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Ferreira
Capa: Grazi Fontes
Revisão: Deborah A. A. Ratton
Imagens: https://pt.pngtree.com/freepng/music-notes_1513947.html
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Alerta de Gatilho
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Nota da Autora
Este livro aborda assuntos relacionados a estupro, agressão física e
verbal. Além de abandono parental.
Se esses tópicos causam algum desconforto a você, não dê
continuidade à leitura.
— Minha família pensa que sou louco.
— Por que está dizendo isso?
— Se não achassem, eu não estaria aqui.
— Está enganado. Não são só os loucos que fazem terapia. E,
sinceramente, apenas uma pequena porcentagem da população do mundo
não é louca hoje em dia. Não me leve a mal, mas os “normais” serão os
novos loucos em breve.
— Você está me chamando de louco?
— Não, Matthew, estou dizendo que você é mais normal do que
imagina.
— Meus pais acham que eu tenho uma amiga imaginária.
— E você tem?
— Não. Não tenho.
— E o que fez seus pais pensarem que você tem?
— Eu… Bem, não sei como dizer isso sem parecer louco.
— Matthew, entenda uma coisa: tudo o que disser aqui será
confidencial, nunca ninguém vai saber sobre o que estamos conversando.
Você pode se abrir comigo, nunca vou te julgar pelo que irá dizer. Estou
aqui para te entender e te ajudar a lidar com o que está passando.
— Eu… Eu tenho sonhos.
— Muito bem, continue.
— Tenho sonhos com uma garota. Sonho com ela desde os meus dez
anos.
— Quantos anos tem agora?
— Dezesseis.
— E como são esses sonhos? Consegue me contar?
— São sempre diferentes. É como… Como se prosseguíssemos de
onde paramos no último sonho. Sempre há uma continuação. Ela se lembra
do que falávamos no sonho passado e simplesmente continuamos a
conversa de onde paramos.
— São só conversas?
— Sim, só conversas, porém, sempre no mesmo lugar, um jardim
amplo e gramado, cheio de flores na cor laranja. Às vezes sinto como se ela
me conhecesse melhor do que qualquer um, melhor até que meus pais.
— Consegue me descrever essa garota?
— Sim. Ela tem cabelos vermelhos. Mas não são acobreados, são
vermelhos como vinho tinto. E são compridos, bem compridos, com
algumas ondulações muito bonitas. Os olhos dela são… diferentes. Ela tem
um olho de cada cor, um azul e um verde. Este parece amarelo às vezes,
como os olhos de um gato. Sua pele é branca como leite e os lábios, tão
vermelhos quanto os cabelos. O corpo dela é bonito…— Um pigarro.
— Não se preocupe comigo, Matthew. Continue falando.
— Sabe, isso está parecendo bem ridículo.
— Se quiser, podemos continuar falando sobre isso na próxima
sessão. Você não é obrigado a dizer nada. Quero que se sinta bem acima de
tudo.
— … O corpo dela é bonito — continuei.
Mas havia um nó na minha garganta. Eu me sentia um completo
idiota. Dizer tudo aquilo em voz alta parecia ainda mais ridículo.
— Já viu um corpo assim antes? Do mesmo jeito, quero dizer.
— Já vi muitos corpos bonitos. Mas nunca um igual ao dela.
— Certo, me descreva da maneira que conseguir.
— Ela tem exatamente 1,60 de altura, vive reclamando que se acha
baixa demais. — Um sorriso bobo se formou em meus lábios, mas logo se
desfez por conta da vergonha. — Tem uma cintura fina, é bem magra na
verdade. Mas as pernas dela são… São mais grossas. — Levei as mãos aos
cabelos e suspirei. — Você acha que sou louco?
— Não, Matthew, de forma alguma. Toda essa descrição que você
está fazendo serve para que eu consiga entender de onde ela veio e como
tudo isso foi projetado na sua mente.
Mesmo parecendo uma perda de tempo, continuei:
— Ela tem pés lindos. São pequenos e delicados. As mãos são iguais,
com unhas curtinhas e bem-feitas.
— São muitos detalhes. Ela parece real para você?
— Sim, muito.
— Mas nunca a viu de verdade?
— Não, nunca a vi de verdade.
— E em seus sonhos, você já a tocou? Consegue senti-la?
— Não, nunca consegui tocá-la. É estranho como sinto a quentura do
corpo dela perto do meu quando estamos sentados um ao lado do outro,
mas, quando estendo a mão para tocá-la, não sinto nada. Ela continua lá, se
é que me entende, mas não consigo senti-la.
— E ela te sente?
— Também não.
— Sobre o que conversam?
— Sobre tudo. Como eu disse antes, acho que ela me conhece melhor
do que qualquer outra pessoa. Conhece meus gostos, meus defeitos, minhas
qualidades, meus segredos. Tudo.
— Sei. Ela já disse alguma coisa que te faz pensar que ela é real?
— Não me leve a mal, doutora. Mas ela é perfeita demais para existir.
— Mas faz insinuações? Insinuações de que existe de verdade?
— Sim, fala sobre seus pais, sobre quando era criança, sobre as
aventuras que já viveu… Eu não entendo como tudo isso pode sair da
minha cabeça.
— Você tem amigos, Matthew?
— Sim, muitos. Olhe para mim, doutora. Sou um astro da música,
vivo rodeado de pessoas. É só olhar pela janela, tem um monte de fãs
esperando por mim lá embaixo.
— Compreendo, mas não foi exatamente isso que te perguntei. Você
tem amigos de verdade? Pessoas com quem pode conversar?
— Sim, tenho. Mas não contei sobre ela para nenhum deles.
— Por quê?
— Ainda me pergunta? Não posso dizer que amo uma menina
imaginária.
— Você a ama?
Olhei-a por um minuto. O minuto mais longo da minha vida.
— Sim — respondi. — Eu a amo.
— Está certo, Matthew. Conte-me uma coisa, você se relaciona com
outras garotas? Ou espera pelo momento de conseguir sentir a menina dos
seus sonhos? Aliás, ela tem um nome?
— Sim e não. Sim, para relações com outras garotas, e não para um
nome. Ela pede para que eu a chame de Lia, mas este não é o nome dela.
— Certo.
— Olhe, sei o que está pensando. Mas nada me comprova que ela é
real, não posso ficar esperando que apareça enquanto tenho todas as
meninas do mundo aos meus pés.
— Você não sabe o que eu estou pensando. E entendo seu
posicionamento.
— De qualquer forma, fico com outras meninas pensando nela. Eu sei
que é horrível, mas, quando toco outra garota, pergunto a mim mesmo se a
pele dela é igual ou não. Sabe, tenho raiva disso. Às vezes só quero que ela
desapareça para que eu viva em paz.
— Já pediu para que ela desapareça?
— Não.
— Por quê?
— Porque tenho medo de que ela desapareça de verdade.
— Certo. Vamos trabalhar isso então, Matthew. Vou te pedir uma
coisa, ok? Consegue escrever em um caderno os sonhos que tem? Usando a
maior quantidade de detalhes possível?
— Na verdade, doutora, já tenho esse hábito de anotar o que me
lembro dos meus sonhos. Foi a maneira que encontrei de estar próximo
dela.
— Ótimo! Pode trazer seu caderno na próxima sessão? Vai ser
essencial para a avaliação.
— Claro. — Após minha resposta, soltei um pigarro e olhei para as
mãos.
— Quer me dizer alguma coisa?
— Sabe, eu não sou o melhor escritor do mundo. Você não vai
encontrar uma letra linda no meu caderno.
— Não vejo problema nenhum nisso.
— E, bem, eu coloco bastante detalhes. Não sei se vai entender o que
quero dizer, mas coloco ênfase nos meus sentimentos por ela.
— Não se preocupe, Matthew. Não estou aqui para te julgar.
Inclusive, quanto mais detalhes, melhor.
— Está certo. — Uma pausa. Meu peito estava em colapso. Não me
alegrei com a ideia de ter outra pessoa lendo o que eu escrevia, mas aquela
angústia me esmagava, aquela dúvida gritava dentro de mim. — Acha que
isso vai dar certo? Essas sessões. Acha que vão adiantar de alguma
maneira?
— Nenhuma questão na vida é resolvida de um dia para o outro,
preciso que saiba disso. Vou tentar te ajudar, tentar entender como ela
apareceu, como chegou a este ponto de amar alguém que nunca viu. E,
mesmo que nunca descubramos, poderemos usar este ambiente para
desabafos. É sempre bom desabafar, colocar para fora o que nos aflige.
— Sabe que…
— Sei que você é ocupado, que faz turnês pelo mundo e não tem
tempo para marcar consultas regularmente comigo. Mas vamos fazer o
seguinte: quando você não estiver por perto, faremos a sessão a distância,
on-line. Tudo bem para você?
Concordei sem dizer nada.
Não era verdade que eu queria fazer as sessões a distância com ela.
Certamente, eu achava um grande erro estar ali. Com certeza, a terapeuta
não conseguiria me ajudar. Como poderia?
Por outro lado, eu me senti incrivelmente aliviado ao dizer o que disse
sem ouvir julgamentos. Era possível que, dentro de sua cabeça, ela estivesse
me julgando ou questionando, mas sua expressão facial não demonstrava
isso. Sua voz era mansa, me transmitia calma. Era como se eu pudesse
realmente confiar nela. Mas a doutora Nancy fazia anotações enquanto eu
falava e isso me constrangia. Ao passo que as palavras saíam da minha
boca, minha cabeça se perguntava o que tanto ela escrevia sobre mim. Já
era a nossa quinta sessão. A terapeuta tentava me rodear sobre este assunto
sempre, mas não me senti confortável em dizer de primeira. Uma coisa era
certa, ela não contaria nada a ninguém. Isso porque assinou um contrato de
sigilo total. Mesmo que fosse de praxe não divulgar dados de pacientes em
sua profissão, eu não quis correr o risco.
Meus pais a contrataram porque tomei a liberdade de conversar com a
minha mãe a respeito e ela provavelmente achou que eu estava com algum
problema sério. Não a julgo, sei que tudo isso é bem estranho.
— Está bem, Matthew. Quero te fazer uma pergunta.
— Fique à vontade.
— Você consegue direcionar o rumo dos seus sonhos? Sente como se
estivesse controlando-os? Ou eles simplesmente acontecem e você não sabe
por quê?
— É difícil de explicar. Os sonhos são muito reais, doutora. Tudo o
que passo dentro deles é como se fosse vida real. Eu penso para falar, eu
consigo agir conforme a maneira que acho melhor. Já tive outros sonhos,
que não com ela, e não são a mesma coisa.
— Entendi. Quero que tente fazer algo.
— O quê?
— Faça perguntas a ela. Perguntas, como: Onde mora? Como se
chama? Por que sonho com você? Já nos vimos antes na vida real? Você é
real?
— Acha que nunca fiz essas perguntas?
— Mesmo que já tenha feito, faça-as de novo.
— Vou tentar.
— É importante, Matthew, para sabermos como ela foi parar aí na sua
cabecinha.
— Está bem.
— Te encontro novamente na semana que vem, certo?
— Sim. Te encontro na semana que vem.
Passei pela multidão e adentrei meu carro. Era um Volvo preto bem
grande. Meu motorista me esperava de prontidão.
Meu nome é Matthew Bennett Lewis, mas sou mais conhecido como
MatLew. Um apelido que adquiri há alguns anos, quando comecei a cantar.
Não foi ideia minha, e sim do meu produtor. Ele disse que chamaria a
atenção, que soaria bem na boca das pessoas. Decidi confiar e deu certo.
Dificilmente eu escutava alguém me chamando pelo meu nome mesmo, a
não ser a minha família e os mais chegados.
Nasci e fui criado em Toronto, Canadá, com meu pai e minha mãe,
sem irmãos. Ele é um homem muito ocupado, é um cientista com altíssima
notoriedade. Há alguns anos, descobriu a cura para duas doenças
importantes e teve grande participação na criação de vacinas para
prevenção de ambas. Desde então, tem trabalhado em várias outras
descobertas, estudos específicos e cirurgias em ratos ou macacos. Eu me
orgulho do homem que meu pai é, sempre tão bem trajado e elegante com
seus cabelos semigrisalhos. Acho incrível como é inteligente, como sabe
conversar sobre tudo com tanta habilidade.
Apesar de ocupado, sempre foi um pai presente, com conselhos
valiosos e de extrema sabedoria. Desde muito pequeno, o acompanhei ao
trabalho. Conheço todos os seus colegas de laboratório, pois sempre fez
questão da minha presença. Seu sonho de vida era que eu seguisse seus
passos e me tornasse um cientista, dando continuidade ao seu legado.
Quando eu tinha apenas sete anos de idade, percebeu que esse não era
meu caminho. Meu dom e amor pela música e canto conseguiam alcançar
qualquer um ao redor. Era e sempre foi nítido que eu havia nascido para
cantar, dom que acabei puxando da minha mãe.
Felizmente, meu pai respeitou isso, incentivou, investiu em aulas de
canto e de instrumentos diversos por muitos anos, desde a infância. Passei a
ser o maior orgulho da minha mãe — não que eu já não fosse antes —, que
decidiu fazer por mim o que seus pais não fizeram por ela quando ainda era
jovem.
Ela me inscreveu em vários programas de canto, programas famosos e
também em alguns pouco conhecidos. Aos dez anos, passei na seleção do
programa Canada’s Got Talent, competi com centenas de pessoas, inclusive
mais velhas do que eu, mas permaneci até o fim e acabei vencendo a
disputa, levando para casa um lindo troféu de ouro em formato de estrela.
Lembro-me nitidamente desse dia específico. Está gravado como uma
tatuagem no meu cérebro.
O que veio a seguir foi maior do que eu e minha mãe planejamos
juntos, mas não posso deixar de frisar que aquele foi o melhor dia da minha
vida. O que eu senti foi sobrenatural. Não imaginei, quando entrei no
programa, que eu conseguiria permanecer até o final, nem muito menos que
ganharia.
Conforme o programa era transmitido na televisão, eu ganhava
notoriedade e maior conceito. Minha idade não pareceu ser um empecilho
na época, pois todos gostavam de mim. Quando eu subia no palco, a plateia
ia à loucura e os jurados não conseguiam me ouvir sentados. Eles se
levantavam e erguiam as mãos à cabeça, incrédulos com o meu timbre.
Minha confiança cresceu cem por cento durante as audições. Quando
ganhei, então, me senti o melhor do mundo.
Depois disso, passei a ser chamado com mais frequência para outros
programas televisivos, apareci em revistas e canais na internet. Não havia
como negar, estava em extrema popularidade. Eu era o assunto do
momento.
Depois que ganhei o concurso, meus pais investiram muito para que
eu lançasse meu primeiro álbum. De doze músicas, oito alcançaram todos
os recordes das plataformas digitais.
Foi assim que passei a ser o jovem mais famoso e bem-sucedido do
momento, e isso não mudou com o passar do tempo, as coisas só se
intensificaram.
Nos primeiros anos, meus pais me acompanharam em todos os shows,
dando-me apoio e dicas de como eu deveria me comportar, mas pouco
tempo depois perceberam que teriam que viver para isso se realmente
decidissem estar presentes em tudo. Meu pai não podia fazer isso, não podia
deixar o emprego dele.
Então, contrataram meu tio, irmão da minha mãe, para ser meu
produtor e me ajudar nos shows. Deu muito certo, ele sempre foi muito
dedicado.
Aos quinze anos eu já estava fazendo minha segunda turnê pelo
mundo todo.
Não vou dizer que foi fácil. Ser um adolescente e não frequentar a
escola nem lugares com amigos da minha idade é bem ruim. Mas aceitei
que eu não era um adolescente qualquer, eu era o MatLew, já deveria saber
que seria diferente dos outros.
Estudei com professor particular enquanto eu estava em aviões ou na
estrada, e mantive contato com meus amigos somente por videochamada,
ou quando voltava ao Canadá.
Passei a viver um sonho. O meu e o dos outros também. Todos
desejavam ser eu, em ter minha voz, minha fama ou minha imagem. O que
as pessoas não sabem é que é fácil sonhar, difícil é fazer o que fiz e faço.
Não sabem que durmo pouco, o quanto me esforço para ser quem sou.
Quando se está no mundo da fama, já se deve saber que sua vida se
torna pública. Foi o que aconteceu comigo. Cedo demais, inclusive. Tudo o
que eu fazia, em todos os lugares a que eu ia, saía na mídia.
Minha vida passou a ser mais importante do que a própria vida das
pessoas.
E todos passam a achar que sabem sobre mim, acham que me
conhecem, mas isso é uma grande mentira. Mal sabem que os famosos
agem como robôs, falam coisas propositais e vão a lugares
intencionalmente, só para ganhar visibilidade e dinheiro.
Dinheiro. Tudo pelo dinheiro.
Aos dezessete anos, eu estava mais estourado do que a Bomba-Czar,
feita em 1961 pela União Soviética.
Sentia como se pudesse fazer tudo o que quisesse, o mundo estava em
minhas mãos. Com exceção de uma única coisa. Havia uma única coisa que
eu queria com todas as forças do meu corpo, mas não podia ter.
Na mesma noite em que ganhei o troféu no programa Canada’s Got
Talent, tive um sonho que mudou o rumo da minha história.
Cheguei em casa com toda a felicidade do mundo dentro de mim,
inflando meu peito. Demorei horas para dormir, tamanha a empolgação.
Mas, quando aconteceu, me senti arrependido de não ter dormido antes, só
para ter mais tempo dentro daquele sonho.
Eu estava em uma espécie de jardim, com muita grama e flores
laranja. O sol brilhava lindamente no céu limpo de nuvens, e as rajadas
refletiam-se no troféu que estava ao meu lado, descansando na grama
verde.
Havia um parquinho de diversões, com balanços de madeira e um
gira-gira. Algumas crianças se divertiam lá.
Senti vontade de me juntar a elas, mas, antes que eu pudesse tomar a
atitude, algo chamou a minha atenção. E foi tão forte que me paralisou
onde eu estava.
No início me pareceu mais como uma mancha vermelha, mas,
conforme se aproximava, percebi que era uma garota com belos cabelos
ruivos. Não era um ruivo cobre, era um ruivo da cor de vinho tinto. Tão
vibrante, que me fez arregalar os olhos.
— Oi. — Ela acenou. Não consegui ver seu rosto, pois o sol estava
logo atrás da menina e fazia sombra. Só o que se podia notar era como o
cabelo brilhava. — Você é o menino que ganhou o programa de canto, não
é?
— Você pinta o cabelo? — perguntei, sem me preocupar em
responder.
— Sabe, odeio quando me fazem essa pergunta. Já não sei se gosto
tanto assim de você.
Hesitei por um instante, surpreso com a resposta que tive.
— Me desculpe, eu…
Ela respirou fundo, bem fundo, o que me fez parar de falar.
— É óbvio que não pinto o cabelo. Tenho só dez anos. Minha mãe
nunca deixaria.
— Eu nunca tinha visto um cabelo dessa cor.
— Eu sei. Todo mundo fala isso. Posso me sentar aí? —Apontou para
a grama vazia ao meu lado.
— Hã, claro.
Ela se sentou e me olhou. O que vi foi a cena mais bela de toda a
minha vida. A mais bela e a mais exótica. Tão estranha quanto diferente.
Tão surpreendente quanto apaixonante.
Os olhos dela eram diferentes. Cada um de uma cor. Um azul e um
verde.
— Já sei, vai perguntar sobre a cor dos meus olhos também.
— Você também odeia essa pergunta?
— Não. Chama-se heterocromia, já nasci assim. Um olho igual ao da
minha mãe e o outro igual ao do meu pai. Minha mãe disse que eles
ficaram discutindo a gravidez inteira sobre qual seria a cor dos meus
olhos, então decidi agradar a ambos.
Achei tão incrível que fiquei boquiaberto, encantado.
— Não vai me responder? — ela perguntou, levantando uma das
sobrancelhas.
— O quê?
— Você é o menino que ganhou o programa de canto?
— Sim, sou eu.
— Gosto da sua voz. Pode cantar uma música para mim?
— Hã, posso.
— Cante a mesma que cantou hoje.
Limpei a garganta e cantei. Ela fechou os olhos enquanto ouvia, e
balançou o corpo de um lado para o outro, vagarosamente.
Observei-a enquanto isso. Seus lábios estavam curvados para cima,
em um sorriso sutil.
Senti algo bem esquisito fazendo cócegas na minha barriga. Não
entendi o que era, mas gostei.
Quando terminei a música, ela abriu os olhos novamente. Eram
grandes, com contornos angulados e belos, com cílios compridos e
volumosos. A íris verde atingiu um tom amarelado, como o olho de um
gato.
— Sua voz é ainda mais bonita pessoalmente.
— Você gostou?
— Meu olho mudou de cor?
— Sim.
— Meu olho verde muda de cor todas as vezes que me sinto muito
bem. Não tem como mentir, ele sempre me entrega. Sempre brinco que meu
humor tem cor.
— E qual é a cor do seu humor?
— Amarelo, claro. Amarelo para bom humor e verde para o mau
humor. — Ela soltou uma risada fofa.
— Então, obrigado pelo elogio.
— Você pode cantar mais para mim?
— Posso. — Eu me vi tão maravilhado com aquela menina, que
ficaria cantando para ela por horas e mais horas a fio.
Após cantar mais uma música, perguntei:
— Você já sabe?
— O quê?
— Se gosta de mim. Você tinha dito que não sabia se gostava de mim,
por conta da pergunta que fiz.
— Ah, sim. Eu gosto de você. Sua voz me fez mudar de ideia.
Poderíamos ser amigos. Você quer? Ser meu amigo?
— Quero — respondi, com sinceridade.
— Minha mãe me disse que os verdadeiros amigos guardam os
segredos um do outro.
— Se sua mãe disse, deve ser verdade.
— Então, quando você tiver um segredo, pode me contar. Vou
guardar comigo e nunca contar a ninguém.
— Está bem. Farei o mesmo com você.
Ela sorriu e me estendeu o dedinho.
— O que devo fazer com o seu dedinho?
— Isso se chama promessa de dedinho. Você precisa abraçar o meu
com o seu.
Fiz o que ela pediu, mas uma coisa me chamou a atenção: eu não
consegui senti-la.
— Por que não te sinto?
— Não sei. Também não te sinto.
— Que estranho.
— Mas não faz diferença, faz? Estamos juntos do mesmo jeito.
— Você tem razão.
Ouvimos uma voz ao fundo, chamando-a.
— Filha, vamos, querida. Já está na hora.
— Preciso ir — ela disse —, minha mãe está me chamando.
— Vamos nos ver novamente?
— Claro. Você é meu amigo agora.
Ela se levantou e me olhou. Fez um movimento diferente com as
mãos.
— O que isso quer dizer? — perguntei.
— Significa: nos veremos outra vez. É língua de sinais.
— É assim? — Tentei imitar os movimentos com as mãos.
Ela sorriu.
— Ficou perfeito.
— Então, ótimo. — Repeti o movimento. — Nos veremos outra vez.
Ela acenou e saiu correndo em direção à sua mãe.
Acordei com um sorriso no rosto. Mas, quando percebi que era um
sonho, ele se desfez.
Nunca quis tanto que um sonho fosse real como com aquele.
Passei o dia repassando todas as falas. Eu conseguia me lembrar de
tudo com clareza.
Para a minha surpresa, na noite seguinte, sonhei com o mesmo
gramado entremeado de flores laranja e aquele parquinho dos balanços de
madeira.
O que eu tanto quis quando estava acordado aconteceu. Lá estava ela
novamente, a menina dos cabelos de cereja.
— Oi. — Ela correu em minha direção.
— Você está aqui — afirmei, como se não estivesse acreditando
naquilo.
— Claro que estou. Eu não disse que nos veríamos outra vez?
— Disse.
Sentamo-nos no gramado mais uma vez, um de frente para o outro,
com as pernas cruzadas.
— Como é seu nome? — perguntei.
— Me chame de Lia.
— Esse é seu nome?
— Não, mas prefiro que me chame assim.
— Está bem.
— Gosto de ser amiga do MatLew — ela se gabou.
— Me chame de Matthew.
— Por quê?
— Porque os mais próximos me chamam pelo nome, não pelo
apelido. Se você vai ser minha amiga de verdade, precisa me chamar pelo
nome.
— Entendi. Vai cantar para mim novamente?
— Se você quiser.
— Eu quero! Você se importa de ficar cantando o tempo todo?
— Não, é o que eu mais gosto de fazer. Qual é a sua música favorita?
Lia respondeu a minha pergunta e, por coincidência, eu conhecia.
Também gostava bastante da canção, portanto foi fácil alcançar a
entonação correta.
— Sim. Vou cantá-la para você, então.
Ela abriu um sorriso largo e acenou positivamente com a cabeça.
Comecei a cantar e a menina fez exatamente como da última vez.
Fechou os olhos e esboçou um sorriso sutil, balançando o corpo devagar
de um lado para o outro.
Percebi o quanto aquela cena me agradava. Comecei a gostar ainda
mais de cantar, só pela maneira como ela se comportava enquanto minha
voz saía na música.
— Você quer brincar no balanço? — sugeri, depois de ter cantado
para ela.
— Sim, eu amo balançar!
Corremos até o brinquedo de madeira e nos sentamos, cada um em
um balanço diferente.
Observei enquanto ela tirava as sapatilhas, deixando-as de lado. Os
pés dela eram lindos, com dedinhos delicados e solas avermelhadas.
— Eu amo aventura! — gritou, enquanto balançava bem mais alto do
que eu.
Joguei as pernas para cima e para baixo, a fim de tentar acompanhá-
la na altura do balanço.
A risada dela soou, muito fofa, uma risada gostosa que me fez rir
também.
Brincamos de bater nossas mãos, enquanto ela ia para lá e eu para
cá. O mais divertido de tudo era que não sentíamos o contato da nossa
pele. Elas passavam rapidamente uma pela outra como fantasmas. Isso a
fazia rir mais ainda.
Repetimos o gesto por longos minutos, até que a mãe dela voltou a
chamar e tivemos que nos despedir.
Lia fez o gesto com as mãos indicando que nos veríamos de novo.
Retribuí meneando a minha da mesma forma.
Quando acordei, percebi o mesmo sorriso nos lábios.
Daquele dia em diante, passei a sonhar com ela todas as noites, não
importava onde eu estivesse, poderia ter dormido na minha cama mesmo,
em um ônibus ou em um avião, ela sempre aparecia. O sonho sempre
acontecia no mesmo lugar, com o mesmo parquinho e as mesmas flores
laranja, mas a conversa nunca era igual.
Passamos a nos conhecer melhor a cada sonho. As conversas eram
divertidas, às vezes profundas, com segredos e promessas.
No início, brincávamos nos brinquedos, corríamos e fazíamos coisas
de crianças. Mas, com o passar dos anos, acabamos amadurecendo e apenas
conversávamos sentados na grama, ou no balanço.
Contei tudo sobre a minha vida a ela, não escondi nada. Lia conhecia
tudo sobre mim, sobre meus sonhos, minhas viagens, meus amigos, meu
cansaço diário e meus shows. Contei a ela sobre os detalhes de cada país,
sobre cada cultura e sobre meus fãs.
Ela me perguntava sobre tudo e eu sempre respondia.
Aos quatorze anos, me dei conta de que gostava de Lia mais do que
como uma amiga. Percebi porque eu não via a hora de dormir e me
encontrar com ela.
Meus dias eram maravilhosos, passei a fazer shows quase a semana
inteira, sempre em lugares variados, conhecendo pessoas diferentes e sendo
adorado aonde quer que eu fosse.
Mesmo aproveitando tudo e me maravilhando com a minha carreira,
que só evoluía, meus pensamentos ficavam focados em Lia vinte e quatro
horas; minhas noites passaram a ser mais queridas do que os dias.
Programei-me para contar a ela o que eu estava sentindo.
Eu estava dentro do avião, indo para a Alemanha, quando peguei no
sono e a encontrei.
Ela corria em minha direção enquanto eu a analisava. Lia já havia
completado quatorze anos, estava com um corpo mais desenvolvido, mais
bonito.
Vestia um vestido florido na cor salmão e estava descalça. Não sei o
porquê, mas ela vivia aparecendo descalça nos meus sonhos. E eu gostava,
gostava muito dos pés dela.
Sentou-se ao meu lado e me olhou de perto, com um sorriso no rosto.
Os olhos estavam tão bonitos e claros que me faziam ficar encantado.
Seu rosto estava criando um formato cada vez mais bonito, conforme
a idade ia passando. Era claro como a neve, liso e sem defeitos, como uma
folha de papel em branco. Seus lábios compartilhavam uma cor muito
parecida com a dos cabelos, cor de cereja.
Estes, por sua vez, eram de uma beleza incomparável. Estavam
sempre soltos. O comprimento era razoável, chegava até o meio das costas
e fazia ondas naturais que enchiam e davam volume aos fios. Havia uma
franjinha, que ela sempre jogava para o lado.
O cheiro era de maçã verde, claramente.
Às vezes, eu torcia para que o vento soprasse mais forte, só para
conseguir sentir o perfume com mais evidência. Às vezes, ela mesma
balançava o cabelo propositalmente, só para eu sentir.
— Matthew! — ela exclamou.
— Oi, Lia. — Sorri também, ainda olhando para seus olhos.
— Como foi seu dia hoje?
— Foi bom.
— Você está bem? — perguntou como se estivesse estranhando
alguma coisa em mim.
— Estou.
— Está triste?
— Não, Lia.
— Então, o que foi? Te conheço bem demais para saber que está
acontecendo alguma coisa.
— Tenho algo a te contar.
— Um segredo?
— Sim, um segredo.
— Prometo que nunca vou contar a ninguém. Pode confiar em mim.
— Acho que estou… apaixonado por uma garota.
Lia me olhou com espanto. Os dedinhos de seus pés começaram a se
mover na grama.
— Apaixonado? — sua voz soou baixa e retraída.
— Sim.
— Como sabe que está apaixonado?
— Eu sinto uma cosquinha na barriga sempre que ela está por perto.
Às vezes me sinto nervoso, meu coração acelera. E só penso nela o tempo
todo.
Ela olhou para o céu e colocou o dedo indicador no queixo,
pensativa.
— Acho que também estou apaixonada, então.
— O quê? — Arregalei os olhos. — Por quem?
—Você vai guardar segredo?
— Claro.
— Bem, sinto essas mesmas coisas quando estou com você. Acho que
estou apaixonada por você, Matthew.
Fiquei encantado com as palavras dela. Soou tão inocente, tão doce,
que senti vontade de abraçá-la com força e nunca mais soltar. Suspirei
aliviado.
— Também estou por você, Lia.
— O que fazemos agora? Isso muda alguma coisa?
— Acho que não. Só muda dentro da gente. O que sinto por você hoje
é bem maior do que o que eu sentia quando era criança.
— Me sinto feliz em saber que é recíproco.
Sorrimos um para o outro.
Ela pousou a mão na grama e eu fiz o mesmo.
Nossas mãos estavam próximas. Eu podia sentir a vibração da pele
dela, o calor de suas veias. Mas sabia que não sentiria nada se tentasse
tocá-la.
Sempre fazíamos isso, ficávamos próximos, sentindo a presença um
do outro, mas sem tocar.
— Canta para mim? — ela pediu.
— Claro.
Cantei sua música favorita e a assisti fechar os olhos.
Fiquei feliz com nossas declarações. Havia sido mais fácil do que eu
imaginava. Mas, na verdade, tudo com Lia era mais fácil. Ela parecia me
entender em todos os sentidos. Nem falar de sentimentos parecia ser
complicado.
Passei os dois anos seguintes me guardando só para ela. Mas, aos
dezesseis, comecei a sentir certas necessidades pessoais e íntimas, e eu
sabia que Lia nunca conseguiria satisfazê-las.
Dei o meu primeiro beijo quando estava em Madrid, na Espanha,
dentro do meu camarim com uma fã.
Eu não entendia nada do que ela falava, mas sabia que estava se
insinuando para mim. Beijar-me era tudo o que a menina queria, assim
como todas as outras garotas do mundo todo.
Eu não sabia como fazer, mas quem se importava com isso? Eu era
MatLew, um astro da música. Mesmo que beijasse mal, ela falaria bem de
mim.
Não peguei seu telefone e não mantive contato, mesmo assim fiz dela
a menina mais feliz do mundo, ainda que só com um beijo.
Gostei da reação que meu beijo causou naquele dia.
Senti-me culpado depois, como se tivesse traído Lia. Mas, mesmo que
a amasse, eu sabia que nunca conseguiria fazer essas coisas com ela.
Infelizmente.
Essa foi a primeira coisa que lhe escondi dentro de seis anos. Não
quis contar, não quis causar nenhum episódio tenso entre nós.
Fiz novamente. Beijei uma, depois duas, depois três, até que comecei
a perder as contas. Não era nada importante, nada que realmente fizesse a
diferença em meus sentimentos, mas continuei fazendo porque parecia ser
necessidade.
Meu pai disse que estava tudo certo, que fazia parte da idade e dos
hormônios. Mas ele não sabia da existência da garota dos meus sonhos.
Quanto mais eu beijava, mais queria Lia, mais a desejava.
Certa noite a encontrei, como de costume:
— Lia?
— Sim?
— Por que sonho com você? — perguntei.
— Eu não sei.
— Não quero te ter só nos meus sonhos.
— Eu sei disso.
— Eu queria que você fosse real.
— Quem disse que não sou real?
— Você é real, mas só para mim.
— Isso não é o suficiente?
— Não mais.
— O que quer dizer?
— Não tenho mais a mentalidade de uma criança, Lia. Só estar perto
de você não basta mais.
Ela ficou quieta, me olhando. Continuei:
— Se você é real, se existe de verdade, me diga onde posso te achar.
Eu atravessaria o mundo para te encontrar.
— Não tenho dúvidas quanto a isso.
— Então, me diga.
— Você nunca fez esse tipo de pergunta antes. Por que agora?
— Eu já disse. Quero tocar você.
— Podemos só…
— Não, Lia! Não quero ficar perto, quero tocar de verdade!
A mãe de Lia chamou e ela se levantou mais rápido do que o normal.
Fiquei esperando que fizesse o gesto com as mãos dizendo em língua
de sinais que nos veríamos novamente.
Meu coração esquentava todas as vezes que a via fazendo aqueles
movimentos.
— Nos veremos outra vez — eu disse, fazendo o mesmo gesto.
Acordei triste. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas nenhuma
caiu.
Minha mãe se via ao meu lado e reparou que eu não me encontrava
bem.
Estávamos dentro do carro. Eu, ela, meu tio e o motorista. O próximo
show seria em Quebec, Canadá.
— O que houve, querido? — ela perguntou.
Não sei o motivo, mas naquele momento decidi confiar na minha mãe
para contar o que estava acontecendo.
Na minha frente, ela não demonstrou achar um absurdo, eu me senti
bem por isso. Mas então, assim que teve a oportunidade, marcou uma
consulta com a doutora Nancy, psicóloga e psiquiatra.
Não vou mentir, fiquei chateado de verdade com a atitude dela, e
percebi que Lia não era um assunto que eu poderia dividir com as pessoas.
Ninguém entenderia.
Mesmo contra a minha vontade, compareci a algumas sessões de
terapia com a doutora Nancy, mas só a partir do quinto encontro que me
abri para contar o que estava acontecendo.
Aos dezessete eu estava no auge da minha fama. Meus amigos eram
pessoas da música também, tão famosos quanto eu.
Tudo o que eu fazia chamava a atenção da mídia. Cada passo meu
importava para o mundo.
Escolhi os melhores artistas do momento para fazerem parcerias
comigo em videoclipes e músicas. Isso chamou muita atenção e ainda mais
visibilidade para mim.
Em meu Instagram, eu já havia atingido quarenta e sete milhões de
seguidores, e crescia cada vez mais.
Quando percebi, já nem me dava mais conta de quanto dinheiro eu
tinha. Entrava muita grana por todos os lados, por conta dos trabalhos que
eu fazia.
Um único vídeo no YouTube me rendia milhões. Uma participação
em qualquer que fosse o programa me rendia mais milhões.
Ficou muito fácil ganhar dinheiro.
Apesar disso, permaneci morando com meus pais e desfrutando de
tudo que eu poderia fazer ao lado deles.
Minha mãe merecia que eu a enchesse de ouro, era a mulher mais
dedicada a minha carreira que já conheci. E, apesar de ser rodeado de
amigos, meu pai era meu grande companheiro. Largava qualquer coisa só
para passar algumas horas comigo.
Ainda aos dezessete anos, decidi tirar férias dos shows por quase um
ano. Viajei e me dediquei à minha família. Também me preparei para mais
uma lista de músicas novas.
Eu estava cansado, merecia aquelas férias. Os fãs entenderam.
Continuei interagindo nas redes sociais, postando fotos e fazendo
lives. Isso pareceu ser o suficiente, por um momento.
Eu e meus pais viajamos para Orlando, onde passamos trinta dias.
Depois ficamos por mais alguns meses na nossa casa de praia em
Vancouver, no Canadá.
O que mais passei a ver durante esse período foram fotos minhas na
praia. Sempre havia um paparazzo escondido, pronto para registrar algum
movimento meu.
A praia começou a ficar cada vez mais cheia, até o momento em que
não pude mais frequentar como uma pessoa normal. Eu praticamente não
conseguia nem me mover com aquele tanto de fãs pedindo autógrafos e
atrapalhando meu descanso. Por esse motivo, comecei a usar meu iate para
ir para bem longe, onde pudesse ficar sozinho e tranquilo.
Foi em uma dessas minhas idas ao meio do mar que peguei no sono e
encontrei com Lia.
— Senti sua falta de ontem para hoje — ela disse.
— Eu também — confessei.
Estávamos deitados na grama.
Lia sorriu enquanto me olhava.
— Por que sorri? — questionei-a.
— Gosto de te admirar.
— O que mais gosta em mim? — perguntei, curioso.
— Gosto das suas covinhas. Sem dúvidas, é o que eu mais gosto.
Sorri, só para que as covinhas se formassem.
— Gosto de tudo em você — comentei.
— Não tem uma coisa específica de que goste mais?
— Gosto dos seus pés.
Ela soltou uma gargalhada.
— Achei que diria outra coisa.
— O que pensou que eu diria?
— Pensei que diria meus olhos.
— Gosto demais deles também. Não tem como não gostar.
— Também não tem como não notar.
— Você tem razão. Mas são lindos. Muito lindos. Gosto
especialmente do olho verde, que muda sempre de cor de acordo com seu
humor.
— Você ainda repara nisso?
— Claro, amo vê-lo mudando de cor. Eu disse que gosto dos seus pés,
mas isso não quer dizer que não gosto das outras coisas também.
— Tem alguma coisa em mim de que você não gosta?
— Tem.
— O quê?
— Não gosto que não seja real.
— Matthew…
— O que me prova que é?
— Eu sou real.
— Por favor, Lia. Diga-me alguma coisa. Já tenho dezessete anos,
não posso ficar lidando com isso para sempre.
— Eu sou real, prometo isso a você.
Ela pousou a mão na grama e eu fiz o mesmo, para sentir a
proximidade das nossas palmas.
— O que posso fazer para te ter?
— Você já me tem.
— Não de verdade. — Franzi a boca pesarosamente. — Você é tão
perfeita! Como pode ser fruto da minha imaginação? Nem mesmo em meus
mais insanos sonhos eu seria capaz de imaginar uma menina tão bonita
quanto você.
— Eu sou fruto da sua imaginação, Matthew.
Olhei-a por um instante. O que ela disse me doeu profundamente.
Lia nunca tinha dito aquilo. Ouvir aquelas palavras de sua boca foi
bem pior do que acordar e saber que era tudo um sonho.
— Você não existe, então? — Minha garganta doía.
— Eu não disse isso.
Olhamo-nos por um momento em silêncio total. Ela estava tão linda
que me causava calafrios.
Lia já parecia uma mulher formada, apesar de ter 1,60 de altura e ter
um rosto angelical.
Seu corpo tinha as curvas mais lindas que eu já havia visto na vida.
Não existia nada que eu desejasse mais que tocá-la.
— Posso tentar? — perguntei.
— Claro.
Ergui o braço vagarosamente, hesitando em alguns momentos.
Aproximei a mão de seu rosto e, quando faltavam centímetros para que eu
pudesse tocá-la, percebi o calor de sua presença em contato com a minha
pele. Cheguei mais perto para verdadeiramente encostar nela, mas não
senti nada. Nada.
Acordei logo em seguida, com câimbra na mão.
Passei uma semana analisando a conversa que tive com Lia. Ela
dissera que, de fato, era fruto da minha imaginação. Isso doeu, mas era algo
que eu esperava ouvir algum dia na vida.
A essa altura, eu já estava havia aproximadamente um ano fazendo
terapia com a doutora Nancy. Nós conversávamos muito sobre Lia e,
mesmo que tentasse me forçar a vasculhar o cérebro atrás de algum indício
de que ela era real, não encontramos.
Tudo apontava para sua inexistência.
Fiquei tão chateado e constrangido ao mesmo tempo, que tomei a
decisão mais difícil da minha vida até então: eu iria pedir a Lia que não
aparecesse mais.
Seria tão doloroso quanto vê-la morrer. Mas eu precisava fazer isso.
Reparei no quanto seu olho estava amarelo quando nos olhamos pela
última vez.
Aquilo queria dizer que ela estava gostando de alguma coisa.
— Você fez uma tatuagem nova — ela disse.
— Fiz.
— É muito bonita.
Passou o dedo por cima do meu braço, contornando-o de perto, sem
tocar.
Minha pele se arrepiou com a proximidade.
— Eu a fiz para me lembrar de você para sempre — comentei.
Tatuada em meu braço, havia uma menina segurando uma flor
laranja. Ela estava de lado, o rosto não era nítido. Embaixo estava escrito
“A Menina dos meus sonhos”.
— Eu te amo — ela disse, em um sussurro.
— O quê?
— Eu te amo, Matthew.
— Lia, eu… Eu também te amo. Mais do que você pode imaginar. O
que sinto está praticamente impossível de sustentar, de tão grande e forte
que é.
— Mas…?
Meu estômago se revirou dentro de mim.
O olho de Lia mudou progressivamente de cor. Ficou totalmente
verde. Um verde escuro e vibrante.
— Não posso mais continuar com isso, Lia.
Ela olhou para baixo. Fitou a grama, sem expressão nenhuma.
— Não quer mais que eu apareça?
— Não, não quero — minha voz estava firme, apesar do coração, que
martelava em minha caixa torácica. — Somente se for real. Não mais em
sonho. Não posso mais desejar dormir em maior proporção do que desejo
estar acordado.
— Tem certeza disso? — perguntou com lágrimas nos olhos.
— Tenho. Eu te amo, Lia. Mas não posso mais viver assim.
— Posso te pedir uma coisa?
— Claro.
— Me procure? Me procure pelo mundo todo, Matthew, em todos os
cantos deste planeta. Tenho certeza de que estarei te aguardando em algum
lugar.
— Não tenho tanta certeza quanto você.
— Pode só tentar?
— Eu farei isso, Lia. Nunca vou te esquecer, nunca vou desistir de te
encontrar. Ter você de verdade é o que sempre sonhei.
— Eu sei disso.
Ouvimos a voz da mãe dela soando, chamando-a para ir embora.
Nós nos levantamos.
— Eu vou sentir a sua falta — ela disse.
— Eu também. Todos os dias da minha vida.
— É uma promessa?
— Sim. É uma promessa.
Ela levantou o dedinho. Eu o enlacei com o meu.
Não foi possível sentir o toque, mas o que senti dentro de mim quando
ela se virou sem fazer os gestos com as mãos indicando que nos veríamos
de novo foi tão real quanto uma lança entrando em meu coração.
Uma parte de mim queria vê-la usando a língua de sinais. Eu queria
muito saber que a veria novamente.
Mas naquele momento, enquanto ela corria em direção à sua mãe,
entendi que nunca mais a veria.
Pelo menos não nos sonhos.
Lembro-me como se fosse hoje quando vi MatLew pela primeira
vez. Ele estava participando de uma audiência de canto no Canada’s Got
Talent, assisti pela televisão.
Achei o máximo termos a mesma idade e vê-lo cantar tão bem. Por
um momento, me imaginei lá, arrasando como ele.
Não sei por que, mas, quando vemos alguém da mesma idade ou da
nossa faixa etária, acabamos nos questionando se seríamos capazes de fazer
o mesmo.
Com certeza, eu não sou páreo para MatLew, não naquela
intensidade, não daquele jeito.
Quando bati o olho nele, percebi que se tratava de alguém diferente
das outras pessoas. Havia um brilho que o envolvia de cima a baixo.
Quando sua voz soava, era como se todo o resto do mundo parasse, como se
nada mais existisse.
Não era só eu que sentia isso. Todos sentiam. Era mais do que notório
o seu amor pela música.
Na primeira audição, o mundo inteiro já sabia que ele ganharia o
programa.
Foi assim que, aos dez anos, me apaixonei pela primeira vez. Por um
garoto que estava a vários países de distância de mim, por alguém que
nunca me notaria.
Meu nome é Marília Duarte, uma garota brasileira que sempre morou
na Zona Sul de São Paulo, Brasil.
Seria mentira se eu dissesse que levo uma vida normal. Turbulenta é a
palavra certa. Uma vida bem turbulenta.
Até quase meus quatro anos de idade, tive uma criação e vida
perfeitas ao lado dos meus pais. Mas, então, eu e minha mãe fomos
atropeladas enquanto atravessávamos a rua. Fiquei gravemente ferida e ela,
para minha infelicidade , não resistiu.
Eu ainda era muito pequena, portanto não sofri em grande proporção.
Só senti, e sinto, falta de uma figura materna.
Durante os anos que seguiram, morei sozinha com o meu pai em um
apartamento de classe média, com dois quartos grandes e sacada gourmet.
Ele se esforçou muito para que eu tivesse os melhores estudos e condições
de vida, na medida do possível. A escola na qual estudei era particular e
muito bem-conceituada. Felizmente, seu trabalho como dentista lhe rendia o
suficiente para que vivêssemos bem.
Presenciei seu sofrimento pela perda da minha mãe e não foi fácil
consolá-lo. Começou a beber depois de alguns meses. Não era nada
exagerado no início, mas mesmo assim me parecia bem complicado vê-lo
desmoronando aos poucos.
Quando completei dez anos de idade, seis anos após a morte da minha
mãe, meu pai já havia virado um alcoólatra.
Eu passava o dia todo em casa com a empregada, após a escola, e
ficava esperando por ele na esperança de que chegaria sóbrio do serviço.
Mas passei a não ser mais tão importante quanto costumava ser, assim
pensava. Pois, em vez de ir para casa sóbrio como eu desejava, ele saía do
serviço e ia beber em algum bar da região. Chegava tarde em casa todas as
noites, tonto e embriagado, então ia dormir.
Às vezes nós passávamos dias sem nos falarmos. Ele mal se lembrava
da minha existência.
Lourdes, nossa empregada, é que sempre ficava comigo e me ajudava
nas lições de casa. Se não fosse por ela, acredito que nem ler ou escrever
direito eu saberia.
Ela me ensinou tudo o que eu sabia na época, até mesmo sobre
meninas e garotos. Em todas as dúvidas que eu tinha inerentes a minha
idade, era ela quem me ajudava e aconselhava.
Em certo momento, comecei a torcer para que meu pai chegasse o
mais tarde possível do trabalho, porque sua situação piorava gradativamente
e passei a ter medo dele, medo do que poderia fazer comigo.
Ele nunca tinha me batido, até então, mas às vezes gritava e
cambaleava até cair no chão. Isso me assustava muito.
Lembro-me da sensação de ficar no meu quarto fingindo que estava
dormindo, tampando até a respiração para deixar o cômodo o mais
silencioso possível, só para que ele não notasse a minha presença.
Aos doze anos, meu pai despediu Lourdes, disse que eu já era
grandinha o suficiente para arrumar a casa e fazer comida. Enfatizou que
não ia continuar gastando dinheiro com uma menina folgada como eu.
Fiquei tão chateada que passei dois dias sem comer nada, só trancada
no meu quarto. Meu pai nem percebeu.
Lourdes me ligou após esses dois dias e perguntou se eu estava me
alimentando. Fui sincera e disse que não sabia mexer no fogão. Então ela,
morrendo de dó, passou a ir à minha casa todos os dias à tarde para
cozinhar para mim e me ajudar a arrumar alguma coisa que estava fora do
lugar. Mesmo não sendo remunerada para isso.
Ficou um ano inteiro fazendo isso, na verdade. Foi assim que aprendi
a cozinhar o essencial.
No ano seguinte, meu pai foi despedido do emprego por ter sido pego
bebendo em horário de trabalho. Portanto, passou a ficar mais tempo em
casa, o que fez com que Lourdes se afastasse por completo.
Felizmente, eu já havia aprendido o básico, então passei a cozinhar e
limpar a casa todos os dias, seguindo à risca as regras e exigências do meu
pai. Ele dizia que pagava as contas e gastava muito dinheiro comigo, então
o mínimo que eu deveria fazer era limpar tudo.
Com quatorze anos, achei que um milagre estava acontecendo quando
ele arrumou uma namorada. No início parecia que ela era um anjo que tinha
chegado para fazer a diferença em minha vida. Alguém que chega para te
salvar e te desafogar. Mas achei errado.
No primeiro ano de namoro, minha vida pareceu ter mudado de vez.
Meu pai parou de beber, passou a se arrumar mais e até conseguiu um novo
emprego.
Eu estava indo bem nos estudos, fazendo novas amizades e tirando
boas notas.
Meu apelido na escola era exótica, isso por conta da heterocromia nos
olhos e do cabelo vermelho.
Estranho, eu sei, mas todos queriam ser meus amigos só por conta dos
meus olhos de cores diferentes. Um azul e um verde, no caso.
Quando completei quinze anos, exatamente no dia do meu
aniversário, meu pai se casou com a Rosana. Eles prometeram sair comigo
para comemorar o aniversário após o casório, mas isso não aconteceu. Não
demorou muito para que ela largasse o emprego e vivesse dentro de casa
comigo, obrigando-me a limpar e cozinhar sozinha, enquanto ficava no
celular.
Vivi os dias mais terríveis da minha vida dentro daquela casa, pelo
menos era o que eu pensava na época.
De manhã eu ia para a escola e, à tarde, passava todas as horas
disponíveis fazendo favores à Rosana.
Eu ia ao mercado, comprava o que precisava, fazia a comida e
arrumava a cozinha. Depois, quando meu pai chegava, ela dizia que tinha
feito tudo e ainda perguntava: “Ficou do jeito que você gosta, benzinho?”
Secretamente, passei a estudar inglês sozinha. Eu pesquisava na
internet e fazia minhas próprias anotações. Isso porque meu sonho era
poder ir a algum show do MatLew.
Pensar que um dia eu poderia estar frente a frente com ele era a maior
insanidade do mundo, mas eu gostava. Gostava de me imaginar falando em
inglês com meu ídolo, dizendo que eu o amava profundamente e que era a
maior fã de todas.
Ele também estava com seus quinze anos e, sinceramente, mais lindo
do que nunca. Eu amava o seu estilo, a maneira como se vestia e como se
portava. Tinha os cabelos compridos, até os ombros, no tom mais lindo de
castanho-claro, e com leves ondulações naturais. Seus olhos eram verdes,
mas tão claros que, em determinados momentos e fotos específicas,
acabavam se confundindo com um tom de azul maravilhoso. O sorriso era o
mais espetacular do mundo, formando covinhas fundas em ambas as
bochechas e deixando à mostra dentes claros e retos; mas os dois da frente
eram levemente maiores do que os outros, delineando o sorriso mais gentil
que eu já havia visto. Seu nariz seguia ângulos cautelosos e adoráveis,
empinando levemente na ponta.
MatLew sempre usava calças jeans pretas, ou em tons escuros
derivados. Estavam sempre justas às pernas. Suas camisetas, ou camisas,
eram sempre coloridas, chamativas e largas, dando realce aos seus olhos. E,
nos pés, o costumeiro All Star ou uma bota preta de couro.
Sua beleza e espontaneidade chamavam a atenção. No palco, era
comum vê-lo brincar com os fãs. Nas ruas, parava para dar atenção e
abraçar. Sua boca sorridente sempre estava pronta para soltar uma piada ou
uma gargalhada gostosa. Ele era original, despojado, cheio de si e
transbordava confiança.
Eu sabia que nunca conseguiria chegar perto ou conhecê-lo
pessoalmente, não dava para ser tão ingênua e pensar o contrário. Minhas
condições de vida não condiziam com as dele. Então, o que me confortava e
me levava para mais perto era ouvir as músicas com meus fones de ouvido.
A sensação era de leveza e de aconchego. A voz parecia estar tão perto, que
chegava a me arrepiar com intensidade.
Eu amava todas as suas músicas, conhecia todas de cor e salteado.
Assistia a todos os vídeos e estava por dentro de todas as novidades. Isso
era o que me acalmava, um verdadeiro bálsamo para minha alma.
Enquanto eu sofria uma profunda opressão na casa do meu pai, o que
me confortava era entrar no meu quarto à noite e ouvir a voz maravilhosa
de MatLew adentrando meus ouvidos sedentos. Por isso digo que ele, sem
saber, me salvou no momento mais difícil da minha vida.
Certo dia, Rosana entrou no meu quarto no meio do dia e me pegou
cantando. Disse que minha voz era horrível e que eu precisava fazer o favor
de não cantar mais. Inclusive, se eu pudesse ficar sem falar, seria melhor.
Eu não sabia o motivo, mas minha voz a irritava.
A televisão que ficava no meu quarto foi tirada e vendida, pois
precisavam de dinheiro para liquidar as contas e, como eu não ajudava com
nada, era justo tirar alguma coisa de mim para pagar o que estava em atraso.
Fui proibida de assistir à televisão da sala, porque, segundo Rosana,
tudo o que eu via era uma grande besteira e não me acrescentava nada.
Muito menos se fosse algo vinculado a MatLew.
A única exceção era se eu assistisse a jornais e programas de tragédia.
Isso, com certeza, me acrescentaria muito conhecimento sobre a atualidade.
Em uma tarde qualquer, Rosana me disse que iria ao mercado fazer
compras. Achei bem estranho, pois era eu quem estava acostumada a fazer
isso.
Pensei que talvez algum milagre estivesse acontecendo, mas, quando
ela chegou, entendi por que quis fazer o serviço.
Colocando a compra em cima da mesa, ela separou tudo e foi bem
clara quando disse o que era dela e do meu pai, e o que era meu. A partir
daquele dia, eu não estava mais liberada para comer das mesmas coisas que
eles.
O peito de peru e o queijo branco eram deles, a mortadela era minha.
O pão francês era deles, o pão de forma era meu. A Coca-Cola era deles, a
Dolly era minha. A bolacha mais gostosa era deles, a mais sebosa era
minha. E assim por diante.
Em um dia específico, Rosana me proibiu de ouvir as músicas de
MatLew. Sinceramente, eu estava aguentando calada tudo pelo que passava.
Mas não pude aceitar ser impedida de ouvir o meu cantor favorito.
Àquele estágio da vida, nada mais me alegrava, somente ouvir as
músicas dele. Eu sentia como se a voz de MatLew me enchesse de vida
todas as vezes que me sentia vazia.
Neguei-me a aceitar. Rosana tomou meu celular da minha mão e eu
tomei de volta. Gritei com ela, disse que poderia tirar tudo de mim, menos
aquilo.
Em primeiro momento, estranhei que simplesmente ficou quieta e foi
para o quarto. Achei que tinha se assustado com a minha atitude, já que eu
nunca havia feito algo igual. Mas então, quando meu pai chegou, eu a ouvi
gritar com ele no quarto. Dizia que tinha me visto na calçada da escola aos
amassos com dois meninos diferentes.
Meu pai saiu igual a um animal do quarto e me jogou na cama. Gritou
comigo e me deu três socos no rosto. Disse que eu era uma decepção para
ele, que o envergonhava profundamente.
Segurei o choro até que ele saísse do quarto. Então, caí em prantos o
mais silenciosa possível.
Minha boca ficou inchada e meu olho direito, roxo.
Fui obrigada a ir para a escola daquele jeito. Foi o dia mais
humilhante da minha vida.
No dia seguinte, fui chamada na sala da coordenadora. Ela me
questionou sobre os hematomas, mas jurei que eu havia caído enquanto
pulava corda na rua com meus amigos. Expliquei que meu pé se enroscou
na corda, acarretando minha queda com o rosto no chão. Evitei mencionar
meu pai, pois não quis que ele levasse a culpa, mesmo que fosse culpado.
Almocei dentro da sala de aula sozinha, enquanto todos estavam no
refeitório. Eu não queria aparecer com o rosto roxo no meio da escola
inteira.
Pedi para que minhas amigas me deixassem sozinha e elas
respeitaram.
Um menino que eu não conhecia entrou na sala. Ele era
razoavelmente bonito, tinha olhos azuis e cabelos loiros raspados. Usava
uns óculos pequenos diante dos olhos.
Ele se sentou ao meu lado e me olhou por um instante.
— Por que está aqui sozinha? — perguntou.
— Quem é você? — perguntei de volta.
— Meu nome é Luiz. Estudo aqui na escola também.
— Por que nunca te vi?
— Porque estou no último ano. Os nossos horários são diferentes.
— Por que está aqui?
— Eu estava passando pelo corredor para ir ao banheiro e te vi
sentada aqui sozinha. Senti vontade de saber se está bem. Você está bem?
Não o olhei diretamente, por vergonha da boca inchada e do olho
roxo.
— Estou bem, obrigada. Pode ir, ou vai acabar perdendo sua aula.
Ele tirou do bolso da calça um pedaço de papel e anotou, com um
lápis qualquer que pegou de alguma mesa, seu telefone.
— Sei que vai parecer estranho — ele disse —, mas vejo que você
não está bem, e desconfio que esteja passando por maus-tratos dentro de
casa. Não tem problema se não quiser se abrir comigo agora, mas faço
questão de que fique com meu telefone. Se precisar de alguma coisa, estarei
à sua disposição. Não tenho muito para te ajudar, mas acho que nesses
momentos um ombro amigo é o suficiente.
Peguei o papel, calada.
Achei bacana da parte dele, pois nem me conhecia, nem sabia o que
estava acontecendo comigo e mesmo assim foi solidário. Senti sua
preocupação através dos seus olhos e em cada palavra que saiu da sua boca.
Guardei o papel, torcendo para que eu nunca precisasse ligar. Pelo
menos, não para fazer relatos sobre maus-tratos.
Novamente, achei que algum milagre poderia estar acontecendo. Eu
estava carente e triste demais para enxergar a realidade. Mas a verdade é:
quando alguém aparece na sua vida como um anjo, parecendo que vai te
tirar do fundo do poço, desconfie. Na maioria das vezes, as pessoas não são
boas o bastante para fazer isso.
Passei isso com Rosana e também com Luiz.
Pouco tempo depois, completei dezesseis anos. Eu passava bem,
apesar da turbulência que vivia dentro de casa. Meu rosto não estava mais
roxo e meu pai não bateu mais em mim até então, portanto, mesmo que eu
tivesse guardado aquele telefone, não cheguei a usá-lo.
Certa vez, meu professor de química pediu para fazermos um trabalho
importante valendo nota para fechamento de bimestre. Precisaríamos fazer
em trio. O meu foi formado por mim, minha melhor amiga, Cecília, e
Michael. Este, mais conhecido como Mike, era um dos melhores da sala em
química, então eu e Cecília tivemos certeza de que alcançaríamos a nota
máxima no trabalho.
Marcamos de fazê-lo na minha casa, porque, àquela altura da vida, eu
também já tinha sido proibida de sair. Não disse isso a nenhum dos meus
amigos, só tentei convencê-los de que fazer o trabalho lá seria a melhor
opção.
Eles aceitaram. Marcamos a data e avisei Rosana de que teríamos
visita. Ela não pareceu se importar, pois, quando se tratava de estudos,
deixava que eu me dedicasse. Pelo menos isso.
Na data agendada, Cecília teve um problema em casa e não pôde
comparecer, só Mike se fez presente. Passamos horas no meu quarto
fazendo o trabalho, até que conseguimos terminar. Ele era um gênio em
química. Além de ter feito a parte mais difícil, ainda foi paciente para me
explicar muita coisa.
Fiquei muito feliz com a finalização do trabalho escolar, foram horas
maçantes de estudo e demandou muito esforço. Quando terminamos,
começamos a rir de alegria. Eu já estava descabelada de tanto pensar, e
Mike se via cansado, com o pulso doendo de tanto fazer contas.
Deitamo-nos na cama um ao lado do outro e assistimos a alguns
vídeos do YouTube juntos, o que foi mais do que merecido.
Rosana percebeu o silêncio e entrou no quarto com dois copos de
suco. Eu sabia que ela não estava preocupada em matar a nossa sede, queria
mesmo era saber o que fazíamos e se estávamos mesmo estudando.
Mike ficou agradecido pelo suco. Tomou e pouco tempo depois foi
embora, levando o trabalho consigo.
À noite, quando meu pai chegou do serviço, ouvi Rosana gritando
com ele no quarto. Ela dizia que eu havia mentido sobre o trabalho escolar,
que me ouviu rindo com um garoto no quarto a tarde toda e que, quando
decidiu entrar para ver o que estava acontecendo, acabou nos pegando no
flagra na cama juntos.
Meu pai ficou furioso. Jogou-me sobre o colchão outra vez e gritou
comigo. Exigiu ver o trabalho, mas não pude proporcionar isso a ele porque
a atividade que havíamos feito já não estava comigo.
— Está vendo, benzinho? Ela estava mentindo o tempo todo sobre o
trabalho escolar! — Rosana disse, às costas dele.
— Papai, eu juro…
Mas não consegui terminar a frase, ele me socou tanto que não
consegui me mexer por horas após o episódio.
Quando tudo já estava escuro, coloquei os fones de ouvido e ouvi
minhas músicas favoritas de MatLew. Chorei tanto, que meu travesseiro
ficou encharcado.
Faltei na escola por uma semana, a pedido do meu pai. Claro, ele não
quis que desconfiassem que eu havia sido agredida em casa.
Eu não estava presente no dia da apresentação do trabalho e acabei
ficando sem nota. Quando meu boletim chegou, eu estava com nota 6 em
química. Meu pai não aceitava que eu tirasse menos do que 9. Tentei
explicar que eu havia feito o trabalho, contudo não estava presente para
apresentá-lo em sala de aula. Ele novamente achou que eu havia tirado
aquela nota por não ter feito a minha tarefa. Apanhei igual a uma
condenada.
No meio da noite, eu me lembrei do número de Luiz. Peguei o
telefone e disquei, mas, envergonhada, desliguei antes que atendesse. Dois
minutos depois, ele retornou.
Não consegui proferir uma única palavra, eu só chorava. Ele pareceu
entender, pediu que eu mandasse meu endereço pelo WhatsApp e foi o que
eu fiz. Poucos minutos depois, Luiz disse que estava me esperando na
esquina do prédio onde eu morava.
Não pensei muito bem no que eu estava fazendo, o desespero me
levou a preparar uma mochila e fugir de fininho.
Recebi o abraço mais confortável da minha vida quando entrei no
carro de Luiz, ele quase chorou comigo, tamanha sua preocupação.
Eu não conseguia dizer nada, minha boca inteira sangrava e estava
inchada demais.
— O meu pai é médico — ele disse. — Vou te levar até a casa dele
para que possa dar uma olhada em você. Tudo bem?
Concordei com a cabeça, em silêncio.
Assim como Luiz havia dito, fomos à casa do pai dele, onde todos os
meus ferimentos foram tratados com a maior delicadeza do mundo. Ambos
insistiram para que eu denunciasse meu pai, mas não tive coragem de fazer
isso com ele. Mesmo que fosse um alcoólatra covarde, eu o amava e tinha
esperança de que mudasse um dia e se desculpasse comigo.
Dormi aquela noite na casa de Luiz, eu na cama e ele na sala. Como
já tinha dezoito anos, morava sozinho. A casa era pequena e simples, mas
muito bem ajeitada.
— Você dormiu bem? — ele perguntou, na manhã seguinte.
— Melhor do que qualquer noite nos últimos anos.
— Olhe, Marília, sei que você não me conhece direito, mas saiba que
quero te ajudar, com todo o meu coração. Pode ficar aqui quanto tempo
quiser, de verdade.
Luiz parecia ser tão gentil! Tratou-me igual a uma princesa durante os
seis dias que fiquei lá.
Só voltei para casa porque meu pai me ligava várias vezes por dia,
dizia que me amava e que nunca mais faria o mesmo que fez. Insistiu tanto,
que acreditei e voltei.
A primeira coisa que aconteceu quando pisei no apartamento do meu
pai foi levar um tapa na cara. Dessa vez, quem me deu foi a Rosana. Ela
nunca tinha me batido até então, mas disse que a deixei tão preocupada, que
mereci o tapa que levei.
Em seguida, meu pai apareceu. Tirou meu celular da minha mão e me
bateu até quebrar uma das minhas costelas. Disse que estava fazendo aquilo
por amor, para me corrigir.
Fiquei três dias trancada no quarto, com dores abdominais horríveis,
assim como nas pernas.
Quando finalmente consegui me levantar, tentei abrir a porta, mas não
consegui. Eles haviam passado um cadeado para eu não sair do cômodo.
Fiquei uma semana trancada, sem meu celular e sem televisão. Eu me
alimentava somente quando Rosana abria a porta e deixava um prato de
comida para mim.
Foi inevitável. Perguntei-me e tentei refletir sobre quando minha vida
começara a ser uma bosta. A verdade é que eu não me lembrava se um dia
ela já havia sido boa. Chateava-me demais saber que meu pai, a única
pessoa que eu tinha na vida, me maltratava como se eu não fosse sua filha.
Sempre foi difícil de entender isso, sempre me questionei. Ele amava tanto
minha mãe, me amava tanto quando eu era pequena… O que fiz para que
ele me odiasse tanto agora? O que mudou entre nós? Em qual momento
mudou? Eu estaria mentindo se dissesse que isso não me incomodava
profundamente.
Apesar de tantos questionamentos e de tantas horas pensando sobre
isso, não consegui chegar a conclusão nenhuma. Mas tudo o que eu queria
era que um dia meu pai percebesse seus erros e se redimisse. Eu queria que
ele voltasse a ser o pai que era quando eu ainda era somente uma
criancinha, antes de começar a beber e se lamentar pela morte da minha
mãe.
Mesmo passando por tantos maus-tratos, não acumulei raiva dele.
Ressentimento era a palavra certa, mágoa por não entender onde errei para
que me odiasse tanto.
Comecei a perceber que Rosana entrava todos os dias às 12h30 para
entregar-me o almoço, às 16h30 para o café da tarde e às 20h30 para a
janta.
Então, preparei minha mochila com todas as coisas mais importantes
para mim e, quando o relógio apontou 12h30, pus-me em pé atrás da porta.
Quando Rosana a abriu, dei-lhe um golpe na cabeça com o meu abajur. Ela
caiu no chão, desacordada. O prato que segurava também caiu, sujando
todo o piso.
Corri o mais rápido que pude, por vários e vários minutos, até chegar
à casa de Luiz. Ele já havia chegado da escola e estava se aprontando para
ir trabalhar. Atendeu-me de prontidão.
— Meu Deus, Marília! Estou tentando contato com você há dias!
— Eu sei, meu pai pegou meu celular — expliquei.
— Entre. Vou ligar no meu serviço e dizer que não vou trabalhar hoje.
— Não precisa fazer isso. Só me leve até seu pai. Consegue fazer
isso?
— O que houve? O que você tem?
Levantei minha camiseta e mostrei a região das costelas. Luiz
arregalou os olhos e levou a mão à boca. A região estava escura e bem
dolorida.
Ele fez o que pedi. Foi o caminho inteiro dirigindo, muito preocupado
comigo.
— Você tem um lugar para ir? Não pode voltar para a casa do seu pai.
— Não — respondi, sendo sincera.
Cecília era minha única amiga de verdade, mas eu sabia que não
poderia ir para a casa dela, seus pais nunca deixariam.
— Então, a partir de hoje, você vai morar comigo! — ele exigiu. —
Pelo menos até conseguir um lugar.
— Obrigada — minha voz saiu trêmula e triste. — Muito obrigada.
A partir desse dia, passei a morar com Luiz. No começo, tudo correu
muito bem. Ele se formou na escola e eu continuei estudando. Luiz ia
trabalhar à tarde e eu ficava em casa. Tive tempo o suficiente para estudar e
me preparar para o vestibular. Arrumar a casa, cozinhar e limpar não era
mais uma obrigação, mas eu fazia porque achava justo, era uma maneira de
retribuir tudo o que Luiz fazia por mim.
Ele me comprou um celular novo e algumas roupas. Tratou-me com
respeito, nunca insinuou nada que não fosse somente amizade. Dormia na
sala e eu, no quarto, jantávamos todos os dias juntos e depois assistíamos à
televisão.
Dei meu primeiro beijo aos dezessete anos, em Luiz. Foi um episódio
engraçado, totalmente espontâneo. Nós dois começamos a rir depois e nos
abraçamos.
Eu gostava dele, mas não amava. Era bacana passar as horas em sua
companhia. Nos finais de semana, sempre nos divertíamos, ele deixava de
sair com os amigos para ficar comigo. Íamos ao cinema, a restaurantes e a
uma pracinha que ficava perto de sua casa. Às vezes, almoçávamos na casa
do pai dele. Era sempre divertido, sempre confortável. Iríamos pelo menos
uma vez por semana se o Dr. Marcos não fosse tão ocupado; ele trabalhava
em vários hospitais, em vários estados diferentes, então isso acabava
encurtando nossos encontros com ele. Mas, sempre que estava em casa, era
superatencioso e receptivo, eu amava aqueles almoços em família.
Eu não saía muito de casa, não tinha contato com outras pessoas, a
não ser na escola. Luiz era o homem mais próximo a mim e meu primeiro
namorado, então, como tudo era novo, estava sempre tudo bom. Eu aceitava
tudo.
Até que ele me pediu em casamento.
Analisei minha situação. Eu não trabalhava, não tinha para onde ir,
não confiava em mais ninguém a não ser em Luiz. Nós já vivíamos uma
vida muito parecida com a de casados, morávamos na mesma casa,
comíamos da mesma comida e sempre saíamos juntos. Não me pareceu
uma má ideia.
Não foi um casamento normal, pois eu ainda era menor de idade e
não parecia conveniente. Então, ele comprou alianças de ouro e simulou um
casamento dentro de casa. Ninguém precisava saber que não éramos
casados no documento.
Foi o meu último dia feliz ao lado dele.
Na noite seguinte ao “casamento”, perguntou se podia dormir na
cama ao meu lado. Eu disse que sim, claro, éramos um casal. Até então,
nunca tínhamos dormido na mesma cama, ainda que já morássemos havia
quase um ano juntos. Luiz sempre tinha me respeitado e dera o quarto para
meu uso enquanto ficava na sala.
Ele se deitou e me abraçou. Começou a falar coisas no meu ouvido,
coisas que nunca tinha falado antes. Achei bacana, apesar de diferente.
Fiquei um pouco envergonhada, mas a maneira como ele me tratava me
deixava de certa forma à vontade.
Depois de alguns minutos, começou a me beijar com mais vontade e
quis tirar a minha roupa.
— Tudo bem, querida, somos casados agora — ele disse.
Eu era virgem ainda, nunca tinha feito aquele tipo de coisa. Nunca
tinha mostrado minhas partes íntimas a ninguém.
Fiquei tão nervosa com aquela situação, que quis parar. Não porque
não confiava em Luiz, sempre tão gentil e generoso, mas sim porque eu não
tinha me preparado ainda mentalmente para aquilo.
Lembrei que não tinha me depilado nos últimos dias, nem tinha me
cuidado da maneira que eu sabia que Luiz gostaria.
— Luiz, não estou pronta agora — sussurrei.
— Vai ser bom, meu amor, você vai ver.
— Eu sei que vai, mas não estou preparada ainda.
— Marília, eu te amo do jeito que é. Vou ser cuidadoso, não vou te
machucar.
— Luiz, por favor, me dê um tempo pelo menos — pedi, sufocada
com seu corpo em cima do meu e sua boca na minha o tempo todo.
Insisti que eu não queria, que não estava pronta, que não estava me
sentindo à vontade, mas ele continuou mesmo assim. Pareceu não me dar
ouvidos. Não respeitou meu tempo, nem minha vontade.
— Eu vou te levar às alturas, Marília — ele sussurrava, sem fôlego,
de olhos fechados.
Fiquei tão nervosa que gritei para ele parar, o que o fez levar um
susto.
— Você não ouviu? — gritei. — Eu não quero!
— Vai me negar isso, mesmo depois de tudo o que fiz por você?
— O que está querendo dizer? Que devo pagar e retribuir tudo o que
já me deu fazendo sexo com você?
— Estou querendo dizer que você achou bem bacana enquanto eu te
presenteava, te dava a minha cama para dormir, comprava das melhores
comidas, te dava os melhores presentes e as melhores roupas. Não é? Você
adorou, não adorou? O mínimo que pode fazer por mim é tirar a sua roupa e
me satisfazer.
— Eu não disse que não faria isso, só estou dizendo que agora não me
sinto pronta. Você consegue respeitar isso?
— Já esperei tempo demais, Marília. Já te respeitei demais. Acha que
não reparo no quanto me provoca? No quanto me quer também? Eu sei que
você me quer, tanto quanto te quero.
Ele voltou a me beijar, forçando sua boca na minha, forçando seu
corpo contra o meu.
— Luiz, por favor, me deixe em paz! — tentei dizer, movendo-me
embaixo de seu corpo. — Você não está pensando bem. Vamos conversar
direito. Podemos nos programar, podemos fazer tudo isso da melhor
maneira possível. Por favor!
Ele parou por um instante e me fitou. Sua pupila estava dilatada, sua
respiração, ofegante. Eu nunca o tinha visto com aquela expressão.
— Você não tem escolha, Marília — ele disse baixo. — A partir do
momento em que disse que me aceita como seu marido, deu carta-branca
para eu fazer o que quiser com você.
Senti meu coração doer. Não achei que seria possível, depois de tudo
o que ele me viu passar, fazer aquilo comigo.
— Não se esqueça de que não sou sua esposa de verdade — eu disse,
com raiva. — Não temos nenhum documento comprovando isso.
Ele ficou evidentemente irritado. Segurou-me com tanta força que
deteve meus movimentos. Tirou a minha roupa com brutalidade, tampou a
minha boca e me introduziu. Não tive nem forças para gritar, de tanta dor
que senti. Fiquei parada enquanto ele se movimentava em mim, com o rosto
vermelho, cheio de raiva. Quando terminou, Luiz se levantou, saiu do
quarto e me deixou sozinha. Chorei igual a uma criança.
Aproximadamente uma hora depois, ele entrou no quarto chorando,
pediu desculpas várias vezes e me abraçou; disse que me amava muito, que
tinha tido um dia difícil no serviço e acabara perdendo a cabeça. Jurou
nunca mais fazer o mesmo.
Eu só chorava, não tinha condições de pensar em perdoá-lo ou não.
Pensei em ir ao hospital, porque não conseguia mexer as pernas, tamanha a
dor. E o lençol estava todo ensanguentado. Mas ele disse que o sangramento
era normal e que a dor logo passaria. Colocou-me embaixo do chuveiro e eu
tomei banho, torcendo para toda aquela dor, a do coração também, descer
diretamente pelo ralo.
Na escola, todas as meninas tinham dezessete anos, assim como eu, e
a grande maioria não era mais virgem. Nem mesmo Cecília era. Lembro-me
de que conversávamos vez ou outra sobre isso, ela me deu algumas dicas e
disse que eu precisava me preparar, pois, como eu e Luiz morávamos
juntos, estava mais do que óbvio que isso aconteceria uma hora ou outra,
ainda mais porque vivíamos nos beijando.
Ela me disse que seria muito bom, que eu sentiria um prazer sem
igual. Portanto, nem em meu pior pesadelo supus que minha primeira vez
seria assim. Não imaginei que Luiz fosse capaz de fazer o que fez comigo,
não daquela forma tão brutal.
Durante os próximos meses, aquele episódio não se repetiu. Nem à
força e nem por vontade própria. Cheguei a perdoá-lo e pensar que ele
realmente havia tido um dia difícil. Cometer um erro uma vez é
compreensível, mas, quando acontece pela segunda vez, é perceptível que a
pessoa não se arrependeu.
Nessa mesma época, MatLew havia tirado um ano de férias dos
shows. Eu o acompanhava em todas as redes sociais e lives que fazia. Sabia
que estava se preparando para fazer músicas novas.
Não demorou até que duas delas viessem a público antes que o álbum
fosse liberado. Uma se chamava A menina dos meus sonhos e a outra, Antes
que se vá. Amei ambas, as ouvi até não poder mais. Viraram favoritas assim
que as escutei pela primeira vez.
Não pude deixar de me questionar para quem ele as havia feito. Eram
músicas românticas, com letras bonitas e delicadas.
MatLew nunca tinha assumido relacionamento sério com nenhuma
garota, mas não era surpresa para ninguém que ele era o maior garanhão.
Ficava com muitas garotas, a maioria fãs e famosas do mesmo ramo da
música. Achei que provavelmente alguma delas havia enlaçado seu coração.
Fiquei chateada, pois não estava preparada para vê-lo em um
relacionamento assumido, mesmo que isso fosse a maior idiotice de todas.
Certo dia, saiu no Instagram uma sequência de fotos novas dele.
MatLew estava sem camiseta, vestindo somente uma calça xadrez vermelha
e preta. Ele tinha o corpo bem definido, apesar de ser magro, e várias
tatuagens decoravam sua pele, principalmente no tórax e no braço esquerdo.
Passei os olhos por todas elas e percebi uma nova a qual eu ainda não tinha
visto. Era uma menina segurando uma flor laranja. Achei a obra de arte
mais linda do mundo. Embaixo estava escrito A menina dos meus sonhos.
Desejei, por um momento de pouca sanidade, que eu fosse a menina
dos sonhos dele.
Seus cabelos soltos eram a criação artística mais bela de Deus, dava a
ele um ar inovador e estiloso. Estavam levemente bagunçados e com a parte
da frente jogada para trás, fazendo um topete bem charmoso. O resto dos
fios fazia ondas sutis e caía até os ombros.
Seus olhos pareciam perfurar a foto, tamanha sensualidade e precisão.
Estavam da cor verde mais charmosa e chamativa que eu já havia visto. E
sua boca, curvada em um sorriso pequeno, com lábios não tão grossos, mas
muito bem desenhados.
Perguntei-me se pessoalmente ele seria tão bonito quanto
demonstrava ser nas fotos. Seu charme parecia atravessar a tela do celular e
tocar minha pele. Eu mal conseguia respirar direito quando reparava em
seus detalhes tão intensos e marcantes.
Continuei acompanhando todas as novidades das suas músicas novas,
até que fosse postado em seu Instagram Oficial sobre uma nova turnê que
ele faria. Procurei desesperadamente pela data em que ele estaria no Brasil e
achei. Não foi difícil de encontrar e nem precisei procurar novamente,
Brasil era o último país da lista.
Por um momento, esqueci todos os meus problemas. Fiquei tão feliz
que achei que flutuaria. Comecei a correr pela casa e dar pulinhos com o
celular na mão.
Era a minha oportunidade de conhecer MatLew, mesmo que eu na
plateia e ele no palco. Mesmo que de longe. Era a minha oportunidade.
— O que há com você? — Luiz perguntou com um sorriso grande nos
lábios.
— É o MatLew, ele vai vir para o Brasil! — Festejei.
O sorriso de Luiz se desfez.
— Quando vai ser?
— Em dezembro. Dia 6 de dezembro do ano que vem.
— Você não vai.
— O quê? — Franzi o cenho. — Como assim?
— Você não vai, Marília.
— Por quê?
— Não é óbvio? Você não trabalha, não tem grana para comprar o
ingresso. E eu não vou dar do meu dinheiro para você ver outro homem.
— Luiz, é o meu sonho.
— Não me interessa o seu sonho. Eu deveria ser o único homem da
sua vida. Não vou deixar que corra o risco de conhecê-lo.
— Eu ficaria na plateia, Luiz. Não tem como ele notar alguém que
está tão longe. Você não corre o risco de me perder para ele.
— Tem razão, ele nunca te notaria. Olhe para si mesma.
Parei por um instante, olhando-o nos olhos, com o semblante caído.
— O que quer dizer com isso?
— Que você tem muita sorte em me ter. Ninguém mais neste mundo
faria o mesmo que eu fiz e faço por você. Ninguém te amaria como eu amo.
Ninguém te trataria tão bem. Convenhamos, você nem merece tudo isso, é
só uma menina normalzinha, uma qualquer que teve sorte na vida por me
encontrar.
Levantei as sobrancelhas, surpresa pelo que eu estava ouvindo.
— Luiz, não me interessa o que pensa sobre mim. Eu vou a este show,
você querendo ou não — rebati.
— Como é?
Foi nítido o quanto ele estava ficando nervoso.
— É isso mesmo. E fique sabendo que você que tem sorte em me ter,
não sou qualquer uma e mereço respeito! Se não puder me dar isso, é
melhor que não diga nada.
O rosto de Luiz ficou vermelho e seus punhos se fecharam.
Fiquei de cabeça erguida, não tive medo. Luiz nunca tinha me batido,
não achei que faria isso.
Ele se aproximou, olhando nos meus olhos. Quando estava bem perto,
ordenou:
— Diga que sou melhor do que ele.
— Não vou dizer isso. Você não percebe o quanto esta briga é idiota?
Não faz sentido brigarmos por isso.
— Diga que sou melhor do que ele! — gritou.
Senti as pernas estremecerem.
— Não. Você não é melhor do que ele.
— Eu vou te provar que sou.
— Não tem nada que você faça que me prove que é melhor do que
ele.
— Vou te levar às alturas, meu amor. Vou te fazer implorar por mais
de mim. Vou te fazer esquecer esse imbecil.
Entendi exatamente o que ele estava falando e uma chama de
desespero se acendeu dentro de mim. Eu poderia continuar rebatendo-o,
demonstrar que não estava com medo, mas a verdade é que as lembranças a
que suas palavras me remeteram me encheram de temor.
— Não. Por favor, Luiz. Não faça isso.
Ele me pegou com brusquidão e me jogou no sofá, onde começou a
me beijar com força. Tentei me desvencilhar e pedir que parasse, mas,
novamente, arrancou minhas roupas e tampou minha boca com a mão. Luiz
apertou tanto meus lábios, que me feri por dentro. Tentei inspirar pelo nariz,
desesperada, mas a penetração que veio a seguir foi tão brutal e dolorida,
que represou o ar em meus pulmões. Esqueci-me por um bom tempo que
era necessário respirar para me manter viva.
Pela segunda vez, fui estuprada pelo meu próprio companheiro.
Foi como se eu estivesse vivendo o mesmo episódio novamente. Ele
terminou, levantou-se e me deixou sozinha no cômodo. Comecei a chorar
em silêncio, sentindo uma dor esmagadora. Dor física e sentimental. Depois
de uma hora, ele voltou chorando, pedindo perdão e dizendo que me amava
muito. Disse que tinha tido um dia ruim e agitado no serviço e acabou não
se segurando.
Mas dessa vez não aceitei o pedido de perdão. Pedi que me deixasse
sozinha. Ele obedeceu, com a expressão de que faria qualquer coisa por
mim, tudo o que eu pedisse.
Chorando, eu me perguntei mentalmente o que tinha feito para
merecer aquilo. Perguntei-me como havíamos chegado àquele ponto. O que
havia mudado? O que eu havia deixado passar? Onde errei? Não entendi
como eu não havia percebido que ele era um homem agressivo. Como?
Mesmo tendo convivido anos ao lado do meu pai.
Puni-me por ser tão burra, tão idiota. Como pude acreditar que eu
finalmente poderia viver uma vida boa? Como pude acreditar que Luiz era
um homem diferente? Como não pensei, nem por uma só vez, que ele faria
isso novamente? Acreditei tanto nele, que me recusei a achar que era um
monstro. Mas era, e da pior espécie.
Entrei no banho e passei a esponja com força no corpo, achando que
talvez aquele gesto fosse tirar tudo o que ainda restava de Luiz em mim.
Esfreguei tanto, que minha pele ficou avermelhada. Chorei ainda mais
quando tentei lavar minha parte íntima e nem consegui tocar, tamanha a dor
que eu estava sentindo.
Ainda embaixo da água, tentei refletir sobre o que eu poderia fazer
para me livrar daquela vida péssima que estava levando. Aquele era meu
penúltimo semestre na escola, no final do próximo já me formaria e seria
maior de idade. Depois, estaria livre para arrumar um emprego, teria muitos
meses ainda para juntar dinheiro a fim de ir ao show e depois sumir da vida
de Luiz.
Incomodei-me demais com a ideia de ficar mais de um ano e meio
ainda morando naquela casa, com aquele homem, mas não vi escapatória,
uma vez que não tinha onde ficar e nem dinheiro. Pensei em fazer tudo com
cautela para que meus planos dessem certo no final. Arrumar um emprego
naquele momento seria um erro, pois acabaria me atrapalhando nos estudos
e Luiz perceberia minha ausência em casa.
Passei os próximos meses planejando e estudando tanto quanto pude,
dedicando-me às minhas notas para conseguir me formar com excelência.
Era o mínimo que eu poderia fazer por mim.
Formei-me no final do ano como planejei, com as melhores notas da
sala. Fiquei feliz por isso e me senti competente, mas me arrependi quando
percebi que esse era um motivo para dar tanto orgulho a Luiz, que ele teve
que me presentear tirando minha roupa novamente.
Quando o próximo ano se iniciou, achei prudente fazer alguns
currículos e arrumar um emprego o mais rápido possível, assim eu juntaria
dinheiro suficiente para comprar o ingresso do show e fugir para bem longe
depois. Eu alugaria uma casa temporária e moraria sozinha. Sem pai, sem
Rosana e sem Luiz. Sozinha.
Se não fosse pelas agressões sexuais, Luiz até que seria um bom
marido. Na maioria das vezes era muito solícito comigo, conversava, me
levava para sair e parecia gostar de ouvir minha opinião sobre tudo. O
problema é que ele achava que fazer esse tipo de coisa mudaria o que eu
pensava a seu respeito, mas não mudava, nunca mudou. A partir da segunda
vez que me agrediu sexualmente, percebi que nada de bom que fizesse para
mim seria o suficiente para me fazer esquecer sua agressão. Nada mais
mudaria minha opinião de que ele era o pior marido do mundo. Nada
poderia me tirar da cabeça que eu precisava fugir para bem longe.
Certas coisas podem até ser engolidas, digeridas lentamente, mas, o
que ele tinha feito comigo, eu nunca conseguiria aceitar.
Passei a estudá-lo melhor, observar atitudes que eu não havia
percebido ainda. Notei suas mudanças de humor e aprendi a lidar com elas.
Comecei a mudar minhas atitudes também, mudar de acordo com o humor
dele. Se estava nervoso, eu me retraía e não falava, nem fazia nada que
pudesse intensificar ainda mais a situação. Na maioria das vezes, eu entrava
no quarto e trancava a porta, ficava tão quieta, que ele esquecia que eu
estava ali.
Quando Luiz estava bem, eu fingia que também estava. Só que passei
a ter tanto medo dele, que, até quando “estávamos bem”, eu não conseguia
mais fingir com excelência. Luiz percebeu minha mudança, notou que eu
estava mais distante, que media as palavras, que fingia ter sentimentos por
ele, que não gostava mais de beijá-lo, que não o abraçava mais com
frequência, que não queria mais ficar ao seu lado… Enfim, ele percebeu.
Isso fez com que sua raiva se intensificasse e aumentasse ainda mais seu
nível de possessividade.
Aquele ano foi o pior da minha vida, eu tinha apenas dezoito anos e
ainda estávamos em fevereiro. Demoraria até que eu fizesse dezenove, dia
sete de novembro. Luiz começou a me impedir de sair de casa com a
mesma frequência que eu saía antes, passou a decidir qual roupa eu deveria
usar e a escolher com quem eu deveria conversar ou não. Ele tinha ciúmes
até do padeiro, que tinha sessenta anos, ou do açougueiro, que tinha
quarenta e cinco e era casado, ou do senhor da banca de jornais, que tinha
cinco filhos. Tudo era motivo para ficar nervoso, então me retraí tanto, que
passava dias sem conversar com ninguém. O melhor mesmo era lhe
obedecer, independentemente da situação.
Acabei me perdendo por completo ao lado de Luiz, acabei perdendo
minha essência e o que eu possuía de melhor. Virei o que ele queria que eu
fosse. Eu não era mais posse minha, era posse dele. Um cachorrinho que o
dono leva para passear.
Não demorou até que ele verbalizasse que eu não poderia arrumar um
emprego ou prestar o vestibular. Disse que não era o tipo de mulher que faz
faculdade, era o tipo que fica em casa cuidando do marido. Insistiu que eu
deveria ser uma esposa em tempo integral, já que não precisava mais
estudar.
A verdade era que ele tinha medo de me perder, medo de que eu o
deixasse, porque, no fundo, sabia que eu era muito melhor do que a imagem
que ele tentava plantar na minha mente. Luiz sabia que, se eu tivesse
condições de me libertar daquela vida, eu o deixaria e nunca mais voltaria,
assim como fiz com o meu pai.
Então passou a me prender, a me proibir das coisas, de conversar e de
ir a lugares públicos.
Os episódios de estupro começaram a ser mais constantes. Naquele
ano, fui estuprada dezessete vezes, anotei cada uma delas, sendo uma mais
marcante do que a outra. Passou a não ser mais suficiente para Luiz tampar
minha boca com a mão, ou me segurar com força contra seu corpo. Ele
começou a usar outras ferramentas para me obrigar a ficar quieta, tais como
prender minhas mãos e pernas e calar minha boca com panos ou fitas
adesivas de alta qualidade. Às vezes vendava meus olhos, às vezes fazia
olhando para mim. Cada vez era uma surpresa e as coisas foram se
intensificando. Ele parecia gostar do que estava fazendo, nem pedia mais
desculpas.
Diferente de como acontecia em relação ao meu pai, passei a odiá-lo
cada vez mais, apesar do medo. Meu coração estava pesando mil toneladas
de raiva.
Mesmo sabendo que isso poderia me prejudicar com Luiz, planejei
começar a sair para procurar emprego. Pensei que conseguiria conciliar os
horários e trabalhar enquanto ele estivesse fora, também trabalhando.
Assim, Luiz nunca saberia sobre minhas mentiras.
Não demorei a ser contratada. Minha primeira vaga de emprego foi
como vendedora de uma loja simples de roupas. Para mim estava ótimo,
perfeito.
Luiz saía para trabalhar primeiro, depois eu ia, e, como meu emprego
era mais perto de casa, chegava antes dele e ainda tinha tempo para deixar
tudo pronto antes que ele voltasse. O plano parecia perfeito, tive a péssima
impressão de que nunca daria errado, mas deu.
Eu me empenhei na loja pela qual fui contratada por dois meses.
Fiquei extremamente feliz quando recebi meu segundo salário. Estava
juntando e guardando em uma conta, Luiz não sabia da existência dela.
Naquele mesmo dia, quando cheguei em casa, ele estava sentado no
sofá me esperando. Consegui ver de longe o quanto estava nervoso.
— Onde você estava? — perguntou.
— Na casa da Cecília — respondi o mais rápido que pude, para não
demonstrar dúvida.
— Anda mentindo para mim agora, Marília?
— Não entendi. — Franzi o cenho demonstrando que não sabia do
que ele estava falando.
Por dentro, meu corpo inteiro tremia.
— Eu sei que você não estava na Cecília. Vou te dar a oportunidade
de falar a verdade. Onde estava?
— Eu… Bem, eu…
Fiquei confusa, não sabia se ele realmente tinha conhecimento de
onde eu estava. Poderia estar só me testando. Por isso, pensei em mentir
mais uma vez, mas Luiz me interrompeu.
— Baixei um aplicativo no meu celular onde consigo ver em tempo
real onde você está. Eu não tinha usado ainda porque confiei que você não
mentiria para mim. Mas, quando cheguei e vi que não estava em casa,
resolvi me certificar de seu paradeiro. Sabe, talvez, se você tivesse me dito
a verdade, eu não ficaria tão irritado quanto estou agora. — Ele se levantou
e andou vagarosamente em minha direção. Fiquei parada como uma estátua
amedrontada. Quando próximo o suficiente, sua mão rígida segurou meu
pescoço e ele gritou: — Onde você estava, Marília?
Eu travei. Estava com tanto medo que não consegui dizer nada.
Sem paciência nenhuma, Luiz me pegou no colo e me colocou dentro
do carro. Deu partida e seguiu o caminho todo em silêncio, até chegar à loja
na qual eu trabalhava.
— O que estava fazendo aqui?
Tive que falar a verdade.
Voltamos para casa em meio a um silêncio mortal. Minha barriga doía
e minhas mãos tremiam. Eu sabia que não ficaria tudo bem.
Quando chegamos em casa, Luiz me espancou pela primeira vez.
Fiquei jogada no chão por horas, sangrando e sentindo dificuldade
para respirar. Depois, ele pediu desculpas, mas fez questão de enfatizar que
fez aquilo por minha causa. Eu era a culpada por ter apanhado. Porque
menti e boas esposas não mentem. Ele não teve escolha a não ser me
corrigir.
Obviamente, perdi o emprego.
A única coisa que Luiz não sabia era sobre os R$ 2.500,00 que
estavam na minha conta. Ele jurava ter descoberto antes mesmo de eu ter
completado uma semana de trabalho. Recusou-se a acreditar que tinha sido
enganado por mais tempo do que isso.
Assim como meu pai, passou um cadeado na porta principal da casa.
Quando saía para trabalhar, trancava-me para não correr o risco de que eu
fugisse.
Senti-me perdida, totalmente desmotivada com a vida e, por mais que
quisesse muito ver meu cantor favorito, perdi toda a esperança após aquele
episódio. Novamente, não conseguiria conhecer MatLew, e essa foi a maior
decepção da minha vida.
No decorrer dos próximos meses, não saí da linha, obedeci fielmente
ao Luiz. Preferi fazer isso a apanhar.
Fiz dezenove anos um mês antes do show. Luiz fez um bolo para
cantarmos parabéns e me deu um par de sapatilhas lindas de presente.
Depois me estuprou como recompensa por ter me dado um presente tão
lindo.
À noite, minha amiga Cecília foi me visitar. Luiz estava tomando
banho. Convidei-a para entrar e ficamos na sala conversando, sentadas no
sofá.
— Marília. — Ela pegou minhas mãos e me olhou nos olhos. — Não
vou ficar muito tempo, só quis vir para te dar um abraço e desejar feliz
aniversário.
— Muito obrigada, Ceci. Você é uma grande amiga.
— Assim como você é. Quero que saiba que eu te amo.
— Eu também te amo, de verdade. Obrigada por todo apoio que tem
me dado.
— Comprei um presente para você — sussurrou e sorriu.
— O que comprou? — Sorri também, animada. — Sabe que não
precisava.
— Na verdade, precisava, sim. Você é muito especial para mim, por
isso quis comprar um presente tão especial quanto. Mas prometa que vai
esconder bem escondido para que Luiz não veja.
— O que você comprou?
Ela tirou um envelope do bolso traseiro da calça e me entregou.
Abri com movimentos cuidadosos e me deparei com um ingresso para
o show a que eu tanto queria ir.
— É mentira — eu disse, sussurrando.
— É verdade — ela esclareceu. — Você merece ir! Escuto você
falando desse cantor há anos, acho justo que realize este sonho.
— Mas e depois? E Luiz? Ele vai descobrir.
— Marília, depois não importa. Você precisa ir.
Pensei comigo mesma por um instante e disse:
— Você tem razão. O que vai acontecer depois não importa, o
importante é ver MatLew.
Guardei o ingresso como se fosse minha própria vida, tão escondido
que ninguém jamais conseguiria achar.
No dia do show, acordei cedo, arrumei a casa e deixei a comida
pronta.
Eu não sabia o que seria de mim, não sabia para onde ir após o show.
A única coisa que eu tinha certeza absoluta era de que nunca voltaria para
aquela casa. Luiz jamais me veria novamente.
Tomei um banho e me arrumei o máximo que pude, até que eu me
convencesse de que estava bonita o suficiente para ir ao show do MatLew.
Depois, preparei uma mochila com os itens mais necessários para a minha
sobrevivência fora de casa.
Peguei um martelo e, com toda a minha força, bati no cadeado da
porta, quebrando-o. Fiz o mesmo com a maçaneta, que caiu no chão em
seguida. A porta cedeu. Fugi sem olhar para trás, torcendo para que,
daquele dia em diante, eu nunca mais sofresse os mesmos males.
Pela terceira vez em toda a minha carreira, cheguei ao Brasil. Eu
amava o país, possuía uma energia incrível e inigualável. Os fãs eram muito
presentes em todos os meus trabalhos nas redes sociais e demonstravam
extrema adoração por mim.
O tempo estava quente, o sol soltava rajadas por toda parte.
Saí do aeroporto e entrei direto no meu carro com motorista
particular. Muitos fãs já me aguardavam no hotel em que eu ficaria
hospedado por sete dias.
Minha passagem pelo Brasil anteriormente fora bem rápida, mas,
dessa vez, decidi aproveitar e passar mais tempo. Minha equipe marcou
shows em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Eu ficaria uma semana em
cada um dos três estados, totalizando vinte e um dias no país.
A entrada do hotel estava lotada, praticamente bloqueada. Havia
muita gritaria de fãs esperando que eu aparecesse. Para acalmá-los, quando
já estava no quarto, apareci pela janela e acenei. Houve ainda mais gritaria e
festejo.
Estava cansado, portanto, após fazer algumas poses, fechei a janela e
caí na cama, pensando em Lia. Doía meu coração saber que o Brasil era o
último país da turnê e eu ainda não a havia achado. E doía muito mais
quando eu me lembrava de que não a via fazia praticamente dois anos.
A minha razão brigava diariamente com o meu lado sentimental.
Dizia que ela não existia e que eu deveria parar de ser tão idiota. Mas, ainda
dentro de mim, havia uma pontada de esperança que dizia para que eu
continuasse procurando.
No último sonho que tive com ela, Lia pedira que eu a procurasse.
Havia muita chance de eu ter imaginado toda aquela conversa, mas não
queria acreditar nisso. Queria encontrá-la com todo anseio do meu coração.
Se um dia isso acontecesse, eu a faria a mulher mais feliz do mundo.
Antes de iniciar a turnê, meses e meses atrás, pensei em algo. Falei
com meu produtor e agentes, todos acharam uma boa ideia. Era algo que me
manteria mais próximo dos fãs e chamaria a atenção de todos. Algo didático
e descontraído. Meet and Greet era o nome. A única coisa ruim era que os
ingressos eram limitados a quinhentas pessoas. Infelizmente eu não poderia
abrir vagas para todo mundo, isso me custaria dias e mais dias de
disposição.
O que fiz foi torcer para que Lia fosse uma das quinhentas pessoas a
aparecer.
Também pensei em colocar uma pergunta; assim, quando a pessoa
fosse comprar o ingresso, teria que responder a ela. Contratei pessoas
específicas somente para ler cada uma das respostas, à procura da que eu
queria.
Eu sabia que, de algum lugar do mundo, Lia responderia exatamente
o que eu esperava que respondesse. Nos mesmos detalhes que um dia ela
havia me dito em um sonho.
Fiz esse processo em cada um dos países pelos quais passei, em cada
um dos duzentos e noventa e sete shows da turnê. Mas agora, estando no
último, eu me perguntava se havia feito o suficiente.
Lia poderia morar em um lugarzinho distante do local dos shows, ou
poderia não ter dinheiro para comprar o ingresso, ou até poderia não ser
minha fã. Então, eu me lembrei da quantidade de vezes que ela deixou bem
claro o quanto amava minhas músicas e tive certeza, dentro do meu
coração, de que também gostava de mim.
Cheguei a um momento em que não me importava com mais nada,
nem com o país em que ela poderia estar, nem com a cidade, o status
financeiro, a língua… O que me importava mesmo era encontrá-la. Depois
disso, eu tentaria me enquadrar à vida dela, ao país em que nascera, à
cidade em que morava e à língua em que se comunicava. O status
financeiro era o de menos, eu poderia cuidar disso.
Pensei comigo mesmo que, se a turnê acabasse e eu não a
encontrasse, teria que bolar outro plano ainda maior.
Respirei fundo e descansei. Preparei-me mentalmente para mais um
show à procura de Lia.
~Dia 13 de dezembro~
Quando passei pela porta, reconheci meu pai. Ele estava segurando
um buquê de flores laranja. Abri o maior sorriso que pude fazer e andei em
sua direção a passos largos para o abraçar.
— Pai! — exclamei, aliviado por vê-lo.
— Filho, que saudade eu estava!
— Eu também, pai, estava com muita saudade.
— Desculpe não ter vindo antes.
— Eu entendo. — Apertei-o ainda mais contra mim. — Fico feliz que
tenha conseguido vir, mesmo com tanto trabalho para fazer.
— Vim conhecer a sua garota. — Ele me soltou e sorriu.
Eu estava com muita saudade do meu pai. Não era sempre que ele
podia ficar comigo enquanto eu estava em turnê, mas me alcançava sempre
que possível, independente de em qual país eu estivesse. Nosso maior
contato era por telefone, mas ele fazia parecer que estava ao meu lado
fisicamente sempre, tamanha nossa intimidade.
Ele era meu maior amigo, meu companheiro, apesar da distância, e o
pai mais amoroso que conheci na vida. E não era assim só comigo, era com
minha mãe também. Estava sempre beijando-a e comprando presentes para
compensá-la pelo tempo distante. Ele costumava dizer que cada minuto
longe dela era perdido, portanto, quando estava perto, fazia todo o
necessário para mostrar seu amor e afeto.
— Acredita nisso, pai? Minha garota existe de verdade!
Ele soltou uma risada. Seus cabelos já estavam em grande parte
grisalhos, mas tinha um rosto maduro e bonito, bastante elegante. Havia um
charme diferente nele, era um verdadeiro galanteador. Seu sorriso era reto,
branco, e seus olhos, profundos e verdes, assim como os meus.
— Isso é ótimo, filho, é ótimo mesmo. Ela está bem? — Apontou
para o quarto onde Marília estava acomodada.
— Sim, está melhorando. Foi só um susto. Infelizmente desmaiou e
bateu com a cabeça no chão, mas logo ficará bem.
— Certo. Depois vou conversar com o médico responsável pelo caso
dela, vou dar uma olhada nos exames.
Meu pai também era médico, médico-cirurgião na verdade, mas
evoluiu para um cientista com o passar dos anos. Passou a não fazer mais
cirurgias em pessoas, agora seu foco era descobrir curas para doenças
atuais. Seu grande sonho era encontrar a cura para o câncer. Havia anos
dizia que estava chegando perto. Eu torcia muito por ele, acreditava em seu
potencial.
— Está bem. Te explico aonde ir depois. Mas me parece que hoje ele
só vai chegar mais tarde, à noite.
— Ok, sem problemas.
— Já passou no hotel? Já viu a mamãe?
— Sim, passei lá antes de vir para cá.
— E essa bolsa? — perguntei indicando uma bolsa masculina que ele
carregava em seu ombro direito.
— É um presente.
— Sério?
— Sim. Vamos, me leve até o quarto, lá eu mostro o que trouxe.
Fiz o que ele pediu, guiando-o até o quarto onde minha garota estava
e o apresentei a ela.
— Marília, este é meu pai, Robin. — Sorri.
Ela se ajeitou na cama e ergueu as sobrancelhas, surpresa. Então,
abriu um sorriso convidativo e disse:
— Olá, Sr. Robin! Que surpresa! Não sabia que chegaria agora.
— Desculpe — ele disse, erguendo a mão e segurando a dela. — Com
toda essa correria, acabei me esquecendo de avisar. Mas é um prazer
enorme te conhecer!
— O prazer é todo meu.
— Desculpe pela minha ausência todos esses dias, estive muito
ocupado com o meu trabalho, mas vim assim que pude.
— Está tudo bem, entendo perfeitamente.
— Estas flores são para você. — Ele as entregou.
Marília se animou ainda mais, recebendo o buquê e cheirando
brevemente.
— Nossa, são lindas! Muito obrigada!
— Que bom que gostou. Fiquei sabendo que essa é a sua cor favorita.
— Sim, é, sim. Obrigada por isso, realmente amei.
— Estou feliz em te conhecer, você é ainda mais bonita do que
imaginei. Matthew falou tanto a seu respeito!
— Obrigada — ela agradeceu novamente, soltando uma risada curta e
tímida. — Eu não queria conhecê-lo nessas condições, estou toda
descabelada.
— Imagine! Eu nunca vi uma cor assim de cabelo, é muito bonito.
Achei uma gracinha quando percebi as bochechas de Marília
enrubescendo.
Eu nunca tinha apresentado nenhuma garota aos meus pais, mas tive
muito orgulho de estar apresentando Marília, especificamente. Seria
impossível não gostar dela, impossível não achá-la tão linda.
— Trouxe algo para vocês. Achei que talvez pudesse ajudar em
alguma coisa — meu pai disse, tirando a bolsa do ombro e a colocando na
mesa mais próxima.
— O que é? — perguntei.
— Não sei quando você vai ter alta, Marília, mas sei que ficar em
hospitais é um tédio. Então pensei em trazer alguns cadernos de Matthew
para vocês lerem e passarem o tempo.
— Você quer dizer… São os cadernos que estou pensando? — ela
perguntou, apontando para a bolsa com a boca entreaberta, um sorriso
brotando nos lábios.
— Exatamente.
— Não acredito! — exclamei. Eu não tinha pedido os cadernos para
ele. Levá-los foi cem por cento ideia de meu pai. Adorei o presente. — Meu
amor, você vai poder conhecer alguns dos meus sonhos.
— Que legal! — Ela sorriu, animada. — Que presente maravilhoso!
— Imaginei que ficariam felizes.
— Obrigado, pai.
Não abri a bolsa, eu a deixei pousada em cima da mesa enquanto
conversamos por mais de uma hora. Amei ver a interação de meu pai com
Marília, eles se deram muito bem. Também aproveitei a oportunidade para
matar a saudade e perguntar sobre as novidades que a distância acarretou.
Mas o foco principal foi a comunicação de meu pai com Marília. Eles
papeavam sem pausas e se conheciam mais a cada palavra.
— Sempre achei que minha história com minha esposa fosse bonita,
mas, quando penso na de vocês, fico extremamente comovido. Quem diria,
não é? Logo no Brasil.
— Também imaginei que a encontraria em qualquer outro lugar,
menos aqui — comentei.
— Na verdade, quando Matthew me contou sobre você, não achei que
você poderia existir de verdade.
— Eu sei. — Marília soltou uma risada gentil. — Conheço essa
história. Anne já me contou.
— Mas mesmo assim apoiei meu filho na busca. Eu o encorajei a
continuar, porque sabia que isso lhe daria forças. Antes de pousar aqui no
Brasil, Mat me ligou tão chateado, contou que a turnê estava acabando e
que não a tinha encontrado…
— Meu pai disse para eu não perder as esperanças, porque a turnê
ainda não tinha chegado ao fim. E, mesmo que chegasse, me ajudaria a
pensar em outra maneira de te encontrar — expliquei.
— Obrigada, Sr. Robin. É importante para mim saber que Matthew
teve alguém ao lado dele encorajando-o com a busca.
— Era o mínimo que eu poderia fazer pelo meu filho. Estou tão
realizado quanto ele por saber que você existe de verdade. Só me pergunto
como, como Mat conseguiu sonhar com você sem ter te conhecido antes?
— Também não sabemos.
— Se ao menos Marília já tivesse viajado para o Canadá antes, talvez
pudéssemos ter nos encontrado lá. Mas ela nunca foi, então temos certeza
de que não nos encontramos antes — disse e dei de ombros.
— Mas você já veio ao Brasil outras vezes — meu pai acrescentou.
— Eu sei, porém, em nenhuma das outras duas vezes que vim, ela
esteve presente em meus shows. E, você se lembra? Minha estada aqui foi
muito rápida, nem passeamos, fiz os shows e fomos embora correndo para a
Argentina.
— Você não esteve no Brasil somente aquelas duas vezes e esta de
agora — meu pai disse, com um meio sorriso nos lábios.
Lancei-lhe um olhar confuso, com o cenho levemente franzido.
— Como assim? — perguntei.
— Viemos uma vez quando você era pequeno, tinha somente quatro
anos na época. Ficamos quase um mês aqui, pois eu estava de férias do
serviço e sua mãe queria muito conhecer o Brasil. Passeamos por vários
estados, mas nossa maior estada foi no litoral.
Eu e Marília nos entreolhamos e acredito que pensamos na mesma
coisa.
— Vocês chegaram a ir para São Paulo? — Marília quis saber,
demonstrando interesse pela conversa e pela resposta que viria a seguir.
Ela pareceu ter tirado aquelas palavras de minha boca. Era
exatamente o que eu estava prestes a perguntar no mesmo momento.
— Sim. Ficamos poucos dias em São Paulo, sua mãe queria conhecer
a rua Oscar Freire e a Paulista. Sabe como ela é para fazer compras.
— Sei… — Balancei a cabeça, pensativo. — Eu não sabia sobre essa
viagem.
— Você era muito pequeno, filho. É normal não se lembrar.
Batidas à porta me despertaram de pensamentos longínquos,
carregados de questionamentos.
— Com licença — a enfermeira pediu. — Desculpe incomodar, mas o
horário de visitas acabou.
— Oh, claro! — Meu pai se ajeitou. — O Dr. Marcos já está aqui no
hospital?
— Sim, senhor, ele acabou de chegar.
— Está bem, obrigado. — Meu pai me abraçou e beijou a mão de
Marília, despedindo-se dela também. — Vou atrás do Dr. Marcos — avisou
ele. — Só para ver se está tudo bem mesmo com você. Depois, vou embora,
preciso descansar após tantas horas de voo. Mas, se amanhã você não tiver
alta, virei visitá-la novamente.
— Muito obrigada, Sr. Robin. Amei a visita.
— Eu também, querida. Filho, na bolsa tem algumas fotos da viagem
que fizemos para cá pela primeira vez. Talvez ajude com alguma coisa.
— Obrigado, pai. Até amanhã.
Eu e Marília nos olhamos quando finalmente sozinhos. Aproximei-me
e peguei sua mão. Ela carregava um sorrisinho sutil nos lábios e olhos
brilhantes.
— Você acha que… — começou.
— Não sei — respondi. — De qualquer forma, pelo que meu pai
disse, eu tinha só quatro anos. Isso não explicaria o motivo de eu ter
começado a sonhar com você aos dez.
— Tem razão. Mas vamos ver as fotos que seu pai trouxe mesmo
assim, pode ser que descubramos alguma coisa. E, ainda que nada seja
desvendado, quero ver suas fotos de quando pequeno, saber se era tão
bonito quanto é hoje.
Sorri e aproximei meu rosto, onde sua outra mão tocou.
— Olha elas aí — Lia disse. — Suas covinhas voltaram.
Às vezes eu me esquecia do quanto Marília gostava das minhas
covinhas. Nas últimas horas, com todos os acontecimentos, acabei não
sorrindo tanto e ela havia percebido isso.
Ampliei o sorriso para que minha garota pudesse desfrutar de
covinhas ainda mais fundas. Seus dedos me acariciaram enquanto nossos
olhos se fundiam.
— Será que agora teremos um tempo para nós? — perguntei.
— Acho que sim. Não falta ninguém para me visitar.
— Que ótimo — sussurrei, aproximando-me ainda mais para que
nossos lábios se tocassem.
Mas, antes que o toque acontecesse, ouvi batidas à porta.
Respirei fundo e Marília começou a rir.
— Ficar internada é assim mesmo — ela disse.
Uma enfermeira entrou e fez todos os procedimentos necessários.
Administrou medicação, mediu a temperatura, aferiu pressão e ainda
perguntou como ela estava se sentindo. Terminou dizendo que o Dr. Marcos
assinou sua alta hospitalar para o dia seguinte, pois os exames estavam em
ordem e os pontos que foram feitos no ferimento da cabeça cairiam
sozinhos. Ensinou procedimento para lavagem do machucado e depois se
retirou, desejando-nos boa noite.
— Achei que o Dr. Marcos viria me ver hoje — Marília comentou. —
Depois de tudo o que aconteceu, ele ainda não apareceu aqui.
— Deve estar envergonhado — concluí. — Afinal, se ele não tivesse
ligado para o filho, nada disso teria acontecido.
— Você tem razão…
— Mas fique tranquila, meu pai foi conversar com ele e deu uma
olhada em seus exames. Se a enfermeira disse que está tudo bem, então não
precisamos nos preocupar. Felizmente, foi só um susto.
— Graças a Deus, foi só um susto. Agora, pegue um de seus cadernos
e se deite aqui comigo.
Fiz o que ela pediu e me deitei ao seu lado. Ficamos espremidos no
início, mas depois nos mexemos e nos moldamos um ao outro. Marília me
abraçou e deitou a cabeça em cima do meu peito, enquanto eu segurava o
caderno aberto no alto. Ela passou o dedo pela página e sorriu lindamente.
— Sua letra é bonita — elogiou.
— Ah, não brinca! É o maior garrancho.
— Claro que não, achei bem fofa.
— Você me ama mesmo — concluí.
— Claro que amo.
— Está pronta para ouvir um dos meus sonhos?
— Claro, prontíssima.
— Vou escolher um aleatório, ok?
Ela balançou a cabeça positivamente e olhou para a folha aberta do
caderno a fim de acompanhar minha leitura.
Comecei a ler:
“Encontrei-me com Lia no nosso jardim. Acho que já posso chamar
de nosso, porque nos encontramos nele cinco anos seguidos e conhecemos
cada canto daquele lugar. É incrível como não sei onde fica, mas me sinto
tão familiarizado com ele, que posso chamar de meu, ou nosso, quando se
trata de mim e Lia.
Ela veio correndo em minha direção assim que me viu, estava tão
linda como em todas as outras vezes. Talvez, neste sonho eu a tenha achado
mais bonita ainda, mas isso porque tenho estado tão apaixonado, que
sempre acho que sua beleza me surpreende.
Sei que já descrevi isso muitas outras vezes, mas é essencial destacar
aqui o quanto seu cabelo estava bonito no momento em que ela corria em
minha direção. Mesmo nunca o tendo tocado, posso imaginar o quanto é
sedoso e pesado. Seus movimentos me cativaram muito, principalmente
porque o sol batia nas costas dela, deixando o vermelho dos fios ainda mais
vibrante. Fico me perguntando como uma cor como aquela pode ser
natural, mas Lia garante que é e eu acredito nela. Na verdade, tudo nela
me parece ser diferente, o que, infelizmente, me faz pensar que a garota não
é real como eu gostaria.
Seu sorriso de orelha a orelha me convence do quanto sou sortudo
por tê-la, mesmo que só nos sonhos. Penso no quanto o resto da população
mundial deve ser infeliz por não conhecer alguém como ela. Isso me
convence de que tê-la em meus sonhos é melhor do que não a ter de forma
alguma.
Foi exatamente o que eu disse para ela neste sonho depois que nos
sentamos na grama. Achei a expressão em seu rosto bem bonitinha.
— As pessoas não sofrem por algo que não sabem que existe,
Matthew. É como aquele ditado diz: ‘O que os olhos não veem, o coração
não sente’.
— Mas sente o vazio de algo que nunca viu. Já sentiu isso? Falta de
algo que nunca conheceu?
Lia refletiu sobre minhas palavras.
— Bom, pensando bem… Acho que você pode ter razão. Não sei se já
te contei isso, mas, quando estou triste, gosto de comer sorvetes de sabores
diferentes. Comer do mesmo sabor é como comer algo que já conheço e,
ainda assim, continuar triste. Então, gosto de experimentar sabores
diferentes e descobrir que, em meio à tristeza, sempre há algo novo que
pode nos alegrar. Certa vez, senti essa necessidade de comer um de sabor
novo, mas já foram tantos que duvidei existir algum inédito para mim.
Nesse momento, senti falta de algo que nunca conheci, algo que eu nem
sabia se existia.
Soltei uma risada com a comparação que ela fez.
— Está vendo? Acho que entende agora do que eu estou falando. Eu
sentiria sua falta sem nem ao menos ter te conhecido. É o que o resto da
população mundial sente neste exato momento por não a ter por perto.
Você é o tipo de pessoa que o mundo precisa ter, o tipo de pessoa que faz a
diferença só com um olhar.
Lia me olhou em silêncio por um momento. Seu olho azul estava
belíssimo, e o verde estava claro, mas não amarelo. Uma espécie de verde-
água bem clarinho.
— O que meu olhar está mudando em você agora, Matthew?
— Tudo. Seu olhar muda tudo.
— Precisa ser mais específico.
— Bem, seu olhar me muda de dentro para fora. A começar pela
minha alma, que é tão solitária sem você. Quando me olha, é como se eu
sentisse um abraço interno, como se almas gêmeas fossem mesmo algo
real. Sinto-me completo por dentro, tão preenchido quanto um copo de
água transbordando. Seu olhar me faz mudar a percepção sobre a vida, ela
se torna muito mais bonita do que realmente é, e me faz ter vontade de
viver para sempre. Meu coração muda também, parece que se infla de
alegria. Você não precisa nem abrir a boca, não precisa me dizer nada, fico
feliz somente em ver a maneira como olha para mim. Seus olhos trazem
esperança de dias melhores, trazem a comprovação de que o amor é real,
trazem cores que aquecem meu espírito e vibrações para meu corpo. Sabe,
sou privilegiado por te ter. Ninguém neste mundo deve ser mais feliz do que
eu neste momento.
O olho esquerdo de Lia ficou amarelo gradativamente e eu soube o
quanto minhas palavras lhe fizeram bem.
— Se meus olhos transmitem tudo isso a você, então não preciso dizer
o quanto amo estar ao seu lado? Nem preciso tentar te abraçar, porque já
está quente por dentro?
— Você só precisa existir, é só o que precisa fazer. E me olhar bem
desse jeito. Enquanto não posso te tocar, seu olhar me basta.
— Estou me sentindo uma superpoderosa. — Ela deu risada e suas
bochechas ficaram levemente rosadas. — Será que consigo dizer mais
algumas coisas só com os olhos?
— O que quer dizer?
— Espere um pouco.
Neste momento, ela ficou quieta, fixando os olhos nos meus. Em seu
rosto, uma careta como se estivesse fazendo força para transferir os
pensamentos diretamente para mim. Comecei a rir e ela perdeu o foco.
— Sabe, você me atrapalhou. Não pode fazer isso quando estou no
meio de um trabalho superpoderoso de telepatia usando os olhos.
— Desculpe — mas continuei rindo.
Ela tentou não rir, mas percebi que estava se esforçando muito para
não cair na gargalhada comigo. De repente, fiz silêncio e a olhei com
seriedade nos olhos. Lia ergueu as sobrancelhas, espantada com minha
mudança de expressão.
— O que foi? — perguntou.
— Acho que aconteceu alguma coisa.
— Que coisa?
— Parece que a telepatia funcionou, estou recebendo umas
mensagens aqui.
— Ah, para de ser idiota!
— É sério! Olhe mais para mim, não pare de olhar.
Ela não desviou os olhos nem por um segundo. Franziu os lábios,
tentando não rir.
— É verdade isso que está me dizendo? — perguntei, com os olhos
arregalados.
Ela ficou imóvel, confusa. Talvez se perguntando o que deveria me
responder.
— Bem, é a mais pura verdade — disse, por fim, demonstrando
confiança. — Está vendo, tenho superpoderes.
— Eu não sabia que você gostava de roubar as coisas… Como é o
nome disso? Cleptomania?
Lia caiu na risada, com as mãos na barriga.
— Consegue guardar esse segredo? Eu disse por telepatia justamente
porque não queria que ninguém soubesse.
Fiz uma expressão de choque.
— Você realmente é cleptomaníaca?
— Roubei uma vez só. Não deve ser algo tão grave assim.
Fiquei realmente chocado, não imaginei que uma criatura tão
bonitinha e pequenina como ela já tinha roubado alguma coisa de alguém.
— O que você roubou?
— Quer que eu conte por telepatia, ou que eu fale de verdade?
— Vai demandar menos esforço se você falar.
Fiquei realmente curioso. No começo, foi tudo uma brincadeira, a
telepatia não existiu realmente, é claro, falei aquilo só para brincar com
ela. Mas, quando me disse que já tinha roubado algo de verdade, eu quis
demonstrar que podia confiar em mim para contar seu segredo.
— Está bem… — ela disse, mas, quando estava prestes a dizer o que
de fato havia roubado, ouvimos sua mãe chamando-a. Ela se levantou
rapidamente e curvou os lábios para baixo. — Nosso tempo acabou, tenho
que ir.
Levantei-me também e a assisti fazendo os movimentos com as mãos.
Os movimentos que faziam meu coração crescer todas as vezes.
— Nos veremos outra vez — prometeu.
Retribuí sua fala em língua de sinais, então ela sorriu e se virou
correndo.
Eu a observei se afastando de mim e então, sem que eu pudesse
prever, Lia se virou e gritou:
— Eu roubei seu coração.
Soltei uma risada, aliviado e apaixonado ao mesmo tempo.
— Faça o favor de nunca devolver — gritei de volta.
Foi um dos meus sonhos favoritos. Ela tinha mesmo roubado meu
coração, mas já fazia tanto tempo que eu nem tinha me tocado de que
agora é mais dela do que meu.”
Quando olhei para Marília, ela estava com lágrima nos olhos.
— Nunca ouvi algo tão lindo — ela disse. — Este sonho pareceu real
até para mim.
Limpei seus olhos, tirando as lágrimas que os marejavam, e sorri.
— Nunca te perguntei, é verdade isso que disse sobre o sorvete?
— Sim. — Ela deu uma risada gostosa entre lágrimas. — É verdade.
Inclusive é verdade que já experimentei tantos que acho que não existem
outros sabores novos.
— Como está se sentindo agora?
— Como assim?
— Está feliz ou triste?
— Ao seu lado estou sempre feliz.
— Mas e aqui? Aqui dentro, como está? — Apontei para o coração
dela. Marília me olhou por um instante, em silêncio, talvez pensando na
melhor maneira de dizer que seu coração estava destruído em mil
pedacinhos. — Você não precisa se sentir mal em me dizer a verdade. Tudo
bem estar triste, ainda mais em suas condições, depois de ter passado por
tudo o que passou.
— Estou feliz porque tenho você, mas carrego uma tristeza sem fim
dentro de mim por tudo o que passei desde a minha infância. Meu coração
está quebrado em mil pedacinhos.
Ela parecia ter lido minha mente, pois disse as mesmas palavras que
pensei sobre seu coração.
— Posso me contentar em ser a cola que vai juntar todos esses
pedacinhos e uni-los novamente.
— É por isso que me sinto feliz por ter você.
— Quero te fazer outra pergunta.
— Fale.
— Você sabe falar em língua de sinais?
— Ah, nossa, eu ia falar sobre isso agora mesmo com você. Quando
leu, fiquei com vontade de perguntar. Qual sinal fazíamos? Pode repetir
para mim?
— Claro — eu disse, depois fiz o sinal com as mãos. — Significa que
nos veremos outra vez. Fazíamos sempre nos sonhos. Você quem me
ensinou.
— Eu sei o que significa. — Ela soltou uma risadinha. — Minha mãe
era tradutora antes de falecer. Falava muito bem em inglês e também em
língua de sinais. Não sei quase nada, mas lembro que ela me ensinou
algumas coisas quando eu era pequena e não me esqueci até hoje.
— Isso é bem curioso.
— Muito — ela concordou.
— Quer que eu leia outro sonho?
— Com certeza. Pode escolher aleatoriamente.
— Está bem. — Abri em outra página do caderno e comecei a ler.
“Estava um dia muito bonito, diferente de ontem. O sol brilhava
lindamente sobre nós e Lia me convidou para deitar-me ao seu lado. A
grama estava alta e praticamente nos cobriu quando nos esticamos sobre
ela. Mesmo assim, consegui ver o borrão de várias flores laranja nos
rodeando. Inclusive, uma estava presa na orelha de Lia. Estava tão linda
daquele jeito, que demorei a tirar os olhos de cima dela.
Aos quinze anos, ela se tornou a menina mais bonita que já vi em
toda a minha vida. Não me parece precoce querer tanto beijá-la. E é só o
que penso o tempo todo, sonhando ou não. Eu queria muito poder beijá-la.
Estávamos tão perto que reparei em cada linha que desenhava seus
lábios grossos e avermelhados. Só pela cor, imaginei que teria gosto de
cereja, mas sinceramente eu não me importaria se tivesse gosto de maçã
verde, assim como o cheiro de seus cabelos.
Acho que é normal para um garoto da minha idade ficar imaginando
esse tipo de coisa. Nunca quis beijá-la tanto como neste sonho.
— O que quer fazer hoje? — Lia perguntou.
— Beijar você — respondi, com toda a sinceridade do meu coração.
— Também quero beijar você.
Olhei-a com mais entusiasmo dessa vez. Fiquei feliz com suas
palavras. Como já conversamos sobre isso antes, achei bacana não ter que
reprimir meus desejos e sentimentos por ela. Sempre soube que havia
reciprocidade entre nós.
— Tive uma ideia — ela disse, tirando a flor da orelha e beijando-a.
Depois a pousou no chão gramado. — Pegue e a beije por cima.
Fiz o que ela pediu. Fechei os olhos enquanto também depositava um
beijo na flor, imaginando os lábios de Lia no lugar.
Não foi a mesma coisa, mas valeu a intenção.
— Fico imaginando como vai ser quando acontecer de verdade —
comentei.
Ela soltou uma risada.
— Espero que aconteça mesmo.
Gostei desse sonho porque me pareceu levar horas para terminar e
sempre gostei dessa sensação de conseguir ficar mais tempo ao lado dela.
Admiramos as nuvens depois disso, porque meu desejo por Lia era
tanto, que achei melhor sugerir que olhássemos para o céu. Foi uma
estratégia para ela não perceber que eu estava loucamente desejando
beijá-la. E para desviar os olhos, a fim de conseguir respirar um pouco.
Ficamos discutindo o formato das nuvens e até imaginamos histórias
entre elas. Lia começou a fazer umas vozes engraçadas e disse que preferia
fazer isso a ler, mesmo que fossem histórias em quadrinhos.
Eu também não gosto muito de ler, então acho que combinamos
nisso.
Falamos sobre como é entediante passar tantas horas debruçados
sobre uma única história. E concordamos que conversar é muito melhor.
— Uma história como a nossa não poderia nunca virar um livro —
ela comentou.
— Por que não?
— Imagine como seria chato resumi-la em algumas páginas? Seria
impossível relatar tudo em algumas horas de leitura.
— Tem razão. Histórias como a nossa precisam ser vividas.
— Vividas intensamente! Faz cinco anos que vivo nossa história, e
quero que nunca acabe. Eu a viveria para o resto da minha vida.
— Eu também. E se a morte realmente for um sono profundo, escolho
sonhar com você mesmo depois que eu não tiver mais vida.
— Assim poderíamos passar milênios nos vendo. Para todo o sempre.
— Sim, para todo o sempre.
— Eu poderia ver você envelhecer. Imagine o quanto seria bom
permanecer neste jardim para o resto de nossa velhice.
— Seria ótimo. Eu poderia ver você com suas primeiras rugas, se
queixando de dor nas costas.
Lia riu.
— Eu poderia… — Sua mãe a chamou, cortando nossa conversa.
Despedimo-nos como sempre e acordei leve, com a sensação de que
Lia será para sempre minha.”
Olhei para a minha garota, deitada ao meu lado. Ela tinha um sorriso
nos lábios. Depois de ter lido aquele sonho em voz alta, pensei ter sentido o
mesmo desejo de beijá-la. Não demorei a fazer isso. Sem dizer nada,
segurei sua nuca e a beijei. A beijei com toda a intensidade do meu ser,
doando tudo o que eu tinha de melhor em meus movimentos e gestos.
Um desejo acumulado de anos sem poder fazer isso refletiu naquele
momento, e nosso beijo foi tão intenso de ambas as partes, que quis morar
nele.
As línguas se acariciaram mutuamente e se deliciaram tanto, que
ofeguei. Continuamos por longos minutos e quis beijá-la até suprir toda
vontade que passei durante todos aqueles nove anos sem poder tocá-la.
Eu a abracei e a apertei contra mim, sentindo suas mãos quentes me
acariciarem com carinho.
Às vezes a realidade parece cair sobre nós como um piscar de olhos, e
foi isso que senti naquele momento. Percebi de súbito que eu podia tocar
Marília, eu podia beijá-la sempre que quisesse e, sim, poderia ser para todo
o sempre, enquanto tivéssemos vida. E, em decorrência dessa reflexão,
desejei com todo o meu interior que ela continuasse comigo em sonhos
após a morte também. Realmente para todo o sempre. Na vida e na morte.
Desgrudei minha boca da sua após um tempo e ela suspirou
profundamente perto do meu rosto, ainda me acariciando.
— Eu te amo, Marília. Nossa, eu realmente te amo muito.
— Também te amo, Matthew. Eu te amo até o infinito.
— Na vida e na morte.
— Sim, na vida e na morte.
Naquela noite, Marília dormiu em meus braços enquanto eu lia outro
sonho. Beijei-a secretamente enquanto ela dormia, depositei selinhos por
todo seu rosto e vários em seus lábios vermelhos, com gosto permanente de
cereja.
Acordei antes dela na manhã seguinte e rodei toda a região atrás de
um sorvete de sabor diferente. Eu nem sabia se ela poderia comer dentro do
hospital, mas imaginei que sim, já que teria alta naquele mesmo dia.
Nós estávamos localizados em um bairro nobre do Rio de Janeiro, por
isso achei que seria fácil achar o sorvete, mas a verdade é que demorei
bastante até encontrar. Entrei em várias sorveterias, mas só vi sabores
normais.
Entre parar para dar autógrafos, tirar fotos e procurar por um sorvete
que pudesse fazer Marília feliz, acabei levando bem mais do que uma hora.
Mas felizmente encontrei o que eu esperava, uma sorveteria gourmet com
vários sabores diferentes, entre eles até bacon, gorgonzola e peixe. Fiquei
com vontade de vomitar só de imaginar aqueles sabores em meu paladar.
Pensei que seria maldade levar um daqueles para Marília, deveriam
ser realmente horríveis. Então quis um que fosse doce, diferente e gostoso.
Acabei levando um de cerveja com mel. Pareceu-me bem estranho de
início, mas, ao experimentar, percebi que era realmente delicioso. Peguei
dois, um para mim e um para ela.
Quando voltei ao hospital, ela já estava acordada me esperando. Já
tinha sido medicada e tomado banho.
— Me desculpe pela demora. — Arfei.
— O que houve? Onde você estava?
— Fui comprar sorvete para você.
— É sério? — Ela abriu um sorriso feliz.
— Sim, espero que goste.
— Mas posso tomar sorvete aqui?
— Você já foi medicada?
— Sim.
— Então a enfermeira vai demorar a entrar novamente aqui no quarto.
Aproveite a oportunidade.
Ela parecia estar bem melhor naquela manhã, não se queixou de dor e
até conseguiu prender o cabelo com mais facilidade, sem se machucar.
Estava animada para ir embora e mais sorridente.
Quando colocou a primeira colherada do sorvete na boca, arregalou
os olhos e ergueu as sobrancelhas.
— Uau! Isso é realmente bom!
— É de cerveja com mel. — Soltei uma risada breve.
— Cerveja? Matthew! — sua voz foi repreensiva.
— Não tem nada de errado nisso.
— Estamos em um hospital — sussurrou, ainda me repreendendo.
— Você vai ter alta daqui a pouco.
Eu me diverti com as expressões dela, com a maneira como comeu
tentando esconder o sorvete para ninguém ver, levando a colher até a boca
com tanta rapidez que até bateu em um dente.
— Você precisa fazer algumas coisas erradas — comentei.
— O que quer dizer?
— O bom da vida é correr perigo. É necessário sair da linha algumas
vezes.
— Nunca fiz algo tão errado, eu acho. Mas gosto de aventuras,
podemos tentar experimentar alguma. O que sugere?
— Sexo em algum lugar público? — as palavras saíram da minha
boca sem que eu pensasse antes.
Claro que falei brincando, mas a verdade é que eu não deveria ter dito
isso, não sabia como ela reagiria àquele convite, nem se perceberia que eu
estava zoando.
Marília parou com a colher no ar e me olhou com a boca entreaberta.
Depois abriu um sorriso curioso.
— Eu topo — ela disse.
Soltei uma gargalhada, surpreso.
— Eu estava só brincando — expliquei.
— Mas eu não.
Parei de rir e a analisei.
— Está falando sério?
— Sim.
— Marília, me dê esse sorvete, está te deixando feliz demais.
— Eu disse que sorvetes com sabores diferentes me deixam feliz.
Aliás, muito obrigada por este, eu amei.
— Por nada. Será que tem álcool nesse sorvete?
— É cerveja!
— Deus do céu, me dê esse sorvete aqui.
— Não!
— Achei que era só o gosto de cerveja, não imaginei que teria álcool!
— Não estou bêbada! Você também está tomando do mesmo sorvete,
por acaso se sente bêbado?
— Não.
— Pois é.
Olhei-a por um tempo, com o cenho franzido.
— É sério? — perguntei novamente. — Sobre o sexo.
— Claro. Mas teríamos que fazer um acordo com certas regras.
Pisquei algumas vezes, incrédulo.
— O que foi, Matthew? — ela perguntou, com um sorriso brincalhão
nos lábios. — Você não gosta da ideia?
— Eu? Hã… Eu gosto, mas… Só fiquei surpreso. Você realmente está
falando sério?
— Tenho algo a te dizer. — Ela moveu o dedo indicador me
chamando para chegar mais perto e eu obedeci. — Eu fiz amor com você
uma vez e foi muito, muito bom. Eu confio em você, Matthew, de verdade!
Quando estou com você, tenho vontade de experimentar coisas novas e, por
incrível que pareça, essa é uma das coisas que eu faria se você quisesse.
Fiquei feliz com o que ouvi. Muito feliz, na verdade. Mas não pelo
sexo, pela atitude dela, pela coragem que estava tendo de encarar seu
trauma de frente e cabeça erguida.
— Você tem me mostrado que não preciso ter medo de ser amada por
você. Não preciso ter medo de fazer amor com você. Não com você.
— Estou orgulhoso, meu amor.
— Eu quero tentar, quero mesmo. E, se você não quiser, tudo bem,
podemos tentar outras maneiras de tornar nossos momentos íntimos cada
vez mais especiais. De qualquer forma, vai me ajudar. Preciso provar para
mim mesma que momentos como esses têm de ser vividos com intensidade.
— Você é a mulher mais corajosa do mundo — sussurrei. Depois
encostei minha boca na dela e a beijei brevemente. — Me diga, quais são
suas regras para o acordo?
— Bem, não pode ter ninguém olhando e talvez um lugar muito claro
me faça ficar bem envergonhada. Um lugar aberto demais também me fará
sentir muito exposta.
Comecei a rir.
— Você descartou quase todas as minhas possibilidades.
— Quase?
— Sim, quase. Acho que cinema se encaixa dentro das suas regras. Se
a sala estiver vazia, claro.
Marília pensou por um momento, analisando minhas palavras.
— Podemos pensar sobre o cinema.
— Então vamos pensar sobre o cinema — disse. — Ainda não temos
nada certo.
— Está bem.
Comemos os sorvetes até o fim, conversando mais sobre o assunto.
Achei lindo como Marília estava verdadeiramente disposta a se libertar dos
fantasmas do passado.
Aproximadamente uma hora depois, a enfermeira entrou no quarto e
disse que eu poderia me arrumar para deixarmos o hospital. Gostei bastante
da notícia. Aquele dia eu me via especialmente bem, nem parecia que
estava com um machucado na cabeça e marcas roxas no pescoço.
Matthew comprou sorvete para mim mais cedo e comemos juntos. Foi
uma experiência muito boa, e me deixou ainda mais feliz. Sorvete sempre
faz isso comigo, especialmente de sabores novos ou desconhecidos.
Arrumamos nossas coisas e nos preparamos para ir embora enquanto
papeávamos sobre assuntos aleatórios. Com Matthew, até isso se tornava
engraçado e interessante.
Ele também transparecia estar bem naquela manhã, estava sorrindo
mais e sendo bem solícito.
Antes de irmos embora, ouvimos batidas à porta. O Dr. Marcos entrou
no quarto com as mãos enfiadas no jaleco e olhos baixos. Matthew se
aproximou de mim e passou o braço pelos meus ombros, puxando-me para
si. Acho que foi uma forma de mostrar que estava ali para me proteger se
fosse necessário.
Foi estranho olhar Marcos nos olhos, fazia-me lembrar que ele não
tinha acreditado em mim quando disse que seu filho era um monstro e, por
consequência disso, me sedou e me deixou vulnerável até que Luiz
chegasse.
— Olá, Marília — ele disse, um pouco sem jeito.
— Olá, Marcos.
— Como está se sentindo?
— Bem. Sinto-me bem em saber que vou sair deste hospital, não é um
ambiente muito agradável e não me traz boas lembranças.
— Eu… Eu entendo. Olha, me desculpe não ter vindo aqui no seu
quarto ontem, eu só… estava tentando colocar a cabeça no lugar e processar
tudo o que aconteceu.
— Não tem problema, as enfermeiras cuidaram bem de mim.
— Que bom — ele disse, depois parando e me olhando em silêncio
por um instante. — Preciso te pedir desculpas. Por favor, me perdoe.
— Não guardo mágoa de você, Dr. Marcos. Sei que não sabia de nada
e entendo que esteja tão surpreso com essa história toda.
— Eu… Eu nunca soube, Marília. Nunca imaginei que meu filho,
meu filho, fosse tão brutal. Por que não me contou antes? Eu poderia ter
tentado ajudar de alguma forma.
— Você não acreditaria, assim como não acreditou quando eu disse
aqui no hospital.
— Me desculpe — ele disse novamente. — Não sei o que dizer para
melhorar essa situação. Só… Eu quero que saiba que sempre gostei muito
de você, sempre foi uma nora muito gentil e amável.
— Obrigada.
— Você tem meu telefone, não tem?
— Tenho.
— Me ligue se precisar de alguma coisa, estarei disponível para
ajudar com o que for necessário. Isso não tem nada a ver com Luiz, ele
nunca vai saber. Tem a ver comigo e com o que acho que é justo. Por favor,
me ligue se precisar de qualquer coisa. Meu carinho por você vai continuar.
— Está bem, obrigada. Ligarei se for preciso.
— Você… vai ficar bem?
— Dr. Marcos, fui torturada pelo meu pai, depois passei dois anos
sendo torturada pelo seu filho. Acha que vai ser fácil ficar bem? Algumas
cicatrizes nunca se fecham, parecem estar imperceptíveis por fora, mas por
dentro ainda sangram. É exatamente assim que me sinto no momento.
Preciso seguir com a vida, tentar esquecer. Mas por enquanto ainda está
bem difícil.
— É tudo muito recente, eu sei.
— Acho que nunca vou superar, nunca vou me curar totalmente, mas
eu vou seguir em frente, não vou me negar a desfrutar uma vida que ainda
pode ser maravilhosa. Então vou me esforçar e passar por tudo isso de
cabeça erguida, na esperança de dias melhores.
— Você vai viver uma vida maravilhosa, você merece isso. Não
conheço alguém que mereça tanto. Saiba que torcerei por sua felicidade e
que farei o máximo para que meu filho cumpra a pena dele.
— Agradeço. Saber que ele está preso me ajuda bastante.
— Está bem, então… Eu acho que é isso. Vocês podem ir embora
agora. Eu só precisava… desculpar-me. — Ele respirou fundo. — Me
desculpe, Marília, novamente.
— Eu desculpo. — Abri um sorriso curto, sem mostrar os dentes. —
Espero que fique bem, sei que não está sendo fácil para você também.
—Vou ficar bem — ele afirmou. — Desejo o mesmo a você.
— Obrigada.
Fiz menção de ir embora. Matthew entendeu, portanto tirou seu braço
dos meus ombros e pegou todas as nossas coisas. Despedi-me uma última
vez de Marcos e deixei o hospital.
Fui o caminho inteiro perdida em pensamento, refletindo sobre minha
última conversa. Matthew não tinha entendido nada, pois conversamos em
português, mas não ficou me questionando, só me abraçou no caminho e
tentou me transmitir conforto.
Quando chegamos ao hotel em que toda a banda, Elliot e os pais de
Matthew estavam hospedados, nos juntamos para o almoço. Passamos horas
conversando e me senti tão acolhida, que acabei me esquecendo por um
instante das minhas aflições e dores.
Eu e Matthew nos recolhemos no final da tarde e subimos para o
nosso quarto. Estava cansada e precisava de um banho urgente para relaxar.
Deitar na cama e me cobrir com um edredom decente era tudo o que eu
queria.
Tudo aconteceu com naturalidade, como se fosse a coisa certa a fazer.
Chamei Matthew para tomar banho comigo e ele aceitou. Foi a primeira vez
que o vi nu daquela forma, tão exposto pela claridade do banheiro.
Ele me olhou, assim como olhei para ele também. Seria hipocrisia da
minha parte se eu não exaltasse o que estava vendo, o corpo de Matthew era
lindo, extremamente bem desenhado da cabeça aos pés. Seus músculos
demonstravam completa definição, não havia nada fora do lugar, inclusive
seu abdome tinha gomos e seus braços, músculos firmes. Apesar de magro,
estava altamente bem alinhado. Eram 1,83 metros de pura perfeição.
Seus cabelos, ainda secos, estavam soltos e levemente bagunçados.
Os fios não eram grossos como os meus, eram finos e um pouco rebeldes,
apesar de lisos. Faziam ondas bonitas até poucos dedos abaixo dos ombros.
Pude ver suas tatuagens com mais clareza. Nossa, elas só o deixavam
ainda mais bonito e charmoso. A maioria ficava em seu braço esquerdo e
eram distintas, não tinham nada a ver uma com a outra. Umas pequenas e
outras um pouco maiores. Havia uma âncora, um coração, uma caveira, um
pirata, uma menina segurando uma flor laranja, uma xícara de café e um
violão, entre outras coisas. Em seu abdome, bem em cima do estômago,
havia uma borboleta, e avistei uma tatuagem pequenina em sua perna, era a
palavra Brasil, em uma letra muito bonita e fina.
Garanti a mim mesma que passearia por todo o seu corpo até
conhecer todas as tatuagens e tê-las de cor em minha mente.
Seus pés eram grandes, finos e ossudos, assim como as mãos e dedos
de unhas curtas.
Seu membro era… Deus, seu membro era grande, grosso e cheio de
veias aparentes.
Desviei os olhos, envergonhada. Não era como se eu nunca tivesse
notado, óbvio que eu havia — e sentido—, mas o ambiente estava claro e
acabei conseguindo ver com mais nitidez todos os detalhes.
Matthew era extremamente sedutor, em todas as partículas de seu
corpo. Ele conseguia me fazer estremecer com somente um olhar.
O verde de seus olhos me fitava com ganância, passeando pelo meu
corpo também. Senti um pouco de vergonha por estar completamente nua
na frente dele em um lugar tão claro, mas me mantive firme.
Matthew sorriu enquanto me olhava.
— Você é tão bonita… Nunca vi um corpo tão perfeito na vida.
Senti ainda mais vergonha, porque aquelas palavras foram a
confirmação verbal do quanto ele estava me olhando. Mas continuei me
mantendo firme.
— Você também é muito bonito. O que faz para manter um corpo
assim, tão firme?
— Além de pular e correr durante horas em todos os shows? Quando
formos para minha casa, no Canadá, você vai ver, tenho uma rotina bem
árdua de exercícios. E também corro todas as manhãs.
— Isso é bem… saudável. Nunca fiz nada disso.
— Se quiser, pode começar a ter uma vida saudável de exercícios ao
meu lado depois que viajarmos.
— Seria bem legal.
— E você, o que faz para ter um corpo tão bonito?
Soltei uma risada tímida.
— Eu como.
Matthew riu também.
— Você é linda, Marília. Muito linda.
Descobri naquele dia que banhos podem ser muito mais do que
banhos. Foi tão perfeito que eu não me importaria de ficar ali para sempre.
Matthew lavou meus cabelos, passou o xampu com muito cuidado
para não abrir os pontos. Depois, passou creme e penteou com os dedos,
acariciando-me vez ou outra. Fez o mesmo com o cabelo dele ao passo que
eu me ensaboava.
Beijou-me enquanto deixava a hidratação em nossos fios agir e foi
extremamente refrescante e escorregadio. Eu nunca havia sentido uma
sensação tão gostosa de duas peles se tocando e se escorregando.
Sua boca desceu pelo meu rosto e tocou meu pescoço. Arfei com a
nossa proximidade e com a delícia daquele toque. Foi como um remédio
para aquela região dolorida e ainda arroxeada.
Àquela altura, o banheiro já se via todo esfumaçado e eu não estava
mais com muita vergonha da minha nudez. Matthew tratou tudo com tanta
naturalidade, que me deixei levar pelo momento e não me senti mal por
isso.
Era diferente a sensação de querer tanto alguém a ponto de me
sufocar. Era diferente aceitar a mão de alguém no meu corpo e realmente
ficar bem com isso. Era diferente não conseguir respirar direito por
experimentar tanto prazer. Prazer. Era diferente sentir prazer. E tudo aquilo
era tão bom que dificilmente eu conseguiria comparar a outra coisa. Tive
certeza de que era bem melhor do que o sorvete, muito mais saboroso, e me
deixava ainda mais feliz.
Sentir-me amada era diferente.
Encontrei um motivo para me doar, encontrei um motivo para me
entregar a Matthew. Ele me amava. E eu conseguia sentir isso em cada
toque cuidadoso de suas mãos.
Somente seu cuidado e sua vagarosidade me mostravam o quanto ele
estava se esforçando para não me magoar, não me abalar, não me causar
mais traumas.
Retribuí cada beijo, cada toque escorregadio e não tive medo. Pela
primeira vez, não tive medo, nem um pouco.
Eu ainda não sabia muito bem como tomar atitudes, e nem como fazer
isso sem me sentir embaraçada, então não encostei as mãos em lugares
audaciosos, mas me atrevi a segurar Matthew com mais força contra mim,
demonstrando que ele poderia seguir em frente sem receios.
— Você está se sentindo bem aqui? Digo, aqui dentro do chuveiro? Se
sente confortável com isso? — perguntou em um sussurro, me olhando de
perto, com a respiração pesada.
— Sim — sussurrei de volta, balançando a cabeça positivamente.
Matthew encostou sua testa na minha e sorriu. Um sorriso que
demonstrava orgulho. Então, me beijou mais uma vez. Passou as mãos pelas
minhas costas e desceu para minha cintura; depois, em um movimento
ardiloso, me ergueu em seu colo. Travei as pernas em sua cintura enquanto
ele me segurava contra si e me beijava sem pausas.
Fizemos um amor devastador, avassalador. Em algum momento, me
perdi em meio a tanto prazer, Matthew conseguiu me levar a um lugar que
eu nem sabia que existia. Foi diferente daquela vez, mesmo que eu não
soubesse prontamente o motivo de ter sido assim. Talvez tenha sido mais
intenso. Os corpos escorregaram um no outro com muito mais destreza,
muito mais facilidade. Ele entrava em mim com assertividade, em
movimentos extraordinários e vigorosos, e passava as mãos com veemência
nos lugares corretos, como se soubesse exatamente onde me tocar e como
me tocar.
Foi perfeito, ofegante e profundo. Apetitoso, delicioso e saboroso.
Agradável, doce e amoroso.
Eu estava tão entregue, que gemi e ofeguei incontáveis vezes.
Matthew encostou minhas costas no azulejo e me beijou de uma forma
íntima. As línguas dançaram uma na outra e o gosto foi sensacional.
Senti-me tão amada, que me dediquei a Matthew. Movi-me com toda
vontade que meu corpo pedia e minha respiração falhou com tamanha
euforia.
Quando chegamos ao nosso auge juntos, eu o abracei, ainda montada
nele, e quis permanecer daquele jeito por todo o tempo possível. Senti
vontade de chorar depois do gozo, mas porque foi tão bom que se tornou
inacreditável. Após a explosão de prazer, eu me senti aliviada, e leve, e
amortecida, e pacificada.
— Meu amor — Matthew sussurrou. — Está tudo bem?
— Sim — respondi, com o queixo em seu ombro, abraçada a ele
como um bicho-preguiça em um tronco de árvore. — Eu só não quero te
soltar nunca mais.
Ele riu.
— Está bem, então não solte.
Não sei precisar por quanto tempo ficamos daquele jeito, mas foi
suficiente para que eu me sentisse segura para soltá-lo.
Na cama, nos deitamos embaixo do edredom e era tudo o que eu
precisava para ter uma boa noite de sono. Fui abraçada e Matthew cantou
no meu ouvido até que eu dormisse profundamente.
Passei o dia seguinte com Anne e Robin. Fomos visitar o Cristo
Redentor e andamos de bondinho para conhecer o Pão de Açúcar. Foi um
dia incrível e muito divertido. Matthew, Elliot e a banda foram ao programa
de televisão Fantástico e passaram a tarde inteira gravando. Só os vi
novamente à noite.
— Seu pai me perguntou se demos uma olhada nas fotos que ele nos
deixou lá no hospital — comentei.
Eu e Matthew estávamos no nosso quarto, conversando deitados na
cama. Ele estava de bruços, com o cabelo solto e caindo pelo seu pescoço.
Parecia cansado.
— Nossa, acabei me esquecendo.
— Eu também. Expliquei que não tivemos tempo, mas que
olharíamos hoje.
— Ele acha que as fotos podem ajudar a desvendar algum mistério —
sua voz estava embargada de exaustão.
— Ele só quer tentar ajudar de alguma forma.
— Eu sei. Guardei a bolsa no guarda-roupa, quer ir lá buscar?
— Sim, eu vou. Você parece bem cansado.
— Eu estou. Acordei cedo e fiquei o dia todo trabalhando.
— Pelo menos foi divertido?
— Muito. Fui muito bem recebido. Mas, mesmo que tenha gostado
bastante, acho que você se divertiu mais do que eu.
— Eu também acho. — Soltei uma risadinha e fui buscar a bolsa com
as fotos e cadernos de Matthew.
Quando voltei, sentei-me ao seu lado e abri o zíper da bolsa, tirando
lá de dentro um álbum de fotografias verde-água.
Ouvi um barulho parecido com o tilintar de uma joia enquanto eu
tirava o álbum, então o afastei para identificar de onde vinha. Um colar com
um pingente de pedra rosa pousava na cama.
Tive um insight assim que vi a pedra. Foi como uma luz que se
acendeu na minha cabeça. A sensação era de já ter visto aquele pingente,
mas não me lembrava de onde. Foi tão forte que praticamente fez meu
cérebro ferver.
— O que foi? Não vai abrir o álbum? — Matthew perguntou.
— Essa pedra… — disse, com a voz reflexiva.
O que senti foi tão intenso, que tive receio de tocar e acontecer algo
inesperado. Como um portal que leva a pessoa de volta ao passado ou algo
do gênero.
— Ah, sim. Esse colar é da minha mãe. Ela já tem há anos, nem me
lembro desde quando. Meu pai deve ter colocado aí por engano.
— Entendi — falei, pensativa.
Desgrudei os olhos da pedra e abri o álbum. Um sorriso se formou em
meus lábios quando avistei Matthew ainda criança, era tão lindo, com olhos
verdes grandes e cabelos loiro-escuros cortados em formato de tigelinha.
Ele tinha apenas quatro aninhos e aparecia brincando na maioria das fotos.
Havia muitas na praia, outras em restaurantes, piscinas e até nos hotéis em
que se hospedaram.
Matthew se sentou ao meu lado para ver as fotos também e, assim
como eu, sorriu.
— Como pude passar tanto tempo sem saber que vim para cá aos
quatro anos?
— Você era pequeno, é normal não se lembrar.
— É engraçado como agora, olhando para as fotos, parece que
algumas lembranças estão retornando à minha mente. — Ele passou o dedo
por cima de uma fotografia em que estava no colo de sua mãe.
— Olhe — apontei —, sua mãe está com o colar no pescoço.
— Pois é, ela está sempre com ele no pescoço. Nem sei como não
está com ele agora.
— Essa pedra é… muito bonita.
— Também gosto.
— Tenho a impressão de já tê-la visto antes.
— Ah, devem existir milhares de pedras como esta.
— Eu sei, mas… estou sentindo algo… Deixe para lá, é besteira.
Você tem razão, existem várias pedras como esta.
Continuamos passando as fotos. Chegamos a uma em que Matthew
estava em um gira-gira colorido. Ele fazia uma careta de medo.
Começamos a rir.
— Você era muito fofo! — elogiei. — Olhe essas bochechas! Ah,
nossa, que vontade de apertar!
— Eu era fofinho mesmo — ele concordou.
— Suas covinhas ainda são as mesmas — comentei, com um sorriso
bobo.
Matthew se aproximou e me deu um beijo rápido.
Na próxima foto, ele estava em um balanço.
— Espere! — Mat disse. — Estou reconhecendo este balanço!
Olhei-o, surpresa.
— O que quer dizer?
— É como o dos meus sonhos.
— Não brinca!
— É sério.
Mudei a foto. Na próxima, ele ainda estava brincando, mas dessa vez
em uma gaiola gínica toda colorida.
Matthew levou a mão à boca, extasiado.
— Marília… — sua voz quase não saiu.
— O quê? O que foi?
— Este brinquedo é… É exatamente como o dos meus sonhos.
— Até a mesma cor?
— Sim, exatamente igual.
Parei por um momento e o olhei com a boca aberta. Ficamos nos
olhando, ambos surpresos, procurando ordenar os pensamentos.
— Você acha que… eu estava lá? Acha que…
— Eu não sei. — Matthew parecia tão chocado que mal se movia.
Havia outras crianças brincando no parquinho, dava para ver pelas
fotos, mas nenhuma de cabelos vermelhos.
Passamos foto por foto, muitas de Anne e Robin. Pareceu-me que,
enquanto Matthew brincava, o casal estava sentado em um banco.
— Seus pais sempre foram assim? — Apontei para uma foto em que
se beijavam.
— Sim, é bem romântico, na verdade. Estão sempre assim, se
beijando. Já me acostumei.
— Acho fofo — confessei.
— Eu também acho — ele disse se aproximando e me beijando outra
vez. — Seremos assim também?
— Quero ter noventa e nove anos e ainda estar te beijando mil vezes
por dia.
— Nossa. — Ele soltou uma risada. — Isso é bastante coisa.
— Eu sei. É só para você entender que quero ser beijada muitas
vezes, até minha velhice.
— Vai ser fácil. — Seus lábios tocaram os meus novamente. — Eu
nunca me cansaria de fazer isso.
— Ótimo.
Voltamos às fotos, passando para a próxima, e depois para a próxima.
— Matthew. — Franzi o cenho. — Acho que percebi uma coisa
importante.
— O quê?
Eu estava me sentindo uma detetive particular em horário de trabalho.
— Veja, nesta foto sua mãe está com o colar. Já nesta foto, ela está
sem.
— Isso é importante?
— Me parece importante.
— Por quê?
— Também não sei. — Soltei uma risada. — Mas preste atenção, em
todas estas fotos ela está sem o colar e, de repente, nestas outras ela está
com o colar no pescoço.
— Ela pode ter se lembrado do colar e o posto depois.
— Sim, pode ser também.
Não entendi por que eu estava tão obcecada com aquela pedra, mas,
sem saber o motivo, senti que era algo importante e relevante para o
momento.
O foco das fotos voltou-se para Matthew brincando. A cada imagem
passada, mais chocado ele ficava.
— Tenho certeza de que esse parquinho é o dos meus sonhos, Marília.
— Certeza?
— Sim, certeza.
— Mas… onde estão as flores laranja?
— Não sei. Talvez eu tenha imaginado esse cenário, ou talvez seja de
algum outro lugar a que fui, ou talvez… Não sei, não dá para saber.
— Por que não perguntamos aos seus pais?
— Agora já está tarde, mas amanhã faremos isso.
— Está bem, vamos perguntar amanhã. Se eles se lembrarem de onde
fica esse parquinho, podemos ir até lá dar uma olhada.
— É uma boa ideia.
Continuamos vendo as fotos, dedicando toda a nossa atenção.
— Se eu estivesse aqui, apareceria em alguma foto, não apareceria?
— perguntei.
— Talvez. Seu cabelo não passaria despercebido.
— Verdade.
Vimos até a última foto, mas não achamos nenhuma com meu rosto
estampado. Isso não queria dizer que eu não estava lá, só que os pais de
Matthew não tinham tirado fotos em um ângulo em que eu aparecia. Certo?
Quis acreditar nisso, só para alimentar esperanças de que eu e
Matthew nos conhecemos naquele parquinho, assim como em seus sonhos.
Eu sabia que seria praticamente impossível isso acontecer, mas gostei
de acreditar que era verdade.
— Nós nem sabemos onde esse parquinho fica — Matthew
comentou.
— Mas, se ficar em São Paulo, existe uma chance, mesmo que
pequena, de termos nos encontrado. Certo?
— Certo. Mas a chance é realmente pequena.
Combinamos de perguntar tudo aos pais dele na manhã seguinte.
Deitamo-nos, cheios de questionamentos em mente, e ficamos
conversando sobre hipóteses loucas de como poderíamos ter nos conhecido
na mesma época em que Matthew e sua família estiveram no Brasil.
Dormimos quando já era madrugada.
No dia seguinte, nos encontramos com os pais de Matthew na hora do
almoço. Haviam escolhido um restaurante bem bacana e famoso da região
para experimentarmos. Segundo eles, a comida a que estavam habituados
no Canadá não era tão boa quanto a que estavam comendo no Brasil, então
precisavam aproveitar a oportunidade para conhecer a maior quantidade de
restaurantes possíveis antes de viajarem de volta para casa.
Com a comida já servida e a mesa colorida com os diversos pratos
que pedimos, Matthew tirou o colar da mãe dele do bolso e o entregou.
— Acho que o papai colocou por engano na bolsa que nos entregou
com as fotos da primeira viagem que fizemos para cá. Sei o quanto gosta,
então trouxe para te entregar.
— Sim, querido! Obrigada. — Ela pegou o colar de volta e o
analisou.
— Não o coloquei na bolsa por engano — Robin disse, por fim. —
Sua mãe o ganhou aqui no Brasil, então achei que poderia ajudar com
alguma coisa.
— Mas ganhou de quem? — Matthew perguntou, com o olhar curioso
voltado à sua mãe. — Sempre achei que o papai que tivesse te dado, por
isso gostava tanto.
— Ganhei de uma moça, querido. Eu e seu pai estávamos em um
parque bem bonito, sentados enquanto você brincava, e uma moça muito
simpática sentou-se ao meu lado. Nossa sintonia foi ótima, passamos um
tempão conversando e senti como se a conhecesse fazia anos. Ela estava
com este colar no pescoço e eu disse o quanto tinha achado bonito. Então,
ela explicou que era o seu favorito, que o tinha havia anos e que acreditava
fielmente que aquela pedra lhe transmitia sorte.
— E ela deu o colar a você?
— Sim, filho. Eu disse que você tinha um dom lindo na voz e que
meu grande sonho era que se tornasse um astro da música. Não sei o que
deu naquela moça, mas ela disse que eu poderia ficar com a pedra até que
meu desejo se realizasse e pediu para eu devolver depois disso. Prometeu
que conversaríamos e que seríamos boas amigas…
— Mas você não devolveu o colar. Por quê?
Percebi que o semblante de Anne se retorceu enquanto ela engolia em
seco.
— Acredite, querido, eu queria muito ter devolvido, mas não pude.
— Por que não pôde?
— Porque… Porque…
— Filho — Robin interrompeu. — Sua mãe não gosta de tocar neste
assunto, não faz bem a ela. Você já sabe o essencial sobre a pedra, não
precisa saber o que aconteceu depois.
Não posso negar, fiquei muito curiosa para saber o restante da
história, mas não me meti na conversa. Anne ficou repentinamente
incomodada e isso ficou claro, Robin a estava tentando proteger de algo que
talvez eu nunca saberia. Matthew os encarou por alguns segundos em
silêncio, achando tudo muito estranho. Mas não insistiu, pois nitidamente
aquele assunto fazia mal a sua mãe e ele não queria estragar nosso almoço
em família.
— Está bem, mãe, se este assunto lhe faz mal, não vou insistir. Eu só
tenho uma pergunta.
— Qual?
— Eu e Marília vimos as fotos ontem à noite. Fotos em que eu estava
em um parquinho, brincando em uma gaiola gínica. Foi lá onde a mulher te
deu o colar?
— Sim, foi lá, sim — Anne respondeu com certeza na voz.
— Sabe me dizer onde fica esse parquinho exatamente?
— Fica em São Paulo — Robin respondeu à pergunta. — Por quê?
— Pai, estou quase certo de que este é o parquinho que aparece nos
meus sonhos.
— Sério? — Anne encarou o filho com as sobrancelhas erguidas.
— Sim.
— Conseguem se lembrar exatamente onde fica? — perguntei. Foi a
primeira vez que me pronunciei desde que entramos no assunto. — É
importante saber, para que possamos ir até lá e ter certeza se realmente é o
lugar dos sonhos de Matthew.
Anne e Robin se entreolharam.
— Não sei o endereço de cabeça, mas posso ver se tenho anotado em
algum lugar — Robin se manifestou.
— Está bem, pai. É importante para mim.
— Você vai voltar para São Paulo? — Anne perguntou.
— Sim, provavelmente.
— Mas…
— Mãe, não vou poder viajar de volta ao Canadá com vocês agora,
estamos esperando a documentação da Marília, lembra? Só depois que ficar
pronta, poderemos ir.
— Sim, é verdade.
— Não vai demorar — Matthew complementou. — Mas vamos
aproveitar para voltar a São Paulo e conhecer o lugar. Talvez traga algumas
respostas.
— Você quer que eu fique? — Anne perguntou.
Ela sempre viajava com o filho, então percebi a dificuldade em seu
olhar ao pensar em deixá-lo sozinho.
— Não precisa, mãe, pode ir para casa com o papai. Não vou ficar
mais do que uma semana aqui sozinho com Marília.
— Está bem, filho — Anne concordou, mas parecia relutante.
— Assim que minha documentação ficar pronta, voaremos ao Canadá
— garanti. — Não precisam se preocupar, ficará tudo bem.
Após o almoço, passamos algumas horas na praia e aproveitamos o
sol quente que ardia em nossa pele. Foi muito bom conhecer outra praia e
entrar no mar novamente com Matthew. A água estava gelada, apesar do
clima quente, e as ondas eram maiores do que da praia de São Sebastião,
contudo adorei. Ele me pegou no colo e me protegeu das ondas, não me
deixou passar apuros por não saber nadar.
A seu pedido, tomamos açaí depois, no final da tarde. Eu amava ver
suas expressões enquanto tomava essa iguaria brasileira, eram excepcionais
e me faziam rir.
Tenho certeza de que fomos fotografados na praia, mas, como Luiz já
estava preso, não tive medo de ser pega com meu ídolo. Beijamo-nos no
mar enquanto eu o segurava pelo pescoço para as ondas não me levarem, e
também nos beijamos depois, com açaí na boca. Senti-me tão bem em sua
companhia, que não vi mais motivos para me esconder.
Andamos de mãos dadas na areia da praia e fomos abordados por
vários fãs. Mesmo de boné e óculos de sol, Matthew era reconhecido por
onde quer que passasse.
À noite, após a janta, fomos para o nosso quarto. Mat se jogou na
cama, cansado, e eu me deitei em cima dele, com a cabeça em seu ombro e
o nariz enterrado em seu pescoço. Recebi uma carícia no cabelo e em
seguida o senti sorrir.
— Você me beijou em público hoje — afirmou.
Sua voz estava baixa e levemente rouca.
— Sim, beijei. E foi muito bom.
Ele me olhou de perto, ainda sorria.
— Foi muito bom mesmo. Não quero esconder o que sinto por você,
quero que todos saibam o quanto te amo.
— Não temos mais que esconder. E, quando chegarmos à sua casa,
oficializaremos nas redes sociais.
Seus lábios tocaram os meus.
— Ótimo. E, só para constar, a casa não é só minha. É sua também.
— Obrigada por isso.
Beijamo-nos mais uma vez, mas, antes que pudéssemos intensificar
os movimentos de nossa boca, o celular de Matthew tocou. Era uma
mensagem de seu pai com o endereço do parque em São Paulo.
— Está pronta para voltar para São Paulo? — indagou animado.
— Com certeza! — Abri um sorriso largo e cheio de dentes.
— Já imaginou? — Matthew perguntou, alisando uma mecha de meu
cabelo. — Se nós nos conhecemos com quatro anos de idade?
— Seria o máximo! — Abracei-o forte.
Ele me beijou outra vez.
— Estamos perto de descobrir, meu amor — comentou.
Viajamos a São Paulo assim que meus pais, Elliot e meus amigos de
banda foram embora. Festejamos pela finalização bem-sucedida da turnê e
nos despedimos.
Não pude me sentir mais abençoado do que naquele momento. Minha
jornada de trabalho no Brasil tinha finalmente acabado, e havia sido um
sucesso estrondoso. Fora os milhões que foram acrescentados à minha
conta, meu rosto estava estampado em todas as redes sociais. O mundo só
comentava sobre isso, sobre mim.
A menina dos meus sonhos estava ocupando a posição de primeiro
lugar no top 10 da Billboard Hot havia semanas. Meu último videoclipe já
tinha passado de mais de um bilhão de visualizações no YouTube, e meu
álbum novo estava no topo do UK Charts fazia mais de oito semanas, o que
foi o maior tempo de duração dentro da década inteira, entre todos os
artistas do mundo.
Um dos meus funcionários responsáveis pelas minhas redes, postou
que eu ficaria um ano de férias antes de recomeçar os trabalhos novamente.
Mas, mesmo assim, já havia mais de trinta programas me chamando para
fazer presença. Minhas férias não eram exatamente férias, eu continuava
trabalhando, compondo músicas e treinando minhas cordas vocais. Também
aparecia nos programas televisivos, tinha que estar sempre fazendo ensaios
fotográficos e aparecendo em lives no Instagram.
A única coisa que mudava nesse período é que eu não viajava para
fazer shows. Mas continuava fazendo presença em lugares importantes para
marcar minha imagem.
Apesar disso, eu teria muito mais tempo com Marília e com a minha
família. Era exatamente disso que eu mais gostava nas minhas férias.
Poderíamos ir à nossa casa de praia e passar vários dias descansando lá.
Não via a hora.
Lia estava deitada no banco de trás do carro, com as pernas esticadas
e a cabeça no meu colo, recebendo meu carinho em seus fios de cereja.
Reparei silenciosamente em seus cílios grossos e grandes enquanto ela
olhava algo no celular. Fiquei satisfeito em vê-la tão à vontade, tanto no
carro, como navegando nas redes.
Conversamos sobre alguns assuntos aleatórios durante a viagem.
Assuntos que nos ajudavam a conhecer mais um ao outro. Fizemos
joguinhos de adivinhação e foi bem divertido. Claro que ganhei de Marília,
eu a conhecia muito melhor do que ela a mim, ainda que em muitas coisas
eu ainda não tivesse conhecimento ao seu respeito. Mas se esforçou, e
percebi que não era tão leiga assim quando se tratava de mim.
Também conversamos sobre minha mãe e o colar. Nós não fazíamos
ideia do que ocorrera para que ela não pudesse devolvê-lo, mas imaginamos
várias sugestões loucas e caímos na risada com isso. Por fim, decidimos que
esse não era um ponto tão importante, e que não precisávamos esclarecê-lo
para finalizarmos nossa busca pela verdade.
Tínhamos o principal: o endereço do parquinho. Isso era o que mais
importava para o momento.
Quando chegamos a São Paulo, já era quase a hora do almoço, então
paramos em um lugar para comer e esticar as pernas. Ensinei mais palavras
difíceis em inglês para Marília e me diverti com sua pronúncia brasileira.
Ela falava muito bem em inglês, conseguia me entender à perfeição e
conversar sobre praticamente tudo. Só seu sotaque que a entregava
facilmente, mas, para uma menina que estudara sozinha na adolescência, ela
era muito boa.
Perguntei-me como conseguiríamos nos comunicar se ela não tivesse
se esforçado para aprender minha língua. Eu não falava nada em português.
Teríamos que fazer mímicas, provavelmente.
Ela me apresentou o Guaraná Antárctica e achei delicioso. Aproveitei
a oportunidade para comprar vários e colocar na mala para tomarmos mais
tarde. Eu sentiria falta do Brasil por conta desses detalhes, a comida, os
doces e bebidas eram muito mais gostosos do que no Canadá. Fora as
paisagens lindas e os fãs super-receptivos. Tudo no Brasil era do meu
agrado. E saber que Marília era brasileira só aumentava ainda mais minha
afeição pelo país.
Voltamos para o carro e seguimos viagem, não faltava muito para
chegarmos ao endereço. Passamos o restante do trajeto muito animados,
cantei para Lia, que me acompanhou na canção.
Quando já próximos o suficiente, ela grudou os olhos na janela do
carro e disse:
— Eu conheço este lugar.
— Já esteve aqui? — perguntei.
— Meu pai me disse que vínhamos muito quando eu era pequena.
Mas não me trouxe mais depois que cresci, costumava dizer que não
gostava daqui porque o remetia a péssimas lembranças.
— Nunca perguntou quais lembranças?
— Perguntei, mas ele nunca quis me dizer, na verdade.
— Então, é como minha mãe e aquele colar. Por que os adultos
tomam esse tipo de atitude?
— Não esquece que somos adultos também. — Ela soltou uma
risadinha.
— Verdade, às vezes me esqueço que sou adulto. Mas somos adultos
jovens, não adultos, adultos.
Marília riu mais um pouco.
— Você tem razão. Mas algo me diz que ser um adulto jovem é muito
mais legal.
— Também acho — concordei.
O carro entrou por um portão verde grande e a rua passou a ser de
terra. Era um parque ecológico e público, aparentemente gigantesco.
Conforme adentrávamos o local, mais verde ficava.
Estacionamos e descemos do carro. Ajudei Marília a descer e ela
aceitou minha mão.
O motorista ficou nos esperando no estacionamento enquanto
começamos a andar para a entrada oficial do parque de mãos dadas. Eu a
puxei para mais perto de mim e passei o braço pelos seus ombros,
segurando a mão dela do outro lado do corpo. Dei-lhe um beijo na têmpora
e Lia sorriu para mim. Parecia animada com toda a situação, mas percebi
que estava carregando alguns questionamentos que não chegara a dividir
comigo. Pelo menos, não até então.
Seu peito estava subindo e descendo com uma intensidade maior do
que antes, e seus olhos passeavam por todos os lados com minuciosidade e
atenção.
— Você está bem? — perguntei.
— É besteira.
— Não é, você pode dividir comigo.
— Estou sentindo algo estranho. Não é uma sensação boa, na
verdade. A partir do momento em que entrei, senti algo muito forte, como
se eu estivesse vivendo novamente algo que já vivi antes.
— Tipo um déjà-vu?
— Isso, mas não sei se vale para o caso, porque já estive aqui antes.
— Talvez seu cérebro esteja te avisando exatamente isso.
— E por que meu coração parece tão apertado?
Parei de andar e a olhei de perto, tentando passar confiança.
— Eu também estou sentindo algo, mas não sei explicar o quê. Talvez
seja a ansiedade de finalmente estar perto de alguma resposta. Fique
tranquila, meu amor, tudo vai acabar bem.
Ela fechou os olhos brevemente e sorriu. Beijei seus lábios,
acariciando seu rosto.
— Quer parar um pouco? — perguntei.
— Não, vamos continuar. Já estou me sentindo melhor.
Então, voltamos a andar. O parque era bem bonito, todo gramado e
com bastante movimentação. Havia muitas árvores, um lago enorme cheio
de patos e uma trilha para andar de bicicleta. O ambiente estava gostoso,
com um sol brilhante e aconchegante, deixando toda a paisagem ainda mais
bonita.
Conforme andávamos, passamos por várias barracas com homens
vendendo cachorros-quentes, milhos e espetinhos de churrasco. Mais para a
frente, avistamos barracas de sorvetes e crepes.
Estava bastante barulhento, muitas crianças correndo, homens
empinando pipas e jogando bola; mulheres deitadas na grama, fazendo
piquenique com os filhos e pessoas fazendo caminhada com cachorros.
Gostei do lugar, apesar de achar cheio demais.
Continuamos caminhando. Demos a volta pelo lago e seguimos por
uma trilha de terra. O cabelo de Marília estava extremamente vermelho em
contato com os raios do sol, e seus olhos viam-se bem claros. O esquerdo
estava verde-claro, muito bonito. Na verdade, Marília sempre ficava muito
bonita em contato com a natureza, sempre achei que combinava bastante
com ela.
— Gosto deste cheiro — comentou.
— Cheiro de mato?
— Sim.
Na verdade, eu não via graça no cheiro de mato, mas achei ter
gostado naquele momento só porque ela também gostara.
Beijei sua mão, entrelaçada com a minha, e perguntei:
— Quer se sentar um pouco?
— Não, estou ótima.
— Já andamos bastante, então se quiser descansar…
— Estou bem — confirmou ela. — Vamos continuar.
Prosseguimos, então, a caminhada. Estava gostoso, bastante
prazeroso, fazer aquela trilha. Fomos conversando e, apesar de já termos
andado bastante, não parecíamos cansados.
A trilha deu em um lugar muito amplo, tão grande que eu não
conseguia ver o fim. Era um campo florido, com diversas flores laranja.
Paramos bruscamente quando vimos.
— Matthew… — Marília começou, apontando o dedo para as flores.
Balancei a cabeça positivamente, sem conseguir dizer nada. Meu
peito se apertou e, de repente, senti uma dorzinha me invadindo. Era
exatamente como nos meus sonhos.
Foi difícil acreditar que eu estava mesmo vendo aquela cena na vida
real, por isso me calei. Olhei atentamente para o espaço aberto com vários
pontos laranja e respirei profundamente, quase soltando um gemido
dolorido.
Não sei explicar o que houve comigo, mas senti todos os meus pelos
se eriçarem enquanto meu coração se acelerava.
Aquilo estava mesmo acontecendo. Eu não tinha inventado nada,
aquele lugar realmente existia!
Senti um alívio me percorrendo as veias enquanto a respiração ficava
mais pesada.
— É aqui — disse finalmente. Meu peito ainda doía, mas não soube
discernir se pelo choque de realidade ou se pela emoção tão grande. —
Marília, é aqui.
Ela mordeu o lábio inferior enquanto encarava o lugar. Depois, voltou
a atenção para mim. Seus olhos estavam marejados, e a íris do lado
esquerdo se via amarela, o que comprovava o quanto Lia estava satisfeita
em ouvir minhas palavras. Um sorriso cresceu em seus lábios e ela me
puxou para um abraço.
Eu a beijei várias vezes, em vários pontos do rosto, e sorri também.
— Não posso acreditar — disse, extasiada.
— É aqui mesmo — enfatizei. — Eu te conheci aqui, Lia.
Ela me olhou com intensidade. Realmente era a minha Lia, a minha
garota. Vários flashes dos meus sonhos voltaram à tona e quase pude ouvir
a voz dela de quando criança, quando nos conhecemos. Foi tão real, tão
forte.
— Você acha que realmente nos conhecemos aqui? — ela perguntou,
olhando para mim e depois para o gramado.
— Tem outra explicação?
— Ainda não temos certeza.
— Eu sei, mas… este lugar realmente existe. Você realmente existe. É
a única explicação.
O gramado sem fim ficava do lado direito da trilha. Do lado esquerdo,
estava o parquinho. Com a gaiola gínica, os balanços de madeira e o gira-
gira, entre outros brinquedos.
Havia um banco de madeira pintado de branco de frente para o
parquinho e deduzi que lá fosse onde meus pais se sentaram enquanto eu
brincava aos quatro anos de idade.
— O parquinho também é…
— Sim, é — respondi antes que ela terminasse a pergunta.
Meu peito estava em colapso, subia e descia com agilidade, enquanto
eu me lembrava de tudo o que passara com Marília naquele lugar. Todas as
nossas conversas, os nossos segredos; a primeira vez que me declarei para
ela, o primeiro “Eu te amo”; as tentativas vãs de tocá-la, as vezes que
balançamos e corremos por aquele gramado. Foram tantos momentos,
tantos anos a encontrando naquele lugar!
A sensação foi tão boa, que fui tomado de prazer. O mesmo prazer
que um pobre sente quando ganha na loteria, ou quando uma mulher
supostamente infértil fica sabendo que está grávida, ou quando a pessoa
consegue finalmente respirar depois de ter ficado vários minutos se
afogando.
Alívio.
Apertei a mão da minha garota e quase não acreditei que eu realmente
podia tocá-la. Aquele gesto significava tudo para mim, tudo o que almejara
por nove anos. O amor que eu sentia por ela pareceu crescer ainda mais
naquele momento. Lia era a impossibilidade que se tornou possível, um
sonho que se fez realidade.
Marília passou a mão no meu rosto enquanto eu a contemplava com o
olhar mais apaixonado que pude fazer.
— Eu te amo — declarei, com todo o meu coração. — Eu te amo
mais do que tudo nesta vida.
— Eu também te amo, Matthew.
— Estar aqui só me faz perceber o quanto sou sortudo por te ter, o
quanto sou sortudo por ter encontrado meu amor verdadeiro com apenas
dezenove anos.
— Se suas suspeitas estiverem certas, nos encontramos bem antes
disso.
— Eu sou o cara mais sortudo do mundo! Tantas pessoas passam
mais da metade de uma vida procurando o verdadeiro amor e eu… Eu tenho
você!
Eu mal podia acreditar nas minhas palavras.
Marília abriu um sorriso grande e eu a abracei, tirando seus pés do
chão.
Ela abaixou o rosto e encostou a boca na minha. Nós nos beijamos
lentamente enquanto suas mãos seguravam com delicadeza minha face.
Senti sua língua na minha com o gosto mais doce de cereja e chupei seu
lábio inferior, anestesiado dos pés à cabeça com aquele sabor.
Coloquei seus pés de volta no chão e a chamei para ir ao balanço. Ela
amou a ideia.
O assento parecia ser maior do que eu me lembrava. Sentei-me e
convidei Marília vir para o meu colo. Ela montou em mim, colocando as
pernas para o outro lado do balanço, uma de cada lado do meu corpo.
Dei o primeiro impulso e ela começou a rir no meu ouvido. Arrepiei-
me todo. Eu estava segurando as correntes, enquanto ela abraçava meu
pescoço.
Balançamos bem alto e demos risada, sentindo frio na barriga.
Ela jogou o pescoço para trás com os olhos fechados enquanto ria e
seu cabelo voava. Foi a cena mais linda que vi em toda a minha vida.
Até que uma luz surge em sua vida, uma luz ruiva e translúcida, que muda o
rumo da sua história.
Nicholas é alguém que mostra que a vida faz sentido, alguém que apresenta
o verdadeiro amor incondicional que o mundo anseia em viver.
Este amor prova que nada é por acaso e traz fortes reflexões sobre os altos e
baixos da vida.
Mas uma descoberta terrível os separa e a única coisa que pode fazê-los
retornar é uma solução que, em suas cabeças, não existe.
Ou não?