se cravou no meu. Negro como os pelos de Trovão.
Duro como os olhos de Juiz. — A partir de hoje, será só minha.
— Cowboy. — O que escapou foi só um gemido.
— Está nas minhas terras, loirinha. — A mão em minha cintura se fechou, como se
tomasse posse. — Pertence a mim. Não admito que outro homem te toque ou sinta seu cheiro. —
A voz era rouca como o rasgo de um trovão. — Não vai ter meu coração, Gabriella. Saiba disso.
Só que eu quero tudo de você. — Os dedos ao redor dos meus cabelos fizeram um carinho, e ele
mordiscou meu lábio. — E só eu terei. Mais ninguém.
Seu hálito era quente em meu rosto, e meu interior pulsava de desejo.
— Não quero seu coração — apostei, jogando tudo o que tinha e esfregando de leve
minha virilha nele. — Só quero ter a certeza de que você também não será de mais ninguém.
Ele riu como se eu tivesse dito uma piada. Passou a língua pelo lóbulo da minha orelha e
me fez gemer, revirando os olhos.
— Há quatro anos eu não pertenço a ninguém, loirinha. — Sua voz era baixa e ainda
mais grave. — Não será minha dona, mas tem meu corpo já que ele teima em te obedecer.
— Tereza ainda é sua dona? — perguntei, idiota.
O homem paralisou alguns segundos. Senti seu corpo gelar, e ele me fitou daquele jeito
vazio e sem vida que por vezes fazia.
Burra!
Com um movimento único, Lucas praticamente me jogou no chão. Caí em pé, mas dei
alguns passos para trás enquanto o via encher-se de escudos novamente.
— Desculpa — falei. — Eu...
— Não fale o nome de Tereza.
— Sei que ainda ama ela...
— Cale a boca, loirinha! — ele gritou, enfurecido. — Você não sabe de nada! Nada!
— Sei que ainda pensa nela. Na vida que poderiam ter tido se ela não tivesse morrido.
— Saia — disse entredentes.
— Não quero remexer suas feridas — argumentei. E estava sendo sincera. — Só quero
que saiba que pode se abrir para mim. Tudo bem você confessar que ainda sente algo por ela.
Passaram-se muitos anos juntos e...
— Saia daqui, Gabriella! — seu grito forte atraiu a atenção dos cachorros, que
começaram a latir assustados.
— Desculpe tocar nesse assunto.
— É um erro eu me envolver com você. — Virou-se de costas, como se não conseguisse
me olhar. — Seu corpo me atiça, mas sua teimosia parece me testar. — Ele segurou-se na
pilastra onde segundos atrás eu era prensada. — Esqueça tudo o que eu falei. Só...
— Não vou esquecer — falei com serenidade.
— Pois eu vou. — Ele se virou. Parecia lutar com seus demônios internos.
Sei que sua mente lutava contra os desejos do corpo.
E eu faria o corpo ganhar.
Capítulo 24

Três dias...
Quatro...
Cinco.
Cinco longos dias sem ter o cheiro da loirinha em minhas mãos.
A diaba me atiçava feito o cão. O capeta deve ter aprendido com ela como atentar Jesus.
Eu sentia um misto de dor, ainda grudada em meu peito pelo passado, com uma vontade
maluca de me libertar. De expulsar tudo e só viver, como há anos não vivia.
Tentei voltar para minha companheira dos últimos quatro anos: a bebida.
Ela funcionou quando o assunto foi a morte de Tereza. Apagava tudo e tornava a dor um
mero incômodo no meio da minha inconsciência.
Agora, nem todo o maldito álcool de Sibipiruna ajudava.
Ao contrário, era pior.
O uísque me lembrava seus olhos, e o cheiro de rum parecia o dela. Sabor de melaço de
cana. Viciante.
Porra!
Eu disse com todas as letras que a queria como minha.
Só corpo. Não precisava do coração.
E quando logo depois reneguei seu corpo, vi que na verdade eu que era dela.
A garota invadiu minhas terras e parecia pegar tudo para si.
Meus pensamentos, o sangue que pulsava minhas veias e endurecia meu desejo, o ar que
escapava dos meus gemidos quando eu tentava me aliviar debaixo do chuveiro...
A maldita tinha tudo, e nunca sequer pareceu pedir posse.
Ela só invadiu.
Estava bêbado, jogado no bar do Careca e ouvindo, ao longe, as conversas paralelas.
Depois das buscas aos invasores que participei, os moradores não voltaram a se
organizar. Talvez por perceberem que ninguém mais estava atrás deles, voltaram a agir. Uma
fazenda havia sido invadida na noite anterior, e dessa vez, a coisa foi mais séria.
— Atiraram na casa do Antoniel. — Pintor tinha fechado seu comércio e estava ali,
exalando sua indignação. — Soltaram os porcos e roubaram duas armas dele que estavam no
depósito.
— O que esse bando quer? — outra pessoa questionou.
— Caos — resmunguei meio grogue. — Se quisessem coisa de verdade, teriam levado o
carro ou mesmo os maquinários da fábrica de queijo do Antoniel.
— Alguém deveria parar essas pessoas — outro disse.
— Fodam-se essas pessoas — resmunguei, entornando um copo e pedindo mais uma
dose a Careca. Eu já tinha perdido as contas de quantas.
O lugar estava abafado e escuro, e senti o vento morno do asfalto bater em minhas
costas quando a porta se abriu e alguém entrou, fazendo todos se calarem.
Joguei a cabeça para trás por meio segundo para flagrar o delegado Antenor entrando
com seu jeito autoritário de sempre. Nossos olhos se cruzaram e ele preferiu me ignorar. Não o
via desde que fui preso depois de lhe dar um soco, e também optei por fingir que ele não existia.
— Conversei com Antoniel — o delegado começou a dizer para todos, adivinhando o
assunto do bar. — Já pedi reforço policial pra capital, e o prefeito deu a ideia de instalar uma
câmera na praça central. Assim, vamos monitorar todo mundo que passa por nossas estradas.
Dei uma risada sarcástica, e que não passou despercebida por Antenor.
— O que é motivo de graça?
— Só gostei da ideia do prefeito. — Dei de ombros. — Curioso como não pensaram
nisso antes.
Ele me estudou ainda alguns segundos. Não escondia o desprezo que tinha em mim. A
vontade que tinha de tomar meu lugar.
Me virei para o balcão e pedi mais uma dose, tentando ignorar os acontecimentos ao
redor. Não queria me importar mais. Nem com aquela cidade, nem com a maldita que dominava
meus pensamentos.
O álcool já não queimava minha garganta, mas fechei os olhos quando senti o baque no
estômago vazio. Bati o copo com força no balcão e me debrucei, enterrando o rosto em um dos
braços. Foi quando senti o cheiro da minha própria camisa, e soltei um palavrão.
— Filha da puta... — Teria que lavar minhas roupas urgente. Até ali ela conseguia se
infiltrar.
Pedi mais uma dose a Careca, e tentei por tudo me desligar das conversas ao redor. Eu
não queria me preocupar com aqueles assuntos, mas eles persistiam.
Algo não batia naquelas invasões. Quem quer que fosse, parecia estar sempre um passo
à frente, como na última caçada que chefiei. Como se soubesse da nossa mobilização e, assim, se
escondesse. Além disso, as intenções dessas pessoas eram estranhas. Pareciam baderneiros, mas
algo me dizia que não agiam de maneira irracional.
Eu me preocupava cada vez mais com a possibilidade de serem pessoas atrás da
loirinha, e por isso preferi me afastar de tudo.
Dela, dos problemas da cidade...
Eu passei quatro anos sem me importar com nada.
Mergulhado no meu vazio e me afogando em álcool.
Agora, era como se meu corpo despertasse de um coma.
E sabe como um corpo parado há anos pode doer quando desperta?
Eu sentia cada osso clamar. Minha mente, enlouquecida, pensava todos os dias em tudo
o que acontecia à minha volta enquanto eu, do lado de fora, tentava dormir de novo.
Eu só queria poder voltar para a dormência do coma.
Continuei ali por mais algumas horas, até que a noite chegou e Careca me expulsou, sob
a alegação de que eu estava “bebendo mais do que nos tempos da morte de Tereza”.
Quando saí, a praça da igreja era iluminada pelos postes de luz amarela, e um grupo de
senhoras caminhava com seus terços na direção da igreja. Do outro lado da rua, alguns
moradores conversavam e, mais ao longe, um grupo de jovens saía dos portões da escola
acompanhados de Diana.
E lá estava ela.
A cabeça loira com uma raiz morena, e que ela nem ligava que crescia a cada dia mais.
Os olhos cor de uísque e o sorriso de diaba, me olhando de imediato, como se tivesse o mesmo
dom que eu de sempre a farejar.
Trocamos olhares alguns segundos antes que eu conseguisse virar meu rosto. A ignorei,
focando de novo no grupo de velhinhas caminhando para a igreja.
Estava bêbado demais para me aproximar da tentação, então melhor me afastar.
Marchei até a caminhonete e vi, pelo retrovisor, seu olhar contrariado com minha
reação.
Gabriella precisava entender que aquilo não era só por mim. Era por ela, principalmente.
E para evitar vê-la, voltei aos tempos mais negros da minha viuvez. Me tranquei no sítio
e não saí. Nem mesmo para ir à cooperativa. Me afundei nas garrafas que tinha em casa, mas
nada adiantava muito.
Os cachorros pareceram notar minha mudança de humor. Passavam os dias na varanda,
como se me vigiassem.
Eram os únicos que pareciam ligar.
Alguns dias se passaram e precisei ir em Sibipiruna. A ração dos cachorros acabou, e
não havia muita comida na dispensa.
Peguei a caminhonete e observei o sol a pino que fazia, pegando a estrada do vale sem
sequer olhar para o terreno ao lado.
Eu sei que Gabriella conversava com os cachorros nos limites da cerca, mas era só. Não
a vi mais, e isso me inquietava.
Cheguei em Sibipiruna e fiz as compras, ignorando todos que puxavam assunto comigo.
Comprei a ração e algumas verduras, além de itens de higiene e outras coisas.
Estava na calçada colocando tudo no banco da caminhonete quando notei a câmera
imensa que havia sido instalada no poste central da praça da igreja.
Olhava para o objeto quando escutei uma movimentação absurda vinda do outro lado da
praça.
Dois carros da polícia passaram com suas sirenes ligadas, e os moradores que
perambulavam por ali correram atrás das viaturas, curiosos. Atravessei as ruas a pé, seguindo o
fluxo até a entrada da pequena delegacia, onde Antenor conversava com alguns fazendeiros de
maneira convencida:
— Prendemos o delinquente graças à excelente ideia do prefeito de instalar uma câmera
no centro da cidade. — Revirei os olhos. — Já no primeiro dia, notamos quando um carro passou
de madrugada em frente ao comércio do Pintor. Seguimos o carro pela estrada que ele pegou e
achamos o criminoso escondido nos prédios da usina Maldonado.
— Eles estavam na usina? — perguntei, fazendo todos se virarem para mim surpresos.
— Só encontramos um — Antenor falou sem nem ao menos me olhar. — Acreditamos
que os demais estavam em outro lugar. Eu, como delegado, já pedi inúmeras vezes que vocês
não deixem seus terrenos sem proteção. — Desejei ter uma bebida em mãos ao perceber que ele
iniciaria seu rosário de senhor chato e da lei. — Hoje tivemos a prova do que o abandono é
capaz de causar.
— A usina estar abandonada não é da sua conta.
— Mas foi a polícia quem prendeu o bandido que se aproveitava do lugar — Antenor
revidou.
Bufei entediado e me adiantei na calçada, me aproximando do delegado.
— Quero ver o bandido — informei.
— E por que? — Ele me olhou com desconfiança.
— Ele estava na minha usina, então imagino que eu seria notificado em algum
momento, estou certo? — Subi os três degraus que davam para a entrada da delegacia.
— Bem... — Ele titubeou. — Na verdade...
— Na verdade, se você não me comunicasse seria um grande problema. Pelo que sei, o
único crime flagrante que esse homem cometeu foi invadir terras privadas. No caso, as minhas.
— O encarei de frente, ciente de que toda a cidade nos observava. Em outros tempos, aquela
postura era o meu normal. — Se eu não fizer a denúncia, você vai ter que soltá-lo. — Abri um
sorriso de deboche. — Não seria bom para sua imagem de “autoridade”.
Antenor fechou o cenho e me encarou com ódio, mas nada fez quando virei as costas
para ele e me encaminhei para a recepção.
Era uma casinha pequena, e esperei de pé para registrar minha queixa. O próprio
Antenor colheu um depoimento rápido, talvez percebendo que, assim, eu também o estava
ajudando, e então me levou para a parte de dentro do imóvel, onde ficava a única cela.
Parei e observei o tal invasor. Suas feições, completamente desconhecidas para mim.
Não... Não é quem eu temia...
— O que foi? — Antenor questionou ao meu lado.
— Por um segundo eu pensei que pudesse ser...
— Os assaltantes que invadiram a usina na noite que Tereza levou o tiro?
Não tive coragem de encarar Antenor e confirmar. Continuei calado, observando o
completo e estranho e sacando o celular do bolso.
Eu mal usava o aparelho, então tive sorte de estar com ele naquele momento.
Antes que o delegado pudesse protestar, abri a câmera do celular e tirei uma foto do
homem do outro lado da cela. Ele me olhou assustado, enquanto Antenor avançava em mim,
tentando pegar meu aparelho.
— Ei! O que está fazendo?
Ele mal tocou no celular, pois ergui um braço em sua direção enquanto escondia o
telefone no bolso novamente. Sem lhe dar qualquer explicação, saí da delegacia levando a única
coisa que me interessava ali.
— Lucas! — Antenor ainda me chamava. — O que vai fazer com isso?
— Não se preocupe, Antenor. Não vou atrapalhar seu trabalho ou algo assim. Eu só
preciso mostrar essa foto para uma pessoa.
Saí de Sibipiruna e fui direto para o sítio. Ao chegar, descarreguei as compras e então
me aproximei das cercas que dividiam o terreno. Os cachorros fizeram algazarra e eu aguardei,
imaginando que o barulho chamaria sua atenção.
Só que nada aconteceu.
Alguns minutos se passaram e resolvi assobiar.
Nada.
Nem morto que vou atravessar a cerca! Ainda mais para fazer algo que era do interesse
dela.
Resolvi voltar para meu sítio.
Me sentei na varanda e esperei.
Algum tempo se passou e concluí que ela não estava em casa. Resolvi me preocupar
com outras coisas e me distraí com alguns afazeres da roça, só voltando a me lembrar do sítio
vizinho quando escutei os roncos de um carro passando pela porteira que protegia o vale.
Me adiantei até a entrada da varanda só para azedar por completo meu dia.
Aquele carro não cruzava o vale há anos, e não havia nenhum motivo para fazê-lo
naquele momento.
Ódio escalou meu corpo enquanto eu acompanhava o carro do prefeito adentrar no
terreno cedido aos Siqueira.
César desceu para abrir uma porteira, depois a outra, e então parou bem perto da
varanda dos meus vizinhos, correndo para abrir a porta do passageiro.
Senti os dentes rangerem quando vi a loirinha descendo do carro com uma bermuda
colada nas coxas e uma blusa de alças finas.
O cabelo amarelo brilhava no sol e foi como se o cheiro de melaço chegasse em mim.
Assim que desceram, os dois olharam em minha direção. Um, não escondeu o desprezo.
Da outra, não soube dizer a reação.
Fitei os dois alguns segundos antes de me forçar a virar o corpo.
Entrei dentro de casa e me tranquei, como se assim escapasse de tantos sentimentos
confusos.
Pela janela, os espiei.
Como se fosse o dono daquela casa, César entrou pela porta da sala, seguido de
Gabriella.
Dei um soco na parede, descarregando ali a frustração.
É, loirinha...
Não tem jeito...
Vou ter que te mostrar a quem você pertence.
Capítulo 25

Nada melhor para nos tirar uma distração do que outra distração.
A minha eram os computadores da escola municipal.
Me habituei a todas as tardes ir até o colégio de Sibipiruna, e lá eu passava horas lendo e
estudando. Ainda que não pudesse usar meus documentos, comecei a assistir aulas online sobre
Administração e Direito, incentivada por Diana que dizia que, com todo aquele empenho, logo
eu poderia concorrer a uma vaga na prefeitura.
Seria o melhor dos mundos. Trabalhando e estabilizada em uma cidade que, ao seu jeito
torto, me acolhia.
Quase sempre padrinho me levava e me buscava da cidade. Como nunca tive
oportunidade de sequer tirar carteira, não sabia dirigir.
Ainda...
Pois a cada dia eu me permitia sonhar, esquecendo pouco a pouco dos perigos que me
assombravam.
Queria trabalhar, aprender a dirigir e ter uma certa independência.
Gostava de morar com os padrinhos e fazia planos futuros.
Por um tempo, até pensei em incluir um certo viúvo nesses planos, mas acabei caindo na
real. Lucas não passaria de uma distração, e me cansei de ser escorraçada de suas terras.
Certa tarde, padrinho José precisou ir na cidade ao lado, e acabei voltando para o sítio
sozinha. Eu nem ligava de caminhar a longa distância até a chácara agora que sabia o caminho,
mas fui surpreendida por César logo no início da estrada. Ele me ofereceu carona e aceitei. Ao
chegarmos no sítio, vimos Lucas no sobrado nos observando como um cão raivoso. Decidi
ignorá-lo, e quando César ofereceu-se para entrar, fiquei sem graça de recusar, e logo ele foi
embora.
Uns dois dias depois, saía mais uma vez do colégio municipal e o encontrei do outro
lado da rua, conversando com alguns fazendeiros. Parecia sempre uma coincidência cruzar com o
prefeito nas minhas saídas vespertinas.
— Fiquem tranquilos que o delegado vai pegar o restante — ele dizia com empolgação.
— Pedi reforço policial à capital, e com essa câmera. — Apontou para a câmera de vigilância
que por vários dias foi atração turística na cidade. — Não vamos deixar ninguém escapar.
— Esperamos que sim! — alguém disse.
Eu aprendia algo com os sibipirunenses. As pessoas ali poderiam ser simples, mas eram
todas ativas a respeito dos problemas da região e cobravam abertamente seus direitos.
César voltou-se para mim e abriu um sorriso simpático:
— Aceita uma carona?
— Hoje vou recusar — comecei a dizer. — Meus padrinhos estão na dona Margarida.
Vou voltar com eles.
— Eles sabem que pode se virar. Já é adulta.
— Sim, mas não quero incomodar você.
— Não é incômodo.
Sorri um pouco sem graça. Ser alvo da atenção do prefeito da cidade era algo que
deveria me deixar envaidecida, mas não era bem o que ocorria. Eu só pensava o quanto ele e
Lucas eram inimigos e, em até que ponto aquele não era o motivo principal do interesse de
César.
Eu poderia ser jovem e inconsequente, mas não era uma tapada. Percebia nas entrelinhas
a malícia do governante.
Abri a boca para negar mais uma vez ao convite, mas vi uma caminhonete vermelha
parada do outro lado da praça, em frente ao bar. Lucas estava distante nos últimos dias, e jurei a
mim mesma não ir mais atrás dele. Depois de perceber seu desejo por mim, resolvi mudar de
tática.
Eu faria o viúvo correr atrás do prejuízo, e não existia combustível melhor do que o
ciúme.
Continuei conversando com César, mas toda a minha atenção estava voltada para o bar.
Não demorou muito e vi quando o homem com porte de urso e feições severas saiu arrastando as
botas pretas.
Lucas piscou algumas vezes para se habituar à luz de fora e então caiu os olhos
exatamente onde eu queria:
Em mim bem perto do seu inimigo.
O maldito estava lindo aquela tarde. Usava uma calça preta e uma camisa cinza-chumbo
com bolsos na altura do peito e as mangas dobradas até os cotovelos. Os cabelos escuros caíam
um pouco em seu rosto, marcado pela cicatriz e dor constante que ele carregava.
As sobrancelhas grossas se juntaram ao me ver e os passos soaram firmes em minha
direção.
Desviei os olhos, fingindo não ter notado sua presença.
— Taaarde... — cumprimentou com muito esforço para se manter educado. Sua voz
grossa reverberando em cada poro meu.
Era injusta a maneira como ele me afetava.
— Boa tarde, Maldonado — um dos fazendeiros ali da rodinha disse.
César o ignorou, e eu perdi dois segundos para acenar discretamente em sua direção.
Nem aí para os demais, Lucas voltou-se para mim, repetindo:
— Boa tarde, Gabriella.
O que ele queria? Dois beijinhos no rosto?
— Boa tarde, Lucas. — Empinei o nariz para dizer.
— Tá indo embora? — ele perguntou, ignorando por completo todos os outros.
— Sim, eu já vou.
— Hum... — Foi uma espécie de rosnado, e ele olhou para César como um cão que
mostra os dentes para demonstrar perigo. — Então vem comigo. Já tô voltando pro sítio.
Confesso que meu queixo caiu.
Meu e de todos os demais, que observavam a cena meio fascinados.
De César, havia um olhar de minúcia estudada.
— Não precisa — recusei de maneira educada. — Eu já tenho carona.
— E posso saber quem é? — Lucas perguntou. Os olhos se cravaram em César e eu quis
dar risada da cena.
Tão fácil assim? Então vou provocar mais.
— Não — falei atrevida. — Você não precisa saber quem é.
Suas sobrancelhas se juntaram. A raiva brilhou em seus olhos, mas ele se conteve.
Foi quando César decidiu jogar mais lenha na fogueira:
— Ela vai comigo, viúvo. — Sem pedir, César enlaçou meu braço com o seu,
aproximando nossos corpos.
Foi como ver uma panela explodir.
Lucas bufou e avançou vários passos, parando bem perto de nós dois e então ajeitando
os cabelos, que agora caíam desgrenhados em sua testa. Sua voz era cortante ao sussurrar:
— O que tá acontecendo entre vocês?
— Nada que você precise se importar — falei, ciente de que cutucava a onça brava.
— Vem comigo, loirinha — ele insistiu, e sua voz em nada soava como um pedido.
— Não vou, Lucas — fui firme. Ia dobrar aquele cabeça-dura no susto. — Você
provavelmente bebeu e não acho certo que dirija. Prefiro ir com César.
Ele cerrou os olhos e deu mais um passo ameaçador. Parou a centímetros de mim e
sussurrou cheio de raiva:
— Prefiro que venha comigo.
Meu sorriso se abriu.
— Eu não prefiro. — Empinei o corpo para fitá-lo, ficando na ponta dos pés. Eu usava
um vestido relativamente curto, e vi que seus olhos desceram para minhas pernas expostas por
alguns segundos antes de se voltarem para mim. — Sou adulta, e decido por mim como e com
quem ir para casa.
Faltou só o homem espumar pela boca. Passou as mãos imensas nos cabelos bagunçados
e então bateu os pés, assustando a maioria dos fazendeiros que observavam a discussão.
— Certo. Quer ir com esse daí? Pois então vá!
E então, sem esperar por nova resposta, ele virou as costas, pisando duro em direção à
caminhonete.
Ficamos ali, apreciando a cena de ciúmes do viúvo chucro, que parou ao lado de seu
carro e nos fitou mais uma vez. Parecia lutar contra si mesmo quando César aproximou o rosto
do meu e soprou bem perto dos meus ouvidos:
— Então vai voltar comigo?
Eu não ia voltar com ele. Voltaria com meus padrinhos, mas Lucas não precisava saber.
— Não sei. — Me virei para César. Seu hálito bateu na lateral do meu rosto, mas nada
se comparava ao aroma quente de Lucas. — Preciso ir na dona Margarida avisar meus padrinhos.
Me acompanha?
Ele fez que sim, ajustando o braço ao redor do meu e me puxando de maneira educada
para longe dos outros fazendeiros. Eu sentia os olhos de Lucas queimarem minhas costas quando
nos viramos em direção à rua de dona Margarida.
Mal demos cinco passos, e escutei o barulho. Era como um touro de meia tonelada
avançando com tudo em nossa direção. Nos viramos a tempo de ver Lucas, com toda sua força,
marchar até nós dois. Os cabelos rolando ao vento e o semblante de quem não seria detido por
ninguém.
Tudo aconteceu tão rápido que mal tive tempo de raciocinar. Quando vi, era erguida do
chão feito um saco de batatas e colocada sobre os ombros do touro descontrolado, com o rosto
voltado para suas costas e as pernas jogadas para frente.
— Aaaaaahhh! — gritei no susto. — Seu maluco! Me coloca no chão!
— Vamos embora, loirinha! — Lucas decidiu, girando o corpo e caminhando de volta
para seu carro, agora mais devagar. — Vai voltar comigo!
— Me coloca no chão, Lucas! — tornei a pedir, aos gritos. As pessoas estavam
paralisadas no lugar, e era como se toda a Sibipiruna estivesse na praça vendo a cena. — Eu não
sou nada sua para me pegar desse jeito!
— É sim, loirinha! — ele rosnou baixinho, e só eu ouvi. — Você sabe que é.
Ele ajeitou a postura e me posicionou ainda mais encaixada em seus ombros. Senti um
ar frio passar por minhas nádegas e informei bem perto do seu ouvido:
— Tá mostrando minha bunda para toda a cidade! Seu maluco!
Ele imediatamente levou a mão imensa até minha saia, ajeitando-a, enquanto
resmungava:
— Isso que dá vestir esses trapos miúdos de roupa!
Lucas chegou do lado do seu carro e então me girou no ar, me colocando no chão e
encostada na caminhonete. Como se me cercasse com seu corpo, travou uma mão na lataria do
carro e usou a outra para abrir a porta do passageiro, se voltando para mim e ordenando:
— Entra.
— Não vou entrar! Já te falei que não ando em carro de bêbado.
— Eu não bebi nada, porra! — Cruzei os braços, deixando evidente minha
desconfiança, e ele continuou: — Beber não está adiantando com você, loirinha. Isso é o inferno.
— Mesmo assim, não quero. Quem você pensa que é para fazer essa cena comigo? Não
somos nada um do outro.
— Já disse que não quero outro homem te to...
— Você deixou bem claro que não teríamos mais nada aquela noite, Lucas, e não quero
mais correr atrás de você — o interrompi.
Percebi quando ele paralisou, meio sem saber o que fazer, e aproveitei para me
desvencilhar dos braços imensos. Lucas arregalou os olhos, mas logo se recuperou, correndo
atrás de mim enquanto eu caminhava na direção da estrada de terra que dava para a fazenda.
— Vou embora sozinha, e você não venha atrás de mim.
— Gabriella... — ele gemeu, passando a mão pela extensão dos cabelos. — Entra na
porra do carro.
Sei que éramos o centro das atenções, mas nem liguei. O vi voltar e entrar na
caminhonete enquanto eu marchava sentido à saída da cidade.
Olhei de viés para trás e vi o carro de carroceria imensa me seguindo por trás. Fazia um
sol escaldante, mas eu ia teimar. Lucas que corresse um pouco atrás.
Percorri os primeiros metros da estrada de chão com ele na minha cola, até que a
impaciência parece ter tomado o homem e ele buzinou, me ultrapassando e então parando no
meio da estrada.
Me aproximei e parei ao lado da sua janela, cruzando os braços e o encarando em tom
de desafio.
— Entra, Gabriella. — O mesmo tom mandão e a voz rouca. — Vai andando até o sítio?
— E qual o problema?
— Nesse Sol? Eu te levo.
— Já encarei essa estrada na noite e debaixo de chuva, Lucas. Ou se esqueceu de que
me deixou sozinha aqui no dia em que cheguei em Sibipiruna?
Sem esperar resposta, recomecei a andar. Ele soltou um suspiro exasperado e desligou o
carro, descendo e me seguindo à pé.
— Mas que diacho de mulher teimosa! Só entra!
— O que mudou de lá pra cá? — Me voltei de uma vez quando percebi que ele me
alcançou.
Lucas estacou no lugar. Seu olhar negro e duro analisou meu rosto. Não estava vazio
nem cheio de dor. Era como o Lucas que se entregou ao desejo nas vezes em que ficamos juntos.
Vivo, como eu de fato gostava de vê-lo.
Senti o tesão borbulhar em meu peito.
— O que mudou, loirinha. — Sua voz era só um sussurro rouco. Seu peito subia e
descia e o pomo de adão estava alojado na garganta, como se ele lutasse com o que ia dizer. — O
que mudou é que agora eu quero você, mulher. Tô viciado em teu cheiro, e não suporto a ideia de
te ver nos braços daquele imundo.
— O problema não é César, Lucas — falei. — O problema é que você sempre me
expulsa das tuas terras. Confessa que me deseja, diz que sou sua, mas logo depois me rejeita.
— Gabriella...
— Não sou sua clínica de reabilitação. Não posso te curar se você mesmo não quer ser
curado. — O fitei com toda a sinceridade do mundo. — Não quero sua redenção. Só seu desejo.
— Já disse que não tenho o que te oferecer.
— E eu já disse que não quero nada.
Ficamos ali, no meio da estrada e nos encarando. O desejo eletrizando minha pele e a
vontade estalando em meu corpo.
Era raiva e tesão. Tudo junto.
Passaram-se alguns segundos de silêncio e eu me decidi.
— Volto andando — sentenciei, girando meu corpo e retomando o caminho.
Foi quando a mão gigantesca do homem envolveu meu braço, me impedindo de
prosseguir e me puxando de volta. Meu corpo se chocou contra o seu. A calça preta queimava a
pele, e a camisa de tecido grosso exalava o perfume de Lucas.
— Entre no carro, loirinha, e vou te oferecer tudo o que eu posso dar no momento.
Ergui os olhos para fitá-lo, procurando ali indícios de que ele voltaria atrás. Sua mão
calejada subiu até meu pescoço, acariciando-o, e então ele alisou meus cabelos, puxando uma
mecha e cheirando com vontade.
— Promete não me escorraçar depois? — perguntei.
Ele negou algumas vezes com a cabeça.
— Não prometo, pois você me endoidece. É feito uísque, que queima e adocica no
primeiro gole. Você confunde como o álcool, Gabriella. E a única coisa que sei, é que não quero
dividir você com mais ninguém, nem que para isso eu tenha que te jogar de novo em meus
ombros e te botar à força dentro daquela caminhonete.
Cerrei os olhos com sua ameaça.
O homem cruzou os braços, como se me desafiasse.
De lábios comprimidos, me decidi. Com um breve aceno de cabeça, rodeei a
caminhonete e abri a porta do passageiro, entrando com altivez lá dentro.
Lucas suspirou impaciente e me seguiu, sentando no banco ao lado e religando o carro,
que passou a guiar no mais absoluto silêncio.
Dava para ouvir seus dentes baterem de raiva na mandíbula endurecida. Seu maxilar
estava travado e ele mal me dispensou o olhar.
Me mantive quieta, ciente de que, naquele dia, eu avançaria algumas casas.
Várias, se possível.
Com meus braços cruzados e mantendo a pose de enfezada, o vi dirigir até o vale do
sítio. Lucas parou a caminhonete no galpão ao lado da casa de dois andares e me esperou descer.
Os cachorros fizeram festa quando me viram e afaguei o pescoço de todos eles. Até mesmo Juiz
tinha se tornado meu amigo. Era meio soturno e observador, mas se mostrava fiel como os
demais.
Depois de ver como Perverso estava, sentindo os olhos quentes de Lucas sobre mim,
comecei a fazer o caminho que levava até a cerca que dividia os terrenos. Demorou alguns
segundos até que ele gritasse:
— Aonde vai?
— Pra casa? — respondi com um dar de ombros debochado. — Você só me deu uma
carona.
A raiva que ele parecia controlar ardeu em seus olhos quando ele começou a caminhar
em minha direção.
— Não mesmo, loirinha.
— Eu não te prometi nada, Lucas.
Continuei a andar. Era tarde, e o sol batia a pino no céu. Decidi ir pela parte baixa do
terreno, mais fresca pois ficava perto do córrego. Estava a poucos metros da cerca, passando ao
lado de uma árvore que ficava ali na região perto da mata, quando ele me alcançou, me puxando
mais uma vez e me colocando contra o tronco da árvore.
— Mas eu prometi — Lucas falou de maneira grave. A voz, bem sedutora, mas de um
jeito que só Lucas conseguia fazer. Bruta e capaz de me arrancar o oxigênio. — Vou te oferecer
tudo o que tenho, loirinha, e espero que esteja pronta para aceitar.
Ele enfiou o joelho entre minhas coxas, afastando minhas pernas um pouco.
Senti a estabilidade sumir junto do ar. Com sua altura, Lucas alcançava minha virilha
com facilidade, flexionando só um pouco a perna. Eu gemi, e ele deixou cair uma mão em meus
cabelos, enquanto a outra me rodeava a cintura.
De repente, tudo se resumia a meu corpo sendo pressionado sob a árvore, e o seu, me
dominando debaixo do mormaço.
Fiquei na ponta dos pés e nem assim alcançava seus lábios. Eu queria beijá-lo e Lucas
percebeu, pois seus olhos assumiram o brilho inigualável que eles tinham quando tudo que lhe
restava era desejo. E ao invés de me ajudar e aproximar seu rosto do meu, Lucas afastou-se mais.
Me olhou de cima, apreciando cada centímetro do meu corpo, e então envolveu meu pescoço em
suas mãos.
E sorriu.
Maldito.
Eu sorri de volta, pois aquele era o Lucas que eu gostava de ter comigo.
Não era o viúvo sem vida, ou então o homem carregado de dor.
Era a criatura afogada em desejo. Tão, mas tão intenso, que precisava me privar do ar
para que eu sentisse parte do que ia em seu peito.
Meus olhos reviraram nas órbitas quando ele apertou a garganta. O ar foi ficando fraco,
e prestei atenção às folhas da árvore acima de nós. Eram verdes e viçosas, grudadas ao pé por
galhos pequeninos.
Um dia, elas se soltariam.
Secariam aos poucos, até virarem alimento na terra para a própria mãe.
Um dia, o desejo de Lucas por mim se romperia, como as folhas de uma árvore.
Que ao menos ele alimentasse o homem que ainda existia em seu ser.
— Eu devia te mostrar quem manda, loirinha — ele sussurrou, grudando a boca em
meus ouvidos. — Te disse que César não é confiável e você se aproxima justo dele?
— Nunca quis nada com César. — Minha voz já saiu diferente, mas consegui falar sem
engolir o ar. — Eu só queria te provocar.
— Abusada. — A mão em minha cintura me puxou com mais firmeza, enquanto o colar
em meu pescoço se fechava. — Vai ver o que é provocação.
O seu rosto estava fechado, mas havia um brilho nos olhos que me permitia confiar. Eu
confiaria todo meu corpo ao Lucas que me rodeava o pescoço com suas mãos. Era uma louca por
confiar, mas a prudência ia embora sempre que estava em seus braços.
Seus cabelos negros caíram no rosto quando ele beijou o canto dos meus lábios.
Devagar, fazendo exatamente o que prometeu fazer: me provocando.
Fechei os olhos quando seu aroma me invadiu. Uma mistura de campo com sabonete
barato. Couro e uísque caro. Tudo misturado em sua camisa de tecido grosso e nos pelos que
escureciam os braços firmes.
Minha boca salivou, e ele ergueu um pouco o joelho encaixado entre minhas pernas.
Com o movimento, friccionou minha virilha e me fez estremecer. Sua boca escorregou em meu
pescoço, mordiscando a pele e fazendo tudo queimar. O vento do campo era morno, e ele soltou
minha garganta para ajeitar meus cabelos, que balançavam soltos.
— Não confio no César — ele sussurrou, tão perto da minha pele que senti um arrepio
com o toque do ar quente de seus lábios. — Se mantenha longe dele. É uma ordem.
— Não manda em mim, cowboy.
— Ah, loirinha... — Os dedos imensos se enrolaram nos meus fios loiros, e ele puxou
de leve minha cabeça para trás. — Vou te mostrar o que sou capaz de fazer para te botar no
lugar.
— É...? — Engoli em seco, sentindo o tesão soterrar meu corpo. — Como o que?
— Como me enfiar na tua boceta até que você só tenha o meu cheiro, ou te fazer sentir
meu pau tantas e tantas vezes, que vai até se esquecer do que veio fazer nessas terras.
— Lucas...
— Mas antes, vou te deixar sem ar, exatamente como faz comigo. — Ele alisou meus
cabelos e voltou a rodear meu pescoço, agora com uma delicadeza que causava um palpitar de
ansiedade. — Nunca vou te machucar, loirinha. Tem minha palavra. Mas hoje vai sair marcada.
Sua boca tomou a minha.
Havia raiva. E tesão. E desejo.
Não senti a dor das outras vezes. Era como se agora, Lucas estivesse cego. Só o desejo
tomasse conta do seu corpo e, por Deus, era desejo demais!
Seu joelho se esfregava em minha calcinha, já toda molhada.
Seu braço me prendia contra a árvore e sua mão fazia questão de mostrar que ele não me
machucaria, mas me marcaria para sempre.
Eu não tinha o direito de pedir a Lucas seu coração, pois sei que ainda pertencia à sua
mulher, mas ali, naquele momento, ele realmente me dava tudo o que tinha.
E não era pouca coisa.
Eram suas mãos avançando sobre meu corpo. Arrancando meu vestido. Seus olhos me
venerando com desejo. Sua boca me roubando todos os beijos que quisesse. Mordendo.
Marcando.
Lucas me despiu, fazendo as roupas caírem ali sem cuidado. Soltou meu pescoço para
me ajudar a fazer o mesmo com ele. Minhas mãos e as dele se atrapalhando na missão de abrir
todos os botões da camisa cinza-chumbo. As botas sendo jogadas longe e a calça embolada de
qualquer jeito.
Completamente nus, sob o risco de sermos vistos por qualquer um que chegasse em uma
das fazendas, ele voltou a me beijar. Brincou com a língua na minha e me fez engolir todo o ar
quando me posicionou mais uma vez no tronco da árvore.
Tudo se apagou ao redor. Eu não ligava para o sol ou para o vento morno vindo da mata.
Eu só sentia seu corpo nu sobre o meu. O encaixe perfeito que tínhamos, mesmo ele sendo tão
mais alto que eu.
Meus cabelos se enroscavam em suas mãos enquanto nos beijávamos, e os gemidos
eram a nossa forma de falar.
Levei as mãos ao seu pau, massageando-o com pressa, e vendo o seu olhar ficar mais
negro ainda. Senti um tranco em meu corpo quando ele me chocou contra a árvore, afundando os
dedos em meus quadris e posicionando a outra mão na minha nuca.
Seu beijo era quente. Capaz de incendiar tudo à nossa volta.
O toque era rude, e ele ajeitou meus cabelos com um solavanco rude, antes de espalmar
a mão em meu rosto e enfiar o indicador em minha boca.
Indecente, Lucas esfregou sua coxa em minha boceta, e eu percebi que ele me faria
gozar assim. A mão em meu rosto me tampou os olhos, e então enfiou mais um dedo em minha
boca, me fazendo sugá-lo.
— Quero ver sua boca trabalhar, loirinha. — Sua perna intensificou a fricção e eu gemi.
— Quando gozar, morda meu dedo com força, pois quero sentir a intensidade.
Grudei os olhos nos dele e ele soltou minha cintura, levando a outra mão ao centro das
minhas pernas. Senti o dedo circundar o clitóris e gemi, mas o som saiu abafado pelos dedos em
meus lábios.
— Vai, Gabriella — ele incitou, rodeando a região sensível e dedilhando minha vagina
com os outros dedos.
Ele usou dois dedos para afastar os grandes lábios, e então introduziu um deles. Joguei
minha cabeça no tronco, e Lucas aproveitou para morder meu pescoço. A mão em meu rosto me
tirava a visão, mas eu sentia tudo.
Sua boca desceu aos seios, chupando os mamilos com calma. Rodeando a aréola com a
língua e me fodendo com sua mão.
Era avassalador ao extremo. Seus gestos. O toque rude da pele queimada de sol. O
cheiro bom de campo e suor masculino.
Revirei os olhos ao sentir o orgasmo chegar. Tão cru e sedento que me esqueci de
morder seus dedos. Lucas era conhecedor do meu corpo, pois percebeu que eu gozava, mas não
fazia o que pedi. Ele retirou a mão de meu rosto e, antes que eu percebesse, desceu um tapa em
minha bochecha.
Foi bem sutil. Nem um pouco forte, só que tão repentino que me fez arregalar os olhos e
soltar um grito curto.
Minhas pernas falharam e minha boceta pulsou, louca por mais.
Meu corpo se despedaçou, e Lucas estava pronto para tirar proveito disso.
Primeiro, deu mais um tapa no rosto. Suas mãos se juntaram em meu pescoço, me
mantendo de pé, e os dedos que me fizeram gozar surgiram em meu rosto, sendo passados em
meus lábios com indecência.
— Não mordeu, loirinha. Agora vai chupar.
Eu provei do sabor. Chupei seu indicador e depois o dedo do meio. Gemi quando ele
começou a movê-los em minha boca, simulando um oral. Perdi o ar quando senti seu pau se
esfregar em minha barriga, e então sua outra mão se fechar em minha garganta.
E então ele começou, bem devagar.
Pouco a pouco, a me roubar o ar. A fazer a circulação ser reduzida ao cérebro, me
forçando a respirar mais devagar e centrada.
Tudo ficava exponencialmente mais sensível, e eu era capaz de ouvir o som da água
batendo nas pedras do riacho ao fundo.
Eu ouvia a minha respiração, lenta, e a dele, acelerada.
Seus dedos ainda em minha boca e uma vontade quase explosiva de pedir por ar, mas
aquele era um gesto de confiança tão grande que só me enchia de mais tesão.
Ignorância nossa imaginar que só desejo ocorria ali.
Lucas me tirava o oxigênio em um momento em que tudo o que eu buscava era
liberdade.
Eu tirava sua paz que agora o sufocava.
Eu queria ficar sem ar.
Lucas buscava oxigênio.
Seus dedos marcavam meu pescoço quando os pensamentos em minha mente se
tornaram confusos. Era um caos que me libertava.
Gemi baixinho, e ele retirou os dedos de minha boca. A mão seguiu como um colar em
mim, e seus ombros aproximaram-se mais, fazendo com que eu me grudasse na árvore.
Senti o tronco áspero em meus cabelos e arranhando minhas costas. Seu pau melado
esfregando-se entre minhas pernas e sua boca imensa agora chupando meus seios.
A consciência parecia ir e vir, e meu corpo estava letárgico quando ele me penetrou.
Devagar, me preenchendo aos poucos e sem pressa.
Começou a se mover com a mesma vagareza, me arrancando o resto de ar que eu tinha.
Querendo me deixar inconsciente.
Lucas gemeu e cerrou os olhos, flexionando as pernas para ficar na altura certa do
encaixe e então se apoiando no tronco atrás de mim.
Foi e voltou.
Foi e voltou.
Foi e...
Porra...
— Pode gozar, loirinha — ele murmurou, mordiscando meu ouvido em provocação. —
Goza em mim quantas vezes quiser, pois hoje vou fazer você ficar com meu cheiro.
Sua barba resvalou meu rosto. Meus lábios. Seus quadris se moviam sem parar, me
fazendo bater contra a árvore sem dó. Sem se importar que eu realmente saísse marcada dali.
A mão na garganta não tinha dó. Não afrouxava. Não cedia.
Ela marcava.
— Lucas... — supliquei, tentando por tudo não demonstrar desespero na voz.
Foi inútil.
— Goza, loirinha.
— Lucas, por favor...
Meu corpo não respondia aos meus comandos. Era tudo uma bagunça. Mente e braços
não me obedeciam, e o orgasmo veio para piorar tudo.
Talvez morrer seja assim.
Intenso de uma maneira que poderia doer, mas você não sente dor.
Só...
Céus!
— Lucas...
— É meu nome que quero ouvir da tua boca. — Ele intensificou os movimentos, e
folhas caíam ao nosso redor com o balanço dos galhos mais frágeis. — Gemendo ou gritando.
Sorrindo ou chorando. Meu nome, Gabriella. Porque há dias eu só penso no seu.
Poderia ser uma declaração vinda do coração, mas sei que era só coisa de corpo.
Senti o orgasmo nublar tudo. A vista escureceu e minhas pernas cederam.
Lucas me jogou no chão sem piedade, voltando a montar sobre mim, e a me penetrar.
Agora, ele me fodia como um desesperado. Como um viciado que encontra a droga
depois de meses de abstinência.
Ainda havia raiva por eu ter o provocado.
Havia dor por coisas que eram só dele.
E havia a vontade de nunca acabar.
Ele abriu minhas pernas. Estapeou meus seios. Mordeu e sugou meus mamilos.
Me comeu no chão de pasto com a crueza que sempre vi em seus olhos. Sem se importar
em se sujar ou me sujar. Era Lucas em sua versão mais real.
O suor escorria entre seus olhos, e meu corpo era marcado pelos contornos do seu. Era
preenchida por seu desejo e gemia como uma louca, arranhando seu peito e distribuindo beijos
por seu corpo.
Quando pareceu satisfeito, me girou e pôs de quatro, com os joelhos fincados na terra
batida e as mãos sentindo as pedrinhas do lugar.
— Sabe quantas vezes quis te comer assim, loirinha? — ele sussurrou nas minhas
costas. Seu pau sendo pincelado em minha entrada e me deixando desesperada. — Quantas vezes
quis ver você nesse chão, de joelhos para mim?
Um tapa forte atingiu um lado da minha bunda, e eu gemi. Senti todo o corpo
estremecer e um suor escorrer entre os seios.
— Me come assim, Lucas.
Ele voltou a estapear minha nádega. Um lado, depois o outro, até que tudo ardesse.
Eu já estava sem ar. Sufocada.
E então sua mão percorreu minha coluna devagar, fazendo uma espécie de rabo de
cavalo e prendendo meus cabelos. A outra surgiu gigantesca em meu pescoço, e senti o corpo
que deveria ter quase o dobro do meu peso me encobrir. Todinho.
Esqueci de respirar, ainda que não pudesse.
Tudo ficou lento e dormente em meu corpo, e quando ele me penetrou, minha pele
transpirava. Gotas de suor desciam minha lombar, enquanto outras acumulavam-se entre os
seios.
Um tranco em meus cabelos me posicionou mais perto dele, e Lucas encaixou-se mais,
fazendo as bolas queimarem na minha virilha.
Mordi o lábio quando a primeira estocada veio. Firme e me fazendo arrastar os joelhos
no chão.
Mais uma estocada, e ele apertou a mão em meu pescoço. Fechou os punhos com força
e me fez engasgar, enquanto movia-se de novo.
E de novo.
E de novo.
Mais e mais rápido.
Eu sentia o cheiro da terra úmida sob nós dois, e tentava não ceder enquanto ele me
fodia com todo seu peso.
Lucas gemia, como se estivesse entregue por inteiro ali. Ele puxou meus cabelos ao
ponto de doer, e a outra mão me impedia de sair do lugar.
Seu vai-e-vem prolongou-se até eu gozar. A explosão do orgasmo foi quente e molhada.
Fez minhas pernas cederem, literalmente, e meu corpo desabar no chão de terra.
Só então ele soltou meus cabelos e meu pescoço. Apoiou-se no chão com as mãos e
voltou a se mover, assumindo um ritmo agora só dele.
Eu gritava. Ele urrava.
Lucas tinha razão. Me daria tudo o que tivesse.
E quando eu estava esgotada e cheia, foi a sua vez de gozar em um jato forte e delicioso
que aqueceu todo meu interior.
Me sentia toda preenchida por ele. Completa.
Esgotada, caída no chão de um pasto seco nas terras de um viúvo amargurado.
Era o melhor lugar para se estar.
Lucas tremia sobre mim, e seu pau ainda estava semi ereto em meu interior.
Devagar, ele o retirou, alisando meus cabelos com um carinho inesperado e então
beijando minha lombar. Senti seus lábios percorrerem minhas costas e ele parou em minha nuca,
onde inspirou profundamente, sentindo o cheiro dos meus cabelos, e então sussurrando bem
perto de um dos ouvidos:
— Te deixei esgotada, loirinha?
Havia uma dose de prazer em sua voz, e fechei os olhos, acenando que sim, pois parecia
incapaz de falar.
Lucas riu, e o som reverberou em minha alma. Era rouco como sua voz, mas tinha muito
mais energia que qualquer resmungo seu.
Aquele homem nasceu para ser feliz, pensei ao me virar e dar de cara com um sorriso
pequeno que iluminava seu rosto.
Alisei uma de suas bochechas e Lucas beijou a palma da minha mão, antes de se
levantar e vestir sua calça.
Sem colocar a parte de cima da roupa, ele pegou as demais peças — minhas e dele — e
então aproximou-se de mim, me içando em seus braços sem demonstrar o mínimo esforço.
— O que vai fazer? — questionei sem compreender ao vê-lo caminhar na direção do
sobrado de dois andares.
— Dar um banho em você, loirinha. Está mais suja que o Perverso depois de lutar com o
porco-espinho.
— Assim você me ofende. — Gargalhei, me segurando em sua nuca enquanto era
carregada pelo pasto acima.
Eu nem ligava de estar toda nua. Sentir o peito forte e suado de Lucas contra minha pele
era a melhor das sensações.
Entramos no casarão e ele fechou a porta, deixando os cães, que haviam ficado todo o
tempo na varanda, para trás.
Com passos gigantes e meio silencioso, Lucas subiu os degraus que levavam ao segundo
andar e me levou até um quarto ao fundo do corredor. Finalmente o homem me soltou, e entrei
sozinha no banheiro da suíte enquanto ele ficava do lado de fora.
Me banhei e recuperei a força das pernas, percorrendo com minhas mãos todas as
marcas que vi deixadas por ele em meu corpo.
Não consegui evitar um sorriso de apreciação ao ver pelo espelho da bancada as marcas
vermelhas em minha garganta. A sorte é que eu tinha cabelos longos e poderia facilmente as
cobrir.
Por um momento, observei os itens jogados em cima da pia do banheiro. Não havia
nada que ao menos sugerisse uma presença feminina. Só sabonetes e xampus masculinos, uma
lâmina de barbear e um vidro vazio de perfume.
— Ao menos não é daqueles viúvos que mantém tudo da mulher no mesmo lugar —
murmurei, cheirando o vidro vazio e então saindo do banheiro.
No quarto, Lucas continuava só de calça, mas agora seus cabelos pareciam ajeitados e
sua expressão meio serena.
Ao me ver, ele apontou para a imensa cama de casal onde meu vestido estava
cuidadosamente esticado sobre o lençol branco.
— Teu vestido é tão pequeno que é menor que minhas camisas — ele observou,
apontando para sua camisa, esticada de mesma forma ao lado da minha roupa.
— Isso é problema para você? — provoquei, caminhando até a cama e me sentando lá,
nua.
Será que ele ainda sentia o cheiro da falecida nos lençóis?
— Claro que é! — Ele apontou para o vestido que eu colocava. — Não gosto do jeito
que os homens olham para suas pernas.
— É o mesmo jeito com que você olha. — Balancei os ombros, jogando os cabelos para
trás depois de passar as alças do vestido pela cabeça.
— É, mas eu posso te olhar assim. Os outros, não. Porque agora você é só minha.
— Sou sua pelo tempo que eu quiser. Se amanhã eu não te quiser...
— Vai querer sim, loirinha. Vai querer e vai continuar sendo só minha. Não quero
dividir teu cheiro e muito menos o sabor da sua boca. — E como se precisasse provar isso,
avançou sobre mim e mordiscou meu lábio inferior.
Dominada por teu cheiro, resolvi fazer algo diferente. Retirei o vestido que estava
colocando e peguei sua camisa, vestindo-a e sendo imediatamente sufocada pelo aroma do seu
perfume impregnado no tecido grosso.
— O que está fazendo? — ele perguntou, franzindo o cenho.
— Você reclamou que meu vestido é curto. — Apontei para a barra da camisa, tão
grande que batia na altura dos meus joelhos. Realmente, bem maior que meu vestido. — Só
estou sendo comportada.
— Comportada? Você? — Lucas soltou um resmungo, mas seus olhos pareceram
grudados em mim.
Será que a esposa dele usava suas camisas?
Será que isso o incomodava?
Lucas não disse o que ia em sua mente. Só me olhou por um longo tempo, parecendo
memorizar cada detalhe do meu corpo. Então, aproximou-se devagar e levou uma mão na minha
nuca, enfiando-a nos cabelos e fazendo uma espécie de carinho.
— Vamos descer — ele falou do nada. — Preciso te mostrar uma coisa.
Capítulo 26

Gabriella me acompanhou até o primeiro andar, sentando-se na mesa de madeira da


cozinha. Busquei meu celular largado dentro do porta-luvas do carro e mostrei a ela a foto que
tinha tirado dias antes do bandido preso na usina.
— Por acaso esse homem é um dos que estão atrás de você? — perguntei, atento ao seu
rosto e suas reações.
Ela o olhou por meio segundo e então negou com a cabeça, convicta.
— Não é.
— Tem certeza? — insisti.
— Tenho. — A loirinha me olhou com firmeza. Parecia certa do que estava dizendo. —
Fique tranquilo, Lucas. Essas pessoas não estão atrás de mim. Se estivessem...
Gabriella parou e tentei interpretar sua pausa, vendo o medo perpassar seu rosto:
— Se estivessem... — comecei a dizer com lentidão. — Eles já teriam agido, não é?
Ela engoliu em seco.
— Sim. — Sua voz não passava de um sussurro.
— Do que está fugindo? — perguntei pela milésima vez.
Gabriella limitou-se a negar, reforçando que nada diria.
Suspirei, passando as mãos nos cabelos e fitando a mulher cheia de marcas minhas.
Os lábios estavam inchados, o pescoço com arranhões vermelhos e o corpo...
Vê-la usando minha camisa tornava todo o conjunto ainda melhor. Se pudesse, faria a
loirinha usar só minhas camisas. Ela passaria os dias desfilando para mim daquele jeito.
Impregnando minhas roupas com seu perfume de melaço e causando uma bagunça em meu vazio
interior.
Era como se ela, de fato, fosse minha.
E eu protegia tudo o que era meu.
— Tá. — Tomei uma decisão ali, influenciado pela visão de seu corpo coberto por
minhas roupas. — Vamos fazer uma troca.
Ela me olhou intrigada. Uma imensa ruga na testa.
— Eu conto para você sobre como cheguei em Sibipiruna e, em troca, você me diz os
motivos que te trouxeram para cá.
Gabriella continuou desconfiada, me fitando com as sobrancelhas juntas e a pose na
defensiva.
Eu também não me sentia bem naquela situação. Estava confiando nela para contar algo
que pouquíssimas pessoas sabiam.
— Eu não sei se posso confiar, Lucas.
— Contarei minha história primeiro.
Me sentei na cadeira de frente para ela, respirando fundo e pensando na melhor maneira
de começar.
Há anos eu não repetia aquela história.
— Não nasci em Sibipiruna. Acho que já sabe disso. — Ela concordou e eu prossegui:
— Morava em uma outra cidade, também do interior, mas bem longe daqui. Éramos eu e meus
avós.
— E seus pais?
— Foram trabalhar em uma fazenda no Sul do país quando eu tinha uns cinco anos e
morreram em um acidente de ônibus. A tal fazenda transportava todo mundo de maneira ilegal, e
o ônibus rodava com todos os defeitos possíveis. Os freios não funcionaram numa curva, e
acabaram batendo. Ninguém foi culpado.
— Isso é tão injusto...
— E o que é justiça para você?
Essa era uma pergunta que me atormentava há anos.
— Acho que justiça é um privilégio de poucos — Gabriella murmurou sem tirar os
olhos de mim.
— É. — Engoli parte do bolo que se formava em minha garganta. — Só que ela cobra a
consciência de todo mundo, seja ele um privilegiado ou não.
Fitei seus olhos de uísque e ela me esperou continuar:
— Eu morava com meus avós, e como eles eram mais novos, as pessoas da cidade
achavam até que eram meus pais. A cidade era pequena e minha infância foi como a de qualquer
outro moleque. Com uns quinze anos, entrei naquela fase de pegar várias garotas e...
— Pode continuar. — Ela riu. — Não me importo de saber que você foi um belo de um
comedor na adolescência.
— Não é bem assim. Eu tinha quinze, e ficava com meninas da mesma idade. Algumas,
mal passava dos beijos. Saí com várias, até o dia que vi uma “novata” na cidade. — Olhei para
ela, me perdendo um pouco em seus cabelos. — Loirinha feito você.
— Eu não sou loira natural.
— Mas te conheci assim. — Retomei a história: — A garota tinha minha idade e era
doida por liberdade. Dizia que tinha um pai rígido e que não a deixava sair de casa. Ela nunca me
disse quem era seu pai, mas acabamos nos aproximando. Ficamos duas vezes, nada muito sério,
e a menina colou em mim. Acho que queria alguém para se libertar, e gostava da vida sem
amarras que eu e os outros meninos tínhamos em uma cidade pequena. Um dia, ela me disse que
queria sair. Nesse mesmo dia, meu avô tinha me dado uma garrafa de bebida para dividir com os
amigos.
— Aos quinze anos? — Ela me fitou chocada.
— As coisas eram assim vinte anos atrás. Ninguém ligava, a não ser que você
oferecesse a bebida para a filha do novo juiz da cidade.
Quando Gabriella me olhou com expressão confusa, me virei para a porta aberta e
resolvi despejar tudo de vez:
— A menina, que eu juro que sequer lembro o nome, era filha do juiz. Eu não sabia.
Levei ela e a garrafa para junto de meus amigos. Éramos um grupo com uns sete meninos, entre
treze e quinze anos. Nunca tivemos intenção alguma com a garota, até porque ela estava só
comigo, mas demos azar de levá-la no dia em que meu avô me deu a garrafa de bebida.
Bebemos, ficamos contando piada, e só. Nada mais aconteceu. A maioria sequer bebeu.
“Quando deu início da noite, vimos uma viatura se aproximar. Um dos mais novos
escondeu a garrafa, mas continuamos ali. Não era a primeira vez que um grupo de adolescentes
bebia no banco da praça. Qual o problema nisso?
“O problema é que o pai da garota tinha mandado toda a polícia atrás dela. Ela tinha
mentido para onde ia, fugindo da superproteção dele. E daí sua mentira acabou sobrando para
nós, que fomos todos presos e agredidos por um bando de policiais que se achavam senhores da
justiça.
“Ninguém nos ouviu. Ninguém nos defendeu. A menina que eu ficava foi embora sem
confirmar nossa versão. Devia ter tanto medo do pai que preferiu deixar tudo cair sobre nós. Nos
acusaram de levá-la à força, para deixá-la bêbada e então abusar da garota. Um amigo meu, de
uns treze anos, levou rasteira dos policiais. Eu, um soco dentro da cela que me fez cair no chão e
bater o rosto contra as grades. Essa cicatriz que tenho na testa é desse dia.”
Gabriella inclinou o corpo para mim e tocou na marca que eu levava no rosto com
delicadeza.
— Vocês eram menores e mesmo assim ficaram presos?
— Vou te contar um costume da polícia imbecil do interior: deixar seus desafetos
passarem a noite na cadeia para mostrarem quem realmente manda, mas sem fichar a pessoa.
Antenor fez isso comigo. O juiz ordenou que fizessem o mesmo no passado. A gente só não
sabia que era assim que as coisas funcionavam na época.
— Dormiram lá?
— Sim, mas nos disseram que a gente ia pro presídio da capital. Que ficharam nossos
nomes e tudo. Nos encheram de medo, e nos fizeram jurar que ninguém saberia daquela lição.
“Eu me culpava por tudo. Foi culpa minha que todos os meus amigos foram presos. Que
alguns foram agredidos e muitos estavam morrendo de medo de serem condenados por algo que
nem tinham feito.
“No meio do grupo havia um mais desesperado que todos. Dinho. O sonho dele era se
tornar médico, e ele acreditava que com a ficha suja nunca mais conseguiria entrar numa
faculdade. Foi dele a ideia de invadir a delegacia e procurar por qualquer coisa que pudesse
incriminar a gente.
“Em uma madrugada, fomos eu, Dinho, e um terceiro colega, o Renato. Eu fui porque a
culpa era toda minha, então eu tinha que ir. Dinho era o incentivador, enquanto Renato, apesar de
ser mais novo, tinha o mesmo porte físico que eu e uma vontade louca por fazer justiça. Ele só
foi porque era justo demais.
“Entramos numa salinha do arquivo pulando o muro e depois escalando o telhado. A
segurança era precária, e na época não tinham câmeras. Vasculhamos tudo e, lógico, não
encontramos nada. Não tinha nada para encontrar. Só que Dinho estava decidido a achar nossas
fichas, e acabou pegando um isqueiro e incendiando um dos arquivos. Foi quando tudo começou
a queimar.”
— Vocês incendiaram a delegacia?
— Quase. Fugimos quando a coisa apertou e logo alguém viu a fumaça. Controlaram o
fogo, e viramos o assunto da cidade. A polícia, sedenta atrás de nós. Se nos pegassem de novo,
agora seria para matar.
Percebi quando ela estremeceu, encolhendo os ombros e cruzando os braços, como se
protegesse o corpo.
— O primeiro a sair da cidade foi Renato. A mãe dele era esperta, e não quis esperar
para ver. Nem sei para onde foram.
— E você e o outro?
— Dinho partiu logo depois. Sei que mudou de estado, mas por medo de eu revelar o
paradeiro dele, nunca chegou a me dizer para onde ia também. — Suspirei, lembrando de tudo.
— Eu fui o último a sair. Não tinha para onde ir e presenciei a caça às bruxas que a polícia fez
por conta daquele incêndio. Me doía ver outros garotos, que nada tinham a ver com a história,
serem interrogados e apanharem daqueles marmanjos.
— Então veio para cá?
— Demorou um pouco. Meus avós não iam sair da cidade. A criação deles era do tipo
que corrigia as coisas no cinto. Eu nem podia contar pra eles o que aconteceu, ou seria arrastado
em praça pública até a delegacia. E tenho certeza que não sairia vivo de lá.
O juiz queria justiça. A polícia queria justiça... e a justiça deles seria pesada demais
para mim.
— E o que você fez?
— Disse para minha avó que queria tentar a vida em outro lugar. Ela não acreditou
muito de início, mas disse que, se eu saísse de casa, que não voltasse depois com o rabo entre as
pernas. Ela tinha me acolhido quando meus pais morreram, mas não passaria a mão na minha
cabeça se eu resolvesse me aventurar e descobrisse que o mundo era uma merda. No dia que saí
de casa, soube que seria para sempre.
Me lembrava daqueles dias de sofrimento na estrada. Sem ter onde ou o que comer.
Peguei carona em caminhões e na carroceria de carros, indo de cidade em cidade até chegar em
Sibipiruna.
— Quando eu cheguei aqui, algo na cidade me prendeu. O lugar parecia tão perdido e
castigado da vida quanto eu, e me pareceu um lar.
Gabriella sorriu, como se entendesse exatamente o que eu dizia.
— Comecei a pedir emprego. Qualquer coisa eu topava. Até que os Maldonado me
chamaram para trabalhar na casa deles. Como peão, e depois como administrador. Virei o braço
direito do senhor Maldonado muito antes de começar a me envolver com a filha deles. Eles me
deram um nome novo e eu recomecei.
— Um nome novo?
— Na verdade. — Abri um sorriso pequeno. — Eu só mudei uma sílaba. Meu nome de
verdade era Luca. Passei a me chamar Lucas, e quando me casei com Tereza, tirei meu
sobrenome antigo e fiquei só com o Maldonado. Assim, apaguei de vez com qualquer chance dos
policiais um dia me encontrarem.
Ela acenou com a cabeça, pesando tudo o que contei.
— Por isso César tem tanta raiva de você? — ela perguntou. — Ele diz que você
usurpou o nome da família dele.
— Eu só peguei o nome. Nunca tomei a parte dele da herança. Seria o dono dessas
terras assinando ou não como um Maldonado.
— Ele sabe dessa história?
— Não. E jamais pode saber. Os únicos que sabem são Salazar e dona Margarida, que
foi quem primeiro me abrigou nessa cidade. Nem mesmo Diana sabe, e prefiro que continue
assim.
— Fique tranquilo. Eu nunca vou contar.
— César desconfia. É óbvio. Ele sabe que cheguei sozinho na cidade, mas quando
aconteceu, ele já não morava aqui. No início, Tereza me... — dizer o nome dela parecia cutucar
minhas feridas, mas por algum motivo a dor não pareceu dilacerar. — Tereza me chamava de
Luca. Era a única. Ela dizia que gostava da minha versão do passado. Cheguei aqui cheio de
esperança e ideias na cabeça. Queria recomeçar. Viver a vida que não tive com meus avós.
Provar que as merdas e a culpa que eu carregava pelos eventos do passado não seriam maiores
que as coisas que conquistaria. Por um tempo, acreditei que conseguiria isso. Até que...
— Lucas... — Gabriella tentou tocar meu braço, mas me afastei. Não queria piedade.
— O Lucas que ficou faria vergonha ao Luca do passado. Tão ou mais culpado que o
primeiro.
— Acho que você só tentou sobreviver — ela murmurou.
— Como você tem feito desde que chegou aqui — me voltei para ela. — É isso,
loirinha. Essa é a história de como cheguei aqui. Não escondi absolutamente nada. Agora, é sua
vez.
Ela titubeou. Me olhou desconfiada, como se ainda não confiasse para contar. Até que
se decidiu:
— Você fugiu de injustiças. Digamos que eu também.
— Desembucha, Gabriella. — Cruzei os braços, esperando que ela continuasse.
— Eu vi um homem ser morto, e agora os assassinos dele estão atrás de mim.
Paralisei alguns segundos, processando a informação.
Assassinos?
— O que você viu? — questionei com um sussurro.
— Um homem sozinho caminhando em uma rua à noite. Eu morava em um quarto
pequeno no andar de cima de um comércio. A rua estava vazia quando dois homens chegaram e
atiraram à queima-roupa. — Gabriella parou de me olhar, e agora só encarava as próprias mãos
enquanto dobrava meticulosamente as golas da minha camisa em seus punhos. — Deu para ver
tudo perfeitamente. O rosto deles... o sangue que se formou ao redor da vítima... Na hora eu não
consegui reagir, mas depois, quando tentei contar o que vi, fui ameaçada de morte por eles. —
Ela me olhou, e vi insegurança e vulnerabilidade ali. — Eles sabiam onde eu morava, e tentaram
incendiar meu apartamento. Jogaram uma bomba no comércio do andar de baixo e eu tive que
fugir, ou teriam me matado. Só tive tempo de ligar para meus padrinhos e pedir abrigo, pois
meus únicos parentes que moravam na cidade se recusaram a me ajudar.
— Você conhecia a vítima?
— Não. Não sabia nada sobre ele. Era um estranho andando na rua. No dia seguinte, os
boatos diziam que era um homem comum, sem envolvimento com o crime ou algo que
justificasse. — Gabriella tremia um pouco, mas era algo que talvez nem ela percebesse. — Eu
não sei o que eles queriam com aquela morte, e sequer conhecia aquelas pessoas. Meu único erro
foi ter visto tudo da minha janela e, depois, ter tentado fazer justiça.
— Esse é o grande erro. Buscar justiça onde não há.
— Não gostaria que aquela morte ficasse impune.
Soltei um riso de escárnio, pois eu entendia bem desse sentimento.
E ir atrás de justiça era a pior das decisões. Só que às vezes, era a única que restava.
— Você acredita que eles possam te encontrar? — perguntei para Gabriella. Agora, por
mais que algumas dores governassem meu peito, pela primeira vez tinha algo real para proteger.
— Não sei. — Ela olhou ao redor, como se a qualquer momento o sítio fosse invadido
pelos seus perseguidores. — Viajei por dias até chegar aqui. Pintei o cabelo, passei por várias
cidades... Acho que perderam meu rastro.
Observei sua cabeleira loira, tentando imaginá-la com outra coloração.
— E que cor é o seu cabelo?
— Mais ou menos da mesma cor dos olhos.
Marrom-claro feito uísque...
Eu realmente estava perdido com a loirinha.
Ouvimos o barulho de um carro adentrando o terreno do vale. Os cachorros não fizeram
muita algazarra, então sabia que era de algum conhecido. Gabriella levantou-se e parou à frente
da janela para espiar quem chegava.
— Meus padrinhos — ela informou, voltando para a cozinha e então me fitando. — Vou
subir para pegar meu vestido.
Observei a loirinha subir as escadas, saltando de dois em dois degraus. Minutos depois
ela voltava, agora com seu vestidinho miúdo e que mal escondia as coxas. Abriu um sorriso
safado e passou correndo por mim, já saindo em direção à porta.
Precisei de dois únicos passos para alcançá-la, puxando-a pelo braço e fazendo seu
corpo se chocar no meu. Alisei os cabelos pintados, segurando seu rosto com as mãos e fazendo-
a me encarar.
— Antes de sair, quero saber se aprendeu a lição.
— Que lição, cowboy? — Me olhou com carinha inocente.
— A de que esse corpo pequeno é só meu pelo tempo em que estiver aqui. — Desci a
mão por sua lombar, cheirando seu cangote e mordiscando o lóbulo da sua orelha. — Se te ver se
engraçando com César de novo, te trago para cá como fiz hoje. Só que dessa vez, vai amarrada
na boleia da caminhonete.
A safada gemeu, esfregando discretamente as pernas em mim e puxando meu rosto para
me fitar.
— Se quiser me ameaçar de verdade, vai ter que encontrar algo que me meta medo, e
não o contrário.
— Loirinha abusada...
Ela piscou e riu, afastando-se de mim e praticamente correndo em direção à porta,
enquanto dizia:
— Não quero que padrinho e madrinha se decepcionem comigo. Então já vou.
Ela sumiu, surgindo segundos depois em uma das janelas da varanda e me chamando:
— Lucas?
— Diz, diacho.
— É por isso que ele chama Juiz? — Ela apontava para o chão da varanda, e sei que se
referia ao cão de pelo todo negro e olhar meio assassino. — Descontou suas frustrações no pobre
do cão?
Não consegui evitar um sorriso.
— Juiz só é fiel a quem o alimenta. Por isso seu nome.
Gabriella sorriu. Um sorriso bonito em sua boca vermelha.
Meu peito sentiu algo estranho ao vê-la naquela janela, como se ela, do lado de fora,
fosse tudo o que eu estava perdendo na vida enquanto continuava ali, dentro daquele mausoléu.
— Acho que está enganado, Lucas — ela falou, chamando minha atenção. — Juiz não é
fiel só a quem o alimenta. Ele é fiel aos justos.
E sem dizer mais nada, ela se afastou, sumindo do meu campo de visão.
Me aproximei da janela para vê-la atravessar o pasto aos pulos, tendo cinco cães
seguindo-a de perto.
Até mesmo Juiz.
Talvez fosse isso.
Os animais sabiam reconhecer aqueles que tinham um coração puro. Que não
carregavam culpa ou sangue em suas mãos.
Por isso gostavam tanto de Gabriella.
Talvez por isso, Juiz não confiasse em mim.
Capítulo 27

Nada como uma concorrência para fazer o comércio se movimentar.


Lucas parou de me expulsar de suas terras, e só isso era um imenso avanço. Ao
contrário, passou a querer minha presença em seu sítio, quase sempre quando ele voltava dos
afazeres da cooperativa.
Ainda era como se eu que adentrasse o universo dele. Ele seguia atado à sua dor e,
provavelmente, ainda devia pensar na mulher, mas seus dias eram meus.
Sendo justa, Lucas quase não falava de Tereza. Parecia querer afogar as lembranças,
fosse em bebida ou em solidão.
O álcool, que sempre esteve presente nos dias em que o conheci, diminuiu
consideravelmente. Isso parece ter surpreendido toda a cidade, já acostumada com sua rotina de
porre e negação.
Eu ia todas as tardes à Sibipiruna. Estudava e lia muito. Nessas visitas, conversava com
Diana e ela sempre insinuava coisas sobre como “Lucas parecia mudado”, e sempre perguntando
o que havia entre nós dois. Eu não revelava detalhes. Não queria criar a imagem de um
relacionamento que sequer existia. Fui sincera ao dizer a Lucas certa vez que não cobraria dele
algo que, era evidente, ele não estava disposto a dar.
Jamais teria seu coração, e me contentaria com o corpo.
E que corpo.
Lucas era intenso e possessivo no sexo. Fazia questão de marcar.
Transávamos como loucos, debaixo das árvores, no galpão que abrigava seu carro ou
por vários cômodos do sobrado. Ele me enforcava, distribuía tapas e me deixava esgotada,
sempre com a sensação de que me impregnava com seu cheiro.
Lucas era intenso demais, eu sempre soube disso, e me dava dias inesquecíveis.
O ajudava com os cães e evitava ao máximo os assuntos que envolviam a falecida.
Nunca mais entrei no quarto do primeiro andar, já que ele não parecia ligar de me levar para sua
suíte, no patamar de cima.
Ainda assim, eu era como o uísque.
Sua distração mundana para as dores do passado.
Eu era seu novo vício e, vez ou outra, me pegava desejando ser mais.
Queria não ser só o álcool, mas a refeição completa que saciaria seu vazio e o
alimentaria no dia-a-dia.
Burra era eu por me julgar ter esse direito.
O que tínhamos era só sexo. Um sexo até meio inconsequente.
Nunca usávamos camisinha e aquele fato começou a me preocupar. Eu usava
anticoncepcionais desde os dezenove anos. Tive muitas espinhas inflamadas no rosto e, na falta
de um dermatologista na cidadezinha em que eu morava, a ginecologista me receitou uma pílula
que me protegeria da gravidez e também faria um controle hormonal. Funcionou e, por isso, me
permiti ser um pouco negligente com Lucas.
Acontece que em meus primeiros dias em Sibipiruna eu mal tinha dinheiro para me
alimentar, então passei um período sem o remédio. Não sei se as coisas estavam controladas,
então, assim que recebi um dinheiro de meus padrinhos como uma espécie de presente, comentei
que usaria para uma consulta ao ginecologista.
Minha madrinha fechou o cenho e resolveu que eu não precisaria gastar meu dinheiro
com aquilo. Ela mesma me levaria em um médico na outra cidade. Era ruim depender
financeiramente deles até para uma consulta, mas eu não poderia dar meus documentos para
trabalhar em qualquer lugar.
Então, numa manhã meio chuvosa, ela me levou a Coralina.
Enquanto esperávamos pela consulta, me perguntou sem muitos rodeios:
— Tem chances de você estar grávida?
Engoli em seco, remoendo as mãos.
— Eu tomo a pílula, madrinha.
— Gabriella...
— Mas tem sim. Embora eu ache que não estou, já que menstruei recentemente. Eu só...
— Quer tirar a pulga atrás da orelha.
— Isso. — Dei uma risada sem graça.
— Gabriella... — ela começou a dizer com carinho. — O senhor Maldonado é um
homem correto e que sempre nos tratou bem, apesar do jeito fechado e sério. — Me voltei para
ela, que prosseguiu: — Respeitamos o Lucas e podemos dizer que, durante esse tempo em que
somos vizinhos, nunca o vimos fazer nada que o condenasse. Nem mulher ele leva para aquele
sítio.
Permaneci calada, embora em meu íntimo eu comemorasse saber aquilo. Ao menos eu
não era mais uma de uma lista extensa.
— Ainda assim — Sofia continuava. — Não acho que seja bom para você se aproximar
dele.
— Madrinha...
— Lucas carrega muita dor. Não está aberto a ser companheiro de outras pessoas,
sequer ser amigo. Você já tem seus próprios problemas, Gabriella, para ter que lidar com os de
outro.
— Eu sei que ele tem problemas. Sei também que ele não quer nada sério, pois vive na
sua solidão. Eu estou nessa ciente.
— Então se proteja mais. Corpo. — Apontou para a porta que levava ao consultório do
médico, deixando claro que eu deveria me prevenir de algo indesejado. — E também o coração.
— Agora, ela apontava para mim.
— Pode deixar, madrinha.
Olhei para minhas próprias mãos, incomodada.
Eu protegeria meu corpo. Estava ali para isso.
O problema era o coração.

A consulta me tranquilizou.
Sem sinais de gravidez, como eu já suspeitava, e a orientação de permanecer com o
mesmo anticoncepcional, que já tinha uma dosagem suficiente.
Comprei novas cartelas com o dinheiro que madrinha me deu e voltamos para o sítio.
Ao chegarmos, Lucas conversava na varanda com meu padrinho.
Ele nunca atravessava os limites da cerca, mas naquele dia parecia ter assuntos com os
Siqueira sobre as terras arrendadas.
Percebi seu olhar queimar meu corpo enquanto eu passava, seguindo direto para o
interior da casa. Fui ajudar madrinha com o preparo do almoço enquanto os homens
conversavam, e a voz rouca e potente de Lucas era o suficiente para pesar minha calcinha
enquanto eu cortava os legumes.
Estava distraída na cozinha, ouvindo partes do que era conversado lá fora. Sofia saiu
para pegar alguns temperos na horta e eu fiquei sozinha lá dentro quando uma chamada no
noticiário da TV atraiu minha atenção:
“A polícia ainda não tem pistas dos assassinos de Jesus Silva Dias, morto há cerca de
dois meses em Dom Cervantes.”
Houve um corte na imagem para uma rua pequena e com poucas casas, e meu coração
parou de bater.
Eles falavam do crime que presenciei!
“Ele foi encontrado morto com dois tiros na cabeça e outros três no peito. A suspeita
inicial era de que foi um latrocínio, já que Jesus teve a carteira levada, mas a forma como ele foi
morto levou a polícia a levantar a hipótese de execução.”
Houve mais um corte na tela, e agora quem falava era o delegado, o mesmo que
procurei no dia seguinte e não tive a oportunidade de contar o que sabia. O policial começou a
dizer para o repórter:
“Foram tiros em regiões vitais e em um número considerável. Jesus não tinha passagens
na polícia ou desafetos. Por isso, toda informação que alguém puder nos passar será relevante.”
Meu coração não batia.
Eu não respirava.
Pois atrás do delegado que pedia informações sobre o caso, estavam os dois assassinos
de Jesus. Parados e olhando para a câmera enquanto empunhavam metralhadoras.
Para qualquer outra pessoa, eram só os policiais da delegacia aparecendo ao fundo.
Para mim, era como se dissessem:
“Apareça, e vamos te metralhar como fizemos com ele.”
Um deles — o que tinha uma tatuagem no pescoço — fixou os olhos na tela e pareceu
me enxergar.
Eu gritei assustada, deixando o prato que levava nas mãos cair.
A porcelana espatifou-se em mil pedaços, provocando um ruído alto na cozinha e
chamando a atenção de todos.
— Gabriella, o que foi? — Padrinho José entrou assustado e correu para me ajudar.
Atrás dele, um Lucas com olhos arregalados e um tom meio preocupado parava no portal, meio
indeciso se deveria entrar ou não.
— E-eu... — gaguejei, olhando mais uma vez para a TV, que agora mostrava a falta
d’água em alguma região do estado. Minhas mãos tremiam, minhas pernas eram gelatina, e
deixei meu corpo cair trêmulo na banqueta ao lado. — O prato estava molhado e escorregou das
minhas mãos.
— Você está branca, menina. — José me olhava com atenção.
— Me desculpa, padrinho. — Apontei a bagunça no chão. — Pode deixar que eu limpo.
— Fique aí.
Ele fez um sinal para eu continuar quieta. Do canto da sala, notei Lucas me observando
atentamente. Uma ruga gigantesca na testa, como se conseguisse enxergar minha pequena
mentira. Madrinha Sofia chegou esbaforida com o barulho e meu padrinho contou brevemente
para ela, que também começou a juntar os cacos do prato.
Meu coração continuava acelerado. Não pela louça, mas pelo que vi na TV. Os olhos
daquele policial eram de quem não pensaria duas vezes antes de me matar.
Eu nunca mais teria sossego na vida.
— Tudo bem, loirinha? — Lucas estava ao meu lado, e falou de uma maneira que me
aconchegou. Se eu não soubesse que dentro do seu peito só cabia dor, poderia jurar que havia
certa preocupação comigo.
— Es-estou bem.
— Vou pegar uma água para você — Sofia falou de repente, enchendo um copo para
mim.
Enquanto eu bebia, me acalmava um pouco mais.
Eles jamais me encontrariam em Sibipiruna. Ao menos agora eu sabia que continuavam
em Dom Cervantes.
Respirei fundo, controlando o disparo no peito, enquanto meus padrinhos limpavam a
bagunça que fiz. Lucas ainda me olhava com atenção, e decidi mudar o foco dele fazendo o
pedido mais descabido de todos:
— Por que não almoça com a gente?
Lucas parou, como se não tivesse entendido bem, e vi que meus padrinhos também
pararam o que faziam para nos observar. Foi madrinha Sofia quem decidiu-se:
— Isso, senhor Maldonado. Almoce com a gente.
— Não, eu... — Lucas começou a negar.
— A comida é simples, talvez não esteja acostumado, mas a madrinha faz o melhor
frango caipira que já provei.
— Não é isso. Eu não ligo para comida, é que... — Ele bufou, pois percebeu que estava
sem saída. Seria desfeita recusar. O vi me fitar alguns segundos. Seu olhar percorreu meu rosto,
como se quisesse entender o que havia acontecido comigo, e então ele se decidiu: — Certo. Eu
almoço. — Virou-se para minha madrinha. — Obrigada pelo convite, dona Sofia.
Cerrei os olhos, cruzando os braços para ele, que me ignorou. Dona Sofia sorriu
pequeno e o convidou para sentar-se no sofá da sala com José para que terminassem de falar
sobre as terras. Algum tempo passou e tentei me esquecer do que vi na TV.
Almoçamos sob um silêncio constrangedor grande parte do tempo. Lucas não era de
muitas palavras, e meus padrinhos mais observavam do que diziam qualquer coisa.
Resolvi que era meu papel melhorar o clima.
— O homem que foi preso na usina ainda está na cadeia? — perguntei.
Lucas parou alguns segundos. Sei que sua boca queria me xingar pela curiosidade, mas
ele se segurou. Olhou para meus padrinhos e contou:
— Sim. O delegado disse que provavelmente vai ser solto pelo juiz, já que não temos
muita coisa além das invasões. Ele não revelou quem são os seus comparsas, e Antenor não me
deu detalhes da investigação.
Concordei, remexendo o frango no meu prato e comentando:
— Tomara que todos tenham sido presos até a festa da colheita. Tenho notado que as
estradas estão mais movimentadas. Quando cheguei, quase não via aqueles caminhões.
— É a época — ele falou, agora sem qualquer reserva. Só estávamos conversando
naturalmente. — Estamos em plena safra, e a colheita seguirá nas próximas semanas.
— Como é a festa? — perguntei. Há dias falavam dessa tal festa da colheita da cana e
eu estava ansiosa para participar.
— É... — Lucas deixou um sorriso pequeno escapar, e todos na mesa notamos. A festa
parecia lhe trazer boas lembranças. — É muito boa. Fecham todas as ruas ao redor da praça da
igreja e montam ranchões com música e comida. Algumas fazendas também fazem seu próprio
rancho, nos sítios. Tem bingo, leilão, rifas e costumam fazer melaço da cana e rapadura todos os
dias.
Minha mente criou imagens com dezenas de pessoas reunidas ao redor de tachos
fumegantes, e a cena me animou.
— Parece legal — falei. — Mal posso esperar para ir todos os dias.
Lucas me olhou. De um jeito meio indecifrável, como se enxergasse coisas que não
existiam na superfície. Seus olhos escuros se perderam em meu rosto por um longo tempo e
então ele levantou-se de repente.
— Eu... preciso ir. — Olhou para a porta, como se quisesse fugir da casa dos meus
padrinhos. — Agradeço pela comida, dona Sofia. Estava uma delícia.
Ele tinha limpado o prato, então não era mentira.
— Semana que vem vamos fazer uma pamonhada para comemorar nossa safra de milho
— meu padrinho começou a dizer, levantando-se atrás do viúvo. — Suas terras são abençoadas,
senhor Maldonado. Nunca colhemos um milho tão granado como o desse ano.
— Abençoadas... — Lucas repetiu com certa ironia, como se não concordasse com
aquele adjetivo. Parou no meio do caminho e voltou-se para José, dizendo: — Agradeço o
convite, senhor José, mas acredito que não possa comparecer. — Fez uma reverência breve e se
despediu: — Boa tarde.
Parei tudo o que eu fazia e me ergui da cadeira, avisando aos meus padrinhos:
— Eu vou atrás dele. Já volto.
Alcancei Lucas no meio do pasto. Ele andava apressado, e era difícil competir com as
pernas imensas que seguiam rumo ao terreno vizinho.
— Vai mais devagar, cowboy! — gritei. — Não consigo te alcançar.
— E não é para alcançar, loirinha. — Ele só parecia sério demais.
— O que foi, Lucas? — Praticamente corri para alcançá-lo, até que ele percebeu que eu
estava quase sem ar e finalmente parou, esperando eu me postar à sua frente e insistir por uma
resposta: — Por que saiu daquele jeito?
— Eu não quero incomodar. — E coçou a nuca, como se algo o incomodasse.
— Sabe que não incomoda.
— Seus padrinhos nunca tinham me chamado para almoçar. Só fizeram porque você foi
atrevida e fez o convite.
— Eles nunca fizeram o convite porque você nunca deu abertura. Tenho certeza que já
teriam te convidado se fosse menos arisco.
— Gabriella...
— Lucas, deixa eu te explicar uma coisa. — Parei a mão no alto, fazendo-o calar. —
Não me interessa quem você foi e o que você fez. É nosso vizinho. Passa os dias sozinho
naquele... naquele lugar que mais parece um chiqueiro. Come mal que eu sei. Vi sua dispensa
quase vazia no dia que Perverso se feriu. Eu só quis que você comesse algo de verdade uma vez.
Que fizesse uma refeição acompanhado. Oferecer um prato de comida não deveria ser uma
ofensa para você.
— E não é, Gabriella. — Ele estava sério. Os olhos negros ressaltados pelas grossas
sobrancelhas quase juntas de tanta seriedade. — Só não posso deixar vocês...
— Nós o que?
Seu olhar pareceu meio perdido quando desviou-se de mim e fitou o vale. Demorou até
que ele enfim falasse:
— Foi a primeira vez que almocei com alguém em quatro anos.
Engoli em seco, permanecendo calada e percebendo como aquela simples refeição
parece ter atingido suas feridas.
— A comida estava uma delícia, Gabriella. — Ele se voltou para mim. — Mas será que
eu a mereço?
Fixei meu olhar no dele querendo, com meu silêncio, lhe dar aquela resposta.
É claro que ele merecia. Com tanta dor e ausência de vida nos olhos, mais parecia um
faminto naquele momento.
Faminto de uma refeição saborosa.
Faminto de vida.
Faminto de redenção.
Com cuidado, toquei seu braço.
Meus dedos queimavam, e o toque com a pele marcada de sol e com pelos grossos
endossando os braços me deu tesão.
Mas também deu aconchego.
Sem dizer qualquer palavra, Lucas também me tocou. Sua mão gigantesca parou em
meus ombros, subiu pela lateral da garganta, e parou na bagunça dos meus cabelos. Ele alisou
uma mecha com um cuidado que nada combinava com seu jeito bronco e sério, e então
murmurou:
— Você vai ser minha ruína, loirinha.
— Ou talvez eu seja sua redenção.
Ele não sorriu. Também não se afastou. Só seguiu acariciando meus cabelos, como se
precisasse daquilo.
Nunca vi seu olhar assim sobre mim. De um jeito que aquecia, e não de tesão.
De um jeito que me enchia, e não de desejo.
Era o olhar que eu daria a vida para receber todos os dias, pois me tornava mais viva do
que já imaginei ser capaz.
Meu coração disparado deveria ser indício para eu me afastar, mas nem prudência, nem
precaução faziam parte de mim.
Nunca fizeram.
E ali, sob aquele olhar que em nada se parecia com o buraco negro e morto que vi na
primeira vez que mirei seu rosto, eu sentia esperança.
E... merda...
Como eu gostava da esperança.
— Se afasta enquanto é tempo, loirinha. Eu não tenho redenção — ele murmurou bem
baixinho, com sua voz reverberando em cada poro meu.
Neguei com a cabeça. Achei que já tínhamos passado aquela fase de negação.
— Fui no médico hoje — anunciei de repente. — Ginecologista.
Senti sua mão em meus cabelos paralisar e ele ficou lívido.
— O que você foi ver? — me perguntou com evidente receio.
— Precisava fazer uma consulta. — Minhas mãos ainda estavam em seu braço forte, e
alisei os pelos com descuido. — Você sabe... Não usamos proteção, e...
— Você está grávida? — ele quase gritou, soltando meu rosto imediatamente e
recuando um passo.
— Não. — Comecei a rir. — Eu tomo remédios. Você nunca perguntou, mas sempre
tomei a pílula. Acontece que quando cheguei aqui passei um tempo sem tomar, então quis
confirmar se estava... tudo certo.
— E está? — Ainda havia uma sombra de desconfiança em seus olhos.
— Sim, está. Fiz os exames e estou saudável. — Parei alguns segundos, observando-o.
— Preciso te fazer uma pergunta, cowboy: desde que o conheci, esteve com outras mulheres?
— Não. — Ele voltou a passar a mão por meus cabelos. — Fica tranquila, loirinha.
Desde que fiquei viúvo, fiquei com poucas mulheres. E em todas as vezes, usei camisinha. —
Ele deu de ombros. — Era a exigência do lugar.
— Garotas de programa?
— Eu nem lembro, Gabriella. — Parecia sincero e extenuado ao dizer. — Eu só
descarregava o corpo de maneira mecânica. Não guardei o nome ou rosto de nenhuma delas.
— Nossa... — Virei meu rosto para esconder o incômodo que eu sentia com os rumos
daquela conversa. De repente, me senti mais uma que era usada para descarregar suas dores e
que em dois meses seria esquecida. — É assim que faz comigo?
Lucas ficou em silêncio.
Seus olhos esquadrinhando minhas reações enquanto eu tentava não cair naquela espiral
de autopiedade.
Sempre disse a Lucas que não me importava em ser usada.
Por que isso parecia me incomodar agora?
— Loirinha... — ele tentou dizer, mas não deixei que prosseguisse. Previ que iria me
ferir mais.
— Só diz que vem na pamonhada — mudei de assunto. — Virão todos os peões que
ajudaram na safra desse ano, além de alguns vizinhos. Meus padrinhos chamaram dona
Margarida, Salazar e Diana.
— Não acho boa ideia.
— Para de se afastar de todos, Lucas — sussurrei. Seus dedos grossos em meus cabelos
eram bons, mas seu olhar atingia minha alma.
Que todo aquele calor que eu via fosse real!
— Você não entende, Gabriella. As pessoas desse lugar me odeiam.
— Elas não te odeiam, Lucas. Elas só estão cansadas de tentar te trazer de volta.
— Se você soubesse... — Sua voz saiu rouca.
— Se eu soubesse o que?
Como se eu o atacasse com dardos, ele afastou-se, bagunçando os cabelos e batendo as
botas no pasto. Seu olhar perdeu-se no horizonte antes de se voltar para mim e simplesmente
jogar:
— Às vezes eu odeio o que você causa em mim.
Foi como um coice de cavalo.
Meu estômago retorceu.
Ele me olhou. Daquela maneira confusa e cheia de dor e angústia. Parecia ter coisa além
do que era capaz de dizer ou suportar.
E por isso, deixava vazar aquilo que o machucava.
E feria os outros.
Ainda me fitando, ele deu alguns passos de ré antes de virar-se de costas e sair, me
deixando sozinha.
Ali, no meio do pasto, o vi caminhar até seu sítio, alisando meus próprios cabelos e
sentindo o aroma bom de couro e mato que ele tinha, e que deixou grudado em minha pele.
Ainda sentia a dormência do toque grosso da pele machucada, e meu peito parecia um cavalo em
disparada.
— Às vezes eu também odeio o que você me causa, Lucas — murmurei para o homem
que era recebido pelos cães do seu lado da cerca. — Estamos quites nessa.
Capítulo 28

Já passou pela experiência horrível que é se afogar?


A água que invade seu corpo sem que você peça não é doce como a água que você bebe
em um momento de sede.
Ela queima.
E dói.
Isso era se afogar.
De qualquer coisa.
Um pouco de dor é bom.
Dor demais sufoca.
Culpa é essencial para a ética humana.
Culpa demais mata.
Desejo é feito para ser saciado.
Só que o desejo desmedido te tira os sentidos.
Minha primeira refeição com alguém em anos e eu sentia tudo me sufocar.
Pequeninas frações de uma felicidade que enterrei junto do corpo de Tereza ressurgiam
pouco a pouco em meus dias.
A comida era deliciosa.
As pessoas ao redor da mesa eram simpáticas e falavam de assuntos que me
interessavam.
Não havia a bebida para me amortecer ou me enganar e aquilo, pela primeira vez, me
pareceu bom.
A vida seguia, e eu me dava conta que passei os últimos quatro anos no mesmo lugar.
Quantas pamonhadas eu perdi no sítio ao lado?
Quando foi a última vez que estive na festa da cana?
Quantas refeições perdi?
Parecia que eu tinha sido enterrado junto de minha mulher.
Quem de fato tomou aquele tiro?
Tereza, ou eu?
Desejar coisas, pessoas...
Me preocupar com elas...
Quando deixei de fazer tudo isso?
Gabriella foi sozinha a um médico. Em meu desespero para ter dela algo além da dor
que me encobria, abri mão das precauções. Sequer me preocupei com a jovem.
Agora, era como se minha consciência desse sinais de despertar.
Era isso que a loirinha causava às vezes.
Ela tirava meu raciocínio, mas também dava lucidez.
E eu odiava estar lúcido.
Odiava ter a consciência do que ia em meu peito quando tocava os cabelos amarelos ou
cheirava a pele com aroma de melaço.
Eu sabia exatamente o que estava sentindo por Gabriella, e temia por aquela sensação.
Porque eu não podia voltar a amar alguém.
Depois do almoço com os Siqueira, peguei meu carro e fui até a cooperativa.
A safra seria uma das melhores dos últimos anos. A usina de álcool da cidade vizinha
talvez não suportasse toda a produção da região, e Salazar estava com todas as pedras na mão
quando veio falar comigo no pátio de acesso dos caminhões aos galpões.
— Está sabendo, né? — Ele nem me cumprimentou. Já foi logo metralhando. — Vamos
perder parte da safra por falta de usina.
— Não vamos perder — falei, passando por ele e indo na direção do prédio capenga que
usávamos para reuniões e outras coisas. — Vou entrar em contato com alguns conhecidos e
negociar alguns caminhões nas usinas deles.
— Vamos ter que pagar o transporte. Isso diminui o ganho.
— Melhor do que deixar a cana secar na lavoura.
— Se você reativasse a usina...
— Agora não, Salazar — pedi, tentando me lembrar das palavras de Gabriella. As
pessoas não me odiavam. Elas só estavam cansadas de tentar me salvar. Suspirei e tentei
recomeçar de uma maneira menos agressiva: — Eu não gosto de entrar lá, todo mundo sabe.
Tem as memórias do dia que atiraram em Tereza, e... Não consigo.
— Tudo bem, Lucas. — Salazar não pareceu ofendido com minhas palavras. Tocou meu
ombro e o apertou. — Diana costuma dizer que temos que enfrentar nossos medos, e penso que
você deveria ao menos tentar.
— Ainda não, Salazar.
— E se um dia quiser se desfazer da usina, tudo bem também. Nós entendemos, Lucas.
Gostaria que soubesse disso.
“Nós entendemos.”
Suspirei, fazendo um aceno de cabeça e tentando não me afetar pela maneira como
aquilo me parecia com algo que não fosse “ódio”.
— Gostaria de falar com você, Salazar. — Parei alguns segundos, tentando não mostrar
meu gigantesco interesse no assunto. — Sobre a loi... Gabriella.
— A afilhada dos Siqueira? — Ele abaixou o tom de voz, me escrutinando com seus
olhos astutos.
— Isso. — Arranhei a garganta. — Ela... ela tem visitado a escola. Diana te contou?
— Sim. Diz que Gabriella passa horas estudando e lendo no computador.
Concordei. A loirinha adorava ler e aprender coisas novas. Era um pecado que se
afundasse naquele vale, escondendo-se para sempre de assassinos.
— Pensei em você chamá-la para a prefeitura — despejei logo tudo de uma vez.
Salazar me olhou de um jeito estranho. Suas sobrancelhas se juntaram e ele abriu um
sorrisinho meio irritante antes de murmurar bem baixo:
— Pensou?
— É. — Troquei o peso das pernas, ajeitando o cinto da calça. — Ela pode te ajudar no
seu gabinete. Veio de outra cidade sem um centavo no bolso, e os Siqueira se recusam a mandá-
la pro campo. Dizem que ela não nasceu praquela lida, e eu concordo. — Deixei escapar um
sorriso atravessado. — A loirinha gosta de conversar e estudar, e mal dá dois passos no pasto
sem tropeçar num cupinzeiro. Mesmo assim, é ruim que dependa dos padrinhos para tudo, até ir
num médico. Seria bom que ela tivesse uma independência.
Foram de cinco a seis segundos de análise minuciosa de Salazar antes dele me
responder:
— Diana já me disse o mesmo. Ela simpatizou com a moça, assim como minha mãe. As
duas dizem que ela seria de grande ajuda no gabinete, mas não posso contratá-la.
— Não?
— Ela não tem os documentos. Disse a Diana que foi roubada no ônibus no caminho
para cá e nunca mais tirou os novos.
— Ah... — Tive que disfarçar para manter a mentira de Gabriella. — Verdade. Ela
comentou certa vez.
— Tem conversado com ela? — Salazar foi direto. Me limitei a encará-lo de volta.
Achei que o circo que causei aquele dia na praça carregando-a nos ombros fosse o suficiente. —
Certo — Salazar continuou. — Eu estou mesmo precisando de alguém no meu gabinete. Minha
secretária vai se mudar de Sibipiruna, e é difícil encontrar pessoas dispostas aqui. — O vice-
prefeito colocou as mãos no bolso da calça e pensou por um momento. — Ela tem que tirar os
documentos. Não posso contratar sem isso.
— Eu vou dar um jeito — murmurei, sabendo exatamente o que fazer.
Salazar ficou um pouco sério, me fitando com desconfiança.
— É muito bom ver você sair do luto, Lucas. Agir e se preocupar com alguém.
— Não é preocupação — resmunguei.
— Claro que não é. — Salazar riu e deu de ombros. — Sair com a pessoa carregada nos
ombros em praça pública e depois ajudá-la a arrumar um emprego são coisas que a gente faz só
para quem odeia — ironizou, saindo sem olhar para trás.

Encontrei a loirinha brincando com os cães quando cheguei. Sombra foi o único que
correu para me receber, enquanto os outros quatro seguiam enroscados nas pernas dela, que
estava estirada na varanda do meu casarão.
— Perverso hoje tentou pegar um tatu que encontrou no mato — ela dizia enquanto
alisava os pelos marrons do cão sem princípios. — Nem parece que quase morreu depois de
enfrentar um porco-espinho.
— Ele nunca aprende — murmurei me aproximando dela e recebendo uma lambida
amistosa de Trovão em uma das mãos.
Deixei o chapéu em cima da cadeira de balanço ao canto da varanda e levei as duas
mãos no bolso, observando o corpo pequeno da loirinha sendo rodeado por meus cães.
Ela usava uma bermudinha jeans cheia de rasgos e uma camiseta folgada. Os cabelos
estavam presos em um coque frouxo, e de seu pescoço exalava o cheiro que vinha substituindo o
Jack Daniels que eu bebia sempre ao fim de um dia.
Me escorei na pilastra da varanda, vendo-a erguer-se do chão e se aproximar. Agarrei
sua cintura e a puxei, colocando-a entre minhas pernas. Antes que a atrevida tivesse tempo de
reagir, dei um beijo no topo da sua cabeça, que era o ponto mais próximo em que eu conseguia
tocar. Cheirei os cabelos pintados e os esfreguei entre os dedos, esperando-a falar:
— O que deu em você, cowboy? Todo carinhoso...
— Nada, mulher. Só quero te sentir.
Minha mão apertou a cintura dela, passando os dedos por dentro da camiseta folgada e
acariciando a carne macia. Gabriella afundou o rosto em meu peito e gostei daquela sensação,
assim como tinha gostado de chegar em casa e encontrá-la ocupando o lugar.
Como se fosse a dona.
— Conversei com Salazar — comecei a dizer. — Ele disse que consegue um emprego
para você na prefeitura, mas precisa tirar os documentos.
Ela afastou o rosto de mim e me encarou, parecendo alarmada.
— Não posso passar meus documentos, Lucas. Você sabe disso.
— Te encontrariam?
— É bem provável que sim.
— Gabriella é mesmo seu nome?
— Sim. — Ela riu meio travessa e me vi sorrindo junto. — Não tinha como eu mentir
para meus padrinhos o meu nome, e também não quis preocupá-los contando o que tinha
acontecido.
— Eles ainda não sabem?
— Contei no dia que você tentou me expulsar daqui. — Seu olhar foi acusador em mim.
— Bom — desconversei —, isso não interessa. Precisamos então mudar seu sobrenome
para que possa trabalhar.
— E pode fazer isso?
— Conheço quem possa. O mesmo que me fez deixar de ser Luca e passar a ser Lucas
quando cheguei aqui.
— Falsificador?
— Como ele mesmo diz: “Um quebra-galho para situações inesperadas”. Só assim vai
poder voltar a estudar e trabalhar. Pode se matricular em algum curso online da escola e fazer
faculdade na cidade vizinha.
— Eu... — Gabriella pesou por alguns segundos o que queria dizer. — Nem sei como
vai estar minha vida daqui uns seis meses. Gosto daqui, Lucas, mas não sei se vai chegar o dia
em que dormirei com a certeza de não precisar mais fugir. Por enquanto, é como se a qualquer
momento eu precisasse correr daqui para outro lugar.
— Enquanto estiver nesse vale, vai estar segura. — Apertei sua cintura um pouco mais,
puxando-a de novo para dentro dos meus braços. É como se eu quisesse protegê-la de tudo. —
Não vou deixar ninguém te achar.
Gabriella levantou os olhos até mirar meu rosto. Vi uma doçura que não lhe era
costumeira. A loirinha era abusada, travessa e afoita. Nunca, um doce.
— Que foi? — perguntei. Meio viciados, meus dedos desceram até a garganta de pele
alva, acariciando a região com a ponta do polegar.
— Prefiro quando você é indiferente e chucro, Lucas. — Sua mão quente e macia
acalentou minha barba. — É mais fácil cumprir as promessas que fiz a você.
Porque aquele toque delicado também me agitava, resolvi voltar para o campo em que
nos sentíamos mais à vontade. Abri a palma da mão em seu pescoço e o encobri quase todo, ao
mesmo tempo em que dava um tapa estralado em sua bunda com a outra mão.
Gabriella gemeu, assumindo a postura lasciva de sempre e empinando mais o traseiro,
onde desci novo tapa.
— Prefere assim? — perguntei, apreciando a maravilha que era ver meus dedos ao redor
do seu pescoço.
— Do que gosta mais? — ela inquiriu com safadeza. — De apertar o pescoço ou de
bater?
Um sorriso babaca surgiu em meu rosto. Algo que não ocorria há anos. Resolvi entrar
na brincadeira dela:
— Não sei. Depende do que faz você gozar mais rápido.
— E você se importa de eu gozar? Achei que fosse tudo só para satisfazer suas
vontades, e você não se importava com mais ninguém.
Esperta...
Me pegou no pulo.
— Ver você gozar é meu prazer, loirinha — sussurrei, descendo os lábios até o canto
exposto de seu pescoço. Raspei a barba na pele delicada e então soprei em seus ouvidos: — E
ainda não criaram visão melhor do que você toda marcada, tremendo de tesão, e com minha
porra escorrendo entre as pernas.
— Lucas...
— Gemendo feito bicho, como fez agora. — Voltei a beijar o pescoço. — É pelo meu
prazer, loirinha. Meu prazer de te ver assim. — Minha mão que estapeava sua bunda passou para
a frente do short, esfregando-se no tecido quente. — Molhada.
Cobri sua boca com a minha.
Um beijo demorado e que tirava o ar. Fazia todo o resto se apagar e, como uma cura, me
tirava a dor.
Eu sequer me lembrava da angústia que carregava quando a tinha nos braços. E por isso,
ela era meu novo vício.
Minha língua varria sua boca com toda vontade que eu tinha. Salivas eram trocadas
enquanto seus lábios quentes me curavam e eu sequer percebia.
Arrastei a loirinha para dentro do casarão aos beijos, arrancando as botas no meio do
caminho, enquanto marcava sua boca na minha.
Ela me parou em uma das paredes da sala. Me puxou com as duas mãos, tomando minha
boca toda para si. Agarrei seus cabelos. Baguncei tudo.
Nos entrelaçamos no meio da sala.
Roupas eram jogadas para todos os lados, e eu só sentia meu coração bater disparado.
Era tesão. Um tesão descomunal.
Mas não era só isso.
Só me negava a aceitar.
A beijei, puxei seus cabelos e a tomei para mim. Joguei o corpo atrevido e tentador
sobre o sofá e a penetrei ali.
Seco e intenso, como o uísque.
Embriagado de prazer por ela.
Indo e vindo de um jeito que tonteava.
Gabriella gemia e pedia por mais.
O sofá batia na parede, e então estralava.
Agarrei seu pescoço e apertei. Senti os nós dos dedos se afundarem na carne macia. A
pulsação delicada tocando em minha pele. Os olhos cor de bebida arregalados em mim,
confiando em minhas mãos como ninguém antes pareceu confiar.
Gabriella confiava a vida a mim, como um dia Tereza também confiou.
O pensamento me fez travar um instante, e a loirinha percebeu.
Sem desfazer o olhar de pantera, ela tocou meus braços. Afastei minhas mãos de seu
pescoço e ela retirou meu pau de dentro de si. Cerrou os olhos de uma maneira que insinuava
tudo de mais indecente no mundo e então escorregou no chão, ficando ajoelhada à minha frente.
O toque dos lábios vermelhos na glande ainda lubrificada pela boceta estava entre uma
das coisas que eu jamais esqueceria.
Gemi, levando a mão na sua nuca e encaixando-a melhor. Gabriella abriu mais a boca e
então começou a me chupar de uma maneira que fez todos os lampejos de culpa e dor
evaporarem.
Levei a outra mão aos seus cabelos, afastando-os de seu rosto e ajustando o ritmo dos
seus movimentos. Gabriella resmungou, e eu a puxei mais firme, fazendo sua boca me engolir de
uma vez, até quase sentir sua garganta.
Ela arfou e pareceu engolir um pouco de ar, mas manteve-se firme. Baba escorria entre
os dentes, e eu voltei a mover sua cabeça, iniciando um vai-e-vem que fazia minhas bolas quase
baterem em seu rosto.
Gabriella choramingou e eu fui mais rápido, dando um tapa em seu rosto e fazendo-a
gemer.
— Abre a boca, loirinha. Mama gostoso nesse pau que agorinha ele vai gozar dentro de
você.
Vi um brilho diferente em seus olhos e desferi outro tapa, fazendo-a gemer de prazer.
Fodi sua boca com vontade, sentindo os lábios carnudos excitarem toda minha extensão. Da base
do pênis à ponta da glande, tudo era sensível demais com aqueles dentes roçando entre as veias.
Gemi quando o desejo tornou-se insuportável e a agarrei pelo pescoço. Gabriella
engasgou de susto e a puxei para cima, deitando-a no chão mesmo, já que não conseguia esperar.
Mais uma vez a penetrei e, ao começar a estocar, senti as forças irem junto da dor.
Eu arrancava o ar de Gabriella com a mão que a enforcava, mas era ela quem me tirava
a consciência.
Minha mente era puro caos, mas em seu corpo eu parecia reencontrar a ordem.
Era confuso, pois desde que Gabriella chegou, tudo o que fez foi bagunçar minha vida.
Só que, o que eu ainda não sabia, mas meu corpo já me preparava, é que sempre que eu
transava com ela;
Sempre que a enforcava;
Sempre que extenuava seu corpo com tapas e mordidas de posse;
Sempre que gozava ou fazia-a gozar...
Ela tomava posse de mim.
Capítulo 29

Ainda demoraria alguns dias para que Lucas conseguisse meus documentos junto do tal
falsificador. Enquanto isso, eu seguia minha rotina de sempre, indo à Sibipiruna para me distrair
e estudar nos computadores, e depois invadindo as terras do sítio vizinho.
Seria mais fácil se o viúvo fizesse uma porteira entre os dois sítios, mas ele parecia
querer manter a aparência de solitário e inacessível, ainda que isso não fosse mais uma verdade
tão absoluta e estivesse a olhos vistos para todos.
Diana percebia, Salazar percebia... Até mesmo as senhoras da igreja percebiam.
Lucas não visitava mais o bar com o único intuito de beber, e dedicava mais tempo à
cooperativa, afinal, a safra era uma das maiores dos últimos anos.
Nunca perguntava sobre sua esposa, e ele jamais citava o nome dela. Ainda assim, eu
sentia que algo pairava entre nós. Só poderia ser o amor que ele ainda sentia pela mulher.
Nenhum outro sentimento seria tão poderoso para perdurar por tanto tempo.
De toda forma, eu via um homem diferente do que conheci na estrada, naquela noite
chuvosa e cheia de inseguranças. Por vezes, conseguia convencê-lo a almoçar comigo e os
padrinhos, e via uma versão sua que valeria a pena partilhar a vida.
Era justo com os fazendeiros da região, negociando a safra de maneira que todos
ganhassem;
Se mostrava sociável e negociador, conseguindo que outras cidades recebessem a cana
excedente da lavoura do ano;
Chegava a ser simpático quando me levava cajus ou conversava com meu padrinho
sobre a plantação de milho e o alto preço das sementes;
Continuava o mesmo homem sedutor, com sua voz grossa e seu porte gigantesco. As
mãos calejadas da terra e o cheiro embriagador de couro e mato.
Eu me apaixonaria por aquele homem todos os dias de minha vida.
Talvez... eu já estivesse levemente apaixonada.
Não consegui convencer Lucas a participar da pamonhada, mas levei algumas para ele
ao final do dia dentro de uma vasilha e envoltas em um pano de prato. Estavam fumegantes e
exalavam um aroma tão bom e delicioso que quase comi mais uma no caminho do rancho até o
sítio.
Como a pamonhada era um evento que reunia muita gente, meus padrinhos sempre
montavam uma tenda — que costumavam chamar de rancho — no meio do milharal. Lá mesmo
as pessoas colhiam as espigas granadas, descascavam as inúmeras palhas verdinhas e aveludadas
do milho, e então ralavam os grãos em imensos raladores.
A massa que se formava era colocada em grandiosos tachos aquecidos em fogueiras no
chão, junto de óleo e temperos.
Era incrível como cada setor cumpria rigorosamente suas funções, com os mais jovens
descascando o milho e separando as palhas que fariam as “trouxinhas” de pamonha, enquanto os
homens ralavam os grãos, as mulheres mexiam a massa sem parar, e o último grupo fatiava o
queijo e montava as pamonhas.
Me sentia inserida na comunidade em eventos como aquele, e só queria que Lucas
voltasse a ter aquela sensação. Cheirei mais uma vez as pamonhas que quase queimavam meus
dedos enquanto atravessava a cerca que dava para o seu terreno. O vi parado na varanda, me
observando e com os cães ao seu redor e me esperando.
— Trouxe pamonha, já que você não quis participar.
Ele soltou um resmungo baixo e pegou o recipiente de minhas mãos. Me olhou de alto a
baixo e então beijou o topo da minha cabeça.
Eu lidava muito bem com o cowboy bruto e meio indiferente, mas ficava sempre sem
jeito diante do homem carinhoso e de toques sutis.
— Não precisava trazer, loirinha — ele murmurou contra meus cabelos.
— Meus padrinhos são doidos. Estão fazendo pamonhas para alimentar a cidade inteira.
— Todos aqui são assim. — Senti meu peito estremecer com o ronco de uma risada
grossa que escapou de sua garganta. — Na festa da colheita verá a fartura.
— Estou muito ansiosa para ir — exclamei, erguendo o olhar para ele. — Posso ter a
esperança de te ver por lá? Poderíamos ir juntos.
Lucas manteve-se em silêncio. Sua mão livre rodeou minha cintura, me puxando para
perto. Espalmei os dedos em seu peito e fiquei na ponta dos pés para ser beijada. Sua boca tinha
um gosto bom, e seus cabelos estavam úmidos como quem tinha acabado de sair do banho.
Me livrei de seus braços e o ajudei a abrir a vasilha, fazendo o aroma das iguarias
espalhar-se pela varanda. Os cachorros se animaram, começando a latir e a pedir por um pedaço,
e Lucas simplesmente negou com a cabeça, enquanto pegava uma das pamonhas e a
desembrulhava entre os dedos.
Enquanto ele comia, me sentei no chão do alpendre e o observei.
— Olha só — anunciei depois de um tempo em silêncio, me erguendo do chão da
varanda e estralando os dedos para atrair a atenção dos cachorros. — Vê só o que ensinei
Perverso a fazer.
Com um sinal com as mãos, apontei para o chão à minha frente e dei o comando:
— Perverso: senta!
O cão, como um bom aluno, rodeou um pouco antes de sentar-se, olhando para mim de
um jeito atento e com as orelhas em pé. Lucas olhava a cena com visível espanto, e permaneceu
calado.
— Viu? — Apontei para o cão. — Ele é uma mistura de pastor com alguma outra raça.
É um cão inteligente. Com certeza sabe fazer mais do que partir animais ao meio.
— Agora vai escová-lo e levá-lo para um concurso na cidade? — ele ironizou. — É só o
tempo de ele ver uma galinha que sai correndo para atacar, como sempre.
Sorri, afagando os pelos marrons do animal e perguntando:
— Como ele chegou aqui?
— Foi desprezado por um fazendeiro que não aguentava mais perder as galinhas e os
pintinhos. Eu só precisei ensiná-lo a não matar os animais da fazenda. O resto, ele não perdoa.
Olhei para o homem sentado ao chão da varanda, comendo uma pamonha com as mãos
e me fitando de uma maneira tranquila e sem as reservas de sempre.
— E ainda dizem que você é o vilão deste lugar.
Seu cenho se fechou um pouco, e ele desviou os olhos de mim, mirando em Estrela
deitada ao seu lado. Murmurou:
— Devia acreditar no que dizem.
— Prefiro acreditar no que vejo.
Ele parou alguns segundos, como se pesasse o que dizer. Então, perguntou com tom
sério:
— O que você faria se eu te dissesse que matei Tereza?
— Como assim?
— E se eu confirmasse para você que a história espalhada por César em toda a
Sibipiruna é real? O que aconteceria se você soubesse que eu realmente apliquei aquela injeção
em minha esposa?
Não era preciso pensar para saber.
— Não aconteceria nada.
Lucas pareceu chocado, arregalando os olhos.
— Nada?
— Nada. — Continuei a alisar o pelo de Perverso. — Não ligo para seu passado ou o
que pensam de você. Vivi numa cidade em que todos julgavam as ações uns dos outros, e quando
precisei de socorro, as pessoas que mais se mostravam distintas e justas, foram as que me
viraram as costas. — Lucas tinha toda a atenção em mim, e prossegui: — Sei do seu passado.
Dos motivos que o levaram a fugir da sua antiga cidade e vir para cá. Nada disso o faz um
criminoso. A gente erra, Lucas, mas é a forma como cuidamos daqueles que amamos que nos diz
quem de fato somos. — Engoli em seco antes de confessar: — Confio em você mais do que
confio na Justiça.
A verdade é que lá no fundo eu gostava de Lucas como nunca havia gostado de outro
alguém. Em suas pequeninas demonstrações de afeto e confiança, ele mostrou-se mais fiel que
qualquer um de meus “parentes”. Era como seus cães: arisco de início, mas verdadeiro sempre.
Mais correto que a polícia e mais justo que um juiz.
Só que, como não poderia confessar isso, dei de ombros e concluí com algo que era bem
óbvio para mim:
— A forma como ama Tereza deixa claro que jamais a mataria para ficar com as terras.
Não acredito nisso.
Nunca senti tanta força e intensidade em seus olhos como agora. Parecia ter tanta coisa a
dizer... mas nada soube falar. O senti me desnudar por completo, enquanto despia-se também. O
clima ao nosso redor mudou, parecendo carregado de algo que tentávamos transmitir no silêncio,
como se temêssemos as palavras.
Era fim de tarde e uma brisa vinha do pasto. Me voltei para a paisagem do vale se
descortinando à minha frente e o apreciei no instante exato em que a sineta da cerca de arame
farpado soou, chamando a atenção dos cachorros. Lucas ergueu-se de pronto, atento, enquanto eu
murmurava com pouco interesse:
— Deve ser algum bicho que raspou na cerca. Acontece sempre.
— Xiii. — Ele levou um dedo à frente dos lábios, me pedindo silêncio.
O observei intrigada enquanto ele andava com cautela até os degraus da varanda.
Foi quando os sinos soaram novamente, dessa vez mais altos.
Senti um arrepio na espinha, e os cachorros começaram a latir. Lucas ordenou que eles
se calassem fazendo o mesmo sinal com os dedos que fez para mim.
Vi que Estrela e Trovão tinham os pelos eriçados, enquanto Juiz assumia uma postura
assustadora e Sombra grudava os olhos nos movimentos de seu dono.
Lucas desceu a varanda e esgueirou-se pela lateral da casa, até chegar à parede que dava
para os fundos. Não consegui identificar de onde vinha o som, mas era como se ele soubesse
exatamente onde olhar.
Alguns segundos tensos se passaram e então, quando achei que nada mais aconteceria, o
vi saltar com tudo para frente, correndo como um louco na direção da mata.
Não foi preciso comando ou mesmo assobio. Todos os cinco cães saíram atrás de Lucas,
disparados, e tudo o que pude fazer foi correr até o pasto para ver o que acontecia.
O pânico assolou meu corpo quando vi, bem ao longe, um homem sumindo em meio
aos arbustos. Lucas corria atrás do invasor enquanto os cães já tinham o ultrapassado e estavam
no encalço do desconhecido.
Com o coração aos tropeços e controlando o desespero, comecei a correr também,
seguindo atrás da confusão.
— Pega! — Lucas ordenou pela primeira vez, provocando latidos que ecoaram pelo
vale.
Perverso e Juiz foram os primeiros a chegar na mata, desaparecendo em questão de
segundos na densidade verde. Depois foram Sombra, Estrela e Trovão.
— Lucas! — gritei pelo homem que pulava a cerca em um só movimento, como quem
salta uma poça de lama.
Ele me olhou por meio segundo e ordenou, incontestável:
— Volta pro sítio!
Neguei com a cabeça e continuei a descer o pasto.
E se estivessem atrás de mim? E se aquele homem fosse uma isca para afastar os cães e,
com isso, me alcançar?
De todo modo, eu jamais deixaria Lucas entrar sozinho na mata.
O vi sumir cerrado adentro bem à minha frente. Quis gritar de novo por ele, mas temi
que isso o prejudicasse.
Demorei quase um minuto a mais que o homem para alcançar a cerca e invadir a mata.
E no instante em que passava pelos primeiros cipós, escutei os granidos dos cães e um grito
humano.
Meu coração parou enquanto eu buscava entender o que acontecia. Escutei mais latidos,
e então um tiro.
Meu Deus!
Comecei a correr na direção dos sons. Meu peito batia em disparada e eu não sabia o
que ia encontrar. Sentia o sangue bombear em minhas veias com tudo quando o ruído de um
segundo disparo varreu toda a mata.
Desci na trilha que levava ao córrego, de onde pareciam vir os latidos, e escutei gritos
de dor e lamentação.
Alguém parecia estar sendo torturado e clamava por penitência.
Meu peito doía de apreensão. Imaginei Lucas com um tiro no peito e agonizando de dor.
Atravessei as árvores e quase caí no meio do musgo, até que ouvi a voz do maluco que
pouco a pouco roubava meu coração:
— Se você tentar fugir, mando eles arrancarem sua perna!
A voz era fria e imperiosa. Dura e cortante.
Andei um pouco mais até ver a mais absurda das cenas se descortinar à minha frente.
Pouco mais abaixo, já na margem do córrego, os cães amontoavam-se em dois homens
caídos no chão.
Perverso abocanhava a perna de um enquanto Estrela rosnava com o focinho encostado
em seu pênis.
Fêmeas sempre sabem onde atacar.
O outro homem era rendido por Trovão e Sombra, que agarravam as calças do invasor e
faziam o tecido em mil pedaços.
Havia ainda um terceiro desconhecido, ajoelhado e sob a mira da arma de Lucas,
enquanto Juiz o vigiava de uma maneira que faria qualquer um borrar as calças. Com os dentes à
mostra e o pelo todo arrepiado, além da coluna ondulada como em pré-ataque, Juiz parecia um
lobo.
Sozinhos, Lucas e sua matilha tinham paralisado três homens.
— Minha nossa! — exclamei impressionada enquanto me apoiava nos joelhos e buscava
um pouco de fôlego.
— Eu disse para ficar no sítio, loirinha — Lucas reclamou sem tirar os olhos do homem
que estava sob a mira do seu revólver.
— Não quis ficar sozinha lá em cima — me expliquei, observando com atenção o rosto
dos três desconhecidos. Eram jovens e em nada parecidos com os policiais de Dom Cervantes.
Senti um alívio instantâneo, e suspirei de maneira pesada.
Lucas pareceu perceber e voltou os olhos para mim por alguns segundos. Pareceu
perguntar se eram eles os assassinos que me perseguiam, e eu me limitei a negar com a cabeça,
gesto que ele entendeu na hora.
— São os homens que estão causando medo em Sibipiruna — ele anunciou com sua voz
grossa e potente. — Pretendiam invadir minhas terras?
— Pelo amor de Deus! Manda ele soltar minha perna! — o homem que era rendido por
Perverso suplicou, e vi um sorriso igualmente perverso formar-se no rosto de Lucas.
— É para aprender o que acontece com quem tenta invadir meu sítio.
E sem que ninguém pedisse, Perverso agitou a cabeça, fazendo o homem voltar a gritar.
Realmente, o nome fazia jus ao cão.
E também ao dono.
— Me diz o que queriam aqui! — Lucas insistiu, e o que estava ajoelhado arregalou os
olhos ao ver a arma aproximar-se de seu rosto e ser engatilhada.
O fazendeiro parecia um bicho, assim como seus animais.
— A gente não ia matar ninguém, senhor! — o que tinha a calça toda rasgada por
Trovão e Sombra se manifestou. — Só ia ver o que tinha de valor e pegar.
— É, É, É! — O que era torturado por Perverso reforçou, aos gritos. — A gente achou
que a casa tava vazia. Não ia machucar ninguém! Eu juro!
— Gabriella. — Lucas não tirava os olhos deles quando voltou a falar comigo. — Vai
até o galpão e traga uma corda que está dentro de um baú de madeira.
E foi o que fiz.
Voltei correndo pelo pasto e busquei a corda onde ele me orientou. Quando retornei,
Perverso tinha soltado a perna do pobre coitado, e os três estavam deitados no chão lamacento da
beira do córrego, de bruços e com as mãos para trás.
Lucas pegou a corda em minhas mãos e arramou os três pelos pulsos, enquanto os cães
seguiam vigiando tudo de perto. Ao finalizar, ele se voltou para mim, segurando meu rosto entre
as mãos imensas e perguntando baixinho, de modo que só eu escutasse:
— Realmente não são eles?
— Não são — assegurei. — Nunca vi essas pessoas.
Lucas concordou. Escutei sua mandíbula trincar e só então percebi o quanto ele era
capaz de esconder a tensão. Nervosa, perguntei:
— O que será que eles queriam?
Minha voz saiu trêmula. Insegura e quase chorosa. Deixei vazar parte do medo que senti
ao escutar os tiros depois de vê-lo sumir mata adentro.
Pensei que tinha perdido Lucas, e me dei conta do quanto ele já era especial. Do quanto
o viúvo chucro e que adorava enforcar havia tomado todos os vazios que existiam em meu
coração.
Sem perceber, eu o deixei entrar enquanto brincava de invadir sua vida.
O suor escorria frio em minhas costas diante da constatação óbvia da minha burrice:
Me apaixonei por Lucas, cruzando uma linha que assegurei a nós dois que jamais
passaria.
Me meti em uma merda colossal, e percebia só naquele instante.
Senti a garganta apertar e meus olhos se umedecerem.
Ele amava a mulher. Seguia preso em seu luto, cheio de dor por ter perdido a única que
teve seu coração.
Eu era só a bebida que aliviada essa dor.
Lucas franziu o cenho com minha reação emocionada, apertando meu rosto entre as
mãos e então acariciando meus cabelos. Na cabeça dele, eu estava assim por medo dos invasores,
quando na verdade, tudo o que me apavorava naquele instante era perceber que meu coração
pertencia a um homem que já trazia seu peito ocupado.
— Não sei o que eles queriam, loirinha. — Ele me olhou com uma preocupação
evidente, e isso só tornou tudo pior. — Mas fique tranquila. Ninguém invade as terras de Lucas
Maldonado. — Abriu um sorriso sincero e que me quebrou em mil pedaços. — A não ser você.
Capítulo 30

Eu estava furioso, andando para lá e para cá na recepção da delegacia enquanto Antenor


ouvia os criminosos.
Ousaram invadir minhas terras...
O que teria acontecido se eu não estivesse lá e a loirinha tivesse sozinha com os cães?
Me arrepiava só de pensar.
Bati as botas no piso encerado, descarregando parte da raiva. O policial que estava na
recepção me olhou assustado, mas nada ousou dizer. Retirei o chapéu e o apertei entre as mãos,
enquanto mirava mais uma vez na direção da sala do delegado.
Depois de amarrar os imbecis que tiveram a coragem de tentar me roubar, subi com os
três para a fazenda enquanto Gabriella avisava aos Siqueira — e a todos que participavam da
pamonhada — sobre o ocorrido.
Meu isolado e tranquilo vale virou um circo a céu aberto, com todos os fazendeiros da
região loucos para confirmarem se os homens que peguei eram realmente os que causaram medo
nas últimas semanas.
A maioria me felicitou por tê-los apanhado, e muitos me olhavam com certo fascínio,
alternando os olhos arregalados em mim e nos cinco cachorros, enquanto enfileiravam-se do
outro lado da cerca.
Ninguém ousou entrar nas minhas terras, mas todos seguiram meu carro, como uma
comitiva, quando decidi levar os bandidos para a delegacia.
Quis amarrar a loirinha às pilastras da minha varanda, tentando convencê-la a ficar no
sítio, mas foi em vão. A diaba veio comigo, teimosa que era, e tudo o que pude fazer foi pedir
que se mantivesse do lado de fora da delegacia. Quanto a isso, nem precisei pedir muito. A
loirinha parecia fugir da polícia como quem foge da cruz.
— Seu cachorro quase dilacerou a perna de um deles — Antenor resmungou ao surgir
de uma das portas.
— Deveria ter arrancado — rosnei. — Ninguém invade minhas terras, Antenor. Fizeram
isso uma vez. Não deixarei que façam de novo.
O delegado me observou e então prosseguiu, como se não ligasse para mim:
— A sorte do pobre homem é que a roupa que ele usava era grossa. Vamos mandá-lo
para o hospital da cidade vizinha para dar alguns pontos e ele volta para cá.
— O que eles queriam no meu sítio? — inquiri.
— Roubar qualquer coisa de valor que encontrassem. — Ele deu de ombros. — Já puxei
a ficha de todos. Dois têm passagens por furto, e um deles por estelionato. Foram reconhecidos
por três fazendeiros da região que foram roubados, e todos sempre diziam que eram quatro os
invasores.
Neguei algumas vezes com a cabeça.
— Não sei não — resmunguei. — O que foi mordido por Perverso disse algo como
“pensamos que a casa estava vazia”, como se soubessem de algo. Os Siqueira e grande parte dos
fazendeiros da região estavam no rancho montado para a pamonhada. A impressão que tive é que
eles sabiam disso e tentaram tirar proveito.
— Estão na região há semanas. Vai ver, escutaram sobre a pamonhada em algum lugar.
— Ou vai ver alguém está passando informações para eles — sugeri. — Não acredito
que estejam agindo sozinhos. Também, não é a primeira vez que eles cruzam o córrego para se
aproximar do meu sítio. Precisa pressioná-los até que eles digam para quem trabalham e o que
queriam no meu vale.
Antenor franziu o cenho, visivelmente incomodado com meu tom de voz para ele.
— Não tem mais ninguém para prender, Maldonado — disse com agressividade. — Não
vou admitir que você crie mais medo em Sibipiruna quando não há motivo para caos.
— Não é caos, Antenor! Eu sei o que estou dizendo.
— Você não aceita o que aconteceu com Tereza, Lucas. Aguentamos isso há quatro
anos. Sua bebedeira. Seu descaso com a usina... Agora, acha que tudo o que acontece em
Sibipiruna é para te atingir.
— Presta atenção, Antenor! — gritei, exasperado. — Eles são da capital. Eu vi a ficha
dos quatro. O que quatro filhos da puta da capital iriam querer roubando galinhas em um lugar
feito Sibipiruna?
— Deixa que a polícia vai responder essas perguntas. — Ele me olhou com seriedade e
uma raiva incontida. — Esse não é seu papel.
— Me deixa falar com um deles de novo — insisti. — Eu posso arrancar a verdade, ou...
— Ou nada, Lucas! — Antenor explodiu. — Você não manda aqui! Eu sou o delegado
dessa porra e eu decido o que fazer! — Senti meu corpo inteiro se eriçar com a maneira como ele
me enfrentava, e fechei os punhos. — Já não basta o que fez com seus cachorros atacando os
três? — o maldito reclamou.
— Eu fiz um trabalho que deveria ser seu e ainda me acusa?
A vontade que tinha era esmurrar aquele homem, mas Gabriella me esperava do lado de
fora da delegacia, e se eu fosse preso, não teria ninguém para vigiar o vale em minha ausência.
Me aproximei de Antenor com toda a fúria que sentia evidente em meu rosto. Nos encaramos em
silêncio e ele murmurou entredentes:
— Volte para casa, Lucas. A polícia já sabe o que fazer.
Rosnei, contendo a frustração que sentia e virando as costas para Antenor antes que
socasse sua cara lambida.
Desci as escadas da delegacia e encontrei Gabriella retorcendo os dedos ao lado de
Diana. Junto delas, vários dos fazendeiros que nos seguiram e outros moradores da cidade. Ao
me verem, as conversas cessaram e um silêncio pesado se instalou. Um produtor de cana que mal
falava comigo desde que desativei a usina foi o primeiro a se manifestar:
— Viemos agradecer por ter prendido os meliantes.
— Sim. — outro disse enquanto retorcia seu chapéu. — Estamos há semanas atrás
deles, e você os pegou sozinho.
— Graças a Deus temos uma pessoa como Lucas Maldonado por essas bandas.
Parei na calçada um pouco perplexo.
A loirinha me olhava com algo que eu poderia descrever como orgulho — embora não
acreditasse que alguém pudesse sentir isso algum dia por mim —, enquanto Diana olhava na
direção contrária à multidão.
Olhei no mesmo sentido que ela e vi Salazar chegando com César.
Pronto! A cidade inteira está aqui!
Só faltou a dona Margarida.
— Que confusão toda é essa? — César questionou, e revirei os olhos só de ouvir sua
voz.
— O viúvo Maldonado conseguiu pegar os bandidos que estavam invadindo as fazendas
da região.
Salazar arregalou os olhos, demonstrando surpresa, enquanto César me fitava com
incredulidade:
— Todos? — O prefeito parecia não acreditar.
— Todos! — Gabriella reforçou, avançando em minha direção sem se importar em nos
tornar o centro das atenções. — Lucas saiu como doido atrás de um deles que tentou invadir o
sítio. Os cachorros o seguiram e renderam os três na margem do córrego.
— Um dos cães quase arrancou a perna do cara — alguém disse com divertimento.
É isso. Estavam se divertindo com a dor alheia.
— Antenor já os interrogou? — César perguntou...
Para
A
Loirinha.
Me voltei para ele, posicionando meu corpo entre os dois e respondendo sua pergunta:
— Já, prefeito.
Só havia ódio em seus olhos quando me encararam. César me analisou de alto a baixo e
bufou, virando-se de costas para mim e então iniciando um discurso político para seus eleitores:
— Fico feliz em saber que os meliantes que nos aterrorizavam foram presos. Vale
ressaltar que parte das prisões só foi possível após a instalação da câmera de vigilância na praça,
feita por nossa gestão. — Não escondi a risada irônica e ele fingiu não me escutar, continuando a
dizer: — Vou conversar com o delegado e exigir que esses bandidos tenham uma punição
exemplar para que outros criminosos fiquem cientes que aqui em Sibipiruna bandido não tem
vez.
Algumas palmas e assobios e eu decidi ignorar, me afastando o quanto antes daquele
circo idiota e puxando a loirinha comigo.
— Vamos embora daqui — murmurei, pegando-a pelo braço.
— Ei, espera! — Ela era miúda e franzina, mas conseguia me fazer parar para escutá-la.
— Temos que comemorar esse feito!
— Como é?
— Gabriella tem razão. — Diana aproximou-se, seguida de Salazar. Estávamos mais
afastados da multidão, e a esposa do meu amigo sugeriu: — Vamos no Di Maria hoje? Estava
agora mesmo chamando Gabriella para conhecer o lugar.
Di Maria era uma espécie de bar temático que ficava em Coralina. Com música ao vivo
alguns dias da semana e cerveja gelada, era o ponto de encontro meu, de Salazar, Tereza e Diana.
Fechei o cenho, pois voltar àquele lugar poderia trazer lembranças que não gostaria mais
de ter. Diana percebeu e insistiu com cautela:
— Vamos. Gabriella não conhece o lugar. Desde que chegou aqui, nunca nem ao menos
saiu da cidade. Ela está precisando conhecer gente nova.
— Precisa não — resmunguei rápido demais.
Diana não escondeu o sorriso cheio de insinuações, enquanto Salazar me observava. Foi
ele quem decidiu tentar mais uma vez:
— Sibipiruna e toda a região estão há semanas tentando pegar esses bandidos. Hoje,
Lucas, você é como um herói para essa cidade. — Bufei e ele prosseguiu: — Por que não
comemorar isso?
— Alguém tentou invadir minhas terras, e não acho que foi aleatório. Não tenho o que
comemorar — disse azedo.
— É provável que nem te deixem pagar a conta — Salazar brincou, voltando-se para
Gabriella: — Nós vamos ao fim do dia. Se decidirem ir, estaremos lá.
Enquanto o casal saía, com ele rodeando a cintura dela com carinho, vi Gabriella me
encarar com olhos pidões.
Mais parecia aquele gato de desenho animado, com olhos arregalados e cheios de falácia
insinuando uma falsa inocência.
— Cowboy... — começou a dizer com a voz manhosa.
— Sem chance, loirinha — a cortei, seco.
— Por favor... — Ela juntou as mãos à frente do rosto. — Vem comigo. Se você não
vier, eu vou de qualquer jeito. Mas gostaria que você fosse.
— Não vai me convencer, loirinha. Pode desfazer essa cara pidona. Não vou naquele
bar há quatro anos, e não é você quem vai me fazer pisar lá de novo.

O Di Maria continuava igual.


Com suas cadeiras de madeira fina e desconfortável, uma decoração ridícula que imitava
o Texas do século 1800, e com modas de viola tocando sem parar. A bebida era a melhor da
região — Careca que não me escutasse —, e era sempre cheio.
O nome do bar era Texano, mas ninguém o chamava assim. Di Maria era o seu dono.
Salazar e Diana nos esperavam em uma mesa bem perto da entrada. Ao me verem
entrar, arregalaram os olhos surpresos e fizeram um sinal para nos aproximarmos. Senti as mãos
macias e pequeninas da loirinha agarrarem as minhas quando ela me puxou, animada feito
criança e indo na direção da mesa.
Pensei em amarrá-la à cabeceira da minha cama. Juro que pensei.
A criaturinha de cabelos amarelos usava uma minissaia marrom de couro falso e uma
blusa que mais parecia lingerie, cheia de transparências e rendas ao redor do colo.
Maluco fui no dia que a chamei de magrela.
Maluco era agora por deixá-la sair assim na rua.
Gostosa ao ponto de fazer meu pau reagir com o simples som de sua voz, ela tinha um
aroma mais adocicado ainda naquela noite. Talvez, efeito do perfume que usava. Penteou os
cabelos em um rabo de cavalo que fazia o loiro reluzir ao redor do seu rosto quando jogava a
crina de um lado para o outro.
— Vá com calma, loirinha. — Apertei sua mão entre as minhas, enquanto percebia que
éramos o centro das atenções. A notícia da captura dos invasores de Sibipiruna espalhou-se por
toda a região, e tivemos que parar por três vezes no caminho do carro até a entrada do Di Maria
para ouvir agradecimentos de estranhos.
Houve um tempo em que aquilo era uma rotina para mim. Os Maldonado costumavam
ser os nomes mais influentes da região. Ao revolucionar a usina e colocá-la em pleno vapor, me
tornei uma espécie de “figura pública” das redondezas, sempre sendo chamado para almoços e
festas, e provando da simpatia que aquele povo era capaz de dar.
Mas tudo o que o povo dá, ele também tira.
Perdi tudo isso ao me tornar o “viúvo Maldonado”.
Chegamos na mesa de Salazar e ele nos cumprimentou, seguido de Diana. Ela puxou
Gabriella para sentar-se ao seu lado e disparou a falar, animada como sempre:
— Ainda não acredito que vocês vieram. — Ela me olhou por meio segundo, como se
falasse exclusivamente de mim, e então se virou mais uma vez para a loirinha e disse: — Vai
adorar esse lugar.
— Eu gostei da cidade — Gabriella comentou com empolgação. — É pequena, mas
imensa se comparada com Sibipiruna.
— Tudo o que precisamos e não tem em Sibipiruna, encontramos aqui — Diana falava.
— Hospital, faculdade, pizzaria ou até mesmo um veterinário.
— Foi para cá que trouxe Perverso? — Gabriella me perguntou com curiosidade, e
confirmei com um aceno.
Um garçom aproximou-se da mesa, oferecendo cervejas. Gabriella aceitou e eu decidi
não beber. Ao menos um de nós tinha que se manter sóbrio ali. Todo mundo fingiu não se chocar
com minha escolha, e iniciaram uma conversa animada.
Salazar falou um pouco sobre as questões da prefeitura e a colheita da safra. Diana
contou sobre os primeiros meses da gravidez, e fiquei feliz de saber que o bebê crescia saudável.
Vez ou outra, éramos interrompidos por alguém interessado em saber sobre a prisão dos
invasores de Sibipiruna. Gabriella aproveitava para relatar tudo com imensa riqueza de detalhes,
empolgadíssima com toda a atenção que recebia. Eu preferia me manter quieto, deixando para
ela a missão de narrar os acontecimentos do dia.
Na boca dela, mais parecia a saga de um herói.
Incrível como a loirinha tinha uma visão diferente de mim. E como, pouco a pouco, ela
fazia eu me ver daquela forma também.
Seguro, justo e não tão odiado.
Seria tudo ilusão de uma garota deslumbrada, ou eu poderia um dia acreditar que aquela
versão refletida em seus olhos cor de uísque era real?
Começou a tocar uma música animada e vi a loirinha bater palmas no ar ao ritmo do
som. Ela já tinha bebido um pouco e parecia animadinha além da conta. A vi cochichar algo no
ouvido de Diana e as duas se ergueram de suas cadeiras, caminhando até a parte do bar em que
ocorria um show de música ao vivo.
Não desgrudei os olhos dela enquanto seu corpo curvilíneo passava entre as cadeiras,
servindo para a apreciação de todos, e então parando ao lado do palco fazendo as luzes coloridas
baterem em seu cabelo comprido.
Diacho de mulher bonita.
Meu olhar ainda era cativo dela quando escutei Salazar falar bem perto de mim:
— Diana e minha mãe são fascinadas nela. — Finalmente o fitei. — Parece que não são
as únicas.
— Ah! — reclamei, quase jogando a cerveja de Gabriella no chão. — Não começa,
Salazar.
— Ficarei calado. — Ele ergueu as mãos para o alto, voltando a fitar as mulheres. — Só
vou te confessar que é bom te ver assim, Lucas.
— Assim como? — questionei meio azedo.
— Saindo da toca. Dando uma chance.
— Não estou dando uma chance. — Virei o rosto para que ele não me observasse. — Eu
só...
— Recomeçar é bom, amigo.
— Não tenho o que recomeçar. Eu não mereço um recomeço.
— Todos merecemos, Lucas. Você não é o vilão.
Foi quando o fitei novamente.
— Diga isso para o resto de Sibipiruna.
— Digo — Salazar revidou com segurança. — Pergunto a qualquer um de Sibipiruna
quem é você, e tenho a certeza de que, ao menos hoje, te chamarão de herói.
— Isso não vale para todos os dias.
— Não vale para nenhum de nós.
Mirei Salazar, calado, e ele também não disse mais nada.
Diana e Gabriella continuaram perto do palco improvisado. Os músicos sabiam tocar
bem uma viola e encheram o repertório de músicas pedidas pelos clientes. Tudo música saudosa,
que remetia aos velhos modões da roça.
A voz possante do músico começou a entoar rimas antigas, enquanto o choro da viola
inundava todo o bar. Alguém começou a bater os pés, e logo iniciaram uma pequena competição
de catira.
A viola dava o tom e o ritmo, enquanto as botas de sola gasta completavam a sinfonia.
Me lembrei da época em que as rodas de catira eram bem comuns nas festas dadas pelos
Maldonado e senti algo diferente da dor.
Pela primeira vez, senti saudade.
Olhei para meus próprios pés, que batiam no chão cimentado do bar em um ritmo meio
enferrujado.
Abri um sorriso.
Diana e Gabriella aproximaram-se de nossa mesa, rindo e conversando. A loirinha parou
ao meu lado, de pé, e comentou:
— Eu sempre achei catira uma coisa genial! — Ela estava bêbada. Só isso para explicar
a voz inúmeros tons mais alta. — Como conseguem bater os pés no mesmo ritmo da música?
E como para demonstrar o quanto esse feito era difícil, ela começou a literalmente
sapatear, só que sem ritmo algum.
Diana ria sem parar enquanto Salazar escondia o rosto com as mãos.
— Não é assim que se faz, loirinha — falei, tentando disfarçar o sorriso que teimava em
permanecer no meu rosto enquanto a via bater suas sandálias como quem pisou num
formigueiro. — Precisa alinhar a postura e bater o calcanhar, não o pé inteiro.
— Existem passos de catira, e cada um deles é feito batendo os pés de uma forma
diferente — Salazar comentou entre risos.
— Eu não tenho botas — Gabriella se defendeu sem qualquer nexo. Bêbada e risonha.
Recomeçou a bater os pés e chamou a atenção de algumas mesas ao redor.
Diana e Salazar riam, enquanto eu me sentia um pouco fascinado pela loirinha de saia
justa e cabelos bagunçados. Suas bochechas estavam vermelhas e ela ria, feliz e animada. Numa
tentativa de ajudá-la, me ergui e parei à sua frente, estendendo a mão para ela e dizendo:
— Vou te mostrar como se faz.
Ela parou e esticou o pescoço para me fitar nos olhos. Abriu um sorriso travesso e me
desafiou:
— E sabe catira, cowboy?
— Não sei, mas tenho certeza de que não é sapatear como está fazendo.
Ela empinou o queixo até grudar os olhos nos meus e então me desafiou:
— Duvido que faça melhor do que eu. — E bateu os pés pequenos de maneira
completamente desordenada.
Dessa vez, não consegui esconder a risada.
— Não vai ser difícil — murmurei, enquanto tentava acertar o ritmo da viola dando
batidas suaves no chão liso.
Segurei o cinto da calça e tentei acompanhar algumas pessoas que batiam os pés. Eu
estava longe de ser bom, mas ao menos não sapateei feito boi bravo.
Ela me fitou, concentrada, e tentou fazer o mesmo.
Diana gargalhava atrás de nós. Aquilo chamava a atenção das pessoas e tornava
Gabriella o centro das atenções no bar. Vi homens secando o corpo que devia ser só meu.
Passei a mão nos cabelos e agarrei a cintura da loirinha, puxando-a para perto de mim
sem aviso. Ela arregalou os olhos, surpresa com meu gesto, e se segurou em meus ombros. As
mãos se enterraram na minha camisa e seu olhar grudou no meu.
Eu nem precisava beber...
Espalmei a mão em suas costas e a trouxe para perto. Senti o aroma gostoso de doce de
seus cabelos junto da primeira fisgada no pau.
Juntei nossos quadris, deixando claro pra ela — e para todos que nos assistiam — quem
era o dono daquele corpo.
Quem podia marcar aquelas curvas ou tocar naquela carne.
Gabriella arfou, entreabrindo a boca e deixando a língua molhar o lábio inferior. Meu
rosto aproximou-se do dela e sussurrei:
— Coloque os pés em cima dos meus que te mostro o ritmo certo.
Ela obedeceu, e senti os pés pesarem sobre os meus. O peso dela era quase nada, mas
senti algo pesar em minha consciência.
Lá no fundo da alma, como se me preenchesse.
Ergui e então baixei o pé direito, e depois o esquerdo. Não sei se estava no ritmo da
viola. Talvez, estivesse no ritmo do meu coração batendo doido, desesperado, enquanto meu
peito se colava com o corpo dela.
Sua camisa cheia de rendas era uma tentação ao desejo, mas o que me deixou louco de
verdade foi o olhar travesso e as bochechas rosadas.
Eu estava viciado naquela mulher.
Na pele dela. No cheiro dela... Tudo o que vinha dela.
Não sentia a dor costumeira quando a tinha em meus braços, nem a culpa constante
quando um sorriso movia os músculos da face.
O whisky me deixou dormente por anos.
Gabriella me despertava ao passo que me limpava as feridas.
Bati mais uma vez o pé direito no chão e a loirinha riu, jogando os cabelos para trás.
Senti os fios tocarem meus dedos que amparavam suas costas, e a sensação foi a melhor de
todas.
Ergui a perna esquerda e a desci com suavidade, apreciando o olhar amadeirado em
mim. Os cabelos tingidos emoldurando o rosto redondo e a ponta arrebitada do nariz apontada
para mim. Arrastei o pé um pouco para a esquerda e depois para a direita, sentindo o corpo dela
balançar em contato com o meu. Repeti os movimentos com o outro pé, e os dedos dela
escorregaram para meu peito, queimando tudo enquanto passavam.
Não resisti, descendo o rosto até alcançar a boca em seu ouvido. Beijei o lóbulo da
orelha e então rocei a barba em sua face. Gabriella soltou um som meio rouco, e suas mãos
pequeninas grudaram-se em minha camisa ainda mais. Seus pés sobre os meus ficaram na ponta
dos dedos para aproximar-se mais, e ela beijou minha bochecha.
Foi simples, suave e sem as marcas que fazíamos no sexo.
Mas marcou.
Marcou, pois entendi que Gabriella tornou-se meu tudo. Que pela primeira vez em anos,
algo fazia meu peito bater, e não era raiva ou dor.
Me dei conta que faria qualquer coisa para proteger a loirinha. Quis cuidar dela e fazê-la
feliz como estava agora, embriagada e ensaiando passos de catira.
Eu faria tudo o que ela pedisse.
E esse era meu medo.
Voltar a querer.
Porque eu não merecia.
Paralisei no salão do Di Maria, sentindo a insegurança adentrar pelas frestas das
lembranças.
Meu olhar grudou em Gabriella enquanto ela perguntava:
— Não vamos mais dançar?
Soltei um riso forçado, tentando disfarçar a angústia que me atingiu.
— Não estamos dançando, loirinha — a corrigi.
— Isso é o que você pensa. — Ela abriu um sorriso cheio de sabedoria, beijando o canto
do meu rosto, na barba, e então retirando os pés de cima dos meus.
Alterando a realidade ao meu redor, ela agia como feiticeira.
Nós dançamos, e meu coração agora pertencia a uma mulher.
Capítulo 31

Voltamos tarde da noite para a fazenda Olhos d’Água. Lucas guiava sua caminhonete
com um silêncio taciturno enquanto eu me distraía com a paisagem completamente negra dos
pastos escuros.
Sentia corpo e alma leves, ainda embriagada com as cervejas e toda aquela música.
Olhei de viés para Lucas dirigindo, todo gostoso em uma camisa escura, os cabelos
meio bagunçados, e as veias dos braços marcando sua pele enquanto ele girava as mãos imensas
no volante.
Naquela noite, vi traços do que poderia ser o Lucas do passado. O que eu não conheci.
Vi um homem mais leve, que sorria vez ou outra e conversava com os amigos. Que não
se afundava na bebida e tinha olhos quentes, sem o vazio sombrio e angustiante que se enxergava
em sua íris quando cheguei.
Me apaixonar por Lucas foi um erro, mas talvez eu pudesse ter a esperança de que
aquela versão do passado fosse capaz de se apaixonar por mim de volta.
Talvez, eu não estivesse tão em maus lençóis assim.
Sentindo a consciência vagar por esses pensamentos malucos depois da bebida, me virei
para Lucas, encolhendo as pernas no assento do carro e fitando-o de frente. O homem demorou
alguns segundos antes de soltar uma bufada meio impaciente e resmungar:
— O que é, loirinha?
— Nada. — Balancei os ombros, dando risada. — Só gosto de te ver.
Ele limitou-se a me fitar, cenho franzido e mudo.
Algo estava diferente em Lucas, e eu gostaria de saber o que era.
Vi quando nos aproximamos das pedras que protegiam o nosso vale. Lucas desceu e
abriu a porteira que dava para os dois sítios, voltando para o carro e enfim dizendo:
— Vou te deixar primeiro nos Siqueira. Está bêbada para atravessar o pasto sozinha.
— Estou bem — falei. — Bebi só algumas cervejas.
Eu me sentia só um pouco mais alegre que o normal. E isso não era resultado só das
cervejas, mas também da prisão dos invasores às fazendas da região.
— Mesmo assim — ele insistiu. — Te deixo na porta dos seus padrinhos.
— Eu gostaria de ir para o casarão com você — pedi, levando uma mão à sua que estava
parada no câmbio. — Não estou tão bêbada, Lucas. Sei bem o que quero. Só estou feliz porque
você conseguiu pegar os invasores.
Minha voz sequer estava arrastada, e eu tinha total consciência dos sinais do meu corpo
implorando por Lucas.
— Acho melhor não, Gabriella — ele resmungou. A caminhonete chacoalhou no pasto e
parou de frente para o pequeno galpão anexo ao sobrado. — Seus padrinhos devem estar
preocupados.
— Eles sabem que estou com você. — Retirei o cinto, mas permanecemos no carro. Do
lado de fora soprava um vento frio e cortante, e o breu era completo. — Minha madrinha sabe
que estamos juntos. — Parei e reconsiderei: — Na verdade, toda a Sibipiruna sabe que estamos
juntos.
Incapaz de negar aquilo, ele permaneceu calado. Eu, que incendiava de desejo, saltei do
meu banco para o colo dele, abrindo as pernas ao redor de seus quadris e encaixando minha
boceta e em seu pau.
Como eu imaginava... duro.
— Loirinha... — ele gemeu.
Eu que não iria embora para casa na seca depois de passar a noite inteira sendo tentada
por seu corpo sempre encostando no meu.
Beijei o canto do seu queixo, na pele engrossada pela barba curta, e sussurrei contra sua
boca, levemente alterada:
— Pode me usar, cowboy. Gosto disso.
— Não quero mais usar você.
— Assim vou achar que se importa. — Dei uma risada nervosa e levemente insegura. —
Que se apaixonou por mim.
Ele me olhou meio ultrajado.
— Não diga isso, por favor.
— Por que? — Agora, eu quem me sentia ultrajada. Afastei meu rosto do seu e o mirei.
— É tão impossível assim você se apaixonar por mim?
Ele me olhou como quem tem um milhão de coisas para dizer, mas nada diz.
Fui eu quem soltei, bêbada e alterada:
— Da minha parte, posso dizer que tudo é possível, já que me apaixonei por você, um
bruto seco e meio mandão.
É... Talvez eu estivesse mais bêbada do que pensei.
Lucas apertou os olhos, fechando-os. Era como se lhe doesse escutar aquilo.
A ausência de resposta me humilhou, mas eu sequer tinha o direito de reclamar. Não fui
eu mesma quem disse que jamais cobraria dele qualquer coisa? Que lidaria sozinha com qualquer
dano ao coração caso acabasse me envolvendo?
Pois bem.
— Não repete isso, mulher — ele falou com um tom meio agressivo. — Está bêbada.
— Não estou — reafirmei. Eu nunca fui uma pessoa de esconder os sentimentos, e não
precisava de álcool para colocar as coisas para fora. — Estou gostando de você, cowboy. E falo
além do físico. — Alisei a barba de Lucas, e ele tocou minha mão, como se lhe incomodasse
aquele carinho. Mesmo assim, continuei: — Você é generoso com meus padrinhos. Já percebi
nas conversas deles sobre sua ajuda com a plantação de milho. É justo com toda a cidade, mesmo
quando viram os rostos para você. Sei que lá no fundo se importa com outras pessoas, assim
como demonstra afeto por seus cachorros. Só está carregado de dor pela morte de sua esposa, e
nunca teve alguém para ajudá-lo a recomeçar.
— Eu não tenho o que recomeçar. Recomeços são para os justos.
— Lucas. — Tampei seus lábios com o indicador, silenciando-o e mirando-o no fundo
dos olhos. — Você não matou Tereza. Sei que não faria isso.
Ele gemeu, passando as mãos nos cabelos e esfregando os olhos. Parecia uma fera
enjaulada.
— Se afasta de mim, Gabriella — ele ordenou, ainda de olhos fechados. — Não quero
te machucar.
— Você não vai.
— Então nunca mais repita que se apaixonou por mim, entendeu? — Lucas abriu os
olhos, e tudo o que vi foi a escuridão que tomava seus olhos quando o conheci. Suas mãos
gigantescas seguraram meus punhos com firmeza, e ele me forçou a encarar toda sua angústia.
— Nunca. Mais!
Eu poderia recuar. Me calar diante do homem inquieto à minha frente e não repetir as
palavras que pareciam o ferir.
Só que eu não era feita dessa matéria.
— Pois eu me apaixonei — soprei, baixinho. Tão perto de seus lábios que senti de volta
a lufada quente que escapou de sua boca com a declaração.
— Não, Gabriella! — ele gritou, ainda segurando meus punhos, agora com mais
firmeza. — Não é para você se apaixonar.
— Eu não mando no meu coração, Lucas — murmurei ofendida. — E nem estou te
pedindo amor de volta. Eu disse que entrava nessa ciente de que você jamais iria gostar de mim,
lembra?
— Mesmo assim. — Ele respirava com dificuldade. Algo parecia fora do lugar. — Não
era para acontecer. Nunca devíamos ter nos envolvido.
— Também não precisa reagir assim. — Soltei meus pulsos de suas mãos. — Como se o
que fizemos fosse um grande erro.
— E foi — ele parecia transtornado.
— Não foi! — bradei. Parte do álcool agindo para que eu me irritasse com rapidez. —
Foi bom, e não me arrependo. Sei que você também não se arrepende, e que só está incomodado
com o fato de eu confessar gostar de você.
Lucas me olhava indecifrável. Seu maxilar estava duro, e seus punhos fechados no ar,
como se ainda segurassem meus braços. Seus olhos me escrutinaram o rosto, e ele soprou com
uma frieza que eu jamais esqueceria:
— Pois eu me arrependo, loirinha.
— Não está dizendo a verdade.
— Te usei, como todas as outras mulheres que vieram depois de... E não quero um
vínculo maior com você. — Ele desviou os olhos de mim. — Saber que você sente algo por mim
me obriga a te afastar antes que esse vínculo seja... maior.
Meu corpo gelou.
Minha mente se apagou.
Eu praticamente murchei.
Olhei para o homem que ainda me tinha em seu colo, e que eu parecia desconhecer.
— Está tentando fugir... — murmurei, incapaz de acreditar em suas palavras.
Eu vi os sinais.
Vi o carinho escondido na maneira como alisava meus cabelos e beijava minha testa.
Vi o cuidado quando preocupou-se em arrumar novos documentos para mim e, com
isso, um emprego.
Vi desejo e posse no dia em que me botou em suas costas e me carregou para que toda a
Sibipiruna pudesse ver.
Foi tudo ilusão?
— Eu te avisei, loirinha — ele disse sombrio, como se nada pesasse em seu peito me
dispensar.
Eu explodi de vez:
— Quanto tempo mais acha que poderá fugir? — gritei, me erguendo de seu colo e
abrindo a porta do carro. Lucas deixou que eu saísse e me seguiu para o lado de fora. Os
cachorros apareceram, animados, mas nenhum de nós dois deu atenção a eles. — Por quanto
tempo vai fingir que não se importa com nada?
— Isso é ilusão sua — ele disse quase com raiva. Parecia lhe ferir o fato de eu insistir
naquela conversa. — Eu não sou esse Lucas por quem se apaixonou. Estou longe de ser esse
homem que você tanto quer enxergar.
— Eu não quero enxergar, Lucas! — gritei em sua direção, percebendo o controle
esvair-se no meio da escuridão do pasto. — Eu vejo! Eu sei o que sinto e sei o que vejo de você.
Pode continuar tentando se enganar, mas não pense que vai conseguir me enganar também.
— Não me importa o que você vê! — Lucas também tinha perdido o controle, e éramos
dois feridos gritando na noite. — Afogue essa merda de sentimento que diz ter no peito. Me
esquece, loirinha!
Paralisei, derrotada. Olhando para um Lucas que em muito parecia com o homem que
me deixou sozinha na estrada na chuva, constatei o que me parecia óbvio:
— Você ainda ama Tereza.
Ele negou com a cabeça, e quase não escutei sua resposta, de tão frágil e sufocada que
saiu:
— O que me prende a Tereza não é amor.
— Então o que? — quase supliquei por uma resposta. Eu precisava delas naquela noite.
— É culpa.
Sua voz saiu dolorosa. Tão sofrida e sincera que quase me arrancou um soluço. Vi seus
olhos marejarem e senti algo estranho no peito. Uma sensação ruim, que assolou meu corpo,
gelando tudo até chegar aos ossos.
Lucas nem ao menos precisou abrir a boca e eu já sabia o que ele iria dizer:
— Eu matei Tereza, Gabriella. — Seu olhar parecia me sugar para a escuridão. — Eu
matei minha mulher.
Capítulo 32

(Alerta de capítulo com cenas que podem ser gatilhos de pensamentos suicidas)

A escuridão do pasto não era maior que a da alma. Era como se meu coração estivesse
parado, mergulhado num pântano negro de culpa e dor, e agora puxasse tudo ao seu redor para
dentro da mesma areia movediça.
Senti o mesmo gosto amargo na boca de quatro anos atrás. A mesma secura na garganta,
e a sensação de sufocamento.
Pela primeira vez, contaria aquela história a alguém.
Isso seria meu fim.
Ou talvez minha salvação.
— Você já disse isso antes, Lucas — Gabriella murmurou com cuidado, como se as
palavras pudessem me ferir. E de fato feriam. — Entendi na época que você se culpava pelo tiro
que Tereza levou.
— Isso também é culpa minha — murmurei. Sentia as forças do corpo esvaindo-se e me
escorei na caminhonete com a loirinha me fitando de frente, alerta. — Mas você sabe do que
estou falando. César, as senhoras da igreja... todos têm razão. Eu sou um assassino.
Gabriella cruzou os braços ao redor do peito, como se se protegesse do frio — ou de
mim — e eu comecei a botar tudo para fora:
— Tereza não deveria estar na usina aquela noite. Era época de colheita, tínhamos
lucrado muito, e ela apareceu sem aviso. Trazia uma garrafa de uísque, coisa que sabia que eu
gostava, e decidimos comemorar. — As lembranças surgiam em minha mente confusas,
misturando pesadelos com realidade. — Estávamos distraídos e não percebi quando eles
entraram no prédio. Baixei a guarda, e quando vi que a usina tinha sido invadida, era tarde
demais. Eles entraram, subiram os degraus e foram direto para minha sala. Sabiam que lá tinha
um cofre com dinheiro e armas. — Parei mais alguns segundos. O bolo na garganta era imenso.
— Vai ver, acharam que o lugar estava vazio, pois passava de sete da noite, mas encontraram nós
dois, quase nus. Então... simplesmente atiraram.
Três tiros, todos em minha direção.
Nenhum deles me acertou.
Um foi direto no corpo de Tereza, que caiu ao meu lado.
Eu mal tive tempo de reagir ou me defender, pois quando ela caiu ferida, corri em seu
socorro. Só memorizei os rostos dos homens e seus traços, enquanto eles desciam as escadas
como malucos.
— Estávamos sozinhos na usina e o socorro demorou a chegar — falei com a voz tão
baixa que Gabriella precisou aproximar-se. — Dias depois, quando os médicos disseram que
Tereza provavelmente ficaria tetraplégica por conta do tiro, voltei na usina uma última vez e
quebrei tudo. Nunca mais autorizei ninguém a entrar lá.
As imagens de depredação em meus sonhos eram as cenas que eu mesmo fiz, todas
misturando-se em minha mente culpada.
— Ela nunca mais voltaria a andar? — a loirinha perguntou com cuidado.
— Hoje eu já não sei. Alguns médicos disseram que sim. Outros, que não. O problema é
que Tereza morreu com aquele tiro. A mulher que eu conhecia deixou de existir, e a que ficou no
lugar, se recusava a viver.
Subi meu olhar até o rosto de Gabriella. Seu rosto estava lívido, e ela não esboçava
qualquer reação. Algo naquela garota me encorajava a lhe contar tudo, como se eu precisasse que
ela me conhecesse por completo. Até as faces mais sombrias.
— Tereza não queria se recuperar — narrei, olhando para o sobrado de dois andares e
quase enxergando minha ex-mulher através das janelas com cortinas rasgadas. — Ela recusou
ajuda e todo tipo de tratamento que busquei. Dizia que não queria mais viver, e que tinha se
transformado em um fardo para mim.
Vi Gabriella remexer-se, incapaz de me interromper, e agradeci por seu silêncio.
— Eu ainda a amava — retomei. — Tereza jamais deixaria de ser minha mulher por
conta daquele tiro. Tentei mostrar isso a ela. Chamei médicos e fisioterapeutas, e quando ela me
pediu para parar com as tentativas de tratamento eu parei! Busquei até psicólogos e outros
profissionais quando ela começou a falar em se matar.
— Ela chegou a tentar? — Gabriella me olhava com receio.
— Várias vezes. — Senti as mãos trêmulas, e meu olhar ficou úmido, mas nem liguei.
— Mas como uma pessoa que mal consegue erguer as mãos dá cabo à própria vida? Ela nunca
conseguia, e isso a dilacerava por dentro.
Gabriella engoliu em seco e prossegui:
— Ela se alimentava normalmente, então uma vez tentou se engasgar com a comida.
Quando ela viu que conseguia mover parcialmente as mãos, ao invés de vibrar e tentar melhorar
os movimentos, a primeira coisa que fez foi pegar uma faca que eu tinha esquecido na mesinha
ao lado para cortar sua comida. Me disseram para interná-la numa clínica. Que mantê-la ali era
pior, e ela precisava de monitoramento constante. Eu cogitei fazer isso, mas Tereza enlouqueceu
quando soube. Foi a partir desse dia que pareceu me odiar.
“Ela me olhava com raiva por mantê-la viva. Como se, por alimentá-la e mantê-la longe
de facas e seringas, eu fosse seu capataz. Era agressiva quando eu entrava no quarto e sempre
dizia que era meu dever fazer o que ela me pedia. E ela só me pedia uma coisa: ela queria morrer.
“Quando a conheci, anos antes, cheguei a notar sua melancolia. Os Maldonado sempre
pareceram muito gratos por eu me envolver com ela, e certa vez sua mãe me segredou que a filha
passava por uma fase complicada pouco antes de me conhecer. Tereza sempre alternou
momentos de alegria com uma profunda tristeza. Depois do assalto, só a tristeza restou.”
O frio invadia meu corpo enquanto eu narrava tudo aquilo, mas nada era comparado
com o vazio gélido daquelas lembranças.
— Foram meses tentando trazer Tereza. Eu fiz de tudo, até que uma noite, quando fui
alimentar os cachorros, ela aproveitou minha distração para pegar uma seringa que estava na
mesa e que, por descuido, deixei. Eu nem imaginava que ela tinha tanta força nos braços para se
impulsionar e pegar a seringa. Só ouvi o baque do seu corpo caindo no chão, e quando cheguei
no quarto, ela estava aos prantos.
— Pelo amor de Deus, Luca! — Tereza suplicava olhando para mim. Usava meu nome
do passado como uma forma de punição, pois sabia que aquele Luca acreditava em justiça, e se
compadeceria da injustiça de estar presa a um corpo que não queria mais. — Luca, se ainda
resta algum amor por mim, me liberta dessa vida!
— Olha só pra você. — Apontei para ela, enquanto me ajoelhava ao seu lado e a
amparava. — Você conseguiu sair da maca, Tereza! Só um pouco de persistência e você vai
melhorar! Por favor, não desiste.
— Eu não quero, Luca. Eu nunca quis. Por que não podem respeitar minha vontade?
— Porque eu preciso de você aqui!
— Mas e eu, Lucas? — Ela me olhou com dor. Não restava nada em seus olhos além de
um vazio que me sufocava. — Nem meu corpo respeita a minha vontade! Eu me tornei uma
imprestável que nem consegue tirar a própria vida!
— Não diz isso, Tereza. Você ainda pode ser muitas coisas.
— Eu quero ser morta! Eu não quero mais viver! Eu não quero tentar! Me escuta,
Lucas!
A mão dela era frágil. Mal conseguia mover-se, e mesmo assim, parecia empregar toda
sua força para segurar a maldita seringa na dobra do antebraço. Nem ao menos precisei lutar
para retirar a arma letal de suas mãos, e ela gritou, chorando mais e suplicando:
— Não faz isso, Lucas! Me deixa ir. Pelo amor de Deus, me deixa ir. Não pode fazer
isso comigo. Não pode!
— Tereza...
— Você está me matando, Lucas. Você me quer aqui, mas eu já não estou. É só um
corpo, porque meu coração já morreu. Minha alma foi embora. Eu não quero ficar.
— E o meu amor...
— Se você ainda me ama, faça isso por mim — ela implorava, e as lágrimas corriam
por meu rosto.
— Eu te amo, Tereza, mas não me pede isso.
— Então não me ama de verdade. — Ela também chorava. — Não pode me prender
para sempre.
— Não estou te prendendo. Eu vou atrás de médicos e...
— Esqueça os médicos! Só você pode me dar o que eu quero, Lucas. Só você pode me
libertar.
Ela olhou para a seringa. Lágrimas escorriam por seus olhos. Minhas mãos tremiam.
— Eu não posso... — supliquei.
— Então vai ter que me amarrar, pois vou continuar tentando.
Mirei minha mulher, ainda caída.
Ela sempre foi assim. De uma determinação ferrenha quando queria algo. Faria
exatamente o que prometeu até conseguir seu feito.
Me dei conta que eu estava encurralado. Ela tinha tomado uma decisão e não iria
recuar.
Não sei o que faltava em Tereza para querer dar fim à sua vida. Não sei se havia uma
forma de fazê-la desistir daquilo. Nem ao menos sei se era meu direito questionar sua decisão.
Só sei que ela não iria desistir.
— Eu não vou parar — ela sussurrou, e foi ali que me decidi. Se eu não fizesse, ela
continuaria nos torturando com aquelas tentativas frustradas.
Fitei a seringa em minhas mãos e ela parecia ser feita de brasa.
— Só precisa enchê-la de ar — ela dizia devagar e baixo, minando aos poucos minha
determinação em mantê-la viva. — E então coloque ela no acesso que eu tenho dos
medicamentos.
Neguei várias vezes com a cabeça.
— Não consigo fazer isso.
— Eu quase consegui — ela disse num sussurro. — Com certeza você consegue.
— Não posso. — Continuei a negar.
— Se ainda me ama, vai fazer isso por mim.
Talvez eu não a amasse, pois continuava não querendo fazer. Foi então que perguntei:
— E você? Ainda me ama?
Ela não respondeu. Não sei se interpretou aquela pergunta como uma armadilha para
tentar dissuadi-la, ou se simplesmente ela deixou de me amar.
Mas eu só queria saber.
— Me ama, Tereza?
Ela me fitou no fundo dos olhos e disse:
— Eu já morri, Lucas. Meu amor não existe mais.
Aos prantos, tentei ajeitá-la no chão. Minhas mãos tremiam quando posicionei a
seringa no pequeno cano de acesso ligado em uma de suas veias. Um pequeno sorriso formou-se
no rosto dela, e vi sua mão vagar meio sem controle até a minha.
Ela conseguiria se recuperar se quisesse. Só que, por algum motivo, ela não queria.
Chorando e sentindo algo sombrio tomar minha alma, comecei a apertar a seringa. A
força parecia faltar, e então Tereza me encorajou. Levou a mão fraca até o local, como se me
auxiliasse no movimento. Quando terminei de empurrar o êmbolo, ela retirou a minha mão e
segurou a seringa entre os dedos, terminando de esvaziar a minha alma:
— Não conte a ninguém — pediu. — Para o resto do mundo, eu que apertei a seringa.
— Seu olhar perdeu parte da vida, e ela cerrou as pálpebras. — Agora, me deixe dormir. Estou
cansada. Obrigada.
Foram suas últimas palavras.
Não teve uma despedida ou algo assim. Tereza pareceu de fato ressonar por um tempo,
até que simplesmente parou de respirar. Seu coração parou de bater e, naquele mesmo instante,
o meu também.
Quando terminei de narrar aquela noite para Gabriella, meu rosto estava encharcado em
lágrimas. Nunca havia contado sobre aquilo a alguém, e era como se uma das correntes que
prendiam meu peito se arrebentassem depois daquele relato.
— Outras pessoas sabem? — Gabriella perguntou.
Neguei com a cabeça.
— Na época, César me culpou. Espalhou para todos que matei Tereza para ficar com as
terras. Ele é amigo do delegado, e Antenor já quis ficar com Tereza, então os dois tentaram por
tudo me incriminar, mas nunca conseguiram. Um fisioterapeuta que visitou Tereza semanas
antes tinha atestado que ela possuía alguns movimentos das mãos, então era impossível dizer se
ela era incapaz ou não de fazer aquilo. — Parei por um momento, sentindo a culpa pesar em
minhas costas ao ponto de doerem. — E como a única versão dos fatos era a minha...
— Por isso tanta culpa. — A loirinha me fitava com aquela merda de olhar.
De pena.
— Eu matei Tereza, Gabriella — revidei com agressividade, secando as lágrimas do
rosto. — Sou um assassino e você precisa se afastar.
— Você fez o que ela pediu — ela disse com suavidade, como se pudesse distorcer a
verdade das coisas.
— Isso não muda o que fiz. Nem o fato de que eu não mereço estar aqui, nem recomeçar
depois da morte dela. É injusto.
A loirinha permaneceu muda e eu continuei. Despejava tudo de uma maneira que talvez
nunca mais fizesse:
— É injusto eu seguir. Sempre foi. — Enterrei as mãos em meus cabelos. — Foi injusto
ver meus amigos apanharem por minha causa. Dois deles, sendo obrigados a recomeçarem em
outro lugar. Foi injusto quando saí da minha antiga cidade, deixando para trás outros garotos que
pudessem levar a culpa pelo que fiz. — Meu peito parecia em carne viva, e eu sentia gosto de
sangue nos lábios. — Aquele tiro era para ter me acertado, e não ela. Era para ela estar aqui. Não
eu.
— Mas é você quem está. — Gabriella deu um passo em minha direção, como se fosse
me amparar. Recuei, erguendo as mãos e impedindo-a de me tocar.
— Sequer tive coragem para me matar como ela tentou — lamentei.
— Não diz isso! — a loirinha tocou minhas mãos com insistência. Senti os dedos
pequeninos encobrirem os meus.
Merda...
Ainda me aqueciam, como se fossem capazes de me tirar do fundo do poço.
Seu cheiro ainda me embriagava, mesmo com toda a dor.
Ela parecia maior que tudo o que aprisionei por quatro anos, e isso me apavorava, pois
fazia eu querer recomeçar.
E eu não merecia mais recomeços.
— Sai de perto, loirinha! — gritei. Na escuridão, grilos e pássaros noturnos cantaram
em resposta. — Tira daqui seu corpo. Eu não aguento mais sentir seu cheiro. Não aguento mais!
Era desesperador.
Eu a queria. Eu queria outra vida. Eu queria me livrar da dor e de coisas que, por anos,
julguei serem parte de mim.
— Quero ficar, Lucas. — Ela me olhou com determinação.
A mesma determinação que vi em Tereza no dia que em me convenceu a dar cabo de
sua vida.
— Mas você não vai! — esbravejei. — Você não escutou o que acabei de contar? Eu
matei a minha mulher, porra! Eu tenho sangue inocente nas mãos. O que quer do meu lado?
Gabriella tinha os olhos marejados quando sussurrou:
— Eu só quero viver.
Neguei, dando passos apressados para longe dela e na direção do pasto negro.
— Achei que te contando essa história você se afastaria.
— Lucas, isso não muda as coisas. Você fez o que ela pediu. Pode ser considerado
crime, mas... quem sou eu para julgar você ou ela? Quem sou eu para dizer o que foi justo?
Tereza tinha os motivos dela, e não cabe a mim condenar, assim como você teve os seus.
Tampei os ouvidos. Durante os últimos quatro anos vivi assolado com a certeza de que
aquela história me tornava um assassino.
E mais do que isso, o que fiz depois...
Isso sim me tornava um assassino.
O pior era não sentir um pingo de arrependimento por qualquer uma das minhas
atitudes.
Como existiria redenção, se eu não me arrependia?
— Eu faria de novo — confessei. — Se ela pedisse hoje, faria tudo de novo.
— Eu sei — Gabriella disse num sopro.
Olhei para ela. Determinada a permanecer.
Corajosa, jovem e cheia de vida.
Eu daria a vida pela loirinha. Sem pestanejar.
Me apaixonava pela garota abusada e com olhos de uísque. Estava mais viciado nela do
que já estive em qualquer destilado. Pensava nela mais vezes do que sonhava com a morte de
Tereza. Sentia meu peito bater mais por desejo do que por culpa.
Se eu tivesse alguma redenção, a chamaria de “loirinha”.
Só que eu não tinha.
Cumpri a promessa a Tereza de nunca revelar o que aconteceu à polícia. Com isso, perdi
o direito de ser feliz. Era como se eu seguisse preso àquele casarão maldito e com suas sombras
guardando nosso segredo.
— Nunca mais repita o que disse agora a pouco — pedi num tom rouco.
— Que me apaixonei? — Gabriella era audaciosa e me encarou com a sobrancelha
erguida.
— Volte para a casa dos seus padrinhos e pare de me procurar — prossegui, ignorando-
a. — Siga sua vida, loirinha. Você é bem nova. Tem uma vida inteira para querer desperdiçá-la
se enterrando comigo.
Ela negou algumas vezes.
— Você entendeu tudo errado, Lucas — disse com ar sábio. — Quem não precisa se
enterrar com sua ex-mulher é você.
— Só vá embora! — tornei a gritar, sentindo a racionalidade esvair-se com meu
cansaço. — Você não sabe de tudo.
— Então me conte.
— Vai, Gabriella. Me deixa em paz e recomece sua vida em outro lugar.
— Eu gosto daqui. — Ela apontou o vale escuro.
— Só veio para cá para esconder-se de assassinos. Tem milhares de outras cidades,
maiores e melhores, em que pode se abrigar. Você pode conversar com a polícia e buscar
proteção, ou...
— Eu vou ficar, Lucas!
Furioso com sua determinação, virei-lhe as costas e saí, entrando no casarão e deixando
a mulher sozinha. Sei que os cachorros a acompanhariam até os limites da cerca, então não
precisava me preocupar muito. Da janela, a observei parada. Braços cruzados no peito e uma
postura desafiadora.
Tão determinada quanto Tereza.
E se com Tereza eu fui fraco e acabei convencido, com Gabriella faria diferente.
Eu iria fazê-la me esquecer, nem que para isso tivesse que forçá-la a sair dali.
Capítulo 33

Não consegui dormir por dois dias. Tive pesadelos com a imagem de uma mulher que
nunca conheci, como se o tormento de Lucas pudesse ser passado para mim.
Eu senti o peso de seu relato. Vi, em sua voz, todo seu sofrimento.
Só que eu nada poderia fazer.
Lucas precisava travar aquela batalha por si. Por mais que eu quisesse deixar claro que
ficaria ao seu lado, não dava para impor minha presença. Sei que ali eu competia com algo muito
maior que era a dor — e talvez o amor — que ele ainda nutria pela ex-mulher.
Dei ao viúvo aqueles dias, sentindo sua ausência em cada segundo deles.
O que Lucas me contou era pesado. Sequer conseguia me imaginar em sua pele. Não
saberia dizer se faria o mesmo que ele ou se não cederia aos pedidos da pessoa que eu amava.
Se fosse Lucas no lugar de Tereza, seria eu capaz de fazer aquilo por ele?
Ao mesmo tempo, se fosse eu no lugar dela, faria tal pedido, ciente de que condenaria a
pessoa que amo a uma vida inteira de culpa?
Quem era o mais injustiçado dos dois?
Quem foi mais justo?
Seria a justiça humana capaz de definir se Lucas errou ou não?
Era tanta coisa ocupando minha mente que até meus padrinhos perceberam,
questionando se estava tudo bem comigo.
Ficaria, assim que as coisas se resolvessem com o fazendeiro.
Sem saber muito o que seria de nós — e se de fato haveria algum “nós” — decidi
acompanhar meu padrinho à Coralina. Ele tinha vendido todo o milho, e já pesquisava os preços
das sementes para a próxima safra, vendo também o que faria na entressafra.
Chegamos à cidade vizinha no meio da tarde. O acompanhei por toda a cidade, vendo-o
conversar com fazendeiros e comerciantes. O tempo era abafado e anunciava uma chuva em
breve.
Enquanto o padrinho se distraía com a semente e o interesse em testar uma cultura
consorciada de mandioca junto do milho, eu perambulava por Coralina.
Minhas últimas lembranças da cidade eram de uma noite animada, em que Lucas
prendeu sozinho um bando de invasores e depois saímos com o seu casal de amigos. Dançamos
juntos — ainda que ele negue esse fato — e acabei estragando tudo ao confessar meus
sentimentos ao final.
A culpa não é sua por ter sido sincera, Gabriella!
Caminhei pelas ruas asfaltadas da cidade, em sua maioria feitas de blocos que
encaixavam-se com perfeição no passeio. Havia uma avenida principal decorada com palmeiras
em sua ilha central e postes de luzes amarelas. Algumas, já acesas.
Bati os olhos nas portas ainda fechadas do Di Maria e senti um aperto no peito. Sabia
que a praça principal ficava bem ali perto, e caminhei distraída até o local. Ao lado do prédio
suntuoso da prefeitura, uma delegacia e uma pequena construção, que parecia ser o fórum. Havia
avisado meu padrinho que o esperaria ali e me sentei em um dos bancos da praça. Foi quando vi
Lucas descer os degraus da delegacia.
Como um mau presságio, senti um arrepio na espinha.
Ele logo me viu e decidiu não me ignorar. Ao contrário, encaminhou-se diretamente
para mim. Tinha o olhar sério e parecia incomodado com algo.
— Loirinha... — Me olhou por alguns segundos, como se precisasse guardar cada
detalhe do meu corpo, e então prosseguiu: — Foi bom ter te encontrado aqui. Preciso falar com
você.
Franzi o cenho e ele nada disse, apontando para seu carro estacionado em uma das vagas
da praça central.
Em silêncio o segui, parando ao lado da caminhonete e fitando-o, curiosa para saber o
que ele queria.
— Eu... conversei com o delegado. — Ele parecia dividido, como se não soubesse o que
fazer. Assumiu um tom defensivo, perguntando: — Por que não me disse que a polícia estava
atrás de você para ouvir seu depoimento sobre a morte do tal Jesus Silva?
Meu corpo pareceu levar um baque, e precisei me escorar no carro quando as pernas
falharam.
— A... polícia? — em choque, só consegui repetir suas palavras.
— Sim. Eles têm os seus dados e sabem que você viu alguma coisa aquela noite. A
polícia quer saber o que você viu. Por que nunca prestou o depoimento?
Meu coração parou de bater e levei uma mão ao peito, sussurrando quase sem voz:
— O que foi que você fez, Lucas?
Ele me olhou com culpa. Sei que havia algo de errado quando respondeu, incapaz de me
fitar:
— Eu conversei com o delegado. Fica tranquila que ele é confiável. Passei o seu nome e
ele me disse que há um mandado de busca para que preste esclarecimentos sobre a morte de um
tal Jesus Silva Dias em Dom Cervantes. Acho que a polícia pode ajudar, Gabriella, e você vai
poder encontrar outro lugar para...
— Você fez isso só para me forçar a sair daqui? — perguntei, chocada. Decepção
tomando meu corpo junto de uma raiva absurda.
— Não quero que permaneça em Sibipiruna. Sua vida vai ser bem melhor longe daqui.
Desgraçado!
— Com que direito fez isso? — esbravejei, deixando todo meu autocontrole ruir. Levei
as mãos à cabeça, desesperada. — Vai atrair eles pra cá! Eles vão me descobrir!
— Não vão! O delegado não sabe onde você mora, e o principal: ele é confiável. Não
quis falar com Antenor porque nele não confio, mas no delegado de Coralina pode confiar. Ele
pode conversar com o delegado de Dom Cervantes, e seu depoimento seria dado em sigilo. Essas
pessoas nunca saberiam. Você poderia pedir proteção em outra cidade...
— Saberiam, Lucas, porque eles são a polícia!
— Como é que é? — Ele me fitou incrédulo.
— As pessoas que querem me matar — eu falava devagar e bem baixo. — São da
polícia. Dois policiais que trabalham na delegacia de Dom Cervantes.
A ficha pareceu cair para Lucas, que empalideceu um pouco e pareceu gaguejar antes de
dizer:
— Policiais... — Me olhou com um fio de esperança. — Tem certeza?
— Absoluta. Eu fui até a delegacia contar o que vi no dia seguinte ao assassinato. Eles
estavam lá e me viram. Depois, foram até o prédio comercial em que eu morava e atearam fogo
em tudo. Só tive tempo de pegar algumas roupas e fugir.
— Meu Deus. — Ciente da merda que fez, Lucas passou as mãos na cabeça.
Eu explodi:
— Tem noção do que fez por egoísmo? Agora, se o delegado daqui disser que você
andou perguntando sobre meu nome, logo vão chegar até o seu sítio. Eu sou sua vizinha, porra! É
claro que vão me encontrar.
— Eles não vão chegar até você. Tem minha palavra. Mesmo assim, talvez seja bom
olharmos outro esconderijo. Estavam atrás de você, loirinha. Cedo ou tarde chegariam nos seus
padrinhos.
— E isso te isenta da culpa, não é? — esbravejei, nem aí se ouviam nossa conversa nos
bancos da praça central. — Por querer me ver longe, por se incomodar com minha aproximação,
você fodeu minha vida!
— Não me disse que eles eram da polícia! — ele defendeu-se.
— Logo você, Lucas Maldonado! Um homem que já sofreu na mão de policiais quando
jovem, devia saber que antes de sair por aí espalhando minha localização, poderia ter me
perguntado o que eu gostaria!
— Eu não disse onde você está! — Ele parecia se controlar para não explodir também.
Só que naquele momento, eu me dava ao direito de entornar todo o caldo.
— E isso faz diferença? — Apontei o dedo para ele. — Eles vão me achar, Lucas! E por
culpa sua! Tudo, porque você foi um maldito egoísta que não suportou ter alguém invadindo a
sua solidão tão bem construída.
— Não tire conclusões sobre mim — ele pediu em tom sombrio, mas eu estava muito
mais brava, e no meu direito.
Praticamente avancei sobre ele e voltei a gritar:
— É a maldita verdade, cowboy! — Parei a um passo dele. Lucas era uns trinta
centímetros maior do que eu, mas ali, era como se eu pudesse engoli-lo de tanto ódio. — Você
recusa todas as mãos que tentam te tirar desse abismo, e tudo o que fez desde que cheguei foi
cuspir na mão que lhe estendi!
— Eu não quero que se aproxime mais de mim, Gabriella. Fui claro desde o início ao
dizer que nunca poderíamos ter qualquer coisa além do físico.
— E eu sempre fui transparente ao dizer que não ia te cobrar nada. E nunca cobrei! Eu
sempre soube que você tinha mais dor do que capacidade de amar. Sei que não sente um pingo
de consideração ou afeto por mim, mas isso... Isso é trairagem!
Lucas me olhou ferido, como se eu tivesse dito grandes mentiras sobre ele.
— Está enganada quando diz que nada sinto por você — ele soprou baixinho. —
Acontece que não quero sentir.
— Então vá a puta que te pariu com seus sentimentos! — gritei. Vi uma centelha de
raiva nos olhos dele, mas Lucas já me conhecia para saber que eu mandava prudência e controle
à merda quando eu bem entendia. — Se essa é sua maneira de demonstrá-los, volte para sua vida
miserável e sozinho, pois eu desisto!
Comecei a me virar, e Lucas me puxou pelo braço.
— Espera, loirinha...
— Eu nunca tive um lugar que pudesse chamar de lar, Lucas. Nunca. — Algumas
lágrimas ameaçavam cair em meu rosto, mas as limpei. — Pulei de cidade em cidade com minha
mãe, e só parei em Dom Cervantes porque faltava dinheiro para o próximo ônibus. Quando ela
morreu, eu só fui ficando. Sem expectativas, sem planos, sem vontades... Até que dois malditos
assassinos me forçaram a sair de lá e eu vi, pela primeira vez, o que era ter um lar. Ou mesmo o
vislumbre disso. Eu gosto de Sibipiruna. Gosto dos padrinhos, das pessoas da cidade, e até
mesmo das fofocas que correm na praça da igreja. Gosto dos seus amigos e que você abandonou,
e gosto também dos seus cachorros. — Parei, respirando fundo e mirando-o no fundo dos olhos.
— Ao tentar me afastar de você, me tirou todas essas coisas.
Lucas permaneceu mudo. Tinha um autocontrole invejável.
— Não são as pessoas que te odeiam, Lucas — despejei tudo antes que me
arrependesse. — É você quem deixou de se amar. O que aconteceu com você e Tereza te
marcou. Marcaria qualquer um. Mas não define como você se relaciona com o resto do mundo.
— Olhei o pequeno rasgo que ele tinha perto da sobrancelha. — Suas marcas não vão deixar de
existir. — Ele tocou a pele marcada com a cicatriz. — Mas são só um pedaço de quem você é.
— Loirinha...
— Não é só você quem foge do passado. A diferença é que não tenho medo de encará-
lo. Quer continuar enterrado naquele sítio, impedindo todos de se aproximarem? — Dei de
ombros, sentindo lágrimas rolarem por minhas faces. — Vá em frente. Se enterre lá e deixe que o
fantasma da sua mulher continue se alimentando da sua dor. — Dei um passo para trás e me
livrei do seu braço. — Como você mesmo disse certa vez, é tudo o que te resta a oferecer.
Sem lhe dar chance de resposta, saí praticamente correndo. Meu peito batia em
disparado, e lágrimas jorravam do mais puro ódio.
Lucas foi egoísta ao ir na polícia sondar meu nome. Dei meu sobrenome completo a ele
quando prometeu providenciar novos documentos. Confiei, e o fazendeiro rachou minha
confiança. Tudo, para que eu não interrompesse sua maldita paz.
Se enterrar na dor, há anos, não era mais a única opção de Lucas. E se ele se negava a
ver aquilo, que morresse sozinho naquele casarão.
Me apaixonei pelo homem de pegada forte e coração peludo, mas assim como os milhos
das fileiras de plantação dos meus padrinhos, eu arrancaria aquele sentimento pela raiz. Seria só
uma lembrança dolorosa e talvez amarga, de um momento em que sonhei ser sua loirinha, e não
um grão de areia miserável no tempo.
O que eu de fato era.
Lucas nunca sentiu nada por mim. Nem mesmo consideração. Se o sentisse, não me
descartaria assim. E embora eu não tivesse o direito de cobrar qualquer sentimento, me dava a
prerrogativa de me sentir traída com sua delação.
Meus pés batiam na rua de paralelepípedos de Coralina enquanto eu voltava para onde
estava meu padrinho. Precisava proteger ele e Sofia, e se agora minha localização era um perigo,
teria que enfrentar o inimigo de frente.
E sozinha.
Antes, precisava afogar um pouco da minha raiva por Lucas, embora ainda não soubesse
como.
Ao parar do lado do carro sujo de terra de José vi um outro veículo, bem mais limpo,
aparecer na pequena avenida. Levei alguns segundos até me lembrar de onde o conhecia.
— Boa tarde, Gabriella. — Era o prefeito de Sibipiruna, baixando a janela do motorista
e abrindo um sorriso amistoso para mim.
Ele e Lucas se odeiam tanto, não é verdade?
— Boa tarde, César. — Me aproximei, enxugando algumas lágrimas que ainda
banhavam meu rosto.
— Aconteceu algo? — Ele me olhou com preocupação, parando o carro próximo ao
meio fio e descendo meio apressado.
— Tudo bem. — Apesar da raiva que sentia por Lucas, preferi não citar seu nome para
o outro. — Só uma decepção que sofri.
— Hum... — Ele me sondou com cuidado. — Não sei se já conhece o Di Maria, mas é
um ótimo lugar para esquecer decepções.
Olhei para o céu. Era fim da tarde e uma chuva torrencial ameaçava cair em poucas
horas.
Voltei os olhos para César e ele esperava por minha resposta em visível expectativa. Seu
interesse em mim era palpável e, embora eu nada sentisse de volta, não vi maldade em lhe dar
uma noite.
— Conheço sim o Di Maria — falei. — Mas confesso que hoje até as lembranças de lá
gostaria de esquecer.
— Podemos ir para outro lugar, se quiser.
César era atraente. Lembrava muito a mulher exuberante que estampava o porta-retratos
no quarto do primeiro andar do viúvo Maldonado.
Eu não tinha nada a perder, não é?
— Topo. — Aceitei sua mão estendida em minha direção. — Só preciso avisar ao
padrinho.
E saí atrás de José Siqueira.
Naquela noite, eu não me importaria com consequências. Talvez fosse minha última
noite em Sibipiruna.
Talvez fosse minha única chance de afogar a decepção e paixão que iam em meu peito.
E eu não era uma pessoa dada a desperdiçar as chances que a vida dá.
Naquela noite, eu esqueceria Lucas Maldonado.
Capítulo 34

Chovia há horas no vale escuro.


E nada da loirinha voltar.
Depois que ela me deixou falando sozinho em Coralina pensei em segui-la, mas acabei
desistindo. Ela estava nervosa, e eu também. Fiz merda ao fazer perguntas sobre ela para a
polícia, ainda que não achasse que aquilo a colocasse em risco.
O delegado da cidade vizinha era um velho conhecido, e foi o único a conseguir
desestimular Antenor a prosseguir com as investigações da morte de Tereza quando ele aliou-se
a César e tentou por tudo me prender.
Quando perguntei de Gabriella, pedi a ele discrição, e sei que ele a manteria. Ainda
assim, o cenário era mais preocupante do que imaginei. Se era a polícia quem estava atrás da
loirinha, não demoraria nada e eles teriam os dados dos Siqueira. Bastava uma viagem a
Sibipiruna e a encontrariam.
Ao sugerir que Gabriella buscasse abrigo em outra cidade, de fato pensei só no meu
caos interno, mas agora, avaliando bem a situação, talvez fosse o mais indicado.
E pensar que o perigo poderia aproximar-se ainda mais dela — e por minha culpa —
fazia tudo ficar pior.
Eu sequer consegui beber. Com a loirinha nunca adiantou.
Estava sóbrio demais enquanto a esperava, observando as gotas grossas de chuva caírem
sobre o teto da varanda, ensopando o pasto e fazendo os galhos das árvores pesarem.
Vi que seu padrinho chegou sozinho, e que o casal havia se recolhido há horas,
enquanto Gabriella seguia em algum lugar. Longe demais dos meus olhos, o que parecia errado.
Como escorraçá-la do vale quando ela se tornou meu vício?
Os cinco cachorros abrigavam-se da chuva aos meus pés, esparramados no único ponto
seco da varanda.
Minhas botas batiam no assoalho ao ritmo agoniado do meu peito, até que vi um par de
luzes surgir entre as pedras. No meio da chuva não dava para identificar o carro que passou pelas
cercas e atravessou o pasto, parando na última porteira que dava para o terreno dos Siqueira.
O veículo ficou um tempo ali, debaixo da chuva, até que de dentro dele desceu o
motorista.
César.
A raiva borbulhou em mim como leite quente, e observei com um crescente de ódio
enquanto ele atravessava correndo a frente da carroceria e abria o lado do passageiro, deixando
passar uma loirinha meio trôpega.
Bêbada?
Me ergui de pronto, preparado para correr pasto afora até os dois se precisasse.
Vi quando César aproximou-se dela, mas Gabriella o afastou, gesticulando de maneira
exagerada enquanto a chuva empapava seus cabelos.
Mesmo à noite dava para ver a silhueta dos dois. Fosse porque meus olhos estavam
acostumados com a escuridão ou porque as luzes do carro ajudavam. Vi quando o prefeito de
bosta disse algo para a loirinha e ela riu, afastando-o com ambas as mãos em um movimento
meio desajeitado. Ele tentou insistir, mas ela negou várias vezes, e ele decidiu entrar novamente
no carro, largando-a sozinha no meio do pasto.
Antes do carro partir, vi quando ele olhou em minha direção. E quando restamos só eu e
Gabriella parados sob a chuva no vale, a vi grudar os olhos em mim e permanecer de pé, como se
tivesse dúvidas de qual passo tomar.
Foram vários segundos em que ela permaneceu ali. De pé e com os braços cruzados no
peito. A água ensopando seu corpo. Eu estava prestes a tirá-la de lá quando enfim ela se decidiu
e começou a caminhar na direção do meu sobrado.
Seus passos eram firmes, e minha respiração saía ruidosa enquanto a via cruzar todo o
caminho que levava à varanda.
Quando Gabriella atravessou a cerca de arames e sinos, os cachorros correram para
recebê-la.
Pela primeira vez, ela não os afagou. Parecia absorta demais na tarefa de me encarar
enquanto suas roupas colavam-se em seu corpo.
A vi subir os degraus da varanda com determinação e então parar à minha frente. Seus
cabelos estavam grudados no rosto, e a raiz acastanhada sobressaltava-se dos fios dourados.
— Onde estava? — perguntei.
— Sério? — Ela me encarou de maneira petulante. — Acho que estou grandinha demais
para ter que dar satisfações ao meu vizinho.
— Eu já te avisei que César é perigoso, e você chega bêbada no meio da noite justo com
ele?!
Gabriella nada falou, permanecendo muda e me desafiando com o mesmo queixo
erguido de sempre.
— Devia tirar essas roupas, ou vai pegar um resfriado. — Apontei para os tecidos
pingando.
Ela abriu um sorriso mordaz antes de me provocar:
— Com todo prazer!
E então, sem qualquer aviso, arrancou a camiseta que usava, revelando um sutiã tão ou
mais encharcado. Pequeno, de renda, e que mal encobria o bico dos seios.
A vi levar as mãos ao cós da calça, e impedi o gesto segurando-a pelo braço.
— Não faz isso, loirinha.
— Por que? Não gosta do que vê?
Petulante.
Sem dizer qualquer palavra, a puxei para dentro do sobrado. A chuva ainda caía, e
fechei a porta atrás de nós, mantendo o vento frio lá fora.
— Achei que ia me expulsar uma última vez, mas me coloca para dentro. — Sua voz
estava arrastada, sinal de que tinha passado de todos os limites com a bebida. Talvez, no dia
seguinte, nem se lembrasse do que agora fazia. — Quer parar de me confundir, maldito cowboy?
— Não quero te confundir, loirinha. — Tentei manter o controle das coisas, já que ela
parecia descontrolada. — Só estou te tirando da friagem.
— Eu odeio quando é protetor comigo. — Me olhou como um animal ferido. — Odeio
quando se mostra mais velho e controlado. Quando age como alguém que se importa com minha
imprudência ou minha saúde.
— Me preocupo contigo.
— Quero que me use, cowboy. — Ela escorregou a mão para o tecido da calça colado
em seu corpo. — Sem consequências. Sem culpa.
Neguei com a cabeça e ela riu com sarcasmo, jogando os cabelos, que pingavam, para
trás e esbravejando:
— Não quero sua culpa, Lucas! Guarde ela pra sua ex-mulher!
— Gabriella...
— De você, eu quero todo o resto, menos a culpa. — A loirinha aproximou-se de uma
vez. Seu cheiro me tomou de assalto, e vi o princípio do turbilhão que ela causava em mim
chegar com tudo. — Quero desejo, quero raiva... Quero admiração e também decepção. — Seus
dedos estavam ensopados tocando minha pele, e algo em seus olhos brilhava de uma maneira
diferente, talvez pelo álcool. — Só não quero a maldita culpa.
Seu corpo estava molhado de chuva.
Tentador.
Delicioso.
Quente como brasa.
Gemi só de sentir sua pele escorregadia colar-se em mim. Gabriella sorriu daquele jeito
maldito de perverso, e então soprou em minha direção:
— O que mais me irrita é que mesmo te odiando nesse momento, ainda sinto desejo por
você. — Ela aproximou seu rosto de meu peito, e me vi invadido por seu cheiro viciante. —
Ainda quero te sentir dentro de mim, me marcando e me preenchendo como só você é capaz. —
Seus olhos eram uma faísca de raiva e tesão. — Tentei te esquecer essa noite. Juro que tentei
algo com César. — Senti os ciúmes tomar minhas veias e ela percebeu. — Foi pra te atingir. Ver
o ciúme escancarado no seu rosto, como está agora. — Seu olhar se fixou no meu, e vi que ela
seria minha perdição por completo. — Só que não consegui. Nem ao menos um beijo eu quis dar
em César, pois só me lembrava da tua boca. Dessa mão calejada. — Ela tomou meus dedos nos
seus e o toque era quente, mesmo que molhado. — Da voz grossa e de como adora me enforcar.
— Tem certeza de que ele não fez nada com você? — Toquei os fios loiros.
— Só você tem o poder de me desgraçar, cowboy. Só você me tira o ar e eu gosto.
Minha garganta secou.
— Não vai se lembrar de metade do que está dizendo agora, loirinha.
— Melhor ainda.
Seu corpo pendeu para o meu e senti o peso da pele molhada. Recuei um passo e ela
quase desequilibrou-se, enquanto ajeitava a postura e voltava a desabotoar a calça. Tentei
impedi-la, mas ela me rechaçou, atrapalhando-se toda nos movimentos enquanto arrancava a
roupa com dificuldade.
A pele estava arrepiada de frio, e o tom claro e meio pêssego parecia ainda mais cálido
sob as luzes amareladas da noite.
Maldita redenção.
A merda era que eu estava sóbrio demais. Enquanto ela mal parecia ter consciência do
que fazia, eu guardava cada momento.
— Melhor se vestir.
— Não vai querer ficar comigo? — Ela fez um beicinho.
— Você está bêbada.
— Assim como você esteve bêbado em grande parte do tempo em que ficamos juntos.
— É diferente, Gabriella.
Ela fez uma pausa. Tombou a cabeça um pouco e me estudou com afinco antes de dizer:
— Eu hoje entendo você. A bebida anestesia a dor. Isso é bom no início. — Cambaleou,
procurando uma cadeira para se sentar. Frustrado, me deixei cair no sofá atrás de mim. — É
gostoso não sentir nada. Ignorar a dor que se tem no peito. Só que o mundo segue, Lucas. E não
dá pra ficar embriagado a vida toda. — Gabriella jogou as pernas para cada lado da cadeira,
arreganhando-as de frente para mim e me fitando. — Uma hora a cana acaba e o álcool seca.
— Eu te avisei para não se aproximar de mim — murmurei, vidrado no corpo molhado
e cheio de sombras ao seu redor.
— E eu te avisei que nunca fui prudente. — Ela jogou os cabelos para trás, batendo-os
na cadeira e fazendo gotas caírem no chão. Havia uma trilha molhada entre seus seios, e não sei
se era de chuva ou de suor. Quis provar da maldita trilha, mas me contive.
Gabriella percebeu meu interesse. Desceu os olhos até aquele vão de seu corpo e abriu o
mais perverso e ardiloso de todos os sorrisos.
— Não me quer, Maldonado? — Sua voz parecia a tentação em pessoa, e seus dedos
pequenos escorregaram entre os seios, colhendo as gotas que se amontoavam ali.
— Não vou te comer cambaleando de bêbada.
Ela mordeu o lábio inferior, descendo os dedos até a barriga, enquanto secava a pele.
— A escolha é sua — disse em desafio, deixando a mão chegar ao tecido da calcinha. A
filha da mãe ia me atiçar e eu ia deixar, pois com Gabriella eu abria mão de todo controle.
Os dedos se enveredaram para dentro da peça íntima. Dava para ver os contornos sob o
tecido pregado no corpo. Dava para ver até o ponto mais escurecido de seus pelos pubianos ao
redor da boceta.
Salivei.
Ela riu.
— Eu devia te parar — rosnei, apertando as mãos com força e jogando toda minha
tensão ali. — Não está no seu controle, loirinha. Bebeu demais.
— Acha mesmo que eu preciso beber para te atiçar? — A maldita arreganhou mais as
pernas, deixando a virilha toda à mostra. Suas coxas brilhavam molhadas e eu senti o pomo de
adão subir e prender minha garganta.
Ela nem precisava tirar a roupa para me enlouquecer.
Enquanto uma mão seguia dentro da calcinha pequena, a outra vagava pelo resto do
corpo. Subindo e descendo entre os seios, alisando os cabelos e alojando-se no pescoço, como se
me convidasse a fazer igual.
Senti minha pele formigar de vontade de fechar os dedos em sua garganta. A vaga
lembrança de como era tornava-se maior que todo meu passado.
Lá fora, a chuva dava a melodia do lugar. As gotas caíam incessantes, e o cheiro úmido
do pasto não conseguia aplacar o aroma da mulher que abria-se mais na cadeira à minha frente.
— Não farei nada com você essa noite — falei. Talvez, mais para mim do que para ela.
— Então eu mesma faço.
Sua mão enfiada na calcinha agitou-se, e a vi revirar os olhos brevemente. Meu pau
pulsou. As veias do meu corpo trabalharam mais ágeis, e minha cabeça quis rodar de tesão, mas
me mantive sentado no sofá, mirando-a.
Pelos contornos da calcinha encharcada vi quando um dedo enfiou-se em sua boceta.
Delicioso... Devagar... Atrevido.
Sua mão foi e voltou e eu segui os movimentos. A outra escorregou do pescoço,
parando em um seio. O circundou sem tirar o sutiã, e ela entreabriu os lábios vermelhos.
Provocante e sensual como o capeta devia ser quando queria levar alguém ao inferno.
O dedo sobre o seio desceu, arrastando-se por sua cintura. Puxou a calcinha para o lado
e expôs a outra mão, que estava encharcada de prazer. Dois dedos metidos onde eu queria estar.
Engoli parte do bolo que formava-se dentro de mim e Gabriella riu, num som que
misturava gemido com satisfação. Retirou a mão que a masturbava e levou à boca.
Chupou.
Devagar.
Bem devagar.
Provocante.
Minha perdição todinha em pouco mais de um metro e sessenta.
— Sente só tesão por mim, Lucas? — Um indicador ainda estava entre os lábios quando
perguntou. — Acho que não vou lembrar de nada do que me disser, então agora é a hora de se
declarar. Tudo o que vi foi só vontade de me comer?
— Acha pouco?
— Acho. — A língua estralou quando ela retirou o indicador da boca.
— Sou viciado em você, loirinha — confessei. Parte da minha libertação iniciou-se ali.
Botar para fora algo que me sufocava, como há anos aprisionei tanta coisa no peito, era bom.
Sem saber, a loirinha iniciava minha redenção naquele momento, em uma declaração que ela
jamais se lembraria. — Viciado em você por completo. Por cada fio de cabelo tingido. Cada
centímetro da sua pele. Sua teimosia e petulância. Até sua imprudência me vicia. — Esfreguei as
mãos no tecido grosso da calça. — Pode ter certeza, isso é bem mais do que vontade de te comer.
— Então por que me afasta?
— Porque você tá me tirando do fundo do poço, Gabriella. E eu não sei se devo sair.
Ela me fitou. Parecia tão consciente de tudo que por segundos duvidei que tivesse
bebido.
De repente, ela levantou-se da cadeira e jogou os cabelos para um lado dos ombros.
Rebolou e dançou sem música alguma, fazendo os quadris irem e virem tal qual no meio do
sexo.
— Naquela noite em que te vi junto dos cães — ela falou do nada, me fazendo buscar na
memória sobre o que sua mente bêbada falava. — Enxerguei sua dor. Não me importei com ela,
Lucas, porque ela sempre fez parte de você. No dia em que me levou naquele bar e dançamos
juntos, quis que você se livrasse dela, pois sua versão sem culpa também me atraiu. — Ela parou
e então escorou-se na parede, fazendo a bunda descer até quase o chão. — Hoje, não quero saber
quem está na minha frente. Só preciso que me deseje uma última vez.
Gabriella voltou a ficar pé. Moveu-se sinuosa e tentadora, dançando à minha frente num
revide claro daquela vez em que caminhei sem roupa na madrugada.
Seus cabelos jogavam-se ao vento enquanto seu corpo seminu surgia e sumia sob as
sombras. O casarão estava quase todo no breu, mas por algum motivo as poucas luzes caíam
todas sobre ela.
Ela se tocou. Gemia alto enquanto a mão esfregava-se no tecido da calcinha. Dançou
mais e então rebolou, totalmente entregue. Cheia de uma vida que por anos julguei não mais ter.
Não ousei tocar seu corpo. Nem quando ela aproximou-se a centímetros de mim.
Quando quase sentou-se em meu colo e tocou meus cabelos. Quando parou com os seios na
altura da minha boca e apertou os mamilos sob o sutiã, fazendo seus cabelos caírem em meu
rosto. Quando arfou e mordiscou o lábio, bagunçando os cabelos e então sussurrando, quase
tocando seus lábios nos meus:
— Me deseja, cowboy. Só mais essa vez.
Eu desejava.
Mais do que tudo no mundo.
Eu a desejava.
Mas me mantive quieto.
Conversaria com ela no dia seguinte. Sóbria.
Ainda assim, sentia como se algo estivesse fora do lugar. Uma sensação ruim desde que
a vi chegar com o maldito do César.
Quando viu que nada teria de mim, Gabriella me fitou. A cor embriagante dos olhos me
prendeu. Me deixou bêbado com uma só encarada e então soletrou, devagar, chegando a tocar
seus lábios nos meus:
— Quando você acordar, eu não passarei de uma lembrança para você. Tenho certeza
de que você se lembrará de mim por todos os dias, Lucas, enquanto eu, nem por um segundo,
voltarei a me lembrar de você.
Algo ruim gelou minha espinha e a fitei de volta, resmungando:
— É isso que a bebida faz.
Ela negou.
— Não é a bebida, cowboy. É a dor.
E então, seminua e aos tropeços, Gabriella afastou-se.
Seu corpo chocou-se contra uma das pilastras e tentei ampará-la, mas ela me afastou.
Tropeçou até a porta de entrada e a escancarou de uma vez. Os cachorros fizeram festa na
varanda, mas ela os ignorou de novo. Desceu os degraus e encarou a chuva, que agora era fina.
Seminua.
Como uma entidade, vagou pelo vale até chegar na cerca, conseguindo atravessá-la sem
causar ruído algum.
Ela entrou barulhenta em minha vida. Retirava-se silenciosa.
Caminhou devagar e sem olhar para trás, enquanto meus olhos estavam presos em sua
silhueta até vê-la em sua varanda, protegida da chuva. Ela havia levado as roupas enroladas em
um braço, mas não consegui ver se as vestiu antes de entrar. A casa dos Siqueira era de uma
escuridão completa quando a loirinha desapareceu de minhas vistas.
Senti um vazio esquisito no peito. Uma sensação ruim, que era maior e mais dolorosa
que aquela que me acompanhou nos últimos quatro anos. Olhei para o interior do casarão de dois
andares e tudo o que vi foi escuridão e sombras.
Vazio.
Eu estava vazio, assim como aquela casa.

No dia seguinte, acordei bem antes de qualquer galo ou galinha. Parecia de ressaca,
como se tivesse tomado o pior porre de toda a minha vida, ainda que não tenha ingerido uma
gota de álcool.
Sentia o corpo agitado e a mente um verdadeiro caos, e decidi espairecer fazendo a
única coisa que eu ainda parecia fazer bem: trabalhando.
Peguei a caminhonete ainda antes de o sol nascer e fui direto pro prédio da cooperativa.
Os inúmeros pedidos dos fazendeiros da região de que eu reativasse a usina vez ou outra faziam
mais sentido em minha mente. Principalmente agora, que eu via as fileiras de caminhões
esperando para serem abastecidos de cana e então despachados para as cidades vizinhas.
Por anos, nada senti ao ver essa movimentação. Agora, persistia um sabor amargo ao
ver o que minha teimosia causava.
Me afundei na papelada, tentando esquecer a loirinha, sua dança de feiticeira da noite
anterior ou a vontade que eu tinha de matar César por ter ousado encostar o dedo na garota
bêbada.
A manhã passou depressa, e eu mal vi a hora do almoço quando uma confusão nos
corredores do pequeno prédio chamou minha atenção.
Corri para ver o que acontecia e flagrei os Siqueira parados, parecendo procurar alguém.
Ao me ver, Sofia correu até parar à minha frente. Seu semblante preocupado gelou minha
espinha e me fez questionar, antes mesmo de ela ter tempo de abrir a boca:
— Aconteceu alguma coisa com a Gabriella?
Sua expressão séria e cheia de questionamentos me fez prender a respiração, ao passo
que sua resposta foi como um soco em mim, arrancando o ar:
— Ela sumiu, Lucas.
O chão se abriu.
— Como “sumiu”? — Andei até os dois em uma postura que exigia respostas.
— Acordamos cedinho ela ainda estava dormindo — José começou a contar, enquanto
amassava o chapéu nervosamente entre as mãos. — Fomos direto para a plantação, como todos
os dias. Ainda tem muito milho pra colher. Quando voltamos, a casa estava vazia.
— Ela pode ter ido até a cidade — tentei, ciente de que algo realmente estava errado
para os dois me procurarem ali.
— Não — Sofia negou. — Ela deixou uma carta. Disse que nunca quis colocar nós dois
em perigo e que ia enfrentar os... você sabe.
— O que?! — gritei, tendo todas as atenções da cooperativa voltadas para mim. — A
loirinha endoidou?
— Não sabemos o que deu nela — José me olhava desconfiado, como se de alguma
forma eu tivesse culpa naquilo.
E talvez tivesse mesmo.
— Venham até minha sala — os chamei.
— Não dá — Sofia recusou. — Temos que ir atrás dela. Eu tinha dado um dinheiro para
Gabriella, e acho que ela o usou para pegar um ônibus ou pagar um motorista. Só viemos saber
se você teria notícias do paradeiro da menina. — A senhora me olhou com esperança. — Ela te
falou alguma coisa?
Várias.
E de todas elas, a que mais pesava em minha mente era:
“Quando você acordar, eu não passarei de uma lembrança para você”.
— A loirinha chegou tarde ontem — contei. — Nem sei como dizer a vocês, mas... ela
foi até meu sítio. Não falou coisa com coisa, mas agora sei que se despedia. Eu não fazia ideia de
que ela pretendia sair de Sibipiruna.
— Gabriella é teimosa e desajuizada — José tinha a voz alterada de preocupação. Meu
coração mal batia no peito. — O que deu nela pra sair daqui assim, fugida?
A culpa era minha.
Eu que causei aquilo, mais uma vez.
Com minhas reservas em mantê-la perto, meu descontrole ao perceber que me afeiçoava
à garota, fiz burrada. Me precipitei e tentei afastá-la de Sibipiruna.
E ela acabou fugindo de vez.
— Eu... Vocês... — gaguejando meio desnorteado, comecei a caminhar na direção da
saída, enquanto falava com os Siqueira. — Não vão atrás dela. Pode ser perigoso. Deixa que eu
cuido disso.
— Não vamos ficar parados. Ela só tem a gente, Maldonado — Sofia, teimosa como a
afilhada, me desafiou. — Se tiver notícias dela, nos avise, mas também vamos atrás.
Sem perder mais tempo, corri para a caminhonete. Se eu fosse rápido, talvez
conseguisse encontrar a loirinha ainda na estrada.
Ia catar a garota teimosa e imprudente pela cintura e trazê-la de volta e em segurança.
Corri o mais rápido que pude pelas estradas enlameadas, desviando de poças e buracos
criados durante a chuva torrencial da noite anterior.
Ao chegar no asfalto cinza de Sibipiruna, engoli todo o maldito orgulho que alimentei
por anos e parei na porta da delegacia. Antenor era um bostinha pau mandado do prefeito, mas
continuava sendo o delegado da cidade.
Havia uma confusão generalizada na entrada do lugar, e aquilo só me deixou ainda mais
apreensivo. Vi quando Antenor desceu as escadas da delegacia com uma expressão furiosa,
seguido de dois policiais. O parei no meio do caminho. Não poderia perder tempo. A loirinha
corria perigo.
— Preciso falar com você, Antenor. É urgente.
— Agora não, Maldonado. Tenho problemas demais em uma manhã só para perder
tempo batendo boca com você.
— Que problemas? — Franzi o cenho, receoso que fosse algo relacionado a Gabriella.
— Os caras que você pegou. — Ele me encarou. — Fugiram.
— Que?!
Que merda estava acontecendo nessa cidade?!
— Fugiram — Antenor repetiu. — Os três que foram pegos nas suas terras e o quarto,
que foi preso na usina. — Sem se importar em me esclarecer com mais, ele encaminhou-se para a
viatura estacionada ali do lado. — Estou a manhã toda atrás deles, agora vou até Coralina ver se
o delegado de lá tem pistas.
— As câmeras instaladas na praça...
— Não pegaram nada.
O segui e, antes que ele entrasse no carro, o chamei:
— Antes precisa me ajudar. A afilhada dos Siqueira sumiu. Precisa ir atrás dela.
Antenor paralisou alguns instantes. Me fitou e então perguntou:
— Você tem alguma coisa com ela, não tem?
— Isso não interessa agora!
— Lucas, sem tanto ciúmes. Vai ver a garota só foi até Coralina tomar um sorvete. O
dia hoje promete ser quente.
— Ela deixou uma carta para os Siqueira se despedindo e dizendo que voltaria para sua
antiga cidade. — O pânico me tomava pouco a pouco, enquanto os minutos passavam e eu me
dava conta da seriedade da situação. Eram os últimos sinais do meu despertar. — Só que ela não
pode voltar, Antenor. Lá ela corre perigo!
O delegado franziu a testa. Me encarou meio desconfiado e questionou:
— Por que ela corre perigo?
— Não posso dizer — resmunguei.
Éramos desafetos. Passei os últimos quatro anos nutrindo aquela animosidade em todas
as vezes que encontrei Antenor. Agora, ele cobrava seu preço ao abrir um sorriso babaca e
concluir:
— Então também não posso te ajudar.
O vi ligar a viatura e partir, me deixando sozinho e sem saber o que fazer.
O desespero me tomou.
Sem saber sequer para onde ir, voltei para o sítio. Lá encontrei os Siqueira também sem
rumo. Eles ajeitavam coisas dentro do carro e, ao me verem, aproximaram-se com um papel
dobrado e com a letra de Gabriella.
A maldita carta sequer era endereçada a mim, mas suas palavras foram o golpe certeiro
em meu peito.
Padrinhos,
Primeiro, gostaria de agradecer por todas essas semanas de carinho e atenção. Só
Deus sabe como se tornaram importantes para mim. Depois que minha mãe morreu, acho que
me esqueci do que era ser cuidada, até mesmo por mim. Me esqueci também do que era gostar
de alguém. Talvez, por um tempo, deixei até de gostar de mim mesma. Reaprendi em Sibipiruna.
Nunca vou me esquecer do almoço gostoso. Nem dos ensinamentos sobre o campo.
Acho que jamais serei fazendeira, mas viveria tranquilamente no vale para sempre. Aí, descobri
um lar.
Desculpem qualquer decepção. Sei que sou um pouco imatura e talvez me arrependa do
que estou fazendo agora, mas é que não quero colocar vocês em perigo. Também não quero
mais machucar meu coração, ou ser tão imprudente. Estou cansada de não ser de ninguém, e
percebi que antes de pertencer a algum lugar, preciso me livrar de todo meu passado. Não dá
para recomeçar com tanta coisa em aberto.
Cuidem do vale. Esse lugar é especial.
Amo vocês. Não duvidem do que sinto em tão pouco tempo. É que sou dessas. Me
apaixono fácil, mas juro que é verdadeiro.
Espero voltar em breve. Assim que me ver livre de todos os fantasmas do passado.
Gabriella Alves
A letra era caprichada e o papel tinha o cheiro dela.
Por que fez isso, loirinha?
Que diacho de garota imprudente!
O que ela queria indo atrás de policiais assassinos? Ia enfrentá-los de peito aberto?
— O que vão fazer? — perguntei para José Siqueira.
— Vamos até Coralina buscar informações. Viram quando ela pegou uma carona até lá.
Talvez ela ainda esteja na cidade vizinha.
— Ela não deixou claro se voltou direto para Dom Cervantes — Sofia falou. — Se
Gabriella for esperta, coisa que sabemos que ela é, vai ficar na região, mas escondida. Então,
também não podemos chegar procurando por ela. Nossa ideia é ir atrás das pistas que ela deixou,
mas não bater diretamente em Dom Cervantes.
Quanto tempo isso ia levar?
Vi o casal sair meio apressado, e tudo o que restou foi uma solidão desoladora.
Tanta coisa acumulada explodiu quando me vi dentro do casarão sombrio. Aquele lugar
me sugava de tal forma que nem mesmo o cheiro dela se impregnava ali.
Com a porta aberta, deixando os cachorros entrarem, vaguei pelos cômodos vazios.
Parados no tempo.
Sem vida.
Me matando dia a dia.
Depois de rodar tudo e incapaz de esquecer Gabriella, parei no último e mais temido dos
cômodos.
O quarto do primeiro andar.
Lá dentro, além da maca velha e da mesinha de cabeceira, tudo o que vi foi uma loirinha
encolhida, com medo e suja de sangue.
“Não dá para recomeçar com tanta coisa em aberto...”
Realmente, não dava.
O sol sumia entre as pedras do vale enquanto eu, pacientemente, empilhava toras de
madeira ao redor do casarão. Peguei três galões de gasolina no galpão em que estacionava o
carro e despejei o líquido por toda a circunferência da casa, ensopando as vigas de madeira e
todo o entulho que juntei para ajudar na combustão.
Enquanto trabalhava, o cheiro do álcool doía em minha mente. Não estava embriagado,
mas também me sentia longe do que poderia se considerar sóbrio.
Meus reflexos estavam atentos como nunca, mas minha mente vagava num turbilhão de
raiva, culpa e dor.
Pela primeira vez, eu me lembrava de tudo.
Pela primeira vez, esquecer não era uma opção.
Pela primeira vez, a culpa me fazia querer tentar.
Diálogos de nós dois tomavam minha mente quando acendi a primeira chama,
queimando uma pilastra encharcada de álcool:
— Você vai ser minha ruína, loirinha.
— Ou talvez eu seja sua redenção.
De fato, Gabriella.
Você era minha única redenção.
Redenção
Capítulo 35

As chamas alcançavam mais de cinco metros de altura, e minhas faces ardiam com o
calor. O fogo crepitava, soltava faíscas longe, e fazia a madeira ranger metros à frente.
Eu poderia me jogar em direção às chamas.
Acabar com tudo e transformar culpa, solidão e dor em pó.
Pó.
É o que eu era.
Um grão miserável.
Adoecido.
Podre.
Culpado.
Sempre, o culpado.
O álcool já não fazia mais efeito.
Há tempos que o álcool não fazia efeito.
Será que as chamas dariam um fim definitivo a tudo?
E se eu me jogasse?
Mas eu não era capaz.
Há que se ter muita coragem para se jogar em direção a uma casa em chamas.
E eu era um covarde.
Mirei minhas mãos. Sujas de fuligem e marcadas pelo trabalho incessante.
Fechei os punhos, ainda sentindo a maciez dos cabelos loiros, marcados em minha
memória.
Ah, loirinha...
Uma das pilastras da varanda cedeu, e a viga caiu em um estrondo ruidoso, fazendo os
cães se eriçarem em latidos desesperados.
A casa ia ruir.
Memórias queimavam dentro dos cômodos.
Um raio cruzou o céu, e me dei conta que em breve uma chuva aplacaria tudo.
Até que as gotas caíssem, que tudo virasse cinzas.
Eu não queria mais lembrar.
Me aproximei das chamas. As faces mais quentes. O corpo febril.
Os cachorros aumentaram os latidos, prevendo o perigo.
“Quando você acordar, eu não passarei de uma lembrança para você. Tenho certeza de
que você se lembrará de mim por todos os dias, Lucas, enquanto eu, nem por um segundo,
voltarei a me lembrar de você.”
Você estava certa, loirinha...
Nem todo o whisky do mundo era capaz de me fazer te esquecer.
O barulho de vidro estourando fez Sombra e Perverso latirem alto, e notei que Juiz era o
único que não parecia incomodado com o fogo. Vai ver, ele percebia que ali eu executava a
primeira sentença. Queimar aquela casa era como iniciar meu levante.
Gabriella me fez perceber que aquele local me aprisionava. As paredes eram sólidas
como uma cova, e as sombras alimentavam-se da minha culpa.
Algo explodiu no segundo andar e precisei me afastar alguns passos.
Não, eu não poderia mais me manter afundado em escuridão.
A culpa por fazer a loirinha sumir do vale era imensa. Talvez, maior do que tudo que
carreguei nos últimos anos. Queimava o peito, mas, ao contrário da culpa pela morte de Tereza,
essa me forçava a me mover.
Eu só não conseguiria sair do vale com aquela casa de pé. Ela era minha prisão.
Por isso, tudo queimou.
As cortinas gastas.
A prataria herdada pelos Maldonado.
As garrafas de bebida vazias.
As fotografias.
As coisas de Tereza.
As sombras.
Os fantasmas.
A dor.
Foi a primeira a sumir do meu corpo, virando cinzas junto do casarão.
O vazio em meu peito se desfez pouco a pouco, alimentando a chama viva que engolia
cada viga de madeira daquele lugar.
A fumaça que se erguia do incêndio não me sufocava como a raiva ou a culpa. Essas
duas ainda persistiam. Agora, por um novo motivo.
O calor do fogo que quase invadia o pasto não era maior que a minha determinação em
acabar com tudo aquilo.
Em recomeçar.
Antes de queimar a casa, tomei cuidado para isolar toda a vegetação ao redor. Fiz
aceiros para impedir que o fogo se espalhasse, e isso me tomou horas. Agora, a chuva contribuía
com meu serviço, derramando as primeiras gotas grossas no instante exato em que o primeiro
andar cedeu.
Tudo ruiu em um estrondo assustador, mas sequer senti medo. Me lembrei que deixei
toda a roupa de cama nas gavetas, e agora não tinha sequer um lençol para me cobrir do frio.
Abri um sorriso.
Como era bom se livrar de algo que te prendeu por anos.
Quando a chuva caiu, senti o sal das lágrimas em meus lábios. No meio do pasto
enlameado, chorei.
Motivos?
Eu tinha vários.
Era um misto de alívio com... medo.
Eu vou te achar, loirinha.
Salvei minhas camisas, e preciso do seu corpo para enchê-las com seu aroma.

Era manhãzinha quando os Siqueira retornaram. Pararam assombrados diante das ruínas
do casarão que, com a chuva forte que caiu, apresentava somente algumas chamas pequenas em
um ou outro local.
Eu nem ligava. Desconversei quando perguntaram o que aconteceu, dizendo que foi
uma vela que queimou uma cortina. Estava mais interessado em notícias de Gabriella, mas eles
não as tinham.
Em Coralina, a única pista que tiveram foi que a garota partiu em um ônibus rumo à
capital. Suspeitavam que de lá ela pegaria outro para Dom Cervantes, mas não tinham certeza.
Como eles tinham uma colheita para finalizar, e como dona Sofia parecia cansada da
noite insone, sugeri que ficassem no sítio. Tive de deixar evidente meu envolvimento com
Gabriella, e contei a eles o que sabia sobre os assassinos que estavam atrás dela, que era o
mesmo que eles sabiam.
O casal confiou em mim e concordou em permanecer no vale. Se notícias da afilhada
surgissem em Sibipiruna, me avisariam.
Eu, agora sem teto e com uma sensação de leveza no peito, parti no meio da manhã. Não
iria para a capital. Sei que de nada adiantaria. A rodoviária de lá era imensa e jamais encontraria
Gabriella. Minha intenção era ir direto para Dom Cervantes, e lá conseguir informações.
Agora, minha missão não era só encontrar a loirinha. Eu tinha por meta de vida protegê-
la e, para isso, precisaria saber quem eram os homens que a ameaçavam.
Eles nem faziam ideia de com quem tinham cruzado o caminho.
Antes de ir até a antiga cidade da loirinha, passei em Coralina. Lá, conversei com o
delegado e perguntei tudo o que pude sobre a polícia da outra cidade. Apesar de ocupado, me
atendeu. Antenor estava furioso com a fuga dos invasores de Sibipiruna, e todas as cidades da
região estavam em alerta. Eu achava tudo aquilo muito estranho, mas tinha mais com que me
preocupar.
Parti no mesmo dia. Não quis perder mais tempo.
A viagem a Dom Cervantes durava cerca de dezessete horas. Como estava acordado
desde a noite anterior, tive que parar em um hotel na beira da estrada para descansar um pouco.
Aproveitei para ligar e perguntar para os Siqueira se havia notícias de Gabriella.
Nada.
Tentava não deixar o desespero me tomar. Precisava de foco, ainda que a sensação ruim
não escapasse de meu peito.
Cheguei em Dom Cervantes na manhã do dia seguinte. Nunca fui praquelas bandas,
então nada conhecia sobre a cidade.
Era um lugar meio frio e com clima chuvoso. Não sei de onde a loirinha tirou os
vestidos curtinhos que usava, já que sua antiga cidade pedia outras vestimentas. Intrincado no
meio de montanhas, o município era quase como Coralina em tamanho, e não demorei a
encontrar a delegacia.
O delegado de Coralina me garantiu que a autoridade máxima da polícia de Dom
Cervantes era pessoa honesta, mas eu não confiava. Decidi não falar diretamente com ele. A vida
da loirinha estava em risco, e qualquer passo em falso colocaria tudo a perder. Por isso, deixei a
coleta de informações para o delegado conhecido meu.
Me instalei na cidade como um forasteiro qualquer. Eles tinham uma serra ali perto com
cachoeira e trilhas, então foi fácil me hospedar em um dos hotéis sem chamar muita atenção. O
lugar vivia cheio de turistas passageiros, e passei a rodar a cidade como mais um deles.
No dia seguinte, comecei a fazer perguntas. Sobre a região, o clima, os moradores...
Minha intenção era ir conquistando a confiança de algumas pessoas até chegar ao assunto que
me interessava: a morte de um tal Jesus Silva Dias.
Não sei ainda o que procurava, nem quanto tempo levaria até que tivesse de novo a
loirinha comigo.
Mas eu ia conseguir.
Era uma certeza.
Capítulo 36

Levei quase quatro dias para chegar a Dom Cervantes.


O dinheiro que os padrinhos me deram e que juntei para uma emergência até pagava
uma passagem direto para lá, mas me faltaria para a hospedagem, e precisava economizar. Por
isso, parei em várias cidades e cheguei a pedir carona. Isso ajudou a traçar um plano com calma e
guardar dinheiro para o hotel.
Eu não era uma maluca inconsequente na maior parte do tempo.
Ao menos eu acho.
Por mais que minha “fuga” de Sibipiruna tivesse motivos que iam além do possível
perigo que meus padrinhos corriam, não tinha a intenção de fazer mais burrada.
Eu realmente não queria colocar os Siqueira na mira dos policiais assassinos. Não blefei
com Lucas no dia em que afirmei que seria a primeira a sumir do vale se desconfiasse que eles
corriam perigo por minha causa. Foi exatamente o que fiz.
Mas além disso, havia outro motivo para minha partida abrupta.
Eu mal lembrava do que disse a Lucas quando invadi seu casarão bêbada. Me lembro de
tomar todas em um bar com César. Ele tentou por tudo tirar proveito, mas eu nunca o quis. Me
lembro dele fazendo perguntas também. Essa parte, confesso, me causava certo arrependimento.
O prefeito de Sibipiruna não forçou nada fisicamente comigo, mas não me lembrar de
tudo o que conversamos no bar me deixava vulnerável.
Será que contei a ele mais do que devia?
Ah, Gabriella. Você sempre sendo imprudente.
Acontece que eu estava furiosa com Lucas. Decepcionada ao extremo.
Me dei conta que ele jamais sentiu algo por mim. Estava soterrado em dor, isso eu já
sabia, e não moveria uma palha para se erguer.
Fui negligente com meu coração ao deixá-lo se infiltrar. Achei que meu desejo por
Lucas nunca ultrapassaria o carnal, e enquanto tudo se resumisse a sexo, eu não me importaria.
O problema é que me afeiçoei. Passei a me importar. Quis saber sobre seu passado não
por curiosidade, mas numa tentativa de trazê-lo à luz. De aproximar nós dois.
Me afeiçoei ao vale. Aos cães. Ao viúvo.
E me quebrei toda no processo.
Estava ferida com sua traição. Ele nunca quis minha presença. Me tolerou por desejo, e
ao primeiro sinal dos meus sentimentos, deu um jeito de me afastar.
Lucas deixou sua culpa o engolir, e nada restou em seu coração. Não havia campo para
eu conquistar, e eu jamais passaria de uma invasora do seu peito.
Estava cansada de não ser a dona de paixão alguma.
Chorei um pouco na estrada. E mais um pouco quando cheguei no quarto do hotel
barato em que ia me hospedar. No caminho, comprei tinta para cabelo.
Foi com lágrimas nos olhos que me despedi da “loirinha”, voltando a ficar morena. Se
me vissem novamente em Dom Cervantes, que fosse na antiga versão. Não queria correr o risco
de me associarem à Sibipiruna, os padrinhos ou o vale.
Me hospedei o mais longe possível da região central, em um hotel que ficava quase nos
limites do município.
Ao menos, já sabia o que procurar. Precisava ir atrás dos parentes de Jesus. Meu intuito
era entender as motivações da morte que presenciei. Todos os jornais sempre noticiaram que a
vítima não tinha antecedentes, mas algo ali não se encaixava.
Eu vi a execução. Não foi um assalto aleatório e sem critério como os jornais diziam.
Foi uma morte muito bem direcionada.
O que Jesus fez para ser executado por dois policiais?
Será que, ao saber das motivações desse crime, eu teria mais informações para me
resguardar?
Tomei todo o cuidado do mundo para não ser vista, afinal, ali eu poderia ser
reconhecida. Me mantive a maior parte do tempo no quarto de hotel, até que vi em um jornal
local uma matéria sobre a morte de Jesus. Na reportagem, mostravam a mãe do homem morto
dando entrevista com o uniforme de uma empresa. Eu sabia que empresa era essa — vantagens
de se morar numa cidade minúscula —, então tudo o que tive que fazer foi me esconder atrás de
um muro em frente à empresa que a mulher trabalhava.
Quando deu por volta de cinco e meia da tarde, vi quando alguns funcionários
começaram a sair. Não demorou muito e a mesma senhora da TV passou pelos portões de ferro.
A mulher devia ter de quarenta a cinquenta anos, e logo despediu-se das suas colegas de
trabalho, começando a caminhar lentamente e só.
A segui a uma distância segura, tomando todo o cuidado do mundo para também não ser
vista.
Não foi fácil. Ela morava longe e passou em uma padaria no caminho. Meu “alvo”
andava sem pressa, cumprimentando um ou outro passante. Ela chegou a conversar com um trio
de crianças. Uma menininha de cabelos castanho-claros e dois garotos que tinham toda a atenção
nela. Vi a mulher conversar com a menininha e então partir em uma caminhada que parecia
nunca acabar e que só me colocava em risco.
Ela morava em um bairro afastado da região central. Simples e com casas mal-acabadas.
Não muito longe de onde morei, e de onde o filho dela foi morto, o que explicava o que ele fazia
naquela rua erma. Devia estar indo ou vindo da casa da mãe quando foi alvejado.
Esperei que ela entrasse e que a noite chegasse. Quando a rua estava vazia e escura o
suficiente para eu não ser vista, saí de um terreno baldio em que me escondi e toquei na
campainha do portão de ferro.
Não demorou e a mulher de meia idade apareceu. Já não usava o uniforme e tinha os
cabelos lavados. Obviamente não me reconheceu, e franziu o cenho ao me ver em seu portão.
— Pois não? — disse meio receosa.
— Boa noite, dona... — Tentei lembrar o nome dito no jornal. — Dona Célia. — Ela me
cumprimentou educada e continuei: — Eu vim aqui falar sobre seu filho Jesus Silva.
Imediatamente ela fechou o cenho, aumentando seu receio.
— Se você for de algum jornal, não estou a fim de dar entrevistas. — Me olhou com
remorso. — Já remoeram demais o passado do meu filho tentando caçar um motivo para o que
aconteceu.
— E acharam alguma coisa? — perguntei de maneira apressada, talvez mais sedenta por
respostas do que aquela mãe.
— Não existe um motivo — ela disse séria. — Meu filho foi morto de maneira injusta.
Leviana. — Seu rosto tornou-se duro. — Ele foi executado, mas não sei como provar. Só me
deixem em paz.
Vi a mulher virar as costas sem ao menos abrir o portão e me desesperei. Eu precisava
de respostas. Quase gritei para que ela me desse ouvidos:
— Espera! — A vi parar no meio do caminho. — Eu quero ajudar. Na verdade, também
busco respostas para o que aconteceu com seu filho. Eu preciso saber se as pessoas que atiraram
nele tinham algum motivo além… além de levar seus pertences.
Célia me observou com cuidado. Não parecia ter medo de algo ou alguém. Só parecia...
injustiçada.
A mulher me analisou traço por traço e então disse:
— Meu filho nunca fez mal a alguém. A polícia diz que todos os indícios são de um
latrocínio, que é roubo seguido de morte, mas eu não acredito. — Ela ergueu um dedo em atitude
indignada. — Ele levou cinco tiros à queima-roupa. Foi execução, eu sinto!
— Ele tinha algum inimigo? — perguntei. — Motivos para ser morto assim?
— Quem é você, menina?
Tive de morder os lábios para não revelar à senhora quem eu era. Não dizer a ela que
tinha visto seu filho morrer, e que desde então era ameaçada por seus executores.
— Assim como a senhora, também busco justiça — foi o que falei. — Quero descobrir
o que fez essas pessoas atirarem no seu filho e se há uma forma de prendê-los. Não posso dizer
quem sou, mas te dou minha palavra que queremos o mesmo. — Parei ansiosa e respirei fundo,
tentando avançar: — Pode me deixar entrar?
Célia me esmiuçou por vários segundos, antes de murmurar em tom desconfiado:
— Não existe justiça nesse mundo, menina. Meu filho foi morto e nunca mais vai voltar.
— Ela virou as costas novamente. — Não faço ideia de que motivos ele teria para ser executado,
e duvido que você saiba.
— Talvez ele tenha algum amigo que faz ideia do que aconteceu. Algum familiar?
A senhora parou uma segunda vez. Seu corpo pareceu tenso, e tudo o que ela fez foi
sussurrar, ainda de costas e do outro lado do portão:
— Eu não sei de nada, garota. Melhor você ir embora.
Ela sabia de alguma coisa, agora eu tinha certeza.
Insisti mais uma vez e fui ignorada.
A morte daquele homem não foi “consequência” de um simples assalto. Sua mãe
parecia certa disso.
E eu precisava descobrir o porquê.
Voltei para o quarto em que estava hospedada andando. Era uma caminhada tão longa
quanto foi a ida, mas eu precisava economizar. O pouco dinheiro que juntei na estadia em
Sibipiruna deveria me sustentar ainda por alguns dias. Não tinha outra fonte de renda, e sequer
um celular no bolso.
Isso era bom e ruim para meus planos. Ajudava a não ceder na decisão de não entrar em
contato com os Siqueira. Estava preocupada com eles. Depois de tudo o que fizeram, fugi
deixando somente uma carta meio apressada, mas é que naquele dia eu agi no calor da emoção.
Quis fugir de uma decepção amorosa e nem cheguei a me despedir. Sei que eles nunca me
deixariam partir do sítio e, se soubessem meu real paradeiro, viriam atrás de mim. Por isso, não
entrei mais em contato.
Será que se preocupavam comigo?
Será que chegaram a fazer buscas por mim?
Será que outras pessoas além deles chegaram a se preocupar?
Merda de coração emocionado!
Quase uma semana havia se passado e eu só pensava em Lucas.
Me perguntava se ele ao menos sentiu minha falta no seu “vale isolado”.
Duvido muito, Gabriella. A essa hora, deve estar muito feliz, de volta com sua solidão e
sem a “loirinha” para encher seu saco...
Eu realmente fui muito imbecil em me apaixonar por um viúvo de coração ferido.
Andei todo o caminho de volta ao hotel divagando sobre o desastre que era minha vida
romântica — para não dizê-la como um todo — e cheguei já com a noite alta. Passei em um
posto de combustíveis e comprei uma comida qualquer. Salgadinhos e um refrigerante barato.
Quando cheguei na recepção do hotel, notei que o homem que sempre ficava na entrada
me olhou de maneira estranha. Um alerta soou em minha mente, e fiz a anotação mental de
mudar de hospedagem no dia seguinte. Procuraria algo mais afastado ainda. Talvez, um dos
motéis que ficavam na beira da estrada.
Eu só precisava falar de novo com dona Célia e teria as respostas. Sei que ela poderia
me ajudar, embora ainda não soubesse como.
Entrei no quarto e comi rapidamente, sempre atenta à porta. Eu odiava aquele clima de
apreensão constante, e mal via a hora de ter minha vida de volta, ainda que fosse em outra
cidade.
Gostaria que fosse em Sibipiruna, mas começava a cair na real que talvez aquele não
fosse o melhor lugar. Não conseguiria tropeçar em Lucas todos os dias ciente de que sentia algo
tão grande por ele e não era correspondida.
Por precaução, coloquei uma cadeira escorada na porta do quarto, além de trancar todas
as janelas e manter a TV desligada, atenta a todo e qualquer barulho.
Entrei no banheiro e tomei um banho demorado, buscando relaxar depois de mais um
dia sem muitos avanços.
Ao menos eu sabia onde a mãe do tal Jesus morava, e poderia voltar lá quando julgasse
novamente seguro.
Me vesti e me deitei na cama apertada, mirando o teto e tentando controlar o medo.
Sentia meu coração disparado em mais uma noite solitária e sem proteção naquela cidade que só
me causou pesadelos.
No dia seguinte, acordei cedinho e já finalizei minha estadia. Paguei as diárias
pendentes e combinei na recepção de sair ao fim da manhã. Só precisava voltar ao quarto para
buscar minhas coisas. O check-out demorou mais do que deveria, então aproveitei para tomar o
café que eles serviam. Estava me alimentando porcamente naqueles dias, e qualquer refeição a
mais era bem-vinda.
Quando tudo acabou, voltei para o quarto para pegar minhas coisas. Já estava tudo na
mochila, mas eu preferi não chamar muita atenção, então tinha a deixado guardada na suíte.
Ao girar a maçaneta para entrar, um calafrio me atingiu.
Encontrei a porta destrancada.
Paralisei no corredor, indecisa se entrava ou não. Foram segundos de apreensão até que
resolvi abrir a porta de uma vez.
Tudo silencioso e vazio.
“Vai ver a camareira foi limpar o quarto por julgar que ele já havia sido desocupado e o
deixou destrancado”, pensei, enquanto corria para pegar minha mochila largada dentro do
guarda-roupa.
Dei uma última olhada no banheiro para ver se havia deixado alguma coisa para trás
quando retornei para o quarto, dando de cara com alguém parado no portal, bloqueando minha
saída.
Meu coração parou.
— Incendiar o seu muquifo não foi recado o bastante? — O homem de tatuagem no
braço e com a cabeça raspada me olhava de uma maneira bem conhecida.
Do mesmo jeito com que pareceu olhar para mim pela tela da televisão naquele almoço
na casa dos padrinhos;
Do mesmo jeito com que me fitou quando eu fui na delegacia tentar contar o que vi;
Do mesmo jeito com que olhou para Jesus, sua vítima, antes de atirar em sua cabeça
sem dó.
Capítulo 37

Por muito tempo achei que os piores dias da minha vida foram os que sucederam a
morte de Tereza, mas descobri que não.
O que passei com minha ex-mulher me afundou por completo, mas o que eu passava
com o sumiço de Gabriella era desesperador. Não ter respostas de seu paradeiro, não saber se ela
estava bem... isso era agonizante.
Ligava todos os dias para os Siqueira, mas eles seguiam como eu: sem respostas.
Isso era o pior.
Por anos enchi o vale de proteção. Me fechei em um casulo impedindo todos de
entrarem. A única que foi atrevida o bastante para atravessar as cercas que ergui era a pessoa que
também havia tomado meu coração.
O levou embora, para onde quer que tenha ido, e deixou um vazio angustiante no lugar.
Em Dom Cervantes, passava os dias procurando sua cabeleira loira pelas esquinas da
cidade. Rodei e rodei aquele lugar, mantendo contato com o delegado de Coralina. Era ele quem
me ajudava a obter informações sobre o crime que ela presenciou e começou a me dar pistas do
que poderia ter acontecido.
Certo dia, meio agoniado e agindo por impulso, fui até a delegacia da cidade. Lá, vi dois
homens que me causaram um arrepio costumeiro na espinha.
Era o mesmo arrepio que eu tinha ao ver César, e resolvi não ignorar aquele sinal. Um
deles tinha porte de urso. Barriga relativamente grande para um policial e cabelos claros. O outro
era mais magro e alto. Cabeça raspada e tatuagem no braço.
Foi a tatuagem dele que chamou minha atenção.
Era o desenho da morte segurando uma foice.
Não me pareceu algo ocasional, e decidi abrir os olhos com aqueles dois.
Gabriella contou que eram dois os assassinos do crime que ela presenciou, e certa vez
tinha dado a entender que eles eram mais velhos que os invasores de Sibipiruna. O pouco que
sabia batia com aqueles ali.
Ainda esperando mais informações do delegado de Coralina, decidi seguir a dupla.
Vigiava ambos na porta da delegacia. Descobri onde moravam e notei que andavam
sempre juntos.
No segundo dia de tocaia, o mais baixo e barrigudo saiu da cidade, enquanto o outro
passou um dia inteiro em casa, sem ir trabalhar. Ao sair, já no meio da tarde, foi até um hotel nos
limites da cidade e lá permaneceu por uma meia hora.
Novamente, uma sensação ruim me atingiu, e decidi colar no homem.
O segui de volta para sua casa e lá fiquei. Poderia ter voltado para o hotel em que estava
hospedado, mas algo me impediu. Permaneci dentro da minha caminhonete, vigiando a casa do
policial à distância. Vi quando ele saiu no meio da noite, já de madrugada. Ali, tive plena certeza
de que estava na cola da pessoa certa.
O filho da puta voltou para o hotel que visitou na tarde, e aquilo aumentou minhas
suspeitas. Entrou lá, ficou um tempo, e então voltou a sair. O vi entrar em seu carro e permanecer
estacionado no mesmo lugar.
Fiz o mesmo.
Amanheceu e nada dele sair do lugar.
Parecia de tocaia, esperando por alguém.
Eu tinha medo de pensar em quem poderia ser essa pessoa.
Já estava decidido a ir lá ver se achava algum sinal da loirinha quando meu alvo voltou
a se mexer. Saiu novamente do carro e retornou para dentro do hotel, dessa vez ajeitando uma
arma no coldre do cinto.
Algo em mim se agitou, e também desci da caminhonete. A uma distância segura, entrei
na mesma porta que ele, tomando cuidado para não parecer interessado em sua movimentação.
Vi quando um homem na recepção o chamou e o levou por um dos corredores, sumindo
do meu campo de vista.
Comecei a segui-los, mas fui impedido por uma mocinha que estava na recepção.
— O que deseja? — ela perguntou educada, e me vi forçado a ir falar com ela.
— Eu... Estou procurando uma amiga. Ela disse pra mim que hospedou-se aqui —
blefei.
— Qual o nome dela? — a jovem perguntou educada.
Merda.
Não sei se Gabriella daria seu nome, e tive medo de eu mesmo dizer, então
desconversei:
— Ela está sozinha — disparei a falar, tentando distrair a jovem. — Tem mais ou menos
sua idade e altura. Olhos castanhos e cabelos loiros batendo quase na cintura.
Ela me olhou um pouco ressabiada então falou:
— Não tem ninguém assim hospedado aqui.
Não saberia dizer se ela mentia pra mim, mas algo me dizia para entrar naquele
corredor.
Olhei mais uma vez para o interior do hotel. Era uma espelunca barata, e talvez eu
conseguisse subornar a funcionária.
Abri a boca para oferecer a ela dinheiro em troca de informações quando escutei um
grito abafado vindo do corredor.
Meu Deus! Eu conheço essa voz!
Disparei na direção dos quartos, mas fui impedido pela recepcionista:
— Não pode entrar aí! — Ela tentou me barrar.
— Você não escutou? — perguntei para ela, empurrando-a pro lado e seguindo sem
pausa. — Alguém gritou de um dos quartos!
— Eu vou chamar a polícia! — ela ameaçou sem sucesso.
— Parece que ela já está aqui — gritei de volta, invadindo o lugar e acessando o
corredor interno.
O hotel era todo térreo, e havia uma fileira de portas fechadas em um corredor reto.
Nem sinal do policial ou de Gabriella.
— Loirinha! — gritei, sentindo meu peito disparado de adrenalina.
Quando não obtive resposta, comecei a vasculhar o local. Bati na primeira porta e esta
parecia trancada. Parei para ouvir, tentando encontrar algum sinal de vida lá dentro, quando
escutei um som abafado que parecia com corpos se chocando vindo do fundo do corredor.
Cheguei na penúltima porta e voltei a escutar sons lá dentro, sendo seguido pela
recepcionista que agora estava atrás de mim. O quarto estava fechado e sequer vacilei ao agir.
Estourei a porta com tudo em um chute certeiro.
A cena que vi se grudaria em minhas memórias para sempre. Talvez, substituísse os
pesadelos que me perseguiram por anos com Tereza.
Na única cama do quarto minúsculo o policial tatuado debruçava-se com todo seu corpo
sobre uma outra pessoa, bem mais franzina.
Minha loirinha...
A razão evaporou. Tudo eclodiu em uma explosão de adrenalina e o resto era só
consequência.
Sem sequer ter tempo de processar a cena em meu cérebro, avancei na direção do
homem que atacava Gabriella. Seu corpo era imenso se comparado ao dela, e ele levava as duas
mãos ao pescoço que só eu tinha o direito de tocar. Ele enforcava a garota de uma maneira que
gerou uma tempestade em minha mente e, quando vi, minhas mãos agarravam a gola de sua
farda.
O puxei em um arranque só, jogando-o no chão. Pego desprevenido, o policial me olhou
assustado, levando a mão para a lateral do corpo, onde eu sei que ele escondia a arma.
Mas não lhe dei chance. Agi em uma descarga brutal e rápida de energia, desferindo-lhe
o primeiro soco. Meus dedos quase explodiram com a força que empreguei no ato, e vi o queixo
do homem trincar enquanto ele era arremessado longe.
— Porraaaa! — o maldito gritou, mas não lhe dei folga.
Estava ensandecido com a cena que vi dele sobre a loirinha.
Mais um soco, esse em sua outra face. Sangue jorrou de sua boca e o homem gemeu.
Tentou se erguer, tonto, mas lhe dei um chute no meio das costelas antes disso.
— Eu vou te matar, desgraçado! Você tocou na loirinha, e vai morrer por isso.
Ele procurou girar o corpo e se defender, buscando mais uma vez sua arma, quando
acertei sua boca com um chute. Ouvi o som de algo se quebrando e, sinceramente, pouco me
importava o que era. O homem tinha o rosto coberto de sangue quando seu corpo caiu para trás.
Algo cedeu sob ele e houve uma explosão barulhenta. Vidro espalhou-se por todo o quarto
enquanto o policial caía em um baque surdo no chão.
Morto.
Quando o chutei no rosto, ele parece ter se chocado contra uma mesinha com tampo de
vidro. Perdi dois segundos da minha vida para ver a pequena poça de sangue que se formava ao
redor do corpo quando voltei minha atenção para o que realmente importava.
A loirinha.
— Gabriella! — Girei meu corpo e avancei sobre o colchão, chegando perto dela. —
Gabriella, não faz isso comigo.
Seu corpo estava desfalecido, e em seu pescoço marcas vermelhas e arranhões tomavam
a pele clara. Quis matar novamente o maldito ao ver o rastro de sangue que escorria da sua boca
entreaberta e também do nariz, além da marca profunda de um soco em seu rosto.
— Não, não, não! — Ergui seu tronco com as duas mãos, afundando meu rosto em seu
peito e sentindo uma dor lancinante em mim. — Loirinha, fala comigo.
Apalpei seu braço para sentir sua pulsação. No desespero, demorei a encontrar o pulsar
fraco do seu corpo. Sim, o coração ainda batia, mas ela estava com a pele gelada e tinha a
respiração fraca.
— Não posso te perder, loirinha. Você, não. — Puxei-a para junto do meu peito,
embalando-a desacordada. — Você é meu álcool. Meu uísque. A única coisa que preciso me
afogar pro resto dos dias. Você é minha redenção, diacho! Não posso mais viver sem você.
Toquei os cabelos compridos, agora castanhos.
Castanhos...
Soltei uma risada nervosa, do mais puro desespero, e senti um aperto dolorido no peito.
— Ah, loirinha... O que foi que você fez...
Fechei os olhos e aspirei o mesmo cheiro de sempre. Que me deixou viciado. Que me
jogou num turbilhão de caos só para me despertar.
Que me tirou do coma.
Que me chacoalhou.
Que me rendeu.
A porta que arrombei com o pé voltou a abrir-se, e um homem entrou com olhar
assombrado, enquanto a jovem que tentou me barrar na recepção tinha o rosto paralisado do mais
puro choque. Deve ter presenciado tudo, mas eu não tinha tempo a perder com cenas como
aquela.
— Preciso levá-la a um hospital — informei, mostrando Gabriella ainda desacordada e
me erguendo da cama com ela. — Ele ia matá-la.
— Vo-você matou o Duda? — o homem atrás da recepcionista gaguejou chocado. —
Não vou deixar você fugir.
Vi uma pequena mochila que julguei ser de Gabriella jogada no chão e a peguei,
seguindo com minha mulher nos braços enquanto enfrentava o babaca que não tinha medo de
também morrer.
— Matei ele sim — confirmei, e vi a garota ao seu lado soltar um gritinho. — E vou
fazer o mesmo com você se não sair agora da porra da minha frente.
O homem recuou um passo, me deixando passar.
Avancei como um tiro pelo corredor, escutando o homem gritar atrás de mim:
— Vou chamar a polícia!
— Manda eles direto pro hospital — gritei de volta. — É lá que vão me encontrar.
Capítulo 38

Meu pescoço parecia travado, e meu corpo doía como se eu tivesse passado por um
moedor.
Minha última lembrança era do policial assassino avançando sobre mim dentro do
quarto de hotel. Mal tive tempo de me esquivar do primeiro soco e ele praticamente me
nocauteou com um segundo, me fazendo cair quase inconsciente na cama. Na mesma hora, ele
subiu sobre meu corpo e começou a me enforcar, quando perdi os sentidos.
Agora, despertava em uma cama de hospital, o que queria dizer que, por algum milagre,
sobrevivi.
Esperava todos os cenários possíveis que justificassem aquele desfecho, menos
encontrar meu cowboy.
Parado à minha frente, com a mesma expressão sombria que o acompanhou por tanto
tempo, e as sobrancelhas quase juntas na testa.
Ao ver que eu acordava, o homem sisudo aproximou-se. Toda a névoa de seu semblante
se desfez e o que vi foi um homem que não me lembro de ver outras vezes.
Sem a dureza em seu rosto, nem as sombras ao seu redor, parecia sim muito sério e
preocupado.
Só que de uma maneira estranha, Lucas também estava leve.
— Vai ter que me explicar o que fez com seu cabelo, loirinha.
Eu não esperava aquela frase.
Todo o medo e apreensão que senti na última semana se romperam, e desabei no choro
diante de suas palavras, ainda sem entender o que aconteceu e nem um pouco preparada para as
respostas.
— Diacho! — Lucas aproximou-se preocupado. — Está sentindo alguma coisa? Vou
chamar um médico para te olhar.
— Eu... — Gaguejei em meio às lágrimas. — O que aconteceu? Um dos policiais me
achou e...
— E eu estava na cola dele — Lucas completou por mim. — Vi quando o homem
entrou no hotel e escutei seus gritos. — Como se eu fosse uma peça delicada, ele pousou uma
mão em minha face. Alisou o local e senti a dor do hematoma. — Eu prometi que nada ia te
acontecer, lembra?
— O que foi que você fez? — perguntei com assombro.
Vi algo cruel perpassar seus olhos.
— Mostrei para ele o que acontece com quem tenta te machucar.
— Você o matou? — Minha voz saiu por um fio.
Lucas concordou. Voltou a alisar meu rosto. Parecia mais preocupado com a marca dos
socos que levei do que com o meu agressor, e então continuou:
— Não se preocupe. Por incrível que pareça, eu não tenho passagens. — Ele deu um
sorrisinho irônico. Incrivelmente leve. — Já estive em uma cela por duas temporadas, uma delas
por alguns dias, mas minha ficha continuou limpa. Vou responder em liberdade, e o delegado vai
investigar se foi legítima defesa.
Foi então que ele começou a me contar o que havia acontecido.
Nos últimos dias, enquanto eu me escondia naquele hotel barato, Lucas rodava Dom
Cervantes atrás de mim. Ele manteve contato com o delegado de Coralina — que de fato era
confiável —, e através dele descobriu que o delegado de Dom Cervantes já investigava aqueles
policiais. A corregedoria tinha recebido denúncias de policiais que agiam como grupo de
extermínio. Ou matadores por encomenda. Matavam qualquer um, bastava dizer o preço.
Em Dom Cervantes, ainda não tinham conseguido provas ou testemunhas, mas quando
Lucas o procurou por intermédio do outro delegado, passaram a suspeitar que fosse esse o caso
da morte de Jesus Silva.
Quando o tal policial Duda foi morto por Lucas, um esquadrão de viaturas foi parar no
hospital em que ele me levou, mas seu relato, junto do fato de que ele não fugiu, e somado ao
laudo dos médicos que me atenderam e confirmaram as agressões, fizeram o delegado não levá-
lo em flagrante. Uma recepcionista do hotel em que eu estava parece ter visto tudo, e também
confirmaria a versão de que Lucas só reagiu ao me ver sendo esganada. Teríamos que ficar na
cidade por uns dias, mas Lucas não pareceu ligar muito.
Eu permaneceria no hospital por mais algumas horas e assim que fosse liberada
prestaria depoimento.
Finalmente, conseguiria narrar tudo o que vi naquela noite.
O outro policial parecia ter fugido.
De alguma maneira eles descobriram que voltei a Dom Cervantes. Alguém delatou.
Talvez do hotel, a polícia ainda não sabia. Eu suspeitava do homem que vi com cara de poucos
amigos.
Ainda haviam muitas perguntas sem respostas, mas não liguei muito para elas. Eu
estava viva, e acordei com a presença do homem que julguei nem mais se lembrar de mim.
Lucas não só lembrava, como foi atrás. Finalmente saiu daquele mausoléu que chamava
de casa e resolveu reagir.
Eu ainda não sabia o que falar com ele, mas só de ter sua presença me sentia mais
segura, como quando estava no vale.
— Vão te dar alta e vou te levar para o hotel em que me hospedei — ele informou
depois de entrar no quarto. Lucas tinha conversado com os policiais, e parecia empenhado em
colaborar e resolver toda aquela bagunça. — Eles já sabem onde vamos ficar, e garanti que não
vamos fugir.
— E se resolverem te prender?
— Não será a primeira vez.
Tão seguro e honesto, Lucas não tinha medo. Isso nunca vi em seu semblante. Parecia
confiante de que nada lhe aconteceria, assim como não havia remorso por ter matado o policial.
Sua maior preocupação parecia ser com meus cabelos, que ele não parava de mirar enquanto me
colocava sentada no banco da caminhonete.
— Isso sai fácil? — perguntou meio agoniado, apontando para as mechas marrons.
Escondi a risada esperançosa, e fiz a pergunta que me atormentava nas últimas horas:
— Por que veio atrás de mim?
Lucas parou no assento. Me fitou daquele jeito capaz de tudo esconder e então disse de
uma maneira simples e direta:
— Porque é minha loirinha.
Mais uma risada nervosa escapou de mim.
— Acho que está falando de outra pessoa.
— Não foi você, diacho, quem invadiu minhas terras e bagunçou minha vida até que se
tornasse a dona?
Meu peito disparou com suas palavras, e murmurei com insegurança:
— Tereza sempre foi sua dona.
Droga de insegurança imbecil!
Lucas me fitou. Esperei o traço de dor e mágoa que sempre preenchia seu rosto quando
eu citava o nome de sua ex, mas nada apareceu.
— Tereza está morta — ele disse simplesmente.
— E você morreu com ela.
— Não mais. Preciso ficar vivo para cuidar de uma certa loirinha que só se mete em
problemas.
— Não estou vendo nenhuma loira — provoquei.
— Mas continua encrencada. — O homem alisou meus cabelos. Castanhos. — O que
deu em você para fugir de Sibipiruna daquele jeito? — Assumiu um tom meio mandão. De um
pai que dá bronca. — Uma carta, Gabriella?
— Fiquei preocupada com os padrinhos. Não quis colocá-los em risco.
— E por isso decide sair feito louca direto para os braços dos assassinos?
— Não foi bem assim — me defendi. — A ideia era descobrir informações sobre a
morte de Jesus antes de ir atrás do delegado. Tive medo deles estarem atrás de mim e de me
encontrarem em Sibipiruna.
— Eu disse que estava segura lá. Quase morreu, sua maluca, por tentar resolver tudo
desse seu jeito imprudente!
Cruzei os braços no peito.
— Nem vem! Assuma que só procurou o delegado de Coralina para me afastar de
Sibipiruna! No fim, tudo o que fiz foi atender seu desejo.
Seu olhar ficou mais firme em mim. Duro como aço, enquanto ele aproximava o rosto
do meu e murmurava:
— Por que quando é para me ouvir você ignora, mas para se colocar em risco, atende
“as minhas vontades” no ato?
Dentro do carro, o desafiei:
— Estava cansada de ser escorraçada, cowboy. Cansada de ser a bebida em que você se
afoga, e não a comida que te alimenta.
Algo em seus olhos tornou-se ainda mais duro e letal. Lucas chegou bem perto. Matei a
saudade do seu cheiro de mato e couro, e vi como seus olhos pareciam mais cansados. Seu
cabelo mais caótico, e sua barba mais malcuidada. Lucas parecia anos mais velho, e só agora
percebi. Seria tudo preocupação?
— Você é minha bebida, diacho — ele murmurou baixinho. Levou a mão calejada até
meu queixo e o acariciou com um carinho que não lhe era nada habitual. — Minha comida
também. — Resvalou os dedos no hematoma em meu rosto com delicadeza. — É meu vício e
minha cura. — Ao me olhar no fundo dos olhos, senti algo novo ali, como se Lucas realmente
tivesse se livrado de toda a névoa que o encobria. — Você é minha redenção, loirinha. E não
posso te perder.
Engoli um bolo imenso que formou-se em minha garganta. Uma confusão de ansiedade
e insegurança. Lucas dissipou tudo ao inclinar-se em minha direção. Tocou minha boca com a
mesma delicadeza que seus dedos roçaram em meu rosto. O hálito quente me acolheu, varrendo
tudo para longe. Insegurança, medo... Foi tudo embora quando o mundo resumiu-se aos seus
braços.
Não era nosso primeiro beijo, mas de alguma maneira parecia ser inédito. Fosse pelo
toque mais delicado de suas mãos em meu corpo, fosse pela leveza com que sua boca tomava a
minha, ou mesmo pela maneira como ele me olhava.
Eu queria aquele olhar para sempre. Tão mais vivo e apaixonável do que os olhos vazios
que mirei por tanto tempo.
— Está apaixonado por mim, cowboy? — perguntei, pois era dessas.
Lucas me fitou e tentou sorrir.
— O que acha? Varri essa porcaria de cidade por mais de uma semana atrás de você.
Deixei os cachorros sozinhos, sendo cuidados pelos Siqueira...
— E como estão os padrinhos? — o interrompi. Me preocupava com meus padrinhos.
— Preocupados com você. — Voltou a assumir o tom de reprimenda. — Nunca mais
faça isso, Gabriella. Eu te disse que o delegado de Coralina era confiável. Não precisava ter
fugido daquele jeito.
— Estava com raiva de você. Assumo.
— Diacho de mulher teimosa. — Ele voltou a me beijar, como se quisesse calar minha
insegurança com seus lábios.
— Mas consegui informações — falei com a boca ainda grudada em seus lábios.
— O que está dizendo? — Lucas afastou-se.
— A mãe do homem que foi assassinado pelos policiais está escondendo alguma coisa.
— Como sabe?
— Conversei com ela. Ela desconfia do que motivou a morte do filho, mas não quis me
dizer. E se ainda não contou para a polícia, é porque tá escondendo alguém.
Lucas ergueu uma sobrancelha, como se analisasse a situação.
— Vai prestar seu depoimento amanhã para a polícia — ele me informou.
— É seguro? — perguntei apreensiva.
— Não vou sair da tua cola, loirinha. O outro policial fugiu, mas se ele ousar se
aproximar de você, faço o mesmo que fiz com o desgraçado de tatuagem no braço.
Um arrepio cruzou minha espinha.
— Depois — ele continuou, nem um pouco abalado —, vai me levar nessa mulher.
Vamos ver o que ela esconde.
Capítulo 39

Me esqueci do que era saudade até ter o corpo da loirinha novamente colado ao meu.
Saudade é o que senti nos dias em que não estive com ela. O resto era nada perto da
agonia que passei.
Agarrei seu corpo a noite inteira, mantendo-a nos meus braços e vigiando seu sono.
Matei tudo ali.
A saudade do cheiro de melaço.
Do jeito insolente e atrevido.
Dos olhos cor de uísque...
Só não deu para matar a saudade da cabeleira loira, já que a desajuizada resolveu virar
morena.
Mas continuava sendo minha loirinha.
No dia seguinte, fomos cedo à delegacia. Eu tinha um acordo com o delegado de
contribuir com as investigações, e uma das coisas que tinha de fazer era levar Gabriella para
contar tudo o que viu. Acompanhei seu depoimento, e também voltei a contar tudo o que
aconteceu no hotel.
A polícia suspeitava de um dos funcionários do lugar. Ele teria visto Gabriella chegar e
foi quem avisou aos assassinos. Era para os dois terem ido juntos atrás da loirinha, mas o tal Beto
saiu da cidade um dia antes, e ninguém sabia o porquê. Tinham apreendido o celular do que
morreu, o Duda, e buscavam mais informações.
Depois de conversar com o delegado, que também estava doido para encontrar seu
funcionário criminoso, pedi para Gabriella me passar o endereço da mãe de Jesus.
Eu até poderia ajudar a polícia para livrar minha pele, mas não confiava inteiramente na
justiça dos homens.
Ia proteger a loirinha do meu jeito, custe o que custar.
Chegamos em um endereço simples em um bairro afastado da cidade. Tomei a frente e
toquei a campainha, sendo recebido por uma senhora de olhar atravessado. Ela me fitou com
desconfiança e depois Gabriella, que estava parada atrás de mim.
— Você de novo, menina? — a mulher pareceu irritada com a insistência. — Já te falei
que não tenho nada para contar!
— Olha pro meu rosto, dona Célia! — Gabriella insistiu de uma maneira que só eu sei
que ela é capaz de fazer, apontando para as marcas roxas em seu rosto. Só de olhar para os
hematomas quis matar o desgraçado de novo. — Quem fez isso comigo foi um dos assassinos do
seu filho. — A mulher pareceu surpresa e Gabriella continuou: — Se quiser mesmo fazer justiça
pela morte dele, tem que nos ajudar a entender porque ele morreu.
A mulher nos olhou. Pareceu indecisa alguns segundos antes de abrir o pequenino
portão, nos deixando entrar.
Seguimos por uma área externa, e lá mesmo ela nos indicou duas cadeiras. Não nos
convidou a entrar em sua casa.
— E quem é o senhor? — Ela apontou para mim com cisma.
— Ele é de confiança — Gabriella falou. — Salvou minha vida ontem e matou um dos
homens que atirou em seu filho.
— Matou? — Ela abriu a boca em choque. Parou e pareceu se lembrar de algo. — A
cidade toda está falando da morte de um policial num quarto de hotel.
— Ele mesmo — confirmei com um tom seco. — Um dos caras que executou seu filho.
Dona Célia agora me olhava de outra maneira. Aproximou-se de mim e tocou em meu
rosto com uma delicadeza incômoda. Nunca fui de contatos íntimos com estranhos. Ainda assim,
fiz um esforço para não me afastar.
Ela me fitou por um longo tempo antes de sussurrar:
— Obrigada. — Nunca vi tanta gratidão dentro dos olhos de uma pessoa. — Que você
seja recompensado em vida por isso, e que a justiça se faça presente em seu caminho.
Não me julgava merecedor daquilo, e afastei sua mão de meu rosto.
— Eu só estava protegendo ela. — Apontei para Gabriella. — Não sou o herói que a
senhora pensa.
A mulher voltou-se para Gabriella e perguntou:
— Por que ele queria te matar?
— Porque eu vi seu filho ser morto.
E então, Gabriella pôs-se a contar para a jovem senhora tudo o que lhe aconteceu. O
assassinato que presenciou e a sua fuga de Dom Cervantes. Omitiu para onde foi e quem eu era,
focando somente em sua história ali.
Ao fim do relato, a mulher havia se despido de todas as reservas. Pegou uma garrafa de
café e colocou à nossa frente, quando finalmente começou a falar:
— Meu filho nunca se meteu em nada errado. Estudava, trabalhava... tudo certinho. —
Parou e abaixou consideravelmente o tom de voz. — Até que o maldito do meu sobrinho nos
procurou há algum tempo, pedindo abrigo.
Eu e Gabriella nos entreolhamos, esperando que a senhora continuasse:
— Ele sempre foi envolvido em coisa errada. Desde bem jovem. Saiu de casa cedo, se
meteu em droga, assalto... Tudo de ruim ele estava no meio. Seu sangue ruim falava alto.
— Qual o nome dele? — perguntei.
— Levi — ela prosseguiu. — Ele estava sumido há anos. A última notícia que tivemos
era que tinha matado uma pessoa lá pras bandas do Pará e estava foragido. Até que ele nos
procurou há cerca de um ano para pedir abrigo. Disse que estava sendo seguido e jurado de
morte. Não tinha a quem recorrer. Eu, ao invés de chamar a polícia e proteger minha casa, o
abriguei. Hoje, sei que a morte do Jesus é por minha culpa, pois coloquei o inimigo dentro de
casa.
— Não diga isso, dona Célia — Gabriella tentou amenizar as coisas, mas o fato é que só
a mente daquela mulher sabia das suas culpas. Nenhuma outra pessoa era capaz de mensurar. Eu
sabia bem disso.
— Eu o abriguei — ela falou. — Disse que era só o tempo de ele achar outro lugar, mas
o maldito foi ficando. Ficou, ficou e começou a fazer a cabeça do meu filho. Tenho certeza que
se Jesus não tivesse morrido, teria fugido de casa junto do outro, acreditando na vida fácil que
Levi prometia.
— Eles chegaram a cometer algum crime que justificasse a morte do seu filho? —
perguntei.
— Não — Dona Célia foi enfática. — Meu menino foi morto por engano. Tenho
certeza. Os dois se pareciam muito, e quem era jurado de morte era o Levi. Na noite em que
morreu, Jesus usava um colar de ouro e uma jaqueta do Levi. Certeza que foi confundido. Ou
então o mataram para dar um recado ao primo, já que eles viviam juntos e se gostavam.
— E por que não contou isso para a polícia? — Gabriella perguntou.
— Porque eu não quis. — Ela fechou-se um pouco, e isso me causou estranheza.
— Não quis ou não podia? — perguntei.
— Não quis — ela repetiu. — Levi foi como a serpente do pecado entrando dentro
dessa casa e atentando Jesus, mas é... da família. Não posso entregá-lo pra polícia.
— Pode ao menos nos dizer como encontrar esse Levi?
Ela nos olhou com ligeira desconfiança, parecendo pesar por um momento o que fazer.
— Não sei se é o que eu devia fazer.
— Dois policiais foram responsáveis pela morte do seu filho. — Eu resolvi manter a
postura indiferente. — Um deles morreu, mas o outro ainda pode querer ir atrás da loi... dela. —
Apontei para Gabriella. — Ela é a única testemunha e seria essencial em um reconhecimento.
Não acho que ele vai nos deixar em paz.
— E por que saber onde o Levi está ajudaria?
— Se eles queriam matá-lo, ele continua sendo um alvo.
— Pretende usá-lo de isca para atrair o assassino? — A mulher me olhou chocada.
— Não vou mentir pra senhora. Vou usá-lo sim, mas não vou entregá-lo. Pouco me
importa os crimes que ele cometeu. Minha esperança é que ele ao menos diga o que sabe sobre
os policiais. Se eles querem matá-lo têm um motivo, e ele deve saber.
Ela ponderou alguns segundos antes de entrar dentro de casa. Desapareceu porta adentro
e voltou minutos depois, carregando um pedaço de papel nas mãos.
— Tá aqui. — Ela me entregou o papel. — Não quero saber do Levi. Ele escolheu o
caminho dele, e prefiro pensar que morreu junto de Jesus. Espero que ele ao menos se redima
ajudando vocês.
Eu e Gabriella nos entreolhamos antes de sermos enxotados pela mulher. Saímos da
casa simples e, uma vez dentro do carro, a loirinha foi a primeira a falar:
— E se formos atrás dele? — Ela pegou o papel de minhas mãos e leu o endereço. —
Essa cidade fica a horas daqui, mas conseguimos chegar hoje.
— Ainda não podemos sair da cidade — falei. — Lembra que matei aquele imbecil
ontem? Preciso ser liberado pelo delegado.
— E isso demora?
— Talvez alguns dias. Ainda não sei, mas... — Suspirei, resignado. — Não gostaria,
mas terei que chamar Salazar.
— O vice-prefeito?
— Ele se formou em Direito. Por um tempo estudou para concursos. Por isso de todos
aqueles livros que ele te deu.
Eu odiava ter que importunar Salazar, mas era preciso. Ele não poderia advogar, já que
tinha um cargo político, mas me indicaria outro profissional para me defender. A única coisa que
me importava era não ser preso. Precisava estar livre para afastar os perigos da loirinha.
Na volta para o quarto de hotel, ligamos para os Siqueira e nos atualizamos de tudo que
acontecia em Sibipiruna. Segundo eles, quase ninguém notou nossa falta, já que a cidade estava
movimentada com a fuga dos invasores e a finalização da colheita da cana.
Tinha acontecido tanta coisa nas últimas horas que me esqueci por completo da festa da
cana, que começaria em alguns dias.
Me lembrei da empolgação de Gabriella com o evento, e desejei resolvermos toda
aquela bagunça o quanto antes, para que pudéssemos ir embora e então recomeçar.
Finalmente eu conseguia dizer aquela palavra:
Recomeçar...
Tinha um gosto bom nos lábios.
Era doce como um bom licor, mas não ficava na língua nem tomava os sentidos.
Talvez eu também fosse digno de um recomeço.
Depois de deixar os Siqueira falarem com a afilhada e confirmarem que ela estava
comigo e bem, me sentei na poltrona da suíte, desabotoando a camisa que eu usava e batendo as
mãos na coxa, chamando por Gabriella.
Ela entendeu o sinal e aproximou-se feito uma gata. Devagar, sorrateira e manhosa.
Olhar para seu rosto ainda com marcas roxas me causava um ódio sem tamanho, então precisei
respirar fundo quando ela sentou-se em meu colo.
Engoli toda a raiva e acariciei a pele marcada, passando mais uma vez os dedos pelos
cabelos castanhos.
Eram bonitos daquela cor, não dava para negar, mas é que ela era minha loirinha.
— Eles ficaram um pouco mais escuros que o natural, mas essa é a cor deles — ela
murmurou, ciente de que eu não tirava os olhos dos seus cabelos.
— É bonito. — Alisei alguns fios e o mesmo cheiro bom me invadiu. — É só que...
— Não pode mais me chamar de loirinha, não é mesmo? — Ela abriu um sorriso
endiabrado. A mão pequena e quente enfiou-se entre meu peito e a camisa aberta, e ela começou
a me alisar na altura do coração.
— Claro que posso! — Balancei a cabeça em negação. — Minha loirinha... — repeti
em um resmungo, e ela abriu mais o sorriso, me desarmando de vez.
Senti a pele macia se arrepiar com o toque dos meus dedos, e ao abraçar sua nuca e
puxar seu rosto para perto do meu, a fiz estremecer.
Estava louco de saudades daquela mulher e, a cada beijo, era como se minhas feridas se
curassem mais um pouco. Um a um, os cortes do meu coração eram fechados. A dor ia embora, e
tudo o que ficava era um emaranhado de vontades que deixei para trás quando me afundei na
escuridão.
Seu corpo era quente como o fogo que me libertou da maldição daquela casa, e em seus
braços eu me montava de novo. Beijei a boca faminta da loirinha até que ela gemesse. Seu corpo
delgado esfregando-se no meu, louco de desejo.
— Ainda não vou te punir por ter fugido de Sibipiruna daquele jeito — avisei. Minha
boca tocava a sua, e meus olhos se grudaram nos dela enquanto a fitava. — Vou deixar você se
recuperar do que aconteceu ontem, mas fique avisada que vai ter sua lição.
Seu olhar brilhou diante do meu, e ela abriu um sorriso diabólico.
— Vai me amarrar nas pilastras do casarão e me punir, Maldonado?
Ela ainda não sabia que o sobrado tinha virado pó, então desconversei:
— Vou fazer você entender de uma vez por todas que me pertence, Gabriella. Que não
vai fugir de mim, nem sumir das minhas vistas. Porque você invadiu minhas terras, mas fui eu
quem te tomei para mim.
Ela mordeu o lábio inferior, abusada, e eu puxei seu pescoço com mais força, beijando
exatamente onde ela mordeu. Senti seu gemido contra meus lábios e aprofundei o beijo, fazendo
todo o caos ao nosso redor se apagar.
Minhas mãos buscaram suas coxas, apertando-as. Colei-a em meu peito e praticamente a
engoli, tomando todo o ar dela enquanto também me sentia sufocado em seus lábios.
Seu corpo se esfregava no meu de uma maneira que queimava. Os seios, roçando em
minha pele enquanto eu me emaranhava em seus cabelos.
Nos beijamos até que a pele ardesse de latente desejo. Os dedos de Gabriella buscando
em meu corpo o mesmo que eu buscava nela. Redenção.
Ela enfiou as mãos em minha camisa e a ajudei a retirar a peça. Voltei a agarrar sua
boca enquanto ela descia os dedos até alcançar minha calça. A mão espalmou em meu cinto e o
desafivelou, com a boca de Gabriella ainda grudada na minha.
Ergui os quadris para ajudá-la a retirar a peça de baixo, ao passo que também retirei sua
roupa. Um conjuntinho de blusa e calça jeans que arranquei de uma só vez, com calcinha e tudo.
Não havia calma. Era tudo urgente. Precisava matar a saudade do meu vício. Da minha
nova bebida. Do meu uísque particular.
Beijei todos os seus machucados. Molhei a pele arroxeada e acariciei sua garganta, que
sei que ainda estava dolorida pelas agressões. Demorado e ao mesmo tempo afoito, venerei cada
canto dela, descendo os lábios por seu corpo.
Inverti nossas posições para colocá-la sentada no móvel, enquanto me ajoelhava à sua
frente. Beijei entre seus peitos, levando a língua até um mamilo e mordiscando a região. Vi o
tesão endurecer o bico do seio e mordi mais forte, arrancando dela um pequeno gemido.
Fiz o mesmo com o outro seio e então desci em um rastro de beijos pelo corpo,
chegando ao topo da virilha.
Gabriella estava toda nua. A pele macia ao meu dispor. Tremendo e arrepiada de tesão.
Beijei a região entre suas pernas, aspirando o cheiro bom que ela exalava. Sua
respiração pesou e eu levei um dedo até sua boceta, testando a umidade.
— Tão molhada... — Minha voz saiu rouca, e escutei um gemido escapar dos lábios
dela. — Estava com saudades de mim, diacho?
— Só um pouco — ela provocou. E quando eu soprei entre seus grandes lábios, levando
o indicador para dentro de seu canal, ela engoliu um enorme bolo de saliva e gaguejou antes de
continuar: — Tenho certeza de que você sentiu muito mais falta de mim do que eu de você.
— Eu apostaria minhas terras nisso — confessei.
Se Gabriella precisava daquela comprovação do quanto era importante, que ela a
tivesse. Nunca fui o homem de dizer “eu te amo” todas as manhãs, mas ela me teria todas as
noites. Depois de invadir minhas terras e tomar tudo para si, aceitei minha rendição. Eu lhe
entregava tudo o que tinha, e esperava que ela tivesse só um pouco mais de prudência ao cuidar
do meu coração.
Meu dedo dentro de seu canal começou a mover-se. Estiquei suas paredes internas,
fazendo a região se lubrificar, enquanto com minha boca excitava seu clitóris. Suguei a região
mais sensível e a lambuzei com sua própria secreção. Gabriella gemia e suspirava alto, enquanto
suas mãos enfiavam-se em meus cabelos. Ela os puxava como se quisesse me fazer entrar dentro
de seu corpo. E se pudesse, eu entrava mesmo. Me fundia a ela até que fôssemos um só.
Minha boca trabalhava em sua boceta junto dos meus dedos enquanto ela derretia-se na
cadeira, entregue. Puxei suas pernas e as apoiei em meus ombros, colocando-a ainda mais aberta.
A loirinha riu e deixou a bunda escorregar na poltrona, vindo em minha direção.
Chupei sua entrada até sentir seu gosto todo em mim. Impregnado na barba e nos meus
lábios. Fiz movimentos circulares com a língua por toda a região, subindo e descendo em sua
virilha.
Ia da região do clitóris até o ponto mais baixo do canal vaginal. Provei da umidade que
escorria de sua boceta, e então desci mais a boca, chegando até seu ânus.
Passei a língua ali, vendo-a impulsionar os quadris de susto e então relaxar. Agarrei suas
pernas em meus ombros e a arreganhei mais, concentrando a boca na região, e retirando os dedos
de seu interior.
Lambuzei o seu cu com a língua e provei tudo. Chupei e excitei, até vê-la se derreter.
Eu ia até o ponto mais baixo e então subia. Lambia e sugava tudo, raspando a barba que
não fazia há dias na pele sensível, e tendo de volta pequenos gritos de prazer.
Gabriella gozou com minha boca entre suas pernas. Suas mãos grudadas em meus
cabelos e sua pele tremendo arrepiada com minhas carícias.
Seu orgasmo foi intenso e ela tentou me afastar, a sensibilidade testada ao máximo.
Forcei suas pernas em cima de mim, ainda chupando-a em todas as regiões que eu quis.
Na boceta, em seu cu, nas dobras de suas coxas, ao redor do clitóris...
Me esbaldei na mulher até vê-la esgotada, e quando me dei por satisfeito, me levantei.
Meu pau doía de desejo dela. Massageei a ponta um pouco, expondo mais a glande
enquanto apreciava a mulher esgotada e com as pernas abertas do sofá.
De repente, eu tinha urgência.
Passei anos enterrado em culpa. Agora, queria me enterrar na loirinha.
Me aproximei dela, descendo o quadril até me encaixar no seu. Fui devagar, sentindo a
ponta do pênis aprofundar-se na carne molhada como quem invade um terreno.
Como ela invadiu minha vida.
Desci pouco a pouco, gemendo e trincando os dentes enquanto meu corpo matava a
saudade. O cheiro dos cabelos dela me invadiu, e senti suas mãos rodearem minhas costas,
cravando as unhas bem fundo em mim.
— Diacho de mulher gostosa — reclamei, descendo mais os quadris. Meu pau se
arrastou inteiro para dentro dela, e segurei o braço da poltrona em busca de apoio. Com a outra
mão, agarrei sua nuca.
Quando me vi todo em seu interior, respirei fundo. Seu cheiro. Seu gosto em minha
boca... apreciei tudo um minuto antes de começar a me mover. Matei aquilo que me matava.
E então avancei.
Movi meus quadris devagar, indo e vindo em seu canal. Sentindo suas paredes me
sugando e massageando. Seu orgasmo melando meu pau e seu corpo me recebendo.
A comi devagar, agarrando sua nuca e a puxando para mim. Gabriella beijava meu
peito, enquanto suas unhas se enfiavam em minhas costas. Beijei ela de volta, na altura da
cabeça, em seus fios castanhos.
Usei a outra mão para agarrar sua cintura e a penetrei mais, arrancando da loirinha um
grito. Meu corpo era bem maior que o seu e eu a encobria por completo enquanto avançava com
meus quadris em sua direção.
Fodi a garota com todo o desespero que senti nos últimos dias, quando estive longe dela.
Nunca mais ela se livraria de mim, e deixei isso bem claro enquanto a comia.
Rápido e de uma maneira intensa, matando toda a ausência que me preencheu por anos.
Toda a dor que me carregou por noites e noites... Deixando tudo ir embora para dar lugar ao que
eu sentia cada dia mais sólido por ela.
Me enchi de Gabriella.
Tomei um porre da loirinha, chupando sua boceta e fodendo seu corpo. A fodi até me
sentir embriagado, quase em coma alcóolico, pois ela era o único vício que eu não pretendia me
curar.
Batia meus quadris nos seus. Nossos corpos suavam e seus cabelos, tão longos, faziam
cascatas entre meus dedos. Meus braços a puxavam quase para dentro de mim, enquanto minha
boca buscava seu pescoço. Lambia seu suor e beijava seu colo.
Apanhei um mamilo entre os dentes e o chupei, mordiscando a ponta endurecida de
tesão. Fiz círculos com a língua e o excitei, distribuindo beijos pelo seio arrepiado.
Fiz o mesmo no outro, e então subi novamente com meus lábios até seu pescoço,
arrastando os dentes pela garganta esticada, enquanto meus quadris moviam-se sem parar.
— Lucas... Eu estou quase lá.
Só rosnei e me movimentei mais forte, ouvindo o baque da poltrona na parede ao fundo.
Mais alguns movimentos e ela gozou, apertando meu pau com espasmos fortes e praticamente
enfiando as unhas em minhas costas.
Quis apertar seu pescoço, mas me contive. A segurei firme pela nuca, a penetrando
ainda mais fundo e sentindo suas paredes me sugarem com todo seu desejo. Fui e voltei várias e
várias vezes, levando uma perna para cima da poltrona e arrancando tudo de Gabriella.
Seu orgasmo aumentou meu desejo, e a fodi com ainda mais força. Mordi a ponta do seu
queixo, passando a língua por sua face até chegar à boca carnuda. A beijei de língua, raspando a
barba em sua pele e recebendo de volta seus suspiros demorados.
Minhas costas suavam. Meus cabelos se grudavam na pele, e tudo o que eu queria era
comer aquela boceta a noite inteira.
Pro resto da vida, dia e noite.
Senti as primeiras ondas do orgasmo chegarem devagar. Avançando pelas veias,
subindo por todo meu corpo, até explodirem em meu pau. Gozei de uma maneira que não fazia
há anos.
Talvez em vidas.
Era meio libertador. Sem culpa ou amarras.
Meu corpo inteiro estremeceu quando despejei tudo nela. Minha boca distribuía beijos
por seu rosto, e minhas mãos amparavam a loirinha, que mal se movia. As unhas dela me
acariciavam as costas, e seus olhos, sempre daquela cor que embriagava, me fitavam, atentos.
Cheios de prazer.
— Você é meu vício — sussurrei, sentindo o prazer atravessar cada canto da minha
pele. Suas unhas me acariciaram nos ombros, e tudo o que consegui fazer foi beijar seus lábios.
— E não quero nunca me curar de você.
Algumas ondas varreram meu corpo, e deixei o peso cair alguns segundos sobre ela.
Então, me ergui e a peguei em meus braços, colocando nós dois na cama.
O colchão cedeu com nosso peso e, antes que eu me afastasse, Gabriella me puxou para
o meio dos lençóis. Beijei o topo de sua cabeça e a acariciei nas costas, afastando as mechas
marrons que caíam em profusão em sua lombar.
Quando vi que ela adormecia, me levantei e fui tomar um banho. Ao voltar para a cama,
minutos depois, deixei que ela se aninhasse em mim. Minhas mãos arranhavam suas costas e eu
julgava que a garota já dormia quando escutei sua voz sonolenta murmurar baixinho:
— Cuidado com o excesso de carinho, cowboy, ou vai ter que me aturar na sua cama
por várias noites.
Dei uma risada rouca, enchendo meu peito de coisas novas.
— Acho que será o contrário, Gabriella. Talvez, eu tenha que me abrigar no seu quarto
por uns tempos. Será que seus padrinhos deixam?
Capítulo 40

Lucas me contou sobre o incêndio ao sobrado. Disse que foi um ato de libertação, e
talvez isso explicasse seu estado de espírito mais leve.
Ele mal se lembrava que matou um policial. Parecia em paz com todas as suas ações, e
sua única preocupação era com o momento em que poderíamos voltar à Sibipiruna.
Embalada por sua voz rouca me relatando como foi a queima do antigo casarão — e que
eu sinceramente não lamentava, já que aquele lugar tinha um ar cadavérico —, acabei
adormecendo em seus braços.
No meio da noite, fui despertada por um farfalhar nos lençóis e um corpo pesado e
quente sobre o meu.
Me beijando e me tomando inteira.
Lucas estava insaciável. Parecia querer matar uma fome de anos.
E quem sou eu para negar comida a um faminto?
Ele me puxou para que ficássemos de frente e começou a me beijar na boca, mal dando
a mim a chance de respirar. Senti seus lábios me tomarem, e fui engolida por seu cheiro cru e
simples.
Seus dedos, cheios de vontade, me mapearam enquanto nossas pernas cruzavam-se em
uma bagunça que me fazia rir.
Gemi com sua mão imensa enfiando-se entre meus cabelos, louca para me enforcar.
Era até fofo ver seu esforço em não ser visceral quando eu ainda sentia os músculos
doloridos do que aconteceu no dia anterior. Lucas era protetor, disso eu sempre soube, mas
jamais seria um gentleman comigo.
Eu amava sua pegada forte.
O jeito com que me puxava os cabelos, mesmo que sem querer, era delicioso. Sequer
reclamei quando um puxão mais forte doeu em meu pescoço, pois eu queria aquele homem.
Eu queria Lucas Maldonado como ele se mostrou para mim desde nosso primeiro
encontro.
Falho.
Humano.
Com desejos e traumas.
Agora, pronto para recomeçar.
Eu tinha me apaixonado sim pelo chucro e implacável viúvo que me prensava contra os
lençóis enquanto mais uma vez me penetrava. Pelo homem que me fodia de uma forma
desumana, e que tinha tanta coisa dentro dos olhos, que agora já não cabia mais a dor.
Queria viver para sempre com o Lucas incansável que por alguns segundos agarrou meu
pescoço, antes de me virar de costas e estapear de leve minha bunda.
O que me comeu de quatro no quarto de hotel e, quando eu gozei, me fez chupar seu pau
até o talo. Até me engasgar com teu gosto bom e carnal.
O que me fodeu um pouco mais e então lambeu meus seios, até gozar em minha barriga,
como se marcasse uma posse em mim.
Estava profundamente apaixonada por Lucas, e só poderia desejar que aquela fosse a
sua real versão, e que quando voltássemos para Sibipiruna as lembranças do passado não
despertassem a escuridão que ele pareceu deixar para trás.

Os dias seguintes foram incomuns.


Continuamos em Dom Cervantes, hospedados no hotel e esperando que Salazar
resolvesse a situação de Lucas. Era um milagre que ele não tivesse sido preso.
O depoimento da funcionária do hotel ajudou, e o laudo que apontou que o homem
morreu por bater a cabeça na quina da mesa de vidro ajudaram a aliviar a barra do meu cowboy.
Salazar precisou brigar com ele e pedir que maneirasse, pois se dependesse de Lucas,
ele diria na frente do juiz que quis sim matar o policial. Era o que ele repetia a todos.
Durante esse tempo em que ficamos “presos” na minha antiga cidade, não quis sair
muito. Ainda guardava a sensação de perigo nas ruas daquele lugar, e já não queria saber dali.
Além disso, preferia ficar todas as horas possíveis no hotel, sendo fodida pelo homem mais
gostoso e dominante que já conheci.
Meu único interesse em Dom Cervantes foi visitar o túmulo de minha mãe com Lucas, e
deixei para fazer isso ao fim da nossa estadia, como uma despedida.
Talvez eu tenha me anestesiado por anos, assim como Lucas fez, e só naquele instante
percebi. Me desfiz de todos os planos quando minha mãe faleceu, vivendo uma espécie de
“marasmo fácil”. Deixei a vida seguir seu curso sem muitas expectativas, como se sonhos não
fossem destinados a mim.
É provável que eu continuasse no mesmo quarto pequeno em cima de um comércio se
não fosse o crime que presenciei. Seguiria iludida que minha vida era ali, sendo caixa de
supermercado e indo a encontros que em nada evoluíam.
Ao me despedir do túmulo de minha mãe um dia antes de sairmos de Dom Cervantes,
eu tive a certeza: jamais voltaria a pisar naquela cidade.
Ela era como o casarão de Lucas, me arrastando para uma dormência meio apática, e eu
não queria mais ser aquela pessoa.
Gostava da Gabriella de Sibipiruna, que subia em pés de cajus, invadia o terreno de
vizinhos ariscos, e conquistava um viúvo que adorava enforcar.
Talvez eu até voltasse a ficar loira...
Saímos de Dom Cervantes em uma tarde fria e com ar de chuvosa. Lucas tinha me feito
quase perder os sentidos algumas horas antes, enquanto me comia sobre a cama e me enforcava
com suas mãos calejadas. No banco de sua caminhonete, sentia as pernas trêmulas e o corpo leve
de todo o sexo que fizemos, enquanto o via dirigir tranquilo, com a mãozona marcada de sol
segurando o volante com firmeza.
— Salazar voltou para Sibipiruna para a abertura da festa da cana — ele falou enquanto
eu mexia nos comandos do rádio do carro.
— Acha que teremos tempo para chegar na festa também? — questionei. Ninguém
sabia, mas nós dois iríamos até o interior de São Paulo, no endereço dado por dona Célia.
Poderia ser loucura ou até perigoso, mas não entregamos o tal Levi para a polícia.
Iríamos antes conversar com o rapaz, já que o outro policial seguia sumido e Lucas achava que o
primo de Jesus fosse uma boa isca.
— Vai depender do que vamos ter de informação com esse tal Levi — Lucas falou,
distraído com a estrada.
— Se você quiser, podemos voltar para Sibipiruna — sugeri. — Estou com saudade do
vale. E tenho certeza de que com os cães, ninguém chegaria perto de mim.
— Também tenho certeza disso, mas para mim não basta. Vou encontrar esse outro
maldito, e ele sequer vai ter a chance de se aproximar de você.
— Mas Lucas...
— Se as coisas ficarem muito perigosas, te deixo em Sibipiruna e volto sozinho.
— Nem pensar! — bradei. — Agora que sei que está sem abrigo, vou te enfiar na minha
cama. Nem pense em fugir, cowboy! Quero ver você se espremer naquela cama ao meu lado.
— E ela é bem pequena mesmo — ele resmungou.
— Como sabe? — Me voltei para ele.
Lucas deu de ombros, e algo se acendeu em meu cérebro.
— Me espionou alguma vez?
Ele só se manteve mudo.
— Daquela vez que deixou os cajus? No dia em que invadi seu sítio a primeira vez?
Ele pareceu relutar em dizer:
— Eu só ia deixar os cajus, e quis conferir se você estava bem depois de tanto tempo em
cima do pé.
— Me espionou dormindo! — concluí ligeiramente chocada.
— Só te vi roncar — ele devolveu.
— Eu não ronco, cowboy! — Quando ele me olhou daquele jeito sério e que me
derretia, provoquei: — Vai! Confessa! Você ficou um bom tempo me olhando dormir.
— Não. — Ele negou. Depois, passou as mãos nos cabelos e então reconsiderou: — Só
um pouco, diacho.
Abri um sorriso satisfeito, e ele levou uma mão até minha coxa.
A cidade que servia de esconderijo a Levi ficava perto da divisa dos estados de São
Paulo e Paraná. Era um município pequeno, que em muito se lembrava Sibipiruna, mas menos
ensolarado e amistoso.
Cruzamos as poucas ruas em busca do endereço informado por Célia, até encontrarmos
uma casa toda em tijolos aparentes. Na porta, um senhor descascava laranjas com um canivete, e
nos olhou com curiosidade.
— Pois não? — perguntou meio sonolento.
— Estamos procurando pelo Levi — Lucas adiantou-se. — Sua tia, a Célia, nos passou
esse endereço.
O homem apertou um pouco os olhos. Estava desconfiado, mas depois de alguns
segundos tomou sua decisão. Apontou para a porta aberta com o canivete e falou:
— Ele tá lá no fundo. Se forem da polícia, saibam que eu não tenho nada a ver com as
encrencas que esse menino se mete. Por mim, podem levar.
Parece que ninguém ligava muito para o tal Levi.
Atravessamos os corredores da casa simples, sentindo o cheiro de feijão no fogo e de
água sanitária usada para limpar o chão.
Ao sairmos em uma área externa aos fundos não havia ninguém, mas Lucas viu uma
segunda casa no terreno. Uma espécie de barracão minúsculo, grudado ao muro dos fundos do
lote.
Nos aproximamos do lugar e percebemos um homem sentado sob a sombra de uma
árvore. Ele estava distraído, amolando uma faca, quando chegamos bem perto e pude ver suas
feições.
Daria para Levi menos de trinta anos. Tinha olhos e cabelos bem negros, e o rasgo de
uma cicatriz imensa no braço esquerdo, além do traço de uma tatuagem escondida na camiseta
surrada.
Assim que ele nos fitou, arregalou os olhos surpreso.
Eu abri a boca para nos apresentar, mas sequer tive tempo. Antes mesmo que pudesse
compreender o que acontecia, um raio humano passou por mim, avançando em Levi com uma
potência mortal.
Os dois corpos se chocaram quando Lucas o arremessou ao chão, furioso.
Ensandecido.
Vi suas mãos fecharem-se de forma letal no pescoço de Levi, enquanto seus olhos
injetados miravam o pobre homem assustado.
Gritei para que Lucas parasse, mas ele não me ouviu. A voz que saiu de seus lábios
parecia a de um demônio ao proferir a sentença:
— Eu vou te matar, desgraçado! Finalmente eu te achei, e eu vou te matar!
Capítulo 41

Tudo voltou ao ver os olhos escuros e a cicatriz no braço.


Me lembrei do vento morno que soprava das paredes com esquadrias de vidro que
davam para a plantação.
Me lembrei do corpo quente e vivo de Tereza sobre o meu. Não senti a dor de sempre,
mas uma raiva absurda.
Me lembrei da nossa última conversa como um acontecimento de vidas passadas.
Me lembrei dos sons do corredor e, de repente, dos dois homens que invadiram meu
escritório.
Um tinha olhos e cabelos claros e a marca de um corte em uma das bochechas, enquanto
o outro, de cabelos e olhos castanho-escuros, tinha o corpo marcado por uma cicatriz imensa em
um braço, como se tivesse levado uma facada ali, além da marca de uma tatuagem no pescoço,
que não consegui distinguir o desenho.
O homem que atirou em Tereza.
Bem na minha frente.
Quatro anos se passaram e o acúmulo de tudo o que represei explodiu em meus punhos
que acertaram o desgraçado em seu rosto esquerdo.
Levi gritou, esperneando em meus braços e tentando me acertar com a faca que levava
nas mãos.
A lâmina passou a centímetros do meu rosto e escutei uma mulher gritar.
Gabriella...
A razão veio toda de uma vez quando me lembrei do que tinha levado nós dois ali, mas
antes eu precisava descarregar.
Levi conseguiu soltar-se de um de meus braços e tentou acertar a faca em meu
abdômen. Precisei me desvencilhar, recuando para trás. Foi quando ele se libertou de meus
punhos e tentou correr, mas eu não ia parar ainda.
— Lucas! — a loirinha me chamou, mas a ignorei.
Saltei para frente e consegui pegar Levi antes que fugisse. Sua mão voou em minha
direção com a lâmina em punho, e eu bati meu pulso contra o seu. O baque fez com que a faca
caísse de suas mãos, e ele urrou de dor no instante exato em que minha outra mão agarrou seu
braço, torcendo-o.
— Filho da puta! — ele xingava, e desci mais um soco em seu rosto. Esse, o fez cair
mole no chão. Senti as juntas dos dedos doerem com a força que empreguei, mas eu precisava
parar aquele homem antes que ele fugisse ou chamasse a atenção de outras pessoas.
— Não vai fugir, seu rato imbecil! — Outro soco e chutei suas costelas. Tudo o que não
fui capaz de fazer no dia em que ele atirou em Tereza meu corpo desferia agora, com juros e
correções. — Você é um homem morto! — gritei. — Um condenado desde o dia que cruzou meu
caminho.
— E você acha que eu não sei? — O homem gritou, tampando o rosto com as mãos. —
O que quer aqui? Veio fazer você mesmo o serviço, já que os caras que contratou nunca
conseguiram me pegar?
Foi quanto eu parei.
E a ficha caiu.
— O que ele está dizendo, Lucas? — A voz de Gabriella me trouxe ao presente.
Meu Deus!
Meu
Deus!
Tudo se encaixou em meu cérebro de uma maneira que foi como um soco no estômago.
Segundos de distração e Levi escapuliu de meus punhos, tentando mais uma vez fugir.
Dessa vez, o peguei de volta e o joguei no chão, apanhando a faca que ele amolava para colocar
em seu pescoço e mantê-lo quieto. As palavras que saíram de meus lábios eram a voz de um
novo Lucas.
Um homem capaz de fazer tudo ruir por sua loirinha.
— Não vim aqui para te matar, Levi. Mas se tentar fugir de mim, considere-se um
homem morto. E eu mesmo farei o serviço.
— O que ele está dizendo, Lucas? — Gabriella voltou a repetir. Seus olhos estavam
assustados em mim, e ela segurava a barra da sua camiseta com ansiedade.
— Eu não sei quem você é, garota — Levi começou a dizer em meio ao sangue que
escorria por seus lábios partidos. — Mas esse cara mandou assassinos atrás de mim. Pagou para
jagunços me matarem! Estou vivendo o inferno nos últimos quatro anos tentando me esconder.
— Você atirou em Tereza! — gritei de volta. Meus punhos coçavam de vontade de
socar o desgraçado. — Você e seu comparsa acabaram com a vida da minha mulher!
O homem me olhou com um misto de culpa e medo.
Em meu peito, só reinava o ódio e a necessidade de justiça.
E redenção.
— Você pagou aqueles caras, Lucas? — Gabriella sussurrou baixinho.
De repente, era tudo tão óbvio...
A constatação de como a minha busca por justiça espalhou um rastro de morte e sangue,
chegando até Gabriella...
Por Deus... O que fiz?
Sentindo a sombra de toda a culpa que me engoliu por anos tentar invadir novamente
meu corpo, puxei Levi para colocá-lo sentado no banco que ele estava anteriormente. Antes que
o homem pudesse reagir, saquei a arma que eu levava na cintura e apontei para seu rosto.
— Vai me contar tudo o que sabe — ordenei. — De quem está fugindo, e porque eles
mataram Jesus.
Havia ódio no semblante do homem ao parar quieto no lugar e me fitar. Ele cuspiu no
chão bem no meu pé e então rosnou:
— Me diz você do que estou fugindo.
Meu olhar o fuzilou, e exigi:
— Conta tudo o que sabe ou eu mesmo executo o serviço!
— Só sei que estou jurado de morte desde que... — Incapaz de completar a frase, me
fitou.
— Devia estar acostumado com esse tipo de consequência — disse com desprezo.
— Me abriguei por uns tempos em Dom Cervantes, até que uma noite acharam o Jesus.
Eu não sabia que eles eram da polícia de lá, ou nunca teria me abrigado naquele inferno de
cidade. Me confundiram com Jesus porque ele usava uma roupa minha e nos parecemos. Foi o
que aconteceu.
— Eu o vi morrer — Gabriella anunciou baixinho, dando um passo na direção de Levi,
que a fitou com interesse. — E desde então, estão tentando me matar por ter presenciado tudo.
— Cobre dele. — O desgraçado apontou para mim.
— Lucas? — Os olhos da loirinha exigiam respostas ao me fitar.
— Depois conversamos, Gabriella — murmurei, puxando um pouco o ar.
— Eu quero saber, Lucas! — Agora, era ela quem me enfrentava. Pequena, e pronta
para se colocar à frente da minha arma. Sem medo algum. — É o que estou pensando?
A fitei.
— É — confirmei com um aceno de cabeça. Ainda atento ao criminoso que tinha sob a
mira do meu revólver, me preparei para expor a Gabriella mais uma parte minha.
A mais real possível.
— Quando esses malditos acabaram com a vida de Tereza. — Apontei para o homem à
minha frente. — Eu só queria me vingar. Fazer Justiça. E então, o demônio me tentou.
Na época em que tudo ruiu, com minha esposa acamada e revoltada com seu próprio
diagnóstico, eu me afundei. Passava noites insones e sedento por justiça. Por uma espécie de
alívio ao meu peito desesperado. Algo que diminuísse toda aquela dor.
Eu teria matado os dois criminosos que invadiram a usina com minhas próprias mãos se
tivesse os encontrado à época. Veria com prazer a vida esvair-se do corpo deles, assim como ela
se esvaía do corpo de Tereza.
Só que não tive essa sorte.
Mergulhado em escuridão, escutei a voz do meu inimigo.
— César me convenceu a contratar matadores para irem atrás dos assaltantes da usina
— murmurei, olhando diretamente para Gabriella. A maior vítima de minhas ações.
— César?! — Ela parecia chocada.
— Ele era irmão de Tereza — argumentei. — Também estava revoltado com o que
aconteceu. Ficou durante dias alimentando meu ódio, até que me convenceu. — Pausei, e ao
mirar o criminoso de rosto coberto de sangue, ele me olhava com uma atenção incomum. Mais
uma ficha caiu em minha mente diante da constatação: — César conhece os assassinos.
— Quem os pagou? — quem perguntava era Levi, ainda atento.
— Eu — assumi sem um pingo de culpa. — César tinha o contato de uns matadores e eu
só... ordenei. Seu comparsa foi pego algumas semanas depois, numa estrada perto de Sibipiruna.
César me avisou. — Olhei para o homem de alto a baixo, me lembrando de todo o ódio daquela
época. — Nunca mais tive notícias do segundo assaltante. Achei que você já tinha sido morto e,
sendo sincero, para mim pouco importava.
— Maldito... — Levi cuspiu em minha direção, e desci uma coronhada em sua cabeça.
— Não tenho dó de você, desgraçado — rosnei, aproximando meu rosto do dele. — Só
não morreu ainda porque a minha prioridade é matar o justiceiro que ainda está atrás de você. Eu
já matei um, não precisa agradecer, e agora vou dar um fim no segundo.
Levi me olhou e então mirou Gabriella. Algo brilhou nos olhos dele, que murmurou:
— Acho que agora entendi. — Seu olhar parou no meu. — O mundo dá voltas, não é?
Agora, ela quem está sendo ameaçada.
— E você vai nos ajudar a dar um fim nisso. — Eu não tinha tempo para me martirizar
pelo destino ou as voltas que o mundo dá. Minha mente processava tudo à toda velocidade. —
Vai vir com a gente atrás de César. Ele vai me dizer como encontrar o policial que fugiu.
Por dentro, a culpa queria me sufocar. A culpa pela vida inocente de Jesus. Pela dor de
sua mãe, que presenciei quando fomos em sua casa.
A dor que causei à loirinha...
Ao olhar para o rosto de Gabriella, era como se cada marca que vi em seu corpo dias
atrás fosse causada por meus punhos.
Aquilo precisava acabar.
— Não vou com vocês — Levi falou, me tirando de meus pensamentos. — O que quer
me levando junto? Me usar de isca?
— Exato. Como o verme que você é! — confirmei, quase enfiando a arma em sua testa.
— César vai me dizer onde encontrar o último policial e você vai ser a isca. Não tem escolha.
— César é o seu cunhado? — o homem perguntou com interesse. Permaneci quieto e ele
prosseguiu: — O que eu ganho seguindo vocês? Porque desde que me meti naquele maldito
assalto, minha vida é um inferno. — Seus olhos ficaram duros. — Tenho passado os últimos
quatro anos me escondendo desses desgraçados que não saem da minha cola. — Me fitou com
acusação. — Você disse que matou um. O que vai fazer com o outro?
— O mesmo que fiz com o primeiro — respondi sem qualquer hesitação. — E deixo
você vivo.
Levi enrugou a testa, visivelmente surpreso. Olhei por meio segundo para Gabriella, que
estava com igual semblante, e concluí o óbvio:
— Para manter ela em segurança. — Apontei para Gabriella. — Eu faço acordo até com
o demônio, que dirá com você.

Precisei de meia hora para conseguir abaixar a arma, mas ainda não confiava no tal
Levi. Ele nos deixou entrar dentro do barracão em que morava, e também me olhava com
desconfiança.
Não ia tirar os olhos dele, pois sei que à menor distração, me mataria ou fugiria.
Eu observava o homem andar de um lado para o outro de seu quarto único enquanto
tinha os olhos arregalados de Gabriella me observando.
Ela estava louca por respostas, mas não me questionou em momento algum, até que não
se aguentou mais:
— Quando vai me contar qual o seu plano, cowboy? — sussurrou quando viu que Levi
não me ouvia.
— Manter esse Levi por perto, pois ele continua sendo uma isca para pegar esse tal Beto
enquanto tentamos descobrir onde ele está com as informações de César.
— Como tem tanta certeza de que César vai ajudar?
— Ele não vai — afirmei. — Mas não darei opção a ele. Ou ele me diz o que sabe, ou
Sibipiruna inteirinha vai saber que seu prefeito é um conhecido de matadores. Que assim como
eu, ele tem as mãos sujas de sangue.
— Se fizer isso, vão te prender — Gabriella murmurou.
— Não tenho medo.
— Eu não quero, Lucas — ela sussurrava em súplica. Suas mãos tocaram meus ombros
e senti seus dedos gelados. — E não podemos entregar esse Levi para a polícia ou ele conta
quem são os mandantes da morte de Jesus.
Paralisei alguns segundos, me virando para Gabriella. Nunca senti algo assim por
alguém. Uma obsessão mesclada a profundo desejo. A necessidade imensa de protegê-la, fosse
da sua imprudência ou das minhas próprias ações.
O que eu sentia por Gabriella era grandioso demais, e percebi que ela sentia o mesmo.
— Deveria se afastar de mim enquanto é tempo. — Tentei uma última vez. — Eu te
avisei que não sou o mocinho. Que merece coisa melhor, sem um passado sujo ou tanta culpa nas
costas. É nova, loirinha, e devia encontrar alguém da tua idade, com os mesmos sonhos que
você. A mesma inocência...
— Não sou inocente, Lucas. — Me perdi na cor de uísque de seus olhos. — Sei bem o
que fez, ainda que não tenha me dado os detalhes. O tiro acertou Jesus. Poderia ter me atingido,
mas não atingiu. — Algo queimou de repente em seus dedos em meus ombros. — Eu escolho
você, diacho! — Gabriella anunciou, repetindo a forma como eu a chamava. — Escolho seu
passado sujo e todas as suas culpas. Porque te amo, cowboy.
Mirei a mulher à minha frente, ciente de que era recíproco. Cada maldito grão de
sentimento.
Como o uísque, Gabriella era minha perdição.
E eu morreria perdido naquilo que vi nos olhos dela.
— Me culpava pelo que aconteceu com Tereza — confessei. — Desde o tiro, até o que
veio depois. Era para eu estar sozinho na usina, e por isso sempre julguei ser eu o merecedor do
tiro. Quando César surgiu com a ideia de ir atrás dos assaltantes já que Antenor nada conseguiu
descobrir, eu aceitei no mesmo segundo. Um deles foi morto semanas depois, e achei que aquilo
fosse me aliviar a dor. Só que nada trouxe, só mais escuridão.
— Ainda ama Tereza? — ela questionou bem baixinho, como se tivesse medo da
resposta.
Olhei no fundo dos seus olhos para que ela tivesse certeza de toda a minha sinceridade
ao confessar:
— Descobri que não mais. E isso nada tem a ver com você ou sua chegada. Deixei de
amar Tereza muito antes, quando tudo o que restou da lembrança dela foi dor. — Toquei sua
bochecha com o polegar. — Quando você chegou, não matou o amor que eu ainda pudesse sentir
por ela. Você me tirou da escuridão que ficou no lugar. Me ensinou a amar de novo.
— Se arrepende do que fez no passado? — ela perguntou.
— Nem por um segundo desses quatro anos me arrependi, até que entendi aonde minha
ordem chegou. — Engoli em seco, mirando-a. — Em você.
— Lucas...
— Estava certa, Gabriella, ao dizer que seria minha redenção. Você é. Acabar com essa
história é minha nova obrigação. Por ter iniciado tudo, e para te manter segura.
O clima não era dos melhores, mas abri mão de parte da precaução para beijar a boca
vermelha. Agarrei a cintura quente e cheia de curvas, e colei o corpo pequeno ao meu. Me vi
rodeado de seus cabelos ainda castanhos, e enterrei minhas mãos ali. A sensação era boa, como
voltar para casa depois de um dia cheio na cooperativa.
Tomei seu ar enquanto encobria seus lábios nos meus, e ainda segurando seu rosto entre
as mãos, murmurei com nossas bocas coladas:
— Diacho! Também te amo, loirinha insolente. Espero que saiba o que está escolhendo.
Gabriella riu, mesmo com todo aquele cenário, e pensei no quanto a garota era
inconsequente.
Eu amava ela.
Seu cheiro me invadiu, e tive a certeza de que havia se encerrado minha era de Justiça.
Iniciava-se a era de Redenção.
Capítulo 42

Não sei como Lucas conseguiu convencer Levi a nos acompanhar.


O bandido foi conosco de volta a Sibipiruna, sempre sob o olhar atento do viúvo.
Eu de fato era uma pessoa imprudente, pois quando soube que foi Lucas quem
encomendou a morte que presenciei, ainda que não fosse diretamente aquela, nem por um
segundo o culpei.
Tive sim aquele pensamento perverso que se formula com as palavrinhas “e se...”.
E se aqueles homens tivessem me matado no incêndio ao prédio que eu morava?
E se tivessem me pegado no meio do caminho?
E se Lucas não tivesse chegado no hotel a tempo?
Acontece que, mesmo que grande parte das coisas que aconteceram comigo pudessem
sim ser atribuídas ao mandante do assassinato de Levi, acho que Lucas já tinha culpa demais
para ter mais um grão daquele sentimento em seu peito.
Levi nem despediu-se do homem que o dava abrigo. Simplesmente disse que partiu para
talvez não mais voltar, e o outro nem ligou. Parecia tão perdido quanto nós, e fez questão de
levar a faca que amolava e uma arma escondida sob a camisa, coisa que Lucas também fazia.
Ele não fez muitas perguntas, nem quis saber o que tínhamos em mente. Só enfiou-se no
banco de trás da caminhonete e nos acompanhou.
A viagem até Sibipiruna era demorada, e talvez precisaríamos parar na estrada, mas
Lucas não quis. Estava louco para confrontar César e tentar descobrir o paradeiro de Beto, o
outro homem que me ameaçava e que agora estava foragido.
Viajamos a noite inteira e chegamos bem de madrugadinha. Ao passarmos na praça
central de Sibipiruna, a cidade ainda estava vazia, mas notei algo diferente. Inúmeras tendas de
lona e ripas de madeira foram montadas em uma das ruas ao redor da igreja. Folhagens de cana
enfeitavam as tendas, e em um canto mais ao longe, ao lado da quadra do colégio municipal, uma
espécie de parque de diversões havia sido montado, com uma pequena roda gigante, um
carrossel, brinquedos infláveis e outras bancas com o que deveriam ser jogos de tiro ao alvo e
pescaria.
A festa da colheita!
Chegamos exatamente nos dias do evento, mas àquela hora nenhuma vivalma estava na
praça ou dentro dos ranchões. Apreciei a tranquilidade das ruas desertas enquanto ouvia Lucas
dizer:
— Vamos direto para a casa do prefeito.
— César é o prefeito da cidade? — escutei Levi perguntar do banco de trás.
Lucas só concordou.
A caminhonete atravessou a praça devagar, e então entrou na rua principal. Alguns
metros e parávamos em frente a uma grade de ferro suntuosa e cheia de arabescos. Pelo horário,
provavelmente César dormia, assim como a maioria dos moradores da cidade.
Mesmo assim, Lucas não quis manter a etiqueta. Passou a mão por dentro das grades do
portão e alcançou o ferrolho, que puxou com facilidade. Sibipiruna era cidade pequena, quase
nunca tinha assaltos, então aquele era um costume comum. As pessoas sequer trancavam a porta
de suas casas.
Passamos em uma varanda com piso branco e brilhante e paramos na frente de uma
porta com entalhes chiques e acabamentos em vidro.
Lucas bateu na porta com sua mão imensa e pesada, fazendo o barulho ressoar por toda
a casa silenciosa. Não sei se César morava sozinho ou se dividia o lar com alguém. Nas
conversas que tivemos sempre que ele me procurava, chegou a me contar que era solteiro —
coisa que enfatizava — e que gostaria de companhia para sua casa imensa, mas não sei precisar
quanto daquela solidão era só galanteio.
Demorou alguns segundos até que César surgisse com o rosto enfiado em um dos vidros
da porta. Pela posição em que estávamos, ele via somente eu e Lucas, que paramos na frente. Vi
seus olhos se arregalarem em surpresa e ele pareceu ponderar por alguns segundos se abria ou
não a porta. Até que se decidiu.
Escutamos a tranca ser liberada e, segundos depois, a porta ranger ao ser aberta. Algo
em meu corpo se inquietava e, mesmo sob o vento frio do dia que ainda nascia, o suor escorria
por minhas costas.
Ele abriu a porta lentamente, olhando primeiro para Lucas e então para mim. Algo
estava diferente em seu rosto, como se estivesse feliz com nossa presença, e então ele murmurou
diretamente para o ex-cunhado:
— Eu devia adotar o seu costume e criar alguns cachorros. Só assim para evitar visitas
como essa tão cedo. — Me olhou e abriu um sorriso safado e meio nojento. — Bom dia,
Gabriella. Fico feliz que tenha voltado a Sibipiruna. O que fazem aqui a essa hora?
Só que antes que eu ou Lucas tivéssemos a oportunidade de dizer qualquer coisa, Levi,
que estava atrás de nós, respondeu com firmeza:
— Eles estão atrás de informação. — César girou o rosto na direção da voz, e foi como
se seu rosto se desmanchasse. — Eu, estou atrás de justiça. — A mão de Levi enfiou-se no meio
de sua camiseta e puxou a arma, empunhada diretamente no rosto do prefeito de Sibipiruna. —
Então quer dizer que você é a pessoa que o convenceu a enviar assassinos atrás de mim? — Ele
apontou com a cabeça para Lucas. — Pois eu vim saldar sua dívida, César.
O tiro soou em meus ouvidos como o estouro de uma bomba, tão perto a arma estava do
meu rosto. Antes que meu corpo sequer reagisse, um vulto gigantesco voou sobre mim, e senti os
braços fortes de Lucas me rodearem enquanto caíamos no chão da varanda.
Levi saltou sobre nós e jogou-se para dentro da casa, enquanto o som de objetos caindo
ressoava na sala.
— Você está bem? — Lucas perguntava para mim, apalpando meu corpo e me fitando
com olhos cheios de ansiedade.
— S-sim... — guaguejei, ainda em choque com o que tinha acontecido. — Ele atirou no
César.
— Que tenha acertado — Lucas praguejou, me erguendo na velocidade da luz. — Só
espero que antes de morrer, ele me diga como encontrar o outro assassino.
Me grudando em seu peito para me proteger, Lucas puxou sua arma antes de entrar na
casa. Seus movimentos eram ágeis, e seu corpo tampava quase todo o meu quando adentramos a
sala.
Sequer tive tempo de ver os móveis ou a decoração e me vi mais uma vez sendo
arremessada ao chão, no momento exato em que um tiro rasgou a porta de entrada, logo atrás de
nós.
Agachados, procurei pelos outros dois homens, e vi Levi correndo no sentido do
corredor, enquanto César estava desaparecido. Alguns vasos estavam quebrados no chão, e duas
poltronas tinham caído no meio do caminho.
— Fique atrás de mim! — Lucas ordenou enquanto se levantava e me puxava para junto
de si.
Senti seu corpo me cobrir de uma maneira segura quando ele começou a esgueirar-se
pelos móveis caídos e seguir atrás de Levi.
A casa do prefeito era um sobrado de dois andares. Ao chegarmos no corredor que dava
acesso às escadas, tudo o que vi foi os pés do criminoso terminando de subir os degraus. O som
pesado de passos correndo no segundo andar rompia o silêncio, e senti as mãos firmes de Lucas
se grudarem em minha cintura enquanto ele me mantinha atrás dele.
Subimos os degraus apressados, até que um novo tiro soou no segundo andar.
Tão ágil quanto o som do disparo, Lucas me empurrou contra a parede, projetando seu
corpo na minha frente, no meio do lance de escadas.
— César também está armado — ele falou, erguendo a arma na altura do rosto. —
Então, cuidado em dobro.
Recomeçamos a subir e escutamos o ruído de coisas se quebrando em um dos cômodos.
Chegamos ao segundo andar e Lucas se esgueirou na direção dos sons. O grito de alguém soou e
ouviu-se o baque surdo de algo pesado caindo.
— Desgraçado! — César gritava.
Lucas me puxou e entramos no que parecia ser um escritório. Ao chão, Levi e César se
engalfinhavam como dois bichos. O prefeito estava por cima e tinha uma mancha de sangue em
um dos braços. Desferia socos e chutes onde alcançava, enquanto Levi tentava agarrar sua roupa
e inverter as posições.
Os dois estavam armados, e suas armas dançavam naquela briga, indo e vindo
perigosamente em nossa direção.
Sei que Lucas não era afeto de nenhum dos dois. Por ele, os dois se matavam. E talvez
por isso, ele importava-se mais em me proteger do que separar a briga, me levando para detrás de
uma poltrona ao canto do escritório.
Em um instante de descuido, César deu um soco certeiro em Levi, que o soltou. Vi o
prefeito apontar a arma no rosto do outro homem, mas Levi também ergueu sua pistola,
disparando primeiro, sem mirar muito bem.
O tiro atravessou o cômodo e quebrou a vidraça da janela. No susto, César afastou-se e
se jogou para detrás da mesa de madeira que ficava ao centro do lugar. Seu braço ferido ergueu-
se acima da mesa e foi a vez de ele disparar. Sem qualquer critério ou pontaria, o tiro acertou a
poltrona em que nos escondíamos, e Lucas gritou:
— Porra! Filho da puta! — Sua mão me empurrou contra o chão e só vi estilhados da
madeira e do estofado voando, enquanto ele erguia o tronco e disparava de volta.
Eu estava no meio de um tiroteio antes das seis da manhã!
Depois que tudo aquilo acabasse, eu ia querer paz por uns cinquenta anos. Longe de
qualquer tipo de adrenalina. Nem subir no pé de caju eu subiria mais.
Enquanto Lucas e César se enfrentavam, Levi teve alguns segundos para se recuperar e
também se proteger, buscando uma das cadeiras caídas no chão.
Mais dois tiros vieram em nossa direção, e me perguntei se o alvo realmente era Levi.
Lucas não deixava por menos, atirando na mesa de madeira e estourando o mogno pesado.
O que iniciou com uma briga entre César e Levi evoluiu para um acerto de contas entre
os Maldonado.
— Me diz como encontrar o homem que contratou para matar Levi! — Era Lucas
ordenando, enquanto César revidava com disparos.
— Vai se foder, Maldonado! — o prefeito xingava. — Eu sei muito bem o que faz aqui!
Mais um tiro varreu o ambiente. Esse, dado por Levi.
— Continua péssimo na mira — César provocou, e outro tiro foi disparado. Agora, pelo
prefeito, ricocheteando na cadeira em que o bandido se escondia.
Parece que ele também não era muito bom em atirar, pois Levi continuava sem
ferimentos.
— Mas hoje não vou errar — o homem disse com determinação, disparando de volta.
— As balas dele vão acabar — Lucas sussurrou para si mesmo, mas eu ouvi. Senti suas
mãos protegerem meu corpo e então Levi disparou uma última vez, provocando um grito
monstruoso de César.
— Me acertou, desgraçado!
César caiu de lado atrás da mesa e posicionou-se deitado no chão. Uma bola de tom
vermelho escuro crescia em um de seus ombros quando ele mirou em Levi e atirou mais uma vez
no oponente, que agora parecia sem balas.
Ao ver que não lhe restava munição, Levi recuou feito um bicho, puxando a faca com
uma das mãos e apontando para mim e Lucas, enquanto corria em direção à porta aberta.
Sem tempo a perder, Lucas me olhou e então disse em um tom de comando difícil de
desobedecer:
— Fique aqui!
Continuei exatamente onde estava, enquanto ele se erguia de peito aberto e apontava sua
arma para César. Este parecia ter dificuldades para empunhar a sua, e seu braço pendia sem
forças no chão.
— Se tentar atirar em mim eu juro que te mato antes! — Lucas ameaçou, chutando a
mão do prefeito que tentava segurar a pistola. César urrou de dor e recolheu o braço, enquanto o
viúvo corria para pegar o revólver que caiu do outro lado do escritório.
— Seu filho da puta! — o homem ferido gritou indignado, tentando tampar o ferimento
nos ombros. — Vai atrás daquele assassino! Ele matou Tereza!
— Antes vai me dizer como encontrar o cara que mandou atrás dele — Lucas era como
uma fera gigantesca apontando a arma para César. — Pouco me importa a vida daquele
criminoso que acabou de sair daqui. Só quero entender por que ele quis te matar assim que
chegamos, e como você o conhecia se no dia do assalto só eu e Tereza vimos os bandidos.
Algo em César mudou, e ele encolheu-se indefeso. Olhou para a mira do revólver
apontado para si e engoliu em seco antes de responder:
— Você o descreveu na época, Lucas. Reconheci no instante em que vi o corte no
braço.
Lucas não se convenceu de imediato. Continuava agressivo e segurando a arma quando
escutamos gritos do primeiro andar.
— É a polícia! — Reconheci a voz do delegado Antenor.
— Tira essa arma do meu rosto ou eu digo que você quem atirou em mim — César
gritou para Lucas, mas este permaneceu paralisado, ainda mirando o prefeito e inimigo.
— Se fizer isso eu conto que você mandou matadores atrás dos assassinos de Tereza, e
acabo com sua imagem de político certinho. Digo que tem contatos com grupos de extermínio,
muito provavelmente da época em que se afundava nas dívidas de jogo. Conto, inclusive, que na
época em que Tereza morreu, eu paguei pelos matadores porque você mal tinha onde cair morto
depois de ter gasto toda sua herança em apostas. As pessoas acham que essa casa aqui foi
comprada em partes com o dinheiro da sua família, mas nós dois sabemos que nada restou. Você
devia o mundo quando Tereza morreu, e não duvido que sua vida boa de hoje seja fruto de
corrupção. — Lucas não cedia. Ao contrário, parecia mais e mais possesso. — Me entregue para
a polícia e eu te levo junto, prefeito.
— Não sei do que está falando! — César murmurou, e escutei os passos da polícia
subindo as escadas.
Um suor frio escorria por minhas costas.
— É dessa época que conhece Beto e Duda? Da sua fase mais miserável? Preciso saber
do paradeiro de um deles.
O vento de fora preencheu o escritório no exato momento em que Antenor e outro
policial invadiram o cômodo, gritando para Lucas:
— Mãos para o alto, Maldonado, ou eu atiro!
Lucas nem se moveu enquanto eu, ao contrário, vi meu corpo explodir em uma reação
maluca e impensada, praticamente me jogando na frente da mira da polícia.
— Não foi ele! — gritei, erguendo as mãos para cima e indo na direção dos policiais.
Só então Lucas pareceu sair de seu transe, girando o rosto em minha direção e
abaixando a arma.
— Loirinha! — ele gritou, enquanto me puxava para junto de si.
— Não foi ele quem atirou no prefeito! — repeti, tentando escapar dos braços do
homem que eu amava. — Eu vi tudo!
Os policiais estavam perdidos, e Antenor olhou para César caído no chão, detrás da
mesa.
Foi César quem pôs fim àquela bagunça, dizendo:
— Não foram eles. — Seus olhos se voltaram para Lucas e tudo o que vi foi o mais
profundo ódio. — Lucas e Gabriella acabaram de chegar na cidade, passaram em minha casa, e
um dos invasores que fugiu da delegacia aproveitou a entrada deles para me assaltar. O bandido
achou que encontraria algo de valor aqui.
Meu queixo caiu em choque diante da capacidade de César em mentir, e tive
dificuldades para disfarçar minha reação.
Lucas, ao contrário, nem por um segundo deixou transparecer sua surpresa com as falas
de César. Concordou com a cabeça e virou-se para Antenor com soberba, relatando com extrema
segurança:
— Passamos aqui pois Gabriella vai precisar de proteção, e eu quis pedir diretamente ao
prefeito, já que não posso contar com o delegado.
Os olhos de Antenor se juntaram em desconfiança, e ele virou-se para César, ainda
apontando a arma para nós:
— Tem certeza de que foi isso que aconteceu?
— É só fazer a balística — César afirmou, falando com dificuldades e ofegando de dor.
— As balas que me atingiram não são da arma dele.
Ainda sem acreditar, o delegado aproximou-se de nós dois e arrancou a arma das mãos
de Lucas, resmungando:
— Quero só ver.
Lucas me abraçou, e senti meu rosto se afundar em seu peito enquanto seu braço forte e
quente praticamente me amassava de encontro a ele.
— Você vai ver, Antenor! — César resmungou impaciente. — Só chama logo o socorro
que isso está doendo pra cacete.
Antenor fez um aceno para o segundo policial, que entendeu o recado, informando que
iria atrás de um socorro. Assim que o homem saiu, o delegado girou no centro do escritório,
analisando todo o caos causado pelo tiroteio, antes de afirmar:
— Isso aqui não foi só um assalto. — Seu olhar vagou de César em Lucas e então parou
em mim. — E eu vou querer saber exatamente o que aconteceu.
Capítulo 43

Minha mente fervilhava enquanto o delegado Antenor repetia as mesmas perguntas de


inúmeras maneiras diferentes tentando me pegar na mentira.
— Já contei como tudo aconteceu, delegado — rosnei impaciente. Queria saber como
Gabriella estava.
— Sei não. — Antenor sequer disfarçava sua desconfiança. — Tô achando tudo muito
cheio de furos.
— E daí o que você acha, Antenor? — revidei. — Tanto eu quanto o prefeito contamos
a mesma história. Não confia no seu melhor amigo?
Ignorando todo meu sarcasmo, ele questionou:
— Então quer dizer que bateram na residência do prefeito a essa hora da manhã para
pedir proteção para Gabriella porque ela está sendo ameaçada por um policial integrante de um
grupo de extermínio?
— É.
— Por que não bateu aqui na delegacia?
— Porque da última vez que te pedi ajuda me virou as costas, se lembra? — Antenor
fechou a cara, e tirei proveito da nossa inimizade para reforçar a história inventada e absurda. —
Eu fui atrás da afilhada dos Siqueira sozinho quando você se recusou a me ajudar. Pode
conversar com o delegado de Dom Cervantes e também o de Coralina. Os dois vão confirmar a
história. Ainda tem um policial atrás dela.
— Já fui atrás, Lucas. Sei que não está mentindo sobre isso. O que não bate é ter ido
pedir ajuda justamente a César. Todos sabem que vocês se odeiam.
— É que por Gabriella eu faço qualquer coisa. Inclusive, passar por cima de inimizades.
Também não era uma mentira.
Antenor me analisou. Esmiuçou minhas feições buscando um rastro de incongruência e
então suspirou alto, tamborilando em sua mesa e murmurando para si:
— Ainda não acredito muito nisso... Nesse angu aí tem caroço, e o que mais me intriga
é entender porque o prefeito tá encobertando vocês.
Eu também gostaria de saber isso.
Algo em César, e no confronto que ele teve com Levi, aguçava meus sentidos.
Tinha muita coisa errada com aquele tiroteio, mas eu não poderia explanar minhas
dúvidas com o delegado. A desconfiança era recíproca.
A forte sensação que tive de César conhecer Levi, além da fúria quase assassina de Levi
com meu ex-cunhado — coisa que ele não teve comigo, que fui o mandante de sua execução —,
me deixavam cabreiro.
Lá no fundo eu tinha uma suspeita. Uma bem macabra e nada boa, que se fosse verdade,
causaria mais um assassinato em Sibipiruna.
Dessa vez do prefeito, e com minhas próprias mãos.
— Qual dos assaltantes que fugiu atirou em César? — Antenor perguntou pela enésima
vez.
— Não prestei atenção. — Dei de ombros.
O delegado riu, visivelmente irritado.
— Vocês acham que sou idiota?
Eu achava.
— É o seguinte, Antenor. — Me virei para ele, no limite da paciência. — Se nem César,
que me odeia, registrou queixa contra mim, por que está tentando me incriminar? Não fui eu
quem atirei nele! Só fazer a porra da balística. Teve uma troca de tiros naquela casa, e qualquer
perícia vai provar que tinham três pessoas armadas ali.
— Então você assume que atirou lá dentro?
— Todo mundo nessa porra de cidade tem sua própria arma. Eu só me defendi do
tiroteio. Vai me prender por isso?
Ele cruzou as mãos sobre a mesa, exalando incredulidade e irritação. Então, negou com
a cabeça e finalmente falou:
— Ok. Vou te liberar, mas sua arma fica comigo para a perícia.
— Isso eu já sabia. — Me ergui, louco para dar um fim naquela manhã.
— Você e a garota podem ir.
Ele apontou para a porta, e antes que eu saísse tive a oportunidade de escutá-lo
murmurar:
— Sibipiruna já foi mais tranquila...
Na verdade, Sibipiruna só guardou suas merdas por um tempo. Agora, tudo era
desenterrado de uma vez.
Saí da sala do delegado e encontrei Gabriella me esperando do lado de fora da
delegacia. Ela se abraçava meio encolhida, e ao me aproximar, puxei seus cabelos castanhos para
um beijo em sua testa. Senti a loirinha suspirar, e aquilo me relaxou.
— Levaram o prefeito pra Coralina — ela informou. — Aqui não tem hospital pra
cuidar dos ferimentos no ombro. Parece que vai precisar de cirurgia para retirar a bala.
— Ele poderia morrer na mesa de operação — praguejei, rodeando sua cintura e a
puxando para junto de meu peito.
— Para com isso, Lucas! — ela exclamou. — Precisamos dele vivo pra dizer como
encontrar o Beto.
Abri um sorriso sarcástico.
— Você tem carinha de inocente, mas é tão endemoniada como eu previ.
— Também não vou com a cara desse César. — A observei atento. — Ele atirou em
nós, Lucas!
— Fiquei com a mesma impressão — sussurrei, puxando-a na direção da calçada.
Minha caminhonete estava estacionada na porta da delegacia, e uma pequena multidão
havia se formado na entrada do lugar. Todos, curiosos sobre o “assalto” à casa do prefeito. Vi
Salazar junto de Diana, e me surpreendi quando a mulher de meu amigo correu para abraçar
Gabriella, arrancando-a de meus braços.
— Que bom te ver de volta! Você quase nos matou de susto quando sumiu!
A loirinha arregalou os olhos visivelmente surpresa, e então murmurou envergonhada:
— Sentiram minha falta?
— Claro! — Diana agarrou-se a ela, e vi Salazar me acenar com a cabeça, em um
cumprimento silencioso. — Seus padrinhos não disseram para onde foi, e ainda deram a entender
que talvez você não voltasse. Eu já estava acostumada com nossas conversas na escola, e me
perguntava o que fizemos para te afugentar de Sibipiruna.
— Eu já estava achando que alguém tivesse te afugentado — Salazar insinuou enquanto
me encarava sem discrição.
— Até tentaram, mas é que sou insistente — Gabriella ironizou ao me fitar.
Resolvi não provocá-la ao dizer que fui atrás dela.
— Bom, mas isso não importa! — Diana desconversou, me olhando de relance e
voltando a falar diretamente com a loirinha. — O que importa é que está de volta e espero que
seja para ficar.
— É para ficar — sentenciei, firme, e todos me olharam alguns segundos. Salazar
disfarçou o riso e Diana abriu um daqueles seus sorrisos animados.
— Isso é maravilhoso! — Ela bateu as mãos empolgada. — A cidade está um caos, mas
precisamos comemorar. A festa da colheita é uma ótima oportunidade.
— E vamos continuar fazendo a festa? — um morador de Sibipiruna que estava perto de
nós levantou a questão.
— Pois então! — outro concordou. — Invadiram a casa do prefeito. É seguro manter a
festa?
— Eu acho que deveríamos cancelar — uma senhora ponderou.
— Concordo — outro medroso disse. — Esses bandidos devem estar rondando a cidade.
E se eles invadirem a festa?
— Ninguém vai invadir a festa da colheita — a voz do delegado pronunciou acima de
todos os questionamentos. — O prefeito foi alvejado hoje cedo, mas a polícia ainda não pode
afirmar de quem partiu o tiro. — E me olhou, como se me acusasse.
— Foi de um dos invasores das fazendas que você deixou escapar — reforcei a mentira
na frente de todos, e vi os murmúrios aumentarem.
“O que querem aqui?”
“Eles são perigosos!”
“Precisamos cancelar a festa!”
— Não vamos cancelar a festa! — Antenor voltou a falar. — Como delegado dessa
cidade eu posso garantir que Sibipiruna é segura. Eu e a polícia de Coralina estamos trabalhando
para pegar os invasores das fazendas. Ainda não encontramos o grupo, mas tenho certeza de que
logo teremos novidades.
Revirei os olhos, cansado daquele caos todo e louco para me enfiar numa cama com a
loirinha.
A puxei pelo braço, fazendo um aceno com a cabeça para um ou outro presente, e me
despedindo de Salazar e Diana.
— Soubemos o que aconteceu com o sítio, Lucas — o vice-prefeito comentou. —
Lamentamos pelo incêndio.
Balancei a cabeça, minimizando o “incidente”.
— Acho que esqueci uma vela acesa e tudo queimou enquanto eu procurava por
Gabriella.
— De certa forma, vai ser um bom recomeço — Diana opinou. — Terá a chance de se
livrar de coisas que o prendiam ao passado e refazer tudo do zero.
— É. — Parei alguns segundos, e um sorriso formou-se em meu rosto. — Não dá para
recomeçar com tanta coisa em aberto.

Ao chegarmos no vale que abrigava o sítio, algo diferente enchia meu peito. A mão da
loirinha não largava a minha no câmbio, e o aroma dela tomava toda a cabine.
Era hora do almoço, e o sol estava a pino. O pasto estava de um verde lustroso,
alimentado pela chuva, e pela primeira vez em muitos anos, senti que voltava para casa ao
atravessar as rochas gigantescas que protegiam o vale.
A sensação era nova. Parecia uma lembrança de outras vidas. Uma vida em que não me
martirizei tanto pela culpa, nem tentei fazer justiça a todo custo.
Eu ainda queria Justiça.
Só que ela agora viria acompanhada de Redenção.
Ainda estávamos no meio do caminho que levava ao sítio quando escutei os primeiros
latidos. A sensação de lar veio mais forte, como se o fato de voltar para aquele lugar com minha
loirinha e ser recebido pelos cachorros fosse a ordem natural das coisas.
O primeiro a surgir no meio do pasto, correndo e latindo animado, foi Sombra.
Sempre o mais apegado e fiel.
Ele praticamente voou sobre o mato alto em saltos imensos. Saltou a cerca de proteção
em um ponto mais baixo e sem dificuldade, e então correu na direção do carro.
Depois dele vieram Trovão, Estrela e Perverso. Por último, sempre analisando tudo com
certa altivez, estava Juiz.
Em poucos segundos, vimos a caminhonete ser rodeada pelos bichos. O restante do
trajeto foi feito com uma matilha de cães atrás de nós, e ao chegarmos na cerca que protegia a
terra dos Siqueira, Gabriella foi rodeada por eles quando desceu para abrir a porteira. A vi ser
derrubada por Trovão e Perverso, que fizeram uma festa imensa, abanando o rabo e lambendo-a
com vontade.
Eu também queria lambê-la todinha.
Quando finalmente chegamos no jardim à frente da casa simples dos meus vizinhos, eles
já nos esperavam na varanda. Dona Sofia, encostada em uma pilastra de madeira, não escondia o
sorriso contente, enquanto José apertava o cabo de uma enxada nas mãos.
Gabriella desceu do carro primeiro, e deixei que ela se aproximasse sozinha dos
padrinhos.
— Eu devia te dar um castigo por nos fazer passar esse susto — dona Sofia até tentou
parecer firme, mas seus olhos marejados revelavam sua emoção.
— Eu só quis proteger vocês. — A loirinha tinha a voz embargada. — São minha única
família.
— E família cuida, menina! — Agora era seu padrinho quem dava a bronca. Ele largou
a enxada e, num ato inesperado, puxou Gabriella para si. — Não tente mais resolver as coisas
sozinha. Estamos aqui para te apoiar.
— Por um segundo a gente achou que ia te perder. — Sofia também a abraçou,
enquanto eu me mantinha à distância, observando a cena do gramado do jardim.
Quando eles se soltaram, José foi o primeiro a me fitar e agradecer:
— Obrigado, senhor Maldonado. A menina virou nossa filha, e o senhor a trouxe de
volta.
— Como eu disse que faria.
Vi quando Gabriella olhou para o terreno ao lado, parando alguns segundos para
observar a vastidão que restou no lugar do sobrado de dois andares.
— Nem tudo continua igual no vale — ela murmurou, voltando-se para mim e sorrindo
marota. — Você realmente transformou tudo em cinzas.
Preto e branco, como era a minha vida.
E reencontrei a cor no uísque dos seus olhos...
— Assim que tudo se resolver, pretendo construir uma nova casa. Até lá, fico com os
cachorros no galpão em que estaciono o carro.
— Nem pensar! — Dona Sofia trovejou assim que me ouviu. — Se nem os cachorros
deixamos dormir lá, imagine o senhor!
— Onde eles estão dormindo? — Enruguei a testa.
— Aqui na minha varanda. — Ela apontou para um canto e só então notei que todos os
cães se embolavam preguiçosos atrás de uma mesa de madeira. — Cuidamos deles direitinho e
em nenhum momento ameaçaram nos morder. Gabriella tinha razão. Eles são mansos como um
cachorro de madame. É só tratá-los com respeito.
Concordei, pois já tinha desistido de passar a impressão de que eles eram feras
agressivas. Ao menos, não com todo mundo.
— Mesmo assim — insisti. — Acho melhor eu ficar no galpão.
— Vai dormir aqui! — senhor José sentenciou. — No sofá da sala, se não se importar.
Até comprarmos um colchão.
— Não precisam se preocupar...
— Fazemos questão — Dona Sofia me cortou, e pelo canto de olho vi que a loirinha me
observava atenta. — Agora entrem logo que o almoço já esfriou, mas posso esquentar.
— Meu Deus! Que saudade da sua comida, madrinha! — Gabriella exclamou com
animação, acompanhando os outros dois.
O almoço foi tranquilo, e confesso que estava faminto.
O vale, de fato, era especial.
Presenciou meu luto, mas também coisas boas. Foi o lugar que me encheu de vazio para
então trazer cor.
Depois do almoço, me sentei na rede da varanda enquanto Sofia e José iam alimentar
alguns animais. Gabriella apareceu no vão da porta e logo empoleirou-se em meu colo, fazendo a
rede ranger com nosso peso somado.
Passeei os dedos pelo corpo que tinha me viciado, sentindo o cheiro dos cabelos e
alisando seu pescoço delgado, já imaginando minhas mãos ali mais tarde.
— Ainda tenho que falar com César sobre o paradeiro do outro policial — murmurei
enquanto apreciava os contornos do seu pescoço. Como era linda. — Como ele está no hospital,
não vou conseguir arrancar nada agora. Vamos ter que esperar.
— Acha que ele pode ajudar?
— Não sei. Ter contado com ele para mentir sobre o tiroteio de hoje cedo já é sorte o
bastante.
— Para onde acha que foi o Levi? — Ela cruzou os braços abertos em meu peito,
apoiando o queixo em cima de mim.
— Não faço ideia. Deve estar bem longe daqui.
— Tem medo dele voltar? Você encomendou a morte dele.
— Me preocupo mais com quem te ameaça.
Ela me fitou com aqueles hipnotizantes olhos castanhos e então sorriu.
— Tá caidinho, né, cowboy? — Não respondi e ela riu mais. — Diz: se apaixonou por
mim no dia em que subi no seu pé de caju ou quando me carregou feito um saco de arroz em
plena praça pública?
Poderia responder com uma provocação, mas tentei ser o mais sincero possível:
— Foi quando percebi que você me tirou da escuridão.
Capítulo 44

Quase morri de vergonha quando José insinuou que ficaria de olho em Lucas para que
ele não invadisse meu quarto no meio da noite. O viúvo não esboçou qualquer reação, e aceitou
com muito respeito a colcha simples e o travesseiro que ofereceram a ele. O sofá mal cabia o
corpo gigantesco e pesado de Lucas. Me lembro que sua cama era grande no antigo sobrado, mas
a impressão que eu tinha era que ele estava mais leve. Até mesmo descansado.
Na manhã seguinte, foi como se todo o vale acordasse depois de uma longa e pesada
tempestade. O cheiro do pasto molhado e o canto suave dos pássaros era um acalento ao meu
peito agoniado, e que ainda se preocupava com o que poderia nos acontecer.
Eu tinha medo por Lucas, que poderia ser preso pela morte de Duda, ou mesmo acusado
pelo tiro dado no prefeito.
Tinha medo que Levi retornasse para se vingar por ter sido perseguido por anos.
Tinha medo pelo outro policial que restou, e que com certeza ainda queria se livrar de
mim. Afinal, eu era a única testemunha de um dos crimes que ele cometeu.
Passei uma manhã tranquila, enquanto Lucas voltava a se inteirar sobre as questões da
colheita. Ele saiu para conversar com alguns fazendeiros da região, e ao fim da manhã voltou
com vários homens que o ajudaram a começar a retirar todo o entulho da casa incendiada. Seria
um longo trabalho até que tudo estivesse limpo, e achei curioso como ninguém lamentava muito
a queima daquele imóvel, como se todos percebessem que aquilo não foi um acidente, e sim uma
libertação.
Durante o almoço, pela primeira vez, vi Maldonado falar sobre reativar a usina, e aquilo
surpreendeu a todos na mesa. O dia transcorreu calmo como sempre foi naquele lugar e, pouco
antes do fim da tarde, chamei Lucas para ir comigo até o riacho que ficava aos fundos da
fazenda.
Fomos acompanhados pelos cinco cachorros, e ao chegarmos na mata densa, senti o
fazendeiro me puxar pela cintura para me impedir de cair na relva lamacenta.
Passamos pelo local em que ele rendeu três homens e logo chegamos ao riacho. Um
córrego de águas escuras e geladas, mas que eu adorava pelo silêncio e tranquilidade.
— O que quer, loirinha? — Sua voz grossa rompeu a quietude do local.
— Me refrescar. — Fiz cara de inocente. — Já estava desabituada ao clima quente
daqui. — E comecei a retirar o vestido que usava, ficando somente de calcinha e sutiã.
O homem aprumou a postura. Assumiu um ar dominante, meio selvagem. Fechou e
abriu os dedos das mãos e então sorriu de um jeito que ele pouco fazia, mas sempre me
quebrava.
— E não tem medo de se banhar no riacho? — Sua voz era quase um chiado de tão
rouca.
— Com você aqui, não.
Os cachorros estavam metidos na mata em suas caças particulares quando mergulhei um
pé na água gélida.
Trincando de fria, mas eu gostava.
Senti meus pelos se arrepiarem à medida que avançava para dentro do córrego. A
margem era formada por algumas pedras, e precisei me apoiar nas rochas para descer sem me
desequilibrar. Ao ter metade do corpo encoberto pela água escura, me voltei para Lucas, que
continuava de pé, no solo.
— Não vai entrar?
— Estou te apreciando um pouco. — Ergueu de leve o queixo, ainda me olhando. —
Tira a calcinha.
Ok...
Quem sou eu para negar?
Precisei mergulhar quase por completo na água para conseguir passar a calcinha que
estava pregada em meu corpo pelas pernas. Aproveitei para também arrancar o sutiã, surgindo da
água completamente nua, e jogando as peças íntimas em uma pedra da margem.
— Eu disse só a calcinha, Gabriella. — Seus olhos se nublaram quando viram meus
seios nus, e ele começou a desabotoar a camisa.
— Ah, é? Foi sem querer... — E passei os dedos em um dos mamilos, o provocando.
Sem muita pressa, ele arrancou sua peça de cima, expondo aquele peito nu e a barriga
toda trincada. Os músculos estavam molhados de suor, e ele passou a mão na fivela do cinto
grosso que segurava sua calça.
— Atrevida... Ainda não me esqueci do que fez ao fugir de Sibipiruna sem pensar na
própria vida.
— É que sou imprudente — revidei, cheia de atrevimento. Senti meu interior começar a
queimar mesmo dentro d’água quando ele desafivelou a calça, deixando-a cair e revelando suas
coxas grossas. — Ainda não percebeu?
— Imprudente e teimosa. — Seu pênis semiereto marcava a cueca de um tom azul
escuro, e senti a boca salivar.
Lucas livrou-se da peça íntima, mas manteve o cinto nas mãos. Começou a caminhar
devagar para dentro do riacho, passando a fivela na peça de couro bem devagar e então batendo
na própria palma da mão.
O som seco do couro marcando a pele me causou um frisson.
Meus pelos todos se arrepiaram, e senti toda a água ao meu redor esquentar como em
um bule fervente.
Vi o homem de porte intimidador entrar devagar na água, sequer expressando reação ao
tocar a água gélida.
Tornozelos, coxas, quadris, abdômen definido... Tudo foi engolido pouco a pouco pela
água, até só restar seu peito nu e molhado, os braços fortes e aquela confusão de cabelos escuros.
Como era possível amar alguém tão quebrado?
Ele voltou a bater a correia do cinto na palma da mão e dei um pulinho de susto. Parou à
minha frente e então, sem jamais sorrir, resmungou em tom rude e firme:
— Me dá as mãos, loirinha.
Juntei os pulsos à frente do corpo. Achei que ele ia me amarrar naquela posição, mas
antes senti a ardência repentina do golpe que ele deu nas minhas mãos abertas.
Porraaaa...
— Lucas... — Não queria ter gemido tão entregue, mas o desejo era maior.
— Você gosta, diacho — concluiu o óbvio, agarrando meus pulsos com uma só mão e
puxando meus braços para cima.
Arfei quando ele passou o cinto devagar entre os seios. O couro era quente, e sua
respiração queimava como vapor acima de minha cabeça. Fechei os olhos e deixei que ele fizesse
tudo, gemendo baixinho enquanto o cinto passeava por meu corpo nu.
Passeou pela cintura, me atiçou nos braços, até que Lucas girou meu corpo, me pondo
de costas para ele e juntando meus pulsos atrás. Senti os pulsos serem apertados pelo cinto e
choraminguei de tanto tesão.
— Vou te dar uma lição para que nunca mais se coloque em risco nem fuja de mim.
— Lembre-se sempre que a culpa foi toda sua ao me delatar — provoquei, e senti o
couro se fechar mais ao redor dos pulsos.
Uma das mãos dele atravessou para a frente do meu corpo, passeando pela pele até
chegar aos seios. Sem me virar, ele beliscou um mamilo, e então o outro. Levou a mão molhada
do rio até meu pescoço e...
Nossa...
Nossaaa...
Como eu senti falta daquilo.
A ausência gradativa de ar. A sensação dos dedos se fechando mais e mais em minha
garganta, enquanto sua outra mão aventurava-se mais embaixo, na minha virilha.
Minha bunda sentia sua ereção se esfregar ali pedinte, enquanto eu também suplicava,
me retorcendo em seus braços. Gemi baixinho quando ele começou a me enforcar. Tão, mas tão
gostoso, que quis gozar só pela sensação de ser dominada naquele rio.
Tentei pegar seu pênis com as mãos amarradas, mas era difícil. Senti quando ele
direcionou o corpo até que eu o alcançasse, e ouvi um gemido rouco escapar de seus lábios
quando o apertei entre os dedos.
A mão que me apertava a garganta tornou-se mais pesada. Exigente. E foi quando perdi
toda a razão. Não conseguia mais enviar comandos ao resto do corpo, como se nada meu me
pertencesse, e acabei soltando seu pau.
Ficar de pé era ato inconsciente, pois o resto não conseguia fazer. Sequer pensar.
Sua mão em minha virilha trilhou mais para baixo, alcançando minha entrada úmida, e
tudo ruiu em meu cérebro.
A água do córrego tornava o contato dos seus dedos com minha região íntima mais
áspero, e isso só deixava tudo ainda mais intenso. Um primeiro dedo invadiu a boceta e minhas
pernas tremeram. Quando o polegar começou a brincar na região do clitóris, enquanto seus dedos
de juntas grossas me penetravam, eu gemi alto.
— Vou te mostrar que é minha — ele rosnou, aproximando ao máximo a boca de meus
ouvidos e mordiscando o lóbulo, criando um arrepio que cruzou toda a minha coluna. — Que
esse corpo aqui me pertence, e que jamais vai se afastar de mim.
— M-me mostre — gaguejei, embriagada de tanto tesão. Senti sua mão em meu pescoço
se fechar, e um novo beijo em minha orelha. Esse me fez ter tonturas. — Lucas...
— Respire devagar, loirinha, pois hoje vou te tirar todo o ar, como faz comigo todo
santo dia desde que chegou aqui.
O aperto na garganta parecia criar comandos ao corpo de emergência, e isso
potencializava o desejo. Fazia com que as terminações ficassem mais atentas e, com isso, um
simples roçar de um de seus dedos bem perto da minha orelha era o suficiente para fazer tudo
explodir.
Gritei — ou tentei gritar, pois estava quase sem voz — quando uma espécie de orgasmo
invasivo surgiu. Eu não esperava gozar tão rápido, e aquela sensação inesperada fez meu corpo
se sacudir em ondas de puro prazer. Minhas pernas falharam e Lucas, ao invés de me amparar, só
manteve firme sua mão em meu pescoço, fazendo tudo rodar ao meu redor.
Eu me esqueci da água, do cinto que prendia meus pulsos ou da textura grossa de sua
voz dizendo palavras obscenas em meus ouvidos. Eu só... me entreguei. Deixei o córrego parecer
uma poça seca se comparada ao rio de prazer que era meu interior.
Seus dedos iam e viam, e sua outra mão quase me tirava os sentidos. Percebi quando ele
friccionou o pau em meu traseiro, e aquilo trouxe uma sensação nova. Uma vontade absurda de
fazer tudo com aquele homem. Deixá-lo provar, quantos dias e por quantas vezes quisesse, que
eu realmente era sua.
Pois eu era.
Arfei e reclamei quando seus dedos saíram de meu interior, mas Maldonado tinha outros
planos. Com a mão agora livre, ele guiou seu membro para minha entrada úmida. Dentro da
água.
Senti a textura lisa da glande tocar meus grandes lábios no meio do riacho e
praticamente me curvei, pronta para recebê-lo. Louca para isso.
Ainda com uma mão em meu pescoço, ele se encaixou. Entrou devagar, gemendo
também, e aliviando um pouco a pressão em minha garganta.
Começou a se mover e então me soltou, afastando só um pouco seu corpo do meu, mas
ainda mantendo nós dois encaixados.
Senti sua mão acariciar meu traseiro debaixo da água, e então ele voltou a estocar.
Agora mais rápido, o mais forte que conseguia, vencendo a resistência da água.
Gotas se espalhavam ao nosso redor e era bom. Intenso como nós dois. Nossos gemidos
se misturavam enquanto ele me comia ali, apalpando minha bunda e então apertando meus seios.
A água, que já esteve fria, agora parecia quente, e me perdi nos movimentos e nas ondas
que nossos corpos geravam. Um vai-e-vem gostoso, até que a vontade quase explodisse.
Longe de parecer cansado, Lucas me comeu até quase eu gozar mais uma vez. Então,
me puxou para junto de seu peito e agarrou um de meus braços, começando a nos retirar da água.
Toda molhada e nua, ele me posicionou de joelhos no chão. Seu corpo inteiro me
encobriu quando ele voltou a me penetrar por trás, agarrando meu pescoço como se ali fosse seu
ponto de apoio.
Meus joelhos batiam nas pedras frias da margem do córrego, e meus gemidos invadiam
a mata enquanto ele me fodia. Mais e mais. Demorado. Rude. Decidido. Me fazendo só dele.
O cinto molhado apertava meus pulsos, mas eu nem ligava. A quase ausência de
movimentos era um bônus ao tesão, acumulando-se estocada por estocada.
Ele ia e vinha.
Me fodia.
Me amava.
Gozei mais uma vez, quase perdendo os sentidos quando seus dedos agarraram minha
garganta e sua outra mão estapeou meu traseiro. Meu corpo cedeu e quase caí no chão molhado,
mas ele me amparou. Retirou seu pau de dentro de mim e então desamarrou meus pulsos, me
virando de frente.
Achei que o desgraçado ia se livrar do cinto, mas ele tinha outros planos. Passou o laço
curto por meu pescoço e deu um de seus sorrisos safados. Sorriso esse que agora tinha dona.
Pois assim como eu era dele, sei que ele também era meu.
Todas as dores e culpas que viria a carregar, que fossem todas minhas. E não de
fantasmas do passado.
— Lucas? — Foi um questionamento e também uma súplica quando ele fechou o cinto
em meu pescoço, puxando a ponta como uma coleira e me colocando sentada à sua frente.
— Do meu jeito, lembra? — Sua voz parecia de uma entidade.
— Adoro seu jeito. — Mordisquei o lábio ao perceber seus quadris se aproximarem de
meu rosto.
Seu pau ainda estava molhado do meu orgasmo quando o senti preencher minha boca.
Com a ponta do cinto, ele me direcionou, e minha cabeça foi e voltou, sentindo a extensão de seu
pênis preencher tudo, até a garganta.
Gemi e senti a saliva se acumular quando ele puxou o cinto e me deu um tapa suave no
rosto.
Que homem gostoso...
Que pau delicioso...
Seus quadris se moviam suaves, enquanto minha língua trabalhava em sua extensão. O
aperto do cinto não era melhor que suas mãos, mas sufocava também. Dificultava o sexo oral, e
isso parecia dar mais prazer a ele.
Mirei seus olhos. Escuros. Carregados de tanta coisa...
Tesão.
Desejo.
Carinho.
Eu via até amor.
Não vi culpa. Nem dor.
E me senti sortuda por isso.
Abri mais a boca, recebendo toda sua extensão e gemendo quando sua mão segurou
firme meu rosto, descendo outro tapa na face. Ele puxou meu pescoço com o cinto e afastou
meus cabelos que se bagunçavam em meu rosto para então começar a se mover. Num vai-e-vem
que me roubava o resto do ar, e fazia sua glande tocar o mais fundo possível.
Quase engasguei quando ele começou a estocar decidido. Cheio de vontade e parecendo
querer descarregar tudo de uma vez.
Realmente, era como se fosse uma punição.
Das melhores que se pode sofrer.
Choramingava e sentia a saliva escorrer entre meus lábios quando Lucas se afastou. Me
deitou no chão com um movimento brusco e abriu minhas pernas, fazendo tudo queimar ao
deitar-se sobre mim.
Me penetrou de novo e usou o cinto para me manter no lugar. Sua boca desceu até um
de meus seios e o lambeu. Beijou minha boca com uma vontade que pareceu tirar todo o seu
sabor de mim, lambendo meus lábios e sussurrando sacanagens.
Desceu com beijos inúmeros por meu corpo, mantendo o tom rude das estocadas e
usando a “coleira” para me prender.
Eu gritava, louca de tanto desejo. Me esqueci da mata, do riacho ou das pedras. Sequer
percebia minha pele em contato com o chão frio e úmido. Eu só o sentia.
Tudo em meu interior explodiu mais uma vez, e gozei em um grito acumulado e sem
controle.
Lucas lambuzou-se em meu colo. Beijou novamente minha boca e mordeu meus lábios,
antes de mordiscar os mamilos. Os sugou até que toda minha pele parecesse seca, e fartou-se de
meu corpo.
Me comeu com intensidade, indo e vindo com uma rudeza que me causaria dores mais
tarde.
Tudo era tão intenso que eu via estrelas. Parecia noite, e o céu estava escuro entre as
árvores acima da cabeça dele quando o senti gozar dentro de mim. Seu jato me preencheu, e o
pulsar incontrolável do seu pau enviou ondas por todo meu corpo.
Achei que fosse enfartar a qualquer momento, pois meu coração nem parecia mais bater.
— Aprendeu a lição? — ele sussurrou em meus ouvidos, beijando minha testa suada e
afastando alguns fios que se pregavam em meu rosto.
— Talvez eu precise de um reforço mais tarde.
— Hum... — Lucas resmungou, passando o polegar grosso por meus lábios e me fitando
de um jeito que parecia que o mundo se resumia a mim. — Melhor não fazermos nada na casa
dos seus padrinhos.
— Certo. — Fiz um muxoxo. — Ao menos temos um vale imenso para explorar.
Lucas riu. De um jeito descontraído e incomum.
— Você é única, diacho.
Seus lábios se colaram nos meus e ele me puxou para a água de novo, que agora parecia
bem mais fria.
Nos banhamos ali, e até brinquei de jogar água nele, mas ele logo me segurou pelos
pulsos e me jogou com tudo dentro da água. A brincadeira ficou injusta.
Depois de refrescados e com o corpo leve, saímos, nos secando em uma toalha que eu
tinha levado e vestindo novamente nossas roupas. Enquanto nos afastávamos da mata do rio,
Lucas parou por alguns segundos no caminho e olhou para trás, murmurando para si mesmo:
— Foi a primeira coisa que fiz quando cheguei aqui.
— O que? — Me voltei para ele sem entender.
— Quando cheguei em Sibipiruna e vim morar com os Maldonado. A primeira coisa
que fiz foi mergulhar nesse riacho. — Parecia perdido em lembranças, mas elas não o levaram
para aquele lugar de dor. — Tinha me esquecido de como era.
— Não faz isso há muito tempo? — Toquei seu ombro com carinho.
— Há anos. — Ele suspirou. — Da primeira vez, me lembro de sentir como se estivesse
passando por um ritual de batismo. Abandonando a vida do antigo Luca e recomeçando do zero.
— Me olhou e parecia leve. — Senti o mesmo agora.
Só consegui sorrir de volta.
— É minha redenção, loirinha. — Ele tocou meu queixo. — A minha maior e melhor
chance de recomeçar.

O dia transcorreu calmo, e na manhã seguinte senti nos músculos todo o sexo selvagem
que fizemos no rio. Até minhas costas doíam, resultado da fricção do meu corpo contra as pedras
polidas.
Queria ver Diana e matar a saudade de dona Margarida, mas Lucas insistiu que eu não
poderia mais sair andando por aí sozinha até que encontrássemos o segundo assassino ou que a
polícia o prendesse.
Com algum custo, o convenci e me levar na festa da colheita. Era um desejo antigo, e
como os eventos não foram cancelados depois do incidente com o prefeito, queria desanuviar um
pouco a mente. Passamos por tanto nos últimos dias que aquele era um lazer merecido.
Meus padrinhos também se animaram para ir, e ao chegar na praça central de
Sibipiruna, percebi que toda a cidade estava lá.
Era fim de tarde, e o cheiro bom de pipoca quentinha invadiu minhas narinas. Alguns
brinquedos já funcionavam, e suas luzes coloridas lhes davam vida em meio às barracas de palha
de cana-de-açúcar. Passamos por uma barraquinha de tiro ao alvo e quis testar a pontaria. Lucas
gabou-se todo, acertando três dos quatro alvos de que tinha direito.
Eu também me saí bem, apesar de nunca ter tocado numa arma. Acertei um tiro, o que
era um grande feito.
Diferente dos filmes americanos, o prêmio ali não era um ursão gigantesco, mas sim
brinquedos que pareceram vir diretamente da 25 de Março. Nosso prêmio, por exemplo, foi uma
pelucinha pequena, daquelas com ventosas que se coloca no vidro do carro. Escolhi um cachorro
todo pretinho e de orelhas em pé, e que me lembrou o Juiz.
Encontramos Diana e Salazar acompanhados de dona Margarida. Os três, sentados em
um dos tais ranchos, comendo pastel e bebendo caldo de cana.
Conversamos por horas, e nunca me senti tão em casa quanto naquela noite. As pessoas
de Sibipiruna cumprimentavam Lucas, e ele chegou a trocar dois dedos de prosa com alguns
fazendeiros sobre a usina. Sua mudança era tão visível que todos pareciam reparar em mim,
como se fosse eu o elemento fundante daquilo.
Só que eu não era.
Lucas precisou encarar sozinho suas dores. Queimá-las. Torná-las cinzas.
Precisou errar comigo e então ir atrás de mim, pois ansiava um recomeço, e percebeu
que a culpa não poderia mais paralisá-lo.
A noite era gostosa na pracinha da cidade, e o calor das pessoas fazia o vento não ser
suficiente para me refrescar.
Estava inebriada com os brinquedos, a comida farta e o cheiro de pipoca e molho de
cachorro-quente quando decidi procurar por um banheiro.
Que César não era o melhor dos prefeitos eu já não tinha dúvidas, mas ao menos a festa
estava impecável. Encontrei dois reservados depois da roda gigante, quase atrás da quadra da
escola.
Tentei entrar no banheiro, mas estava ocupado, então resolvi esperar.
Alguns segundos se passaram antes que eu escutasse uma voz sussurrar atrás de mim, ao
mesmo tempo em que algo gelado e duro colava-se em minha nuca:
— Finalmente eu te achei, Gabriella. E dessa vez, não vai fugir de mim.
Capítulo 45

As coisas não estavam na sua ordem normal aquela noite. Só isso para explicar a
maneira como os sibipirunenses me tratavam.
Sem a desconfiança dos últimos anos e com uma simpatia que me deixava acanhado.
Gabriella falou que era impressão. Que todos sempre me trataram assim, eu que nunca notei.
Talvez fosse, já que ela tinha razão em grande parte das coisas que me dizia.
Alguns fazendeiros vieram falar comigo sobre a reativação da usina. A festa da colheita
era um excelente ambiente, já que o motivo de toda aquela festança era justamente a colheita
excepcional que as terras da região tiveram. Reativar a usina era cada vez mais urgente e
necessário.
Eu não queria pensar nisso agora. Ainda me doía passar por aquele lugar, que dirá
adentrar as imensas portas de ferro. Mesmo assim, não cortei os fazendeiros quando tocaram no
assunto.
Depois que nos sentamos com Diana, dona Margarida e Salazar, a conversa transcorreu
mais tranquila, sem assuntos que pudessem causar constrangimento ou revirar dores passadas.
Em dado momento, perguntei sobre César. Salazar disse que muito provavelmente ele
teria alta do hospital na manhã seguinte. Seria quando eu o cercaria de novo. Dessa vez, não o
deixaria fugir sem me dar respostas.
E se minhas suspeitas se confirmassem...
Estávamos sentados no rancho maior do evento. Alguém chamou Diana até o palco, e
então deram início a um dos momentos mais esperados de quem comparecia àquela festa: o
leilão beneficente da cooperativa.
Carnes, assados, doces, e até eletrodomésticos desfilavam entre as mesas enquanto suas
características eram enaltecidas pelo homem que falava ao microfone.
O leilão era o momento em que senhorinhas de Sibipiruna aumentavam suas rivalidades,
competindo entre quem faria o pudim ou o frango assado mais bonito e que seria mais disputado
entre os fazendeiros. Era muito comum que as famílias de uma casa quisessem arrematar a
própria produção, por pura vaidade. Isso aumentava os valores dos lances, e era bem comum que
porcos inteiros e terços de vaca fossem disputados com ferocidade por infinitos e sucessivos
lances, alcançando valores vultuosos. A maioria pagava em dinheiro vivo, e ao meio da noite a
cooperativa já estava com o caixa abarrotado. Geralmente, aquele dinheiro era usado para
alguma obra em benefício de todos, como a construção de uma ponte ou manutenção das
estradas.
Diana estava na frente do palco, como mulher do vice-prefeito e também esposa de um
dos fazendeiros da região. Ela lia empolgada a lista de coisas que ainda seriam leiloadas na noite
quando um tiro soou dentro do rancho.
Aconteceu tudo ao mesmo tempo.
As pessoas começaram a gritar e a correr sem norte certo, o que tornava impossível
identificar quem era o autor dos disparos. Meu coração parou de bater e eu olhei para os lados,
desesperado.
Onde está a loirinha?
— Cadê a Gabriella? — José externou minha agonia ao perguntar, mas antes que fosse
respondido, fomos surpreendidos por um grito feminino e que cortou todo o local.
— Diana! — Salazar disse quase sem fôlego e me virei para onde ele olhava.
Ao centro do palco, um dos invasores que peguei no riacho — o que Perverso por pouco
não arrancou a perna — rendia a esposa de meu amigo quase enfiando uma arma em seu
pescoço. Um pouco mais atrás, outro dos assaltantes mirava uma arma na cabeça do condutor do
leilão.
— Todo mundo pro chão! — o homem gritou, mas quase ninguém obedeceu. Ele não
fazia ideia de com quem estava se metendo. Os moradores daquela cidade iam trucidá-lo pelo
atrevimento. — A gente só quer o dinheiro dos lances.
— Virgem Santíssima! — Dona Margarida exclamou.
— Ninguém atira! — Salazar levou as mãos para cima, ciente de que naquele recinto
alguns fazendeiros poderiam estar armados. Ele voltou-se para o bandido e implorou: — Solta
minha mulher! Ela tá grávida.
— Só depois que nos deixarem sair da cidade em segurança — o bandido negociou. —
Agora, passem todo o dinheiro do leilão!
O homem na mesa de leilões entregou uma caixa de sapatos onde estava todo o dinheiro
da noite enquanto eu não parava de olhar para os lados em busca de Gabriella.
Cadê você, diacho?
Minha mente racionava a mil, buscando pela mulher e processando tudo o que
acontecia.
Onde estava o delegado?
O que deu nesses homens para voltarem?
Como eles sabiam do leilão?
Cadê Gabriella?!
— Eu preciso achá-la — murmurei, me esgueirando entre as cadeiras.
O bandido no palco percebeu e gritou para mim:
— Todo mundo parado aí!
Xinguei internamente, levando a mão no local em meu cinto que antes abrigava a arma,
mas que agora só tinha o vazio, desde que Antenor a apreendeu no tiroteio.
Droga! Tinha que estar desarmado justamente agora?
Parei no lugar, ainda girando o pescoço para todos os lados, buscando o motivo da
minha ausência de ar. Os bandidos resolveram fazer um limpa nos presentes, pegando celulares,
joias e relógios, quando vi as luzes ostensivas da única viatura da cidade contornando a rua do
outro lado da praça.
Os bandidos também perceberam e, comunicando-se pelo olhar, decidiram que era hora
de fugir.
Com Diana de refém.
— Deixem a Diana! — alguém gritou, e vi Salazar correr de peito aberto na direção dos
homens.
— Eu vou atirar nela! — o outro ameaçou, e precisei praticamente voar em meu amigo
e jogá-lo no chão, impedindo-o de fazer besteira e, com isso, causar uma tragédia.
— Soltem ela antes de entrar no carro — gritei. — Se vocês levarem ela de refém, vão
ter a cidade inteira na sua cola, e não vão sair vivos dessa.
Diana gritava enquanto era arrastada pela dupla, que levou todo o dinheiro que
conseguiu e saiu por uma das portas laterais do rancho. Tudo, segundos antes de Antenor e seu
parco efetivo chegarem do lado oposto.
— Eles vão levar minha mulher! — Salazar se debatia debaixo de mim e o soltei,
erguendo-o do chão, e o puxando com força.
Saímos todos correndo de dentro da estrutura de madeira e palha bem a tempo de
vermos os homens arrancarem com os pneus e deixarem um rastro de fumaça e cheiro de asfalto
queimado para trás.
Mas também deixaram Diana.
Caída no chão, ela chorava e seu corpo tremia de pavor. Meu amigo saiu correndo para
ampará-la enquanto eu escutava a voz do delegado atrás de mim:
— Vamos atrás deles! — chamou seus funcionários e todos voltaram correndo para a
viatura, enquanto alguns fazendeiros repetiam o mesmo, voando como loucos até seus carros e
caminhonetes, prontos para iniciar uma caçada de verdade.
Dessa vez, esses malditos iriam provar do gostinho que era afrontar um sibipirunense.
Eu também teria pego minha caminhonete, se não estivesse agoniado com o sumiço de
Gabriella. Ela tinha saído para ir ao banheiro, não me lembro bem, mas com toda essa bagunça já
era para ter aparecido.
— A Diana está bem? — perguntei ao me aproximar do casal ainda sentado no chão. A
mulher chorava nervosa, e uma aglomeração de pessoas juntava-se ao redor deles.
— Estou sim, Lucas. Obrigada. — Ela fungou, erguendo o rosto para me fitar e então
olhando ao redor. — Cadê a Gabriella?
— Eu não sei — respondi agoniado, passando a mão no rosto e batendo a bota no
asfalto. — Sumiu na hora do assalto.
— Meu Deus! — Uma das senhoras da igreja fez o sinal da cruz. — Metade da cidade
está entrando nos carros para ir atrás dos bandidos. É hoje que teremos uma morte em Sibipiruna.
Talvez até mais, se eu não achasse logo a loirinha.
— Vou te levar para Coralina — Salazar amparava sua mulher, ajudando-a a se
levantar. — Um médico precisa ver vocês.
— Será que o bebê tá bem? — ela questionou com tom choroso.
— Está sim, querida. — Ele beijou as mãos dela. — Vamos só confirmar, mas tenho
certeza de que está bem.
— Vou com vocês. — Dona Margarida os seguiu.
— Eu vou atrás de Gabriella — anunciei.
— Se nos espalharmos, achamos ela mais rápido — Dona Sofia propôs.
Só eles entendiam do meu desespero. Das ameaças que ainda poderiam atingi-la e de
como aquela garota sabia ser imprudente.
Fui primeiro no banheiro, onde ela disse que iria, mas não encontrei nada.
Vasculhei os outros ranchos, andei entre os brinquedos e barraquinhas de comida,
gritando seu nome em meio ao caos instalado pelo assalto e me desviando de pessoas que
andavam apressadas.
Buscava sua cabeleira castanha, imaginando que se estivesse loira me ajudaria mais.
E nada.
Nada.
Nem um traço de seu corpo. Nem mesmo seu cheiro.
Nada.
Me sentia afundando novamente, enquanto percorria todos os cantos possíveis daquela
praça e não achava nem mesmo um rastro seu.
Não dava para chamar a polícia ou pedir ajuda, pois todo mundo correu atrás dos
assaltantes. Foi quando uma ideia começou a assolar minha mente.
E se eles também tivessem rendido Gabriella, e nenhum de nós viu? Eram quatro os
invasores da primeira vez, mas só dois apareceram no rancho do leilão.
Eu precisava de uma arma...
Me lembrei do revólver guardado no galpão do antigo sobrado, escondido entre caixas e
montes de ração. Procurei pelos Siqueira no meio da bagunça que era a praça de Sibipiruna e
instruí:
— Continuem procurando por ela. Vou manter meu celular no bolso. Caso a encontrem,
me liguem na hora. — Parei, tentando decidir o melhor. — Tenho que ir até a fazenda e buscar
minha segunda arma.
Eles se entreolharam de olhos arregalados e José murmurou:
— Se não encontrar seu revólver, tenho uma espingarda em cima do guarda-roupa do
nosso quarto.
Concordei, me afastando do casal e correndo com tudo para minha caminhonete.
Fiz o trajeto até a fazenda à toda. Na estrada não havia ninguém, e concluí que os
bandidos fugiram para outro lado, e agora eram perseguidos por uma multidão.
Passei com os pneus batendo duros nos buracos da estrada de chão, e demorei metade
do tempo para chegar ao sítio. Mal olhei para os lados, não reparando nas fazendas ou mesmo na
usina, que estava toda escura.
Ao chegar no vale, fui recebido pelos cachorros, mas eles não estavam felizes.
Como animais especiais que eram, pareciam prever o perigo. Cheiravam o carro e me
rodeavam com os pelos eriçados, enquanto eu corria até o galpão.
Encontrei a arma exatamente onde a guardava. Dentro de uma caixa trancada atrás das
rações. A limpei rapidamente, conferi as balas e testei a trava, sentindo a minha respiração pesar
a cada segundo.
O desespero não ia me tomar, e quando tudo se resolvesse, Gabriella teria outra lição
por me causar tanta agonia.
Dando voltas ao meu redor, os cães farejavam minhas botas em um misto de
choramingo e latidos agoniados. O mais calmo, como sempre, era Juiz, me mirando de um jeito
estranho e com seus olhos quase negros por completo. Sua pelugem estava arrepiada ao máximo,
e seu olhar não desgrudava da arma em minhas mãos.
Foi quando meu celular tocou.
Minhas mãos suavam frio quando atendi, esperando uma ligação dos Siqueira com o
paradeiro de Gabriella.
— Se quiser vê-la, vá até a usina. Vamos ver se tem coragem de pisar lá de novo,
cunhado.
Não era uma ligação dos Siqueira.
Era um novo tiro em meu peito.
Capítulo 46

Beto amarrou meus pulsos e me jogou em uma das salas do terceiro andar da usina. Eu
nunca tinha entrado no local, e estrear aquele tour sendo sequestrada era épico.
O prédio estava todo escuro, e tinha inúmeras janelas e portas quebradas. Estava sujo de
folhas e fuligem do tempo, mas ainda parecia uma boa estrutura, com paredes sólidas e
ambientes arejados. A sala em que estávamos mesmo, era gigantesca. Tinha um sofá velho, com
espuma aparente, além de estantes com livros abandonados e uma mesa de fórmica toda
quebrada.
O lugar inteiro parecia ter sido depredado, e me perguntei quem fez aquilo.
Não que eu fosse ter uma resposta, já que muito provavelmente nem sairia viva dali.
— Agora é só esperar — Beto murmurou em tom sombrio, sentando-se em uma cadeira
à minha frente, enquanto mirava a arma na minha cabeça comigo ainda sentada no chão.
Com a língua, esfreguei a parte interna da boca ferida, sentindo o gosto de sangue e a
dor lancinante do soco que ele me deu quando tentei fugir, ainda na festa da colheita.
Beto me rendeu no acesso aos banheiros, apontando a arma para minha nuca e me
arrastando para seu carro. Quis gritar, mas ele tampou minha boca. E quando testei uma reação,
quase conseguindo me desvencilhar de seu revólver, ele me acertou inúmeros socos no chão
detrás do carro, onde ninguém veria, e então me jogando como peso morto no banco de trás.
Demorei a me recuperar, e quando vi estávamos na estrada de chão que dava para a
usina. Seu carro percorria o trajeto com os faróis apagados para não chamar atenção, e ao parar
dentro do terreno da usina, ele o estacionou na parte de trás, onde não seria visto por algum
passante pela estrada.
Beto tinha olhos e cabelos claros. Um tom loiro escuro. Sua barba era de um cobre
clarinho, e encobria todo seu rosto maquiavélico. Tinha um porte avantajado, com uma barriga
pronunciada e ombros largos capazes de me derrubar em segundos.
Eu estava muito encrencada.
— Vai me matar? — perguntei tentando disfarçar a voz trêmula.
— Claro que vou! — Ele brincou de fingir atirar em mim, apontando a arma e fazendo
um movimento de levar o indicador ao gatilho, mas sem de fato fazer pressão. — Virei foragido
por sua causa. — Ele girou a arma nas mãos e voltou a mirá-la em mim. — Meu amigo foi morto
por sua causa. É óbvio que vou te matar.
— Então por que ainda não o fez?
— Porque hoje você também é isca, e por enquanto é melhor te manter viva. — Riu,
levantando uma faca imensa que havia deixado em cima da mesa. — Com a cabeça no lugar,
sabe?
Um arrepio gelado cruzou minha espinha. Engoli em seco.
— Isca para quem? — arrisquei.
— Logo vai saber.
E, de fato, não demorou muito.
Logo escutamos os sons de pneus no cascalho que circundava a usina.
Nem precisei olhar pela janela. Reconheci o ronco do motor.
Não!
— O que você quer com o Lucas? — gritei desesperada, abrindo mão de toda precaução
e tentando me levantar.
O homem me jogou de volta no chão com um empurrão brusco, e senti um baque no
ombro com a posição desajeitada com que caí. Gritei de dor enquanto ele espiava pela janela.
— Ele foi bem rápido... — murmurou, voltando a conferir sua arma.
— Deixa o Lucas fora disso! — gritei. — Fui eu quem presenciei a morte de Jesus, e
não ele!
— Mas foi ele quem matou meu amigo. Além disso, não sou o único querendo a cabeça
dele.
Tentei ver os movimentos lá fora, mas Beto não deixou. Escutei Lucas gritar por meu
nome e aquilo dilacerou meu peito.
Não faz isso, Lucas. Vão te matar!
— Quem está com você? — perguntei, mas de imediato a resposta formou-se em minha
mente. Eu mesma respondi: — César?
— César tem nos cobrado a morte do Levi incansavelmente nesses últimos quatro anos,
mas eu já estava prestes a desistir depois do que aconteceu em Dom Cervantes. Quando ele nos
ligou há alguns dias para contar sobre seu paradeiro, decidi que tentaríamos uma última vez, mas
o tal viúvo já estava na nossa cola e precisei fugir.
Paralisei com um pedaço do que ele disse, questionando assombrada:
— César quem me delatou?
— Você foi se lamentar para ele. — Céus, foi quando eu bebi! — Disse de onde veio e
que precisaria voltar para resolver coisas pendentes. Acho que ele já desconfiava de você e só
juntou as peças. Quando você chegou em Dom Cervantes, já sabíamos que voltaria. Só
precisamos te procurar.
Meu Deus!
Culpa era isso. Saber que suas ações, fossem elas fruto da racionalidade ou não,
desencadearam consequências imensas.
Lucas me seguiu e agora corria o risco de ser condenado pela morte de um policial, tudo
por minha culpa?
O ar fugiu de meus pulmões quando escutei seus passos no terceiro andar, percorrendo
apressado o corredor lá fora.
— Gabriella! — Ouvi sua voz desesperada me chamar mais uma vez, e olhei para o
assassino.
— Anda! — ele ordenou, apontando a arma para mim. — Responde o viúvo.
Neguei com a cabeça, e ele desferiu um chute na minha costela que me fez cair e urrar
de dor.
Imediatamente, Lucas começou a esmurrar a porta.
Droga!
— Abre essa porra, César!
Ele batia suas mãos com tudo na porta, e não demorou a conseguir arrombá-la. Entrou
na sala que parecia ser de um escritório como um touro, e eu presenciei toda a cena em câmera
lenta.
Antes que Lucas tivesse a chance de adentrar o cômodo, uma rajada de tiros atingiu a
porta, obrigando-o a se jogar no chão. Ele gritou agoniado, como se tivesse sido ferido, mas
conseguiu atirar de volta.
O tiro passou a centímetros do rosto de Beto, que se encolheu todo e jogou a cadeira que
estava sentado na direção de Lucas, fazendo-a quebrar-se nas costas do homem que eu amava.
— Lucas! — gritei seu nome, desesperada para que se erguesse de uma vez antes que
fosse atingido de novo.
Beto chegou a mirar nele outra vez, mas Lucas defendeu-se com outro tiro enquanto
arrastava-se até detrás do sofá velho, visivelmente ferido.
O rasto de sangue que seu corpo deixou ao passar pelo chão fez o pânico me tomar.
Vi o policial avançar atrás de Lucas. Ele atiraria à queima-roupa, mas eu não ia deixar.
Mesmo sentindo a falta de ar dos socos e chutes que levei, me ergui o mais rápido que pude.
Com as mãos amarradas à frente do corpo, corri com tudo para cima de Beto e me atirei em suas
costas.
Ele rodopiou algumas vezes comigo buscando passar os braços por seu pescoço numa
tentativa imbecil de enforcá-lo, mas o homem era muito mais forte, e me derrubou no chão em
segundos.
Afastando-se de Lucas ferido no chão, Beto voltou toda sua atenção para mim,
apontando a arma para o meio da minha testa e praticamente rosnando de tanto ódio:
— Vai morrer antes dele, vadia! Para aprender que deveria ter ficado calada desde a
primeira vez.
— Quem vai morrer é você, filho da puta! — uma quarta voz sentenciou, segundos
antes de um tiro romper a cabeça de Beto.
De baixo, vi sua testa se abrir e o sangue jorrar com vontade, empapando seu rosto e
respingando em mim. Seu corpo pendeu em minha direção, e me desviei alguns centímetros,
evitando que caísse sobre mim. Foi quando vi Levi de pé ao centro do escritório, empunhando
sua arma e olhando para o homem morto.
— Me perseguiu por quatro anos, cretino imbecil, mas fui eu quem dei um tiro na sua
cabeça — ele dizia para a poça de sangue. — Olho por olho. Dente por dente. É assim que se faz
justiça.
Meu olhar caiu em Lucas e o vi se rastejar para fora do sofá. Mesmo com o corpo doído,
corri para abraçá-lo.
— Ele te acertou? — perguntei o óbvio, enxergando uma bola vermelha de sangue que
crescia em sua barriga. — Meu Deus! Lucas!
— Eu vou ficar bem — Ele fez uma careta, sentando-se e escorando o corpo na parede.
Deixou a arma cair e levou as mãos imensas ao meu rosto, me escrutinando por completo. — O
que ele fez com você?
— Nada que o tempo não alivie. Também vou ficar bem. — Mesmo com os pulsos
amarrados, toquei a camisa empapada de sangue. — Precisamos te levar pra um hospital.
Mas ele nem parecia ligar. Me puxou para junto de si com uma força surpreendente e
aspirou os meus cabelos, enfiando as mãos no meio dos fios.
— Um já foi — ele murmurou em tom sombrio, acima da minha cabeça. — Falta o
outro.
Levi concordou com a cabeça e nos voltamos para ele. Foi Lucas quem perguntou
primeiro:
— Como chegou aqui?
— Estou me escondendo por essas estradas desde o dia na casa do prefeito.
— Vai nos matar também? — perguntei.
Ele não me respondeu. Sequer me olhou. Fitou Lucas, assumindo uma postura diferente
e abaixando a arma.
— Você encomendou minha morte, e entendo suas motivações. Em seu lugar, faria o
mesmo. É isso que estou fazendo aqui. Honrando o assassinato do meu irmão.
Irmão?
— Jesus — ele continuou, diante da nossa surpresa. — Ele não era meu primo, e sim
meu irmão. Por isso a semelhança.
— Aquela mulher que vi em Dom Cervantes...? — perguntei.
— Minha madrasta. Eu e Jesus tínhamos o mesmo pai, e me abriguei lá por um tempo.
Ela não me entregou para a polícia, pois eu mandava o dinheiro dos roubos e de serviços para ela
e Jesus. Há anos sustentava os dois, desde que meu pai morreu, também assassinado.
Ele aproximou-se de nós e ajudou Lucas a se levantar, anunciando:
— Não vou matar vocês, mas também quero César.
— Por que? — Lucas o inquiriu, enquanto usava parte de suas forças para desamarrar
meus pulsos.
— Você sabe o porquê — Levi disse a ele.
Os dois se encaravam quando enfim me vi livre das cordas. Massageei meus pulsos e
senti Lucas segurar minhas mãos, voltando a escrutinar minhas feições.
— Que desgraçado... — ele murmurou enquanto tocava meu rosto em um ponto que sei
estar machucado, pois doía.
Foram segundos de paz antes que o caos reiniciasse e outro disparo invadisse o lugar.
Dessa vez o alvo foi Levi, que caiu com o impacto da bala que atingiu sua perna.
Tentei me agarrar a Lucas, mas tudo aconteceu muito rápido. Senti meus cabelos serem
puxados com uma força absurda e caí no chão, vendo o cano de uma arma ser colocado de novo
bem no meio da minha testa.
Dessa vez por César.
Capítulo 47

Gabriella foi arrancada de minhas mãos em um puxão que não consegui impedir. Os
tiros que levei ardiam e o sangue jorrava de um deles, tirando cada vez mais minhas forças.
Não quis contar a Gabriella, mas senti o impacto de duas balas acertarem meu corpo
quando invadi aquele escritório. Um na lateral da barriga e o outro nos quadris. O sangue desse
segundo se misturava ao tom escuro da calça disfarçando o ferimento, mas era o que mais me
causava dor ao levantar.
Quem diria, não é?
No escritório em que vi Tereza ser alvejada e que por tantos anos evitei entrar
novamente, agora eu seguia o mesmo destino.
César arrastou Gabriella para longe de mim, apontando a arma para a cabeça dela e
usando-a de escudo à frente de seu corpo.
— Você não vai sair vivo daqui hoje — fiz uma promessa, pois eu ia matar aquele
homem. Nem que morresse junto.
— E é você quem vai me matar? — Ele me olhou com desprezo.
Ignorei as dores do meu corpo e só foquei nas ameaças ao redor. Eu ainda tinha a arma
em minhas mãos, parcialmente apontada para César, mas o corpo de Gabriella estava na frente.
Caído no chão, Levi havia se desarmado com o baque do tiro, e agora segurava uma das
pernas enquanto mirava o inimigo que tínhamos em comum.
— Foi você quem atraiu Beto? — perguntei, buscando ganhar tempo.
— O chamei depois que levei um tiro desse imbecil. — Com o queixo, apontou Levi. —
Entendi na hora que vocês se juntaram para me matar, e tive que ir atrás de aliados.
— Mas você não cuida dos seus aliados. Deixou Beto sozinho para ser morto.
— Ele seria uma ponta solta — ele afirmou.
— Assim como eu fui um dia — Levi murmurou, fitando César com profundo ódio.
O prefeito de Sibipiruna se voltou para o homem atingido na perna e perguntou:
— Já contou para ele?
Levi negou.
Eu suspeitava do que eles falavam, e a confirmação veio quando César virou-se
novamente para mim e soprou com desprezo:
— Era para ter sido você aquele dia.
César sempre repetiu essas palavras, mas pela primeira vez, eu via o sentido real delas.
Era para ter sido eu.
Só eu.
— Encomendou minha morte? — perguntei.
Devagar, sua cabeça moveu-se numa anuência.
E eu quis arrancar seu coração tamanha revolta.
— A intenção era que todos pensassem que foi um assalto — César dizia. — Você
estaria sozinho no escritório. Na época da colheita você sempre trabalhava até mais tarde. Os
assaltantes invadiriam esse escritório e você levaria um tiro. Até alguém te achar, já estaria
morto. — Pausou, e pensei ver um traço de dor em seus olhos, mas aquele demônio não sentia
dor. — Só que Tereza também estava lá, e eu não sabia.
— Foi responsável pela morte da sua irmã — murmurei.
— Sabemos quem matou Tereza — ele jogou as palavras com escárnio para mim. — Eu
só queria voltar a ter o controle das terras, e se você morresse, isso aconteceria. Sabemos que
Tereza sempre foi meio depressiva. Ficaria dependente de alguém com sua morte, e eu a ajudaria
a cuidar das finanças da usina.
— Você tinha gastado tudo — me lembrei. — Naquela época, mal tinha um teto para
morar, depois de perder toda sua parte da herança em jogos. — Pausei, perdendo alguns
segundos para fitar Gabriella e tentar passar a ela segurança. — Já era endividado desde os
tempos da faculdade, quando seus pais eram vivos. A herança só pagou parte das dívidas. — Um
pensamento se formou em minha mente. — O acidente dos seus pais...?
— Não fui o responsável — ele negou de pronto. — Aquilo lá realmente foi acidental.
Jamais tiraria a vida de um Maldonado de sangue.
— Mas tirou da sua irmã — provoquei. — Tereza pode ter morrido depois, mas foi o
tiro que sentenciou a vida dela.
— Você matou Tereza! — ele acusou com descontrole. — E eu ia tentar te matar de
novo. Estava bem perto, só que dessa vez precisaria preparar antes o terreno, ou desconfiariam
de mais uma morte entre os Maldonado. A ideia era que tudo parecesse resultado de uma invasão
à fazenda.
Mais peças se encaixaram com suas palavras.
— Os invasores às fazendas...
— Eu que contratei — ele confirmou. — Pretendia criar um histórico nessa cidade, já
que nunca temos crimes. Quando eu te matasse, a suspeita cairia sobre eles, mas já estariam bem
longe daqui.
— E então você mandaria matadores atrás deles para apagar seus rastros, como fez
comigo e meu parceiro? — Levi perguntou.
César o fitou mudo, e percebi que Gabriella tentava se livrar do cano do revólver com
uma sutileza perigosa. Ela buscava uma distração de César para se desvencilhar de seu braço.
Preferi não avançar, ainda esperando o momento mais seguro.
— E por que demorou tanto tempo para tentar matar Lucas novamente? — foi Gabriella
quem perguntou.
— Por um tempo achei que não precisaria fazer nada. Pensei que ele mesmo daria cabo
do serviço, tamanha culpa sentia por ter matado Tereza. — Ele apontou a arma para mim,
finalmente desviando-a de Gabriella. Estava furioso, e me acusou: — E não adianta negar, que
sei que você a matou. Dava pra ver nos seus olhos que a culpa que carregava era maior do que de
um simples tiro que ela tivesse levado em seu lugar.
Sequer respondi, pois vi o instante exato em que Gabriella aproveitou-se da distração
dele para afastar-se.
Usando toda a força que me restava, praticamente me joguei sobre César, fazendo-o cair
de costas no chão. O baque arrancou um grito dele, e aproveitei para mirar a arma em seu peito.
Ele foi rápido e desviou minha pontaria com uma mão, fazendo o tiro acertar o meio dos
seus dedos.
— Viúvo desgraçado! — ele xingou, fechando o outro punho com a arma e descendo
uma coronhada na lateral da minha cabeça.
Meus ouvidos zumbiram com o baque, mas não afrouxei a mão que prendia seu corpo.
Começamos a brigar no chão do escritório. Ele tentava mirar sua arma em mim enquanto eu fazia
o mesmo. Ao mesmo tempo, desferíamos chutes e socos onde o corpo alcançava.
De relance vi Levi tentando se erguer. Talvez para fugir, ou então mirar em um de nós
dois, mas não parávamos no lugar.
Foi quando senti o peso de César reduzir um pouco, e vidro estilhaçado caiu como
chuva sobre nós.
O prefeito cambaleou para trás, e vi Gabriella de pé segurando os pedaços de um vaso
de vidro. Meu corpo protestava quando ergui a arma na direção de César, mas o tiro falhou, me
arrancando um palavrão. Eu não usava aquela arma há anos e sequer fazia manutenção. Não era
a que eu levava sempre comigo.
Ele tentou atirar de volta, mas a loirinha mais uma vez o atacou. Mais atento, César
conseguiu se defender, agarrando-a pelo braço e então a arremessando no chão com um golpe
único. O barulho que o corpo dela fez ao bater nos tacos de madeira me causou dor física.
Gritei:
— Gabriella!
Ela caiu mole. Parecia desacordada, e então meu corpo reagiu como um bicho, saltando
sobre César com tamanha força que caímos os dois para além da porta arrombada, no corredor
do terceiro andar.
O lugar estava escuro, sem qualquer luz acesa, mas toda a frente do prédio da usina era
feita em esquadrias de vidro, e ao fim do corredor uma delas deixava toda a luminosidade da lua
adentrar. Os vidros estavam quebrados, e também entrava o cheiro de mato e o vento frio da
noite entre os imensos vãos das janelas.
Rolei com César pelo chão do corredor, afastando nós dois do escritório. Em algum
momento daquela briga minha arma se perdeu, e agora eu tinha que lutar contra a vantagem de
César.
Soquei seu rosto e tentei enforcá-lo quando consegui ficar por cima, apertando sua
garganta e vendo seus olhos se esbugalharem de pânico.
— Finalmente vou fazer justiça — rosnei, usando uma mão para segurar a mira da sua
arma, enquanto a outra o enforcava. — Por mim, por Tereza, e também por Gabriella.
Mesmo quase sem ar, ele encontrou voz para responder:
— Não há justiça para homens como você. — Tentou cuspir em mim, mas eu desviei o
rosto. — Vai pro inferno, Lucas Maldonado!
— E você vai me receber lá, já que vai chegar antes.
Apertei mais forte sua garganta, até que senti um soco bem no ponto em que levei o tiro
no abdômen.
Urrei com a dor lancinante e que me fez perder as forças momentaneamente, soltando
César.
Ele virou-se veloz, ajoelhando-se na minha frente e então mirando a arma em meu peito.
— Pois eu prefiro que você faça as honras — entoou, levando o dedo ao gatilho, mesmo
com sua mão sangrando.
Meu ferimento ainda doía quando fechei os olhos, esperando o baque da bala. Os abri a
tempo de ver uma massa confusa e negra voar sobre a cabeça de César e o puxar de cima de
mim.
O grito que ele deu ao ser arrastado era o de um condenado em direção à morte.
A sombra negra que o arrastava tinha pelos grossos e agia com um silêncio mortal.
Parecia uma besta dos infernos vindo buscar suas vítimas.
Era Juiz.
Enquanto César gritava, o cão grudava-se em seu pescoço, enfiando os dentes
pontiagudos na carne e fazendo sangue jorrar por todo lado.
O prefeito se debatia desesperado, clamando por socorro e tentando a todo custo
arrancar Juiz de suas costas.
César se jogou no chão, ficando bem perto das esquadrias de vidro quebrado que
compunham a fachada da usina. Vi quando tentou mirar a arma no cão e então atirou, atingindo
algum ponto do corpo do animal.
Só que Juiz não cedeu. Nem reclamou ou graniu.
Silencioso como sempre, soltou a garganta de César e então abocanhou seu pulso,
sacudindo-o como um alucinado e obrigando-o a soltar a arma em questão de segundos.
Tentei me erguer para ajudá-lo, mas meu corpo não respondia, e a consciência estava
prestes a se apagar.
Fitei Juiz e, por um segundo, tive a impressão de que ele também me fitou.
Olhos negros e sem julgamento.
Sem acusações.
Só sua sentença.
Juiz estava ali para proferir sua sentença, e foi o que ele fez.
Num movimento que em nada parecia irracional, vi o cão arrastar César até bem perto
do imenso buraco entre as esquadrias quebradas que deixava o vento passar.
César tentou se desvencilhar e empurrar o animal pela janela quebrada. Juiz agarrou o
braço do prefeito, fazendo os dois virarem uma coisa só, que pendeu para o lado de fora e caiu.
E caiu.
A queda de três andares era alta, e pareceu levar uma eternidade desde o instante em que
os corpos dos dois foram engolidos pela noite até o momento em que escutei o baque surdo no
chão de cascalho.
Tentei me levantar, mas as forças se esvaíam, até que senti dedos macios enfiando-se
em meus cabelos. Uma cascata de cabelos castanhos acortinou as minhas vistas, e me vi invadido
pelo aroma de melaço.
Abri um sorriso.
— Oi, loirinha.
— Lucas! — Ela tinha o rosto todo cheio de roxos e marcas, mas parecia nem ligar.
Suas mãos acariciaram meu couro cabeludo antes de descerem por meu peito. — Meu Deus!
Você tá sangrando muito!
— Fica calma que vaso ruim não quebra — resmunguei, tentando me ajeitar no chão e
sentindo tudo doer.
Alisei seu rosto ferido enquanto ela mapeava todo meu corpo com olhos apavorados.
— O Juiz... — a escutei murmurar baixinho, apontando para o vão da esquadria.
Só confirmei com a cabeça e tentei agarrar sua cintura, passando a ela um pouco de
força. Gabriella me segurou pelos ombros e tentou me erguer do chão, mas eu era pesado demais
para ela. Foi quando Levi surgiu detrás da garota e a ajudou a me colocar sentado e escorado na
parede do corredor. Ele tinha uma atadura na perna, mas o sangue também vazava sem controle.
— Preciso ir — ele anunciou.
— Mas, e sua perna? — Gabriella apontou para o ferimento, que estava bem feio.
— Não posso ir para um hospital que serei preso. — Ele ficou de pé e então nos fitou.
— Também não posso esperar a polícia chegar aqui. Tenho que me virar sozinho. — O homem
estendeu uma mão ensanguentada à frente do meu rosto. — Quites?
Apertei sua mão, misturando nossos sangues.
— Você salvou Gabriella — falei.
— E você matou um dos assassinos do meu irmão.
Concordei.
— Nunca mais vão me ver — ele afirmou, afastando-se. — E eu nunca estive aqui.
Mancando, Levi sumiu no corredor escuro e vazio, dando fim a todo aquele ciclo de
busca por justiça.
Isso era Redenção.
Minha consciência ia e voltava, e senti Gabriella me sacudir e suplicar:
— Fica acordado, Lucas! Precisamos dar um jeito de sair daqui e buscar ajuda.
Me lembrei do desespero que senti com Tereza baleada na noite do assalto. Dos minutos
que passei sem socorro, e em como aquele tempo pareceu interminável.
Lamentei por fazer a loirinha viver aquilo, mas me pareceu mais uma forma de
Redenção. Ciclos começando e se fechando da mesma forma.
E se fosse para algo acontecer comigo, que eu morresse ali a ter qualquer forma de vida
que causasse culpa ou sofrimento a ela.
Acariciei seu rosto, secando suas lágrimas.
— Calma, diacho — sussurrei com a voz fraca. — Liguei para seus padrinhos antes de
vir para cá. Pedi que avisassem à polícia e chamassem ajuda. Já devem estar chegando.
— Eu não posso te perder, cowboy. — Ela beijava meu rosto e eu sentia tudo formigar.
— Mas se perder, não se afunde em dor como eu fiz — pedi. — Recomece a vida e siga
em frente.
— Escute aqui, Lucas Maldonado! — Ela fez aquela carinha de brava que vez ou outra
fazia. Suas sobrancelhas se juntaram e mais lágrimas molharam suas bochechas. — Assim como
gosta das coisas do seu jeito, eu também tenho o meu jeito! E o meu jeito de querer um futuro é
ao seu lado, você queira ou não! Você me deseje ou não! Você me ame ou não! Eu vou ter você
para sempre, cowboy, e vai ter que me aguentar, pois não sou de desistir!
Abri um sorriso sem culpas.
Diacho de loirinha teimosa.
Capítulo 48

Lucas perdeu tanto sangue que precisou de transfusão. Por sorte o hospital de Coralina,
apesar de pequeno, tinha bolsas de sangue do seu tipo. Ainda assim, praticamente toda
Sibipiruna se juntou para doar, abastecendo rapidamente o banco de sangue local.
Ele passou por uma cirurgia para retirar a bala do abdômen, mas a alojada no quadril
não pode ser retirada. Teria morrido se tivesse perdido mais sangue, ou se tivesse sido atingido
um pouco mais ao centro da barriga, acertando os órgãos vitais. Salvou-se por conta do rápido
socorro que recebeu.
Cerca de cinco minutos depois da saída de Levi, a polícia e vários carros encheram os
pátios ao redor da usina. Meus padrinhos tinham avisado todo mundo sobre meu sequestro, e a
metade da cidade que não foi atrás dos invasores correu em nosso socorro.
Só naquele momento soube do verdadeiro caos que se instalou em Sibipiruna depois da
minha saída. A ambulância logo chegou e fomos levados ao hospital.
Enquanto Lucas era atendido, eu fui levada à enfermaria, onde fiz alguns exames e
também fui medicada. Vi Diana, que passou um susto na praça da cidade, e depois fui para o
quarto do meu fazendeiro, vigiando sua recuperação.
Admirava o homem imenso e que mal cabia na maca dar os primeiros sinais de
despertar algumas horas depois. Ele me olhou com o semblante um pouco confuso e então
analisou ao redor, parecendo se lembrar de tudo. Me aproximei em silêncio, vendo-o arranhar a
garganta e estender uma mão para mim.
O calor que senti de sua palma, viva, me fez querer chorar.
— Quase me matou de susto — sussurrei, limpando a lágrima idiota que caiu. Quase
nada me fazia chorar, mas Lucas parecia ser capaz de conseguir alguns feitos. — Depois a
imprudente sou eu.
O homem sorriu com uma leveza que não parecia habitar antes seu semblante.
— Cuidaram de você? — ele perguntou, acariciando meu rosto no ponto de um
hematoma.
Concordei com um sinal, segurando sua mão gigante entre as minhas e sentindo os calos
grossos me queimarem a palma.
— É bom — ele sussurrou. Mesmo pálido e aparentemente sem forças, sua voz tinha a
mesma potência devastadora de sempre. — Você é a prioridade aqui, loirinha.
Deixei escapar um sorriso do mais puro alívio e me debrucei sobre ele, abraçando seu
corpo gigantesco e enterrando meu rosto em seu peito.
— Acho que agora acabou, não acabou? — perguntei.
— Te prometo que sim — ele garantiu, levando uma mão aos meus cabelos e os
afagando. O senti aspirar profundamente, como se os cheirasse, e então ele questionou: —
Confirmaram a morte de César?
— Sim. — Encolhi os ombros. — De Juiz também.
— Merda — o vi xingar baixinho. — Ele deve ter me seguido quando saí do sítio depois
de buscar minha arma. — Seu peito subiu e desceu em uma respiração profunda. — Deixei tudo
fechado, tenho certeza, mas eles sempre foram capazes de saltar.
— No fim, ele era o mais fiel de todos — murmurei pesarosa.
— Era o mais justo.
— Vou sentir falta.
Ficamos em silêncio alguns minutos e logo a porta do quarto foi aberta, com Antenor
surgindo com as mãos nos bolsos. Ele nos fitou de uma maneira meio indecisa e acanhada.
— Posso entrar? — perguntou da entrada. Me endireitei e acenei que sim.
— Conseguiram pegar os invasores que assaltaram o caixa do leilão? — Lucas
perguntou.
— Sim. — Antenor aproximou-se. Fitou o fazendeiro e, por muitos anos, inimigo seu, e
completou: — Perseguimos o carro até a rodovia e lá eles tentaram fugir. Tinha muita gente
atrás, e logo fechamos o cerco. O carro deles capotou e dois dos três que estavam lá dentro
morreram.
— Eram três? — Lucas perguntou.
— Dois assaltaram a festa enquanto um terceiro esperava no carro. O quarto integrante
não foi encontrado. O que sobreviveu disse que ele não quis participar do roubo.
— Nós sabemos quem contratou o bando — contei.
— Nós também — Antenor me interrompeu. — O bandido confessou tudo. — Ele
parou e suspirou. — Foi o César, não é?
Lucas confirmou, murmurando com a voz fraca:
— A intenção dele era me matar e fazer pensarem que foi um assalto. Acredito que ele
tenha orquestrado o assalto durante a festa da cana também, para que eu me distraísse e ele
pegasse Gabriella.
— Era uma espécie de troca entre eles. — Antenor contou. — César devia favores a eles
e ajudava informando as casas vazias onde encontrariam objetos de valor. Eles não sabiam da
intenção de César em te matar, e achavam que ele só estava facilitando os assaltos.
— Ele me confessou, Antenor — Lucas disse com um tom carregado de raiva. — Os
homens que atiraram em Tereza foram contratados por ele. Eu sempre fui o alvo.
Um clima estranho se formou entre os dois, e o delegado olhou para o chão antes de
continuar:
— Ele sempre me disse que você era o aproveitador. O forasteiro que enganou a irmã
dele e ficou com as terras e todo o dinheiro.
Enquanto Antenor não conseguia encarar Lucas diante da visível injustiça que cometeu
ao julgá-lo pelos olhos de seu amigo, Lucas não parecia muito abalado.
Me remexi inquieta quando um silêncio estranho pesou e o delegado voltou-se para
mim.
— Sobre o homem que estava atrás de você, o tal Beto. — Ele mudou o tom. De
repente, assumiu a postura desconfiada de outrora. — A arma que o matou não é nenhuma das
que sobrou na cena do crime. Quem mais estava lá?
Eu e Lucas nos entreolhamos. Meu cérebro processava tudo a toda velocidade quando vi
ele se manifestar:
— Do quarto foragido.
— Como? — Antenor pareceu duvidar.
— César o levou junto pra me matar, mas no meio da confusão ele acabou atirando em
Beto. Quando César caiu, ele fugiu.
As sobrancelhas de Antenor se juntaram em uma profunda desconfiança. Ele alternou os
olhos entre mim e Lucas e questionou:
— Então quer dizer que de todas as mortes que aconteceram essa noite, você não foi o
responsável por nenhuma delas?
O fazendeiro riu, concordando.
— Por mais estranho que seja, não.
— Certo. — Antenor recuou um passo, nos olhando como se ainda não acreditasse, até
que Lucas o chamou de volta:
— Escuta, Antenor. Eu tenho que confessar um crime.
Meu coração parou de bater.
— Eu matei Tereza — Lucas cuspiu, como quem se livra de um veneno em sua boca.
— O que está me dizendo? — Antenor arregalou os olhos, chocado.
— A seringa. Ela tentou aplicar em si mesma, mas não conseguiu. Tereza já não tinha
forças, então me implorou para que fizesse aquilo por ela. Eu não queria, mas ela pediu por
tantas vezes que não aguentei.
— Por que está me contando isso agora?
— Eu não aguento mais essa culpa. Ela me corroeu durante esses quatro anos, mas estou
cansado. — O homem deitado na maca esfregou os olhos e então bagunçou os cabelos, meio
agoniado. — Não quero mais carregar essa dor.
O delegado pesou suas palavras por segundos sem fim. Parecia processar tudo com
lentidão, até que enfim decidiu-se:
— Isso foi só uma conversa informal, mas ainda vou querer saber os detalhes de tudo
que aconteceu na usina. — Fitou Lucas. — Você disse coisas no calor do momento. Quase
morreram e presenciou a morte de César no mesmo lugar em que Tereza levou um tiro. É normal
estar confuso. Vou repetir essa pergunta depois, na delegacia, e aí então vou considerar o que
disser. — Abaixou a voz e então sussurrou: — Mas se fosse você, não repetiria mais essa
história.
— O que quer dizer? — Lucas estava chocado, assim como eu.
— Você passou quatro anos carregando essa culpa. A vida já te condenou o suficiente.
Que justiça teria em te jogar numa cadeia depois de todo esse tempo?
Mudo, o fazendeiro sustentou o olhar no dele.
— Vai viver, Lucas — Antenor pediu de maneira amistosa, o que era ainda mais
impressionante. — E nunca mais conte essa história em voz alta. A morte de Tereza não precisa
de mais justiça. Agora, é a memória dela que pede redenção.
Sem dizer mais, o policial afastou-se, saindo do quarto sem olhar para trás.
— Queria ser preso para se livrar de mim, cowboy? — Fingi contrariedade.
— Não sei se uma cela te impediria — ele fez um gracejo.
— Com toda certeza que não. — Voltei a me aproximar de Lucas, beijando sua barba e
afagando seus cabelos grossos.
Quando me afastei, ele bateu as mãos nas coxas, me convidando a sentar ali com ele.
Decidi fazer além. Montei sobre seu corpo, abrindo as pernas e me apoiando nas laterais do
colchão, tomando cuidado para não pesar em seu corpo.
Ele gemeu, e não foi de dor.
— Loirinha safada — resmungou, apanhando minha boca.
— Vai ter que encontrar outro apelido para mim — falei. — Não sei se quero pintar
meus cabelos para o resto da vida.
— Eu vou te chamar de loirinha até você ter cabelos brancos.
Era a melhor declaração que eu poderia receber.
Toquei seus lábios nos meus, passando o polegar por seu rosto, até acariciar a cicatriz
em sua sobrancelha. Fitei Lucas em silêncio, e recebi de volta um olhar carregado de amor.
Nada do vazio que vi da primeira vez que trocamos um olhar.
Agora, sua alma transbordava amor e proteção.
Ele apanhou uma mecha dos meus cabelos entre os dedos e fechei os olhos.
— Conseguiu, não é, diacho? — ele me provocou. Abri os olhos. — Conquistou seu pé
de caju azedo.
Dei uma gargalhada alta.
— É que é meu jeitinho.
Capítulo 49

Cinco meses depois

O sol reluzia como há muito não se via naquele vale. As pedras que protegiam a entrada
pareciam brilhar com os reflexos dos raios solares, enquanto o pasto estava aparado e de um
verde claro novinho.
Carros levantavam poeira da pequenina estrada que levava à nova fazenda Olhos
d’Água, amontoando-se em fileiras poucos metros antes da cerca.
Foram quatro meses de obra incessante. Inúmeros peões e até alguns moradores da
região se juntaram para ajudar a erguer paredes e carregar tijolos e telhas para o vale. Agora, eu
estava parado debaixo do pé de caju observando minha nova morada.
A casa era bem mais modesta que a anterior em tamanho. Ao invés de dois andares,
preferi uma construção toda térrea, com cinco quartos arejados, banheiros, além de sala e cozinha
amplas. Praticamente todos os cômodos tinham janelões com vista para o lado externo e, ao
redor da casa, uma arejada varanda contornava todas as suas extremidades.
Foi uma ideia que surgiu ao me lembrar da sensação que tive ao ver Gabriella certa vez
sair do antigo sobrado e me deixar lá dentro sozinho, mergulhado naquela escuridão. Quis que
todos os cômodos tivessem a vista daquele lugar, para que os que ali vivessem tivessem a ciência
de como o lado de fora poderia ser mágico.
A cerca com os sinos ainda existia, mas agora só protegia o casarão das ameaças da
noite, e uma porteira foi construída para facilitar o acesso dos Siqueira ao meu terreno.
E ninguém mais parecia ter medo dos cães.
Olhei de relance para mais um grupo que descia de um dos carros, caminhando amistoso
na direção de um dos ranchos montados à frente da nova construção.
— Boa tarde, Maldonado! — Era Pintor, o dono da vendinha de Sibipiruna, e sua
família. — Agradeço o convite. Sua casa ficou muito bonita.
Eu não convidei ninguém.
Todos estavam ali pela loirinha.
É que os Siqueira iniciavam mais uma colheita de milho. A vantagem do milho verde é
que dá pra se colher quase o ano todo. Gabriella insistiu em realizar uma pamonhada, dessa vez
no imenso gramado à frente da minha fazenda. Segundo ela, aquela seria uma ótima maneira de
agradecer a toda ajuda na construção da casa, além de comemorar a sua conclusão.
Como ela me convenceu dessa maluquice?
Envolvia um cinto, cordas do estábulo e nós dois na mata do riacho.
Abri um sorriso sacana, me lembrando do corpo pequeno e travesso trêmulo de prazer
debaixo do meu.
Girei meu rosto, procurando por sua cabeleira loira no meio da multidão de curiosos que
aceitou seu convite para a pamonhada. A encontrei ao lado de Diana, que ostentava uma barriga
imensa e uma felicidade que contagiava.
Passei por vários moradores da cidade, sendo cumprimentado por um e outro. A maioria
queria entrar e curiar minha nova casa, mas ali também não era bagunça. Deixei a porta fechada
e os cachorros descansando na imensa varanda, o que afugentou a maioria.
Ao chegar perto da loirinha, passei o braço por seu corpo, bem na altura do seu peito.
Ela imediatamente correspondeu, levando uma mão pequena até minha barba, que naquela tarde
estava aparada.
— A casa ficou maravilhosa, Lucas — Diana elogiou, apontando a construção de
pintura novinha. Escolhi um tom de amarelo vivo e que contrastava com as janelas e pilastras de
madeira.
— A nossa ideia agora é pintar o galpão da mesma cor da casa e depois fazer um jardim
aqui na frente, com várias árvores, flores e frutas — Gabriella quem respondeu, como se fosse a
dona do lugar.
Pois é exatamente o que ela era.
A dona daquelas terras tudo e também do meu corpo. Do meu coração e de todos os
sentimentos que ele fosse capaz de sentir.
Enquanto a casa era construída, continuei abrigado nos Siqueira. Dormindo no sofá,
ainda que minha relação com a afilhada deles se mostrasse mais séria a cada dia e aos olhos de
todos.
Agora que eu tinha novamente um teto, pretendia oficializar tudo o quanto antes, de
maneira que aquele diacho nunca mais escapasse.
Vi Salazar, agora prefeito de Sibipiruna, aproximar-se de nós junto de Antenor.
Por dias duvidei que o delegado comparecesse à pamonhada, mas parece que ele era
menos orgulhoso do que eu.
— A festa está maravilhosa! — Salazar exclamou, levando um copo fumegante de caldo
de milho nas mãos e entregando à esposa. — Foi você quem organizou tudo, Gabriella?
— Eu, Diana, minha madrinha e várias outras pessoas que se dispuseram a ajudar.
— Assim vou te chamar sempre para organizar os eventos da prefeitura — ele
comentou, e minha loirinha riu.
Gabriella agora podia usar sua identidade sem medo, e trabalhava para o prefeito em seu
gabinete. Continuava estudando nos computadores da prefeitura, mas eu já tinha comprado um
notebook e montado uma sala de estudos para ela em um dos quartos da fazenda. Só estava
esperando instalarem a internet e mostraria a ela a surpresa.
Se quisesse, ela poderia fazer sua faculdade do vale mesmo, e não precisaria ir todos os
dias à cidade vizinha para estudar.
Enquanto Salazar, Gabriella e Diana continuaram conversando sobre a festa e a
infinidade de comida que elas planejaram servir, Antenor aproximou-se de mim, sussurrando
baixo:
— Falei com o delegado de Dom Cervantes. — Senti o corpo de Gabriella se retesar e
percebi que ela ouvia tudo, ainda que aparentasse participar da outra conversa. — A excludente
de legítima defesa de terceiro foi aceita no caso do Duda. Vão finalizar seu processo. Você não
cometeu crime algum.
Concordei. Embora eu já soubesse disso por meio do meu advogado, indicado por
Salazar.
— Continua conversando com ele sobre a morte do Beto? — perguntei.
— Sim. — Ele deu de ombros. — Todas as mortes que aconteceram aqui são de minha
responsabilidade, e um dos policiais dele foi uma dessas vítimas.
Acenei que sim e ele prosseguiu:
— Mas sabe como é. Meses se passaram e nem rastro do quarto invasor. É criminoso
matando criminoso, então o pessoal não tá muito interessado em saber.
A polícia ainda tinha muitas perguntas sobre o que aconteceu aquela noite na usina.
Qual era a relação de César com Beto, por que Beto foi morto, entre inúmeros outros
questionamentos.
Eu e Gabriella éramos os únicos que sabíamos.
E como a polícia em cidadezinhas como aquela não tinha lá muitos meios de ir atrás de
justiça...
Considerava-se justiça feita.
Na real, ninguém ligava muito.
Nunca mais tivemos notícias de Levi. Acreditamos que não tenha morrido com aquele
ferimento, do contrário teriam encontrado seu corpo em algum canto da estrada.
César causou o caos em Sibipiruna. Viveu como prefeito, mas morreu como escória.
Parte dos moradores foi contra ele ser enterrado junto dos pais e da irmã, e como essa era uma
decisão que competia a mim, único Maldonado que restou, fiz a vontade do povo.
Dai a César o que é de César.
Uma cova qualquer e sem identificação, esquecida ao canto do cemitério.
Trato diferente do dado a Juiz, que foi enterrado com honras debaixo do pé de caju, sob
aplausos de alguns presentes, como nossos amigos e os Siqueira, e os latidos e uivos da sua
matilha, que despediu-se do cão sempre calado de maneira ruidosa.
E foi assim que saí do papel de vilão para assumir o de...
Homem comum.
Nem vilão, nem herói. Nem mocinho, nem bandido.
Só um fazendeiro meio chucro tentando plantar sua cana e reerguer-se diante dos
desafios da vida.
Notei quando o delegado afastou-se, e apertei o abraço em Gabriella. Ela relaxou e
beijei o canto do seu pescoço, sentindo o cheiro da única coisa que era capaz de me embebedar
pro resto da vida.
A pamonhada estava animada, e o pasto à frente do casarão tornava-se mais e mais
cheio à cada hora.
Em dado momento, fui até a varanda ver se os cachorros estavam muito agitados. Ainda
que agora eles aceitassem bem a presença de estranhos amigáveis, era muita gente junta para eles
processarem.
Alisei o pelo de Trovão, me recordando de Juiz e sua pelugem igualmente negra. Era
silencioso e arredio, e mesmo assim fazia uma puta falta.
Trovão lambeu meus dedos, como se soubesse exatamente o que eu pensava e me
consolasse, e senti mãos quentes como brasa pousando com suavidade em meus ombros.
— Acha que é melhor colocarmos eles pra dentro? — Gabriella questionou, também
preocupada com os cães.
— Eles me parecem bem — murmurei. Perverso se alisou nas pernas dela enquanto
Sombra aproximava-se de mim. — Só um pouco assustados com tanta gente junta, mas já se
acostumaram com o novo ritmo da fazenda desde que iniciamos as obras.
— Verdade.
Ela sentou-se no chão da varanda. Usava um vestido curtinho — disse que estava quente
demais — e as pernas bonitas brilhavam com o restinho de luz do sol.
— Não podemos expulsar todas essas pessoas e fazermos uma comemoração da nova
sede da fazenda do meu jeito? — questionei, estirando as pernas na varanda e chamando ela pra
subir em meu colo.
— Nem sempre as coisas são do seu jeito, cowboy. — Ela riu e recusou-se a se
aproximar, levantando o corpo esguio e rebolando para longe de mim.
Ficamos ali, eu e os cachorros observando ela se afastar.
— No fim — murmurei —, ela domou todos nós.
A festa foi animada e se prolongou até altas horas da noite. As fogueiras que ferveram
os caldeirões ainda queimavam no chão quando o último dos convidados partiu, restando
somente os moradores do vale.
Os Siqueira logo se despediram de mim, e dona Sofia garantiu que no dia seguinte me
ajudariam a desmontar toda bagunça. Nem liguei muito para isso, e quando eles olharam para a
afilhada com a pergunta implícita nos olhos, ela nem titubeou em responder:
— Vou ficar com Lucas para ajudar a arrumar as coisas.
Eles se entreolharam, mas nada disseram. Todos sabiam que estávamos juntos, e sempre
deixamos bem claro que ela viveria na minha cama no instante em que eu tivesse um teto
novamente.
Enquanto eles se afastavam, iluminando o pasto escuro com suas lanternas e
caminhando devagar, questionei:
— Vai vir morar aqui comigo, loirinha?
Ela abriu um daqueles sorrisinhos cheios de intenções, e então murmurou:
— Tem algumas coisas que precisamos conversar sobre o que acabou de me perguntar.
Franzi a testa.
— Como o que?
— Como o fato de que nunca fez um convite oficial.
— Acho que fiz sim — revidei. Estávamos sentados na varanda. Eu tinha comprado
uma cadeira de balanço e me sentei nela com Gabriella em meu colo. — Sempre deixei bem
claro que você é minha, e aquilo que é meu, eu sempre deixo à vista dos olhos.
— Isso lá é convite oficial?
Soltei o ar devagar, ciente de que a diaba era difícil de dobrar.
Só que eu já estava bem à frente dela.
Sem falar nada, ergui os quadris com ela ainda no colo, acessando o bolso de trás da
calça com uma mão. Eu até poderia ter concedido em dar aquela festa cheia de gente nas minhas
terras, mas continuava preferindo a discrição. Guardei aquilo por dias para o momento em que
estivéssemos só nós dois na nova casa.
E agora era a hora.
Puxei a caixinha de veludo branco com as duas alianças. Simples, sem muitos detalhes,
e que comprei em Coralina dias atrás.
Quando abri a caixa, vi os olhos cor de uísque arregalarem-se ao máximo, fazendo toda
sua cor transbordar.
Era melhor que qualquer porre que tomei na vida, e ainda mais intenso.
— Lucas... — Ela levou a mão à boca, chocada.
— Casa comigo, diacho? — perguntei, passando a mão na bunda gostosa que se
esfregava em minha virilha, e admirando o rosto da única que poderia ser, ao mesmo tempo,
minha ruína e redenção.
Meu caos e minha harmonia.
Minha dona e minha posse.
— Amo você, loirinha — declarei. A voz saiu baixa, mas o silêncio era quase absoluto,
só quebrado pelos grilos e sapos coaxando. — Você não invadiu só minhas terras, mulher.
Invadiu muito mais. Meu peito e minha mente. Ocupou todo o vazio em meu coração e expulsou
a escuridão que havia lá. Me quis quando tudo o que te ofereci foi culpa e dor, e me salvou
quando nem mesmo a redenção parecia um caminho.
— Cowboy...
— Não sou muito de falar coisas doces, Gabriella, mas vou te amar todo dia, porque
você é meu alimento, e não só a bebida.
Ela mordeu o lábio por dentro, passando um braço por detrás da minha nuca enquanto
erguia a outra mão à minha frente, com os dedos esticados, aceitando meu pedido em silêncio.
Coloquei a aliança enquanto murmurava:
— Sou doido em você, loirinha imprudente. Viciado.
Ela riu, admirando a aliança em seu dedo e então sussurrando de um jeito travesso:
— Acontece que ainda temos um problema, Lucas. — Analisei seu rosto sem entender,
e ela continuou: — É que não vou poder mais pintar meu cabelo de loiro para justificar esse
apelido. — Ela parou e me fitou com imensa ansiedade. — Ao menos, nos próximos nove meses.
Nove...
Meses?
Senti uma espécie de pane em meu cérebro e mirei sua barriga.
— Nove meses? — repeti feito bobo.
Ela só balançou a cabeça que sim, arregalando mais os olhos e então tocando minha
mão. Seus dedos estavam gelados de ansiedade, e seu olhar escrutinava meu rosto, como se
quisesse decifrar minhas reações.
— Eu sempre tomei os remédios, mas o médico disse que isso pode acontecer. — Fez
uma cara como se se sentisse culpada. — É raro, mas acontece.
— Você está grávida? — perguntei. Precisava de uma resposta direta.
— Sim. De dois meses já. — Ela encolheu os ombros acanhada. — Sei que ainda nem
nos casamos, e que pode estar cedo para isso... Talvez você não quisesse um filho ou...
— Eu vou ser pai? — Minha mente parecia com as engrenagens travadas, processando
cada conclusão por vez. — Você está grávida?
— Eu já disse que sim!
Isso justificava o humor mais nervosinha!
— Vai me dar um filho, mulher?
— Lucas! Seu cérebro travou?
Eu nem consegui responder. Só agarrei sua cintura com força e puxei sua boca na
minha. O beijo que dei tinha tanto amor e devoção que era impossível para ela não perceber o
quanto eu queria um filho com ela.
Com Gabriella eu queria encher aquela varanda de crianças. Povoar todos os quartos
recém construídos e também meu coração recém restaurado.
Me senti o homem mais feliz do mundo naquela noite, com a minha futura esposa em
meus braços, quatro cães deitados ao nosso redor, e um vale que era só nosso.
— Vai me dar um filho! Ou filha! — vibrei quando ela afastou sua boca da minha.
Tinha duas lágrimas teimosas formando-se em seus olhos, mas Gabriella não era muito de
chorar, então elas sequer escorreram por suas bochechas. — Já pensou, uma loirinha feito você?
Foi quando ela gargalhou, dando um tapa em meu ombro.
— Impossível, Lucas! Eu não sou loira, e você também não.
— Você não entendeu. — Beijei seus lábios de novo, agora levando uma mão calejada
até seu ventre e o alisando. — Alguém com sua personalidade, pronta para devastar com tudo.
— Ou um menininho bem sério e teimoso, feito o pai — ela revidou. — Daqueles que
protege os seus.
— Teremos todos eles. — Beijei sua testa, acariciando seus cabelos. — E quantos mais
você quiser.
Sentindo uma urgência em ter aquela mulher — a minha mulher — me ergui da cadeira
com ela nos braços, levando nós dois para dentro da casa.
A sala era ampla e arejada, e os móveis escolhidos eram de um tom amadeirado bem
claro. Cortinas novas estampavam em cada janela, e embora a cozinha não estivesse sendo
usada, o aroma das fogueiras de fora invadia todos os cômodos, dando ao ambiente uma
aparência de lar.
Era o nosso lar.
— Que tal eu te levar pra conhecer a nova cama? — convidei.
— Acho que já conheço seu quarto.
— Só que preciso te mostrar ele do meu jeito.
Suas mãos se enterraram na minha nuca enquanto a carregava. Apertei sua cintura em
meus braços e enfiei uma mão em seu vestido, sentindo a bunda deliciosa ao alcance dos dedos.
Nosso quarto era imenso. O maior da nova construção. Tinha janelas que davam para a
frente do vale, numa vista magnífica de todo o horizonte. A cama era grande e macia, e coloquei
Gabriella ao centro dela, vendo-a retirar o vestidinho curto com vagareza.
Também me despi, arrancando a camisa preta e depois a calça jeans. Retirei as botas e
as joguei num canto do quarto, voltando para a cama só de cueca.
Antes que ela ficasse toda nua, apanhei seu calcanhar e ergui um de seus pés, beijando-o
devagar. Trilhei carícias por suas pernas, chegando na calcinha e retirando-a eu mesmo. Quando
meu corpo estava todo por cima de Gabriella, alinhei nossos rostos e beijei seus cabelos,
descendo os lábios até sua orelha e mordiscando o lugar.
Ela gemeu e rodeou meu corpo com seus membros. Senti seus quadris se encaixarem
nos meus e sua boceta roçar minha virilha.
Beijando sua boca, me esfreguei nela, fazendo tudo se resumir à sua existência.
Mordisquei um dos mamilos ao retirar seu sutiã, e então desci com meus lábios
lambendo e lambuzando todo seu colo até a barriga, onde beijei o serzinho que ali crescia e já me
enchia de mais vida, se é que era possível.
Fui um homem vazio.
O culpado.
O grão apodrecido do mundo, mergulhado na própria escuridão.
Agora, aprendia que diferente da dor, o amor sempre crescia. Ele ocupava todo o peito e
ainda assim era capaz de se multiplicar e expandir-se mais, transbordando e revelando as cores
da minha existência antes cinzenta.
Arranquei toda a roupa de Gabriella e a fiz minha mulher naquela cama.
Segurei seu pescoço com força, apreciando a maravilha que eram suas mãos enroscadas
nos nossos lençóis.
Seus gemidos preenchendo nossas paredes.
Seu suor molhando nosso colchão.
Marquei seu corpo como meu.
Arranquei seu ar, só restando gemidos.
Penetrei seu corpo, como ela me acessou os desejos.
Minha loirinha...
Dona devastadora de todas as minhas emoções.
Meu eterno e único vício.
Epílogo

Quatro anos depois

Gabriella

Casamentos na fazenda são sempre fartos e animados.


O meu casamento com Lucas, ao contrário dessa regra, foi até modesto. Minha barriga
estava imensa, eu me sentia cansada e optamos por algo simples e só para os mais íntimos.
Modéstia essa que não era seguida quando o assunto era “o primeiro aniversário dos
filhos”.
Uma pequena multidão amassava o gramado à frente da nossa casa para comemorar o
primeiro ano de vida do nosso caçula e terceiro filho.
Lucas não disfarçava o orgulho, segurando Ravi nos braços e o apresentando a todos.
Rosa era a mais velha, com seus quase quatro anos de idade e um sorriso contagiante.
Tinha todas as feições do pai, do olhar castanho-escuro aos cabelos de fios grossos e volumosos
quando estavam de um comprimento maior.
Raul era o do meio, e tinha dois anos completos. Era um pouco mais tímido que os
outros dois, e um grande observador de tudo o que acontecia ao redor.
Ravi era o pequeno furacão que chegou sem ser planejado — nenhum deles foi
planejado, a quem quero enganar? — e era o mais agitado de todos.
Ter três filhos em tão pouco tempo não eram exatamente meus planos, mas a verdade é
que jamais me vi tão feliz como naquele momento da vida.
Depois de ter Ravi, o aniversariante do dia, eu tinha dado “a fábrica” por fechada, ainda
que Lucas desejasse povoar aquele vale com mini cópias suas.
Era incrível como seu sangue era forte!
Todos pareciam-se absurdamente com o pai.
Não que eu ligasse. Meu marido era lindo, e eu me sentia grata pela árdua missão de
espalhar seu gene perfeito e cheio de traços marcantes por aí.
Observei com orgulho o trabalho feito por mim, a madrinha e alguns amigos na
decoração da festa.
Erguemos uma tenda para aplacar o sol da tarde e dispomos as mesas pelo gramado
aparado, todas forradas com um tecido de azul clarinho e com enfeites feitos de suspiro por uma
confeiteira de Coralina.
Embaixo do pé de caju, que teve o solo todo limpo e retiradas suas folhas caídas, uma
mesa central com balões, docinhos e o bolo. Tudo em tons de azul claro, branco, bege e ursinhos
para decorar.
— Está tudo tão lindo! — Diana surgiu ao meu lado tecendo elogios. — Eu provei os
brigadeiros e estão uma delícia!
— Madrinha Sofia sempre arrasa nos doces.
Desde que me casei com Lucas, meus padrinhos voltaram a viver só os dois na casa ao
lado, mas era como se ainda morássemos juntos.
Ela me ajudou na gravidez e pós-parto dos três filhos, e quando voltei a trabalhar na
prefeitura, cuidou de todos eles como uma avó, ainda que eu tivesse ajuda de funcionárias em
nosso sítio.
Inclusive, era assim que ela fazia questão de ser chamada, assim como José. De avós.
Por conta dos filhos, precisei trancar a faculdade um tempo, mas como a maioria das
aulas era on-line, logo pude retomar. Me formaria em poucos meses e, com isso, poderia assumir
cargos melhores na prefeitura. Salazar tinha ganhado a reeleição com quase setenta por cento dos
votos, e agora dizia que eu deveria me candidatar a algum cargo. Insistia em dizer que meu jeito
agregador e a persistência em conquistar as coisas seriam boas para Sibipiruna.
Não sei se meu futuro era na carreira política, mas sabia que meu destino era naquele
lugar.
Lucas agora vivia empenhado com a usina.
Após reativá-la, cerca de um ano depois da noite em que quase fomos mortos lá dentro,
aquela região só cresceu. Sibipiruna agora tinha mais ruas asfaltadas, casas novas sendo
construídas em cada esquina e, o mais importante de tudo, moradores dispostos a crescer naquele
lugar.
Notei que Lucas tinha entregue Ravi para os avós e tinha saído da festa, indo receber um
desconhecido que chegava em uma caminhonete cinza. Os dois conversaram um tempo nos
limites da cerca e logo o homem entregou uma caixa de papelão para meu marido, que a pegou
em seus braços e ficou alguns segundos mirando seu interior.
Passei pelas mesas cheias de convidados e parei a alguns metros deles, vendo-o se
despedir do estranho. Depois que o homem se foi, ele virou-se e caminhou em minha direção,
abrindo um sorriso largo ao ver que eu o observava.
O Lucas sem culpa era ainda mais atraente que o Lucas do passado, pois tinha sempre
esse sorriso feliz no rosto.
— O que está aprontando? — perguntei, cruzando os braços.
— Só fui buscar o presente dos meninos. — E ergueu a caixa um pouco mais,
apontando para seu conteúdo.
Esperei que ele parasse à minha frente para espiar lá dentro, e o que encontrei me fez
prender a respiração alguns segundos.
Pequenino, tremendo de ansiedade e parecendo com medo, um filhotinho de cachorro
tinha os olhos negros voltados para mim.
Parecia uma versão real do cachorrinho de pelúcia que há anos decorava a caminhonete
vermelha de Lucas. Aquela pelúcia que escolhemos no tiro ao alvo justamente porque lembrava
Juiz.
Lembrar de Juiz ainda doía em meu peito. Por isso, nunca quisemos outro cachorro. Por
um tempo, achei que Lucas nunca mais adotaria outro animal.
Parece que eu estava enganada.
Peguei a bolinha de pelos no colo e senti as garras afiadas arranharem meu braço.
— Um fazendeiro encontrou a mãe na estrada, já prenha. Não sabia o que fazer com os
filhotes e perguntou se eu ficaria com um.
Sorri, afagando o pescocinho do animal e vendo-o abrir a boquinha e bocejar
preguiçoso, deixando a língua vermelha aparecer.
— UM FILHOTINHO! — Rosa gritou enlouquecida, correndo em nossa direção junto
de seus amigos.
Nós já tínhamos os quatro cães. Ela estava habituada a animais, então eu não esperava
tanta euforia diante da bolinha de pelos.
— É o mais novo morador dessa casa — Lucas murmurou, afagando os cabelos escuros
da filha, que agora arrancava o bichinho das minhas mãos.
— Vamos ficar com ele? — ela quis a confirmação.
— Vamos sim, filha.
— Ebaaaaa! — Ela saltou animada, e várias crianças aproximaram-se para ver o filhote
em seus braços. — Qual o nome dele?
— Que tal você escolher? — Lucas sugeriu, bagunçando ainda mais os cabelos da filha
com sua mão imensa e transbordando amor em seus olhos.
— E se a gente chamar ele de Pretinho? — como toda criança, ela pensou no mais fofo
e óbvio.
— Pretinho? — Lucas fez careta.
— Melhor que Meritíssimo — me voltei para ele. — Justiceiro ou coisa parecida.
Lucas riu, e as crianças se afastaram sem entender nada do que eu falei e levando o
cãozinho, que agora abanava o rabo.
Meu marido rodeou seus braços em minha cintura, e senti seu corpo gigantesco aquecer
todo o meu.
— Esse tem cara de ser bem manso — falei, observando o cãozinho choramingar ao ser
colocado no chão e pedir por mais colo.
— É. — Ele também mirava o animal. — Jamais vai ser frio e controlado como Juiz era.
Nunca mais terei uma matilha como aquela. — Ele apontou para os cães jogados na varanda.
Trovão, já mais velhinho, tinha o rosto todo branco. — Você estragou todos eles.
Não pude deixar de sorrir, sentindo sua barba roçar em minha nuca.
— E por que você ia querer aqueles cães sanguinários de novo? Acha que podem
invadir suas terras outra vez?
A mão em minha cintura se apertou, e Lucas passou novamente a barba em minha nuca.
Demorou-se mais, girando meu corpo para que ficássemos de frente e eu o fitasse. Seu rosto
tinha as mesmas marcas de sempre, com a soma de alguns fios brancos que pintavam a barba
aparada.
Como eu era sortuda...
— Aqui não tem nada para conquistarem, loirinha. — Há anos eu não era mais loira,
mas ninguém ligava mais para esse detalhe ou questionava quando ele me chamava assim. —
Porque você já é dona de tudo.
Seus lábios tocaram os meus com suavidade, pois era a festa de um de nossos filhos.
O toque pesado, a mão no pescoço e os tapas doídos ficavam para o nosso quarto.
— Te amo, diacho — Lucas soprou.
Não era sempre que ele dizia, mas eu sentia e via esse sentimento em cada encarada sua.
— Também te amo, diacho.
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SINOPSE
Ela está de volta.
Cecília Lopez Mendes chegou ao topo. Como a primeira mulher a pilotar um caça no
Brasil, a capitã da Força Aérea sabe ser capaz de conquistar tudo o que quer.
Forte e determinada, ela não tem medo do futuro. Isso, até ver sua vida tomar rumos
inesperados mais uma vez. Forçada a voltar para Anápolis, sua cidade natal, ela será obrigada a
reencontrar o passado.
Um passado de olhos cinzentos e a quem, um dia, ela foi capaz de entregar o coração.
Renato Novaes também conquistou tudo o que quis. Comandante da maior frota de
aviões do Centro-Sul do país, é o braço direito de Severo, dono da Lopez Mendes Aviação.
Acumulando casos sem compromisso depois de sofrer com um amor de juventude, ele leva uma
vida perfeita e tranquila atuando naquilo que sempre adorou: os aviões.
Essa paz, no entanto, está com os dias contados. E será no retorno de Cecília, sua paixão
do passado, que ele entenderá que mesmo um céu azul e sem nuvens está sujeito a turbulências.
Principalmente, quando se tratar de amor.
Agradecimentos

Na mesma semana em que iniciei a escrita de Por Justiça e Redenção, minha avó
faleceu. Para quem não sabe, o Vaz que eu assino é “dela”, embora não faça parte do meu nome
de certidão. “Peguei para mim” como uma forma de homenagear a mulher mais importante e
forte de toda a minha vida.
Ela nunca leu meus livros. Quando entrei nessa aventura maluca que é ser escritora,
minha avó já não lia quase nada. Também não sei se ela ia se interessar de ler os hots de Lucas e
Gabriella, mas isso é outra questão.
A verdade é que ela tinha um orgulho danado da neta escritora. E adorava o fato de eu
usar o “seu” Vaz.
Hoje quero agradecer a ela. A mulher que me ensinou que a beleza está no singelo. Que
o magnífico se esconde nos detalhes, e que o amor se manifesta de inúmeras formas. Acho que
por isso meus casais são assim: reais.
Tudo o que vivi foi molde para a minha escrita. Seja para contar uma comédia
romântica leve, ou para narrar a saga de um viúvo amargurado por carregar a dor de matar a
própria esposa, acho que tudo que sai de mim, é um pouco dela.
Não dava para agradecer a outra pessoa.
Todas as minhas dedicatórias são para a senhora, Inocência.
E nenhum agradecimento vai ser o bastante para preencher a falta que a senhora faz.
Nos veremos um dia.

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