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Copyright © 2022 by Clarissa Coral

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa.

PERDIÇÃO SUBLIME

Design e ilustração de capa: Reino Premades


Revisão ortográfica: Ana Vitti
Diagramação: Clarissa Coral

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, organizações,


lugares e situações são frutos da imaginação deste autor e usados
como ficção. Qualquer semelhança com a realidade ou fatos reais é
mera coincidência.

Todos os direitos reservados.


Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de
quaisquer meios.
Os direitos morais do autor foram assegurados.

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa.
Dizem que o amor é uma jornada
Prometo que eu nunca irei embora
Quando estiver tudo muito difícil
Lembre-se deste momento comigo
-RUELLE
I Get to Love You
Índice

PRÓLOGO
1 - Ventos bravios
2 - Tilintante
3 - Olhos de águia
4 - Surpresas da vida
5 - Vapor na chuva
6 - Convite
7 - Na luz do sol
8 - Tão perto
9 - Beleza rústica
10 - Gesto de gratidão
11 - Nomes e sorrisos
12 - Ar em chamas
13 - Turbilhão
14 - Certeza súbita
15 - Fluir como um riacho
16 - Proposta
17 - Novos planos
18 - Passeio
19 - Deslumbrante
20 - Jogo de perguntas
21 - Pequeno pedaço de sonho
22 - Recrutamento
23 - Confronto
24 - Promessa de um beijo
25 - Histórias
26 - Justiça injusta
27 - Um novo horizonte
28 - Lições
29 - Pegadas digitais
30 - Informações ocultas
31 - A mil por hora
32 - Legado
33 - Dívidas
34 - Sobrevivente
35 - Adrenalina
36 - Em família
37 - Missões futuras
38 - Raízes
39 - Aprovação
EPÍLOGO
Notas da autora & Agradecimentos
Conheça “Paixão Pagã”: a história de Dimitri e Hadassa
Conheça “Provocação Preferida”: a história de Lucas e
Megan
Conheça “Provação Suprema”: a história de Leila e Mathias
Conheça “Pecado Sagrado”: a história de Alana e Alex
Conheça “Promessa Perversa”: a história de Tomás e
Josiane
OUTRAS OBRAS DA AUTORA
Sobre a autora
PRÓLOGO

Algumas coisas vistas jamais poderiam ser esquecidas.


A música que tocava em um ritmo animado, do lado de fora, se
transformou em um zumbido em seus ouvidos. Todo o sangue que
fluía em suas veias congelou, trincando os ossos, provocando um
suor frio por toda a extensão da sua pele.
Até mesmo o sol que brilhava por toda a área externa parecia
ter sido engolido por uma atmosfera densa e sombria.
Um arquejo quase saiu da sua garganta.
Ela levou as mãos à boca, calando qualquer som involuntário
que queria sair dali.
Tentou recuar lentamente, segurando o choro trêmulo, a
respiração ofegante, as batidas descompassadas do coração.
A saída estava perto...
Mais perto...
Quase...
Como uma conspiração cruel do universo, a música cessou do
lado de fora, e o som dos seus passos foi denunciado.
— Ei, que merda é essa?
As cabeças se viraram em sua direção.
— Tem alguém ali!
Ela prendeu o ar, mas não foi rápida o suficiente.
Tinha sido vista.
E soube que não seria esquecida.
1
Ventos bravios

Eram em noites atípicas como aquela que sua perna teimava


em latejar e queimar como o inferno.
Oliveira observou o pequeno hospital, o movimento dos
médicos que iam e viam; seus passos e vozes entrecortados pelo
vento que uivava do lado de fora da construção, vibrando em uma
intensidade selvagem, como se fosse arrancar as paredes do chão.
Diabos.
Ele não queria estar ali.
Havia tentado ignorar a dor. Tentando se entupir de
analgésicos. Perdeu as contas de quanto tempo se revirou na cama,
tentando achar uma posição confortável para a perna. Mas cada
movimento, por mais controlado que fosse, arrancava um grunhido
de sua boca.
Lembrava-se de ouvir as janelas sacudindo com a força insana
do vento. Não fazia ideia se estava chovendo ou se era apenas o ar
em sua essência mais brutal.
Quando não havia mais como lutar, o militar dentro dele foi
obrigado a se render.
Com um suspiro cansado, ele tinha se levantado e caminhado
até a sala, procurando pelas chaves da caminhonete. Sua cachorra
vira-lata, Abóbora, estava dormindo preguiçosamente no tapete
embaixo da janela.
Foi ali que percebeu que, junto dos ventos bravios, a água
pesada caía do céu.
Não acendeu a luz.
Os relâmpagos ocasionais jogavam seu brilho azulado para
dentro do cômodo, iluminando a estante rústica e decorativa.
Oliveira andou até o móvel, apanhando o porta-retrato central.
A fotografia eternizada da mulher era um alento e uma tortura;
uma dissonância entre a felicidade experimentada no passado e a
amargura vivida nos dias atuais.
Uma mão invisível comprimiu seu coração.
— Diabos... Vou ter que ir para o hospital, Sofia. Consigo te
imaginar discutindo comigo, me chamando de teimoso e me
enfiando dentro da caminhonete.
Os lábios gravados na fotografia sorriam para ele.
— Gostaria que você estivesse aqui. Queria te ouvir falando
comigo. Queria ouvir sua voz mandona.
Outro relâmpago enchera a sala; como se a própria Sofia
estivesse ordenando que ele parasse de enrolar e fosse até o
hospital.
Assim, ouvindo a falecida esposa, Oliveira se virou, calçou as
botinas, vestiu um casaco e abriu a porta principal, deixando que a
chuva e o vento insano fustigassem seu corpo enquanto rumava
para a caminhonete.
Atravessar a estrada de terra, que levava para o perímetro
urbano da cidade, foi mais difícil do que imaginava.
A combinação tempestuosa de vento e água borrava o
caminho.
Havia ligado o rádio, sintonizando em uma rádio qualquer para
diminuir a irritação por sair do conforto do seu lar em uma noite
como ela.
“Tornado se forma na região do interior de Minas Gerais...”
“Este tipo de fenômeno é comum no Brasil, mas não em
Minas...”
“Normalmente, esse tipo de nuvem funil é visto a partir de São
Paulo, indo em direção ao sul do país...”
“Recomenda-se que os moradores de Itatiaiuçu não saiam de
suas casas...”
Oliveira resmungou e desligou o rádio.
Se a maldita perna não estivesse quase o matando de dor, ele
não teria saído de casa.
Os limpadores de para-brisa trabalhavam sem parar, lhe dando
um panorama da extensão das terras ao redor da fazenda, das
plantações, das montanhas distantes da região. A visão era mais
agradável durante o dia, quando não estava borrada pelo estágio
mais brutal da natureza.
Ao chegar na cidade, conseguiu estacionar perto do pequeno
hospital e logo foi atendido.
E lá estava ele.
Um homem vencido por uma dor desgraçada na perna.
Após receber uma injeção para a dor, ele fechou os olhos e
encostou a cabeça na parede, esperando logo que alguém viesse
liberá-lo.
Em uma pequena televisão no alto da parede, um noticiário
tardio, assim como as estações de rádio que ouvira ao longo do
caminho, trazia notícias sobre o tornado que estava sendo previsto
para as próximas horas. Toda a cidade estava em alerta.
— Um tornado — resmungou para si mesmo.
Aquilo era uma das coisas mais incomuns que poderia
acontecer na região em que vivia. Contava-se nas mãos as poucas
vezes em que um fenômeno natural como aquele fora visto em
Itatiaiuçu.
Ele puxou o celular e checou as horas. Duas horas da manhã.
Diabos.
Ansiou por voltar para sua fazenda, para a quietude que se
harmonizava ao restante da casa, para o silêncio absoluto, violado
apenas pelo mundo que urrava e desabava do lado de fora.
Os empregados chegavam apenas pela manhã, e iam embora
antes que o sol fosse engolido no horizonte. As noites eram apenas
para ele e para o vale obscuro que habitava o fundo de sua alma. Já
estava acostumado com aquilo e não queria que nada mudasse.
Um tornado bastava. Não precisava de nada mais diferente.
— Está liberado, Oliveira. — Uma médica alta, com os cabelos
claros presos em um alto rabo-de-cavalo, se aproximou. — O
coquetel de analgésicos vai eliminar toda a dor.
— Obrigado, Leila — ele agradeceu com um resmungo e se
levantou, rumando para a saída do hospital.
Deveria ter sido mais simpático com a médica. Ela não tinha
culpa de nada. Mas o fato era que ele odiava sair da sua fazenda.
Principalmente em noites atípicas como aquela.
Por causa de uma dor.
Enquanto atravessava a saída do hospital, golpeado pelo
vento furioso, enfiou a mão no bolso da calça, procurando pela
chave da caminhonete. Ao erguer o rosto, teve a impressão de ver
uma movimentação perto do seu carro.
Piscou.
Podia ser só o vento, o borrão da chuva, mas...
Outro relâmpago iluminou as nuvens turbulentas.
Merda.
Tinha visto outra vez.
Alguém estava roubando a lona da carroceria da sua
caminhonete!
O sangue impaciente de Oliveira latejou nas veias.
O mundo já estava desabando por conta da tempestade
trazida pelo tornado. E um filho da puta sem amor à própria vida
ainda ousava roubá-lo.
Maldição.
Oliveira bufou.
Daria um susto no ladrãozinho. Para que ele aprendesse a não
mexer nos pertences de um subtenente do exército.
Apertou o passo, a perna ainda reclamando de dor, querendo
chegar o mais rápido possível na caminhonete.
A chuva afogava a rua e o estacionamento.
Ele escancarou a porta traseira do carro, ainda mais furioso
por ver que o ladrãozinho camuflado pela escuridão havia se virado
e corrido, levando a lona consigo.
Apanhou a espingarda que deixava embaixo do banco.
Ah, mas daria um susto no infeliz; um susto que o faria pensar
duas vezes antes de mexer nas coisas alheias novamente.
Como se estivesse outra vez em sua época de trabalho na
fronteira, Oliveira engatilhou a espingarda e seguiu atrás do
ladrãozinho.
— Onde você está?! Apareça!
Só diminuiu o ritmo dos passos quando parou diante de um
beco, escutando um arquejo baixo e assustado.
— Tem coragem de me roubar, mas não tem coragem para me
encarar?!
Ele virou, mantendo a espingarda empunhada.
Um relâmpago iluminou as paredes molhadas do beco,
fazendo Oliveira estreitar os olhos ao enxergar uma moça encolhida
e sentada no chão, abraçando as próprias pernas.
2
Tilintante

Oliveira abaixou a espingarda lentamente, encarando a moça


encolhida no chão do beco.
O que diabos ela estava fazendo ali, no meio de um possível
tornado noticiado em todos os rádios, nas horas mais escuras da
madrugada?
E por que tinha roubado a lona da sua caminhonete?!
Segurando uma respiração confusa, pasmada, ele se moveu
para mais perto dela.
Um raio luminoso rasgou o céu.
A garota piscou, erguendo a mão para proteger os olhos.
Oliveira a observou; ela não deveria ter mais do que vinte e
quatro ou vinte e cinco anos. Os cabelos longos e molhados se
grudavam no rosto, e o par de olhos castanhos o encaravam cheio
de temor. Suas roupas estavam encharcadas e, mesmo a
iluminação da rua não sendo das melhores, ele conseguia ver o
corte em seu lábio inferior; uma marca dissonante nas feições
delicadas.
Aquilo fez uma agitação sem precedentes tomá-lo.
— Desculpa... Eu só peguei a lona porque não...
Ele deu um passo cauteloso para perto dela, quase instintivo,
querendo ver se havia mais ferimentos que seus olhos não
conseguiam captar.
— Por favor... — ela sussurrou, grudando as costas na parede.
— Não me machuque.
Perplexo, Oliveira abriu a boca para dizer que jamais
cometeria uma atrocidade daquelas, mas foi cortado por um choro
fraco e infantil.
O quê?!
Os ombros da moça se retesaram, e ela pareceu ficar ainda
mais assustada enquanto se virava para o lado, puxando...
Puta merda!
Oliveira levou uma mão à cabeça, em choque.
A moça se virou, puxando a lona roubada. Havia um menino
pequeno ali. A moça o pegou no colo; um rapazinho que Oliveira
chutou ter cerca de três anos, e o apertou contra o peito. Ele não
soube dizer qual dos dois tremia mais de frio e de medo.
— Por favor... — ela pediu de novo, apertando a criança contra
si. — Não temos onde ir, toda a cidade está fechada por causa do
tornado. Me deixe ficar com a lona. É para proteger meu filho da
chuva. Eu a devolvo amanhã para você.
Oliveira piscou, assimilando as palavras dela.
Ficar ali? Em um beco?
Durante um tornado, sob a temperatura baixa da madrugada?
Com uma criança pequena? Usando uma lona para se abrigar da
chuva?
Ah, mas não mesmo.
Não se dependesse dele.
— De jeito nenhum.
A moça lutou para conter um soluço e abraçou a criança com
mais força, os olhos lampejando de desespero.
— Minha caminhonete está logo ali. — Oliveira complementou
rápido, percebendo que sua fala ríspida e sua falta de tato com as
pessoas causaram uma impressão errada na garota. — Posso
deixar você e o menino em algum lugar.
Ela entreabriu os lábios, engolindo em seco.
— Não... Não é necessário. Aqui está bom.
— O diabo que está — ele ralhou e, outra vez, se repreendeu
pela falta de jeito em lidar com uma conversa. Céus, bem que seus
antigos colegas de exército, Dimitri e Lucas, diziam que ele havia
perdido completamente as habilidades sociais depois de mais de um
ano de reclusão.
O vento atingiu e invadiu o beco, derrubando caixotes e sacos
empilhados; um barulho repentino que fez o menininho chorar.
— Shh... Shh, meu amor — ela sussurrou, abraçando-o. — Já
vai passar. É só o vento. Mamãe está aqui.
Oliveira correu os dedos pelos próprios cabelos molhados.
Santa Mãe de Deus. A dor na perna já não era nada
comparada ao que estava acontecendo ali.
— É loucura ficar aqui. Mesmo que o tornado não atinja a
cidade, o tempo está horrível — Oliveira advertiu, tentando controlar
o tom áspero da voz. — Consigo ver que as roupas dele estão
encharcadas. Assim como as suas.
Ela inspirou fundo, pensativa.
A paciência de Oliveira estava por um fio. Aquela era sua
cidade. E mulher nenhuma, com criança pequena, ia passar a noite
em um beco. Ou partir embaixo da pior noite já vista em Itatiaiuçu.
No meio da porra de um tornado. Que tipo de homem ele seria se
permitisse uma coisa daquelas?
— Tudo bem — ela concordou em um fio de voz.
Devagar, como se estivesse sentindo dor, a garota se
levantou, carregando o filho nos braços.
Ele se virou para a saída do beco, encarando a chuva pesada.
Amaldiçoou-se por não ter nenhum guarda-chuva ao alcance
ou algo que pudesse protegê-los das rajadas impetuosas.
Sem pestanejar, Oliveira tirou o próprio casaco, colocando-o
sobre a cabeça da garota e do menininho. Escutou-a exclamar
baixinho, surpresa, e ignorou a falseada que sentiu dentro do peito.
— Vamos — foi tudo o que disse para ela.
Sem trocar mais uma palavra, guiou-os até sua caminhonete.
Abriu a porta para ela, deixando-a entrar primeiro com o filho. Com a
perna ainda doendo, contornou o veículo, praguejou em alívio ao se
livrar dos açoites da chuva e girou a chave na ignição.
O vento uivava, batendo contra a caminhonete.
Oliveira apertou os olhos, segurando o volante enquanto dirigia
pela cidade. Não havia uma hospedaria ou a porra de um hotel
aberto. Tudo estava fechado devido ao alerta de emergência por
conta do tornado.
— Você tem parentes por aqui?
A moça se encolheu, quase grudada à porta, e negou.
Diabos.
Em toda a sua vida, ele fora conhecido por não ser um cara
impulsivo ou imprudente.
Mas, naquela noite, em meio a ferocidade da natureza, movido
por algo que parecia controlar seu sangue, seu coração e suas
vontades, Oliveira tomou uma de suas primeiras decisões
impulsivas e imprudentes.
Mudou a rota da caminhonete, deixando o perímetro urbano da
cidade para trás e seguindo para estrada de terra.
Escutou a moça ofegar baixinho, assustada.
— Não vou lhe fazer mal algum. Tenho um quarto de hóspedes
na minha fazenda — explicou, tentando não soar impaciente. —
Você e o menino podem passar a noite lá.
— Não é necessário.
Oliveira grunhiu baixo.
— Não vamos encontrar mais nenhum lugar aberto a essa
hora. O alerta do tornado alterou todo o ritmo da cidade. Pense no
seu filho.
Ela engoliu em seco. Oliveira percebeu que seu argumento
tinha triunfado sobre qualquer temor dela.
Conduziu a caminhonete para dentro da fazenda, parou o mais
perto que conseguiu da casa e a ajudou a descer, guiando-a até a
varanda de entrada de sua casa. Assim que abriu a porta,
gesticulando para que a moça entrasse primeiro, ela o fitou com
seus olhos castanhos.
— Não tenho como pagar o pernoite.
— Não estou pedindo nenhum pagamento — ele resmungou.
— Te ofereci o quarto. E só.
A garota assentiu, o rosto se enchendo de um alívio quase
desesperador, que fez com Oliveira se questionasse por qual inferno
ela tinha passado para roubar uma lona e se proteger da chuva com
o filho em um beco.
Ele procurou pela vira-lata, pronto para segurá-la se fosse
preciso; Abóbora normalmente não gostava de gente estranha em
seu território. Mas tudo o que a cachorra fez foi erguer a cabeça
quando eles passaram pela sala para, então, voltar para seu
cochilo.
— O quarto de hóspedes é por aqui. Querem algo para
comer?
— Estamos bem. Só preciso dar um banho quente nele.
— Tem um banheiro anexo ao quarto. Há algumas roupas no
armário. Não tem nada infantil, mas pode pegar o que quiser. Tanto
para ele, quanto para você.
— Obrigada — ela sussurrou, engolindo em seco outra vez. —
Por esta gentileza.
Oliveira deixou que seu olhar analítico a examinasse; ela não
carregava nenhuma bolsa ou bagagem com exceção do moletom
onde enrolara o filho. Notou que havia algumas manchas de sangue
na camiseta dela.
O militar dentro dele estava se coçando para fazer perguntas.
Mas achou que era melhor, primeiro, que ela cuidasse de si
mesma e do molequezinho.
Só que havia uma pergunta que já poderia fazer.
E a fez assim que pararam diante da porta do quarto de
hóspedes.
— Qual é o seu nome?
A garota hesitou.
Aquela reação o encucou.
— Só perguntei seu nome.
— Isis — foi tudo o que ela respondeu.
Isis.
Havia algo tilintante e sereno no nome dela; um contraste com
o tornado que engolia toda a fazenda.
— Pode me chamar de Oliveira. Se precisar de algo, me avise.
Ela tornou a assentir e a agradecer. Entrou no quarto e Oliveira
decidiu lhe dar privacidade, rumando de volta para a sala.
Só naquele momento conseguiu soltar o ar que prendia.
Recostando as costas à parede, Oliveira lançou um olhar ao
porta-retrato com a foto da falecida esposa.
— Porra, Sofia, o que foi que acabou de acontecer aqui?
3
Olhos de águia

Assim que fechou a porta do quarto de hóspedes, Isis


empurrou a fragilidade que tentava dominá-la para longe e fez de
tudo para controlar o nervosismo.
Respire fundo, garota. Respire fundo.
Certo. Precisava raciocinar com calma.
Queria trancar a porta, mas não encontrou nenhuma chave.
Isis pigarreou baixo.
Droga; tudo tinha saído do controle.
Enterrou os dedos nos cabelos, sentindo os dentes tiritarem.
Aquele era seu primeiro descuido em mais de três anos. As roupas
molhadas, coladas ao seu corpo, a faziam tremer de frio. Mas como
poderia imaginar que seria surpreendida na estrada, durante um
raro princípio de tornado?
Havia corrido sem olhar para trás, pega pela chuva trazida
pelo vento. Ao ver uma caminhonete estacionada na escuridão,
achou que poderia pegar a lona sem ser notada, e proteger a si
mesma e ao filho até que a tormenta passasse. Nunca imaginou que
seria vista e seguida pelo dono do veículo. Jamais pensou que ele,
depois de tudo, lhe ofereceria abrigo.
O choro incomodado de Davi a fez deixar os pensamentos de
lado e focar completamente nele.
Assim como o fazendeiro de porte rústico lhe dissera, havia
um banheiro anexo ao quarto. Isis tirou as roupas molhadas do filho,
controlando a vontade de chorar ao sentir o quanto ele estava
gelado. Levou-o até o chuveiro e deixou que a água quente o
aquecesse.
— Vai ficar tudo bem, meu amor. Mamãe vai cuidar de tudo.
Nada, nem ninguém, fará mal para nós.
Se não fosse pelo filho, jamais teria aceitado passar a noite ali.
Não conhecia nada sobre o homem que a acolhera.
E tinha dito seu nome verdadeiro para ele!
Que descuido, que descuido.
Isis fechou o chuveiro, pegou Davi no colo e voltou com ele
para o quarto. Através da janela, podia ouvir as rajadas brutais do
vento, enxergar a chuva que o vendaval trazia e que a tinha
colocado naquela situação.
Abriu os armários, procurando por peças de roupas. Como o
tal Oliveira dissera, não havia nada infantil ali, mas conseguiu achar
uma camiseta e vestiu o filho com ela. Colocou-o na cama e o
enrolou nas cobertas, e só depois de se certificar de que ele estava
bem, foi até o banheiro para se lavar e tirar as roupas encharcadas
e sujas.
Com cuidado, tirou a blusa e se olhou no espelho. Não havia
nenhum ferimento na barriga; o sangue no tecido não era seu.
Tocou o lábio machucado, gemendo baixo de dor.
Enquanto a água quente caía por seu corpo, Isis tentou
ordenar os pensamentos. Assim que a chuva desse uma trégua, iria
embora daquele lugar. Não sabia até que ponto poderia confiar na
gentileza daquele homem.
Embora...
Isis engoliu em seco.
Havia algo nos olhos dele que a fizera ceder e aceitar o
convite.
Ela desligou o chuveiro, se enrolou em uma toalha e voltou
para o quarto, procurando por uma roupa no armário. Achou uma
calça de moletom com elástico e uma camiseta larga. As peças
eram masculinas e tinham um cheiro de guardada.
Mas, diante de tudo, aquilo era uma dádiva.
Girando nos calcanhares, começou a fuçar todas as portas e
gavetas que encontrou pela frente. Seu coração batia rápido,
vociferando com o retumbar dos trovões.
Enxergou uma tesoura perdida no fundo de uma das gavetas.
Ótimo.
Havia perdido seu canivete na estrada, assim como a mochila
com a pouca bagagem e dinheiro que carregava.
Segurando a tesoura nas mãos, Isis se sentou na beirada da
cama. As lágrimas teimavam em querer surdir, mas não cederia a
elas. Chorar era um luxo com o qual não poderia perder tempo.
— Mãe... Fome.
— Tente dormir, Davi.
— Mas o Davi tá com fome!
Isis apertou os olhos, inspirando fundo.
— Tudo bem. Vou ver se encontro algo para você comer. Mas
você não pode sair desse quarto, entendeu?
Enrolado nas cobertas, Davi assentiu.
Isis se levantou da cama e enfiou a tesoura no cós da calça,
usando a camiseta folgada para escondê-la.
Tentando não fazer barulho, abriu a porta do quarto e espiou
os dois lados do corredor. Um silêncio visceral recobria toda a casa,
entrecortado apenas pelo som cadente da tempestade. Ela andou
com cuidado, sempre com o olhar à espreita, certificando-se a todo
instante de que a tesoura ainda estava ali.
Parou na entrada da cozinha, se perguntando se deveria
acender ou não a luz.
— Imaginei que você ainda precisaria de algo.
Isis se sobressaltou diante da voz grave e máscula.
Oliveira estava encostado no balcão, de braços cruzados, com
a camisa molhada ainda colada ao corpo. Somente a luz dos
relâmpagos constantes provinha um pouco de luminosidade na
cozinha.
— Eu não... Não queria abusar da sua hospitalidade.
Ele se desencostou do balcão.
— Do que você precisa?
— Só quero uma caneca de leite. É para o meu filho.
— E para você?
— Estou bem.
Oliveira assentiu e foi até a geladeira, onde pegou uma caixa
de leite, encheu uma caneca e a levou ao micro-ondas para aquecê-
la. Isis aproveitou cada um daqueles movimentos para observá-lo de
relance.
A experiência — e a necessidade — lhe ensinaram a olhar
para um rosto uma única vez, de forma rápida e fugaz, e gravar
todos os detalhes.
O semblante daquele homem havia se marcado como fogo em
brasa na sua mente.
Um rosto queimado de sol, típico dos fazendeiros do interior de
Minas Gerais, marcado com linhas rústicas, viris, que formavam
caminhos ao redor dos olhos escuros, descendo para a mandíbula
firme, acentuando o contorno dos lábios. Os cabelos, da cor forte do
café, deixavam sua presença ainda mais evidenciada.
— Aqui está o leite quente. — A mão grande e larga dele lhe
entregou o copo.
— Obrigada.
O roçar entre suas mãos fez Isis erguer o rosto
involuntariamente e fitar os olhos escuros.
O raio que despencou do lado de fora iluminou a cozinha.
A boca de Oliveira se contraiu.
— Vi que havia sangue em sua roupa.
Um homem de traços rústicos e olhar de águia. Isis percebeu
que teria que ser mais cuidadosa.
— Tentaram me assaltar na estrada. — Aquela era uma
verdade que podia contar sem correr risco.
Um lampejo ardente e inesperado queimou nos olhos dele.
— Te machucaram?
— Me defendi com um canivete. — Isis engoliu em seco, algo
dentro dela estremecendo ao ser olhada daquela forma tão...
Intensa. — Quando consegui, corri para a cidade e fui pega pela
chuva. Tentei achar alguém para me ajudar, mas tudo estava
fechado por causa do tornado. E quando vi a lona da carroceria da
sua caminhonete, não pensei duas vezes. Desculpa.
Ele estreitou os olhos, entreabrindo os lábios, e Isis achou
melhor cortar qualquer pergunta.
Perguntas eram perigosas.
— Preciso levar o leite para o meu filho.
Oliveira assentiu, sem deixar de olhá-la.
— Me avise se precisar de mais alguma coisa.
— Ok. Mais uma vez, muito obrigada por tudo.
Quando percebeu que ele não iria falar mais nada, mas que
não romperia aquele contato visual que poderia desarmar qualquer
pessoa, Isis se moveu primeiro e virou, voltando para o quarto,
controlando-se para não andar rápido demais.
Davi vibrou com a caneca de leite. Isis esperou que ele
bebesse tudo, se enrolou nas cobertas e puxou o filho de encontro
ao corpo, observando a chuva até sentir que ele havia adormecido
em seus braços.
Por segurança, deixou a tesoura embaixo do travesseiro.
Assim que o dia irrompesse, iria embora.
Porque nenhum lugar jamais seria seguro o bastante.
4
Surpresas da vida

Para o desespero de Isis, o dia amanheceu nublado e


marcado por uma chuva pesada, contínua; o rastro que o tornado
deixara para trás.
Ela se afastou da janela, correndo os dedos pelos cabelos.
Como iria embora daquela fazenda? Ir a pé seria impossível.
Davi poderia adoecer embaixo da água e do vento. Talvez ela
pudesse pedir uma carona até um ponto de ônibus, por mais
arriscado que fosse.
Mas...
— Merda — praguejou, andando de um lado para o outro.
— Mamãe falou palavla feia.
As poucas economias que carregava consigo tinham se
perdido enquanto fugia do assaltante que a pegara de surpresa na
estrada. Não tinha um centavo para pagar uma passagem de
ônibus.
Isis fechou os olhos, controlando-se para não chorar.
Já havia estado em situações piores. Aquilo era só um
contratempo que ela mesmo resolveria. Só precisava ordenar os
pensamentos e escolher com cuidado os próximos passos.
— Fome!
Isis arqueou as sobrancelhas.
— Davi só tem fome, hein?
O menino riu; e aquele sorrisinho foi a força que Isis precisava
para se lembrar de que tinha algo precioso demais para cuidar e
proteger.
— Certo, campeão. — Ela o pegou no colo. — Vamos ver
como podemos encher essa barriguinha.
Inspirando fundo, Isis abriu a porta do quarto e andou pelo
corredor. A tesoura continuava ali, junto dela, enfiada no cós da
calça e escondida embaixo da camiseta.
Enquanto rumava para a cozinha, aproveitou para observar
melhor a casa onde havia passado a noite. Apesar de grande, a
residência trazia uma sensação rústica, que podia ser reconfortante,
quase aconchegante, se não fosse uma melancolia silenciosa que
pairava no ar.
Isis mordeu o lábio. Não sabia por que pensara naquilo.
— Bom dia — Oliveira a cumprimentou assim que ela pôs os
pés na cozinha, mal lhe dando tempo para erguer as próprias
defesas.
— Bom dia.
— Conseguiu descansar?
— Sim. Já te disse isso, mas, mais uma vez, muito obrigada.
Oliveira deu de ombros e balbuciou algo que ela não
conseguiu entender, enquanto sorvia um gole do café.
Agora, sob a luz do dia, mesmo com o tempo cinzento do lado
de fora, Isis conseguia observar melhor seu anfitrião. Ele tinha
ombros largos e braços fortes. A camisa xadrez estava com as
mangas arregaçadas, e os dois primeiros botões estavam abertos,
deixando uma parte da pele bronzeada à mostra. Com a mão
grande, segurava uma xícara de café.
— Sente-se. Coma o que quiser.
Isis agradeceu e puxou uma cadeira, sentando-se com o filho
no colo. Céus, estava faminta. Fitou de relance mais uma vez a
janela. A chuva continuava caindo sem dar trégua. Será que pararia
antes do anoitecer? Assim poderia ir embora sem se preocupar em
expor Davi à friagem.
De forma involuntária, quase magnética, fitou Oliveira outra
vez, apenas para descobrir que ele também a observava em
silêncio.
Um arrepio subiu por sua espinha.
Sem conseguir virar a cabeça, ela manteve os olhos em seu
rosto. Os olhos dele eram astutos, analíticos, mas também
carregavam algo que a fazia pensar no oceano sendo tocado pelos
primeiros raios de sol que despontavam no horizonte.
— Ah! Bem que eu suspeitei quando vi a cama do quarto de
hóspedes desarrumada! — Uma voz alegre e bem-humorada
inundou a cozinha. — Estamos com visitas!
Em um hábito que já era um reflexo, Isis olhou por cima do
ombro, assimilando a imagem de uma senhora encorpada, que
carregava lençóis dobrados nos braços.
— Esta é Matilde — Oliveira fez a apresentação. — Ela
trabalha na cozinha e também toma conta de alguns afazeres
domésticos.
— Ah... Olá. — Isis fez o possível para colocar um sorriso
simpático nos lábios.
— Olá! E minha nossa, que gracinha! — Os olhos da mulher
brilharam em cima de Davi. — Parece meu neto! Tem quantos
anos?
— Três.
— Meu neto tem quatro. Que idade, né?!
Isis precisou se controlar para não puxar Davi instintivamente.
Mas suas mãos ficaram firmes ao redor do filho enquanto a mulher
sorria e bagunçava os cabelos dele.
— E quem é você? Esta fazenda não costuma receber rostos
novos e diferentes com tanta frequência.
O coração dela disparou. Quanto mais pessoas soubessem de
sua presença ali, quanto mais curiosidade pudesse despertar, mais
arriscado seria. Isis entreabriu os lábios, tentando disfarçar o
nervosismo no semblante.
— Eu... Eu...
— Ela é minha prima.
Isis piscou, surpresa, buscando pelo olhar de Oliveira.
Matilde apoiou as mãos na cintura; um brilho curioso e
divertido enchia suas íris.
— Prima?
— Por parte de mãe. Ela veio de outro estado.
— E ela chegou quando?
— Ontem à noite — Oliveira continuou, inclinando o corpo para
frente. O movimento fez com que o cheiro de um perfume
amadeirado e muito masculinos enredasse os sentidos de Isis.
— No meio do tornado?! Todos os rádios avisaram que era
perigoso sair de casa ontem à noite!
— Ela não é daqui — Oliveira resmungou. — Não sabia.
— Ah, mas que noite horrível! Há um rastro de destruição por
toda a região. Quem imaginaria que nossa pequena cidade seria
acometida por um fenômeno tão raro como esse? Bom... — Matilde
tocou o queixo. — Minha velha mãezinha costuma dizer que são em
noites atípicas que as coisas mais misteriosas e as surpresas da
vida chegam até nós.
Isis arqueou as sobrancelhas, notando, com o canto dos olhos,
Oliveira fazer o mesmo gesto.
Nenhum dos dois disse nada.
— Enfim, você devia ter me avisado que receberia visitas! Eu
teria deixado mais comida preparada. — Sorrindo, Matilde se voltou
para Isis e brincou outra vez com os cabelos de Davi. — E o que
você veio fazer aqui em Itatiaiuçu, na fazenda desse homem
resmungão?
A sorte de Isis era ter aprendido a ter um pensamento rápido.
— Vim em busca de trabalho. Meu... — Ela olhou de relance
para Oliveira antes de fitar a cozinheira outra vez. — Meu primo
disse que poderia me ajudar com isso.
— Então veio ao lugar certo! Oliveira é cheio dos contatos. Vai
te ajudar em um estalar de dedos! Mas, me conte mais sobre você!
É tão bom ter mais gente aqui para conversar!
Isis respondeu qualquer coisa, colocando pães de queijo em
seu prato e evitando o olhar de Oliveira, tentando não questionar o
que o fizera criar e sustentar aquela mentira, sendo que ele nem a
conhecia.
E, mesmo enquanto ouvia as divagações de Matilde e
balançava a cabeça, fingindo estar entretida na conversa, a
sensação de ter os olhos atentos de Oliveira em sua direção
permaneceu durante todo o café da manhã.
◆◆◆

Oliveira não sabia por que diabos tinha inventado a história de


que Isis era sua prima.
Ele era um cara prático, que não gostava de enrolação.
Mas ao fitar Isis hesitando diante das perguntas de Matilde,
com os cabelos castanho-dourados caindo ao redor do rosto,
acentuando a delicadeza de cada um dos seus traços, com o ar
quase preso na garganta, ele tomou a liberdade de responder por
ela.
E, como esperava, a garota sustentou a história.
Um sinal de que, quanto menos soubessem sobre ela, melhor
era.
O rapazinho no colo dela pediu mais comida.
Isis virou a cabeça, permitindo que Oliveira capturasse seus
olhos outra vez. Na noite anterior, somente ao brilho dos
relâmpagos, os julgara castanhos comum. Mas, agora, à luz natural
da manhã cinzenta, ele podia ver que os olhos dela eram da cor do
mel puro, grandes e vigilantes.
Sim.
Vigilante era uma boa palavra.
Ou até mais do que isso.
Como um militar que vivia no interior, na região das fazendas,
sabia que muitas pessoas que ele conhecia tinham uma arma. Mas
era a primeira vez que via uma jovem mãe solo andar com uma
tesoura escondida embaixo da roupa como se sua vida dependesse
daquilo.
Primeiro, na noite anterior.
E, agora, outra vez, na mesa do café.
O instinto lhe dizia que ela não estava fazendo aquilo só por
causa da tentativa de assalto que havia sofrido na noite anterior.
Pelo que entendera, ela tinha conseguido golpear o assaltante
e fugir.
Oliveira deslizou o polegar pelo queixo quadrado.
Podia notar que Isis estava nervosa. Não demonstrava
abertamente no rosto, nos olhos, nem na linguagem corporal
enquanto ouvia tudo o que Matilde falava. Mas ele podia sentir.
Aquela garota de rosto doce e olhos cor de mel escondia algo
muito, mas muito denso.
5
Vapor na chuva

Apoiado na pilastra da varanda de entrada da casa, com os


braços cruzados, Oliveira deixou seu olhar vagar pela melancolia
trazida pela chuva. Em dias cinzentos como aquele, tudo parecia
ainda mais silencioso e doloroso.
— Seu Oliveira, por que sua prima está usando suas roupas
velhas? — a voz enxerida, mas divertida, de Matilde pairou às suas
costas.
Sem descruzar os braços ou se mover, Oliveira olhou para
Matilde por cima do ombro.
— Ela teve um contratempo com o tornado — balbuciou. —
Foi pega de surpresa, teve que se apressar e perdeu a mala no
caminho.
— Ah, pobrezinha! E por que não a levou comprar roupas
novas?
— Só se eu alugasse um bote para conseguir chegar ao centro
da cidade — Oliveira resmungou, voltando a fitar a chuva. — Essa
água não está querendo dar trégua.
— Sim, sim, o senhor tem razão. Mas sua prima não pode ficar
andando para lá e para cá com aquelas roupas. Não deve estar nem
um pouco confortável para ela.
Oliveira se limitou a dar de ombros. Se Matilde soubesse das
condições em que tinha encontrado Isis na noite passada, mudaria
de pensamento. E, bem, o que ele podia fazer? Vivia sozinho
naquela fazenda. Ainda deveria ter algumas roupas de Sofia em
armário, mas não conseguia pensar na possibilidade de tocá-las de
novo ou tirá-las de lá de dentro.
— Acho que devo ter algumas roupas no porta-malas do meu
carro — Matilde voltou a divagar, tocando o queixo. — Várias roupas
que minhas filhas e sobrinhas separaram para doar para a Igreja.
Vou ver se acho algo que sirva para a sua prima.
— Ótimo — balbuciou de novo. — Faça isso.
— E onde está a Abóbora, seu Oliveira? — Matilde perguntou,
se referindo à vira-lata que ela cuidava como se fosse uma de suas
netas. — Não a vi hoje ainda.
— Deve estar por aí, caçando coelhos.
— Depois vai molhar a casa inteira. Bom, mas deixe-me ir ver
se acho uma roupa para sua prima. Talvez eu tenha roupa de
criança também.
Agradecendo em silêncio por ter a companhia da solidão outra
vez, Oliveira encarou a vastidão de sua fazenda.
Se não estivesse chovendo o que não havia chovido nos
últimos dois meses, estaria cuidando da sua plantação orgânica.
Vendia quase toda a produção para clientes locais. Era um negócio
pequeno, que não pretendia expandir. A renda era boa e ele
pretendia continuar no ramo.
E não era só por causa do dinheiro ou pelo crescente gosto
popular em adquirir alimentos orgânicos. Recebia uma pensão do
exército pelo cumprimento honroso do seu serviço militar, mas
gostava de ter um negócio para cuidar.
Quando mexia na terra, conseguia se desligar por alguns
momentos da saudade avassaladora que sentia de Sofia.
Comprimiu os olhos.
Já fazia mais de um ano, só que...
Oliveira levou uma mão fechada ao centro do peito; aquela dor
podia ser mais sufocante do que as dores físicas da perna.
Há mais de um ano, não tinha só perdido a mulher.
Tinha perdido o filho que ela carregava no ventre.
Com um só golpe do destino, perdera a única mulher que
amara durante toda a sua vida e a família que iriam construir juntos.
Seus ouvidos atentos e treinados captaram o som de passos
que se aproximavam por trás dele.
Oliveira se virou.
Já estava pronto para resmungar para Matilde se ela não tinha
trabalho para fazer, quando se viu subitamente emudecido.
Isis não estava mais com a camiseta velha e com a calça de
elástico; peças que Oliveira descobriu que não lhe faziam jus algum.
Trajava um vestido azul, de mangas curtas e decote quadrado, que
parava um pouco acima de seus joelhos. A cor destacava o tom
branco da pele dela, o sopro dourado das mechas que se
insinuavam pelo castanho dos cabelos.
Ele não perdeu o fôlego de repente, não prendeu a respiração;
em vez disso, o ar escapou lentamente de seus lábios entreabertos,
se misturando ao sibilo do vento que agitava a copa das árvores.
Isis parecia um foco de luz em meio ao dia cinzento e fechado.
Bonita como a primeira manhã da primavera.
Ele reprimiu o pensamento na mesma hora.
Aquele não era um comportamento sensato para ele.
— Vejo que Matilde conseguiu encontrar algo que serviu em
você — Oliveira limpou a garganta, cruzando e descruzando os
braços, apoiando e desapoiando as costas da pilastra de tijolos à
vista.
— Falei que não era necessário, mas, mesmo assim ela me
deu o vestido e outras roupas. Deu algumas peças para o Davi
também. Agradeço mesmo por toda a gentileza que estão tendo
conosco.
Ele balançou a cabeça, tentando se focar em outros pontos do
vestido que não revelavam partes da pele branca ou que marcavam
as curvas do corpo dela.
— Você perdeu suas coisas durante o assalto?
— Sim. — A desolação que encheu o tom de mel dos olhos
dela comprovou para Oliveira que aquela história do assalto era
mesmo verdadeira. — Minha mochila foi levada pela enxurrada.
— E para onde você estava indo ontem à noite, com uma
criança?
Isis hesitou por um momento.
— Estava procurando um ponto de ônibus.
— Não tinha ninguém para te dar uma carona?
Ela negou com um movimento de cabeça, o rosto escondendo
muito mais do que demonstrava.
A boca de Oliveira secou.
Tinha quase certeza de que a tesoura estava escondida no
bolso que se abria na lateral do vestido.
Oliveira franziu as sobrancelhas.
Por que diabos uma garota andava com uma tesoura para
cima e para baixo, como se esperasse que alguma coisa pulasse
das sombras para atacá-la?
O vento soprou e a chuva deslizou pela borda do telhado,
respingando no ombro de Isis.
— Cuidado, ou a água da calha vai te molhar.
Oliveira esticou o braço e a puxou. O toque inesperado
pareceu pegá-la de surpresa. E algo se remexeu nele quando sua
mão áspera envolveu a pele macia e quente.
Com a proximidade súbita, percebeu que a estatura dela era
ainda mais baixa do que tinha achado da primeira vez; a cabeça de
Isis parava na altura do seu ombro, de uma forma que ele podia
aspirar com facilidade o cheiro agradável de seus cabelos.
Isis puxou o braço, quebrando o contato entre suas peles.
— Desculpa — Oliveira pigarreou baixo.
— Tudo bem. — Ela balançou a cabeça, mas ele conseguia
perceber que Isis estava incomodada. — Caso eu não esteja
abusando demais da sua hospitalidade, queria saber se você
poderia levar a mim e ao meu filho até o ponto de ônibus mais
próximo.
Oliveira arqueou as sobrancelhas.
— A chuva ainda está forte.
— Não tem problema. Não quero te atrapalhar mais.
Apesar do tom suave da voz, Oliveira captava a urgência que
lampejava no olhar dela.
— Você tem dinheiro? Não perdeu todas as suas coisas?
Isis inspirou fundo, entrelaçando as mãos em frente ao corpo.
— Dou um jeito. Não se preocupe. Já estou acostumada.
Oliveira entortou o canto esquerdo da boca. Aquela parecia
uma péssima ideia. Mas ele também não podia forçá-la a ficar ali.
Notou que o olhar de Isis se focou em um ponto na chuva.
— Acho que tem alguma coisa na cerca — ela murmurou.
Ele seguiu a direção do olhar dela e quase bufou.
— É minha cachorra. Não é a primeira vez que ela faz isso.
Oliveira disparou na chuva, correndo até a cerca. Como
suspeitava, Abóbora estava presa ali. Quis praguejar e revirar os
olhos. A vira-lata insistia em caçar coelhos mesmo embaixo da água
que o céu insistia em mandar. Ele se inclinou, segurando uma das
vigas da cerca, empurrando-a para tentar libertar Abóbora.
A vira-lata ganiu, chorosa.
— Calma, garota. Fica aí quietinha que eu vou te soltar.
— Me deixe te ajudar — escutou Isis.
Oliveira olhou por cima do ombro, sem tirar a mão da cerca. A
chuva caía como uma cortina sobre seus olhos.
— Ei, volte pra dentro!
— Você não vai conseguir soltá-la sozinho.
Isis se abaixou, erguendo uma das patas de Abóbora. Oliveira
estava prestes a dizer para ela tomar cuidado, pois a vira-lata podia
estranhá-la, mas Abóbora ficou quietinha e bem comportada.
Assim como na noite anterior, quando tinha levado Isis e Davi
para dentro de sua casa.
Cachorra maluca, ele quase praguejou.
Abóbora avançava em quase todo mundo que não conhecia.
— Pronto, está solta — Isis falou, voltando a se erguer.
Assim que se viu livre, Abóbora latiu alto e deu um impulso
para frente, trombando com as pernas de Isis. Ela perdeu o
equilíbrio. Oliveira esticou o braço para ampará-la. A terra
escorregadia fez com que Isis caísse em seus braços; o peso
delicado do corpo dela o empurrou para trás, a perna dolorida de
Oliveira vacilou, e eles foram para o chão.
Isis caiu sobre seu peito, e Oliveira manteve as mãos firmes
em volta da cintura dela, usando o próprio corpo para protegê-la.
— Você está bem? — ele sussurrou. Podia sentir o coração
dela batendo contra o seu.
Isis ergueu a cabeça; seu rosto estava tão próximo do dele
que Oliveira podia se ver refletido no mel dos olhos dela, sentir a
carícia suave de sua respiração entrecortada.
— Minha nossa, sinto muito! — ela arfou.
— Calma, tá tudo...
Como um furacão, Isis se levantou. A chuva havia molhado
todo o vestido, colando-o ao corpo dela. Aquela era uma visão para
a qual Oliveira não estava preparado e que fez a água gelada quase
se evaporar ao seu redor. Em um rompante, Isis se virou, andando
rápido na direção da casa.
Oliveira praguejou e se levantou, tentando tirar um pouco da
lama que havia sujado suas roupas. Lançou um olhar feroz para
Abóbora.
— Olha o que você aprontou.
A vira-lata balançou o rabo, como se estivesse feliz e satisfeita
por ter feito aquilo. Oliveira podia jurar que Abóbora estava sorrindo.
— Venha, vamos sair dessa chuva gelada.
Com um assovio, chamou a cachorra, que o seguiu até a
varanda da casa e se sacudiu, espalhando água para todos os
cantos.
— Santo Deus, Abóbora! — Oliveira resmungou, empurrando
a porta para entrar em sua residência.
Foi então que notou uma comoção no meio da sua sala.
Isis estava ajoelhada na frente do sofá, com os cabelos
pingando no chão, os olhos arregalados e a mão sobre a cabeça do
filho, enquanto Matilde andava de um lado para o outro, falando sem
parar.
— Que diabos está acontecendo aqui?! — perguntou,
erguendo a voz para chamar atenção.
— Ah, seu Oliveira! — Matilde encaixou as mãos no próprio
rosto. — O menininho está muito mal. Está queimando de febre!
6
Convite

As mãos de Isis tremiam enquanto tocavam a testa de Davi.


Céus, ele estava ardendo de febre!
Foi quase inevitável conter um soluço. Será que aquilo era
culpa sua, por ter saído com ele no meio da chuva? Mas não tivera
escolha. E se...
— Pegue o menino — Oliveira falou para ela, a voz grave,
direta.
Isis não soube por que, mas confiou cegamente no pedido.
Ergueu Davi nos braços enquanto Oliveira apanhava uma chave e
rumava para fora da casa. Em pouco tempo, escutou uma buzina.
Matilde abriu um guarda-chuva e a acompanhou até a
caminhonete de Oliveira, uma Silverado prata, que estava
estacionada em frente à varanda de entrada da casa.
— Venha, menina — Matilde a ajudou a chegar até o carro,
abrindo a porta para que ela entrasse com Davi.
— Obrigada.
Assim que se acomodou no banco, com seu filho no colo,
Oliveira acelerou e seguiu pelo terreno, até cruzar a porteira da
fazenda, que dava para uma estrada de terra.
A caminhonete chacoalhava sem parar; os limpadores de
para-brisa quase não venciam a água da chuva.
Isis se manteve em silêncio, pedindo a todas as forças divinas
que protegessem seu filho. Oliveira, ao seu lado, também não falou
uma só palavra durante todo o percurso.
Pararam na frente de um posto de saúde público. Oliveira
abriu um guarda-chuva e a escoltou pela calçada, com Davi, até a
entrada do posto. A chuva respingava nele. Isis tentou se espremer
mais embaixo do guarda-chuva, para que ele pudesse se abrigar
também.
— Venha mais para cá — pediu.
— Não se preocupe comigo — Oliveira ratificou daquele jeito
firme e direto. — Preocupe-se com você e com o molequezinho.
Isis não encontrou forças para contra-argumentar.
Entraram no posto, fizeram a ficha e aguardaram na sala de
espera, que estava cheia de mães e pais com crianças.
Durante a espera, vez ou outra, Isis lançava um olhar de
relance para a porta de entrada do posto. Havia dois policiais ali. A
presença deles a deixava inquieta. Sempre que eles se viravam, ela
abaixava o rosto, checando a febre de Davi.
— Está tudo bem? — Oliveira indagou.
Não, não estava. Mas como alguém dizia para outra pessoa
que não gostava e não confiava em policiais?
— Só estou muito preocupada com o meu filho — foi o que Isis
optou por responder. Porque também era verdade.
Ela agradeceu quando o nome de Davi foi chamado.
Com o filho no colo, Isis se levantou e foi até o consultório,
surpreendendo-se ao constatar que Oliveira a acompanhou até a
salinha.
A médica estava sentada atrás da mesa, fazendo uma
anotação no prontuário. Ao erguer o rosto, os olhos claríssimos dela
ganharam uma expressão muito mais vívida ao fitar Oliveira.
— Ei, olha quem apareceu por aqui!
O cumprimento de Oliveira se limitou a um gesto de cabeça.
— Oi, Leila.
Os olhos amigáveis foram de Oliveira para Isis.
— É minha prima — ele explicou. A forma natural como
Oliveira estava sustentando aquela história quase fazia Isis acreditar
que eles se conheciam há anos. — O filho dela não está bem.
— E o que ele tem?
— Febre — Isis respondeu. — Começou hoje cedo.
— Coloque ele aqui. Vamos descobrir já, já o que esse rapaz
tem.
A pediatra seguiu com o exame clínico, auscultou o coração e
os pulmões, para, então, pedir uma radiografia do tórax. Quando
tudo ficou pronto, a doutora Leila voltou para a sala de atendimento.
— Nosso mocinho está com pneumonia.
O mundo desabou em cima de Isis.
Seu lábio inferior tremeu, e ela lutou para não se sentir a pior
das mães e... De súbito, sentiu a mão de Oliveira se fechar sobre
seu ombro. O toque a pegou de surpresa.
— É muito grave, Leila? — ele indagou.
— Com o tratamento certo, vamos impedir que o quadro piore.
— O que eu preciso fazer para ele melhorar? — perguntou,
tentando ignorar a mão larga e quente apoiada em seu ombro.
— Vou prescrever antibióticos para esse meninão, tá bom?
Com a receita, você conseguirá pegar os remédios aqui no posto
mesmo.
Isis agradeceu e soltou um suspiro aliviado. Não imaginava
como faria para pagar as caixas de antibióticos se tivesse que
comprá-las. Sabia que daria um jeito. Por seu filho, faria qualquer
coisa.
— Obrigada mais uma vez, doutora — Isis repetiu o
agradecimento enquanto apanhava a receita.
Leila esticou a mão e acariciou os cabelos de Davi.
— Não precisa me agradecer. Qualquer problema, peça para o
seu primo te trazer aqui de novo.
De relance, Isis viu o sorriso largo que ela deu para Oliveira.
Bom, a quem queria enganar? Imaginava que era fácil que
qualquer mulher se afetasse por ele. Apesar dos modos fechados e
das poucas palavras que dizia, Oliveira era um homem que
chamava a atenção, com uma presença que tomava todo o
ambiente que ocupava.
A resposta de Oliveira ao sorriso foi outro cumprimento de
cabeça.
Enquanto saíam do consultório, pegavam os antibióticos e
rumavam para fora do posto de saúde, Isis deixou que seus cabelos
caíssem na frente do rosto, principalmente quando passaram perto
dos policiais.
Foi somente quando se fechou dentro da caminhonete de
Oliveira que Isis permitiu soltar o ar.
O caminho de volta para a fazenda foi permeado pelo vai-e-
vem ritmado dos limpadores de para-brisa.
— Você tem parentes por perto? — Oliveira perguntou em
algum momento, quebrando o silêncio.
— Não — Isis respondeu em um fio de voz. Céus, estava tão
exausta por causa do nervoso que parecia ter voltado de uma
clássica batalha homérica. — Somos somente meu filho e eu.
— E como você veio parar em Itatiaiuçu?
— Procurando trabalho, mas não deu certo — optou por
responder. — Daí tentei pegar um ônibus para ir para outra cidade,
mas começou a chover, eu estava com Davi na estrada, quase fui
assaltada, perdi a mochila com minhas coisas e meu dinheiro e aqui
estou.
A chuva continuava caindo sobre a estrada; as gotas tilintantes
escorriam pelos vidros da caminhonete.
Isis puxou o ar e apertou Davi com ainda mais força.
Ela já estava acostumada a viver por conta própria, mas nunca
se sentira tão sozinha na vastidão do mundo quanto naquele
momento.
— Você pode ficar.
Isis olhou para Oliveira, arqueando as sobrancelhas.
Ele limpou a garganta e firmou os olhos na estrada adiante.
— O que eu quis dizer é que você pode ficar na minha fazenda
até o rapazinho melhorar.
Isis se encolheu no banco; um misto de sentimentos revolvia
dentro da máscara que cobria seu interior.
— Não quero te importunar mais do que eu já te importunei.
— E eu por acaso falei que você está me importunando? —
ele ralhou, virando o volante para pegar a bifurcação que os levaria
de volta à fazenda. — Além disso, não é bom ficar andando por aí
com ele doente.
Droga, sabia que ele tinha razão.
Só que também entendia os perigos de aceitar o convite.
Mas, por mais que avaliasse os riscos de ficar por vários dias
— ou até por duas ou três semanas — em um mesmo lugar, Isis
sabia que deveria colocar o bem-estar de Davi em primeiro plano.
Não tinha escolha.
Não naquele momento.
Só até Davi melhorar. Só até Davi melhorar.
— Tudo bem. Posso trabalhar na fazenda enquanto isso.
— Você é minha hóspede.
— Não, não é certo. Você nem me conhece, não deve nada a
mim — Isis protestou. — Se eu vou ficar enquanto Davi se recupera,
o mais correto é trabalhar e ajudar com alguma coisa.
Oliveira bufou.
— Mulher é bicho teimoso mesmo. Bom, depois nós vemos
isso. Por enquanto, se preocupe com a saúde do rapazinho.
Isis inspirou e assentiu.
Por ora, aquela era sua única preocupação — mesmo
sabendo o quão arriscado era, para ela, ficar em um único lugar por
muito tempo.
7
Na luz do sol

Enquanto se fechava em seu escritório particular e ligava o


notebook, Oliveira se perguntou que diabos tinha feito.
Havia praticamente convidado uma desconhecida para morar
em sua casa, em suas terras, por tempo indeterminado. Logo ele,
que amava a solidão e o silêncio.
Mas o que mais poderia fazer?
Correu os dedos pelos cabelos, soltando uma respiração
cansada.
Pelo que entendera, Isis não tinha mais ninguém. Como
poderia deixar uma moça nova como ela, com uma criança pequena
e doente, sozinha e desamparada naquele fim de mundo?
Oliveira puxou a cadeira e se sentou diante do notebook.
Também não podia negar que Isis o intrigava.
Primeiro, a história de ficar carregando uma tesoura para cima
e para baixo. Depois, o jeito como tentava se esconder toda vez que
os policiais do posto de saúde se moviam ou se viravam.
Ela tentara disfarçar, mas aquilo não havia escapado dos olhos
dele.
E o deixara ainda mais encucado.
Assim que o notebook ligou, Oliveira abriu vários programas
que usava em seu trabalho. Para a maior parte das pessoas, ele
vivia da pensão do exército e da venda da produção orgânica da
fazenda. Aquilo era verdade. Eram suas maiores rendas. Contudo,
de vez em quando, o militar do seu passado, que trabalhara
infiltrado em várias missões, vinha à tona.
A chuva batia contra a janela, agitando seus pensamentos.
Ele possuía uma rede de monitoramento e contatos, e fazia
trabalhos para antigos colegas do exército, principalmente Dimitri e
Lucas, coletando informações e dados sobre pessoas. Não
trabalhava sempre com aquilo, pois preferia ter as mãos na terra do
que em um teclado.
Enquanto o programa carregava, Oliveira tamborilou os dedos
calejados sobre o tampo da mesa.
Aquilo seria complicado. Não tinha o sobrenome de Isis. Não
tinha absolutamente nada sobre ela. Nem mesmo o melhor dos
programas poderia ajudar em um quadro assim. Mas gastaria
algumas horas tentando encontrar qualquer informação a respeito
da garota.
Apenas para ver se achava alguma peça daquele quebra-
cabeça que havia caído em suas mãos.

◆◆◆

Os olhos de Isis estavam pesados quando ela despertou na


manhã seguinte. Havia acordado várias vezes durante a noite com a
tosse do filho.
Tomando cuidado para não acordar Davi, empurrou as
cobertas para o lado, foi até o banheiro, tomou um banho quente,
vestiu um conjunto que Matilde lhe dera, enfiou a tesoura no cós da
calça e voltou para o quarto, checando a febre do filho mais uma
vez.
— Graças a Deus... — murmurou ao ver que ele não estava
quente.
Ajeitando as cobertas sobre ele, Isis andou até a janela e deu
uma espiada do lado de fora. Era uma manhã bonita e brilhante,
sem resquícios da chuva que havia parado no meio da noite. O sol
raiava no céu.
O tempo estava perfeito para partir.
Isis lançou um olhar para Davi, que dormia tranquilamente.
Mas, no momento, não tinha escolhas a não ser ficar.
Em silêncio, ela deixou o quarto. A casa, mais uma vez, estava
imersa em um silêncio denso. Como uma fazenda poderia ser tão
quieta?
Isis parou no meio da sala, olhando em volta.
Havia uma estante de madeira envelhecida com poucos
objetos de decoração. O que mais chamou sua atenção foi um
porta-retrato com uma foto de uma linda mulher. Isis o tomou nas
mãos, admirando a fotografia.
— É a dona Sofia.
Isis olhou por cima do ombro, fitando Matilde.
— Ela é muito bonita.
— Você chegou a conhecer a falecida esposa do seu primo?
— Não — Isis devolveu o porta-retrato para a estante, como se
estivesse violando uma intimidade do seu anfitrião. — Não tive a
chance.
— Ah, dona Sofia era uma alma tão bondosa! — A voz de
Matilde se embargou. — Foi uma tragédia ter partido tão cedo, de
um jeito tão súbito e estranho para uma mulher jovem. Vai fazer um
ano já.
— Estranho?...
— Ninguém entende os mistérios de Deus, não é mesmo,
minha filha? Enfim, que Deus cuide da alma dela. E você? Venha
comer alguma coisa. — Matilde a guiou para a cozinha. — Como
está o menininho?
— Tossiu a noite toda, mas a febre baixou.
— Santos antibióticos. — Matilde jogou os braços para cima.
Mantendo uma conversa agradável com a mulher, Isis tomou o
café da manhã. Ao terminar, levou os pratos para a pia e começou a
lavá-los.
— Nem pensar, menina. Você é a hóspede nessa casa.
— Mas quero ajudar.
— Deixe a louça aí. Eu cuido disso.
— Então eu preparo a comida. Ou varro a casa.
Matilde apoiou as mãos na cintura, encarando-a de um jeito
que Isis achou que feixes de raio laser sairiam dos olhos dela.
— Vá aproveitar esse dia maravilhoso. Você está com cara de
quem não dormiu direito.
— Mas...
— Agora!
Rendida, Isis ergueu os braços e deixou a cozinha.
Voltou para a sala e, se sentindo um pouco perdida, decidiu
dar uma volta pelo terreno. Assim que abriu a porta, o sol banhou
seu rosto. Ah, como aquela sensação era boa.
Isis desceu a pequena escada de madeira da varanda,
absorvendo os detalhes da casa que havia se tornado seu abrigo
nos últimos dias.
Era de pedra robusta e simples, decorada com madeira
escura. Janelas quadradas se espalhavam pelas paredes,
permitindo que a luminosidade natural enchesse os cômodos. O
telhado da varanda se projetava para a frente, dando um tom
bucólico à construção.
Inspirando fundo, Isis se virou.
Deu uma boa olhada em volta, conseguindo, agora, com o
brilho do sol, assimilar verdadeiramente toda a extensão da
fazenda.
O céu azul cobria o terreno, se estendendo até o horizonte,
onde montanhas longínquas se erguiam. O ar estava limpo e puro
após a chuva, e o vento calmo agitava as folhas das árvores, que
cresciam próximas de um riacho. Ouviu o gorjeio dos pássaros, o
fraco zumbido dos insetos.
Ela quase sentiu uma paz que não costumava sentir.
Quase.
O latido animado de Abóbora cortou seus pensamentos.
— Bom dia, menina.
Com um sorriso pequeno nos lábios, Isis se abaixou e afagou
a cabeça dela, que correspondeu ao carinho com mais um latido e
um agitar frenético do rabo.
— E não é que ela gostou mesmo de você?
Isis puxou a mão e se levantou. Oliveira estava parado a dois
metros dela, carregando um balde em uma das mãos. Suor brilhava
e ondulava nos músculos dos braços despidos. Ele usava uma
regata simples, um tom entre cinza e branco, e uma calça jeans
desbotada, junto de um par de galochas nos pés. Havia um lenço
azul amarrado ao redor da testa, que lhe dava um ar ainda mais
rústico e selvagem.
Olhá-lo lhe causou um estremecimento no corpo, no sangue,
na pele, nos ossos.
E não foi medo o que sentiu.
Não foi medo que quase a fez prender o ar.
— Ela é boazinha — Isis respondeu, se sentindo tola por
quase gaguejar, enquanto apontava para a cachorra.
— É uma sem-vergonha, isso sim.
Em resposta, Abóbora abanou o rabo.
Deixando o balde no chão, Oliveira se aproximou dela; sua
presença irradiando um calor inexplicável.
— E o rapazinho?
— Está dormindo. A febre baixou.
— Ainda bem.
Oliveira se virou, fazendo um carinho na cabeça de Abóbora.
Foi só naquele momento, embaixo da luz quente do sol, que Isis
percebeu que ele era mais velho do que ela. Oliveira deveria ter
cerca de uns trinta e oito ou quarenta anos. Deveria haver uma
diferença de quinze anos entre eles. Mesmo assim, nenhum homem
mais novo que ela tinha conhecido...
Isis cortou os pensamentos na mesma hora.
— Gostaria de trabalhar ou ajudar com alguma coisa hoje.
Oliveira ergueu a cabeça, olhando-a através do brilho do sol.
— Já falei que isso não é necessário.
— Já falei que não me sinto bem em abusar da sua bondade.
Oliveira bufou e resmungou algo que Isis entendeu como
sendo “eita mulher teimosa”.
— Tudo bem. Você pode me ajudar a dar água para os
cavalos.
Ele tornou a pegar o balde e fez um gesto de cabeça para que
ela o acompanhasse até o estábulo.
No meio do caminho, ainda havia algumas poças com a água
da chuva que não se evaporara. Oliveira estendeu a mão livre, para
ajudá-la a passar por cima de uma das poças. Isis hesitou por um
momento, mas então aceitou o gesto. A textura da palma dele,
grossa, dura, cheia de calos, se registrou na pele dela. Seu pulso
galopou com o contato.
Isis tentou fixar o olhar no cabelo descorado pelo sol e na pele
bronzeada dele, para tentar diminuir a ansiedade que crescia nela
ao ter sua mão segurada daquele jeito firme, e ao mesmo tempo
suave, mas observá-lo a deixou ainda mais inquieta.
Algo naquele homem mexia com todos os seus sentidos.
Oliveira empurrou a porta do estábulo.
— O que quer que eu faça? — ela perguntou, limpando a
garganta e recolhendo a mão.
— Pegue um balde e encha de água. Tem uma torneira ali.
Depois, coloque a água naquele bebedouro.
— Certo.
— Se for muito pesado para você carregar, me chame.
Isis assentiu e ergueu o rosto, girando nos calcanhares,
prestes a falar que já tinha trabalhado carregando coisas mais
pesadas para sustentar a si mesma e ao filho, quando se deparou
com o rosto de Oliveira muito perto do seu.
E, de uma forma quase magnética, ela olhou para a boca dele.
E, em resposta, ele baixou o rosto, olhando para a boca dela.
— Ora, ora. Uma raridade aconteceu nestas terras! — Uma
voz simpática e animada pairou na entrada do estábulo. — O senhor
está com visita, seu Oliveira?
Isis deu um passo para trás olhou por cima do ombro,
captando a imagem de um moço que não deveria ter mais do que
trinta anos. Vestia uma camisa xadrez, jeans, botinas e um chapéu
para se proteger do sol.
— Esta é minha prima Isis. Isis, esse é Rodrigo, o veterinário
que cuida dos meus cavalos.
Por respeito e educação, mesmo desejando que o mínimo de
pessoas soubesse sobre sua estadia ali na fazenda, Isis se virou
para o veterinário e o cumprimentou.
— Prazer em conhecê-lo.
Rodrigo arregalou os olhos, fitando Isis e tirando o chapéu.
— O prazer é todo meu. Seu Oliveira, o senhor não falou que
tinha uma prima tão cheia das belezas.
Uma respiração chiada saiu de Oliveira.
— Mais respeito, homem.
— Só tô comentando que Deus caprichou na sua prima. — Ele
deu um sorriso simpático para Isis. — Foi generoso com a família. O
que faltou no senhor, sobrou nela.
— Se não quiser perder as bolas, homem, vai trabalhar —
Oliveira rosnou para o veterinário.
— Espia só que primo ciumento e possessivo. — Rodrigo
assoviou e voltou o chapéu para a cabeça. — Prazer em conhecê-
la, dona Isis. Tô indo agora mesmo examinar os cavalos, seu
Oliveira.
Isis fez um aceno de cabeça para o veterinário e, assim que
ele se afastou, pegou o balde e foi cuidar de suas próprias tarefas.
Gostava de trabalhar.
Era uma forma de aquietar os pensamentos, de ganhar um
dinheiro para que ela e seu filho continuassem em movimento, e
jamais ficassem por muito tempo em um mesmo lugar.
Porque não era seguro.
Porque nunca seria seguro.
E, enquanto enchia o balde com água e refazia todas as suas
estratégias, captou o toque do olhar de Oliveira em sua direção.
Um olhar que sentiu o tempo todo ardendo em suas costas.
8
Tão perto

Vinte anos atrás

Ajeitando o fuzil M16 na bandoleira, Oliveira se preparou para


assumir seu posto de patrulha.
Recentemente, havia sido convocado para assumir um lugar
na base militar da fronteira, em uma região remota da Amazônia,
onde as Forças Armadas atuavam desde os anos oitenta, para
proteger a população que habitava aquela faixa e, ao mesmo tempo,
reduzir o risco de ocupação estrangeira.
Ele fazia parte do 1º Pelotão Especial de Fronteira, colocado
de forma estratégica em uma terra indígena no Amazonas; era um
ponto de confluência entre os rios Uaupés e Papuri, na divisa com a
Colômbia.
O Pelotão tinha, como missão, proteger e guarnecer a
fronteira. Como estavam em terras indígenas, a venda e consumo
de bebidas alcoólicas não eram permitidas. A reserva era protegida
e vigiada. Os soldados também tinham que ficar atentos a qualquer
tentativa de tráfico de drogas que bandidos levavam pela rota da
fronteira.
O rádio comunicador de Oliveira chiou.
— Pronto — falou assim que o apanhou.
— Oliveira, estamos com um princípio de incêndio no lado
leste da reserva — um de seus colegas avisou através do
comunicador. — Precisamos de ajuda. Tudo indica que o incêndio
foi criminoso.
— Algum responsável capturado?
— Não. Mas acreditam que isso é obra do Peixoto.
— Sem provas?
— Sem provas.
Oliveira bufou.
Às vezes, o maior problema não eram os estrangeiros ou os
traficantes, e sim os latifundiários e os chamados “coronéis” da
região.
Homens como Joaquim José Peixoto.
— Já estou indo até aí — Oliveira falou, guardando o rádio
comunicador.
Homens que não se importavam nem um pouco em passar por
cima de tudo e de todos para conquistar o que desejavam.

◆◆◆

Atualmente

Perto do por do sol, a perna de Oliveira latejava.


Ele se arrastou para dentro de sua casa e se jogou no sofá,
resmungando de dor. Teria que se entupir de analgésicos para ficar
em pé até a hora do jantar.
O preço de algumas missões militares, às vezes, durava toda
uma vida e um pouco mais.
— Você está bem? — Isis perguntou, apoiando as mãos no
braço do sofá. Ela havia soltado os cabelos depois de ajudá-lo com
alguns serviços, e o cheiro que vinha dos fios dourados e castanhos
atiçava e brincava com os sentidos dele.
— É minha perna.
O rosto dela se encheu de preocupação.
— Você se machucou hoje?
— Não — ele grunhiu ao sentir outra fisgada. — É coisa
antiga. De vez em quando, a dor volta.
Para sua surpresa, Isis se ajoelhou em frente ao sofá e esticou
as mãos, tocando suas coxas por cima do jeans. Uma onda brusca
de calor se espalhou nele. Por um momento, Oliveira achou que
aquele toque delicado seria capaz de dissolver o tecido da sua
calça.
— Você faz fisioterapia? — Isis indagou.
— Deixei isso de lado há muito tempo.
— Seria bom voltar. Dá para sentir como seus músculos estão
tensos. A fisioterapia irá intervir na redução da tensão muscular,
com o ajuste postural, alongamentos, técnicas de relaxamento
muscular e até mesmo fortalecimento de músculos vizinhos. Isto
porque quando existem músculos que não estão funcionando
corretamente, outros próximos a eles terão que trabalhar mais. — A
mão de Isis continuou passando por sua perna, como se estivesse
fazendo uma análise minuciosa. — Assim, quando se tem todos os
músculos trabalhando de forma equilibrada, nenhum deles será
sobrecarregado. Mas, para saber certinho o que é preciso fazer,
você teria que avaliar o músculo, a postura e a biomecânica.
Oliveira estreitou os olhos, ligeiramente surpreso.
— Como você sabe tudo isso?
— Eu cheguei a passar em fisioterapia e até comecei a
faculdade, mas acabei parando antes de concluir o segundo ano —
Isis contou. — O ideal é você ir até uma clínica de fisioterapia, com
gente especializada, mas posso te ajudar a reduzir um pouco a
tensão muscular.
Oliveira percebeu que era a primeira vez que ela lhe dizia algo
sobre si mesma. Sua pesquisa, como imaginara, não havia
resultado em nada. Não tinha encontrado uma só informação que
dissesse quem era aquela garota que uma noite atípica de ventos
furiosos colocara em seu caminho.
— E por que não concluiu? Por causa do seu filho? Você
engravidou enquanto estava estudando?
Ela baixou os olhos, evitando o contato visual.
— Davi foi um dos motivos.
Um dos motivos.
Oliveira assimilou a informação. Tinha mais coisa naquela
história.
Ele estava prestes a perguntar mais coisas, quando se calou
subitamente, percebendo as palavras enroladas na garganta e na
língua ao sentir as mãos dela subindo e descendo por sua coxa,
passando pelo joelho, dobrando e erguendo sua perna, fazendo
sabe-se lá qual técnica.
O toque dela, cuidadoso e firme, o emudeceu.
Oliveira inclinou a cabeça, tentando se concentrar nas vigas do
teto, e não nas sensações que nada tinham a ver com alívio que
aquelas mãozinhas estavam causando em seu corpo.
Desde a perda de Sofia, não tivera mais ninguém assim... Tão
perto.
Fazia mais de um ano que ele não beijava, tocava ou se
deitava com uma mulher.
E não por falta de oportunidade.
Apenas...
Oliveira grunhiu baixo.
Diabos, ele não conseguia respirar.
— Espero que esteja ajudando, e não piorando sua dor — Isis
murmurou, e a voz dela, em comunhão com o toque dos dedos em
sua coxa, fez o ar ao redor dele quase queimar. — Por falta de
prática, posso ter perdido um pouco o jeito.
Oliveira olhou para ela no instante em que Isis ergueu o rosto.
O suspiro final do por do sol brilhava diretamente nos olhos dela,
cobrindo o tom de mel com chamas douradas e escarlates.
— Você tem bastante jeito — ele falou, a voz saindo mais
rouca e mais baixa do que o normal.
— Quer que eu repita os movimentos? — Isis perguntou, a
mão pairando acima da perna dele outra vez.
Com o ar quase entrando em combustão dentro do próprio
peito, Oliveira segurou e afastou gentilmente a mão dela.
— Não é necessário. Obrigado. Vou tomar um banho.
Ele se levantou, virando as costas para ela, mas não antes de
ter um último vislumbre do rosto de Isis; um borrão delicado de luz e
cor que o fez sentir algo forte no sangue, um desespero quase
avassalador, inominável, que o atordoou e o acompanhou até as
horas mais escuras da noite.
9
Beleza rústica

Para Oliveira, domingo era seu dia preferido da semana.


Principalmente se era acompanhado de uma manhã ensolarada e
de um céu azul limpo e brilhante.
Nos domingos, não havia funcionários na fazenda. Não havia
entregas. Não havia gente circulando pelas suas terras. Podia
aproveitar a paz e o silêncio que tanto apreciava.
Mas, assim que terminou de tomar seu café da manhã
sozinho, percebeu que uma parte sua havia estranhado o silêncio
que deixara de ser comum naquela cozinha.
Oliveira fitou o relógio no alto da parede.
Isis ainda estava dormindo; e ele acreditava que ela dormiria
pelo resto da manhã. Tinha trabalhado sem parar no dia anterior. E,
durante a noite, a ouvira se levantar e andar pela casa várias vezes,
tentando acalmar Davi, que tivera um mal-estar por conta dos
antibióticos.
Bom, ela precisava descansar. E ele iria aproveitar a próxima
hora para mexer um pouco na terra e depois se acomodaria na sala,
onde assistiria à final da Copa América.
Antes que ele tivesse a chance a de apanhar as ferramentas,
escutou o celular tocar.
Oliveira franziu o cenho ao ver o número de Lucas no visor.
— Fala — disse ao atender. — Algum problema, Lucas?
— Dimitri e eu estamos aqui fora. Você pode abrir a porteira?
Ele piscou, confuso.
— O que vocês estão fazendo aqui?
— Oliveira, combinamos de assistir ao jogo juntos, esqueceu?
Dimitri e eu viemos de outra cidade — Lucas deu uma risada
divertida. — Não nos deixe plantados aqui fora.
Oliveira sentiu vontade de estapear a própria cara.
Às vezes, no calor do momento, ele se deixava levar e se
enfiava em situações que exigiriam interação social.
Depois, inevitavelmente, se arrependia.
Mas não ia mandar os caras embora. Eles tinham vindo de
outra cidade. E eram gente boa. Conhecia Dimitri e Lucas desde
que eles eram recrutas em seu pelotão.
— Esperem aí — Oliveira falou. — Vou abrir a porteira.
Voltou para o corredor, encostou a porta do quarto de Isis para
que nenhum barulho atrapalhasse o sono dela, apanhou as chaves,
deixou a casa e rumou até a porteira.
O sol da manhã aquecia seus braços.
Oliveira deixou que Lucas e Dimitri entrassem com o carro e,
assim que estacionaram, guiou-os para dentro de casa. Os dois
antigos companheiros de exército, que eram quase dez anos mais
novo do que ele, se acomodaram sem cerimônia no sofá da sala,
espalhando pacotes de amendoim e garrafas de cerveja.
— Pega uma aí, Oliveira — Lucas estendeu uma garrafa para
ele.
— Obrigado. — Oliveira sorveu um gole da cerveja e fitou
Dimitri. — E sua namorada? Não quis vir com você?
— Hadassa está ensaiando exaustivamente para a próxima
apresentação que fará com o estúdio de dança. Ela aproveita todo o
tempo livre para treinar e praticar.
Oliveira anuiu, acomodando-se no sofá e ligando a televisão.
Ainda se surpreendia quando pensava que Dimitri havia caído
de amores e engatado um relacionamento sério com Hadassa
Antonelli, filha do maior advogado de Belo Horizonte; um homem
por quem Dimitri nutrira rancor por muitos anos.
Bom, a vida é uma caixinha de surpresas mesmo.
Por algum motivo, o pensamento o fez olhar por cima do
ombro, na direção do corredor que levava para o quarto de
hóspedes.
— O jogo vai começar! — Lucas vibrou, animado.
Os primeiros vinte minutos foram acompanhados de
exclamações, palavrões e urros.
Lucas levou um punhado de amendoim para a boca.
— Ei, tem uma miniatura de gente no meio da sala.
Oliveira olhou para o lado. Davi estava em pé ali. Como tinha
descido da cama e chegado até a sala?
— É o filho da minha prima.
Dimitri arqueou as sobrancelhas.
— Prima?
Oliveira deu de ombros. Podia enganar Itatiaiuçu inteira, mas
era impossível esconder algo de Dimitri Alencar.
— Longa história. Fica para outra hora — foi tudo o que
respondeu. — Mas, para todos os efeitos, ela é minha prima.
Levantando-se do sofá, Oliveira apanhou Davi no colo e o
levou de volta para o quarto de Isis. Entrou no cômodo da forma
mais silenciosa que conseguiu. Notou que Abóbora dormia no chão
ao lado da cama, como se estivesse ali para vigiar o quarto. A
respiração de Isis era tênue, tranquila. Seus cílios caíam sobre as
maçãs do rosto, e os cabelos se espalhavam em ondas pelo
travesseiro.
Diabos, como ela era bonita.
Até mesmo enquanto dormia.
Sentindo a pulsação acelerar mais do que deveria, ele engoliu
em seco, colocou Davi na cama e saiu do quarto com o ar chiando
no peito.
Ao retornar para a sala, encontrou Lucas com os dedos
enterrados nos cabelos e os olhos arregalados.
— Porra, Oliveira, você perdeu um puta pênalti!
Oliveira praguejou, voltando a se sentar no sofá. Merda.
Adorava ver uma cobrança de pênalti.
Lucas movimentou a cabeça.
— A miniatura de gente voltou.
Oliveira piscou, estarrecido, ao ver que o molequezinho de três
anos estava ali na sala outra vez. Bufando, se levantou e pegou
Davi no colo.
— Tá com fome?
Ele balançou a cabeça, negando.
— Acho que você ainda deve estar com mal-estar por causa
dos remédios, porque nunca te vi negando comida — murmurou
para si mesmo. — O que você quer?
Davi apontou para a televisão.
— Desenho.
— Ih, rapazinho, estamos assistindo a um jogo.
Os olhos de Davi aumentaram de tamanho e tremularam.
— Desenho.
— Ei, coloca ele aqui do meu lado — Lucas falou, batendo no
sofá e pegando o celular. — Ele pode assistir os desenhos no meu
celular. Vou achar um aqui, só um momento e...
— Ah, que passe sensacional! — Dimitri vibrou.
Lucas ergueu o rosto.
— Eu perdi! Merda, eu perdi!
— Ele falou palavla feia — Davi apontou para Lucas,
arrancando um sorriso contido de Oliveira.
Amuado, Lucas passou o celular com o desenho para Davi.
Oliveira ajeitou o menino no sofá, e seu olhar ficou se alternando
entre ele e o jogo.
Quando se distraiu com a cobrança de uma falta, Davi bufou.
— Desenho está pequeno. — E jogou o celular no chão.
— Meu iPhone — a voz de Lucas deu um falsete dolorido.
Oliveira captou um riso de canto na boca de Dimitri.
Davi cutucou seu ombro.
— Quero a mamãe.
— Sua mãe está dormindo. Deixe-a descansar um pouco.
— Mas quero a mamãe.
Oliveira mordeu a parte interna da bochecha. Isis deveria estar
exausta e precisava dormir mais um pouco. De súbito, uma ideia
estalou em sua cabeça.
— Você gosta de cavalo, rapazinho?
— Gosto.
— Quer ver um cavalo?
Os olhos de Davi brilharam de empolgação. Oliveira tomou
aquilo como um “sim”.
Pegando-o no colo, ele se levantou mais uma vez e se dirigiu
para a porta principal da casa, lançando um olhar para Dimitri e
Lucas.
— Depois vocês me contam qual foi o resultado do jogo.

◆◆◆

Tremores rugiram nos sonhos de Isis, fazendo-a se revirar na


cama.
Ali, presa entre o vale do sono e do despertar, ela viu a imensa
casa branca, com grama impecável e uma fachada imponente. De
repente, ela estava lá dentro, encarando os cantos afiados, as
superfícies duras e frias, as cores em tons pastéis.
Música vinha do lado de fora. Todos estavam do lado de fora.
O lado de dentro se encontrava vazio.
Em seu sono, Isis virou a cabeça para os lados. Não queria
entrar naquela casa. Não queria dar mais nenhum passo para
dentro.
Mas a porta se abriu, uma porta alta e luxuosa, feita sob
encomenda, e Isis se viu atravessando um saguão de mármore
branco e frio. O lustre de cristal, no centro do cômodo amplo,
lançava um brilho gelado em sua pele.
E ela continuou atravessando o saguão, o corredor largo, até
parar diante de outra porta entreaberta.
“Não abra”, queria dizer para a eu do sonho. “Não abra”.
Só que as dobradiças rangeram enquanto a porta se abria.
E agora era tarde demais.
Tarde demais.
Isis arquejou e abriu os olhos, sentando-se contra o colchão
enquanto o coração batia alucinado contra as paredes do peito.
Ainda assustada por conta do sonho, olhou em volta, tateou a
cama, e seu desespero aumentou ao não encontrar o filho ali.
— Davi? Davi?
Cambaleando sobre as próprias pernas, Isis saltou da cama,
quase pisando acidentalmente no rabo de Abóbora. A vira-lata se
levantou junto dela, acompanhando-a de um lado para o outro.
— Davi? Davi?
Sua respiração já estava entrecortada, ofegante.
Isis deixou o quarto, andando rápido pelo corredor, até chegar
à sala. Notou que havia dois homens sentados no sofá, assistindo a
uma partida de futebol. Nenhum deles era Oliveira.
Seu coração bateu ainda mais rápido e ansioso.
— Onde...
Um deles, de expressão mais séria, apontou para a porta da
sala.
— Lá fora.
Isis mal conseguiu agradecê-lo; disparou para fora da casa, o
sol pulsante da manhã brilhando contra seus olhos. Ergueu a mão
para proteger o rosto enquanto descia a pequena escadinha de
madeira da varanda.
Assim que se acostumou com a luminosidade, ela abaixou a
mão, olhando em volta, e então viu.
Oliveira havia tirado um cavalo do estábulo e o selado. Davi
estava radiante sobre a sela; os raios do sol deixavam seus cabelos
castanhos com um tom dourado gracioso. Oliveira se mantinha ao
lado do animal o tempo todo, deixando uma mão apoiada contra as
costas de Davi.
E Davi sorria.
Sorria como uma criança deveria sorrir.
E, ao lado dele, sob o beijo do sol, os lábios sempre firmes de
Oliveira também se curvavam para cima, aliviando as linhas
constantemente rígidas de seu semblante.
— A mamãe!
Oliveira virou o rosto, e Isis quase prendeu o ar ao ter o olhar
capturado pelos olhos dele.
Teve que se controlar para não levar uma mão ao peito.
Tudo naquele homem vibrava em uma beleza rústica e
intensa.
— Então é aqui que você está — Isis falou, limpando a
garganta e se aproximando deles.
Oliveira fez um gesto de cabeça para ela.
— Tentei distraí-lo um pouco para que você pudesse dormir.
— Obrigada. — Ela esticou a mão e fez um carinho nos
cabelos de Davi. — Espero que ele não tenha te atrapalhado.
— Não atrapalhou.
— Vi que você está com visita.
— Aqueles dois já são da casa — Oliveira resmungou em um
tom que era para ter soado irritado, mas que, aos ouvidos de Isis, foi
costurado por notas que carregavam uma amizade antiga.
Isis esticou os braços, gesticulando para que Davi viesse em
seu colo, mas o filho balançou a cabeça.
— Eu gosto do cavalo!
— Percebi. Mas você precisa comer. Aposto que ainda não
comeu nada, não é?
— Ele não quis — Oliveira respondeu.
— Agora eu quelo!
Isis sorriu, se permitindo ser invadida por uma onda de alívio.
Davi parecia a cada dia mais recuperado. Os antibióticos faziam
efeito. E algo nela, algo que somente uma mãe poderia sentir, tinha
quase certeza de que o ambiente da fazenda também estava sendo
responsável por dar vida e cor ao rosto do filho.
Do lado de dentro da casa, ela escutou os dois homens
gritarem algum tipo de comemoração.
Oliveira arqueou as sobrancelhas.
— Acho que deve ter saído um gol.
— Minha nossa, o Davi atrapalhou o seu jogo?
— Já disse que ele não me atrapalhou — replicou, pegando
Davi no colo e o entregando para Isis. — Vou levar o cavalo para o
estábulo.
Isis assentiu e o agradeceu, observando Oliveira se afastar
com o animal, o sol batendo em seus ombros largos, em suas
costas marcantes.
Outra vez, ela quase sentiu que o ar poderia entrar em
combustão espontânea ao seu redor.
— Mamãe, a gente vai ficar aqui para sempre?
A pergunta causou uma pressão dolorida em seu peito.
— Não, meu amor — sussurrou baixinho. — Não podemos.
Enquanto caminhava de volta para casa, Isis virou o rosto,
tendo a impressão de ver um movimento entre as árvores e as
plantações. Como se houvesse mais alguém ali.
O ritmo de seus passos diminuiu, e foi só naquele momento
que ela sentiu os pés descalços em contato com a grama.
Isis segurou Davi com mais força, se aproximando com
cuidado, olhando em volta, procurando pelo que achara que tinha
visto.
Mas não havia mais nada ali.
10
Gesto de gratidão

Cinco anos atrás

Ao ouvir a chave virando na fechadura, Isis passou os dedos


pelos cabelos e foi até a sala, ao encontro da tia que havia acabado
de chegar do trabalho.
— Boa noite! — cumprimentou a tia com um sorriso no rosto.
A mulher a analisou de cima a baixo.
— Que merda você aprontou agora, Isis?
O sorriso dela se apagou.
— Não aprontei nada. Apenas preparei o jantar para
comermos juntas. Hoje sai o resultado do vestibular, e tenho quase
certeza de que vou passar, daí queria comemorar com você e...
— Vou sair com o pessoal do trabalho daqui a pouco. — A tia
jogou a bolsa sobre o sofá e caminhou até a cozinha, os saltos
clicando no chão. — Minha nossa, que bagunça foi essa que você
fez aqui?
Isis olhou em volta. Havia deixado tudo impecável, com
exceção de algumas louças que ainda estavam na pia para serem
lavadas.
— Tudo bem. Posso congelar e comemos juntas no almoço
amanhã...
— Quando você vai entender, Isis? Já é uma moça bem
crescida que ainda está vivendo embaixo do meu teto, às minhas
custas, folgada do mesmo jeito que sua mãe era. — A tia se voltou
para ela. — Não quero nada disso. Não quero fingir que somos uma
família feliz.
Isis abriu a boca.
Aquelas acusações eram injustas. Quando não estava fazendo
algum bico para ajudar nas contas, ela sempre cuidava dos serviços
da casa.
Mas não jogou aquilo na cara da tia.
Estava cansada demais.
Rendida, Isis deixou os braços caírem ao lado do corpo.
— O que eu fiz para você? Por que você ainda me trata assim,
tia?
— Porque você é um peso. Porque seu pai e sua mãe eram
dois viciados. E minha irmã decidiu ter uma overdose com o marido
e me deixou você para criar. Para fazer a merda do trabalho que era
dela e que só atrapalhou minha vida — a mulher esbravejou e
apontou com o dedo para a cozinha. — Agora limpe essa bagunça.
Isis se encolheu. As palavras da tia doeram muito mais do que
se ela houvesse simplesmente enfiado uma faca em seu peito. Mas
não havia nada de novo no comportamento da mulher que a criara
desde que ela era uma criança.
Enquanto terminava de lavar a louça e guardava a comida, Isis
deixou que um suspiro trêmulo saísse de seus lábios, marejando os
olhos, afogando o ar.
Ela nunca havia tido uma família de verdade.
Tentando não se abalar pelas palavras duras que havia
escutado sua vida inteira, Isis voltou para o quarto e fechou a porta,
sentando-se na beirada da cama.
As lágrimas ameaçavam cair.
Mas ela não choraria.
Muito menos por alguém que nunca se importara de verdade
com ela.
Apanhou o celular, acessando a página de resultados do
vestibular, e quase soltou um grito de animação quando o site
carregou.
— Minha nossa! Minha nossa!
Tinha passado em uma universidade pública. Poderia começar
a cursar fisioterapia no semestre seguinte. Em outra cidade. Longe
daquela casa.
Seu coração palpitou com mais força.
Apertando o celular contra o peito, Isis se jogou contra o
colchão e encarou o teto do quarto, imaginando que fitava a
imensidão estrelada do céu.
Iria erguer a cabeça e recomeçar.
Uma nova fase. Uma nova vida.
E ela poderia finalmente encontrar um lugar aonde
verdadeiramente pertenceria.

◆◆◆

Atualmente

As cores poentes do entardecer brilhavam sobre o terreno da


fazenda enquanto Isis observava Oliveira guiar Dimitri e Lucas — se
havia entendido corretamente os nomes deles — para a própria
caminhonete.
O motor do carro de Lucas estava engasgando, e eles haviam
literalmente empurrado o veículo pela estrada, até a casa de um
conhecido de Oliveira que entendia de mecânica.
— Vou só levar os rapazes até lá e aguardar com eles o
conserto do carro. Não deve demorar — Oliveira falou e, então,
tateou a mesinha da sala, até encontrar um papel e uma caneta,
onde escreveu algo. — Aqui está o número do meu celular.
Qualquer coisa, me liga, tá bom?
Isis ainda estava segurando o papelzinho nas mãos quando
Oliveira partiu com Dimitri e Lucas.
De repente, uma ideia encheu sua cabeça.
Não entendia nada de mecânica, mas conseguia calcular que
ele ficaria um tempinho fora de casa.
Ótimo.
Isis decidiu que usaria aquele tempo para preparar algo para
Oliveira, em agradecimento por ele ter cuidado de Davi enquanto ela
dormia.
Seu filho tinha passado o dia inteiro falando do cavalo.
Ela não se lembrava de ver o menino tão empolgado com
alguma coisa nos últimos tempos. Mas, afinal, como poderia?
Nunca ficamos muito tempo em um mesmo lugar. Nunca
temos tempo para nos divertir ou para ele poder crescer e brincar
como todas as outras crianças.
Empurrando o pensamento deprimente para o lado, Isis
arregaçou as mangas e começou a trabalhar.
Depois de dar os antibióticos a Davi, foi até a cozinha,
apanhando utensílios e mantimentos, se surpreendo consigo
mesma por estar familiarizada com o local onde cada coisa ficava.
Passava tanto tempo ali conversando com Matilde que sentia que
conhecia cada canto da cozinha mesmo com os olhos fechados.
Após checar os armários e a geladeira, decidiu que prepararia
uma massa com carne para o jantar. Algo rápido e prático. Olhou
por cima do ombro, mirando o relógio no alto da parede. Não sabia
quanto tempo teria até Oliveira voltar.
Quando o entardecer foi engolido e a noite tranquila matizou o
céu, as panelas borbulhavam no fogo.
— Cheiro bom, mamãe.
— Obrigada, meu amor.
Isis se virou, correndo as mãos pelos potes de tempero. Onde
estava o manjericão? Tocou o queixo. Será que havia manjericão
fresco ali? Ora, estava em uma fazenda. Tinha que ter. E a erva
fresca deixaria a comida muito mais saborosa do que a erva
desidratada.
Certo. Isis apoiou as mãos na cintura. Agora tenho que
encontrar o manjericão, e depois...
— O que você está fazendo?
Isis se virou, sendo pega de surpresa pela voz grave.
Olhar para Oliveira, parado na entrada da cozinha, com seu
jeans surrado e sua camisa xadrez aberta, fez seu coração galopar
de um jeito alucinado no peito. Discretamente, Isis se segurou na
borda da pia. Tinha a impressão de que as pernas poderiam falhar a
qualquer momento.
— Eu... Eu tomei a liberdade de preparar um jantar para nós...
Para mim, para você e para o Davi. — De repente, ela sentiu as
palavras enrolarem na língua, uma ansiedade incomum subir pelas
veias. — Eu queria te agradecer por tudo o que você tem feito por
mim e pelo meu filho. E, principalmente, pelo que você fez hoje.
Em um espaço de tempo que pareceu durar a eternidade de
uma batida de coração, seus olhares se encontraram e se
sustentaram.
E então, sem dizer mais nada, Oliveira se virou e saiu da
cozinha.
Isis soltou um grunhido de frustração.
Foi inevitável se recordar das palavras cuspidas da tia que a
criara.
“Porque você é um peso. Porque seu pai e sua mãe eram dois
viciados. E minha irmã decidiu ter uma overdose com o marido e me
deixou você para criar. Para fazer a merda do trabalho que era dela
e que só atrapalhou minha vida”.
Será que tinha feito alguma coisa errada? Será que ele a
achara intrometida demais? Será que...
Antes que pudesse completar o pensamento, Oliveira retornou
para a cozinha. Nas mãos, segurava uma garrafa de vinho.
— Fui pegar na adega — ele explicou, colocando a garrafa em
cima da mesa. Andou até o armário e pegou duas taças. — Está
numa boa temperatura e vai cair bem com a comida. Me
acompanha em uma taça?
Algo novo, intenso e palpitante encheu o coração de Isis,
manchando seus lábios com um sorriso único.
— É claro que sim.
11
Nomes e sorrisos

— Você cozinha muito bem — Oliveira elogiou, perdendo as


contas de quantas vezes já havia repetido a comida.
Isis balançou a cabeça.
— E olha que eu nem tenho muita prática na cozinha...
— Não é o que o sabor da comida indica.
O rosto dela se iluminou outra vez, fazendo Oliveira desviar o
olhar e encher sua taça.
Naquela noite, pela primeira vez desde que Isis aparecera em
sua fazenda, ela estava com o semblante mais leve, como se
houvesse se permitido tirar o misterioso peso que carregava nos
ombros. A todo momento dava um risinho baixo ou esboçava a
curva de um sorriso.
Mas o primeiro sorriso que ela havia dado quando ele lhe
oferecera o vinho...
Diabos, aquilo tinha estremecido todos os seus ossos.
Oliveira levou mais uma garfada da comida à boca e ingeriu
outro gole de vinho logo em seguida, observando Isis alternar entre
comer e alimentar o filho.
— Só mais uma colherada, Davi.
— Não quero.
— Vamos, Davi, você tem que comer mais um pouco, para
ficar forte e se recuperar.
— Sua mãe tem razão, rapazinho — Oliveira interviu. — Se
você não comer, não vai conseguir passear no cavalo.
O menino olhou para Oliveira.
Oliveira sustentou o olhar com ele.
E então, Davi apontou para a colher que Isis segurava.
— Tá bom, mamãe.
Isis lhe lançou um olhar de relance, murmurando “obrigada” de
forma silenciosa e satisfeita.
A pulsação dele acelerou.
Admirá-la causou uma contração em seu peito e o puxou para
a conversa que havia tido com Dimitri e Lucas algumas horas atrás,
enquanto esperavam o conserto do carro.
Lucas fizera uma provocação a respeito de sua “prima”.
Oliveira o advertira com um duro e incisivo olhar.
Lucas insistira e perguntara se não havia nada rolando entre
eles.
Ao seu modo, Oliveira resmungou para os dois que era um
homem viúvo e que respeitava o luto.
E Dimitri, que só abria a boca quando achava que tinha algo
que valia a pena para falar, respondera logo em seguida: “Sofia
sempre foi uma mulher incrível, e o que vocês dois tiveram foi ainda
mais incrível. Eu a conheci. Tenho certeza de que o que ela mais
desejaria agora era que você fosse feliz”.
Aquelas palavras ainda estavam martelando na cabeça dele.
— Está tudo bem? — Isis perguntou, trazendo-o para o
presente. — Não gostou de algum tempero?
Oliveira balançou a cabeça.
— Tudo está ótimo. Quer mais vinho?
— Não — Isis soltou um risinho delicado que arrepiou todo o
corpo dele. — Já bebi demais. Não estou acostumada. Vou acabar
te dando mais trabalho ainda.
— Você não me dá trabalho nenhum.
Suas palavras foram firmes, diretas.
Isis piscou demoradamente, entreabrindo os lábios delicados;
Oliveira imaginou se a boca dela estaria com o mesmo gosto do
vinho que ele sorvia sem pressa.
Davi bocejou e esfregou os olhinhos.
— A bateria está acabando aqui — Oliveira comentou,
passando a mão pelos cabelos do menino.
Isis se inclinou na direção do filho.
— Acho que está na hora de dormir, não é?
Para surpresa de Oliveira, Davi não protestou. Esticou os
bracinhos, deixando que Isis o pegasse no colo.
Eles caminharam em silêncio pelo corredor; uma quietude que
Oliveira achou reconfortante e, ao mesmo tempo, capaz de roubar
todo o ar. Principalmente quando o ar estava marcado pelo perfume
dela.
Isis se virou, olhando-o por debaixo dos cílios longos. Davi
estava com a cabeça encostada em seu ombro e os olhos fechados.
— Vou colocar esse meninão na cama, tá bom? Já volto.
Oliveira ficou parado no corredor, o coração batendo no peito,
rápido e furioso, enquanto a esperava colocar o filho para dormir.
Diabos, por que toda sua pele formigava?
Fazia tanto tempo... Tanto tempo desde a última vez em que
sentira algo como aquilo.
Quase se sentiu culpado.
Mas as palavras de Dimitri voltaram e caíram como um
consolo em sua consciência e em seu luto.
Talvez...
— Prontinho. — Isis encostou a porta do quarto; o cheiro doce
de seu perfume invadiu o corredor outra vez. — Ele apagou. Espero
que durma a noite toda.
Ali, à meia luz do corredor, ela parecia ter saído de um sonho
etéreo.
Oliveira limpou a garganta mais de uma vez.
— O jantar estava muito bom.
— Mesmo? — Ela abriu outro daqueles sorrisos que quase o
fez cair das próprias pernas. — Fico muito feliz que você tenha
gostado. Foi uma forma que encontrei de te agradecer por tudo o
que tem feito por mim e pelo meu filho. A vida não é muito fácil para
nós dois.
— Por quê?
Um efêmero lampejo de hesitação passou pelos olhos dela.
Isis suspirou.
— Acho que é minha sina.
— Do que você está fugindo? — a pergunta que pulsava em
sua língua escorregou para fora. — Não preciso ser nenhum gênio
para saber que você está escondendo alguma coisa.
Isis deu um passo para trás, as costas colidindo com a parede.
— Também tem coisas que não sei sobre você. Qual é o seu
nome?
Oliveira arqueou as sobrancelhas.
— Por que está mudando de assunto?
— É só uma curiosidade. — O peito de Isis subia e descia
embaixo da blusa, e ele teve que fazer um esforço colossal para
manter os olhos apenas no rosto dela. — Todo mundo te chama de
Oliveira. Mas esse é seu sobrenome, certo? Queria saber qual é o
seu primeiro nome.
Oliveira se inclinou na direção dela. Seu corpo grande deixava
o corpo de Isis ainda mais pequeno. Ela prendeu o ar, e ele quase
fez o mesmo, quando, em um gesto impulsivo, roçou a barba
cerrada pelo rosto dela.
— Álvaro.
— Álvaro — ela murmurou baixinho, como se experimentasse
o nome em seus lábios.
Ouvi-la dizer o nome dele, a forma como soprava cada sílaba
em um som sensual, envolvente e provocante, mesmo que de forma
inconsciente, fez o sangue de Oliveira latejar com ainda mais força,
ameaçando queimar os últimos resquícios de sanidade e controle
que ele lutava para manter.
Isis ergueu o rosto; os olhos que o faziam pensar na cor do
mais puro mel se cravaram nos olhos dele, como se o tragassem, o
chamassem. Suas bochechas estavam levemente coradas, e
Oliveira não sabia se era por causa do vinho ou do calor crescente
no corredor. Os cabelos dela caíam em fios desarrumados pelos
ombros; e ali, tão perto, quase respirando o mesmo ar, ele a achou
ainda mais pequena, delicada e atraente.
— Então, como eu estava te dizendo... — Isis soergueu uma
das mãos, os dedos quase roçando o peito dele. — Não precisa se
preocupar comigo, Álvaro.
Como se uma força maior o tivesse dominado, Oliveira pegou
a mão de Isis e entrelaçou seus dedos. Isis arfou baixinho. E ele não
soube explicar o turbilhão de sentimentos em seu peito com aquele
pequeno e simples e gesto.
— Agora é tarde, pequena. Eu já me preocupo demais com
você.
E puxou Isis, trazendo-a de encontro ao seu corpo.
12
Ar em chamas

Foi como se todo o corpo largo de Oliveira a circundasse por


completo.
Isis ergueu o rosto; diante da pouca luz do corredor, o
semblante dele, marcado pela barba serrada, ficava ainda mais
intenso.
As palavras ditas por ele ecoavam em ecos infinitos dentro
dela.
Na duração de uma batida de coração, Oliveira abaixou a
própria cabeça, e o pouco ar que ainda havia no espaço entre eles
foi sorvido quando suas bocas se encontraram.
Os olhos de Isis se fecharam e, pela primeira vez na vida, ela
entendeu a sensação de achar que o mundo se dissolveria aos seus
pés.
Os lábios dele se moveram contra os seus, suaves, mas
territoriais, arrancando um longo suspiro de Isis, que fizeram Oliveira
levar uma das mãos até os cabelos dela, afastando-se apenas o
suficiente para admirá-la.
Ela prendeu o ar ao ver as íris dele escurecidas.
Isis sentiu o peito subir e descer alucinadamente naqueles
poucos segundos que se passaram entre a conexão de seus
olhares.
E, em uma explosão que fez o ar ficar em chamas, Oliveira a
puxou e a beijou outra vez, os lábios mais vorazes, sedentos,
exigentes; e tudo o que Isis conseguiu fazer foi erguer os braços,
envolver o pescoço dele e deixar que sua boca se abrisse com a
mesma vontade para aquele beijo.
Oliveira afundou os dedos em seus cabelos e rosnou contra
seus lábios, e as pernas dela bambearam com aquele som rouco e
primitivo.
O gosto dele, o toque dele, a boca dele; nada era rude como
tinha imaginado. Era sedento, impetuoso e ardente para um homem
que sempre parecia tão reservado.
Isis estremeceu quando as mãos de Oliveira desceram por sua
cintura, apertando-a, acariciando-a, deixando uma sensação tão
ardente quanto o fogo por cima de suas roupas.
Quando ele a segurou e se moveu, ela se deixou levar com
ele.
O quadril dele investiu contra o seu, pressionando-a na
parede; Isis arfou e se agarrou nos ombros largos, inebriada ao
sentir a boca dele descer por seu pescoço, a barba rala roçando e
provocando sua pele, deixando tudo nela a ponto de entrar em
combustão espontânea e...
De repente, um som abafado ecoou pelo corredor.
E de novo. E de novo.
Era como se alguém estivesse batendo na porta da sala.
Ofegante, relutante, boca de Isis se afastou da boca de
Oliveira.
As batidas vieram outra vez.
— Mas que merda é essa?! — Oliveira rosnou, olhando por
cima do ombro. — A porteira está fechada. Como alguém conseguiu
chegar até a casa principal?
Medo encheu os olhos de Isis.
E se...?
Um milhão de pensamentos e hipóteses terríveis passaram por
sua cabeça em poucos segundos.
E ela viu toda a postura de Oliveira se alterar.
— Não vou deixar nada nem ninguém te machucar, pequena.
Isis se sobressaltou ao escutar as batidas fortes outra vez.
Oliveira soltou um ar chiado e impaciente.
— Fique no quarto com o Davi. Eu vou cuidar disso.

◆◆◆

As pancadas secas continuaram a ser desferidas contra a


porta.
Oliveira praguejou e amaldiçoou o responsável por obrigá-lo a
interromper uma das coisas mais maravilhosas que havia
acontecido com ele naquele último ano.
Sua mente estava a mil por hora, seus sentidos estavam
enlouquecidos, e a situação nas suas calças gritava para que ele
desse meia-volta e fosse terminar o que tinha começado.
Mas as batidas continuaram.
Deixando seu militar interior vir à tona, ele apanhou a
espingarda, checou a munição e andou até a porta.
As batidas insistentes ainda estavam ali.
Mas a força delas diminuía pouco a pouco.
Abóbora surgiu de algum canto, rosnando contra a porta.
— Já vamos cuidar disso, garota.
A vira-lata continuou rosnando, pronta para atacar mediante a
sua primeira ordem.
Empunhando a espingarda, Oliveira escancarou a porta com
um só movimento.
O vento da noite fustigou seu rosto.
— Mas que diabos...
Havia um homem praticamente caído de joelhos na varanda
de entrada da sua casa. Sangue tingia suas roupas, seus braços,
seu rosto.
— O... Oliveira...
Os rosnados de Abóbora pairavam atrás dele.
Oliveira esticou a perna, impedindo que a cachorra se
aproximasse.
— Sou eu.
Apesar do homem estar gravemente ferido e coberto de
sangue, Oliveira não baixou a guarda. Já tinha testemunhado todo o
tipo de armadilha enquanto servira no exército.
— Quem é você? — vociferou, apontando a arma para ele.
O homem grunhiu algo que foi impossível de entender.
Quando ele se virou, Oliveira enxergou o corte gigantesco e
letal que havia em seu abdômen.
— Santa Mãe de Deus! Vou chamar uma ambulância!
— Tentaram me impedir de falar...
O olhar de Oliveira se alternava entre o homem e o celular
largado em cima do sofá.
— Falar o quê?!
O sujeito tossiu e tremeu.
— A morte... A morte da sua esposa não foi o que você
pensa... A morte da Sofia... Não foi um simples acidente.
E caiu apagado aos seus pés.
13
Turbilhão

Para Oliveira, domingo era seu dia preferido da semana.


Porque era um dia calmo, silencioso e sem grandes agitos.
Mas, desde que tinha acordado, aquele domingo se mostrou
diferente do que esperava.
Primeiro, Dimitri e Lucas apareceram em sua porta para
assistirem ao jogo junto, fazendo-o deixar os planos de cuidar da
terra de lado.
Depois, Davi decidira que não ia deixá-los assistir ao jogo em
paz. Mas, diferente do que outros homens poderiam imaginar, ele
tinha passado um bom momento com o menino enquanto o distraía
com o cavalo. Aquele rapazinho era uma figura divertida.
Então, precisara ajudar Dimitri e Lucas com o carro quebrado,
onde ganhou — sem pedir — conselhos sobre sua vida amorosa e
posição de viúvo. E, quando retornara para sua casa, fora recebido
por um cheiro delicioso e pela visão do rosto cheio de expectativa
de Isis. Um rosto iluminado por um sorriso capaz de arrancar o chão
de qualquer pessoa.
O jantar regado a vinho e conversas mansas o fez se sentir...
Absurdamente leve. Como ele não se sentia há muito tempo.
E ao final do jantar, naquele corredor pouco iluminado,
naqueles segundos em que os instintos venceram a racionalidade...
Ele cedeu ao desejo de provar os lábios dela.
Diabos; uma boca tão macia que podia se tornar facilmente a
perdição de qualquer homem.
A perdição dele.
Mas daí as batidas na porta começaram.
E o medo que encheu os olhos de Isis fez todos os instintos
protetores dele rugirem em uma selvageria absurda.
Não permitiria que ela sentisse medo.
Não em suas terras. Não em sua fazenda.
Com a espingarda em mão, havia escancarado a porta. E
encontrara um sujeito desconhecido e ensanguentado.
Que havia afirmado algo que roubou todo o seu ar.
E que agora estava morto.
Oliveira esfregou o rosto e correu os olhos pelos arredores da
fazenda. O terreno estava infestado de policiais, peritos e médicos
andando de um lado para o outro, fazendo perguntas, vasculhando
e analisando. Ele não tivera outra escolha a não ser contatar as
autoridades na mesma hora.
— Você conhecia o sujeito? — um dos policiais indagou para
ele.
— Não. Foi a primeira vez que o vi. Tem alguma identificação,
um nome, qualquer merda que possa me dizer quem ele é?
— Não encontramos nada. Nem um documento sequer. — O
policial fez uma anotação em sua caderneta. — Este desconhecido
invadiu sua fazenda no meio da noite, ferido gravemente. O que ele
queria?
— Ele falou algo sobre a morte da minha esposa não ter sido
um acidente, mas... Diabos, o cara morreu antes que eu
conseguisse processar a informação. Foi tudo muito rápido.
O policial fez mais algumas perguntas e anotações, e então se
afastou, deixando Oliveira em pé, com as luzes das viaturas
refletindo em sua casa e em seu rosto.
“A morte... A morte da sua esposa não foi o que você pensa...
A morte da Sofia... Não foi um simples acidente”.
Oliveira sorveu o ar com dificuldade.
A morte de Sofia não havia sido um acidente ou qualquer
merda do tipo. Infelizmente, fora provocada por circunstâncias
naturais.
Ele tinha encontrado Sofia caída no meio da sala.
Ele a colocara no carro e a levara até o hospital em uma
velocidade que infringia todas as leis de trânsito do mundo.
Mas já era tarde demais.
A causa da morte havia sido dada como infarto agudo do
miocárdio, causada pela hipertensão gestacional.
Oliveira correu os dedos pelos cabelos, nervoso, irritado,
observando a equipe de peritos embalar o corpo do desconhecido e
levá-lo até um dos veículos oficiais.
“A morte... A morte da sua esposa não foi o que você pensa...
A morte da Sofia... Não foi um simples acidente”.
Aquilo não fazia sentido algum.
Só podia ser uma terrível brincadeira de mau gosto, um humor
tão sorumbático quanto o clima de um cemitério.
Mas...
Por que um sujeito desconhecido, à beira da morte, usaria
seus últimos suspiros para lhe falar aquilo?
— Diabos... — Oliveira resmungou.
A sensação latejante na cabeça ficava pior a cada segundo.
— Tem alguma coisa que eu possa fazer para te ajudar?
Ele olhou para o lado, vendo Leila, a médica da cidade e
pediatra que atendera Davi no posto de saúde.
— Olhe... Se você descobrir qualquer coisa sobre a identidade
desse sujeito, me avise.
— Pode deixar.
— E o que você está fazendo aqui? — a pergunta não soou
tão delicada como ele queria, mas, merda, quem conseguia ser
polido no meio de uma situação como aquela?
Leila fez um movimento de cabeça na direção da equipe
médica que acompanhava os policiais.
— Estou de plantão e auxiliando o doutor Thales hoje. Ele me
convocou para vir aqui ajudá-lo.
Oliveira assentiu, mal ouvindo o que Leila lhe dizia.
Seus pensamentos corriam a mil por hora.
Merda.
Tudo tinha acontecido tão rápido.
Não conseguia pensar. Não conseguia respirar. Sequer notou
quando Leila se afastou, quando um dos policiais falou que manteria
contato e o notificaria sobre os avanços nas investigações, quando
os sons se calaram, quando as viaturas partiram.
Oliveira só voltou para dentro da casa quando não havia mais
nada além do silêncio e das cores da noite rodeando sua fazenda.
Encarou o porta-retrato com a foto de Sofia.
“A morte... A morte da sua esposa não foi o que você pensa...
A morte da Sofia... Não foi um simples acidente”.
— Está tudo bem? — a pergunta de Isis fez Oliveira se virar
para contemplá-la. — Os policiais e os peritos já foram embora?
— Sim, já foram.
Isis soltou o ar lentamente. Seus olhos pareciam dois faróis na
escuridão. Ela era tão pequena e tão delicada. E, ao mesmo tempo,
junto de uma armadura invisível, carregava uma força absurda, de
quem já havia enfrentado uma das piores faces do mundo.
Ele quase engoliu em seco.
— O garoto acordou com essa confusão?
— Não. Está dormindo como uma pedra.
A pulsação de Oliveira acelerou, o ar trepidou; e ele jurou, pelo
homem que era, pela terra que servia, que não deixaria mais nada
atormentar aquela garota.
Isis se aproximou com passos lentos, até estar parada à sua
frente. Ergueu a mão e tocou seu rosto; um gesto que quase o fez
suspirar.
— Precisa de alguma coisa?
— Eu só preciso... — Ele fechou os olhos; o calor da palma
dela atravessa o turbilhão que se revolvia em seu interior. — Parece
que me empurraram de um precipício. Não sei nem o que pensar.
— Descanse um pouco — Isis murmurou. — Uma boa noite de
sono vai te ajudar a clarear os pensamentos pela manhã.
Por mais que quisesse protestar, que quisesse ceder à
vontade atordoante do sangue, sabia que Isis estava certa.
Era como se houvesse uma tonelada em seus ombros.
E ele não queria que o que havia acontecido entre eles fosse
contaminado por suas inquietações, por suas dúvidas, por aquele
fardo inesperado, pelo balde de água fria que gelara seus ossos,
pela forma obtusa como a noite tinha terminado.
Desejando boa noite para ela, ele se arrastou para o próprio
quarto e fechou a porta. Tirou a camisa, inspirando o cheiro do
tecido antes de jogá-la sobre a cômoda. O perfume de Isis havia
ficado ali como fogo marcado pela brasa.
Oliveira deitou na cama e encarou o teto.
Tentou dormir.
“A morte... A morte da sua esposa não foi o que você pensa...
A morte da Sofia... Não foi um simples acidente”.
Mas seus olhos se recusaram a fechar durante todo o resto da
noite.
14
Certeza súbita

Cinco anos atrás

Isis riu, atravessando o campus universitário coberta de tinta. A


roupa nova que havia escolhido para o primeiro dia de aula tinha
sido arruinada por causa do trote, mas ela nunca se sentira tão feliz
e tão leve.
Tinha saído da casa da tia, com os poucos pertences e
dinheiro que possuía, e mudado para a cidade onde se localizava a
universidade pública em que passara. Com ajuda da secretaria do
campus, encontrara uma república com um preço acessível para
morar. E, assim que se estabelecesse, procuraria um emprego
noturno para conseguir se bancar pelos próximos semestres.
Porque aquela era sua nova vida.
Seu recomeço.
Uma chance de encontrar um lugar para pertencer, onde não
precisaria aguentar desaforos e olhares indesejados.
— Ei, caloura, o azul lhe cai bem!
Isis virou, fitando dois rapazes altos e bonitos, um loiro e o
outro com cabelo comprido; provavelmente, veteranos na
universidade. A timidez quase a fez ficar quieta.
Mas se lembrou de que aquele era seu recomeço.
— Vocês gostaram? — perguntou, alargando o sorriso.
— Muito! — o loiro respondeu. — A propósito, eu sou o Bruno.
E esse aqui é o Natanael. Qual é o seu nome, caloura?
— Isis.
— Isis — Bruno repetiu, fazendo o sangue dela vibrar. — Isis
com tinta azul no cabelo, espero que a gente se trombe pelo
corredor ao longo do semestre.
— Quem sabe, né?
Bruno deu uma piscada provocante.
— Vou estar torcendo por isso.
Quando eles se afastaram, ela deu um risinho entusiasmado e
girou nos calcanhares, não se importando com a tinta no corpo ou
com o que os outros pensariam.
Sim.
Tinha certeza de que, agora, a vida seria muito boa com ela.

◆◆◆

Atualmente

Isis acordou com a sensação de que havia barras de chumbo


sobre seu peito.
Outra vez, os sonhos a levaram para o passado.
Outra vez, ela se lembrava do que seria impossível esquecer.
Tentou se desvencilhar das imagens enquanto tomava banho,
enquanto trocava as roupas de Davi e lhe dava os antibióticos. Nem
mesmo enquanto desfrutava o delicioso café da manhã, preparado
por Matilde, conseguiu aliviar aquela maldita compressão.
— Está tudo bem, menina? — Matilde indagou.
— Só estou cansada.
— Soube que o domingo terminou meio tenso por aqui. Sabe,
como é... Cidade pequena, as histórias correm.
Isis meneou a cabeça e não disse mais nada.
Andou ao redor da casa, procurando por Oliveira, mas não o
encontrou em lugar algum.
Suspirou, tocando os próprios lábios.
Se fechasse os olhos, podia sentir a boca de Oliveira sobre a
sua, a insanidade que a tomara, o formigamento que havia
recoberto toda sua pele. Enquanto ele a beijava, a segurava ao
redor daqueles braços fortes, quentes e possessivos, ela tinha se
permitido esquecer de todo o assombro que a acompanhava nos
últimos anos; havia apenas a boca faminta dele, as mãos dele, o
calor ardente.
Isis estremeceu, a respiração acelerando com a mera
lembrança, com a ousadia dela em imaginar aquela boca e aquelas
mãos explorando outras partes de seu corpo.
Minha nossa!
Como um único beijo podia despertar a parte mais adormecida
do seu coração?
Isis levou uma mão ao peito, fitando o dia que brilhava através
da grande janela da sala.
Uma parte sua quisera gritar quando foram interrompidos.
Outra parte, mais prudente e esperta em se autopreservar,
havia achado que tinha sido melhor daquele jeito.
Não podia perder o controle ou baixar a guarda
Pois, alguém que vivia em movimento, sem certezas
duradouras ou raízes fundas, jamais poderia sonhar em ter mais do
que um beijo ou um momento efêmero em braços tão quentes.
Um suspiro frustrado saiu de sua garganta.
Pela primeira vez em anos, o pensamento a angustiou com
uma força avassaladora.
Tentando afogar aquela batalha interna, Isis abriu a porta e se
apoiou no peitoral da varanda, deixando que o ar da manhã
erguesse os fios castanhos dourados de seus cabelos.
Os acontecimentos que se seguiram logo após o beijo ainda
eram um borrão confuso para ela.
Quando vira as viaturas policiais, se trancara no quarto.
Mesmo sabendo que estava longe do verdadeiro terror, não
poderia correr o risco. Por si mesma. Por seu filho.
Mas o semblante de Oliveira quando tudo terminou...
Minha nossa, ela desejara como nunca ter o poder de arrancar
a dor dele com as próprias mãos.
Um homem tão bondoso, que não pedia nada em troca
quando esticava a mão para ajudar quem quer que fosse, não
merecia ser atormentado por nenhum sofrimento.
Um homem que pode derreter uma geleira com um simples
toque.
O pensamento intruso fez as bochechas de Isis corarem.
— Bom dia, dona Isis!
O cumprimento animado fez Isis erguer o rosto. Ela
reconheceu o rapaz com chapéu como sendo Rodrigo, o veterinário
que cuidava dos cavalos da fazenda.
— Bom dia — devolveu o cumprimento.
— Está bonita como sempre, dona Isis — ele gracejou, tirando
o chapéu e abrindo um sorriso cheio de covinhas.
Em outros tempos, Isis teria se sentido lisonjeada.
Mas ela já não era a garota que um dia fora.
— Obrigada. Sabe onde Oliveira está?
— Ele foi até a cidade. Mencionou algo sobre tratar uns
assuntos com a polícia, mas não entrou em detalhes.
— Entendi.
— Tenha um bom dia, dona Isis. — Rodrigo voltou o chapéu
para a cabeça, gesticulando uma despedida.
— Você também.
Ao ficar sozinha, Isis desceu a pequena escadaria da varanda
e se permitiu caminhar pelo terreno. O sol brilhava e esquentava
sua pele. O cheiro da grama e das árvores refrescava seus
pensamentos acelerados.
Em algum momento, escutou passos às suas costas.
O instinto de sobrevivência e autopreservação a fez girar
rápido nos calcanhares, se amaldiçoando por estar sem a tesoura
que sempre carregava embaixo da roupa.
Mas seus ombros logo relaxaram.
Contornado pela luz do sol que se ramalhava por entre as
folhas das árvores, Oliveira se aproximou, puxando um cavalo
bonito pelo cabresto.
— Bom dia.
O coração traidor de Isis se acelerou ao vê-lo, a boca
formigou, os lábios pulsaram.
— Bom dia.
Assim como Rodrigo, Oliveira também usava um chapéu. Mas,
diferente do veterinário, o acessório parecia cair perfeitamente nele,
complementando a combinação das roupas rurais que vestia.
— Não queria atrapalhar sua caminhada — ele falou.
— Só estava dando uma volta. O lugar é lindo.
— É porque você ainda não viu as redondezas — Oliveira
suspirou. — É cada paisagem que até fico sem fôlego.
Isis pensou em perguntar como tinha sido a ida dele até a
cidade, até a delegacia, quis saber se ele havia conseguido dormir;
mas, ao fitar o semblante de Oliveira, entendeu, em seu silêncio
rústico, que ele ainda não queria falar sobre aquilo.
E ela o respeitaria da mesma forma que ele a respeitava.
— Imagino. — Isis olhou em volta, se permitindo sonhar com
as paisagens que ele havia descrito de forma tão apaixonada. Minha
nossa, podia até visualizá-las, como se elas estivessem a um toque
da mão. — Tenho vontade de conhecer toda a região.
Oliveira arqueou as sobrancelhas.
— Onde está o rapazinho?
Ela voltou o olhar para ele.
— Com Matilde.
— Ótimo. Então você vai conhecer as redondezas.
— Como...
Isis ofegou quando Oliveira a ergueu nos braços, como se ela
não pesasse nada, e a colocou sobre a sela do cavalo.
Em um piscar de olhos, ele também estava montado sobre o
cavalo, atrás dela, passando as mãos pelas laterais de seu corpo
para segurar as rédeas do animal.
O coração de Isis batia tão alto e tão descompassado que ela
achou que qualquer um, a milhares de quilômetros, poderia ouvir.
Oliveira inclinou o tronco para a frente, o calor de seu corpo
acariciando as costas dela.
— Confia em mim, pequena? — A pergunta sussurrada pela
voz rouca causou um arrepio pela pele de Isis; ela podia sentir a
respiração dele em seus cabelos, em sua nuca.
Ela virou parcialmente o rosto, os cabelos roçando na barba
rala dele. E, nos meros instantes em que seus olhares se
conectaram, o mundo ao redor silenciou e uma certeza súbita, uma
certeza que não experimentava a muitos anos, a invadiu.
— Confio.
A mancha de um sorriso subiu pela lateral da boca dele.
E Isis arfou quando Oliveira incitou o cavalo e eles dispararam
juntos pela imensidão verdejante.
15
Fluir como um riacho

Em pouco tempo, a fazenda de Oliveira ficou para trás.


Montada no cavalo, com os braços dele envolvendo seu corpo, Isis
se viu percorrendo as sinuosas estradas secundárias, cada uma
delas se abrindo em uma mistura de segredos brilhantes e suspiros
naturais.
Que lindo!
Era como contemplar uma pintura com colinas, casas, pastos
e árvores que preservavam um verde exuberante, que se erguia e
se estendia ao infinito do horizonte.
— Segure-se — Oliveira falou, fazendo o cavalo saltar pelos
muros de pedras, abrindo caminho através dos campos, onde o ar
limpo e fresco inundou os pulmões de Isis.
As colinas surgiam, compondo um quadro pitoresco com a
grama verde e a vegetação rasteira. Ao longe, as montanhas
pareciam sombras escuras contra o azul do céu. Plantações
diversificadas de soja, cana-de-açúcar, café e laranja ondulavam ao
longo da estrada. Em um terreno mais íngreme, distante de onde
estavam, Isis enxergou vacas e bois pastando.
— É tão lindo — ela suspirou, maravilhada.
— Quando preciso aquietar os pensamentos, pego o cavalo e
cavalgo por essas terras. As paisagens me acalmam.
Isis conseguia entendê-lo. Ela mesma quase podia tatear uma
sensação pacífica que aquele pedaço do paraíso exalava. Tinha
certeza de que Davi iria amar aquele passeio, se estivesse ali com
eles.
Conduzindo as rédeas do cavalo, Oliveira fez o animal seguir
por uma trilha mais fechada, os cascos batendo contra os
pedregulhos.
Isis se viu suspirando outra vez.
As belezas naturais não paravam de encher sua vista.
Uma mata escura, com árvores densas e antigas, se estendia
ao longo da campina. Um riacho cristalino borbulhava junto à
margem.
— Vamos descer aqui — Oliveira falou, mais um convite do
que uma afirmação.
Isis balançou a cabeça e assentiu.
Oliveira desmontou primeiro, pegando Isis nos braços para
ajudá-la a descer. A pressão firme das mãos dele em sua cintura a
fez engolir em seco involuntariamente, provocando uma palpitação
na garganta.
Ela só soltou o ar quando seus pés tocaram o chão e os dedos
quentes dele, que roçavam o pedaço da pele que sua blusa deixava
à mostra, se afastaram.
Em silêncio, eles se sentaram sob a sombra de uma vistosa
mangueira, próximos do riacho.
— Obrigado — Oliveira murmurou, a voz grave se
entremeando ao som ritmado da correnteza.
— Está me agradecendo pelo quê?
— Por não fazer perguntas sobre a confusão de ontem. Minha
cabeça ainda está martelando com tudo o que aconteceu.
— Eu entendo isso. — Isis dobrou as pernas e abraçou os
joelhos. — De precisar de um tempo e de silêncio para assimilar
tudo.
O vento soprava, brando e perfumado, balançando os fios dos
seus cabelos. O calor do sol era um beijo agradável em sua pele.
Esticando o braço, Oliveira apanhou uma manga madura do
pé. Tirou um pequeno canivete do bolso da camisa e começou a
descascar a fruta. O cheiro doce cirandou pelo ar ao redor de Isis.
— Fui até a delegacia da cidade hoje. Ainda não identificaram
o sujeito que me abordou ontem à noite. — Oliveira descascava a
manga com calma e habilidade. — E o que ele falou sobre minha
falecida esposa... Diabos, por que alguém que não conheço me
falaria isso?
Isis mordeu o lábio interior, dividida entre se manter como uma
ouvinte respeitosa e sanar a curiosidade borbulhante. Talvez
pudesse encontrar um meio termo.
— O que ele te falou... Foi ruim demais?
— “A morte... A morte da sua esposa não foi o que você
pensa... A morte da Sofia... Não foi um simples acidente”.
As palavras ditas em um rosnado baixo e frio causaram um
arrepio por todo o corpo de Isis.
Agora conseguia entender porque ele estava tão abalado.
— E isso não faz sentido — Oliveira continuou, cortando um
pedaço da manga e o entregando para Isis. — Porque, no dia em
que perdi Sofia, eu a encontrei passando mal em casa. Eu a levei
até o hospital. A vida dela se foi no meio do caminho. Todos os
médicos falaram que foi por causa de uma hipertensão gestacional.
Não encontraram mais nada nos exames.
Mordiscando a fruta, Isis não sabia qual parte daquele
desabafo deveria assimilar primeiro. Oliveira havia perdido uma
mulher que amava e que carregava seu filho. E, agora, um
desconhecido que morrera em sua porta, tinha enchido sua cabeça
com dúvidas e questionamentos.
Minha nossa!
Era muita coisa acontecendo para uma única pessoa.
E ela conseguia imaginar o que ele estava sentindo.
— A polícia me manterá informado de tudo, mas... — Ele levou
um pedaço da manga à boca. — Nem sei o que fazer ou no que
acreditar.
— Aqueles seus amigos, que estavam em sua casa ontem,
eles podem te ajudar com alguma coisa? Pelo que entendi, vocês
serviram no exército juntos, certo?
— Sim. Talvez eu fale com Dimitri e Lucas.
O silêncio pairou entre eles outra vez. Isis terminou de engolir
o pedaço de manga, estudando Oliveira com o canto do olho. Desde
que o conhecera, o julgara como um homem reservado. Mas, agora,
ele lhe parecia tão... Solitário.
E seu coração desejou tirá-lo dos pensamentos amargos que
certamente o consumiam naquele momento.
— Faz muito tempo que você serviu no exército? — ela
perguntou a primeira coisa que apareceu em sua cabeça.
— Uns bons anos já. Alcancei a patente de subtenente.
— E como era seu trabalho?
— Servi por muitos anos na divisa do país com a Colômbia.
Fiz parte do 1º Pelotão Especial de Fronteira, posicionado em uma
reserva indígena. Convivi bastante com o povo nativo de lá.
Mudar o rumo da conversa não resolveria o problema que
tinha caído nas mãos dele, mas Isis percebeu que o semblante de
Oliveira se atenuava pouco a pouco enquanto falava do trabalho.
— E você tinha problema com eles?
— De jeito nenhum. — Oliveira cortou mais um pedaço da
manga e o deu para ela. — O povo das reservas e a população local
eram tranquilos. Quem dava dor de cabeça para meu pelotão, muito
mais do que os traficantes que atuavam nas fronteiras, eram os
coronéis.
— Por quê?
— Eles se achavam os donos daquelas terras. Invadiam as
reservas, colocavam fogo nas matas, assassinavam os índios. Até
caso de estupro e assassinato de crianças indígenas tivemos. —
Oliveira soltou o ar. — Houve um coronel, em específico, que deu
bastante trabalho para o pelotão. Só que ele pagou por tudo o que
cometeu. Teve um fim bem brutal, mas pouparei seus ouvidos dos
detalhes.
Isis piscou, imersa na adrenalina do relato.
Oliveira puxou um lenço e limpou a lâmina do canivete. Em
seguida, estendeu o objeto para Isis.
— Fique com ele.
Ela arqueou as sobrancelhas, surpresa.
— Por quê?
— É mais seguro para se carregar. Você ainda vai se
machucar se continuar andando com aquela tesoura escondida
embaixo da roupa.
Caramba!
Ele tinha mesmo verdadeiros olhos de águia.
Encabulada, Isis aceitou o canivete, fitando o reflexo de seus
olhos na lâmina.
— Obrigada — ela murmurou. — Pelo canivete.
E por não fazer perguntas também.
O riacho fluía por entre a quietude da mata, cadenciado com o
farfalhar das árvores e do gorjeio dos pássaros.
Isis olhou para o lado, subitamente invadida por uma sensação
de estar sendo vigiada.
Ora, pare de ser tola, garota! Não tem mais ninguém aqui.
Estamos no meio do campo e da natureza.
Mas aquela inquietação não abrandou.
Suspirando, Isis voltou a fitar o riacho.
Acho que me acostumei demais a sempre olhar por cima do
ombro e temer até a minha própria sombra.
Era um instinto de sobrevivência que tinha desenvolvido; uma
habilidade, uma percepção, que mantivera a ela e a Davi a salvo
naqueles últimos anos.
— Te devo um pedido de desculpas, pequena.
Isis ergueu o rosto, encarando Oliveira.
— Pelo quê?
— Por ter te beijado. — Os olhos de cor forte dele se cravaram
nos olhos dela, roubando seu fôlego. — Você é minha hóspede e
está sob a proteção do meu teto. Não quero que pense que estou
tentando me aproveitar de você ou da sua situação de fragilidade.
Isis franziu o cenho.
— Ora, se me recordo também, acho que participei ativamente
da situação.
— Mas não quero que fique com a sensação de que me deve
algo.
Ela controlou a vontade de revirar os olhos, embora uma parte
sua tivesse achado aquele pedido fofo e respeitoso.
— Fique tranquilo.
— Eu tenho meus próprios demônios, pequena, e coisas que
ainda estão muito vivas dentro de mim — Oliveira continuou, e uma
parte de Isis compreendeu que ele estava se referindo à falecida
esposa. — Não quero machucar ninguém.
— Não precisa se justificar comigo, Álvaro. Pode parecer, mas
não sou frágil ou feita de vidro.
Ele exalou com força.
— Diabos, não aguento quando você diz meu nome dessa
forma.
Oliveira abaixou o rosto e capturou os lábios dela com os seus.
A cabeça de Isis girou, e ela agradeceu por estar sentada
enquanto o sangue entrava em ebulição. A boca dele era tranquila e
firme sobre a sua, não incitando nada além de um toque lento e
explorador entre seus lábios, as mãos calejadas segurando sua
cintura, o cheiro forte e masculino inebriando seus sentidos.
— Hum... O que você está fazendo? — Isis sussurrou quando
Oliveira se afastou o suficiente para que uma corrente de ar
passasse entre eles. — Se ouvi direito, você tinha acabado de se
desculpar pelo beijo de ontem.
— Te sondando, pequena. E sondando a mim mesmo — ele
murmurou, os lábios a milímetros dos seus. — Porque, desde que
você chegou, eu falo uma coisa, mas acabo fazendo outra.
Seu coração falseou no peito.
Um milhão de desejos e medos batalhavam dentro dela.
Como se sentisse aquele maremoto que a golpeava, Oliveira
deslizou uma das mãos sob os cabelos de Isis, roçando os dedos
em sua nuca, depositando um beijo gentil no canto da boca dela.
Depois no outro canto.
— Para mim, tudo deve fluir como esse riacho — ele falou
baixo, a voz rouca, buscando pelos olhos dela.
Isis abriu um sorriso pequeno e assentiu, mostrando que
entendia o que ele tentava dizer nas entrelinhas.
Ele tinha os fantasmas dele.
Ela tinha os fantasmas dela.
Mas o som corrente e fluído do riacho se ramificava no silêncio
confortável que pairava entre eles.
— Quer voltar? — Oliveira convidou, estendendo a mão
gentilmente para ela. — Acho que o rapazinho deve estar sentindo
sua falta.
— Sim. — Ela aceitou a mão oferecida. — Já está quase na
hora de dar os remédios dele outra vez.
Juntos, eles se levantaram e foram até o cavalo.
Oliveira a colocou sobre a sela e subiu logo em seguida,
segurando as rédeas e instigando o animal a seguir pelo caminho
que os levariam de volta para a fazenda.
E, por mais que o coração de Isis estivesse saltando no peito e
sua pele parecesse estar prestes a entrar em combustão
espontânea a qualquer momento, uma sensação tão fria quando o
ângulo de uma sombra a perseguiu pelo caminho de volta.
Uma sensação de que olhos vigilantes, camuflados na mata,
os acompanharam durante todo o percurso.
16
Proposta

Praguejando pela milésima vez, Oliveira revirou os próprios


papéis e planilhas. Ele não era um homem desorganizado, mas não
tinha muita paciência para o trabalho que chamava de “trabalho de
escritório”. Gostava de colocar a mão na terra, de ver sua produção
crescendo. Mas odiava papéis. Desde a época em que servia no
exército, odiava papéis.
Sempre dera conta daquela parte chata e burocrática do seu
serviço, mas, recentemente, a procura por seus produtos naturais
estava crescendo em Itatiaiuçu. Precisava de mais organização e
controle.
Só que se sentia com o tempo comprimido.
Todos os dias — todos os dias — ia até à cidade, até a
delegacia. Esperava por alguma resposta que lhe desse a
identidade do homem que fizera acusações sobre a morte de Sofia.
E, todos os dias, a resposta era mesma.
“Ainda estamos investigando”.
Por mais que Oliveira quisesse praguejar com os policiais,
tinha que admitir que o sujeito que havia morrido na porta da sua
casa era praticamente um fantasma sem nome e sem rastros.
Ele usara seus softwares investigativos e sistemas de busca
para encontrar informações por conta própria; o resultado obtido era
o mesmo da polícia.
Absolutamente nada.
Pelo jeito, mesmo querendo o menor número de pessoas
possíveis envolvidas em seus assuntos, teria que pedir ajuda para
Lucas e Dimitri.
Pois ele jamais se esqueceria daquelas palavras.
“A morte... A morte da sua esposa não foi o que você pensa...
A morte da Sofia... Não foi um simples acidente”.
E, para um homem que conseguia fazer uma busca como
aquela e mexer em programas complexos, era quase humilhante
admitir que não conseguia dar conta da papelada da produção da
sua fazenda.
— Diabos, onde foi que eu coloquei aquela agenda?
Foi então que o ar mudou ao seu redor.
Ele percebeu que ela estava ali antes mesmo de vê-la ou ouvi-
la.
Oliveira ergueu o rosto, vendo Isis parada na porta de seu
escritório. O conjunto verde que ela vestia deixava sua pele e seus
olhos mais vívidos.
— Está tudo bem aqui? — ela perguntou.
— Só estou com dificuldade de organizar toda a papelada da
minha produção orgânica. — Ele coçou a nuca. — As coisas podiam
ser simples. Vendido e comprado. Mas tem uma infinidade de papel
aqui. Juros, imposto, devedores, credores.
— Calma, parece um pesadelo, mas não é. — Isis andou até a
mesa, o cabelo balançando nas costas, espalhando um cheiro de
xampu delicioso por seu escritório. — Deixe-me ver o que você tem
aqui.
— Fique à vontade.
— Hum... Produção, compras, vendas... Você pode organizar
tudo isso de várias formas. Mas é essencial colocar em planilhas no
computador. Facilitará sua vida. — Ela continuou falando pelos
minutos seguintes, dando ideias e soluções para a organização do
escritório de sua casa.
Ele arqueou as sobrancelhas, admirado.
— Você é boa com essas coisas.
Empurrando uma mecha para trás da orelha, Isis exprimiu algo
que estava entre um risinho baixo e um suspiro cansado.
— Já trabalhei com tudo o que você possa imaginar. Isso inclui
serviços de escritório. Nada formal ou registrado, mas que foi
suficiente para me dar um pouco de experiência e bancar a mim e
ao meu filho.
Aquilo bastou para um homem prático como ele.
E Oliveira não pensou duas vezes.
— Por que não trabalha para mim?
Isis piscou; ele percebeu que a oferta a pegara de surpresa.
Para ser justo, até mesmo ele estava surpreso consigo mesmo
por ter feito tal proposta a ela.
— Não sei...
— Você receberia um salário, como qualquer outra pessoa que
trabalha para mim.
— Mas você já está fazendo tanto por mim e pelo meu filho! —
Isis deixou os braços caírem ao lado do corpo. — Não seria justo
que você me pagasse, já que estou morando aqui de favor.
— É claro que é justo. Você já me ajuda sempre que pode.
Com a comida, com os animais, com a casa. Isso aqui seria um
trabalho como outro qualquer. — Oliveira apontou para a papelada e
para o computador. — Não te pagar está fora de cogitação.
Os lábios de Isis se contraíram; pensativos. A forma como a
luz do sol entrava sobre a janela e incidia sobre ela transformava o
castanho de seus cabelos em um dourado hipnotizante.
Diante do silêncio reflexivo dela, decidiu usar mais uma carta.
— Independentemente de quais sejam seus planos ou para
onde você vá quando o rapazinho se recuperar por completo, você
precisará de dinheiro. — Oliveira cruzou os braços e se recostou à
mesa. — E eu preciso de alguém que tenha paciência para
organizar tudo isso e não gosto de ficar contratando gente estranha.
Acho que a conta está bem clara.
Ela continuou em silêncio, pensativa.
Diabos.
Por que ele estava se sentindo tão ansioso e apreensivo para
o que ouviria da boca dela?
Era só uma resposta.
Sim ou não.
Mesmo assim, seu coração parecia querer arrebentar as
paredes do peito, de tão forte que batia.
E as batidas só se aliviaram quando o semblante de Isis
suavizou.
— Tudo bem, senhor Álvaro Oliveira — ela gracejou, fazendo
todo o sangue dele inflamar nas veias. — Eu aceito.

◆◆◆

As fotos estavam penduradas no quarto pequeno e sem


janelas.
Revelá-las ou imprimi-las não era algo muito mais comum, já
que as pessoas preferiam deixar suas fotografias em celulares,
computadores ou nuvens.
Mas havia uma sensação de controle em poder tocar as
imagens.
Seus olhos passaram por cada foto capturada por sua câmera.
Elas mostravam Oliveira e a tal garota chamada Isis sentados à
beira de um riacho, conversando, compartilhando uma fruta, um
beijo.
Sua boca se contraiu; uma carranca, uma interrogação, uma
ideia.
Estava na hora de descobrir mais informações sobre aquela
garota.
Dependendo do que encontrasse, as coisas poderiam ficar
muito, mas muito mais interessantes.
17
Novos planos

Apesar de sua hesitação inicial quando a oferta de emprego


fora feita, Isis logo descobriu que precisava daquilo — de uma
ocupação para os pensamentos turbulentos e de uma fonte de
renda.
A vida a ensinara a não depender de ninguém, nem
emocionalmente, e muito menos financeiramente. E ter um trabalho
remunerado permitia que ela se sentisse menos encurralada e sem
rumo. Voltaria a economizar para lidar com emergências. Poderia
bancar a si mesma e ao filho, diante de qualquer problema que
aparecesse.
E, além disso, conforme os dias passavam, Isis descobriu que
trabalhar naquele simpático escritório da casa de Oliveira, no meio
de papéis, tabelas e planilhas, fazia com que sentisse uma calmaria
com a qual não estava habituada.
— Veja, mamãe! O avião!
— Que lindo, meu amor.
Enquanto fazia uma anotação na agenda para que Oliveira
não se esquecesse de uma entrega que deveria ser feita no dia
seguinte, Isis sorriu para si mesma.
Outra vantagem daquele trabalho era que podia ter Davi por
perto, sem correr o risco de precisar deixá-lo com estranhos ou em
creches onde sua localização seria descoberta. Naqueles últimos
três, tinha sido encontrada uma única vez, mas conseguira fugir.
E não aceitaria correr o risco outra vez.
Isis interrompeu a anotação e fitou o filho. Davi estava em
cima de uma manta grossa que ela colocara no chão do escritório,
brincando com aviões e carrinhos de brinquedo que eram dos netos
de Matilde.
Davi melhorava mais e mais a cada dia. O ambiente da
fazenda havia sido primordial para sua recuperação.
E agora ela estava ganhando dinheiro de novo.
O que significava que, em breve, quando tudo se ajeitasse,
poderia...
Isis bloqueou o pensamento na mesma hora, sentindo uma
súbita e inesperada angústia invadir seu peito.
“Para mim, tudo deve fluir como esse riacho”.
Aquela fala de Oliveira pairava no ar ao redor dela desde
quando a ouvira. Assim como a sensação formigante de se lembrar
dos lábios dele nos seus; algo que não havia mais se repetido. Era
atordoante como Oliveira era um homem de palavra.
E Isis não sabia se devia se torturar ou admirar aquilo.
Ela voltou o olhar para as anotações da agenda.
Apertou os olhos.
As palavras pareciam dançar diante dela.
Isis ergueu o rosto outra vez. A cortina da janela estava
parcialmente puxada, diminuindo a luminosidade do escritório.
Talvez, se as abrisse por completo, conseguiria se concentrar
novamente no trabalho.
Ela se levantou e andou até a janela. Puxou a cortina.
Droga.
Uma das argolas estava enroscada no varão.
Isis ficou nas pontas dos pés. Soltou um riso misturado com
uma exalada irônica. Jamais alcançaria a argola daquele jeito.
Hum... Já sei!
Isis arrastou a cadeira até perto da janela, tirou os sapatos e
subiu, esticando o braço para tentar alcançar a argola enroscada da
cortina.
— Mamãe sempre fala para não subir em cadeiras.
— Sim. O Davi não pode subir em cadeiras porque é perigoso
para ele. Mas a mamãe pode.
Ela esticou o braço outra vez.
Mas a argola parecia, propositalmente, ter se afastado dela.
— Mas que merda!
— Palavla feia, mamãe.
— Desculpa. Erro da mamãe. — Isis impulsionou o corpo e o
braço para cima, tentando mais uma vez desenroscar a argola. —
Ah!
Uma exclamação abafada saiu de sua boca quando seu pé
trepidou e a cadeira balançou, fazendo com que ela caísse para
trás.
Diretamente em um par de braços fortes e firmes.
Isis arregalou os olhos e puxou o ar, sendo envolvida pelo
cheiro masculino e familiar que invadiu seus sentidos no mesmo
instante.
— Não sei o que você pretendia fazer, pequena... — Oliveira a
segurava no colo, mantendo Isis quase colada contra seu peito rijo.
— Mas não me parece seguro.
— Mamãe fala para não subir em cadeiras — Davi repetiu.
— O rapazinho está certo.
Isis ergueu o rosto, o sangue latejando mais rápido nas veias
ao fitar Oliveira tão de perto. Podia sentir a respiração dele
acariciando suas bochechas, seus lábios.
— Eu estava tentando abrir toda a cortina.
Oliveira arqueou uma das sobrancelhas; algo que deixou o
rosto marcante ainda mais provocativo.
— E se acidentar era parte do processo?
— Creio que não.
Ele sondou o rosto dela, analisando-a tão intensamente que
Isis sentiu a base do seu pescoço esquentar. Com cuidado, sem
quebrar o contato entre seus olhares, Oliveira a colocou de volta no
chão.
— Obrigada — Isis murmurou, engolindo em seco, lutando
para que ninguém escutasse o quão alto seu coração batia.
Sem dizer nada, e com uma facilidade invejável por conta de
sua altura, Oliveira ergueu o braço e desenroscou a argola.
— Problema resolvido.
A luz do sol inundou completamente o escritório.
Isis semicerrou os olhos. Os raios claros atravessavam
Oliveira, acentuando cada linha de sua expressão, criando uma
atmosfera magnética ao seu redor que a fez dar um passo em sua
direção.
— Seu Oliveira, o correio acabou de passar por aqui — Matilde
falou, entrando no escritório com várias cartas na mão.
Afastando-se de Isis, ele se virou para Matilde.
— Algo importante?
— As contas de sempre. E acho que você recebeu um convite.
— Convite? — Ele esticou a mão, pedindo o envelope para
Matilde, que o entregou. A testa de Oliveira se encheu de vincos. —
Hum. É um convite para a apresentação de dança da namorada do
Dimitri. Será amanhã à noite.
— Que chique, seu Oliveira! — Matilde deu um sorriso
animado. — Vai confirmar a presença, não vai?
Oliveira ergueu o braço, coçando a nuca.
— Sei não... A apresentação será em Belo Horizonte.
Matilde bufou e apoiou as mãos na cintura, quase arrancando
um riso de Isis. A mulher parecia uma mãe prestes a dar uma
bronca no filho.
— Ele é um amigo seu de longa data. Não pode fazer uma
desfeita dessas. Além disso, a namorada dele é aquela bailarina em
ascensão, não é? — Oliveira abriu a boca para protestar, mas
Matilde continuou: — Aproveite e leve sua prima. A pobrezinha não
sai de dentro dessa casa. Não é verdade, minha querida?
Os olhos de Matilde voltaram-se como duas miras laser para
Isis.
Ela abriu a boca, tentando não gaguejar.
— Acho... Acho que nem tenho roupa para um evento como
esse.
— Esse seu primo turrão não te paga à toa. Ou ele está
apenas explorando sua boa vontade de trabalhar para ele?
— Não, não. — Isis balançou a cabeça, incitada a defender a
honra dele com unhas e dentes. — Meu primo me paga certinho.
Até mais do que deveria. Só acho que não é um lugar apropriado
para levar o Davi.
— Posso cuidar dele. Ficarei com meus netos amanhã à noite.
— Vou brincar com mais gente? — Os olhos de Davi
brilharam. — Com mais crianças?
— Só se sua mãe e o primo turrão dela tomarem uma decisão.
— Mãe! Mãe! Mãe! Eu quero! Eu quero!
Isis se viu encurralada. Dizer que não queria sair do interior
para ir até à capital soaria suspeito demais e levantaria perguntas.
Coçando o próprio braço, olhou Oliveira por debaixo de seus cílios
longos.
— Bom... Eu realmente não tenho uma roupa para esse
evento.
— Posso te levar até a cidade para que você compre algo.
— Mas ainda faltam duas semanas para o pagamento.
— Te darei um adiantamento.
— Mas eu ainda estou trabalhando... — Isis fitou a mesa
coberta de papéis e planilhas.
Oliveira chiou.
— Seu patrão vai te dar a tarde de folga — decretou com
aquele jeito único e direto de falar. — Se vamos fazer isso, tem que
ser direito. Aproveite e pegue o rapazinho. Acho que ele também
gostará de dar um passeio pela cidade.
18
Passeio

A praça Antônio Quirino da Silva, também conhecida como “o


coração da cidade”, se localizava bem no centro de Itatiaiuçu, perto
dos principais comércios da região.
Mesmo tentando relaxar e repetindo para si mesma que
ninguém a encontraria naquele fim de mundo, Isis não deixava de
olhar vez ou outra para os lados, como se esperasse alguém saltar
das sombras. O canivete que Oliveira lhe dera estava guardado no
bolso de sua calça.
— Está tudo bem, pequena. — Para sua surpresa, Oliveira
segurou sua mão, os dedos grandes envolvendo seus dedos finos.
Em um ato magnético, Isis se viu retribuindo o aperto.
Apesar do porte recluso, Oliveira parecia conhecer a cidade
inteira. Aquilo não fazia parte dos planos de Isis sobre “passar
despercebida”.
No meio do caminho, depois de uma infinidade de
cumprimentos, encontraram com Rodrigo.
— Dona Isis! Seu Oliveira! Boa tarde!
Oliveira se limitou a tocar o chapéu e fazer um cumprimento
silencioso para o veterinário.
— Ei, dona Isis, se um dia você quiser experimentar o melhor
bolo de fubá da cidade, peça para seu primo te levar na minha casa.
— Tá bom, tá bom, Rodrigo — Oliveira resmungou. — Se nos
dá licença, estamos com pressa.
— Espia só... A gente nem pode mais conversar.
Enquanto se afastavam, Isis deu uma cotovelada leve em
Oliveira.
— Não precisava falar assim com ele.
Oliveira chiou e não respondeu.
Mesmo querendo ficar brava, algo nela adorou aquilo. Assim,
continuaram seguindo pela praça, em direção à loja de vestidos.
— Colo! — Davi pediu.
— Vem aqui, meu amor.
— Não! Quero colo dele! — E apontou para Oliveira.
Isis fez um biquinho, sentindo uma pontada inesperada de
ciúmes.
— Por quê?
— Porque ele é alto. É como voar.
— O garoto sabe das coisas — Oliveira falou, pegando-o no
colo e o colocando de cavalinho em seus ombros.
O bico de Isis continuava no lugar.
— Acho que vocês dois estão fazendo um complô para
zombar da minha altura.
— Impressão sua, pequena.
Mas, com o canto dos olhos, Isis captou o sorriso que queria
manchar a boca sempre séria de Oliveira.
Eles entraram na loja, e Isis passou bons minutos correndo os
olhos entre as araras, procurando por algo que pudesse usar na
apresentação de dança da namorada de Dimitri. Não estava
acostumada com eventos como aquele. Evitava-os a todo custo.
Mas, talvez, com a companhia protetora de Oliveira...
Sentindo as bochechas corarem outra vez, ela escolheu um
vestido ao acaso e correu para o provador, como se estivesse
tentando fugir dos próprios pensamentos.
Assim que Isis terminou de se vestir e de se analisar um
milhão de vezes, inspirou fundo e destrancou a porta.
— O que acha? — ela perguntou ao sair do provador. — Não
sei. Não ficou muito bom.
— Pequena, mesma que você vista trapos, ainda ficará linda.
O elogio fez o rosto de Isis queimar e o coração acelerar.
— Acho que quero experimentar outro.
— Fique à vontade.
Após mais uma sucessão de vestidos, ela escolheu um que a
agradou. Vestiu-o com um pouco de dificuldade, dando pulinhos
para tentar fechar o zíper sozinha.
Em algum momento, desistiu.
Isis colocou a cabeça para fora do provador.
— Pode me ajudar com o zíper?
— Claro. Eu...
— Seu Oliveira! — a vendedora chiou do outro lado da loja. —
Você não pode entrar no provador feminino!
Oliveira bufou e revirou os olhos, arrancando um riso de Isis.
— Quer ajuda? — uma voz gentil e feminina pairou ao lado
dela. — Posso te ajudar com o zíper.
Isis olhou para o lado, vendo Leila, a médica que tinha
atendido e tratado Davi com muita atenção e carinho.
— Sério? Obrigada.
— Bom, enquanto as garotas experimentam as roupas —
Oliveira apanhou Davi no colo e ergueu bem alto, fazendo-o soltar
um urro animado quando quase conseguiu tocar o teto da loja —, eu
e o rapazinho ficaremos na loja de doces aqui da frente.
— Doces! — Davi vibrou, batendo palmas.
Uma parte de Isis hesitou em se separar do filho.
Mas, se havia uma pessoa em que ela confiava a segurança
de Davi, era Oliveira.
— Tudo bem. Encontro vocês lá.
Assim que eles partiram, Isis girou, segurando a frente do
vestido e deixando que Leila subisse o zíper para ela.
— E o Davi? Como está?
— Melhorando a cada dia.
— Se você precisar de mais antibióticos, me procure. Farei
uma receita para você pegá-los de graça no posto outra vez, tá
bom?
— Pode deixar. Obrigada mesmo. Não tenho nem palavras
para agradecer tudo o que você fez por ele.
Um sorriso gentil se ergueu nos lábios de Leila.
— Só estava fazendo meu trabalho.
— Mesmo assim, nunca vi alguém tratar tão bem os pacientes.
Pelo espelho, Isis enxergou o reflexo do rosto de Leila,
notando o leve rubor que cobriu as maçãs de seu rosto e o olhar de
gratidão que pincelou o verde das íris dela.
— Muito obrigada. Tento sempre dar o meu melhor. — Leila
deu um passo para trás quando Isis se virou, analisando o vestido.
— O caimento ficou muito bom em você, mas...
— Essa cor me apagou, não é?
— Sim. Acho que você precisa de outro tom, algo que
destaque seus olhos e os cabelos. Vamos ver o que temos por
aqui... — As mãos de Leila passavam pelos vestidos, analisando
peça por peça. — Faz tempo que não vejo Oliveira assim.
— Assim como?
— Tão leve. Como se fosse conseguir sorrir outra vez.
— É mesmo? — Isis murmurou, incerta sobre o que dizer.
— Acho que sua presença está fazendo bem para ele. — Leila
lhe deu uma piscadela simpática quando Isis tentou negar aquilo. —
Olha que eu o conheço há muitos anos. Sei o que estou dizendo.
— Leila arrasta uma asa para o fazendeiro caladão! — alguém
gritou de um dos outros provadores.
Leila corou como um pimentão vermelho na mesma hora.
Apesar de toda a situação, Isis não conseguiu deixar de achar
aquilo fofo.
— Uma asa... Um caminhão... — Leila suspirou, encostando-
se na parede do provador. — Mas não faz diferença. Sei que nunca
foi recíproco.
Isis mordeu os lábios, fingindo analisar os vestidos na arara.
Todos acreditavam que ela era prima de Oliveira. Seria melhor fazer
algum comentário sobre o assunto.
— Hã... Você tem certeza? — arriscou.
Leila riu e balançou a mão no ar; não havia nenhum
ressentimento ou raiva em seus gestos e atitudes.
— Tenho sim. Adoraria estar errada, mas sei quando tenho
que tirar meu time de campo. Quando homens como Oliveira
escolhem alguém, nada nem ninguém conseguirá mais chamar a
atenção deles.
— É verdade — Isis murmurou, engolindo em seco, os olhos
embaçados. — Ele amava demais a Sofia.
Leila abriu um sorriso divertido, passando a mão pelos
vestidos.
— Não estou falando da Sofia.
O coração de Isis quase saltou para fora do peito. Foi a vez
dela de ficar com o rosto vermelho feito um pimentão.
— Ah! Veja! Veja! Que lindo! — Leila puxou um vestido. — O
que acha desse aqui?
Os olhos de Isis brilharam, e ela quase teve a sensação de
que seu queixo caiu ao contemplar a peça.
Uau.
— É maravilhoso.
— Então experimenta!
— Hum, não sei... — Ela tocou o tecido brilhante, observando
os detalhes, o corte, o decote. Aquele era um dos vestidos mais
lindos que já havia visto em toda a sua vida. — Acho melhor não.
Leila franziu o cenho.
— Por quê?
— Ah, sabe como é... — Isis deu de ombros. — Não tenho
tanta personalidade para usar um vestido assim.
— Opa, opa, opa, opa. Pode ir parando aí, garota. — Leila
segurou os ombros de Isis, girando-a para que ela ficasse de frente
para o espelho. — Dê uma boa olhada em si mesma.
— Hã... Estou olhando.
— Agora repita comigo: “eu sou um mulherão”.
— Quê?
— Sem perguntas, garota. — Havia diversão e determinação
no tom de Leila. — Apenas repita enquanto olha nos seus próprios
olhos. “Eu sou um mulherão”.
Um pouco encabulada, mas se divertindo, Isis riu e assentiu.
Em seus vinte e cinco anos, nunca fizera compras com uma amiga.
Não que Leila fosse sua amiga; mal se conheciam. Mas ela
imaginava que a sensação deveria ser parecida.
— Tá bom. Eu sou um mulherão.
— E posso usar a roupa que eu quiser.
— E posso usar a roupa que eu quiser — ela repetiu.
— Excelente. — Leila balançou a cabeça em aprovação,
erguendo a peça brilhante outra vez. — E aí, vamos experimentar
esse vestido?

◆◆◆

Com a compra feita, Isis agradeceu e se despediu de Leila,


deixando a loja para se encontrar com Oliveira e Davi. Enquanto
atravessava a rua, de forma automática, manteve os cabelos soltos
caindo ao redor do rosto, como se eles fossem uma cortina que
poderia camuflá-la.
O sino da lojinha de doces soou quando a porta foi aberta. Um
aroma adocicado de bolo e café pairava pelo interior. Isis olhou em
volta, até encontrar a mesa onde Oliveira e Davi estavam sentados.
E, ao se aproximar deles, os olhos de Isis caíram para o doce
e para a colher do filho.
— Davi, você está comendo um pote inteiro de doce de leite?
— Oliveila tava contando como ele é feito.
Qualquer tentativa de repreensão se evaporou da boca de Isis
ao ouvir o filho falar “Oliveila”. Ela também notou uma emoção
diferente cobrir o rosto de Oliveira ao escutar Davi dizer seu nome
daquele jeito.
— Bom, vamos em frente?
Com Davi no colo e duas inesperadas sacolas com potes de
doce de leite, o trio deixou a loja.
— Encontrou algo que te agradou? — Oliveira perguntou.
— Sim. — Isis ergueu a sacola que segurava. — Tive que
pegar um sapato também. A nota está aqui dentro. Daí você
desconta o valor do meu salário, tá bom?
— Depois vemos isso.
— Me prometa que você vai descontar, ou voltarei na loja e
devolverei tudo agora mesmo.
Ele soltou o ar lentamente e esfregou a nuca.
— Diabo de mulher teimosa. Tá bom. Prometo.
Isis estufou o peito, satisfeita.
— Não quero ir embora, mamãe! — Davi pediu. — Quero
passear mais! Aqui é legal!
E embora partilhasse do mesmo desejo que o filho
externalizava e ela escondia a sete chaves, Isis meneou a cabeça.
— Não podemos abusar do tempo e da companhia do Oliveira,
meu amor. Tanto ele quanto eu temos trabalho a fazer.
— Ora, não se preocupe com isso. — Oliveira lhe ofereceu o
braço. — O que acha de dar mais uma volta?
— Sim! — Davi vibrou.
E ali, observando aquele homem arrebatador, a alegria do
filho, o dia luminoso, Isis se sentiu — pela primeira vez em muito
tempo — completamente à vontade para viver e aproveitar.
Nem que fosse só por algumas horas.
Sorriu, aceitando o braço dele.
— Acho uma ótima ideia.
Uma hora, duas horas ou três; não importava. Sabia quem era.
Sabia do que fugia. Mas aproveitaria aquela fatia do tempo como se
ela pudesse durar pelo resto da vida.
19
Deslumbrante

Vinte anos atrás

Através do rádio comunicador, Oliveira soube que algo grave


estava acontecendo na área sul da reserva. Com o fuzil na
bandoleira, pediu autorização para deixar seu posto e seguiu até o
local onde sons, gritos e choros formavam uma sinfonia caótica.
Seus passos se retesaram diante da cena.
— Puta merda!
Os corpos de duas crianças indígenas estavam destroçados
no chão. As mães gritavam e choravam. E os homens da tribo
seguravam o responsável.
Assim que notou sua presença, o coronel ergueu o rosto.
— Oliveira! Mande esses selvagens me soltarem!
— Você matou essas crianças?! — Oliveira indagou, atônito,
um frio raivoso subindo pelas veias.
Ele conhecia aqueles dois molequezinhos. Via-os sempre
brincando quando estava patrulhando a reserva. Adorava-os.
Planejava futuramente ter filhos. E ver aquelas duas crianças
mortas, com as mães chorando e os pais exigindo vingança, fazia o
ar ser roubado do peito dele.
— Estas terras são minhas! — urrou. — Eles estão nas minhas
terras!
As palavras de Peixoto o atordoaram.
Tudo o que Oliveira conseguia enxergar eram os corpos das
crianças.
Aqueles não eram os primeiros corpos encontrados.
Há anos, Peixoto dava trabalho na reserva e na fronteira.
Queria a todo custo tomar as terras para si. E não hesitava em
matar para conseguir o que queria.
Oliveira parou diante de Peixoto, que gritava e esbravejava
enquanto era segurado de joelhos no chão.
— Nós clamamos a vida dele — um dos índios falou. Oliveira
havia desenvolvido uma relação respeitosa com os nativos.
Entendeu que era apenas por causa daquilo que eles estavam
comunicando suas intenções, em vez de simplesmente drenar a
vida de Peixoto sem que ninguém soubesse. — Ele já tirou muito de
nós. Da terra, da natureza, das nossas famílias. Que ele pague, em
nossas mãos, por todo o sangue que derramou.
— Eu tenho direito à justiça! — Peixoto gritou. — A um
julgamento com gente normal, e não com um bando de selvagens!
Oliveira contraiu os lábios e encarou Peixoto.
Sim, o homem tinha direito.
Mas Oliveira já sabia o final daquela história.
Peixoto seria encaminhado para uma delegacia, um advogado
iria até lá; em questão de horas, o coronel estaria livre. Ele
continuaria ateando fogo na floresta e invadindo terras indígenas e
áreas de preservação, vendendo árvores seculares e traficando
animais com risco de extinção. Mataria crianças nativas sem pensar
duas vezes. Estupraria mulheres. Espalharia caos e terror.
Porque acreditava que seu dinheiro lhe dava poder sobre tudo
e todos.
Contudo, o direito à justiça era um direito de qualquer
cidadão...
Oliveira inspirou fundo.
As duas mulheres choravam abraçadas aos corpos
ensanguentados dos filhos. Era tudo o que conseguia escutar, pois
até mesmo o vento tinha silenciado.
Quantas vezes, cenas como aquela, precisariam se repetir?
Porque elas continuariam se repetindo.
Porque Peixoto jamais pararia.
Oliveira ergueu o rosto e encarou um dos homens que
segurava o coronel. O mundo pulsou e bateu em uma infinidade
incalculável de tempo.
E então, assentiu.
Peixoto gritou.
Ajeitando o fuzil, Oliveira recuou apenas alguns passos.
Um homem que autorizava a sentença tinha o dever de ficar
até o fim.
O sangue jorrou quando a garganta de Joaquim José Peixoto
foi cortada.
Nem Oliveira, nem os indígenas responsáveis por aquilo se
moveram enquanto o coronel arfava e agonizava, até sua vida ser
completamente drenada.
Ainda ousou checar o coronel.
“Morto”.
Mais tarde, soube que o corpo foi jogado em uma fogueira.
Pois, segundo os mais antigos, nem mesmo a terra merecia
acolher a podridão de um homem como o coronel José Joaquim
Peixoto.

◆◆◆

Atualmente

Oliveira bufou mais uma vez enquanto vestia a camisa e a


calça social que Matilde deixara lavada e passada para ele.
Não gostava daquele tipo de roupa. Não gostava daquele tipo
de evento. Não gostava sequer de sair do conforto da sua fazenda;
ainda mais quando isso implicava em dirigir até outra cidade.
Em sua época de casado, costumava sair mais; a companhia
de Sofia deixava qualquer lugar mais agradável. Ela era sua melhor
amiga.
Depois que ela partira, ele quase nunca mais havia
comparecido em eventos sociais. Porque não parecia certo. Porque
não parecia divertido.
Só ia quando sua presença era estritamente obrigatória.
Assistir a uma apresentação de dança da namorada de Dimitri
não soava como algo estritamente obrigatório.
Oliveira ainda não sabia como havia caído na conversa de
Matilde. Mas lá estava ele. Terminando de abotoar a camisa social
azul clara.
Bufou de novo.
Diabos.
Matilde tinha uma lábia que poderia fazer até o capeta se
curvar às suas vontades. Nem Isis, que também mal colocava os
pés para fora de casa, fora imune às falas persuasivas da cozinheira
que deveria ter sido alguma bruxa em vidas passadas.
Oliveira parou diante do espelho, quase não reconhecendo o
reflexo que viu de si mesmo.
“Sofia sempre foi uma mulher incrível, e o que vocês dois
tiveram foi ainda mais incrível. Eu a conheci. Tenho certeza de que o
que ela mais desejaria agora era que você fosse feliz”.
— Cale a boca, Dimitri — rosnou para a voz intrusiva do
amigo.
A questão nem era ir ao evento ou não.
Ainda não havia descoberto a identidade do sujeito que
morrera em sua porta. Ou obtido uma prova sequer da acusação
que ele lhe fizera.
Sofia merecia que ele se concentrasse naquilo.
Como você fará isso, se está de mãos atadas? Mas, se você
for até BH e conversar com Lucas e Dimitri...
Oliveira balançou a cabeça.
Estava ponderando mesmo sobre ir?
Pensou em Isis e na ideia de levá-la até Belo Horizonte.
Será que ela queria mesmo ir?
Talvez ela não tivesse tido coragem de falar “não” para Matilde
e para a empolgação de Davi ao saber que passaria a noite com
outras crianças. Ou talvez Isis tivesse se sentido coagida a aceitar o
convite. Por ele. Talvez ela estivesse se sentindo na obrigação de
acompanhá-lo.
A garota tinha um coração de ouro e sempre queria se mostrar
agradecida por tudo; como se não estivesse acostumada com
pessoas a valorizando e a tratando bem.
Oliveira bufou mais uma vez ao se encarar no espelho.
Se Isis não quisesse ir à apresentação, eles não iriam.
Poderiam desfrutar de um vinho e de uma conversa agradável na
varanda. Depois, buscariam o molequezinho na casa de Matilde.
Isso!
Satisfeito com o novo plano, Oliveira deixou o quarto e rumou
até a sala, onde sabia que Isis o esperava.
— Pequena, quero te fazer uma pergunta e...
E ele se esqueceu do que estava prestes a dizer.
Isis se virou para ele, os olhos cor de mel ainda mais
brilhantes embaixo da luz da sala, destacando o verde do tecido que
caía e se moldava ao seu corpo pequeno, marcando e delineando
cada curva. Era um vestido longo, gracioso e sensual, com um
decote em V no busto e alças reguláveis entrelaçadas nas costas.
As mãos dele formigaram. Tinha certeza de que o tecido era
fino o bastante para se desfazer como água entre seus dedos.
Oliveira deu um passo, e então mais um, e mais um, até parar
diante de Isis; todas as palavras ensaiadas foram roubadas de sua
boca.
Aquela garota estava deslumbrante.
Aquela garota merecia que o mundo todo perdesse o fôlego ao
vê-la.
Isis ergueu a cabeça; as mechas soltas do cabelo dela caíam
em ondas ao redor do rosto. A boca dele secou. Como alguém
poderia ser tão delicada e tentadora ao mesmo tempo?
— O que você queria me perguntar?
Foi difícil fazer o cérebro voltar a funcionar direito. O perfume
delicioso que vinha dela nublava seus sentidos.
— Eu só queria saber se... — Diabos, desde quando ele se
enrolava com as próprias palavras? — Você está confortável com a
ideia de ir à apresentação?
Isis inspirou fundo, mordendo o lábio inferior enquanto
segurava uma bolsinha pequena e feminina nas mãos.
— Para falar a verdade, durante a tarde, pensei em desistir e
não ir. Não gosto de ficar longe de Davi ou de estar em lugares
cheios de pessoas. Mas... — Ela mordeu o lábio inferior outra vez.
Aquele gesto esquentou o sangue dele. — Depois de colocar esse
vestido, e depois de... — Os olhos de Isis pairaram sobre ele, como
se o analisassem, o sorvessem, as bochechas levemente coradas.
— Bom, eu...
O coração dele acelerou de um jeito que não estava mais
acostumado a acelerar.
A forma como ela o olhava quase fez Oliveira se esquecer de
que Isis era uma hóspede sob sua proteção e que não merecia que
ninguém se aproveitasse de seu estado de fragilidade. Quase o fez
se esquecer das promessas e dos pedidos de desculpas.
Mas Oliveira já não se lembrava mais do motivo de não querer
ir até a apresentação de dança.
— Podemos ir — ele sugeriu, a voz mais rouca do que o
normal. — Se estiver chato ou mudarmos de ideia no meio do
caminho, dou meia-volta e retornamos para cá. O que acha?
Isis mordeu o lábio outra vez, pensativa.
Ele precisou cerrar os punhos.
Diabos, se ela não parasse de fazer aquilo...
Isis voltou a fitá-lo com um sorriso doce na boca. Tão doce
quanto o sabor que Oliveira lembrava que aquela boca tinha.
— Tudo bem. Combinado.
20
Jogo de perguntas

— Você está quieta — Oliveira observou, esticando o braço


para ligar o rádio do carro. — Quer voltar?
— Não, não. Só estou pensativa. — Isis suspirou e afastou
uma das mechas que caía sobre seus olhos.
— E o que está enchendo sua cabeça?
— Você.
Oliveira olhou surpreso para ela antes de se voltar para a
estrada que os levaria até Belo Horizonte.
— Fiz alguma coisa para você?
— Você está me levando a um evento social com os seus
amigos. Me acolheu em sua casa e me deu um emprego. Trata bem
a mim e ao meu filho... Um tratamento que nós dois nunca tivemos
em toda nossa vida. E você sabe tão pouco sobre mim. E eu sei tão
pouco sobre você.
— Bom, isso pode ser corrigido sem dor de cabeça. Temos um
longo caminho pela frente. Eu poderia te fazer umas perguntas.
Para ficarmos quites, você também poderia perguntar o que
quisesse — ele lançou a ideia no ar. — O que acha?
Isis deu de ombros, tentando agir com naturalidade. Sabia
que, cedo ou tarde, os questionamentos viriam.
E aquele seria o ponto decisivo.
Porque, quando a verdade viesse à tona, ela estaria em risco.
Davi estaria em risco.
E pensar em fugir de novo, sem olhar para trás, sem destino
fixo, enfrentando as adversidades que surgissem em sua frente,
usando um nome falso, uma nova cor e corte de cabelo, lancetava
seu peito. Pela primeira vez em muito tempo.
Mas aquela era sua realidade.
Porque a justiça não era justa.
— Claro. Pergunte o que quiser.
— Você sempre quis cursar fisioterapia?
Por um momento, ela entreabriu os lábios, sondando Oliveira,
querendo entender o que havia por trás da indagação. Mas foi então
que se deu conta de que era apenas uma simples pergunta. Uma
curiosidade genuína. E, lentamente, relaxou.
— Sim. — Isis deixou um sorriso nostálgico encher sua boca.
— Sempre fui apaixonada pela área. Espero, um dia, conseguir
concluir meus estudos e atuar.
— Suas mãos são muito boas. — Ele limpou a garganta. —
Digo, para cuidar dos outros.
Mesmo inocente, o comentário fez as bochechas de Isis
arderem.
— Hã, minha vez de perguntar, certo? — Ela soltou o ar. Era
impressão sua, ou o interior do carro estava mais quente? — Como
você machucou sua perna?
Sem tirar os olhos da estrada, Oliveira contraiu o maxilar.
— Durante uma crise de segurança no Rio de Janeiro, o
Exército Brasileiro enviou 800 paraquedistas para combater o
narcotráfico. Após a invasão, mais tropas foram enviadas para
ocupar um dos complexos. Eu estava entre eles. Já tinha a patente
de subtenente. Mesmo com veículos blindados e helicópteros,
houve um confronto feio.
— E você se feriu no meio desse confronto?
— Exatamente.
Ela entreabriu os lábios, sentindo um misto de emoções dentro
do peito. Algo naquele homem, na forma como ele servia e honrava
todos os seus deveres, fazia o fôlego dela faltar e o coração bater
mais rápido.
Quase riu de si mesma por querer abraçar, cuidar e proteger
aquele homem que tinha o dobro do seu tamanho.
— Tem algum irmão ou irmã? — Oliveira perguntou,
retomando o jogo das perguntas.
— Sou filha única. E você?
— Filho único também. Seus pais estão vivos?
— Não. Eu sequer cheguei a conhecê-los. Fui criada por uma
tia.
— Ela está viva?
— Está, mas ela pouco se importa comigo. Há cinco anos,
quando entrei na faculdade, cortamos contato. Nunca senti falta
dela. E tenho certeza de que ela nunca sentiu a minha.
Pensar na tia causou uma contração em seu estômago. Isis
volveu no tempo, na época que deixara a casa da mulher que nunca
a amara de verdade. Lembrou-se da euforia de começar uma nova
vida, dos primeiros semestres na faculdade...
Até o mundo ruir e ela ser jogada para dentro da espiral infinita
de um pesadelo.
— Sua vez de fazer uma pergunta — Oliveira falou, trazendo-a
de volta para o interior do carro.
Isis tocou o queixo, pensativa.
— O que você mais odeia?
— Quem faz algo contra crianças. — Oliveira exalou forte,
comprimindo o volante. — Não existe nada mais indefeso do que
uma criança. Sou capaz de acabar com a raça do sujeito que
maltrata criança.
— Você já matou alguém por causa disso?
Assim que a pergunta saiu da sua boca, Isis quis engoli-las de
volta. Mal raciocinara. Elas haviam simplesmente escapado da
ponta de sua língua. Aquilo era pessoal e invasivo demais. E ele era
um militar. Já devia ter passado por situações inimagináveis para
ela.
Fitou Oliveira de soslaio; ele mantinha o olhar silencioso na
estrada.
— Desculpa, eu não deveria...
— Teve uma morte... — Oliveira começou, inspirando fundo.
Isis se calou, os olhos correndo por cada gesto mais contido dele. —
Lembra-se dos coronéis que te falei?
— Sim. Um que teve uma morte brutal, certo? Foi... Foi você?
— Não exatamente pelas minhas mãos, mas eu não fiz nada
para impedir. O cara era a escória da escória. José Joaquim
Peixoto. Ele fez muito mais do que maltratar e matar crianças de
uma reserva indígena. — Oliveira segurou o volante com mais força.
Isis imaginou que ele deveria estar revivendo aquelas lembranças
ruins. — Se, naquela época, agíssemos pela lei, ele deveria ter sido
levado à polícia e encarado a justiça. Mas o cara era cheio das
posses. Nada mudaria. Ele ficaria livre.
— Acreditar que a justiça é justa é uma utopia. Ela funciona só
para uma minoria exclusiva. Quem tem dinheiro e poder pode
distorcer a justiça. — As palavras saíram em um tom amargo da
boca de Isis. As lembranças guardadas no fundo da memória
agulhavam seus olhos. — No papel, é uma coisa. Quando tentamos
dar voz, quando tentamos fazer a justiça acontecer, somos calados,
sufocados e perseguidos até a exaustão.
— Parece que você já experimentou algo semelhante.
O coração de Isis bateu mais rápido.
Você não faz ideia, quase ousou dizer.
— Sua vez de fazer uma pergunta — ela sussurrou para ele.
Oliveira esticou a mão, trocando a música antes de lançar um
rápido olhar para ela.
— O pai do seu filho sabe da existência do Davi?
— Sabe.
— É dele que você está fugindo?
— Não. — Isis suspirou, entrelaçando as mãos no colo. —
Mas espero também nunca mais encontrá-lo.
— Ele chegou a bater em você ou no rapazinho?
— Não.
Isis virou o rosto, fitando a estrada.
Mas há coisas muito piores do que uma agressão física.
O silêncio se instaurou mais uma vez dentro do carro,
entrecortado pelo ritmo suave da música.
Inspirando fundo, Isis voltou a fitar Oliveira.
— Você não vai perguntar do que eu estou fugindo?
A mão de Oliveira, que trocou a marcha do carro, caminhou de
encontro à sua, dando um aperto quente e confortável.
— Quando você se sentir à vontade, poderá me contar. E eu
estarei aqui. Pronto para ouvir e ajudar com o que você precisar.

◆◆◆

As informações chegaram em um e-mail impossível de ser


rastreado.
Quase apagou a mensagem.
Mas o título do cabeçalho chamou sua atenção.
“Acho que pode te interessar — é sobre Isis Nunes”.
Abriu o e-mail. Leu duas vezes.
E então pegou o celular e fez uma ligação.
— Por que está me ligando? — a voz do outro lado da linha
questionou sem paciência.
— Para conversar sobre aquilo que tem nos dado dor de
cabeça.
21
Pequeno pedaço de sonho

Quatro anos atrás

Isis se assustou quando alguém chegou por trás dela e


depositou um beijo em sua nuca. Olhou por cima do ombro,
deparando-se com Bruno.
— Desculpa. Não queria te assustar.
Isis fechou o livro.
— Sem problemas. Eu estava concentrada aqui nos estudos.
— Minha namorada é a garota mais estudiosa dessa
universidade — ele assoviou, passando os braços ao redor dos
ombros de Isis. — Que tal dar uma relaxada nesse próximo fim de
semana?
— Não sei. Tenho uma prova difícil na quarta... E ando me
sentindo enjoada há alguns dias. Prefiro descansar.
— Ah, qual é, gata. — Ele abriu um sorriso cheio de covinhas.
— Os pais do Natanael estarão fora esse fim de semana. A casa do
lago vai estar vazia. Já te falei várias vezes desse lugar. É incrível.
Você vai amar. Natanael vai dar uma festa. Só para os amigos VIPs.
Luciana, Marco, Vic e Nando já confirmaram presença.
Isis meneou a cabeça. Natanael era o melhor amigo de Bruno.
Havia conhecido os dois em seu primeiro dia na universidade, quase
um ano atrás. Enquanto Bruno era filho de um importante delegado,
Natanael era filho de um casal de empresários rico e influente.
Desde que iniciara seu namoro com Bruno, vivia participando das
festas organizadas por Natanael; eventos que sempre aconteciam
quando os pais dele viajavam a negócios.
— Tenho que estudar e tomar alguma coisa para ver se esse
enjoo passa. Mas pensarei no convite, tá bom?
Bruno segurou o rosto dela e a beijou.
— Entenderei isso como um sim, tá bom?
Isis balançou a cabeça, rindo.
— Você não tem jeito mesmo.
— Prometo que será uma festa inesquecível. É sério. — Bruno
esticou a mão, brincando com uma das mechas que caíam ao redor
do rosto dela. — A casa do lago da família do Natanael é coisa de
outro nível. De gente rica mesmo. Assim que você entrar lá, não vai
mais querer sair.

◆◆◆

Atualmente

Apesar de estar sempre em movimento e sem destino fixo, era


a primeira vez que Isis tinha a oportunidade de conhecer Belo
Horizonte.
Depois que Oliveira deixou o carro no estacionamento do
teatro, eles desceram juntos e rumaram para a entrada iluminada e
decorada do Palácio das Artes, um dos maiores centros de difusão
cultural de Minas Gerais e de toda a América Latina.
Isis levou uma mão ao peito, deslumbrada.
Já tinha ouvido falar sobre o local, sobre sua arquitetura
moderna, classe, elegância e estilo, mas estar ali pessoalmente era
outra história.
E tendo Oliveira como companhia...
O peito dela esquentou ao olhá-lo de soslaio.
Já havia se acostumado ao vê-lo com as roupas típicas da
fazenda. Por isso, quando ele aparecera na sala, trajando um
conjunto social e exalando um cheiro viciante de colônia masculina,
ela quase caíra para trás.
A ideia de desistir de comparecer ao evento simplesmente se
transformara em um zumbido caótico em sua mente.
Tudo o que conseguia ver era ele.
Tudo o que queria era partilhar aquela noite com ele,
independentemente do que o amanhã traria.
— Vamos? — Oliveira ofereceu o braço a ela, e Isis aceitou.
De braços dados, eles atravessaram a entrada e seguiram
para o salão, onde os convidados que assistiriam à apresentação
aguardavam. Havia garçons servindo champanhe e uma mesa de
frios.
Por hábito, ela analisou e estudou todos os cantos,
estabelecendo rotas de fuga e pontos cegos para se esconder.
Também procurou por rostos conhecidos e indesejados, e se aliviou
ao não vê-los.
— Oliveira! — A voz familiar de Lucas se encheu de animação
ao vê-los. — Não acredito que você veio mesmo! E trouxe a Isis
com você.
— Pois é — Oliveira murmurou de um jeito contido, que quase
arrancou um riso baixo de Isis. Ela descobriu que adorava aquele
modo sisudo dele. — Nem eu acredito que estou aqui.
Lucas riu, dando um tapinha no ombro dele.
— Você não muda. Hadassa ficará feliz em saber que você
veio.
— E o Dimitri? — Oliveira perguntou.
— Está no camarim com a Hadassa. Acho que ele só vai se
juntar a nós um pouco antes da apresentação começar.
Enquanto Oliveira e Lucas conversavam, Isis se permitiu
admirar toda a estrutura interna daquela ala do Palácio das Artes.
Soltou um suspiro admirado. Nunca estivera em um lugar tão
elegante e requintado.
Com exceção da casa do lago...
Ela engoliu em seco, afastando as memórias ao notar que um
casal se aproximava deles.
— Oliveira! Quanto tempo! — A mulher ergueu o braço e o
cumprimentou com um aceno no ar. — E quem é a sua
acompanhante?
— Esta é a Isis.
— Prazer. Sou Alana. Este aqui é o Alex. Ele tem a honra de
ser casado comigo. — Ela apontou para o homem com quem estava
de braços dados. — Bem-vinda ao nosso círculo especial. Aquele ali
é o Lucas, mas acho que você já o conhece, e aquele outro ali com
a taça de champanhe é o investigador Tomás.
A palavra “investigador” fez Isis erguer a guarda e ficar atenta.
Nada no homem parecia demonstrar que ele a conhecia ou que
estava procurando por ela. Mas foi inevitável agir daquela forma.
Era assim que se comportava há anos sempre que ficava perto de
alguma figura de autoridade.
Sentiu o braço de Oliveira apertar o seu em um silêncio
confortável, um gesto que dizia que ela não precisava temer
ninguém ali.
— Não ligue para essa cara fechada dele. — Alana deu uma
piscadela amistosa para Isis. — O Tomás está assim desde que a
Josi foi embora. Ela era a parceira de trabalho dele, mas precisou
pedir transferência para outro estado por conta de uns problemas
familiares. Agora o Tomás não está aguentando de saudades, não
é?
— Me poupe, Alana — Tomás sorveu o último gole de
champanhe antes de depositar a taça de volta na bandeja. — Alex,
controle sua esposa.
Alex deu um riso contido, os olhos claros lampejando embaixo
das luzes do teatro.
— É mais fácil eu desconverter o Papa do que controlar a
Alana.
— Sou uma jornalista investigativa. Você não me engana,
investigador Tomás. — Alana virou a cabeça, jogando os cabelos
para trás. — Lorena, estou mentindo ou não?!
Os olhos de Isis acompanharam o olhar de Alana, até parar
em uma adolescente, trajando um elegante vestido longo cor-de-
rosa, que tirava uma selfie com o celular.
— É a mais pura verdade! — a garota respondeu, virando o
rosto para que seu brinco brilhante aparecesse na selfie. — Meu pai
está vegetando desde que a Josi foi embora.
Tomás resmungou alguma coisa que ninguém entendeu e
pegou o celular, afastando-se ao alegar que precisava checar uma
coisa do trabalho.
— Homens. Alguém precisa trazer a Josiane de volta para BH
— Alana segredou para Isis, apontando com o polegar para Tomás.
— Ou perderei meu informante para essa aura sombria que o está
engolindo. Isso não pode acontecer de jeito nenhum!
Isis segurou um riso, trocando um olhar rápido com Oliveira.
E percebeu que estava se divertindo de verdade.

◆◆◆

Um pouco antes da apresentação começar, o grupo ocupou os


lugares no camarote que Hadassa havia reservado. Dimitri se juntou
a eles um pouco depois, cumprimentando a todos antes de se
sentar na poltrona que detinha a visão mais privilegiada para o
palco.
Isis não conseguia parar de suspirar e se sentir encantada.
Tudo aquilo — a roupa, o lugar, Oliveira sentado ao seu lado
— parecia ter saído de um pequeno pedaço de um sonho perfeito.
Um sonho do qual não quero mais acordar.
Quando as luzes da plateia se apagaram e a orquestra se
preparou, Isis prendeu o ar em expectativa.
Em um compasso harmônico, as cortinas se abriram junto das
primeiras notas tocadas pelos instrumentos de corda.
A luz do holofote se concentrou em uma bailarina alta e negra.
Esta deve ser a Hadassa.
Na melodia da música que vinha, subia e descia, a bailarina se
entregava a cada passo em uma cadência doce e, ao mesmo
tempo, selvagem.
Isis suspirou.
Nunca havia visto ninguém dançar com tanta paixão e
devoção, como se a alma ditasse o ritmo do mundo.
Ela suspirou outra vez, deixando a mão deslizar de encontro à
mão de Oliveira, que a recebeu e entrelaçou seus dedos em um
aperto silencioso, mas cheio de sonhos e promessas.

◆◆◆
Entre uma performance e outra, houve uma pausa para um
intervalo da equipe de dança.
Isis aproveitou, foi até o banheiro, retocou o batom e, ao sair,
andou até uma das sacadas do Palácio das Artes, inspirando o ar
noturno. Apesar de tudo, ainda não estava acostumada a ficar no
meio de muitas pessoas. Nada como alguns minutos de solidão
para se recompor.
— Está tudo bem?
— Só estou me recarregando — Isis falou, sentindo o calor
que a aproximação de Oliveira trazia. — A vista da capital aqui é
incrível.
Oliveira se colocou ao lado dela, apoiando a mão no gradil de
pedra.
— É linda mesmo. Está gostando da apresentação.
— Muito! Nunca vi ninguém dançar como aquela bailarina.
— Dimitri sempre elogia a dança de Hadassa.
— Ele a ama, não é? — Os olhos sonhadores de Isis se
voltaram para Oliveira. — Pude ver isso na forma como ele a olhava
dançando.
— Dimitri merece ser feliz.
Todos nós merecemos. Isis suspirou. Mas, para alguns, isso é
quase impossível.
Querendo mudar o rumo dos pensamentos angustiantes que
pairavam como uma sombra acorrentada a ela, Isis balançou a
cabeça.
— Ver Hadassa dançando é tão inspirador. Até fiquei com
vontade de dançar. — Ela esticou os braços, segurando as mãos de
Oliveira. — Você não ficou?
— Creio que não.
Isis riu, balançando o corpo, como se ensaiasse uma dança.
— Ora, não seja o homem turrão que Matilde alega que você
é!
Oliveira meneou a cabeça, os braços se mexendo um
pouquinho mais, o princípio de um sorriso ameaçando encher a
boca dele e iluminar verdadeiramente seu rosto.
Empolgada, Isis se movimentou com mais vontade, fingindo
dançar ao redor de Oliveira, o vestido se abrindo em ondas a cada
giro, sem jamais se soltar dos braços dele.
Não havia música, mas ela a escutava em todo o seu ser.
Parece que estou sonhando. E não quero acordar.
— O que você disse?
Isis parou e piscou, encarando os olhos de Oliveira.
Ela havia falado aquilo em voz alta?
Suas bochechas arderam na mesma hora.
Mas então, em vez de puxá-la para continuar com os
movimentos descoordenados ou questioná-la de novo, Oliveira
levou os lábios até a altura do cotovelo dela, depositando um beijo
suave ali.
— Parece que estou sonhando também, e isso não é comum.
Isis ofegou, usando a mão livre para agarrar o ombro dele; a
sensação era de que suas pernas poderiam falhar a qualquer
momento.
— Me sinto perdendo o controle a cada dia que passa, a cada
dia que estou perto de você — ele murmurou, continuando com o
beijo arrepiante por toda a extensão do seu braço, as palavras
queimando a pele dela. — Não quero me aproveitar de você. Você
está passando por uma situação difícil. E eu, além de ter meus
próprios problemas, sou quinze anos mais velho. E estou agindo
como um maldito adolescente impulsivo.
— Não me importo — ela sussurrou, rouca, enquanto os lábios
dele deslizavam até chegarem à parte interna do seu pulso. — Não
me importo com mais nada. Só quero viver esse sonho. Nem que
seja por apenas um instante efêmero.
Os olhos dele buscaram pelos dela.
Ali, ela sentiu que o mundo inteiro poderia queimar.
Com uma lentidão provocante, Oliveira a trouxe para mais
perto, até tocar em seu rosto, roçando os lábios sobre os dela de um
lado a outro; um toque suave, sem pressão, mas que fez o corpo de
Isis se arrepiar por inteiro e ansiar por mais.
— Não sou de beijos públicos — ele sussurrou contra sua
boca, os dedos acariciando as mechas que escapavam do penteado
dela. — Mas, quando chegarmos em casa, te beijarei com a vontade
que estou guardando dentro de mim há muito tempo.
Não foi apenas a promessa do beijo que fez o coração dela
palpitar.
As quatro palavrinhas quase a desabaram.
E, enquanto eles retornavam para o teatro, para assistirem ao
final da apresentação, aquelas palavrinhas continuaram ecoando
dentro dela.
“Quando chegarmos em casa”.
Sorriu para si mesma.
Em casa.
22
Recrutamento

Ao final da apresentação, somente uma pequena e seleta parte


dos convidados foi levada para um coquetel em um salão dentro do
próprio Palácio das Artes.
Para testar a paciência de Oliveira, Isis e ele estavam entre
esses convidados seletos.
Não significava que ele não gostava de comida e bebida grátis.
Mas era que não via a hora de voltar para casa.
E cumprir cada uma das promessas silenciosas que seus
lábios haviam feito enquanto deslizavam pela pele de Isis.
O pensamento fez Oliveira apertar o copo com mais força;
ondas quentes subiam por toda a sua pele. Sentia que suava sob o
terno.
Diabos, por acaso o maldito ar condicionado não estava na
temperatura máxima?
Ingeriu mais um gole da bebida, esperando que o líquido
gelado pudesse lhe dar um pouco de alívio.
Enquanto o gosto forte da bebida descia por sua garganta,
seus olhos se ergueram e procuraram pelos de Isis.
Quando o olhar dela se entrelaçou ao seu, o sangue latejou
forte.
— Hadassa! — Alana deu um gritinho entusiasmado e segurou
a mão da bailarina. — O que é isso no seu dedo?!
Hadassa sorriu, erguendo a mão direita, onde uma aliança de
ouro brilhava e sorvia todas as luzes do salão.
— Dimitri me pediu em casamento antes de eu subir ao palco.
Alana gritou e jogou os braços em volta de Hadassa.
— Parabéns, amiga! Parabéns mesmo! Ai, agora me lembrei
do meu pedido de casamento! Foi tão inusitado, não é, Alex?! —
Alana bradou, dando uma piscadela para o marido, como se
compartilhasse um segredo que apenas os dois conheciam.
Oliveira quase se engasgou com a bebida. Olhou para Dimitri.
Apesar dos modos sérios, era impossível negar as emoções
estampadas no rosto do amigo. Diabos. Dimitri tinha enfrentado um
inferno por longos anos. Merecia toda a felicidade do mundo.
— Parabéns, companheiro. — Oliveira deu um tapinha no
ombro dele. — Cuide bem dessa moça.
— Com a minha vida.
— Acho que teremos que separar nossos ternos, Oliveira —
Lucas riu, dando-lhe uma cotovelada divertida. — Vai ter que deixar
as botinas e o chapéu de lado de novo, subtenente.
Oliveira meneou a cabeça.
Pela felicidade de Dimitri, ele vestiria um terno.
— Ei, está tudo bem? — Dimitri perguntou para Oliveira após
ser cumprimentado pelos mais próximos. — Você não me engana,
subtenente.
Com um suspiro cansado, Oliveira contou sobre o
desconhecido que tinha aparecido e morrido em sua fazenda.
Lucas arqueou as sobrancelhas, chocado.
— Ele está dizendo que a Sofia foi assassinada?
— Foi o que eu entendi. A polícia está investigando, mas não
descobriu absolutamente nada. Nem a maldita identidade do sujeito.
— Por que alguém viria te dizer isso agora? — Dimitri
murmurou, encarando os gelos dentro do próprio copo. — Depois de
mais de um ano?
Oliveira correu os dedos pelos cabelos.
— Essa é a merda que me pergunto todos os dias. Isso tem
me tirado o sono. Porque não consigo encontrar uma resposta
sequer.
— Podemos ajudar — Lucas ofereceu. — É só nos passar as
informações que tem. Ou eu mesmo posso entrar no sistema da
polícia.
Oliveira chiou.
— Sabe que isso é crime.
— Sabe que não seria a primeira vez que eu faria algo assim.
Se nem os seus softwares conseguiram encontrar algo, subtenente,
talvez esteja na hora de usarmos meios um pouco mais ilícitos.
Oliveira ponderou.
Merda, odiava quando os pirralhos que treinara e que haviam
se tornado aqueles dois homens à sua frente tinham razão.
— Façam o que for preciso, mas não sejam descobertos.
— Missão dada é missão cumprida, subtenente. — Lucas
bateu uma continência para ele. — Considere-nos recrutados para o
serviço.
— Se você nos autorizar, falaremos com o Alex. — Dimitri
apontou o marido de Alana com a cabeça. — O cara é expert em
Engenharia da Computação e é casado com uma jornalista
investigativa. Com tanta gente trabalhando no caso, alguma coisa
há de aparecer.
O trio se calou quando o pai e a mãe de Hadassa se
aproximaram de Dimitri para cumprimentá-lo sobre o noivado.
Acreditando que aquela era sua deixa para sair, Oliveira se
afastou e andou até onde Isis estava. Ela segurava uma taça de
champanhe entre os dedos delicados. O tecido verde do vestido
caía e se moldava como água pelas curvas de seu corpo.
Diabos.
Puxou a gravata.
Tinha um milhão de coisas fervendo na cabeça, uma infinidade
de problemas para investigar, mas sua imaginação insistia em fazê-
lo se perguntar como seria se afogar naquela água.
Ao parar diante dela, um sorriso doce subiu pelos lábios de
Isis.
Ele quase perdeu o ar.
— O que acha de irmos embora? — perguntou, meio abrupto,
meio voraz, as palavras simplesmente saindo sem qualquer
ponderação.
— Acho ótimo.
Seu coração bateu mais rápido.
Se ele fosse um cara mais impulsivo e aberto como Lucas,
teria segurado aquela garota nos braços e girado com ela pelo
salão.
Mas se limitou a erguer a mão e segurar uma das mechas do
cabelo dela entre os dedos.
E o suspiro baixo que saiu dos lábios de Isis com seu gesto...
Diabos.
Ainda bem que ele era um cara controlado.
Eles se despediram dos poucos conhecidos que ainda
estavam no salão, felicitaram Hadassa e Dimitri mais uma vez e,
então, rumaram para fora do Palácio das Artes.
Oliveira manteve sua mão rodeando a cintura de Isis, como se
temesse que ela pudesse se dissolver a qualquer instante.
A noite era um manto escuro, e quase não havia mais
movimento ao redor do local ou no estacionamento.
Então, com a mão que estava na cintura dela, Oliveira a virou
e a puxou de encontro ao seu peito, experimentando o calor intenso
que a pele dela irradiava ao encostar em sua pele. A escuridão
camuflou o encontro exigente entre seus lábios, a pressão de seus
corpos, o desejo latente.
Quando suas bocas se afastaram, Oliveira esperava ver
qualquer coisa no rosto de Isis.
Menos aquele olhar assustado.
— Cuidado!
Oliveira não teve tempo de agir ou reagir; sentiu a descarga do
teaser de choque que foi pressionado contra o seu corpo. Tudo foi
muito rápido. Isis gritou. As pernas falharam, e mesmo lutando, ele
caiu de joelhos no chão. Com o canto dos olhos, enxergou dois
homens.
— As ordens são para levar a garota! — um deles vociferou.
Aquilo foi tudo o que Oliveira precisou escutar.
— Isis, corra!
Ele a viu ofegar.
— Corra!
E ela correu.
23
Confronto

Com o coração batendo em um ritmo alucinado, Isis mal teve


tempo de processar o que aconteceu nos instantes seguintes
quando um homem, encoberto pelas sombras, atacou Oliveira com
um teaser de choque, derrubando-o de joelhos no chão.
— Isis, corra!
Ela ofegou.
— Corra!
Colocando Davi em seus pensamentos, em suas prioridades,
Isis girou rápido e disparou pelo estacionamento.
Os saltos atrapalhavam seus movimentos.
— Não a deixe fugir! — escutou um dos homens gritar.
Isis arfou com mais força.
Tinha sido encontrada.
Usando tudo o que tinha dentro de si mesma, deu um jeito de
arrancar os saltos, sem parar de correr. Atirou os sapatos para longe
e não olhou para trás.
E continuou correndo, sabendo que sua vida dependia daquilo.

◆◆◆
Havia momentos em que o pensamento rápido e o treinamento
executado por toda uma vida eram tudo o que alguém podia ter.
E foi confiando no próprio corpo e na própria agilidade que
Oliveira agiu sem ponderar duas vezes.
Assim que caiu de joelhos, com a dor causada pelo choque do
teaser, ele trincou o maxilar, puxou o ar e ergueu o cotovelo,
atingindo o estômago do homem que o atacara.
A força do golpe fez o sujeito recuar.
Com o canto do olho, captou um segundo homem correndo na
mesma direção em que Isis havia ido.
Maldito!
Oliveira desferiu um golpe na mão do seu oponente,
desarmando-o tão rápido que ele demorou para assimilar o que
tinha acontecido.
Aproveitou aquilo.
Sem dar tempo para que o homem sacasse qualquer outra
arma, Oliveira girou e o golpeou, derrubando-o no chão.
— Você mexeu com o cara errado — vociferou, chutando-o na
perna e dando três socos em seguida, para garantir que o filho da
puta não ficasse em pé com tanta facilidade.
— Não é você que queremos — Ele cuspiu sangue.
O coração de Oliveira acelerou.
Isis!
— Oliveira!
A voz familiar de Dimitri ecoou pelo estacionamento.
Oliveira ergueu o rosto, vendo o grupo se aproximando dele.
— Não tenho tempo para explicar! Tem gente atrás de Isis! Ela
foi para lá! Precisa de ajuda!
O investigador Tomás sacou a arma do coldre, correndo na
direção que Oliveira apontava.
Fechando o punho, desferiu mais dois socos na cara do
homem que o atacara, até que ele ficasse completamente
desacordado.
— Peçam reforços! — Oliveira bradou para Alex e Alana.
E, junto de Dimitri e Lucas, correram atrás de Tomás,
acompanhando o investigador.
Se alguém machucasse Isis, poderia se considerar um sujeito
morto.
Um sujeito morto por suas próprias mãos.
Porque ninguém encostaria um dedo naquela garota e viveria
para respirar outra vez.

◆◆◆

Correndo sem rumo, a respiração de Isis era um assovio


entrecortado pelo vento da noite.
Ela dobrou uma esquina, avançando para o vão formado entre
dois prédios comerciais, certa de que poderia achar uma passagem
e despistar seu perseguidor de uma vez por todas.
E se viu diante de uma viela bloqueada por uma grade alta.
Não!
— Te peguei, garotinha.
Encurralada, Isis se virou e grudou as costas na grade que
fechava a viela. O coração latejava nos ouvidos.
O homem que a perseguia bloqueava qualquer chance de
fuga.
— Não vou te matar. As ordens são para te levar com vida.
O peito de Isis subia e descia sem parar.
Olhou em volta, procurando por uma saída.
Pense. Pense. Pense.
Foi então que se lembrou de que ainda estava com o canivete
que Oliveira lhe dera. Só precisava pegá-lo. Qualquer segundo de
vantagem era um segundo a mais viva.
Encarou o homem que se aproximava lentamente.
— Foi Natanael que te enviou atrás de mim?!
Ele não respondeu.
Mas o lampejo perigoso que atravessou as íris dele deu a ela
toda a resposta que precisava.
Eles me encontraram.
Engolindo em seco, ela desceu a mão com cuidado até a
abertura e costura que havia feito no vestido para esconder o
canivete.
— O homem que estava comigo no estacionamento... Ele...
— Mais mortes levantariam perguntas. — Ele deu outro passo
para perto. — Se você vier comigo, aquele cara vai ficar vivo.
Isis se agarrou na esperança daquelas palavras.
Oliveira ainda estava vivo.
E quando o homem deu mais um passo para perto dela,
acreditando em sua cooperação, Isis ergueu o canivete e o golpeou,
exatamente como tinha feito com o assaltante na estrada de
Itatiaiuçu, durante o começo do tornado.
— Vadia! — ele urrou.
Isis tentou acertá-lo de novo.
O homem agarrou seu pulso, torcendo-o.
Um grito de dor escapou dela.
— Solte-a!
A ordem veio junto com um tiro.
O homem mal teve tempo de se virar; Oliveira pulou sobre ele,
acertando-o. O pulso de Isis foi libertado. Ela enxergou o
investigador Tomás com a arma apontada para o alto; ao certo, ele
tinha dado o tiro de aviso.
Com a cabeça girando, Isis viu o homem contra-atacar
Oliveira. Dimitri e Lucas estavam quase chegando. Tomás tentava
mirar no sujeito, mas não disparava; a chance de acertar Oliveira
acidentalmente era alta.
E então, antes que Dimitri e Lucas pudessem se envolver na
briga, o homem desferiu um golpe em Oliveira e se moveu com uma
agilidade impressionante até a grade, usando as barras para saltá-
la.
— Parado! — Tomás ordenou.
O investigador disparou duas vezes.
Mas o homem não parou.
— Merda! — Tomás bradou, correndo até a grade.
— Nós vamos atrás dele! — Dimitri se prontificou na mesma
hora, recebendo um assentimento de Lucas.
Quando um silêncio absoluto reinou na viela, Isis ofegou e
correu até Oliveira, se jogando nos braços dele.
Aquele calor, aquele cheiro, aquele coração batendo contra o
seu... Aquilo era tudo o que precisava.
— Shh... — ele sussurrou, acariciando seus cabelos. — Estou
aqui, pequena. Ninguém vai te fazer mal. Você está ferida?
Ela balançou a cabeça, negando.
— Mais viaturas estão a caminho — Tomás informou.
Isis arregalou os olhos.
Não!
Aquilo só iria piorar sua situação.
Sentiu a carícia da respiração de Oliveira em seus cabelos.
— Cuidem de tudo e me mantenham informado. — Os braços
dele envolveram a cintura de Isis, trazendo-a para junto do calor do
seu corpo. — Vou levá-la para casa.
24
Promessa de um beijo

O retorno para Itatiaiuçu foi marcado por um silêncio visceral.


Em dissonância, todo o interior de Isis rugia e gritava em um
desespero absurdo, absoluto, inevitável.
Eles me encontraram. Eles me encontraram.
Por algum motivo, Oliveira não fez nenhuma pergunta.
E ela agradeceu por aquilo enquanto tentava não sucumbir às
lágrimas e aos pensamentos que corriam a mil por hora.
A entrada da fazenda passou em um borrão escuro.
Isis só percebeu que ainda estava descalça quando seus pés
tocaram a terra e a grama. Mas não se importou. Ela se arrastou
para dentro da casa, e o aperto que sentiu foi mil vezes pior ao se
dar conta da familiaridade e aconchego que a invadia por estar ali.
Suas pálpebras estremeceram. Pelo menos, o sonho havia
durado muito mais do que poderia imaginar.
Segurando uma respiração trêmula, ela se voltou para Oliveira.
À meia-luz, ao sussurro do luar que adentrava pela janela, ele
parecia ainda mais belo e selvagem.
— Tenho que buscar Davi na casa de Matilde. Tenho... —
Sentiu a voz falhar. — Tenho que ir embora hoje mesmo.
O rosto dele, que até então estava fechado em um arco de
enigmas e mistério, se transformou por completo.
— Não vou permitir que eles cheguem perto de você.
— Não é isso. — A garganta de Isis tremeu. — Agora que eles
me acharam, estou comprometida. Tenho que partir e começar de
novo.
— Não, não precisa. — Havia desespero na voz dele.
— Você não sabe... Essa gente, essas pessoas... Eles não vão
parar. Estou tão cansada. Mas, enquanto eu estiver aqui, serei uma
ameaça para você. Meu filho também ficará em perigo.
— Já lidei com todo o tipo de gente que você possa imaginar.
— Oliveira andou na direção dela. — E não vou deixar ninguém
machucar você. Ou o rapazinho. Até agora, você teve que lidar
sozinha com essa merda. Mas agora estou aqui. Não precisa mais
fugir.
Isis engoliu em seco, afetada com aquelas palavras.
— Você ainda nem sabe do que estou fugindo.
Os olhos dele capturaram os seus.
— Isso não é o mais importante para mim. O que quero
mesmo saber é: você quer ir embora?
Ela deu mais um passo para trás.
— Eu...
Ele deu mais um passo para a frente.
— De verdade, do fundo do seu coração, você quer ir embora,
sem olhar para trás? Pois, se você quiser, não irei te impedir.
Lentamente, Isis ergueu o rosto, sentindo o próprio coração
bater em uma certeza que queria negar para si mesma. Mas que
não conseguia mais. Que não queria mais.
Pois estava cansada de não ter o que mais desejava.
Pois estava cansada de só sonhar. Ansiava pela realidade.
— Não — sussurrou baixinho. — Não quero ir embora.
— E eu também não quero que você vá embora.
— Mas imagino que você queira saber toda minha história.
— Você pode me contar depois. Pois, se me lembro bem, te fiz
uma promessa lá no teatro. — Oliveira parou diante dela, a carícia
forte de sua respiração a arrepiando. — Uma promessa que
pretendo cumprir.
Isis entreabriu os lábios, deixando que Oliveira a encostasse
contra a parede. O brilho do luar passava entre eles. Manteve seus
olhos nos olhos escurecidos dele enquanto ele deslizava o dedo por
seu rosto, tracejando a linha do pescoço, até roçar a alça do seu
vestido e abaixá-la.
Primeiro de um lado.
Depois do outro.
Enquanto o vestido deslizava em um movimento lento, quase
sussurrado, Oliveira inclinou o rosto e roçou os lábios por seu rosto,
a barba rala a acariciando, até chegar ao lóbulo de sua orelha.
Ela arqueou o corpo ao sentir aquela carícia e ofegou baixinho.
— Eu preciso... — ele sussurrou em seu ouvido, a boca
passando pela pele sensível.
— Eu também... — Isis estremeceu, semicerrando os olhos. —
Álvaro... Eu também.
E tudo o que existia de razão e pretensão em Isis ficou de lado
conforme Oliveira abaixou a cabeça e reivindicou sua boca.
Todos os seus pesadelos, todas as sombras que a
perseguiam; tudo foi empurrado para o lado naquele momento.
O beijo a queimou, crepitou o ar, a casa.
Um beijo que carregava toda a promessa que ele lhe fizera.
Ela achou que poderia derreter a qualquer momento.
As mãos grandes deslizaram pelas costas de Isis, até
alcançarem as partes de trás de suas coxas, trazendo-a para mais
perto, roçando-a contra cada centímetro rígido dele.
Isis gemeu baixo.
Ele rosnou contra sua orelha.
Ao ser erguida sem nenhuma dificuldade, Isis entrelaçou as
pernas em volta da cintura de Oliveira, descendo as mãos por sua
camisa social, deixando a boca dele devorá-la enquanto abria os
botões.
A necessidade absurda de tocá-lo sem nenhuma barreira era
tão imprescindível quanto o ar que respirava.
Isis não soube como, mas Oliveira jogou tudo o que havia
sobre a mesa e a colocou ali em cima. Os dedos dela ainda
estavam brigando com os botões da camisa dele quando seus
olhares se encontram mais uma vez.
— Matilde não vai gostar dessa bagunça — ela sussurrou,
ofegante, com um meio sorriso.
— A casa é minha. Eu faço o que eu quero. — As mãos dele
se espalmaram e seguraram suas coxas. — E agora só quero você.
A camisa de Oliveira foi para o chão, acompanhando o beijo
voraz com que ele tomou os lábios dela, as mãos afastando e
apertando suas coxas, inflamando cada centímetro de sua pele.
Ela ergueu as mãos, deslizando os dedos pelo peito dele.
Sua boca secou, sua pele formigou.
— Álvaro... Eu...
Uma curva provocativa subiu na boca de Oliveira.
Aquilo roubou todo o ar dela.
— Só por dizer meu nome assim, pequena, vou experimentar
cada pedaço seu.
Um grunhido de desespero saiu da garganta de Isis. O som se
repetiu quando os lábios de Oliveira passaram por sua boca outra
vez, descendo pelo pescoço, até alcançar seus seios. Isis mordeu o
lábio, tentando em vão conter o gemido que subia pela garganta, os
dedos se enterrando nos cabelos dele.
Oliveira respirava rápido enquanto levava a boca até a dela e a
beijava de novo, uma respiração tão irregular e selvagem quanto o
raro tornado que atingira a cidade muitas noites atrás, que fizera
com que seus caminhos se entrelaçassem em meio a um fenômeno
feroz e atípico.
Ela fechou os olhos e suspirou.
Não se lembrava da última vez em que se sentira tão quente,
tão viva.
Os lábios dele voltaram a descer, percorrendo sua pele
despida, seus seios outra vez, descendo mais embaixo, mais
embaixo, deixando carícias preguiçosas pelo caminho, até
chegarem entre suas coxas...
Isis jogou a cabeça para trás, cravando os dedos nos ombros
dele em uma exigência silenciosa; precisava de mais, queria mais.
Ouviu-o grunhir em aprovação.
E aquilo quase a enlouqueceu.
Principalmente quando ele se afastou e a pegou nos braços.
— Não vou conseguir chegar até a cama com você.
Isis se agarrou a ele; não queria chegar a lugar nenhum. Só
precisava dele. Como se todo o seu ser dependesse disso.
Sustentada pelos braços quentes e fortes dele, suas costas
nuas se encontraram com o tapete felpudo.
Deitados, ofegantes, suas bocas se encontraram mais uma
vez, e o beijo durou, queimou e latejou até que não houvesse só
mais um resquício de fôlego para ser sorvido, até que não houvesse
mais nenhuma peça de roupa entre eles, somente o calor da pele
contra pele.
Em cada beijo dele, havia um pedido.
“Fique”.
Em cada beijo dela, havia uma promessa
“Ficarei”.
— Álvaro... Por favor...
O sussurro do pedido dela o desfez.
As mãos de Oliveira tatearam o chão ao redor, procurando
pelas calças, e então pela carteira. O barulho farfalhante da
embalagem de preservativo se misturava ao murmúrio do vento que
entrava pela janela.
Oliveira se posicionou sobre ela, apoiando uma mão no tapete,
a outra se entrelaçando aos cabelos dela, beijando-a ternamente
enquanto deslizava para dentro dela. Aquele primeiro movimento a
fez se esquecer do próprio nome. E conforme ele continuou indo
mais e mais, em um ritmo que ia crescendo, acelerando, arrancando
sons roucos de sua garganta, Isis já não se importava com mais
nada.
Ela ergueu as mãos até o rosto dele, puxando-o para mais um
beijo, reivindicando-o como ele a reivindicava, deixando o corpo se
mover junto dos impulsos profundos, as unhas se arrastando pelas
costas dele, os lábios murmurando seu nome, respondendo a cada
investida, até chegar ao limite que a fez desabar em seus braços.
25
Histórias

— Minha nossa! — Leila soltou um suspiro cansado assim


que checou as horas no visor do seu celular.
Já era tarde da noite.
Seu plantão havia encerrado duas horas atrás, mas, com a
falta de pessoal na clínica e no posto, ela estava dobrando — quase
triplicando — sua jornada. Além disso, também estava prestando
assistência na equipe médica e legista do doutor Thales; uma área
que sempre a interessara.
E por falar na equipe legista...
Leila se levantou, esfregando os olhos. Céus, tinha a sensação
de que poderia dormir por quarenta horas seguidas. Mas, antes de ir
para a casa e desmaiar na cama, faria sua checagem de rotina.
Deixou o consultório e foi até a sala de necrópsia. O corpo do
homem ainda não identificado permanecia sob jurisdição do
hospital. Vários exames e procedimentos já tinham sido feitos, mas
sua identidade permanecia um enigma para todos.
Leila andou até onde o corpo estava armazenado, esperando
encontrar alguma atualização no relatório. Sabia que Oliveira, assim
como a polícia, queria identificar o cadáver. E ela também estava
curiosa. O homem misterioso havia aparecido em circunstâncias
ainda mais misteriosas na fazenda de Oliveira.
Aquilo era um evento incomum demais em Itatiaiuçu.
Tão raro e atípico quanto o tornado violento de que atingira a
região semanas atrás.
Os pensamentos de Leila se esfumaçaram quando encontrou
o local vazio. Olhou em volta, procurando nos outros
compartimentos.
Nada.
Que estranho. Por que o corpo não está em lugar nenhum?
Deixando a sala gelada para trás, Leila atravessou o corredor,
os sapatos clicando no assoalho que sorvia as luzes do teto.
— Mara!
A mulher alta, vestindo um jaleco branco impecável, se virou
para ela, arqueando as sobrancelhas.
— Leila, o que está fazendo aqui ainda?
— Onde está o corpo do desconhecido que foi encontrado na
fazenda do Oliveira? — devolveu com outra pergunta.
— Foi transferido.
— Como assim? Não vi nenhum relatório falando sobre isso.
— A equipe do doutor Thales autorizou a liberação.
A informação a pegou de surpresa.
— O processo de liberação do corpo deve ser acompanhado
por um parente, um cônjuge ou um amigo com autorização do
delegado de polícia local — Leila recordou. — Alguém veio reclamar
o corpo?
— Até onde sei, não. Mas estão investigando a morte dele,
não estão? Por isso o hospital autorizou que o corpo fosse liberado
e encaminhado para uma cidade maior, para ser submetido ao
Serviço de Verificação de Óbitos.
Leila franziu o cenho.
— Mas o Serviço de Verificação de Óbitos é o exame feito nos
corpos de pessoas que morreram sem assistência médica ou por
causas naturais desconhecidas. Não é feito em vítimas de violência.
Nosso homem sem identificação não se encaixa no SVO.
A mulher agitou a mão no ar; Leila notou que Mara estava tão
cansada quanto ela.
— Pense que é um trabalho a menos para nós, Leila. Já temos
coisa demais nessa cidade, e falta gente atuando nas áreas
médicas. Estamos sobrecarregados. Deixe que outras pessoas
cuidem desse desconhecido. Vamos nos ater aos vivos que
precisam de nós.
Leila abriu a boca para repudiar aquele tipo de pensamento
que parecia enraizado em seus colegas de trabalho; mas, então, o
celular de Mara tocou, e ela precisou se afastar para atender a
ligação.
— Vá para casa, Leila. Descanse. Você está com olheiras.
Fechou a boca.
Certo. Ela faria aquilo.
Mas só porque se sentia à beira do esgotamento e do
cansaço.
E, no dia seguinte, com a mente limpa e recuperada,
investigaria melhor aquela história que estava soando estranha
demais aos seus ouvidos.

◆◆◆

Pela janela, o brilho prateado do luar se derramava pela sala.


Ainda deitada no tapete, Isis fechou os olhos, imersa em todas as
sensações que vibravam e ardiam por seu corpo.
— Por que você está tão quieta? — Oliveira perguntou.
Sem se soltar do calor envolvente dos braços dele, Isis o fitou.
— Porque você continua me surpreendendo.
— Besteira. Sou um cara simples e prático, pequena.
— Achei que depois de toda a confusão, do ataque, de tudo o
que aconteceu em Belo Horizonte... Você gritaria comigo e exigiria
explicações. E não que...
— Bom, quando chegamos em casa, eu já estava pronto para
ouvir toda sua história. — A boca dele deslizou pela curva do
pescoço dela, arrancando um suspiro trêmulo de Isis. — Mas minha
razão se incinerou assim que me aproximei de você. Assim que te
ouvi dizendo que não queria ir embora. E tudo o que eu mais
precisei naquele momento, antes de uma história, era ter você nos
meus braços.
Ouvi-lo dizer aquilo, aquelas palavras sinceras que vinham do
fundo de um homem recluso e reservado, derreteu as bordas do
coração de Isis.
Ela virou a cabeça, buscando pelos lábios dele, deixando que
o beijo transmitisse tudo que gritava em sua alma.
— Por mais que eu queira ficar aqui para sempre, temos que
buscar o Davi na casa da Matilde — Isis sussurrou, a boca ainda
roçando na dele. — E, quando retornamos, te contarei tudo o que
aconteceu comigo.

◆◆◆

Um pouco mais tarde, Isis e Oliveira estavam de volta com


Davi.
Segurando o filho sonolento nos braços, Isis se sentou em um
sofá. Oliveira se acomodou na poltrona, em frente a ela.
O tempo se arrastou, incontável, crepitante.
Isis se remexeu no sofá, esperando que Oliveira perdesse a
paciência e exigisse logo as explicações.
Mas ele não a pressionou.
Soltando o ar mais uma vez, Isis correu os dedos pelos
cabelinhos macios de Davi e fitou Oliveira.
— Meus pais eram viciados. Minha mãe morreu de overdose e
fiquei sob a guarda da minha tia. Aquela mulher nunca gostou de
mim e sempre deixou claro que fui um fardo na vida dela. — A voz
de Isis falhou, e ela precisou inspirar fundo. — Nunca senti que
pertencia a um lugar, sabe? Quando entrei em fisioterapia, em uma
universidade pública que ficava longe da casa onde cresci, achei
que poderia recomeçar. Nunca achei que todos os meus sonhos e
expectativas...
Isis parou, perdida e incerta nas próprias palavras.
Ergueu o rosto; o olhar gentil, paciente e compreensivo de
Oliveira lhe deu a confiança que precisava para continuar.
— No primeiro dia de aula, na recepção dos calouros, conheci
bastante gente. Entre eles, dois veteranos. Bruno, que é o pai do
Davi. E Natanael, o melhor amigo do Bruno e que, um ano depois
da recepção, transformou minha vida em um inferno.
26
Justiça injusta

Quatro anos atrás

A casa do lago da família de Natanael era tudo aquilo que


Bruno havia descrito para ela. Elegante, afastada, um sonho tirado
da página de uma revista.
Isis bufou, esfregando a nuca. Queria ir embora. Queria ter
uma conversa séria com Bruno. Uma conversa que mudaria a vida
deles. Mas, toda vez que tentava falar com o namorado, ele abria
outra lata de cerveja e dançava feito um idiota com os colegas,
fazendo piadinhas inconvenientes.
Bufou outra vez e se levantou, acometida por outra onda de
enjoo.
Atravessou o gramado impecável, admirando a casa com a
fachada imponente, Os tons pastéis do interior a receberam com um
abraço frio. As superfícies duras e impecáveis pareciam afiadas.
Podia escutar a música que vinha do lado de fora, os risos e as
gargalhadas.
Isis parou no meio do saguão de mármore branco. O lustre de
cristal, no centro do cômodo amplo, lançava um brilho gelado em
sua pele.
Uma sensação estranha a assolou.
Estava prestes a se virar e voltar para fora quando ouviu o
grito.
Um grito abafado, que parecia vir de um dos cômodos.
Seu coração acelerou. Ela quase ignorou aquilo. Mas o grito
veio de novo e de novo, feminino e familiar.
— Vic... — murmurou o nome da amiga.
Como se uma força maior que sua vontade a puxasse, Isis
seguiu pelo corredor, até parar diante de uma porta entreaberta.
Havia três pessoas ali dentro.
— Ninguém diz não para mim, garota — Natanael sibilou. —
Entendeu?
Vic gritava desesperada enquanto Natanael investia contra ela,
segurando seu pescoço, tentando calá-la, dizendo obscenidades e
fazendo o outro cara ao seu lado rir.
Isis congelou no lugar.
E não conseguiu se mexer.
Até que Vic parou de respirar.
— Porra! Porra, Natanael! Você a matou! Porra, ela tá morta!
A visão de Isis ficou embaçada. Só podia ser um sonho. Um
maldito pesadelo. Ela acordaria a qualquer instante, no seu quarto
da república ou no quarto de Bruno.
Vic não estava morta.
Não poderia ter sido estuprada e assassinada na sua frente.
“Acorde, garota, acorde”.
Mas seu corpo permanecia firme no lugar.
Os olhos, muito abertos, muito conscientes.
Porque aquilo era real.
Isis levou as mãos à boca, calando qualquer som involuntário
que queria sair dali. Tentou recuar lentamente, segurando o choro
trêmulo, a respiração ofegante, as batidas descompassadas do
coração.
A saída estava perto... Mais perto...
Quase...
Como uma conspiração cruel do universo, a música cessou do
lado de fora, e o som dos seus passos foi denunciado.
— Ei, que merda é essa?
As cabeças se viraram em sua direção.
— Tem alguém ali!
Os olhos de Natanael dobraram de tamanho.
— Porra! É a namorada do Bruno!
Um surto de adrenalina encheu as veias de Isis.
Ela se virou e correu.

◆◆◆

A casa do lago foi ficando para trás conforme Isis aumentava a


velocidade dos passos, tremendo e chorando.
Aquilo não podia ser real. Não podia.
“Mas era”.
Ela engoliu em seco, puxando o celular. Precisava falar com
alguém. Precisava chamar a polícia. Um soluço saiu da sua
garganta. Céus, conhecia os pais de Vic. Havia passado as férias
com a família dela. Eram pessoas simples e amorosas. Uma família
que amava a única filha. Eram a família que Isis sempre sonhara em
ter.
E que a agora seria destroçada por conta de um filho da puta
mimado que não sabia aceitar um “não”.
O celular escorregou de suas mãos trêmulas.
Ela caiu de joelhos na terra, chorando e ofegando.
— Isis! — Bruno correu até ela, agachando-se ao seu lado. —
Gata, você está bem? Calma, não precisa chorar.
— Como não?! A Vic está morta! Eu vi o que Natanael fez com
ela!
— Não pense nisso. Você não sabe o que viu.
Isis esfregou o rosto e o encarou, perplexa.
— Eu sei o que vi!
— Isis...
— Estou grávida, Bruno.
Ele piscou, pego de surpresa.
— Quando...
— Descobri hoje de manhã, antes de virmos para cá. Tentei te
contar o dia todo, mas você não me deu atenção. E agora... — As
lágrimas aflitas voltaram a rolar pelo rosto dela.
Não conseguia se esquecer das mãos de Natanael sobre Vic,
dos gritos de socorro dela, da forma como ele havia se investido
contra sua amiga, tomando-a até que sua vida estivesse drenada.
— Calma, calma. — Ele passou os braços ao redor dela. —
Vai ficar tudo bem. Eu cuidarei de você e do nosso bebê.

◆◆◆

Isis estaria mentindo para si mesma se dissesse que havia


conseguido dormir direito naquela noite.
Suas horas escassas de sono foram invadidas pelo rosto de
Vic, pela voz da amiga que pedia socorro, pela mão que ela esticava
e que Isis não conseguia segurar.
— Bom dia, meu amor!
Ao abrir os olhos, enjoada e esgotada, Isis se deparou com o
semblante sorridente de Bruno. Ele estava tão leve, tão tranquilo,
que, por um momento, ela achou que tudo o que havia
testemunhado na noite anterior não passara de um horrível
pesadelo.
Contudo, logo a realidade a cortou como uma foice impiedosa.
Vic estava morta. Estuprada, asfixiada e assassinada por
Natanael.
Com as imagens pulsando vividamente na cabeça, Isis jogou
as cobertas para o lado e correu até o banheiro. Vomitou sem parar.
Só retornou para o quarto quando não havia mais nada em seu
estômago para colocar para fora.
— Precisamos conversar, Bruno.
— Sim. Precisamos mesmo. — Ele fez Isis se sentar na cama
ao seu lado e lhe mostrou a foto de um apartamento no celular. —
Gostou?
Isis arqueou as sobrancelhas.
— O que é isso?
— É o apartamento que a família de Natanael vai nos dar de
presente. Pelas fotos, é enorme. Podemos viver aqui. Podemos criar
nosso bebê aqui.
— Eles estão nos subornando.
— É um presente, gata. Não leve tudo a ferro e fogo. O que
acha? — Bruno balançou o celular diante dela. — Nosso futuro lar.
“Lar”.
Ela se viu engolindo em seco, descendo as mãos para o
ventre. Sempre ansiara por um lugar para pertencer, para chamar
de seu, para criar a família que nunca tivera.
Agora, a chance brilhava ali, diante dos seus olhos.
Quase se sentiu tentada.
Quase.
Mas se o lar que sempre sonhara fosse construído em cima de
sangue, mentiras, podridão e segredos, jamais seria um lar
verdadeiro.
Isis empurrou o celular e a foto do apartamento para longe.
— Vamos denunciá-lo. Seu pai é o delegado. Ele pode nos
ajudar.
Bruno agitou a cabeça.
— Está maluca, gata? Natanael é meu melhor amigo. E
ninguém mexe com ele ou com a família dele.
— Mas a Vic...
— Foi um acidente infeliz.
Isis ergueu o rosto, fuzilando Bruno com o olhar.
— Não foi um acidente. Natanael cometeu um crime.
— Pessoas boas também erram, gata.
— Escute só o que você está dizendo! Acobertar o Natanael
nos fará tão criminosos quanto ele. Essa história pode se virar
contra nós um dia, sabia? Como cúmplices, podemos ser jogados
na cadeia. E quem vai cuidar do nosso bebê se isso acontecer?
— Não se preocupe, Isis. — O maldito e relaxado sorriso
continuava ali na boca de Bruno. — A família do Natanael é
poderosa pra caralho. Enquanto jogarmos o jogo, nada dará errado.
Ela piscou, perplexa demais. Só sentia uma raiva visceral
subindo pelas veias, um desejo absurdo de manter o filho ou a filha
que carregava longe de Bruno.
— Uma hora eles podem se cansar do jogo. E a parte mais
fraca, Bruno, nesse caso, você e eu, sofrerá as consequências.
— Vou tomar um banho. Tente se esquecer de tudo isso. —
Bruno depositou um beijo no topo de sua cabeça. Isis precisou se
segurar para não vomitar. — Se você se animar, podemos dar uma
olhada no apartamento que Natanael dará de presente para nós e
para o nosso bebê. O que acha?

◆◆◆

Isis esperou que Bruno entrasse no banho para trocar de


roupa, lavar o rosto, pegar a bolsa e deixar o quarto dele.
Atravessou a república, ignorando os rapazes que andavam de
um lado para o outro. Ao pisar do lado de fora, um tremor agitou
seus ossos.
Ela inspirou fundo. Precisava fazer o que era certo.
Pelo seu bebê.
Pelo exemplo que queria dar para ele ou ela.
E pelos pais de Vic, pela família que eram. Eles mereciam ter
a verdade. Eles mereciam que a vida ceifada da filha fosse
lembrada. Mereciam justiça.
Isis subiu no primeiro ônibus que conseguiu e desceu perto da
única delegacia da cidade. Não encontrou o pai de Bruno. Assim,
dois policiais a levaram até uma das mesas e ela contou tudo.
Tudo o que havia visto, ouvido e testemunhado na noite
anterior.
Porque jamais poderia viver em paz se a justiça não fosse feita
para Vic. Que tipo de mãe ela seria se acobertasse um crime brutal
como aquele? Como poderia criar sua criança em um mundo em
que ela mesma deixara pior?
— Você tem muita coragem — alguém disse, apoiando a mão
em seu ombro. Ela olhou para o lado, vendo o delegado, que
também era o pai de Bruno. — Isso é admirável. Deveria se orgulhar
de si mesmo, garota.
— Só fiz o que achei que era certo. Sei que a família do
Natanael é poderosa e influente, mas... Isso não dá lhes dá o direito
de acobertar uma morte.
— Eu sei. Você fez o certo e todos nós admiramos sua
coragem e bravura. Meu filho namora uma garota de ouro.
Cuidaremos de tudo. E também vamos cuidar de você.

◆◆◆
Ao sair da delegacia, Isis soltou o ar demoradamente. Sabia
que Bruno ficaria puto com ela. Mas não poderia mentir para si
mesma. Não poderia deixar nenhum criminoso se safar. Quantas
mulheres morriam diariamente, violentadas, abusadas, sem jamais
terem o direito à justiça?
Não permitiria que Natanael saísse impune da morte e do
estupro de Vic.
Além disso, o pai de Bruno era um homem da lei.
A justiça deveria prevalecer para ele acima de tudo, certo?
Diferente do filho, o delegado a ouvira e a apoiara. Como
qualquer homem ou mulher em sua posição deveria fazer. Aquilo
era tudo o que Isis precisava para ter certeza de que havia feito a
coisa certa.
Enquanto caminhava pela calçada, sentindo um frio estranho
lamber sua pele, Isis se pegou olhando várias vezes para o lado.
Havia uma sensação obtusa de estar sendo vigiada.
Assustou-se quando uma viatura policial parou ao seu lado.
Com o canto dos olhos, ela viu os dois policiais que haviam tomado
seu depoimento.
— Entre. Vamos te levar até a sua casa.
— Obrigada, mas não é necessário. Vocês têm trabalho mais
importante do que me dar uma carona.
— Entre — o policial insistiu, a voz calma, confiante. — Você
acabou de fazer uma denúncia contra uma das famílias mais
influentes da nossa cidade. Para sua própria segurança, nós
ficaremos com você.
Isis sentiu um alívio avassalador.
Abriu a porta traseira da viatura e entrou.
Queria chorar, queria gritar, mas sabia que precisava se
controlar ao máximo. Pela criança que carregava dentro de si.
— Vou participar de algum Programa de Proteção à
Testemunha? Sei que isto mudará minha vida, mas não me importo,
contanto que a justiça seja feita.
Um dos policiais lhe estendeu uma garrafa de água. Isis a
aceitou e a agradeceu, sorvendo vários goles do líquido.
— O delegado cuidará de tudo.
Ela assentiu e bebeu toda a água. Abriu a boca para fazer
mais perguntas.
Mas, de repente, a vista turvou.
O olhar de Isis rolou para a garrafinha vazia que ainda
segurava.
E sua última lembrança foi estar caindo contra o banco da
viatura antes do mundo escurecer ao seu redor.

◆◆◆

Sentindo uma dor terrível por todo o corpo, Isis lutou para abrir
os olhos e assimilar o que havia acontecido.
Com dificuldade, percebeu que havia anoitecido e que estava
no meio de um bosque, ou algo do tipo. Puxou o ar, buscando todas
as forças para recuperar o controle sobre seus músculos. Um gosto
amargo enchia sua boca.
Erguendo parcialmente a cabeça, enxergou dois homens um
pouco mais à frente de onde ela estava. Eram os policiais.
— Isso é mesmo necessário? — um deles indagou.
— São ordens do delegado, que recebeu ordens do pai do
Natanael. Já estamos bem longe da cidade. É hora de fazer uma
queima de arquivo.
O coração de Isis bateu mais rápido. Eles a matariam.
Não soube como, mas uma adrenalina feroz rugiu dentro dela.
E, quando percebeu, deu um impulso para cima, se levantando e
correndo para longe.
— Porra! A filha da puta está fugindo!
Aquela foi a última coisa que Isis entendeu.
Ela correu cegamente por entre as árvores, os olhos
arregalados, a respiração ofegante. Queria gritar por socorro. Mas e
se a ouvissem antes que alguém a resgatasse? Seria capturada.
Seria morta. Seu bebê seria morto.
Além disso, em quem poderia confiar?
Os policiais estavam comprometidos. Pelo jeito, a família de
Natanael tinha poder para ditar uma justiça paralela.
A realidade caiu sobre ela. Talvez tivesse sido ingênua. Mas,
no fundo do seu coração, se o tempo voltasse, sabia que teria feito
a denúncia do mesmo jeito.
Porque, um dia, a vítima era Vic.
No outro, poderia ser ela próprio.
E, no outro, até mesmo seu bebê.
Ela quisera quebrar o ciclo. E agora pagaria o preço por uma
justiça injusta.
Isis lutou contra o instinto de correr para o descampado. As
sombras, a noite e as árvores teriam que ser suas aliadas. Não
sabia se havia outros policiais corruptos por perto. Como poderia
saber se não trombaria com alguém comprado pela família de
Natanael? Se alguém abrisse a porta de uma casa, como poderia
ter certeza de que não seria entregue em troca de suborno e
promessas?
Ela tinha que correr, se afastar, achar um esconderijo.
O eco retumbante dos tiros lhe deu mais força para correr.
“Não olhe para trás”.
Seus dentes batiam. Suor, frio, tremor, tontura, náusea; tudo
era um redemoinho dentro e fora dela.
Puxando o ar, Isis levou a mão ao ventre. Não podia desistir.
Havia mais uma vida que dependia dela.
Agarrando-se ao fio de esperança, ela continuou correndo, até
desaparecer, até ter certeza de que seus perseguidores haviam
perdido seus rastros.
Todos haviam prometido que cuidariam dela.
Mas a verdade era uma só. A verdade certeira e solitária que
conhecera e saboreara durante toda a sua vida.
Ela era a única que podia cuidar de si mesma.
27
Um novo horizonte

— Fui ingênua e inocente. Mas, naquela época, sozinha no


mundo, com meus vinte e um anos, esperando um bebê, eu quis
acreditar que poderia trazer alguma justiça para a minha amiga.
Quis confiar no sistema, nas pessoas que assumiram cargos para
protegerem gente como eu, como a Vic. — Isis suspirou,
entrelaçando os dedos das mãos, os braços ao redor do filho
adormecido. — Mas, infelizmente, a justiça faz distinção entre
pobres e ricos. E, até hoje, pago o preço por ter denunciado um cara
tão nojento como Natanael. Porque a família dele ainda está atrás
de mim. Porque sou um risco. Porque, enquanto eu estiver viva, o
império deles está ameaçado.
Oliveira deixou a respiração suspensa, cerrando os punhos
nos braços da poltrona, enquanto o relato de Isis entrava em seus
ouvidos.
Era por isso que ela ficava acuada na presença de qualquer
policial ou investigador.
Isis havia passado por um trauma, por uma experiência que a
fizera perder a confiança em figuras de autoridade.
Como um militar, um homem movido pelo dever, pelo código
de honra e pelo propósito de servir, Oliveira desejou pegar pelo
pescoço aqueles malditos corruptos que manchavam e denegriam a
imagem de toda a organização e de todos os tipos de redes de
segurança do país.
— Você não foi ingênua ou inocente — ele sibilou; a raiva que
sentia por todos aqueles que haviam jogado Isis naquele inferno
borbulhava em suas veias. — Você fez a coisa certa. Foi mais
corajosa do que muita gente que há por aí. Só que foi traída por
quem deveria te proteger.
O lábio inferior de Isis tremeu, e ela apertou Davi com mais
força, como se segurasse o choro e o desespero que vinha
carregando ao longo daqueles anos.
Vê-la daquele jeito o enfureceu ainda mais.
Ele queria meter uma bala na cara do tal Natanael.
Ele queria meter uma bala no delegado responsável e nos dois
policiais corruptos que acataram a ordem de execução.
Mas, mais do que tudo, queria pegar Bruno pelo colarinho da
camisa e dar a ele uma verdadeira demonstração do inferno. Porque
aquele tipinho nunca poderia se considerar um homem. Era um
maldito moleque que entregara a namorada, a futura mãe de seu
filho, para a morte, em troca de salvar o próprio rabo.
— E como você passou por tudo sozinha? Pela gravidez? — a
pergunta foi um sussurro rouco.
Oliveira se lembrava de Sofia, dos primeiros meses de
gestação, de todos os cuidados e carinho que oferecia para ela. Sua
falecida esposa até “brigava” de um jeito divertido com ele, dizendo
que estava sendo sufocada com tantos mimos e com tanta
proteção.
Isis baixou os olhos, acariciando os cabelos de Davi.
— Durante um tempo, encontrei abrigo em um convento. As
freiras cuidaram de mim e acompanharam minha gravidez. Em troca
da hospedagem, trabalhava para elas, cuidava do jardim, dos
aposentos, da comida, até a gravidez atingir um estágio avançado.
Quando entrei em trabalho de parto, me recusei a ir a um hospital.
Tinha muito medo de ser encontrada pela família de Natanael ou por
algum policial que conhecesse o pai de Bruno. As freiras trouxeram
um médico de confiança e Davi nasceu no convento.
Imaginar Isis passando por tudo aquilo sozinha, em um
ambiente recluso e silencioso, triplicou a fúria de Oliveira.
O maldito moleque havia engravidado e abandonado uma
mulher incrível. Ah, se ele aparecesse na sua frente... Se ele
tentasse qualquer contato com Davi e com Isis...
Oliveira prendeu a respiração; a qualquer momento, seria
capaz de cravar as unhas nas palmas das mãos cerradas.
— Desde que escapei dos policiais, vivi com medo. Mas
depois que Davi nasceu... Naquelas primeiras semanas depois do
nascimento dele, fiquei em pânico. Meus pensamentos corriam a mil
por hora. Repetia para mim mesma: “Fuja, fique longe, escondida,
proteja seu filho. Se Natanael te encontrar, ele vai te matar. Se as
autoridades te encontrarem e forem corruptas como o pai de Bruno,
vão te matar. Vão te separar do seu filho”. E daí, depois de juntar
algumas economias, parti do convento.
Levantando-se da poltrona, porque não conseguia mais ficar
parado, Oliveira andou de um lado para o outro, correu os dedos
pelos cabelos, bufou, e então se sentou ao lado de Isis, segurando
uma de suas mãos.
— Quando Davi tinha um ano e meio, consegui um emprego
legal em Rio das Ostras.
Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso.
— Rio das Ostras?
— Vivi em tudo quanto é cidade que você possa imaginar...
Enfim, achei um bom trabalho, com um bom pagamento, em uma
cidade bonita. Foi a primeira vez que comecei a me sentir
confortável, quase segura. Até coloquei Davi em uma creche para
poder me focar mais no trabalho e juntar dinheiro para nos dar uma
vida boa. Mas...
— Mas...
Isis engoliu em seco, e Oliveira segurou sua mão com mais
força.
— Um dia, eu o vi. Natanael. Com os pais. Deviam estar a
passeio na cidade. Eles saíram do carro no exato momento em que
eu descia no ponto de ônibus. Natanael olhou direto para mim. Um
olhar mortal. Um olhar que me dizia que ele me caçaria aonde quer
que eu fosse.
Quando Isis começou a tremer, Oliveira exalou forte e passou
os braços ao redor dela, trazendo a ela e ao filho para junto de seu
peito.
— Lembro-me de congelar. Paralisei da mesma forma quando
o vi com Vic. — A voz de Isis vacilou. — Ele começou a andar em
minha direção, tentou agarrar meu braço. Corri sem pensar duas
vezes. Quase fui atropelada. Nunca soube se ele correu atrás de
mim, pois não olhei para trás uma só vez. Me escondi. Peguei Davi
na creche assim que consegui e parti de Rio das Ostras, temendo
que pudessem localizar meu filho através dos registros públicos.
— Para onde você foi?
— Nunca mais tive um destino fixo. Estou sempre em
movimento. Sei que isso não é saudável para a criação de uma
criança, mas foi a única forma que encontrei de manter Davi a salvo.
Fico pouco tempo no mesmo lugar, arranjo empregos que não
necessitam de registros e muitos documentos, mudo de identidade,
de aparência... — Isis fechou os olhos por um momento. — É um
ciclo sem fim.
— Então está mais do que na hora de encerrar esse ciclo.
— Como assim?
Ele se virou para ela.
— Você não acha que vou permitir que esses filhos da puta
continuem andando livres por aí, acha? Que vou permitir que eles
vivam suas vidas de riquinhos, enquanto você passou todos esses
fugindo e criando seu filho sozinha?
O rosto de Isis empalideceu.
— Eles são perigosos. Veja, conseguiram me encontrar!
— É isso que não sai da minha cabeça. Como te
encontraram? Como sabiam que você estava em Belo Horizonte?
Isis meneou a cabeça.
— Eles têm contatos dentro da polícia, com todo o tipo de
gente que você possa imaginar. Podem destruir nossas vidas.
— Eu também tenho contatos.
— Álvaro, por favor...
Davi resmungou nos braços de Isis, sonolento e cansado.
Ela suspirou.
— Preciso colocá-lo na cama.
A contragosto, Oliveira puxou os braços e deixou que Isis se
levantasse e fosse até o quarto. Levantou-se, seguindo para o
corredor. Um pouco depois, ela já estava de volta.
Ele queria insistir no assunto, não queria deixar aquilo de lado.
Mas percebeu que muita coisa já tinha acontecido naquela noite.
Reviver todas aquelas memórias não deveria ter sido fácil para Isis.
E não desejava que ela fosse para a cama cheia de pensamentos
angustiantes.
Em silêncio, Oliveira a segurou pela mão e a levou até o
próprio quarto, seguindo para o banheiro. Abriu o chuveiro. O vapor
da água quente não demorou para envolvê-los.
Lentamente, tirou peça por peça da roupa de Isis, beijando
cada pedaço da pele que despia, ouvindo-a suspirar e retribuir seus
toques. Depois, tirou as próprias roupas e foi com ela para baixo do
chuveiro.
Os braços de Isis o envolveram, e ele a abraçou; não
conseguia dizer nada, mas não achava que nenhuma palavra seria
necessária.
Seu corpo molhado e rígido se apertou contra o dela. Oliveira
a beijou enquanto a água caía sobre eles, deslizando as mãos por
sua pele macia, até tê-la onde queria, do jeito que queria. Os olhos
dela tinham voltado a brilhar, mais vivos, mais belos.
Segurando-a pelos quadris, Oliveira pressionou as costas de
Isis contra os azulejos molhados e a tomou em uma só investida.
Isis arfou, agarrando-se a ele, instigando-o a se mover rápido, sem
parar, até que os dois estremecessem e ficassem sem fôlego nos
braços um do outro.
A água continuou caindo, e Oliveira a beijou mais uma vez,
sorvendo o gosto, a delicadeza, tudo o que havia naquela garota.
Cada um dos seus toques, dos seus beijos, era correspondido por
Isis na mesma intensidade.
Ele a colocou no chão, fechou o chuveiro. Isis pegou uma
toalha, secando os cabelos em silêncio. Seus olhares se
comunicavam através do reflexo embaçado do espelho. Oliveira
parou atrás dela e beijou seu ombro, arrancando outro suspiro de
seus lábios.
— Você mexe demais comigo, pequena. Bagunçou minha
vida, como o tornado que atingiu a cidade na noite em que te
encontrei aqui.
Isis fechou os olhos, recostando a cabeça em seu peito.
Aquele gesto espalhou em Oliveira uma sensação de
completude, de pertencimento, de... Recomeço.
De um horizonte novo, que ainda existia, mesmo depois da
perda de Sofia e do filho que ela carregava.
— Durma comigo essa noite — ele pediu em um murmúrio
rouco, descendo os lábios por sua orelha.
— E se o Davi acordar...?
— Deixamos a porta aberta. Assim, podemos ouvi-lo.
Através do espelho, Oliveira enxergou o sorriso cálido que
manchou os lábios dela.
Seu coração disparou de um jeito completamente novo,
inesperado.
Com um movimento ágil, girou Isis e a ergueu no colo,
arrancando uma exclamação surpresa e divertida dela, e a carregou
até a cama, onde ficou ao seu lado pelo resto da noite.
28
Lições

Ela se desesperou quando percebeu que estava na casa do


lago.
Mas, diferente das outras vezes, não havia música.
E o silêncio foi ainda mais assustador para Isis.
— Mamãe! Mamãe!
O coração de Isis bateu mais rápido.
— Davi! Davi!
Ela correu pelo interior da casa, que ficava cada vez mais,
cada vez mais espaçada. Ouvia o filho, mas não o via em lugar
algum.
— Davi!
Risos ecoantes arrepiaram os pelos dos seus braços. No outro
extremo do cômodo, Isis enxergou Natanael e Bruno; o primeiro,
vestido como o playboy mimado que era; o segundo, segurando
uma garrafa de cerveja na mão e sustentando o semblante de
capacho e pau mandado.
— Onde está o meu filho?!
Eles não responderam.
Isis girou nos calcanhares, apavorada; os risos de Natanael e
Bruno cadenciavam notas arrepiantes no ar.
— Cadê o Davi?
Eles não respondiam.
Apenas se olhavam e riam.
— Não há o que você fazer, Isis. — De repente, Natanael
estava atrás dela. — Pois meu pai sempre vai me acobertar.
Ela se virou e recuou, colidindo subitamente com o corpo de
Bruno.
— Não há ninguém para você pedir ajuda, Isis... Pois meu pai
sempre vai me proteger.
Isis os empurrou e correu, gritando o nome de Davi.
As paredes se moviam, se transformando em um labirinto. Ela
conseguia ouvir o filho chorando, mas não o encontrava em lugar
algum.
Quando as paredes mudaram de novo, Isis se viu dentro de
um quarto branquíssimo e impecável. Havia uma mulher deitada na
cama. Uma poça escarlate a rodeava.
— Vic!
Isis se desesperou. Se fosse rápida, se chamasse ajuda,
poderia salvar sua amiga. Poderia impedir que...
Um arquejo saiu da sua boca.
A mulher deitada na cama tinha se transformado.
Não era mais Vic.
Por alguns segundos, Isis demorou para reconhecê-la; mas,
lentamente, as feições dela foram se tornando mais familiares. Era a
mesma mulher do porta-retrato na sala de Oliveira.
Sofia.
Ela entreabriu os lábios, tentando falar.
— Calma. — Isis tremeu, olhando em volta, procurando algo
para estancar o sangue. — Não se esforce. Eu vou te ajudar.
As mãos de Sofia apoiavam-se no ventre ensanguentado;
seus olhos, grandes, nublados, miravam dentro dos olhos de Isis.
— É uma questão de sangue...
Isis se inclinou para mais perto dela.
O hálito de Sofia roçou em sua bochecha.
— Onde o pai protege e acoberta o filho... E filho protege e
acoberta o pai.

◆◆◆
Como sempre acontecia quando tinha um pesadelo, Isis
acordou assustada, sem fôlego.
O coração batia tão alto que ela achou que ele saltaria do peito
a qualquer instante, que ecoaria por todo o quarto.
O quarto...
Isis se deu conta de que não estava no quarto de hóspedes, e
sim no quarto de Oliveira.
Onde tive a melhor noite de toda a minha vida.
Ela se virou, notando que a cama estava vazia. Puxou e
abraçou o travesseiro de Oliveira, apertando-o junto ao peito,
inspirando o cheiro atado ao tecido, e só se levantou quando sentiu
que as batidas do seu coração haviam se estabilizado.
Depois de se levantar, ir ao banheiro e trocar de roupa, passou
no quarto onde Davi estava. Seu filho ainda dormia. Ela suspirou e
se encostou ao batente da porta, observando-o. Não se lembrava da
última vez em que vira Davi dormir tão sereno, tão profundo. Todo o
ambiente da fazenda era bom para ele.
E para ela.
Seu corpo estremeceu, esquentou; as sensações ardentes da
noite ainda vibravam por sua pele.
Jogando os cabelos para trás do rosto ruborizado, Isis deu um
beijo no filho e encostou a porta do quarto. Caminhou em silêncio
pelo corredor, até parar diante do escritório de Oliveira. A porta
estava entreaberta e, pela fresta, podia vê-lo sentado à mesa, diante
do computador.
Olhá-lo ali, mesmo à distância, fez seu coração disparar, os
dedos formigarem, sua boca desejar pela boca faminta dele, por
cada toque selvagem e impetuoso.
Suas pernas ameaçaram bambear.
Minha nossa!
Ela quase ofegou com a voracidade da imaginação.
— Pode entrar, pequena.
Surpresa por ele ter notado sua presença, mesmo estando tão
concentrado no computador, Isis terminou de abrir a porta e
adentrou no escritório. O cheiro amadeirado da decoração invadiu
suas narinas.
— Não conseguiu dormir? — ela perguntou.
— Perdi o sono há uma hora. Lucas me mandou mensagem.
Dimitri, Alex e ele estão investigando o homem que apareceu aqui
na fazenda noites atrás, para ver se descobrem sua identidade.
O homem que fez acusações sobre a morte de Sofia.
Um arrepio lambeu a nuca de Isis.
As imagens dos sonhos pulsaram vívidas atrás dos seus
olhos.
Tentou afastar aquelas cenas com um movimento de cabeça.
— E eles vão conseguir descobrir a identidade dele, sendo que
nem a polícia, nem o hospital, nem você descobriu?
— Eu treinei aqueles dois. E posso dizer que os alunos
superaram o mestre. São bons no que fazem. Só hesitei em pedir a
ajuda deles porque não queria envolvê-los nos meus problemas.
Dimitri e Lucas possuem suas próprias parcelas de tormento para
resolver.
— E algo me diz que vocês não usam meios legais para
descobrirem certas informações.
— Algo me diz que você está certa. Mas não sei se eles
encontrarão algo. Ordenei para que aqueles dois não se metessem
em problemas.
Ela esboçou um sorriso; Isis descobriu que adorava a forma
como Oliveira falava de Dimitri e Lucas. Como ela nunca tivera
amigos de longa data, admirava a amizade que existia entre os três.
— E você, está bem? — Oliveira indagou, erguendo o rosto. —
Achei que dormiria até tarde.
— Tive um pesadelo. Creio que reviver o passado mexeu
comigo.
— Vamos resolver tudo isso. Tanto a identidade do sujeito que
apareceu aqui e a verdade por trás das acusações que fez, quanto
sua situação com aquele riquinho mimado e com os policiais
corruptos.
— Já falei que é perigoso demais e...
Oliveira ergueu um dedo, cortando-a.
— Isso está fora de discussão. Chega de fugas para você.
Chega de viver com medo.
Isis bufou e revirou os olhos. Oliveira a acusava de ser
teimosa, mas ele também era teimoso igual a uma mula.
— Ok. Só não me deixe de fora. Me conte tudo o que
descobrir.
— Combinado. Quer tomar café? Comeu um pão?
— Acordei com o estômago meio embrulhado. Acho que vou
demorar um pouco para sentir fome.
— Tem algum plano para agora cedo?
— Só preciso atualizar a agenda de entrega das hortaliças.
— Bom, deixe a agenda para depois. Já que você está em pé
e não quer tomar café, podemos adiantar uma coisa que planejei
para hoje.
— Tem a ver com meu trabalho?
Oliveira negou e apanhou uma sacola preta, que estava ao
lado da mesa, e ficou em pé.
— Venha comigo, pequena.
Isis assentiu e o seguiu para fora da casa, perguntando-se
para onde estavam indo enquanto atravessavam uma trilha de
pedregulhos. Os ombros largos de Oliveira enchiam sua vista, e
tudo o que ela conseguia pensar era nas sensações da noite
passada, no calor que o corpo forte e grande dele provocara no seu.
Quando Oliveira a fitou de soslaio, Isis baixou o rosto, as
bochechas ruborizadas.
Mesmo fitando o chão, tinha certeza de que podia sentir o
sorriso de canto, todo provocativo, que se insinuava na boca dele.
Eles pararam em uma clareira; os primeiros raios de sol se
insinuavam pela copa das árvores. Havia um suspiro de névoa no
ar, um toque adormecido na mata.
— Aqui é um bom lugar.
— Para...? — Isis indagou, curiosa.
— Para eu te ensinar a atirar.
Ela arregalou os olhos, ligeiramente surpresa.
Oliveira soltou a sacola que segurava no chão e tirou uma
arma de lá de dentro. Estendeu-a para Isis. Cautelosa, ela a
observou; era pequena, preta, ideal para ser carregada com
discrição.
— Acha mesmo que isso é necessário, Álvaro?
— Sim. — Oliveira encaixou os dedos de Isis na arma; o
contato entre suas peles provocando arrepios nela. — Prometi que
te protegeria. Que protegeria o rapazinho. Mas pode ser que nem
sempre eu esteja por perto. E ficarei mais aliviado sabendo que
pode se defender sozinha.
Isis pensou no pesadelo, na sensação de impotência, nos risos
odiosos de Natanael e Bruno, no medo que a devorou quando não
conseguiu encontrar Davi.
Puxou o ar, fitou Oliveira e assentiu.
— Tudo bem. Me ensine.
Lentamente, as mãos de Oliveira se soltaram das dela,
deixando que os dedos de Isis segurassem o cabo da arma. Era
uma semiautomática, leve, mais fácil de portar do que ela tinha
imaginado.
— Está carregada?
— Sim, mas só vai disparar se você apertar o gatilho.
— E o que eu preciso saber antes de apertar o gatilho?
De forma sucinta, ele explicou sobre as travas, a munição, a
quantidade de tiros e todo o cuidado que ela precisaria ter.
Isis o escutou com atenção, assimilando cada ensinamento.
Ao beijo do vento, as árvores farfalhavam baixo, como se não
quisessem que os sons provocados por suas folhas atrapalhassem
a aula.
— Fique aqui. Mantenha os pés afastados.
— Assim?
— Isso. Deixe os braços um pouco abaixo da altura dos
ombros. É importante mantê-los firmes para aguentar o impacto do
tiro.
— E onde vou atirar?
— Ali. Naquele tronco.
Isis afastou os pés e firmou os ombros, seguindo cada
instrução de Oliveira. Podia sentir a pulsação aumentando conforme
segurava o cabo da arma com mais força. Era a primeira vez que
tocava em uma semiautomática. Hesitação e euforia se misturavam
em seu sangue.
Mirou no tronco.
O dedo que deslizava pelo gatilho estava molhado de suor frio.
Seu coração batia na garganta.
— Não sei se...
— Vou te ajudar. Mas só uma vez.
Antes que Isis pudesse sequer se mover, Oliveira se colocou
atrás dela; o calor que seu corpo irradiava quase a arrebatou.
Os braços dele se ergueram ao redor dela, espalhando seu
perfume enquanto ele encaixava as mãos nas suas. A suave
pressão entre seus corpos fez Isis morder o lábio inferior.
— Atiraremos juntos nesta primeira vez, ok?
Isis balançou a cabeça. Era impossível falar ou raciocinar com
aquele homem praticamente colado nela.
E uma vozinha no fundo da sua mente lhe dizia que Oliveira
sabia daquilo e que, mesmo mantendo as feições sérias, estava se
divertindo.
Com as mãos de Oliveira sobre as suas, Isis posicionou a mira
da arma. A respiração dele balançava os fios dos cabelos dela.
— Preparada?
— Preparada.
O disparo ecoou pela clareira.
Seu corpo sentiu o impacto do tiro, e ela recuou, colidindo as
costas no peito de Oliveira.
— Muito bem. Outra vez.
Oliveira afastou as mãos.
Confiante, Isis disparou de novo. E de novo. E de novo. Até
que não houvesse mais munição. Até que seus ouvidos estivessem
apitando.
— Eu deveria ter arranjado uns protetores auriculares — ao
ouvi-lo falar aquilo, Isis se deu conta de que Oliveira ainda estava
parado atrás dela.
— Como fui na minha primeira aula?
— Está se mostrando uma boa aluna.
Propositalmente, ela deu um passo para trás, as costas
roçando no peito dele.
— Preciso de mais aulas?
— Talvez. Mas não agora.
De súbito, as mãos dele apertaram sua cintura, pressionando-
a contra a rigidez de seus quadris. Isis ofegou. Ele não a soltou.
Sentiu os lábios de Oliveira descerem pela linha do seu pescoço, os
dentes roçando em sua pele já sensível.
— Cuidado — ela sussurrou, a voz rouca. — Você está
provocando uma mulher armada.
— Acho que isso deixa tudo mais... Interessante.
A boca dele continuou tracejando seu pescoço, enquanto os
dedos acariciavam sua cintura, deslizando preguiçosamente para
baixo de sua blusa. Isis não conseguiu segurar o murmúrio que saiu
de sua própria garganta ao ter o quadril pressionado com mais força
contra o dele.
Ela inclinou a cabeça, ansiando por beijá-lo, por...
O som do toque de um celular quebrou toda a quietude da
clareira.
— Mas que diabos... — Oliveira praguejou.
O corpo de Isis reclamou quando ele se afastou dela.
Ela se virou, o rosto ainda corado, vendo-o atender a ligação.
Vincos encheram a testa de Oliveira enquanto a pessoa do outro
lado da linha falava alguma coisa.
— Certo. Certo. Estarei no aguardo.
Assim que desligou o celular, Oliveira a fitou.
— Dimitri e Lucas descobriram a identidade do homem
misterioso. E estão vindo para cá agora mesmo.
29
Pegadas digitais

Oliveira confiava e acreditava no treinamento que havia dado


para Dimitri e Lucas durante o tempo em que serviram juntos no
exército. Mesmo assim, mesmo os conhecendo, mesmo com o
passar dos anos, ainda conseguia se surpreender com as
capacidades e habilidades que aqueles dois tinham desenvolvido.
Sentado na poltrona, encarou Dimitri e Lucas. Ambos haviam
se acomodado no sofá principal da sala e enchido sua mesa com
notebooks, computadores, celulares e dispositivos tecnológicos tão
sofisticados que ele mesmo não sabia como nomeá-los.
Isis se sentara no braço da poltrona, ao seu lado, e seus
longos cabelos caíam por suas costas, as pontas batendo nos
ombros dele, jogando um perfume inebriante em seus sentidos.
Oliveira precisou limpar a garganta várias vezes e forçar a si
mesmo a manter o foco no que Lucas e Dimitri lhe contariam.
Aquilo era importante.
Porque precisava de respostas sobre as acusações feitas em
relação à morte de Sofia.
Porque, talvez, ainda houvesse uma falha naquela história,
uma corrente invisível que o prendia e o impedia de seguir em frente
por completo.
E, toda vez que olhava para Isis, era invadido por uma vontade
de viver outra vez.
Mas devia uma resposta à Sofia.
A tudo o que tinham vivido juntos.
— Certo. Contem-me o que descobriram.
Lucas entregou uma folha impressa com uma foto e um
documento de identificação.
— O nome dele era Paulo Queirós.
— Como vocês conseguiram essa informação?
Sentado no sofá, Dimitri inclinou o corpo para a frente.
Abóbora o rodeava, tentando chamar sua atenção enquanto
balançava o rabo. Oliveira conteve a vontade de revirar os olhos.
Aquela vira-lata estava cada vez mais sem vergonha.
— Começamos com o básico. — Dimitri esticou o braço e
acariciou a cabeça de Abóbora, que pareceu se deleitar com o
carinho. — Nós invadimos o sistema da polícia e fizemos um
cruzamento de dados com todas as informações que eles haviam
obtido sobre o nosso desconhecido.
— Eu também fiz isso — Oliveira falou.
— E não obtivemos resultado — Lucas complementou. — Mas
Alex sugeriu que usássemos um software novo, no qual ele vem
trabalhando nos últimos tempos. Sei que você entende dessas
coisas, Oliveira, mas vou fazer uma explicação mais leiga para a Isis
entender também.
Com o canto dos olhos, Oliveira captou o sorriso gentil que
encheu os lábios de Isis. Já havia percebido que ela gostava de se
sentir incluída, de ser parte de algo. E, pelo que dependesse dele,
ela e o filho fariam parte de todos os aspectos de sua vida.
— Enfim, esse software é tipo um pente fino muito preciso, que
permite rastrear imagens e dados que já tenham passado pela rede.
Do ponto de vista jurídico e do direito à privacidade e proteção de
dados, é legal? Nem um pouco. Mas decidimos usá-lo mesmo
assim. A busca durou a madrugada toda. E nada. Já estávamos
quase desistindo quando o sistema encontrou um registro com foto
que correspondia à foto do cadáver.
— E como a polícia não encontrou esse registro?
— Porque foi como caçar agulha em um palheiro. E, ouso
dizer, Oliveira, talvez eles não estivessem afim de fazer uma busca
muito minuciosa. Mesmo se estivessem, teriam tido muita
dificuldade. Porque, depois que encontramos essa pista,
conseguimos puxar um fio, outros dados sobre Paulo Queirós.
Dados que tinham sido deletados de todos os sistemas por onde o
nome e a foto do rosto dele passaram.
Oliveira arqueou as sobrancelhas.
— Está dizendo que alguém apagou todos os rastros desse
cara?
— Temos quase certeza. Mas tudo que passa por dispositivos
tecnológicos deixa uma pegada digital. Graças ao software do Alex,
conseguimos seguir estas pegadas e recuperar os arquivos
deletados. E foi assim que descobrimos que ele se chama Paulo
Queirós. É um caminhoneiro que viaja por todo o país.
— Trabalhava para alguma empresa?
— Pelo que encontramos, ele era independente e fazia
serviços particulares. Recebia em dinheiro vivo, pois não há
registros de transações bancárias. Bom, por enquanto, não
achamos nada.
— Alguma informação sobre o tipo de mercadoria que ele
transportava? Isso pode nos dar mais pistas sobre o sujeito.
— Nada ainda. Mas isso é questão de tempo e de encontrar as
pessoas certas, para fazer as perguntas certas — Lucas explicou,
as mãos batendo rápido sobre o teclado. — Neste momento,
encontramos a placa e o registro do caminhão dele. Normalmente,
todo veículo desse porte tem um dispositivo de rastreio. Se eu
conseguir me infiltrar no sistema do GPS...
— ...Você terá em mãos toda a rota dele — Oliveira concluiu.
— Exatamente.
— Quanto tempo para você obter as informações?
— Ora, Oliveira, você está falando com o melhor. — Lucas deu
um riso mole e apontou para si mesmo. — Antes do almoço,
saberemos até mesmo quantas paradas esse cara fez para ir ao
banheiro.
Feito um pequeno furacão, Davi invadiu a sala correndo.
— Tio! — ele gritou, animado, pulando em Lucas.
— Davi! — Isis o repreendeu.
— Desde quando eu sou seu tio, rapaz?! — Apesar da
pergunta, havia um sorriso divertido no canto da boca de Lucas.
— Quero ver desenho! No seu celular!
— Ah, mas você não vai mais colocar essas suas mãozinhas
sapecas no meu iPhone de última geração.
Davi riu.
Isis entreabriu os lábios e fitou Oliveira.
— Que história é essa que não fiquei sabendo?
— Segredos de homens, pequena. — Oliveira se levantou da
poltrona e pegou Davi no colo. — Acho que alguém ainda não
tomou café da manhã, certo?
— Tô com uma fome desse tamanho! — Davi abriu os braços
no máximo que conseguiu.
Deixando Dimitri e Lucas trabalharem, Oliveira rumou para a
cozinha com Davi no colo, seguido por Isis.
— Pode deixar que eu preparo a comida dele. E vou querer
saber essa história do iPhone, hein?
Oliveira colocou Davi sentado em uma cadeira e se voltou para
Isis, segurando a mão dela.
— Já disse que é um segredo entre homens.
— Segredo entre homens, sei...
— Está com ciúmes, pequena?
— Do meu filho estar todo grudado em você e nos seus
amigos? — Isis tentou disfarçar o bico, em vão. — Não mesmo.
Vê-la daquele jeito fez o coração dele bater mais forte.
Trazendo Isis para perto de si, Oliveira baixou a cabeça,
depositando um beijo suave em seus lábios.
— Oliveila beijou minha mãe!
Isis deu um pulo para trás. Oliveira não soltou a mão dela.
— Não tenho permissão de beijá-la, rapazinho?
Davi fez uma carranca, pensativo. Foi difícil para Oliveira
conseguir segurar o riso e não achar graça daquilo.
— Oliveila beijou mamãe... Oliveila vai ser meu pai?
A pergunta fez Isis se engasgar com o próprio ar.
Oliveira também precisou admitir que havia sido pego de
surpresa com o questionamento tão direto feito por um
molequezinho esperto e de apenas três anos.
E, pela primeira vez desde que se conhecia por gente, se viu
sem uma resposta pronta na ponta da língua.
— Encontramos algo que você vai querer ver, Oliveira! —
Lucas bradou da sala.
Aquele chamado fez com que Isis e Oliveira soltassem o ar ao
mesmo tempo.
— Vá lá ver o que é. Vou dar comida ao Davi.
Com passos largos e rápidos, Oliveira retornou para a sala.
— O que vocês encontraram?
— Parece que, uma vez, nosso Paulo Queirós foi parado em
uma blitz. O caminhão foi revistado. Encontraram vários
medicamentos entorpecentes. Aqui não diz se tinham registros ou
não, se era tráfico ou não. Como eu disse, todos os dados desse
cara foram apagados do sistema, só restando algumas pegadas
digitais quase invisíveis.
— E o que isso acrescenta para nós?
Com um sorriso de super trunfo na boca, Lucas virou a tela do
notebook para Oliveira.
— Consegui acessar os arquivos do GPS do caminhão dele. O
cara rodou pelo Brasil inteiro. Ficaríamos horas olhando isso. Daí,
decidi passar um filtro. Segmentei Itatiaiuçu primeiro. E ele esteve
aqui na cidade uma vez, há muito tempo. Segundo os dados do
GPS e do rastreador, o caminhão ficou parado em um mesmo lugar
durante uma noite inteira.
— Aonde?
— Ao lado do único hospital da cidade.
30
Informações ocultas

A informação encontrada por Lucas e Dimitri bateu e


rebateu nos sentidos de Oliveira, buscando um encaixe correto
naquele quebra-cabeça que parecia ficar mais estranho a cada
andar do ponteiro do relógio.
— O caminhão do homem que morreu aqui na minha fazenda
passou uma noite inteira ao lado do hospital daqui da cidade? Do
mesmo hospital onde ninguém identificou o corpo?
Lucas assentiu.
— Foi a informação que encontrei no rastreador do veículo.
Diabos.
Ele ficou em pé. Tinha a sensação de que sua cabeça poderia
explodir a qualquer momento.
Oliveira andou de um lado para o outro. A tensão que sentia se
irradiava até a perna ferida, causando uma dor que arrancava
grunhidos baixos de sua garganta.
— É sua perna de novo?
Ele olhou para o lado. Isis havia retornado para a sala. Davi
estava perto dela, no chão, brincando com Abóbora.
— A dor vem e vai.
— Você precisa voltar para a fisioterapia. Enquanto não volta,
deixe-me te ajudar com a dor. Da outra vez, os exercícios aliviaram
a tensão muscular, não aliviaram?
— Ora, não é necessário. — Oliveira meneou a cabeça na
direção de Lucas e Dimitri. — Estou ocupado.
Isis cruzou os braços.
— Não seja teimoso. Sente ali. Posso te ajudar com a dor.
Será bem rápido e você se sentirá melhor.
— Diabos. Tem certeza de que o teimoso sou eu?
O olhar firme dela não cedeu.
Oliveira bufou.
— Tudo bem.
Ignorando os olhares divertidos de Dimitri e Lucas, Oliveira
deixou que Isis trabalhasse em sua perna ferida e aliviasse a tensão
muscular. Teve que admitir que se ver livre de uma parte da dor foi
bom demais.
— Você leva jeito mesmo nessa área.
Um rubor delicado manchou as bochechas dela.
— Obrigada. Fisioterapia sempre foi minha paixão. Poder
ajudar as pessoas a se recuperarem, a se livrarem de dores
horríveis... Não vejo maior dádiva do que essa.
— Você tem vontade de voltar a estudar? De se formar em
Fisioterapia e exercer a profissão?
— É claro que tenho. — Isis olhou de relance para Davi. —
Quero dar ao meu filho o melhor futuro possível. Um dia, quem
sabe, se eu conseguir escapar de uma forma definitiva da sombra
de Natanael...
Oliveira segurou o rosto dela com uma das mãos, fazendo com
que Isis olhassem em seus olhos.
— Vou te ajudar com esse sonho, pequena. Se você precisar
de dinheiro, ou qualquer financiamento para os seus estudos, eu...
Isis sorriu, erguendo a mão para tocar a mão dele.
— Agradeço demais, mas não é necessário. Eu passei uma
vez em uma universidade pública. Sei que posso estudar e passar
de novo.
Porra.
O orgulho que sentia pela luta, trajetória e determinação da
sua garota era gigantesco.
Escutou Lucas limpar a garganta discretamente.
Se aqueles dois soldados não o tivessem ajudando tanto em
um assunto tão importante, os mandaria para fora da casa, para que
pudesse se deliciar com cada pedacinho de Isis.
— Encontrou alguma coisa? — Ele não queria que a pergunta
tivesse saído quase como um rosnado, mas foi inevitável.
E tudo o que Lucas fez foi soltar um riso baixo.
Oliveira lhe lançou um olhar fulminante.
Na mesma hora, Lucas endireitou a postura e voltou os olhos
para a tela do computador.
— Então... Não encontrei nada. Seria melhor irmos até esse
hospital. Talvez, conversando com alguns médicos ou funcionários,
a gente consiga mais informações sobre Paulo Queirós.
Isis segurou a mão de Oliveira.
— Não acho uma boa ideia.
— Por que, pequena?
— Por experiência própria, Álvaro, por tudo o que já passei...
Posso afirmar que alguém está tentando abafar alguma coisa dessa
história. Se você for até o hospital ou até a polícia, e começar a
fazer perguntas, quem está envolvido com isso vai fazer com que as
últimas provas que podemos encontrar desapareçam
completamente.
Ele retribuiu o aperto, admirando a cor de mel dos seus olhos.
— Eu sei, pequena. Mas temos que fazer alguma coisa. Tenho
que falar com alguém.
— Mas, então, não escolha qualquer pessoa de forma
aleatória. Isso pode ser um risco. Você sabe tudo o que eu passei.
— E quem eu deveria contatar?
Isis ficou pensativa por um instante.
— A Leila.
— Por que ela? — Oliveira estreitou os olhos. — Leila também
trabalha no hospital e pode, assim como qualquer um, estar
envolvida nessa história.
— Eu sei, mas... — Isis mordeu o lábio inferior. Diabos.
Oliveira queria beijar aquela boca perfeita. — Não confio em quase
ninguém, sabe? Tive que aprender a viver desse jeito para
sobreviver. Só que sinto que Leila é uma pessoa do bem. Não sei te
explicar, apenas sentir. São poucas pessoas que me fazem sentir
dessa forma. Você é uma delas.
Decidindo confiar na intuição da sua garota, Oliveira apanhou
o celular e ligou para Leila.
Contando as respirações, aguardou até ser atendido.
— Doutora Leila falando.
— Leila, sou eu. Oliveira. Isis me passou o seu número.
— Oi. Está tudo bem com ela? Com o Davi? Isis precisa de
mais receitas para os antibióticos?
— Os dois estão bem. Não te liguei para falar de receitas. Na
verdade, quero te fazer uma pergunta. Alguém já identificou o corpo
do homem que apareceu na minha fazenda? — Mesmo já sabendo
a resposta, ele decidiu começar com a indagação que levantaria
menos suspeitas. Afinal, era algo que qualquer um, em sua
situação, iria querer saber.
— Sabe que não posso te passar essa informação, Oliveira.
— Só preciso de uma confirmação. “Sim” ou “não”.
Escutou Leila inspirar fundo do outro lado da linha.
— Não, não identificamos. E creio que não seremos mais
capazes de fazer isso. O corpo foi transferido para outra cidade.
A informação inesperada acendeu um alerta na cabeça de
Oliveira.
— Para onde o corpo foi transferido?
— Até onde consegui descobri, para a capital.
Oliveira coçou a cabeça. Merda. Cada vez que dava um passo
para a frente, logo em seguida parecia dar dois para trás.
Mas ele não iria desistir.
Com a mão que não segurava o celular, envolveu os dedos de
Isis nos seus. O aperto cúmplice e companheiro dela dizia, através
do calor do toque, que ela não sairia do seu lado.
— Tudo bem. Agora tenho outra pergunta. O hospital possui
um sistema que registra a entrada e a saída dos pacientes?
— Sim.
— Se eu te der um nome e uma data específica, você
consegue ver se esta pessoa recebeu algum atendimento aí?
— Consigo sim. Mas por que você quer saber isso?
— É algo particular. — Oliveira inspirou fundo. — Se for te dar
algum problema, deixe quieto.
Houve um momento de silêncio.
— Não, não vai me dar problemas. Todo os funcionários
checam essas coisas todos os dias. Quem é o paciente.
— Paulo Queirós. — Enquanto passava a data em que o
caminhão havia ficado ao lado do hospital, Oliveira optou por não
revelar que aquela era a identidade do desconhecido que morrera
em sua fazenda.
— Certo. Me dê um minuto.
Enquanto aguardava, Oliveira conseguia escutar o som dos
dedos de Leila batendo contra o teclado de um computador. Ele
balançava a perna sem parar, impaciente.
— Não, não há nada no sistema. Você pode repetir o nome e o
data, só para eu conferir mais uma vez?
Oliveira assim o fez.
A espera durou menos do que um minuto, mas pareceu levar
uma vida inteira.
— De fato, não há nenhum registro de que um Paulo Queirós
deu entrada no hospital nesse dia. Chequei o dia anterior e o
seguinte, e também não encontrei nada.
Deixando o celular no mudo por um momento, Oliveira voltou a
fitar Lucas, Dimitri e Isis e repassou tudo o que Leila tinha lhe
contado.
— Então ele não entrou no hospital? — Lucas repetiu.
— Não.
— Será que ele só deixou o caminhão ali? — Isis indagou. —
E não precisou de nenhum atendimento médico? Foi até algum
outro local da cidade? Conversou com outras pessoas?
Lucas meneou a cabeça.
— Talvez, mas...
— Não podemos nos esquecer de que todos os registros
referentes a ele foram apagados de tudo quanto é sistema — Dimitri
recordou.
Uma ideia estalou cabeça de Oliveira.
— Leila, você ainda está aí?
— Estou.
— Se não for pedir demais, você pode me dizer quem estava
de plantão no hospital nessa data que te passei?
— Oliveira, o que está acontecendo? Por que está me pedindo
estas coisas?
Ele correu os dedos pelos cabelos; gotículas de suor
começavam a manchar sua resta.
— Você sabe que trabalhei no exército, não sabe?
— Sei.
— Então, estas perguntas que estou te fazendo... É algo
confidencial. Faz parte de um protocolo que tenho que seguir.
Oliveira torceu para que a resposta bastasse para Leila. E
soltou o ar aliviado quando ela murmurou que compreendia e
começou a ler para ele os nomes de todos aqueles que fizeram o
plantão na data citada. Ele se atentou a cada nome, e parou no
único que chamou sua atenção.
— Doutor Thales estava entre os plantonistas daquela noite?
— Sim, é o que consta aqui no sistema.
— E ele é o médico responsável pela equipe legista, certo?
Leila confirmou do outro lado da linha.
Oliveira apertou os olhos.
A mão gentil e delicada de Isis apertou seu ombro; era um
gesto de conforto, mas que deu a ele a força que faltava para seguir
com aquilo.
“Tentaram me impedir de falar...”
“Falar o quê?!”
“A morte... A morte da sua esposa não foi o que você pensa...
A morte da Sofia... Não foi um simples acidente.”
Ao abrir os olhos, sentiu toda a pele ser invadida por uma
palpitação mais impetuosa.
Daria um tiro no escuro.
Pois, às vezes, tiros no escuro acertavam alvos inesperados.
— Leila, tenho mais um pedido.
— Qual?
— Você pode dar uma olhada no relatório da autópsia da
Sofia?

◆◆◆
Leila piscou demoradamente, assimilando o pedido de
Oliveira.
— Você não recebeu o relatório na época?
— Recebi sim.
— Tem alguma coisa que você achou estranha no relatório e
não comentou na época?
— Não. Tudo estava normal. Mas... Olha, sei que vai parecer
estranho, e não posso te dar detalhes. Se você puder, cheque-o
para mim, por favor.
Leila silenciou por um momento. Mas, então, soltou o ar e
relaxou os ombros. Pessoas que passavam pelo processo de luto,
mesmo após um ano, às vezes apresentavam comportamentos
como aquele. Embora quisesse questioná-lo, achou melhor fazer o
que Oliveira pedia; principalmente se aquilo significasse diminuir um
pouco da dor que ele sentia.
— Tudo bem. Me dê um minuto.
— Obrigado, Leila.
Ajeitando-se melhor na frente do computador, ela fechou o
arquivo de registros de entrada e saída do hospital, e acessou o
sistema relativo à necropsia.
Enquanto o sistema carregava, olhou duas vezes por cima do
ombro, apenas para confirmar que não havia ninguém por perto.
Rever relatórios de autópsia não era algo ilegal, mas... Havia algo
no ar, algo que Oliveira não estava lhe contando.
E aquilo a deixou inquieta.
Buscou pelo nome de Sofia e esperou que o relatório abrisse.
Uma pequena caixa de texto surgia no meio da tela.
— Que estranho...
— O que foi?
— Não consigo acessar o relatório da autópsia. Diz que
somente os médicos responsáveis possuem autorização. Estranho.
Eu faço parte da equipe legista. Acho melhor falar com o doutor
Thales e...
— Espere.
Leila escutou um chiado do outro lado da linha, como se o
celular estivesse sendo passado para outra pessoa.
— Oi. — Era uma nova voz agora. — Eu sou o Lucas. Vou te
passar umas instruções. Se você as seguir passo a passo,
conseguirei remotamente quebrar a codificação do sistema e você
vai poder acessar os laudos. Tudo bem?
Certo.
Aquela história estava ficando cada vez mais bizarra.
Com o que Oliveira tinha se metido?
Mas, pelos anos que o conhecia e pela forma carinhosa e
protetora que sempre o via tratando Isis e Davi, decidiu lhe dar o
benefício da dúvida.
— Tudo bem.
De forma paciente, Lucas passou as instruções para ela, e
Leila as seguiu, sentindo o coração acelerar a cada minuto que se
passava. Vez ou outra, olhava por cima do ombro, temendo ser
flagrada.
— Acho que agora vai...
Assim que ele disse aquilo, a pequena caixa de texto
desapareceu do centro da tela.
Leila arfou baixinho, surpresa.
— Conseguiu o acesso? — Lucas perguntou.
— Sim. Como você fez isso?
— Não posso revelar todos os meus segredos.
Leila achou melhor não perguntar outra vez. Algo lhe dizia que
aquilo poderia complicá-la ou colocar seu trabalho em risco.
— Fique tranquila. — A voz era de Oliveira de novo. —
Qualquer problema, nós assumiremos a culpa.
Inclinando-se em frente a tela do computador, ela começou a
rolar a autópsia para baixo, assimilando as principais informações
obtidas.
— Causa da morte... Infarto agudo do miocárdio, causado pela
hipertensão gestacional.
Ela podia tatear a dor na forma como ele respirou, e aquilo fez
seu coração se apertar.
Ninguém merecia perder alguém que amava.
— Foi este o laudo que recebi.
Leila continuou correndo os olhos pela tela e pelo relatório.
Piscou. Leu de novo a linha seguinte. Piscou mais uma vez. Seus
lábios se separaram pouco a pouco.
— O que é isso...?
— O que foi, Leila? — escutou Oliveira grunhir do outro lado
da linha, visivelmente impaciente.
— Uma dose alta de suplementos termogênicos foi encontrada
nos exames feitos na Sofia. Mas uma dose muito alta mesmo, capaz
de provocar um ataque cardíaco. — Com o celular preso entre a
orelha e ombro, Leila rolou o laudo da autópsia para baixo,
assimilando as informações restantes. — Sofia praticava algum
esporte?
— Não. Ela estava grávida. E nunca tomou essas coisas. Tem
certeza de que é isso que consta no relatório?
— Tenho sim. Não faz sentido.
— Não faz mesmo. Porque eu recebi o relatório na época.
Minha memória é boa. Não havia nenhuma informação sobre
termogênicos encontrados nos exames. — A tensão crescia na voz
de Oliveira. — E eu sei que Sofia jamais tomaria uma coisa dessas
estando grávida.
A cabeça de Leila trabalhava a mil por hora.
Como aquele detalhe não havia sido informado ao marido de
Sofia? Não era o procedimento padrão. E por que ela nunca ouvira
uma menção sequer ao fato de uma mulher grávida ter morrido de
parada cardíaca, e que a autópsia acusou uma dose incomum de
termogênico no organismo?
— Preciso verificar melhor isso agora mesmo.
— Leila, espere...
— Ligo para você daqui cinco minutos.
Leila desligou o celular e se levantou.
Ainda pensativa, escutou um barulho às suas costas; antes
que pudesse se virar por completo, algo a atingiu com força na
cabeça, e ela caiu desacordada no chão.
31
A mil por hora

— Já faz mais de dez minutos. Leila disse cinco. — Oliveira


jogou o celular no sofá. — Ela não me retornou e não atendeu a
mais nenhuma das minhas ligações. Alguma merda aconteceu.
Isis entrelaçou as mãos, sentindo nervosismo aumentar.
— Será que ela está bem?
— Não sei. Vou até o hospital — Oliveira avisou, apanhando
as chaves da caminhonete. — Tenho que ver o que aconteceu com
ela.
— Vou com você.
— É melhor você ficar aqui — Oliveira tocou em seu ombro. —
Se eu colocar as mãos em Thales, garanto que não será bonito.
— Mas...
— Dimitri vai com você, Oliveira — Lucas se colocou na
conversa. — E eu ficarei aqui na fazenda com a Isis. Ela não pode
ficar sozinha.
Oliveira fez um gesto de cabeça para Lucas.
— Obrigado. Vamos, Dimitri. Não podemos perder tempo.
Respirando rápido, Isis observou o momento em que Oliveira e
Dimitri atravessaram a porta da casa.
Seu coração disparou.
Deixando Lucas para trás, Isis correu para fora da casa,
descendo as escadas da varanda e parando diante de Oliveira.
Tocou-o no braço, fazendo com que ele olhasse para ele.
— Tome cuidado. Por favor.
Oliveira segurou as mãos dela, trazendo-as para perto da boca
e depositando um beijo nos nós dos dedos.
— Voltarei logo.
— Eu sei. E estarei aqui quando você voltar.
Um raio de sol atravessou as nuvens que se moviam pelo céu,
iluminando o momento em que seus olhares se encontraram e se
sustentaram.
Ela não partiria.
Ele voltaria.
Eles ficariam juntos.
E aquela era a única promessa que importavam para ambos.

◆◆◆

— Então, você trabalha para a família do Natanael? Ou


apenas para o Natanael? Ele é seu chefe? Ele te mandou para cá,
atrás da garota chamada Isis? Ele te mandou matá-la? Capturá-la?
O investigador Tomás já havia perdido as contas de quantas
vezes tinha feito aquelas perguntas.
E, como ocorrera durante toda a madrugada e as primeiras
horas desde o nascer do sol, o suspeito que ele interrogava
permanecia calado.
Tomás inspirou fundo, observando o homem sentado na
cadeira com as mãos algemadas na mesa da sala de interrogatório.
O cara havia levado uma bela surra de Oliveira no
estacionamento do Palácio das Artes na noite anterior. O olho
inchado e o lábio partido se destacavam no rosto dele.
Tomás tinha conseguido levá-lo para a delegacia, mas o outro
homem, que encurralara Isis no beco, havia escapado.
Tudo o que tinha era aquele homem à sua frente.
E que não estava nem um pouco disposto a falar.
Se Josiane estivesse ali, aquele cara já teria aberto a boca há
muito tempo. Porque não havia ninguém mais brilhante do que sua
antiga parceira de trabalho quando o assunto era conduzir um
interrogatório.
Mas Josi não estava lá. Estava em outro estado.
Provavelmente, jamais voltaria para Belo Horizonte.
E ele precisava obter respostas.
Tomás decidiu mudar a abordagem.
— Pelas pesquisas que meus colegas da delegacia fizeram, e
mais algumas informações que Oliveira me passou hoje cedo, a
família de Natanael é intocável — começou falando. — O que
significa que ele pode distorcer tudo o que você está falando
durante este interrogatório. Colabore aqui comigo, parceiro. Sou sua
única esperança. Ou você vai comer cadeia sozinho por muito
tempo.
As lâmpadas frias da sala de interrogatório piscaram.
O homem umedeceu os lábios e bufou.
— Só me mandaram pegar a garota.
— Quem mandou? Natanael? Vamos, não seja evasivo.
— Recebi ordens de vir para cá, em Belo Horizonte, e pegá-la.
Disseram que o trabalho seria mais fácil aqui do que em Itatiaiuçu.
Tomás franziu o cenho.
— Itatiaiuçu? Então Natanael sabia que ela estava em
Itatiaiuçu?
— Você ouviu o que eu acabei de falar, investigador.
— Vamos lá, pare de proteger seu chefe, pois ele não está
nem aí para você. — Tomás retirou uma foto de Natanael da pasta
que carregava e a colocou diante do homem. — Natanael encontrou
Isis por conta própria? Ou alguém passou a localização dela para
ele?
— Não faço ideia.
— Acho que você faz ideia sim.
— O cara tem uma rede de contatos.
— Essa resposta não me ajuda em nada. — Tomás jogou a
caracterização de “policial bonzinho” para o lado e socou a mesa,
fazendo com que o sujeito saltasse na cadeira. — Vou perguntar só
mais uma vez, e é melhor você responder o que eu quero ouvir, ou
as coisas vão se complicar para o seu lado.
O homem arregalou os olhos e engoliu em seco.
Com as mãos apoiadas na mesa e o semblante endurecido,
Tomás inclinou o tronco para a frente.
— Como Natanael ficou sabendo do paradeiro de Isis?

◆◆◆

Grunhindo baixo de dor, Leila abriu os olhos lentamente.


Percebeu que estava caída no chão, com as costas viradas para
cima e as mãos apoiadas no assoalho frio.
Sua cabeça pulsava, deixando-a atordoada.
Ela tentou se mexer, mas o movimento piorou a dor.
Leila comprimiu as pálpebras, tentando se lembrar do que
havia acontecido.
Oliveira tinha ligado para ela, solicitado algumas informações,
perguntado se ela poderia checar a autópsia de Sofia...
A autópsia de Sofia!
A informação sobre os termogênicos encontrados no sistema
dela, que não foi passada nem para Oliveira, nem para mais
ninguém da equipe médica.
Ela se recordava de ter se levantado da cadeira para ir falar
com alguém da diretoria, então ouvira um barulho e...
Fui golpeada!
Com dificuldade, Leila abriu os olhos outra vez.
Ainda estava na mesma sala onde fora atacada.
Podia escutar uma voz...
Uma voz familiar.
Tomando cuidado com cada movimento para não causar mais
dor a si mesma, Leila virou o rosto. Sua respiração ameaçava ficar
ofegante, e foi difícil controlar os assovios agudos que queriam sair
de seus pulmões.
O doutor Thales andava de um lado para o outro, falando ao
celular.
— Isso pode nos comprometer! Pode me comprometer. Não
sabemos que informações vazaram! Se ela acessou a autópsia da
Sofia, derrubando toda a segurança do meu sistema, quem mais
pode ter acessado? Não era um sistema simples, de senha e login!
Para quebrá-lo, é preciso ser profissional e ter conhecimento no
assunto.
Leila precisou morder a língua para não gritar e xingá-lo.
Agora se lembrava com clareza.
Tinha sido atacada pelo doutor Thales.
— Ora, por que eu não apaguei a autópsia?! Se, um dia,
alguém investigasse, isso daria um belo problema e um belo
precedente para fuçar em coisas que nem eu, nem você, queremos
que sejam revistadas. Além disso, ter a autópsia com todas as
informações verdadeiras era uma garantia minha. Uma garantia de
que você não me descartaria ou me atiraria aos lobos quando eu
deixasse de ser necessário.
Quando o médico se virou, furioso, Leila abaixou o rosto,
fingindo que ainda estava inconsciente.
— Ah, o filho da puta sou eu?! Você prometeu que as coisas
não sairiam do controle! Já tivemos que lidar com o Paulo Queirós!
Tive que inventar mil e uma coisas para conseguir fazer com que o
corpo dele fosse transferido, para não correr o risco de ser
identificado. E agora isso!
Movendo-se com o máximo de cuidado possível, Leila tentou
se arrastar para perto da porta, aproveitando que o médico estava
distraído com a ligação. Não fazia ideia de quem era a outra pessoa
no outro lado da linha, mas todos os seus sentidos gritavam para
que saísse dali primeiro antes de tentar descobrir.
— A médica? Leila. Ela é das boas. Está desacordada aqui em
uma das salas do hospital — doutor Thales falou. — Sim, sim,
entendo. Pode deixar. Eu cuido dela. Não será um problema. Posso
me livrar dela sozinho. Te ligo quando tudo estiver resolvido.
Doutor Thales desligou o celular.
Aquilo foi tudo o que Leila precisava ouvir para empurrar a dor
para o lado com toda a força que tinha.
Ela impulsionou o corpo, esticando a perna e dando uma
rasteira no doutor Thales, que foi ao chão com o golpe inesperado.
Mais tarde, se lembraria da dor que quase a deixou
inconsciente ao fazer aquilo.
Mas, no momento, a adrenalina era seu anestésico.
— Vadia!
Leila o chutou e se virou, cambaleando até a porta.
Forçou a maçaneta.
A porta estava trancada e a chave tinha desaparecido.
— Socorro! Socorro!
Doutor Thales avançou sobre Leila e a puxou pelo cabelo. A
médica gritou. A mão dele agarrou seu pescoço. Ela foi rápida e o
cotovelou no estômago. O golpe arrancou um grunhido de dor da
boca dele. Leila não perdeu tempo e o atingiu de novo no estômago
e na virilha.
O médico ofegou e cambaleou para trás, caindo no chão.
— Vadia!
O peito de Leila subia e descia em uma velocidade alucinante.
Girando nos calcanhares, ela olhou ao redor de toda a sala.
Focou na janela. Não perdeu tempo.
E enquanto o doutor Thales se levantava, afetado pela dor, e
avançava outra vez sobre ela, Leila correu até a janela, quebrou o
vidro com o primeiro objeto que conseguiu pegar com as mãos e
atravessou o parapeito, os cacos pontudos rasgando sua pele.
Doutor Thales rugiu.
— Você não vai fugir de mim!

◆◆◆

Oliveira não se importou nem um pouco com o limite de


velocidade enquanto adentrava no perímetro urbano da cidade,
fazendo a caminhonete acelerar ainda mais conforme se
aproximava do pequeno hospital.
Os pensamentos rugiam ferozes em sua cabeça.
Dimitri mantinha os olhos atentos, e só naquele momento foi
que Oliveira percebeu que o amigo carregava uma arma consigo no
coldre. Como trabalhava atualmente em uma empresa de
segurança, Dimitri tinha autorização para o portar a arma.
Oliveira trincou o maxilar, olhando de relance para o banco
traseiro da caminhonete.
Diabos.
Desde que Paulo Queirós invadira sua fazenda no meio da
noite, ele só deixava a espingarda dentro de casa.
— O sinal vermelho — Dimitri alertou.
A única coisa que Oliveira fez foi acelerar ainda mais para
furar o cruzamento, deixando um rastro de buzinadas para trás.
Se não conhecesse Dimitri também, juraria que o amigo tinha
ficado pálido por um momento.
— O hospital é logo ali.
Antes que pudesse planejar o próximo passo, seus olhos
registraram Leila correndo pelo estacionamento, gritando, com
sangue manchando sua roupa. Doutor Thales vinha logo atrás dela.
Com um movimento, Oliveira girou o volante, mudando o
sentido do carro até conseguir parar em um lugar que bloqueasse o
caminho de Thales. Dimitri já estava com a arma em punho.
— Vamos cercá-lo!
Os dois saltaram do carro, correndo na direção de Leila e
Thales.
— Socorro! — a médica gritou assim que os viu.
Thales arregalou os olhos assim que os viu.
Oliveira o cercou; não permitiria que aquele desgraçado
fugisse depois do que havia descoberto sobre a autópsia de Sofia.
— Venha comigo. — Dimitri segurou e puxou Leila para longe,
no mesmo instante em que Oliveira avançou sobre Thales.
— Filho da puta!
O homem gritou e caiu para trás quando o punho fechado de
Oliveira atingiu seu rosto.
— Filho da puta!
Thales ergueu as mãos, o rosto ensanguentado.
— Você não entende!
— Não entendo?! Você matou minha esposa! Escondeu a
verdade!
Oliveira o socou mais uma vez.
— Não! Não! Eu jamais seria capaz de matar a Sofia!
— Não minta!
— Não estou mentindo!
Oliveira o chutou, arrancando mais arquejos de dor da sua
boca
— Então por que não falou para ninguém sobre os
termogênicos encontrados no organismo dela?!
— Eu não podia! Eu não podia! Ou matariam a minha família!
O sangue latejou nos ouvidos de Oliveira.
— Sua família merece proteção, mas a minha não?!
As palavras de Thales saíram balbuciadas, impossíveis de
serem entendidas. Mas Oliveira não se importava. Ele desferiu outro
chute contra o médico, cego de raiva.
— Oliveira. — A voz firme e tranquila de Dimitri o chamou uma
única vez. — Acho que ele está falando a verdade.
O mais inominável dos sentimentos subia e descia pelas suas
veias. Era como se garras de aço o rasgassem de dentro para fora,
jogando ácido em feridas que não se cicatrizavam.
Oliveira arquejou, a garganta ardendo, o peito inflamando.
Thales ergueu os olhos, a face desfigurada com o sangue.
— Eu...
O som da voz do médico fez o pior dos infernos arder nele.
— É melhor falar tudo o que sabe. Ou meu rosto será a última
coisa que você verá. — Oliveira o agarrou pelo colarinho do jaleco.
Nunca havia sentido aquela fúria visceral, brutal e primitiva que
estava sentindo, que parecia consumir cada pedaço do seu corpo,
do seu sangue, dos seus ossos. — Qual é a verdade por trás da
morte da minha esposa?!
32
Legado

Ao lado de Lucas, segurando o filho pela mão, Isis caminhava


pelo lado de fora da casa da fazenda.
Mesmo sem falar sobre o assunto com Lucas, podia sentir que
ele estava tão ansioso quanto ela por notícias de Oliveira e Dimitri.
Uma parte também fervia em preocupação com Leila. Esperava que
a médica estivesse bem e que nada de ruim houvesse acontecido.
— Quero o cavalo, mamãe — Davi pediu, cutucando sua
perna.
— Você precisa esperar o Oliveira voltar.
— Não pode ser agora?
— O médico dos cavalos está cuidando dos cavalos. Eles
precisam ficar fortes para você poder brincar com eles.
Davi fez um bico e estreitou os olhos, como se estivesse
analisando cada uma das suas palavras. Isis precisou se controlar
para não apertar as bochechas do filho e enchê-lo de beijos.
— Esse rapazinho é uma figura. — Lucas riu, se agachando
para ficar na altura de Davi. — Se você for paciente e esperar,
talvez eu te deixe ver desenhos no meu celular.
Davi arregalou os olhos. O sol batia e clareava seus cabelos.
— Oba!
— Mas haverá algumas regras. Uma delas é não jogar meu
iPhone de última geração no chão. Promete?
— Sim!
Ver o filho daquele jeito fez o coração de Isis ser preenchido
por uma ternura avassaladora. Davi era apenas uma criança, uma
vítima do terremoto que havia atingido a vida dela. Merecia crescer,
brincar e ter estabilidade como qualquer menino da sua idade.
— Obrigada mesmo por toda a ajuda — ela sussurrou para
Lucas. — Por tudo o que você e o Dimitri tem feito por mim.
Com um sorriso gentil nos lábios, Lucas a fitou.
— Você é importante para o Oliveira. Então, você é importante
para mim e para Dimitri. Nós cuidamos da nossa família.
Família.
Aquilo foi dito de uma forma tão natural, tão certa, que as
pernas de Isis quase falharam com a sensação que a invadiu, a
tomou, se espalhou e esquentou cada pedacinho do seu ser, da sua
alma.
Uma sensação de pertencimento, de finalmente ter encontrado
algo que procurara ao longo de toda a sua vida.
— Olá! — uma voz animada pairou atrás deles. — O dia está
lindo hoje, não está, dona Isis?
Ela olhou por cima do ombro, vendo Rodrigo, que vinha da
direção dos estábulos com sua maleta de trabalho.
— Oi, Rodrigo. Sim. É um belo dia mesmo.
O veterinário abriu um sorriso diante do seu cumprimento.
— Dona Isis, você não passou em casa comer o melhor bolo
de fubá de Minas Gerais.
— As coisas andaram meio agitadas por aqui.
— Já sei! — Rodrigo tirou o chapéu, os olhos brilhando em
expectativa. — Da próxima vez, vou trazer o bolo comigo. Assim
que eu terminar o trabalho, te levo em um dos lugares mais bonitos
da região, e daí comemos o bolo juntos.
— E daí Oliveira dá um tiro no seu traseiro — Lucas assoviou
casualmente enquanto brincava com Davi, tão baixinho que apenas
Isis ouviu.
Ela precisou segurar um risinho.
— Você é o médico dos cavalos? — Davi perguntou,
apontando para Rodrigo.
— Sou sim — ele respondeu, cheio de orgulho. — Eles estão
fortes e bonitos porque cuido muito bem deles.
— Você brinca com eles?
— Brinco sim.
— Pode me levar passear?
— Davi — Isis repreendeu o filho com doçura e se virou para
Rodrigo. — Desculpa. Ele desenvolveu uma paixão por cavalos
desde que o Oliveira o levou para um passeio.
— Não precisa se desculpar, dona Isis. Também amo cavalos.
Foi meu pai que me ensinou a gostar tanto deles — Rodrigo
comentou, esticando a mão para brincar com os cabelos de Davi. —
O pai dele não curte cavalos?
Isis mordeu o lábio.
— Digamos que o pai dele... Não merece esse título.
Rodrigo arqueou as sobrancelhas, demonstrando
compreensão.
— Entendi. Nossa, não sei o que seria de mim sem meu pai.
Ele foi uma figura importante demais na minha vida, dona Isis.
Enfim... — Outro sorriso animado encheu os lábios dele. — Se um
dia você e seu filho quiserem, podemos ir cavalgar juntos. Daí a
gente come o bolo também.
Antes que pudesse pensar em uma resposta para cortar
qualquer esperança do veterinário, Isis escutou o ronco potente do
motor de um veículo; o som parecia vir da estrada de entrada da
fazenda.
— Oliveira e Dimitri já voltaram? — Isis indagou para Lucas.
Rodrigo meneou a cabeça.
— Esse não é o barulho da caminhonete do seu Oliveira.
— Não é mesmo — Lucas concordou.
Os instintos de Isis se eriçaram ao ver uma BMW preta se
aproximando de onde estavam. O veículo reduziu lentamente, até
parar por completo. Escutou as portas serem destrancadas. E um
homem desceu.
Todos os ossos de Isis trincaram.
— Natanael.
Não. Não. Não.
Aquilo não podia ser verdade. Ele não podia estar ali. Ele não
podia estar caminhando na sua direção, com o sorriso de um
predador na boca.
— Você é uma coisinha difícil de encontrar, hein, Isis?
Seu coração disparou.
Por instinto, agarrou o filho nos braços.
— Como você entrou aqui?!
— Ora, a porteira estava aberta.
O quê?!
Lucas deu um passo à frente, colocando-se diante dela. Uma
de suas mãos desceu para o coldre, sacando uma arma.
— Você está invadindo uma propriedade privada. Vá embora,
ou chamarei a polícia.
Natanael não recuou.
Lucas ergueu a arma e a apontou contra ele.
— Último aviso. Vá embora.
Natanael ergueu os óculos escuros não parou de andar. Os
olhos dele eram tão perigosos como Isis se lembrava. Ele arqueou
as sobrancelhas, moveu o canto esquerdo, como se fizesse um
pedido silencioso.
Lucas disparou e acertou o ombro de Natanael, jogando-o
para trás.
— Filho da puta!
O que aconteceu em seguida foi muito rápido.
Isis escutou outra arma ser engatilhada atrás dela.
O tiro ecoou por toda a fazenda.
Ela mal teve tempo de registrar o que aconteceu, de ouvir o
choro assustado do filho; Lucas tombou contra a terra, uma mancha
de sangue se espalhando por suas costas.
— Não!
Ao olhar para trás, viu Rodrigo empunhando uma pistola.
A cabeça de Isis girou.
Soube que Rodrigo tinha deixado a porteira aberta.
Soube que Rodrigo tinha levado Natanael até a fazenda.
— Por quê?
Os olhos dela se alternavam entre o veterinário, Natanael e
Lucas, que ainda respirava, que ainda estava vivo, mas sangrando
sem parar.
Um sorriso diferente tomou a boca de Rodrigo.
Ele jogou o chapéu para longe.
— Porque este é o meu legado.
As palavras soaram frias, cortantes. Não havia nada do
veterinário simpático e simples ali. A aura daquele homem era...
Perversa.
Um lobo em pele de cordeiro.
Isis apertou o filho ainda mais. Davi chorava sem parar. O
sangue vertia do ferimento de Lucas.
— Seu legado?
— Garantir que a vida de Oliveira seja miserável. Garantir que
cada ano da vida dele seja mais amargo do que o outro — Rodrigo
sibilou. — E sempre estar aqui por perto... Para contemplar cada um
desses momentos.
Isis estremeceu da cabeça aos pés. Natanael havia se
apossado da arma de Lucas. Olhou para os lados; se corresse,
Rodrigo poderia atingi-la. Ou atingir seu filho.
— Vamos acabar logo com isso — Rodrigo ordenou, lançando
um olhar para Natanael.
— Tomei um tiro! O filho da puta teve coragem de atirar em
mim!
— Depois vemos isso. Temos um acordo. Leve-a daqui.
Isis apertou Davi. Talvez se...
Rodrigo ergueu a arma e deu um tiro para o alto.
— Sem gracinhas, garota. Ou o próximo buraco vai ser aberto
no seu filho.
A ameaça quase a fez vomitar.
Para comprovar o que tinha dito, Rodrigo voltou a arma para
ela e para Davi. Não havia um pingo de hesitação no semblante
dele.
— Vai colaborar ou não?
Isis engoliu em seco e assentiu.
Com um movimento brusco e firme, rugindo de dor por causa
do ferimento no ombro, Natanael agarrou o braço de Isis e a
arrastou até a BMW.
Ela queria reagir, queria se debater.
Mas se algum deles fizesse mal para Davi para puni-la...
— Por favor... — A voz de Isis tremeu e ela apontou para
Lucas. — Ele precisa de um médico. Por favor, eu vou com vocês.
Mas chamem um médico. Por favor.
Rodrigo riu e a ignorou.
— O dia será memorável para Oliveira.
Natanael empurrou Isis e Davi para dentro da BMW.
Rodrigo contornou o carro e abriu a porta, sentando-se no
banco traseiro ao seu lado. Com uma mão, segurava a arma, com a
outra, o celular.
— Vamos fazer uma ligação para o Oliveira? Ele adorará ter
notícias minhas. Sabe... Meu pai e ele se conheceram no passado.
Não havia ninguém que eu admirasse mais do que meu pai. Mas eu
o perdi. — Gelo bruto cobria cada palavra. — Porque Oliveira o
entregou para um bando de selvagens que o mataram brutalmente e
queimaram seu corpo enquanto eu assistia tudo.
33
Dívidas

Vinte anos atrás

Escondido atrás do matagal, o jovem Rodrigo Peixoto


observou o momento em que seu pai, o grande e admirável coronel
Joaquim José Peixoto, foi capturado por um bando de selvagens
imundos.
Desceu a mão para o coldre, apanhando e engatilhando a
arma. Ensinaria aqueles malditos índios a respeitarem o verdadeiro
dono daquelas terras. Exatamente como seu pai lhe ensinara. Os
selvagens estavam chorando a morte das duas crianças. Pois bem,
Rodrigo os mandaria para um lugar onde encontrariam aquelas
crianças.
Apontou a arma e atirou.
Nada aconteceu.
Merda. Havia esquecido de carregar a porra da arma. Seu pai
vivia o repreendendo por isso. E agora aquele maldito erro poderia
custar caro.
Escutou uma movimentação, alguém se aproximando.
Rodrigo abaixou a arma, controlando os sons da respiração,
observando o militar fardado que caminhava até seu pai e os índios.
Um sorriso predador subiu na boca do rapaz.
Agora os selvagens conheceriam o gosto de um fuzil militar.
— Oliveira! — seu pai bradou. — Mande esses selvagens me
soltarem!
— Você matou essas crianças?!
— Estas terras são minhas! Eles estão nas minhas terras!
O coração de Rodrigo palpitava. Seu pai era mesmo um
homem imponente, poderoso. Seu maior modelo. Tudo o que queria
ser quando crescesse e se tornasse um homem de verdade.
— Nós clamamos a vida dele — um dos índios falou. Rodrigo
precisou se controlar para não disparar e meter uma bala na cabeça
do selvagem. — Ele já tirou muito de nós. Da terra, da natureza, das
nossas famílias. Que ele pague, em nossas mãos, por todo o
sangue que derramou.
— Eu tenho direito à justiça! — escutou o pai gritar. — A um
julgamento com gente normal, e não com um bando de selvagens!
Rodrigo esperou que o militar atendesse à ordem do seu pai.
Eles eram superiores. Não se curvariam a índios que
acreditavam que tinham qualquer direito de posse sobre aquelas
terras.
Mas, então, em um piscar de olhos, tudo mudou.
Oliveira recuou, e um dos selvagens cortou a garganta do seu
pai.
O sangue jorrando, feito uma tapeçaria de rubi líquido, seria
uma imagem que o adolescente jamais se esqueceria.
E, enquanto o corpo do seu pai queimava na grande fogueira,
Rodrigo jurou que faria o tal militar Oliveira pagar por trair a própria
raça, por se aliar aos selvagens bárbaros e inferiores.
Mas não com a vida.
Havia formas piores de fazer uma pessoa sofrer.
E não importava quanto tempo passasse, quanto tempo
precisasse para se preparar, crescer e aprender mais sobre o
inimigo.
Um dia, Oliveira iria pagar.
E Rodrigo seria o cobrador.

◆◆◆
Atualmente

Oliveira escutou cada palavra da confissão do doutor Thales.


E, conforme o homem falava, quase gaguejando, tremendo,
com o nariz ensanguentado, ele não soube como conseguiu se
controlar para não arrebentar a cara do filho da puta.
O médico estava envolvido em um esquema de tráfico de
entorpecentes e medicamentos controlados. Paulo Queirós, o
caminhoneiro, era quem fazia o transporte e as entregas.
— E o que isso tudo tem a ver com a minha esposa? —
rosnou; o sangue latejava furioso nas veias.
— Os termogênicos encontrados no sistema dela faziam parte
de um dos carregamentos ilegais. Foram administrados... — Ele
engoliu em seco. — Foram administrados em uma dose alta para
causar uma hipertensão e levar ao infarto.
Oliveira deu um passo para a frente; o médico se encolheu
contra a parede, erguendo as mãos para proteger o rosto.
— Me dê um motivo para não te arrebentar aqui e agora.
— Eu não sabia... Eu não sabia... — Thales soluçou, os olhos
trêmulos oscilando entre Oliveira, Dimitri e Leila. — Não sabia que
ele usaria os termogênicos para isso.
— Ele quem?! Paulo?!
— Não! Paulo também não sabia! E, depois de um ano, Paulo
não aguentava mais o segredo, o peso da consciência. Tentou falar
com você. E ele... E ele garantiu que Paulo morresse. E tem me
chantageado desde então. Ameaçado minha carreira. Minha família.
Os olhos de Oliveira ardiam de raiva.
— Ele quem, porra?! Quem está por trás dessa merda?!
O celular de Dimitri tocou.
Sem desviar os olhos de Thales, Oliveira escutou Dimitri
atender à ligação, murmurar alguma coisa e, então, puxar o ar.
— Oliveira, você precisa ouvir isso.
— Estou um pouco ocupado no momento.
— É o investigador Tomás. Escute o que ele tem a dizer.
Com um grunhido, Oliveira assentiu. Dimitri colocou o celular
no viva-voz e segurou o aparelho perto dele.
— Estou aqui, Tomás. O que você descobriu?
— Interroguei o cara que atacou você e Isis no estacionamento
do Palácio das Artes. Ele trabalha mesmo para Natanael — Tomás
explicou. — E consegui arrancar a verdade dele. Natanael não
encontrou Isis por acaso. Alguém o contatou através de fontes
segurar e entregou a localização de Isis. O nome que obtive foi
Rodrigo. E, pelo que nosso suspeito me contou, esse tal Rodrigo
trabalha na sua fazenda. Ele seguiu Isis, tirou fotos, investigou tudo
o que pôde, até conectá-la a Natanael. Depois de descobrir a
verdade, ele entrou em contato com Natanael. E foi assim que
vocês dois foram emboscados aqui em Belo Horizonte.
O mundo pulsou e desacelerou ao redor de Oliveira.
Seus olhos voltaram-se em chamas para Thales.
— Rodrigo? O veterinário de cavalos? — perguntou entre
dentes. — É ele quem está por trás disso?!
Engolindo em seco, o médico assentiu.
E então, antes que pudesse fazer mais alguma coisa, entender
qual era o encaixe do veterinário em toda aquela história, outro
pensamento sombrio o assolou.
Hoje era dia de Rodrigo ir até a fazenda para examinar os
cavalos.
Seu coração disparou.
Isis! Davi!
Olhou para Dimitri; não precisou dizer nada. Arrastando
Thales, jogou o médico dentro da caminhonete. Não deixaria o
desgraçado escapar. Leila se ofereceu para ir com eles, e, em um
borrão que passou velozmente pelos seus olhos, ele dirigiu o mais
rápido que conseguiu até sua fazenda.
Tentou ligar várias vezes para o telefone fixo da casa; nem
Lucas, nem Isis, nem ninguém atendeu.
Sua pulsação aumentou ao ver a porteira escancarada.
Oliveira pisou no acelerador e avançou para dentro da
propriedade.
— Porra!
Ele saltou da caminhonete assim que viu Lucas caído no chão.
Dimitri correu e se agachou ao lado do amigo, checando sua
pulsação.
— Está vivo.
— Mas ele está perdendo muito sangue. — Leila se ajoelhou
ao lado dele. — Temos que fazer algo, ou será tarde demais.
Oliveira apontou o dedo para Thales.
— Salve-o! Se ele morrer, pode se considerar um cara morto.
O médico engoliu em seco e assentiu, curvando-se sobre
Lucas, auxiliando Leila a movê-lo enquanto prestavam os primeiros
socorros.
— Isis! Davi! — Oliveira gritou, correndo pelo terreno. — Isis!
O celular no bolso de sua calça tocou. Ofegando, Oliveira
puxou o aparelho. Reconheceu o número do veterinário.
— Onde eles estão?!
Um riso atravessou a linha.
— Ora, Oliveira, estamos fazendo um passeio amigável.
— Por quê?! — Oliveira vociferou. — Por que você matou a
Sofia, seu filho da puta?! Por que entregou Isis e Davi para
Natanael?!
— Porque, anos atrás, você permitiu que selvagens tirassem a
vida do meu pai.
Oliveira arfou, as peças se encaixando em sua cabeça.
— Você é filho do Peixoto?!
A respiração de Rodrigo chegou em um chiado arrepiante até
os seus ouvidos.
— Sua dívida comigo jamais acabará. Você tirou de mim
alguém que eu amava. Agora, vou fazer a mesma coisa com você...
Outra vez.
34
Sobrevivente

Agarrada ao filho, Isis podia escutar o próprio coração


batendo alucinadamente enquanto Natanael guiava o carro pela
estrada de terra, ladeada por grandes plantações de cana-de-
açúcar.
— Sua dívida comigo jamais acabará. Você tirou de mim
alguém que eu amava — Rodrigo sibilou ao celular, mantando a
arma apontada para ela. — Agora, vou fazer a mesma coisa com
você... Outra vez.
E desligou.
Isis não ousou dizer uma palavra. Mas entendia o que estava
acontecendo ali. O sonho que tivera com Sofia na última noite fora
como um presságio do vento, um sussurro enigmático do passado
que viria cobrar seu lugar no presente.
“É uma questão de sangue... Onde o pai protege e acoberta o
filho... E filho protege e acoberta o pai”.
Isis engoliu em seco.
Uma vingança estava em andamento.
Assim como os pais de Natanael o haviam protegido no
passado, Rodrigo agora protegia o legado do próprio pai.
Uma questão de sangue.
— O pirralho é a cara do Bruno, hein? — Natanael bradou,
fitando-a através do espelho retrovisor.
Isis o encarou de volta.
— Ele não se parece nem um pouco com o estúpido do seu
amigo.
— A família do Bruno vai adorar quando eu entregar o pirralho
para eles. Você nunca mais vai vê-lo.
O coração de Isis disparou.
— O plano não é esse — Rodrigo resmungou para Natanael.
— Oliveira tem que pagar.
— Você tem seus problemas com esse cara. Eu tenho os
meus problemas com essa vadia.
— E você só a encontrou por minha causa.
— E você só está aqui por causa dos meus recursos.
— Já te falei o que vamos fazer com ela e com o moleque —
Rodrigo sibilou. — Não haverá alterações nos planos.
Isis não fazia ideia do que fariam com ela e com Davi, mas
sabia que, não importava qual dos dois fosse seu carrasco, o
destino seria terrível.
Natanael resmungou, praguejou. Isis o conhecia. Ele não
gostava de ser contrariado e de ter suas vontades negadas. E, pela
expressão de Rodrigo, uma briga de ego e controle poderia
acontecer a qualquer momento.
— Dá para dirigir mais rápido? — Rodrigo ralhou.
— Se você não percebeu, estou com a porra de uma bala no
meu ombro e o sangue não para de escorrer. Troque de lugar
comigo.
— E te deixar vigiando a garota? Nem pensar. Pare o carro.
— O quê?
— Pare o carro. Vou dar um jeito nesse ferimento.
Natanael o obedeceu. Quando o carro parou, Isis ainda não
sabia como seu coração não havia saído para fora do peito.
— Nem pense em tentar fazer alguma gracinha, entendeu?
Rodrigo deslizou o cano da arma pela têmpora de Isis,
ameaçando fazer o mesmo em Davi. Ela puxou o filho; poderia
morrer, mas aquele maldito não encostaria nada em Davi.
— Acho que você me entendeu, certo?
Furiosa, nervosa, Isis observou Rodrigo e Natanael descerem
do carro. O veterinário apanhou algo da maleta e começou a tratar o
ferimento no ombro de Natanael.
A respiração de Isis chiava. Precisava fazer alguma coisa.
Olhou através do vidro do carro; tudo o que havia ao redor da
estrada era um extenso canavial. As chances de conseguir ajuda ou
de que alguém passasse ali eram baixas.
Controlou as lágrimas que queriam cair.
Estava sozinha. Como sempre estivera em toda a sua vida.
Mas... Mas...
“Voltarei logo”.
“Eu sei. E estarei aqui quando você voltar”.
Havia lutado tanto. Por si mesma. Por seu filho.
“Você é importante para o Oliveira. Então, você é importante
para mim e para Dimitri. Nós cuidamos da nossa família”.
Só que agora havia muito mais pelo que lutar.
Ela não era apenas uma fugitiva.
Era uma sobrevivente.
E não se entregaria. Não depois de tudo. Não quando havia
encontrado o que procurara durante toda a sua vida.
Nem que aquilo fosse a última coisa que fizesse.
Morreria lutando para proteger o que mais amava.
— Segure bem forte na mamãe, tá bom? — pediu em um
sussurro para o filho. — E não faça nenhum barulho. Promete,
Davi?
— Prometo.
Isis fechou os olhos por um momento e o beijou no rosto.
E então, reunindo toda a coragem que havia dentro de si,
esticou a mão até o painel do carro e apertou o botão que
destravava as portas traseiras. Puxou o ar mais uma vez. Olhou
para Rodrigo e Natanael, distraídos com a sutura do ferimento.
Com um só movimento, escancarou a porta do carro.
O barulho atraiu a atenção de Rodrigo e Natanael.
Ela não perdeu tempo.
Com Davi no colo, pulou do carro e correu para o meio do
canavial.
35
Adrenalina

Mantendo o rosto de Davi protegido contra o seu ombro, Isis


corria sem olhar para trás. Não sabia quanto tempo teria até
Natanael e Rodrigo a alcançarem.
Mas precisava aproveitar cada segundo a seu favor.
Pois, se eles a pegassem, era certeza de que não
sobreviveria.
E o mais absurdo era que não temia tanto pelo que
aconteceria a si mesma, e sim ao que aqueles dois monstros fariam
ao seu filho.
Aquele pensamento lançou mais força e velocidade às suas
pernas.
Isis correu pelo meio do canavial, contendo o grito cada vez
que algo cortava seu rosto, seus braços, seu pescoço.
Sentia Davi trêmulo, mas, por um milagre de Deus, ele estava
quietinho, do jeito que pedira para que ficasse.
Nós vamos conseguir, meu amor. Nós vamos.
Tropeçou em galhos secos, quase caiu nas folhas
escorregadias; mas, pelo seu filho, não perdeu o equilíbrio.
O pavor a subjugava, nublava seus sentidos.
Isis engoliu em seco e segurou Davi com mais força.
A sensação era de que qualquer um deles poderia surgir da
plantação a qualquer minuto, com as armas engatilhadas,
disparando contra ela e contra o filho.
Tomando fôlego, Isis correu às cegas. Não sabia qual era a
extensão do canavial. Não tinha ideia de qual direção deveria tomar
para chegar em alguma estrada de terra ou rodovia. Sequer sabia
se estava correndo em círculos e voltando para perto de seus
captores.
Só tinha certeza de uma coisa.
Não podia se dar ao luxo de parar.
Pensou em Oliveira, em seu rosto, em seu toque, em seu
abraço.
Se encontrasse o caminho que a levaria de volta para ele, teria
uma chance de acabar com tudo.
Mas para onde devo ir?
O vento soprou, erguendo seus cabelos, quando Isis se viu
diante de uma bifurcação que se abria no meio da plantação.
O sangue latejava nos ouvidos.
Sua respiração entrecortada era um sibilo entremeado ao
vento.
Ela estava pronta para seguir pelo caminho da esquerda
quando ouviu uma arma sendo engatilhada.
— Te peguei, vadia — Natanael rosnou. Os olhos deles eram
violentos, sanguinários, mortais. Sangue escorria do ferimento mal
costurado em seu ombro. — Pouco me importo com o que o
veterinário quer fazer com você ou com aquele fazendeiro idiota.
Você já me deu dor de cabeça demais. Nossa história acaba aqui e
agora.
Isis não soube se foi a adrenalina.
Se foi a sorte.
Se foi o destino.
Natanael avançou, a arma em punho, mas por conta da dor do
ombro, do ferimento que o fazia perder sangue sem parar, das
infinitas canas-de-açúcar, ele cambaleou, caindo contra ela.
A arma disparou para o alto.
Tudo foi muito rápido; Isis rolou junto de Natanael, usando o
próprio corpo para proteger Davi.
— Porra!
A mão de Natanael se abriu enquanto ele urrava de dor.
Ofegando, Isis não perdeu tempo.
No instante seguinte, se viu no chão, com Davi ao seu lado, a
arma de Natanael nas mãos.
Ele a olhou, respirando rápido.
Isis não pensou duas vezes.
Por si mesma.
Por seu filho.
Por Vic.
Usando tudo o que Oliveira lhe ensinara, ela ergueu a arma,
pressionou o dedo no gatilho e disparou duas vezes.
O impacto jogou seu corpo para trás.
O choro assustado de Davi ecoou pelo canavial.
Tremendo, Isis conteve um soluço aflito enquanto Natanael
tombava para trás, levando uma mão para o buraco aberto em seu
peito.
Mal teve tempo de processar o que aconteceu.
Pois, no segundo que se seguiu, sentiu o cano de uma arma
ser pressionado contra a sua cabeça.
— Solte a arma — Rodrigo vociferou. — É o fim da linha para
você, garota.
36
Em família

Pisando com força no acelerador da caminhonete, Oliveira


atravessou a estrada de terra. Dimitri se mantinha ao seu lado, a
arma engatilhada e pronta para o combate.
Suor frio escorria por sua testa.
Se Rodrigo ou Natanael fizessem algo para Isis e Davi...
Ele não queria pensar nas piores hipóteses. Pois precisava de
foco total. Mostraria o que acontecia com quem mexia com as
pessoas mais importantes de um homem como ele.
— Tem uma BMW ali — Dimitri apontou para o veículo largado
no meio da estrada, com as portas abertas. — É do veterinário?
— Não, mas deve ser do riquinho.
Os dois saltaram da caminhonete; Dimitri com a sua típica
arma de fogo, Oliveira com a espingarda.
— Isis! — gritou. — Davi!
— Eles devem ter seguido por aqui — Dimitri falou, seguindo
para uma das entradas que levava para o meio do canavial.
Oliveira não o questionou.
Durante o tempo de exército, Dimitri sempre fora um dos
melhores rastreadores em campo.
Juntos, eles avançaram para o meio da plantação.
O coração de Oliveira batia nos ouvidos.
E seus ossos trincaram quando ele escutou o som de um tiro.
— Ali! — Dimitri apontou para a bifurcação. — O disparo veio
daquela direção!
Eles apertaram o passo e correram ainda mais rápido.
Em algum momento, Oliveira teve um lampejo; de onde
estava, mesmo à distância, viu Isis no chão, com Davi ao seu lado,
um corpo caído, Rodrigo em pé, uma arma apontada para ela.
Seu sangue rugiu.
Ele ergueu a espingarda.
E atirou.

◆◆◆

O tiro disparado não acertou Rodrigo, mas serviu para distrai-


lo.
Foi o momento que Isis agarrou.
Pegando o filho, ela avançou outra vez para o meio do
canavial.
Apesar do desespero, havia agora um fio de esperança no
qual se segurava enquanto corria.
Oliveira os tinha encontrado.
Tinha certeza de que aquele tiro havia sido dado por ele.
— Nós vamos conseguir — sussurrou para Davi. — Aguente
firme, meu amor. Nós vamos conseguir.
Escutou mais tiros sendo disparados às suas costas.
Era Oliveira? Dimitri? Rodrigo?
Não conseguia ter certeza.
E manter o filho seguro era sua prioridade.
Isis correu ainda mais rápido, e ofegou quando a plantação
subitamente se abriu em um largo descampado, onde não havia um
lugar para se esconder ou se camuflar.
Não! Não! Não!
E, quando olhou para trás, viu Rodrigo correndo na sua
direção.

◆◆◆
— Vá por ali! — Oliveira gritou para Dimitri, dando mais um tiro
com a espingarda. E mais um. E outro. Nenhum acertava Rodrigo.
O filho da puta era rápido e usava o canavial para se proteger. —
Vamos cercá-lo!
Eles se separaram.
As botinas de Oliveira batiam contra a terra, e ele empunhava
a espingarda, pronto para eliminar qualquer ameaça.
Aos poucos, a plantação foi sumindo.
Oliveira acelerou e alcançou o descampado por um lado, no
mesmo instante em que Dimitri vinha do outro sentido, atraindo a
atenção de Rodrigo e de Isis.
A mira da arma de Rodrigo se voltou para Dimitri.
Oliveira trincou a mandíbula.
Agora eu te pego, filho da puta.
Não importava que aquilo fosse um ataque covarde.
Oliveira ergueu a espingarda, mirando as costas de Rodrigo.
E quando tentou atirar, nada aconteceu.
Tentou de novo. E de novo. Nada.
A munição havia acabado.
E o arquejo indignado que saiu do fundo de sua garganta
atraiu a atenção de Rodrigo, fazendo-o olhar para trás.
Olho no olho.
Os olhos do assassino de Sofia.
— Não bastava ter entregado meu pai covardemente para os
selvagens — sibilou. — Ainda ia atirar em mim pelas costas?
A adrenalina inundou seu sangue, e Oliveira correu na direção
de Rodrigo, lançando a espingarda sem munição no chão. Seus
corpos se chocaram no meio do campo. Com um golpe, Oliveira o
desarmou, mas a arma acabou voando para longe.
Rodrigo se moveu com agilidade, agarrando Oliveira e o
jogando contra o chão.
Ao longe, ele escutou Isis gritar seu nome.
E aquilo foi tudo o que precisou para se recompor.
Oliveira investiu contra os pés de Rodrigo e segurou seus
tornozelos com força, derrubando-o. Rosnando, Rodrigo usou a sola
do sapato contra o rosto de Oliveira e o empurrou para trás.
Rapidamente, ofegando sem parar, os dois ficaram de pé.
Oliveira avançou, desferindo um chute lateral que atingiu as
costelas dele, deixando-o sem ar e fora de ação por alguns
instantes. Com o canto dos olhos, podia ver Dimitri tentando mirar a
arma em Rodrigo, mas hesitando em atirar para não o atingir.
Oliveira exalou forte.
Era melhor que Dimitri não atirasse.
Aquela briga era sua.
Por Sofia. E por Isis.
Por tudo o que aquele filho da puta tinha tirado dele — e que
ainda queria tirar.
Ele transferiu seu peso para o pé esquerdo e desferiu outro
chute lateral quando Rodrigo fez menção de se jogar aonde a arma
de fogo tinha caído. Sem trégua, Oliveira ergueu o joelho direito e
deu um golpe em cheio no nariz do veterinário.
Rodrigo desabou, mas moveu a perna, enganchando a canela
de Oliveira e o levando para o chão outra vez.
Eles se atracaram, rolando entre socos e cotoveladas; quando
conseguiu uma brecha, Oliveira esticou a mão e tirou a faca que
sempre carregava escondida em sua botina.
Seus olhos se cravaram nos olhos de Rodrigo.
— Você é cria do seu pai. Tão podre quanto ele. Mas agora
você vai finalmente reencontrá-lo.
E, com um movimento, enfiou a faca na garganta dele.
O sangue verteu na mesma hora.
Um milhão de imagens correram por sua mente; seus anos no
exército, seu trabalho na reserva, na fronteira, as crianças indígenas
mortas por Peixoto, o dia em que viu Sofia pela primeira vez, o
vislumbre da fazenda que compraram, a notícia da gravidez, a
esposa caída no chão, a manhã cinzenta do velório; eram cenas
que caíam como se vidro houvesse explodido bem diante dos seus
olhos.
Mas o vidro foi soprado por um vento forte, um tornado,
levando-o a uma noite de rajadas furiosas; Oliveira também viu uma
garota encolhida, assustada, mas com os olhos lampejando em uma
determinação absurda, pronta para defender o próprio filho com
toda a força que tinha.
Ele soltou a faca, soltando um arquejo sôfrego.
— Está tudo bem. — Sentiu a mão de Dimitri em seu ombro.
— Estou aqui. Cuidarei de tudo.
Largando Rodrigo no chão e deixando que Dimitri ligasse para
a polícia, Oliveira se levantou e correu até Isis e Davi, envolvendo-
os nos seus braços.
— Não sei o que faria se tivesse perdido vocês — sussurrou.
— Nós estamos aqui — Isis sussurrou de volta, se apertando
contra o seu peito. — E não vamos a lugar nenhum.
Oliveira fechou os olhos, sentindo as lágrimas, o alívio, o
palpitar intenso do coração.
Sua família estava segura.
E ele jamais permitiria que alguém os machucasse outra vez.
37
Missões futuras

Oliveira estava sentado na poltrona do quarto hospitalar


quando Lucas resmungou alguma coisa e abriu os olhos.
— Bem-vindo de volta, rapaz.
Lucas piscou demoradamente, como se estivesse se
acostumando com a luz fria do teto.
Dimitri, que estava recostado à parede, se aproximou da
cama.
— Caramba... — Lucas murmurou. — Eu que tomo o tiro, e
vocês que ficam com essas caras de acabados?
Dimitri expeliu um riso baixo.
— É. Você vai se recuperar.
— Pelo jeito, já está recuperado — Oliveira avaliou melhor.
Lucas riu, mas o momento de diversão logo se dissipou de seu
rosto quando ele buscou pelos olhos de Oliveira.
— Sinto muito. Prometi que protegeria Isis e Davi, mas...
— Você fez o seu melhor. E estou agradecido.
— Eles estão bem?
— Sim. Estão em segurança. Em casa. Na nossa casa.
Um suspiro aliviado saiu do peito de Lucas.
— E Natanael? Rodrigo?
— Os dois estão mortos — Oliveira explicou. — Rodrigo
morreu em confronto comigo. Natanael tomou um tiro de Isis. Ele
ainda respirava quando a ambulância o levou, mas não resistiu
durante a cirurgia. Uma pena. Queria que esse filho da puta
comesse cadeia por tudo o que fez Isis passar nesses últimos anos.
— Pelo menos, sabemos que ele não vai mais incomodá-la —
Dimitri ponderou.
— E a família dele? — Lucas perguntou, virando o rosto para
Oliveira enquanto buscava uma posição confortável na cama.
— Está sendo investigada pelo acobertamento do crime.
Aquele idiota do Bruno também vai rodar. Tomás assumiu as rédeas
da situação. O inquérito está feio. A mídia caiu em cima. Isis depôs
anteontem. Tudo veio a público. Dessa vez, eles não vão escapar.
— E, se escaparem, nós estaremos aqui para cercá-los e jogá-
los atrás da cadeia de novo — Lucas bradou. Oliveira chiou,
segurando um riso embaixo do resmungo. — Por sinal, qual é a
nossa próxima missão? Vocês sabem que não vou aguentar ficar
preso nessa cama por muito tempo. Já me sinto pronto para o
serviço.
— Eu não teria certeza. — Dimitri deu uma cutucada no ombro
dele, arrancando um palavrão da boca de Lucas. — Mas acredito
que logo você estará. E, assim que estiver apto, posso até te passar
um serviço que a empresa de segurança onde trabalho queria que
eu assumisse. Só que como é um trabalho que vai exigir vinte e
quatro horas de dedicação, tive que recusar, por causa de Hadassa
e do casamento. Talvez eu indique você para esta missão futura.
Mas só se você se recuperar.
Com dificuldade, Lucas bateu continência para ele.
— Considere-me recuperado.
— É o que vamos ver.
Um pouco depois, o médico entrou no quarto e pediu para que
Dimitri e Oliveira se retirassem. Os dois assim fizeram, prometendo
para Lucas que voltariam no próximo horário de visita.
Lado a lado, Oliveira e Dimitri atravessaram o corredor
hospitalar.
— Do que se trata esse trabalho? — Oliveira indagou. —
Guarda-costas particular, como foi o seu caso e o de Hadassa?
— Não. O trabalho é mais complexo e exigente. É um cargo
para chefiar a equipe de segurança de uma princesa.
— Uma princesa? — Oliveira meneou a cabeça e riu. — Este é
o novo codinome da sua empresa de segurança para se referir a
“garotas ricas e mimadas”?
— Neste caso, estamos falando de uma princesa de verdade,
da monarquia moderna de um desses países que ainda mantém
esse tipo de sistema.
Oliveira arqueou as sobrancelhas, ligeiramente curioso.
— Fale mais sobre isso.
— Vou te contar tudo o que sei até o momento. Mas, primeiro,
que tal irmos comer alguma coisa?
38
Raízes

De mãos dadas com o filho, com um bolo na outra mão, Isis


atravessou a praça Antônio Quirino da Silva, retribuindo aos
cumprimentos dos rostos que haviam se tornado familiares em sua
rotina.
— Boa tarde, Isis!
— Boa tarde, seu Oswaldo.
— Ei, Isis, você sabe se o meu pedido de tomate orgânico vai
ser entregue até o fim da semana?
— Vai sim, dona Vivian. Estamos cuidando de tudo.
— Gostei do penteado, Isis.
— Obrigada, Mari. Adorei seus sapatos.
— Nosso, como o Davi tá grande! Que meninão! Com o
tempo, vai passar a altura da mãe.
— Tenho certeza que sim. Serei a única baixinha da família.
A cada passo dado na praça, um cumprimento, uma pergunta
ou um comentário eram feitos. Para muitas pessoas, aquilo seria
apenas um acontecimento normal do dia-a-dia. Mas, para Isis, cada
fala era uma confirmação das raízes que estava criando em
Itatiaiuçu.
E ela não podia estar se sentindo mais feliz ou satisfeita.
— Já estamos chegando, mamãe?
— Já sim, meu bem. A casa da Leila é logo ali.
Após passar em frente da paróquia local, onde o padre a
chamou e ela prometeu que a fazenda doaria alimentos para a festa
da quermesse, Isis seguiu com Davi até a simpática e pequena
residência onde Leila morava. Tocou a campainha e aguardou até a
médica aparecer no portão.
— Ora, ora, Isis! Davi! Que surpresa! — Leila exclamou
enquanto abria o portãozinho para recebê-los. — O que estão
fazendo aqui?
— Alguém me disse que você estava de folga hoje. E decidi
trazer um bolo de cenoura com cobertura de chocolate para você.
Em agradecimento por tudo.
— Eu ajudei! — Davi falou, estufando o peito.
Os olhos de Leila brilharam em cima da cobertura do bolo.
— Assim você acaba com a minha dieta, Isis.
— Depois de tudo, você merece o bolo inteiro.
— E o pedaço pra mim? — Davi perguntou perplexo,
arrancando risos de Leila e Isis.
Passando pelo portão, Isis seguiu Leila até o interior da casa.
Um aroma floral e delicado pairava pela sala.
— Sente-se, Isis. Me conte, como vocês estão?
— Estamos todos bem. Parte disso, graças a você.
Um leve rubor tingiu as bochechas de Leila.
— Só fiz meu trabalho.
— Você fez muito mais do que isso.
— Como eu te disse uma vez, Oliveira sempre foi um bom
amigo. E gosto muito de você, Isis. — Leila ergueu um sorriso gentil
nos lábios. — Por sinal, ainda estou surpresa por saber que você
não é prima dele. Bom... Sempre achei que ele te olhava de um jeito
que não parecia o jeito de um primo olhar para uma prima.
Desta vez, as bochechas de Isis coraram.
— Foi uma história que tivemos que inventar, diante de todos
os problemas. Ainda bem que tudo acabou.
— Ainda bem mesmo. Acompanhei as notícias.
— Prisões estão sendo feitas. — Isis soltou o ar. — Depois de
tanto tempo, sinto que finalmente posso descansar.
— Você merece. Você e Oliveira merecem ser felizes.
— Você também, Leila.
— Já estou feliz demais por ver como você deu luz à vida de
um amigo querido. Assim como Oliveira, sei o que é perder alguém
importante. É muito bom vê-lo alegre novamente.
Isis captou o olhar que Leila lançou para um porta-retrato; a
foto trazia a imagem de uma médica mais jovem ao lado de um
rapaz.
A curiosidade mordeu Isis. Quem era aquele com Leila? Seria
um irmão? Um namorado? Um amigo? Um parente? Havia
semelhanças entre as duas pessoas da fotografia.
Mas, ao fitar Leila novamente, percebeu que aquele não era
um assunto para o momento, e deixou a pergunta para outra hora.
— Mais uma vez, Leila, obrigada por tudo o que você fez por
mim, pelo Davi e pelo Oliveira. Jamais vou me cansar de agradecer.
Leila sorriu, estendendo a mão e segurando a mão de Isis.
— Ora, amigas são para isso, certo?
Uma onda forte e emotiva invadiu Isis.
As raízes que criava dia-a-dia também estavam trazendo
pessoas queridas e importantes para a sua vida.
— Com certeza.
Davi cutucou o braço de Isis.
— A gente pode comer o bolo agola, mãe?
E, mais uma vez, em uma cadência harmônica e cúmplice, Isis
e Leila riram juntas.
39
Aprovação

— Já é a oitava vez que você atualiza a página desse site —


Oliveira resmungou, jogado na poltrona. — Em menos de cinco
minutos.
— É porque eu estou nervosa — Isis contra-argumentou,
andando de um lado para o outro na sala. Abóbora a acompanhava
sem parar, como se fosse sua sombra. — E ansiosa.
— Mamãe vai fazer bulaco no chão.
Oliveira riu, apoiando a mão na cabeça de Davi.
— Com certeza, rapazinho.
Ignorando-os, Isis se inclinou outra vez sobre o notebook e
atualizou a página.
— Nada ainda. Minha nossa. Por que demoram tanto?
— Querida, fiz um chazinho de camomila para você. — Matilde
surgiu na sala, carregando uma xícara fumegante nas mãos. — Vai
ajudar você a se acalmar.
Em um só gole, Isis sorveu o chá e se voltou para o
computador, fazendo Matilde arregalar os olhos e pigarrear algo
sobre queimar a garganta. Ela mal a ouviu, atualizando novamente
o site.
Isis grunhiu.
— Nada ainda.
— Tá bom. Já chega — Oliveira bradou, se levantando e
esticando a mão para apanhar o celular. — Vou ligar para o Lucas e
pedir para ele acessar o sistema da universidade, e...
— Atualizou! Atualizou! — Isis deu um gritinho animado, o
coração tremendo em expectativa.
Oliveira largou o celular do lado.
— E...?
— Os resultados estão aqui!
— Fala logo, mulher! Não gosto de suspense!
Os olhos emocionados de Isis se encontraram com os olhos
dele.
— Passei! Passei em Fisioterapia! Em primeiro lugar!
Acompanhando a animação, Abóbora latiu e balançou o rabo.
Matilde jogou as mãos para o alto.
— Minha novena funcionou!
Com uma exclamação de comemoração, Oliveira pegou Isis
nos braços e a ergueu, girando com ela pela sala.
— Parabéns. Todas as noites em claro e horas de estudos
valeram a pena. Sabia que você conseguiria, pequena.
— Obrigada, meu amor. Por acreditar em mim.
— Jamais duvidei de você.
Emocionada, Isis ergueu o rosto; o tom de mel de seus olhos,
iluminado pelo sol que se derramava pela janela da sala, brilhava.
— Eu te amo.
Uma luz diferente, cheia de promessas e expectativas, encheu
os olhos de Oliveira enquanto um sorriso largo tomava a boca dele.
— Eu também, pequena. Eu também te amo.
E, com Isis ainda nos braços, ele a beijou.
EPÍLOGO

Alguns anos depois

Para a família, domingo era o dia preferido da semana.


Principalmente se o domingo era acompanhado de um céu
azul límpido, vento fresco e natureza farfalhante.
— Que tal aqui? — Oliveira perguntou, com a cesta de
piquenique e a manta nas mãos.
Isis anuiu.
— Aqui é perfeito.
Oliveira ajeitou a manta no chão, em um local estratégico onde
poderiam ter uma vista privilegiada do riacho e, ao mesmo tempo,
um local mais afastado da margem, onde as crianças ficariam
seguras.
Confortável com o beijo do sol, Isis se sentou sobre a manta,
ajeitando Bia no colo. Sua menininha havia completado um ano na
semana anterior, e observava tudo ao seu redor com bastante
atenção.
Isis riu baixinho.
Pelo jeito, essa aqui herdou os olhos de águia do pai.
— Mais tarde, podemos cavalgar? — Davi perguntou,
ajudando Oliveira a tirar os lanches de dentro da cesta.
O coração de Isis foi invadido por uma ternura avassaladora
ao vê-los ali, juntos; a cada dia que se passava, Davi ficava mais
alto, mais bonito, e o amor que ele e Oliveira tinham desenvolvido
um com o outro sempre a fazia se sentir à beira das lágrimas.
Porque, como descobrira, alguns laços eram muito mais fortes
do que o sangue.
— É claro que sim, campeão.
— Eba! — Davi jogou os braços para o alto, animado. — E,
quando a Bia ficar maior, vou poder ensiná-la a cavalgar, pai?
Oliveira assentiu, os cantos da boca subindo.
— Com certeza, campeão. Ela vai amar aprender a cavalgar
com o irmão mais velho.
— Escutou só, mãe? Vou ser o professor da Bia!
— Escutei sim, amor. — Isis sorriu, com a filha nos braços. —
Você vai ser o melhor professor do mundo.
Enquanto Davi tagarelava, animado, sobre como ensinaria a
irmã caçula a subir em um cavalo, Isis se ajeitou melhor em cima da
manta, para que Oliveira pudesse se sentar ao seu lado. Ele trajava
um jeans velho, um par de botinas e uma camisa xadrez com os
dois primeiros botões abertos.
Será que ele não cansa de ser bonito desse jeito?
— Se ficar olhando assim para mim, pequena, vamos acabar
dando mais um irmãozinho para o Davi e para a Bia.
A promessa sussurrada, o fogo nos olhos dele, fizeram o
sangue de Isis esquentar com a expectativa.
— Assim vou querer que a noite chegue logo.
— Pensei que estava ansiosa para nosso piquenique
tradicional — ele provocou, os dedos fazendo carícias circulares em
seu braço.
— E estou. Depois de uma semana agitada, isso era tudo o
que eu precisava — ela sussurrou para o marido. — Um dia calmo
em família.
— Muita correria no hospital?
— Desde que voltei da licença maternidade, parece que os
serviços na ala de Fisioterapia dobraram. Mas sou grata demais ao
meu trabalho. E grata demais por Leila ter me indicado para a vaga.
Oliveira inclinou o rosto, encostando sua testa na testa dela.
— E eu sou grato demais por ventos furiosos terem colocado
você no meu caminho.
O coração de Isis acelerou, do mesmo jeito impetuoso que
sempre batia desde a primeira vez em que seus olhares tinham se
encontrado.
— Mãe! Mãe! Um peixe saltou ali no meio do riacho! — Davi
gritou, empolgado. — Bia! Bia! Veja o peixe!
Como se sentisse a animação do irmão, Bia riu e bateu
palmas.
Oliveira falou algo para ele, Davi respondeu com euforia e,
com a filha no colo, Isis se permitiu deitar a cabeça no ombro do
marido, envolvida pelas cores da natureza, pelo pulsar especial de
cada momento partilhado, na terra e no lar a que pertencia, junto
das pessoas amadas que formavam sua família.

Fim
Notas da autora &
Agradecimentos
Que emoção escrever "fim" em mais uma história. Foi tão, mas
tão apaixonante poder compartilhar toda a trajetória da Isis e do
Oliveira com vocês!

"Perdição Sublime" é meu vigésimo livro escrito, uma marca


especial demais para mim, que não me canso de contar histórias ♥

É muito gratificante compartilhar mais uma história com vocês, e


agradeço a todos aqueles que têm me apoiado nesta jornada: meus
pais, minha irmã, meu marido, meus avós, toda a minha família,
meus leitores maravilhosos do Wattpad e da Amazon. Muito
obrigada mesmo pela confiança e pelo carinho depositado em cada
leitura. Vocês são incríveis.

Só tenho a agradecer a todos vocês, que já estão me


acompanhando. Muito obrigada mesmo pela confiança no meu
trabalho. Vocês são incríveis! ♥

Um beijão para todos!


Conheça “Paixão Pagã”: a
história de Dimitri e Hadassa
CLIQUE AQUI PARA LER PAIXÃO PAGÃ
Após um atentado contra sua vida, a universitária Hadassa
Antonelli, filha do maior advogado de Belo Horizonte, se vê obrigada
a aceitar a presença constante do guarda-costas contratado por seu
pai.

Renomado em sua área, o metódico e enigmático ex-militar


Dimitri Alencar aceita o trabalho de ser segurança da única herdeira
de uma poderosa família. Mas seu plano de estar perto dos Antonelli
carrega um perigoso desejo de vingança.

Assim, em meio a uma convivência cheia de conflitos e faíscas,


uma estranha ameaça faz com que Hadassa e Dimitri sejam
forçados a se aproximarem ainda mais em busca de respostas,
onde segredos e paixões podem tornar tudo ainda mais letal.
Conheça “Provocação Preferida”:
a história de Lucas e Megan
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Lucas Garcia jamais recusou uma missão. Assim, aos trinta
anos, o militar se surpreende quando um trabalho diferente de tudo
o que está acostumado cai em suas mãos: ele deve assumir o posto
de chefe de segurança de uma equipe criada para proteger os
membros de uma monarquia moderna que está visitando a América
Latina.

Sendo a terceira filha de um dos poucos casais da atual realeza


existente, Megan MacDonnel anseia por liberdade, oportunidade
que surge quando ela embarca em uma viagem para outro
continente. Ao descer no Brasil, a jovem princesa esperava se ver
livre das regras do palácio, mas não imaginava que ficaria cercada
por guarda-costas irredutíveis, liderados por um homem
determinado a cumprir seu trabalho.

Mas Megan não está disposta a ser controlada. Assim, entre


disputas acaloradas e perigosas provocações, Lucas se vê diante
de uma garota que não joga pelas mesmas regras que ele e,
enquanto enfrenta o fogo deste novo campo de batalha, se vê diante
de uma estranha ameaça que pode colocar a princesa e toda a
missão em risco.
Conheça “Provação Suprema”: a
história de Leila e Mathias
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Depois de mais uma noite intensa de plantão, a médica Leila
Fernandes estava prestes a encerrar seu turno quando um homem
é jogado na entrada do hospital. Com poucos funcionários em
serviço, ela toma para si a tarefa de cuidar do desconhecido até que
ele retome a consciência.

Com a memória em branco, Mathias acordou ferido e


desorientado em uma cama de hospital, lembrando-se apenas de
seu próprio nome. Seu desespero só é atenuado pela presença de
uma bela médica, que promete ajudá-lo, fazendo com que a
proximidade desperte um fascínio inesperado em seu coração.

Assim, seguindo as poucas pistas que possui, às sombras de um


inimigo invisível, Mathias busca por respostas. E, quanto mais tenta
desvendar seu passado e sua identidade, mais percebe que a
verdade pode custar caro demais e colocar em risco a segurança de
Leila, a mulher a quem ele está disposto a proteger até de si
mesmo.
Conheça “Pecado Sagrado”: a
história de Alana e Alex
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Na renomada e conservadora Universidade Augusto dos Anjos,
o professor Alex Carvalho vê sua reputação e carreira em risco
devido à vida de solteiro precedida por alguns escândalos, e toma
uma súbita atitude para mudar sua imagem.

Alana Ramos está no último ano de jornalismo, e leva uma rotina


corrida para conseguir sustentar a família e concluir os estudos, um
sonho que parece cada vez mais distante por conta das dificuldades
financeiras. Até seu ex-professor lhe fazer uma proposta
surpreendente.

Um contrato de casamento surge como a solução ideal para os


problemas de ambos. Contudo, eles apenas não esperavam que
estranhas ameaças, uma morte misteriosa, segredos do passado e
sentimentos impetuosos transformassem o acordo em algo
perigoso, onde suas vidas e corações podem ser colocados em
jogo.
Conheça “Promessa Perversa”: a
história de Tomás e Josiane
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Após um ano desde a mudança para outro estado, a
investigadora Josiane Monteiro se vê obrigada a voltar para a antiga
cidade onde trabalhava quando um duplo assassinato acontece,
ligando-a à cena do crime. Seu retorno, além de trazer assuntos mal
resolvidos à tona, também a faz reencontrar um colega com quem
trabalhou por muito tempo.

Divorciado e fechado para qualquer relação, o investigador


Tomás Mendes fez da profissão o seu refúgio. Acostumado à rotina
da delegacia, ele não esperava se sentir tão impactado com a volta
de sua antiga parceira de trabalho.

Agora, enquanto os dois estão novamente juntos em uma


perigosa missão, sentimentos esquecidos são despertados em meio
a uma onda de ameaças, segredos e perseguições... E só resta a
Tomás e Josiane conseguir deter a pessoa que está por trás de tudo
antes que seja tarde demais.
OUTRAS OBRAS DA AUTORA
ALIANÇA DE FOGO (LIVRO ÚNICO)
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Em meio à modernidade e à globalização, Alignis do Norte é um


dos poucos países do Ocidente que ainda mantém uma monarquia
no governo, e se encontra em fase de tensão política.

Durante ataques terroristas, um dos príncipes herdeiros acaba


caindo em mãos inimigas, mobilizando uma missão de resgate
dentro do exército.

O sequestro, junto da chegada de novos recrutas, entre eles o


estrangeiro e enigmático soldado Ricardo Werneck, coloca Mahara
Sartori, a dedicada médica do 8º Batalhão, em confronto com seu
próprio passado e princípios.

Contudo, quando uma inesperada notícia chega até suas mãos,


Mahara se vê diante de um caminho que jamais pensou em trilhar,
onde cada passo dado poderá envolvê-la em uma jornada de
perigos, segredos, atrações intensas e sentimentos proibidos.
PONTO CRUZ (LIVRO ÚNICO)

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Pelas vielas da cidade solitária, crescem os olhos daquilo que vai


te vigiar. E não adianta buscar o refúgio das sombras. Eles saberão
que você está lá.

Uma falha crítica na missão que a levaria para fora do país


obriga a agente de infiltração Ariadne Dangelo a voltar para a cidade
de sua sede de trabalho, confrontando o furacão que deixou para
trás em sua última partida. Contudo, a difamação dos colegas é
apenas uma faísca perto do conflito com o investigador Henrique
Moreto, com quem o acerto de contas do passado nunca foi feito.

Quando uma perita criminal de seu departamento é encontrada


morta, a investigação se desenrola conturbada e carregada de
mistérios, obrigando Ariadne a se aprofundar em uma trama caótica,
onde os liames do jogo da segurança nacional e da máfia escondem
segredos perigosos, transformando a todos em suspeitos e
detetives de um intricado e obscuro quebra-cabeça.
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"Há a inversão. Há a propagação. Há a inversão da


propagação".

Helen Helderheid está em fuga há anos. Considerada uma


traidora, a ex-guardiã percorre o mundo sem um destino fixo. Mas
uma dívida com o passado a faz retornar ao Brasil, e cair no radar
do único caçador que ela não quer reencontrar.

Lúcio Svetloba é um exímio caçador que ainda paga pelos erros


de uma guardiã foragida. Assim, quando uma nova ordem de
execução chega até suas mãos, ele se vê diante de um impasse. A
sentença é clara, e a chance da vingança se abre junto a um jogo
de atrações e mistérios.

Em meio a uma caçada sem fim, marcada pelos espectros de


um mundo sombrio e secreto, os caminhos de Helen e Lúcio cruzam
com os enigmas que rondam uma adolescente em perigo,
despertando sussurros de um antigo e obscuro presságio.
SENSORIAL (LIVRO ÚNICO)
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Qual é o preço de ser alguém singular?

Para a maior parte das pessoas, Tris Rasera é somente uma


discreta e inteligente psicóloga que, quando está fora de sua clínica,
auxilia a polícia na elaboração de excelentes perfis criminais. Mas o
sucesso do seu trabalho esconde um segredo perigoso, que apenas
o atraente e carismático investigador Leon Assis conhece.

Quando o corpo queimado de uma mulher é encontrado, Leon e


Tris unem forças para solucionar o caso, mergulhando em uma
trama caótica e obscura, onde a rede tecida por um inimigo
onisciente pode ser muito maior e perversa do que eles imaginam.
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Ao assumir o novo cargo de delegada do Departamento Policial,


Diana Albuquerque já sabia que os desafios seriam grandes.

Contudo, além de uma série bizarras de assassinatos que cai em


suas mãos, há um misterioso homem que parece estar sempre nos
mesmos lugares que ela, inclusive em seus sonhos.

Cercada pelas sombras que ameaçam destruir tudo o que ela


considera mais precioso, Diana terá que unir forças com um
desconhecido e desvendar os enigmas de uma história que marca
as origens da sua família, antes que uma dívida mais antiga do que
sua própria existência seja cobrada.
FIOS DE LUAR (LIVRO ÚNICO)
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Nas sombras do reino de Rovina, misteriosas criaturas


despertam ao anoitecer, atacando aldeões e fazendas.

No desespero de cessar as mortes, e desobedecendo as leis de


seu pai, a princesa Layla MacQuoid sela um perigoso acordo com o
enigmático feiticeiro Ciáran De'Ath. Em troca da proteção do seu
povo, ela deve partir com ele como sua noiva.

Assim, entre feitiços e mistérios que cercam o coração do


feiticeiro, Layla mergulha nos segredos de um mundo oculto, onde
os véus da magia, do amor e da morte podem estar mais
entrelaçados ao seu passado do que ela imagina.
A REBELIÃO DO OCEANO (LIVRO ÚNICO)
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Para conter o avanço de um poderoso Lorde do Oeste, a rebelde


princesa Kiera de Valois é enviada contra a vontade para se casar
com um príncipe aliado. Entretanto, durante uma emboscada, ela
acaba a bordo do navio Tempestade da Caveira, comandado pelo
ardiloso pirata Derek Morgan.

Contudo, o que era para ser uma fonte de lucro se transforma


em uma jornada perigosa quando uma ameaça crescente começa a
espreitar os mares e as costas de vários reinos, forçando um acordo
entre a princesa e o pirata.

Assim, entre tesouros, espadas e paixões proibidas, Kiera e


Derek navegam para o coração de um oceano desconhecido, onde
escolhas difíceis podem colocar em jogo tudo o que a princesa mais
ama.
CÓDIGO NÍSIS (LIVRO ÚNICO)
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Maju tem apenas um objetivo: sobreviver.

Acostumada a estar nas sombras de uma irmã gêmea perfeita e


trabalhando como cobradora de dívidas para agiotas, ela aprendeu
a lidar com os jogos do submundo. Mas tudo muda quando sua irmã
sofre um atentado e seu pai surge pedindo para que ela assuma a
identidade da gêmea e finalize uma investigação.

Ao aceitar a liderança do secreto Esquadrão Queima de


Arquivo, Igor Carbone estava preparado para treinar os melhores.
Contudo, a agente prodígio da equipe não é nada parecida com o
que ele havia lido nos relatórios. Insubordinada, teimosa e
desobediente são só alguns dos adjetivos que Igor encontra para
descrevê-la. Mas o tempo para questionamentos se esgota quando
toda a equipe se depara com uma missão diferente de tudo o que já
fizeram.

Entre verdades ocultas, códigos secretos, ameaças constantes e


atrações intensas, Maju e Igor se veem obrigados a unir forças para
enfrentar os perigos de um inimigo que parece estar sempre um
passo à frente, enquanto travam uma batalha para desenterrar
segredos antigos que podem colocar suas vidas e a segurança de
todos aqueles que amam em risco.
PARAÍSO PROFANO (LIVRO ÚNICO)
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Após a morte do noivo, a jornalista Laísa Prado se muda para


São Paulo para recomeçar a vida e cuidar da mulher que a ajudou
na infância. A rotina diferente, além de lhe oferecer a chance de
respirar novos ares, a obriga a dividir o teto com Marcos, seu antigo
vizinho que ela não via há anos.

Implacável e obstinado, Marcos Assis escalou a pirâmide social


e ergueu sua empresa do zero. Em ascensão, o empresário vê a
vida virar de cabeça para baixo com o adoecimento da mãe e a
chegada de Laísa à cidade. Apesar da ajuda, o retorno da jovem
carrega o pedaço de um passado obscuro que ele não quer se
recordar.

Contudo, quando uma perigosa informação chega até Laísa,


algo que ela julgou esquecido volta para assombrá-la. Assim, em
uma busca por respostas, Laísa embarca em um labirinto
enigmático, onde precisará resistir às atrações intensas e aos
segredos que Marcos esconde, para não colocar sua vida e a dele
em risco.
FEITIÇO DA NOITE (LIVRO ÚNICO)

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Espanha, século XVIII.

Obedecendo ao desejo final de sua mãe, Miguel Gonzalez viu-se


obrigado a deixar o vilarejo onde cresceu e entrar para o seminário.
Anos mais tarde, prestes a fazer seus votos, ele recebe o convite de
seu superior para retornar à sua antiga terra para investigar, em
nome da Igreja, estranhos relatos feitos pelos moradores locais.

Misteriosa e sonhadora, Anita Ortiz é pega de surpresa quando


um amigo de infância volta para casa. Apesar da saudade, o retorno
de Miguel coloca tanto seu coração quanto um segredo de sua
família em risco.
Enquanto lutam contra a forte atração que os atormenta, Miguel
e Anita se deparam com uma ameaça que cresce nas sedutoras
sombras da noite, fazendo com que a proximidade proibida se torne
a última esperança para enfrentarem algo tão antigo quanto às
histórias que cercam suas terras.
Saga Ellk (4 livros)

ELLK · LIVRO 1
CLIQUE AQUI PARA LER ELLK

No enlace dos braços da noite, mais uma jovem corre sem olhar
para trás. Em vão.
Esvanecerá entre o suplício e o tormento. Pois o erro foi
cometido. Ela não deveria ter confiado em ninguém.

Uma onda de estranhos desaparecimentos está recobrindo as


cidades do Estado de São Paulo, chamando a atenção do governo e
das agências de segurança da região.

Katerine Stein é uma jovem e obstinada investigadora que se


depara com a possibilidade de ascensão em sua carreira quando
seu chefe a designa para um trabalho de espionagem envolvendo
um colega de profissão, Daniel Moraes, que está despertando
suspeitas em seus superiores.

Contudo, conforme ela se embrenha em arriscadas descobertas,


um jogo de tramas e conspirações se revela, e o que parecia
apenas mais um trabalho de rotina poderá levá-la a se envolver em
uma teia de traições, mentiras e sombrios segredos ocultados.
CRISÂNTEMO KELL · LIVRO 2
CLIQUE AQUI PARA LER CRISÂNTEMO KELL

Uma arriscada aliança foi feita entre Daniel e Katerine.

Seguindo as últimas pistas deixadas por Maísa, a dupla de


investigadores busca pelas cinco crianças nascidas há dez anos
dentro de uma ramificação do Projeto Ellk, ao mesmo tempo em que
perseguem o rastro do Caçador, um assassino que está
aterrorizando as forças policiais. As divergências e segredos que
pairam entre eles, no entanto, podem vir a abalar a parceria firmada.

Enquanto isso, Nemo, a misteriosa sombra da Corporação,


cresce em poder e aliados. Uma silenciosa guerra aos poucos está
tomando forma, e confiar em alguém pode ser extremamente
perigoso.
SONARA · LIVRO 3
CLIQUE AQUI PARA LER SONARA

Quando homens e monstros se tornam um, resta ao mundo o


relâmpago de uma resistência.

Em meio à guerra que assola o Brasil, os caminhos de Katerine


a levam novamente até o Doutor Vitti, resultando em uma aliança
com a Resiliência, enquanto os caminhos escolhidos por Daniel o
conduzem por uma trama de segredos obscuros e jogos de poder.

Ao mesmo tempo em que Eduardo está perto de obter o místico


ouro-líquido, a união da Corporação com a lendária família mafiosa
Bartelochi diminuí quaisquer chances de vitória da Resiliência contra
o terror que esta coligação está espalhando.

Com a contaminação se disseminando a níveis alarmantes, a


busca pela cura se acentua, e cada morte registrada pelos sinos do
país revela as sombras tortuosas que pairam sobre a face da
humanidade.
EPIFANIA · LIVRO 4
Livro final

CLIQUE AQUI PARA LER EPIFANIA

A cura para o vahliru foi encontrada e as iminências de uma


guerra total se abrandaram. Mas a paz... É apenas uma ilusão.

Em meio a misteriosas mortes políticas ocorrendo por todo o


país, Katerine se envolve em perturbadoras investigações quando
descobre a verdade sobre seu pai.
Do mergulho ao passado até o berço de segredos familiares
antigos, das cinzas da Corporação até as raízes da Resiliência, do
Brasil até a Alemanha; uma arriscada busca é traçada, levando
Katerine, Daniel e Eduardo a uma jornada que cerca os mistérios de
suas linhagens e os véus entre as Três Dimensões.
TRILOGIA KAPWA

NUVENS DE METAL E ESTRELAS · LIVRO 1


CLIQUE AQUI PARA LER NUVENS DE METAL E ESTRELAS

"À margem das grandes cidades, a fumaça esquecida volta a


arder. E logo não haverá mais luzes de neon. Pois ela não te
deixará enxergar".

Ao final de uma era de guerras, a ascensão da poderosa rede


Global Octupus instaurou uma fase de controle e opressão em
Sycore.

Contudo, quando misteriosos corpos sem olhos são encontrados


por todo o território, uma onda de insegurança toma a Capital,
forçando o Serviço de Inteligência Octupus a entrar em ação.

Neste cenário, a jovem Lira luta pela sobrevivência na Colheita


dos Escravos, enquanto Aram, que vive na elite Héscol, o único e
violento distrito independente de Sycore, planeja junto de sua família
um massacre contra a Capital.

Em meio a fugas e segredos, Lira e Aram acabam envolvidos em


uma teia sinuosa, onde as sombras do passado, as intrigas políticas
e as mortes inexplicáveis se confundem, trazendo o rastro de uma
antiga ameaça para mais perto do que eles imaginam.
NOITES DE COBRAS E SONHOS · LIVRO 2
CLIQUE AQUI PARA LER NOITES DE COBRAS E SONHOS

"O espelho está se quebrando. Está aqui. Está muito perto"

O ataque do Inanis à Global Octupus fez com que Lira e Aram,


de alguma forma misteriosa, se conectassem um ao outro pela
ligação Kapwa. Agora, como parte do grupo seleto e secreto, eles
precisam viver sob as regras rígidas da elite enquanto tentam
desvendar os enigmas que os cercam. Só que o forte sentimento
entre eles pode colocar tudo a perder.

Conforme as serpentes de fumaça se espalham por Sycore,


junto do poder violento do Exército Héscol, as dúvidas de Aram
entre a lealdade à família e à nova vida na Capital aumentam, e
uma visita inesperada pode colocar todas as suas decisões em
risco.

Diante da tensão crescente e de descobertas perigosas, os


espectros do passado aos poucos tomam forma, abrindo um
caminho sombrio para um futuro cada vez mais incerto.
NAÇÕES DE PEDRAS E DEUSES · LIVRO 3
CLIQUE AQUI PARA LER NAÇÕES DE PEDRAS E DEUSES

“Porque o que foi devorado terá sua vez de devorar”

Com a ajuda do deus Gael e da posse dos Quatro Sagrados, o


exército Héscol tomou o controle da Capital. Sem a Elite Kapwa e as
habilidades fornecidas pelo Espelho, derrotá-los se transforma em
uma missão suicida.

Assim, um novo plano é elaborado, e Lira, Aram e seus amigos


partem em uma jornada perigosa pelas Terras Desertas, na busca
por respostas que cercam os enigmas das velhas religiões e a
misteriosa maldição que caiu sobre Mikael e Talisa.

Em uma corrida contra o tempo, Lira e Aram precisarão enfrentar


a guerra trazida por Gael, antes que as portas do passado
esquecido sejam abertas e transformem o futuro em um borrão de
sombras e incertezas.
Sobre a autora
Tradutora, revisora e professora de História e Inglês. Apaixonada
pela escrita desde a descoberta das fanfics com onze anos de idade
e tentativa de escrever o primeiro romance aos treze.

Quando não está negociando preços de traduções com os


clientes ou viajando nos livros que lê, busca se aventurar nos
mundos fictícios que cria. Viciada em café, ama um bom mistério e
enigmas complexos. Sempre confia que o troco está certo, pois a
única coisa que sabe contar de cabeça são histórias.

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