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Copyright © 2023 Laís B.

Ferreira
Capa: Grazi Fontes
Revisão: Deborah A. A. Ratton
Imagens: https://pt.pngtree.com/freepng/music-notes_1513947.html
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Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,


personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados. São proibidos o armazenamento e/ou a
reprodução de qualquer parte desta obra, através de quaisquer meios —
tangível ou intangível — sem o consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na
lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Dedico este livro a todas as pessoas fortes.
Não silencie sua voz.
A você, que pensa que é fraco, vou deixar uma mensagem. Leia com
atenção:
“Porque, quando estou fraco, então, sou forte.”
II Coríntios 12:10
SUMÁRIO

Alerta de Gatilho
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Nota da Autora
Este livro aborda assuntos relacionados a estupro, agressão física e
verbal. Além de abandono parental.
Se esses tópicos causam algum desconforto a você, não dê
continuidade à leitura.
— Minha família pensa que sou louco.
— Por que está dizendo isso?
— Se não achassem, eu não estaria aqui.
— Está enganado. Não são só os loucos que fazem terapia. E,
sinceramente, apenas uma pequena porcentagem da população do mundo
não é louca hoje em dia. Não me leve a mal, mas os “normais” serão os
novos loucos em breve.
— Você está me chamando de louco?
— Não, Matthew, estou dizendo que você é mais normal do que
imagina.
— Meus pais acham que eu tenho uma amiga imaginária.
— E você tem?
— Não. Não tenho.
— E o que fez seus pais pensarem que você tem?
— Eu… Bem, não sei como dizer isso sem parecer louco.
— Matthew, entenda uma coisa: tudo o que disser aqui será
confidencial, nunca ninguém vai saber sobre o que estamos conversando.
Você pode se abrir comigo, nunca vou te julgar pelo que irá dizer. Estou
aqui para te entender e te ajudar a lidar com o que está passando.
— Eu… Eu tenho sonhos.
— Muito bem, continue.
— Tenho sonhos com uma garota. Sonho com ela desde os meus dez
anos.
— Quantos anos tem agora?
— Dezesseis.
— E como são esses sonhos? Consegue me contar?
— São sempre diferentes. É como… Como se prosseguíssemos de
onde paramos no último sonho. Sempre há uma continuação. Ela se lembra
do que falávamos no sonho passado e simplesmente continuamos a
conversa de onde paramos.
— São só conversas?
— Sim, só conversas, porém, sempre no mesmo lugar, um jardim
amplo e gramado, cheio de flores na cor laranja. Às vezes sinto como se ela
me conhecesse melhor do que qualquer um, melhor até que meus pais.
— Consegue me descrever essa garota?
— Sim. Ela tem cabelos vermelhos. Mas não são acobreados, são
vermelhos como vinho tinto. E são compridos, bem compridos, com
algumas ondulações muito bonitas. Os olhos dela são… diferentes. Ela tem
um olho de cada cor, um azul e um verde. Este parece amarelo às vezes,
como os olhos de um gato. Sua pele é branca como leite e os lábios, tão
vermelhos quanto os cabelos. O corpo dela é bonito…— Um pigarro.
— Não se preocupe comigo, Matthew. Continue falando.
— Sabe, isso está parecendo bem ridículo.
— Se quiser, podemos continuar falando sobre isso na próxima
sessão. Você não é obrigado a dizer nada. Quero que se sinta bem acima de
tudo.
— … O corpo dela é bonito — continuei.
Mas havia um nó na minha garganta. Eu me sentia um completo
idiota. Dizer tudo aquilo em voz alta parecia ainda mais ridículo.
— Já viu um corpo assim antes? Do mesmo jeito, quero dizer.
— Já vi muitos corpos bonitos. Mas nunca um igual ao dela.
— Certo, me descreva da maneira que conseguir.
— Ela tem exatamente 1,60 de altura, vive reclamando que se acha
baixa demais. — Um sorriso bobo se formou em meus lábios, mas logo se
desfez por conta da vergonha. — Tem uma cintura fina, é bem magra na
verdade. Mas as pernas dela são… São mais grossas. — Levei as mãos aos
cabelos e suspirei. — Você acha que sou louco?
— Não, Matthew, de forma alguma. Toda essa descrição que você
está fazendo serve para que eu consiga entender de onde ela veio e como
tudo isso foi projetado na sua mente.
Mesmo parecendo uma perda de tempo, continuei:
— Ela tem pés lindos. São pequenos e delicados. As mãos são iguais,
com unhas curtinhas e bem-feitas.
— São muitos detalhes. Ela parece real para você?
— Sim, muito.
— Mas nunca a viu de verdade?
— Não, nunca a vi de verdade.
— E em seus sonhos, você já a tocou? Consegue senti-la?
— Não, nunca consegui tocá-la. É estranho como sinto a quentura do
corpo dela perto do meu quando estamos sentados um ao lado do outro,
mas, quando estendo a mão para tocá-la, não sinto nada. Ela continua lá, se
é que me entende, mas não consigo senti-la.
— E ela te sente?
— Também não.
— Sobre o que conversam?
— Sobre tudo. Como eu disse antes, acho que ela me conhece melhor
do que qualquer outra pessoa. Conhece meus gostos, meus defeitos, minhas
qualidades, meus segredos. Tudo.
— Sei. Ela já disse alguma coisa que te faz pensar que ela é real?
— Não me leve a mal, doutora. Mas ela é perfeita demais para existir.
— Mas faz insinuações? Insinuações de que existe de verdade?
— Sim, fala sobre seus pais, sobre quando era criança, sobre as
aventuras que já viveu… Eu não entendo como tudo isso pode sair da
minha cabeça.
— Você tem amigos, Matthew?
— Sim, muitos. Olhe para mim, doutora. Sou um astro da música,
vivo rodeado de pessoas. É só olhar pela janela, tem um monte de fãs
esperando por mim lá embaixo.
— Compreendo, mas não foi exatamente isso que te perguntei. Você
tem amigos de verdade? Pessoas com quem pode conversar?
— Sim, tenho. Mas não contei sobre ela para nenhum deles.
— Por quê?
— Ainda me pergunta? Não posso dizer que amo uma menina
imaginária.
— Você a ama?
Olhei-a por um minuto. O minuto mais longo da minha vida.
— Sim — respondi. — Eu a amo.
— Está certo, Matthew. Conte-me uma coisa, você se relaciona com
outras garotas? Ou espera pelo momento de conseguir sentir a menina dos
seus sonhos? Aliás, ela tem um nome?
— Sim e não. Sim, para relações com outras garotas, e não para um
nome. Ela pede para que eu a chame de Lia, mas este não é o nome dela.
— Certo.
— Olhe, sei o que está pensando. Mas nada me comprova que ela é
real, não posso ficar esperando que apareça enquanto tenho todas as
meninas do mundo aos meus pés.
— Você não sabe o que eu estou pensando. E entendo seu
posicionamento.
— De qualquer forma, fico com outras meninas pensando nela. Eu sei
que é horrível, mas, quando toco outra garota, pergunto a mim mesmo se a
pele dela é igual ou não. Sabe, tenho raiva disso. Às vezes só quero que ela
desapareça para que eu viva em paz.
— Já pediu para que ela desapareça?
— Não.
— Por quê?
— Porque tenho medo de que ela desapareça de verdade.
— Certo. Vamos trabalhar isso então, Matthew. Vou te pedir uma
coisa, ok? Consegue escrever em um caderno os sonhos que tem? Usando a
maior quantidade de detalhes possível?
— Na verdade, doutora, já tenho esse hábito de anotar o que me
lembro dos meus sonhos. Foi a maneira que encontrei de estar próximo
dela.
— Ótimo! Pode trazer seu caderno na próxima sessão? Vai ser
essencial para a avaliação.
— Claro. — Após minha resposta, soltei um pigarro e olhei para as
mãos.
— Quer me dizer alguma coisa?
— Sabe, eu não sou o melhor escritor do mundo. Você não vai
encontrar uma letra linda no meu caderno.
— Não vejo problema nenhum nisso.
— E, bem, eu coloco bastante detalhes. Não sei se vai entender o que
quero dizer, mas coloco ênfase nos meus sentimentos por ela.
— Não se preocupe, Matthew. Não estou aqui para te julgar.
Inclusive, quanto mais detalhes, melhor.
— Está certo. — Uma pausa. Meu peito estava em colapso. Não me
alegrei com a ideia de ter outra pessoa lendo o que eu escrevia, mas aquela
angústia me esmagava, aquela dúvida gritava dentro de mim. — Acha que
isso vai dar certo? Essas sessões. Acha que vão adiantar de alguma
maneira?
— Nenhuma questão na vida é resolvida de um dia para o outro,
preciso que saiba disso. Vou tentar te ajudar, tentar entender como ela
apareceu, como chegou a este ponto de amar alguém que nunca viu. E,
mesmo que nunca descubramos, poderemos usar este ambiente para
desabafos. É sempre bom desabafar, colocar para fora o que nos aflige.
— Sabe que…
— Sei que você é ocupado, que faz turnês pelo mundo e não tem
tempo para marcar consultas regularmente comigo. Mas vamos fazer o
seguinte: quando você não estiver por perto, faremos a sessão a distância,
on-line. Tudo bem para você?
Concordei sem dizer nada.
Não era verdade que eu queria fazer as sessões a distância com ela.
Certamente, eu achava um grande erro estar ali. Com certeza, a terapeuta
não conseguiria me ajudar. Como poderia?
Por outro lado, eu me senti incrivelmente aliviado ao dizer o que disse
sem ouvir julgamentos. Era possível que, dentro de sua cabeça, ela estivesse
me julgando ou questionando, mas sua expressão facial não demonstrava
isso. Sua voz era mansa, me transmitia calma. Era como se eu pudesse
realmente confiar nela. Mas a doutora Nancy fazia anotações enquanto eu
falava e isso me constrangia. Ao passo que as palavras saíam da minha
boca, minha cabeça se perguntava o que tanto ela escrevia sobre mim. Já
era a nossa quinta sessão. A terapeuta tentava me rodear sobre este assunto
sempre, mas não me senti confortável em dizer de primeira. Uma coisa era
certa, ela não contaria nada a ninguém. Isso porque assinou um contrato de
sigilo total. Mesmo que fosse de praxe não divulgar dados de pacientes em
sua profissão, eu não quis correr o risco.
Meus pais a contrataram porque tomei a liberdade de conversar com a
minha mãe a respeito e ela provavelmente achou que eu estava com algum
problema sério. Não a julgo, sei que tudo isso é bem estranho.
— Está bem, Matthew. Quero te fazer uma pergunta.
— Fique à vontade.
— Você consegue direcionar o rumo dos seus sonhos? Sente como se
estivesse controlando-os? Ou eles simplesmente acontecem e você não sabe
por quê?
— É difícil de explicar. Os sonhos são muito reais, doutora. Tudo o
que passo dentro deles é como se fosse vida real. Eu penso para falar, eu
consigo agir conforme a maneira que acho melhor. Já tive outros sonhos,
que não com ela, e não são a mesma coisa.
— Entendi. Quero que tente fazer algo.
— O quê?
— Faça perguntas a ela. Perguntas, como: Onde mora? Como se
chama? Por que sonho com você? Já nos vimos antes na vida real? Você é
real?
— Acha que nunca fiz essas perguntas?
— Mesmo que já tenha feito, faça-as de novo.
— Vou tentar.
— É importante, Matthew, para sabermos como ela foi parar aí na sua
cabecinha.
— Está bem.
— Te encontro novamente na semana que vem, certo?
— Sim. Te encontro na semana que vem.
Passei pela multidão e adentrei meu carro. Era um Volvo preto bem
grande. Meu motorista me esperava de prontidão.
Meu nome é Matthew Bennett Lewis, mas sou mais conhecido como
MatLew. Um apelido que adquiri há alguns anos, quando comecei a cantar.
Não foi ideia minha, e sim do meu produtor. Ele disse que chamaria a
atenção, que soaria bem na boca das pessoas. Decidi confiar e deu certo.
Dificilmente eu escutava alguém me chamando pelo meu nome mesmo, a
não ser a minha família e os mais chegados.
Nasci e fui criado em Toronto, Canadá, com meu pai e minha mãe,
sem irmãos. Ele é um homem muito ocupado, é um cientista com altíssima
notoriedade. Há alguns anos, descobriu a cura para duas doenças
importantes e teve grande participação na criação de vacinas para
prevenção de ambas. Desde então, tem trabalhado em várias outras
descobertas, estudos específicos e cirurgias em ratos ou macacos. Eu me
orgulho do homem que meu pai é, sempre tão bem trajado e elegante com
seus cabelos semigrisalhos. Acho incrível como é inteligente, como sabe
conversar sobre tudo com tanta habilidade.
Apesar de ocupado, sempre foi um pai presente, com conselhos
valiosos e de extrema sabedoria. Desde muito pequeno, o acompanhei ao
trabalho. Conheço todos os seus colegas de laboratório, pois sempre fez
questão da minha presença. Seu sonho de vida era que eu seguisse seus
passos e me tornasse um cientista, dando continuidade ao seu legado.
Quando eu tinha apenas sete anos de idade, percebeu que esse não era
meu caminho. Meu dom e amor pela música e canto conseguiam alcançar
qualquer um ao redor. Era e sempre foi nítido que eu havia nascido para
cantar, dom que acabei puxando da minha mãe.
Felizmente, meu pai respeitou isso, incentivou, investiu em aulas de
canto e de instrumentos diversos por muitos anos, desde a infância. Passei a
ser o maior orgulho da minha mãe — não que eu já não fosse antes —, que
decidiu fazer por mim o que seus pais não fizeram por ela quando ainda era
jovem.
Ela me inscreveu em vários programas de canto, programas famosos e
também em alguns pouco conhecidos. Aos dez anos, passei na seleção do
programa Canada’s Got Talent, competi com centenas de pessoas, inclusive
mais velhas do que eu, mas permaneci até o fim e acabei vencendo a
disputa, levando para casa um lindo troféu de ouro em formato de estrela.
Lembro-me nitidamente desse dia específico. Está gravado como uma
tatuagem no meu cérebro.
O que veio a seguir foi maior do que eu e minha mãe planejamos
juntos, mas não posso deixar de frisar que aquele foi o melhor dia da minha
vida. O que eu senti foi sobrenatural. Não imaginei, quando entrei no
programa, que eu conseguiria permanecer até o final, nem muito menos que
ganharia.
Conforme o programa era transmitido na televisão, eu ganhava
notoriedade e maior conceito. Minha idade não pareceu ser um empecilho
na época, pois todos gostavam de mim. Quando eu subia no palco, a plateia
ia à loucura e os jurados não conseguiam me ouvir sentados. Eles se
levantavam e erguiam as mãos à cabeça, incrédulos com o meu timbre.
Minha confiança cresceu cem por cento durante as audições. Quando
ganhei, então, me senti o melhor do mundo.
Depois disso, passei a ser chamado com mais frequência para outros
programas televisivos, apareci em revistas e canais na internet. Não havia
como negar, estava em extrema popularidade. Eu era o assunto do
momento.
Depois que ganhei o concurso, meus pais investiram muito para que
eu lançasse meu primeiro álbum. De doze músicas, oito alcançaram todos
os recordes das plataformas digitais.
Foi assim que passei a ser o jovem mais famoso e bem-sucedido do
momento, e isso não mudou com o passar do tempo, as coisas só se
intensificaram.
Nos primeiros anos, meus pais me acompanharam em todos os shows,
dando-me apoio e dicas de como eu deveria me comportar, mas pouco
tempo depois perceberam que teriam que viver para isso se realmente
decidissem estar presentes em tudo. Meu pai não podia fazer isso, não podia
deixar o emprego dele.
Então, contrataram meu tio, irmão da minha mãe, para ser meu
produtor e me ajudar nos shows. Deu muito certo, ele sempre foi muito
dedicado.
Aos quinze anos eu já estava fazendo minha segunda turnê pelo
mundo todo.
Não vou dizer que foi fácil. Ser um adolescente e não frequentar a
escola nem lugares com amigos da minha idade é bem ruim. Mas aceitei
que eu não era um adolescente qualquer, eu era o MatLew, já deveria saber
que seria diferente dos outros.
Estudei com professor particular enquanto eu estava em aviões ou na
estrada, e mantive contato com meus amigos somente por videochamada,
ou quando voltava ao Canadá.
Passei a viver um sonho. O meu e o dos outros também. Todos
desejavam ser eu, em ter minha voz, minha fama ou minha imagem. O que
as pessoas não sabem é que é fácil sonhar, difícil é fazer o que fiz e faço.
Não sabem que durmo pouco, o quanto me esforço para ser quem sou.
Quando se está no mundo da fama, já se deve saber que sua vida se
torna pública. Foi o que aconteceu comigo. Cedo demais, inclusive. Tudo o
que eu fazia, em todos os lugares a que eu ia, saía na mídia.
Minha vida passou a ser mais importante do que a própria vida das
pessoas.
E todos passam a achar que sabem sobre mim, acham que me
conhecem, mas isso é uma grande mentira. Mal sabem que os famosos
agem como robôs, falam coisas propositais e vão a lugares
intencionalmente, só para ganhar visibilidade e dinheiro.
Dinheiro. Tudo pelo dinheiro.
Aos dezessete anos, eu estava mais estourado do que a Bomba-Czar,
feita em 1961 pela União Soviética.
Sentia como se pudesse fazer tudo o que quisesse, o mundo estava em
minhas mãos. Com exceção de uma única coisa. Havia uma única coisa que
eu queria com todas as forças do meu corpo, mas não podia ter.
Na mesma noite em que ganhei o troféu no programa Canada’s Got
Talent, tive um sonho que mudou o rumo da minha história.
Cheguei em casa com toda a felicidade do mundo dentro de mim,
inflando meu peito. Demorei horas para dormir, tamanha a empolgação.
Mas, quando aconteceu, me senti arrependido de não ter dormido antes, só
para ter mais tempo dentro daquele sonho.
Eu estava em uma espécie de jardim, com muita grama e flores
laranja. O sol brilhava lindamente no céu limpo de nuvens, e as rajadas
refletiam-se no troféu que estava ao meu lado, descansando na grama
verde.
Havia um parquinho de diversões, com balanços de madeira e um
gira-gira. Algumas crianças se divertiam lá.
Senti vontade de me juntar a elas, mas, antes que eu pudesse tomar a
atitude, algo chamou a minha atenção. E foi tão forte que me paralisou
onde eu estava.
No início me pareceu mais como uma mancha vermelha, mas,
conforme se aproximava, percebi que era uma garota com belos cabelos
ruivos. Não era um ruivo cobre, era um ruivo da cor de vinho tinto. Tão
vibrante, que me fez arregalar os olhos.
— Oi. — Ela acenou. Não consegui ver seu rosto, pois o sol estava
logo atrás da menina e fazia sombra. Só o que se podia notar era como o
cabelo brilhava. — Você é o menino que ganhou o programa de canto, não
é?
— Você pinta o cabelo? — perguntei, sem me preocupar em
responder.
— Sabe, odeio quando me fazem essa pergunta. Já não sei se gosto
tanto assim de você.
Hesitei por um instante, surpreso com a resposta que tive.
— Me desculpe, eu…
Ela respirou fundo, bem fundo, o que me fez parar de falar.
— É óbvio que não pinto o cabelo. Tenho só dez anos. Minha mãe
nunca deixaria.
— Eu nunca tinha visto um cabelo dessa cor.
— Eu sei. Todo mundo fala isso. Posso me sentar aí? —Apontou para
a grama vazia ao meu lado.
— Hã, claro.
Ela se sentou e me olhou. O que vi foi a cena mais bela de toda a
minha vida. A mais bela e a mais exótica. Tão estranha quanto diferente.
Tão surpreendente quanto apaixonante.
Os olhos dela eram diferentes. Cada um de uma cor. Um azul e um
verde.
— Já sei, vai perguntar sobre a cor dos meus olhos também.
— Você também odeia essa pergunta?
— Não. Chama-se heterocromia, já nasci assim. Um olho igual ao da
minha mãe e o outro igual ao do meu pai. Minha mãe disse que eles
ficaram discutindo a gravidez inteira sobre qual seria a cor dos meus
olhos, então decidi agradar a ambos.
Achei tão incrível que fiquei boquiaberto, encantado.
— Não vai me responder? — ela perguntou, levantando uma das
sobrancelhas.
— O quê?
— Você é o menino que ganhou o programa de canto?
— Sim, sou eu.
— Gosto da sua voz. Pode cantar uma música para mim?
— Hã, posso.
— Cante a mesma que cantou hoje.
Limpei a garganta e cantei. Ela fechou os olhos enquanto ouvia, e
balançou o corpo de um lado para o outro, vagarosamente.
Observei-a enquanto isso. Seus lábios estavam curvados para cima,
em um sorriso sutil.
Senti algo bem esquisito fazendo cócegas na minha barriga. Não
entendi o que era, mas gostei.
Quando terminei a música, ela abriu os olhos novamente. Eram
grandes, com contornos angulados e belos, com cílios compridos e
volumosos. A íris verde atingiu um tom amarelado, como o olho de um
gato.
— Sua voz é ainda mais bonita pessoalmente.
— Você gostou?
— Meu olho mudou de cor?
— Sim.
— Meu olho verde muda de cor todas as vezes que me sinto muito
bem. Não tem como mentir, ele sempre me entrega. Sempre brinco que meu
humor tem cor.
— E qual é a cor do seu humor?
— Amarelo, claro. Amarelo para bom humor e verde para o mau
humor. — Ela soltou uma risada fofa.
— Então, obrigado pelo elogio.
— Você pode cantar mais para mim?
— Posso. — Eu me vi tão maravilhado com aquela menina, que
ficaria cantando para ela por horas e mais horas a fio.
Após cantar mais uma música, perguntei:
— Você já sabe?
— O quê?
— Se gosta de mim. Você tinha dito que não sabia se gostava de mim,
por conta da pergunta que fiz.
— Ah, sim. Eu gosto de você. Sua voz me fez mudar de ideia.
Poderíamos ser amigos. Você quer? Ser meu amigo?
— Quero — respondi, com sinceridade.
— Minha mãe me disse que os verdadeiros amigos guardam os
segredos um do outro.
— Se sua mãe disse, deve ser verdade.
— Então, quando você tiver um segredo, pode me contar. Vou
guardar comigo e nunca contar a ninguém.
— Está bem. Farei o mesmo com você.
Ela sorriu e me estendeu o dedinho.
— O que devo fazer com o seu dedinho?
— Isso se chama promessa de dedinho. Você precisa abraçar o meu
com o seu.
Fiz o que ela pediu, mas uma coisa me chamou a atenção: eu não
consegui senti-la.
— Por que não te sinto?
— Não sei. Também não te sinto.
— Que estranho.
— Mas não faz diferença, faz? Estamos juntos do mesmo jeito.
— Você tem razão.
Ouvimos uma voz ao fundo, chamando-a.
— Filha, vamos, querida. Já está na hora.
— Preciso ir — ela disse —, minha mãe está me chamando.
— Vamos nos ver novamente?
— Claro. Você é meu amigo agora.
Ela se levantou e me olhou. Fez um movimento diferente com as
mãos.
— O que isso quer dizer? — perguntei.
— Significa: nos veremos outra vez. É língua de sinais.
— É assim? — Tentei imitar os movimentos com as mãos.
Ela sorriu.
— Ficou perfeito.
— Então, ótimo. — Repeti o movimento. — Nos veremos outra vez.
Ela acenou e saiu correndo em direção à sua mãe.
Acordei com um sorriso no rosto. Mas, quando percebi que era um
sonho, ele se desfez.
Nunca quis tanto que um sonho fosse real como com aquele.
Passei o dia repassando todas as falas. Eu conseguia me lembrar de
tudo com clareza.
Para a minha surpresa, na noite seguinte, sonhei com o mesmo
gramado entremeado de flores laranja e aquele parquinho dos balanços de
madeira.
O que eu tanto quis quando estava acordado aconteceu. Lá estava ela
novamente, a menina dos cabelos de cereja.
— Oi. — Ela correu em minha direção.
— Você está aqui — afirmei, como se não estivesse acreditando
naquilo.
— Claro que estou. Eu não disse que nos veríamos outra vez?
— Disse.
Sentamo-nos no gramado mais uma vez, um de frente para o outro,
com as pernas cruzadas.
— Como é seu nome? — perguntei.
— Me chame de Lia.
— Esse é seu nome?
— Não, mas prefiro que me chame assim.
— Está bem.
— Gosto de ser amiga do MatLew — ela se gabou.
— Me chame de Matthew.
— Por quê?
— Porque os mais próximos me chamam pelo nome, não pelo
apelido. Se você vai ser minha amiga de verdade, precisa me chamar pelo
nome.
— Entendi. Vai cantar para mim novamente?
— Se você quiser.
— Eu quero! Você se importa de ficar cantando o tempo todo?
— Não, é o que eu mais gosto de fazer. Qual é a sua música favorita?
Lia respondeu a minha pergunta e, por coincidência, eu conhecia.
Também gostava bastante da canção, portanto foi fácil alcançar a
entonação correta.
— Sim. Vou cantá-la para você, então.
Ela abriu um sorriso largo e acenou positivamente com a cabeça.
Comecei a cantar e a menina fez exatamente como da última vez.
Fechou os olhos e esboçou um sorriso sutil, balançando o corpo devagar
de um lado para o outro.
Percebi o quanto aquela cena me agradava. Comecei a gostar ainda
mais de cantar, só pela maneira como ela se comportava enquanto minha
voz saía na música.
— Você quer brincar no balanço? — sugeri, depois de ter cantado
para ela.
— Sim, eu amo balançar!
Corremos até o brinquedo de madeira e nos sentamos, cada um em
um balanço diferente.
Observei enquanto ela tirava as sapatilhas, deixando-as de lado. Os
pés dela eram lindos, com dedinhos delicados e solas avermelhadas.
— Eu amo aventura! — gritou, enquanto balançava bem mais alto do
que eu.
Joguei as pernas para cima e para baixo, a fim de tentar acompanhá-
la na altura do balanço.
A risada dela soou, muito fofa, uma risada gostosa que me fez rir
também.
Brincamos de bater nossas mãos, enquanto ela ia para lá e eu para
cá. O mais divertido de tudo era que não sentíamos o contato da nossa
pele. Elas passavam rapidamente uma pela outra como fantasmas. Isso a
fazia rir mais ainda.
Repetimos o gesto por longos minutos, até que a mãe dela voltou a
chamar e tivemos que nos despedir.
Lia fez o gesto com as mãos indicando que nos veríamos de novo.
Retribuí meneando a minha da mesma forma.
Quando acordei, percebi o mesmo sorriso nos lábios.
Daquele dia em diante, passei a sonhar com ela todas as noites, não
importava onde eu estivesse, poderia ter dormido na minha cama mesmo,
em um ônibus ou em um avião, ela sempre aparecia. O sonho sempre
acontecia no mesmo lugar, com o mesmo parquinho e as mesmas flores
laranja, mas a conversa nunca era igual.
Passamos a nos conhecer melhor a cada sonho. As conversas eram
divertidas, às vezes profundas, com segredos e promessas.
No início, brincávamos nos brinquedos, corríamos e fazíamos coisas
de crianças. Mas, com o passar dos anos, acabamos amadurecendo e apenas
conversávamos sentados na grama, ou no balanço.
Contei tudo sobre a minha vida a ela, não escondi nada. Lia conhecia
tudo sobre mim, sobre meus sonhos, minhas viagens, meus amigos, meu
cansaço diário e meus shows. Contei a ela sobre os detalhes de cada país,
sobre cada cultura e sobre meus fãs.
Ela me perguntava sobre tudo e eu sempre respondia.
Aos quatorze anos, me dei conta de que gostava de Lia mais do que
como uma amiga. Percebi porque eu não via a hora de dormir e me
encontrar com ela.
Meus dias eram maravilhosos, passei a fazer shows quase a semana
inteira, sempre em lugares variados, conhecendo pessoas diferentes e sendo
adorado aonde quer que eu fosse.
Mesmo aproveitando tudo e me maravilhando com a minha carreira,
que só evoluía, meus pensamentos ficavam focados em Lia vinte e quatro
horas; minhas noites passaram a ser mais queridas do que os dias.
Programei-me para contar a ela o que eu estava sentindo.
Eu estava dentro do avião, indo para a Alemanha, quando peguei no
sono e a encontrei.
Ela corria em minha direção enquanto eu a analisava. Lia já havia
completado quatorze anos, estava com um corpo mais desenvolvido, mais
bonito.
Vestia um vestido florido na cor salmão e estava descalça. Não sei o
porquê, mas ela vivia aparecendo descalça nos meus sonhos. E eu gostava,
gostava muito dos pés dela.
Sentou-se ao meu lado e me olhou de perto, com um sorriso no rosto.
Os olhos estavam tão bonitos e claros que me faziam ficar encantado.
Seu rosto estava criando um formato cada vez mais bonito, conforme
a idade ia passando. Era claro como a neve, liso e sem defeitos, como uma
folha de papel em branco. Seus lábios compartilhavam uma cor muito
parecida com a dos cabelos, cor de cereja.
Estes, por sua vez, eram de uma beleza incomparável. Estavam
sempre soltos. O comprimento era razoável, chegava até o meio das costas
e fazia ondas naturais que enchiam e davam volume aos fios. Havia uma
franjinha, que ela sempre jogava para o lado.
O cheiro era de maçã verde, claramente.
Às vezes, eu torcia para que o vento soprasse mais forte, só para
conseguir sentir o perfume com mais evidência. Às vezes, ela mesma
balançava o cabelo propositalmente, só para eu sentir.
— Matthew! — ela exclamou.
— Oi, Lia. — Sorri também, ainda olhando para seus olhos.
— Como foi seu dia hoje?
— Foi bom.
— Você está bem? — perguntou como se estivesse estranhando
alguma coisa em mim.
— Estou.
— Está triste?
— Não, Lia.
— Então, o que foi? Te conheço bem demais para saber que está
acontecendo alguma coisa.
— Tenho algo a te contar.
— Um segredo?
— Sim, um segredo.
— Prometo que nunca vou contar a ninguém. Pode confiar em mim.
— Acho que estou… apaixonado por uma garota.
Lia me olhou com espanto. Os dedinhos de seus pés começaram a se
mover na grama.
— Apaixonado? — sua voz soou baixa e retraída.
— Sim.
— Como sabe que está apaixonado?
— Eu sinto uma cosquinha na barriga sempre que ela está por perto.
Às vezes me sinto nervoso, meu coração acelera. E só penso nela o tempo
todo.
Ela olhou para o céu e colocou o dedo indicador no queixo,
pensativa.
— Acho que também estou apaixonada, então.
— O quê? — Arregalei os olhos. — Por quem?
—Você vai guardar segredo?
— Claro.
— Bem, sinto essas mesmas coisas quando estou com você. Acho que
estou apaixonada por você, Matthew.
Fiquei encantado com as palavras dela. Soou tão inocente, tão doce,
que senti vontade de abraçá-la com força e nunca mais soltar. Suspirei
aliviado.
— Também estou por você, Lia.
— O que fazemos agora? Isso muda alguma coisa?
— Acho que não. Só muda dentro da gente. O que sinto por você hoje
é bem maior do que o que eu sentia quando era criança.
— Me sinto feliz em saber que é recíproco.
Sorrimos um para o outro.
Ela pousou a mão na grama e eu fiz o mesmo.
Nossas mãos estavam próximas. Eu podia sentir a vibração da pele
dela, o calor de suas veias. Mas sabia que não sentiria nada se tentasse
tocá-la.
Sempre fazíamos isso, ficávamos próximos, sentindo a presença um
do outro, mas sem tocar.
— Canta para mim? — ela pediu.
— Claro.
Cantei sua música favorita e a assisti fechar os olhos.
Fiquei feliz com nossas declarações. Havia sido mais fácil do que eu
imaginava. Mas, na verdade, tudo com Lia era mais fácil. Ela parecia me
entender em todos os sentidos. Nem falar de sentimentos parecia ser
complicado.
Passei os dois anos seguintes me guardando só para ela. Mas, aos
dezesseis, comecei a sentir certas necessidades pessoais e íntimas, e eu
sabia que Lia nunca conseguiria satisfazê-las.
Dei o meu primeiro beijo quando estava em Madrid, na Espanha,
dentro do meu camarim com uma fã.
Eu não entendia nada do que ela falava, mas sabia que estava se
insinuando para mim. Beijar-me era tudo o que a menina queria, assim
como todas as outras garotas do mundo todo.
Eu não sabia como fazer, mas quem se importava com isso? Eu era
MatLew, um astro da música. Mesmo que beijasse mal, ela falaria bem de
mim.
Não peguei seu telefone e não mantive contato, mesmo assim fiz dela
a menina mais feliz do mundo, ainda que só com um beijo.
Gostei da reação que meu beijo causou naquele dia.
Senti-me culpado depois, como se tivesse traído Lia. Mas, mesmo que
a amasse, eu sabia que nunca conseguiria fazer essas coisas com ela.
Infelizmente.
Essa foi a primeira coisa que lhe escondi dentro de seis anos. Não
quis contar, não quis causar nenhum episódio tenso entre nós.
Fiz novamente. Beijei uma, depois duas, depois três, até que comecei
a perder as contas. Não era nada importante, nada que realmente fizesse a
diferença em meus sentimentos, mas continuei fazendo porque parecia ser
necessidade.
Meu pai disse que estava tudo certo, que fazia parte da idade e dos
hormônios. Mas ele não sabia da existência da garota dos meus sonhos.
Quanto mais eu beijava, mais queria Lia, mais a desejava.
Certa noite a encontrei, como de costume:
— Lia?
— Sim?
— Por que sonho com você? — perguntei.
— Eu não sei.
— Não quero te ter só nos meus sonhos.
— Eu sei disso.
— Eu queria que você fosse real.
— Quem disse que não sou real?
— Você é real, mas só para mim.
— Isso não é o suficiente?
— Não mais.
— O que quer dizer?
— Não tenho mais a mentalidade de uma criança, Lia. Só estar perto
de você não basta mais.
Ela ficou quieta, me olhando. Continuei:
— Se você é real, se existe de verdade, me diga onde posso te achar.
Eu atravessaria o mundo para te encontrar.
— Não tenho dúvidas quanto a isso.
— Então, me diga.
— Você nunca fez esse tipo de pergunta antes. Por que agora?
— Eu já disse. Quero tocar você.
— Podemos só…
— Não, Lia! Não quero ficar perto, quero tocar de verdade!
A mãe de Lia chamou e ela se levantou mais rápido do que o normal.
Fiquei esperando que fizesse o gesto com as mãos dizendo em língua
de sinais que nos veríamos novamente.
Meu coração esquentava todas as vezes que a via fazendo aqueles
movimentos.
— Nos veremos outra vez — eu disse, fazendo o mesmo gesto.
Acordei triste. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas nenhuma
caiu.
Minha mãe se via ao meu lado e reparou que eu não me encontrava
bem.
Estávamos dentro do carro. Eu, ela, meu tio e o motorista. O próximo
show seria em Quebec, Canadá.
— O que houve, querido? — ela perguntou.
Não sei o motivo, mas naquele momento decidi confiar na minha mãe
para contar o que estava acontecendo.
Na minha frente, ela não demonstrou achar um absurdo, eu me senti
bem por isso. Mas então, assim que teve a oportunidade, marcou uma
consulta com a doutora Nancy, psicóloga e psiquiatra.
Não vou mentir, fiquei chateado de verdade com a atitude dela, e
percebi que Lia não era um assunto que eu poderia dividir com as pessoas.
Ninguém entenderia.
Mesmo contra a minha vontade, compareci a algumas sessões de
terapia com a doutora Nancy, mas só a partir do quinto encontro que me
abri para contar o que estava acontecendo.
Aos dezessete eu estava no auge da minha fama. Meus amigos eram
pessoas da música também, tão famosos quanto eu.
Tudo o que eu fazia chamava a atenção da mídia. Cada passo meu
importava para o mundo.
Escolhi os melhores artistas do momento para fazerem parcerias
comigo em videoclipes e músicas. Isso chamou muita atenção e ainda mais
visibilidade para mim.
Em meu Instagram, eu já havia atingido quarenta e sete milhões de
seguidores, e crescia cada vez mais.
Quando percebi, já nem me dava mais conta de quanto dinheiro eu
tinha. Entrava muita grana por todos os lados, por conta dos trabalhos que
eu fazia.
Um único vídeo no YouTube me rendia milhões. Uma participação
em qualquer que fosse o programa me rendia mais milhões.
Ficou muito fácil ganhar dinheiro.
Apesar disso, permaneci morando com meus pais e desfrutando de
tudo que eu poderia fazer ao lado deles.
Minha mãe merecia que eu a enchesse de ouro, era a mulher mais
dedicada a minha carreira que já conheci. E, apesar de ser rodeado de
amigos, meu pai era meu grande companheiro. Largava qualquer coisa só
para passar algumas horas comigo.
Ainda aos dezessete anos, decidi tirar férias dos shows por quase um
ano. Viajei e me dediquei à minha família. Também me preparei para mais
uma lista de músicas novas.
Eu estava cansado, merecia aquelas férias. Os fãs entenderam.
Continuei interagindo nas redes sociais, postando fotos e fazendo
lives. Isso pareceu ser o suficiente, por um momento.
Eu e meus pais viajamos para Orlando, onde passamos trinta dias.
Depois ficamos por mais alguns meses na nossa casa de praia em
Vancouver, no Canadá.
O que mais passei a ver durante esse período foram fotos minhas na
praia. Sempre havia um paparazzo escondido, pronto para registrar algum
movimento meu.
A praia começou a ficar cada vez mais cheia, até o momento em que
não pude mais frequentar como uma pessoa normal. Eu praticamente não
conseguia nem me mover com aquele tanto de fãs pedindo autógrafos e
atrapalhando meu descanso. Por esse motivo, comecei a usar meu iate para
ir para bem longe, onde pudesse ficar sozinho e tranquilo.
Foi em uma dessas minhas idas ao meio do mar que peguei no sono e
encontrei com Lia.
— Senti sua falta de ontem para hoje — ela disse.
— Eu também — confessei.
Estávamos deitados na grama.
Lia sorriu enquanto me olhava.
— Por que sorri? — questionei-a.
— Gosto de te admirar.
— O que mais gosta em mim? — perguntei, curioso.
— Gosto das suas covinhas. Sem dúvidas, é o que eu mais gosto.
Sorri, só para que as covinhas se formassem.
— Gosto de tudo em você — comentei.
— Não tem uma coisa específica de que goste mais?
— Gosto dos seus pés.
Ela soltou uma gargalhada.
— Achei que diria outra coisa.
— O que pensou que eu diria?
— Pensei que diria meus olhos.
— Gosto demais deles também. Não tem como não gostar.
— Também não tem como não notar.
— Você tem razão. Mas são lindos. Muito lindos. Gosto
especialmente do olho verde, que muda sempre de cor de acordo com seu
humor.
— Você ainda repara nisso?
— Claro, amo vê-lo mudando de cor. Eu disse que gosto dos seus pés,
mas isso não quer dizer que não gosto das outras coisas também.
— Tem alguma coisa em mim de que você não gosta?
— Tem.
— O quê?
— Não gosto que não seja real.
— Matthew…
— O que me prova que é?
— Eu sou real.
— Por favor, Lia. Diga-me alguma coisa. Já tenho dezessete anos,
não posso ficar lidando com isso para sempre.
— Eu sou real, prometo isso a você.
Ela pousou a mão na grama e eu fiz o mesmo, para sentir a
proximidade das nossas palmas.
— O que posso fazer para te ter?
— Você já me tem.
— Não de verdade. — Franzi a boca pesarosamente. — Você é tão
perfeita! Como pode ser fruto da minha imaginação? Nem mesmo em meus
mais insanos sonhos eu seria capaz de imaginar uma menina tão bonita
quanto você.
— Eu sou fruto da sua imaginação, Matthew.
Olhei-a por um instante. O que ela disse me doeu profundamente.
Lia nunca tinha dito aquilo. Ouvir aquelas palavras de sua boca foi
bem pior do que acordar e saber que era tudo um sonho.
— Você não existe, então? — Minha garganta doía.
— Eu não disse isso.
Olhamo-nos por um momento em silêncio total. Ela estava tão linda
que me causava calafrios.
Lia já parecia uma mulher formada, apesar de ter 1,60 de altura e ter
um rosto angelical.
Seu corpo tinha as curvas mais lindas que eu já havia visto na vida.
Não existia nada que eu desejasse mais que tocá-la.
— Posso tentar? — perguntei.
— Claro.
Ergui o braço vagarosamente, hesitando em alguns momentos.
Aproximei a mão de seu rosto e, quando faltavam centímetros para que eu
pudesse tocá-la, percebi o calor de sua presença em contato com a minha
pele. Cheguei mais perto para verdadeiramente encostar nela, mas não
senti nada. Nada.
Acordei logo em seguida, com câimbra na mão.
Passei uma semana analisando a conversa que tive com Lia. Ela
dissera que, de fato, era fruto da minha imaginação. Isso doeu, mas era algo
que eu esperava ouvir algum dia na vida.
A essa altura, eu já estava havia aproximadamente um ano fazendo
terapia com a doutora Nancy. Nós conversávamos muito sobre Lia e,
mesmo que tentasse me forçar a vasculhar o cérebro atrás de algum indício
de que ela era real, não encontramos.
Tudo apontava para sua inexistência.
Fiquei tão chateado e constrangido ao mesmo tempo, que tomei a
decisão mais difícil da minha vida até então: eu iria pedir a Lia que não
aparecesse mais.
Seria tão doloroso quanto vê-la morrer. Mas eu precisava fazer isso.
Reparei no quanto seu olho estava amarelo quando nos olhamos pela
última vez.
Aquilo queria dizer que ela estava gostando de alguma coisa.
— Você fez uma tatuagem nova — ela disse.
— Fiz.
— É muito bonita.
Passou o dedo por cima do meu braço, contornando-o de perto, sem
tocar.
Minha pele se arrepiou com a proximidade.
— Eu a fiz para me lembrar de você para sempre — comentei.
Tatuada em meu braço, havia uma menina segurando uma flor
laranja. Ela estava de lado, o rosto não era nítido. Embaixo estava escrito
“A Menina dos meus sonhos”.
— Eu te amo — ela disse, em um sussurro.
— O quê?
— Eu te amo, Matthew.
— Lia, eu… Eu também te amo. Mais do que você pode imaginar. O
que sinto está praticamente impossível de sustentar, de tão grande e forte
que é.
— Mas…?
Meu estômago se revirou dentro de mim.
O olho de Lia mudou progressivamente de cor. Ficou totalmente
verde. Um verde escuro e vibrante.
— Não posso mais continuar com isso, Lia.
Ela olhou para baixo. Fitou a grama, sem expressão nenhuma.
— Não quer mais que eu apareça?
— Não, não quero — minha voz estava firme, apesar do coração, que
martelava em minha caixa torácica. — Somente se for real. Não mais em
sonho. Não posso mais desejar dormir em maior proporção do que desejo
estar acordado.
— Tem certeza disso? — perguntou com lágrimas nos olhos.
— Tenho. Eu te amo, Lia. Mas não posso mais viver assim.
— Posso te pedir uma coisa?
— Claro.
— Me procure? Me procure pelo mundo todo, Matthew, em todos os
cantos deste planeta. Tenho certeza de que estarei te aguardando em algum
lugar.
— Não tenho tanta certeza quanto você.
— Pode só tentar?
— Eu farei isso, Lia. Nunca vou te esquecer, nunca vou desistir de te
encontrar. Ter você de verdade é o que sempre sonhei.
— Eu sei disso.
Ouvimos a voz da mãe dela soando, chamando-a para ir embora.
Nós nos levantamos.
— Eu vou sentir a sua falta — ela disse.
— Eu também. Todos os dias da minha vida.
— É uma promessa?
— Sim. É uma promessa.
Ela levantou o dedinho. Eu o enlacei com o meu.
Não foi possível sentir o toque, mas o que senti dentro de mim quando
ela se virou sem fazer os gestos com as mãos indicando que nos veríamos
de novo foi tão real quanto uma lança entrando em meu coração.
Uma parte de mim queria vê-la usando a língua de sinais. Eu queria
muito saber que a veria novamente.
Mas naquele momento, enquanto ela corria em direção à sua mãe,
entendi que nunca mais a veria.
Pelo menos não nos sonhos.
Lembro-me como se fosse hoje quando vi MatLew pela primeira
vez. Ele estava participando de uma audiência de canto no Canada’s Got
Talent, assisti pela televisão.
Achei o máximo termos a mesma idade e vê-lo cantar tão bem. Por
um momento, me imaginei lá, arrasando como ele.
Não sei por que, mas, quando vemos alguém da mesma idade ou da
nossa faixa etária, acabamos nos questionando se seríamos capazes de fazer
o mesmo.
Com certeza, eu não sou páreo para MatLew, não naquela
intensidade, não daquele jeito.
Quando bati o olho nele, percebi que se tratava de alguém diferente
das outras pessoas. Havia um brilho que o envolvia de cima a baixo.
Quando sua voz soava, era como se todo o resto do mundo parasse, como se
nada mais existisse.
Não era só eu que sentia isso. Todos sentiam. Era mais do que notório
o seu amor pela música.
Na primeira audição, o mundo inteiro já sabia que ele ganharia o
programa.
Foi assim que, aos dez anos, me apaixonei pela primeira vez. Por um
garoto que estava a vários países de distância de mim, por alguém que
nunca me notaria.
Meu nome é Marília Duarte, uma garota brasileira que sempre morou
na Zona Sul de São Paulo, Brasil.
Seria mentira se eu dissesse que levo uma vida normal. Turbulenta é a
palavra certa. Uma vida bem turbulenta.
Até quase meus quatro anos de idade, tive uma criação e vida
perfeitas ao lado dos meus pais. Mas, então, eu e minha mãe fomos
atropeladas enquanto atravessávamos a rua. Fiquei gravemente ferida e ela,
para minha infelicidade , não resistiu.
Eu ainda era muito pequena, portanto não sofri em grande proporção.
Só senti, e sinto, falta de uma figura materna.
Durante os anos que seguiram, morei sozinha com o meu pai em um
apartamento de classe média, com dois quartos grandes e sacada gourmet.
Ele se esforçou muito para que eu tivesse os melhores estudos e condições
de vida, na medida do possível. A escola na qual estudei era particular e
muito bem-conceituada. Felizmente, seu trabalho como dentista lhe rendia o
suficiente para que vivêssemos bem.
Presenciei seu sofrimento pela perda da minha mãe e não foi fácil
consolá-lo. Começou a beber depois de alguns meses. Não era nada
exagerado no início, mas mesmo assim me parecia bem complicado vê-lo
desmoronando aos poucos.
Quando completei dez anos de idade, seis anos após a morte da minha
mãe, meu pai já havia virado um alcoólatra.
Eu passava o dia todo em casa com a empregada, após a escola, e
ficava esperando por ele na esperança de que chegaria sóbrio do serviço.
Mas passei a não ser mais tão importante quanto costumava ser, assim
pensava. Pois, em vez de ir para casa sóbrio como eu desejava, ele saía do
serviço e ia beber em algum bar da região. Chegava tarde em casa todas as
noites, tonto e embriagado, então ia dormir.
Às vezes nós passávamos dias sem nos falarmos. Ele mal se lembrava
da minha existência.
Lourdes, nossa empregada, é que sempre ficava comigo e me ajudava
nas lições de casa. Se não fosse por ela, acredito que nem ler ou escrever
direito eu saberia.
Ela me ensinou tudo o que eu sabia na época, até mesmo sobre
meninas e garotos. Em todas as dúvidas que eu tinha inerentes a minha
idade, era ela quem me ajudava e aconselhava.
Em certo momento, comecei a torcer para que meu pai chegasse o
mais tarde possível do trabalho, porque sua situação piorava gradativamente
e passei a ter medo dele, medo do que poderia fazer comigo.
Ele nunca tinha me batido, até então, mas às vezes gritava e
cambaleava até cair no chão. Isso me assustava muito.
Lembro-me da sensação de ficar no meu quarto fingindo que estava
dormindo, tampando até a respiração para deixar o cômodo o mais
silencioso possível, só para que ele não notasse a minha presença.
Aos doze anos, meu pai despediu Lourdes, disse que eu já era
grandinha o suficiente para arrumar a casa e fazer comida. Enfatizou que
não ia continuar gastando dinheiro com uma menina folgada como eu.
Fiquei tão chateada que passei dois dias sem comer nada, só trancada
no meu quarto. Meu pai nem percebeu.
Lourdes me ligou após esses dois dias e perguntou se eu estava me
alimentando. Fui sincera e disse que não sabia mexer no fogão. Então ela,
morrendo de dó, passou a ir à minha casa todos os dias à tarde para
cozinhar para mim e me ajudar a arrumar alguma coisa que estava fora do
lugar. Mesmo não sendo remunerada para isso.
Ficou um ano inteiro fazendo isso, na verdade. Foi assim que aprendi
a cozinhar o essencial.
No ano seguinte, meu pai foi despedido do emprego por ter sido pego
bebendo em horário de trabalho. Portanto, passou a ficar mais tempo em
casa, o que fez com que Lourdes se afastasse por completo.
Felizmente, eu já havia aprendido o básico, então passei a cozinhar e
limpar a casa todos os dias, seguindo à risca as regras e exigências do meu
pai. Ele dizia que pagava as contas e gastava muito dinheiro comigo, então
o mínimo que eu deveria fazer era limpar tudo.
Com quatorze anos, achei que um milagre estava acontecendo quando
ele arrumou uma namorada. No início parecia que ela era um anjo que tinha
chegado para fazer a diferença em minha vida. Alguém que chega para te
salvar e te desafogar. Mas achei errado.
No primeiro ano de namoro, minha vida pareceu ter mudado de vez.
Meu pai parou de beber, passou a se arrumar mais e até conseguiu um novo
emprego.
Eu estava indo bem nos estudos, fazendo novas amizades e tirando
boas notas.
Meu apelido na escola era exótica, isso por conta da heterocromia nos
olhos e do cabelo vermelho.
Estranho, eu sei, mas todos queriam ser meus amigos só por conta dos
meus olhos de cores diferentes. Um azul e um verde, no caso.
Quando completei quinze anos, exatamente no dia do meu
aniversário, meu pai se casou com a Rosana. Eles prometeram sair comigo
para comemorar o aniversário após o casório, mas isso não aconteceu. Não
demorou muito para que ela largasse o emprego e vivesse dentro de casa
comigo, obrigando-me a limpar e cozinhar sozinha, enquanto ficava no
celular.
Vivi os dias mais terríveis da minha vida dentro daquela casa, pelo
menos era o que eu pensava na época.
De manhã eu ia para a escola e, à tarde, passava todas as horas
disponíveis fazendo favores à Rosana.
Eu ia ao mercado, comprava o que precisava, fazia a comida e
arrumava a cozinha. Depois, quando meu pai chegava, ela dizia que tinha
feito tudo e ainda perguntava: “Ficou do jeito que você gosta, benzinho?”
Secretamente, passei a estudar inglês sozinha. Eu pesquisava na
internet e fazia minhas próprias anotações. Isso porque meu sonho era
poder ir a algum show do MatLew.
Pensar que um dia eu poderia estar frente a frente com ele era a maior
insanidade do mundo, mas eu gostava. Gostava de me imaginar falando em
inglês com meu ídolo, dizendo que eu o amava profundamente e que era a
maior fã de todas.
Ele também estava com seus quinze anos e, sinceramente, mais lindo
do que nunca. Eu amava o seu estilo, a maneira como se vestia e como se
portava. Tinha os cabelos compridos, até os ombros, no tom mais lindo de
castanho-claro, e com leves ondulações naturais. Seus olhos eram verdes,
mas tão claros que, em determinados momentos e fotos específicas,
acabavam se confundindo com um tom de azul maravilhoso. O sorriso era o
mais espetacular do mundo, formando covinhas fundas em ambas as
bochechas e deixando à mostra dentes claros e retos; mas os dois da frente
eram levemente maiores do que os outros, delineando o sorriso mais gentil
que eu já havia visto. Seu nariz seguia ângulos cautelosos e adoráveis,
empinando levemente na ponta.
MatLew sempre usava calças jeans pretas, ou em tons escuros
derivados. Estavam sempre justas às pernas. Suas camisetas, ou camisas,
eram sempre coloridas, chamativas e largas, dando realce aos seus olhos. E,
nos pés, o costumeiro All Star ou uma bota preta de couro.
Sua beleza e espontaneidade chamavam a atenção. No palco, era
comum vê-lo brincar com os fãs. Nas ruas, parava para dar atenção e
abraçar. Sua boca sorridente sempre estava pronta para soltar uma piada ou
uma gargalhada gostosa. Ele era original, despojado, cheio de si e
transbordava confiança.
Eu sabia que nunca conseguiria chegar perto ou conhecê-lo
pessoalmente, não dava para ser tão ingênua e pensar o contrário. Minhas
condições de vida não condiziam com as dele. Então, o que me confortava e
me levava para mais perto era ouvir as músicas com meus fones de ouvido.
A sensação era de leveza e de aconchego. A voz parecia estar tão perto, que
chegava a me arrepiar com intensidade.
Eu amava todas as suas músicas, conhecia todas de cor e salteado.
Assistia a todos os vídeos e estava por dentro de todas as novidades. Isso
era o que me acalmava, um verdadeiro bálsamo para minha alma.
Enquanto eu sofria uma profunda opressão na casa do meu pai, o que
me confortava era entrar no meu quarto à noite e ouvir a voz maravilhosa
de MatLew adentrando meus ouvidos sedentos. Por isso digo que ele, sem
saber, me salvou no momento mais difícil da minha vida.
Certo dia, Rosana entrou no meu quarto no meio do dia e me pegou
cantando. Disse que minha voz era horrível e que eu precisava fazer o favor
de não cantar mais. Inclusive, se eu pudesse ficar sem falar, seria melhor.
Eu não sabia o motivo, mas minha voz a irritava.
A televisão que ficava no meu quarto foi tirada e vendida, pois
precisavam de dinheiro para liquidar as contas e, como eu não ajudava com
nada, era justo tirar alguma coisa de mim para pagar o que estava em atraso.
Fui proibida de assistir à televisão da sala, porque, segundo Rosana,
tudo o que eu via era uma grande besteira e não me acrescentava nada.
Muito menos se fosse algo vinculado a MatLew.
A única exceção era se eu assistisse a jornais e programas de tragédia.
Isso, com certeza, me acrescentaria muito conhecimento sobre a atualidade.
Em uma tarde qualquer, Rosana me disse que iria ao mercado fazer
compras. Achei bem estranho, pois era eu quem estava acostumada a fazer
isso.
Pensei que talvez algum milagre estivesse acontecendo, mas, quando
ela chegou, entendi por que quis fazer o serviço.
Colocando a compra em cima da mesa, ela separou tudo e foi bem
clara quando disse o que era dela e do meu pai, e o que era meu. A partir
daquele dia, eu não estava mais liberada para comer das mesmas coisas que
eles.
O peito de peru e o queijo branco eram deles, a mortadela era minha.
O pão francês era deles, o pão de forma era meu. A Coca-Cola era deles, a
Dolly era minha. A bolacha mais gostosa era deles, a mais sebosa era
minha. E assim por diante.
Em um dia específico, Rosana me proibiu de ouvir as músicas de
MatLew. Sinceramente, eu estava aguentando calada tudo pelo que passava.
Mas não pude aceitar ser impedida de ouvir o meu cantor favorito.
Àquele estágio da vida, nada mais me alegrava, somente ouvir as
músicas dele. Eu sentia como se a voz de MatLew me enchesse de vida
todas as vezes que me sentia vazia.
Neguei-me a aceitar. Rosana tomou meu celular da minha mão e eu
tomei de volta. Gritei com ela, disse que poderia tirar tudo de mim, menos
aquilo.
Em primeiro momento, estranhei que simplesmente ficou quieta e foi
para o quarto. Achei que tinha se assustado com a minha atitude, já que eu
nunca havia feito algo igual. Mas então, quando meu pai chegou, eu a ouvi
gritar com ele no quarto. Dizia que tinha me visto na calçada da escola aos
amassos com dois meninos diferentes.
Meu pai saiu igual a um animal do quarto e me jogou na cama. Gritou
comigo e me deu três socos no rosto. Disse que eu era uma decepção para
ele, que o envergonhava profundamente.
Segurei o choro até que ele saísse do quarto. Então, caí em prantos o
mais silenciosa possível.
Minha boca ficou inchada e meu olho direito, roxo.
Fui obrigada a ir para a escola daquele jeito. Foi o dia mais
humilhante da minha vida.
No dia seguinte, fui chamada na sala da coordenadora. Ela me
questionou sobre os hematomas, mas jurei que eu havia caído enquanto
pulava corda na rua com meus amigos. Expliquei que meu pé se enroscou
na corda, acarretando minha queda com o rosto no chão. Evitei mencionar
meu pai, pois não quis que ele levasse a culpa, mesmo que fosse culpado.
Almocei dentro da sala de aula sozinha, enquanto todos estavam no
refeitório. Eu não queria aparecer com o rosto roxo no meio da escola
inteira.
Pedi para que minhas amigas me deixassem sozinha e elas
respeitaram.
Um menino que eu não conhecia entrou na sala. Ele era
razoavelmente bonito, tinha olhos azuis e cabelos loiros raspados. Usava
uns óculos pequenos diante dos olhos.
Ele se sentou ao meu lado e me olhou por um instante.
— Por que está aqui sozinha? — perguntou.
— Quem é você? — perguntei de volta.
— Meu nome é Luiz. Estudo aqui na escola também.
— Por que nunca te vi?
— Porque estou no último ano. Os nossos horários são diferentes.
— Por que está aqui?
— Eu estava passando pelo corredor para ir ao banheiro e te vi
sentada aqui sozinha. Senti vontade de saber se está bem. Você está bem?
Não o olhei diretamente, por vergonha da boca inchada e do olho
roxo.
— Estou bem, obrigada. Pode ir, ou vai acabar perdendo sua aula.
Ele tirou do bolso da calça um pedaço de papel e anotou, com um
lápis qualquer que pegou de alguma mesa, seu telefone.
— Sei que vai parecer estranho — ele disse —, mas vejo que você
não está bem, e desconfio que esteja passando por maus-tratos dentro de
casa. Não tem problema se não quiser se abrir comigo agora, mas faço
questão de que fique com meu telefone. Se precisar de alguma coisa, estarei
à sua disposição. Não tenho muito para te ajudar, mas acho que nesses
momentos um ombro amigo é o suficiente.
Peguei o papel, calada.
Achei bacana da parte dele, pois nem me conhecia, nem sabia o que
estava acontecendo comigo e mesmo assim foi solidário. Senti sua
preocupação através dos seus olhos e em cada palavra que saiu da sua boca.
Guardei o papel, torcendo para que eu nunca precisasse ligar. Pelo
menos, não para fazer relatos sobre maus-tratos.
Novamente, achei que algum milagre poderia estar acontecendo. Eu
estava carente e triste demais para enxergar a realidade. Mas a verdade é:
quando alguém aparece na sua vida como um anjo, parecendo que vai te
tirar do fundo do poço, desconfie. Na maioria das vezes, as pessoas não são
boas o bastante para fazer isso.
Passei isso com Rosana e também com Luiz.
Pouco tempo depois, completei dezesseis anos. Eu passava bem,
apesar da turbulência que vivia dentro de casa. Meu rosto não estava mais
roxo e meu pai não bateu mais em mim até então, portanto, mesmo que eu
tivesse guardado aquele telefone, não cheguei a usá-lo.
Certa vez, meu professor de química pediu para fazermos um trabalho
importante valendo nota para fechamento de bimestre. Precisaríamos fazer
em trio. O meu foi formado por mim, minha melhor amiga, Cecília, e
Michael. Este, mais conhecido como Mike, era um dos melhores da sala em
química, então eu e Cecília tivemos certeza de que alcançaríamos a nota
máxima no trabalho.
Marcamos de fazê-lo na minha casa, porque, àquela altura da vida, eu
também já tinha sido proibida de sair. Não disse isso a nenhum dos meus
amigos, só tentei convencê-los de que fazer o trabalho lá seria a melhor
opção.
Eles aceitaram. Marcamos a data e avisei Rosana de que teríamos
visita. Ela não pareceu se importar, pois, quando se tratava de estudos,
deixava que eu me dedicasse. Pelo menos isso.
Na data agendada, Cecília teve um problema em casa e não pôde
comparecer, só Mike se fez presente. Passamos horas no meu quarto
fazendo o trabalho, até que conseguimos terminar. Ele era um gênio em
química. Além de ter feito a parte mais difícil, ainda foi paciente para me
explicar muita coisa.
Fiquei muito feliz com a finalização do trabalho escolar, foram horas
maçantes de estudo e demandou muito esforço. Quando terminamos,
começamos a rir de alegria. Eu já estava descabelada de tanto pensar, e
Mike se via cansado, com o pulso doendo de tanto fazer contas.
Deitamo-nos na cama um ao lado do outro e assistimos a alguns
vídeos do YouTube juntos, o que foi mais do que merecido.
Rosana percebeu o silêncio e entrou no quarto com dois copos de
suco. Eu sabia que ela não estava preocupada em matar a nossa sede, queria
mesmo era saber o que fazíamos e se estávamos mesmo estudando.
Mike ficou agradecido pelo suco. Tomou e pouco tempo depois foi
embora, levando o trabalho consigo.
À noite, quando meu pai chegou do serviço, ouvi Rosana gritando
com ele no quarto. Ela dizia que eu havia mentido sobre o trabalho escolar,
que me ouviu rindo com um garoto no quarto a tarde toda e que, quando
decidiu entrar para ver o que estava acontecendo, acabou nos pegando no
flagra na cama juntos.
Meu pai ficou furioso. Jogou-me sobre o colchão outra vez e gritou
comigo. Exigiu ver o trabalho, mas não pude proporcionar isso a ele porque
a atividade que havíamos feito já não estava comigo.
— Está vendo, benzinho? Ela estava mentindo o tempo todo sobre o
trabalho escolar! — Rosana disse, às costas dele.
— Papai, eu juro…
Mas não consegui terminar a frase, ele me socou tanto que não
consegui me mexer por horas após o episódio.
Quando tudo já estava escuro, coloquei os fones de ouvido e ouvi
minhas músicas favoritas de MatLew. Chorei tanto, que meu travesseiro
ficou encharcado.
Faltei na escola por uma semana, a pedido do meu pai. Claro, ele não
quis que desconfiassem que eu havia sido agredida em casa.
Eu não estava presente no dia da apresentação do trabalho e acabei
ficando sem nota. Quando meu boletim chegou, eu estava com nota 6 em
química. Meu pai não aceitava que eu tirasse menos do que 9. Tentei
explicar que eu havia feito o trabalho, contudo não estava presente para
apresentá-lo em sala de aula. Ele novamente achou que eu havia tirado
aquela nota por não ter feito a minha tarefa. Apanhei igual a uma
condenada.
No meio da noite, eu me lembrei do número de Luiz. Peguei o
telefone e disquei, mas, envergonhada, desliguei antes que atendesse. Dois
minutos depois, ele retornou.
Não consegui proferir uma única palavra, eu só chorava. Ele pareceu
entender, pediu que eu mandasse meu endereço pelo WhatsApp e foi o que
eu fiz. Poucos minutos depois, Luiz disse que estava me esperando na
esquina do prédio onde eu morava.
Não pensei muito bem no que eu estava fazendo, o desespero me
levou a preparar uma mochila e fugir de fininho.
Recebi o abraço mais confortável da minha vida quando entrei no
carro de Luiz, ele quase chorou comigo, tamanha sua preocupação.
Eu não conseguia dizer nada, minha boca inteira sangrava e estava
inchada demais.
— O meu pai é médico — ele disse. — Vou te levar até a casa dele
para que possa dar uma olhada em você. Tudo bem?
Concordei com a cabeça, em silêncio.
Assim como Luiz havia dito, fomos à casa do pai dele, onde todos os
meus ferimentos foram tratados com a maior delicadeza do mundo. Ambos
insistiram para que eu denunciasse meu pai, mas não tive coragem de fazer
isso com ele. Mesmo que fosse um alcoólatra covarde, eu o amava e tinha
esperança de que mudasse um dia e se desculpasse comigo.
Dormi aquela noite na casa de Luiz, eu na cama e ele na sala. Como
já tinha dezoito anos, morava sozinho. A casa era pequena e simples, mas
muito bem ajeitada.
— Você dormiu bem? — ele perguntou, na manhã seguinte.
— Melhor do que qualquer noite nos últimos anos.
— Olhe, Marília, sei que você não me conhece direito, mas saiba que
quero te ajudar, com todo o meu coração. Pode ficar aqui quanto tempo
quiser, de verdade.
Luiz parecia ser tão gentil! Tratou-me igual a uma princesa durante os
seis dias que fiquei lá.
Só voltei para casa porque meu pai me ligava várias vezes por dia,
dizia que me amava e que nunca mais faria o mesmo que fez. Insistiu tanto,
que acreditei e voltei.
A primeira coisa que aconteceu quando pisei no apartamento do meu
pai foi levar um tapa na cara. Dessa vez, quem me deu foi a Rosana. Ela
nunca tinha me batido até então, mas disse que a deixei tão preocupada, que
mereci o tapa que levei.
Em seguida, meu pai apareceu. Tirou meu celular da minha mão e me
bateu até quebrar uma das minhas costelas. Disse que estava fazendo aquilo
por amor, para me corrigir.
Fiquei três dias trancada no quarto, com dores abdominais horríveis,
assim como nas pernas.
Quando finalmente consegui me levantar, tentei abrir a porta, mas não
consegui. Eles haviam passado um cadeado para eu não sair do cômodo.
Fiquei uma semana trancada, sem meu celular e sem televisão. Eu me
alimentava somente quando Rosana abria a porta e deixava um prato de
comida para mim.
Foi inevitável. Perguntei-me e tentei refletir sobre quando minha vida
começara a ser uma bosta. A verdade é que eu não me lembrava se um dia
ela já havia sido boa. Chateava-me demais saber que meu pai, a única
pessoa que eu tinha na vida, me maltratava como se eu não fosse sua filha.
Sempre foi difícil de entender isso, sempre me questionei. Ele amava tanto
minha mãe, me amava tanto quando eu era pequena… O que fiz para que
ele me odiasse tanto agora? O que mudou entre nós? Em qual momento
mudou? Eu estaria mentindo se dissesse que isso não me incomodava
profundamente.
Apesar de tantos questionamentos e de tantas horas pensando sobre
isso, não consegui chegar a conclusão nenhuma. Mas tudo o que eu queria
era que um dia meu pai percebesse seus erros e se redimisse. Eu queria que
ele voltasse a ser o pai que era quando eu ainda era somente uma
criancinha, antes de começar a beber e se lamentar pela morte da minha
mãe.
Mesmo passando por tantos maus-tratos, não acumulei raiva dele.
Ressentimento era a palavra certa, mágoa por não entender onde errei para
que me odiasse tanto.
Comecei a perceber que Rosana entrava todos os dias às 12h30 para
entregar-me o almoço, às 16h30 para o café da tarde e às 20h30 para a
janta.
Então, preparei minha mochila com todas as coisas mais importantes
para mim e, quando o relógio apontou 12h30, pus-me em pé atrás da porta.
Quando Rosana a abriu, dei-lhe um golpe na cabeça com o meu abajur. Ela
caiu no chão, desacordada. O prato que segurava também caiu, sujando
todo o piso.
Corri o mais rápido que pude, por vários e vários minutos, até chegar
à casa de Luiz. Ele já havia chegado da escola e estava se aprontando para
ir trabalhar. Atendeu-me de prontidão.
— Meu Deus, Marília! Estou tentando contato com você há dias!
— Eu sei, meu pai pegou meu celular — expliquei.
— Entre. Vou ligar no meu serviço e dizer que não vou trabalhar hoje.
— Não precisa fazer isso. Só me leve até seu pai. Consegue fazer
isso?
— O que houve? O que você tem?
Levantei minha camiseta e mostrei a região das costelas. Luiz
arregalou os olhos e levou a mão à boca. A região estava escura e bem
dolorida.
Ele fez o que pedi. Foi o caminho inteiro dirigindo, muito preocupado
comigo.
— Você tem um lugar para ir? Não pode voltar para a casa do seu pai.
— Não — respondi, sendo sincera.
Cecília era minha única amiga de verdade, mas eu sabia que não
poderia ir para a casa dela, seus pais nunca deixariam.
— Então, a partir de hoje, você vai morar comigo! — ele exigiu. —
Pelo menos até conseguir um lugar.
— Obrigada — minha voz saiu trêmula e triste. — Muito obrigada.
A partir desse dia, passei a morar com Luiz. No começo, tudo correu
muito bem. Ele se formou na escola e eu continuei estudando. Luiz ia
trabalhar à tarde e eu ficava em casa. Tive tempo o suficiente para estudar e
me preparar para o vestibular. Arrumar a casa, cozinhar e limpar não era
mais uma obrigação, mas eu fazia porque achava justo, era uma maneira de
retribuir tudo o que Luiz fazia por mim.
Ele me comprou um celular novo e algumas roupas. Tratou-me com
respeito, nunca insinuou nada que não fosse somente amizade. Dormia na
sala e eu, no quarto, jantávamos todos os dias juntos e depois assistíamos à
televisão.
Dei meu primeiro beijo aos dezessete anos, em Luiz. Foi um episódio
engraçado, totalmente espontâneo. Nós dois começamos a rir depois e nos
abraçamos.
Eu gostava dele, mas não amava. Era bacana passar as horas em sua
companhia. Nos finais de semana, sempre nos divertíamos, ele deixava de
sair com os amigos para ficar comigo. Íamos ao cinema, a restaurantes e a
uma pracinha que ficava perto de sua casa. Às vezes, almoçávamos na casa
do pai dele. Era sempre divertido, sempre confortável. Iríamos pelo menos
uma vez por semana se o Dr. Marcos não fosse tão ocupado; ele trabalhava
em vários hospitais, em vários estados diferentes, então isso acabava
encurtando nossos encontros com ele. Mas, sempre que estava em casa, era
superatencioso e receptivo, eu amava aqueles almoços em família.
Eu não saía muito de casa, não tinha contato com outras pessoas, a
não ser na escola. Luiz era o homem mais próximo a mim e meu primeiro
namorado, então, como tudo era novo, estava sempre tudo bom. Eu aceitava
tudo.
Até que ele me pediu em casamento.
Analisei minha situação. Eu não trabalhava, não tinha para onde ir,
não confiava em mais ninguém a não ser em Luiz. Nós já vivíamos uma
vida muito parecida com a de casados, morávamos na mesma casa,
comíamos da mesma comida e sempre saíamos juntos. Não me pareceu
uma má ideia.
Não foi um casamento normal, pois eu ainda era menor de idade e
não parecia conveniente. Então, ele comprou alianças de ouro e simulou um
casamento dentro de casa. Ninguém precisava saber que não éramos
casados no documento.
Foi o meu último dia feliz ao lado dele.
Na noite seguinte ao “casamento”, perguntou se podia dormir na
cama ao meu lado. Eu disse que sim, claro, éramos um casal. Até então,
nunca tínhamos dormido na mesma cama, ainda que já morássemos havia
quase um ano juntos. Luiz sempre tinha me respeitado e dera o quarto para
meu uso enquanto ficava na sala.
Ele se deitou e me abraçou. Começou a falar coisas no meu ouvido,
coisas que nunca tinha falado antes. Achei bacana, apesar de diferente.
Fiquei um pouco envergonhada, mas a maneira como ele me tratava me
deixava de certa forma à vontade.
Depois de alguns minutos, começou a me beijar com mais vontade e
quis tirar a minha roupa.
— Tudo bem, querida, somos casados agora — ele disse.
Eu era virgem ainda, nunca tinha feito aquele tipo de coisa. Nunca
tinha mostrado minhas partes íntimas a ninguém.
Fiquei tão nervosa com aquela situação, que quis parar. Não porque
não confiava em Luiz, sempre tão gentil e generoso, mas sim porque eu não
tinha me preparado ainda mentalmente para aquilo.
Lembrei que não tinha me depilado nos últimos dias, nem tinha me
cuidado da maneira que eu sabia que Luiz gostaria.
— Luiz, não estou pronta agora — sussurrei.
— Vai ser bom, meu amor, você vai ver.
— Eu sei que vai, mas não estou preparada ainda.
— Marília, eu te amo do jeito que é. Vou ser cuidadoso, não vou te
machucar.
— Luiz, por favor, me dê um tempo pelo menos — pedi, sufocada
com seu corpo em cima do meu e sua boca na minha o tempo todo.
Insisti que eu não queria, que não estava pronta, que não estava me
sentindo à vontade, mas ele continuou mesmo assim. Pareceu não me dar
ouvidos. Não respeitou meu tempo, nem minha vontade.
— Eu vou te levar às alturas, Marília — ele sussurrava, sem fôlego,
de olhos fechados.
Fiquei tão nervosa que gritei para ele parar, o que o fez levar um
susto.
— Você não ouviu? — gritei. — Eu não quero!
— Vai me negar isso, mesmo depois de tudo o que fiz por você?
— O que está querendo dizer? Que devo pagar e retribuir tudo o que
já me deu fazendo sexo com você?
— Estou querendo dizer que você achou bem bacana enquanto eu te
presenteava, te dava a minha cama para dormir, comprava das melhores
comidas, te dava os melhores presentes e as melhores roupas. Não é? Você
adorou, não adorou? O mínimo que pode fazer por mim é tirar a sua roupa e
me satisfazer.
— Eu não disse que não faria isso, só estou dizendo que agora não me
sinto pronta. Você consegue respeitar isso?
— Já esperei tempo demais, Marília. Já te respeitei demais. Acha que
não reparo no quanto me provoca? No quanto me quer também? Eu sei que
você me quer, tanto quanto te quero.
Ele voltou a me beijar, forçando sua boca na minha, forçando seu
corpo contra o meu.
— Luiz, por favor, me deixe em paz! — tentei dizer, movendo-me
embaixo de seu corpo. — Você não está pensando bem. Vamos conversar
direito. Podemos nos programar, podemos fazer tudo isso da melhor
maneira possível. Por favor!
Ele parou por um instante e me fitou. Sua pupila estava dilatada, sua
respiração, ofegante. Eu nunca o tinha visto com aquela expressão.
— Você não tem escolha, Marília — ele disse baixo. — A partir do
momento em que disse que me aceita como seu marido, deu carta-branca
para eu fazer o que quiser com você.
Senti meu coração doer. Não achei que seria possível, depois de tudo
o que ele me viu passar, fazer aquilo comigo.
— Não se esqueça de que não sou sua esposa de verdade — eu disse,
com raiva. — Não temos nenhum documento comprovando isso.
Ele ficou evidentemente irritado. Segurou-me com tanta força que
deteve meus movimentos. Tirou a minha roupa com brutalidade, tampou a
minha boca e me introduziu. Não tive nem forças para gritar, de tanta dor
que senti. Fiquei parada enquanto ele se movimentava em mim, com o rosto
vermelho, cheio de raiva. Quando terminou, Luiz se levantou, saiu do
quarto e me deixou sozinha. Chorei igual a uma criança.
Aproximadamente uma hora depois, ele entrou no quarto chorando,
pediu desculpas várias vezes e me abraçou; disse que me amava muito, que
tinha tido um dia difícil no serviço e acabara perdendo a cabeça. Jurou
nunca mais fazer o mesmo.
Eu só chorava, não tinha condições de pensar em perdoá-lo ou não.
Pensei em ir ao hospital, porque não conseguia mexer as pernas, tamanha a
dor. E o lençol estava todo ensanguentado. Mas ele disse que o sangramento
era normal e que a dor logo passaria. Colocou-me embaixo do chuveiro e eu
tomei banho, torcendo para toda aquela dor, a do coração também, descer
diretamente pelo ralo.
Na escola, todas as meninas tinham dezessete anos, assim como eu, e
a grande maioria não era mais virgem. Nem mesmo Cecília era. Lembro-me
de que conversávamos vez ou outra sobre isso, ela me deu algumas dicas e
disse que eu precisava me preparar, pois, como eu e Luiz morávamos
juntos, estava mais do que óbvio que isso aconteceria uma hora ou outra,
ainda mais porque vivíamos nos beijando.
Ela me disse que seria muito bom, que eu sentiria um prazer sem
igual. Portanto, nem em meu pior pesadelo supus que minha primeira vez
seria assim. Não imaginei que Luiz fosse capaz de fazer o que fez comigo,
não daquela forma tão brutal.
Durante os próximos meses, aquele episódio não se repetiu. Nem à
força e nem por vontade própria. Cheguei a perdoá-lo e pensar que ele
realmente havia tido um dia difícil. Cometer um erro uma vez é
compreensível, mas, quando acontece pela segunda vez, é perceptível que a
pessoa não se arrependeu.
Nessa mesma época, MatLew havia tirado um ano de férias dos
shows. Eu o acompanhava em todas as redes sociais e lives que fazia. Sabia
que estava se preparando para fazer músicas novas.
Não demorou até que duas delas viessem a público antes que o álbum
fosse liberado. Uma se chamava A menina dos meus sonhos e a outra, Antes
que se vá. Amei ambas, as ouvi até não poder mais. Viraram favoritas assim
que as escutei pela primeira vez.
Não pude deixar de me questionar para quem ele as havia feito. Eram
músicas românticas, com letras bonitas e delicadas.
MatLew nunca tinha assumido relacionamento sério com nenhuma
garota, mas não era surpresa para ninguém que ele era o maior garanhão.
Ficava com muitas garotas, a maioria fãs e famosas do mesmo ramo da
música. Achei que provavelmente alguma delas havia enlaçado seu coração.
Fiquei chateada, pois não estava preparada para vê-lo em um
relacionamento assumido, mesmo que isso fosse a maior idiotice de todas.
Certo dia, saiu no Instagram uma sequência de fotos novas dele.
MatLew estava sem camiseta, vestindo somente uma calça xadrez vermelha
e preta. Ele tinha o corpo bem definido, apesar de ser magro, e várias
tatuagens decoravam sua pele, principalmente no tórax e no braço esquerdo.
Passei os olhos por todas elas e percebi uma nova a qual eu ainda não tinha
visto. Era uma menina segurando uma flor laranja. Achei a obra de arte
mais linda do mundo. Embaixo estava escrito A menina dos meus sonhos.
Desejei, por um momento de pouca sanidade, que eu fosse a menina
dos sonhos dele.
Seus cabelos soltos eram a criação artística mais bela de Deus, dava a
ele um ar inovador e estiloso. Estavam levemente bagunçados e com a parte
da frente jogada para trás, fazendo um topete bem charmoso. O resto dos
fios fazia ondas sutis e caía até os ombros.
Seus olhos pareciam perfurar a foto, tamanha sensualidade e precisão.
Estavam da cor verde mais charmosa e chamativa que eu já havia visto. E
sua boca, curvada em um sorriso pequeno, com lábios não tão grossos, mas
muito bem desenhados.
Perguntei-me se pessoalmente ele seria tão bonito quanto
demonstrava ser nas fotos. Seu charme parecia atravessar a tela do celular e
tocar minha pele. Eu mal conseguia respirar direito quando reparava em
seus detalhes tão intensos e marcantes.
Continuei acompanhando todas as novidades das suas músicas novas,
até que fosse postado em seu Instagram Oficial sobre uma nova turnê que
ele faria. Procurei desesperadamente pela data em que ele estaria no Brasil e
achei. Não foi difícil de encontrar e nem precisei procurar novamente,
Brasil era o último país da lista.
Por um momento, esqueci todos os meus problemas. Fiquei tão feliz
que achei que flutuaria. Comecei a correr pela casa e dar pulinhos com o
celular na mão.
Era a minha oportunidade de conhecer MatLew, mesmo que eu na
plateia e ele no palco. Mesmo que de longe. Era a minha oportunidade.
— O que há com você? — Luiz perguntou com um sorriso grande nos
lábios.
— É o MatLew, ele vai vir para o Brasil! — Festejei.
O sorriso de Luiz se desfez.
— Quando vai ser?
— Em dezembro. Dia 6 de dezembro do ano que vem.
— Você não vai.
— O quê? — Franzi o cenho. — Como assim?
— Você não vai, Marília.
— Por quê?
— Não é óbvio? Você não trabalha, não tem grana para comprar o
ingresso. E eu não vou dar do meu dinheiro para você ver outro homem.
— Luiz, é o meu sonho.
— Não me interessa o seu sonho. Eu deveria ser o único homem da
sua vida. Não vou deixar que corra o risco de conhecê-lo.
— Eu ficaria na plateia, Luiz. Não tem como ele notar alguém que
está tão longe. Você não corre o risco de me perder para ele.
— Tem razão, ele nunca te notaria. Olhe para si mesma.
Parei por um instante, olhando-o nos olhos, com o semblante caído.
— O que quer dizer com isso?
— Que você tem muita sorte em me ter. Ninguém mais neste mundo
faria o mesmo que eu fiz e faço por você. Ninguém te amaria como eu amo.
Ninguém te trataria tão bem. Convenhamos, você nem merece tudo isso, é
só uma menina normalzinha, uma qualquer que teve sorte na vida por me
encontrar.
Levantei as sobrancelhas, surpresa pelo que eu estava ouvindo.
— Luiz, não me interessa o que pensa sobre mim. Eu vou a este show,
você querendo ou não — rebati.
— Como é?
Foi nítido o quanto ele estava ficando nervoso.
— É isso mesmo. E fique sabendo que você que tem sorte em me ter,
não sou qualquer uma e mereço respeito! Se não puder me dar isso, é
melhor que não diga nada.
O rosto de Luiz ficou vermelho e seus punhos se fecharam.
Fiquei de cabeça erguida, não tive medo. Luiz nunca tinha me batido,
não achei que faria isso.
Ele se aproximou, olhando nos meus olhos. Quando estava bem perto,
ordenou:
— Diga que sou melhor do que ele.
— Não vou dizer isso. Você não percebe o quanto esta briga é idiota?
Não faz sentido brigarmos por isso.
— Diga que sou melhor do que ele! — gritou.
Senti as pernas estremecerem.
— Não. Você não é melhor do que ele.
— Eu vou te provar que sou.
— Não tem nada que você faça que me prove que é melhor do que
ele.
— Vou te levar às alturas, meu amor. Vou te fazer implorar por mais
de mim. Vou te fazer esquecer esse imbecil.
Entendi exatamente o que ele estava falando e uma chama de
desespero se acendeu dentro de mim. Eu poderia continuar rebatendo-o,
demonstrar que não estava com medo, mas a verdade é que as lembranças a
que suas palavras me remeteram me encheram de temor.
— Não. Por favor, Luiz. Não faça isso.
Ele me pegou com brusquidão e me jogou no sofá, onde começou a
me beijar com força. Tentei me desvencilhar e pedir que parasse, mas,
novamente, arrancou minhas roupas e tampou minha boca com a mão. Luiz
apertou tanto meus lábios, que me feri por dentro. Tentei inspirar pelo nariz,
desesperada, mas a penetração que veio a seguir foi tão brutal e dolorida,
que represou o ar em meus pulmões. Esqueci-me por um bom tempo que
era necessário respirar para me manter viva.
Pela segunda vez, fui estuprada pelo meu próprio companheiro.
Foi como se eu estivesse vivendo o mesmo episódio novamente. Ele
terminou, levantou-se e me deixou sozinha no cômodo. Comecei a chorar
em silêncio, sentindo uma dor esmagadora. Dor física e sentimental. Depois
de uma hora, ele voltou chorando, pedindo perdão e dizendo que me amava
muito. Disse que tinha tido um dia ruim e agitado no serviço e acabou não
se segurando.
Mas dessa vez não aceitei o pedido de perdão. Pedi que me deixasse
sozinha. Ele obedeceu, com a expressão de que faria qualquer coisa por
mim, tudo o que eu pedisse.
Chorando, eu me perguntei mentalmente o que tinha feito para
merecer aquilo. Perguntei-me como havíamos chegado àquele ponto. O que
havia mudado? O que eu havia deixado passar? Onde errei? Não entendi
como eu não havia percebido que ele era um homem agressivo. Como?
Mesmo tendo convivido anos ao lado do meu pai.
Puni-me por ser tão burra, tão idiota. Como pude acreditar que eu
finalmente poderia viver uma vida boa? Como pude acreditar que Luiz era
um homem diferente? Como não pensei, nem por uma só vez, que ele faria
isso novamente? Acreditei tanto nele, que me recusei a achar que era um
monstro. Mas era, e da pior espécie.
Entrei no banho e passei a esponja com força no corpo, achando que
talvez aquele gesto fosse tirar tudo o que ainda restava de Luiz em mim.
Esfreguei tanto, que minha pele ficou avermelhada. Chorei ainda mais
quando tentei lavar minha parte íntima e nem consegui tocar, tamanha a dor
que eu estava sentindo.
Ainda embaixo da água, tentei refletir sobre o que eu poderia fazer
para me livrar daquela vida péssima que estava levando. Aquele era meu
penúltimo semestre na escola, no final do próximo já me formaria e seria
maior de idade. Depois, estaria livre para arrumar um emprego, teria muitos
meses ainda para juntar dinheiro a fim de ir ao show e depois sumir da vida
de Luiz.
Incomodei-me demais com a ideia de ficar mais de um ano e meio
ainda morando naquela casa, com aquele homem, mas não vi escapatória,
uma vez que não tinha onde ficar e nem dinheiro. Pensei em fazer tudo com
cautela para que meus planos dessem certo no final. Arrumar um emprego
naquele momento seria um erro, pois acabaria me atrapalhando nos estudos
e Luiz perceberia minha ausência em casa.
Passei os próximos meses planejando e estudando tanto quanto pude,
dedicando-me às minhas notas para conseguir me formar com excelência.
Era o mínimo que eu poderia fazer por mim.
Formei-me no final do ano como planejei, com as melhores notas da
sala. Fiquei feliz por isso e me senti competente, mas me arrependi quando
percebi que esse era um motivo para dar tanto orgulho a Luiz, que ele teve
que me presentear tirando minha roupa novamente.
Quando o próximo ano se iniciou, achei prudente fazer alguns
currículos e arrumar um emprego o mais rápido possível, assim eu juntaria
dinheiro suficiente para comprar o ingresso do show e fugir para bem longe
depois. Eu alugaria uma casa temporária e moraria sozinha. Sem pai, sem
Rosana e sem Luiz. Sozinha.
Se não fosse pelas agressões sexuais, Luiz até que seria um bom
marido. Na maioria das vezes era muito solícito comigo, conversava, me
levava para sair e parecia gostar de ouvir minha opinião sobre tudo. O
problema é que ele achava que fazer esse tipo de coisa mudaria o que eu
pensava a seu respeito, mas não mudava, nunca mudou. A partir da segunda
vez que me agrediu sexualmente, percebi que nada de bom que fizesse para
mim seria o suficiente para me fazer esquecer sua agressão. Nada mais
mudaria minha opinião de que ele era o pior marido do mundo. Nada
poderia me tirar da cabeça que eu precisava fugir para bem longe.
Certas coisas podem até ser engolidas, digeridas lentamente, mas, o
que ele tinha feito comigo, eu nunca conseguiria aceitar.
Passei a estudá-lo melhor, observar atitudes que eu não havia
percebido ainda. Notei suas mudanças de humor e aprendi a lidar com elas.
Comecei a mudar minhas atitudes também, mudar de acordo com o humor
dele. Se estava nervoso, eu me retraía e não falava, nem fazia nada que
pudesse intensificar ainda mais a situação. Na maioria das vezes, eu entrava
no quarto e trancava a porta, ficava tão quieta, que ele esquecia que eu
estava ali.
Quando Luiz estava bem, eu fingia que também estava. Só que passei
a ter tanto medo dele, que, até quando “estávamos bem”, eu não conseguia
mais fingir com excelência. Luiz percebeu minha mudança, notou que eu
estava mais distante, que media as palavras, que fingia ter sentimentos por
ele, que não gostava mais de beijá-lo, que não o abraçava mais com
frequência, que não queria mais ficar ao seu lado… Enfim, ele percebeu.
Isso fez com que sua raiva se intensificasse e aumentasse ainda mais seu
nível de possessividade.
Aquele ano foi o pior da minha vida, eu tinha apenas dezoito anos e
ainda estávamos em fevereiro. Demoraria até que eu fizesse dezenove, dia
sete de novembro. Luiz começou a me impedir de sair de casa com a
mesma frequência que eu saía antes, passou a decidir qual roupa eu deveria
usar e a escolher com quem eu deveria conversar ou não. Ele tinha ciúmes
até do padeiro, que tinha sessenta anos, ou do açougueiro, que tinha
quarenta e cinco e era casado, ou do senhor da banca de jornais, que tinha
cinco filhos. Tudo era motivo para ficar nervoso, então me retraí tanto, que
passava dias sem conversar com ninguém. O melhor mesmo era lhe
obedecer, independentemente da situação.
Acabei me perdendo por completo ao lado de Luiz, acabei perdendo
minha essência e o que eu possuía de melhor. Virei o que ele queria que eu
fosse. Eu não era mais posse minha, era posse dele. Um cachorrinho que o
dono leva para passear.
Não demorou até que ele verbalizasse que eu não poderia arrumar um
emprego ou prestar o vestibular. Disse que não era o tipo de mulher que faz
faculdade, era o tipo que fica em casa cuidando do marido. Insistiu que eu
deveria ser uma esposa em tempo integral, já que não precisava mais
estudar.
A verdade era que ele tinha medo de me perder, medo de que eu o
deixasse, porque, no fundo, sabia que eu era muito melhor do que a imagem
que ele tentava plantar na minha mente. Luiz sabia que, se eu tivesse
condições de me libertar daquela vida, eu o deixaria e nunca mais voltaria,
assim como fiz com o meu pai.
Então passou a me prender, a me proibir das coisas, de conversar e de
ir a lugares públicos.
Os episódios de estupro começaram a ser mais constantes. Naquele
ano, fui estuprada dezessete vezes, anotei cada uma delas, sendo uma mais
marcante do que a outra. Passou a não ser mais suficiente para Luiz tampar
minha boca com a mão, ou me segurar com força contra seu corpo. Ele
começou a usar outras ferramentas para me obrigar a ficar quieta, tais como
prender minhas mãos e pernas e calar minha boca com panos ou fitas
adesivas de alta qualidade. Às vezes vendava meus olhos, às vezes fazia
olhando para mim. Cada vez era uma surpresa e as coisas foram se
intensificando. Ele parecia gostar do que estava fazendo, nem pedia mais
desculpas.
Diferente de como acontecia em relação ao meu pai, passei a odiá-lo
cada vez mais, apesar do medo. Meu coração estava pesando mil toneladas
de raiva.
Mesmo sabendo que isso poderia me prejudicar com Luiz, planejei
começar a sair para procurar emprego. Pensei que conseguiria conciliar os
horários e trabalhar enquanto ele estivesse fora, também trabalhando.
Assim, Luiz nunca saberia sobre minhas mentiras.
Não demorei a ser contratada. Minha primeira vaga de emprego foi
como vendedora de uma loja simples de roupas. Para mim estava ótimo,
perfeito.
Luiz saía para trabalhar primeiro, depois eu ia, e, como meu emprego
era mais perto de casa, chegava antes dele e ainda tinha tempo para deixar
tudo pronto antes que ele voltasse. O plano parecia perfeito, tive a péssima
impressão de que nunca daria errado, mas deu.
Eu me empenhei na loja pela qual fui contratada por dois meses.
Fiquei extremamente feliz quando recebi meu segundo salário. Estava
juntando e guardando em uma conta, Luiz não sabia da existência dela.
Naquele mesmo dia, quando cheguei em casa, ele estava sentado no
sofá me esperando. Consegui ver de longe o quanto estava nervoso.
— Onde você estava? — perguntou.
— Na casa da Cecília — respondi o mais rápido que pude, para não
demonstrar dúvida.
— Anda mentindo para mim agora, Marília?
— Não entendi. — Franzi o cenho demonstrando que não sabia do
que ele estava falando.
Por dentro, meu corpo inteiro tremia.
— Eu sei que você não estava na Cecília. Vou te dar a oportunidade
de falar a verdade. Onde estava?
— Eu… Bem, eu…
Fiquei confusa, não sabia se ele realmente tinha conhecimento de
onde eu estava. Poderia estar só me testando. Por isso, pensei em mentir
mais uma vez, mas Luiz me interrompeu.
— Baixei um aplicativo no meu celular onde consigo ver em tempo
real onde você está. Eu não tinha usado ainda porque confiei que você não
mentiria para mim. Mas, quando cheguei e vi que não estava em casa,
resolvi me certificar de seu paradeiro. Sabe, talvez, se você tivesse me dito
a verdade, eu não ficaria tão irritado quanto estou agora. — Ele se levantou
e andou vagarosamente em minha direção. Fiquei parada como uma estátua
amedrontada. Quando próximo o suficiente, sua mão rígida segurou meu
pescoço e ele gritou: — Onde você estava, Marília?
Eu travei. Estava com tanto medo que não consegui dizer nada.
Sem paciência nenhuma, Luiz me pegou no colo e me colocou dentro
do carro. Deu partida e seguiu o caminho todo em silêncio, até chegar à loja
na qual eu trabalhava.
— O que estava fazendo aqui?
Tive que falar a verdade.
Voltamos para casa em meio a um silêncio mortal. Minha barriga doía
e minhas mãos tremiam. Eu sabia que não ficaria tudo bem.
Quando chegamos em casa, Luiz me espancou pela primeira vez.
Fiquei jogada no chão por horas, sangrando e sentindo dificuldade
para respirar. Depois, ele pediu desculpas, mas fez questão de enfatizar que
fez aquilo por minha causa. Eu era a culpada por ter apanhado. Porque
menti e boas esposas não mentem. Ele não teve escolha a não ser me
corrigir.
Obviamente, perdi o emprego.
A única coisa que Luiz não sabia era sobre os R$ 2.500,00 que
estavam na minha conta. Ele jurava ter descoberto antes mesmo de eu ter
completado uma semana de trabalho. Recusou-se a acreditar que tinha sido
enganado por mais tempo do que isso.
Assim como meu pai, passou um cadeado na porta principal da casa.
Quando saía para trabalhar, trancava-me para não correr o risco de que eu
fugisse.
Senti-me perdida, totalmente desmotivada com a vida e, por mais que
quisesse muito ver meu cantor favorito, perdi toda a esperança após aquele
episódio. Novamente, não conseguiria conhecer MatLew, e essa foi a maior
decepção da minha vida.
No decorrer dos próximos meses, não saí da linha, obedeci fielmente
ao Luiz. Preferi fazer isso a apanhar.
Fiz dezenove anos um mês antes do show. Luiz fez um bolo para
cantarmos parabéns e me deu um par de sapatilhas lindas de presente.
Depois me estuprou como recompensa por ter me dado um presente tão
lindo.
À noite, minha amiga Cecília foi me visitar. Luiz estava tomando
banho. Convidei-a para entrar e ficamos na sala conversando, sentadas no
sofá.
— Marília. — Ela pegou minhas mãos e me olhou nos olhos. — Não
vou ficar muito tempo, só quis vir para te dar um abraço e desejar feliz
aniversário.
— Muito obrigada, Ceci. Você é uma grande amiga.
— Assim como você é. Quero que saiba que eu te amo.
— Eu também te amo, de verdade. Obrigada por todo apoio que tem
me dado.
— Comprei um presente para você — sussurrou e sorriu.
— O que comprou? — Sorri também, animada. — Sabe que não
precisava.
— Na verdade, precisava, sim. Você é muito especial para mim, por
isso quis comprar um presente tão especial quanto. Mas prometa que vai
esconder bem escondido para que Luiz não veja.
— O que você comprou?
Ela tirou um envelope do bolso traseiro da calça e me entregou.
Abri com movimentos cuidadosos e me deparei com um ingresso para
o show a que eu tanto queria ir.
— É mentira — eu disse, sussurrando.
— É verdade — ela esclareceu. — Você merece ir! Escuto você
falando desse cantor há anos, acho justo que realize este sonho.
— Mas e depois? E Luiz? Ele vai descobrir.
— Marília, depois não importa. Você precisa ir.
Pensei comigo mesma por um instante e disse:
— Você tem razão. O que vai acontecer depois não importa, o
importante é ver MatLew.
Guardei o ingresso como se fosse minha própria vida, tão escondido
que ninguém jamais conseguiria achar.
No dia do show, acordei cedo, arrumei a casa e deixei a comida
pronta.
Eu não sabia o que seria de mim, não sabia para onde ir após o show.
A única coisa que eu tinha certeza absoluta era de que nunca voltaria para
aquela casa. Luiz jamais me veria novamente.
Tomei um banho e me arrumei o máximo que pude, até que eu me
convencesse de que estava bonita o suficiente para ir ao show do MatLew.
Depois, preparei uma mochila com os itens mais necessários para a minha
sobrevivência fora de casa.
Peguei um martelo e, com toda a minha força, bati no cadeado da
porta, quebrando-o. Fiz o mesmo com a maçaneta, que caiu no chão em
seguida. A porta cedeu. Fugi sem olhar para trás, torcendo para que,
daquele dia em diante, eu nunca mais sofresse os mesmos males.
Pela terceira vez em toda a minha carreira, cheguei ao Brasil. Eu
amava o país, possuía uma energia incrível e inigualável. Os fãs eram muito
presentes em todos os meus trabalhos nas redes sociais e demonstravam
extrema adoração por mim.
O tempo estava quente, o sol soltava rajadas por toda parte.
Saí do aeroporto e entrei direto no meu carro com motorista
particular. Muitos fãs já me aguardavam no hotel em que eu ficaria
hospedado por sete dias.
Minha passagem pelo Brasil anteriormente fora bem rápida, mas,
dessa vez, decidi aproveitar e passar mais tempo. Minha equipe marcou
shows em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Eu ficaria uma semana em
cada um dos três estados, totalizando vinte e um dias no país.
A entrada do hotel estava lotada, praticamente bloqueada. Havia
muita gritaria de fãs esperando que eu aparecesse. Para acalmá-los, quando
já estava no quarto, apareci pela janela e acenei. Houve ainda mais gritaria e
festejo.
Estava cansado, portanto, após fazer algumas poses, fechei a janela e
caí na cama, pensando em Lia. Doía meu coração saber que o Brasil era o
último país da turnê e eu ainda não a havia achado. E doía muito mais
quando eu me lembrava de que não a via fazia praticamente dois anos.
A minha razão brigava diariamente com o meu lado sentimental.
Dizia que ela não existia e que eu deveria parar de ser tão idiota. Mas, ainda
dentro de mim, havia uma pontada de esperança que dizia para que eu
continuasse procurando.
No último sonho que tive com ela, Lia pedira que eu a procurasse.
Havia muita chance de eu ter imaginado toda aquela conversa, mas não
queria acreditar nisso. Queria encontrá-la com todo anseio do meu coração.
Se um dia isso acontecesse, eu a faria a mulher mais feliz do mundo.
Antes de iniciar a turnê, meses e meses atrás, pensei em algo. Falei
com meu produtor e agentes, todos acharam uma boa ideia. Era algo que me
manteria mais próximo dos fãs e chamaria a atenção de todos. Algo didático
e descontraído. Meet and Greet era o nome. A única coisa ruim era que os
ingressos eram limitados a quinhentas pessoas. Infelizmente eu não poderia
abrir vagas para todo mundo, isso me custaria dias e mais dias de
disposição.
O que fiz foi torcer para que Lia fosse uma das quinhentas pessoas a
aparecer.
Também pensei em colocar uma pergunta; assim, quando a pessoa
fosse comprar o ingresso, teria que responder a ela. Contratei pessoas
específicas somente para ler cada uma das respostas, à procura da que eu
queria.
Eu sabia que, de algum lugar do mundo, Lia responderia exatamente
o que eu esperava que respondesse. Nos mesmos detalhes que um dia ela
havia me dito em um sonho.
Fiz esse processo em cada um dos países pelos quais passei, em cada
um dos duzentos e noventa e sete shows da turnê. Mas agora, estando no
último, eu me perguntava se havia feito o suficiente.
Lia poderia morar em um lugarzinho distante do local dos shows, ou
poderia não ter dinheiro para comprar o ingresso, ou até poderia não ser
minha fã. Então, eu me lembrei da quantidade de vezes que ela deixou bem
claro o quanto amava minhas músicas e tive certeza, dentro do meu
coração, de que também gostava de mim.
Cheguei a um momento em que não me importava com mais nada,
nem com o país em que ela poderia estar, nem com a cidade, o status
financeiro, a língua… O que me importava mesmo era encontrá-la. Depois
disso, eu tentaria me enquadrar à vida dela, ao país em que nascera, à
cidade em que morava e à língua em que se comunicava. O status
financeiro era o de menos, eu poderia cuidar disso.
Pensei comigo mesmo que, se a turnê acabasse e eu não a
encontrasse, teria que bolar outro plano ainda maior.
Respirei fundo e descansei. Preparei-me mentalmente para mais um
show à procura de Lia.

Não precisei da ajuda de ninguém para chegar ao estádio do


Morumbi. Almocei em um lugar próximo e voltei à fila, onde fiquei por
horas, até o horário do início do show.
Senti-me em casa, rodeada por pessoas que possuíam o mesmo desejo
que eu: conhecer MatLew.
Logo à minha frente, duas moças conversavam sobre ele e não pude
deixar de prestar atenção.
— Você viu que ele fez Meet and Greet nos outros shows da turnê?
— uma disse à outra.
— Eu vi! Acha que ele vai fazer aqui também?
— Não sei. Normalmente os músicos avisam antes, mas não vi nada a
respeito desta vez.
— Espero que ele faça aqui em São Paulo também, assim será nossa
oportunidade de conhecê-lo.
— Desculpe — eu disse, entrando na conversa com educação e
cuidado. — Não quero incomodá-las, mas, podem me dizer o que é Meet
and Greet, por favor?
Ambas me olharam, analisando-me de cima a baixo. Estavam
vestindo camisetas com o rosto de MatLew estampado, com bandanas nas
cabeças. Em seus pés, All Stars brancos e sujos. As unhas, uma de cada cor,
como se a mão de uma fosse continuação da outra.
A única coisa que as diferenciava eram seus cabelos. Ambos pretos,
mas um curto e outro bem comprido.
— Meet and Greet é como uma oportunidade de conhecer o artista
pessoalmente — uma delas explicou. Ela tinha uma voz fina e feição
simpática. — Os fãs podem tirar fotos, pegar autógrafos e abraçar.
— Nossa… — Minha cabeça vagou por vários pensamentos
sonhadores.
— Eu sei! — a outra exclamou. — Estamos torcendo para que
aconteça. Ele fez em todos os outros shows desta turnê até aqui. Se decidir
que vai repetir a dose em São Paulo, com certeza vou fazer de tudo para ir.
— E é necessário pagar? — perguntei.
— Normalmente, sim.
Senti meu corpo diminuindo de tamanho enquanto eu murchava.
Era meu grande sonho conhecer meu ídolo pessoalmente, mas tinha
pouco dinheiro e precisava lembrar que agora não tinha mais casa. Seria
necessário segurar a quantia que eu tinha e usá-la somente em caso de
emergência. Com um quarto de hotel, por exemplo. Um hotel não muito
caro, que me permitisse pelo menos uma cama para passar a noite após o
show.
— Que pena — comentei. — Mas muito obrigada pela explicação.
Vou torcer para que ele faça o Meet and Greet para que vocês o conheçam.
— Você é bacana — a de cabelo comprido disse me analisando com
cautela. — É daqui de São Paulo mesmo?
— Sim, da Zona Sul de São Paulo.
— Nós somos de Brasília, viajamos só para assistir ao show.
— Vocês são irmãs?
— Sim, somos irmãs. Esta é Jane. — A de cabelo comprido apontou
para a de cabelo curto. — E eu sou Mary. Sim, exatamente como a marca
Mary Jane.
Soltei uma risadinha antes de dizer:
— É um prazer conhecê-las.
— Você pinta o cabelo? — Jane perguntou. — Nunca vi uma cor tão
bonita.
Eu não gostava daquela pergunta, simplesmente pelo fato de ter que
responder sempre, quase todos os dias, para praticamente todas as pessoas
que conversavam comigo.
— Não. A cor é natural, já nasci assim.
— Nossa! — Mary arregalou os olhos e suspirou. — Você tem o
cabelo mais bonito que já vi.
— Obrigada — agradeci com timidez na voz.
Fiquei grata ao lembrar que eu estava de óculos de sol, pois
acabariam reparando nos meus olhos de cores diferentes e, com certeza,
comentariam também.
Não era como se eu não gostasse de ser elogiada. Só não sabia lidar
com isso de uma forma natural. Os elogios me causavam vergonha, muita
timidez, a ponto de querer esconder o que as pessoas estavam exaltando.
Não sei explicar, mas me parece que as coisas negativas da vida
sempre possuem mais força do que as positivas. Digo isso porque, depois
de tantos anos sendo maltratada pelas pessoas mais importantes da minha
vida, um simples elogio não fazia nem cócegas para levantar meu astral.
Eu sentia como se estivessem me elogiando somente para me ganhar
e depois me passar a rasteira. Exatamente como acontece nas fazendas com
os porcos: os donos os alimentam, cuidam como se fossem filhos queridos,
mas, no fim, todo o cuidado era somente para matá-los e devorá-los.
Sabe, as pessoas pensam só em si mesmas. Dificilmente pensam nas
dores dos outros.
— Vocês vieram sozinhas? — perguntei.
— Sim. Minha mãe ia vir conosco, mas acabou tendo um
contratempo e precisou ficar. Como já tenho dezenove anos e minha irmã,
dezessete, nossos pais não viram problemas em viajarmos sozinhas.
— Entendi. E, por acaso, vão passar a noite por aqui? Pergunto
porque, como o show vai acabar tarde, acho que vou ter que me hospedar
em algum lugar aqui perto para passar a noite.
Elas se entreolharam por um instante prolongado. Pareciam estar
conversando com os olhos. A interação silenciosa acabou quando ambas
acenaram positivamente com a cabeça, ainda se encarando.
No momento seguinte, estavam me fitando.
— Estamos com uma cama sobrando no nosso quarto de hotel
porque, como já dissemos, era para nossa mãe estar aqui — Jane começou.
— Podemos fazer um valor bacana, se quiser dividir o quarto conosco
— Mary sugeriu.
— Quanto vão me cobrar a cama? — perguntei.
— Trezentos reais. E não é só a cama. Você vai poder usufruir do
quarto todo junto com a gente, assistir televisão, tomar banho de banheira…
— Mary explicou.
— Banho de banheira? — Ergui as sobrancelhas.
Eu nunca, jamais, tinha tomado banho de banheira.
— Sim! Com todos os sais de banho que quiser usar.
Gostei da ideia. Mas ainda estava achando trezentos reais muito caro.
— Claro, já está incluso o café da manhã, almoço e janta, por três
noites — Jane complementou.
Olhei-as com o semblante desconfiado.
— Estão me cobrando só cem reais por noite?
— Sim. Olha, já está tudo pago, na verdade. Estamos pedindo este
dinheiro porque eu e minha irmã estamos juntando para comprar um carro.
Não nos entenda mal, meu pai é deputado, tem muito dinheiro, mas sempre
fica dizendo que precisamos trabalhar para conseguir o nosso próprio.
Então, vimos em você uma oportunidade de lucrar pelo menos alguma
coisa.
— Entendi. E estão hospedadas em qual hotel?
— Grand Master Palace Hotel. É o mais chique de São Paulo.
Sem me lembrar do pequeno detalhe de ter os olhos de cores
diferentes, levantei os óculos de sol e as olhei profundamente, a fim de
identificar alguma contrariedade no que diziam.
— Caramba! Ela tem um olho de cada cor! — Jane exclamou
parecendo animada.
— Uau. — Mary suspirou. — Você é tão estranha! Quero dizer, de
um jeito positivo, claro. Nunca vi ninguém tão diferente.
Demorei a entender se aquilo era um elogio ou não. Mesmo assim,
abri um sorriso fingido e tímido, e agradeci.
— Se estiver duvidando, pesquise no Google o nome do meu pai. Ele
é famoso, tem várias fotos dele e até nossas. Não tem como estarmos
mentindo.
Hesitei por um instante. Meu celular estava desligado. Eu sabia que,
se o ligasse, Luiz descobriria onde eu estava.
— Não seja boba, Jane! Vou te mostrar aqui pelo meu celular mesmo
— Mary disse, já pegando o aparelho e digitando.
Não sei muito bem, mas acho que ela percebeu que eu não queria
pegar o meu.
As duas irmãs me mostraram fotos e noticiários sobre a família
inteira, abrindo, inclusive, suas redes sociais. Realmente estavam falando a
verdade.
Tentei não achar mais uma vez que era um milagre, como foi com
Rosana e Luiz, por puro medo de fazer isso e ver tudo dando errado,
desmoronando bem na minha frente. Só torci muito para que as coisas
dessem certo.
Quando eu ainda estava em casa, andei pesquisando valores de diárias
de hotéis e estavam mais caras do que eu imaginava. Portanto, analisei a
proposta que aquelas meninas fizeram a mim e achei bem convidativa.
Com certeza, com um pai e uma família tão ricos, as irmãs não
sabiam exatamente o valor do dinheiro. Se fossem mais inteligentes, teriam
me cobrado muito mais do que trezentos reais.
Acabei ganhando três dias fáceis fora de casa, longe de Luiz. O que
me daria tempo suficiente para pensar e bolar uma estratégia boa para
nunca mais voltar.
Eu precisava ser cautelosa, pois, certamente, se meu plano fosse ruim,
eu teria que voltar e apanharia para o resto da vida. Coisa a qual eu não
desejava, nem para mim e nem para meu pior inimigo.
— Você aceita a proposta? — Mary perguntou, por fim.
— Me parece uma boa proposta. — Refleti. — Aceito, sim. Muito
obrigada.
Mary e Jane se entreolharam mais uma vez, mas agora com sorrisos
grandes que refletiam vitória.
— O papai não pode nunca saber disso.
— Nem a mamãe. Se souber que vendemos o lugar dela, vai nos
matar.
— Bom, eu não vou contar — concluí, com um sorriso brincalhão na
face.
— Perfeito, então!
Imprevisivelmente, acabei ganhando duas amigas. Conversamos pelas
horas que se seguiram, até que percebemos que a fila estava andando.
Senti cada partícula do meu corpo se arrepiar. Estava cada vez mais
perto de conhecer meu ídolo, o grande amor da minha vida. O único que
nunca tinha me decepcionado.
Os passos foram lentos, mas nos aproximávamos cada vez mais do
portão principal.
O céu começava a escurecer. A lua já aparecia, mesmo que retraída,
em meio a um horizonte alaranjado.
Minhas mãos suavam, tamanho o nervosismo. Sem que eu
percebesse, comecei a morder o lábio inferior.
A dor da mordida fez com que eu me desse conta de que estava
mesmo ali. Tudo aquilo estava mesmo acontecendo!
Cheguei a pensar que, até o meu último suspiro, eu nunca mais teria
um dia tão feliz quanto aquele.
Quando chegou a minha vez, mostrei o ingresso ao funcionário do
estádio e fui liberada para entrar. Esperei por Mary e Jane, assim entramos
as três juntas. Todas tão entusiasmadas que mal conseguíamos parar de rir.
Ficamos na arquibancada, em um ângulo melhor do que eu
imaginava. Era possível ver o palco com clareza.
O frio na barriga estava enorme. A ansiedade quase não cabia dentro
de mim.
Quando já estávamos acomodadas nos respectivos lugares, o tempo
pareceu passar mais rápido do que o normal. Logo fomos avisadas de que o
show começaria.
As luzes piscaram, o telão se acendeu e algumas batidas começaram a
soar. Estas foram altas, fazendo meu coração estremecer e causando-me
extrema inquietação.
Todos começaram a gritar.
Havia chegado a hora.
MatLew ia aparecer.
Levantei-me, sentindo como se eu fosse morrer a qualquer momento.
Eu nunca tinha sentido algo assim, tão forte, tão estrondoso.
Segurei a grade a minha frente com força, como se eu estivesse em
uma montanha-russa prestes a despencar.
Assisti enquanto ele entrava no palco. Foi como se o mundo parasse,
como se tudo estivesse em câmera lenta. Quando a voz soou pelo
microfone, minhas pernas quase cederam ao chão. Segurei-me ainda mais
forte e me dei conta de que aquela voz poderia conseguir qualquer coisa de
mim. Qualquer coisa.
MatLew vestia uma calça preta, botas de couro e uma camiseta da
Gucci rosa, com um desenho estampado que não soube decifrar o que era,
talvez flores. Os cabelos estavam soltos e lindos. O sorriso no rosto,
covinhas nas bochechas. As mãos acenando. Anéis nos dedos.
Ele cumprimentou os fãs e se apresentou, disse seu nome e soltou
agradecimentos.
Graças as minhas aulas de inglês, eu entendia praticamente tudo o que
ele dizia.
Quando começou a cantar, eu me dei conta de que aquele timbre era
ainda mais bonito quando pessoalmente.
Cantei junto com ele, assim como todos os outros fãs. Não perdi uma
só letra, nem a entonação, continuei até o final em cada uma das músicas.
Minha emoção foi indescritível. Foi muito maior, muito mais intenso,
muito melhor do que um dia imaginei que seria. Não vi defeitos naquele
show. Ele era carismático, sorria e dançava sem nenhuma vergonha
aparente. Era tão desinibido, tão extrovertido. Lançava beijos à plateia,
sorria e jogava o cabelo com o maior charme do mundo.
Fiquei maravilhada com seu desempenho e com a performance, com
as luzes, fumaça e até fogos de artifício. Tudo muito bem-feito e planejado,
tudo no mesmo ritmo das batidas das músicas.
Ele mexia no cabelo vez ou outra, arrumando-o e tirando-o do rosto.
Cada movimento era uma pontada no meu estômago. Sua beleza e
sensualidade eram fora do normal, totalmente arrebatadoras.
Chorei igual a uma condenada, mas de felicidade, sem acreditar que
eu estava vivendo de verdade aquele sonho.
Por um momento, eu me esqueci da vergonha. Dancei, cantei, gritei,
chorei, fiz tudo o que pude.
A última música do show foi A menina dos meus sonhos. Ele se
sentou em um banco alto, pegou um violão e dedilhou com os olhos
fechados. Senti cada nota daquela canção adentrando meus ossos.
MatLew cantou com calma, com alma e coração. Deu tudo de si
naquela melodia e era nítido o quanto se envolvia. Em certo momento, uma
lágrima escorreu de seus olhos e a plateia foi à loucura.
Seu rosto estava estampado no telão, em um zoom magnífico. Seus
cílios estavam molhados e sua pele, avermelhada. O rosto sério, mas
demonstrando tanta delicadeza, quanto sinceridade. Tive certeza de que ele
era o ser mais lindo do Universo.
A música falava sobre amor, um amor à primeira vista. Um amor de
amizade que se transforma em algo mais, tão puro e genuíno quanto
incomum e único. Algo que só esse casal sentiu e experimentou, algo que
ninguém nunca entenderia.
A letra dizia que ele sentia vontade de tocá-la e sentia a necessidade
da presença de seus olhos exóticos. E prometia continuar viajando,
dirigindo por ruas e cidades à procura de uma realidade que vivia somente
em sonhos.
A canção era apaixonante, e ficava ainda mais quando sua voz
alcançava a rouquidão.
MatLew abriu os olhos e sorriu ao final da música. A plateia gritava
absurdamente alto, mas nada me fazia tirar os olhos dele, nada me absorvia
tanto quanto sua beleza.
O concerto estava acabando, depois de doze músicas cantadas, depois
de mais de uma hora dentro do sonho mais verdadeiro e incrível do mundo.
MatLew se levantou, acenou, sorriu e agradeceu por tudo, usando
palavras doces e gentis. Mas, antes de se despedir e se retirar, aproximou o
microfone da boca e disse:
— Vocês, fãs, são a razão de tudo isso, a razão pela qual estou aqui.
Por isso, pensei em uma forma de retribuir, uma maneira de ficar mais
próximo a vocês. A partir disso, eu e minha equipe fizemos um projeto
diferente para esta turnê: o Meet and Greet, onde poderemos nos conhecer e
nos abraçar. Para fazer parte, é simples, basta comprar o ingresso e
responder à pergunta: Qual é a cor do seu humor?
Achei a pergunta engraçada. Mas, apesar disso, eu saberia responder a
ela com completa facilidade. Amarelo para o bom humor e verde para o
mau humor. Isso porque meu olho verde sempre me entregava nos
momentos em que eu estava de bom humor, ficando amarelo em situações
de prazer e alegria.
— Os ingressos são limitados e estarão liberados para a venda no meu
site oficial a partir de agora. O evento acontecerá no Grand Master Palace
Hotel, amanhã, às cinco horas da tarde. Os aguardo lá! Muito obrigado por
tudo até aqui! Amo vocês. — MatLew lançou beijos e acenos à plateia;
despediu-se, indo embora poucos minutos depois.
— Você ouviu isso? — Jane arregalou os olhos e me puxou pela
camiseta.
— É o mesmo hotel em que vamos ficar hospedadas! — Mary pulou
em festejo.
Não vou mentir, fiquei feliz em saber que ele estaria tão perto de
mim. Com certeza aquilo era, sim, um milagre divino. Mas eu sabia que não
conseguiria comprar o ingresso, não teria dinheiro suficiente para isso.
Contentei-me com a ideia de estar perto dele no dia seguinte, mesmo
que em andares diferentes, mesmo que em cômodos diferentes. E, se eu
tivesse sorte, poderíamos nos esbarrar em algum corredor.
Comecei a rir com minha ideia.
— Mal vejo a hora — comentei, ainda rindo de mim mesma por ter
tido um pensamento tão insano e ridículo.
Aos poucos, cada pedaço de mim foi voltando ao lugar. O sonho tinha
acabado. Rápido demais. Eu não teria outra oportunidade como aquela tão
cedo. Talvez na próxima turnê. Talvez nunca mais.
Mas eu guardaria todas aquelas emoções no peito. Prometi carregá-las
para o resto da vida e me lembrar do quanto fui feliz por aproximadamente
uma hora e meia. Uma hora e meia. Era o necessário para mudar a vida de
uma pessoa.
Fui embora de táxi com Mary e Jane. Conversamos o caminho todo
sobre o concerto e do quanto fora perfeito. Elas haviam tirado fotos lindas,
as quais me prometeram passar pelo WhatsApp assim que possível.
Quando o carro estacionou de frente para o hotel, fiquei boquiaberta.
Apesar de ter morado minha vida inteira na Zona Sul de São Paulo, lugar
que possuía diversos ambientes bonitos e chiques, nada se comparava
àquele hotel de luxo diante dos meus olhos.
— O que foi, Marília? — Jane perguntou.
— Eu nunca tinha visto algo tão luxuoso de perto. É aqui mesmo que
vamos ficar?
— Claro! — Mary soltou uma gargalhada. — Sempre há uma
primeira vez, não é mesmo?
— Sim — respondi, mas a voz quase não saía da garganta.
— Indico que aproveite ao máximo, Marília. — Jane me pegou pela
mão e me dirigiu para o lado de dentro do hotel, onde paramos na recepção
para pegarmos as chaves do quarto.
— Não faço ideia do que fazer aqui.
— Isso não vai ser problema, vamos te acompanhar em tudo! —
Mary garantiu.
Subimos até o quarto através do elevador, lugar espelhado, chique e
amplo.
Até então, eu estava pasma, somente pasma. Mas, quando entramos
no quarto, tive certeza de que Deus, onde quer que estivesse, havia me
achado em meio à multidão e me escolhido para viver algo totalmente
irreal, levando em conta a minha atual situação. Fiquei catatônica, tão
chocada que minha mandíbula caiu. Parada, olhei para dentro do quarto,
tentando captar a maior quantidade possível de detalhes.
— Papai, mamãe, muito obrigada! — Mary se jogou de braços
abertos em uma das camas.
O quarto era tão amplo, que possuía três grandes camas de casal, uma
ao lado da outra, e três abajures de requinte, um para cada colchão.
A decoração era belíssima, na cor branca e rose-gold, o que deixava
tudo ainda mais chique.
Havia uma banheira com hidromassagem gigantesca no banheiro e
uma piscina particular onde parecia ser a sacada. Mas não era como a
varanda gourmet do apartamento do meu pai, era quinze, ou vinte, ou até
trinta vezes maior, rodeada por paredes de vidro.
No fundo do quarto, pairava um belíssimo bar particular, com um
balcão de mármore e prateleiras com luzes de LED. Ali, encontramos todos
os tipos de bebida e vinho possíveis.
— Nossa, estou no paraíso! — Jane exclamou. — Será que papai
sabia sobre esse bar cheio de bebidas?
— Não sei, mas, por via das dúvidas, é melhor não falarmos nada.
Jane entrou no bar, separou três taças e abriu um vinho branco.
— Jane — eu disse, sentindo minha timidez voltando à tona. — Eu
não bebo, não se preocupe comigo.
— Você, o quê? — Ela levantou as sobrancelhas, escandalizada.
— Eu não bebo — repeti.
— Por quê? — Sua expressão demonstrava claramente que ela havia
ouvido o maior absurdo do mundo.
— Não sei.
— Como assim? Pelo menos já experimentou alguma bebida
alcoólica?
— Não — fui sincera.
— Por Deus, Marília! É por isso que você é assim desse jeito!
— Que jeito?
— Assim, tão… recatada.
Soltei uma risada envergonhada. Se elas soubessem o porquê de eu
ser recatada, teriam dó de mim.
A verdade era que eu tinha medo de fazer coisas erradas e apanhar
depois.
— Sou uma garota normal — concluí.
Mary se levantou da cama e se aproximou a passos largos.
— Vamos fazer o seguinte. — Ela passou o braço pelos meus ombros.
— Jane vai colocar um pouquinho de vinho para você, então, se gostar,
pode beber o quanto quiser.
As irmãs insistiram tanto, que experimentei. E gostei.
Mas não exagerei na dose, só dei umas bebericadas para acompanhá-
las.
Depois, enchemos a banheira e tomamos banho juntas, conversando e
rindo como se fôssemos as mulheres mais poderosas, ricas e felizes do
mundo. Gostei da ideia de estar em um hotel de luxo, dentro de uma
banheira, segurando uma taça de cristal cheia de vinho branco.
Já era tarde, mas estávamos com tanta adrenalina no corpo, que seria
bem difícil dormir. Só senti necessidade de descansar após ter ficado quase
uma hora submersa na água quente.
Mary e Jane compraram os ingressos para o Meet and Greet e
festejaram a conquista com mais vinho.
— Você não vai comprar? — Jane perguntou a mim.
— Não. Infelizmente não tenho dinheiro o suficiente para isso.
Elas se entreolharam mais uma vez, conversando em silêncio, por
telepatia.
— Se quiser, podemos comprar para você. Então, quando tiver o
dinheiro, você nos devolve — Mary sugeriu.
— Isso mesmo, gostamos tanto de você que não queremos perder o
contato, mesmo depois que voltarmos para casa.
Gostei de ouvir que elas tinham gostado de mim. Eu não sabia se era
verdade, mas fiquei satisfeita mesmo assim. Na realidade, eu estava
acostumada a causar esse tipo de impressão às pessoas, foi assim desde
pequena. Elas ficavam encantadas com meus olhos e simplesmente diziam
que gostavam de mim. Era algum tipo de fascínio ou algo do gênero.
No geral, as pessoas achavam a mudança de cor do meu olho
esquerdo o máximo, e acabavam se sentindo pressionadas a me alegrar, só
para assistir ao amarelo vindo à tona. Nunca entendi o porquê, mas acabava
virando um vício tentar me fazer bem. Não para me fazer bem, mas para
ver a mudança de cor e, por fim, se sentirem bem com isso. Nunca foi sobre
mim, mas sobre como as pessoas gostavam de pensar que eram boas com as
palavras ou atitudes.
Por fim, uma hora a graça se esvaía. Porque, convenhamos, nada é
para sempre. O ser humano se enjoa e acaba procurando prazer em outra
coisa. Era aí que eu percebia que as amizades não eram verdadeiras, tudo só
fazia parte de um teste.
O ruim era quando o prazer se invertia e o amarelo já não era mais o
suficiente.
O ruim era quando queriam testar a cor verde-escura.
— É sério? — questionei.
— Claro! Vamos, Mary, entre no site e já garanta o ingresso dela.
Mary fez o que a irmã pediu, usando dedos ágeis para teclar na tela do
celular.
Mas percebi que algo não estava indo bem quando avistei em suas
feições o desmoronamento das sobrancelhas.
— O que houve? — perguntei.
— Os ingressos… Eles esgotaram.
Meus ombros caíram e meu sorriso se desfez.
— Tudo bem. — Limpei a garganta. — Não era para ser.
Fiquei muito triste, mas eu sempre soube que o show era o mais
próximo que eu poderia chegar de MatLew. Qualquer coisa que fosse mais
do que isso não faria parte da minha realidade.
Eu já estava realizada o bastante por ter ido ao concerto, por tê-lo
visto cantar ao vivo. Por tê-lo visto chorar ao cantar a última canção. Fora
tudo mais especial do que eu imaginava que seria.
Senti-me grata só por lembrar que, meses atrás, a ideia de ver
MatLew era nula. Agora, eu tinha em meu coração as lembranças mais
lindas de seu rosto e sua voz. Nada poderia me tirar isso.
— Sinto muito, Marília — Mary disse, triste.
— Não sinta. Estou feliz por ter ido ao show. Futuramente, terei mais
oportunidades de vê-lo.
— E estaremos juntas com você, com certeza. — Jane sorriu.
— Vou adorar.
Continuamos o bate-papo até que a água não estivesse mais quente.
Trocamo-nos e deitamos nas respectivas camas.
Já era madrugada. Dormi facilmente.
Meu coração estava leve.
Minha primeira noite sozinha.
A noite que abriu portas para uma nova trajetória, uma nova jornada,
com novos objetivos e novas conquistas.
Desejei com todo o meu ser que aquele sentimento bom
permanecesse para sempre.
Eu nunca mais permitiria que ninguém me tocasse como Luiz fizera,
nunca mais. Não deixaria mais que ninguém dissesse ou me fizesse de
posse.
Eu era minha posse a partir daquela noite. Eu era minha, só minha.
No dia seguinte, acordei me sentindo ainda mais leve do que quando
dormi.
Mary e Jane estavam na janela, observando a movimentação de fãs à
frente do hotel.
— Bom dia — Jane disse. — O café da manhã está logo ali. —
Apontou para uma mesa no canto do quarto. — Fique à vontade, eu e minha
irmã já comemos.
Levantei-me e me juntei a elas, lançando olhares à rua que pairava
vários andares abaixo de nós.
— Ele já chegou? — perguntei.
— Não sabemos — Mary respondeu.
— Fãs idiotas — Jane fez careta. — Acham que ele está hospedado
aqui.
— Fiquei sabendo que está no Stars Hotel — comentei.
— Não sabemos se é verdade, mas também ouvimos falar isso.
— Então, esses fãs aí embaixo estão esperando que ele chegue para o
Meet and Greet — concluí.
— Vai ser só mais tarde, é burrice chegar tão cedo e ficar tomando sol
assim. — Jane parecia indignada.
Dei de ombros e me afastei do vidro, indo até o café da manhã.
— O que vamos fazer hoje? — perguntei, levando à boca um pão de
queijo minúsculo.
— Não me leve a mal, espero que não se chateie, mas, como vou ao
Meet and Greet, quero estar linda para que MatLew me note. — Mary
passou a mão nos cabelos e fez um bico.
Soltei uma risada rápida.
— Não estou chateada, já disse isso ontem a vocês. O que pretende
fazer, ir ao cabeleireiro ou algo do tipo?
— Aqui no hotel tem de tudo — Jane começou. — Podemos passar o
dia nos arrumando de graça!
— De graça, uma ova! Papai pagou tudo.
— O que eu quis dizer é que já está tudo pago e que não vamos
precisar nos preocupar. — Jane revirou os olhos.
— Marília, você pode ir com a gente, também está hospedada, afinal.
Vai se sentir mal de se arrumar e depois não ir ver MatLew?
— Claro que não. Vou amar ir ao cabeleireiro. — Sorri.
— Então está combinado. — Jane deu pulinhos. — Vamos passar um
dia de princesas!
Senti-me muito contente com a ideia. Eu não ia a um cabeleireiro de
verdade havia meses. Desde o começo do meu relacionamento com Luiz,
para ser franca.
A primeira coisa que decidi fazer foi cortar o cabelo. Ele estava bem
comprido, batendo no final da cintura.
Mas não ganhei só o corte, ganhei uma hidratação maravilhosa
também, junto com a escovação.
Ao final, quando me olhei no espelho, senti-me completamente
satisfeita com o resultado. Meus cabelos vermelhos estavam aparados até
aproximadamente um palmo abaixo dos ombros, com ondulações tão belas
quanto brilhantes e cheirosas.
Depois, eu e as irmãs fomos a outro salão, onde fizeram nossas
sobrancelhas e nossas unhas. Escolhi pintá-las de rosa, em um tom bem
clarinho e delicado. Não me lembrava da última vez que vira minhas mãos
e meus pés tão bonitos e bem-feitos.
Por último, fomos a um SPA. Eu nunca tinha ido a um, então nem
sabia o que fazer naquele lugar. Mary e Jane que me deram todas as dicas e
fecharam os pacotes. Eu as segui em tudo quanto foi serviço. Primeiro,
entramos em um ofurô com óleos essenciais, depois recebemos massagens
pelo corpo todo, até no rosto, o que achei bem esquisito. Por último,
fizeram uma esfoliação na minha pele e passaram gelo.
Eu nem sabia que aquele tipo de coisa existia, mas agradeci depois
que descobri.
Quando me levantei, eu nem parecia possuir mais o mesmo corpo. Ele
estava tão leve! Minha pele estava tão sedosa que estranhei. Até o toque da
roupa, quando a pus, foi diferente.
Acompanhei Mary e Jane ao salão de maquiagem, mas não quis me
maquiar junto com elas. Não fazia sentido para mim, já que eu não ia sair
para nenhum lugar e nem ver ninguém importante.
Quando elas estavam prontas, subimos novamente para o quarto, onde
as vi fazendo as últimas arrumações.
— Você vai ficar bem? — Mary perguntou, segurando a maçaneta da
porta, pronta para partir.
— Sim, ficarei bem — tranquilizei-a.
— Vou pegar um autógrafo para você. — Jane sorriu.
— Obrigada, ficarei muito feliz.
Despedi-me e as assisti sumir de minhas vistas.
Quando sozinha, eu me pus a deitar em minha cama, onde fiquei
durante as próximas horas escutando minhas músicas favoritas e
imaginando o quanto MatLew estava próximo de mim. Eu quase podia
sentir nossa proximidade.
Com os olhos fechados e absorta em pensamentos, mal consegui
perceber as horas se passando com tanta rapidez.
Despertei quando as meninas voltaram, tão felizes que me fizeram
levantar com um sorriso no rosto também.
— Como foi? — perguntei, curiosa.
— Perfeito. — Jane fez uma expressão de choro. — Nossa, foi
perfeito!
— Ele nos abraçou, Marília! Pode imaginar uma coisa dessas?
— O perfume dele é bom? — Levantei as sobrancelhas e esperei
ansiosamente pela resposta; talvez, sabendo disso, eu pudesse imaginar com
mais clareza.
— Demais! — Jane deu pulinhos. — Ele é muito cheiroso. E muito
bonito também. É ainda mais bonito pessoalmente. E alto, bem mais do que
eu esperava.
— Posso imaginar — comentei, sonhadora. — E o autógrafo,
conseguiram trazer?
As irmãs se entreolharam, exatamente como das últimas vezes.
Depois, voltaram os olhos mais uma vez para mim.
— Bom — Mary começou. — Nós até pedimos para que ele
autografasse uma foto para você, mas então…
— Ele começou a fazer um monte de perguntas, foi bem estranho —
Jane a atropelou nas palavras.
— Mas, levando em consideração o quanto é atencioso, não acho que
foi tão estranho — Mary completou.
— Qual tipo de perguntas? — Estranhei.
— Eu sei que ele é atencioso, mas perguntou a cor do seu cabelo. Isso
soa um tanto quanto incomum, não acha, Marília?
— Me parece estranho mesmo — comentei.
— O pior foi que ele perguntou a cor dos seus olhos também.
— Ah, não! Vocês disseram que eu tenho um olho de cada cor?
— Foi a Mary quem disse!
— Mary! — pus minha voz em som de reclamação.
— Eu só fui sincera, oras! Inclusive, acho que isso acabou
despertando algum interesse nele.
— Certo. — Balancei a cabeça positivamente, com os olhos fixos em
Mary, esperando que ela colocasse para fora tudo o que guardava sobre
aquela conversa. — Continue.
— Acho que meu inglês não é muito bom. — Ela coçou o couro
cabeludo e fez uma careta. — Porque por três vezes repeti seu nome, e ele
continuava me perguntando: Lia, ou Marília?
— Lia? — Franzi o cenho ao perguntar, havia muito eu não ouvia
alguém pronunciar aquele nome.
Era como minha mãe me chamava quando eu ainda era apenas um
bebê. Após sua morte, nunca mais ninguém me chamou daquele jeito. Mas
não acreditei que uma coisa pudesse ter envolvimento com a outra. Com
certeza, MatLew não conseguira entender o inglês de Jane.
Mary começou a rir ao se lembrar da cena.
— Foi muito engraçado, na verdade. Nem eu e nem Jane estávamos
entendendo o que ele falava.
— Mas… E depois? — indaguei. — Ele perguntou a cor do meu
cabelo, dos meus olhos, o meu nome. E depois? Para que tantas perguntas?
Por que não deu o autógrafo?
— Depois ele disse que era para avisarmos que ele abriria uma
exceção para você. Disse que te esperaria quando o Meet and Greet
acabasse para te dar o autógrafo pessoalmente.
— Como? — soou mais como um grito agudo. — Certeza?
— Esse é o problema, não temos certeza. Nunca fomos muito
dedicadas às nossas aulas de inglês, na verdade. E, convenhamos, é bem
difícil focar em tudo o que ele fala quando sua beleza chama muito mais a
atenção.
— Santo Deus. — Suspirei e levei as mãos às têmporas. — O que
faço agora?
— Desça até o salão e veja se ele ainda está lá — Jane sugeriu.
— O Meet and Greet acabou faz tempo?
— Assim que subimos — Mary respondeu.
— Estou achando essa história bem estranha. Por que MatLew abriria
uma exceção para uma fã que ele nem conhece e que, por sinal, nem tem o
ingresso para o evento?
— Sinceramente, também não sabemos.
— Acho que vocês entenderam errado.
— Marília, por Deus! Vá trocar de roupa e desça para se certificar
com seus próprios olhos. Quanto mais você demora, mas corre o risco de
ele ir embora.
Senti meu coração palpitando mais rápido. Seria possível?
Sinceramente, não fazia sentido nenhum. Nenhum.
Tentei não criar esperanças, mas ficou difícil depois de ter ouvido o
que ouvi.
O que eu mais queria naquele momento era que fosse real, que elas
realmente tivessem entendido certo o que MatLew falara.
Corri pelo quarto e abri minha mochila. A primeira roupa que achei
foi um vestido florido na cor salmão. Não era a melhor peça que eu tinha,
mas, levando em consideração a pressa, não ousei perder tempo escolhendo
com mais cautela.
Vesti-me o mais rápido possível e depois coloquei minhas sapatilhas
novas. Aquelas que Luiz havia me dado de aniversário.
— Você está bem bonitinha — Mary disse. — Parece uma
bonequinha.
— Obrigada. — Sorri.
Aquele foi o momento em que me arrependi de não ter me maquiado,
mas agradeci mentalmente pelos demais cuidados que eu tivera ainda
naquele mesmo dia mais cedo. Pelo menos meu cabelo estava arrumado e
eu estava de banho tomado. Inclusive, o cheiro da minha pele estava bem
nítido e gostoso.
Peguei meu hidratante labial de cereja e passei agilmente pelos lábios,
de frente para o espelho. Gostei da cor avermelhada que ficou e de como
transpareceu naturalidade.
— Preciso de mais alguma coisa? — perguntei.
— Vá logo, Marília!
— Está bem. — Respirei profundamente e saí do quarto a passos
largos e rápidos.
Apertei o botão do elevador pelo menos umas vinte vezes até que ele
de fato chegasse.
Não sei precisar a que horas começou, mas percebi que eu estava
ofegando e meu paladar tinha gosto de cereja, o que indicava que eu estava
mordendo o lábio inferior havia algum tempo.
Dirigi-me o mais rápido que pude até o salão que as meninas me
indicaram enquanto eu me arrumava. Porém, a primeira coisa que notei
quando me aproximei foi que estava tudo muito tranquilo. Se MatLew
estivesse lá, aquela calmaria seria inexistente.
Já com nenhuma esperança, eu me aproximei da porta envidraçada do
salão e olhei para dentro. As luzes estavam acesas, mas não havia ninguém
lá, como imaginei.
Respirei fundo, brigando mentalmente comigo mesma por ter caído
na lábia de Mary e Jane. Claramente, elas não tinham entendido o que
MatLew falara e acabaram se enrolando ao me darem a notícia sobre a falta
do autógrafo.
Coloquei a mão na maçaneta e abri a porta vagarosamente. Pensei
que, se eu entrasse naquele lugar, poderia ao menos sentir a presença do
meu ídolo, que estivera ali pouco tempo atrás.
Adentrei a sala em passos silenciosos e olhei todos os detalhes do
lugar. Havia uma mesa no fundo da sala, onde provavelmente MatLew
estivera sentado. Aproximei-me e encostei a palma na cadeira. Foi como se
eu pudesse sentir a vibração da presença dele.
Fechei os olhos e respirei fundo. Sorri ao perceber que eu estava
ficando boa naquele negócio de imaginação. Eu podia sentir o cheiro do
perfume dele adentrando meus pulmões. Realmente era delicioso.
Depois, com toda a força do meu ser, eu o imaginei falando comigo.
Afinal, eu havia ouvido sua voz claramente no dia anterior, não seria difícil
de me lembrar, uma vez que ficara fixada em cada uma das minhas
entranhas.
— Lia?
Meu corpo inteiro se arrepiou, de cima a baixo. Foi tão real, que eu
poderia jurar que ele estava logo atrás de mim.
Que besteira.
Respirei fundo mais uma vez e abri os olhos. Virei-me em direção à
porta, pronta para ir embora e parar de me torturar. Mas, então, paralisei
bruscamente.
Eu reconheceria aqueles olhos de qualquer distância em que eu
estivesse. Tão profundos que me consumiram em extrema perplexidade.
Ficamos parados, um olhando para o outro. Eu no fundo do salão, ao
lado da mesa onde ele estivera autografando, e ele parado como uma estátua
ao lado da porta.
Meu coração bombardeava o peito e minhas pernas tremiam, assim
como minhas mãos.
Prendi a respiração, enquanto minha cabeça era tomada por uma
tontura súbita.
Segurei-me com força na mesa ao meu lado e tentei me manter firme.
Mas aquela presença era tão forte, que nitidamente me abalava.
Eu não sabia se ele estava sentindo o mesmo, mas a conexão entre
nossos olhos foi tão profunda e instantânea, que fui tomada por pura
adrenalina. Meu peito estava colapsado, portanto foi difícil colocar a
respiração em ordem. Ora não saía e ora saía demais.
Ele ainda estava parado me encarando. Nenhum dos dois se mexeu.
O olhar estava tão fixo e com uma força tão assustadora que me
perguntei se, em algum lugar espiritual, os anjos conseguiriam ver chamas e
raios se tocando com a mesma intensidade dos poderes que saíam das
varinhas de Harry Potter e Voldemort quando duelaram em As Relíquias da
Morte.
Embora eu estivesse afogada na angústia de estar longe, não pude me
mover.
Após mais de um minuto inteiro em transe, MatLew deu alguns
passos em minha direção. Ele vestia calças pretas, botas de couro da mesma
cor e uma camiseta branca estampada. Seus cabelos estavam soltos e
levemente bagunçados, o que deixava sua expressão séria bem sexy. Usava
vários anéis nos dedos e sua altura, exatamente 1,83 metros, me pareceu
bem relevante no momento, já que eu era mais do que vinte centímetros
mais baixa.
Tentei me manter com uma postura firme e confiante, mas a verdade
era que eu apertava tanto o tampo da mesa, que estava prestes a quebrar a
madeira entre os dedos.
Era impossível se sentir confiante diante de uma pessoa tão
importante. Alguém que pensei que nunca chegaria tão perto de mim.
Ele ainda se aproximava aos poucos, olhando-me tão fixamente que
me envergonhava.
Quando já perto de mim o suficiente, senti meu cérebro ser perfurado
por aquele olhar verde penetrante.
Havia aproximadamente dois palmos de distância entre nosso rosto e
nossos olhos não se desgrudavam. Mas, agora, ele piscava como se
estivesse tentando acordar de um sonho. Como se estivesse tentando ter
certeza de que era real.
— Lia? — ele perguntou mais uma vez, a voz baixa, submersa em
dúvida e medo.
— Marília — respondi, com a voz igualmente baixa. — Meu nome é
Marília.
— Marília — ele disse para si mesmo, como se estivesse analisando o
som daquela palavra. Achei lindo meu nome em sua boca, sendo proferido
com um sotaque de inglês canadense. Sorri, mas isso pareceu pasmá-lo.
Então, desfiz o sorriso, envergonhada. — Então este é o seu nome.

Tentei conter o nervosismo, mas não tenho certeza de que consegui


com êxito.
Imaginei-me ao lado dela diversas vezes, mas não pensei que sofreria
aquelas reações.
Andar, mesmo que em passos lentos e cuidadosos, foi a coisa mais
difícil que fiz na vida, uma vez que todos os músculos do meu corpo
pareciam duros como ferro.
Em minha garganta, algo tampava a respiração, dificultando-a.
Por tantos anos seguidos, a sensação de conforto me tomava quando
eu estava ao lado de Lia em meus sonhos, mas não ocorreu o mesmo dessa
vez. Eu estava nervoso, tão nervoso que minhas costas suavam.
— Marília — proferi. Esse era o nome dela. Muito mais belo do que
imaginei em meus mais insanos pensamentos a seu respeito. — Então esse é
o seu nome.
Poucos dias atrás, cheguei a imaginá-la embaixo de mim, sem roupas,
pronunciando seu nome da maneira mais sexy do mundo, mas percebia
agora que nem mesmo essa imagem fora tão devastadoramente prazerosa
quanto a que eu estava vivendo naquele momento.
— Sim — ela respondeu na minha língua, em inglês. — Desculpe
minhas amigas, elas não sabem falar inglês muito bem.
Sua voz era exatamente como eu me lembrava, mas nunca imaginei
que sua língua-mãe fosse o português.
Deleitei-me naquele timbre que tanto sonhei em escutar na vida real.
Cada palavra sua ecoava na minha cabeça.
— Amigas?
— Mary e Jane. Elas estavam aqui no Meet and Greet.
— Oh, sim. Claro, suas amigas.
— Eu sei que o evento já acabou. — Um pigarro. — Não quero te
atrapalhar. Vim somente para saber se pode autografar uma foto para mim,
para recordação.
— Claro. — Continuei olhando-a.
Eu não conseguia parar de olhá-la, de admirá-la.
Fiquei maravilhado com seu rosto angelical, com seus lábios
naturalmente avermelhados, com seus olhos brilhantes e com seu semblante
tão ingênuo.
Ela estava linda, muito mais linda do que na última vez que a vi,
havia cerca de dois anos.
Perguntei-me secretamente se ela havia sonhado comigo também, se
me conhecia tão bem quanto eu a conhecia, se me amava na mesma
proporção que eu a amava.
Senti medo de perguntar, de parecer um louco proferindo palavras
insanas.
— Por que não veio ao Meet and Greet? — perguntei, olhando
diretamente para seus lábios, que pareciam tão macios.
— Não vim porque os ingressos acabaram. Não consegui comprar a
tempo.
— Entendi. Vamos fazer o seguinte: finja que o evento ainda não
acabou. Abrirei esta exceção para você. Eu te darei o tempo que quiser
comigo, para dizer o que quiser e tirar quantas fotos forem necessárias.
— Mesmo? — Ela suspirou, com as sobrancelhas erguidas por
espanto.
Parecia ter ficado muito feliz com a minha fala, apesar de não ter
sorrido.
— Sim, claro.
Assisti ao seu olho verde ficando amarelo aos poucos e, então, tive
certeza sobre sua felicidade.
— O seu olho — eu disse, observando-o de perto. — Fico feliz que
tenha ficado amarelo.
Ela me lançou um olhar questionador.
— E por que está feliz com a mudança de cor do meu olho?
Analisei suas feições por um instante. Identifiquei que claramente ela
não sabia que eu a conhecia.
— Isso indica que você ficou feliz. Gosto de saber que te faço feliz.
Seu olho esquerdo ficou de um amarelo vibrante, enquanto suas
bochechas enrubesciam.
— Não entendi — ela disse, por fim.
Sorri, o que a fez olhar para mim com intensidade. Imagino que tenha
até esquecido da vergonha que carregava.
— Você gosta de quando sorrio? — perguntei.
Marília lançou o olhar ao chão e limpou a garganta.
— MatLew… — começou, mas a interrompi no mesmo instante.
— Matthew, por favor. Me chame de Matthew.
— Está bem, Matthew. Agora, seria possível me dar um autógrafo?
— Como?
— Um autógrafo. Sou muito fã das suas músicas e do seu trabalho.
Vou ficar muito feliz se me der um autógrafo. E… Já que disse que gosta de
me ver feliz, acho que será conveniente.
— Muito conveniente. — Sorri ainda mais. — Com certeza eu
poderia te dar um autógrafo. Só um instante. Não saia daqui, por favor.
Andei a passos ágeis até algumas das minhas coisas que ainda
estavam no salão e peguei um cartão retangular de tamanho razoável com a
minha foto e uma caneta esferográfica preta. Voltei até Marília e autografei
o cartão na sua frente.
— Muito obrigada — agradeceu e sorriu tão lindamente que meu
estômago se revirou.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Sim, claro.
— Qual é a cor do seu humor?
— Amarelo para bom humor e verde para mau humor — ela
respondeu. Respirei fundo com aquelas palavras, tão aliviado quanto
apaixonado. — Agora, eu posso te fazer uma pergunta?
— Com certeza.
— Por que esta pergunta? O que tem de tão especial nela?
— Uma vez ouvi uma pessoa muito especial falar sobre sua cor de
humor e achei muito interessante. Mas, então, perdi o contato com ela em
certo momento da vida. Com saudade, decidi procurá-la e lançar esta
pergunta aos fãs, na intenção de encontrá-la mais uma vez.
— Mas a resposta certa poderia ser dita por outra pessoa, não acha?
— A resposta é muito específica. Só ela conseguiria responder
corretamente a essa pergunta.
— E conseguiu a resposta que queria?
— Sim.
— Posso te fazer outra pergunta?
— Claro.
— Qual era a resposta correta, afinal?
— Amarelo para o bom humor e verde para o mau humor —
respondi, encarando-a com a maior sinceridade que pude transmitir em
meus olhos.
— Mas eu que dei essa resposta.
— Pois é.
O silêncio reinou enquanto nos olhávamos. Marília, procurando
respostas em minhas feições, e eu esperando ansiosamente pelo momento
de poder tocá-la após tantos anos almejando isso.
— Não entendi — ela disse, por fim.
— Posso fazer outra pergunta?
— Fique à vontade.
— É a primeira vez que me vê?
— Sim — respondeu sem hesitar. — Assim tão perto, sim.
— Você me acompanha desde quando?
— Desde os dez anos, quando você ainda estava participando das
audiências do Canada’s Got Talent.
Não resisti, soltei uma risada de puro contentamento.
Ela me fitou com uma de suas sobrancelhas erguidas.
— Por que está rindo?
— Por nada. Só achei sua resposta bem específica.
— Como eu te disse, sou muito sua fã. Te acompanho desde o
começo de sua carreira, amo todas as suas músicas.
— Você foi ao show ontem?
— Sim, foi fantástico, parabéns pelo desempenho.
— Obrigado. Você quer que eu cante sua música favorita?
— Faria isso? — Ela arregalou os olhos e abriu o sorriso mais
animado do mundo.
— Claro. — Peguei meu violão, que estava em pé no mesmo canto
que todas as minhas coisas, e sentei-me na mesa, de frente para Marília.
Respirei fundo e comecei a cantar, olhando-a nos olhos.
Meu coração cresceu vinte vezes mais quando a assisti fechando as
pálpebras e balançando o corpo de um lado para o outro.
Mal pude acreditar que aquilo estava acontecendo de verdade.
Quando terminei, ela me fitou. Seus olhos brilhavam intensamente e o
orbe esquerdo manifestava o tom de amarelo mais incrível do mundo.
— Como sabia que esta era a minha favorita?
— Não é mais?
Ela me analisou com o cenho franzido. Com certeza eu a estava
confundindo.
— Foi a minha favorita por muitos anos — respondeu. — Mas A
menina dos meus sonhos ganhou meu coração e passou a ser a minha
favorita desde o lançamento.
Novamente, não consegui segurar. Soltei mais uma risada.
— Bem conveniente.
— Há algum motivo para estar rindo desta vez?
— Gostei da sua resposta, só isso.
— Está bem, então. — Ela deu de ombros e cravou os olhos em mim.
— Seria pedir muito se…
— Quer que eu cante A menina dos meus sonhos para você?
Marília balançou a cabeça positivamente.
Eu nunca negaria um pedido como aquele. Se pudesse, passaria todas
as horas que me restavam de vida fazendo exatamente o que ela me pedira.
Vê-la se contentando com a minha voz era o que mais me dava prazer.
Fiz o que pediu e novamente a assisti fechando os olhos e balançando
o corpo.
Analisei cada detalhe de seu rosto e corpo enquanto isso. Ela era doce
de cima a baixo.
Perguntei-me como seria a sensação de tocá-la pela primeira vez e
tentei ranquear qual seria o melhor lugar de seu corpo para que eu dedicasse
o meu primeiro toque.
Fiquei impressionado com a aparência de seu cabelo. Ele terminava
logo abaixo dos ombros, mas parecia tão pesado que modelava todo seu
rosto.
Ela não tinha mais a franjinha sobre a testa, agora uma grande mecha
desenhava um lindo formato de onda para o lado esquerdo.
A cor era tão fantástica que me consumia de paixão. Exatamente
como vinho tinto, tão brilhante que quase refletia minha imagem, assim
como vinho parado em uma taça.
Após uma análise detalhada de todas as curvas belas que ela possuía,
desde o couro cabeludo até os pés, cheguei à conclusão de que eu gostaria
que meu primeiro toque fosse em seus fios de cereja. E pedi com toda a
intensidade do meu ser que eles ainda tivessem o cheiro de maçã verde.
Quando terminei, nos olhamos nos olhos mais uma vez.
— Quer fazer mais uma pergunta? — Sorri, ao perceber sua
expressão pensativa.
— Sim. Posso?
— Quantas quiser.
— Por que chorou ontem enquanto cantava esta música?
— É uma boa pergunta — concluí. — Chorei de saudade.
— Saudade da garota especial que te falou sobre a cor do humor?
— Sim.
— Ela é a menina dos seus sonhos?
— Sim, é a dona de todos eles.
— Sortuda ela.
Após dizer estas palavras, Marília franziu a boca, tentando esconder a
vergonha que voltava à tona.
Achei realmente fofo quando os traços de ciúme lhe cobriram a face.
— Quer saber como ela é?
Após um suspiro longo, ela concordou.
— Quero, sim.
— Bem, ela é bem exótica, é dona dos traços mais lindos e diferentes
que já pude contemplar em uma mulher. Não gosta que perguntem sobre a
cor de seu cabelo, porque fica cansada de sempre dar a mesma resposta o
tempo todo. O que ela mais gosta em mim são minhas covinhas, e sempre
fecha os olhos, e balança o corpo quando me ouve cantando. Tem
heterocromia nos olhos, mas não se importa em falar sobre o assunto. Seu
olho verde fica lindo quando se transforma em amarelo, mas, mesmo assim,
o que mais gosto nela são os pés, sempre pintados com um esmalte
clarinho. Ela ama balanços e flores, principalmente as laranja, sua cor
favorita.
— Vou te fazer outra pergunta, mas vai soar um tanto quanto estranha
— Marília disse me fitando com olhos fixos.
— Claro, faça a pergunta. Talvez a resposta seja ainda mais estranha.
— Há quanto tempo me conhece?
Sorri profundamente, tentando inibir uma risada.
— Te conheço há nove anos — respondi, na maior naturalidade do
mundo.
Marília pareceu não entender minha resposta, assim como previ que
seria. Ela franziu o cenho e mordeu o lábio inferior, pensativa. Talvez
tentando se lembrar do episódio em que nos conhecemos nove anos atrás e
se punindo por não se lembrar do caso.
— Sinceramente, acho que está me confundindo — ela concluiu.
— Não estou — disse com firmeza. — Eu avisei que a resposta
pareceria mais estranha do que a pergunta.
— Matthew, se eu já tivesse te visto antes, nunca me esqueceria,
tenho certeza disso.
— É porque você não me viu de verdade, o que é péssimo. Só eu te
vi.
— Foi em alguma viagem sua ao Brasil?
— Não sei ao certo.
Ela parou por um instante e me analisou, com dúvida estampada na
face. Então, cruzou os braços e mexeu a perna direita, o que demonstrava
ansiedade e nervosismo.
— Isso é mais um truque para conquistar uma fã? Não me leve a mal,
mas sei que você vive jogando seu charme por aí, principalmente com as
meninas que te adoram.
— O quê? — Pela primeira vez, eu me dei conta de que estávamos na
vida real e que ela, como fã, provavelmente tinha conhecimento sobre as
minhas atitudes galanteadoras com as meninas. Fiquei chateado com isso.
Nunca quis alguma coisa na vida mais do que ter me guardado só para a
Lia, mas eu não sabia se ela era real; mesmo com toda a esperança dentro
do peito, nunca tive certeza de que ela existia. Agora, sentado aqui a sua
frente, eu previa a dificuldade que seria desconstruir essa imagem que ela
tinha de mim. — Não! Não é nenhum truque, eu garanto.
— Se for, fique sabendo que não está funcionando. Você é o meu
ídolo e estar aqui perto de você é o que sempre quis na vida, mas isso não
influencia em minha opinião sobre homens que xavecam só para conseguir
algo mais íntimo.
Fiquei sem reação por um instante, pensando sobre o que eu diria para
melhorar o rumo de nossa conversa. Mas meu silêncio a perturbou e a fez
prosseguir com a fala.
— Me desculpe — sua voz demonstrava arrependimento. — Tenho
certeza de que entendi tudo errado. Eu seria a última pessoa do mundo que
você xavecaria para ter algo mais íntimo. Nem acredito que disse isso. É
que estou muito nervosa por estar aqui, não me planejei para este momento,
por mais que eu tenha sonhado muito com isso. Se eu pudesse voltar atrás,
apagaria tudo o que disse. Desculpe-me mesmo!
— O que a faz pensar que seria a última pessoa do mundo a qual eu
xavecaria? — Lancei-lhe um olhar sério.
— Olhe para mim. — Ela sorriu envergonhada. — Sou só uma
menina normalzinha da Zona Sul de São Paulo.
— Lia… Quero dizer, Marília… — Eu me senti confuso com suas
palavras. A menina dos meus sonhos era cheia de si, convencida de que era
a garota mais bonita do mundo, convencida de que era amada por mim,
convencida de que era a única em minha vida. Ela jamais diria aquelas
palavras. Soube instantaneamente que havia muito da Marília que estava de
frente comigo que eu ainda não conhecia. Mas não me importei com isso,
estava disposto a conhecê-la também — Eu…
Mas fui interrompido.
— Obrigada pelo autógrafo — ela disse. — Vou subir para meu
quarto agora. Obrigada pela oportunidade de conhecê-lo pessoalmente, foi
maravilhoso.
Enquanto ela se despedia, vi o mundo desmoronando logo a minha
frente. Eu não podia deixá-la ir embora. Não podia perdê-la daquela forma.
Ela estava tão envergonhada que não conseguia olhar para mim. Senti
vontade de abraçá-la e de dizer que a amava, mas não soube como fazer
isso sem a assustar.
Marília começou a andar em direção à porta, de costas para mim.
— Espere — pedi, pulando da mesa onde eu estava sentado e
caminhando em sua direção. — Por favor, não vá. Quero dar a você o que
sempre sonhou. Nós nem tiramos uma foto juntos.
Ela se virou e me encarou. Seu olho estava verde novamente, em um
tom escuro.
— Não entendo por que quer tanto realizar meu sonho. Eu nem tenho
ingressos para o Meet and Greet! Não era nem para eu estar aqui, na
verdade.
— Sei que parece confuso — engoli em seco —, mas, se me der a
chance de explicar, eu farei.
— O que quer explicar? — perguntou, franzindo os lábios. — Está
tudo certo, Matthew, de verdade. O problema sou eu. Esperei tanto por este
momento e sinto que acabei estragando tudo.
— Não concordo. Você não estragou nada e não quero que sinta
vergonha de mim. Olhe só, estamos sozinhos agora, isso é um milagre.
Vamos conversar, eu e você. Vamos aproveitar esta oportunidade.
Ela sorriu, mas parecia cabisbaixa.
— É bem estranho um ídolo dizer esse tipo de coisa a uma fã.
— E tem ainda muitas outras coisas estranhas que quero te dizer.
— Como me contar como exatamente me conheceu há nove anos?
— Isso.
— Está bem. Consegue esquecer o que eu disse antes? Sobre xaveco e
intimidade.
Sorri.
— Claro.
— Obrigada. Então, me diga como me conheceu.
Sentamo-nos no chão em um canto do salão, um ao lado do outro,
assim como fazíamos nos meus sonhos. Nossos braços estavam próximos,
tão próximos que eu podia sentir o calor de sua pele. Mas não nos
tocávamos, o que era uma pena.
Contei a ela como a conheci. Tive sua total atenção em todas as
minhas palavras.
Ela ficou em silêncio enquanto me ouvia, analisando cada vírgula que
saía de minha boca, mudando de expressão vez ou outra.
Quando terminei de contar o que era mais relevante que ela soubesse,
o silêncio permaneceu. E, agora, quem estava envergonhado era eu.
— Você não acredita, não é? — perguntei. — Não acredita no que eu
disse.
— Não é isso, só estou digerindo tudo o que ouvi. Então, só para
recapitular e ver se entendi direito: você me conheceu através de um sonho
aos dez anos de idade após sua premiação no Canada’s Got Talent e desde
então tem sonhado comigo, certo?
— Certo.
— Você conhece muitas coisas sobre mim, pelo que disse, o que me
confunde bastante. Mas, enfim, quando fez dezessete anos pediu para que
eu não aparecesse mais porque estava obcecado demais por mim e não
podia continuar me mantendo somente na cabeça.
— Com você falando em voz alta, parece mais ridículo ainda. Mas é
isso mesmo, é a verdade.
Ela soltou uma risada.
— É difícil de acreditar, mas acredito só porque vi que você conhece
coisas sobre mim que não teria como saber se não me conhecesse de
verdade.
— Fico mais aliviado em saber que acredita.
— No momento, é como se eu estivesse sonhando. Não parece que
tudo isso é real para mim.
— Sinto a mesma coisa. Não consigo acreditar que você está mesmo
aqui comigo.
— Você disse que não podia me sentir em seus sonhos. Talvez, se me
tocar agora, isso o faça perceber que é real.
Ela estava me convidando a tocá-la?
Coloquei a mão no chão gelado, com os dedos abertos, assim como
fiz por tantos anos em meus sonhos. Sem que eu precisasse pedir, Marília
fez o mesmo, depositando sua mão ao lado da minha.
Assisti as mãos rastejando vagarosamente para encostarem-se.
Meu peito doía enquanto meu coração surrava as costelas.
Minha respiração ficou mais rápida, tamanho meu nervosismo,
tamanha a intensidade do meu querer em relação àquele toque.
Quando os dois mindinhos quase se tocavam, o calor de sua
proximidade fez minha mão inteira formigar.
— Posso? — ela perguntou.
Mas, antes que eu respondesse, ouvi batidas à porta de vidro do salão.
Meu coração quase parou de bater. Na verdade, acho que realmente
parou por uns dois segundos.
Era um dos funcionários do hotel. Queria se certificar de que estava
tudo bem.
— Desculpe interromper, senhor — o funcionário bem trajado disse.
— Só vim cuidar do fechamento do salão. Não queremos que o senhor
tenha mais preocupações a uma hora dessas da noite.
— Oh, obrigado pela atenção. — Levantei-me rapidamente e passei a
mão por minhas calças pretas para tirar as partículas minúsculas de sujeira
que grudaram do chão. — Já estamos de saída. Fique à vontade para fechar
o salão, entendo que já seja tarde. Meu quarto está disponível para esta
noite?
— Sim, senhor. A chave está bem aqui no meu bolso. Tenho o maior
prazer em entregá-la diretamente em suas mãos.
Peguei a chave e agradeci.
Marília se levantou também, quieta e observadora.
— Quer ajuda para levar suas coisas até o quarto, senhor?
— Por favor. A uma hora dessas, meu produtor já deve estar
dormindo.
— Claro. O senhor pode subir, estarei logo atrás com seus pertences.
— Obrigado. Você vem, Marília? — chamei enquanto andava em
direção à porta.
Ela veio correndo atrás de mim, segurando para que seu vestido não
voasse.
Entramos no elevador juntos e, quando sozinhos na cabine, Marília
perguntou:
— Você está hospedado aqui?
— Eu estava em outro hotel — expliquei. — Mas após o
encerramento do Meet and Greet, fui até a recepção e reservei um quarto
para passar a noite aqui. Imaginei que te encontraria quando perguntei suas
características às suas amigas, então supus que precisaríamos de tempo para
conversar e que não seria prudente ficarmos tantas horas naquele salão,
correndo o risco de que outras pessoas me vissem.
— Entendi errado ou você está me chamando para ir ao seu quarto?
— Se parecer um convite estranho, podemos continuar nossa
conversa quando amanhecer. Se me prometer que não vai sumir até lá.
— Se isso for um sonho, quero vivê-lo até não poder mais. Também
não quero correr o risco de ir para meu quarto e acordar ao amanhecer
sabendo que você sumiu.
— Isso não vai acontecer. De qualquer forma, ficarei contente se
aceitar ir para meu quarto.
— Eu vou. Só porque não quero que esse sonho acabe.
— Não estamos sonhando.
— Como sabe? Você ainda não me tocou.
Identifiquei muito mais confiança nela naquele momento. Talvez por
conta da minha narração explicando o quanto eu gostava dela desde os
meus dez anos de idade.
Fiquei contente por ter conseguido transmitir a intensidade do meu
desejo por ela.
Claro que não usei palavras tão intensas quanto eu gostaria, mas fui
sincero em tudo o que disse e tenho certeza de que ela conseguiu detectar
isso.
Eu não podia correr o risco de dizer coisas que a assustassem. Minha
consciência martelava o tempo todo me lembrando que eu a conhecia fazia
muito tempo, mas ela só me conhecia de verdade havia algumas horas.
Seus anos como fã não lhe permitiam me amar tanto quanto eu a
amava.
Uma fã nunca conhece seu ídolo tão bem quanto pensa.
Descemos do elevador e entramos no meu quarto. Imaginei que seria
demais dividir a cama com ela, então pedi um quarto com duas camas,
mesmo sem saber se conseguiria levá-la até meus aposentos. Foi tudo
precaução.
Ela não era como as outras fãs, nem como as outras mulheres. Toda
cautela do mundo seria pouco naquele momento. Eu não poderia correr o
risco de perdê-la. Não poderia demonstrar ou fazê-la pensar que eu a queria
por uma só noite, assim como fiz com todas as outras mulheres que
passaram por minha vida.
Fechei a porta e a observei. Ela tentava não me olhar, desviando a
atenção à decoração do quarto. Segurava as mãos com força uma contra a
outra e mordia o lábio inferior.
— Quando adquiriu essa mania de morder o lábio? — perguntei. —
Nos meus sonhos, você não fazia isso.
— Também não sei, só comecei a fazer, simples assim. Acho que
mordo sempre que estou nervosa.
— Por que está tão nervosa?
— Não é óbvio? Até agora estou tentando entender como vim parar
aqui.
Sorri. Ela me olhou com intensidade e parou de se movimentar
subitamente.
— Você não me respondeu. — Aproximei-me dela e a olhei nos
olhos.
— O quê?
— Gosta quando sorrio?
— Muito. Você tinha razão quando disse que gosto das suas covinhas.
Realmente, é o que mais me fascina em você.
— Obrigado pelo elogio.
— O que mais gosta em mim realmente são meus pés? — Sua testa
franziu levemente.
— Sim, sempre amei seus pés.
Ela soltou uma risada linda, que deixou suas bochechas levemente
coradas. — Achei que diria meus olhos.
— Eu sei. Gosto deles também, mas seus pés são meu grande
fascínio.
— Ok, vamos tornar este sonho melhor? — ela perguntou, com um
sorriso brincalhão na face.
— Como? — Sorri também, curioso.
— Olhe para baixo — pediu.
Eu obedeci, estudando as sapatilhas delicadas em seus pés.
Com um movimento vagaroso, ela tirou o pé direito do sapato, depois
o esquerdo.
Meu corpo inteiro enrijeceu. O que parecia ser um choque, acumulou-
se em minha nuca, causando-me calafrios intensos.
Aqueles pés descobertos eram a coisa mais linda e delicada que eu já
tinha visto em toda a minha vida. Tive vontade de beijar todos os seus
dedinhos, um por um.
Suas unhas estavam pintadas de rosa-claro, cor que combinava com
as solas tão aparentemente macias.
Deus do céu, eu precisava me controlar. Se Marília soubesse a
intensidade dos meus sentimentos por ela, se soubesse de verdade o que eu
queria fazer com ela, provavelmente se espantaria.
— São como nos seus sonhos? — perguntou.
— Ainda melhores pessoalmente.
— Quer tocá-los?
Subi o olhar e encontrei seus olhos. Sim, eu queria muito tocá-los.
Mas um medo súbito me tomou. Eu não sabia se conseguiria, não sabia se
seria possível.
Nós já estávamos conversando havia horas, mas ainda sem nenhum
toque sequer.
Fiquei com medo de descobrir que eu não poderia senti-la mesmo que
na vida real.
— Quero, mas…
— Mas, o quê?
— E se…
— Matthew — sua voz saiu como um sussurro. — Este é o maior
sonho da minha vida. Não tem nada que você possa fazer para estragá-lo.
Se não me tocar, independentemente de onde for, até eu vou achar que é um
sonho e que logo vou acordar. Faça isso se tornar real, por favor.
Respirar estava difícil demais. Suas palavras entraram como flecha
em meu peito e fizeram pressão contra meu coração.
Olhei-a fixamente nos olhos, ela esperava pelo meu toque, esperava
por minha atitude.
Levantei a mão direita devagar, totalmente amedrontado.
O olho verde de Marília ficou amarelo na mesma velocidade.
No final, não toquei nem seus pés, nem seu cabelo de cereja. Meu
primeiro toque seria em seu rosto, se tudo corresse bem.
Aproximei os dedos ainda mais, em câmera lenta. Minha garganta
doía com intensidade, assim como meu peito, que prendia o ar
rigorosamente.
Nada era mais importante do que aquele toque naquele momento,
nem mesmo a respiração para me manter vivo.
Quando havia somente um centímetro separando a pele de seu rosto
dos meus dedos, parei. Analisei Marília, minha Marília, minha Lia. Ela
estava esperando por aquilo tanto quanto eu. Seu peito se movia para cima e
para baixo com rapidez e seus olhos pareciam suplicar.
Tão vagarosamente quanto pude, cheguei mais perto e toquei. O que
me ocorreu foi tão forte que facilmente poderia me derrubar. Foi como
aquelas bombas devastadoras, que destroem tudo o que veem pela frente.
Mas o desastre ocorreu dentro de mim, não fora. Por dentro, tudo se
derretia, tudo se movia, tudo tremia como um terremoto. Por fora, o silêncio
reinava no quarto, quebrado somente pela tensão entre nós.
Ela fechou os olhos e sorriu sutilmente.
Cheguei mais perto e depositei minha palma inteira em sua bochecha.
O frio na minha barriga foi tão intenso quanto descer de uma
montanha-russa com mil metros de altura.
Queda livre. Foi o que eu senti.
Dei um passo à frente e levei a outra mão ao seu rosto também.
Minhas duas mãos em suas duas bochechas.
Percebi que eu ainda não respirava. Admirei-a com os olhos fechados,
os cílios grandes chamavam minha atenção.
Não sei o que deu em mim, mas o impulso foi tão grande e
espontâneo, que aproximei os lábios de seu olho esquerdo e o beijei.
Olhamo-nos logo depois.
— Você está me sentindo? — ela perguntou em um sussurro.
Soltei a respiração vagarosamente, sentindo meu peito doer cada vez
mais.
— Sim — respondi, tão baixo quanto sua voz. — Eu estou te
sentindo.
— Não é um sonho, Matthew.
— Não é um sonho, Marília.
— Eu posso te tocar também?
— Por favor.
Marília foi mais rápida do que eu, levantou as mãos e também tocou
meu rosto. Assim como ela, fechei os olhos em contato com seus dedos.
— Você é tão bonito — disse.
Sorri, sentindo aquelas palavras acariciarem meus ouvidos.
— Você disse que era só uma menina normalzinha da Zona Sul de
São Paulo, mas quero que saiba que, para mim, você é a mulher mais linda
do mundo. É ainda mais linda pessoalmente, assim de perto. Tocar-te,
Marília, é arrebatador. É a melhor sensação que já senti em toda a minha
vida.
Suas mãos saíram de meu rosto e, de repente, um vazio tomou minha
pele.
Mas, depois, ela pegou minhas mãos, o dorso de cada uma delas, e
fixou as palmas em suas bochechas. Naquele momento, eu não soube
decifrar o que estava mais quente, se era a parte superior ou inferior das
minhas mãos.
— Toque-me o quanto quiser — ela disse. — Quero que realize seu
sonho, assim como fez comigo. Meu maior desejo era te ver pessoalmente e
te ouvir cantando perto dos meus ouvidos, você fez isso por mim. —
Lancei-lhe um olhar fixo, com a respiração trêmula.
Suas palavras foram como um bálsamo para mim.
Por todas aquelas horas, eu me questionei como deveria agir em
relação a ela. Tive medo de exagerar, tive medo de assustá-la. Mas me
esqueci de que nos conhecíamos havia muitos anos, não era como se nos
víssemos pela primeira vez. Cada um a sua maneira, guardou sentimentos
pelo outro no decorrer de todos aqueles anos e o que sentíamos estava
acumulado, somente esperando pelo momento certo para ser colocado para
fora.
Puxei-a para um abraço, o melhor e mais confortável abraço do
Universo. Apertei-a contra mim e a senti me apertando também.
Descarreguei naquela proximidade toda a saudade que eu estava dela, todo
o anseio que eu tinha de um dia poder fazer aquilo.
Ficamos abraçados por muitos minutos, mas acho que nem mesmo
horas seriam o suficiente para me satisfazer.
Respirei em seus cabelos e senti o cheiro de maçã verde invadindo
meu ser. Minha pele toda se arrepiou com a delícia daquele aroma. Depois,
levei a mão aos fios e fiquei impressionado com o toque de seda. Reparei
em tudo, até em como eram grossos e pesados.
Eu não queria soltá-la, mesmo sabendo que estava me excedendo.
Mesmo sabendo que estávamos por tanto tempo naquela posição, que ela
poderia estar incomodada.
— Você tem o mesmo cheiro — comentei. — Exatamente o mesmo
cheiro de maçã verde.
— É o meu xampu. Sou acostumada a usar o mesmo desde pequena.
— É muito gostoso.
— Imaginei seu cheiro por diversas vezes, Matthew. Mas é muito
melhor pessoalmente. Muito, muito melhor.
Comecei a rir, segurando-a contra mim.
— Não sei se você sabe, mas trabalhei hoje o dia todo. Não devo estar
tão cheiroso assim.
— Mas está — ela frisou.
— Você me esperaria tomar um banho?
— Para que tomar banho agora?
— Por dois motivos: primeiro porque estou exausto e já são duas
horas da manhã; segundo porque quero que você sinta um cheiro melhor em
mim.
Ela reprimiu um riso em meu peito.
— Gosto do jeito que está, mas entendo que esteja cansado. Então,
sim, pode ir. Te esperarei bem aqui.
— Obrigado. Não pretendo demorar.
Matthew me soltou com dificuldade e pediu que eu aguardasse um
momento, depois entrou no banheiro.
Quando fechou a porta e me vi sozinha, comecei a pular como uma
idiota, forçando a garganta para não gritar.
Pela primeira vez na vida, tive certeza de que milagres realmente
aconteciam. O que eu estava vivendo só podia ser um milagre, não me
restava dúvidas.
Quando, em toda a minha vida inútil, eu imaginaria que meu ídolo
estaria fazendo shows pelo mundo a minha procura?
Era a ideia mais insana de todas!
Literalmente, senti como se estivesse sonhando acordada. As
possibilidades de eu viver de verdade tudo aquilo eram muito baixas, mas
estava mesmo acontecendo.
Senti verdade em tudo o que ouvi de MatLew, senti franqueza, senti
paixão. Não tive dúvidas sobre suas palavras, nem sobre seus toques.
Mas, mesmo que fosse mentira e que de manhã cedo ele fugisse
percebendo que eu era um grande erro ou simplesmente mais uma a cair em
sua lábia, para mim teria valido a pena. Eu não me arrependeria de nada.
Algo em mim implorava para que eu vivesse todos os momentos que
eu tinha disponíveis ao lado do meu ídolo com intensidade. Afinal, o que
fica em nossa memória nunca morre, nunca pode ser roubado nem
corrompido. Eu guardaria tudo com cuidado e zelo, e levaria comigo para o
resto da vida.
Por um momento, achei que ir ao show dele no dia anterior havia me
dado felicidade, mas percebi que o que eu estava sentindo naquele
momento era muito maior, muito mais intenso. Meu peito estava prestes a
explodir, meu corpo prestes a voar.
Enquanto ele tomava banho, dois dos funcionários do hotel chegaram
com alguns de seus pertences. Eu os recebi e indiquei onde deveriam deixar
as coisas. Depois que foram embora, passei os próximos minutos tocando e
observando alguns de seus pertences como se fossem objetos preciosos.
E o mais estranho é que tentei sentir o cheiro de tudo, até mesmo do
violão.
Agradeci por estar sozinha, porque, se alguém visse o que eu estava
fazendo, me chamaria de louca ou obcecada.
Não abri a mala de roupas, achei que seria invasão demais, mas não
posso mentir sobre ter me imaginado dormindo dentro de uma de suas
camisetas compridas.
Ouvi um barulho vindo do banheiro e entendi que Matthew já havia
terminado o banho. Não demorou para que ele saísse do banheiro enrolado
na toalha, com o corpo ainda úmido e os cabelos compridos pingando.
Não consegui esconder o espanto ao vê-lo daquele modo, tão…à
mostra.
— Desculpe — ele disse, levantando as mãos. — Só me lembrei
agora que não levei nenhuma roupa ao banheiro.
— Suas roupas estão bem ali. — Apontei, mas os olhos continuavam
cravados nele.
Tinha o abdome e os braços bem definidos, apesar de ser magro, e
várias tatuagens o enfeitavam, deixando-o ainda mais sensual. Não pude
deixar de reparar na borboleta do tamanho de um palmo aberto desenhada
logo acima de seu estômago, mas o que mais me chamou atenção foi o
desenho da menina segurando a flor alaranjada em seu braço.
Ele separou duas peças e colocou em cima da cama. Depois, pegou
mais uma camiseta e outra bermuda e levou a troca de roupa ao banheiro.
Antes de fechar a porta, disse:
— Vista-se com esta roupa, é mais larga e confortável que a sua. —
Ele apontou para a cama. — Vou esperar que esteja pronta para que eu saia
do banheiro.
Olhei para a camiseta amarelo-clara na cama e depois para ele
novamente. Assenti.
Esperei que ele fechasse a porta para tirar meu vestido do corpo. Não
sei o porquê, mas, mesmo sozinha, me senti envergonhada por me despir
daquela forma em um quarto que não era meu.
Fiz movimentos rápidos, com medo de ser pega no flagra sem roupa.
Dobrei meu vestido com cuidado e me vesti com a camiseta de Matthew.
Ficou tão grande em mim, que chegou a bater quase nos joelhos. Não
coloquei a bermuda, pois eu já estava vestida com um shorts por baixo do
vestido que usava antes. Ele era de náilon e elastano, na cor bege. Ficou
completamente escondido por baixo da camiseta.
Sentei-me na cama e aguardei que Matthew saísse do banheiro,
segurando minhas mãos nervosamente uma na outra.
Antes de sair, ele perguntou se estava liberado para fazer isso, então
eu disse que sim e o assisti vindo em minha direção. Estava trocado e seus
cabelos não pingavam mais. Ainda molhados, estavam bem penteados e
aparentemente hidratados.
Matthew se aproximou de mim e perguntou:
— Está com fome?
— Não, obrigada. — A verdade era que eu estava nervosa demais
para comer.
Meus órgãos pareciam estar se movendo com brusquidão dentro de
mim. Se eu comesse, com certeza vomitaria. Havia um buraco no meu
estômago, mas eu não soube distinguir se era falta de alimentação ou
nervosismo por estar dividindo o mesmo quarto que meu ídolo.
Matthew dobrou os joelhos e se agachou na minha frente, o que nos
permitiu ter os rostos no mesmo ângulo.
— Tem certeza? — perguntou.
— Sim.
— Está bem. — Ele esticou o braço e encostou sua mão na minha,
impedindo que eu apertasse ainda mais meus dedos. — Já está tarde, são
quase três horas da manhã. Vamos dormir, amanhã continuamos a conversa
de onde paramos. Tudo bem para você?
O ambiente carregava pura tensão. Eu sabia que nenhum de nós ia
dormir. Matthew só estava tentando ser legal e cuidadoso. Obviamente não
queria que eu me sentisse desconfortável ou com pensamentos de que ele
estava indo longe demais comigo.
— Está bem. — Assenti. — Amanhã terminamos nossa conversa.
A verdade é: eu queria muito continuar acordada, queria muito
abraçá-lo mais e até passar a madrugada inteira agarrada a ele, beijando sua
boca e sentindo sua mão pelo meu corpo, mas, quando uma mulher é
abusada sexualmente, não importa se está com o amor de sua vida, sempre
haverá medo, sempre haverá acovardamento.
Confiança é uma palavra forte demais para uma mulher que já passou
por abusos sexuais pelo menos uma vez na vida. E, naquele momento,
sozinha naquele quarto com Matthew, eu deveria estar agradecendo aos
céus pela oportunidade, mas não posso negar que me senti aflita também,
muito vulnerável.
Ele parecia ser o homem mais gentil do mundo, mas Luiz também
parecia no começo, quando nos conhecemos.
Pergunto-me, por quê? Por que os traumas de um abuso acabam
sendo tão grandes que obscurecem até os momentos de puro carinho?
Matthew se levantou e me puxou com a mão. Olhamo-nos por um
momento frágil.
— Vou te colocar na cama — ele disse com a voz aveludada. — Me
permite?
Colocar-me na cama? Nem mesmo meu pai fazia isso quando eu era
uma criança.
Mesmo assim, assenti com a cabeça. Caminhamos a passos lentos até
a cama na qual eu dormiria e me deitei nela. Matthew levantou o edredom e
depois cobriu-me até o pescoço, com um sorriso carinhoso nos lábios.
Abaixou-se novamente e me fitou com carinho em suas feições.
— Não consigo achar palavras que definam o quanto estou feliz por
tê-la aqui — disse, em um sussurro completamente audível.
— Tenho a impressão de ainda estar dentro de um sonho — comentei.
Matthew passou a palma da mão em meu rosto e o acariciou com
gentileza.
— Promete que estará aqui pela manhã?
— Prometo. Você também estará?
— Não vou sair daqui, Marília.
— Está bem. — Respirei fundo e seu cheiro fresco invadiu minhas
narinas, acariciando profundamente meus pulmões. — Você está cheiroso.
— Ficou melhor agora que saí do banho?
— Sim, ainda melhor.
Nós nos olhávamos de perto, admirando-nos mutuamente. Seu
carinho em meu rosto e em meus cabelos me acalmou. Depois de alguns
momentos, até achei que seria possível dormir.
Matthew ficou aproximadamente quinze minutos ajoelhado me
acariciando e me olhando de perto. Percebi que ele não sairia dali tão cedo,
pelo menos não até que eu pegasse no sono.
Meu peito não doía mais, minhas mãos não tremiam mais. Senti-me
completamente à vontade com aquele gesto de carinho, o que me fez tomar
uma atitude questionável, mas não me pareceu um problema naquele
momento. Felizmente, não foi um problema nem mesmo no futuro.
— Matthew?
— Sim?
— Pode se deitar comigo?
Seus olhos me analisaram por um instante, talvez procurando indícios
de dúvida quanto ao meu pedido. Mas eu não tinha dúvida, tudo o que eu
mais queria naquele momento era me sentir amada por alguém.
Não que eu já não estivesse sentindo isso, mas minha carência
acumulada por anos de maus-tratos estava piscando e pedindo urgentemente
por um abraço.
Ele não disse nada, só se levantou e se cobriu ao meu lado. Como em
um reflexo, eu me virei de costas para ele e o senti me puxando para perto.
Seu peito encontrou a parte de trás do meu corpo e, então, Matthew me
envolveu com seus braços, um por baixo do meu pescoço e um por cima do
meu braço esquerdo. Nossas mãos se encontraram e se apertaram entre si.
Nossas pernas se trançaram.
Nunca, em toda a minha vida, eu havia sido abraçada daquela forma.
Foi tão bom, tão aconchegante, que senti vontade de chorar.
Era o que eu esperava, exatamente o que eu queria. Senti-me amada
com aquele gesto, de uma maneira que nunca ninguém jamais havia
demonstrado.
Senti sua respiração em meu cabelo, sua cabeça descansando logo
acima da minha.
— Você está bem desta forma? — perguntou.
— Sim — fui sincera, nunca estive tão bem.
Meu corpo foi puxado tanto quanto foi possível e passamos a noite
aconchegados dessa forma, sem que nenhum músculo se movesse.
Quando acordei, estávamos ainda na mesma posição.
— Bom dia — Matthew disse, com a voz rouca e sedosa.
Não sei como, mas ele conseguiu perceber que eu havia acordado.
Adorei a sensação de despertar e perceber que aquele sonho ainda se
tratava da vida real, que Matthew estava lá de verdade e que nem sequer
teve a coragem de se mexer.
Eu não precisava saber que horas eram para ter certeza de que o
tempo passado ao seu lado ainda não havia sido o suficiente. Aquela
posição estava boa demais para ser desfeita.
— Bom dia — desejei, movendo meu corpo para mais perto.
Ele me teve, segurando-me com mais intensidade.
— Dormiu bem?
— Muito. Você?
— Acho que nunca tive uma noite tão boa em toda a minha vida.
Sorri, mas não tanto, com medo de que ele percebesse o exagerado
tamanho da minha felicidade em ouvir suas palavras.
— Você vai ficar aqui por quantos dias, Matthew? Aqui neste hotel?
— Quer saber quanto tempo tenho antes de viajar para Curitiba?
— Sim, acho que é isso que quero saber.
— Meu show em Curitiba é dia treze e o show no Rio de Janeiro é dia
vinte.
Estávamos no dia oito de dezembro, o que significava que eu tinha
somente mais cinco dias antes que Matthew precisasse viajar para Curitiba.
Calei-me, perguntando-me o que seria de mim depois que ele partisse.
Fazer-lhe esta pergunta me parecia prematuro demais. Mesmo que suas
palavras e gestos demonstrassem o quanto ele me queria ao seu lado, eu não
sabia se estava tão óbvio assim que eu de fato ficaria ao seu lado.
— O que foi? — perguntou.
— Nada — tentei transmitir calma na voz.
— Eu sei que você tem a sua vida aqui, seus pais, sua casa, seu
emprego, mas… Acha que seria possível me acompanhar nas minhas
próximas viagens?
Pensei por um instante. Ter que lidar com aquela pergunta foi muito
mais difícil do que parecia. Por dentro, cresceu um medo devastador. Medo
de contar a verdade e medo de mentir.
Se eu contasse a verdade, que eu não tinha pais, nem casa, nem
emprego e nem dinheiro, ele poderia não gostar mais de mim. Aliás, que
homem, sendo tão grande quanto Matthew em questões financeiras e em
poder, gostaria de ter uma garota tão sem nada quanto eu? Eu não tinha
nada, essa era a verdade. A única coisa que eu tinha era a mim mesma e
uma mochila com poucos pertences dentro.
Se eu contasse uma mentira, ele poderia descobrir e deixar de gostar
de mim do mesmo jeito. E, se aprendi alguma coisa nos últimos meses, foi
que eu não deveria mentir, ou então mereceria ser espancada e ainda ouviria
que era a culpada por toda a raiva envolvida.
Nada em Matthew me demonstrou que ele era agressivo, mas mesmo
assim tive medo. Tive medo de gostar tanto dele a ponto de não perceber
indícios que demonstrassem isso. Tive medo, também, de um dia ser
agredida por ele e descobrir que o sonho não passava de uma pobre e
monstruosa realidade.
Decidi, após alguns segundos de muito custo, dizer-lhe a verdade.
Seria melhor e evitaria que ele ficasse raivoso comigo. Caso não gostasse
da minha realidade, pelo menos toda aquela paixão que me esquentava por
dentro seria cortada pela raiz. Rápido e fácil.
Tive certeza de que, quanto mais eu prolongasse aquilo, pior seria
para mim e para o meu coração apaixonado. Ele já estava partido em tantos
lugares diferentes, que preferi preservar o que ainda restava.
Ao som do meu silêncio, Matthew continuou:
— Podemos ir à sua casa, Marília. Posso conversar com seus pais e
pedir permissão para que viaje comigo. Acha que eles deixariam?
— Não será necessário. Não moro com meus pais.
— Mora sozinha?
— Moro — não era uma mentira.
— Certo… Então, o que precisamos resolver antes que viaje comigo?
Precisa pedir alguns dias de folga no serviço?
Claro que ele pensou que, se eu moro sozinha, obviamente teria que
ter um trabalho para manter minhas contas em dia.
— Não, não será necessário fazer isso também.
Desvencilhei-me de seus braços e me levantei da cama,
completamente desconfortável. Não tinha nada a ver com a posição na qual
estávamos deitados, tinha a ver com os meus nervos à flor da pele.
Andei de um lado para o outro. Nunca tinha falado sobre a minha
vida a ninguém, por isso não sabia se estava pronta. Nem mesmo Cecília,
minha melhor amiga, sabia de muitas partes as quais decidi ocultar.
— O que foi? — ele me perguntou, franzindo levemente o cenho.
— Vou te dizer uma coisa — comecei. — Não sou quem pensa que
sou.
— O que quer dizer com isso?
— Aliás, não sei o que exatamente sabe sobre minha vida, mas, pelo
que me pareceu enquanto me contava sobre os sonhos, você acha que eu
tenho uma vida perfeita ou, no mínimo, boa. Não é exatamente como pensa.
Então, antes que possamos prosseguir com isso — apontei para ele e para
mim, indicando um possível relacionamento que eu ainda não fazia ideia de
qual seria —, é necessário que saiba: não tenho emprego, não tenho família,
não tenho casa e não tenho dinheiro. Tenho só a mim mesma, o que não é
grande coisa. Quando eu disse que sou só uma menina normalzinha da Zona
Sul de São Paulo, disse a sério.
Matthew me olhou por um instante, acho que tentando digerir tudo o
que eu havia dito, depois se levantou mais rápido do que previ.
O modo como tirou as cobertas de cima de seu corpo e como se
moveu rapidamente para fora da cama me fez imaginar que ele estava
nervoso. Como um reflexo, levei os braços à cabeça e curvei as costas,
tentando me defender da agressão que viria a seguir. Fechei os olhos com
força e esperei pela dor do primeiro murro.
Dois segundos inteiros se passaram e não senti nada. Então, abri os
olhos com cautela. Matthew me analisava, parado como uma estátua.
Consertei a postura e o encarei, mordendo o lábio inferior. Eu não
sabia o que dizer, nem muito menos explicar o que estava acontecendo
comigo.
Meu coração se acelerou subitamente e minhas mãos começaram a
demonstrar nervosismo.
— Você achou que eu ia… — ele nem conseguiu pronunciar a
palavra.
Minha garganta esquentou. Não soube como lidar com aquele
episódio idiota.
Pisquei. Parecia ter areia nos olhos.
Eu queria chorar, queria muito.
Tive certeza de que tinha estragado tudo, eu sempre estragava tudo.
Agora Matthew não ia querer ficar comigo, não depois de ter
percebido que eu não tinha estabilidade emocional nenhuma.
Eu estava tão vulnerável que obviamente todos os meus movimentos
conseguiam demonstrar isso.
— Me desculpe. — Senti uma lágrima enorme e quente escorrer pelo
meu rosto. Agora, eu estava sendo a garota mais ridícula do mundo. — Eu
só… Não sou essa pessoa que você pensa que eu sou. É melhor que se
afaste enquanto ainda há tempo, é melhor que fuja enquanto pode.
— Marília — sua voz saiu como um sussurro enquanto se aproximava
de mim. — O que está acontecendo com você? — Segurou meu rosto e me
olhou de perto.
— Eu não sou a menina por quem se apaixonou. — Senti mais
lágrimas rolando por minha face.
Matthew pareceu ter sentido minhas palavras no estômago, porque
sua face estava retorcida em dor. Seu olhar parecia tão dolorido quanto meu
coração.
— Marília, olhe para mim. — Obedeci, com hesitação. — Por que
achou que eu ia te bater?
— É complicado, Matthew.
— Tenho certeza disso, mas… não precisa esconder nada de mim.
Estou disposto a fazer qualquer coisa para te ajudar com o que for preciso.
— Passei por isso a vida toda — eu disse, com dificuldade. Eu queria
vomitar tudo o que estava entalado na minha garganta, mas não queria fazer
isso com Matthew, por medo de que seu encanto por mim evaporasse junto
com minhas palavras. — Passei com meu pai e com Luiz. Apanhei dos
dois.
— Luiz? — Seus olhos percorriam meu rosto em completo desespero.
— Não quero falar sobre isso — balbuciei. — Não consigo falar
sobre isso. Não agora, não com você.
— Por que não comigo?
— Porque você era a única pessoa no mundo que eu não queria que
visse tudo isso. Agora, deve estar muito assustado, deve estar se
perguntando como sair dessa.
— Não é nada disso.
— Você precisa saber que não tenho emprego porque fui proibida de
trabalhar; não faço faculdade porque fui proibida também; não tenho
família e nem casa porque fugi e não vou voltar, não há nada nesta vida que
me faça voltar. Então, neste momento, tenho só a mim e uma mochila com
algumas coisas dentro.
— Marília, está tudo bem — ele disse, com a voz mansa. — Por mim,
nem precisaria ter essa mochila. Só você já é o suficiente.
Chorei por mais alguns segundos, em silêncio, diante dos olhos aflitos
de Matthew.
— Você não entende. Eu sou uma bomba, Matthew, uma bomba
prestes a explodir.
— Realmente, não me importo com isso. Vou fazer de tudo para
desarmar a bomba antes que ela exploda. E se, mesmo com todo o
empenho, eu não conseguir desarmar, quero estar junto com você quando
explodir.
— Não sabe o que está dizendo.
— Ah, eu sei! Você é, sim, a pessoa pela qual me apaixonei. Olhe
para si mesma e tente encontrá-la, ela está aí em algum lugar. Tudo o que
passou com o seu pai e com o Luiz, seja lá quem for esse canalha, acabou te
fazendo se moldar a esta vida ruim. Infelizmente é isso que acontece, nós
nos moldamos de acordo com o que vivemos. E, em algum momento, você
se perdeu, passou a ser somente o que eles queriam, mas isso não é você.
Você, a Lia que eu conheço, está aí ainda e eu quero que ela se sinta livre
para retornar à vida. — Ele parou por um instante, ainda segurando meu
rosto e me assistindo chorar. Nossos olhos estavam fixos uns nos outros. —
Me escute bem, Marília: o problema não está em você, está neles. Você não
é a bomba, ela só… foi colocada aí dentro. Entende isso?
Balancei a cabeça positivamente.
Matthew limpou minhas lágrimas com os dedos e me olhou com
carinho.
— Se eu não conseguir desarmar a bomba, quero explodir junto com
você. Está me entendendo?
Pisquei vagarosamente e respondi:
— Sim. Obrigada, Matthew. Muito obrigada.
Sem perguntar se podia ou não, eu o abracei. Ele me apertou contra si
e me beijou no topo da cabeça.
Aos poucos, toda a angústia que eu estava sentindo foi sugada para
fora de meu corpo, para bem longe de mim. E então um alívio se alojou no
lugar da angústia.
A cada segundo daquele abraço, melhor eu me sentia.
— Então… — ele começou —, você vai viajar comigo?
— É o que parece.
— E quer ir pegar a sua mochila? Ou prefere mandá-la para o inferno
e comprar tudo novo?
Soltei uma risada áspera.
— Prefiro pegá-la. Não tem muito lá dentro, mas são coisas
importantes para mim.
— Está bem, vamos lá pegar então. Depois, vamos a um lugar onde
você possa comprar novos pertences.
— Está bem.
Subimos juntos pelo elevador e fomos até o quarto onde eu estava
hospedada com Mary e Jane.
Quando abri a porta, ambas estavam dentro do aposento. Receberam-
me com olhos arregalados e assustados.
— Marília! Onde você estava? — Jane perguntou.
— Você quase nos matou do coração! — Mary completou. — Por que
sumiu?
— Desculpe, eu estava… Bem, eu estava…
— MatLew? — Jane arregalou ainda mais os olhos e pulou da cama,
assim como sua irmã.
— Olá — ele disse, sorrindo.
— Por Deus que está no Céu — Mary disse em português,
provavelmente para Matthew não entender. — Diga-me que você passou a
noite com ele.
— Eu passei.
As irmãs começaram a gritar como loucas e me abraçaram.
— Você é a mulher mais sortuda do mundo! — Jane comentou.
— Também suspeito disso. — Sorri.
— Nos conte tudo! — pediu Mary.
— Agora não posso, vim somente buscar minha mochila. Mas tenho o
número de vocês, assim que puder mandarei mensagem e conversaremos
melhor.
— Está bem. Sua mochila está ali ao lado da sua cama. Você não vai
mais passar as noites pelas quais pagou com a gente?
— Sinceramente, não sei. Pode ser que eu volte mais tarde para avisá-
las. Pode ser?
— Sim, claro.
Peguei a mochila enquanto Mary e Jane enrolavam um inglês fajuto
com MatLew. Ele deu risada, o que me fez rir também.
Logo depois, nos despedimos e voltamos ao elevador.
— Elas são engraçadas — Matthew comentou.
— Sim, são mesmo. E me salvaram. Fizeram um preço bacana para
eu passar três noites no quarto com elas.
— Acho que me salvaram também, de alguma forma. — Olhamo-nos
por alguns segundos enquanto ele sorria com aquelas covinhas totalmente à
mostra. — Agora, faça o seguinte: vá para meu quarto e se arrume. Eu vou
até o da minha mãe avisar que vou sair, ok? Logo estarei de volta.
— Sua mãe está hospedada aqui?
— Sim. Minha mãe, meu tio, a minha banda… Todos estão aqui.
— Certo. Faça o que tem para fazer, então. Ficarei te esperando no
quarto.
Desci do elevador e deixei Matthew para trás. Já sozinha no quarto,
tomei uma ducha rápida e troquei de roupa. Eu não fazia ideia de onde
iríamos, então vesti o que era mais usual para mim: calça jeans e camiseta.
Era um tipo neutro de roupa, aquele tipo que dá para usar em qualquer
lugar.
Passei meu hidratante de cereja e penteei o cabelo molhado. Depois,
sentei-me na cama e aguardei pelo retorno de Matthew enquanto assistia a
alguma coisa na televisão. Não prestei atenção por muito tempo no que
estava passando, pois meus pensamentos lutavam por notoriedade.
Refleti sobre minha conversa com Matthew. Nunca pensei que ouviria
palavras tão confortantes, nunca pensei que alguém se importaria tanto
comigo quanto ele demonstrava se importar. Torci para que fosse assim para
o resto da vida.
A única coisa que me incomodava naquele momento era saber que
continuaria dependendo de alguém. Apesar de ter sido sempre assim, eu
sonhava com a oportunidade de ser independente financeiramente um dia.
Trabalhar, estudar e comprar minhas próprias coisas.
Não pude deixar de me questionar se isso seria possível. Matthew não
parecia ser uma pessoa a qual me impediria de fazer algo, mas era muito
cedo para ter certeza disso.
Pensei comigo mesma que eu não poderia deixar que outro alguém
comandasse minha vida. Já estava mais do que na hora de investir em mim
mesma, de crescer intelectualmente e como pessoa.
Jurei que, assim que fosse possível, eu arrumaria um emprego e
investiria em meus estudos, mesmo que ainda não soubesse o que queria
estudar.
Depender financeiramente de outras pessoas não me agradava,
mesmo que esse alguém fosse meu ídolo, milionário ao extremo.
Matthew não demorou a voltar.
— Está pronta? — perguntou.
— Sim, acho que sim.
— Está bem. Vou só arrumar algumas coisas e depois já poderemos
partir.
— E para onde vamos?
— Pensei em irmos a algum lugar pouco movimentado, para não
termos problemas com os fãs. Tudo bem para você?
— Sim, claro.
— Pesquisei sobre uma praia que fica em São Sebastião, não é muito
distante daqui, talvez umas quatro horas de carro, no máximo.
— Praia? — perguntei, surpresa.
— Não gosta de praia?
— Eu nunca fui à praia, sempre desejei ir.
Matthew sorriu, deixando covinhas fundas à mostra.
— Então, vamos à praia. Você vai amar!
Após arrumarmos tudo o que precisávamos, fomos até o
estacionamento do hotel, onde entramos em um carro preto gigante.
Matthew deu as coordenadas ao motorista particular e depois se recostou no
assento do veículo, abrindo o braço para que eu me acomodasse a ele.
Fomos o caminho todo conversando e admirando a paisagem pela
janela.
Matthew segurou minha mão o tempo todo, não parou de olhar e
acariciar meus dedos durante o percurso.
Quando chegamos, algumas horas depois, estávamos de frente para
um condomínio de casas que pareciam chalés. Entramos com o carro pela
portaria e seguimos pelas ruas desertas do local, passando por chalés
charmosos que competiam belezas entre si.
Paramos de frente para um deles, marrom com o telhado triangular.
Tinha janelas de vidro e vasinhos de plantas para a decoração. A porta era
grande e alta, também de madeira envernizada.
Achei o lugar extremamente gracioso. Exalava conforto e delicadeza.
Dentro do chalé, os móveis eram chiques e requintados, mas a
maioria feitos de madeira também. Era completo, com cozinha, sala, quarto
e dois banheiros. Todos os ambientes com detalhes maravilhosos em
vermelho e bege.
— Aqui perto tem um centro bem bacana com várias lojas. Gostaria
de dar uma caminhada por lá? Assim você pode escolher roupas de banho
para a praia — Matthew comentou, após deixar todas as nossas coisas no
quarto.
— Está bem, vamos sim.
Resolvemos ir andando porque o local não era muito longe do
condomínio em que ficaríamos hospedados. Caminhamos vagarosamente,
observando a paisagem bonita que nos cercava, assim como todos os chalés
de madeira.
Ainda eram 13h30, o sol soltava rajadas bem quentes em meio a um
céu limpo de nuvens.
Saímos do condomínio e seguimos caminhando pelas ruas asfaltadas.
Não vi ninguém no caminho, o lugar era realmente deserto, dedicado a
pessoas que procuram paz e silêncio.
Em determinado momento, Matthew pegou minha mão. Lancei-lhe
um olhar rápido e ele sorriu. Então a levantou e a beijou, sem dizer nada.
Sorri também e deixei que nossos dedos se mantivessem entrelaçados por
todo o caminho que ainda percorreríamos. Gostei de como aquele toque
trouxe tantas sensações boas dentro de mim.
Quando chegamos ao centro de lojas, avistamos movimentos de
pessoas, mas mesmo assim não eram muitas.
— Parece que as lojas daqui só vendem roupas de praia — comentei.
— Deve ser porque as pessoas aqui só visitam as lojas à procura de
roupas de banho.
— Faz sentido, uma vez que tenho a impressão de que ninguém mora
por aqui.
— É um lugar para visitas de passagem, nada muito permanente.
— A não ser para velhinhos que só pensam em ter paz.
— Exatamente. É como se eu pudesse imaginar um casal de
velhinhos sentados na varanda, em uma daquelas cadeiras de balanço, sabe?
— Sim, também consigo imaginar essa cena com clareza.
— Você gosta de lugares assim? — Matthew perguntou. — Quero
dizer, com silêncio e calma?
— Sim, gosto. Apesar de sempre ter morado na cidade grande e de já
estar acostumada ao barulho.
— É ótimo descansar em lugares assim, tão silenciosos.
— Concordo. Você gosta desta calmaria?
— De vez em quando faz bem. De uns anos para cá, começou a ficar
bem difícil andar em lugares públicos, com muita movimentação de
pessoas. Às vezes, só quero me desconectar de tudo isso, então arrumo
lugares como este para passar um tempo.
— Sempre imaginei você como uma pessoa bem agitada.
— Sim, eu sou. Gosto do movimento e das pessoas, mas às vezes só
preciso ficar sozinho com meus pensamentos. Vivo uma vida muito corrida,
fica difícil até me concentrar em meus próprios pensamentos.
— Deve ser difícil viver uma vida assim — comentei.
— Não vou mentir, eu gosto. Sempre sonhei com isso. O problema é
que cheguei a um estágio em que, se eu não tomar cuidado, tudo vai a
público. E não sinto como se eu devesse explicações sobre minha vida a
ninguém, a não ser à minha família. Essa é a única parte chata de ser
famoso.
Antes que eu pudesse perguntar qualquer outra coisa a Matthew,
passamos em frente a uma loja grande. A vitrine era bem bonita e
chamativa. Gostei das roupas que estavam estampadas dentro do vidro.
Parei de andar e analisei algumas peças.
— Gostou de alguma? — Matthew perguntou, olhando para a vitrine,
assim como eu.
— Tenho a impressão de que talvez eu goste de alguma coisa aqui —
comentei.
— Então entre. — Ele enfiou a mão no bolso e tirou de lá uma
carteira. Então a abriu e puxou um cartão azul de seu interior, o qual me
estendeu para que eu pegasse. — Escolha o que quiser. A senha é 0711.
— 0711? — Estreitei os olhos ao perguntar.
Era a data do meu aniversário, exatamente o dia e o mês.
— Sim, 0711.
— Você sabia que esta é a data do meu aniversário? — perguntei
curiosa.
Matthew me lançou um olhar momentâneo antes de abrir um sorriso e
soltar uma risada curta.
— Eu não sabia sobre a data do seu aniversário, mas é bom saber.
Não me esquecerei, já que é uma data importante para mim também.
Coloquei esta numeração como senha dos meus cartões porque me remete
ao dia em que ouvi pela primeira vez de sua boca a frase “eu te amo”.
Mordi meu lábio inferior e pisquei, envergonhada.
— Parece que você não sabe tudo sobre mim, então — minha voz
vacilou, baixa.
Ele se aproximou de mim, com os olhos fixos em meu rosto. Quando
estava próximo o suficiente, depositou um beijo em minha bochecha e
sussurrou:
— Teremos tempo para isso, querida.
Soltei um pigarro e tentei mudar de assunto.
— Você não vai entrar comigo?
Matthew percebeu minha investida em mudar de assunto, portanto
sorriu. Este ato fez meus órgãos darem voltas. Ele é dono do sorriso mais
lindo do mundo e talvez eu demore a me acostumar com isso.
— Se quiser, eu entro. Mas acho que talvez se sinta mais à vontade
escolhendo o que te agrada, sem a minha intervenção.
— Então, fique ali me esperando. — Apontei para uma poltrona azul
dentro da loja.
— Está bem.
Entramos e logo uma vendedora se aproximou para nos abordar.
Olhou para mim e me cumprimentou com um sorriso simpático nos lábios,
depois voltou o rosto para Matthew e seu sorriso se desfez. Seus olhos se
arregalaram de tal forma, que jurei que cairiam do rosto a qualquer
segundo.
— Ele… Ele é o…? — ela gaguejou.
— É ele mesmo — respondi.
Matthew estava sorrindo. Era o que ele fazia todas as vezes que
estava diante de uma fã.
— Eu não falo inglês — ela disse. — Pode perguntar a ele se posso
abraçá-lo?
Fiz o que ela pediu e ele, claro, aceitou, abrindo os braços para
recebê-la. Após ela, outras vendedoras se aproximaram. Deixei que
ficassem com ele e me afastei para olhar as roupas.
— Não se preocupe — disse à vendedora. — Aproveite seu tempo
com ele. Estarei bem ali olhando as roupas.
Ela fez que sim com a cabeça e voltou toda a atenção ao Matthew.
Nem mesmo seu emprego pareceu tão importante quanto ter a oportunidade
de conhecê-lo.
Afastei-me do bolo de vendedoras querendo autógrafos e fui até os
cabides que seguravam roupas novas. Passei a mão pelas peças, analisando
cada tecido e me imaginando dentro delas.
Por fim, escolhi somente um biquíni, um shorts jeans, uma camiseta e
uma saída de banho.
A loja era bem grande e vendia diversos tipos de roupas, mas não quis
abusar, mesmo sabendo que a quantidade de dinheiro dentro daquele cartão
era maior do que um dia eu poderia contar ou imaginar.
Aquele valor era mais do que merecido, por conta do trabalho árduo
do meu ídolo, e isso me fez sentir constrangida por estar gastando um
dinheiro que não era meu, que não tive participação nenhuma com a
aquisição.
Dirigi-me ao caixa vazio — a mocinha do caixa também estava perto
de Matthew —, mas, enquanto eu esperava que alguém me atendesse,
avistei alguns modelos de roupas íntimas. Havia de todos os tipos,
tamanhos e cores.
Tentei me lembrar da última vez que comprei alguma calcinha, mas
me arrependi assim que me lembrei. Eu tinha quinze anos, ainda morava
com meu pai e Rosana. Não tinha como negar, eu já era uma mocinha,
queria me vestir melhor, mesmo que ainda fosse virgem.
Um belo dia, meu pai me deu vinte reais para comprar lanche na
escola durante aquela semana. Em vez de gastar o dinheiro como ele me
pediu, guardei até que tive a oportunidade de comprar uma calcinha nova.
Quando a usei pela primeira vez, eu me senti linda, fiquei me olhando
no espelho por vários minutos. Ela era de algodão, branca, com vários
coraçõezinhos vermelhos. Não era fio-dental, mas também não era grande.
Gostei de como modelava meu corpo.
Após o uso, coloquei a peça junto com as demais roupas sujas, o que
não achei que seria um problema. Até que Rosana a encontrou e se recusou
a lavar, disse que sua máquina de roupas não lavava calcinhas de menina
puta.
Eu não disse nada, só peguei minha peça íntima e a lavei no chuveiro,
com o mesmo sabonete que eu estava acostumada a lavar o corpo. Depois,
quando fui estender, Rosana disse que eu não poderia usar o varal, porque
estava com vergonha dos nossos vizinhos verem minha calcinha e
deduzirem que meu pai estava criando uma puta dentro de casa.
Não tendo onde estender, acabei arrumando um jeito de colocá-la
para secar dentro do meu quarto. Depois desse episódio, não comprei mais
peças íntimas. Não vi vantagem, uma vez que eu não poderia lavá-las e nem
estender no varal.
Depois que comecei a me relacionar com Luiz, tive várias calcinhas
novas, mas todas, ele quem escolhia para mim. Eu não podia opinar porque,
conforme dizia, as peças eram para satisfazê-lo, e não a mim.
Pensei mil vezes antes de escolher um conjunto de roupas íntimas
naquela loja. Seria a primeira vez na minha vida que eu poderia escolher
algo de que realmente gostasse, que estivesse de acordo com minha idade e
que eu poderia usar sem dar satisfações.
Olhei as opções com calma e me apaixonei por um conjunto
específico. Era verde-água, totalmente feito em rendas. Peguei o cabide
com a roupa e voltei ao caixa, que agora estava ocupado por uma menina de
olhos inchados. Ela tinha chorado, certamente.
Paguei por todas aquelas roupas e me encontrei com Matthew.
Despedimo-nos e saímos da loja de mãos dadas novamente.
— Escolheu o que queria? — ele perguntou.
— Algumas coisas, acho que será o suficiente.
— Que bom. Se gostar de mais alguma coisa, quero que se sinta à
vontade para comprar, nem precisa me pedir permissão.
Concordei com a cabeça, mesmo sabendo que eu não pediria mais
nada a ele, e continuei andando. Não tínhamos um rumo específico, só
caminhamos e olhamos as vitrines, conversando sobre o que víamos.
Acabamos parando em um restaurante, pois ainda não havíamos
almoçado.
Pedimos as comidas e assisti ao Matthew fazendo várias caras e bocas
enquanto experimentava os sabores.
— Gosto muito das comidas brasileiras — comentou.
— São diferentes de onde você mora?
— Muito. Aqui elas têm muito mais cor, muito mais sabor e tempero.
— Não posso imaginar uma comida que seja diferente do que já estou
acostumada.
— Quando estiver em Toronto comigo, vai implorar por uma como
esta. — Olhei-o em silêncio por um instante. — O que foi? — perguntou,
colocando mais um pedaço de frango na boca.
— Toronto? Com você?
— Claro. Ou acha que vou embora e te deixar para trás?
— Matthew, nem tenho passaporte.
— Isso não vai ser um problema. Vamos resolver sua documentação
em breve.
Mais um instante de silêncio.
— Eu nunca viajei de avião — acrescentei. — E não pode
simplesmente me levar para sua casa. E sua mãe, seu pai? Como vão reagir
a isso?
— Vão ficar felizes por mim.
Franzi o cenho.
— Por que ficariam?
— Primeiro, ficarão aliviados em saber que não sou louco, porque
durante muito tempo acharam que você era uma amiga imaginária, fruto da
minha mente. Segundo, ficarão felizes por saber que consegui encontrar o
amor da minha vida depois de tanto tempo.
— Eles sabem sobre mim?
— Sim, são os únicos, além da minha psicóloga e de Mitch, meu
baterista.
Matthew me contou como cada um deles ficou sabendo sobre mim,
sem abster-me de nenhum detalhe.
Após aquela conversa que levou vários e vários minutos, eu me senti
mais introduzida na vida de Matthew, até ansiosa para conhecer seus pais e
amigos, porém ainda bem indecisa quanto a viagem. Para mim, a ideia não
era tão simples quanto parecia para ele.
Era como se tudo não passasse de um sonho. Qual menina brasileira
não sonhava em morar com seu ídolo em outro país? Contudo, essa
realidade me baqueou de surpresa. Não sabia se conseguiria sobreviver em
outro país, no meio de pessoas que mal conhecia, ou confiava.
Por outro lado, eu não queria mais deixar Matthew, nem ficar sozinha.
Houve uma luta interna, onde tentei entender o que seria melhor para
mim, mas não obtive respostas imediatas, somente uma grande vontade
instintiva de seguir com meu sonho e aproveitar a oportunidade.
— Você ainda mora com seus pais? — perguntei.
— Moro. Gosto de tê-los por perto. Meu pai é um grande
companheiro e amigo, está sempre dando um jeito de ser presente na minha
vida, apesar de seu trabalho árduo. E minha mãe trabalha comigo. Na
verdade não é bem um trabalho, mas ela gosta de dizer que é, então deixo
que diga. Está sempre comigo, em todas as viagens e turnês, assim como o
tio Elliot, meu produtor. Este sim, trabalha igual a um condenado, mas é
bem remunerado por isso e está sempre dizendo o quanto gosta do que faz.
Você vai gostar da minha família, tenho certeza.
— É tão bom ouvir que você ama sua família. Queria ter a mesma
oportunidade.
Matthew pegou minhas mãos e as apertou.
— Comigo, Marília, você vai ter uma família de verdade. Nunca mais
vai passar pelas mesmas coisas que passou, eu prometo.
Sorri em forma de agradecimento. Mas não posso negar que tive
medo daquelas palavras.
Sempre me senti como um peixe fora d’água, todas as vezes rejeitada.
Nunca senti como se eu pertencesse de verdade a uma casa ou lugar.
Tive medo de que os pais de Matthew não gostassem de mim, que não
me achassem o bastante para o filho deles.
Saímos do restaurante quase quatro horas da tarde. O clima ainda
estava quente, mas o sol não ardia mais.
— Quer conhecer a praia agora? — Matthew perguntou. — Ou quer
passear mais hoje e ir à praia amanhã cedo?
— Quero conhecer a praia — ao dizer essas palavras, senti meus
órgãos reverberarem dentro de mim por conta da alegria de ter aquela
oportunidade.
Ver a praia sempre foi um sonho, um desejo enterrado em meu
coração.
— Está bem, então vamos.
Andamos até a praia. Passamos por uma trilha escondida antes de
chegarmos.
— Agora entendi por que ninguém vem aqui — comentei, ofegante.
Matthew deu risada.
— Acho que já estamos chegando.
Passamos por várias árvores e subimos o que parecia ser um barranco
cheio de grama. Quando estávamos no topo, eu me calei. Até mesmo a
minha respiração ofegante parou. O que vi foi tão lindo que me tirou o
fôlego.
Senti meus olhos marejarem por tamanha beleza. Não pude deixar de
sentir aquele momento especial adentrando meus ossos. Subitamente, eu me
senti a mulher mais sortuda e afortunada do mundo.
Uma brisa quente e salgada acariciou minha face, o que me fez fechar
os olhos e respirar fundo. Ouvi o som das ondas se quebrando e senti uma
calma imensa me invadindo.
Quando abri os olhos novamente, Matthew sorria e me olhava com
pura idolatria.
— Gosta do que vê?
— Não imaginei que fosse tão lindo assim. — Suspirei.
Lá embaixo, vi uma imensidão de águas azuladas e cristalinas sendo
rodeadas por areias claras. Gradativamente, algumas árvores apareciam
ainda na areia, porém, mais ao fundo, enchiam a paisagem com um verde
exuberante, com vários coqueiros.
Algumas montanhas se estendiam em volta da praia, o que deixava a
paisagem ainda mais bonita e peculiar.
Tive a impressão de estar em uma ilha particular, não havia ninguém
ali, só nós. E as montanhas passavam a impressão de que o lugar era, de
fato, privado.
Logo à margem das ondas, próximo à borda onde a areais começavam
a aparecer, havia muitas pedras e rochas negras de tamanho pequeno. Ali as
ondas batiam e contornavam, deixando-as molhadas e brilhantes.
— Venha, vamos descer. — Matthew pegou minha mão e me guiou
pela trilha que ainda precisaríamos percorrer até chegar à areia.
Quando alcançamos o local, tirei os sapatos para sentir a textura da
orla. Sorri ao constatar tamanha maciez.
Matthew fez o mesmo, colocando nossos calçados e as sacolas as
quais segurava perto de um coqueiro.
— Vamos sentir a água — disse, puxando-me.
Fomos correndo até as ondas que lambiam a areia com cautela e
encontrei-me com um carinho morno nos pés.
Matthew sorriu enquanto me olhava boquiaberta.
— Essa água é maravilhosa! — exclamei.
— Eu sei, está muito boa.
Subi em uma das pedras negras, elas tinham em média até vinte
centímetros de largura, onde eu conseguia apoiar os dois pés tranquilamente
e pular de uma para a outra sem perigo nenhum. Matthew me acompanhou,
segurando minha mão enquanto tentávamos nos equilibrar e andar sobre as
pequenas rochas. A água batia sobre nossos pés, dando-me a sensação de
alívio todas as vezes que isso acontecia. Então, quando a maré voltava mar
adentro, continuávamos pulando as pedras e rindo cada vez que quase nos
desequilibrávamos.
Uma onda maior nos pegou e, mesmo que tivéssemos tentado ao
máximo nos segurar em cima da rocha, meus pés escorregaram. Caí com
todo o meu corpo na água rasa, molhando a roupa por completo,
principalmente na parte das costas. Matthew veio logo atrás de mim. Como
nossas mãos estavam dadas, acabei puxando-o sem querer.
Seu corpo caiu em cima do meu e ele usou os braços para se apoiar de
cada lado da minha cabeça, poupando seu peso em mim.
Olhamo-nos por um breve tempo de pura tensão. Estávamos tão
próximos que qualquer movimento poderia ser um perigo. Nossos olhos se
chocaram e se fixaram. De repente, nossos sorrisos foram desfeitos. Agora,
a única coisa que fazíamos era encarar um ao outro.
Os olhos maravilhosos e verdes de Matthew me devoravam e me
paralisavam. Eu só conseguia olhá-los e admirá-los. Seus cabelos soltos
caíam para os lados, quase tocando minha face.
Vagarosamente, ele desviou o olhar para os meus lábios.
Prendi o fôlego, nervosa demais com aquela proximidade. Ao
contrário de Matthew, que tinha a respiração pesada. A qual me tocava a
pele do rosto com suavidade e quentura.
Lentamente, ele se aproximou, ainda olhando minha boca.
Fechei os olhos, sentindo meu coração bater mais rápido.
Então, o toque veio, mas não foi em meus lábios sedentos por um
beijo, foi em minha bochecha. Um beijo demorado e macio.
Abri os olhos em seguida, perguntando-me o porquê de ele não ter me
beijado na boca.
Eu queria tanto beijá-lo naquele momento, que faria qualquer coisa
para conseguir. Mas antes que pudesse me pronunciar, ele se levantou e me
estendeu uma das mãos para ajudar-me a levantar também.
Aceitei sua ajuda e tentei recuperar o fôlego.
Continuamos brincando na praia, sentindo as ondas e a areia, pulando
entre as pedras e tentando nos equilibrar.
No fim da tarde, nós nos sentamos diante de um coqueiro e assistimos
ao pôr do sol. Matthew atrás e eu na frente, com a cabeça descansando em
seu peito.
Nossas mãos ficaram entrelaçadas o tempo todo, acariciando-se e
sentindo um toque que há muito desejávamos.
Quando o céu já estava quase escuro por completo, Matthew disse:
— Vamos? Mandei mensagem para meu motorista, ele está lá em
cima esperando por nós. Achei melhor voltarmos de carro.
— Está bem, vamos.
Levantamo-nos e fizemos a trilha de volta à rua de asfalto, o que
levou aproximadamente dez minutos.
Entramos no carro e Matthew pediu ao motorista que parasse no
mercado mais próximo. Disse que precisávamos fazer uma compra,
abastecer o chalé para os próximos dias em que ficaríamos hospedados.
— Podemos comer em restaurantes todos os dias, mas é importante
comprarmos biscoitos, café, chás… Coisas para beliscarmos quando a fome
bater, tipo de madrugada ou à tarde, quando estivermos com preguiça de
sair.
— Está bem — concordei. — Como quiser.
Paramos, alguns minutos depois, no estacionamento de um mercado
relativamente grande. Pensei que provavelmente aquele poderia ser o único
da região, levando em consideração a pouca movimentação de pessoas no
bairro.
Matthew pegou um carrinho e o guiou para dentro do
estabelecimento.
— Me diz, o que você gosta de comer durante o dia? — perguntou.
— Hã, bem, qualquer coisa. Não sou exigente.
— Qualquer coisa não vende aqui. Você prefere biscoitos recheados
ou sem recheio? Bolos com cobertura ou sem? Cereais matinais coloridos
ou simples? Prefere beber chá ou café? Gosta de chás com sabores
diferentes ou só dos mais normais?
Soltei uma risada.
— Você fez muitas perguntas — eu disse, encabulada. — Por que não
escolhe o que você prefere?
— Porque o que eu prefiro não tem aqui. As coisas que eu como no
Canadá não são as mesmas daqui. Não conheço praticamente nenhuma
dessas marcas, por isso prefiro que você escolha o que gosta. Assim, posso
experimentar e já me familiarizar com algumas comidas do Brasil.
— Entendi. Bem, é que eu…
Matthew parou no meio do corredor das bolachas e me encarou,
analisando-me.
— O que foi? — perguntou.
— Não é nada. — Engoli em seco. — Nós podemos… — Olhei para
a prateleira cheia de opções e estudei os valores. — Nós podemos pegar
aquela ali, então. — Apontei para uma das marcas mais baratas.
Ele olhou para onde eu estava apontando e depois voltou os olhos
para mim, com o cenho franzido.
— O que foi? — perguntou novamente.
Esse foi mais um daqueles momentos difíceis nos quais eu me sentia
encurralada.
Quando morava com meu pai, passei anos sendo proibida de ir ao
mercado. Rosana dizia que, se me levassem junto, eu pediria muitas coisas
e faria com que eles passassem vergonha. Então, eu ficava em casa
esperando que chegassem com as compras.
Eu me acostumei a comer do mais barato. Não importava se era
gostoso ou não. Me acostumei a ver Rosana e meu pai comendo os produtos
mais saborosos do mercado, enquanto eu comia os mais baratos.
Não tinha permissão para comer as mesmas coisas, então aprendi que
escolher não era uma opção.
Quando fui morar com Luiz, ele não deixava nada faltar dentro de
casa. O armário da cozinha vivia cheio, mas era sempre ele quem escolhia e
pagava. Na verdade, nunca chegou a pedir a minha opinião, então, por
consequência disso, passei a comer as coisas de que ele gostava.
Eu me acostumei tanto com isso que passei a não ter mais uma
opinião própria, por isso foi tão difícil escolher algo naquele momento,
diante de Matthew.
Pela primeira vez, eu estava tendo a oportunidade de comprar algo do
meu gosto, mas percebi que nem eu mesma sabia do que gostava.
O mais barato. Era o que martelava na minha mente.
— Não é nada — repeti, ainda mais encabulada. — Essa deve ser
boa.
— Deve?
— Sim, pode pegar. Acho que você vai gostar.
— Você gosta?
— Matthew, por favor, só pegue a bolacha.
Ele me olhou por mais um instante.
— Por que sinto que você está se sentindo deslocada aqui?
— É porque… eu… Bem, eu…
Como explicar?
— Vamos fazer o seguinte — ele começou. — Vamos pegar uma de
cada.
— Uma de cada?
— Sim. Assim podemos descobrir juntos de quais gostamos mais.
— Mas… são muitas!
— E o que tem? Vamos pegar uma de cada. Me ajude.
Fiquei parada, boquiaberta, olhando Matthew pegar uma de cada
marca e sabor, sem nem olhar o valor.
— Venha! — ele me apressou. — Se você não me ajudar, vamos ficar
aqui até amanhã.
Mordi o lábio e peguei a primeira bolacha. Depois a segunda. Depois
a terceira.
Matthew nem olhava para mim, só pegava um pacote após o outro.
Isso me ajudou a me soltar aos poucos. Quando percebi, eu estava fazendo
o mesmo que ele, com um sorriso nos lábios.
— Agora os cereais — ele disse. — De qual você gosta mais?
— Sempre comi desse — apontei.
— É o que você mais gosta?
— Nunca experimentei outro — expliquei.
— Então também vamos levar um de cada.
Soltei uma gargalhada.
— Isso é sério?
— Seríssimo! Você começa daquela ponta, eu começo por esta.
Fiz o que ele pediu. Caminhei até a outra extremidade do corredor e
peguei todas as embalagens que consegui.
No corredor dos chás, Matthew enfiou o braço na prateleira e
derrubou todas as opções dentro do carrinho.
— Você é estranho — comentei.
— Experimente fazer isso, é muito bom.
— Fazer o quê?
— Isso! Derrube tudo no carrinho.
— Não vou fazer isso!
— Vai, sim. — Ele sorriu. — Venha aqui. Tente uma vez.
Acompanhei-o até o próximo corredor, onde vi uma variedade
enorme de salgadinhos ensacados.
— Vou empurrar o carrinho enquanto você derruba tudo dentro.
Comecei a rir.
— Você é maluco.
— Vamos, venha!
Fiz o que pediu. Enquanto ele andava a passos largos — quase
correndo — empurrando o carrinho, passei o braço pela prateleira,
derrubando todos os sacos.
Demos risada juntos.
— Gostou?
— Sim — continuei rindo.
— Próximo corredor!
Nunca, em toda a minha vida, eu me diverti tanto dentro de um
mercado. Matthew conseguiu transformar uma simples compra em algo que
tornou esse um dos dias mais especiais da minha vida.
Ele me pegou no colo e me ajudou a alcançar os produtos que
estavam nas prateleiras mais altas, correu pelos corredores empurrando o
carrinho e apostou corrida comigo, depois brincou de fazer cesta jogando
produtos de longe para eu pegar.
Ri tanto que minha barriga doeu.
Quando chegamos ao caixa, estávamos com três carrinhos cheios de
comida, só doces e besteiras, pães e guloseimas.
Com certeza não conseguiríamos comer tudo, mas Matthew me
deixou claro que nada seria jogado fora. Doaríamos, se fosse preciso.
— O mais importante é que você coma o que quiser — ele disse,
quando já estávamos sentados dentro do carro, voltando para o chalé.
— Obrigada — agradeci, com o coração explodindo de gratidão.
Ele me puxou para si, passando o braço pelos meus ombros. Deitei a
cabeça em seu peito.
— Eu nunca tive a oportunidade de comprar o que eu queria.
— Percebi isso. Foi por esse motivo que compramos tantas coisas.
— Você não precisava fazer isso.
— Mas eu quis. Quero que entenda que não precisa mais seguir a
opinião de alguém. Agora você pode ter a sua.
Sorri e me mantive em silêncio o restante do caminho, coberta por
pensamentos tão bons quanto foram minhas últimas experiências.
Eu estava cansada, exausta por ter andado tanto durante o dia, mas
feliz. Muito Feliz.
Percebi que estava começando a colecionar desejos realizados:
Tomar banho em uma banheira ✔
Ir a um SPA ✔
Conhecer meu ídolo ✔
Comprar uma calcinha ✔
Fazer uma compra no mercado e levar tudo o que eu quiser ✔
Conhecer a praia ✔
Muitos outros desejos ainda ardiam em meu coração. Mas, pela
primeira vez em toda a minha vida, tive esperança de que conseguiria
realizar cada um deles. Até mesmo os impossíveis.
Conhecer Matthew parecia impossível, e mesmo assim aconteceu.
Então, o mesmo poderia acontecer com os outros desejos impossíveis.
Beijar Matthew me parecia impossível, também. Mas esse desejo
estava mais próximo de se realizar do que eu poderia imaginar. Mesmo que
eu estivesse me questionando arduamente sobre o motivo de ele não ter
concretizado o ato naquele mesmo dia, mais cedo, quando teve a
oportunidade.
Pensei sobre ele, o beijo. Imaginei o gosto de Matthew em minha
boca e me perguntei se seria diferente de tudo o que eu já tinha sentido na
vida. Apostei que sim, apostei que seria muito mais especial do que
qualquer outro gosto. Melhor do que qualquer doce que compramos no
mercado.
Chegamos mais rápido do que eu previa no chalé, mas isso porque
provavelmente eu estava tão perdida em meus próprios pensamentos, que
nem me dei conta do caminho que percorremos.
Descemos do carro, carregamos a compra para dentro de casa e,
quando me vi livre de afazeres, me enfiei no banho quente.
Vesti-me com um pijama de algodão que estava dentro da minha
mochila. Um shorts e uma camiseta confortáveis na cor azul, com algumas
nuvens brancas estampadas.
Por baixo, coloquei o conjunto novo de roupas íntimas. Isso porque
eu tinha só mais duas calcinhas na mochila e fiquei com vontade de ver
como meu corpo ficaria com aquele conjunto recém-comprado.
Gostei do resultado.
Nem pensei em Matthew, para falar a verdade. Não achei que eu
precisaria mostrar a ele de alguma forma. Pensei em mim e no quanto eu
havia me amado dentro daquelas peças.
Fazia muito tempo eu não me via daquela forma, seminua de frente
para o espelho. Havia muito tempo que eu não me gostava tanto quanto
estava me gostando naquele momento.
Quando Marília saiu do banho, eu já estava pronto fazia tempo.
Perguntei-me o que tanto ela fazia dentro do banheiro, mas desisti de pensar
quando me dei conta de que esse tipo de coisa feminina só era da conta das
mulheres mesmo.
Ela estava bem bonitinha, com um pijama de algodão e as bochechas
vermelhas por conta do banho quente.
Seu cheiro flutuou no ar até me alcançar, o que não facilitou as coisas
para mim.
Eu a queria tanto que era inexplicável, dificilmente encontraria
palavras que conseguissem descrever exatamente o quanto a desejava. Mas,
após passar pelas últimas horas em sua presença, percebi que ela parecia
muito mais frágil do que achei que seria. Inclusive, após ouvi-la insinuar
que vivenciara episódios traumáticos de maus-tratos durante anos, acabei
sentindo uma imensa dúvida de como deveria tratá-la.
Sua imagem caída na beira do mar olhando diretamente para mim me
causou calafrios. Uma força sem igual me tomara naquele momento e tudo
o que eu queria era beijá-la, mas me acovardei, tive receio de ser cedo
demais, de magoá-la de alguma forma.
Sorri quando a avistei andando em minha direção. Parecia estar
envergonhada por conta do pijama, mas a achei tão fofa nele, que,
sinceramente, eu não mudaria nada.
— Estava te esperando para comermos alguma coisa — comentei,
sorrindo. — Temos muitas opções agora.
Ela estava animada. Vestia um sorriso lindo e arrebatador nos lábios
avermelhados, e seu olho esquerdo brilhava com um incrível tom
amarelado.
Marília e Lia eram a mesma pessoa, eu tinha convicção disso. Mas
Marília, por sua vez, transparecia mais vulnerabilidade, mais inocência,
mais ingenuidade. Além de, claramente, muita carência. Mas ela tentava
esconder, tentava não demonstrar o quanto precisava ser amada. Parecia ser
um bloqueio, algo que dizia a si mesma para não se doar tanto, não confiar
inteiramente.
Almejei conhecê-la por completo, suas partes difíceis e suas partes
fáceis. Porque, na verdade, nunca é tão fácil assim amar alguém. E amar
engloba compreender que a outra pessoa também tem pontos negativos,
além de bagagens antigas, situações malresolvidas e tristezas persistentes.
Seria ingenuidade minha achar que ela viria intocada, revestida em
plástico bolha diretamente para mim. Mas, olhando-a naquele momento, tão
contente por conta da compra no mercado, percebi que era exatamente o
que eu queria. Tão perfeita quanto eu imaginava. Cada imperfeição só a
tornava mais perfeita aos meus olhos.
— Vou fazer um chocolate quente! — ela se prontificou, com os
olhos brilhantes.
— Então, eu faço o lanche — completei.
— Excelente! Aprendi a fazer um chocolate quente na internet que é
uma delícia, tenho certeza de que você vai adorar. O meu favorito é com
canela, e o seu?
— Gosto com avelã — respondi, reflexivamente — É engraçado
como tem coisas que sei sobre você, mas outras que não faço ideia. É bom
ter conhecimento de como gosta do seu chocolate quente.
Ela sorriu.
— Mesmo que não saiba tudo, tenho a impressão de que guarda
algum tipo de manual de instruções sobre mim.
— Tenho cadernos. Cadernos em que escrevi cada sonho que tive. Li
incontáveis vezes, principalmente quando fiquei sem te ver. Era o que me
mantinha próximo de você.
Marília ergueu as sobrancelhas e perguntou:
— Sério?
— Sim, eu os deixei na minha casa, lá em Toronto.
— Quando viajarmos para lá, você vai me deixar ler?
— Sim, claro. Como quiser. Amei ouvi-la falar sobre a viagem ao
Canadá. Percebi que se sentira desconfiada quando toquei no assunto pela
primeira vez, porém insisti no tema e listei ótimas histórias para encorajá-la
com a mudança.
Parece que deu certo, afinal.
— Obrigada. — Ela abriu mais um sorriso de estrangular o pescoço e
de tirar todo o ar que ainda me restava nos pulmões. — Não vejo a hora!
Agora, vou derreter aquele chocolate que comprados e fazer nossas bebidas.
Vão ficar uma delícia!
Sorri com suas palavras.
— Você sabe cozinhar, Marília?
— Sei. Quero dizer, não sou uma chefe de cozinha, mas consigo me
virar e fazer algumas coisas bem gostosas.
— Um dia vai cozinhar para mim?
— Com o maior prazer.
Fomos até a cozinha e nos dividimos nos afazeres, ela encarregada
das bebidas, e eu, dos lanches.
Quando finalizamos, colocamos tudo em uma bandeja e levamos para
o quarto, onde comemos assistindo a um filme, sentados na cama.
O longa-metragem teve toda nossa atenção, até que acabasse. Foi
então que nos olhamos e comentamos o quanto havíamos gostado.
Ela se moveu e ficou de frente para mim, sentada com as pernas
cruzadas e coluna ereta. Eu a imitei, acomodando-me na mesma posição.
Nossos joelhos se tocavam enquanto dobrados.
Gostei de ver Marília tão contente enquanto falava. Ela gesticulava
com as mãos e sorria sem nem ao menos perceber.
Eu já suspeitava, mas naquele momento tive certeza de que faria
qualquer coisa por ela. Aquele sorriso me afetou profundamente e, de
repente, eu nem sabia mais sobre o que ela estava falando. Só conseguia
prestar atenção em seu olho amarelo e pensar que ela realmente estava bem
ao meu lado. Era tudo de que eu precisava para me sentir bem também.
— Marília — comecei a dizer. Acho que a interrompi, mas não tenho
certeza. Só sei que ela parou de se mover e me olhou, esperando que eu
continuasse a falar. Meu peito parecia querer explodir com aquelas palavras
que estavam presas em mim. — Eu amo você.
Sua expressão se desfez vagarosamente, assim como seu sorriso. E
suas mãos se abaixaram, descansando nas pernas.
O silêncio repentino apertou ainda mais meu coração. Não tive
dúvidas quanto ao que disse, mas me perguntei se estava cedo demais para
dizer aquelas palavras. Cedo demais para ela. Para mim, parecia até tarde,
levando em consideração o tempo em que eu guardava aquele sentimento
comigo.
Cheguei a lhe confessar em sonhos o quanto a amava e ela dizia o
mesmo a mim, mas não parecia mais a mesma coisa, já que eu não estava
mais sonhando.
Abri a boca, decidido a quebrar o silêncio, mas então Marília se
adiantou:
— Por que não me beijou quando teve a oportunidade hoje mais
cedo?
Sua voz soou baixa, mas me pegou de surpresa. Pela sua expressão,
pareceu estar querendo me fazer essa pergunta havia horas, só estar
esperando uma oportunidade.
— Porque quero que você escolha o momento certo, em que se sinta
confortável para isso. Não sei se está pronta para ser beijada e não quero
forçar a barra.
— Sabe, Matthew, nunca estive tão pronta quanto neste momento.
Marília abaixou os olhos para suas mãos, que agora estavam inquietas
em cima das pernas. Observei seu rosto enrubescer ao mesmo tempo que
senti meu coração aumentar o ritmo da pulsação.
Levei o dedo indicador até seu queixo e levantei seu rosto, para que
pudéssemos nos olhar.
— Tem certeza disso? — perguntei, tentando controlar o nervosismo.
Eu tinha perdido as contas de quantas mulheres já havia beijado até
então, mas não era a mesma coisa. Marília não era como as outras. Ela era a
mulher dos meus sonhos, a mulher que eu amava. E esse sentimento era tão
intenso a ponto de oprimir meu peito e causar dor.
De repente, senti um frio enorme na barriga e foi como se eu nunca
tivesse beijado ninguém na vida, como se não tivesse experiência nenhuma
com isso. Minhas veias pareciam tremer em contato com o sangue gelado
que corria com rapidez.
— Eu tenho certeza — ela respondeu olhando diretamente para meus
olhos.
Seu olhar foi tão profundo, que eu diria que certamente atravessou
meu cérebro.
Dei-me conta, antes mesmo que acontecesse, de que aquele toque
entre nossos lábios era o que eu mais desejava na vida. E imaginá-lo foi o
que me moveu a continuar procurando-a, foi o que me deu forças para
permanecer de pé em meio àquela turnê de quase dois anos.
Tive certeza de que seria muito mais especial do que imaginei por
todos aqueles anos. Tive certeza de que seu gosto seria muito mais saboroso
do que consegui imaginar em meus mais perversos pensamentos com ela.
Então, não hesitei, não perguntei mais uma vez. Segurei suas mãos
nervosas e as apertei. Ela fechou os olhos e eu me aproximei.
Primeiro, beijei sua testa, depois sua têmpora, depois sua bochecha.
Assim fui chegando mais perto, enquanto sentia seu rosto todo em meus
lábios.
Beijei o canto de sua boca com cautela, esperando que talvez ela me
detivesse e dissesse que gostaria de esperar mais. Eu a respeitaria. Mas,
como ela nada disse, desenlacei nossas mãos e a segurei no rosto, puxando-
a para mais perto.
Encostei meus lábios nos dela e senti a maciez de seu toque. Em
seguida, abri a boca e ela fez o mesmo. Sua língua encostou na minha
pouco tempo depois, fazendo movimentos que me agradaram muito.
Passei as mãos para a parte de trás de sua cabeça e mergulhei os
dedos em seus cabelos recém-lavados. Esse foi o momento em que tive
convicção de que não a soltaria mais, pelo menos não até que eu a sentisse
o suficiente em minha boca.
Nossos movimentos foram íntimos e silenciosos, mas muito
profundos e saborosos. Tinha sabor de canela, avelã e uma pitada de cereja
bem de leve. No fundo, eu sempre soube que seus lábios teriam gosto de
cereja.
Marília ergueu uma das mãos ao meu rosto, escorregando-a até minha
nuca. Arrepiei-me ferozmente com aquele toque que sem dúvidas pedia
mais por mim.
Os movimentos de nossa boca se encaixaram tão bem que pareceram
combinados. Não consegui pensar em mais nada, a não ser a explosão de
sabores que me tomava. De repente nada mais existia, estávamos flutuando
em meio às nuvens. Não havia mais cama, nem quarto, nem tempo. Aliás, o
tempo parecia ter parado. A única coisa que se movia naquele momento
eram nossos lábios sedentos e nossas mãos; elas procuravam por um ponto
específico que nos trouxesse para mais perto um do outro.
Todos os meus questionamentos desapareceram. Não tive dúvidas de
que aquele era exatamente o lugar em que eu e Marília deveríamos estar.
Pareceu-me extremamente certo. Minha boca pertencia à dela. Meu corpo
pertencia ao dela. Meu coração pertencia ao dela. Nós éramos duas partes
de um todo e pertencíamos um ao outro.
Até mesmo as almas eram uma da outra. Isso se não fossem a mesma,
separadas em algum momento de nossa vida.
Senti-me tão completo com sua boca na minha, que meu coração
transbordava amor. Eu tinha tanto amor a dar a ela que parecia nunca ter
fim.
Nossos toques eram suaves e gentis, apesar de tão profundos.
Continuei movendo a boca, assim como Lia fez com a dela, e as línguas se
negaram a parar. Foi a conexão mais intensa da minha vida, o contato mais
extraordinário que senti.
Quando paramos com os movimentos, as testas se fundiram e nossos
olhos se abriram.
Eu não tinha percebido até então o quanto precisava de ar. Ambos
estávamos ofegantes, procurando por alimentar nossos pulmões.
Continuamos em silêncio, nos olhando de perto, respirando o mesmo
ar. Eu ainda segurava o rosto de Marília, exatamente como ela também
segurava o meu.
Esperei que se recompusesse, o que levou um tempo. Mas não me
importei com o silêncio, sua respiração já demonstrava o quanto ela
também tinha gostado do beijo.
Não nos soltamos, nem nos movemos. Não sei por quanto tempo
ficamos assim, o tempo ainda parecia estar parado para mim.
— Matthew — ela disse, por fim. Sua voz me pareceu ainda mais
sedosa do que antes —, que dia é hoje?
— Não consigo me lembrar agora — arfei, só desejando minha boca
na dela novamente.
— Não esqueça de olhar depois.
— Por quê?
— Eu também te amo.
Recusei-me a dizer alguma coisa. Ouvir aquelas palavras foi mais
forte do que imaginei que seria. Foi arrebatador. Foi real. Com certeza a
data ficaria marcada para o resto da minha vida.
Voltei a beijá-la, tão insaciável quanto uma pessoa que passa dias no
deserto sem beber água. Ela retribuiu, na mesma intensidade.
Quando me dei conta, estávamos os dois ofegantes novamente.
Minhas mãos estavam enroladas em seus cabelos cheirosos de maçã verde e
minha boca estava saindo da sua dando-lhe tempo para respirar. Enquanto
isso, beijei sua bochecha, depois seu pescoço.
Eu daria tudo para não a soltar mais. Meu desejo só aumentava e isso
poderia ser perigoso para o momento. Sua respiração incontida em meu
ouvido me alarmou, alastrando um choque por todo meu corpo.
Dei-me conta, nesse exato momento, de que eu precisaria parar de
beijá-la, ou não conseguiria me segurar. Afastei-me lentamente, até que
nossos olhos se encontrassem mais uma vez. Mas não sustentei nosso olhar
por muito tempo. Joguei meu corpo para a cama e deitei com a cabeça no
travesseiro, tentando respirar fundo.
Marília fez o mesmo, deitando-se ao meu lado.
Ficamos ambos olhando para o teto.
No minuto seguinte, percebi uma lenta movimentação. Era sua mão
pousando em sua boca, acariciando seus lábios.
Olhei-a de lado, estudando sua reação. Ela parecia estar flutuando,
com a cabeça longe.
— O que foi? — perguntei, com mansidão na voz.
— Eu nunca fui beijada assim antes — respondeu, perplexa.
Virei meu corpo para ela, que se voltou para mim. Analisei-a por um
instante, depois acariciei seu rosto, afastando o cabelo da região.
— Você gostou?
Ela balançou a cabeça positivamente.
— Muito. Muito mesmo.
Sorri com sua resposta.
— Foi assim para mim também. Nunca achei que eu poderia sentir
algo tão intenso na vida.
Olhei fixamente para seus olhos e percebi que estavam marejados.
Porém, nenhuma lágrima caiu, só ficaram lá tornando seus orbes ainda mais
brilhantes.
— Você me ama de verdade? — perguntou, sua voz demonstrava
carência.
— Claro — respondi com toda sinceridade do meu coração. — Eu te
amo, Marília. Eu te amo desde o primeiro momento em que te vi, quando eu
tinha somente dez anos de idade. É o sentimento mais forte e real que já
senti em toda a vida.
— Obrigada — ela disse. — Eu consigo sentir que você me ama.
Muito obrigada por isso.
Aproximei-me mais e a abracei forte.
Normalmente as pessoas não agradecem por serem amadas, mas senti
em meus ossos a intensidade daquele agradecimento. Percebi em sua voz o
quanto ela esperou pelo momento de sentir-se amada de verdade.
E eu a amava de verdade.
Ainda abraçada comigo, ergueu seu rosto e me perguntou:
— Pode me beijar mais uma vez?
— Quantas vezes você quiser — sussurrei.
Aproximei minha boca da dela e a beijei com carinho, bem
lentamente. Havia tanto amor naquele beijo, que fui surpreendido. Eu
também nunca tinha sido beijado daquela forma, com tanto carinho, com
tanta entrega.
Senti seu cheiro de perto, o que me confortou, mas não me saciou.
Eu sabia que deveria evitar beijá-la por tempo suficiente para manter
meu corpo em ordem, mas como poderia negar um pedido como aquele?
Acariciei suas costas com cautela, descendo, esperando que talvez ela
dissesse alguma coisa. Mas não disse, então continuei. Com a mão ainda
ali, puxei-a para mais perto. Seu corpo cedeu e obedeceu, colando-se ao
meu. Depois, desci mais até que chegasse a sua cintura.
Tão vagarosamente quanto pude, deslizei os dedos por debaixo da
camiseta do pijama azul que ela usava e esperei, imóvel. Esperei que ela
desse qualquer indício de que não queria aquele toque tanto quanto eu.
Novamente, nada fez. Muito pelo contrário, a pele de suas costas se
arrepiou em contato com a minha palma e a senti estremecer diante de mim.
Segurei-a com carinho e continuei beijando-a com vontade, sentindo
a pele lisa de suas costas.
Eu ainda não a tinha tocado daquela forma, em qualquer parte de seu
corpo que normalmente ficava escondida por baixo da roupa. Foi como
afagar uma superfície de veludo, tamanha maciez.
Continuei acariciando-a com lentidão, prestando atenção em seus
movimentos e comportamentos. A última coisa que eu queria era assustá-la.
Nossa língua estava se movendo em um beijo viciante, onde pude
explorar cada centímetro da boca da minha garota, devorando seus lábios,
quando passei a mão por sua cintura, e subi até encostar na renda do sutiã.
Parei mais uma vez.
— Marília? — Suspirei.
Eu nem sabia direito o que dizer, só queria me certificar de que ela
estava bem com minha mão dentro de sua camiseta. Mais especificamente
em seu sutiã.
Lembro-me com clareza do dia em que meu pai me chamou para
conversar pela primeira vez sobre garotas. Sobre sexo, para ser mais exato.
Nós sempre tivemos esse tipo de intimidade, conversávamos sem nenhuma
vergonha aparente. Ele me disse que, na minha idade — quinze anos, na
época —, seria inevitável que eu começasse logo a me aprofundar no
assunto, literalmente. Levando em conta a quantidade de garotas que me
queriam e me cercavam.
A conversa foi profunda, calma, animada. Aprendi muito naquele dia,
principalmente como uma garota precisa ser tratada nesses momentos
específicos. O respeito e o consentimento vêm em primeiro lugar, ele
dissera.
Ao ouvir algumas de suas experiências da juventude, de antes que
conhecesse a minha mãe, eu me dei conta do que ele estava querendo me
passar e decidi que, mesmo que não houvesse amor envolvido, ainda que
fosse somente prazer e euforia, eu teria que fazer com consentimento e
respeito, independentemente da mulher da vez.
Marília abriu os olhos e me fitou de perto, tão de perto que nossas
respirações rápidas se fundiam.
Aos poucos, ela me soltou e, então, afastou minha mão. Senti um
pesar enorme sobre mim, junto com um sentimento que dizia que eu tinha
extrapolado, que tinha ido longe demais.
Marília se sentou na cama e abaixou o olhar para suas mãos.
— Me desculpe — eu disse, sentando-me também. — Não deveria
ter… Nós só nos conhecemos há dois dias.
— Nós nos conhecemos há nove anos, Matthew — acrescentou, ainda
olhando para as mãos. — Tecnicamente, quero dizer. Não precisa se
desculpar — sua voz soou com uma entonação triste.
— Você está chateada. Sei que me excedi.
— Não é isso. Eu… Eu queria muito continuar com o que estávamos
fazendo, de verdade. Mas… só não estou preparada agora.
Prendi sua franja atrás da orelha e lhe acariciei o rosto.
— Está tudo bem, não precisamos fazer nada agora. Podemos esperar
até o momento certo para você.
Ela balançou a cabeça positivamente.
— Obrigada.
— Bem, na verdade você não precisa agradecer por nada. O respeito
não é um favor, é uma obrigação. E momentos como este exigem que haja
consentimento de ambas as partes, portanto, se você não está preparada,
vou respeitar isso e aguardar até que se sinta confiante para dar
continuidade.
Ela levantou o rosto e me fitou. Não disse nada, mas o silêncio que
emanava de suas feições afundou meu peito. Havia algo errado, algo que a
estava perturbando. Seus olhos estavam fixos nos meus, profundos, em
pânico.
— O que há de errado? — perguntei com a voz mais mansa que eu
pude entoar.
Ela hesitou. Abriu e fechou a boca algumas vezes, mas nenhum som
saiu por seus lábios.
— Sabe, você tem razão. Não nos conhecemos há dois dias, nós nos
conhecemos há nove anos. E sei que te conheço o suficiente para saber que
está escondendo alguma coisa. Não faço questão de que me conte,
principalmente se não se sentir bem com isso, mas faço questão de que
saiba que pode confiar em mim. Pode me contar qualquer coisa,
independente do que seja.
Sem saber o motivo, meu peito estava oprimido, praticamente
doendo. Era como se eu pudesse sentir a dor de Marília.
— Qualquer coisa? — perguntou.
— Sim, qualquer coisa. Quando quiser.
— É que eu nunca… Eu nunca…
Analisei seu rosto frágil como porcelana e pensei ter entendido o que
ela queria dizer.
— Você é virgem? — perguntei, quase que em um sussurro.
— Não, eu não sou virgem. Mas… eu nunca me senti amada assim,
nunca fiz amor.
Refleti brevemente sobre aquelas palavras e pensei ter entendido mais
uma vez. Eu também nunca tinha feito amor, nunca tinha ido com uma
garota para a cama e feito amor. Prazer era o que eu fazia, não amor.
Mas com Marília eu não queria fazer prazer, com Marília eu queria
fazer amor.
— Eu também não — concluí. — Será minha primeira vez fazendo
amor com alguém também.
Ela sorriu. Um sorriso frouxo e entristecido.
— Não é só isso. Eu também nunca… Matthew, eu nunca…
— Ei. — Olhei-a com carinho e segurei sua mão com a intenção de
transmitir confiança. — Está tudo bem. Não precisa ter receio de me dizer o
que está sentindo. Eu vou entender.
— É que eu nunca senti prazer também — falou pausadamente. —
Sabe do que estou falando, não sabe?
— Você nunca teve um orgasmo? É isso que está me dizendo?
Ela hesitou, mas depois balançou a cabeça positivamente.
— Eu… Eu não sei como fazer isso acontecer, então… Então não
fique chateado comigo se eu… Se eu não…
Soltei um riso breve antes de dizer:
— Não precisa se preocupar com isso, é algo que acontece
naturalmente. E tudo bem se não acontecer da primeira ou da segunda vez.
A princípio nós vamos nos conhecer, conhecer o corpo um do outro. Não
precisamos nos precipitar com nada.
— Eu só não quero te decepcionar.
— Isso é sério? — Apertei sua mão com carinho e abri um sorriso. —
Marília, você nunca conseguiria me decepcionar.
Ela sorriu comigo, ainda me olhando profundamente. Sua expressão
continuava tensa, mesmo que parecesse estar um pouco melhor agora,
depois de ter feito suas revelações.
— Isso não é tudo, não é? — perguntei, certo de que mais revelações
viriam à tona.
Ela meneou a cabeça.
— Ok. — Respirei fundo. — Se estiver pronta para dizer, estou
pronto para ouvir.
— Qualquer coisa? Tem certeza? — perguntou.
— Sim, qualquer coisa.
— Você merece saber que tive outro alguém — ela também respirou
fundo —, mas não significou nada para mim, a não ser dor e sofrimento.
— Luiz? — perguntei, lembrando-me de que ela havia citado esse
nome uma vez.
— Sim.
— Foi seu namorado?
— Talvez até mais do que isso. Ele me pediu em casamento, mas eu
era menor de idade, então não formalizamos a união em cartório.
— E por que você aceitaria se casar com uma pessoa que só
significou dor para você?
— Porque não tinha me feito sofrer até então. Ele me ajudou no
começo, me deu abrigo quando fugi da casa de meu pai, quando eu tinha
apenas dezesseis anos. Morei na mesma casa que Luiz por um ano sem que
tivéssemos nenhum envolvimento. Mas aconteceu. Eu não tinha mais
ninguém, ele era o mais próximo de príncipe encantado que eu tinha.
— Me deixe adivinhar, o príncipe encantado virou sapo?
— Virou monstro, dos mais cruéis que você pode imaginar.
Olhei-a, em silêncio, esperando que prosseguisse com sua fala. Evitei
perguntar sobre mais detalhes, porque, como claramente o assunto não lhe
era agradável, eu não quis transmitir a impressão de que a estava
pressionando a dizer.
Porém, mesmo que ela não continuasse com os relatos relacionados
ao tal Luiz, eu soube instantaneamente que se tratava de um completo
imbecil.
— Ele sabia de tudo o que meu pai fazia comigo — ela continuou.
Sua voz embargada transmitia indignação. E estava tão cheia de mágoa, que
me dilacerou os ossos, picou meu coração em um milhão de pequenos
pedacinhos. — E, ainda assim, fez a mesma coisa que ele, ainda pior. Me
agrediu de maneira brutal, verbal, física e sexualmente.
Sexualmente.
Aquela palavra me atingiu como se uma casa inteira tivesse desabado
em cima da minha cabeça.
Entendi de súbito porque ela me disse que nunca tinha feito amor, e o
motivo de nunca ter sentido prazer. Entendi também o porquê de suas
expressões tão carregadas de angústia.
Minha garganta formou um nó de ferro e, de repente, tudo o que eu
mais queria naquele momento era torturar esse sujeito até que ele morresse
pedindo perdão pelo que fez com a minha garota. Minha garota.
Respirei fundo tentando não demonstrar o quanto fiquei irritado com
as palavras de Marília. Até porque, não tinha nada a ver com ela, tinha a ver
com o que fizeram com ela.
Culpei-me profundamente por não ter chegado antes, por ter pensado
que ela não existia e por não ter feito mais para encontrá-la.
Minhas veias tremiam enquanto a raiva se acumulava.
— Ele… Ele fez você… Meu Deus, nem consigo falar!
— Matthew…
— Me perdoe — interrompi-a. Minha voz mal saiu, tamanha a
frustração. — Me perdoe, meu amor, por não ter chegado antes. Por não ter
conseguido impedir.
— Você não tinha como saber. A culpa não é sua. — Entre nós havia
tanta dor, que quase não consegui olhá-la. Perguntei-me como poderia fazer
aquilo sumir, como poderia ajudá-la. Era tudo o que eu queria, que Marília
fosse feliz, que ela se sentisse completa comigo. Mas como poderia? Como
poderia ser completa depois de ter passado por tantas brutalidades? Tive
vontade de chorar, de gritar, de esbravejar, mas não pude, porque ela estava
diante de mim, precisando do meu abraço e do meu apoio. Engoli toda
aquela angústia em seco, o que fez minha garganta doer profundamente, e
só a olhei, esperando pelo que ela tinha a dizer. — Eu sei que ouvir esse
tipo de coisa não é fácil, mas você precisa saber que me salvou. Eram as
suas músicas que me salvavam de todo o sofrimento. De alguma forma,
você sempre esteve lá comigo, e senti seu abraço em cada palavra cantada
que entrava pelos meus ouvidos.
— Marília. Ele… Ele te forçou a fazer sexo com ele?
Foi como se as palavras dela não tivessem tido efeito nenhum sobre
mim. Eu só conseguia pensar na minha garota sendo abusada sexualmente
por outro homem. Sofrendo, sentindo dor. Doeu tanto em mim, como se
uma faca adentrasse minhas vísceras. Um milhão de vezes. E eu
continuasse vivo.
— Sim. Ele me forçou.
— Foram… — Engoli em seco. — Foram muitas vezes?
— Sim. Durante dois anos.
Não sei como, mas meu coração se quebrou ainda mais, se
despedaçou em partes ainda menores.
— Eu nunca contei a ninguém. Então, me desculpe se estou jogando
tudo isso em cima de você. Só achei que merecia saber o tamanho da
bomba que está dentro de mim.
— Marília, não me importo com o tamanho da bomba! Eu me
importo com você! Só com você! A bomba poderia explodir agora mesmo,
e estaria tudo bem para mim! Mas, e você? Como posso te ajudar?
— Sem nem saber, já me ajudou muito! Eu ainda estaria lá naquela
casa, junto com Luiz, se não fosse por você. Digo isso porque fugi no dia
do seu show em São Paulo. E o que me incentivou a ter coragem para
deixar tudo para trás foi o amor que sinto por você.
Tive a impressão de estar engolindo espinhos, tamanha a dor da
minha garganta. Meu rosto parecia estar pegando fogo. Mas me contive, eu
me segurei ao máximo para não demonstrar minha tristeza e dor, porque
nada daquilo era sobre mim, era sobre ela.
— Você é a mulher mais corajosa que eu conheço — sussurrei,
acariciando a mão de Marília.
— Acovardei-me por muito tempo e, ainda hoje, meu maior medo é
de que Luiz me encontre e me castigue por ter fugido. Não sou tão corajosa
assim.
— Isso não vai acontecer, eu te prometo. Nunca vou deixar que isso
aconteça novamente a você.
— Espero nunca mais vê-lo.
— Sabe, deveríamos pensar em uma maneira de denunciá-lo — eu
me precipitei em dizer.
— Não! — Marília exclamou com a voz aguda. Seu rosto se
transformou em puro medo. — Não, por favor, não! Ele vai saber e vai vir
atrás de mim. Vai me matar se eu o denunciar.
— Está bem, está bem — tentei acalmá-la. — Faremos tudo a seu
tempo.
— Ele… Ele disse que me amava, mas era tudo mentira, Matthew! É
um mentiroso! Consegue enganar qualquer um! Se eu o denunciar, ele vai
fazer qualquer coisa para que acreditem nele e eu vou sair como errada,
tenho certeza.
— Ok, ok. Marília, respire — pedi, com calma, percebendo sua
agitação. — Não vamos fazer nada que você não queira. Eu só estou
tentando pensar em uma maneira de te ajudar, só isso.
— Luiz tem um rosto angelical, mas é um monstro e só eu sei disso.
Todas as outras pessoas pensam que ele é bom. Matthew, os últimos meses
que passei com esse homem foram os piores. Ele comprou uma arma e… E
me obrigava a… Abusava de mim com a arma apontada para a minha
cabeça. Por favor, por favor! Não o entregue para a polícia.
Meu estômago se revirou com aquelas palavras, foi como um soco-
surpresa bem em cima da minha barriga.
— Está bem. — Eu a puxei para um abraço forte. — Está bem. Fique
tranquila. Vou te levar para bem longe dele, eu te prometo. Você vai ficar
bem.
Marília encostou a testa em meu peito e começou a chorar
silenciosamente, fungando.
Eu não disse mais nada, nem ela. Só a aninhei até que pegasse no
sono.
Às três horas da manhã, Marília dormia profundamente quando me
levantei de fininho. Coloquei minha roupa e saí do chalé sem que ela
percebesse.
Fechei a porta e corri, corri tanto que perdi o fôlego. Quando parei,
estava muito longe do chalé. Abaixei-me e segurei os joelhos, tentando
recuperar o fôlego. Então, gritei tão alto que meus pulmões doeram. Gritei
até que minha garganta não tivesse mais voz. Depois, caí em prantos no
chão, chorando igual a uma criança perdida.
Quando despertei, no dia seguinte, Matthew já estava acordado. Ele
me abraçava e olhava diretamente para mim.
— Bom dia — desejei.
— Bom dia. — Ele abriu um sorriso frouxo; parecia não ter dormido
bem, ou até nem dormido, na verdade.
— Você está bem?
— Estou, meu amor — sua voz estava tão fraca, que não acreditei em
suas palavras. Não foram nada convincentes. — E você, está bem?
— Estou.
— Isso é o que importa para mim no momento.
— Por que sua voz está rouca? — perguntei.
— Devo ter passado frio durante a noite. Não se preocupe, vou
comprar algumas pastilhas e logo estarei melhor.
— Está bem. É importante que sua voz esteja boa para o show em
Curitiba, é só daqui a alguns dias.
— Eu sei, mas é só uma pequena irritação. Está tudo bem.
— Ok.
— Vamos à praia hoje? Ainda está cedo, poderemos aproveitar o dia
todo.
— Sim. — Sorri. — Eu vou amar ir à praia!
Levantamo-nos e nos arrumamos. Dessa vez, coloquei o biquíni novo,
assim como minha camiseta e shorts jeans também novos. Prendi o cabelo
em um rabo de cavalo alto e passei o hidratante de cereja nos lábios.
— Você está linda — Matthew disse, com os olhos brilhando.
Ele também estava com o cabelo preso, mas em um coque bem
estiloso.
— Obrigada. Você também está lindo.
Matthew estava sempre lindo, na verdade. Ele tinha um estilo próprio,
que o diferenciava dos outros homens e chamava a atenção de todos que
estivessem próximos.
Fomos de carro dessa vez, o que nos permitiu chegar à praia com
mais rapidez.
Fizemos a mesma trilha do dia anterior. Andamos de mãos dadas
enquanto jogávamos conversa fora. Matthew carregava nos ombros uma
mochila cheia de lanches e aperitivos para comermos durante o dia.
Eu era só empolgação quando chegamos à areia. Fiquei descalça no
mesmo momento e tirei a roupa, deixando somente o biquíni.
Matthew me deu uma olhada, admirando-me de cima a baixo.
— Meu Deus — ele disse se aproximando.
— O que foi? — Soltei uma risada brincalhona.
— Eu já disse o quanto você é linda?
— Sim. — Abracei-o de leve e o olhei, ainda com um sorriso nos
lábios. — Mas gosto de ouvir. Pode dizer quantas vezes quiser.
— Você é linda, você é linda, você é linda, você é linda… — repetiu
várias vezes.
E para cada uma delas deu-me um beijo no rosto, enchendo-me de
carinho.
Comecei a rir com as cócegas que vieram em seguida, quando
começou a beijar meu pescoço.
— Não seja bobo. — Tentei me esquivar.
Quando consegui me ver livre de suas mãos e lábios, comecei a
correr.
— Aonde você vai? — ele gritou.
— Nadar — respondi. — Você não vem?
— Você sabe nadar?
— Não — gritei enquanto corria em direção à água. — Nem um
pouco!
— Por Deus, Marília! — ouvi-o resmungar enquanto tirava sua
camiseta com agilidade e saía correndo atrás de mim. — Espere!
Comecei a rir.
Meus pés tocaram a orla do mar e uma sensação de paz me tomou. A
água estava morna e espirrava por todo meu corpo enquanto eu corria.
— Espere! — Matthew voltou a gritar, chegando cada vez mais perto.
— A água está uma delícia. — Sorri, jogando um punhado em seu
tórax exposto.
— Você não vai querer entrar nessa brincadeira comigo — zombou,
rindo também.
— Por quê? — Levantei as sobrancelhas.
— Você não sabe nadar, lembra? Eu sei, por isso vou ganhar
facilmente de você nessa guerra.
Joguei água nele mais uma vez, pegando-o de surpresa. Corri
desesperadamente, em meio a gargalhadas, esperando que viesse atrás de
mim.
Matthew me alcançou pouco tempo depois, agarrando-me com os
braços fortes. Sem aparentar esforço algum, ergueu meu corpo e me
depositou em cima de seu ombro esquerdo.
— Ei, o que está fazendo? Solte-me! — ordenei, ainda rindo e
balançando as pernas. — Me desça para o chão agora!
Matthew não me obedeceu, continuou adentrando o mar comigo em
seu ombro.
— Eu vou cair! — gritei. — Me solte!
Ele só o fez quando estávamos em uma parte profunda o suficiente
para que meus pés não alcançassem mais o chão.
— Isso não é justo. — Enlacei seu pescoço com força, com medo de
soltar e ser levada pela água. — Você trapaceou.
Matthew deu risada, abraçando-me pela cintura.
Ele estava incrivelmente bonito. O charme que carregava enchia o
ambiente, assim como seus olhos verdes vibrantes.
Senti-o pela primeira vez. Tronco com tronco. Pele com pele. Era lisa,
macia, morna, escorregadia com o toque da água. Cheio de tatuagens,
desenhos que carregavam grande significados e que aumentavam ainda
mais a proporção de sua beleza e sensualidade.
— Eu disse que você não tinha vez nessa brincadeira.
— E agora? Você vai ter que ficar me segurando. Meu pé não alcança
o chão.
— Quer aprender a nadar?
— Você vai me ensinar?
— Sim. Você quer?
— Quero! — eu disse, animada.
Ficamos horas brincando na água, Matthew tentando me ensinar a
nadar e eu sendo um desastre como aluna. Caímos na risada por diversas
vezes, mas não desistimos.
Divertimo-nos muito, tanto que não queríamos mais sair, nem muito
menos ir embora.
Quando a fome bateu, voltamos para a areia e nos sentamos.
Comemos os lanches que ele havia colocado na mochila e conversamos
sobre assuntos engraçados.
Eu nunca havia passado tanto tempo rindo.
No final da tarde, quando o sol estava prestes a se pôr, encostamo-nos
a um coqueiro e nos abraçamos. Matthew atrás e eu na frente, com a cabeça
em seu peito, assim como no dia anterior.
— Acho que esse foi o melhor dia da minha vida — comentei.
— Fico feliz em proporcionar isso a você. — Suas palavras foram
seguidas por um beijo carinhoso.
— Você poderia cantar para mim? — pedi.
— Claro. Mas você sabe que minha voz está um pouco rouca.
— Tudo bem, eu gosto dessa rouquidão.
Então, ele limpou a garganta e começou a cantar. Fechei os olhos para
ouvi-lo.
Sua voz era tão graciosa que me dava a sensação de estar flutuando
entre as nuvens. Entrava em meus ouvidos como carícias de algodão. A
entonação saiu perfeita, apesar da leve rouquidão. O que, em minha
opinião, deixava sua voz ainda mais bonita. Até sexy, eu diria.
Não ousei cantar junto, mas aproveitei cada segundo das canções que
vieram em seguida. Ao todo, Matthew cantou quatro músicas.
— É engraçado como o mundo dá voltas, não é? — perguntei,
abrindo os olhos após a finalização da última canção.
— Sobre o que está falando?
— Alguns dias atrás, tudo o que eu mais queria era ir a algum show
seu. Hoje, você está cantando aqui para mim. Só para mim. Não é incrível?
— Sim, meu amor. É incrível. Pense que agora você vai até enjoar de
me ouvir cantar, de tantas oportunidades que vai ter de ir a shows públicos e
até particulares, assim como este de agora.
— Nunca vou me enjoar da sua voz. É a voz mais linda que já ouvi.
Penso que deve ser bom já nascer com um dom e ter certeza desde pequeno
sobre o que você vai querer ser na vida.
— Sim, tem razão. Eu sempre soube o que queria ser e, no fundo,
também sempre soube que minha carreira na música daria certo.
— Está nas suas veias — eu disse, passando o dedo indicador pelo
seu braço.
Mesmo em meio a tantas tatuagens, ainda era possível ver algumas
veias saltadas sobre a definição de seus músculos.
— E você? O que sonha em ser?
— Eu não tenho nenhum dom, acho. Não nasci já com a certeza do
que faria como carreira.
— Sabe, às vezes as pessoas não nascem com o dom, elas adquirem
no decorrer da vida.
— Pois é, pode ser que seja assim comigo, mas ainda não tenho
nenhuma ideia do que quero ser. Eu tenho disposição para estudar, sabe?
Gosto bastante de me dedicar aos estudos, então sei que,
independentemente da profissão que escolher, vou dar o melhor de mim. É
só que… ainda não me encontrei em nada.
— Mas está tudo bem, não precisa ter pressa. Lembre-se de que agora
você é livre, Marília. Pode escolher o que quiser para seguir como carreira,
eu vou te apoiar e te ajudar independentemente da sua escolha.
Virei o pescoço e o olhei.
— Obrigada, Matthew — agradeci.
Apesar dos meus insistentes pensamentos dizendo que eu precisava
logo ser independente para adquirir minhas próprias conquistas e dinheiro,
senti uma incrível liberdade me tomando. De repente, não havia mais
pressão, nem imediatismo em me tornar algo.
Saber que eu teria tempo para me decidir e me encaixar em alguma
área, me deixou feliz, pois eu queria entrar de cabeça em algo que
realmente combinasse comigo. Não havia nada que eu queria mais do que
ter autonomia.
Ele me deu mais um beijo e disse:
— Vamos embora? Já está ficando tarde.
— Sim, vamos.
Arrumamos nossas coisas e fizemos a trilha de volta ao carro.
No meio do caminho de volta ao chalé, paramos em uma farmácia
para comprarmos as pastilhas para a garganta de Matthew. Eu o vi chupar
várias até a hora de irmos dormir.
Mais tarde, quando havíamos acabado de nos deitar na cama, pedi:
— Se cubra. Não vai querer correr o risco de sua garganta piorar.
Matthew me obedeceu, puxando o edredom até o pescoço.
Após vê-lo coberto, virei-me de costas para ele e o senti me
abraçando. Não se esqueceu de deixar nenhum centímetro sequer do meu
corpo para fora do abraço.
— Eu te amo — ele disse ao meu ouvido.
— Eu também te amo — declarei, fechando os olhos para dormir.
Passamos mais dois dias em São Sebastião, aproveitando a praia e
todos os nossos momentos sozinhos. Não tenho outra palavra para
descrever o que passamos, a não ser mágico. Cada dia, cada hora e cada
segundo foi encantador.
Matthew continuou tentando me ensinar a nadar. Sinceramente, não
evoluí muito, mas pelo menos aprendi a bater os braços e as pernas na
mesma sincronia enquanto ele me segurava de bruços em seus braços.
Passeamos pelo Centro mais algumas vezes e conhecemos alguns dos
melhores restaurantes da região. Matthew tomou açaí pela primeira vez
comigo, com muito leite condensado, bananas e granola. Achou o gosto
fantástico e até acabou comprando um pote de dois litros para levar ao chalé
e tomar mais tarde. Eu o acompanhei, é claro, enquanto assistíamos a um
filme embaixo das cobertas.
Aprendi algumas palavras novas em inglês e também algumas
expressões e gírias que eu ainda não conhecia. Morri de rir quando Matthew
tentou me ensinar a falar squirrel, que significa esquilo. A pronúncia
correta não saía de jeito nenhum da minha boca e ele caçoou demais de
mim por isso. Disse que no Canadá é normal ver esses animais pelas
árvores, então o mínimo que eu deveria saber era falar a palavra
corretamente.
Para dar o troco, tentei ensiná-lo a falar a palavra beneplácito. Ele se
enrolou todo e não conseguiu pronunciar nenhuma vez na forma correta.
Minha barriga doeu de tanto rir.
Matthew não sabia falar nada em português, a não ser obrigado e
tchau, palavras as quais ele usava em seus shows no Brasil. Então, muito
menos soube pronunciar beneplácito.
Voltamos ao Grand Master Palace Hotel no dia onze de dezembro à
tarde. Foi o dia em que conheci Anne Bennett, a mãe de Matthew. Ela me
recebeu superbem, com um sorriso no rosto e braços abertos.
— Fico feliz que você exista — ela disse, abraçando-me. Comecei a
rir de seu comentário e continuou: — Você sabe, querida, essa vida que
Matthew leva não é fácil. Ele não dorme nem se alimenta direito, não tem
tempo para passar com os amigos, então cheguei a pensar que o coitado
estava traumatizado com a rotina árdua e acabou criando uma amiga
imaginária.
— Mãe! — ele disse com tom de repreensão.
— É verdade! — ela retrucou. — Certas coisas não são fáceis para
uma mãe lidar.
— Eu entendo — comentei. — Obrigada por toda essa recepção.
— Imagina, Lia! Eu estava ansiosa para te conhecer. Inclusive, meu
marido também. Ele está terminando um projeto superimportante
relacionado a um novo trabalho e pretende vir ao Brasil em breve para te
conhecer o quanto antes.
— É Marília, mãe. O nome dela é Marília.
— Não me importo que me chame de Lia — expliquei. — Era como
minha mãe me chamava quando eu era criança.
Matthew franziu o cenho e me olhou de súbito.
— Eu não sabia disso — disse.
— É, eu não estou muito acostumada com Lia, mas me sinto
confortável com esse apelido, então não me importo se quiserem me
chamar assim.
— Bom saber, querida — comentou Anne.
Naquela mesma noite, fomos jantar fora em um dos restaurantes mais
chiques e badalados de São Paulo, para comemorarmos o recorde de cinco
bilhões de streams no Spotify do último álbum lançado de Matthew.
Todos os integrantes da banda estavam presentes, junto com o
produtor e tio de Matthew, Elliot, e Anne. Foi muito divertido, tive a
oportunidade de conhecer cada um deles e participar de conversas íntimas
sobre as viagens da turnê.
Mitch era o baterista da banda e melhor amigo de Matthew. Ele fez
questão de me contar sobre várias situações engraçadas que viveram nos
últimos tempos e morri de rir com cada relato.
— No show de Oslo, Mat foi pular de cima de uma caixa de som e
caiu de bunda no chão — ele caçoou.
— O pior é que o piso estava úmido, porque ele vive fazendo
gracinha de ficar jogando água nos fãs — Steve, o guitarrista, continuou. —
Até tentei ajudá-lo a se levantar, mas escorreguei também e caí junto com
ele.
Todos deram risada ao lembrarem-se do episódio.
— Ele é um recordista em cair nos shows. — Mitch gargalhou. —
Perdi as contas de quantas vezes já enroscou o fio do microfone nas pernas.
— Vi um vídeo com um ocorrido parecido com esse — comentei,
dando risada junto.
— O coitado ficou com dor nas costas por três dias depois do tombo
em Oslo — Elliot comentou. — Fora todo o trabalho de que estou
encarregado, tive que passar a viagem toda fazendo massagem nas costas
dele.
— Você é meu tio, tem que se submeter a isso de vez em quando.
— Até parece! Da próxima vez, contrate uma massagista — Elliot
retrucou.
— Deixe comigo, querido, da próxima vez eu faço a massagem em
você.
— Obrigado, mãe.
Todos começaram a caçoar de Matthew, chamando-o de filhinho da
mamãe.
— Parem com isso, seus idiotas.
A noite continuou em festa, muitas risadas e comidas saborosas.
Adorei ter conhecido cada um deles. Fui tão bem recebida que tive a
impressão de tê-los conhecido há anos.
Mitch foi o integrante da banda de quem eu mais gostei, levando em
conta que era o único que já sabia sobre mim e o modo como me tratou o
tempo todo.
Como o restaurante era muito chique, não houve gritaria e nem
grande movimentação de fãs se aproximando da nossa mesa, mas durante
toda a noite foi possível perceber flashes em nossa direção e olhares fixos
assistindo a cada movimento que fazíamos. Não demorou para que algumas
fotos vazassem na internet e para que questionassem quem era a garota ao
lado da banda mais famosa do momento.
— Amei conhecer sua mãe — comentei, quando já estávamos
deitados, prontos para dormir. — Na verdade, amei conhecer todos que
estavam conosco hoje.
— Fico feliz em ouvir isso. Minha mãe é muito generosa, você vai
perceber. Tenho certeza de que vai te tratar como filha também.
— Seria bem bacana — disse, mais para mim mesma do que para
Matthew. — Às vezes sinto falta de uma figura materna.
— E sua mãe? — ele perguntou. — Nunca falamos sobre ela.
— Ela morreu quando eu tinha quatro anos — expliquei.
— Que estranho — Matthew disse, em um tom de voz pensativo e
distante. — Nos meus sonhos ela sempre estava lá. Quero dizer, nunca a vi,
mas os sonhos sempre acabavam com a voz dela te chamando para ir
embora.
— Estranho, realmente. Os sonhos nem sempre são reais, não é? Pode
ser que sua mente acabou projetando isso de alguma forma. Acho que
nunca vamos entender.
— É, parei de tentar entender em algum momento da vida. Certas
coisas são inexplicáveis.
— Como isso que estamos vivendo agora. É inexplicável, não é?
— Sim. Mas estava escrito em algum lugar, mesmo eu não sabendo
onde ao certo. É como se tivesse que acontecer, posso sentir isso.
— Também sinto. Talvez já estivesse escrito nas estrelas, ou talvez o
destino que se encarregou de nos unir.
— E juntou nossas almas antes mesmo que tivéssemos nos conhecido.
— Sim. De alguma forma isso aconteceu.
— Só sinto muito que não tenha acontecido antes.
— Está tudo bem. Pelo menos tenho você agora. Isso é o importante.
Nos beijamos com carinho e nos acomodamos um nos braços do
outro para dormir.
No dia seguinte, ainda no primeiro horário, Anne foi comigo até o
posto da polícia federal para que eu fizesse o pedido do meu passaporte.
Preferimos que ela fosse para evitar o tumulto de fãs em volta de Matthew.
Segundo eles, isso só atrasaria meu processo de documentação. Não me
importei, uma vez que tive tempo suficiente para conhecê-la ainda mais.
Após toda a burocracia para tirar minha documentação, passeamos
pela Avenida Paulista, onde ela fez questão de me levar a várias lojas e
comprar-me uma grande quantidade de roupas e sapatos para a viagem a
Curitiba.
Perguntei-me se Matthew chegara a comentar algo com ela sobre eu
não ter roupas o suficiente para usar ou se Anne mesmo que quisera me
presentear. De qualquer forma, fui muito bem tratada o tempo todo e não
chegamos a tocar em nenhum assunto sobre minha falta de dinheiro ou de
peças para vestir. Ela também comprou muitas coisas para si e estava
sempre me perguntando o que eu achava antes de decidir comprar de fato.
Apesar de ter morado na Zona Sul de São Paulo a vida toda, eu nunca
tinha chegado a comprar coisas tão caras e de marcas tão nobres. Mas não
me senti envergonhada por isso, Anne não me deu espaço para sentimentos
negativos e nem pareceu ligar quando demonstrei não conhecer nada sobre
as marcas tão caras as quais ela queria comprar.
Fomos embora ao final da tarde, cheias de sacolas e presentes. Senti-
me tão feliz, que por todas as horas seguintes meu sorriso permaneceu no
rosto. Fiquei imaginando a expressão de Matthew quando me visse vestida
com roupas tão bonitas.
— Obrigada, Sra. Anne, não sei nem como te agradecer.
— Querida, é um prazer poder fazer um passeio com você. Adorei
nossa tarde.
— Eu também.
— Agora, você precisa arrumar todas essas coisas na sua mala nova,
assim que chegar ao hotel. Você e Matthew vão viajar de carro, então vão
sair bem cedinho.
— Está bem, farei isso. Muito obrigada, mais uma vez.
— Imagina, não precisa me agradecer. Faremos muitos passeios como
esse ainda.
Quando chegamos, recebemos ajuda para carregar todas as coisas que
compramos.
Matthew me esperava no quarto, tinha acabado de sair do banho e
estava passando a toalha nos cabelos.
— Nossa! — Ele sorriu. — Quanta coisa! Você se divertiu?
— Sim, muito!
Matthew colocou a maior parte das sacolas em cima da cama e
admirou peça por peça, soltando elogios. Depois me ajudou a dobrar tudo e
guardar na minha mala de viagens nova.
Já era tarde quando tudo estava pronto e organizado, então nos
deitamos e fomos dormir, cientes de que teríamos que acordar em breve
para a viagem.

~Dia 13 de dezembro~

Chegamos ao local do show duas horas antes de o concerto começar.


Já estava lotado, com quilômetros e mais quilômetros de filas de fãs.
Pela primeira vez, vi toda a situação pela perspectiva do artista, não
da fã. Entramos com o carro pelo estacionamento subterrâneo e andamos
por vários corredores até que chagássemos ao camarim. Havia muitos
seguranças conosco, assim como pessoas trabalhando para a organização do
evento.
O camarim era gigante, com várias roupas, espelhos e mesas cheias
de utensílios de beleza.
Em certo momento, eu me separei da banda, pois não achei necessário
ficar no mesmo ambiente que um monte de homens se trocando. Entrei em
outra sala, muito parecida com o camarim em que antes estava, mas bem
menor. Ali me troquei e me arrumei junto com Anne.
Ficamos sentadas tomando café e conversando até que desse a hora
do show.
Meu coração estava nervoso, galopando dentro do peito com tanta
ansiedade. Senti como se fosse meu primeiro show novamente, como se
nunca tivesse visto MatLew antes.
Dez minutos antes de o concerto começar, entramos na arena e nos
acomodamos em cadeiras especiais que normalmente são separadas para
convidados VIPs ou familiares do artista. Fiquei tão próxima ao palco, que
conseguiria ver cada detalhe do desempenho de Matthew e da banda.
A música que tocava ao fundo fazia meus pelos se eriçarem. Eu não
via a hora de assistir a mais um show do meu ídolo, o grande amor da
minha vida.
Observei a arena e fiquei desacreditada com o tamanho daquele lugar.
Ao todo, comportava cem mil pessoas e cada buraco estava ocupado, não
achei nenhum canto vazio. Os ingressos esgotaram dentro de três horas de
vendas pela internet. MatLew era realmente famoso e adorado, não havia
como negar. Isso me enchia de orgulho.
A banda entrou primeiro, o que levou a plateia à loucura. Mitch bateu
na bateria algumas vezes e estrondou o ambiente. Meu coração pareceu ter
tremido junto, assim como cada parte do meu corpo.
Quando Matthew entrou, ainda mais lindo do que eu costumava vê-lo,
a insanidade tomou conta do lugar. Jurei ter até sentido o chão tremer
embaixo dos meus pés.
O show foi perfeito. Diverti-me muito mais do que no de São Paulo,
porque dessa vez eu não estava preocupada com mais nada além de ser feliz
e aproveitar o momento tanto quanto era possível.
Matthew foi sensacional, cantou como ninguém, dançou e pulou
como se fosse o último dia de sua vida.
A última música cantada foi A menina dos meus sonhos. Dessa vez
ele não chorou, cantou-a sorrindo, olhando para mim. Achei a declaração
mais romântica e linda do mundo, meu coração se encheu de amor até
quase explodir.
Obviamente, houve especulação na internet mais tarde, com vídeos e
fotos dele olhando para mim. Não demorou até que percebessem que eu era
a mesma mulher do restaurante em São Paulo, jantando junto com a banda.
Várias manchetes surgiram com perguntas sobre mim e sobre um suposto
relacionamento com MatLew.
— O que acha de tornar nosso relacionamento público? — ele
perguntou, quando já estávamos deitados em nossos aposentos no hotel em
Curitiba.
— Sinceramente, acho que não vamos conseguir manter segredo por
muito tempo.
— Isso é um fato.
— Mas é perigoso. Perigoso para mim, eu digo. Por conta do Luiz e
do meu pai. Os dois saberão onde me encontrar.
— Mas estaremos longe quando eles descobrirem. Aposto que
nenhum dos dois conseguirá nos achar quando estivermos no Canadá.
— Você tem razão, mas ainda estamos no Brasil. Não tenho tanta
certeza quanto ao meu pai, mas, quanto a Luiz, não tenho dúvidas de que
virá atrás de mim se souber onde estou.
— Então, vamos fazer o seguinte: só tornaremos nosso
relacionamento público quando estivermos no Canadá. Todas as fotos que
surgirem até lá serão somente especulação.
— Está bem, concordo com isso.
— Você não vai poder me beijar em público — ele explicou.
— Se prometer me recompensar quando chegarmos ao hotel, tudo
bem.
— Claro. — Sorriu, deixando as covinhas à mostra. — Vou te encher
de beijos quando estivermos sozinhos.
— Pode começar agora, se quiser.
Matthew segurou meu rosto e roçou seu nariz no meu. Olhava meus
olhos fixamente.
— O seu olho amarelo me fascina.
— É a cor do meu bom humor.
— Você está de bom humor há alguns dias já.
— É a prova do quanto você me faz bem.
Ele mostrou os dentes em um lindo sorriso, depois me beijou
ternamente.
— Conversei com meu pai hoje — comentou, acariciando meu rosto
e ainda prestando atenção em meus olhos. — Ele me perguntou qual é sua
cor favorita.
— Para quê?
— Quer deixar seu quarto pronto antes de viajar para cá.
— Isso é sério? — Levantei as sobrancelhas, surpresa.
— Sim. Eu disse que é laranja e ele contratou uma equipe para
decorar seu quarto com os tons mais belos dessa cor. Pedi que pintassem
algumas flores na parede. O que acha, gosta da ideia?
Fiquei em silêncio por um tempo, tentando assimilar tudo o que ouvi.
— É realmente sério?
— Claro! Se você vai morar comigo, precisa ter seu quarto.
Pisquei algumas vezes e sorri.
— Flores na cor laranja são uma ideia ótima para mim.
Matthew me beijou mais uma vez. Depois, ainda perto, sussurrou:
— Você vai ter seu quarto, mas sabe que vou dividir a cama com
você, não sabe?
— Sua mãe sabe disso? — sussurrei de volta.
— Ela não precisa saber.
Soltei uma risada.
— Está bem, não vejo problemas em dormir com você.
— Que bom, porque vou te agarrar tanto que não vai nem conseguir
se mexer à noite. — Matthew me apertou em seus braços e pernas. —
Desse jeito.
— Mas nem consigo respirar assim. — Soltei uma gargalhada e ele
riu também, depois desapertando os braços a minha volta.
— Você vai ser muito feliz morando comigo.
Olhei-o por um instante, observando o quanto estava lindo naquele
ângulo. Seus olhos estavam tão verdes que me confundiam e seu cabelo
estava preso em um coque.
— Muito obrigada. De verdade — agradeci.
— Quero te fazer a mulher mais feliz deste mundo, Marília. Inclusive,
acabei de me lembrar que tenho mais uma coisa para te contar.
— O quê?
— Conversei com a doutora Nancy, minha psicóloga, ela me indicou
uma pessoa de confiança para tratar de você, assim que chegarmos ao
Canadá. Eu gostaria que te atendesse também, mas ela me explicou que não
tem como por conta do nosso envolvimento amoroso.
— Eu não sei, Matthew…
— Vai ser bom, meu amor. É bom ter alguém em quem você possa
confiar e para conversar.
— Tenho você.
— Eu sei, mas eu não sou médico. Se tratar com uma psicóloga faz
toda a diferença, acredite em mim! E a felicidade que quero que você tenha
é algo que deve acontecer de dentro para fora. Quero que seja feliz, não que
fique feliz de vez em quando. Para isso, você tem que tratar os traumas,
colocá-los para fora de alguma forma.
— Está bem — respondi, ainda pensando sobre o que Matthew disse.
Falar sobre tudo o que passei era mais difícil do que parecia, fazia toda a
dor voltar e se alastrar pelo meu corpo. Por isso eu não sabia se conseguiria
me abrir com alguém, principalmente um alguém que eu não conhecia. Mas
faria esse esforço por Matthew e por mim, principalmente. Eu sabia que ele
queria meu bem e ouvi-lo falar sobre suas mudanças que aconteceram desde
que começou o tratamento com a Dra. Nancy me fez criar uma boa
expectativa para mim também. — Acha que vou conseguir, Matthew? Me
livrar de todos os meus traumas?
— Claro que sim. Eu acredito em você, Marília, acredito de verdade.
Você é a mulher mais corajosa que eu conheço, tenho certeza de que vai
conseguir superar todos seus traumas.
— Obrigada — eu disse, soltando em uma única palavra toda a
sinceridade e gratidão que tinha dentro de mim. — Obrigada por estar
fazendo tudo isso por mim.
— É o mínimo que eu posso fazer. Quero te ajudar, está entendendo?
Estarei ao seu lado em cada processo pelo qual passar, em cada um deles. E
quando conseguir se libertar de tudo que te machuca, vou fazer questão de
mandar tudo para o inferno.
Soltei uma risada rápida e orgulhosa.
— Isso mesmo, vamos mandar tudo para o inferno.
— Essa é a minha garota — Matthew disse e me beijou em seguida.
Aconchegamo-nos um ao outro pouco tempo depois, silenciando-nos
para dormir.
Ao todo, ficamos seis dias em Curitiba e acabei ranqueando-os como
os melhores da minha vida.
No dia seguinte ao show, a banda participou do Meet and Greet, mas,
em todos os outros, Matthew ficou inteiramente disponível para mim.
Ele não ficou encanado com os fãs, disse que estava totalmente
disposto a passear em lugares públicos se isso fosse me alegrar. Como eu
nunca tinha saído de São Paulo, aceitei a oferta. Foi tudo novo para mim,
fiquei encantada com cada ponto turístico a que fomos e com cada
paisagem nova que presenciei.
O clima estava ótimo, o que nos permitiu aproveitar os passeios com
um sol lindo sob a cabeça, colorindo e dando ainda mais vida a cada
cenário.
Nosso primeiro passeio foi ao jardim botânico. Matthew colocou um
boné e óculos de sol, achou que isso fosse fazê-lo passar despercebido pelas
pessoas. No começo, funcionou bem, mas, quando a primeira fã o
reconheceu, isso acabou chamando a atenção de várias outras pessoas.
No geral, conseguimos aproveitar bem o local.
Fiquei maravilhada com a estrutura de vidro e ferro da estufa que vi
em tantos cartões postais, e principalmente com os jardins de estilo francês
que rodeavam o local.
O jardim ao qual percorremos era tão grande que chegava a ter mais
de cento e setenta mil metros quadrados e possuía as mais lindas flores de
todos os tipos e cores.
Ao final do passeio, Matthew entrou em uma floricultura e pediu um
buquê para mim. Foi uma surpresa, na verdade. Enquanto ele pedia, eu
entrava em uma igreja de estrutura bizantina. Achei que ele tinha me dito
que ia ao banheiro, então entrei sozinha na capela.
Fiquei observando a estrutura do lugar, perguntando-me se Deus
estava me vendo de alguma forma. Não me ajoelhei nem fechei os olhos
para fazer uma oração, mas elevei pensamentos de agradecimento aos Céus
por tudo o que estava me ocorrendo. E pedi para que Ele me ajudasse a
esquecer das dores que me cercavam.
Eu não era nenhuma cristã, nem conhecia nada da bíblia, mas ao
entrar naquele lugar quis acreditar em alguma força superior cuidando de
mim de algum lugar do Universo. A sensação de imaginar isso foi boa.
Não quis culpar Deus por tudo o que passei, por todos os abusos e
agressões. Preferi pensar que ele tinha muitas outras pessoas para cuidar e
que, em algum momento, acabou se esquecendo de mim. Talvez por achar
que estava tudo bem, ou algo do tipo.
Suspirei, pensativa.
Matthew chegou logo em seguida, segurava um buquê grande de
orquídeas roxas. Abri um sorriso imenso e corri em sua direção.
— São para você — ele disse, entregando-me as flores.
Eu as cheirei, empolgada.
— São lindas!
— Não tinha na cor laranja, então pedi roxas. Você gostou?
— Claro, eu amei. Muito obrigada!
Aproximei-me para beijá-lo, mas então me lembrei de que eu não
podia. Começamos a rir por isso.
Terminamos nosso passeio algumas horas depois. Foi bem gostoso
desfrutar de cada jardim e de tantas cores vibrantes.
— Não imaginei que você gostasse de lugares assim. Digo, com
flores e contato com a natureza — comentei, quando estávamos voltando ao
hotel dentro do carro.
Eu ainda estava com as orquídeas nas mãos e as olhava com
admiração.
— Na verdade, não é meu passeio favorito. Talvez, se você não
estivesse aqui, eu nunca tivesse ido ao jardim botânico. Mas algo em você
me faz querer ficar mais perto das flores. Não sei o motivo… Talvez tenha
alguma coisa a ver com os sonhos que sempre tive.
— Você nunca me contou detalhes do lugar, só disse que tinha
balanços e que nos sentávamos na grama.
— É um lugar bonito, mas não sei onde fica. Também não sei se foi
fruto da minha imaginação. Mas me lembro de que era um belo e grande
gramado verde, com muitas flores laranja. Bem perto de onde ficávamos
sentados, havia um parquinho onde várias crianças brincavam, com
balanços de madeira e brinquedos como um gira-gira e uma gaiola gínica.
Nós brincamos algumas vezes neles, você gostava bastante, costumava
apostar corrida comigo para escalar a gaiola.
Soltei uma risada breve, imaginando a cena.
Enquanto ele me contava, tentei me lembrar de algum lugar com as
mesmas características a que eu já tivesse ido, mas não me lembrei de nada.
Simplesmente, aqueles sonhos de Matthew eram uma incógnita. Como ele
conseguiu projetar a minha imagem em sua mente sem nem ter me
conhecido antes era uma dúvida mortal, mas não me pressionei demais para
conseguir respostas, porque tive certeza de que não as encontraria.
— Pois é — ele disse, dando de ombros. — Você me faz ter vontade
de cheirar flores e andar ao ar livre. É estranho, eu sei. Mas até que me
diverti bastante hoje.
— Eu também me diverti. Nunca vi um jardim tão lindo em toda a
minha vida. E essas flores que você me deu, Matthew… Nossa, são tão
bonitas!
— Fico feliz que tenha gostado.
A verdade é que qualquer um é capaz de comprar flores, ou até de
arrancá-las de seus caules para presentear alguém, mas o que Matthew fez
naquele dia foi inédito. A forma com a qual me tratou foi diferente.
Para mim, aquelas orquídeas roxas não eram somente um agrado
comprado em uma floricultura, simbolizavam as flores que estavam mortas
dentro de mim antes e que voltavam à vida pouco a pouco. Estavam
florescendo. Não em minhas mãos, mas em meu coração.
Fazia tempos que eu não sentia vida dentro de mim. E estava
experimentando isso naquele momento. Na verdade, havia alguns dias.
Jantamos em família naquela noite, junto com todos os integrantes da
banda.
Nosso segundo passeio foi à Ópera do Arame. Matthew quem
escolheu ir, porque ficou sabendo de uma apresentação musical que haveria
no local e achou que seria divertido assistirmos. Mitch foi conosco, ele
também estava ansioso para assistir a esse concerto.
Gostei do local, era bem grande e a estrutura tinha teto de vidro, o que
permitia que o sol nos alcançasse e aquecesse.
A apresentação foi bem bonita, mas mais bonita ainda foi a expressão
de Matthew enquanto ouvia a música. Ele sorria lindamente, com
pensamentos longínquos.
Em certo momento, eu estava com a mão sobre as pernas, quando ele
percebeu e aproximou o dedo mindinho do meu. Entrelaçamos os dois em
segredo e ficamos assim até que o musical acabasse, certos de que ninguém
estava vendo.
Mais para o final da tarde, fomos ao parque Tanguá. Ficamos na parte
superior, e lá de cima conseguimos ver uma linda vista. Arrumamos um
lugar para sentar e esperamos pelo pôr do sol, enquanto ouvíamos o barulho
de águas pendendo em um lago que ficava na parte inferior do parque. Foi
bem relaxante e bonito. Apaixonante também.
Quando o sol já estava escondido e o céu escurecia aos poucos,
Matthew se levantou para buscar açaí para tomarmos antes de irmos
embora.
— Quer que eu vá? — perguntei.
— Eu me viro — ele disse. — Vou fazer mímica até que me
entendam.
Soltei uma risada e o analisei enquanto se afastava. Ele andava com
um gingado natural e único, o que fazia ficar extremamente atraente. Seus
cabelos soltos e ondulados se moviam com o sopro da noite, espalhando um
arrebatador brilho.
— Ele está feliz — Mitch disse, fazendo-me voltar à Terra
novamente. — Está muito feliz que te encontrou. Acho que nunca o vi
assim.
— Ele falava bastante de mim?
— Sim. — Mitch sorriu. — Mas esperava os momentos certos para
falar. No começo foi difícil tirar esse segredo dele, mas depois acabou
confiando em mim para conversar a respeito.
— Ele me disse que você é o único amigo que sabia sobre os sonhos.
— Sim. Descobri na marra, na verdade. Tínhamos dezessete anos e
estávamos de férias depois da última turnê. Fui passar alguns dias com ele e
percebi que estava bem estranho…
— Estranho, como?
— Calado. Ele sempre foi muito brincalhão, agitado, falante… Então
notei a diferença na hora. Eu o chamei para sair, mas nem isso quis. Depois
de muita insistência, me contou sobre os sonhos. Disse que tinha mandado
você não aparecer mais.
— E acreditou em tudo o que ele disse?
— Claro que não, mas os amigos são para isso, não é mesmo? Achei
que ele estava com algum problema emocional, ou com muito cansaço
mental, mas nunca disse isso a Matthew.
— Você é o melhor amigo dele, foi muito bom ter tido alguém para
desabafar.
— Eu sei. Estou realmente feliz por ele, de verdade. É como se
fôssemos irmãos, sabe? Sinto-me privilegiado em te conhecer, a
protagonista de A menina dos meus sonhos.
— Obrigada, Mitch. Toda essa recepção de vocês para comigo foi
muito importante.
— Você é parte da família agora. — Deu batidinhas em meu joelho.
Matthew chegou pouco depois, segurando três potes de açaí.
— Mitch, experimente isso — disse, animado. — Vai ser a melhor
coisa que vai comer na vida.
Comemos enquanto observávamos o céu e a progressividade de sua
cor diminuindo.
Fomos embora tarde, satisfeitos com nosso dia.
Na manhã seguinte, fomos todos andar de trem. Toda a banda, Anne,
eu e Elliot. Fechamos um vagão de classe A em estilo imperial só para nós
e viajamos de Curitiba a Morretes.
Foi uma viagem encantadora, a começar pela decoração do vagão,
que nos remetia aos anos de 1930 com cadeiras pretas e estofadas em
capitonê. Nas laterais do vagão, havia duas grandes sacadas ao ar livre, que
nos permitiam ter uma visão geral de grandes montanhas e um horizonte
belíssimo. Não fiquei com medo de sair e observar a paisagem pela grade
do balcão, pois Matthew foi comigo e ficou atrás de mim me segurando
enquanto parecíamos estar andando em alta velocidade.
Passamos por várias pontes altíssimas e senti a adrenalina me
tomando todas as vezes que olhei para baixo e percebi o quanto estávamos
em alto nível. Também passamos por treze túneis e ele me roubou beijos
enquanto o vagão inteiro estava escuro.
Nossa viagem de ida durou um pouco mais do que quatro horas e,
para animar ainda mais o passeio, Matthew cantou enquanto Mitch
batucava na mesa em um ritmo admirável e Steve, o guitarrista, tocava em
seu violão.
Foi muito divertido. Cantei todas as músicas e ainda me atrevi a
dançar com Anne e Elliot, mas admito que fui péssima com os passos e até
cheguei a pisar no pé dele. Pedi desculpas mil vezes e o tio de Matthew riu
da minha cara, puxando-me para dançar mais uma vez.
Comemos algumas coisas bem saborosas enquanto estávamos no
vagão e, à noite, jantamos todos juntos em um restaurante próximo ao hotel.
No nosso quarto dia livre em Curitiba, fui sozinha com Matthew a um
bosque. Queríamos paz e privacidade, então achamos que seria um passeio
interessante, levando em consideração o tamanho do lugar e a quantidade
de árvores.
Ele teve a ideia de alugar bicicletas em vez de ficarmos andando, o
que facilitaria seu reconhecimento pelos fãs. Mas eu disse que não sabia
andar de bike, por nunca ter tido a chance de aprender.
Primeiro, ele caçoou de mim, depois disse que alugaria uma com dois
lugares. Sendo assim, aceitei a proposta.
A bicicleta era amarela e tinha um banco ao lado do outro. Ajudei a
pedalar, mas tive a impressão de que Matthew estava fazendo a maior parte
do trabalho sozinho. Felizmente, ele não reclamou disso.
O dia estava bem bonito, o sol brilhava lindamente entre as árvores
pelas quais passávamos, refletindo em nosso rosto e corpo. Tudo a nossa
volta era verde, repleto de árvores e flores. Até chegamos a presenciar
macaquinhos e esquilos subindo em alguns troncos altos e grossos.
— Esquilo! — exclamei, apontando para cima.
Matthew fez uma careta, enquanto procurava pelo que eu estava
falando. Acabara me esquecendo e falando em português. Corrigi-me em
seguida e ele entendeu do que se tratava, depois me elogiou pela pronúncia
da palavra.
— Dessa vez você disse squirrel certo — disse, com um sorriso no
rosto. — Parabéns.
— Você já pode me ensinar outra palavra.
— Vou pensar em uma bem difícil. — Olhou em volta, pensativo. —
Thunderstorm. Acho que está vindo uma tempestade por aí.
Olhei para as nuvens, repetindo a palavra.
— Tempestade? Mas está ensolarado.
— Olhe bem para aquela nuvem. — Apontou. — Está mais escura do
que as outras. Tenho certeza de que vai chover.
— Espero que não agora, não quero me molhar.
Matthew me observou por um instante. Não consegui decifrar seu
olhar, mas fiquei absorta por sua beleza. Ele estava com os cabelos soltos e
o brilho do sol contrastava com alguns fios dourados. Seus olhos risonhos
exibiam uma cor linda de verde misturado com azul.
Quis muito beijá-lo, mas não vi possibilidades, uma vez que
estávamos em público. Não havia muitas pessoas naquela região onde
estávamos andando de bicicleta, quase ninguém na verdade, mas não seria
prudente testar a sorte. Já havia muitas fotos minhas na internet. Passei a ser
o foco nos últimos dias, todo mundo queria saber quem eu era e não
demoraria muito para que certas informações chegassem a Luiz.
Para minha sorte, ele não era muito antenado na vida dos famosos,
então certamente ainda não tinha visto nada sobre mim na internet.
Conversamos por horas, eu e Matthew, enquanto pedalávamos.
Acabamos encontrando um lugar escondido entre as árvores para nos
sentarmos um pouco. Nossas pernas já estavam bem cansadas.
Apesar de calor, o céu já não estava mais tão azul. Agora carregava
várias nuvens acinzentadas e cheias de chuva. Alguns pingos de água nos
alcançaram assim que descemos da bicicleta.
— Vai começar a chover — comentei.
— E o que tem?
— Matthew! Não quero me molhar.
— Você já tomou banho de chuva alguma vez na vida?
— Não.
— Não? — Ele levantou as sobrancelhas, com uma expressão
brincalhona. — Não sabe o que está perdendo.
— Precisamos ir a algum lugar coberto agora mesmo.
— Não, não precisamos. Vamos tomar banho de chuva hoje.
— Você sabia que pode ficar gravemente resfriado com esse banho
que tanto quer tomar?
— Quem te disse isso?
— Meu pai.
— Sinto em te informar, mas seu pai te privou de uma das melhores
coisas da vida. Você vai amar se molhar na chuva, vai até se sentir mais
leve depois.
Olhei bem para ele e percebi que eu não teria saída. Não tive nem
tempo de dizer mais nada, a chuva começou a engrossar.
— Como é que vocês chamam essa chuva aqui no Brasil?
— Chuva de verão?
— Isso! É chuva de verão, meu amor, logo vai passar. Aproveite
enquanto tem tempo.
Fiz careta enquanto comecei a sentir as gotas engrossando e me
molhando aos poucos. No começo, achei a sensação bem gelada, mas
depois melhorou. Senti-me estranhamente quente, inclusive.
A chuva ficou cada vez mais pesada. Matthew começou a dar risada,
sentindo a camiseta colar-se ao seu corpo, toda encharcada.
Não pude deixar de notar a definição de seu abdome através da
camiseta. Apesar de magro, ele tinha um tanquinho de invejar, e braços
completamente definidos, assim como pernas compridas e bem delineadas.
Entrei no clima, comecei a rir também. Na verdade, nem sei direito o
motivo da risada, mas não consegui parar de rir junto com ele.
— Vamos, tire o sapato — pediu.
Obedeci e os guardei em cima do banco da bicicleta. Depois,
Matthew pegou minha mão e me puxou. Começamos a correr contra a
chuva, nos molhando ainda mais.
As gotas escorriam pelo meu rosto e colavam a roupa ao meu corpo.
Levantei o braço livre e abri a mão, sentindo como se minha alma
estivesse sendo lavada.
— É bom, não é? — perguntou, sorrindo.
— Muito. — Ri ainda mais, enquanto eu pulava na grama e sentia a
água respingando em mim. — Isto é muito bom!
Joguei o pescoço para trás e aproveitei a água caindo com força em
meu rosto. Senti Matthew me observando, enquanto soltava risadas.
— Tem noção do quanto é linda? — perguntou.
Olhei para ele, com um sorriso no rosto. Cada parte do meu corpo
escorria água.
— Você tem noção de que tudo isso é seu, não tem? — devolvi.
— Tudo meu?
— Sim, tudo seu.
Ele se aproximou lentamente, mas percebi suas intenções com
rapidez. Seus olhos estavam fixos em mim e suas mãos pareciam sedentas
para me tocar. Quando próximo o suficiente, eu o parei, com a mão em seu
peito.
— Só não aqui. Aqui eu não posso ser sua. Somos só… conhecidos.
Matthew olhou de um lado para o outro e disse:
— Estamos sozinhos, Marília.
— Você não sabe disso.
— Veja com seus próprios olhos. Não tem como ver nada através
desta chuva.
— Quer saber, não sou nem sua conhecida. Somos desconhecidos, e
desconhecidos não se beijam.
— Olá, meu nome é Matthew Bennett Lewis. É um prazer te
conhecer. — Ergueu a mão para apertar a minha em sinal de cumprimento.
— Ah, não seja bobo! — Dei risada.
— Quero te conhecer, te achei muito bonita. Como é seu nome?
— Marília, mas pode me chamar de Lia — respondi, entrando no
clima da brincadeira.
— Lia, você não vai me cumprimentar?
Observei sua mão estendida e ergui a minha também, apertando-a e
balançando-a para cima e para baixo.
— É um prazer te conhecer — eu disse.
— O prazer é todo meu. — Olhamo-nos por um instante, ainda com
as mãos dadas. Matthew me olhava tão fixamente, que fiquei nervosa a
ponto de morder o lábio inferior. Ele estava todo encharcado, com os
cabelos pingando e muitas gotas escorrendo pelo rosto. Pela sua boca. —
Sabe, Lia, não sei como você vai reagir a isso. Sei que acabamos de nos
conhecer, mas eu quero muito te beijar. Eu deveria me conter, mas está
parecendo ser mais forte do que eu.
— Leve em conta as circunstâncias, Matthew.
Ele puxou a minha mão e meu corpo inteiro foi para a frente, de
encontro ao seu.
Olhamo-nos de perto e sussurrou:
— Que se danem as circunstâncias.
Então, segurou meu rosto e colocou sua boca na minha. Beijamo-nos
de maneira apaixonada e intensa, as línguas sedentas dançando uma sobre a
outra. Apertei-o com força contra mim e suas mãos passaram para a minha
cintura, onde me segurou com força e tirou meus pés do chão.
No segundo seguinte, eu estava com as costas prensadas contra uma
árvore, e Matthew me beijando com toda vontade que lhe enchia. Segurou
meu cabelo e mordeu meu lábio, passando a língua sobre ele.
Até aquele momento, eu nunca tinha sido beijada daquela forma, com
tanta intensidade e euforia. Todos os nossos outros beijos foram
maravilhosos, apaixonados, de tirar o fôlego, mas esse foi feroz, cheio de
vigor.
Gemi no meio do beijo, tamanha sua delícia. Matthew me segurava e
passava a mão em mim como se realmente fosse tudo dele, como se
quisesse tudo ao mesmo tempo.
— Meu Deus, Marília. — Ele ofegou. Também me esforcei para
respirar enquanto tive a oportunidade. — O seu beijo é… a melhor coisa
que já experimentei.
Eu não disse nada, só o puxei para mim e o beijei mais. Minhas
pernas estavam tremendo, tamanho o prazer que aquele beijo me deu.
A água da chuva continuava caindo sobre nós molhando, inclusive,
nossa boca sedenta.
Aproveitamos ao máximo aquela chuva, pois formava um manto
branco em volta de nós e não se via mais nada ao redor. Deixei que
Matthew me segurasse contra si e passasse a mão em mim, assim como
também me prensasse ainda mais contra o tronco da árvore.
Busquei ar desesperadamente enquanto ele beijava meu pescoço e me
mordia.
— Quero tirar a sua roupa — ele arquejou. — Eu quero muito mesmo
tirar a sua roupa.
Apreciei ver o último pingo de sanidade que ele tinha naquele
momento ir embora.
Não vou mentir, gostei de vê-lo daquela forma.
Mas a verdade é que, mesmo que eu tivesse pensado muito em me
entregar totalmente para ele, aquele não seria o lugar apropriado para isso.
Não ao ar livre. Com certeza me sentiria muito exposta, correndo perigo
demais.
— Alguém pode nos ver — comentei.
— Não tem problema, não tem mesmo problema.
— Você é famoso — lembrei a ele.
— Céus! — Fechou os olhos e suspirou. — Por quê? — Fez uma
careta pesarosa.
Comecei a rir.
— Não posso ser toda sua aqui, Matthew, não dá.
— Eu sei, eu sei. Tem razão. É que você é tão maravilhosa que acabei
me excedendo. — Respirou fundo e soltou o ar com força. — Me desculpe.
Olhei-o por um momento e, sem que eu pudesse prever que isso
aconteceria, fiz uma leve comparação com a atitude que Luiz tomaria em
seu lugar. Com certeza, nem ligaria para meu bem-estar, nem muito menos
para minha opinião, ou sua reputação. Ele simplesmente teria tirado minha
roupa e me forçado a fazer sua vontade.
Foi instantâneo, amei ainda mais Matthew por ter parado, por não ter
me forçado a nada. E, por consequência, tive ainda mais vontade de fazer
amor com ele. Por vontade própria.
— Está tudo bem, essas coisas acontecem.
Matthew encostou seus lábios nos meus e me beijou com carinho,
ainda respirando pesadamente.
— Venha, vamos aproveitar o resto da chuva. — Ele me puxou e
continuamos com a brincadeira até que a tempestade cessasse, pulando em
poças e correndo.
Foi divertido, ri bastante e me senti literalmente livre. Não me
lembrava da última vez que brinquei como uma criança. Acho que nem
quando era realmente uma eu me divertia tanto.
Fomos embora ensopados quando a chuva já havia parado. Fiquei
com bastante frio na volta até o hotel e nem mesmo ficar perto de Matthew
ajudou, pois ele também estava molhado e até parecia mais gelado do que
eu.
Tomamos banho separadamente quando chegamos e depois decidi
fazer um chá antes que fôssemos nos deitar. Já era final da tarde, o céu
começava a escurecer e, apesar de ser verão, o clima não parecia estar tão
bom assim do lado de fora da janela. Alguns galhos de árvores balançavam
inquietantemente com o vento refrescante que soprava.
A cozinha vinculada ao nosso quarto não era muito grande, servia
somente para ser usada em momentos raros. Era basicamente feita por um
balcão comprido e armários embutidos na parede. Na maioria das vezes, os
hóspedes desciam até o restaurante do hotel ou chamavam pelo serviço de
quarto, quando não queriam sair de seus aposentos.
Matthew se sentou no balcão e ficou me assistindo fazer o chá.
Enquanto isso, cantou Matilda do Harry Styles. Sorri ao ouvir a música, eu
gostava muito dela e ficou ainda mais linda em sua voz.
Cantei Matilda com um sorriso crescente nos lábios. Marília estava
tão linda enquanto fazia o chá, que aquele momento mereceu uma música.
Seus cabelos vermelhos como vinho, grossos e pesados, estavam
soltos, e exalavam o cheiro mais profundo e forte de maçã verde. Seus
olhos estavam brilhosos e alegres, envoltos por cílios longos e volumosos.
Suas bochechas coradas demonstravam saúde e uma pitada de vergonha, a
qual eu amava descaradamente. A pele branca e lisa estava exposta a partir
do nível em que seu pijama terminava. Suas belas pernas grossas e
suculentas tinham o contorno mais belo e prazeroso do mundo, e seu
pescoço nu tinha uma curvatura delicada, quase implorando para ser
beijado.
Lembrei-me de seu corpo à mostra, vestido somente por um biquíni,
quando estávamos na praia. Lembrei-me das muitas vezes que dormimos
abraçados, tão próximos, tão colados. Lembrei-me do beijo na chuva, a
vontade que tive de tirar sua roupa. Foi tão intenso, que quase não consegui
me controlar. Graças a Deus a água que o céu despendia estava gelada o
bastante para me ajudar a flexibilizar a severidade da dureza entre minhas
pernas.
Marília estava me matando aos poucos, me espremendo como um
piolho em suas unhas. Mas eu aguentaria, o tempo que fosse necessário até
que estivesse pronta para mim. Ela merecia isso, essa consideração.
A verdade é que, desde que a conheci, eu queria fazer amor com
Marília o tempo todo. Dificilmente passava um minuto inteiro sem pensar
nisso, sobretudo na hora de dormir. Mas eu a amava tanto, que só estar ao
seu lado parecia o suficiente para mim. Seu bem-estar era muito mais
importante do que o meu, então, sim, eu era capaz de abrir mão do meu
prazer e vontade para que a minha garota se sentisse confortável.
Marília me entregou a caneca com a bebida e se enfiou no meio das
minhas pernas. Continuei sentado no balcão enquanto ela ficou em pé na
minha frente. Entrelacei as pernas em suas costas e tomamos nosso chá,
conversando e nos olhando de perto.
Depois, quando terminamos a bebida, Marília correu para debaixo dos
cobertores. Fiz o mesmo, e mergulhei minha cabeça junto a sua. Mesmo em
meio ao breu, consegui identificar seu sorriso.
— O que foi? — Sorri também.
— Andei pensando… — sussurrou. — Eu estou pronta.
— Pronta? — perguntei com ar de dúvida.
Eu já sabia do que ela estava falando, mas preferi ouvir com todas as
letras.
Contudo, admito, só a palavra “pronta” saindo de seus lábios já fez
meu membro pulsar.
Eu a queria tanto que chegava a ser loucura, insano.
Aproximei a boca e sussurrei em seus lábios:
— Me fala o que você quer. Está pronta para o quê?
— Para você — respondeu. — Para você dentro de mim.
Santo Deus.
Ela ia me matar a qualquer segundo, tive certeza disso.
— Tem certeza? — sussurrei.
— Tenho. Eu tenho certeza, Matthew.
Aproveitei a aproximação de nossos lábios para juntá-los. Beijei-a de
forma lenta, profunda, intensa, íntima. As línguas se tocavam, se sentiam
com entusiasmo, com movimentos contínuos e compatíveis.
Respiramos fundo enquanto nossa boca se recusava a parar.
Toquei Marília nas costas e a puxei para mais perto, depois desci a
mão e puxei seu joelho para mim, colocando sua perna na minha cintura.
Ela me envolveu com os braços e me acariciou os cabelos, então passeei
por sua coxa, sentindo a pele macia dela se arrepiar.
O beijo ficou mais intenso, mais caloroso. Passei a boca para seu
pescoço e Marília inclinou a cabeça para trás, soltando um gemido em meio
aos ofegos.
Seu cheiro, o cheiro de sua pele. Nossa. Aquele era um campo
minado do qual eu sairia bombardeado, com toda certeza.
Subi a boca para seu ouvido. Ela arfou mais uma vez. Mordi-a, sem
machucá-la, e respirei fundo.
— Está mesmo pronta? — sussurrei.
— Sim.
— Não pense em mais nada — pedi. Minha voz quase não saía. —
Quero que sinta o que vou fazer com você.
— Está bem.
— O que você disse hoje — beijei seu pescoço novamente, enquanto
minha mão ainda passeava por sua perna. Agora, na parte inferior — sobre
ser tudo meu…
— É. — Ela estremeceu. — É tudo seu.
Gemi com suas palavras, que me atingiram fortemente.
Meu coração pulava, batia com tanta força que poderia quebrar uma
das minhas costelas com facilidade. Eu estava nervoso, mesmo sabendo
com exatidão o que fazer, mesmo tendo praticado o suficiente, mesmo
tendo tanta experiência.
Ela nunca tinha feito amor, nunca tinha sentido prazer. Eu me sentia
na obrigação de lhe dar os dois ao mesmo tempo.
Queria devorá-la, engoli-la de uma vez só, mas não podia fazer isso,
não podia demonstrar minha avidez. Lia merecia que eu fosse devagar, que
fosse carinhoso, amoroso. A transa eufórica ficaria para outro dia, quando
ela também estivesse pronta para isso. Aí, então, eu a deixaria sem ar, sem
fala, sem andar.
Movi nosso corpo de modo que ela ficou por baixo e eu por cima.
Continuei beijando-a, tocando-a.
Senti suas mãozinhas levantarem minha camiseta. Ajudei-a a tirá-la e
joguei a peça de lado. Ela me analisou, acariciou meu abdome, meus
gomos.
— Quantas você tem? — ela perguntou.
— Tatuagens?
— Sim.
— Sessenta, até onde me lembro.
— Quero conhecer cada uma delas. — Seus dedinhos delicados
passeavam pelo meu peito e barriga.
— Claro, como quiser. Você não tem nenhuma, certo?
— Certo. Mas também quero que conheça cada canto do meu corpo.
Olhei-a por um instante, totalmente perdido naquele sentimento,
preso por completo naquele momento.
Segurei a barra de sua camiseta e a levantei com calma. Marília
elevou os braços e me deixou tirar a peça.
— Posso conhecer com a boca? — perguntei cauteloso, salivando,
tamanha a sede que eu tinha dela.
Ela balançou a cabeça positivamente.
— É só que… eu nunca experimentei isso antes.
— Está tudo bem. — Acalmei-a. — Se quiser que eu pare, é só pedir.
Ok?
Ela balançou a cabeça concordando mais uma vez.
Tirei seu sutiã devagar.
Minha garganta pareceu estar se fechando progressivamente.
Eram os seios mais lindos que eu já tinha visto na vida. Duros, cheios,
claros e uniformes.
Reparei em uma cicatriz na altura das costelas, mas até mesmo isso a
deixava ainda mais charmosa.
Beijei seus lábios com carinho, acariciei-lhe os cabelos, depois desci
a boca com cuidado para seu seio direito e o chupei, lambi e beijei.
Marília arqueou as costas e suspirou.
Segurei seu seio esquerdo com a mão enquanto explorava o outro
com a língua. Ela tinha um sabor adocicado, viciante. Continuei até que
tirei alguns gemidos tímidos da minha garota.
Após longos minutos, desci, lambendo sua barriga e acariciando com
as mãos cada centímetro da proximidade.
Quando cheguei ao seu umbigo, eu a olhei e perguntei:
— Posso continuar? Está gostando?
— Muito, continue.
Gostei da sua voz rouca. Era uma voz de súplica. Ela estava gostando,
e não era pouco.
Passei as mãos para seus shorts. Meu coração tamborilava com
ênfase. Tirei a peça com delicadeza, devagar, sentindo meu membro
implorar para ser liberto. Mas ele teria que esperar. A minha garota
precisava de atenção, precisava sentir cada parte de seu corpo ser amada,
cuidada.
Ela estava vestida com uma calcinha vermelha, simples, sem rendas,
lisa. Estudei seu corpo seminu e esbelto na minha frente, era a obra de arte
mais bem-feita do mundo. Não havia defeitos, era tudo lindo, atraente,
encantador. Perfeito.
As coxas grossas, a barriga lisa, os seios incrivelmente redondos, os
cabelos ruivos bagunçados, os lábios inchados suplicando.
Olhei bem nos olhos de Marília. Ela estava respirando rápido, o peito
subindo e descendo, as mãos nervosas, ansiosas.
— Você é linda — eu disse. — É a mulher mais linda do mundo.
Ela sorriu, tímida.
— Não há nada em você que eu não ame — continuei. — Cada parte
sua é perfeita.
Sua respiração estava se acalmando aos poucos, pude perceber.
— Não tem como me decepcionar. Você me faz sentir como se eu
fosse o homem mais sortudo do mundo.
— Eu sou a mulher mais sortuda do mundo por te ter.
Também sorri.
— Você está se sentindo bem?
— Muito.
Ela estava mais calma, a respiração em ordem.
Peguei sua calcinha e a tirei com diligência. Deus do céu, ela era
linda. Muito linda. Estava depilada, bem-cuidada, pronta para mim.
Sem que eu precisasse falar ou fazer nada, Marília abriu as pernas,
dobrando os joelhos. Acariciei-as e me inclinei, aproximando-me cada vez
mais.
Beijei sua barriga mais uma vez e desci até chegar ao ponto em que
eu queria. Abocanhei-a, beijei-a, lambi-a, suguei-a, brinquei com seu
clitóris e arranquei diversos gemidos de Marília. Ela arqueava as costas e
segurava meu cabelo com força.
Seu gosto era delicioso, ainda mais doce do que imaginei.
Extremamente saborosa. Eu nem acreditava que estava mesmo fazendo
aquilo com a garota dos meus sonhos. O prazer que eu experimentava
alcançava uma proporção de extrema grandeza. Impossível de ser medido,
ou contido. Ela nem precisaria me tocar, só o que eu estava fazendo já seria
suficiente para me levar às nuvens.
Continuei manobrando a língua nos pontos certos e, então, coloquei
um dedo nela. O gemido que veio em seguida foi diferente, carregava alto
nível de prazer. Uma imploração.
Continuei, dei o melhor de mim em cada segundo daquele ato.
Dediquei-me a cada suspiro, ofego e gemido, que eram cada vez mais
constantes.
Quase não acreditei quando senti meu dedo sendo apertado.
— Matthew — ela suplicou. — Oh, meu Deus, Matthew!
Continuei. Ela me apertou mais.
Deus do céu. Quase não acreditei. De primeira.
— Matthew! — quase gritou, meu nome saindo de sua boca foi como
música aos meus ouvidos.
Continuei. Ela apertou meu cabelo e gemeu profundamente. Logo
depois seu corpo tremeu, vacilou, sacudiu.
Chupei seu prazer, seu doce e primeiro orgasmo. Tinha gosto de mel.
Levantei a cabeça e a olhei. Estava descabelada, com os fios
espalhados pelo travesseiro, a respiração rápida, as bochechas vermelhas, os
braços e as mãos caídos no colchão.
Cheguei perto de seu rosto e beijei sua boca. Mordi seu lábio inferior
e o chupei.
— Como está se sentindo? — sussurrei.
— Isso… Isso foi…?
— Um orgasmo — concluí.
Ela sorriu tão lindamente que senti o estômago se revirar. Depois
segurou meu rosto e me beijou novamente.
Eu me envolvi no beijo, colei meu corpo ao dela propositalmente para
que sentisse minha ereção. Abracei-a e acariciei todas as partes que pude.
Quando me dei conta, eu estava tirando desesperadamente a roupa
que ainda me restava. Marília me observou em silêncio enquanto eu pegava
um preservativo e o colocava em mim. Em seguida, deitei-me sobre ela
mais uma vez e a senti abrindo novamente as pernas para mim, para eu me
encaixar.
Beijei-a profundamente enquanto me posicionava em sua entrada.
Quente e úmida. Entrei aos poucos, com a impressão de que eu morreria a
qualquer momento.
Se eu morresse, morreria feliz.
Quando entrei por completo, pude contemplar a sensação de estar no
lugar mais delicioso e apertado em que eu jamais estive. Não havia
comparação, ela era mesmo perfeita. Gostosa, estreita, molhada,
escorregadia, aconchegante.
Comecei os movimentos olhando diretamente para seu rosto. Seu
olho esquerdo parecia querer explodir de tão amarelo. Nossas respirações
ofegantes se fundiam por conta da proximidade das bocas, e os gemidos se
encontravam no ambiente.
Nem em todos os meus sonhos, imaginei que tê-la daquela forma
seria tão bom quanto estava sendo.
Ela levantou as pernas e entrelaçou os pés nas minhas costas, o que
me deu mais espaço. Eu me enterrei e voltei diversas vezes e me vi mais
alucinado do que nunca.
Fiz tudo com cuidado, apesar da loucura, com todo o carinho que eu
tinha dentro de mim. Não havia dúvidas do quanto Marília estava gostando,
ela fechou os olhos e franziu as sobrancelhas em uma expressão de prazer,
ofegando. Estava tão perdida quanto eu.
Suas bochechas e lábios ficaram muito vermelhos após um tempo,
contrastando em sua pele branca.
Ela abriu os olhos e achei incrível como o esquerdo estava amarelo. O
azul também estava vibrante, de uma maneira que eu nunca tinha visto
antes.
— Matthew — sussurrou, segurando meu rosto, olhando-me
fixamente enquanto eu ainda entrava o mais fundo que podia.
Suas palavras entraram em minha boca, tamanha nossa proximidade.
— Fale, meu amor.
— Eu te amo. — Ela suspirou, ofegante. — Nossa, eu te amo tanto!
Continuei os movimentos e a beijei mais uma vez, sentindo o quanto
minha língua e a sua desejava uma à outra. Depois, encostei os lábios em
seu ouvido e sussurrei:
— Eu também te amo, Lia.
— Nossa… — ela disse, fechando os olhos novamente e me
segurando com força. — Parece que vou explodir.
Beijei seu pescoço e arfei com seu cheiro. Aquilo estava tão bom que
não me cansaria nunca. Eu a desejava tanto, que nunca achei que fosse
possível querer tanto alguém. Tudo nela me satisfazia, exatamente tudo.
— Exploda para mim — pedi, continuando com os movimentos
profundos e apaixonados.
Entrando e saindo com eficiência e frequência.
Não demorou até que ela intensificasse a careta e arranhasse minhas
costas. Adorei sua reação: abriu a boca e emitiu um gemido grave enquanto
me apertava.
Encostei minha testa na dela e senti meu membro sendo esmagado em
seu interior quente.
Não aguentei mais. Minha visão escureceu com o prazer que me
consumiu por inteiro, fazendo todo o meu corpo vibrar e amolecer em
seguida. Caí do penhasco em queda livre e explodi da maneira mais insana
que já havia experimentado.
Os corpos tremeram juntos, fundidos em um só.
A intensidade do que senti anulou todas as minhas outras
experiências. Foi mais forte, mais especial, mais real.
Beijei toda sua face vermelha e suada enquanto ela arrumava meu
cabelo, tirando-o do meu rosto.
Depois, deitei-me ao seu lado e a abracei com carinho, segurando-a
contra mim, sem querer soltá-la nunca mais. Ela fez o mesmo, enlaçou-me
com força e fungou no meu pescoço algumas vezes, até que percebi que
estava chorando.
— Me desculpe — ela disse, afundando o rosto em mim.
Fiquei tão preocupado, que quase chorei junto. Repassei as últimas
horas em minha cabeça e me perguntei várias e várias vezes se eu tinha
feito algo de errado, algo que pudesse tê-la machucado de alguma forma.
— Eu te machuquei? — perguntei, com o coração na garganta.
— Não, de forma alguma.
— Então, meu amor, por que está chorando assim?
Marília chorava de forma sentida, tocante e profunda; segurando-me
com força contra si e suspirando em meu pescoço.
— Porque foi perfeito. Senti-me amada por você, Matthew. Nunca
tinha experimentado algo assim na vida. E… E eu… Eu também senti
prazer. Você conseguiu me proporcionar as duas coisas.
Fiquei feliz em ouvir isso e entendi que aquele momento ainda
pertencia a ela, então deixei com que chorasse até que não houvesse mais
lágrimas em seus olhos. Demorou, mas esperei pacientemente, aninhando-a
em meus braços.
— Me desculpe — ela disse, mais uma vez.
— Você não precisa se desculpar por nada, está tudo bem.
— Eu amei, Matthew. Amei fazer amor com você pela primeira vez.
Achei engraçado o fato de ela estar chorando, desculpando-se e me
agradecendo ao mesmo tempo, então soltei uma risada curta.
— Eu também amei. Você é tudo, e ainda mais, do que sonhei.
— Obrigada. Obrigada por tudo isso.
— Não precisa agradecer.
Ela limpou as lágrimas dos olhos e sorriu. Beijei-a algumas vezes no
rosto e continuei segurando-a contra mim.
— Você é muito bom nisso, Matthew.
Seu comentário me fez querer recomeçar tudo e fazer novamente.
Outras várias vezes. A noite toda, talvez. Mas decidi esperar pela vontade
dela, não quis exagerar.
Eu sabia que um dia ela se doaria completamente e faria amor comigo
sem hesitar, mas por enquanto quis ter cautela.
— Você não faz ideia de quanto é boa nisso, Marília.
Ela abriu ainda mais o sorriso, depois enfiou o rosto em meu pescoço
novamente. Eu me surpreendi quando começou a rir. Sua risada foi muito
fofa, talvez até envergonhada. Ri junto, segurando-a contra mim.

Na manhã seguinte a levei a Ponta Grossa, a aproximadamente 120


km de distância da capital de Curitiba. O lugar se chamava Buraco do Padre
— literalmente um buraco —, uma caverna vertical com mais de trinta
metros de profundidade e uma cachoeira linda no fundo, com águas
cristalinas.
Quando lá dentro, olhei para cima e observei os raios de luz entrando
pelo túnel pedregoso, iluminando toda a paisagem. Havia vários
passarinhos voando em círculos alguns metros acima de nossa cabeça. Eles
cantavam e pareciam ter combinado os movimentos. Achei fantástico.
Marília ficou encantada com os pássaros, acho que até mais do que
com a queda d’água e com o barulho relaxante que ela fazia ecoando
repetidas vezes.
Disse que nunca tinha entrado em uma cachoeira, então adorei vê-la
perdendo a respiração em contato com a água gelada.
Peguei-a no colo e a levei até a cascata que pendia de cima. Percebi
seu medo no começo, mas depois lhe mostrei o quanto era gostoso ter a
água batendo nas costas e ela quis fazer o mesmo. Ficamos embaixo da
cachoeira, sentindo-a massagear nossas costas e braços, por um longo
tempo. Depois tentei ensiná-la mais um pouco a nadar. Em certo momento,
Lia estava tão confiante de que eu não a deixaria se afogar, que subiu em
uma pedra relativamente alta e pulou em meus braços, na água. Peguei-a
sem vacilar e dei muita risada de como ficou animada com a adrenalina.
Ficamos tanto quanto podíamos e fomos embora ao final da tarde,
supercansados.
No sexto e último dia em Curitiba, almoçamos no hotel e ficamos
com a banda, minha mãe e meu tio. Depois, arrumamos nossas coisas para
irmos ao Rio de janeiro.
A viagem de carro com Marília foi longa, levou muitas horas.
Tivemos que sair antes por conta da demora. Todos os outros foram de
avião.
Divertimo-nos nas primeiras horas, jogamos cartas e cantei algumas
músicas para ela; depois Lia dormiu e eu fiquei em silêncio em meu celular,
navegando pela internet.
Tirei algumas fotos suas enquanto dormia, sem que percebesse.
Estava tão linda que tive que registrar o momento.
Depois mexi em minhas redes sociais, postando fotos do Show em
Curitiba e também de alguns passeios. Eu tinha uma equipe especializada
para mexer em minhas redes, mas quis fazer aquelas alterações por conta
própria.
Notei que a imagem de Marília estava sendo especulada. Milhares de
pessoas perguntavam quem ela era e o que tanto fazia comigo. Resolvi não
me pronunciar por enquanto, já que foi isso que combinamos.
Entrei em sua página no Instagram e vi que ela tinha dois milhões a
mais de seguidores do que da última vez que olhei. Todos curiosos
querendo saber sobre sua vida.
Não a vi usar o celular nenhum dia desde que a conheci, talvez ela
nem soubesse como estava em evidência nas redes sociais. Perguntei-me se
não estava se ausentando delas exatamente por essa razão ou se tinha algum
motivo a mais.
Esperei que acordasse para que eu pudesse perguntar.
— Bom… — Ela se endireitou no banco e começou a mexer
nervosamente nas mãos. — Meu celular está desligado desde que fugi da
casa de Luiz. Ele vinculou meu aparelho ao dele através de um aplicativo
que mostra minha localização em tempo real. Então, achei que, se ficasse
desligado, ele nunca saberia…
Trinquei os dentes ao ouvir aquela revelação. A cada dia, eu odiava
ainda mais Luiz. Para mim, ele era o pior ser humano do mundo. Ou talvez
fosse gentileza demais igualá-lo a um ser humano. Um animal da pior
espécie seria melhor para descrevê-lo. Um verme.
— Marília, por que não me contou antes? Poderíamos ter comprado
um aparelho novo para você, ou ter levado o seu a algum lugar para que
desvinculassem sua localização do celular dele.
— Eu sei, mas nem senti falta de ter um, na verdade. Nem tenho
ninguém a quem dar satisfação, Matthew, ou alguém que esteja preocupado
com o meu sumiço.
— Mesmo assim, você precisa ter um celular, é importante até para
manter o contato comigo quando precisarmos. Assim que chegarmos,
vamos resolver isso.
Chegamos ao Rio de Janeiro no dia vinte de dezembro pela manhã.
Eu não estava cansado, pois tinha dormido por algumas horas no carro
durante a viagem, só sentia algumas dores pelo corpo, mas logo ficaria bem.
Fui com Marília a uma loja em um shopping perto do hotel no qual
ficaríamos hospedados e comprei o último lançamento do IPhone para ela.
O modelo era igual ao meu, só mudava a cor.
Ela brigou comigo, insistiu que não precisava de um aparelho tão
caro, mas eu quis comprar mesmo assim. O valor que gastei não fez nem
cócegas em minha conta bancária. Providenciei também uma capinha na cor
favorita dela e coloquei película de proteção.
Fomos descobertos no shopping e logo uma multidão de fãs nos
cercou, então fomos embora logo, nem chegamos a passar em outras lojas
ou estender nosso passeio.
Durante todo o resto do dia, eu e a banda nos organizamos para o
show que aconteceria mais tarde. Fomos mais cedo para a arena e
repassamos as músicas enquanto tudo estava sendo organizado.
Marília assistiu a toda a passagem de som, junto com minha mãe e
Elliot; percebi que ela estava com o celular novo ligado, gravando tudo o
que fazíamos em cima do palco.
Gostei de vê-la bem, isso me acumulou mais forças e ainda mais
vontade de fazer o melhor show de todos os tempos. Eu queria surpreendê-
la, cantar olhando para ela e lançar algumas indiretas que só Lia entenderia.
Não via a hora de poder pegar seu passaporte e ir ao Canadá. Após
aquela turnê, eu estaria livre para ficar pelo menos um ano de férias, só
fazendo músicas e clipes, ou aparecendo em programas televisivos para
aumentar a visibilidade. Eu passaria todo o tempo possível com a minha
garota, levando-a para passear e a amando. Ela começaria as sessões com a
psicóloga e eu a ajudaria a superar seus traumas. Daria uma vida de
princesa à garota dos meus sonhos e poderia dizer a todo mundo que eu a
estava namorando. Não teríamos mais uma vida privada, eu faria questão de
que todos a vissem como uma pessoa especial que roubou meu coração, e a
beijaria em público sempre que eu quisesse.
Aquele seria o último show da minha turnê, depois estaria livre para a
minha Marília. Tudo o que eu queria era passar tempo suficiente ao seu lado
para compensar todos os anos em que estive longe. Ela merecia o mundo,
merecia ser muito feliz, e eu faria isso pela minha garota.
Ela estava pulando, com um sorriso no rosto, quando parou
abruptamente, olhando para a tela do celular. Percebi seu semblante se
desfazendo aos poucos e logo seus braços amoleceram.
Parei de cantar e ninguém entendeu nada. Mitch reclamou e disse
alguma coisa sobre termos que recomeçar a música, mas eu não dei ouvido,
fiquei focado em Marília e no quanto estava estranha, desnorteada. Parecia
como um castelo de areia desmoronando aos poucos.
Ela olhou de um lado para o outro e cambaleou uma vez, mas não
caiu. Foi sutil, acho que ninguém percebeu. Desci do palco correndo, mas
não cheguei a tempo, seu corpo oscilou mais uma vez e caiu no chão,
chocando a cabeça com brusquidão no piso. Pude ouvir o som da batida, o
que fez todos os meus músculos se enrijecerem.
— Lia! — gritei, ajoelhando-me ao seu lado e pegando sua cabeça.
Após meu grito, todos perceberam e deixaram seus postos, correndo
para nos encontrar.
— O que houve? — Mitch perguntou, com os olhos arregalados.
— Não sei — respondi. — Ela só… caiu.
— Ela está sangrando! — Steve disse.
Olhei para minha mão, que estava na cabeça de Marília e percebi que
ela estava coberta por sangue. Meu estômago se revirou e me senti
desesperado, completamente aflito.
— Elliot! — gritei. — Precisamos levá-la ao hospital com urgência!
Peguei Marília no colo, pois estava desacordada. Saí correndo com
ela nos braços até chegar ao carro. Minha mãe entrou no veículo primeiro e
deitei-a em seu colo. Depois, abri a porta do passageiro para entrar, mas
Elliot me deteve.
— Mat, você não pode ir, o show começa daqui a pouco, precisa se
arrumar.
— Você… Você está brincando comigo? Eu preciso ir junto!
— Não, você precisa ficar e fazer seu show.
— Não! Dane-se o show! Eu vou junto, preciso ficar ao lado dela,
Elliot.
— Matthew, você precisa ficar, filho — minha mãe disse, de dentro
do carro. — Vamos cuidar bem dela e te daremos notícias.
— Isso é um absurdo! Eu… Eu não posso ficar, tio! Por favor, saia da
minha frente.
— Olhe para mim, Matthew — meu tio pediu, fitando-me com olhos
duros. — Alguma vez te decepcionei?
— Não, mas…
— Deixe-a comigo, não vou permitir que nada lhe aconteça. Você
precisa ficar!
Senti meus olhos arderem, assim como a garganta.
— Ela vai entender, filho — minha mãe acrescentou. — Nos deixe ir,
querido, precisamos correr.
Olhei para Marília uma última vez e engoli em seco. Elliot entrou no
carro e fechou a porta, pedindo para o motorista acelerar.
Fiquei estático, sem forças para me mover ou falar, olhando minha
garota se distanciar cada vez mais de mim.
Não sei quanto tempo levou para eu acordar, só sei que, quando o fiz,
percebi que estava em uma cama de hospital, em um quarto bem arejado e
claro.
Minha cabeça doía muito e não me lembrava exatamente do que tinha
acontecido para eu ter parado ali. Não me movi, pois cada movimento me
parecia dolorido.
Não vi ninguém, nem meu celular, mas havia uma espécie de
campainha ao meu lado e deduzi que servia para chamar alguém do serviço
de saúde. Apertei-a e esperei, não fez barulho algum, mas o botão ficou
vermelho, então tive certeza de que estava funcionando.
Não demorou para que uma mulher entrasse no quarto. Ela parecia
simpática e vestia um uniforme azul e branco.
— Marília, você acordou! — disse, sorrindo. — Eu sou a enfermeira
Bruna, responsável por este plantão. Como está se sentindo?
— Bruna… — falei sentindo uma dor horrível na cabeça. — O que
houve? Por que estou aqui? Não me lembro de nada.
— É normal não se lembrar, querida, você bateu com a cabeça.
Mesmo assim, vou chamar o médico para conversar com você, ok? Ele vai
tirar todas as suas dúvidas.
— Está bem.
Bruna, antes de sair, tirou meus sinais vitais e os anotou em uma
folha. Depois se retirou e disse que chamaria pelo doutor.
Fiquei esperando por alguns minutos. Havia uma televisão ligada na
parede à minha frente. Estava passando um desenho do Pica-Pau. Assisti
enquanto isso, mas não prestei atenção. Meus olhos estavam na TV, mas
minha mente se via longe.
Perguntei-me se Matthew estava bem, se sabia que eu estava ali.
Lembrei que ele tinha um show e que provavelmente estava em
performance naquele exato momento. Por isso não estava ali comigo, mas
tive certeza de que me encontraria assim que possível.
Ouvi o barulho da porta, mas não movi a cabeça, porque um simples
movimento me fazia sentir muita dor.
Ouvi passos. Logo depois uma voz soou como cumprimento.
Senti um frio enorme passando pela minha espinha. Atravessou
minha coluna devagar, causando-me um forte arrepio.
Tive medo de olhar e estar certa.
Um toque no meu braço me fez encará-lo.
— Olá, Marília. — Ele sorriu. — Que bom que acordou. Vim para
conversar com você, saber se está bem.
Abri a boca e fechei, várias vezes, mas não consegui proferir palavra
alguma, tamanho meu choque.
Era o pai de Luiz, o doutor Marcos.
No segundo seguinte, eu me lembrei exatamente do que acontecera:
eu estava filmando Matthew enquanto ele fazia a passagem de som com a
banda. Recebi uma mensagem pelo Instagram. Era de Luiz, ele dizia que
sabia onde eu estava e que me encontraria para me buscar. Fiquei com tanto
medo que perdi os sentidos e desmaiei.
O medo me dominou, me dilacerou e me corroeu por completo.
Senti uma lágrima quente descendo do meu olho esquerdo enquanto
encarava o doutor Marcos. Ele não sabia que o filho era um monstro, mas
provavelmente sabia que eu o tinha largado.
— Se acalme — instruiu com a voz mansa. — Está tudo bem,
querida. Lembra-se do seu nome?
— Marília — respondi, franzindo os lábios e engolindo em seco o
choro que lutava para se expor.
— Muito bem. Sabe que dia é hoje?
— Dia vinte de dezembro.
— Certo. Sabe onde está?
— Em algum hospital do Rio de Janeiro. Não sei o nome.
— Está certo, tudo bem. Vou colocar uma luz no seu olho, ok? Vai ser
rapidinho. — Fez o que disse, acendeu uma espécie de lanterna e iluminou
meus dois olhos. — Está sentindo dor?
— Sim, muita dor de cabeça. Eu… Eu bati com a cabeça?
— Sim. Fez um corte e precisou de pontos. Está tudo bem agora, é
normal sentir dor. Vou prescrever um medicamento para te ajudar com isso,
está bem?
— Sim — concordei. Olhamo-nos por um momento de completa
aflição. Outra lágrima desceu pela minha bochecha, silenciosa e
amedrontada. — Doutor Marcos, eu… — Não sabia o que falar, só queria
pedir e suplicar para que ele não avisasse o filho sobre meu paradeiro. — O
que está fazendo aqui? Aqui no Rio de Janeiro?
— Eu gostaria de te fazer a mesma pergunta, Marília. Meu filho está
desesperado atrás de você, te procurou em todos os lugares imagináveis.
Até na casa do seu pai ele foi.
— O quê? — Arregalei os olhos e senti minha garganta fervendo. —
Meu pai?
A ideia de ter Luiz atrás de mim era terrível, mas ter Luiz e meu pai
atrás de mim era bem pior.
— Sim. Ficamos preocupados com você! Luiz disse que seu pai
estava te ameaçando e pedindo para que voltasse a morar com ele, então
achamos que tinha te sequestrado ou algo do tipo. Foi necessário ir até lá
para verificar e descartar a possibilidade.
— Eu não vejo meu pai há anos! Isso não faz sentido…
Após minha fuga, meu pai nunca mais foi atrás de mim, nunca nem
me mandou uma mensagem. O que Luiz disse ao pai dele era mentira, uma
desculpa para justificar o fato de eu ter ido embora. Claro que ele não diria
a verdade.
— Não precisa ter medo agora, você ficará segura. Não deixaremos
que seu pai te encontre.
— Luiz chamou a polícia? — perguntei. — Registrou meu
desaparecimento?
— Não. Eu sugeri isso desde o primeiro momento, mas ele disse que
preferia não envolver a polícia, porque não queria que seu pai soubesse do
seu paradeiro. Ele te procurou em toda São Paulo, Marília, não descansou
nenhum dia sequer. Está desesperado atrás de você, com medo de que esteja
passando necessidade. Onde esteve? Onde dormiu? Tem se alimentado
bem?
Claro. Quase caí na risada. Se chamasse a polícia e me encontrasse,
Luiz correria um grande risco, se eu dissesse o que andava fazendo comigo.
Por isso preferiu buscar sozinho.
— Marcos… Você avisou que estou aqui? — minha voz até falhou,
tamanha a dificuldade para pronunciar as palavras. — Avisou Luiz sobre
meu paradeiro?
— Avisei, Marília. Assim que chegou. Meu filho te ama, está
desesperado atrás de você.
Meu coração começou a bater tão rápido, que parecia querer rasgar o
peito. Senti um medo insuportável me dominando quando me dei conta de
que, se chegasse antes de Matthew, Luiz me levaria de volta para casa e me
manteria em cárcere privado.
Imaginei o quanto eu apanharia quando chegasse lá e meu peito doeu
ainda mais, drasticamente.
— Há quanto tempo estou aqui? — perguntei, segurando o choro.
— Algumas horas. Luiz já deve estar chegando. Vocês precisam
conversar. Ele vai te levar para bem longe do seu pai, você não vai correr
mais o risco de ser ameaçada. Vou ajudar com o que for necessário também.
— Marcos. — Segurei seu braço e o olhei com olhos aflitos. — Por
favor, não deixe que Luiz me encontre. Por favor, ele… Ele… Ele me
torturava, fazia exatamente como meu pai. Por favor, diga que foi um
engano e que na verdade não sou eu. Peça para ele ir embora, eu imploro.
— Marília, se acalme — pediu. — Você bateu com a cabeça e está
confusa.
— Não! Eu não estou confusa! — quase gritei, desesperada. — O seu
filho é um monstro! Meu pai nunca veio atrás de mim, era seu filho quem
estava me torturando. Fui embora por causa dele!
— Se acalme — pediu outra vez. Mas a ideia de que Luiz estava
chegando para me buscar me desesperou tanto que seria impossível me
acalmar. — Você não deve estar pensando bem. Luiz nunca te machucou,
Marília. Ele te ama. Consegue se lembrar de tudo o que ele fez por você?
— Ele é um monstro! — gritei. — Preciso ir embora! — Eu me sentei
e arranquei os acessos que tinha nos braços. — Preciso fugir!
Marcos me deteve. Chamou a equipe de saúde e me seguraram para
que eu não fugisse. Debati-me como um peixe fora d’água, mas de nada
adiantou. Fui sedada logo depois, o que me fez parar com os movimentos
bruscos. Tentei gritar, mas não consegui. Adormeci em seguida.
Não sei quanto tempo passei dormindo, não sei se foram horas ou
minutos, mas quando acordei senti uma mão me acariciando o rosto e os
cabelos. Não abri os olhos de imediato, tentei sentir o toque primeiro e
adivinhar de quem era. Daquela vez eu estava bem consciente, sabia
exatamente onde estava e o que acontecera. O quarto estava silencioso, o
que me fez pensar que estava sozinha com essa pessoa, e minha cabeça
ainda doía. Reconheci o carinho por conta de um movimento específico.
Luiz gostava de enrolar os fios de cabelo em seus dedos; Matthew
costumava alisar. Era o meu torturador, eu estava sozinha com ele dentro
daquele quarto e precisava pensar rápido como deveria agir antes de deixá-
lo notar que eu estava acordada.
Precisava ser gentil com ele, não podia ser rude ou deixá-lo nervoso,
isso só pioraria as coisas. Era a mesma estratégia que eu usava quando
ainda morávamos juntos, sempre fazia suas vontades e agia como se ele
fosse o melhor marido do mundo; isso o deixava feliz e evitava as brigas.
Abri os olhos vagarosamente e me deparei com ele. Eu já estava fora
de casa havia duas semanas, mas tive a impressão de que era bem mais.
Luiz estava pálido, com olheiras de preocupação. Eu quase havia me
esquecido o quanto ele era bonito, seus olhos azuis por trás daqueles óculos
me olhavam com certo alívio. Sua respiração foi profunda quando percebeu
que acordei.
— Meu amor. — Ele suspirou, pegando minha mão e a beijando. —
Fiquei tão preocupado! Graças a Deus que está bem, eu não aguentaria
passar nem mais um segundo sem você.
Fiquei o que pareceu uma eternidade olhando-o em silêncio,
analisando seu rosto e suas feições. Quem diria que um homem tão bonito e
charmoso seria tão rude e monstruoso? Ninguém.
— Fale comigo, Marília. Por que está me olhando assim? Você bateu
com a cabeça, está me reconhecendo?
— Oi, Luiz — minha voz soou baixa, mas nítida.
— Oi, querida! — Ele praticamente se derreteu na minha frente. —
Como você está?
— Estou bem, apesar da dor de cabeça.
— Se quiser, chamo meu pai e peço um remédio para melhorar a dor.
— Está bem, pode ser. — Olhei-o por mais um instante, em silêncio.
Parecia estar calmo, diferente de como eu imaginava que ele estaria.
— Luiz…
— Não, Marília! — ele me interrompeu. — Não quero que se
explique. Só quero voltar para casa com você e recomeçar. Quero
recomeçar do zero, entendeu? Eu te amo de verdade e todo esse tempo que
passamos separados me fez perceber que não consigo viver sem você. Eu
sei que… ainda me ama, não ama?
Engoli em seco. Precisava aproveitar a oportunidade para dizer a
verdade, aproveitar que estava calmo para dizer que não voltaria com ele.
Se ficasse nervoso, pelo menos estávamos em um hospital, não sozinhos em
casa.
— Luiz, eu não o amo — confessei com calma e mansidão,
segurando sua mão na minha. — Você foi muito bom para mim no começo
e tenho muito a te agradecer por ter me salvado do meu pai, mas… sabe que
não posso voltar para você, não posso correr o risco de… bem, sabe do que
estou falando.
— Na verdade, não enxergo as coisas como você, Marília. Eu nunca
fiz mal a você, sempre te dei tudo de que precisava, sempre fui carinhoso e
amoroso com você…
— Com exceção das vezes que me bateu e me estuprou, certo?
Luiz fez uma expressão de surpresa, de susto.
— Eu nunca te estuprei — ele sussurrou, com os olhos arregalados.
— Você é minha esposa, não foi estupro!
— A partir do momento que você força alguém a fazer sexo não
consensual, isso é estupro, não importa se sou sua esposa ou uma
desconhecida.
— Mas… eu não achei que… Sei que extrapolei em algumas coisas,
mas não pensei que seria um motivo para você sair de casa. Tirando esses
momentos que citou, eu sempre fui um bom marido. Você deveria olhar
para as partes boas do nosso relacionamento, não para as ruins.
— Luiz, não ter motivos para ficar já é um bom motivo para partir.
Mas, neste caso, tive muitas razões para não ficar, você sabe disso.
— E as partes boas? Não se lembra?
— As partes ruins anularam as partes boas, me desculpe.
— Isso não é justo — ele sussurrou, indignado.
Meu sangue ferveu com aquelas palavras. Segurei-me muito para não
explodir bem na frente dele, mas tentei ao máximo ser gentil, para não
piorar nossa situação.
— O que não é justo? Ter fugido de um homem que me estuprava
apontando uma arma para a minha cabeça? Ter tentado me libertar de uma
casa trancada com cadeado para eu não sair? Ter tentado desaparecer para
não apanhar mais?
— Eu fiz tudo isso por amor! — Ele piscou algumas vezes e depois
me mostrou olhos cheios de lágrimas. — E a arma… é um fetiche. Eu
nunca… Nunca a usaria de verdade.
— Você é doente, Luiz. Isso nunca foi amor. Ninguém que ama faz
coisas como essas.
— Mas eu te amo de verdade.
— Uma pessoa que ama de verdade respeita o momento da outra, se
importa com o prazer dela também. Uma pessoa que ama dá flores em dias
não comemorativos, te leva para passear e te agrada para te ver feliz. Uma
pessoa que ama de verdade, conversa e se importa com seu ponto de vista,
se importa com o que você pensa. Uma pessoa que ama de verdade toma
um chá e canta para você só porque ama seu sorriso. Pega sua mão
enquanto estão caminhando porque seu toque é a única coisa que importa
no mundo e, na hora de dormir, deita ao seu lado e te beija com carinho,
fica te olhando até que pegue no sono. Isso é amor, Luiz. Amor é ser
companheiro, amigo, confidente, é demonstrar tanta confiança que você
acaba contando seus maiores e piores segredos, e tem certeza de que ficarão
bem guardados.
— Como tem certeza de todas essas coisas? Por acaso você esteve
com outro homem?
— Agora você quer saber onde eu estava?
— Sim, agora parece que importa saber onde estava.
— Eu estava com Matthew.
— Matthew? — Franziu o cenho. — Você quer dizer, MatLew?
Aquele cantorzinho de merda?
— Sim, com ele mesmo.
Luiz começou a rir. Gargalhou, na verdade. Depois soltou minha mão
e se levantou da cadeira. Andou de um lado para o outro, com as mãos na
cabeça.
— Você está brincando, não está? — perguntou, com olhos duros e
aflitos ao mesmo tempo.
— Não estou brincando. Não devo satisfação nenhuma a você, Luiz,
mas quero que saiba que passei as últimas duas semanas com Matthew e
que foram os melhores dias da minha vida.
— Você não deve satisfação para mim? — Percebi sua raiva
aparecendo no tom de voz. Ele coçou a cabeça e me olhou fixamente,
esperando que eu voltasse atrás no que havia dito. — Você é minha esposa!
— ele gritou, furioso, o que fez meu corpo enrijecer na cama. — Você me
traiu?
— Eu não sou sua esposa, Luiz. Nosso relacionamento acabou no dia
em que você me pediu em casamento.
Ele andou em minha direção e eu soube naquele momento que as
coisas não estavam boas para o meu lado. Mas eu precisava ter dito a
verdade, precisava deixar bem claro que eu não voltaria para casa com ele.
Senti meu braço ser apertado com força enquanto Luiz cerrava os
dentes e me olhava de perto.
— Você acha que sou idiota, Marília? Acha que vou deixar você ir
embora assim? — Ele chegou ainda mais perto e quase encostou sua boca
na minha, então sussurrou enraivecido: — Você vai voltar para casa
comigo, está entendendo? Não estou pedindo, isso é uma ordem.
Não sei de onde saiu aquela força de dentro de mim. Eu deveria estar
com medo, deveria ter começado a chorar e implorar para que ele não
fizesse nenhum mal a mim, mas, em vez disso, gritei:
— Você não manda em mim! — Puxei o braço com força, sentindo a
pele dolorida latejar. — Não sou sua esposa e nem muito menos sua
propriedade, seu idiota!
— Como é? — Luiz parecia estar babando de tanta raiva. Estávamos
tão perto, que suas palavras respingaram em meu rosto. — Vou deixar uma
coisa bem clara aqui, Marília: se você não voltar comigo, eu te mato. Não
importa onde esteja, eu vou te encontrar e vou te matar.
— Que amor é esse, hein? — perguntei sarcasticamente e comecei a
rir. — Prefiro morrer a voltar para casa com você, fique sabendo disso!
— Não zombe de mim, Marília!
— Então, o quê? Vai me matar agora mesmo? Faça isso, mostre para
todo mundo o monstro que você é, bem aqui neste hospital. Se não fizer
agora, quando eu tiver a oportunidade de sair daqui, irei direto à polícia te
denunciar e faço questão de que apodreça na cadeia.
Não achei que Luiz faria o que fez, não onde estávamos. Ele juntou as
mãos no meu pescoço e apertou com força, até que eu não conseguisse mais
respirar. Comecei a me debater, mas isso não fez com que me soltasse. Não
consegui falar nada, minha garganta estava inteiramente fechada.
Antes que o desespero me tomasse por inteiro, passei as mãos pela
cama e encontrei a campainha. Luiz nem percebeu, estava se dedicando a
me matar naquele momento. Meu pescoço era apertado cada vez mais, com
tanta força que meus sentidos estavam quase se apagando.
Torci para que alguma enfermeira aparecesse nos próximos segundos,
ou então eu perderia a vida da maneira mais trágica que podia imaginar.
Minha visão começou a escurecer e meus sentidos começaram a
falhar.
Pensei em Matthew, foi o que me manteve viva nos próximos
segundos. Se eu morresse naquele momento, morreria feliz por ter realizado
meu sonho de conhecê-lo, e por ter passado pelos dias mais especiais da
minha vida. Mas ele ficaria para trás, ficaria tão triste que isso acabaria com
sua vida também, mesmo que continuasse vivo. Pensar nisso me ajudou a
continuar lutando. Debati-me com força, tentei chutar e bater em Luiz, mas
nada o fez me soltar.
Em um momento específico, tive certeza de que eu morreria, que não
teria a chance nem de ter um último suspiro.
Tentei imaginar a morte por diversas vezes durante minha vida, mas
nunca achei que aconteceria tão cedo.
Senti as pálpebras perdendo as forças, fechando-se.
Então, a porta se abriu e alguém gritou alguma coisa. Não distingui as
palavras e nem quem era, meus sentidos estavam se esvaindo lentamente e
minha vida estava evaporando entre os dedos de Luiz.
Foi neste momento que ele me soltou. Ouvi vozes, havia mais de uma
pessoa agora no quarto, mas não consegui ver quem era. Minha vista estava
embaçada, e minha garganta, ainda fechada. Tentei puxar o ar com
brusquidão, com toda pouca força que juntei dentro de mim. Então, tossi
várias vezes com violência.
Alguém se aproximou e colocou uma máscara de oxigênio em mim.
Eu ainda não conseguia enxergar direito, estava tudo embaçado, tudo
escuro. Ouvi meu nome, alguém me chamando com ímpeto, mas não tive
forças para responder. O quarto ficou escuro no segundo seguinte e não
consegui distinguir mais nada.
Eu sabia, bem no meu íntimo, que não estava morta, e sim
desacordada. Mas me perguntei se teria certeza da morte caso ela tivesse me
encontrado. As pessoas sabem quando estão mortas? Nunca tinha me feito
essa pergunta, mas me pareceu um bom momento para questionar.
Se eu tivesse morrido, talvez tivesse me culpado por ter dito a
verdade a Luiz, por não ter tido mais cuidado com as palavras, por não ter
zelado mais pela minha vida. Mas, as pessoas mortas sentem culpa?
Não consegui respostas para aquela pergunta. Eu não estava me
sentindo culpada, o que me fez refletir se eu estava morta ou não. Acho que
faria sentido pensar que os mortos não sentem nada, nem culpa.
Por outro lado, pensei que eu tinha sido idiota ao dizer o que dissera
com tanta gentileza e cuidado. Na verdade, deveria ter cuspido em Luiz e
ter dito que sim, eu o tinha traído e tinha sido muito gostoso, gostoso
demais. Esse pensamento, junto com a raiva e repugnância que cresciam em
mim, me fizeram ter certeza de que eu estava bem viva. Porque mortos não
sentem nada, certo?
Lutei para abrir os olhos, para voltar à consciência. Havia tanta raiva
borbulhando dentro de mim, que eu queria gritar com Luiz e dizer o
tamanho da repulsa que sentia dele. Queria dizer que, mesmo que ele
tivesse me traumatizado, eu tinha conseguido fazer amor com outra pessoa.
E, de novo, tinha sido gostoso demais.
Eu queria gritar que, mesmo que ele tivesse me prendido, eu tinha
conseguido encontrar liberdade com outra pessoa. E continuar gritando que,
ainda que ele tivesse me espancado, eu tinha encontrado carinho nas mãos
de outra pessoa.
Eu quis bater nele, quis me levantar daquela cama e socar a cara
daquele idiota.
A raiva, a fúria, o desgosto, a repulsa, a cólera me fizeram lutar para
abrir os olhos outra vez.
Mas, quando consegui, a cena com a qual me deparei foi tão forte,
que não pude continuar com meus planos, os planos de socar Luiz até que
ele virasse uma massinha de modelar. Anne estava sentada ao meu lado,
segurando minha mão, enquanto Matthew e Elliot estavam em pé
conversando com três homens fardados, com uniformes da polícia. Uma
enfermeira estava ao meu outro lado, administrando algum medicamento
em minha veia.
— Marília — Anne disse, aliviada. — Que bom que acordou, querida.
Matthew virou o rosto no mesmo instante que ouviu sua mãe
pronunciar essas palavras. Quando percebeu que eu estava acordada, andou
rapidamente em minha direção e segurou minha outra mão. A enfermeira
terminou o que estava fazendo e deu espaço para que ele chegasse mais
perto. O rosto dele carregava tanta preocupação, que fez meu coração doer.
— Meu amor — Matthew disse, analisando cuidadosamente meu
rosto. — Eu estou aqui. Está tudo bem agora.
— Matthew… — tentei falar, sem força alguma na voz.
Mas algo muito forte borbulhava dentro de mim e estava me
incomodando drasticamente. Eu precisava dizer.
— Não se esforce para me dizer nada. Está tudo bem agora, está me
entendendo? Você vai ficar bem, não vou sair do seu lado nem por um
segundo.
— Matthew… Você sabe… Sabe aquela…
— O que foi? — ele perguntou, chegando mais perto. Seus olhos
estavam desesperados e seus lábios, rígidos. — Não se esforce agora, meu
amor. Não precisa me dizer nada.
— É urgente — eu me esforcei para dizer. — Preciso falar…
— Está bem. Então fale, fale para mim o que precisa dizer. Estou te
ouvindo.
— Sabe aquela bomba?
— Sei. — Segurou minha mão com força, sustentando meu olhar.
— Ela vai explodir agora, Matthew. Agora mesmo.
— Ok — ele disse. — Eu vou… — Matthew endireitou o corpo e
olhou para as outras pessoas dentro do quarto, para sua mãe, Elliot, para a
enfermeira e os policiais. — Preciso que todos saiam, por favor. Preciso de
privacidade com Marília agora, conseguem me dar isso? Só alguns minutos.
— Claro — Anne disse, levantando-se. — Vamos Elliot, precisamos
sair do quarto. — Ele obedeceu à irmã e chamou os policiais para saírem
também.
A enfermeira me deu uma última olhada e eu balancei a cabeça
positivamente, demonstrando que precisava daquele momento sozinha com
Matthew.
— Aperte a campainha se precisar — ela instruiu. — Virei no mesmo
instante.
— Está bem, obrigada. Só quero te pedir uma coisa, por favor.
— Sim, do que precisa?
— Não importa o que aconteça aqui agora, não deixe que ninguém
entre no quarto. Só entre se eu apertar a campainha.
— Está bem, querida. Vou garantir que ninguém entre. Você precisa
de privacidade.
— Muito obrigada.
Todos saíram. Matthew segurou minha mão com força e voltou os
olhos para mim. Não consegui decifrar seu olhar, tinha uma mistura de
medo e incerteza, mas ao mesmo tempo demonstrava que eu podia confiar
nele. Sentei-me com muito esforço, por conta da dor de cabeça, e ele se
acomodou ao meu lado, de frente para mim.
— Está tudo bem, meu amor. Estou aqui sozinho com você. Não se
importe comigo, deixe a bomba explodir, ok?
Meus olhos se encheram de lágrimas no momento seguinte e comecei
a chorar. Matthew ficou me olhando, em silêncio, segurando minha mão.
Deixei que as primeiras lágrimas caíssem, mas depois coloquei tudo para
fora. Desabei com força, derramando todas as lágrimas que estavam presas
dentro de mim. Depois gemi, sentindo meu peito doer. Meu corpo estava
em completo colapso, cheguei a tremer enquanto o sentimento de raiva me
tomava.
Peguei o travesseiro que estava atrás de mim e o coloquei de frente
para Matthew, no peito dele. Então, afundei meu rosto e gritei com toda a
força que encontrei dentro de mim, com vigor e fúria. Senti enquanto estava
sendo abraçada, mas não levantei o rosto para ver, só continuei gritando
enquanto meu corpo inteiro tremia.
Quando não havia mais fôlego para o grito, vinha o choro, então eu
soluçava e gemia. Depois, voltava a gritar. Não sei por quanto tempo fiquei
dessa forma, chorando profundamente e gritando até que meus pulmões
doessem consideravelmente, mas pareceu levar horas para mim.
Ninguém entrou no quarto e Matthew ficou em silêncio o tempo todo,
me aninhando em seu peito durante todos os momentos de puro
arrebatamento.
Eu fiquei com raiva, com tanta raiva, que seria capaz de quebrar
aquele quarto inteiro. Por isso, agradeci por tê-lo ao meu lado enquanto a
bomba estourava. Se Matthew não estivesse ali, só Deus sabe como eu
reagiria naquele momento.
Quando acabei, não tinha mais força nas mãos, nem nos braços, nem
nos pulmões. Minha garganta doía, os olhos estavam inchados e o rosto em
chamas. Suor banhava a minha pele por inteiro, e meu cabelo estava
bagunçado, com a franja colada na testa. As lágrimas não estavam mais
descendo, mas o soluço permaneceu. Então veio a tristeza. Senti-me tão
triste, que tive certeza de que logo voltaria a chorar.
Eu não tinha percebido, mas minhas duas mãos estavam fechadas
com uma força violenta. Estavam tão duras que não consegui abri-las
novamente.
Levantei o rosto e Matthew o segurou com carinho. Os olhos dele
estavam cheios de lágrimas também e seu rosto, triste.
— Você está se sentindo bem? — perguntou com o tom de voz baixo
e manso.
— Não — respondi e voltei a chorar.
Mas aquele choro foi silencioso, sem crises.
Matthew limpou minhas lágrimas e puxou meu rosto para depositar
um beijo em minha bochecha. Depois tirou meu cabelo da testa e o arrumou
com carinho.
— Eu estou aqui, meu amor — lembrou, olhando-me nos olhos. —
Não faço ideia de como está se sentindo agora, mas sei que esse sentimento
não é bom. Se eu pudesse, tiraria toda essa angústia de dentro de você e a
transferiria para mim. Mas não posso fazer isso, então só quero que saiba
que estou aqui. Não importa pelo que você passe, estarei ao seu lado. E, se
tiver qualquer coisa que queira de mim neste momento, é só pedir, não vou
medir esforços para te ajudar.
— Obrigada — sussurrei. — Obrigada por estar aqui.
Matthew pegou minhas mãos, mas percebeu que estavam fechadas.
Primeiro as acariciou, depois abriu meus dedos com cuidado.
As duas palmas estavam sangrando, com as marcas das minhas unhas
fincadas.
— Não chame a enfermeira ainda — pedi. — Fique aqui comigo mais
um pouco.
— Claro, o quanto você quiser. — Ele se levantou e pegou um
punhado de papel, depois me entregou para que eu limpasse as mãos
ensanguentadas. Sentou-se de frente para mim novamente e posicionou o
travesseiro na cama, em seu lugar devido. — Está se sentindo bem sentada?
Não quer deitar?
Não respondi nada, só me deitei. Foi um alívio colocar a cabeça em
um lugar macio. Arrastei meu corpo para o lado e abri espaço para
Matthew, que não hesitou em se deitar comigo, ao meu lado.
— Eu amo você, Lia — declarou, colocando meu cabelo atrás da
orelha. — Amo demais. — Os olhos estavam marejados, mas as lágrimas se
recusaram a cair.
— Também te amo. — Eu o abracei, ainda chorando silenciosamente.
— Agora acabou, meu amor. Acabou, está entendendo? Você vai ficar
bem, vai seguir sua vida como sempre sonhou. Vai viajar, conhecer outros
países, vai ter seu próprio quarto, uma família. Não vou deixar que nada te
falte, vou fazer de tudo para que viva uma vida de princesa.
Sorri, mesmo que ainda triste. Cada parte de mim desmoronando em
silêncio.
— Não vejo a hora de tudo isso acontecer — balbuciei.
Ele me beijou a testa e respirou fundo.
— Preciso te pedir desculpas.
— Pelo quê?
— Por não ter vindo com você.
— Matthew, não se desculpe por isso. Eu seria bem egoísta se pedisse
para você abrir mão do seu show para vir aqui comigo. Não fiquei
magoada, entendo perfeitamente sua posição.
— Não paro de pensar que… se eu tivesse vindo, nada disso teria
acontecido. — Passou a mão no meu pescoço com delicadeza, mas mesmo
assim senti dor.
— Está doendo muito. Bem aí onde você está passando os dedos.
— Está roxo. — Ele engoliu em seco o choro entalado em sua
garganta, deu para perceber. — Ele te apertou muito forte, não foi?
Balancei a cabeça positivamente, lembrando-me com clareza do rosto
de Luiz enquanto me enforcava.
— O que houve com Luiz?
— Não precisamos falar disso agora. — Limpou mais lágrimas
silenciosas com cuidado. — Por que não descansa? Acho que vai ser
melhor para você.
— Eu… Eu estou com tanto medo, Matthew! — Um soluço. —
Preciso saber onde Luiz está, preciso saber o que houve com ele. Não vou
conseguir dormir e nem descansar enquanto não souber essas informações.
— A única coisa que sei é que minha mãe e Elliot ficaram com você o
tempo todo depois que chegaram aqui. Mas você estava demorando a
acordar e eles acabaram saindo para comprar algo para comer. Nesse meio-
tempo, você acordou e as enfermeiras explicaram que teve uma crise,
precisou ser sedada. Quando voltaram, você já estava dormindo novamente.
Minha mãe disse que estava resolvendo a papelada da sua internação e
Elliot conversava sobre seu estado de saúde com o doutor responsável pelo
seu caso enquanto você estava dormindo sozinha aqui. Não sei o que houve
depois, só fiquei sabendo que sua campainha tocou, as enfermeiras vieram
até seu quarto e encontraram Luiz tentando te… matar. Como ele soube que
você estava aqui? Eu… Eu não entendo.
— O pai dele, Matthew. O pai dele é o médico de plantão que está
cuidando de mim. Quando me viu, a primeira coisa que fez foi ligar para
Luiz.
— Meu Deus… É inacreditável que tudo isso tenha acontecido. É
inacreditável! Estou com tanta raiva, não posso imaginar esse cara fazendo
isso com você! Meu coração está doendo por te ver assim, não paro de
pensar que, se eu estivesse aqui ao seu lado, nada disso teria acontecido. Eu
deveria ir atrás dele e… O que quero fazer com esse sujeito é tão horrível
que não posso dizer em voz alta, mas este desejo está enchendo meu
coração e fazendo-o pesar dentro do meu peito. Você é… Você é minha
garota, Marília. Prometi te proteger, prometi estar sempre com você…
— Matthew — chamei sua atenção em um sussurro. — Não é sua
culpa. Você precisava estar naquele show.
— Nada nesta vida é mais importante para mim do que você, Marília.
Nem mesmo minha carreira, nem todo dinheiro do mundo. Você é minha
prioridade, consegue entender isso? Eu deveria ter vindo para cá junto com
você. — Limpou mais lágrimas pelas minhas bochechas e pousou os lábios
em minha testa, respirando fundo. — Nunca mais vou deixar que isso
aconteça. Nunca mais.
Aproximei-me o quanto pude e o senti me abraçando. Afundei o rosto
em seu peito, confortada pela primeira vez naquela noite.
— Eu confio em você — declarei por fim. — Acredito que vai cuidar
de mim como ninguém jamais conseguiu.
— Eu vou, meu amor. A tarefa mais difícil que vou ter que enfrentar
agora vai ser te soltar. Não quero nunca mais te soltar.
— Então não solte. Fique aqui comigo.
Ele me beijou mais uma vez no topo da cabeça e passou a mão pelos
meus cabelos.
— Ele foi detido. Sei que você quer saber e espero que se sinta
aliviada com isso. Alguém da equipe de saúde ligou para a polícia e ele foi
levado preso. Duas enfermeiras viram o que ele estava fazendo com você e
testemunharam a seu favor. Não precisa mais ter medo. Elliot já ligou para
nosso advogado e entraremos com uma ação para que ele fique muitos anos
preso e nunca mais te perturbe.
Solucei enquanto chorava ainda mais. Desta vez, um choro de alívio e
consolação.
Não pude deixar de pensar que ele poderia se safar e que me
procuraria até do outro lado do mundo se pudesse, só para me matar em
troco do que lhe aconteceu. Tive medo por isso, muito medo. Mas também
me senti aliviada, porque agora eu sabia que a polícia já estava ciente do
caso e eu não precisaria mais esconder nada.
— Sei que me disse que não estava pronta para denunciá-lo, mas
aqueles policiais estão esperando para conversar com você, querem pegar
seu depoimento também. É a sua chance de dizer tudo o que ele já fez com
você enquanto moravam juntos — Matthew aconselhou.
— Está bem, eu vou dizer tudo.
— Muito bem, meu amor. Muito bem. Você é corajosa, vai conseguir.
Lembre-se de que é por uma boa causa, é pela sua liberdade. Depois disso,
ele nunca mais vai poder se aproximar de você.
— Eu farei isso. — Respirei fundo, sentindo seu cheiro gostoso e
reconfortante entrando pelas minhas narinas.
Matthew colocou a mão no bolso traseiro da calça e tirou meu celular
de lá.
— Seu celular ficou para trás quando Elliot te trouxe para cá. Guardei
para te entregar. — Suspirou profundamente. — Acabei lendo as
mensagens que ele te escreveu pelo Instagram, desculpe se isso foi invasão
de privacidade.
— Tudo bem, não tenho nada a esconder de você.
— Você pode usar essas mensagens a seu favor, Marília. As
mensagens que ele te mandou demonstram o quanto esse sujeito é inflexível
e possessivo, e como muda de humor rapidamente.
— Eu sei… Foi por isso que desmaiei. Quando li as coisas que ele
escreveu, fiquei desesperada. Foi como se eu não conseguisse me controlar,
meu corpo ficou muito quente e meus ouvidos começaram a zumbir. No
segundo seguinte, estava tudo preto.
— Você ficou assustada, consigo entender. Depois de tudo o que
passou ao lado dele, é normal que sinta medo.
— Eu fui idiota… Se tivesse pensado melhor, se tivesse refletido
sobre as possibilidades, saberia que Luiz na verdade não fazia ideia de onde
eu estava. Ele disse aquilo só para me forçar a responder, só para me
amedrontar.
— Mas não tinha como você saber se era verdade ou não. Seu rosto
está por toda a internet. Ele poderia facilmente ter te visto e deduzido que
estava aqui no Rio de Janeiro comigo.
— Eu sei, você tem razão. De qualquer forma, não tive estrutura
emocional para parar e pensar, eu só… acreditei e fiquei com muito medo.
Matthew me apertou contra o peito e me beijou a testa mais uma vez.
— Não precisa se preocupar mais com isso, ok? Você está bem agora.
— Você, hum, você chegou a vê-lo?
— Não. Quando cheguei, ele já tinha ido.
— Está bem. Não precisamos mais falar dele agora. O importante é
que não está mais aqui, não é?
— Exatamente.
Olhamo-nos por um instante de pura afeição e paixão. Percebi
naquele momento que meu amor por Matthew era maior do que eu
imaginava. Eu o amava tanto que meu peito parecia inflar. Ele me
transmitia vontade de viver, de experimentar um lado inédito da vida.
Parecia que coisas impossíveis poderiam acontecer ao lado dele, como se eu
pudesse finalmente ter a oportunidade de recomeçar.
E tudo o que eu queria era recomeçar.
Confiei tanto nele, que me senti segura, eu me senti salva em seus
braços. Era um conforto que eu nunca tinha desfrutado na vida, um bálsamo
que inundava meu ser e me dava esperança de dias melhores.
Seus lábios tocaram os meus pela primeira vez desde que nos
separamos naquele mesmo dia à tarde e foi tão bom que me trouxe
refrigério por todo o corpo. Foi delicado e cuidadoso. Como um remédio
para a minha tristeza.
O carinho que veio a seguir me fez fechar os olhos e respirar fundo.
Senti-me grata por tê-lo ali comigo. Mesmo em meio à tribulação,
adversidades e tantos apuros, tê-lo comigo foi a minha salvação.
Perguntei-me como uma pessoa conseguia ter o poder de fazer aquilo
que ele estava fazendo comigo. Seu sentimento por mim era tão verdadeiro,
que arrancava toda a minha aflição e angústia.
Cheguei a pensar, em certo momento da vida, que, quando uma
pessoa aparece como anjo, deveríamos desconfiar. Mas com Matthew foi
diferente. Foi o único anjo verdadeiro que me apareceu, o único que
realmente me amou e me ajudou. O resto não chegou nem perto disso. Eram
demônios vestidos de branco.
O bom da mentira é que ela sempre aparece, e até mesmo os
demônios vestidos de branco um dia precisam tirar a roupa para lavar.
Quando me senti totalmente confortável para falar com outras
pessoas, Matthew saiu do quarto e chamou os policiais. Dei meu
depoimento com todos os detalhes de que me lembrava, sem deixar que
nada escapasse de minha mente. Foi a primeira vez que eu disse em voz alta
tantas barbaridades pelas quais passei, e me senti incrivelmente aliviada por
estar colocando para fora com pessoas que não pareciam estar me julgando.
Pareciam acreditar em cada palavra que saía da minha boca.
Matthew estava ao meu lado, mas não entendeu nenhuma palavra do
que eu disse em português aos policiais. Fiquei feliz por isso, pois eu não
queria que tomasse ciência de tantos detalhes sobre o que passei ao lado de
outro homem. Ele se entristeceria ainda mais.
Passaram-se algumas horas até que o movimento do quarto se
acalmasse. Os policiais foram embora após meu demorado depoimento,
assim como Anne, Elliot e toda a banda. Somente Matthew ficou e não me
soltou durante toda a noite. Dormi em seus braços, sentindo seu cheiro e seu
aconchego.
O dia seguinte foi agitado. Quando acordei, Matthew estava passando
manteiga no pão que levaram para meu café da manhã. Seus cabelos
estavam molhados e denunciavam que tinha acabado de sair do banho.
Senti o cheiro de sabonete fresco inundar o ambiente e achei bem
satisfatório.
Ele desmarcou o Meet and Greet do Rio de Janeiro. Foi o único lugar,
durante toda a sua turnê, em que ele não fez o evento. Os fãs ficaram
chateados, porque esperavam pelo encontro com o ídolo, mas nada fez
Matthew mudar de ideia e marcar para outro dia. Disse que ficaria comigo e
ponto-final. Isso gerou especulação sobre um possível relacionamento com
uma brasileira, a mesma que aparecera no restaurante em São Paulo e no
show em Curitiba.
Tomamos o café da manhã juntos e logo depois as enfermeiras
entraram no quarto para tirarem o curativo da minha cabeça. Analisaram e
disseram que eu poderia ir tomar banho, só não poderia lavar o cabelo.
Matthew fez um coque desengonçado em meus fios e fui ao banheiro.
Não quis tomar banho no leito, dei minha palavra de que conseguiria me
lavar sozinha. Não pude trancar a porta, por precaução, mas nada me
aconteceu.
Quando saí, me troquei e Matthew me ajudou a deitar. Cobriu-me e
me deu um beijo na ponta do nariz, depois colocou algo na televisão para
que assistíssemos em paz, mas a quietude não durou muito. A banda toda,
Anne e Elliot apareceram para me visitar.
Por ordem do hospital, as visitas eram restritas a duas pessoas por
vez, então eles se revezaram para me ver. Foi bem bacana tê-los ali,
conversar com pessoas que pareciam se importar tanto comigo. Anne e
Elliot disseram que o pai de Matthew chegaria ainda naquele dia e também
me visitaria. Fiquei ansiosa para conhecer meu sogro, todos falavam muito
bem dele.
Ao final das visitas, Mitch e Steve entraram no quarto. O primeiro se
sentou ao meu lado e pegou minha mão, enquanto o outro ficou em pé do
lado oposto.
— Você está horrível — Mitch disse.
Esse era seu estilo, sempre brincalhão. Ele nunca perguntaria “Como
você está se sentindo?”. “Você está horrível” combinava muito mais com
ele.
— Obrigada. — Sorri.
— Quem fez esse coque em você? — perguntou.
— Matthew — respondi.
— Sabe, me indigna muito saber que Mat tem cabelo comprido e não
é capaz de fazer um coque decente na namorada dele.
— Pare de importunar a garota, Mitch — Steve pediu. — Nos diga,
como você está? Esse seu machucado na cabeça está melhorando, ou ainda
dói?
— Ainda dói, mas não tanto quanto ontem. Estão me dando bastante
remédio, ajuda muito com a dor. E, Mitch, se acha que meu cabelo está feio,
faça melhor. Não sei se consegue ver, mas meus braços estão
comprometidos com vários acessos, não consigo me mexer tanto.
— Está bem. — Mitch me ajudou a sentar e soltou meu cabelo. —
Fique parada, vou fazer um penteado decente em você. — Ele tomou
bastante cuidado com o machucado que estava na parte de trás da minha
cabeça e penteou os fios com os dedos, até prendê-los em um novo coque.
— Agora sim, você parece gente.
— Obrigada — agradeci e me deitei novamente, com um sorriso no
rosto.
— Devo admitir, está bem melhor mesmo — Steve comentou.
— Mat está com a cabeça no mundo da Lua, coitado. Tentei falar com
ele lá fora e nem prestou atenção no que eu disse.
— É a preocupação — Steve concluiu.
— Ele parecia bem quando estava aqui comigo — declarei.
— Mas os famosos são assim mesmo, conseguem esconder bem suas
emoções. Matthew está há muito tempo no ramo, é fácil para ele fingir que
está bem quando não está. E, claro, ele não quer preocupar você — Steve
explicou.
— Agora vocês que estão me preocupando.
— Não fique preocupada! — Mitch segurou minha mão novamente.
— Você precisa de descanso, ok? Tente entender o lado do Matthew, é
óbvio que ele não está bem! Nem eu estou bem! Nenhum de nós está!
Somos uma família, sabemos o quanto nosso amigo te ama, então é normal
que ele esteja fora de órbita neste momento.
— É verdade — Steve concordou. — Somos uma família, se um não
está bem, nenhum fica bem. Mas vai dar tudo certo, Marília, todos nós
vamos ficar bem, essa nuvem negra vai passar.
— Vai, sim — eu disse, esperançosa.
— Fiz uma lista de lugares legais para Mat te levar quando estiverem
no Canadá, você vai adorar — Mitch disse tentando me animar.
— Obrigada! Vou querer conhecer cada um deles. Você é muito
generoso.
— Não se engane — Steve avisou. — Ele fez isso porque está
querendo ir junto!
— Não é nada disso! — Mitch rebateu.
— É, sim! Você e Matthew sempre passam as férias juntos. Pensa que
não te conheço?
Soltei uma risada e disse:
— Mitch, vai ser uma honra tê-lo conosco nos passeios. Steve, se
quiser, pode ir junto também.
— Obrigado. — Mitch suspirou, parecendo aliviado.
— Pare de ser idiota! — Steve repreendeu-o. — Não vou deixar você
destruir o ninho de amor de Mat! Eles precisam ficar sozinhos por um
tempo!
Os dois começaram a discutir e me levaram às risadas. Quando a
visita deles terminou, eu estava com a barriga doendo de tanto rir das piadas
que contaram. Senti-me muito bem depois disso, nem parecia que eu estava
no hospital com pontos na cabeça.
Matthew voltou para o quarto assim que pôde, quando todas as visitas
acabaram. Deitou-se ao meu lado novamente e me abraçou.
— Eu já estava com saudade — disse, beijando meu rosto.
— Matthew.
— Oi, meu amor.
— Quero te pedir uma coisa.
— Qualquer coisa.
— Não esconda de mim o que está sentindo.
— Por que está me pedindo isso?
— Porque sei que os famosos têm maior capacidade de ocultar as
emoções e quero que confie em mim. Não precisa contar para o mundo
todo, mas não esconda de mim.
— Isso é coisa do Mitch, não é?
— Talvez — admiti. Matthew me lançou um olhar duvidoso,
querendo tirar mais informações de mim. — Ele só disse que você está fora
de órbita.
— Eu só estou preocupado com você, é isso. Não queria sair do
quarto para que outras pessoas entrassem, eu queria ter ficado aqui com
você o tempo todo. Não sei, só tenho medo de que se magoe de novo e isso
me arrasaria.
— Eu sei. Mas estou bem agora, estou bem com você aqui.
— Sabe, fico imaginando o quanto seu coração está triste. Ter visto
Luiz ontem só tornou as coisas mais reais.
Franzi o cenho, confusa.
— Você viu Luiz ontem? — perguntei. — Pensei tê-lo ouvido dizer
que não o viu.
Matthew suspirou.
— Matthew! — chamei sua atenção.
— Desculpe, eu… Eu não queria falar nada sobre isso ontem com
você, fiquei com medo de tocar no assunto e te fazer ficar pior ainda.
— O que houve?
— Quando cheguei, este quarto estava um caos, duas enfermeiras
tentavam segurar Luiz enquanto ele tentava se desvencilhar com raiva.
Quando vi você, estava praticamente desacordada, tossindo. Eu me dei
conta do que havia acontecido e voei para cima dele. Desculpe, não queria
causar uma cena, nem piorar ainda mais a situação, mas… não consegui me
segurar. Quando percebi que ele tinha te machucado, tudo o que quis foi
fazer o mesmo com ele.
— Você… Você bateu nele?
— Sim. Fiquei cego, Marília. Você é minha garota, minha garota!
Não consegui deixar passar em branco. Dei um soco na cara dele, que caiu,
depois subi nele e o enforquei.
Entreabri os lábios, chocada.
— Minha mãe e Elliot entraram em seguida no quarto e me tiraram de
cima dele. A polícia chegou logo depois e o algemaram.
— Entendi. — Tentei imaginar a cena e absorvê-la.
— Está chateada comigo?
— Não, estou aliviada em saber disso. Luiz realmente merecia
apanhar. Obrigada por ter me defendido.
— Desculpe não ter te contado antes.
— Tudo bem, Matthew. Eu só não quero que esconda nada de mim.
Sei que não quer me magoar, mas não ter sua sinceridade só vai piorar as
coisas, ok?
— Está bem.
Abracei-o com carinho e me aconcheguei em seus braços.
— Amo você.
— Eu também te amo, Marília. Mais do que pode imaginar.
— Com licença. — Uma enfermeira entrou no quarto logo depois. —
Você tem mais uma visita.
— Mais uma? — Franzi o cenho. — Não estou esperando mais
ninguém.
Não sei por que, mas, mesmo sem saber quem estava querendo entrar
no quarto, senti medo.
Matthew percebeu minha reação e se levantou da cama.
— Vou ver quem é antes que entre no quarto.
Concordei com a cabeça e o assisti saindo do quarto.
Imaginei mil coisas antes de vê-lo entrar novamente.

Quando passei pela porta, reconheci meu pai. Ele estava segurando
um buquê de flores laranja. Abri o maior sorriso que pude fazer e andei em
sua direção a passos largos para o abraçar.
— Pai! — exclamei, aliviado por vê-lo.
— Filho, que saudade eu estava!
— Eu também, pai, estava com muita saudade.
— Desculpe não ter vindo antes.
— Eu entendo. — Apertei-o ainda mais contra mim. — Fico feliz que
tenha conseguido vir, mesmo com tanto trabalho para fazer.
— Vim conhecer a sua garota. — Ele me soltou e sorriu.
Eu estava com muita saudade do meu pai. Não era sempre que ele
podia ficar comigo enquanto eu estava em turnê, mas me alcançava sempre
que possível, independente de em qual país eu estivesse. Nosso maior
contato era por telefone, mas ele fazia parecer que estava ao meu lado
fisicamente sempre, tamanha nossa intimidade.
Ele era meu maior amigo, meu companheiro, apesar da distância, e o
pai mais amoroso que conheci na vida. E não era assim só comigo, era com
minha mãe também. Estava sempre beijando-a e comprando presentes para
compensá-la pelo tempo distante. Ele costumava dizer que cada minuto
longe dela era perdido, portanto, quando estava perto, fazia todo o
necessário para mostrar seu amor e afeto.
— Acredita nisso, pai? Minha garota existe de verdade!
Ele soltou uma risada. Seus cabelos já estavam em grande parte
grisalhos, mas tinha um rosto maduro e bonito, bastante elegante. Havia um
charme diferente nele, era um verdadeiro galanteador. Seu sorriso era reto,
branco, e seus olhos, profundos e verdes, assim como os meus.
— Isso é ótimo, filho, é ótimo mesmo. Ela está bem? — Apontou
para o quarto onde Marília estava acomodada.
— Sim, está melhorando. Foi só um susto. Infelizmente desmaiou e
bateu com a cabeça no chão, mas logo ficará bem.
— Certo. Depois vou conversar com o médico responsável pelo caso
dela, vou dar uma olhada nos exames.
Meu pai também era médico, médico-cirurgião na verdade, mas
evoluiu para um cientista com o passar dos anos. Passou a não fazer mais
cirurgias em pessoas, agora seu foco era descobrir curas para doenças
atuais. Seu grande sonho era encontrar a cura para o câncer. Havia anos
dizia que estava chegando perto. Eu torcia muito por ele, acreditava em seu
potencial.
— Está bem. Te explico aonde ir depois. Mas me parece que hoje ele
só vai chegar mais tarde, à noite.
— Ok, sem problemas.
— Já passou no hotel? Já viu a mamãe?
— Sim, passei lá antes de vir para cá.
— E essa bolsa? — perguntei indicando uma bolsa masculina que ele
carregava em seu ombro direito.
— É um presente.
— Sério?
— Sim. Vamos, me leve até o quarto, lá eu mostro o que trouxe.
Fiz o que ele pediu, guiando-o até o quarto onde minha garota estava
e o apresentei a ela.
— Marília, este é meu pai, Robin. — Sorri.
Ela se ajeitou na cama e ergueu as sobrancelhas, surpresa. Então,
abriu um sorriso convidativo e disse:
— Olá, Sr. Robin! Que surpresa! Não sabia que chegaria agora.
— Desculpe — ele disse, erguendo a mão e segurando a dela. — Com
toda essa correria, acabei me esquecendo de avisar. Mas é um prazer
enorme te conhecer!
— O prazer é todo meu.
— Desculpe pela minha ausência todos esses dias, estive muito
ocupado com o meu trabalho, mas vim assim que pude.
— Está tudo bem, entendo perfeitamente.
— Estas flores são para você. — Ele as entregou.
Marília se animou ainda mais, recebendo o buquê e cheirando
brevemente.
— Nossa, são lindas! Muito obrigada!
— Que bom que gostou. Fiquei sabendo que essa é a sua cor favorita.
— Sim, é, sim. Obrigada por isso, realmente amei.
— Estou feliz em te conhecer, você é ainda mais bonita do que
imaginei. Matthew falou tanto a seu respeito!
— Obrigada — ela agradeceu novamente, soltando uma risada curta e
tímida. — Eu não queria conhecê-lo nessas condições, estou toda
descabelada.
— Imagine! Eu nunca vi uma cor assim de cabelo, é muito bonito.
Achei uma gracinha quando percebi as bochechas de Marília
enrubescendo.
Eu nunca tinha apresentado nenhuma garota aos meus pais, mas tive
muito orgulho de estar apresentando Marília, especificamente. Seria
impossível não gostar dela, impossível não achá-la tão linda.
— Trouxe algo para vocês. Achei que talvez pudesse ajudar em
alguma coisa — meu pai disse, tirando a bolsa do ombro e a colocando na
mesa mais próxima.
— O que é? — perguntei.
— Não sei quando você vai ter alta, Marília, mas sei que ficar em
hospitais é um tédio. Então pensei em trazer alguns cadernos de Matthew
para vocês lerem e passarem o tempo.
— Você quer dizer… São os cadernos que estou pensando? — ela
perguntou, apontando para a bolsa com a boca entreaberta, um sorriso
brotando nos lábios.
— Exatamente.
— Não acredito! — exclamei. Eu não tinha pedido os cadernos para
ele. Levá-los foi cem por cento ideia de meu pai. Adorei o presente. — Meu
amor, você vai poder conhecer alguns dos meus sonhos.
— Que legal! — Ela sorriu, animada. — Que presente maravilhoso!
— Imaginei que ficariam felizes.
— Obrigado, pai.
Não abri a bolsa, eu a deixei pousada em cima da mesa enquanto
conversamos por mais de uma hora. Amei ver a interação de meu pai com
Marília, eles se deram muito bem. Também aproveitei a oportunidade para
matar a saudade e perguntar sobre as novidades que a distância acarretou.
Mas o foco principal foi a comunicação de meu pai com Marília. Eles
papeavam sem pausas e se conheciam mais a cada palavra.
— Sempre achei que minha história com minha esposa fosse bonita,
mas, quando penso na de vocês, fico extremamente comovido. Quem diria,
não é? Logo no Brasil.
— Também imaginei que a encontraria em qualquer outro lugar,
menos aqui — comentei.
— Na verdade, quando Matthew me contou sobre você, não achei que
você poderia existir de verdade.
— Eu sei. — Marília soltou uma risada gentil. — Conheço essa
história. Anne já me contou.
— Mas mesmo assim apoiei meu filho na busca. Eu o encorajei a
continuar, porque sabia que isso lhe daria forças. Antes de pousar aqui no
Brasil, Mat me ligou tão chateado, contou que a turnê estava acabando e
que não a tinha encontrado…
— Meu pai disse para eu não perder as esperanças, porque a turnê
ainda não tinha chegado ao fim. E, mesmo que chegasse, me ajudaria a
pensar em outra maneira de te encontrar — expliquei.
— Obrigada, Sr. Robin. É importante para mim saber que Matthew
teve alguém ao lado dele encorajando-o com a busca.
— Era o mínimo que eu poderia fazer pelo meu filho. Estou tão
realizado quanto ele por saber que você existe de verdade. Só me pergunto
como, como Mat conseguiu sonhar com você sem ter te conhecido antes?
— Também não sabemos.
— Se ao menos Marília já tivesse viajado para o Canadá antes, talvez
pudéssemos ter nos encontrado lá. Mas ela nunca foi, então temos certeza
de que não nos encontramos antes — disse e dei de ombros.
— Mas você já veio ao Brasil outras vezes — meu pai acrescentou.
— Eu sei, porém, em nenhuma das outras duas vezes que vim, ela
esteve presente em meus shows. E, você se lembra? Minha estada aqui foi
muito rápida, nem passeamos, fiz os shows e fomos embora correndo para a
Argentina.
— Você não esteve no Brasil somente aquelas duas vezes e esta de
agora — meu pai disse, com um meio sorriso nos lábios.
Lancei-lhe um olhar confuso, com o cenho levemente franzido.
— Como assim? — perguntei.
— Viemos uma vez quando você era pequeno, tinha somente quatro
anos na época. Ficamos quase um mês aqui, pois eu estava de férias do
serviço e sua mãe queria muito conhecer o Brasil. Passeamos por vários
estados, mas nossa maior estada foi no litoral.
Eu e Marília nos entreolhamos e acredito que pensamos na mesma
coisa.
— Vocês chegaram a ir para São Paulo? — Marília quis saber,
demonstrando interesse pela conversa e pela resposta que viria a seguir.
Ela pareceu ter tirado aquelas palavras de minha boca. Era
exatamente o que eu estava prestes a perguntar no mesmo momento.
— Sim. Ficamos poucos dias em São Paulo, sua mãe queria conhecer
a rua Oscar Freire e a Paulista. Sabe como ela é para fazer compras.
— Sei… — Balancei a cabeça, pensativo. — Eu não sabia sobre essa
viagem.
— Você era muito pequeno, filho. É normal não se lembrar.
Batidas à porta me despertaram de pensamentos longínquos,
carregados de questionamentos.
— Com licença — a enfermeira pediu. — Desculpe incomodar, mas o
horário de visitas acabou.
— Oh, claro! — Meu pai se ajeitou. — O Dr. Marcos já está aqui no
hospital?
— Sim, senhor, ele acabou de chegar.
— Está bem, obrigado. — Meu pai me abraçou e beijou a mão de
Marília, despedindo-se dela também. — Vou atrás do Dr. Marcos — avisou
ele. — Só para ver se está tudo bem mesmo com você. Depois, vou embora,
preciso descansar após tantas horas de voo. Mas, se amanhã você não tiver
alta, virei visitá-la novamente.
— Muito obrigada, Sr. Robin. Amei a visita.
— Eu também, querida. Filho, na bolsa tem algumas fotos da viagem
que fizemos para cá pela primeira vez. Talvez ajude com alguma coisa.
— Obrigado, pai. Até amanhã.
Eu e Marília nos olhamos quando finalmente sozinhos. Aproximei-me
e peguei sua mão. Ela carregava um sorrisinho sutil nos lábios e olhos
brilhantes.
— Você acha que… — começou.
— Não sei — respondi. — De qualquer forma, pelo que meu pai
disse, eu tinha só quatro anos. Isso não explicaria o motivo de eu ter
começado a sonhar com você aos dez.
— Tem razão. Mas vamos ver as fotos que seu pai trouxe mesmo
assim, pode ser que descubramos alguma coisa. E, ainda que nada seja
desvendado, quero ver suas fotos de quando pequeno, saber se era tão
bonito quanto é hoje.
Sorri e aproximei meu rosto, onde sua outra mão tocou.
— Olha elas aí — Lia disse. — Suas covinhas voltaram.
Às vezes eu me esquecia do quanto Marília gostava das minhas
covinhas. Nas últimas horas, com todos os acontecimentos, acabei não
sorrindo tanto e ela havia percebido isso.
Ampliei o sorriso para que minha garota pudesse desfrutar de
covinhas ainda mais fundas. Seus dedos me acariciaram enquanto nossos
olhos se fundiam.
— Será que agora teremos um tempo para nós? — perguntei.
— Acho que sim. Não falta ninguém para me visitar.
— Que ótimo — sussurrei, aproximando-me ainda mais para que
nossos lábios se tocassem.
Mas, antes que o toque acontecesse, ouvi batidas à porta.
Respirei fundo e Marília começou a rir.
— Ficar internada é assim mesmo — ela disse.
Uma enfermeira entrou e fez todos os procedimentos necessários.
Administrou medicação, mediu a temperatura, aferiu pressão e ainda
perguntou como ela estava se sentindo. Terminou dizendo que o Dr. Marcos
assinou sua alta hospitalar para o dia seguinte, pois os exames estavam em
ordem e os pontos que foram feitos no ferimento da cabeça cairiam
sozinhos. Ensinou procedimento para lavagem do machucado e depois se
retirou, desejando-nos boa noite.
— Achei que o Dr. Marcos viria me ver hoje — Marília comentou. —
Depois de tudo o que aconteceu, ele ainda não apareceu aqui.
— Deve estar envergonhado — concluí. — Afinal, se ele não tivesse
ligado para o filho, nada disso teria acontecido.
— Você tem razão…
— Mas fique tranquila, meu pai foi conversar com ele e deu uma
olhada em seus exames. Se a enfermeira disse que está tudo bem, então não
precisamos nos preocupar. Felizmente, foi só um susto.
— Graças a Deus, foi só um susto. Agora, pegue um de seus cadernos
e se deite aqui comigo.
Fiz o que ela pediu e me deitei ao seu lado. Ficamos espremidos no
início, mas depois nos mexemos e nos moldamos um ao outro. Marília me
abraçou e deitou a cabeça em cima do meu peito, enquanto eu segurava o
caderno aberto no alto. Ela passou o dedo pela página e sorriu lindamente.
— Sua letra é bonita — elogiou.
— Ah, não brinca! É o maior garrancho.
— Claro que não, achei bem fofa.
— Você me ama mesmo — concluí.
— Claro que amo.
— Está pronta para ouvir um dos meus sonhos?
— Claro, prontíssima.
— Vou escolher um aleatório, ok?
Ela balançou a cabeça positivamente e olhou para a folha aberta do
caderno a fim de acompanhar minha leitura.
Comecei a ler:
“Encontrei-me com Lia no nosso jardim. Acho que já posso chamar
de nosso, porque nos encontramos nele cinco anos seguidos e conhecemos
cada canto daquele lugar. É incrível como não sei onde fica, mas me sinto
tão familiarizado com ele, que posso chamar de meu, ou nosso, quando se
trata de mim e Lia.
Ela veio correndo em minha direção assim que me viu, estava tão
linda como em todas as outras vezes. Talvez, neste sonho eu a tenha achado
mais bonita ainda, mas isso porque tenho estado tão apaixonado, que
sempre acho que sua beleza me surpreende.
Sei que já descrevi isso muitas outras vezes, mas é essencial destacar
aqui o quanto seu cabelo estava bonito no momento em que ela corria em
minha direção. Mesmo nunca o tendo tocado, posso imaginar o quanto é
sedoso e pesado. Seus movimentos me cativaram muito, principalmente
porque o sol batia nas costas dela, deixando o vermelho dos fios ainda mais
vibrante. Fico me perguntando como uma cor como aquela pode ser
natural, mas Lia garante que é e eu acredito nela. Na verdade, tudo nela
me parece ser diferente, o que, infelizmente, me faz pensar que a garota não
é real como eu gostaria.
Seu sorriso de orelha a orelha me convence do quanto sou sortudo
por tê-la, mesmo que só nos sonhos. Penso no quanto o resto da população
mundial deve ser infeliz por não conhecer alguém como ela. Isso me
convence de que tê-la em meus sonhos é melhor do que não a ter de forma
alguma.
Foi exatamente o que eu disse para ela neste sonho depois que nos
sentamos na grama. Achei a expressão em seu rosto bem bonitinha.
— As pessoas não sofrem por algo que não sabem que existe,
Matthew. É como aquele ditado diz: ‘O que os olhos não veem, o coração
não sente’.
— Mas sente o vazio de algo que nunca viu. Já sentiu isso? Falta de
algo que nunca conheceu?
Lia refletiu sobre minhas palavras.
— Bom, pensando bem… Acho que você pode ter razão. Não sei se já
te contei isso, mas, quando estou triste, gosto de comer sorvetes de sabores
diferentes. Comer do mesmo sabor é como comer algo que já conheço e,
ainda assim, continuar triste. Então, gosto de experimentar sabores
diferentes e descobrir que, em meio à tristeza, sempre há algo novo que
pode nos alegrar. Certa vez, senti essa necessidade de comer um de sabor
novo, mas já foram tantos que duvidei existir algum inédito para mim.
Nesse momento, senti falta de algo que nunca conheci, algo que eu nem
sabia se existia.
Soltei uma risada com a comparação que ela fez.
— Está vendo? Acho que entende agora do que eu estou falando. Eu
sentiria sua falta sem nem ao menos ter te conhecido. É o que o resto da
população mundial sente neste exato momento por não a ter por perto.
Você é o tipo de pessoa que o mundo precisa ter, o tipo de pessoa que faz a
diferença só com um olhar.
Lia me olhou em silêncio por um momento. Seu olho azul estava
belíssimo, e o verde estava claro, mas não amarelo. Uma espécie de verde-
água bem clarinho.
— O que meu olhar está mudando em você agora, Matthew?
— Tudo. Seu olhar muda tudo.
— Precisa ser mais específico.
— Bem, seu olhar me muda de dentro para fora. A começar pela
minha alma, que é tão solitária sem você. Quando me olha, é como se eu
sentisse um abraço interno, como se almas gêmeas fossem mesmo algo
real. Sinto-me completo por dentro, tão preenchido quanto um copo de
água transbordando. Seu olhar me faz mudar a percepção sobre a vida, ela
se torna muito mais bonita do que realmente é, e me faz ter vontade de
viver para sempre. Meu coração muda também, parece que se infla de
alegria. Você não precisa nem abrir a boca, não precisa me dizer nada, fico
feliz somente em ver a maneira como olha para mim. Seus olhos trazem
esperança de dias melhores, trazem a comprovação de que o amor é real,
trazem cores que aquecem meu espírito e vibrações para meu corpo. Sabe,
sou privilegiado por te ter. Ninguém neste mundo deve ser mais feliz do que
eu neste momento.
O olho esquerdo de Lia ficou amarelo gradativamente e eu soube o
quanto minhas palavras lhe fizeram bem.
— Se meus olhos transmitem tudo isso a você, então não preciso dizer
o quanto amo estar ao seu lado? Nem preciso tentar te abraçar, porque já
está quente por dentro?
— Você só precisa existir, é só o que precisa fazer. E me olhar bem
desse jeito. Enquanto não posso te tocar, seu olhar me basta.
— Estou me sentindo uma superpoderosa. — Ela deu risada e suas
bochechas ficaram levemente rosadas. — Será que consigo dizer mais
algumas coisas só com os olhos?
— O que quer dizer?
— Espere um pouco.
Neste momento, ela ficou quieta, fixando os olhos nos meus. Em seu
rosto, uma careta como se estivesse fazendo força para transferir os
pensamentos diretamente para mim. Comecei a rir e ela perdeu o foco.
— Sabe, você me atrapalhou. Não pode fazer isso quando estou no
meio de um trabalho superpoderoso de telepatia usando os olhos.
— Desculpe — mas continuei rindo.
Ela tentou não rir, mas percebi que estava se esforçando muito para
não cair na gargalhada comigo. De repente, fiz silêncio e a olhei com
seriedade nos olhos. Lia ergueu as sobrancelhas, espantada com minha
mudança de expressão.
— O que foi? — perguntou.
— Acho que aconteceu alguma coisa.
— Que coisa?
— Parece que a telepatia funcionou, estou recebendo umas
mensagens aqui.
— Ah, para de ser idiota!
— É sério! Olhe mais para mim, não pare de olhar.
Ela não desviou os olhos nem por um segundo. Franziu os lábios,
tentando não rir.
— É verdade isso que está me dizendo? — perguntei, com os olhos
arregalados.
Ela ficou imóvel, confusa. Talvez se perguntando o que deveria me
responder.
— Bem, é a mais pura verdade — disse, por fim, demonstrando
confiança. — Está vendo, tenho superpoderes.
— Eu não sabia que você gostava de roubar as coisas… Como é o
nome disso? Cleptomania?
Lia caiu na risada, com as mãos na barriga.
— Consegue guardar esse segredo? Eu disse por telepatia justamente
porque não queria que ninguém soubesse.
Fiz uma expressão de choque.
— Você realmente é cleptomaníaca?
— Roubei uma vez só. Não deve ser algo tão grave assim.
Fiquei realmente chocado, não imaginei que uma criatura tão
bonitinha e pequenina como ela já tinha roubado alguma coisa de alguém.
— O que você roubou?
— Quer que eu conte por telepatia, ou que eu fale de verdade?
— Vai demandar menos esforço se você falar.
Fiquei realmente curioso. No começo, foi tudo uma brincadeira, a
telepatia não existiu realmente, é claro, falei aquilo só para brincar com
ela. Mas, quando me disse que já tinha roubado algo de verdade, eu quis
demonstrar que podia confiar em mim para contar seu segredo.
— Está bem… — ela disse, mas, quando estava prestes a dizer o que
de fato havia roubado, ouvimos sua mãe chamando-a. Ela se levantou
rapidamente e curvou os lábios para baixo. — Nosso tempo acabou, tenho
que ir.
Levantei-me também e a assisti fazendo os movimentos com as mãos.
Os movimentos que faziam meu coração crescer todas as vezes.
— Nos veremos outra vez — prometeu.
Retribuí sua fala em língua de sinais, então ela sorriu e se virou
correndo.
Eu a observei se afastando de mim e então, sem que eu pudesse
prever, Lia se virou e gritou:
— Eu roubei seu coração.
Soltei uma risada, aliviado e apaixonado ao mesmo tempo.
— Faça o favor de nunca devolver — gritei de volta.
Foi um dos meus sonhos favoritos. Ela tinha mesmo roubado meu
coração, mas já fazia tanto tempo que eu nem tinha me tocado de que
agora é mais dela do que meu.”
Quando olhei para Marília, ela estava com lágrima nos olhos.
— Nunca ouvi algo tão lindo — ela disse. — Este sonho pareceu real
até para mim.
Limpei seus olhos, tirando as lágrimas que os marejavam, e sorri.
— Nunca te perguntei, é verdade isso que disse sobre o sorvete?
— Sim. — Ela deu uma risada gostosa entre lágrimas. — É verdade.
Inclusive é verdade que já experimentei tantos que acho que não existem
outros sabores novos.
— Como está se sentindo agora?
— Como assim?
— Está feliz ou triste?
— Ao seu lado estou sempre feliz.
— Mas e aqui? Aqui dentro, como está? — Apontei para o coração
dela. Marília me olhou por um instante, em silêncio, talvez pensando na
melhor maneira de dizer que seu coração estava destruído em mil
pedacinhos. — Você não precisa se sentir mal em me dizer a verdade. Tudo
bem estar triste, ainda mais em suas condições, depois de ter passado por
tudo o que passou.
— Estou feliz porque tenho você, mas carrego uma tristeza sem fim
dentro de mim por tudo o que passei desde a minha infância. Meu coração
está quebrado em mil pedacinhos.
Ela parecia ter lido minha mente, pois disse as mesmas palavras que
pensei sobre seu coração.
— Posso me contentar em ser a cola que vai juntar todos esses
pedacinhos e uni-los novamente.
— É por isso que me sinto feliz por ter você.
— Quero te fazer outra pergunta.
— Fale.
— Você sabe falar em língua de sinais?
— Ah, nossa, eu ia falar sobre isso agora mesmo com você. Quando
leu, fiquei com vontade de perguntar. Qual sinal fazíamos? Pode repetir
para mim?
— Claro — eu disse, depois fiz o sinal com as mãos. — Significa que
nos veremos outra vez. Fazíamos sempre nos sonhos. Você quem me
ensinou.
— Eu sei o que significa. — Ela soltou uma risadinha. — Minha mãe
era tradutora antes de falecer. Falava muito bem em inglês e também em
língua de sinais. Não sei quase nada, mas lembro que ela me ensinou
algumas coisas quando eu era pequena e não me esqueci até hoje.
— Isso é bem curioso.
— Muito — ela concordou.
— Quer que eu leia outro sonho?
— Com certeza. Pode escolher aleatoriamente.
— Está bem. — Abri em outra página do caderno e comecei a ler.
“Estava um dia muito bonito, diferente de ontem. O sol brilhava
lindamente sobre nós e Lia me convidou para deitar-me ao seu lado. A
grama estava alta e praticamente nos cobriu quando nos esticamos sobre
ela. Mesmo assim, consegui ver o borrão de várias flores laranja nos
rodeando. Inclusive, uma estava presa na orelha de Lia. Estava tão linda
daquele jeito, que demorei a tirar os olhos de cima dela.
Aos quinze anos, ela se tornou a menina mais bonita que já vi em
toda a minha vida. Não me parece precoce querer tanto beijá-la. E é só o
que penso o tempo todo, sonhando ou não. Eu queria muito poder beijá-la.
Estávamos tão perto que reparei em cada linha que desenhava seus
lábios grossos e avermelhados. Só pela cor, imaginei que teria gosto de
cereja, mas sinceramente eu não me importaria se tivesse gosto de maçã
verde, assim como o cheiro de seus cabelos.
Acho que é normal para um garoto da minha idade ficar imaginando
esse tipo de coisa. Nunca quis beijá-la tanto como neste sonho.
— O que quer fazer hoje? — Lia perguntou.
— Beijar você — respondi, com toda a sinceridade do meu coração.
— Também quero beijar você.
Olhei-a com mais entusiasmo dessa vez. Fiquei feliz com suas
palavras. Como já conversamos sobre isso antes, achei bacana não ter que
reprimir meus desejos e sentimentos por ela. Sempre soube que havia
reciprocidade entre nós.
— Tive uma ideia — ela disse, tirando a flor da orelha e beijando-a.
Depois a pousou no chão gramado. — Pegue e a beije por cima.
Fiz o que ela pediu. Fechei os olhos enquanto também depositava um
beijo na flor, imaginando os lábios de Lia no lugar.
Não foi a mesma coisa, mas valeu a intenção.
— Fico imaginando como vai ser quando acontecer de verdade —
comentei.
Ela soltou uma risada.
— Espero que aconteça mesmo.
Gostei desse sonho porque me pareceu levar horas para terminar e
sempre gostei dessa sensação de conseguir ficar mais tempo ao lado dela.
Admiramos as nuvens depois disso, porque meu desejo por Lia era
tanto, que achei melhor sugerir que olhássemos para o céu. Foi uma
estratégia para ela não perceber que eu estava loucamente desejando
beijá-la. E para desviar os olhos, a fim de conseguir respirar um pouco.
Ficamos discutindo o formato das nuvens e até imaginamos histórias
entre elas. Lia começou a fazer umas vozes engraçadas e disse que preferia
fazer isso a ler, mesmo que fossem histórias em quadrinhos.
Eu também não gosto muito de ler, então acho que combinamos
nisso.
Falamos sobre como é entediante passar tantas horas debruçados
sobre uma única história. E concordamos que conversar é muito melhor.
— Uma história como a nossa não poderia nunca virar um livro —
ela comentou.
— Por que não?
— Imagine como seria chato resumi-la em algumas páginas? Seria
impossível relatar tudo em algumas horas de leitura.
— Tem razão. Histórias como a nossa precisam ser vividas.
— Vividas intensamente! Faz cinco anos que vivo nossa história, e
quero que nunca acabe. Eu a viveria para o resto da minha vida.
— Eu também. E se a morte realmente for um sono profundo, escolho
sonhar com você mesmo depois que eu não tiver mais vida.
— Assim poderíamos passar milênios nos vendo. Para todo o sempre.
— Sim, para todo o sempre.
— Eu poderia ver você envelhecer. Imagine o quanto seria bom
permanecer neste jardim para o resto de nossa velhice.
— Seria ótimo. Eu poderia ver você com suas primeiras rugas, se
queixando de dor nas costas.
Lia riu.
— Eu poderia… — Sua mãe a chamou, cortando nossa conversa.
Despedimo-nos como sempre e acordei leve, com a sensação de que
Lia será para sempre minha.”
Olhei para a minha garota, deitada ao meu lado. Ela tinha um sorriso
nos lábios. Depois de ter lido aquele sonho em voz alta, pensei ter sentido o
mesmo desejo de beijá-la. Não demorei a fazer isso. Sem dizer nada,
segurei sua nuca e a beijei. A beijei com toda a intensidade do meu ser,
doando tudo o que eu tinha de melhor em meus movimentos e gestos.
Um desejo acumulado de anos sem poder fazer isso refletiu naquele
momento, e nosso beijo foi tão intenso de ambas as partes, que quis morar
nele.
As línguas se acariciaram mutuamente e se deliciaram tanto, que
ofeguei. Continuamos por longos minutos e quis beijá-la até suprir toda
vontade que passei durante todos aqueles nove anos sem poder tocá-la.
Eu a abracei e a apertei contra mim, sentindo suas mãos quentes me
acariciarem com carinho.
Às vezes a realidade parece cair sobre nós como um piscar de olhos, e
foi isso que senti naquele momento. Percebi de súbito que eu podia tocar
Marília, eu podia beijá-la sempre que quisesse e, sim, poderia ser para todo
o sempre, enquanto tivéssemos vida. E, em decorrência dessa reflexão,
desejei com todo o meu interior que ela continuasse comigo em sonhos
após a morte também. Realmente para todo o sempre. Na vida e na morte.
Desgrudei minha boca da sua após um tempo e ela suspirou
profundamente perto do meu rosto, ainda me acariciando.
— Eu te amo, Marília. Nossa, eu realmente te amo muito.
— Também te amo, Matthew. Eu te amo até o infinito.
— Na vida e na morte.
— Sim, na vida e na morte.
Naquela noite, Marília dormiu em meus braços enquanto eu lia outro
sonho. Beijei-a secretamente enquanto ela dormia, depositei selinhos por
todo seu rosto e vários em seus lábios vermelhos, com gosto permanente de
cereja.
Acordei antes dela na manhã seguinte e rodei toda a região atrás de
um sorvete de sabor diferente. Eu nem sabia se ela poderia comer dentro do
hospital, mas imaginei que sim, já que teria alta naquele mesmo dia.
Nós estávamos localizados em um bairro nobre do Rio de Janeiro, por
isso achei que seria fácil achar o sorvete, mas a verdade é que demorei
bastante até encontrar. Entrei em várias sorveterias, mas só vi sabores
normais.
Entre parar para dar autógrafos, tirar fotos e procurar por um sorvete
que pudesse fazer Marília feliz, acabei levando bem mais do que uma hora.
Mas felizmente encontrei o que eu esperava, uma sorveteria gourmet com
vários sabores diferentes, entre eles até bacon, gorgonzola e peixe. Fiquei
com vontade de vomitar só de imaginar aqueles sabores em meu paladar.
Pensei que seria maldade levar um daqueles para Marília, deveriam
ser realmente horríveis. Então quis um que fosse doce, diferente e gostoso.
Acabei levando um de cerveja com mel. Pareceu-me bem estranho de
início, mas, ao experimentar, percebi que era realmente delicioso. Peguei
dois, um para mim e um para ela.
Quando voltei ao hospital, ela já estava acordada me esperando. Já
tinha sido medicada e tomado banho.
— Me desculpe pela demora. — Arfei.
— O que houve? Onde você estava?
— Fui comprar sorvete para você.
— É sério? — Ela abriu um sorriso feliz.
— Sim, espero que goste.
— Mas posso tomar sorvete aqui?
— Você já foi medicada?
— Sim.
— Então a enfermeira vai demorar a entrar novamente aqui no quarto.
Aproveite a oportunidade.
Ela parecia estar bem melhor naquela manhã, não se queixou de dor e
até conseguiu prender o cabelo com mais facilidade, sem se machucar.
Estava animada para ir embora e mais sorridente.
Quando colocou a primeira colherada do sorvete na boca, arregalou
os olhos e ergueu as sobrancelhas.
— Uau! Isso é realmente bom!
— É de cerveja com mel. — Soltei uma risada breve.
— Cerveja? Matthew! — sua voz foi repreensiva.
— Não tem nada de errado nisso.
— Estamos em um hospital — sussurrou, ainda me repreendendo.
— Você vai ter alta daqui a pouco.
Eu me diverti com as expressões dela, com a maneira como comeu
tentando esconder o sorvete para ninguém ver, levando a colher até a boca
com tanta rapidez que até bateu em um dente.
— Você precisa fazer algumas coisas erradas — comentei.
— O que quer dizer?
— O bom da vida é correr perigo. É necessário sair da linha algumas
vezes.
— Nunca fiz algo tão errado, eu acho. Mas gosto de aventuras,
podemos tentar experimentar alguma. O que sugere?
— Sexo em algum lugar público? — as palavras saíram da minha
boca sem que eu pensasse antes.
Claro que falei brincando, mas a verdade é que eu não deveria ter dito
isso, não sabia como ela reagiria àquele convite, nem se perceberia que eu
estava zoando.
Marília parou com a colher no ar e me olhou com a boca entreaberta.
Depois abriu um sorriso curioso.
— Eu topo — ela disse.
Soltei uma gargalhada, surpreso.
— Eu estava só brincando — expliquei.
— Mas eu não.
Parei de rir e a analisei.
— Está falando sério?
— Sim.
— Marília, me dê esse sorvete, está te deixando feliz demais.
— Eu disse que sorvetes com sabores diferentes me deixam feliz.
Aliás, muito obrigada por este, eu amei.
— Por nada. Será que tem álcool nesse sorvete?
— É cerveja!
— Deus do céu, me dê esse sorvete aqui.
— Não!
— Achei que era só o gosto de cerveja, não imaginei que teria álcool!
— Não estou bêbada! Você também está tomando do mesmo sorvete,
por acaso se sente bêbado?
— Não.
— Pois é.
Olhei-a por um tempo, com o cenho franzido.
— É sério? — perguntei novamente. — Sobre o sexo.
— Claro. Mas teríamos que fazer um acordo com certas regras.
Pisquei algumas vezes, incrédulo.
— O que foi, Matthew? — ela perguntou, com um sorriso brincalhão
nos lábios. — Você não gosta da ideia?
— Eu? Hã… Eu gosto, mas… Só fiquei surpreso. Você realmente está
falando sério?
— Tenho algo a te dizer. — Ela moveu o dedo indicador me
chamando para chegar mais perto e eu obedeci. — Eu fiz amor com você
uma vez e foi muito, muito bom. Eu confio em você, Matthew, de verdade!
Quando estou com você, tenho vontade de experimentar coisas novas e, por
incrível que pareça, essa é uma das coisas que eu faria se você quisesse.
Fiquei feliz com o que ouvi. Muito feliz, na verdade. Mas não pelo
sexo, pela atitude dela, pela coragem que estava tendo de encarar seu
trauma de frente e cabeça erguida.
— Você tem me mostrado que não preciso ter medo de ser amada por
você. Não preciso ter medo de fazer amor com você. Não com você.
— Estou orgulhoso, meu amor.
— Eu quero tentar, quero mesmo. E, se você não quiser, tudo bem,
podemos tentar outras maneiras de tornar nossos momentos íntimos cada
vez mais especiais. De qualquer forma, vai me ajudar. Preciso provar para
mim mesma que momentos como esses têm de ser vividos com intensidade.
— Você é a mulher mais corajosa do mundo — sussurrei. Depois
encostei minha boca na dela e a beijei brevemente. — Me diga, quais são
suas regras para o acordo?
— Bem, não pode ter ninguém olhando e talvez um lugar muito claro
me faça ficar bem envergonhada. Um lugar aberto demais também me fará
sentir muito exposta.
Comecei a rir.
— Você descartou quase todas as minhas possibilidades.
— Quase?
— Sim, quase. Acho que cinema se encaixa dentro das suas regras. Se
a sala estiver vazia, claro.
Marília pensou por um momento, analisando minhas palavras.
— Podemos pensar sobre o cinema.
— Então vamos pensar sobre o cinema — disse. — Ainda não temos
nada certo.
— Está bem.
Comemos os sorvetes até o fim, conversando mais sobre o assunto.
Achei lindo como Marília estava verdadeiramente disposta a se libertar dos
fantasmas do passado.
Aproximadamente uma hora depois, a enfermeira entrou no quarto e
disse que eu poderia me arrumar para deixarmos o hospital. Gostei bastante
da notícia. Aquele dia eu me via especialmente bem, nem parecia que
estava com um machucado na cabeça e marcas roxas no pescoço.
Matthew comprou sorvete para mim mais cedo e comemos juntos. Foi
uma experiência muito boa, e me deixou ainda mais feliz. Sorvete sempre
faz isso comigo, especialmente de sabores novos ou desconhecidos.
Arrumamos nossas coisas e nos preparamos para ir embora enquanto
papeávamos sobre assuntos aleatórios. Com Matthew, até isso se tornava
engraçado e interessante.
Ele também transparecia estar bem naquela manhã, estava sorrindo
mais e sendo bem solícito.
Antes de irmos embora, ouvimos batidas à porta. O Dr. Marcos entrou
no quarto com as mãos enfiadas no jaleco e olhos baixos. Matthew se
aproximou de mim e passou o braço pelos meus ombros, puxando-me para
si. Acho que foi uma forma de mostrar que estava ali para me proteger se
fosse necessário.
Foi estranho olhar Marcos nos olhos, fazia-me lembrar que ele não
tinha acreditado em mim quando disse que seu filho era um monstro e, por
consequência disso, me sedou e me deixou vulnerável até que Luiz
chegasse.
— Olá, Marília — ele disse, um pouco sem jeito.
— Olá, Marcos.
— Como está se sentindo?
— Bem. Sinto-me bem em saber que vou sair deste hospital, não é um
ambiente muito agradável e não me traz boas lembranças.
— Eu… Eu entendo. Olha, me desculpe não ter vindo aqui no seu
quarto ontem, eu só… estava tentando colocar a cabeça no lugar e processar
tudo o que aconteceu.
— Não tem problema, as enfermeiras cuidaram bem de mim.
— Que bom — ele disse, depois parando e me olhando em silêncio
por um instante. — Preciso te pedir desculpas. Por favor, me perdoe.
— Não guardo mágoa de você, Dr. Marcos. Sei que não sabia de nada
e entendo que esteja tão surpreso com essa história toda.
— Eu… Eu nunca soube, Marília. Nunca imaginei que meu filho,
meu filho, fosse tão brutal. Por que não me contou antes? Eu poderia ter
tentado ajudar de alguma forma.
— Você não acreditaria, assim como não acreditou quando eu disse
aqui no hospital.
— Me desculpe — ele disse novamente. — Não sei o que dizer para
melhorar essa situação. Só… Eu quero que saiba que sempre gostei muito
de você, sempre foi uma nora muito gentil e amável.
— Obrigada.
— Você tem meu telefone, não tem?
— Tenho.
— Me ligue se precisar de alguma coisa, estarei disponível para
ajudar com o que for necessário. Isso não tem nada a ver com Luiz, ele
nunca vai saber. Tem a ver comigo e com o que acho que é justo. Por favor,
me ligue se precisar de qualquer coisa. Meu carinho por você vai continuar.
— Está bem, obrigada. Ligarei se for preciso.
— Você… vai ficar bem?
— Dr. Marcos, fui torturada pelo meu pai, depois passei dois anos
sendo torturada pelo seu filho. Acha que vai ser fácil ficar bem? Algumas
cicatrizes nunca se fecham, parecem estar imperceptíveis por fora, mas por
dentro ainda sangram. É exatamente assim que me sinto no momento.
Preciso seguir com a vida, tentar esquecer. Mas por enquanto ainda está
bem difícil.
— É tudo muito recente, eu sei.
— Acho que nunca vou superar, nunca vou me curar totalmente, mas
eu vou seguir em frente, não vou me negar a desfrutar uma vida que ainda
pode ser maravilhosa. Então vou me esforçar e passar por tudo isso de
cabeça erguida, na esperança de dias melhores.
— Você vai viver uma vida maravilhosa, você merece isso. Não
conheço alguém que mereça tanto. Saiba que torcerei por sua felicidade e
que farei o máximo para que meu filho cumpra a pena dele.
— Agradeço. Saber que ele está preso me ajuda bastante.
— Está bem, então… Eu acho que é isso. Vocês podem ir embora
agora. Eu só precisava… desculpar-me. — Ele respirou fundo. — Me
desculpe, Marília, novamente.
— Eu desculpo. — Abri um sorriso curto, sem mostrar os dentes. —
Espero que fique bem, sei que não está sendo fácil para você também.
—Vou ficar bem — ele afirmou. — Desejo o mesmo a você.
— Obrigada.
Fiz menção de ir embora. Matthew entendeu, portanto tirou seu braço
dos meus ombros e pegou todas as nossas coisas. Despedi-me uma última
vez de Marcos e deixei o hospital.
Fui o caminho inteiro perdida em pensamento, refletindo sobre minha
última conversa. Matthew não tinha entendido nada, pois conversamos em
português, mas não ficou me questionando, só me abraçou no caminho e
tentou me transmitir conforto.
Quando chegamos ao hotel em que toda a banda, Elliot e os pais de
Matthew estavam hospedados, nos juntamos para o almoço. Passamos horas
conversando e me senti tão acolhida, que acabei me esquecendo por um
instante das minhas aflições e dores.
Eu e Matthew nos recolhemos no final da tarde e subimos para o
nosso quarto. Estava cansada e precisava de um banho urgente para relaxar.
Deitar na cama e me cobrir com um edredom decente era tudo o que eu
queria.
Tudo aconteceu com naturalidade, como se fosse a coisa certa a fazer.
Chamei Matthew para tomar banho comigo e ele aceitou. Foi a primeira vez
que o vi nu daquela forma, tão exposto pela claridade do banheiro.
Ele me olhou, assim como olhei para ele também. Seria hipocrisia da
minha parte se eu não exaltasse o que estava vendo, o corpo de Matthew era
lindo, extremamente bem desenhado da cabeça aos pés. Seus músculos
demonstravam completa definição, não havia nada fora do lugar, inclusive
seu abdome tinha gomos e seus braços, músculos firmes. Apesar de magro,
estava altamente bem alinhado. Eram 1,83 metros de pura perfeição.
Seus cabelos, ainda secos, estavam soltos e levemente bagunçados.
Os fios não eram grossos como os meus, eram finos e um pouco rebeldes,
apesar de lisos. Faziam ondas bonitas até poucos dedos abaixo dos ombros.
Pude ver suas tatuagens com mais clareza. Nossa, elas só o deixavam
ainda mais bonito e charmoso. A maioria ficava em seu braço esquerdo e
eram distintas, não tinham nada a ver uma com a outra. Umas pequenas e
outras um pouco maiores. Havia uma âncora, um coração, uma caveira, um
pirata, uma menina segurando uma flor laranja, uma xícara de café e um
violão, entre outras coisas. Em seu abdome, bem em cima do estômago,
havia uma borboleta, e avistei uma tatuagem pequenina em sua perna, era a
palavra Brasil, em uma letra muito bonita e fina.
Garanti a mim mesma que passearia por todo o seu corpo até
conhecer todas as tatuagens e tê-las de cor em minha mente.
Seus pés eram grandes, finos e ossudos, assim como as mãos e dedos
de unhas curtas.
Seu membro era… Deus, seu membro era grande, grosso e cheio de
veias aparentes.
Desviei os olhos, envergonhada. Não era como se eu nunca tivesse
notado, óbvio que eu havia — e sentido—, mas o ambiente estava claro e
acabei conseguindo ver com mais nitidez todos os detalhes.
Matthew era extremamente sedutor, em todas as partículas de seu
corpo. Ele conseguia me fazer estremecer com somente um olhar.
O verde de seus olhos me fitava com ganância, passeando pelo meu
corpo também. Senti um pouco de vergonha por estar completamente nua
na frente dele em um lugar tão claro, mas me mantive firme.
Matthew sorriu enquanto me olhava.
— Você é tão bonita… Nunca vi um corpo tão perfeito na vida.
Senti ainda mais vergonha, porque aquelas palavras foram a
confirmação verbal do quanto ele estava me olhando. Mas continuei me
mantendo firme.
— Você também é muito bonito. O que faz para manter um corpo
assim, tão firme?
— Além de pular e correr durante horas em todos os shows? Quando
formos para minha casa, no Canadá, você vai ver, tenho uma rotina bem
árdua de exercícios. E também corro todas as manhãs.
— Isso é bem… saudável. Nunca fiz nada disso.
— Se quiser, pode começar a ter uma vida saudável de exercícios ao
meu lado depois que viajarmos.
— Seria bem legal.
— E você, o que faz para ter um corpo tão bonito?
Soltei uma risada tímida.
— Eu como.
Matthew riu também.
— Você é linda, Marília. Muito linda.
Descobri naquele dia que banhos podem ser muito mais do que
banhos. Foi tão perfeito que eu não me importaria de ficar ali para sempre.
Matthew lavou meus cabelos, passou o xampu com muito cuidado
para não abrir os pontos. Depois, passou creme e penteou com os dedos,
acariciando-me vez ou outra. Fez o mesmo com o cabelo dele ao passo que
eu me ensaboava.
Beijou-me enquanto deixava a hidratação em nossos fios agir e foi
extremamente refrescante e escorregadio. Eu nunca havia sentido uma
sensação tão gostosa de duas peles se tocando e se escorregando.
Sua boca desceu pelo meu rosto e tocou meu pescoço. Arfei com a
nossa proximidade e com a delícia daquele toque. Foi como um remédio
para aquela região dolorida e ainda arroxeada.
Àquela altura, o banheiro já se via todo esfumaçado e eu não estava
mais com muita vergonha da minha nudez. Matthew tratou tudo com tanta
naturalidade, que me deixei levar pelo momento e não me senti mal por
isso.
Era diferente a sensação de querer tanto alguém a ponto de me
sufocar. Era diferente aceitar a mão de alguém no meu corpo e realmente
ficar bem com isso. Era diferente não conseguir respirar direito por
experimentar tanto prazer. Prazer. Era diferente sentir prazer. E tudo aquilo
era tão bom que dificilmente eu conseguiria comparar a outra coisa. Tive
certeza de que era bem melhor do que o sorvete, muito mais saboroso, e me
deixava ainda mais feliz.
Sentir-me amada era diferente.
Encontrei um motivo para me doar, encontrei um motivo para me
entregar a Matthew. Ele me amava. E eu conseguia sentir isso em cada
toque cuidadoso de suas mãos.
Somente seu cuidado e sua vagarosidade me mostravam o quanto ele
estava se esforçando para não me magoar, não me abalar, não me causar
mais traumas.
Retribuí cada beijo, cada toque escorregadio e não tive medo. Pela
primeira vez, não tive medo, nem um pouco.
Eu ainda não sabia muito bem como tomar atitudes, e nem como fazer
isso sem me sentir embaraçada, então não encostei as mãos em lugares
audaciosos, mas me atrevi a segurar Matthew com mais força contra mim,
demonstrando que ele poderia seguir em frente sem receios.
— Você está se sentindo bem aqui? Digo, aqui dentro do chuveiro? Se
sente confortável com isso? — perguntou em um sussurro, me olhando de
perto, com a respiração pesada.
— Sim — sussurrei de volta, balançando a cabeça positivamente.
Matthew encostou sua testa na minha e sorriu. Um sorriso que
demonstrava orgulho. Então, me beijou mais uma vez. Passou as mãos pelas
minhas costas e desceu para minha cintura; depois, em um movimento
ardiloso, me ergueu em seu colo. Travei as pernas em sua cintura enquanto
ele me segurava contra si e me beijava sem pausas.
Fizemos um amor devastador, avassalador. Em algum momento, me
perdi em meio a tanto prazer, Matthew conseguiu me levar a um lugar que
eu nem sabia que existia. Foi diferente daquela vez, mesmo que eu não
soubesse prontamente o motivo de ter sido assim. Talvez tenha sido mais
intenso. Os corpos escorregaram um no outro com muito mais destreza,
muito mais facilidade. Ele entrava em mim com assertividade, em
movimentos extraordinários e vigorosos, e passava as mãos com veemência
nos lugares corretos, como se soubesse exatamente onde me tocar e como
me tocar.
Foi perfeito, ofegante e profundo. Apetitoso, delicioso e saboroso.
Agradável, doce e amoroso.
Eu estava tão entregue, que gemi e ofeguei incontáveis vezes.
Matthew encostou minhas costas no azulejo e me beijou de uma forma
íntima. As línguas dançaram uma na outra e o gosto foi sensacional.
Senti-me tão amada, que me dediquei a Matthew. Movi-me com toda
vontade que meu corpo pedia e minha respiração falhou com tamanha
euforia.
Quando chegamos ao nosso auge juntos, eu o abracei, ainda montada
nele, e quis permanecer daquele jeito por todo o tempo possível. Senti
vontade de chorar depois do gozo, mas porque foi tão bom que se tornou
inacreditável. Após a explosão de prazer, eu me senti aliviada, e leve, e
amortecida, e pacificada.
— Meu amor — Matthew sussurrou. — Está tudo bem?
— Sim — respondi, com o queixo em seu ombro, abraçada a ele
como um bicho-preguiça em um tronco de árvore. — Eu só não quero te
soltar nunca mais.
Ele riu.
— Está bem, então não solte.
Não sei precisar por quanto tempo ficamos daquele jeito, mas foi
suficiente para que eu me sentisse segura para soltá-lo.
Na cama, nos deitamos embaixo do edredom e era tudo o que eu
precisava para ter uma boa noite de sono. Fui abraçada e Matthew cantou
no meu ouvido até que eu dormisse profundamente.
Passei o dia seguinte com Anne e Robin. Fomos visitar o Cristo
Redentor e andamos de bondinho para conhecer o Pão de Açúcar. Foi um
dia incrível e muito divertido. Matthew, Elliot e a banda foram ao programa
de televisão Fantástico e passaram a tarde inteira gravando. Só os vi
novamente à noite.
— Seu pai me perguntou se demos uma olhada nas fotos que ele nos
deixou lá no hospital — comentei.
Eu e Matthew estávamos no nosso quarto, conversando deitados na
cama. Ele estava de bruços, com o cabelo solto e caindo pelo seu pescoço.
Parecia cansado.
— Nossa, acabei me esquecendo.
— Eu também. Expliquei que não tivemos tempo, mas que
olharíamos hoje.
— Ele acha que as fotos podem ajudar a desvendar algum mistério —
sua voz estava embargada de exaustão.
— Ele só quer tentar ajudar de alguma forma.
— Eu sei. Guardei a bolsa no guarda-roupa, quer ir lá buscar?
— Sim, eu vou. Você parece bem cansado.
— Eu estou. Acordei cedo e fiquei o dia todo trabalhando.
— Pelo menos foi divertido?
— Muito. Fui muito bem recebido. Mas, mesmo que tenha gostado
bastante, acho que você se divertiu mais do que eu.
— Eu também acho. — Soltei uma risadinha e fui buscar a bolsa com
as fotos e cadernos de Matthew.
Quando voltei, sentei-me ao seu lado e abri o zíper da bolsa, tirando
lá de dentro um álbum de fotografias verde-água.
Ouvi um barulho parecido com o tilintar de uma joia enquanto eu
tirava o álbum, então o afastei para identificar de onde vinha. Um colar com
um pingente de pedra rosa pousava na cama.
Tive um insight assim que vi a pedra. Foi como uma luz que se
acendeu na minha cabeça. A sensação era de já ter visto aquele pingente,
mas não me lembrava de onde. Foi tão forte que praticamente fez meu
cérebro ferver.
— O que foi? Não vai abrir o álbum? — Matthew perguntou.
— Essa pedra… — disse, com a voz reflexiva.
O que senti foi tão intenso, que tive receio de tocar e acontecer algo
inesperado. Como um portal que leva a pessoa de volta ao passado ou algo
do gênero.
— Ah, sim. Esse colar é da minha mãe. Ela já tem há anos, nem me
lembro desde quando. Meu pai deve ter colocado aí por engano.
— Entendi — falei, pensativa.
Desgrudei os olhos da pedra e abri o álbum. Um sorriso se formou em
meus lábios quando avistei Matthew ainda criança, era tão lindo, com olhos
verdes grandes e cabelos loiro-escuros cortados em formato de tigelinha.
Ele tinha apenas quatro aninhos e aparecia brincando na maioria das fotos.
Havia muitas na praia, outras em restaurantes, piscinas e até nos hotéis em
que se hospedaram.
Matthew se sentou ao meu lado para ver as fotos também e, assim
como eu, sorriu.
— Como pude passar tanto tempo sem saber que vim para cá aos
quatro anos?
— Você era pequeno, é normal não se lembrar.
— É engraçado como agora, olhando para as fotos, parece que
algumas lembranças estão retornando à minha mente. — Ele passou o dedo
por cima de uma fotografia em que estava no colo de sua mãe.
— Olhe — apontei —, sua mãe está com o colar no pescoço.
— Pois é, ela está sempre com ele no pescoço. Nem sei como não
está com ele agora.
— Essa pedra é… muito bonita.
— Também gosto.
— Tenho a impressão de já tê-la visto antes.
— Ah, devem existir milhares de pedras como esta.
— Eu sei, mas… estou sentindo algo… Deixe para lá, é besteira.
Você tem razão, existem várias pedras como esta.
Continuamos passando as fotos. Chegamos a uma em que Matthew
estava em um gira-gira colorido. Ele fazia uma careta de medo.
Começamos a rir.
— Você era muito fofo! — elogiei. — Olhe essas bochechas! Ah,
nossa, que vontade de apertar!
— Eu era fofinho mesmo — ele concordou.
— Suas covinhas ainda são as mesmas — comentei, com um sorriso
bobo.
Matthew se aproximou e me deu um beijo rápido.
Na próxima foto, ele estava em um balanço.
— Espere! — Mat disse. — Estou reconhecendo este balanço!
Olhei-o, surpresa.
— O que quer dizer?
— É como o dos meus sonhos.
— Não brinca!
— É sério.
Mudei a foto. Na próxima, ele ainda estava brincando, mas dessa vez
em uma gaiola gínica toda colorida.
Matthew levou a mão à boca, extasiado.
— Marília… — sua voz quase não saiu.
— O quê? O que foi?
— Este brinquedo é… É exatamente como o dos meus sonhos.
— Até a mesma cor?
— Sim, exatamente igual.
Parei por um momento e o olhei com a boca aberta. Ficamos nos
olhando, ambos surpresos, procurando ordenar os pensamentos.
— Você acha que… eu estava lá? Acha que…
— Eu não sei. — Matthew parecia tão chocado que mal se movia.
Havia outras crianças brincando no parquinho, dava para ver pelas
fotos, mas nenhuma de cabelos vermelhos.
Passamos foto por foto, muitas de Anne e Robin. Pareceu-me que,
enquanto Matthew brincava, o casal estava sentado em um banco.
— Seus pais sempre foram assim? — Apontei para uma foto em que
se beijavam.
— Sim, é bem romântico, na verdade. Estão sempre assim, se
beijando. Já me acostumei.
— Acho fofo — confessei.
— Eu também acho — ele disse se aproximando e me beijando outra
vez. — Seremos assim também?
— Quero ter noventa e nove anos e ainda estar te beijando mil vezes
por dia.
— Nossa. — Ele soltou uma risada. — Isso é bastante coisa.
— Eu sei. É só para você entender que quero ser beijada muitas
vezes, até minha velhice.
— Vai ser fácil. — Seus lábios tocaram os meus novamente. — Eu
nunca me cansaria de fazer isso.
— Ótimo.
Voltamos às fotos, passando para a próxima, e depois para a próxima.
— Matthew. — Franzi o cenho. — Acho que percebi uma coisa
importante.
— O quê?
Eu estava me sentindo uma detetive particular em horário de trabalho.
— Veja, nesta foto sua mãe está com o colar. Já nesta foto, ela está
sem.
— Isso é importante?
— Me parece importante.
— Por quê?
— Também não sei. — Soltei uma risada. — Mas preste atenção, em
todas estas fotos ela está sem o colar e, de repente, nestas outras ela está
com o colar no pescoço.
— Ela pode ter se lembrado do colar e o posto depois.
— Sim, pode ser também.
Não entendi por que eu estava tão obcecada com aquela pedra, mas,
sem saber o motivo, senti que era algo importante e relevante para o
momento.
O foco das fotos voltou-se para Matthew brincando. A cada imagem
passada, mais chocado ele ficava.
— Tenho certeza de que esse parquinho é o dos meus sonhos, Marília.
— Certeza?
— Sim, certeza.
— Mas… onde estão as flores laranja?
— Não sei. Talvez eu tenha imaginado esse cenário, ou talvez seja de
algum outro lugar a que fui, ou talvez… Não sei, não dá para saber.
— Por que não perguntamos aos seus pais?
— Agora já está tarde, mas amanhã faremos isso.
— Está bem, vamos perguntar amanhã. Se eles se lembrarem de onde
fica esse parquinho, podemos ir até lá dar uma olhada.
— É uma boa ideia.
Continuamos vendo as fotos, dedicando toda a nossa atenção.
— Se eu estivesse aqui, apareceria em alguma foto, não apareceria?
— perguntei.
— Talvez. Seu cabelo não passaria despercebido.
— Verdade.
Vimos até a última foto, mas não achamos nenhuma com meu rosto
estampado. Isso não queria dizer que eu não estava lá, só que os pais de
Matthew não tinham tirado fotos em um ângulo em que eu aparecia. Certo?
Quis acreditar nisso, só para alimentar esperanças de que eu e
Matthew nos conhecemos naquele parquinho, assim como em seus sonhos.
Eu sabia que seria praticamente impossível isso acontecer, mas gostei
de acreditar que era verdade.
— Nós nem sabemos onde esse parquinho fica — Matthew
comentou.
— Mas, se ficar em São Paulo, existe uma chance, mesmo que
pequena, de termos nos encontrado. Certo?
— Certo. Mas a chance é realmente pequena.
Combinamos de perguntar tudo aos pais dele na manhã seguinte.
Deitamo-nos, cheios de questionamentos em mente, e ficamos
conversando sobre hipóteses loucas de como poderíamos ter nos conhecido
na mesma época em que Matthew e sua família estiveram no Brasil.
Dormimos quando já era madrugada.
No dia seguinte, nos encontramos com os pais de Matthew na hora do
almoço. Haviam escolhido um restaurante bem bacana e famoso da região
para experimentarmos. Segundo eles, a comida a que estavam habituados
no Canadá não era tão boa quanto a que estavam comendo no Brasil, então
precisavam aproveitar a oportunidade para conhecer a maior quantidade de
restaurantes possíveis antes de viajarem de volta para casa.
Com a comida já servida e a mesa colorida com os diversos pratos
que pedimos, Matthew tirou o colar da mãe dele do bolso e o entregou.
— Acho que o papai colocou por engano na bolsa que nos entregou
com as fotos da primeira viagem que fizemos para cá. Sei o quanto gosta,
então trouxe para te entregar.
— Sim, querido! Obrigada. — Ela pegou o colar de volta e o
analisou.
— Não o coloquei na bolsa por engano — Robin disse, por fim. —
Sua mãe o ganhou aqui no Brasil, então achei que poderia ajudar com
alguma coisa.
— Mas ganhou de quem? — Matthew perguntou, com o olhar curioso
voltado à sua mãe. — Sempre achei que o papai que tivesse te dado, por
isso gostava tanto.
— Ganhei de uma moça, querido. Eu e seu pai estávamos em um
parque bem bonito, sentados enquanto você brincava, e uma moça muito
simpática sentou-se ao meu lado. Nossa sintonia foi ótima, passamos um
tempão conversando e senti como se a conhecesse fazia anos. Ela estava
com este colar no pescoço e eu disse o quanto tinha achado bonito. Então,
ela explicou que era o seu favorito, que o tinha havia anos e que acreditava
fielmente que aquela pedra lhe transmitia sorte.
— E ela deu o colar a você?
— Sim, filho. Eu disse que você tinha um dom lindo na voz e que
meu grande sonho era que se tornasse um astro da música. Não sei o que
deu naquela moça, mas ela disse que eu poderia ficar com a pedra até que
meu desejo se realizasse e pediu para eu devolver depois disso. Prometeu
que conversaríamos e que seríamos boas amigas…
— Mas você não devolveu o colar. Por quê?
Percebi que o semblante de Anne se retorceu enquanto ela engolia em
seco.
— Acredite, querido, eu queria muito ter devolvido, mas não pude.
— Por que não pôde?
— Porque… Porque…
— Filho — Robin interrompeu. — Sua mãe não gosta de tocar neste
assunto, não faz bem a ela. Você já sabe o essencial sobre a pedra, não
precisa saber o que aconteceu depois.
Não posso negar, fiquei muito curiosa para saber o restante da
história, mas não me meti na conversa. Anne ficou repentinamente
incomodada e isso ficou claro, Robin a estava tentando proteger de algo que
talvez eu nunca saberia. Matthew os encarou por alguns segundos em
silêncio, achando tudo muito estranho. Mas não insistiu, pois nitidamente
aquele assunto fazia mal a sua mãe e ele não queria estragar nosso almoço
em família.
— Está bem, mãe, se este assunto lhe faz mal, não vou insistir. Eu só
tenho uma pergunta.
— Qual?
— Eu e Marília vimos as fotos ontem à noite. Fotos em que eu estava
em um parquinho, brincando em uma gaiola gínica. Foi lá onde a mulher te
deu o colar?
— Sim, foi lá, sim — Anne respondeu com certeza na voz.
— Sabe me dizer onde fica esse parquinho exatamente?
— Fica em São Paulo — Robin respondeu à pergunta. — Por quê?
— Pai, estou quase certo de que este é o parquinho que aparece nos
meus sonhos.
— Sério? — Anne encarou o filho com as sobrancelhas erguidas.
— Sim.
— Conseguem se lembrar exatamente onde fica? — perguntei. Foi a
primeira vez que me pronunciei desde que entramos no assunto. — É
importante saber, para que possamos ir até lá e ter certeza se realmente é o
lugar dos sonhos de Matthew.
Anne e Robin se entreolharam.
— Não sei o endereço de cabeça, mas posso ver se tenho anotado em
algum lugar — Robin se manifestou.
— Está bem, pai. É importante para mim.
— Você vai voltar para São Paulo? — Anne perguntou.
— Sim, provavelmente.
— Mas…
— Mãe, não vou poder viajar de volta ao Canadá com vocês agora,
estamos esperando a documentação da Marília, lembra? Só depois que ficar
pronta, poderemos ir.
— Sim, é verdade.
— Não vai demorar — Matthew complementou. — Mas vamos
aproveitar para voltar a São Paulo e conhecer o lugar. Talvez traga algumas
respostas.
— Você quer que eu fique? — Anne perguntou.
Ela sempre viajava com o filho, então percebi a dificuldade em seu
olhar ao pensar em deixá-lo sozinho.
— Não precisa, mãe, pode ir para casa com o papai. Não vou ficar
mais do que uma semana aqui sozinho com Marília.
— Está bem, filho — Anne concordou, mas parecia relutante.
— Assim que minha documentação ficar pronta, voaremos ao Canadá
— garanti. — Não precisam se preocupar, ficará tudo bem.
Após o almoço, passamos algumas horas na praia e aproveitamos o
sol quente que ardia em nossa pele. Foi muito bom conhecer outra praia e
entrar no mar novamente com Matthew. A água estava gelada, apesar do
clima quente, e as ondas eram maiores do que da praia de São Sebastião,
contudo adorei. Ele me pegou no colo e me protegeu das ondas, não me
deixou passar apuros por não saber nadar.
A seu pedido, tomamos açaí depois, no final da tarde. Eu amava ver
suas expressões enquanto tomava essa iguaria brasileira, eram excepcionais
e me faziam rir.
Tenho certeza de que fomos fotografados na praia, mas, como Luiz já
estava preso, não tive medo de ser pega com meu ídolo. Beijamo-nos no
mar enquanto eu o segurava pelo pescoço para as ondas não me levarem, e
também nos beijamos depois, com açaí na boca. Senti-me tão bem em sua
companhia, que não vi mais motivos para me esconder.
Andamos de mãos dadas na areia da praia e fomos abordados por
vários fãs. Mesmo de boné e óculos de sol, Matthew era reconhecido por
onde quer que passasse.
À noite, após a janta, fomos para o nosso quarto. Mat se jogou na
cama, cansado, e eu me deitei em cima dele, com a cabeça em seu ombro e
o nariz enterrado em seu pescoço. Recebi uma carícia no cabelo e em
seguida o senti sorrir.
— Você me beijou em público hoje — afirmou.
Sua voz estava baixa e levemente rouca.
— Sim, beijei. E foi muito bom.
Ele me olhou de perto, ainda sorria.
— Foi muito bom mesmo. Não quero esconder o que sinto por você,
quero que todos saibam o quanto te amo.
— Não temos mais que esconder. E, quando chegarmos à sua casa,
oficializaremos nas redes sociais.
Seus lábios tocaram os meus.
— Ótimo. E, só para constar, a casa não é só minha. É sua também.
— Obrigada por isso.
Beijamo-nos mais uma vez, mas, antes que pudéssemos intensificar
os movimentos de nossa boca, o celular de Matthew tocou. Era uma
mensagem de seu pai com o endereço do parque em São Paulo.
— Está pronta para voltar para São Paulo? — indagou animado.
— Com certeza! — Abri um sorriso largo e cheio de dentes.
— Já imaginou? — Matthew perguntou, alisando uma mecha de meu
cabelo. — Se nós nos conhecemos com quatro anos de idade?
— Seria o máximo! — Abracei-o forte.
Ele me beijou outra vez.
— Estamos perto de descobrir, meu amor — comentou.
Viajamos a São Paulo assim que meus pais, Elliot e meus amigos de
banda foram embora. Festejamos pela finalização bem-sucedida da turnê e
nos despedimos.
Não pude me sentir mais abençoado do que naquele momento. Minha
jornada de trabalho no Brasil tinha finalmente acabado, e havia sido um
sucesso estrondoso. Fora os milhões que foram acrescentados à minha
conta, meu rosto estava estampado em todas as redes sociais. O mundo só
comentava sobre isso, sobre mim.
A menina dos meus sonhos estava ocupando a posição de primeiro
lugar no top 10 da Billboard Hot havia semanas. Meu último videoclipe já
tinha passado de mais de um bilhão de visualizações no YouTube, e meu
álbum novo estava no topo do UK Charts fazia mais de oito semanas, o que
foi o maior tempo de duração dentro da década inteira, entre todos os
artistas do mundo.
Um dos meus funcionários responsáveis pelas minhas redes, postou
que eu ficaria um ano de férias antes de recomeçar os trabalhos novamente.
Mas, mesmo assim, já havia mais de trinta programas me chamando para
fazer presença. Minhas férias não eram exatamente férias, eu continuava
trabalhando, compondo músicas e treinando minhas cordas vocais. Também
aparecia nos programas televisivos, tinha que estar sempre fazendo ensaios
fotográficos e aparecendo em lives no Instagram.
A única coisa que mudava nesse período é que eu não viajava para
fazer shows. Mas continuava fazendo presença em lugares importantes para
marcar minha imagem.
Apesar disso, eu teria muito mais tempo com Marília e com a minha
família. Era exatamente disso que eu mais gostava nas minhas férias.
Poderíamos ir à nossa casa de praia e passar vários dias descansando lá.
Não via a hora.
Lia estava deitada no banco de trás do carro, com as pernas esticadas
e a cabeça no meu colo, recebendo meu carinho em seus fios de cereja.
Reparei silenciosamente em seus cílios grossos e grandes enquanto ela
olhava algo no celular. Fiquei satisfeito em vê-la tão à vontade, tanto no
carro, como navegando nas redes.
Conversamos sobre alguns assuntos aleatórios durante a viagem.
Assuntos que nos ajudavam a conhecer mais um ao outro. Fizemos
joguinhos de adivinhação e foi bem divertido. Claro que ganhei de Marília,
eu a conhecia muito melhor do que ela a mim, ainda que em muitas coisas
eu ainda não tivesse conhecimento ao seu respeito. Mas se esforçou, e
percebi que não era tão leiga assim quando se tratava de mim.
Também conversamos sobre minha mãe e o colar. Nós não fazíamos
ideia do que ocorrera para que ela não pudesse devolvê-lo, mas imaginamos
várias sugestões loucas e caímos na risada com isso. Por fim, decidimos que
esse não era um ponto tão importante, e que não precisávamos esclarecê-lo
para finalizarmos nossa busca pela verdade.
Tínhamos o principal: o endereço do parquinho. Isso era o que mais
importava para o momento.
Quando chegamos a São Paulo, já era quase a hora do almoço, então
paramos em um lugar para comer e esticar as pernas. Ensinei mais palavras
difíceis em inglês para Marília e me diverti com sua pronúncia brasileira.
Ela falava muito bem em inglês, conseguia me entender à perfeição e
conversar sobre praticamente tudo. Só seu sotaque que a entregava
facilmente, mas, para uma menina que estudara sozinha na adolescência, ela
era muito boa.
Perguntei-me como conseguiríamos nos comunicar se ela não tivesse
se esforçado para aprender minha língua. Eu não falava nada em português.
Teríamos que fazer mímicas, provavelmente.
Ela me apresentou o Guaraná Antárctica e achei delicioso. Aproveitei
a oportunidade para comprar vários e colocar na mala para tomarmos mais
tarde. Eu sentiria falta do Brasil por conta desses detalhes, a comida, os
doces e bebidas eram muito mais gostosos do que no Canadá. Fora as
paisagens lindas e os fãs super-receptivos. Tudo no Brasil era do meu
agrado. E saber que Marília era brasileira só aumentava ainda mais minha
afeição pelo país.
Voltamos para o carro e seguimos viagem, não faltava muito para
chegarmos ao endereço. Passamos o restante do trajeto muito animados,
cantei para Lia, que me acompanhou na canção.
Quando já próximos o suficiente, ela grudou os olhos na janela do
carro e disse:
— Eu conheço este lugar.
— Já esteve aqui? — perguntei.
— Meu pai me disse que vínhamos muito quando eu era pequena.
Mas não me trouxe mais depois que cresci, costumava dizer que não
gostava daqui porque o remetia a péssimas lembranças.
— Nunca perguntou quais lembranças?
— Perguntei, mas ele nunca quis me dizer, na verdade.
— Então, é como minha mãe e aquele colar. Por que os adultos
tomam esse tipo de atitude?
— Não esquece que somos adultos também. — Ela soltou uma
risadinha.
— Verdade, às vezes me esqueço que sou adulto. Mas somos adultos
jovens, não adultos, adultos.
Marília riu mais um pouco.
— Você tem razão. Mas algo me diz que ser um adulto jovem é muito
mais legal.
— Também acho — concordei.
O carro entrou por um portão verde grande e a rua passou a ser de
terra. Era um parque ecológico e público, aparentemente gigantesco.
Conforme adentrávamos o local, mais verde ficava.
Estacionamos e descemos do carro. Ajudei Marília a descer e ela
aceitou minha mão.
O motorista ficou nos esperando no estacionamento enquanto
começamos a andar para a entrada oficial do parque de mãos dadas. Eu a
puxei para mais perto de mim e passei o braço pelos seus ombros,
segurando a mão dela do outro lado do corpo. Dei-lhe um beijo na têmpora
e Lia sorriu para mim. Parecia animada com toda a situação, mas percebi
que estava carregando alguns questionamentos que não chegara a dividir
comigo. Pelo menos, não até então.
Seu peito estava subindo e descendo com uma intensidade maior do
que antes, e seus olhos passeavam por todos os lados com minuciosidade e
atenção.
— Você está bem? — perguntei.
— É besteira.
— Não é, você pode dividir comigo.
— Estou sentindo algo estranho. Não é uma sensação boa, na
verdade. A partir do momento em que entrei, senti algo muito forte, como
se eu estivesse vivendo novamente algo que já vivi antes.
— Tipo um déjà-vu?
— Isso, mas não sei se vale para o caso, porque já estive aqui antes.
— Talvez seu cérebro esteja te avisando exatamente isso.
— E por que meu coração parece tão apertado?
Parei de andar e a olhei de perto, tentando passar confiança.
— Eu também estou sentindo algo, mas não sei explicar o quê. Talvez
seja a ansiedade de finalmente estar perto de alguma resposta. Fique
tranquila, meu amor, tudo vai acabar bem.
Ela fechou os olhos brevemente e sorriu. Beijei seus lábios,
acariciando seu rosto.
— Quer parar um pouco? — perguntei.
— Não, vamos continuar. Já estou me sentindo melhor.
Então, voltamos a andar. O parque era bem bonito, todo gramado e
com bastante movimentação. Havia muitas árvores, um lago enorme cheio
de patos e uma trilha para andar de bicicleta. O ambiente estava gostoso,
com um sol brilhante e aconchegante, deixando toda a paisagem ainda mais
bonita.
Conforme andávamos, passamos por várias barracas com homens
vendendo cachorros-quentes, milhos e espetinhos de churrasco. Mais para a
frente, avistamos barracas de sorvetes e crepes.
Estava bastante barulhento, muitas crianças correndo, homens
empinando pipas e jogando bola; mulheres deitadas na grama, fazendo
piquenique com os filhos e pessoas fazendo caminhada com cachorros.
Gostei do lugar, apesar de achar cheio demais.
Continuamos caminhando. Demos a volta pelo lago e seguimos por
uma trilha de terra. O cabelo de Marília estava extremamente vermelho em
contato com os raios do sol, e seus olhos viam-se bem claros. O esquerdo
estava verde-claro, muito bonito. Na verdade, Marília sempre ficava muito
bonita em contato com a natureza, sempre achei que combinava bastante
com ela.
— Gosto deste cheiro — comentou.
— Cheiro de mato?
— Sim.
Na verdade, eu não via graça no cheiro de mato, mas achei ter
gostado naquele momento só porque ela também gostara.
Beijei sua mão, entrelaçada com a minha, e perguntei:
— Quer se sentar um pouco?
— Não, estou ótima.
— Já andamos bastante, então se quiser descansar…
— Estou bem — confirmou ela. — Vamos continuar.
Prosseguimos, então, a caminhada. Estava gostoso, bastante
prazeroso, fazer aquela trilha. Fomos conversando e, apesar de já termos
andado bastante, não parecíamos cansados.
A trilha deu em um lugar muito amplo, tão grande que eu não
conseguia ver o fim. Era um campo florido, com diversas flores laranja.
Paramos bruscamente quando vimos.
— Matthew… — Marília começou, apontando o dedo para as flores.
Balancei a cabeça positivamente, sem conseguir dizer nada. Meu
peito se apertou e, de repente, senti uma dorzinha me invadindo. Era
exatamente como nos meus sonhos.
Foi difícil acreditar que eu estava mesmo vendo aquela cena na vida
real, por isso me calei. Olhei atentamente para o espaço aberto com vários
pontos laranja e respirei profundamente, quase soltando um gemido
dolorido.
Não sei explicar o que houve comigo, mas senti todos os meus pelos
se eriçarem enquanto meu coração se acelerava.
Aquilo estava mesmo acontecendo. Eu não tinha inventado nada,
aquele lugar realmente existia!
Senti um alívio me percorrendo as veias enquanto a respiração ficava
mais pesada.
— É aqui — disse finalmente. Meu peito ainda doía, mas não soube
discernir se pelo choque de realidade ou se pela emoção tão grande. —
Marília, é aqui.
Ela mordeu o lábio inferior enquanto encarava o lugar. Depois, voltou
a atenção para mim. Seus olhos estavam marejados, e a íris do lado
esquerdo se via amarela, o que comprovava o quanto Lia estava satisfeita
em ouvir minhas palavras. Um sorriso cresceu em seus lábios e ela me
puxou para um abraço.
Eu a beijei várias vezes, em vários pontos do rosto, e sorri também.
— Não posso acreditar — disse, extasiada.
— É aqui mesmo — enfatizei. — Eu te conheci aqui, Lia.
Ela me olhou com intensidade. Realmente era a minha Lia, a minha
garota. Vários flashes dos meus sonhos voltaram à tona e quase pude ouvir
a voz dela de quando criança, quando nos conhecemos. Foi tão real, tão
forte.
— Você acha que realmente nos conhecemos aqui? — ela perguntou,
olhando para mim e depois para o gramado.
— Tem outra explicação?
— Ainda não temos certeza.
— Eu sei, mas… este lugar realmente existe. Você realmente existe. É
a única explicação.
O gramado sem fim ficava do lado direito da trilha. Do lado esquerdo,
estava o parquinho. Com a gaiola gínica, os balanços de madeira e o gira-
gira, entre outros brinquedos.
Havia um banco de madeira pintado de branco de frente para o
parquinho e deduzi que lá fosse onde meus pais se sentaram enquanto eu
brincava aos quatro anos de idade.
— O parquinho também é…
— Sim, é — respondi antes que ela terminasse a pergunta.
Meu peito estava em colapso, subia e descia com agilidade, enquanto
eu me lembrava de tudo o que passara com Marília naquele lugar. Todas as
nossas conversas, os nossos segredos; a primeira vez que me declarei para
ela, o primeiro “Eu te amo”; as tentativas vãs de tocá-la, as vezes que
balançamos e corremos por aquele gramado. Foram tantos momentos,
tantos anos a encontrando naquele lugar!
A sensação foi tão boa, que fui tomado de prazer. O mesmo prazer
que um pobre sente quando ganha na loteria, ou quando uma mulher
supostamente infértil fica sabendo que está grávida, ou quando a pessoa
consegue finalmente respirar depois de ter ficado vários minutos se
afogando.
Alívio.
Apertei a mão da minha garota e quase não acreditei que eu realmente
podia tocá-la. Aquele gesto significava tudo para mim, tudo o que almejara
por nove anos. O amor que eu sentia por ela pareceu crescer ainda mais
naquele momento. Lia era a impossibilidade que se tornou possível, um
sonho que se fez realidade.
Marília passou a mão no meu rosto enquanto eu a contemplava com o
olhar mais apaixonado que pude fazer.
— Eu te amo — declarei, com todo o meu coração. — Eu te amo
mais do que tudo nesta vida.
— Eu também te amo, Matthew.
— Estar aqui só me faz perceber o quanto sou sortudo por te ter, o
quanto sou sortudo por ter encontrado meu amor verdadeiro com apenas
dezenove anos.
— Se suas suspeitas estiverem certas, nos encontramos bem antes
disso.
— Eu sou o cara mais sortudo do mundo! Tantas pessoas passam
mais da metade de uma vida procurando o verdadeiro amor e eu… Eu tenho
você!
Eu mal podia acreditar nas minhas palavras.
Marília abriu um sorriso grande e eu a abracei, tirando seus pés do
chão.
Ela abaixou o rosto e encostou a boca na minha. Nós nos beijamos
lentamente enquanto suas mãos seguravam com delicadeza minha face.
Senti sua língua na minha com o gosto mais doce de cereja e chupei seu
lábio inferior, anestesiado dos pés à cabeça com aquele sabor.
Coloquei seus pés de volta no chão e a chamei para ir ao balanço. Ela
amou a ideia.
O assento parecia ser maior do que eu me lembrava. Sentei-me e
convidei Marília vir para o meu colo. Ela montou em mim, colocando as
pernas para o outro lado do balanço, uma de cada lado do meu corpo.
Dei o primeiro impulso e ela começou a rir no meu ouvido. Arrepiei-
me todo. Eu estava segurando as correntes, enquanto ela abraçava meu
pescoço.
Balançamos bem alto e demos risada, sentindo frio na barriga.
Ela jogou o pescoço para trás com os olhos fechados enquanto ria e
seu cabelo voava. Foi a cena mais linda que vi em toda a minha vida.

Eu e Matthew passamos um grande momento deitados na grama,


olhando o céu, no meio das flores laranja. Foi tão incrível e apaixonante!
Conversamos sobre várias coisas e ele não deixou de ser romântico
em nenhum único momento. Fez questão de estar próximo a mim o tempo
todo, tocando-me e me acariciando.
Às vezes a realidade caía sobre mim e eu me pegava pensando como
minha vida havia mudado tanto em tão pouco tempo. Nem parecia mais a
mesma. Parecia que, de alguma forma, eu havia nascido de novo.
A única coisa que ainda me ligava à minha antiga vida eram os
traumas que ainda habitavam em mim, e lembranças que me atormentavam
em momentos inoportunos. Sempre era um momento inoportuno para
aquelas lembranças. A verdade era que eu não queria nunca mais me
recordar de nada que um dia me causara dor.
Por fora, eu era uma nova mulher, feliz e realizada. Por dentro, ainda
estava toda estragada.
Eu tentava esconder de Matthew e parecer o mais normal possível,
mas a verdade é que, desde que vi Luiz pela última vez, não parava de ter
medo de vê-lo novamente. As imagens dele me enforcando estavam fixas
na minha mente e se tornavam ainda mais vívidas quando eu dormia e
sonhava com elas, revivendo cada momento.
Tornei-me uma pessoa mais observadora, estava sempre olhando para
todos os lados para me certificar de que ninguém estava me seguindo, e não
parava de pensar que, se Luiz saísse da cadeia logo, viria atrás de mim.
Eu queria esquecer tudo, simplesmente apagar, mas me parecia uma
missão impossível. Por isso, cheguei à conclusão de que eu realmente
precisava de terapia, precisava me tratar. Senti urgência em começar logo
com isso, pois estava em um lugar tão lindo, com uma pessoa tão perfeita, e
ainda assim sentindo medo e me lembrando de Luiz.
— Está com frio, amor? — Matthew perguntou. — Sua mão está
tremendo.
Claro que não era frio, o sol estava superquente.
— Não estou com frio — respondi.
— Alguma coisa de errado?
— Pode parecer estranho — sussurrei. — Mas estou sentindo que
aquele homem está nos seguindo.
Não usei a mão para apontar, só fiz menção com a cabeça.
— Sério? — Matthew franziu o cenho. — Desde quando está
percebendo isso?
— Bem, quando entramos no parque e passamos por aquelas
barracas, notei que ele nos olhou de um jeito estranho. Depois, quando
estávamos no balanço, ele se sentou naquele banco. E, agora, está andando
pela trilha, ainda perto da gente.
Eu realmente havia percebido a presença daquele homem desde a
entrada do parque. Ele parecia ter cerca de quarenta anos, vestia calça jeans,
camiseta simples e carregava uma câmera profissional no pescoço.
Pode parecer loucura, mas, na minha cabeça, ele estava tirando fotos
minhas para mandar para Luiz.
Senti-me exposta demais, vulnerável demais.
— Quer ir embora? — Matthew perguntou.
— Não, não quero. Você finalmente achou o lugar que passou anos
pensando que não existia, seria injusto pedir para irmos embora.
— Seu bem-estar é mais importante para mim do que este lugar. Se
quiser ir embora, nós vamos.
— Você acha que ele é um fã?
— É bem provável. Ou um paparazzo. Você sabe que, em todos os
lugares a que vamos, sempre há pessoas nos seguindo para tirar fotos, não
sabe?
— Sim, mas… Pelo menos tentam se esconder. Esse homem não está
fazendo nem esforço.
— Quer que eu vá falar com ele?
— Não! Se realmente for um paparazzo, isso pode te prejudicar. Ele
vai alegar que está em um lugar público e que pode ficar onde quiser.
— Então vamos dar uma volta, já passamos tempo demais
descansando. Assim posso perceber se ele está realmente nos seguindo.
— Está bem.
Matthew não era do tipo que se importava muito com isso, já estava
completamente acostumado a ter pessoas o seguindo e tirando fotos dele.
Conseguia seguir a vida e deletar as pessoas a sua volta com facilidade.
Não sei o motivo, mas aquele homem realmente me incomodou. Quis
sair de seu campo de visão o mais rápido possível.
Voltamos a andar e seguimos o caminho contrário àquele em que o
desconhecido estava.
Alguns minutos depois, paramos para tomar sorvete em um lugar bem
distante de onde estávamos antes. Tentei disfarçar para não alarmar
Matthew, mas olhei sutilmente a minha volta várias vezes para ver se
encontrava o mesmo homem. Felizmente, não encontrei.
Mas minha felicidade se esvaiu rápido. Quando o sorvete estava
acabando, percebi a presença novamente.
— Ah, Matthew… — balbuciei.
— Eu já vi — ele disse quase na mesma hora. — Estou percebendo.
— E agora?
— Não posso deixar esse homem ficar te incomodando, vou falar
com ele.
— Não… — tentei dizer algo, mas Matthew já tinha se levantado.
Ele tinha um semblante feio, bravo. Acho que estava tentando mostrar
àquele homem que não estava gostando da proximidade.
Levantei-me também e fui atrás dele, com tanto medo que minhas
pernas tremiam como duas varas verdes. O pânico me tomava a cada passo
que dávamos na direção daquele sujeito.
Ele passou a nos olhar fixamente e deu alguns passos em nossa
direção também.
Várias coisas ruins passaram pela minha cabeça e, em algum
momento, tive certeza de que ele tinha sido enviado por Luiz.
— O que você quer? — Matthew perguntou, quando já estava perto o
bastante. — Por que não para de nos seguir?
— Desculpe, não falo inglês — o homem disse.
— Por que está nos seguindo? — perguntei em português, minha voz
quase não saiu.
— Me desculpe. — O homem levantou as duas mãos como se
estivesse se rendendo. Mas levei um susto com seus movimentos e, por um
breve instante, achei que ia fazer alguma coisa comigo. Encolhi-me perto de
Matthew e isso o deixou furioso, pude perceber na maneira como respirava.
— Me desculpe, não quis incomodar — disse, com as mãos ainda erguidas.
— O que você quer? — perguntei.
Neste momento, eu estava quase completamente escondida atrás de
Matthew, que fazia cara feia e possuía um vinco entre as duas sobrancelhas.
— Eu vi quando vocês entraram no parque — o homem começou a
explicar. — Seu cabelo chamou a minha atenção e, quando cheguei mais
perto, reconheci seus olhos…
— Foi ele quem te mandou? Luiz quem deu minhas características a
você?
Jurei ter ouvido Matthew rosnando e soltando um palavrão.
— Quem? — Ele franziu o cenho. — Não! Ninguém me mandou
aqui. Eu trabalho tirando fotos neste parque há quinze anos.
— Então você quer tirar uma foto do MatLew junto comigo? —
perguntei, tentando entender o que estava acontecendo. — É isso?
— Seria uma honra. Reconheci MatLew assim que ele entrou
também, seria impossível não o reconhecer. Mas, na verdade, não é por
conta da foto que os segui.
— Por que, então?
— Vocês… Vocês ainda estão juntos. Fiquei encantado com isso e
quis olhar mais para ter certeza.
— Do que você está falando? — Fiz uma careta confusa.
— Desculpe, eu estou te confundindo. Vou explicar desde o começo,
ok? Comecei a trabalhar aqui no parque há quinze anos e me lembro
exatamente do dia. Posso estar enganado, mas acho difícil que haja outra
garota com a mesma cor de cabelo que o seu e com os mesmos olhos.
Tenho quase certeza de que era você. Eu tinha acabado de começar a
carreira e tirei algumas fotos suas enquanto brincava com ele. — O homem
apontou para Matthew. — Se minhas suspeitas estiverem certas, vocês
aparecem na primeira foto profissional que tirei na vida.
Olhei-o por um instante, tentando digerir tudo o que tinha ouvido.
— Está falando sério? — perguntei.
— Sim, é sério.
— O quê? — Matthew perguntou, olhando para mim.
Expliquei em inglês o que o homem tinha acabado de me falar e
Matthew me lançou um olhar de desconfiança.
— É mentira — ele disse. — Se esse homem realmente tivesse uma
foto minha de quando criança junto com você, ia querer vender para
qualquer revista famosa. Seu rosto está estampado em todas as redes,
Marília. Imagina o dinheiro que ele ganharia se divulgasse essa imagem.
— Tem razão — refleti. — Não acreditamos em você — disse ao
homem. — E não estamos interessados.
— Ei, espere! — o desconhecido tentou nos deter antes de irmos
embora. — Eu estou dizendo a verdade! Tome aqui. — Ele colocou a mão
no bolso e tirou de lá um cartão. — Meu telefone e meu endereço; se
quiserem ver se é verdade, me liguem e podemos marcar um encontro.
— Se é verdade, por que não vendeu a foto?
— Porque sou profissional o bastante para não fazer isso.
— Essa não parece uma boa desculpa.
— Bom, pense bem. Se tiver interesse em ver a foto, entre em contato
comigo. Novamente, me desculpe pelo transtorno que causei a vocês.
Então, o homem fez uma reverência rápida e virou as costas.
Fiquei olhando-o se distanciar, com a boca entreaberta.
— Acha que ele está falando a verdade? — perguntei a Matthew.
Ele pegou o cartão da minha mão e analisou.
— Não sei — respondeu.
— Achei bem suspeito — complementei.
Não pude deixar de pensar que o homem estava querendo me levar a
uma armadilha e me sequestrar. Não entendi por que aquele tipo de
pensamento estava me tomando, mas estava.
Por outro lado, a história parecia se encaixar. Há quinze anos eu tinha
quatro de idade, e Matthew, também. Foi exatamente quando ele esteve no
Brasil pela primeira vez, bem naquele parque.

Esperei Marília dormir para sair do hotel de carro e ir até o endereço


que estava no cartão, a fim de me certificar de que era verdadeiro. Eu não
poderia correr o risco de ir com a minha garota até lá e me deparar com
alguma cena perigosa. Vi o quanto ela havia ficado inquieta e com medo de
toda a situação.
Eu a conhecia melhor do que ninguém, sabia que andava com muito
medo desde que viu Luiz pela última vez.
Ela achava que eu não estava notando, que estava sendo discreta, mas
a percebi diversas vezes levando sustos com barulhos mínimos e acordando
de madrugada suando, assustadíssima, por algum sonho que teve.
Eu estava tentando fazer de tudo para manter a cabeça dela distante
de lembranças ruins, mas tinha ciência de que esse tipo de coisa não
acontecia de um dia para o outro.
Em primeiro momento, achei que ela estava bem, mesmo que com
aquela marca horrível no pescoço. Mas, depois, percebi que estava
realmente traumatizada, ainda que o hematoma já tivesse sumido por
inteiro. Isso só me comprovava que as marcas que ela tinha eram muito
maiores do que eu imaginava, e não estavam aparentes, eram internas.
Estacionamos de frente para o local já escuro. Era um comércio
envidraçado, com uma placa vermelha bem grande que dizia: Fotografias e
Cia. O motorista desceu do carro e enfiou o rosto no vidro para olhar o que
tinha dentro do local. Depois de fazer a análise, voltou e disse:
— Realmente é um comércio de fotografias.
— Tem certeza?
— É o que parece.
No caminho de volta, pesquisei tudo sobre o local, puxei até o CNPJ.
Descobri o nome do fotógrafo — e dono do comércio —, era Leonardo
Pereira. Puxei tudo sobre sua empresa e realmente me pareceu um lugar
confiável. Já estava aberto havia sete anos e não encontrei nenhuma
reclamação sequer sobre o trabalho do cara.
Esperei Marília acordar na manhã seguinte para conversarmos a
respeito. Ela aceitou mandar mensagem para Leonardo e marcar um
horário; disse que se sentiria tranquila e protegida só de saber que eu estaria
ao seu lado.
— Ele disse que tem um horário vago para nos encontrar ainda hoje,
às 15h, no endereço que está no cartão — explicou. — Devo confirmar?
— Sim, acho que vale a pena ver se o que ele nos disse é verdade.
No horário agendado, estacionamos com o carro no mesmo local em
que eu estivera poucas horas atrás. Dessa vez, estava com as luzes acesas e
uma placa de Aberto pendurada na porta.
Eu e Marília descemos do carro e andamos de mãos dadas até o local.
Adentramos o comércio, ambos calados. Eu sabia que, apesar do silêncio,
nós dois estávamos com um turbilhão de pensamentos passando pela mente.
Eram tantos, que nos calavam.
Por algum motivo oculto, meu coração acelerou e senti um
nervosismo gigantesco percorrendo meus músculos. Eu estava perto de
descobrir algo que estava em oculto, perto de desvendar um grande
mistério. Algo que mudou meu itinerário, minha trajetória.
Algo que mudou a minha vida, enquanto acordado e enquanto
dormindo.
Eu estava prestes a descobrir como conheci Marília e se realmente a
conheci antes. Digo, pessoalmente. Vida real.
Leonardo já nos aguardava. Estava atrás do balcão mexendo em seu
computador. Levantou o olhar assim que entramos na loja e abriu um
sorriso satisfeito.
Matthew disse no meu ouvido antes que Leonardo chegasse até nós:
— Não vou entender nada do que ele disser, mas ficarei atento em
você. Se ficar incomodada com qualquer coisa, me avise.
Balancei a cabeça positivamente e sorri em direção ao Leonardo, que
se aproximava com o braço erguido para me cumprimentar.
— Estou realmente feliz que tenham vindo — ele disse, apertando
minha mão e depois a de Matthew. — Por um momento achei que não
viriam.
— Não tínhamos certeza se deveríamos confiar ou não no que você
disse ontem.
— Sei que foi estranho. Peço desculpas mais uma vez pelo meu
comportamento. É que… Assim que vi você, fiquei… Não sei explicar, mas
acho que esperei todos esses anos para te ver novamente. Não achei que
veria a ele — Leonardo apontou para Matthew. — Mas você… Sempre tive
esperanças.
Sorri sutilmente, sentindo-me envergonhada.
— Por quê? — perguntei. — Por que ainda tinha esperanças de me
ver?
— Você marcou muito meu primeiro dia como fotógrafo naquele
parque. Seus olhos… Nunca me esqueci deles. Acho que só queria saber se
você estava bem depois de todos esses anos.
— Hum — balbuciei.
Não soube o que dizer depois de ouvir suas palavras. Eu sabia que
meus olhos eram marcantes, mas não imaginei que alguém se lembraria de
mim daquela forma, mesmo depois de quinze anos.
Olhei brevemente para suas mãos. Achei uma aliança de ouro. Ele era
casado, então não estava me cantando. Aquele papo de querer saber se eu
estava bem me pareceu estranho, mas deixei passar batido.
— Você está? — ele perguntou.
— O quê?
— Está bem? Digo, depois de tudo o que passou, está bem hoje em
dia?
Estreitei os olhos e o olhei bem, analisando suas feições e suas
palavras. Não entendi o que ele quis dizer. Se dissera a verdade sobre ter me
visto somente uma vez na vida, então não sabia sobre os problemas pelos
quais eu passara nos anos seguintes. Do que estava falando, então?
— Estou bem, obrigada — respondi, sentindo-me totalmente perdida.
— Que ótimo. Fico feliz em vê-los juntos, não imaginei que ficaria
vivo para ver isso de perto mais uma vez.
— Pois é. — Agora eu sabia do que ele estava falando, era sobre mim
e Matthew. — É loucura, eu sei.
— Vocês são lindos juntos. Mantiveram contato desde a infância,
ou…?
— Foi um reencontro, por assim dizer. Não mantivemos contato.
— Entendi. Acho que no fundo sempre soube que ficariam juntos. A
ligação que tiveram quando crianças foi muito forte.
— Bem, seria bacana se pudesse nos mostrar as fotos. Até termos te
encontrado ontem, eu e Matthew não tínhamos certeza nenhuma sobre já
termos nos conhecido antes.
— Sério? Não se lembram do primeiro encontro de vocês?
— Não — respondi. — Sinceramente, não nos lembramos.
— Isso vai ser divertido — ele disse, abrindo um sorriso. — Vamos,
venham comigo, vou levá-los até a minha sala. É lá onde as fotos estão.
Seguimos caminho até uma porta que ficava no fundo da loja. Depois,
andamos por um corredor bem silencioso com algumas outras portas.
Entramos por uma delas. A sala parecia um escritório bem conservado. Era
branco e não muito grande. Uma mesa de computador pairava encostada em
uma extremidade, com uma cadeira atrás, e um armário com várias gavetas
cobria praticamente uma parede inteira.
Leonardo abriu uma das gavetas e passou os dedos por várias pastas
coloridas.
— Só um instante, estou procurando.
— Está bem, fique à vontade.
Respirei fundo e lancei um olhar a Matthew. Meu coração estava
disparado. Eu não estava mais com medo, estava com uma espécie de
ansiedade esmagadora no peito.
Ele apertou minha mão e piscou gentilmente enquanto ainda me
olhava. Foi o tipo de piscadela que diz: “Tenho certeza de que vai ficar tudo
bem”. Balancei a cabeça devagar, concordando com ele.
— Aqui, achei! — Leonardo disse, puxando de dentro da gaveta uma
pasta azul-escura.
Ele a depositou em cima da mesa e eu e Matthew nos aproximamos.
— Oh, my Gosh! — Matthew exclamou, assim que viu a primeira
foto. — É você aqui! — Ele apontou para uma garotinha de cabelos
vermelhos.
— E aqui está você. — Apontei para um garotinho lindo de cabelo
tigelinha.
As duas crianças estavam distantes uma da outra, mas apareciam na
mesma foto, brincando separadamente.
— Lia, meu amor. — Ele suspirou. — Estávamos naquele parque, nós
dois, no mesmo dia!
Seu rosto transmitia incredulidade e alívio ao mesmo tempo.
— Continuem — a voz de Leonardo soou às nossas costas. Fiquei tão
aturdida com a foto à minha frente, que mal me lembrei de que o fotógrafo
estava no mesmo ambiente que nós. — Todas essas fotos são de vocês.
A pasta não era muito grossa, só havia algumas fotografias, mas todas
muito nítidas e bem focadas.
Virei a página do álbum para ver a próxima imagem e levei minhas
mãos à boca. Eu e Matthew estávamos sentados no último andar da gaiola
gínica, juntos. Olhávamos um para o outro, provavelmente conversando, ou
tentando conversar.
Leonardo soltou uma risada que chamou minha atenção.
— O quê? — perguntei, virando-me para ele.
— Na época, o que mais chamou minha atenção foi que vocês não
falavam a mesma língua, mas mesmo assim estavam conversando. Um não
entendia o que o outro dizia, mas estavam se divertindo mesmo assim.
Soltei uma risada ao ouvir aquelas palavras, tentando imaginar a cena.
Contei a Matthew o que Leonardo havia dito e ele também riu.
— Vocês se deram tão bem, que passaram o tempo todo juntos.
Virei-me novamente para as fotos e mudei de página. A próxima
imagem me chocou ainda mais. Estávamos nos balanços de madeira, ele
para lá, e eu para cá, ambos dando risada.
— Oh, meu amor. — Matthew acariciou a foto. — Você é tão linda.
Nós nos olhamos por um instante e percebi que seus olhos estavam
marejados. Prensei meus lábios um contra o outro e me forcei a não chorar,
mas não consegui esconder o quanto estava emocionada também.
Ele passou o braço pelos meus ombros e me puxou para mais perto.
Depois me deu um beijo demorado na testa.
Passamos para a próxima foto e percebi Matthew soltar um gemido
do fundo da garganta. Estávamos deitados na grama, olhando para cima.
— Depois de um tempo brincando, vocês decidiram deitar na grama
para descansar. Ficaram um bom tempo lá — Leonardo explicou. — Tirei
várias fotos neste mesmo ângulo.
Senti uma lágrima escorrer por minha face. Era como se, finalmente,
eu estivesse terminando de montar um quebra-cabeça de um milhão de
peças.
Minha garganta ardia de pura emoção.
As fotos seguintes eram parecidas, estávamos deitados na grama, só
mudava nossa expressão facial.
— Olha o jeito que eu estava te olhando nesta foto — Matthew disse.
— Isso é incrível.
Na imagem, eu estava olhando para o céu, apontando para as nuvens
enquanto ele olhava diretamente para meu rosto. Seu semblante estava
relaxado e fixado em mim. Parecia estar analisando cada curva da minha
face.
— O que será que você estava se perguntando?
— Acho que me apaixonei por você, Lia. Apaixonei-me no primeiro
dia em que te vi.
— Crianças não se apaixonam, eu acho.
— Eu só não conhecia o sentimento de paixão ainda, mas com certeza
senti algo diferente. Olha a minha mão. — Ele apontou. — Parece que
estou segurando o estômago. Tenho certeza de que o senti se movendo neste
exato momento.
Soltei uma risada.
— Será?
— Claro, estou caidinho por você.
— Devo ter lançado meu superpoder e te enfeitiçado com os olhos.
— Com certeza. Não tenho dúvidas disso.
Sorrimos, olhando-nos, e Matthew me deu um selinho rápido nos
lábios. Depois, tive uma ideia e me virei para Leonardo.
— Quero te fazer uma pergunta, mas vai parecer um pouco estranha.
— O que quer saber?
— Por acaso se lembra de ter nos visto nos tocando?
Ele fez uma expressão pensativa, como se estivesse analisando minha
pergunta.
— Já se passaram muitos anos, não vou conseguir te dizer com
certeza. Mas, sinceramente, não tenho nenhuma lembrança nítida de ter
visto vocês se tocando.
Expliquei o que ouvi a Matthew e ele arqueou as sobrancelhas.
— Pode ser por isso que eu não conseguia te sentir nos sonhos.
Justamente porque eu não sabia como era te tocar, já que nunca tinha tocado
antes.
— Parece uma explicação plausível — concordei.
— E… — Eu me virei novamente para Leonardo. — Quem deu
autorização para você tirar essas fotos nossas?
— Sou contratado pelo parque, tiro fotos das crianças e as vendo para
os pais. Se eles não compram, descarto-as após seis meses. Só mantive as
suas porque me fazem recordar do meu primeiro dia. E, admito, porque
achei seus olhos muito bonitos.
— Ah, obrigada. Bem… Nossos pais não quiseram comprar as fotos?
— Os pais de Matthew não compraram, estavam tirando suas próprias
fotos. Mas a sua mãe quis comprar.
Arregalei os olhos ao ouvir o que ele disse.
— Minha mãe? — perguntei, sentindo-me eufórica.
— Sim, ela estava com você nesse dia.
— Sério? Quero dizer, você tem certeza?
— Claro que tenho — ele disse, com o cenho franzido.
Analisou-me por um instante, parecendo estar se questionando de
diversas coisas.
— O que foi? — perguntei.
— Você realmente não se lembra do que houve nesse dia?
— Não. Do que você está falando?
— A sua mãe… Ela…
— Se ela comprou o álbum, por que nunca o vi na minha casa?
— Eu disse que ela quis comprar, não que ela comprou.
— E por que ela não comprou, afinal?
— Porque não teve tempo.
Achei ter entendido o que ele quis dizer.
— Ah, sim — disse baixo. — Ela faleceu logo depois, não foi?
— Sim, nesse mesmo dia.
— Nesse dia? Nesse mesmo dia em que estive no parque?
— Sim, nesse mesmo dia.
Senti um aperto no peito.
— Desculpe, é que eu… não me lembro. Sei que eu estava junto,
mas… Mas não me lembro de nada do que aconteceu.
— Não a culpo, além de você ser muito nova na época, acabou
sofrendo um acidente bem grave, que a deixou internada por um bom
tempo.
— Como… Como sabe de todas essas coisas? — indaguei, ainda
sentindo meu peito doer drasticamente.
— Meu amor, está tudo bem? — Matthew perguntou, segurando
minha mão.
— Sim, estou bem. Não se preocupe.
Fiquei olhando para Leonardo, esperando por sua resposta.
— Sei de todas essas coisas porque vi vocês sofrerem o acidente. Eu
que chamei a ambulância e fiquei ao seu lado até que ela chegasse.
Meus olhos marejaram e minhas bochechas esquentaram.
Limpei a garganta e tentei me conter.
— Pode me explicar o que houve?
— Sua mãe chamou você para ir embora no mesmo horário em que
eu estava me preparando para tirar um intervalo. Você não questionou, só se
despediu de Matthew e obedeceu. Andei atrás das duas em direção à saída
do parque e… Vi quando estavam atravessando a rua. Um carro
desgovernado as atropelou bem em frente. Corri o mais rápido que pude
para ajudar, mas não consegui deter o que aconteceu. Ambas estavam
desacordadas.
Fechei os olhos com aquela revelação e coloquei a mão no peito,
como se isso fosse me acalmar de alguma forma. Minhas pálpebras
ferveram e, sem que eu pudesse me conter, algumas lágrimas escorreram.
Matthew me puxou para um abraço e me aninhou, perguntando o que
estava acontecendo.
Expliquei entre lágrimas e, então, ele me abraçou ainda mais forte,
consolando-me.
Aquela revelação me chocou. Eu sabia que minha mãe falecera
quando eu tinha quatro anos de idade, mas nunca soube dos detalhes do
ocorrido. Meu pai não conseguia falar a respeito, porque o assunto o
magoava muito e eu evitava fazê-lo relembrar.
Eu mal me recordava do rosto dela, da minha mãe. Havia uma única
foto na minha mochila, na qual ela me segurava quando eu ainda era um
bebê.
Senti uma falta repentina dentro de mim, e me perguntei como minha
vida teria sido se ela não tivesse morrido naquele dia. Talvez eu não tivesse
passado por muitas coisas, e não teria visto meu pai mudar tanto. Talvez
tivéssemos sido uma família feliz.
A falta que senti não foi especificamente da minha mãe, foi de uma
vida que não tive, uma que me foi tirada aos quatro anos. Entendi
exatamente o que Matthew quis dizer quando leu aquele sonho em que
escreveu sobre sentir saudade de algo que nunca teve. Era exatamente o que
eu estava sentindo naquele momento.
— Sinto muito por tudo isso — Leonardo lamentou, com a voz triste.
— Gostaria muito que tivesse sido diferente.
— Eu também — concordei, limpando algumas das minhas lágrimas.
— Obrigada por ter tentado ajudar.
— Imagina, era o mínimo que eu poderia fazer.
— Por isso queria tanto me ver novamente, não é?
— Sim. Tudo isso me marcou muito. Segurei você nos meus braços
enquanto estava desacordada, sangrando. Preocupei-me com as duas e torci
muito para que ficassem bem.
— Muito obrigada.
— Guardei algo para te entregar caso nos encontrássemos novamente
— acrescentou, andando até outra gaveta e puxando de lá mais uma foto. —
Pegue, é sua.
Peguei. Era uma foto da minha mãe. Ela estava sorrindo e parecia
feliz. Estava de mãos dadas comigo.
Meus olhos se encheram de lágrimas outra vez.
— Tirei essa foto antes de você conhecer Matthew. Tinham acabado
de chegar ao parque. Depois disso, ela se sentou e você foi brincar.
Suspirei, tentando não ficar sem fôlego. Ela era mais linda do que eu
me lembrava, e tinha o cabelo da mesma cor do meu. Estava preso em um
rabo de cavalo alto e bem arrumado.
— Marília — Matthew chamou minha atenção enquanto apontava
para algo na foto. — Reconhece isso?
Seu dedo estava indicando o pescoço da minha mãe, ela usava um
colar com uma pedra rosa idêntica à do colar de Anne.
Entreabri os lábios e tapei a boca com a mão livre.
— Matthew, meu Deus!
— Acha que é o mesmo colar?
— É possível. Muito possível.
— Pergunte a ele quanto quer pelas fotos — Matthew pediu. —
Precisamos levá-las.
— Leonardo, quanto quer pelas fotos? — perguntei.
— Não quero nada — ele respondeu com um sorriso. — As fotos são
suas, Marília. Não seria certo cobrar por elas a esta altura do campeonato.
— Diga a ele que estamos dispostos a pagar qualquer quantia —
Matthew disse, em inglês.
— Estamos dispostos a pagar qualquer quantia — expliquei, em
português.
— Por favor, aceitem as fotos gratuitamente. Esperei por vocês todos
esses anos, só tê-la visto novamente foi o preço pelas fotos. Estou feliz por
ter tirado todas as dúvidas que tinham.
— Peça o Instagram dele — Matthew pediu.
— Qual é o seu Instagram? — perguntei.
Leonardo respondeu, soletrando seus dados de perfil do Instagram.
Matthew teclou algo em seu próprio celular e depois percebi que ele estava
postando sobre o ótimo trabalho de Leonardo para fotografias nos stories.
Também fez a indicação abertamente em sua página.
— Diga para contratar mais funcionários a partir de hoje, porque
agora vai chover trabalhos de fotografia em todo o mundo para ele.
Repassei o recado e Leonardo ficou extremamente agradecido.
Não demorou dois minutos para que dezenas de pessoas começassem
a entrar em contato com ele, requisitando seu trabalho.
Nós nos despedimos logo depois, e entramos no carro com o nosso
álbum de fotografias.
Ficamos em silêncio por um tempo enquanto voltávamos para o hotel,
tentando digerir tudo o que passamos na última hora, depois Matthew me
abraçou, sem dizer nada. Retribuí o gesto e enfiei o nariz em seu peito,
sentindo seu cheiro suave.
— Quando te vi pela primeira vez… — ele sussurrou no meu ouvido,
por fim. — Eu te amei, Marília. — Ele me olhou de perto, segurando meu
rosto com carinho e amor. — Quando ouvi sua voz pela primeira vez, eu te
amei. Quando te toquei pela primeira vez, eu te amei. Quando te beijei pela
primeira vez, eu te amei. — Encostou os lábios gentilmente nos meus e
continuou sussurrando. — Quando fizemos amor pela primeira vez, eu te
amei. Tenho certeza de que eu te amei em todas as nossas primeiras vezes e,
porra, eu te amo, Marília. Eu te amo tanto! Nunca tive tanta certeza de algo
como tenho sobre isso. E eu sei… — Ele me fitou com olhos vidrados. —
Sei que você disse que crianças não se apaixonam, mas nada é normal para
a gente, não é? Não nos enquadramos em nenhuma regra normal sobre
paixão. Achei ter me apaixonado por uma garota que só aparecia nos meus
sonhos! — Sorriu, e eu sorri também.
— E eu achei que estava apaixonada por um superastro da música que
nunca me notaria.
— Se existe algo mais impossível que a nossa história, me diga —
caçoou.
— Não consigo pensar em nada tão difícil de acontecer quanto isso.
— Então, eu posso te dizer com toda a certeza do meu ser que sim, eu
me apaixonei quando criança, te amei quando criança, te amei quando
adolescente e te amo agora.
— Eu te amo também, eu te amo imensuravelmente.
Voltamos a nos abraçar e me senti quente e confortável em seus
braços.
— Você é literalmente, tudo para mim — sussurrei.
— E você, para mim.
— Sabe — disse e o olhei nos olhos novamente —, em certo
momento da vida, cheguei a achar que Deus tinha me esquecido. Mas agora
estou com a impressão de que Ele me colocou no ventre da minha mãe com
o único e exclusivo motivo de me fazer para você. Ele nunca me
abandonou. Na verdade, sempre teve um propósito para mim. Para a minha
felicidade. Talvez eu tenha me perdido em algum momento, mas nunca
deixei de te incluir na minha vida. Sempre foi você, Matthew, sempre.
Fomos feitos um para o outro, não fomos? Consegue sentir isso agora que
viu essas fotos?
— Sim, meu amor. Isso é destino, já estávamos predestinados a
ficarmos juntos, antes mesmo de nos darmos conta disso.
Talvez, para alcançar a felicidade, seja necessário passar por um
caminho obscuro, pensei. Mas, graças a Deus, eu passei. Acabou! pensei
comigo mesma.
É como se eu tivesse sido provada para ser aprovada.
E, em toda a minha vida, nunca tinha conhecido ninguém que
merecesse tanto ser feliz como eu. Eu merecia a felicidade, merecia ser
feliz.
Eu em primeiro lugar.
Senti meu corpo inteiro se arrepiar. Realmente estava sentindo isso
reverberar dentro de mim. A verdade fluindo pelos meus poros.
Beijei Matthew com vontade, conectando nossa boca com a incrível
verdade que havíamos descoberto juntos.
Fomos feitos um para o outro, fomos feitos um para o outro, fomos
feitos um para o outro.

— Mãe, preciso falar com você — disse, na manhã seguinte.


Eu e Marília estávamos no quarto do hotel, ambos deitados na cama.
O celular estava ao viva-voz entre nós, em cima do travesseiro.
— Oi, querido! — ela bradou. — Já estou com saudade, meu filho.
Como estão as coisas por aí? Quando vem para casa com Marília?
— Também estou com saudade, mãe. Vamos embora em breve, assim
que a documentação de Marília sair, e estamos bem. Descobrimos algumas
coisas interessantes ontem, por isso estou te ligando. Preciso tirar umas
dúvidas com você.
— Claro, querido. Do que precisa?
— A moça que te deu o colar, por que não quer falar sobre ela?
Silêncio na linha.
— Mãe?
— Filho, não quero falar sobre isso. Achei que já tinha te dito.
— Você me disse, mas… precisa se esforçar para me dizer a verdade.
O que houve? Quem te deu o colar? Por que não quer falar sobre isso?
— Por que precisa tanto dessas respostas?
— Olá, Anne — Marília me interrompeu. — É a Marília. Está tudo
bem por aí?
— Olá, querida. Sim, estamos bem.
— Que ótimo. Precisamos saber sobre o colar porque suspeitamos
que minha mãe deu a você. Pode tirar essa dúvida para a gente, por favor?
— Sua mãe? Do que estão falando?
— Ontem descobrimos que eu e Marília estivemos juntos no mesmo
dia em que fomos àquele parque, na nossa primeira viagem ao Brasil.
Temos fotos para provar isso. A questão é que, em uma foto, a mãe da
Marília aparece usando um colar extremamente parecido com o seu e
suspeitamos que ela tenha dado a você.
Mais um silêncio ensurdecedor. Quase pude visualizar minha mãe
com cara de “ué”, como se estivesse fazendo contas superdifíceis de
matemática, tentando encaixar as coisas.
— Sua mãe, Marília? — ela perguntou de novo, com a voz confusa e
mais baixa do que antes.
— Pode nos dizer como ela era? A moça que te deu o colar? —
Marília perguntou.
Ouvi um barulho vindo da linha e me movi na cama para ouvir
melhor.
— Mãe, você está chorando?
Mais um momento de silêncio. Somente o choro da minha mãe
quebrava o ambiente silencioso.
— Fale comigo, mãe. Por favor, não chore. O que houve?
— A mãe da Marília? — balbuciou do outro lado da linha. — Não
posso acreditar nisso.
— Mãe…
— Marília, me perdoe. Por favor, me perdoe! Eu nunca imaginei,
nunca mesmo! Mas agora… agora que estão tocando no assunto, percebi a
semelhança. Ela tinha… Ela tinha o cabelo vermelho também, e olhos bem
claros. — Mais uma pausa para o choro que ficava cada vez mais intenso.
— Me perdoe, eu não sabia.
— Eu sei que vai ser difícil para você, mãe, mas preciso que conte o
que houve naquele dia. Assim poderemos tirar a dúvida sobre quem aquela
moça era.
— Ela… Ela foi tão simpática comigo. — Um soluço. — Consigo me
lembrar do sorriso bondoso que lançou para mim. — Mais um soluço.
— Respire, mãe — disse tentando acalmá-la.
— Nós conversamos enquanto você brincava, meu filho. A conversa
foi maravilhosa, ela me disse que era tradutora, por isso sabia falar inglês
tão bem. Nós… Nós começamos a nos abrir uma para a outra e ela me
contou sobre o colar, disse que ele dava sorte, que, desde que o colocara
pela primeira vez, havia tido sucesso em tudo. — Mais uma pausa com
soluços e lágrimas. — Eu disse que queria que você se tornasse um cantor
famoso. Ela foi muito boazinha, explicou que já tinha conquistado tudo o
que sempre sonhara e que eu poderia fazer uso do colar até que meu sonho
se realizasse também. Prometemos manter contato, conservar a amizade…
Eu, eu gostei muito dela. Mas… Mas…
— Mas, o quê?
— Eu a matei.
— Como é? — eu e Marília perguntamos juntos. — Você o quê?
— Me perdoe, eu não sabia que era mãe da Marília!
— Como assim, mãe?
Eu e Marília nos olhamos, ambos com o semblante amedrontado.
Meu coração bateu mais rápido e minha respiração também se acelerou.
Tentei refletir, mesmo que o momento não estivesse facilitando esse
processo. Marília foi embora do parque antes de mim, isso quer dizer que
não tinha como minha mãe estar dentro do carro que atropelou a mãe dela.
— Mãe, me escute — pedi. — Sei que você não a matou literalmente.
— Eu sei, mas eu sinto como se a tivesse matado. Ela disse que era o
colar da sorte e o tirou para dar a mim. Logo depois morreu. Eu fui a
culpada, não deveria tê-lo aceitado.
Marília fechou os olhos na minha frente e respirou fundo, parecia
estar aliviada de alguma forma, mas triste ao mesmo tempo.
— Anne — ela disse. Estava com a voz um pouco trêmula, mas
tentou se manter forte. — Você não matou a minha mãe. Não se sinta
culpada por isso, você não teve nada a ver.
— Mas o colar…
— É só um colar. Foi uma coincidência ter acontecido tudo no mesmo
dia.
— Eu me sinto tão culpada!
— Não, Anne, não se sinta. Você não fez nada de errado.
— Ela foi tão simpática comigo, Marília! Sua mãe era maravilhosa,
nunca consegui me esquecer dela.
— Fico feliz em saber disso — ela respondeu, olhando para mim.
Havia um sorriso triste em seus lábios.
— Estou grata por saber que está perto de mim agora, assim vou
poder retribuir o favor e cuidar bem de você.
— Muito obrigada por isso.
— Eu e Robin tínhamos a intenção de acompanhar o caso de vocês de
perto, mas tivemos que voltar para cá, para o Canadá. Meu marido recebeu
um chamado urgente de trabalho e acabamos comprando a passagem de
volta com antecedência. Quando fiquei sabendo que sua mãe havia falecido,
perdi o contato completamente com a família. Se eu soubesse... Ah, Marília,
se eu soubesse...
— Está tudo bem, Sra. Anne.
— Mat — Anne voltou sua fala ao filho —, nós nunca chegamos a
conversar a fundo sobre seus sonhos. Você só me disse que sonhava com
uma garota em um parquinho de diversões. Nunca passou pela minha
cabeça que havia alguma ligação com esta data específica, no Brasil. Me
desculpe se não dei espaço para uma conversa mais profunda, me desculpe
se duvidei de você.
Meus lábios tremeram, tamanha a vontade de chorar. Se tivéssemos
tido essa conversa antes, muitas coisas poderiam ter sido evitadas.
— Já passou, mãe. Agora está tudo resolvido.
— Me sinto tão culpada! Evitei tocar no assunto da nossa primeira
viagem ao Brasil por conta disso. Seu pai sempre soube como eu me sentia
com relação à morte daquela mulher, por isso não citamos antes —
explicou.
Nós três ficamos conversando por mais alguns minutos até que minha
mãe se acalmasse, depois desligamos a ligação.
Abracei Marília e ela respirou fundo em meu peito.
— Você está bem? — perguntei.
— Acho que sim.
Mas eu sabia que não estava.
— As coisas vão melhorar. Aos poucos, tudo vai dar certo — disse a
ela.
— Tenho certeza disso.
Passamos os próximos dias passeando tranquilamente por são Paulo.
Conhecemos o zoológico, o aquário e nos divertimos muito em ambos os
passeios. Experimentamos restaurantes novos e bebidas deliciosas.
Gostei de passar esse tempo sozinho com Marília. Ela parecia estar
cada vez melhor, se divertindo, rindo com facilidade e conversando
abertamente.
Nos beijamos em público algumas vezes e, claro, algumas fotos
nossas vazaram. Mas ela não pareceu se importar, e eu me importei menos
ainda.
Fomos abordados várias vezes por fãs e uma delas chegou a perguntar
se Marília era minha namorada. Eu respondi que sim e nem percebi que
estava sendo gravado. O vídeo viralizou na internet, fazendo até algumas
redes sociais travarem por conta de tantos comentários e perguntas.
Decidimos juntos que não os leríamos tão cedo, porque, obviamente,
não eram só elogios. E, para não atrapalhar nosso passeio e nosso
relacionamento, não dedicamos um minuto sequer a isso.
Elliot me ligou no minuto seguinte em que o vídeo foi ao ar. Disse
que várias revistas e programas estavam entrando em contato para adquirir
informações e fazer entrevistas exclusivas.
— Estou de férias — disse.
— Não interessa, Matthew. Você é famoso, nunca tira férias.
— Nem oficializamos o relacionamento ainda.
— Isso foi antes de você ser filmado. Agora o mundo todo já sabe.
— Não podemos esperar…
— Já marquei com a Vogue e com a Time. Vocês vão sair na capa.
Não podemos esperar mais.
— Não sou eu quem decide essas coisas?
— Não. Aproveitem os últimos dias. Teremos muito a fazer quando
você voltar para casa. Tchau.
Respirei fundo e olhei para Marília.
— Parece que o mundo já oficializou nosso relacionamento.
Ela deu risada.
— Você não sabia que estava sendo filmado, está tudo bem.
— Mas você está bem com isso? Todos estão falando a seu respeito
agora.
— Claro, sabíamos que isso aconteceria em algum momento. É
normal. Aliás, acho ainda mais normal falarem mal de mim do que bem, já
que todas as mulheres do mundo querem ficar com você.
— O nome disso é inveja.
— Até eu ficaria com raiva se ainda fosse sua fã e soubesse sobre um
relacionamento sério com outra mulher. Principalmente uma desconhecida.
— A desconhecida mais linda do mundo.
Aproximei-me e dei-lhe um beijo.
Matthew foi comigo buscar meu passaporte.
Fiquei tão feliz por toda a minha documentação estar pronta, que
pulei em seus braços e soltei um gritinho. Ele deu risada e disse que nossa
aventura tinha acabado de começar.
Compramos as passagens para o Canadá, iríamos no dia seguinte, à
noite. Seria um voo direto, sem escalas. Ficaríamos sozinhos na classe A,
sem a companhia de mais nenhuma outra pessoa, a não ser os funcionários
do avião.
Fiquei contente, apesar de amedrontada com a ideia de voar tão alto.
Eu nunca tinha voado de avião na vida, e pensar em fazer isso pela primeira
vez não me confortava muito.
Passamos o dia passeando, conhecendo algumas lojas no Mooca
Plaza Shopping e providenciando algumas coisas para levarmos à viagem.
Matthew comprou um conjunto de moletom marrom e branco da Louis
Vuitton para mim, disse que seria confortável para o voo.
— O que foi? — perguntou, com um tom de brincadeira na voz. —
Não faça essa cara para mim, vou comprar as coisas para você mesmo que
você não ache justo.
— É porque não é justo.
— É completamente justo, sou seu namorado e quero te ver linda
vestida com um conjunto da Louis Vuitton.
Achei linda a palavra namorado saindo da sua boca. Não houve um
pedido de namoro, nem chegamos a oficializar nada, mas não havia
nenhuma maneira de deixar mais claro que éramos, de fato, namorados.
Não era só pela maneira com a qual nos comportávamos um diante do
outro, mas pelo sentimento que ardia em nosso peito e que ficava nítido
para qualquer um. Era algo tão intenso, que chegava a pesar o ar. Era tão
presente, que parecia quase palpável.
— Eu agradeço, Matthew, por tudo o que tem feito por mim, e por
todo o dinheiro que tem gastado, mas quero que saiba como me sinto. Não
quero depender financeiramente de ninguém, quero ter meu próprio
dinheiro e autonomia. Não fique chateado quando digo que não acho justo
que compre coisas para mim, é só que...
— Não precisa se explicar, está tudo bem. Não estou chateado por
ouvir isso de você, fico orgulhoso por saber o quanto quer ser independente
financeiramente, mesmo ciente de que tenho condições o suficiente para
sustentar muitas gerações após a nossa. Fique sabendo que possui meu
íntegro apoio para o que decidir fazer, embora eu ache que nem precise
disso, pela mulher forte e decidida que é.
— Obrigada, é importante para mim saber que me apoiará.
— Você já deveria saber disso. — Um beijo estalou em minha
bochecha.
Ele comprou um conjunto para si também, igual, com as mesmas
cores, porém em cortes masculinos. Sorri ao nos imaginar indo viajar juntos
no dia seguinte, fazendo combinação com as roupas.
Comemos no Burger King e conversamos por vários minutos,
enquanto pessoas passavam, com a boca aberta e olhos arregalados, por
nós. Matthew pareceu não se importar, pegou minha mão e ficou
acariciando-a em cima da mesa.
Antes de irmos embora, passamos por uma joalheria e olhamos por
um instante para a vitrine. Achei que Matthew estava interessado nos
relógios, então aproveitei o momento para observar algumas joias femininas
também. Eu nunca, jamais, havia usado algo de ouro na vida. Até mesmo
quando fiz o primeiro furo na orelha, meus brincos foram comprados na
farmácia e provavelmente não custaram mais do que trinta reais. Procurei
pelos valores, mas na vitrine não havia nenhum à mostra, possivelmente
porque assustariam as pessoas se estivessem lá.
Matthew pegou minha mão e me puxou para dentro da loja, depois
pediu para a vendedora nos mostrar as alianças de ouro branco para
namoro. Acho que às vezes ele se esquecia de que estava no Brasil e que a
maioria das pessoas não sabia falar inglês. Mas, para meu espanto, a
vendedora entendeu o que ele disse, pedindo que esperássemos um instante
enquanto buscava as melhores opções.
— Matthew — sussurrei. — Não precisa fazer isso.
— Como não, Marília?
— Deve ser muito caro. — Fiz menção para sairmos da loja.
— Eu esperei nove anos por você, cada segundo desses nove anos
pensando em você. Agora que finalmente está aqui na minha frente, acha
mesmo que vou me privar de comprar essas coisas? É melhor se acostumar
a ser paparicada, porque não vou parar de fazer isso, mesmo que tenha seu
próprio dinheiro.
Eu nunca tinha ganhado presentes tão caros. Não posso mentir e dizer
que não estava gostando, mas ao mesmo tempo me senti incomodada com
os valores, incomodada por achar que eu estava, de alguma forma, fazendo-
o gastar tanto dinheiro comigo. Eu não precisava daquelas coisas. Na vida,
aprendi que gastamos com o que precisamos, e não por luxo.
— Podemos ir a um lugar mais barato, então. — Apertei sua mão.
— Se quiser, tudo bem, podemos ir, mas será por causa de uma
exigência sua, não minha. Quando vai entender que você merece essas
coisas? Não precisa ligar para o dinheiro.
— Mas eu ligo. Passei a vida toda sem ter muito, parece estranho
agora estar gastando tanto assim.
Matthew virou-se para mim e se aproximou o suficiente para sua boca
ficar a dois dedos de distância da minha. Colocou meu cabelo atrás das
orelhas e me olhou com carinho, segurando meu rosto.
— Ganho em média dois milhões de dólares por show, meu amor.
Sabe quantos shows fiz nesta turnê? Duzentos e noventa e sete. Quer fazer a
conta de quanto dinheiro tenho na conta agora? E, se levarmos em conta os
diversos outros trabalhos que faço, o lucro da turnê se perde no meio de
tantos outros zeros. Sério que está preocupada com o dinheiro? — Fiquei
calada diante daquela informação e totalmente perdida no seu olhar verde
fascinante. — E se acostume com a ideia de que o dinheiro também é seu.
Vou dar um cartão na sua mão assim que chegarmos ao Canadá. Podemos
comprar nossa aliança aqui, ou ainda quer ir a um lugar mais barato?
— Vamos comprar aqui — respondi, completamente fascinada.
— Está bem, então. — Ele largou meu rosto e se virou a tempo de ver
a vendedora aparecendo com um recipiente cheio de alianças de ouro
branco.
Tentei conter meu espanto quando vi as opções, uma mais linda que a
outra. Era tanto brilho, que meus olhos arderam.
Analisei com cautela cada uma delas, nenhuma tinha valor. Talvez
fosse realmente uma estratégia, porque, se estivessem lá, eu com certeza
escolheria a mais barata, mesmo que tivesse gostado da mais cara.
— São muito bonitas — comentei, boquiaberta.
— São mesmo. De qual você gostou mais?
— Estou entre estas duas. — Apontei.
Elas eram um exagero de beleza, nunca nem ousei me imaginar
usando algo do tipo.
— Bem, entre estas duas… — Matthew soltou um ruído do fundo da
garganta, pensativo. — Podemos experimentar? — perguntou para a
vendedora.
— Claro — ela disse, já tirando as alianças do lugar onde estavam.
Ele colocou ambas em meu dedo, uma de cada vez. Como não
consegui escolher, tomou a frente e decidiu pela que achou mais bonita na
minha mão. Era uma aliança de ouro branco com uma pedra enorme e
redonda de topázio quinze quilates. Em volta do valioso aro, havia vários
outros diamantes pequenos, igualmente brancos e chamativos.
Meu Deus, aquilo era demais para mim.
— Você ficou linda com esta — a vendedora disse, com olhos
brilhantes.
— Obrigada. — Suspirei, custando a acreditar que aquela aliança
seria minha.
Matthew colocou em seu dedo o par do meu anel e analisou. Fiquei
de queixo caído com tal beleza. Aquela joia masculina ficou linda no dedo
dele. Era grossa e ficava explicitamente estampado que ele estava
comprometido.
— Gostou dessa, amor? — ele perguntou.
— Sim. Nossa, eu amei.
— Então, vamos levar esta — informou à vendedora.
Ela ficou radiante com a revelação. Guardou as alianças em uma
caixinha superchique e direcionou Matthew ao caixa para pagar.
Esquivei-me, deixando que ele fizesse o pagamento sozinho, sem
minha intromissão. Eu sabia que aquele par de anéis valia muito mais do
que eu estava imaginando, e fiquei com receio de levar um susto ao ouvir o
valor.
— Pronto — ele disse encontrando-me fora da loja. — Gostou de
mais alguma coisa da vitrine?
— Não, eu estava só te esperando.
— Gostou do presente?
— Matthew, nossa, não sei nem o que dizer. Eu amei demais.
— É isso que conta. — Depositou um beijo na minha têmpora e
seguimos caminho até a saída do shopping.
Na manhã seguinte, marquei de me encontrar com Cecília, Mary e
Jane. As duas irmãs estavam em São Paulo de passagem com o pai
deputado, e minha amiga morava por perto, então foi fácil marcarmos um
encontro.
Foi mais uma despedida, levando em conta que eu estava de viagem
marcada para morar em outro país, mas isso não mudou o fato de termos
nos divertido muito.
Encontramo-nos em um restaurante japonês na Zona Sul de São
Paulo, enquanto Matthew disse que ficaria no hotel descansando e
resolvendo algumas questões com Elliot ao telefone. Combinou de me
encontrar mais tarde para me buscar e cumprimentar as meninas.
Foi um almoço superdivertido, conversamos sobre várias coisas e
matamos a saudade. Fui obrigada a falar tudo sobre o meu relacionamento e
dei muita risada com as expressões das minhas amigas.
— Como ele é na cama? — Mary perguntou, com um sorriso enorme
nos lábios.
Soltei uma risada.
— Sério? Vamos falar sobre isso? — perguntei.
— Claro! — Jane disse, querendo saber.
Cecília era a minha amiga mais antiga, sabia por alto sobre alguns
episódios que eu passara com Luiz, portanto não me pressionou a contar
nada. Mas isso não mudou o fato de que também estava curiosa.
— Ele é maravilhoso — respondi, o que levou as três aos gritos.
— Nossa, você é muito sortuda! — Mary declarou.
Caí na risada com as perguntas que me fizeram e me senti muito feliz
com a presença das três.
Elas me deram várias dicas de como tornar meu envolvimento com
Matthew ainda melhor e ouvi atentamente cada conselho.
Quando nos despedimos, soltei algumas lágrimas breves e as abracei.
Todas elas haviam feito parte da melhor fase da minha vida. Sem
Cecília, eu não teria ido ao show de MatLew, e sem Mary e Jane, eu não
teria me hospedado no mesmo hotel que ele.
Eu as amei por isso, por terem sido tão importantes em minha vida, e
prometi guardar a amizade das três por todos os anos que ainda me
restassem de vida.
Combinamos que manteríamos contato e prometemos umas às outras
que nos encontraríamos novamente, em breve, no Canadá.
Matthew foi me buscar, assim como tinha dito, e aproveitou para tirar
fotos com as meninas, que quase desmaiaram após o clique.
Voltei ao hotel me sentindo muito contente pelo passeio, e totalmente
afortunada pelas minhas amizades.
Chegando ao quarto, terminei de guardar minhas coisas junto com
Matthew e nos arrumamos para a viagem. Colocamos nossos conjuntos de
moletom iguais e sorrimos quando nos vimos.
— Você está linda — ele disse, aproximando-se e me dando um beijo.
— Você também está.
E estava mesmo. O conjunto marrom e branco da Louis Vuitton ficou
lindo nele, deixando seu alto e esbelto corpo com uma aparência de
aconchego, exalando riqueza e poder. Seus cabelos estavam presos em um
coque moderno e seus olhos verdes me fitavam como se eu fosse a mulher
mais linda do planeta Terra.
Eu amava isso nele. Não era necessário que falasse, somente seu olhar
já dizia tudo. Eu me sentia importante, sentia-me bonita e vista.
— Só falta uma única coisa em você — ele disse.
— O quê?
Matthew pegou a aliança da caixa e a estendeu para colocar em meu
dedo. Sorri e estiquei a mão.
— Agora você é oficialmente minha namorada.
Coloquei a aliança nele também.
— Eu te amo — disse.
— Eu também te amo.
— Obrigada. — Abracei-o com carinho e senti meu rosto ser beijado
diversas vezes enquanto ele sussurrava repetidamente o quanto me amava.
Fomos ao aeroporto logo depois e, não sei como, mas nossas mãos
dadas saíram nas redes sociais alguns minutos após nossa chegada. As
alianças já repercutiam em toda a internet.
No avião, sentamo-nos um ao lado do outro em um ambiente
completamente reservado. Os bancos de couro Off-White podiam se
inclinar e virar camas. Logo à nossa frente, jazia uma televisão gigante com
acesso a todos os filmes e séries possíveis.
Minhas mãos estavam suando de nervoso, mas Matthew tentou me
acalmar e pediu minha ajuda para escolher um filme. A decolagem
aconteceu alguns minutos depois e fiquei tão nervosa que enfiei o rosto em
seu peito e fiz uma careta. Senti um frio enorme na barriga e apertei sua
blusa contra mim.
— Pronto. — Ele sorriu. — Já passou. Agora você não vai sentir mais
nada.
Levantei o rosto e o olhei de perto. Ele estava tão lindo que me calou.
Matthew passou a mão pelo meu rosto e me beijou em cima do olho
esquerdo.
— Vou ficar abraçado com você até se sentir segura, ok?
Balancei a cabeça positivamente e me grudei a ele. Seu carinho foi
maravilhoso e seu corpo grande contra o meu me trazia segurança.
O ambiente estava à meia-luz, o que deixou tudo mais aconchegante.
Em silêncio, Matthew admirava meu rosto, acariciando meus cabelos.
Era incrível fitá-lo de perto, perceber seus olhos em mim, amando o que
estavam vendo.
Tê-lo ali ainda parecia um sonho, pensar que eu estava nos braços do
meu ídolo era uma tremenda loucura. E, mais insano ainda, era o fato de
que estávamos indo para outro país juntos, para morarmos juntos.
Aquele cara era o responsável por tudo de mais feliz que existia em
mim, ele havia feito crescer em mim a vontade de viver, de aproveitar o
lado belo da vida. E, com ele, parecia que eu sempre estava vivendo o lado
belo da vida.
Sem que eu precisasse pedir, Mat se aproximou e colou seus lábios
nos meus. Deus, o cheiro dele era sensacional. Abracei-o forte e suspirei.
Era extremamente gostoso tê-lo por perto. Tão perto.
— Matthew — sussurrei, perto o bastante para minhas palavras
entrarem em sua boca.
— Diga, meu amor.
— Tive uma ideia maluca.
— Qual ideia? — Ele já estava rindo, antes mesmo de eu dizer.
— Estamos em um lugar público, não tem ninguém nos vendo e não é
um lugar tão aberto…
Ele soltou uma risada, deixando à mostra suas covinhas fundas.
— Estou entendendo — disse.
— Acha que dá certo? — perguntei baixinho.
— Está se sentindo bem para fazer isso aqui? — Sua expressão
parecia divertida.
— Bom, acho que posso tentar fazer uma coisa fora do comum pelo
menos uma vez na vida.
— Se fizermos isso aqui, você vai gostar tanto que vai querer repetir
sempre.
Sua fala me envolveu de tal modo, que mordi o lábio inferior e forcei
as pernas uma contra a outra.
Era uma loucura, mas eu estava com Matthew e me sentia bem com
ele. Não tive dúvida quanto ao que eu queria.
— Eu sempre gosto quando é com você.
Ele colocou sua boca na minha outra vez e, em um movimento
silencioso, pegou minha mão, pousando em cima de seu membro enrijecido
como pedra.
— Olha como você me deixa — ele sussurrou. — Eu topo fazer
qualquer coisa com você, em qualquer lugar.
Suspirei e o beijei com mais força.
Era incrível o poder que ele tinha sobre meu corpo. Parecia que tudo
em mim se movia e pedia por ele. Nunca imaginei que algum dia na vida eu
sentiria algo assim, mas ele conseguiu. Definitivamente.
O beijo foi delicioso, seu gosto invadia meu paladar e me fazia gemer.
Entre apertos e carícias, Matthew desceu a mão e a enfiou
vagarosamente por dentro da minha calça de moletom. Passeou pelas
minhas coxas e virilha, depois encostou em minha calcinha.
— Nossa — ele disse, ofegante. — Eu amo quando você fica assim
para mim.
Algo bem molhado estava escorrendo de mim e fazia meu centro
pulsar.
Afastando minha calcinha para o lado, ele encostou o dedo em meu
clitóris e massageou. Soltei um gemido e apertei sua nuca. Conforme seu
indicador se movimentava, meu quadril se remexia sutilmente.
Meu lábio inferior foi mordido e chupado, seguido por um rosnado,
depois meu pescoço.
Os movimentos de seus dedos foram tão precisos, que me levaram à
loucura. Gemi incontáveis vezes em sua boca e pescoço.
— Isso — disse, baixinho. — Isso, continua.
— Você gosta assim?
— Sim, muito.
— E assim? — Enfiou um dedo em mim e joguei o pescoço para trás,
arqueando as costas.
— Ah, sim. Sim, assim.
Ele pediu para eu gemer para ele, então me aproximei de seu ouvido e
soltei uma arfada quente enquanto se movia dentro de mim. Chupei sua
orelha e senti sua nuca se arrepiar drasticamente.
Beijei-o com mais intensidade enquanto sua respiração acelerada
tocava minha face.
Matthew começou a dizer coisas, que me levaram ao ápice. Ele
conseguia ser extremamente romântico mesmo naqueles momentos, mas
suas palavras me deixavam ainda mais excitada. Fechei os olhos e arfei
enquanto ele continuava com o movimento do dedo.
Nossa, estava muito bom.
Ele me beijou de uma forma ainda mais íntima, respirando
aceleradamente no meu rosto. Eu queria que, de alguma forma, ele entrasse
em mim.
— Matthew — disse, quase agonizando. — Preciso de você.
— Calma, meu amor, temos mais dez horas de voo pela frente. Você
vai me ter de todas as formas que quiser.
Só de imaginar o que ele faria comigo, quase desmaiei.
Naquele momento, nenhuma lembrança ruim invadiu minha mente,
nenhuma memória trágica. De algum modo, Matthew conseguia
transformar aqueles momentos em instantes de puro prazer. Só
experimentei sensações vibrantes e boas, e tudo o que eu queria era
continuar. E, sim, fazer aquilo durante as dez horas de voo.
Ele continuou sussurrando as palavras maravilhosas no meu ouvido e
me beijando da melhor forma possível, até que minhas pernas começassem
a tremer generosamente.
Nossa, por Deus, como ele conseguia fazer aquilo com o dedo?
Eu nunca tinha sentido tanto prazer na vida. Comecei a descobrir que
com Matthew as coisas sempre melhoravam. A cada vez que fazíamos
amor, a intensidade era maior, o prazer era maior.
Gemi profundamente, tentando me conter e abafar um gritinho. Senti
tudo em mim se contraindo enquanto expelia meu prazer em seu dedo. Ele
fez uma careta e mordeu meu lábio inferior, enquanto meu corpo inteiro
sofria espasmos.
Quando terminei, tirou o dedo de mim e enfiou na boca.
— Você é muito saborosa — disse, ofegante.
Antes que eu pudesse responder, ouvimos um barulho. Era uma das
aeromoças empurrando um carrinho cheio de comidas e bebidas.
Puxei a calça com pressa e arfei.
— Com licença — disse ela, com um sorriso profissional nos lábios.
— Estão servidos de alguma bebida ou comida?
Engoli em seco, perguntando-me se meu rosto estava denunciando o
que eu tinha acabado de fazer. Eu nem conseguia respirar direito e Matthew
ainda estava… Bem, bem acordado. Ele cruzou as pernas tentando disfarçar
e disse:
— Por favor, pode deixar duas jantas e duas Cocas.
Ela fez o que ele pediu e perguntou:
— Seria muito incômodo se eu pedisse uma foto sua? Minha filha é
muito fã.
— Claro que não — respondeu. — Antes de descermos do voo, faço
um vídeo para ela, pode ser?
— Nossa, é sério? Faria isso? — Parecia chocada. — Ela fará
aniversário daqui a uma semana, o vídeo vai ser o melhor presente do
mundo!
— Ótimo! — Ele sorriu, gentilmente. — Vamos jantar e assistir a um
filme agora; da próxima vez que entrar aqui, farei o vídeo.
— Não sei nem como agradecer!
— Só para que eu possa me programar, diga qual vai ser o horário
exato em que voltará?
— Agora só daqui a três horas, passando com o chá da noite. A não
ser que queiram alguma coisa antes, aí é só apertar aquele botão.
— Certo. Quando você voltar, daqui a três horas, faremos o vídeo
para sua filha. Se eu precisar de alguma coisa antes, apertarei o botão.
— Combinado. Muito obrigada, MatLew! Com licença. — Ela fez
uma reverência para nós dois e se retirou, fechando a porta às suas costas.
— Quase fomos pegos — comentei em um sussurro assustado.
— A adrenalina é a melhor parte — ele comentou e sorriu. — Mas
agora já sabemos que ela volta só daqui três horas, podemos fazer o que
quisermos até lá.
— Sim. Agora é a sua vez.
— Minha vez?
— Sim. Sua vez de sentir prazer.
— Se está sentindo prazer, meu amor, eu também estou. Minha
prioridade é você. Sério, não tem noção do quanto gosto de saber que está
sentindo prazer, isso é melhor do que qualquer coisa.
Ouvir aquelas palavras me deixou feliz ao extremo. Nunca imaginei
que pudesse existir um homem que colocaria meus sentimentos acima dos
dele, principalmente em momentos como aquele.
— Isso é sério? — perguntei.
— Sim, com certeza.
Refleti e me dei conta de que, todas as vezes que eu e Matthew
fizemos amor, eu sempre cheguei ao meu auge primeiro. Ele esperava pelo
meu momento e parecia realmente sentir prazer me olhando em meio aos
meus espasmos. Depois, sim, Mat não aguentava mais e me acompanhava
no gozo.
Um completo cavalheiro, era o que ele era.
Mesmo sabendo sobre suas prioridades, senti uma vontade extrema de
lhe dar prazer. Era mais do que merecido, depois do que me fizera sentir
havia pouco.
Eu nem sabia se eu podia fazer o que fiz, mas, sem pensar direito, abri
meu cinto e me sentei em cima de Matthew. Ele me olhou com olhos de
cobiça pura. Tirei o cinto dele também e rebolei em sua rigidez. Ele arfou
enquanto segurava minha cintura.
Nós nos beijamos com ambição, segurando-nos um contra o outro
com apetite.
— Nossa, Marília. — Ofegou, com os olhos fechados. — Você é a
mulher mais gostosa do mundo. — Beijei seu pescoço com entusiasmo e
decidi continuar com todo furor possível. — Você vai me apertar igual
apertou meu dedo?
— Com certeza — sussurrei em seu ouvido.
— Nossa.
Ele mal conseguia se conter. Segurou-me com força e me pressionou
contra si, gemendo baixo.
As bocas se grudaram e as línguas se enlaçaram.
Eu não sabia como ficar no comando, nunca tinha ficado em toda a
vida, mas Matthew parecia estar gostando, então continuei seguindo meus
instintos — e algumas dicas das minhas amigas —, movendo-me em cima
dele.
Em um movimento rápido, desfiz o laço do cordão de sua calça e a
abaixei um pouco, só o suficiente para tirar seu membro para fora. Ele
pulsou e pareceu dobrar de tamanho assim que se viu livre.
Olhei para Matthew, mas ele parecia estar perdido em outro planeta
que não a Terra. Parecia estar desesperado por mim, desfazendo-se aos
poucos.
— Espera — ele disse, antes que eu tirasse minha calça. — Pegue um
cobertor, não quero correr o risco de que alguém te veja sem roupa.
— O melhor de tudo não era a adrenalina? — Sorri de um jeito sem-
vergonha, mas obedeci a sua sugestão.
Peguei um cobertor e o desdobrei. Enquanto isso Matthew colocou
em si mesmo um preservativo.
Tirei minha calça e me sentei em seu colo novamente, colocando o
cobertor sobre mim.
Ele passou as mãos pelas minhas pernas com carinho. Ergui o corpo e
o encaixei em mim. Quando me sentei novamente, ele me preenchendo,
Matthew gemeu de puro prazer.
Fiz movimentos repetitivos, subindo e descendo, rebolando e me
mexendo. Nós dois ficamos enlouquecidos e extremamente excitados,
gemendo e ofegando juntos.
Nos beijamos com propriedade e nos apertamos, sedentos.
Depois de um tempo perdidos em prazer, Matthew segurou minha
bunda e me forçou para cima e para baixo, com agilidade. Eu o senti tão
fundo que prendi a respiração, abrindo a boca em busca de ar.
Sua penetração foi tão rápida e intensa, que meus olhos lacrimejaram.
Mordi seu ombro e segurei o banco do avião até quase rasgá-lo.
Matthew me forçava contra ele repetidas vezes e gemia
calorosamente, de um jeito que me fazia derreter. Eu estava tão molhada
que escorregávamos sem impedimento nenhum.
Ajudei nos movimentos, galopando com ganância e desejo.
— Meu Deus, nossa! — ele disse, segurando meu cabelo e me
beijando. — Desse jeito eu não vou aguentar.
— Estou chegando quase lá. Não para, não para.
Matthew continuou com avidez, me beijando e me forçando contra si.
Quase gritei quando senti minha genitália se contrair.
— Isso — ele gemeu. — Me aperta.
Apertei o máximo que pude e gememos juntos, ambos gozando.
Tremi tanto que, se Matthew não estivesse me segurando, acho que
teria caído no chão. Caímos na risada depois.
— Gosto que você tenha orgasmos só para mim — ele disse. — Só
para mim.
Soltei uma risada.
— Você foi o único que conseguiu essa proeza — elogiei, ainda
ofegante.
— Vai ser assim para sempre. Você é a minha prioridade, o amor da
minha vida. Amo te ver assim, se derretendo por mim.
Beijei-o com carinho.
— Você é um cavalheiro gentil.
— E eu te amo.
— Também te amo. — Eu o abracei e cheirei seu pescoço. — Eu te
amo muito.
Ele acariciou meu rosto e disse no meu ouvido:
— Está pronta para passar todas as horas deste voo fazendo amor
comigo?
— Superpronta.
Quando chegamos em casa, Marília ficou boquiaberta.
Minha mãe pediu para que os empregados ajeitassem o hall de
entrada com bexigas e uma decoração de boas-vindas.
Sinceramente, fui pego de surpresa também. Eu não fazia ideia do que
ela vinha tramando. Fiquei muito satisfeito pela forma como Marília foi
recebida. Eu tinha jurado lhe dar uma família, que seria amada, e queria que
tudo corresse conforme meu planejamento.
Mostrei a ela a casa, cômodo por cômodo, e deixei seu quarto por
último. Percebi que Lia estava com a voz embargada, mas não a questionei,
principalmente porque percebi seu sorriso constante e seu olho esquerdo de
um amarelo exuberante. Ela estava feliz. A voz alterada era de emoção.
Quando abri a porta de seu quarto, a luz da claridade solar nos
golpeou. O ambiente era extremamente arejado, bem claro, superbonito e
grande. A parede principal, onde ficava a cama king-size, estava lindamente
decorada com flores laranja, do jeito que eu havia pedido.
Havia uma smart TV de setenta polegadas, nichos com uma
decoração feminina linda e delicada, uma ampla área de estudos com
planners, um notebook, cadernos, agendas, Post-its, canetas de todas as
cores e pastas. Um tapete peludo e aconchegante da mesma cor das cortinas
de alta-costura e um guarda-roupa de cinco metros de comprimento, com
várias portas e separações para comportar as coisas de Marília.
Notei um móvel com vários porta-retratos e quadros de tamanhos
médios e pequenos, com pinturas e frases motivacionais que combinavam
com todas as cores da decoração do quarto. Não havia fotos ainda e me
peguei imaginando todas as aventuras que eu e Marília poderíamos registrar
para expor ali.
Ela se demorou um pouco, olhando vagarosamente para todos os
detalhes do cômodo. Após alguns longos minutos de silêncio, virou-se para
mim. Os olhos estavam marejados e a boca, franzida.
— Ah, meu amor… — disse, e foi o suficiente para Marília cair no
choro.
Abracei-a e acariciei seus cabelos.
— Obrigada — Lia disse, com a voz trêmula.
Beijei sua cabeça e permaneci abraçado com ela até que se acalmasse.
Foi um choro sentido, cheio de dor. Enquanto isso, continuei observando o
quarto. Era a sua cara, exatamente tudo tinha a cara da minha garota.
Perguntei-me como meu pai conseguira fazer algo tão parecido com uma
pessoa a qual ele nem ao menos conhecia.
— Nunca imaginei, em toda a minha vida, que eu teria um quarto
assim — Marília disse, limpando as lágrimas que escorriam por seu rosto.
— Gostou?
— Eu amei. É perfeito!
Olhei-a nos olhos e limpei seu rosto com os polegares.
— Você merece, meu amor. Merece o mundo! Isto aqui é pouco perto
do que vai conquistar a partir de agora.
— Matthew, muito obrigada. Não sei o que posso fazer para retribuir
tudo isso.
— Deixe-me pensar. — Olhei para o teto, pensativo, enquanto ainda a
segurava nos braços. — Já sei! — Eu me aproximei e sussurrei em seu
ouvido. — Deixe sua porta sempre destrancada para eu poder entrar e te
amar todas as noites.
— Engraçadinho.
Segurei seu rosto e a beijei amavelmente.
— Nós vamos ser muito felizes.

A próxima semana foi um pouco corrida para mim e Marília. Tivemos


que posar para três revistas diferentes, o que nos resultou em dezenas de
fotos tiradas. Também tive que comparecer a dois programas televisivos.
Levei Marília comigo, mas ela não participou deles. Fiquei com
receio de expô-la demais. Cedo demais.
Pedi para que Elliot não marcasse mais nada por enquanto, pelo
menos não pelas próximas semanas. O que havíamos feito já era o
suficiente para mostrar, e comprovar, ao mundo que eu estava
comprometido. Era isso que o público exigia.
Passamos as próximas três semanas viajando pelo Canadá. Uma em
Vancouver, outra em Montreal e mais uma em Quebec. Mostrei a maioria
dos pontos turísticos a ela e registrei a maior quantidade de momentos
possível por meio de fotografias.
Lia estava a cada dia mais bonita, mais solta, mais livre. Ria e
gargalhava com mais frequência, comia com mais entusiasmo, escolhia
presentes para comprar com menos vergonha e me beijava em lugares
públicos com mais desenvoltura.
Conversamos sobre muitas coisas e conheci ainda mais detalhes sobre
ela. Amei conhecer cada um de seus gostos, e fiz questão de registrar todos
eles na memória, para que nunca mais esquecesse.
Levei alguns dos meus cadernos para a nossa viagem, e li para
Marília boa parte dos meus sonhos. Eu queria que ela me conhecesse tanto
quanto eu a conhecia. Não queria que entre nós existissem segredos,
deveríamos ser como um livro aberto um para o outro.
Conversamos mais sobre sua vontade de trabalhar, estudar e ter seu
próprio dinheiro, e a ouvi dizendo que sentia como se não se encaixasse em
área nenhuma. Deixei claro que não precisaria ter pressa para se descobrir.
Inicialmente, o que ela mais precisava era de tempo, tempo para si mesma.
Dinheiro nunca seria um problema. O único ponto para se preocupar
era a escolha de algo que a fizesse feliz. Uma carreira que quisesse seguir
para o resto de sua vida e que lhe permitisse realizar seus desejos
profissionais.
Eu via muito potencial nela, tinha certeza de que Lia conseguiria ser
qualquer coisa que escolhesse. Era dedicada, eficiente, dinâmica e ágil.
Ela poderia não ter percebido ainda seu valor, mas eu a faria ver isso.
Pouco a pouco, eu chegaria lá.
Quando voltamos, minhas consultas com a Dra. Nancy já estavam
marcadas. Ela indicou sua própria irmã para tratar de Marília, então, como
eu confiava plenamente em minha doutora, agendei as primeiras consultas
para a minha namorada também.
Eu estava com saudade da minha terapeuta. Com a correria da turnê,
não consegui manter uma frequência com minhas consultas, mas ela nunca
deixou de me mandar mensagens e perguntar como eu estava.
Quando a vi novamente, Dra. Nancy veio ao meu encontro e me
abraçou. Achei inusitado, pois eu nunca a tinha abraçado antes. Ela era
séria, porém nos conhecíamos havia tantos anos, que um abraço só me fez
gostar ainda mais dela.
— Fiquei sabendo que achou a sua garota — comentou, assim que
nos sentamos de frente um para o outro; seus lábios sorriam genuinamente.
— Sim, doutora. Às vezes ainda não consigo acreditar que a
encontrei. Em algumas manhãs, acordo achando que tudo não passou de um
sonho, mas, então, olho para o lado e a vejo dormindo. Ela é tão linda, que
me pego pensando que nunca mais quero parar de viver essa fase. Quero
todos os dias acordar ao lado dela.
— Entendo, Matthew. Dei uma olhada na revista People, ela é
realmente muito bonita, bem exótica. É exatamente como nos seus sonhos?
— Sim, exatamente. Sem nenhum detalhe a mais ou a menos. Na
aparência, quero dizer.
— Certo. Pela sua fala, compreendi que ela possui alguns pontos
comportamentais diferentes do que você sonhou. Certo?
— Sim. Sei que ela é exatamente a garota dos meus sonhos, mas
algumas atitudes são diferentes. Eu só quero que perceba que está segura
comigo, que agora vai ter uma nova vida, que vai ser feliz.
— Ok. Quer conversar sobre isso? Como tem sido seu relacionamento
com ela?
— Bom. Ótimo, na verdade. Ela é muito fofa, muito carinhosa, dedica
toda a atenção a mim. Percebo que faria qualquer coisa por mim. Seu amor
é tão verdadeiro quanto o meu.
— E qual é o problema, então?
— O problema é que eu quero que faça isso por si mesma. Entenda,
não estou reclamando. Eu amo ficar com ela, amo beijá-la e abraçá-la o
tempo todo. Só quero que ela se ame mais, quero que perceba que amar a si
mesma vem em primeiro lugar.
— Ela é muito carente?
— Sim, muito. Novamente, não estou reclamando, não quero que
nossa proximidade mude. Só não sei o que fazer para que ela perceba o
quanto é valiosa. Lia não acredita em si mesma, tem o psicológico muito
abalado e subconscientemente acha que não é digna de uma comida boa,
uma roupa boa, um quarto bom. Sua criação foi uma merda, desculpe a
expressão. Agora acha que o mínimo já é o suficiente. E eu quero dar o
melhor, em grande quantidade, o mais caro, o mais bonito. Percebi que ela
está melhorando de uns dias para cá, mas ainda há uma resistência.
— Matthew, quanto tempo você demorou para achá-la?
— Dezenove anos.
— Pois bem. Agora, depois de dois meses e meio, você quer mudar o
que ela aprendeu que era certo durante dezenove anos?
Permaneci em silêncio diante de sua pergunta. Ela continuou:
— Pense comigo: você vive no luxo há anos, está acostumado a
viajar, comer do bom e do melhor, comprar das roupas mais caras e passar
perfumes que custariam um ano de trabalho de qualquer pessoa assalariada.
De repente encontra alguém que quer que você comece a comer cachorros-
quentes de esquina, comprar roupas sem marcas, usar perfumes baratos e,
em vez de viajar, começar a frequentar a praça perto da sua casa. O que
acharia disso?
— Seria bem difícil me acostumar.
— Exatamente! É por isso que tem sido difícil para Marília. Você
precisa ir com calma, se desvincular de uma criação de dezenove anos não é
fácil.
— Entendo — eu disse baixo, olhando para minhas mãos.
— Te incomoda que ela queira do mais barato?
— Não. É só que…
— Você quer lhe mostrar que ela pode ter mais — não foi uma
pergunta, foi uma afirmação.
— Isso.
— Vá com calma, Matthew. Quando saírem para comprar alguma
coisa, deixe que ela escolha e não a questione. Não tente mudar a opinião
dela para que compre do mais caro. Com o tempo, sua namorada vai
perceber que está tudo bem gastar mais dinheiro se, claro, vocês tiverem
condições para comprar.
— Entendi. Vou fazer isso.
— Talvez, se você fizesse um cartão com o nome da Marília, ela se
sentisse mais à vontade.
— Pretendo fazer isso.
— Muito bem. E não esqueça: seja paciente, converse muito com ela
e mostre que, com você, não haverá restrições em relação ao dinheiro.
— Está bem.
— Me conte como a conheceu. Como tem sido estar ao lado de quem
você tanto ama.
Contei a ela em detalhes como conheci Marília, com um sorriso que
transparecia até em meus olhos. Contei sobre sua reação quando me ouviu
contar pela primeira vez sobre os sonhos, contei a respeito do nosso
primeiro toque, mencionei seu acidente, e constatei que não nos
desgrudamos mais depois disso. Expliquei sobre a morte de sua mãe e sobre
o colar.
— Só há uma única coisa que ainda me restou como dúvida —
declarei.
— E o que seria, Matthew?
— Se conheci Marília aos quatro anos, por que comecei a sonhar com
ela aos dez? E nós conversamos em línguas diferentes, como posso ter
sonhado que conversávamos na mesma língua? Como pude conhecê-la
tanto em meus sonhos se tenho certeza de que não entendi nada enquanto
conversávamos na vida real?
Dra. Nancy abriu um sorriso.
Lancei um olhar rápido para o relógio que estava na parede atrás dela.
Faltavam somente dez minutos para que terminássemos. Nem percebi que
acabei passando quarenta minutos em um monólogo.
— Há duas partes do nosso cérebro que se chamam córtex e sub-
córtex. Nesses dois lugares, todas as nossas memórias são armazenadas.
Algumas ficam mais nítidas em nossa mente, mas outras, por sua vez,
acabam perdendo força e sendo esquecidas. Eu disse esquecidas, não
apagadas. Os anos vão se passando e acabamos esquecendo de muitas
coisas, mas, por incrível que pareça, essas lembranças ainda estão lá,
guardadas.
— Foi o que aconteceu comigo. Viajei com minha família para o
Brasil quando eu tinha quatro anos e, com o passar dos anos, acabei me
esquecendo disso.
— Exato. E, quando você viu as fotos que o fotógrafo tirou, o que
sentiu?
— Senti como se estivesse me lembrando.
— Aí está o ponto! As memórias são esquecidas, mas não apagadas.
Uma vez que voltam à tona, vão ficando cada vez mais nítidas, assim como
eram em seus sonhos.
— Meus sonhos eram lembranças — sussurrei comigo mesmo.
Eu já sabia que eram lembranças, mas falei como se tivesse a intenção
de fixar isso ao momento.
— Vou te fazer uma pergunta: você já passou por um momento de
completo êxtase? Sabe quando você pensa que aquele momento é seu e
apenas seu? Como se, caso vivido por outra pessoa, não fosse tão intenso
quanto foi com você? Pense bem. São momentos de pura alegria, que fazem
suas veias chacoalharem de adrenalina e seu coração bater rápido.
— Sim. Só passei por isso duas vezes na vida.
— Me conte as ocasiões, por favor.
— Sinto isso quando estou com Marília. Todas as vezes. É como se
ela tivesse sido feita exatamente no meu molde, exatamente para mim. Meu
coração bate rápido todas as vezes que sinto o cheiro dela. Paro de respirar
sempre que ela sorri. E, quando a toco, é como se o mundo todo parasse,
como se toda a energia nuclear estivesse em minhas mãos, e eu pudesse
senti-la.
Dra. Nancy sorriu sem mostrar os dentes e fez um gesto com a mão,
indicando que eu continuasse.
Continuei:
— Sinto o mesmo todas as vezes que piso em um palco para fazer um
show. São os dois momentos que sinto, no fundo da minha alma, que são
meus, de mais ninguém.
— É comprovado cientificamente que, quando estamos muito felizes,
quando alcançamos o auge do nosso êxtase, nossa mente puxa memórias
das quais sentimos o mesmo impacto.
Eu me movi em minha poltrona e arregalei os olhos após uma rápida
reflexão.
Nancy balançou a cabeça positivamente.
— Então…
— Exatamente — ela confirmou. — A memória que você tinha de
quando conheceu Marília havia sido guardada, você nem se lembrava mais.
Mas quando pisou no palco pela primeira vez aos dez anos, lá no programa
Canada’s Got Talent, sua mente começou a trazer à tona o momento em que
sentiu a mesma felicidade.
— Por isso sonhei com ela naquela noite.
Nancy confirmou novamente, ainda com um sorrisinho nos lábios.
— Isso é incrível! — disse em tom de incredulidade.
Pisquei algumas vezes, tentando absorver tudo.
— Nunca subestime nosso cérebro, Matthew. Ele é a máquina mais
potente que existe. Acredite, todas as vezes que me ponho a estudar sobre o
cérebro humano, eu me surpreendo ainda mais com o que ele pode fazer.
— Nossa! — exclamei, reflexivo.
— Sobre sua outra pergunta, tenho algumas suposições, mas não
posso dizer com toda certeza se foi isso que aconteceu. Existe um estudo
que diz que há a possibilidade de aprendermos outras línguas enquanto
dormimos. Sei que você não fala português, mas, pode ser que seu cérebro
tenha armazenado algumas informações que Marília te deu anos atrás,
quando se encontraram pela primeira vez, e tenha te feito entender,
inconscientemente, algumas coisas as quais ela disse.
— Isso explicaria muita coisa.
— Fora isso, pode ter havido deduções por conta da maneira que ela
agiu. Por exemplo, você pode ter percebido que o olho esquerdo dela
mudava de cor justamente porque viu isso acontecendo quando ela era
pequena. Não quer dizer que, em algum momento, ela te disse algo a
respeito. Entendeu?
— Entendi.
— Não posso te dar certeza de nada do que te disse, mas é o que
possivelmente aconteceu.
Sorri por dentro, preferindo pensar que, além do que havia acabado de
ouvir, eu e Lia tínhamos uma conexão incompreensível.
Gosto de pensar que minha mente se conectou e se apaixonou por ela
antes mesmo que eu me desse conta disso.
— Então… acho que tudo se encaixa agora.
Dra. Nancy não disse nada, só ficou me olhando com um olhar
brilhante de orgulho.
Alguns segundos de silêncio se passaram, mas nem percebi, pois
minha cabeça parecia estar rodando com todas aquelas informações.
— Como posso ter passado tanto tempo achando que ela não existia?
— O que posso dizer é: viva o agora, Matthew. Aproveite sua garota,
aproveite sua vida. Não fique remoendo o passado, não fique se
perguntando o que poderia ter acontecido se você tivesse descoberto tudo
antes. Só entenda que as coisas acontecem porque elas devem acontecer.
Não há possibilidade de voltar no tempo, porque não somos donos dele. E o
tempo passa, devagar ou rápido, ele passa, e não podemos mais voltar atrás.
Portanto, viva o agora, aproveite cada segundo da sua vida daqui para a
frente.
— Obrigada, doutora — agradeci.
E, sem que eu pudesse conter, meus olhos se encheram de lágrimas.
Ela tinha razão: A vida é muito valiosa para ficarmos remoendo o que não
podemos mudar.
Decidi, internamente, me dedicar a cada segundo da minha vida a
partir daquela data. Desejei, com toda a minha alma, viver a felicidade que
Marília me proporcionava em cada momento da minha existência. Porque
ela havia sido feita para mim, assim como meus shows, minhas músicas,
minha carreira. Eram o sonho mais bonito que eu poderia ter. Portanto, eu
precisaria viver para eles também, com toda a garra, com todo o empenho.
Marília merecia isso.
~Dez anos depois~

Criei o hábito de acordar cedo, antes mesmo que meu despertador


tocasse. Mas estranhei ter acordado e me deparado com o quarto ainda
escuro. Pisquei vagarosamente algumas vezes e senti. Senti sua pele contra
a minha, me acariciando.
Todas as vezes que ele me tocava era assim. Diferente. Eu sabia que
era Matthew sem nem ao menos precisar vê-lo para me certificar.
Abri os olhos de súbito e virei o rosto.
Era ele.
— Você está aqui! — exclamei, toda feliz.
— Sim, meu amor. Acabei de chegar.
Levantei-me em um pulo e o abracei com toda a minha força.
— Eu estava com saudade — disse ao meu ouvido. — Com tanta
saudade!
— Meu Deus — choraminguei, sentindo meus olhos se encherem de
lágrimas. — Eu também!
Matthew segurou meu rosto e me olhou por um instante. Seus olhos
também estavam marejados. Depois, me beijou com firmeza, com saudade.
Retribuí o beijo, sentindo seu gosto maravilhoso me inundar.
Que saudade!
— Achei que você voltaria semana que vem — comentei, limpando
os olhos.
— Adiantei meu trabalho para vir antes. Quero te fazer companhia
em sua viagem.
— Eu não acredito! — vibrei. — Sua turnê está oficialmente
terminada?
— Sim.
Sorri. Ele também sorriu. Depois puxou meu rosto para encher-me de
beijos, até chegar à minha boca novamente.
Eu queria engoli-lo. Mas talvez nem isso fosse suficiente para acabar
com a minha saudade tão logo.
Fazia exatamente dois meses que eu não via meu marido. Sim, eu e
Matthew estávamos casados havia sete anos. Selamos nosso matrimônio em
uma das praias mais bonitas de Vancouver, no Canadá.
Mesmo que eu já estivesse acostumada com o mar e com a areia,
parecia que minha admiração pela paisagem nunca mudava. Eu continuava
perdendo o fôlego todas as vezes que estava diante do oceano.
Casar na praia foi uma escolha instantânea e mútua, minha e de
Matthew. Como se não houvesse outra opção que se encaixasse melhor a
nós dois.
Pagamos pela interceptação do local, e fechamos a praia inteira para a
nossa cerimônia. Fora perfeita, bonita, chique, glamorosa. Assim como meu
vestido e as vestes do meu marido.
Fizemos uma festa estrondosa, com mais de dez mil convidados.
O assunto rendeu por semanas a fio, principalmente pelo fato de que
éramos o casal mais cobiçado do momento.
Hoje, eu e Matthew ainda somos cobiçados, mas com uma
intensidade menor. O foco passou a não ser mais nosso relacionamento, e
sim nossa carreira.
Ele ainda estava a todo o vapor com a banda, com cada dia mais fãs,
cada dia mais fama, mais visibilidade. Suas músicas estavam estouradas, e
sua imagem, estampada em cada canto do planeta.
E eu… Bem, eu me tornei uma advogada criminalista extremamente
bem-sucedida, com especialização em violência contra a mulher.
Comecei a estudar poucos meses após ter me mudado para o Canadá
com Matthew, há dez anos.
Acabei descobrindo, sem querer, minha vocação como advogada em
uma consulta terapêutica com a Dra. Esmie, irmã da Dra. Nancy. Descobri
que nada mais se encaixava melhor a mim do que lutar contra homens que
violentam mulheres.
Quando terminei a faculdade, arrumei um primeiro emprego como
advogada pouco tempo depois. Mesmo assim, não parei de estudar. Meu
sonho era muito maior do que somente advogar. Eu queria lutar pelos
direitos das mulheres, queria ser a melhor nisso, bater metas ao colocar
homens abusivos na cadeia. Quando coloquei o primeiro estuprador atrás
das grades, foi tão prazeroso quanto um orgasmo. Por esse motivo, só me
aprofundei no assunto, cada vez mais.
Certo dia, há aproximadamente quatro anos, duas mulheres me
contrataram para que eu as ajudasse em um processo delicado contra um
homem que havia abusado delas física e sexualmente. O caso gerou um
rebuliço tão grande, que acabou nas televisões. Depois disso, outras quinze
mulheres apareceram com declarações semelhantes contra o mesmo
homem.
Em uma conversa com Anne, minha sogra, ela me deu a ideia de abrir
um centro de ajuda para mulheres que sofrem agressões,
independentemente de seu grau.
Matthew e Robin apoiaram a ideia e deram suporte em tudo, até que o
projeto se tornasse real. Hoje, sou dona de vinte e cinco centros de ajuda,
cada um com mil e quinhentas residências para mulheres desabrigadas,
suporte psicológico e psiquiátrico.
Tenho orgulho de quem me tornei, e tudo isso não teria se dado caso
eu não tivesse sofrido tudo o que sofri no passado. Demorei a entender que
o momento complicado não vem necessariamente para nos matar, ou nos
derrubar. Muitas vezes ele vem para nos tornar mais fortes, mais
experientes.
Eu poderia ter escolhido não acreditar mais no amor, poderia ter
escolhido não confiar mais em ninguém, ter desistido de lutar para ter uma
família ou uma vida melhor. Mas, ao contrário disso, decidi que nunca seria
tarde demais para tentar ser feliz.
Nem todo mundo é mau. Nem todas as pessoas que surgem na nossa
vida parecendo ser anjos, são demônios disfarçados. Às vezes são mesmo
anjos.
A confiança não é algo fácil de reconquistar, mas vale a pena dar mais
uma chance ao amor, à vida. Vale a pena.
Se eu não tivesse acreditado, talvez não tivesse dado uma chance ao
Matthew. Talvez não tivesse descoberto o amor mais puro e verdadeiro do
mundo. Talvez não tivesse vivido a felicidade plena. Ou não tivesse tido a
oportunidade de experimentar ser amada com tanta força.
Valeu a pena para mim.
Matthew conseguiu me tirar de um poço que achei nunca ter fim.
Achei que eu cairia, e cairia, e cairia, para o resto da vida, sem nunca
chegar de fato ao fundo.
Mas nem sempre tenho razão. Graças a Deus por isso, na verdade.
Eu me tornei a mulher mais realizada do mundo, consegui confiar
novamente, consegui amar de verdade, consegui dar um fim ao meu medo
— sendo bem sincera, agora eu dou medo aos homens que fazem mal às
mulheres, e gosto disso —, consegui entender que mereço o melhor,
consegui ver valor em mim. Entendi que eu tenho valor, e ele não é baixo. É
bem alto, na verdade.
Nunca achei que a pior fase da minha vida poderia me ensinar tanto.
Nunca achei que o maior sofrimento que um dia senti, poderia me
transformar completamente.
Mas decidi reverter a minha história, usar o que passei para ajudar
outras mulheres.
Eu bem me lembro que fiquei na casa de Luiz por tanto tempo
sofrendo agressões porque não tinha para onde ir, não tinha apoio. Eu bem
me lembro que foi muito difícil me desvincular das agressões do meu pai.
Foi muito difícil partir. Eu tive medo.
Como eu poderia permitir que outras mulheres passassem pelo
mesmo, sem que eu nada fizesse para ajudar? Portanto, eu quis ser o apoio
delas, eu quis ser o porto seguro.
Durante os últimos anos, eu e minha ótima equipe abrigamos mais de
cem mil e duzentas mulheres. Todas elas fugindo do agressor, todas com
medo, achando que cairiam para o resto da vida no mesmo poço sem fim de
que um dia eu achei que nunca sairia.
Acabei servindo de exemplo para muitas pessoas, em todo o mundo.
Briguei com unhas e dentes por mudanças de leis antigas, leis
machistas e cheias de furos que não davam suporte suficiente às mulheres.
Saí em passeatas, em protestos, e não parei até que tivesse, pelo menos, três
quartos do mundo ao meu favor, lutando comigo.
Quando me dei conta, estava diante da Suprema Corte, exigindo a lei
de castração.
A luta por essa nova lei foi tão intensa, que meu rosto ficou
estampado nas televisões de praticamente oitenta por cento dos países do
mundo. Tive muito apoio, muito incentivo.
Finalmente nossos gritos foram ouvidos, nossa dor foi sentida, nosso
medo foi divulgado. Agora, após meses de espera, a lei da castração fora
aceita. E não somente no Canadá, mas em mais três países do mundo.
Toda luta é árdua, é um trabalho de formiguinha. Mas eu me sentia
vitoriosa. Ouvida, abraçada.
— Você está tão linda — Matthew disse, abraçando-me ainda mais
forte, acariciando meus cabelos e os cheirando.
Ele parecia querer inalar cada partícula do meu rosto e dos meus fios
vermelhos.
— Eu estava dormindo — comentei. — Não devo estar tão bonita.
— Mas está. — Segurando meu rosto, ele me encheu de beijos
novamente, chegando até minha boca e beijando-a também. — Senti falta
do seu gosto.
— Eu também.
Matthew mordeu meu lábio inferior e o chupou.
Ele estava com uma aparência diferente de quando nos conhecemos.
O cabelo sempre fora uma de suas marcas registradas, então tinha que
sempre manter o estilo e o bom cuidado. Agora, no entanto, não era mais
comprido, como antes. Era curto, tinha uma aparência despojada e bem
estilosa.
Seu corpo parecia mais maduro, mais forte, mais rígido. Tudo nele
estava tão bonito que me fazia salivar.
Ele havia feito mais algumas tatuagens também, o que lhe dava um ar
misterioso.
Seus olhos verdes estavam mais vivos do que nunca, iluminando suas
feições majestosas mesmo no escuro do quarto.
O rosto estava mais maduro também, apesar de transparecer sua
jovialidade em cada expressão.
Levantei os braços e enlacei seu pescoço, Matthew aproveitou nossa
proximidade para me puxar para seu colo. Nossa diferença de altura era
muito nítida, com certeza ele começaria a sentir dores nas costas se
continuasse curvado para me beijar.
Passei as pernas por sua cintura e o olhei de perto, rosto com rosto.
— Eu te amo — ele sussurrou.
— Eu também te amo, Matthew.
— Acho que não vou conseguir te soltar tão breve.
— Não solte, por favor. Estou com tanta saudade que dificilmente vou
conseguir superar sua presença aqui nos próximos dias.
— Agora as férias chegaram, meu amor. Ficaremos muito tempo
juntos a partir de hoje.
Eu mal conseguia acreditar. Finalmente!
Sorri, com os olhos ainda marejados.
Senti minha boca ser beijada com mais entusiasmo. Retribuí cada
movimento atentando-me às explosões de sabores que me inundavam o
paladar. Ele tinha gosto de esperança, liberdade e dias ensolarados.
Segurei-o com força e apertei ainda mais as pernas, enquanto ele
descia as mãos pelo meu corpo.
O toque dele. Esse toque. Meu Deus!
Despencamos na cama pouco tempo depois, eufóricos, desesperados
para matar nossa saudade, nosso anseio pelo outro.
Tiramos as roupas em instantes.
— Eu quero — Matthew sussurrou ofegante, enquanto nos
beijávamos.
— Também quero você. — Puxei-o para ainda mais perto,
desesperada para senti-lo dentro de mim.
— Não, meu amor, eu quero.
Parei por um instante, olhando-o com atenção. Nosso peito descia e
subia com agilidade.
Os olhos se conectaram. Havia tanto amor nesse contato, que foi
quase palpável.
Matthew sorriu me analisando.
— Eu quero — ele repetiu.
Então me lembrei:
Eu e ele estávamos em casa, nossa linda casa, onde passamos a
morar após nosso casamento.
Sentei-me com as pernas cruzadas em cima do balcão da cozinha,
enquanto o assistia fazer um chá.
Havíamos completado cinco anos de casamento naquele mesmo dia.
Eu estava cansada, porque acabamos passando o dia todo fora de
casa, passeando para comemorar o nosso dia. Fora perfeito, cheio de
surpresas e presentes.
Vesti-me com o pijama menos sexy da face da Terra, daqueles de
algodão que meninas de quinze anos costumam vestir, mas, para Matthew,
eu estava linda, maravilhosa, a mulher mais charmosa do mundo.
Ele me entregou uma caneca, quente por conta do chá, e segurou a
outra, encostado no balcão, de frente comigo.
— Eu não consigo me lembrar de como era minha vida sem você —
comentou, bebericando seu chá e fazendo carinho em minha perna. Sua
palma estava quente, o que refletiu em minha pele. — Isso deve ser porque,
para mim, nunca existiu uma vida sem você.
— Você é minha vida, Matthew. Não há vida sem você.
— Da mesma forma que não há sem você.
— Somos duas partes de um todo. Eu me sinto vazia quando estamos
longe um do outro.
— Isso também acontece comigo, mesmo depois de tantos anos.
— Sei que estamos em um dia de comemoração e que eu não deveria
estragá-lo, mas…
— O que houve? — ele perguntou, atencioso, ainda acariciando
minha coxa flexionada.
— Você nem foi para sua próxima turnê e parece que já estou com
saudade.
Matthew começaria a viajar na semana seguinte, e eu não
conseguiria acompanhá-lo em todos os shows por conta do meu trabalho.
Nós nos veríamos, viajaríamos juntos, mas não com a frequência que
eu gostaria.
No fim, eu acabaria passando bastante tempo naquela casa, sozinha.
Nós morávamos perto de Anne e Robin, e eu ainda tinha um quarto
lá, mas ela costumava fazer parte das turnês junto com a banda, e meu
sogro trabalhava muito também, estava sempre ocupado.
Eu amava a minha casa, amava cada canto dela, mas preferia estar
em qualquer outro lugar do mundo com o amor da minha vida a ficar
sozinha.
Respirei fundo e Matthew apertou minha perna mostrando
compreensão.
— Vai ser difícil para mim também — ele comentou. — Ficar longe
de você por um só dia já é torturante.
— Talvez, se eu não fosse ficar sozinha…
— Por que não chama Cecília para vir ficar com você?
Cecília, minha melhor amiga havia anos, ainda morava no Brasil,
mas vivíamos nos vendo. Pelo menos duas vezes por ano, eu pagava suas
passagens para passar uns dias comigo.
— Posso conversar com ela, mas não acredito que vá poder ficar por
muitos dias. Cecília também tem o emprego dela.
Olhei para a minha caneca com o semblante caído.
Matthew levantou meu queixo e me olhou nos olhos.
— Não fique assim — ele disse.
— Está tudo bem — completei. — Faremos de tudo para estarmos
juntos nesse período, não é?
— Sim, isso eu posso garantir. Sempre que puder, virei para casa te
ver e matar a saudade.
— Está bem.
Seus lábios quentes encostaram-se aos meus com carinho.
— Você já pensou na possibilidade de ter um bebê? — ele perguntou
tão perto, que suas palavras entraram em minha boca.
Fiquei surpresa com sua pergunta, porque achei que este era o último
assunto que ele pensaria em tocar, levando em consideração nossa
correria. Éramos muito ocupados, muito atarefados, estávamos sempre
viajando, trabalhando, correndo.
Independente disso, estávamos sempre juntos. Conseguíamos lidar
com nossos afazerem em harmonia, um ajudando o outro. Mas, um bebê?
Não vou mentir, eu andava pensando muito nisso ultimamente. Se
tivesse um filho, não estaria preocupada em ficar sozinha em uma casa tão
grande e silenciosa. Eu me ocuparia ainda mais e, sempre que olhasse para
a pessoinha ao meu lado, me lembraria de Matthew. Isso poderia ajudar
com a saudade, certo?
Balanceia cabeça positivamente, respondendo à sua pergunta.
Ele sorriu.
— Tenho pensado muito nisso — disse.
— Eu também — admiti.
— Mas eu gostaria de fazer parte de cada momento da gestação.
Seria ainda pior para mim sair em turnê sabendo que deixei minha esposa
e meu filho para trás.
Concordei.
— Podemos planejar, esperar pelo momento certo.
Matthew me beijou mais uma vez, com o mesmo carinho de antes.
— Sim, podemos. Você já me faz o homem mais feliz do mundo, mas,
se eu tivesse uma mini-Marília correndo pela casa…
— Ou um mini-Matthew — interrompi-o.
— Seria extremamente realizado.
— Eu também. Acho que podemos fazer isso.
— Tenho certeza disso. Você é tão cuidadosa, responsável,
meticulosa… Não consigo pensar em uma mulher melhor do que você para
ser uma mãe.
— É só dizer eu quero e, então, também vou querer.
Enquanto Matthew esteve em turnê, não houve nenhum dia que eu
não tivesse pensado nisso. Me preparei psicologicamente para a ideia de ter
uma criança ao meu lado e amei cada segundo do meu planejamento.
Nós conversamos a respeito algumas vezes no último ano e meio, mas
sabíamos que, enquanto ele estivesse em turnê, seria bem difícil. Eu
também desejava que Mat estivesse ao meu lado durante a gestação.
Sorri ao entender o que ele queria dizer com eu quero.
Senti meu peito tremendo com uma mistura de felicidade e
adrenalina. Talvez as lágrimas começassem a cair se nós não entrássemos
com uma intervenção rápida.
— Eu também quero — acrescentei.
Foi o suficiente para que nossa boca se encontrasse novamente e
voltássemos com toda a afobação de nos sentir, de nos fundirmos um ao
outro.
— Eu te amo — ele sussurrou enquanto beijava meu pescoço.
Soltei um gemido abafado e retribuí suas palavras com toda a
sinceridade que existia dentro de mim:
— Eu te amo.
Fizemos um amor inacreditável, incansável. Tantas vezes que perdi as
contas. Só continuei, dando o melhor de mim, com toda a vontade que
ainda me enchia.
Quando acabávamos, bastava que nos olhássemos para que
recomeçássemos os amassos novamente.
Sentir o corpo dele nu contra o meu era a coisa mais deliciosa que eu
já tinha experimentado na vida. E, apesar do esforço, ficava cada vez
melhor. Impossível parar.
O sol raiou e Matthew ainda estava dentro de mim, indo e vindo com
precisão. O quarto clareou e, quando nos demos conta, olhamos um para o
outro, rindo como dois bobos.
Continuamos até que estivéssemos exaustos demais e caíssemos no
sono, sem que nem ao menos percebêssemos.
Quando acordamos, tomamos banho juntos e recomeçamos todo o
processo novamente, embaixo do chuveiro.
Eu mal conseguia andar após o banho, meu corpo inteiro doía. Mas,
tudo bem, era uma dor que carregava um significado bom.
Passamos o dia todo juntos em casa, assistindo a uma nova série da
Amazon Prime Vídeo e comendo besteiras. Foi o dia mais maravilhoso dos
últimos tempos.
— Você vai ver seu pai antes de viajar? — Matthew perguntou.
Nós estávamos sentados no sofá da sala, cobertos com uma manta.
— Sim, vou passar para vê-lo amanhã.
— Quer que eu vá com você?
Matthew, sempre tão solícito.
— Não precisa. Como você vai viajar comigo, é bom que fique em
casa arrumando suas malas. As minhas já estão prontas.
— Está bem, como quiser.
Eu não tinha notícias do meu pai havia anos. Desde que eu fugira de
sua casa, quando tinha apenas dezesseis anos. Mas, então, três anos atrás
recebi uma ligação de Rosana. Lembro-me perfeitamente como meu corpo
gelou quando ouvi sua voz.
Minha primeira reação foi querer desligar. Eu não tinha nenhuma
vontade de ouvir o que ela tinha a dizer. Pensei que talvez estivesse ligando
para pedir dinheiro ou alguma ajuda. Mas algo me fez continuar ativa na
linha. Ela disse:
— Não desligue, é sobre o seu pai.
Não falei nada, me mantive em silêncio, esperando que ela dissesse o
que precisava.
— Ele sofreu um acidente.
— Há quanto tempo?
— Dois meses.
— Só agora está me ligando. Por quê?
— Porque ele estava esse tempo todo internado. Agora o médico
disse que está de alta hospitalar.
— E o que tenho a ver com isso?
— Não vou cuidar dele.
— O que quer dizer com isso?
— Exatamente o que eu disse. Não vou cuidar dele. Está inválido e
não serve mais para ser meu marido.
Ergui as sobrancelhas, espantada com as palavras que adentraram
meu ouvido.
— Ele não serve mais para você? — perguntei, como se quisesse me
certificar de que tinha ouvido direito.
— Não vou passar os próximos anos da minha vida cuidando de um
inválido. Ainda sou jovem, tenho muito a viver pela frente, não posso
perder a minha vida dessa forma.
Não quis perguntar detalhes do que tinha acontecido e nem sobre o
estado em que meu pai se encontrava. A única coisa que perguntei, foi:
— Onde o busco?
Não foi como se eu tivesse esquecido tudo o que ele fizera para mim.
Mas é meu pai. Eu não podia deixá-lo sozinho, abandonado.
Vi-me na oportunidade de retribuir o abandono dele para comigo, mas
não quis fazer isso. Eu não era ruim a esse ponto.
Mesmo depois de tudo, ainda ansiava ouvir um pedido de perdão
saindo de sua boca. Ainda esperava que se arrependesse.
Não demorei a pegar o primeiro voo ao Brasil e trazê-lo comigo para
o Canadá.
Ele estava bem mais velho, com a pele enrugada e flácida. Mas
mesmo que os anos o tivessem castigado, ainda parecia o mesmo para mim.
Achei que não me reconheceria, ou que talvez não me aceitasse por
perto, então entrei no quarto de hospital com cautela. Meu coração batia
aceleradamente e minhas mãos suavam.
Uma única palavra resumia tudo o que eu estava sentindo e
carregando dentro do peito naquele dia: medo.
Eu estava com tanto medo que minhas pernas quase paralisaram
quando cheguei diante da porta do quarto.
Medo de apanhar porque apareci, medo de vê-lo e me reaproximar
dos meus traumas do passado, medo de que ele não me reconhecesse, medo
de que me reconhecesse e não me quisesse, medo de que não tivesse se
arrependido ou percebido que o que fez comigo foi errado, medo, medo,
medo. Muito medo.
Sua reação ao me ver foi exatamente o contrário do que imaginei. Ele
se espantou, depois sorriu, depois chorou.
Fiquei quieta, assistindo a suas reações, a respiração desordenada,
com o coração pulsando agilmente, o sangue gelado correndo pelas veias.
Ele parecia bem, apesar de estar mais velho. Só percebi o que Rosana
queria dizer, sobre meu pai estar inválido, quando ele se sentou na cama e
os enfermeiros o ajudaram a se acomodar em uma cadeira de rodas.
Ele estava sem uma perna, a direita, e sem uma mão, direita também.
Era a mão que ele usava para me bater.
Era o pé que ele usou para chutar minha costela até quebrá-la.
Engoli em seco o choro que estava entalado na minha garganta.
O médico me explicou que ele havia sofrido um acidente de trânsito
enquanto dirigia uma motocicleta. Um carro praticamente passou por cima
do lado direito de seu corpo.
Rosana não estava quando entrei no apartamento no qual passei toda a
minha infância e adolescência. O cheiro era o mesmo, os móveis, os
mesmos.
Arrumei a mala de meu pai, só fazendo as perguntas básicas e ficando
em silêncio o restante do tempo.
Já no Canadá, eu e Matthew entramos em consenso e acabamos
comprando uma casa para ele. O imóvel é simples, pequeno, com somente
um quarto. Mas bem aconchegante, com um quintal bonito e ensolarado.
Fiz questão de que, pelo menos, o banheiro fosse grande, com uma
banheira, para facilitar o processo de banho.
Depois disso, contratei algumas enfermeiras para fazerem rodízio nos
cuidados com ele. Passei a visitá-lo uma vez por semana, todas as
segundas-feiras.
Nós não conversávamos muito, somente o essencial sobre sua saúde e
as contas da casa. Ele sempre parecia sem graça perto de mim,
envergonhado.
Passou a ser rotina, todas às vezes antes de eu ir embora, ele segurava
minha mão, olhava em meus olhos e dizia:
— Me perdoe pelo que te fiz.
— Eu perdoo, pai — era sempre a mesma resposta.
Achei que não o ouviria dizer as mesmas palavras depois de um
tempo, mas já se passaram três anos e ele continua dizendo, todas as
segundas-feiras.
Eu o abraçava pelo menos uma vez por visita, mas o carinho não
passava disso. Nós não tínhamos intimidade para ir além.
Não falei mais com Rosana, nem soube mais dela. Não quis saber,
também. Não lhe desejo o mal, porém não lhe desejo o bem, de igual modo.
Não lhe desejo nada, simplesmente pelo fato de ser uma pessoa que não faz
diferença nenhuma em minha vida. Eu a excluí de mim, portanto era como
se não existisse.
Visitei meu pai no dia seguinte, assim como disse a Matthew. Ele
estava bem de saúde. Inclusive parecia mais bonito e forte do que antes.
— O que faz aqui hoje? — ele perguntou.
Estava sentado em sua cadeira de rodas, tomando um café na xícara
enquanto sentia o sol matinal no quintal aberto.
Passei a mão em uma flor laranja e expliquei, sem olhar diretamente
para ele:
— Vou viajar hoje à noite.
— A trabalho?
— Sim, a trabalho.
— Está bem. Te desejo boa viagem.
— Não passarei muitos dias fora, só cinco. Quando voltar, virei
visitá-lo novamente. Quero que me ligue se precisar de alguma coisa.
— Farei isso. Obrigado.
— Estas flores, elas são bonitas.
— Sei que sua cor favorita é laranja, então pedi para que Linda
plantasse.
Linda é uma das enfermeiras.
— Sim, flores laranja me trazem boas lembranças. Você ajudou Linda
a plantar?
— Ajudei. Gostei bastante. Pretendo, inclusive, plantar vários outros
tipos de flores e sementes.
— Acho uma boa ideia, seu quintal vai ficar bonito.
Estranhamente, um silêncio repentino me constrangeu.
— Que bom que está bem, pai. Agora vou embora. Fiquei feliz em
ver as flores.
Virei as costas e comecei a andar.
— Ei, filha — ele chamou, vindo atrás de mim com sua cadeira.
— Sim?
Meu pai depositou a xícara entre suas coxas e me estendeu a mão. Eu
a recebi e o olhei nos olhos.
— Me perdoe por tudo que te fiz.
— Eu perdoo, pai.
— Pode me abraçar?
Senti meus músculos rígidos, mas, depois de hesitar, me abaixei e o
abracei. Ele me apertou e beijou o topo da minha cabeça.
— Tenha uma boa viagem. Estarei esperando que volte semana que
vem.
— Está bem. — Eu me levantei e cocei o nariz para disfarçar os olhos
marejados.
Saí da casa e atravessei a rua. Entrei no meu carro e dirigi por mais
quinze minutos. Estacionei de frente para uma casa de esquina. Ela era
charmosa, branca, bem-cuidada, decorada com tijolinhos de cor cinza.
Olhei-a por um instante, depois desci do carro e apertei a campainha.
Avistei Lourdes vindo até mim com um sorriso de orelha a orelha.
— Minha filha! O que a traz aqui a esta hora?
— Vim tomar um café. — Sorri também.
— Que maravilha, entre! Acabei de preparar.
Lourdes, a mulher que cuidou de mim na minha infância, que me
ensinou a ler e a escrever enquanto fazia lições de casa comigo, que me
ensinou a cozinhar e a limpar, e me deu dicas de como ser uma pessoa
melhor, estava morando perto de mim agora; acabara virando uma grande
companheira.
Eu a visitava constantemente, e ela estava sempre com o café pronto
para me oferecer. Na maior parte das vezes, nós só batíamos papo, mas era
tão gostoso que eu nunca queria ir embora.
Ela era um exemplo de mulher para mim, foi a pessoa mais próxima
de uma mãe que eu tive na infância.
Retomei o contato com Lourdes quando eu estava fazendo os convites
para o meu casamento. Comecei a procurá-la nas redes sociais e a achei.
Paguei sua passagem para que pudesse comparecer à cerimônia e ela
realmente veio. Depois, fiquei sabendo que seu marido falecera e que estava
morando sozinha no Brasil. Fiz a proposta para que viesse morar perto de
mim e lhe dei essa casa de presente, por gratidão a toda ajuda que me dera
quando eu era criança. Desde então, nunca mais nos distanciamos.
— Você vai mesmo fazer essa viagem, querida?
— Vou — respondi, tomando um gole do café.
— Se sente preparada para o que quer fazer?
— Sim, estou bem confiante.
— Não está com medo? Ou com receio?
— Não, estou feliz. Cada um colhe o que planta, no final das contas.
Batalhei todos esses anos por uma intervenção justa aos abusadores. Agora
que consegui, acha que vou desistir?
— Eu tenho muito orgulho de você.
— Obrigada, Lourdes.
Eu precisava fazer o que estava planejando há meses. A lei de
castração fora aceita por minha causa, porque eu lutei por isso com várias
outras mulheres.
Olhar nos olhos do abusador sempre era intimidante, mas nunca
recuei, nunca abaixei a cabeça. Eu sustentava o olhar até que eles se
sentissem constrangidos.
Havia um caso muito específico de estupro que mexia fortemente
comigo, por isso decidi que viajaria para ficar cara a cara com essa pessoa,
e dizer, olhando em seus olhos, que eu não descansaria enquanto não
arrancassem seu pau fora.
Até hoje, nunca perdi um processo, e não vai ser agora que vou
perder.
Conversei com Lourdes por aproximadamente meia hora, depois me
ajeitei para ir embora. Dei-lhe um abraço e voltei para meu carro.
Encontrei-me com Matthew em casa, suas coisas já estavam prontas
dentro da mala de viagem.
Entramos no avião às 23h e chegamos ao Brasil aproximadamente
dez horas depois.
Fomos direto ao hotel onde ficaríamos hospedados e decidimos tirar
um tempinho para tomarmos um café.
— Você está bem? — Matthew perguntou, cuidadoso.
— Sim. Por que pergunta?
Eu só estava me sentindo… nervosa. Não era medo, era nervosismo.
— Porque seu olho está verde-escuro.
O olho. Ele sempre me entregava.
— Estou nervosa, só isso.
— Marília, meu amor. — Ele segurou minha mão e me olhou nos
olhos. — Você vai se sair bem. É a mulher mais forte e corajosa que eu
conheço, e tenho orgulho de tudo o que conquistou depois que percebeu
essa força.
— Obrigada. — Sorri em forma de agradecimento.
Subimos para o quarto do hotel alguns minutos depois. Tomei um
banho e comecei a me arrumar para meu compromisso.
Eu estava vestida somente com uma calcinha e com um sutiã,
debruçada sobre o balcão do banheiro, passando rímel nos cílios, quando
Matthew apareceu atrás de mim, analisando meu corpo.
Fingi não dar atenção enquanto ele olhava fixamente para minhas
curvas. Inclinei-me, propositalmente, ainda mais para o espelho, empinando
a bunda.
Um segundo depois, ele estava com as mãos em mim, passeando pelo
meu corpo enquanto beijava meu ombro.
— Andei pensando… — ele começou, em um sussurro.
— Hum?
— Acho uma boa ideia mostrar para você o quanto é amada, antes
que vá ao seu compromisso.
Soltei uma risadinha rápida e baixa.
— Como vai fazer isso? — desafiei, olhando-o através do espelho.
Ele beijou minha nuca, provocando arrepios em minha pele.
— Primeiro, vou beijar sua boca da maneira mais romântica que eu
puder…
— Certo. — Deixei o rímel na bancada e me virei para meu marido.
— E depois?
— Depois pretendo beijar cada parte do seu corpo.
Soltei um gemido só de imaginá-lo fazendo isso. Aproximei minha
boca da dele e perguntei em um sussurro:
— E depois?
— Depois…
Interrompi-o com um beijo.
— Não me diga — continuei sussurrando. — Me surpreenda. Me
mostre como você me ama.
Matthew me levantou com agilidade, e total facilidade, sentando-me
em cima da bancada. Consumiu-me com um beijo apaixonado, enquanto
suas mãos passeavam por mim.
Não houve nenhum segundo sequer onde não me senti amada. Ele me
tomou com beijos, depois com a língua, com os dedos e, por fim, com seu
membro rígido e grande.
Perdi a fala, perdi a sanidade. Eu podia jurar que ninguém, no mundo
inteiro, conseguiria chegar aos pés de Matthew no quesito “habilidade de
satisfazer uma mulher”.
Quando terminamos, eu me olhei no espelho e percebi que meu olho
esquerdo estava amarelo vibrante.
Ele sabe o que faz, pensei, e sabe exatamente como fazer.
Voltei a me arrumar, mesmo que minhas pernas continuassem
bambas.
Calcei saltos altos de bico fino, elegantes e envernizados, e um
vestido social preto de alta-costura. Ele ficava bem justo em meu corpo,
acentuando minhas curvas, mas não era curto e nem tinha decote.
Soltei meu cabelo e o arrumei com as mãos. Estava bem bonito e
brilhante, ondulando até o meio das costas.
— Preciso sair de perto de você — Matthew comentou, calçando seus
tênis —, esse cheiro de maçã verde me faz querer te agarrar novamente.
Soltei uma risada.
— O que achou? — Apontei para a minha roupa e dei uma volta de
trezentos e sessenta graus. — Estou bem-vestida para a ocasião?
— Você é a advogada mais gostosa que eu já vi.
— Não foi isso que eu perguntei — continuei sorrindo, talvez até um
pouco enrubescida.
Matthew se levantou e veio em minha direção.
— Você está perfeita, meu amor.
— Obrigada. — Beijei seus lábios rapidamente.
— Só falta uma única coisa.
— O quê?
Ele abriu minha caixa de joias e tirou de lá o colar da sorte. O colar
com a pedra rosa que fora da minha mãe e, posteriormente, da sua. Agora,
meu. Anne me dera assim que comecei a morar em sua casa, dez anos atrás.
Desde então, eu o tenho usado em todas as ocasiões especiais.
— Nossa, quase me esqueci. Obrigada.
Matthew o colocou em meu pescoço e aproveitou para beijar
novamente minha nuca.
— Você está linda.
Fomos de carro até o presídio. Tentamos manter uma conversa
descontraída no meio do caminho, justamente para que eu não pensasse
demais no que eu estava prestes a fazer.
Quando chegamos, Matthew não pôde entrar comigo, ficou me
aguardando na sala de espera.
Uma carcereira me acompanhou durante a caminhada em um corredor
bem comprido e frio. Era tudo cinza e, de fundo, possível ouvir uma gritaria
que parecia não ter fim.
Ela me olhava de esguelha, parecia querer me perguntar algo. Olhei-a
de volta, esperando que dissesse o que precisava.
— O seu cabelo é mesmo dessa cor?
Sempre odiei essa pergunta.
— Sim.
— É muito bonito, nunca vi uma cor assim tão linda.
— Obrigada.
— Eu acompanho seu trabalho — ela comentou. — Sou uma grande
fã.
— Fico feliz em ouvir isso. Agradeço muito.
— Nós, mulheres, que agradecemos por tudo o que tem feito ao nosso
favor. Às vezes acho que você reuniu a força de todas as mulheres caladas
do mundo e usou sua voz por nós.
— Quando uma pessoa sofre um abuso, seja ele qual for, ela se sente
impotente, se sente fraca, com medo de usar a voz. É exatamente por isso
que estou lutando, para mostrar que é possível se reerguer e lutar por seus
direitos, mesmo depois de acontecimentos tão cruéis.
— Você é um exemplo para mim, Marília. Por sua causa, tive
coragem de denunciar um assédio sexual que vivi há dois anos.
— Precisa ter muita coragem para fazer o que você fez, parabéns.
— É mais fácil quando temos apoio. Tive ajuda psicológica gratuita
em um dos seus centros de apoio aqui no Brasil.
Parei de andar por um instante e a olhei nos olhos.
— Estou realmente muito feliz em ouvir o que disse — comentei. —
Como você se sente em relação a tudo isso agora?
— Ainda estou me tratando, mas estou bem. Eu estou bem. — Parecia
que ela estava tentando convencer a si mesma.
— Olhe bem para si mesma — disse. — Olhe para o lugar onde você
trabalha. Você é uma agente penitenciária de uma ala onde estão presos
somente homens estupradores. Existe mais força aí dentro do que imagina.
— Apontei para seu coração. —Pessoas como você também fazem a
diferença.
Seus olhos marejaram e, para disfarçar, ela voltou a andar.
Acompanhei-a.
Ficamos em silêncio por um instante, o barulho dos meus saltos
ecoando no piso gelado. Gritos ao fundo.
— Posso te fazer uma pergunta? — a carcereira entoou.
— Fique à vontade.
— Esse detento com que você vai conversar agora, pretende reabrir o
processo dele?
— Sim, pretendo. Por quê? Tem algo a me dizer?
— Só gostaria de avisar que ele é ardiloso e astuto. Tem um rosto
bonito, até charmoso, eu diria, mas é um grande pilantra.
— Conheço bem esse tipo, não se preocupe. Algo mais que precise
me dizer?
— Ele é o famoso come-quieto. É preciso prestar muita atenção nele
para perceber que é perigoso e descontrolado. Já o peguei fazendo
brutalidades com outros prisioneiros aqui dentro. Depois, finge que nada
aconteceu, e ainda dá um jeito de tentar colocar a culpa em outra pessoa.
Claro, nenhum deles é santo, mas esse em específico não aprendeu nada
com a prisão.
Soltei uma risadinha.
Lei da castração.
— Acho que vai aprender depois de hoje — concluí — Ele está aqui
há quanto tempo?
— Dois anos, aproximadamente, mas sua ficha é longa. Pelo que sei,
sua primeira prisão foi por tentativa de feminicídio, agressão à sua ex-
namorada. Porém, agora está preso por estupro.
— Entendo.
— Bom, é aqui, chegamos. Boa sorte.
— Obrigada.
A agente penitenciária abriu uma porta de ferro e me deu passagem
para uma sala privada, onde somente uma mesa e duas cadeiras pairavam
no centro.
Dois guardas estavam parados perto do presidiário algemado.
Nossos olhos se encontraram. Sustentei o olhar, mostrando que desta
vez eu não estava com medo. Nem um pingo de medo.
Percebi seu semblante se desfazendo como manteiga e, de repente,
horror estampou em sua face.
Abri um sorriso.
— Olá, Luiz.
Nunca imaginei que eu teria a sorte de trabalhar com o que amo fazer.
Escrever, para mim, é como andar no gelo. É algo difícil, requer atenção,
estratégia e empenho, mas, quando se aprende, basta seguir com confiança.
Escrever este livro foi mais fácil do que eu imaginava. No começo, eu
só tinha em mente as características físicas dos meus personagens, mas,
com o passar do tempo, a história foi criando forma e se desenvolvendo.
Terminei tudo em quatro meses, o que julgo ser um tempo rápido ante
a dimensão deste enredo. Imaginei que, no decorrer dos dias, eu teria
dificuldade em desenvolver algumas cenas, mas me alegro em dizer que as
fiz com total desenvoltura, surpreendendo até a mim mesma.
Muitos assuntos abordados foram vividos, de fato, por mim. Portanto,
quero te dizer, querido(a) leitor(a), que te entendo e te compreendo nesses
aspectos, e desejo que se liberte da mesma forma que consegui me libertar
enquanto colocava para fora as palavras deste livro.
Se você está caindo e se afundando em um poço que parece nunca ter
fim, calma! Ainda existem pessoas boas na Terra, pessoas que parecem
anjos, que ajudam sem requerer algo em troca. Ainda existe amor,
compaixão e compreensão.
Desejo que você encontre todos.
Seja forte, pois há vida fora do poço, e ela é linda.
LEIA TAMBÉM

Volte quando houver uma solução


Esta é uma história que envolve muitos sentimentos, bons e ruins. Entre
eles: Tristeza, angustia, raiva e depressão, mas, muita paixão, amor, perdão
e cura.
Sophia Guliver passou por momentos difíceis que a fizeram questionar se a
vida é, de fato, boa para se viver. Um grave acidente causou traumas que a
fez se tornar uma mulher rancorosa e sem amigos.

Até que uma luz surge em sua vida, uma luz ruiva e translúcida, que muda o
rumo da sua história.

Como explicar o inexplicável?

Nicholas é alguém que mostra que a vida faz sentido, alguém que apresenta
o verdadeiro amor incondicional que o mundo anseia em viver.
Este amor prova que nada é por acaso e traz fortes reflexões sobre os altos e
baixos da vida.

Mas uma descoberta terrível os separa e a única coisa que pode fazê-los
retornar é uma solução que, em suas cabeças, não existe.

A jornada é intrigante e curiosa, requer cura e perdão, requer coragem e


força. É de esquentar o coração e amolecer os ossos.

Mas, afinal, sempre há uma solução.

Ou não?

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