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Talvez a Mensagem Certa

Giulia Russomanno
Copyright © 2022 Giulia Russomanno

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que


entrou em vigor no Brasil em 2009.

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção, não se
referem a pessoas e não emitem opinião sobre elas. Russomanno, Giulia Talvez a
mensagem certa / Giulia Russomanno.

ISBN: 978-65-00-40396-1 

São Paulo: Giulia Russomanno, 2022. Capa Eduarda Oliveira Preparação e revisão Maytê
Moreira

[2022] Todos os direitos desta edição estão reservados à Giulia Russomanno. São Paulo,
SP

www.tiktok.com/@giuliarsf www.instagram.com/bookgiuliarsf www.twitter.com/ bookgiuliarsf


Contents
Title Page
Copyright
Classificação
Sinopse
Nota da autora
Dedication
1 A.J
2M
3 A.J
4M
5 A.J
6M
7 A.J
8M
9 A.J
10 M
11 A.J
12 M
13 A.J
14 M
15 A.J
16 M
17 A.J
18 M
19 A.J
20 M
21 A.J
22 M
23 A.J
24 M
25 A.J
26 M
27 A.J
28 M
29 A.J
30 M
31 A.J
32 M
33 A.J
34 M
35 A.J
36 M
37 A.J
38 M
39 A.J
40 M
41 A.J
42 M
43 A.J
44 M
45 A.J
46 M
47 A.J
48 M
49 A.J
50 M
51 A.J
52 M
53 A.J
54 M
55 A.J
56 M
57 A.J
58 M
59 A.J
60 M
61 A.J
62 M
63 A.J
64 M
65 A.J
66 M
67 A.J
Epílogo
Agradecimentos
Books By This Author
Classificação
Este livro apresenta gatilhos de:
Ex-relacionamentos tóxicos
Cenas explícitas de sexo
Sinopse
Ana Júlia quer superar seu passado de uma vez por todas,
deixando para trás tudo aquilo que lhe fez mal, principalmente seu
ex-namorado.
É fevereiro, e carnaval é uma ótima opção para ela renovar
seus pensamentos e dar início ao ano.
Matias Miranda, um atleta recém-chegado da Argentina está
aproveitando cada pedacinho de sua liberdade. Até que ele recebe
a mensagem de um número desconhecido pedindo para se
encontrarem no meio do carnaval…
Nota da autora

Olá, leitores!

Esse livro tem uma dose extra de bobos apaixonados, então se


estiver solteiro de carência irá sofrer.
Mas está tudo bem! Sofreremos unides :)

Com muito amor mesmo, Giulia Russomanno

É recomendado para maiores de 16 anos.


Esclarecendo, Matias é pansexual e Gustavo é bissexual.
Para os amores que não prometem nada, mas entregam tudo.
1 A.J

Quase quatro meses que eu terminei com o garoto que quase


arruinou minha sanidade. A gente terminava toda hora, então nem
tinha como contar os meses de namoro direito. Eu fazia tudo por
ele, passava o famoso “pano” até quando ele magoava alguém da
minha família. Eu o amava, pensei que ao menos gostasse de mim,
mas ele só queria mostrar que podia namorar uma garota bonita,
queria mostrar que podia fazer o que quisesse comigo e que ainda
assim eu não iria querer perdê-lo.
Terminamos e voltamos várias vezes, mas da última vez eu
consegui enxergar o que eu estava realmente perdendo. Eu estava
me perdendo. Foi meu primeiro namorado, e eu não tinha noção do
que era o amor, não sabia o que significava companheirismo e ainda
não sei. Todas minhas decisões foram baseadas em amigas, que
pelo jeito estavam cavando o mesmo buraco que eu.
Eu terminei.
Fui embora enquanto o via esfregar na minha cara que não
era única para ele. E eu não sou, não sou a única que passou por
isso e infelizmente nem a última. Tive tempo para me recompor, me
lembrar de quem eu era, mas não ainda não me envolvi com
ninguém, sequer um beijo.
E para isso existe o carnaval, ou é pelo menos isso que estou
esperando dele. A época do ano em que desencalhar não é um
problema, a cada dois passos tem um doido querendo beijar vinte
pessoas de uma vez.
Minha amiga, Isabela, apareceu aqui na porta de casa e
botou essa ideia na minha cabeça, de que deveríamos ir ao bloco
de rua. Eu não tinha muita coisa para fazer, então aceitei e comecei
a pensar nas possibilidades de desencanar de vez do passado. E
estou me vestindo de algo que não tenho a mínima noção do que
seja, pois nem deu tempo de dar uma olhada.
— Coloca um sutiã mais grosso, vai melhorar — Isabela diz,
mexendo no guarda-roupa.
Paro em frente ao espelho e entendo do que se trata, uma
fantasia de salva-vidas daquelas. Um clichê de carnaval que sempre
pode causar, e na real acho que é isso que eu quero. Pego o meu
shorts mais curto possível e não pego o sutiã que Isabela segura em
minha frente, sem paciência para usar isso em pleno sol só para
aumentar meus seios, eu nem ligo para isso e gosto de como eles
são.
— Bem piranha, gostou? — digo, e ela me olha com
desaprovação, pois ainda acredita que eu deveria conversar com
Felipe, meu ex.
— Você não tem jeito, né? — ela diz com a cara feia, eu
pisco para ela.
Meus pais foram viajar com minha irmã mais nova, então
estou em casa sozinha. Eles não ligam de eu sair, mas pedem para
que eu avise e mande mensagem para minhas irmãs mais velhas.
Eu fico tão preocupada quanto eles, então mando minha localização
em tempo real no grupo da família. Todo cuidado é pouco, ainda
mais em bloco de carnaval lotado.
Pego minha água gelada e engancho na cintura, é a única
coisa que vou beber hoje. Como uma fatia de bolo que minha irmã
trouxe, ela traz tanto que eu como toda vez que abro a geladeira.
Pego minha bolsa, que é minúscula e bem grudada no corpo, na
qual só cabe, RG, barrinha de cereal — caso eu venha a desmaiar
—, cartão do transporte público e cinquenta reais.
Coloco um tênis bem levinho e velho, pois já sei em qual
estado vai voltar. Cheio de barro e bebida. Meu deus, quase esqueci
do prendedor de cabelo! Como eu iria viver com cabelo suado na
nuca?
2M

Cheguei no Brasil faz quatro dias, já tinha vindo para cá


outras vezes, mas nunca no carnaval. Enquanto o restante do time
não chega no hotel, eu fico a maior parte do tempo na casa do meu
melhor amigo, Gustavo. A gente se conheceu no meio dos jogos, a
gente até já ficou mas, com a distância e tudo mais, resolveu que
era melhor nós sermos só “brothers”, expressão péssima que ele
insiste em usar sabendo que me irrita. Toda vez que venho para o
Brasil, Gustavo tem uma nova gíria que me deixa doido.
— Por que toda frase sua tem que terminar com “mano”? —
pergunto.
— Não sei, é automático, mano — ele diz. Pego minha
fantasia de fada e coloco as asas. — E adoro irritar um argentino
que invadiu a minha casa!
— Você que me chamou! E ninguém mandou ser um riquinho
que tem hidromassagem na cobertura. — Ele faz careta e sopra
glitter em mim.
Quando recebi a proposta de vir jogar no Brasil, em um dos
melhores times da liga de vôlei e com um salário bacana, assinei o
contrato o mais rápido que podia. Sabia que aqui eu iria me sentir
em casa, e tudo está indo como planejei esse tempo todo. Eu amo o
que eu faço em quadra e agora posso viver nessa liberdade imensa
sem me preocupar com meu pai me vigiando a toda hora. O máximo
que vou sofrer com isso é ele assistir aos jogos pela TV e mandar
uma mensagem depois falando as merdas que eu fiz. Bem melhor
que gritos e discussões na sala de casa.
Acho que começar minha saga vivendo nesse país no
carnaval é uma entrada mais que excelente.
Descemos o elevador, e o bafo quente do verão seco e bem
poluído de São Paulo me atinge, dá uma preguiça só de pensar que
vou passar o dia todo em pé e cercado de gente melada de cerveja.
Mas tudo bem, tudo tem um preço.
O nome do bloco: “Bloco Beija na boca”. Preciso nem dizer
que quem está aqui está solteiro, né? Pois é, e assim eu vejo
Gustavo passar o rodo. Desculpa, mas carnaval é um pouco
arriscado demais para ficar beijando todo mundo que passa pela
frente.
— Sabia que não faz mal beijar uma pessoa né? — ele diz,
me cutucando. Gustavo tem quase minha altura, é negro e muda o
cabelo constantemente, dessa vez ele raspou tudo.
— Eu sei é só que... — Ele olha para onde eu estou olhando.
— Ah, cara, você não vai escolher a que tá acompanhada,
né? — Eu sorrio para ele como resposta. — Sério, é só você olhar
pra trás e brota qualquer um... padrãozinho.
— Tudo bem! Só me deixa beber um pouquinho e tirar essa
minha cara. — Ele balança a cabeça, pois não aprova que eu beba
muito... Às vezes eu sou um bêbado chato demais para ele cuidar,
confesso. Um pouquinho só não vai fazer estrago.
Tá, eu poderia ser um pouco mais maleável e me deixar levar
pelas fantasias que cobrem quase nada do corpo. Carnaval é brega,
mas essa é a melhor parte.
3 A.J

Acho que carnaval não precisa de uma descrição, todo


mundo sabe que é um lugar lotado, cheio de corpos suados, muita
música e pessoas alcoolizadas. Por mais caótico que seja, sempre
foi uma das melhores épocas do ano. Sair com a roupa que você
quiser sem ser julgada é algo que não tem preço, infelizmente é só
em fevereiro e olhe lá.
Tudo está indo como planejado? Não sei, não conheço a
galera que Isa chamou, ela disse que são da outra escola dela. A
gente se formou no ano passado, como ela manteve contato com
esse tanto de gente de outra escola? Eu sou simpática com todo
mundo mas, assim, tem gente que eu conheci há anos e de quem
hoje jamais seria amiga, pelo simples fato de que nossas ideias não
são as mesmas, a eu de treze anos era um pouco “Mean Girls” ou
“Blair Waldorf”, para essa última só faltava ser rica, o que importava
era a intenção, que no caso era péssima.
Eu acho que conheço Isabela, ela é uma das minhas
melhores amigas, a gente se conheceu no primeiro ano do ensino
médio, mas não sei, não sinto aquele “fio da amizade”, sabe? E
essa sensação sempre esteve aqui... Não é novidade, porém é uma
boa companhia na maior parte do tempo.
— Ei! Você viu quem tá ali? — Rezo para que não seja o
Felipe, meu ex.
— Onde?
— As meninas do segundo ano, vamo lá falar com elas! —
Agora elas são do terceiro, o famoso terceirão, mas tudo bem.
Não são só as meninas, também tem alguns garotos... Um
em específico é bem bonito, um garoto ruivo, a pele bem clara,
olhos castanhos. Não precisamos nos olhar por muito tempo para
saber aonde queremos que isso chegue...
Cansei de todo mundo achar que eu não superei o babaca do
Felipe. Que todos vejam e tirem suas próprias conclusões, eu é que
não vou mais ficar explicando minha vida.
Se eu o beijar hoje, já vou acabar com toda essa tempestade
que estava rolando dentro da minha cabeça. Seria como apertar o
botão de reiniciar. Pode ser um pensamento bem babaca, mas é o
que eu acho e eu prometi para mim mesma que iria fazer aquilo que
acreditasse ser o certo. E é o quero fazer, quero beijar esse garoto
sem compromisso algum, quero acender os sentimentos de uma
solteira de bem com a vida pelo tempo que eu achar necessário.
E a gente se beija bem ali no meio de tudo e todos. Assim
não foi ruim, mas também não foi o melhor beijo que já vivenciei.
Não sei explicar, só não funcionou muito bem.
Gosto de beijos apaixonados e eu não estou apaixonada por
esse garoto que acabei de conhecer. Poderia muito bem ter sido
uma conexão instantânea, daquelas de filme, mas foi mais para dar
início aos trabalhos de carnaval.
A pior parte de uma ficada ruim é gostar da conversa da
pessoa, a pessoa seria ótima para ser amiga, mas agora que
cruzamos essa linha não tem como conversar, só ficar nisso. Vai
rolar sempre que tiver oportunidade...
4M

É uma puta ousadia chamar o carnaval de sem graça! Sim, é


a mesma coisa todo ano! E essa é a graça, pois sempre as pessoas
vão estar incrivelmente felizes sem nenhum motivo. Só não gosta
quem nunca foi ou foi com as pessoas erradas. Essa é a minha
primeira vez, e eu estou com a pessoa certa, Gustavo sabe como se
divertir e como causar, sorte minha é que eu gosto de fazer a
mesma coisa.
No começo estava um pouco arredio com a ideia, mas eu
pego o jeito rápido. Nem sinto mais o sol na minha cabeça, talvez eu
fique extremamente vermelho amanhã, pois tenho certeza de que o
protetor solar já derreteu.
E provavelmente não tenha sido uma boa ideia dar um beijo
triplo com desconhecidos, mas cansei de bancar o certinho, eu
gosto de ser assim, de fazer o que der na telha... Esse foi um dos
grandes motivos que fizeram eu assinar um contrato com um time
brasileiro — além da grana, eu morava com meus pais em Buenos
Aires, e eles gostavam da minha figura “politicamente correta”, mas
na real essa pessoa nunca existiu e eu tive que esconder meu jeito
estabanado por muito tempo. Às vezes nem sei como eu sou, de
tanto tempo que fizeram eu me esconder.
Por que eu deveria me privar de fazer amizade com
estranhos por um dia?
5 A.J

O trio elétrico começou a andar, e o som está destruindo


meus tímpanos, eu tento falar com Victor — o garoto que beijei —,
mas ele não escuta. Quero pedir seu número de telefone, a gente
pode se reencontrar aqui outro dia.
A música deixa de abafar meus ouvidos, e imagino que ele
tenha a mesma sensação, já que está em minha frente segurando o
celular.
— Você pediu o número? — Assinto, pegando meu celular
para adicionar o contato.
A tela escurece com todo esse sol, e forço a vista para
enxergar os números enquanto ele dita. Enfim, consegui!
— Te chamo mais tarde. — Dou um beijo antes de
acompanhar Isabela, que quer acompanhar o bloco.
Meus pés doem, mas continuo andando atrás da música, me
encontro com alguns desconhecidos muito mais pra lá do que pra
cá, e fazemos um trenzinho pela rua, juntando um tanto de gente
que fica se esfregando.
O retorno para casa humilha o folião. Lixo por todo lado,
bebida no corpo todo, o cabelo enxarcado de fluidos que não há
como decifrar fora de um laboratório e o cheiro impregnado na
roupa, que com certeza é de alguma substância ilícita, são o charme
caótico.
6M

Acho que eu deveria ter seguido o conselho de Gustavo e ter


parado de beber no terceiro copão. A liberdade é incrível, mas, se
não se sabe o limite dela, as coisas se tornam estranhamente ruins.
Não consigo nem ficar em pé direito, e todas essas outras
pessoas dentro dessa lata de sardinha chamada metrô também não
conseguem ficar paradas. É meio que o pós-festa, só sei que a
música continua e o batuque prossegue, se eu fizer um exame
toxicológico do time hoje tenho certeza de que vou me foder, o
cheiro é insuportável, e todo mundo acaba fumando por tabela.
A gente chega na frente do hotel que eu estou ficando e,
bom, o que esperar de um hotel lotado de atletas no meio do
carnaval? É isso mesmo, festa na piscina, nos quartos e jogo de
vôlei rolando em qualquer lugar.
Eu não conheço ninguém, tem muitos estrangeiros, mas
poucos são da Argentina. Tem um garoto do basquete que veio
comigo no voo, apenas ele eu tenho uma breve noção de quem se
trata. Ele é meio... Ah, o cara tem síndrome de estrelismo! Lidar com
atleta já é complicado, agora aqueles que acham que são
insubstituíveis na face da Terra são um show de horror.
— Será que eu consigo passar na segurança da piscina? —
Gustavo pergunta, almejando uma festa.
— Que segurança, doido? — retruco. Ele ri e veste a
camiseta que estava pendurada no ombro, eu faço o mesmo.
Essa festa tem tudo para dar errado, começando pelos
menores de idade bebendo. Eu vou vazar e arrastar Gustavo
comigo, posso ter bebido muito, mas não vou participar do que quer
que isso seja.
Já vi até metade do time ser expulso por conta de festas
assim. Se for só com a galera que eu conheço, até participo, mas
não tenho a mínima ideia do caos que isso pode se tornar.
— A gente vai dividir a cama, não volto pra casa hoje... —
Gustavo diz, ele mora sozinho numa cobertura, capaz de eu ir para
casa dele e o deixar nesse hotel que nem ventilador direito tem.
— Eu sei que você quer dormir de conchinha comigo. — Ele
faz cara de nojo.
— Matias, só vou dormir aqui porque creio que minhas
pernas não vão conseguir andar mais de 10 metros.
— Tudo bem, eu guardo seu segredo! — digo, ele mostra o
dedo do meio e agarra o travesseiro sobre a cabeça.
— Boa noite! — diz com a voz abafada.
Agora que eu parei para pensar que esse serzinho deitado na
cama ainda não tomou banho. Tento acordar, mas ele já virou uma
pedra. Desisto. Tomo meu banho e me deito ao lado do meu amigo
grudento, amizade é pra isso.
7 A.J

Hoje também é dia de festa! A minha nova versão está no


auge. Estou fazendo de tudo para ser melhor do que eu fui, para
não me deixar em segundo plano, para não planejar o meu futuro
pensando em como eu iria protagonizar o dos outros. A única que
tenho que impressionar hoje sou eu mesma.
E quando eu falo em dar o meu melhor, estou falando de
diversão também, não vou entrar nessa de “aquela garota”. Eu sei
que muita gente pensa que isso deve ser um ideal super necessário,
mas desculpa, isso só nos torna obcecados pela perfeição, nos
priva de nós mesmos, vivemos regrados o tempo todo... “Aquela
garota” na minha visão é aquela que faz o que tiver vontade, e que
sabe seus limites e entende que não precisa se destacar em tudo, e
sim saber onde quer se destacar.
Ontem não pedi o número do garoto à toa, ele é legal e se
quiser continuar de onde estávamos eu toparia. Mandar mensagem
não faz cair o dedo e, se eu levar um não, é só fingir que nunca
aconteceu.
Mensagem de Ana Júlia: Oii
Mensagem de Victor: Quem é?
Mensagem de Ana Júlia: Hm a garota de ontem...
Mensagem de Victor: Garota de ontem...
Mensagem de Ana Júlia: Tá, o que acha da gente se
encontrar na estação de ontem?
Mensagem de Victor: Qual era mesmo?
Mensagem de Ana Júlia: Imagem (foto da linha do metrô)
Mensagem de Victor: Ok, vou as 13h
São onze da manhã e eu dormi na casa da Isa, que mora um
pouco longe da minha casa, mas mais perto do metrô... Enfim,
desmaiei no tapete do quarto dela quando tentei desamarrar o
sapato, mas passo bem, o pescoço e coluna estão trincando, mas
ainda servem.
— Tenho fantasia de girassol, quer? — ela diz e abre o
armário, não tenho muitas opções e eu amo ir fantasiada no
carnaval.
Pego a fantasia, tomo um banho e me troco no banheiro.
Ontem o sol foi de arder, minha pele, que é um tom castanho, está
um marrom-avermelhado... E arde. Meu cabelo escuro, que é uma
mistura de liso com muitas ondas, está um verdadeiro ninho. Passo
um hidratante na pele antes do protetor solar e depois desembaraço
os fios de cabelo com um pente de madeira que estava na pia.
E sim, o top de girassóis ficou um pouco grande para meus
seios pequenos. Nada que um bom nó atras não resolva. A saia é
daquelas de tule amarelo bem esvoaçante, com florezinhas de
girasso e para completar a meia arrastão preta. Essa serviu
direitinho.
O meu celular que está jogado no meio das roupas não para
de vibrar, começo a revirar tudo, só pode ser algo sério. Consigo
encontrar, muitas mensagens rolam na tela e tenho dificuldade até
de ler o nome do contato. Quando consigo, preferiria não saber ler,
pois é Felipe, meu ex-namorado, e meu coração acelera, minha
visão fica um pouco turva.
Mensagem de Felipe: Você só pode estar de brincadeira! Eu
não acredito que você não tem consideração nenhuma por mim...
Paro de ler bem aí e aperto a opção de bloquear contato.
Não, eu não vou me estressar com um problema que não é mais
meu.
— Tô te esperando lá fora! — Isabela grita assim que eu abro
a porta do banheiro, ela amarrou o cabelo ruivo em um rabo de
cavalo, mas mesmo assim ele quase chega em sua cintura. Ela não
gosta muito de se fantasiar, então abusa na maquiagem e usa uma
roupa básica.
— Você não sabe quem mandou mensagem. — Ela assente
para eu continuar. — Felipe.
— Ele acabou de me ligar, perguntou onde a gente podia se
encontrar...
— Você não falou, né?
— Ai, amiga, eu falei! Você tem que resolver essa situação —
ela diz, abrindo a porta.
— Eu? Não tem mais nada pra resolver, terminamos há
quatro meses!
— Sem palavras pra você, nem sei como você consegue
acreditar nisso.
Fazemos a baldeação em silêncio, a cada passo eu repenso
essa amizade. Ela deveria me apoiar... Ela viu pelo que eu passei.
Eu não aguento mais uma das minhas melhores amigas defendendo
uma pessoa que me fez mais que mal.
— O que ele te falou no telefone? — pergunto.
— Disse que não gostou do seu vídeo beijando aquele
menino — ela fala e ri.
— Não entendi, que vídeo?
— Eu tava gravando um story e vocês apareceram no fundo.
— E você postou sem me perguntar se eu queria um vídeo
meu beijando um estranho? — Ela dá de ombros.
— Ai, eu nem vi, só postei.
Não respondo mais, não que tenha algo para responder, pois
Isabela simplesmente não olha para mim.
Vou só falar para o garoto com quem combinei que não vou
poder ficar e depois voltar para casa...
Passo toda a viagem em pé encarando o celular, não consigo
pensar algo que não me deixe nervosa. Posso ter superado grande
parte disso, mas ver ele querendo se meter na minha vida sendo
que nunca mais falou comigo esse tempo todo... Ah isso é a gota
d’água. Ele vai tentar todo aquele jogo de manipulação que ele
jogava, para infelicidade dele eu aprendi todas as regras. Respiro
fundo fechando os olhos por alguns segundos, escuto a voz
robotizada indicando que chegamos no destino, e assim que
começo a me movimentar reparo em um garoto me encarando
querendo falar algo, franzo as sobrancelhas e ele desvia o olhar
como se estivesse perdido. Acho que tenho um imã para gente
maluca, só pode.
Chegamos na estação onde marquei com Victor. Vejo os
cabelos loiros de Felipe brilharem com a luz fraca. De braços
cruzados, no meio de uma quase muvuca ele me encara e segue
em minha direção. Já eu sigo para as escadas onde falei que ficaria
para encontrar com quem eu combinei.
— Não finge que não tá me vendo, já não acha que foi o
bastante você postar aquele beijo... — Não entendo muito bem do
que ele está falando, mas viro de frente para Felipe.
— Olha, eu não te devo nada, deixei de dever no dia em que
você esfregou na minha cara que não era tão interessante ou
importante como outras garotas na sua vida — saiu raspando de
minha garganta.
8M

Ontem Gustavo tomou banho de cerveja, já hoje tomou


banho de perfume. Me dá uma dor de cabeça esse cheiro, mas tudo
bem, com o sol que tá, logo vai evaporar.
Meu amigo me acordou, tinha uma fantasia de jardineiro com
um broche de girassol e um regador na mão, perguntei onde ele
tinha arrumado aquilo, e ele simplesmente pegou na casa dele
antes de eu acordar. Ele tem um armário só para fantasias, e todas
são indecentes, ou seja, incríveis para festas.
Estamos em pé no vagão, nem sei como esse avental cheio
de girassóis ainda não caiu. Calor não vou passar, pois é só o
avental, shorts e uma camiseta fininha branca — que estou
pensando em tirar, mas tenho certeza de que vão aparecer
queimaduras e arder a pele quando eu acordar amanhã.
Combinei com uma garota às 12 h, no número dela dizia que
o nome é Ana Júlia. Recebi a mensagem ontem e, por um instante,
pensei que fosse uma das pessoas que beijei, mas ela me chamou
de Victor e eu tenho certeza de que não menti meu nome. Ok,
certeza absoluta eu não tenho. Então por que eu aceitei? Bom,
porque na foto do perfil era uma mina bem gata e, para fingir ser o
bom moço, não queria que ela descobrisse que o cara com que ela
realmente queria falar passou o número errado.
O vagão não está tão cheio, então consigo ver todos, ainda
mais com a altura de um pequeno poste humano.
Isso só pode ser brincadeira. A garota da mensagem está na
minha frente com uma cara capaz de matar qualquer um, e quando
ela me pega olhando para ela... Ela revira os olhos esverdeados.
Ok, isso não foi tão ruim. Foi só um breve começo, eu posso não
estar com uma fantasia legal... Ah não, ela não deve ter gostado
que eu esteja com a quase versão masculina da fantasia dela.
É... Vou esperar parar na estação para falar com ela e tentar
explicar o que rolou.
— A mina de girassol é gata, né? — Gustavo diz enquanto
passamos pelas portas automáticas.
— Sim, ela que mandou mensagem ontem — digo
tranquilamente, mas não estou nada tranquilo.
Começo a ir atrás, mas um garoto loiro começa a falar com
ela. A garota do girassol fica de frente para ele, parece uma
metralhadora falando, e ele escuta, mas logo começa a falar alto e
ficar mais perto dela para intimidá-la. Ele avança em sua direção,
gesticulando perto do seu rosto, e eu não posso assistir a isso sem
fazer nada.
— Já volto — digo para Gustavo, que me acompanha assim
que passo a me mover.
Tem uma garota ruiva ao lado dela, suponho que seja amiga,
mas não sei se do babaca ou da garota. Sinceramente, por que a
amiga não faz nada? Nem sequer abre a boca para pedir ajuda.
Ele tenta passar o braço no ombro dela, e eu conheço muito
bem esse tipo de cara. O tipo manipulador agressivo.
— Acho que ela precisa de um ar... — digo, encarando o
garoto, uns vinte centímetros mais baixo que eu. Continuo: — Longe
de você e daqui, vamos Ana Júlia?
— É... — Ela olha para amiga, esperando apoio, mas a amiga
fica ao lado do loiro, que bufa quando chego mais perto, e logo
tenho que lidar com uma encarada de quem não gostou de ser
salva. — Vamos.
Gustavo e eu estamos andando ao lado dela, e ela mexe no
cabelo, que tem um tom marrom-claro. Para e fica com as mãos nos
olhos, encontro o olhar avermelhado dela, ela não quer chorar aqui,
ela não quer chorar em nossa frente. E eu entendo esse sentimento,
sentir que se abrir é ficar fraca...
— Obrigada — começa —, acho que eu vou voltar pra casa,
então até... — Sorri triste, tentando nos convencer de que está bem.
— Acho que não vamos nos ver mais mesmo.
— Tudo bem, a gente te acompanha — Gustavo afirma, e eu
assinto.
— Se não incomodar, claro — digo, lembrando da situação
por qual ela acabou de passar.
— Eu não conheço vocês... — ela diz, cruzando os braços
posicionando a perna.
— Olha, eu sei que não tem por que confiar na gente mas, se
quiser segurar a chave do meu carro... — Esse garoto tem algum
problema, ela ri e pega a chave.
— É, acho que é um bom motivo pra confiar em vocês, além
daquilo que fizeram por mim... — Ana Júlia ri para ele, mas para
mim fecha a cara.
9 A.J

Como eu fui idiota. Ver Isabela sair do meu lado e cruzar os


braços ao lado de Felipe não foi uma total novidade, mas mesmo
assim doeu. Coisas óbvias que não queremos enxergar explodem
na nossa cara e só assim sentimos o terrível gosto da realidade.
Talvez eu seja muito burra para não ter notado antes.
Primeiro, a Isabela só realmente “firmou” amizade quando eu disse
que gostava do Felipe. Ela sempre dizia que eu não estava no
padrão dele... Segundo, quando começamos o namoro, ela queria
planejar tudo em qualquer encontro que a gente fosse fazer e
aparecia magicamente no lugar. Terceiro, esse é um tópico
importante para qualquer amizade, ela nunca tomava minhas dores,
e sempre dizia “eu avisei que você não ia aguentar ele” ou “você
deveria ser menos dura com ele”.
É, vendo assim eu sou muito, mas muito otária.
A garota quer namorar meu ex desde o momento em que
falei que eu gostava dele.
— É, meu carro tá estacionado na próxima estação — o
garoto negro diz, e eu percebo que não sei o nome dele.
— Ah, ok. — Pego a chave do carro que ele me deu para
segurar e a entrego para ele. — Meu nome é Ana Júlia, esqueci de
me apresentar... — Ele nega a chave.
— Sou Gustavo Braga, mas já sabia seu nome. — Ele inclina
a cabeça para o garoto branco um pouco mais alto. — E pode ficar
com a chave, você dirige até a sua casa. — Eu encaro o outro.
— É, então... Você mandou mensagem para a pessoa errada
ontem... E eu, Matias, Matias Miranda, respondi. — Ele fez o que?
— E por que não disse que não era o número certo? —
pergunto.
— Bom, é que eu pensei que seria uma boa oportunidade de
conhecer alguém e... — Matias responde, enrolando as palavras.
— E como soube que eu queria conhecer alguém? — falo
ríspida, e Gustavo não interfere.
— Ninguém sai por aí querendo conhecer alguém, apenas
acontece — Matias diz naturalmente.
— Ok, você é maluco — replico e olho para Gustavo. — Não
garanto uma viagem segura. — Passo pelo homem enorme e de
cabelos escuros cacheados e que é um doido.
— Liga pra ele não, é coisa de argentino, sabe como é —
Gustavo diz, e Matias o devora com os olhos.
— Um gringo bonitão faz essas esquisitices? — É, eu falei
bonitão...
— Tá vendo? Acabou de conhecer um gringo bonitão —
Matias diz, reviro os olhos e ele esboça um sorriso irritante no rosto
praticamente desenhado.
Entramos no estacionamento para o qual Gustavo mostrou o
caminho e só tem um carro. Um Porsche. Eu nem sei que modelo é!
Mas, mano, esse garoto é puramente rico. Como eu não notei a
chave? Deve ter sido culpa dos meus olhos ardendo no caminho e o
coração latejando firmemente no meu peito.
— Você vai deixar eu dirigir essa coisa? — Eles riem.
— Essa coisa? — Matias pergunta.
— Isso claramente não pode ser chamado de carro! — digo e
estendo a chave de volta. — Pode dirigir, eu não tenho nem um
centavo caso eu arranhe isso.
— Matias também não tem e mesmo assim dirige...
— Eu nunca arranhei seus carros! — Matias reclama, abrindo
a porta do passageiro.
— Carros? Você é o PIB do Brasil? — digo, ainda com a
chave no ar.
— Matias vai te ajudar lá na frente, vou até dormir pra não te
deixar nervosa.
Como isso deveria me acalmar, exatamente? O dono desse
belo mais que carro não vai me supervisionar! Estou ótima.
— Não é assim que liga — Matias avisa, achando graça na
minha dificuldade.
— Eu sei como liga, tenho carta, ok?
— Sabe ligar todos os carros? — desafia, eu consigo ligar e
devolvo com um sorriso falso.
Só o som do rádio no silêncio, e toca justamente aquela para
acabar com qualquer barreira contra lágrimas que eu tenha feito.
Adele. “Send My Love” (To Your New Lover).
Tudo bem, eu aguento mais três semáforos. Mais três.
— A gente é vizinho! — Gustavo diz, no banco do meio assim
que paro no farol da rotatória.
— Creio que você more naquele prédio ali? — aponto para o
prédio mais caro e alto que tem por ali.
— Isso mesmo, pode ir lá quando quiser, só falar na portaria
que vai na “cobertura do profissa” — ele diz enquanto Matias, que
olha atentamente para cada piscada minha. Tenho a impressão de
que ele quer me ver falhar no volante só para me dar uma “aulinha”.
— Cobertura do profissa? — repito controlando, a tremedeira
na voz, mas não consigo mais.
10 M

Comecei a observar os olhos dela quando as piscadas


ficaram intensas, ela prendeu o cabelo antes de dirigir, então não
teve escapatória para disfarçar. E eu sei que o que rolou lá na
estação foi difícil. Para mim, que não tenho nada com isso, já foi
complicado. Imagina para ela, que teve que lidar com duas pessoas
nojentas. Foi assim que eu julguei aqueles dois, talvez tenha sido
um mal-entendido do momento... Não, aquilo não é normal. E, para
completar o clima de desabamento na mente dela, a rádio toca
Adele. Quem não chora?
Agora ela não está mais segurando o choro. Continua
conversando com Gustavo como se não tivesse lágrimas
escorrendo no rosto. Meu amigo ainda não percebeu, mas dou uma
olhada para ele pelo espelho do carro... Nós conversamos por
olhares e basicamente não sabemos o que fazer, mas parece errado
fingir que está tudo bem.
— Queria tomar um sorvete, querem? — digo, olhando para
Gustavo.
— Um açaí agora era o que eu precisava! — ele diz.
— Não sei não, acho... — Não deixo ela terminar a frase.
— Qual é? Vai fazer o que em casa? — Talvez chorar? Como
eu sou babaca, mas parece que funcionou, pois ela encarou como
algum tipo de desafio...
Desafio é a motivação para todo atleta, e eu aprendi com
meus inúmeros técnicos que qualquer um pode ser desafiado, só
que para aceitar tem que mexer profundamente com o ego.
— É, sorvete parece uma boa ideia. Qual soverteria, Sr.
Riquinho?
— A que você mais gostar, gata. — Ele a chamou de gata?
Ela franze o cenho para mim quando percebe que estou
fazendo cara de merda para meu amigo.
11 A.J

O que eu vou fazer em casa? O que ele acha que eu iria


fazer? Eu estava literalmente chorando na frente dele. Chorando
com trilha sonora, que cena de filme clichê ruim... Mas é o que
temos.
Esse garoto, Matias, está me estressando profundamente. Eu
nem sei por que, mas por ter praticamente mentido na mensagem e
por quebrar meu clima de fossa, ele já merece um título de sem
noção.
Estaciono na sorveteria perto de casa, não suporto mais a
pressão de dirigir esse carro. Eu dirijo regularmente mas, vamos ser
realistas sobre a motorista aqui, eu não tenho aquela experiência, já
que tirei minha carta no meio do ano passado. Acho que entre
minhas duas irmãs mais velhas eu sou a melhor motorista. Na
minha cabeça, pelo menos.
A sorveteria é simples, não tem a melhor decoração, mesmo
assim vive cheia. O sorvete é feito aqui, o meu preferido é o de
chiclete. Ai, é tão bom... Guio os meninos na fila, e eles imitam cada
coisa que eu pego.
— Vocês sabem que podem pegar outros sabores, né? — Os
dois se entreolham e continuam pegando as mesmas coisas que eu.
Chega a hora da balança, a hora em que minha carteira
chora. O sorvete é maravilhoso e é por isso que tem um precinho
nada doce, mas vale a pena.
— Deixa que eu pago hoje, gata — Gustavo diz, e Matias
revira os olhos.
E quem sou eu para negar? Nos sentamos numa mesinha
com guarda-sol, na parte externa. É estranho ver esses dois
sentados, as cadeiras parecem minúsculas perto das pernas deles.
Eu não sou baixa, tenho quase 1,75... Mas comparada a eles eu sou
quase inexistente.
— O que vocês fazem? — pergunto após analisar toda
extensão corporal deles...
— Trabalhamos resgatando damas no carnaval — Matias
responde, misturando a calda de morango com o sorvete.
— Conta a verdade, cara, é melhor — Gustavo fala, e Matias
assente dramaticamente.
— Completamos fantasia, desculpe. — Como eu não reparei
que ele está usando um avental e segurando um regador?
— É uma profissão difícil no carnaval — respondo e tento
desviar meu olhar do maxilar definido dele.
— A gente é atleta — Gustavo diz.
— De vôlei — Matias completa, tirando uma mecha do cabelo
escuro da testa.
— Cara, por que você sempre tem que falar o esporte? Ela
poderia facilmente acreditar que é basquete — Gustavo critica
enquanto cruza os braços.
— Eu não entendo por que você tem vergonha — Matias diz,
arregalando as orbes castanhas, que combinam com a pinta abaixo
de seu olho esquerdo.
— Eu gosto de vôlei. Quer dizer, não entendo quase nada...
— Sem problemas, o que importa é que você tem que ir me
ver jogar — Gustavo responde.
— Ele é convencido por natureza, não precisa ir. — Matias
me fita.
— Eu adoraria ver você jogar — sorrio para Gustavo.
— Ok, preciso ir no banheiro. — Matias se levanta bem na
minha cara, é...
— Como você é enorme! — Ele me encara com a
sobrancelha franzida, acrescento: — A altura, é bem alto! — Ele
assente e comprime os lábios sem dizer mais nada.
Gustavo está rindo do meu puro constrangimento.
— Ele é enorme mesmo, pelo menos da última vez em que
eu vi, era. — Faz um gesto com as mãos sinalizando o tamanho do
amiguinho dele e se engasga com o sorvete enquanto ri, acho que
os dois já tiveram algum lance.
12 M

Quando eu levantei e ela falou aquilo, senti o olhar de


Gustavo em mim, ouvi as risadas dele até o banheiro. Sério, nessas
horas a gente se arrepende de ter ficado com melhor amigo. E eu
sei que ela estava falando da altura, só foi meio inesperado, sendo
que eu meio que levantei na cara dela... Foi sem querer! Tive que
desviar do guarda-sol na minha testa e deu nisso.
Fui ao banheiro para parar de agir como idiota na frente dela
toda vez em que Gustavo inicia qualquer flerte. É constrangedor,
ainda mais quando você nem conhece a pessoa direito, mas mesmo
assim quer conhecer. Só que meu melhor amigo é bem mais
“conversador” que eu, o que faz eu sentir que sou um enfeite ou que
estou atrapalhando algo. Não sei, é estranho. Ao mesmo tempo que
eu gosto de conversar com todo mundo, me sinto tímido em
algumas ocasiões... Tem dia que converso até com desconhecido
no ônibus, e tem dia que eu literalmente começo a suar só para dar
bom-dia a alguém na rua. É horrível. E é assim que estou lidando
com o hoje.
Volto para a mesa e os dois estão rindo ainda. Quando me
sento, parece que ela vai explicar algo, mas fica vermelha.
— Gente, obrigada por hoje e pelo sorvete — levanta o
copinho de isopor —, mas vou ter que ir, e vocês sabem, vou
continuar o choro do carro e tal. — Então ergue uma sobrancelha
para mim.
— Vou ter que deixar esse cara enorme no hotel, te dou
carona. — Ana Júlia nega, mas Gustavo insiste, sorrindo.
— Ok, sabia que você tem o poder de convencer as pessoas
muito rápido?
Gustavo me deixa na porta do hotel, odeio o que eu estou
sentindo, pois é ciúme de uma pessoa que nem conheço.
— Vê se não marca mais encontros com desconhecidos, hein
— ela diz, quando dou tchau na janela do carro.
— É, agora eu te conheço — digo, e Gustavo sorri olhando
para frente. — E, gatão, não chega atrasado no treino amanhã! —
completo, e ele acelera, me deixando falar sozinho na calçada.
Seria muito errado mandar uma mensagem para ela? Acho
que sim... É melhor eu me concentrar no treino e esquecer isso.
Tenho que esquecer isso, ela me acha um maluco e falou isso com
todas as letras.
13 A.J

Nunca fiquei tão feliz em ver o portão da minha casa. Peguei


a chave que tinha enfiado no sapato, só quero entrar e tomar um
banho, ligar o ar-condicionado e dormir... Ah, e tomar água primeiro,
estou me sentindo um cacto.
Gustavo fez gracinha pelo caminho todo, ele é um cara muito
legal e muito bonito. Mas não estou no clima para isso hoje. Eu
estou me esforçando de verdade para terminar o dia sem mais
nenhuma lágrima. Já me permiti chorar mais cedo, e se for
descontar minhas frustrações na academia? Tá, talvez eu chore,
mas de raiva... Raiva é um sentimento bom.
— Tava falando sério sobre passar no meu apartamento, se
precisar de ajuda ou beber muito, não sei, mas pode ir lá — ele
sorri, é cheio de energia.
— Certo, eu passo um dia e peço para subir na “cobertura do
profissa” — aceno do portão para ele.
Assim que entro em casa, uma chuva torrencial começa lá
fora. E aí é minha deixa para brigadeiro, banho quente de arrancar a
alma, filme clichê bem choroso e um sono de dormir como uma
pedrinha.
Não vou entrar em crise por conta de hoje, aquilo não faz
parte da minha vida. Não mais.
14 M

Os planos de ontem como um dia agitado foram por água


abaixo, e ficamos de babá da Ana Júlia, que, apesar de bem gata,
parece ter alguma coisa contra mim. Não sei o que fiz, mas, toda
vez em que falo alguma coisa, ela faz questão de não prestar
atenção... É, o lance da mensagem foi meio esquisito, não posso
negar. Só que, pelo meu ver, eu simplesmente segui o destino e
deixei que acontecesse. E não aconteceu muito bem. Odeio
consequências.
Hoje era para eu estar desmaiado nessa cama aproveitando
meus últimos dias sem precisar treinar nem um segundo. Amanhã
os treinos individuais começam, o time todo não está em São Paulo,
então temos que correr contra o tempo e nos acabar na academia.
Tem uma quadra no apartamento de Gustavo, então vamos dar uma
passada lá, para não perder agilidade.
Mas não, nada de descanso quando seu amigo cisma que
hoje vai ser o dia, e toda vez em que ele fala isso, as coisas
realmente vão para outro nível. Hoje eu acordei melhor, estou
sentindo uma energia boa, uma onda boa.
Tomo um banho gelado, o calor está insuportável esses
últimos dias, então prefiro que a água do chuveiro seja a mais
gelada possível. Termino e coloco a bermuda de praia mas, no caso,
não vou para a praia, vou para o bloco. Dou uma bagunçada no
cabelo quase preto, ele tem uns cachinhos abertos, mas às vezes
somem. Depende da finalização, mas como sei que a última coisa
que meu cabelo vai ficar hoje é arrumado, então nem me dou ao
trabalho de o deixar engomadinho, só dei uma amassada e está
ótimo.
Chego na portaria do apartamento de Gustavo e tenho que
falar a senha para o porteiro “cobertura do profissa”. O porteiro, Sr.
João, ri toda vez, e eu sinto vontade de jogar Gustavo lá de cima. O
elevador abre na sala gigante, e lá está ele, passando protetor no
rosto. Gustavo é vaidoso demais, é um cara bonito, bem-arrumado e
com uma lábia em que qualquer um cai.
— Olha quem chegou, meu modelo preferido.
— Modelo só se for de cuecas, — replico, ele assente —
gostou da roupa?
— Tá boa, o que não fica bom em um padrão? — para mim.
— Preconceito com padrões, Sr. Gustavo Braga?
— Tenho você de estimação, já não é o suficiente? — Com
ele não tem um minuto sem risada.
15 A.J

Acordo com a campainha estralando no meu ouvido, eu ainda


acho que é sonho e que é só esperar cinco minutos para a cena
acabar. E sim, a campainha para, mas o celular vibra no travesseiro.
Só pode ser incêndio. Não é possível que eu tenha queimado
alguma coisa e que meu nariz não esteja funcionando.
— Alô?
— Olá, gatona, achou que mandar uma mensagem “hoje foi
muito, muito ruim, boa noite” ia me deixar tranquila? — Caterina,
minha “amiga mãe”, diz no telefone. — Pode descer e abrir o portão
pra mim, já já os vizinhos chamam a polícia por minha causa.
— E se eu chamar a polícia?
— Abre logo! — ela insiste pelo telefone, mas a consigo ouvir
pela janela.
Desço as escadas ainda de pijama, conheci Caterina na
academia há alguns anos, então ela já me viu em estado mais
decadente do que ao acordar. No início éramos apenas parceiras de
treino, mas ficamos muito próximas e começamos a fazer muitas
coisas da vida fora da academia juntas. Ela tem 21 e eu 19, como
eu disse, amiga mãe.
Abro o portão, e lá está ela, com a cabeleira loira... Não, ela
não está com uma cabeleira. Ela raspou. Corajosa e gostosa.
— Você tá muito, mas muito linda. — Passo a mão no cabelo
curtíssimo.
— Fiz ontem à noite, eu ia pintar de roxo, mas não sei. Acho
que assim fica mais impactante — ela diz enquanto fecha a porta da
sala.
— E qual foi a brilhante motivação? — pergunto.
— Alguns vídeos com o título “coisas para contar para os
seus netos”, não sei se os filhotes da Dona Verô vão entender o que
eu falo, mas tudo bem. — Dona Verô é sua gata, muito fofa, eu sou
doida por ela.
— Ficou linda, sério! E sobre ontem, eu já tô melhor, foi só a
finalização da era Felipe e de tudo relacionado a ele. — Ela assente,
mas não parece convencida.
— Você sabe o que eu penso sobre como se deve finalizar
uma era.
— Sei, e eu tô pensando em marcar um psicólogo, sei que é
importante, mas tô conseguindo lidar com isso...
— Anaju, você sabe que tem coisas que aconteceram e que
foram faladas que mexeram de verdade com você. Eu te admiro
muito por ter conseguido ir em frente, mas você tem que entender
que somos capazes de esconder de nós mesmas o que mais nos
aflige. Você não vai notar, mas as decisões que tomar em alguns
assuntos vão ser não somente suas, mas também dos seus medos
— ela diz, pegando água no filtro.
— É, eu só quero respirar um pouquinho e vou começar as
sessões, tá bom, geminha? — Ela não entende de primeira.
— Geminha? Você tá me chamando de ovo? — Subo as
escadas correndo. — Corre mesmo, arruma esse cabelo que vamos
para o bloco!
Paro no meio da escada e volto lentamente, no estilo novela
mexicana.
— Como, dona?
— Isso aí, sua vida de vestibulanda vai esperar mais um
pouquinho! Nada de estudos por hoje. — Ela aponta para eu subir.
E eu subo, e dessa vez não quero fantasia. Vai ser um
topzinho de academia e um shortinho. Cabelo em um coque lá no
alto, e é isso. Queria ir de chinelo, mas voltaria sem os dedos do pé.
16 M

Tudo bem que eu não tive aquele papo com a garota ontem,
mas ainda tenho o número dela, o que significa que poderia mandar
mensagem... Ou que não poderia, porque obviamente não era para
ter o número dela.
Hoje eu vou aproveitar real. Hoje eu vou ser um de todes. É
de memórias que se vive. Espera, de memórias? Não, isso está
meio estranho, não quero viver de memórias, mas viver de agora
fica muito clichê. Enfim, eu vou apenas viver aqui o momento que
universo está proporcionando. Melhor, bem melhor.
Gustavo já está uma bomba de álcool e eu não estou
diferente. Aparentemente esse tal de “chevette” é a pior coisa que
eu já tomei. Gustavo ama, e sério, eu tenho muita frescura para
bebida e comida, mas o que vale hoje é ficar levemente alcoolizado!
Hoje é o dia mais lotado possível, o mais barulhento, e tem
motivo. Anitta e Pabllo Vittar. Não tem como isso aqui estar
tranquilo. E acho que esse foi o maior motivo para que Gustavo
implorasse para que eu não desistisse no meio do caminho. Eu não
conheço muito as cantoras mas sei algumas músicas, e são
viciantes. Assistir a elas dançarem já é um sonho.
Gustavo quer ficar o mais perto possível do trio elétrico. Uma
esmagação total, ele disse que essa é a melhor parte. Elas pararam
de cantar e estão chamando algumas pessoas para dançar lá em
cima. Eu sei dançar. Eu sempre gostei de dançar, só que meus
sonhos da dança foram cortados pelo meu avô, que convenceu
meus pais de que isso não era coisa de “macho”. É, minha família é
bem conservadora. Minha mãe nem tanto, mas ela costuma
concordar com o que meu pai fala, então não tinha muita
escapatória.
Ficar parado nunca foi uma opção para mim, então o primeiro
esporte que tentei foi o vôlei, e logo de cara eu me enturmei com a
quadra e com os movimentos. Acho que todo esporte é uma dança,
cada um tem seu ritmo... E foi assim que minha carreira de jogador
começou, sinto saudade do começo, quando eu meus colegas de
time só queríamos competir com os outros times e não entre nós.
Eu fico nostálgico só de pensar em quando colocava o uniforme de
treino do meu primeiro time. Depois as coisas ficaram mais sérias, e
eu aprendi que competir faz parte desse meio, odiava ter que
competir por tudo, mas agora acho que fui engolido por aquilo que
abominava. É só anunciar uma aposta que eu já quero ganhar.
— Ei! — Gustavo olha nos meus olhos. — Duvido você subir
lá. — Ele aponta para o trio elétrico.
— Tá, mas subir e fazer o quê? — Ele sabe que usar a
palavra “duvido” comigo é sinônimo de que eu vou fazer.
— Subir e dançar na grade. — Levanta as sobrancelhas duas
vezes.
— Fechado — respondo, e ele me dá um gole da bebida que
está segurando. — Me dá dez minutos, gatão.
Fácil não vai ser, mas seduzir uns seguranças com um
sotaque argentino sempre funciona.
17 A.J

Eu real não sei se é bom o brasileiro nunca desistir, mas hoje


eu estou sentindo que esse carnaval vai ser bom, um dia tem quer
ser, não é possível que eu só viva de perrengue.
O sol está no meio das nuvens, mas também não parece que
vai chover. Espero que não chova hoje. Por favor, eu nunca pedi
nada. Pensando bem, uma chuvinha, tipo garoa, não iria fazer tão
mal... Maquiagem não vai derreter, pois vim com a cara limpa e não
vai ter fantasia para ensopar.
Hoje esse lugar está lotado, Pabllo e Anitta movem multidões
— e quadris, tipo, acho que o Brasil todo está aqui, é a prova que
dois corpos ocupam o mesmo lugar sim. E para melhorar, Cate quer
ficar mais perto. Eu também, óbvio. Vamos ficar perto mas não
grudadas no negócio, e está ótimo, pois o risco de ser esmagada é
bem grande.
— Mano! Eu queria ser ele! — Cate fala.
Olho para onde Caterina está olhando, a gente tá há uns
trinta metros do trio, então tenho que forçar minha visão um pouco,
e vejo o garoto que ela apontou dançar na grade... Elas estão
batendo palma para ele, enquanto ele passa a mão no abdome
definido. De repente a rua vira um estádio de futebol para aplaudir o
grande gostoso... Espera, aquele é o Matias. O garoto de ontem. Eu
tenho um leve estresse natural com ele, mas tenho que admitir que
ele é bem... diferente. O cara é bonito, eu saquei, mas ele parece ter
essa síndrome de herói e eu não estou mais curtindo isso não.
Tenho certeza de que, se eu tivesse baixado a guarda ontem, ele
teria dado aquelas palestrinhas moralistas que todo homem bonito
como ele dá. Conheço esse tipo, eles são todos preocupados
quando te conhecem... depois acaba tudo.
— Eu conheço ele! — grito no ouvido de Cate.
— Por favor, diz que ele tá solteiro! — Demoro alguns
segundos para responder isso em específico.
— Não sei, não conheço ele muito bem, mas o amigo dele tá.
— Vocês ficaram? — ela pergunta.
— Infelizmente não estava no clima ontem.
— Você conheceu dois caras ontem e nem pensou em me
contar? — ela diz indignada.
— Se eu não me engano — franzo o cenho para enxergar
melhor —, aquele ali é o melhor amigo dele, Gustavo. — Ela
arregala os olhos e me puxa na direção dele.
Enquanto Caterina me guia, assisto à performance de Matias.
O cara sabe dançar — sensualizar — tipo muito, é capaz de ele
virar dançarino da Anitta. Sua pele pálida está toda suada refletindo
o sol, um Cullen. O cabelo castanho-escuro, que parecia ter cachos,
desmanchou e está um bagunçado atraente... enfim.
— Olha só quem está aqui! — Gustavo, que parece estar
bem alegrinho me abraça me tirando do chão — Uau, e trouxe mais
uma gatinha, está me mimando muito Aninha.
— Tô vendo que vocês aprontaram hoje, hein! — digo. —
Essa é minha amiga Caterina, e sim, ela é bem gata.
— Quero ver Matias descer de lá e conseguir voltar vivo,
qualquer um aqui quer um pedaço dele, mas eu quero não quero ele
hoje... — ele diz, olhando para Cate e para as coxas gordas que ela
está exibindo ainda mais agora sabendo que ele está olhando.
— E o que você quer hoje? — brinco, ele sorri e levanta as
duas mãos como quem não disse nada.
Outras pessoas sobem no trio agitando a rua, Matias deve
estar do outro lado, pois desapareceu de vista. Uma pena, porque
estava muito bom, de assistir, claro.
Duas mãos surgem nos ombros largos de Gustavo. As mãos
enormes de Matias, ele dá um beijo da bochecha do amigo e depois
um tapa na outra... Gente, o que foi isso?
— Seu otário! Agressão na frente das garotas? — Matias
percebe nossa presença e dá um sorriso.
— Eu falei que ia subir lá e dançar! — Matias diz. — O que
eu ganho?
— Ganha a vista dessas duas belas damas — Gustavo pisca,
e eu tenho quase certeza de que foi para Cate.
— Parece que a donzela que resgatamos voltou para assistir
meu show — ele diz, olhando para mim.
— A donzela aqui não achou o show tão bom assim... — O
que é uma puta mentira.
— Então você pensou sobre meu show e fez uma avaliação...
— Ele cumprimenta Cate e volta os olhos cor de mel para mim: —
Interessante isso, não?
18 M

De como isso deu certo eu não tenho a mínima ideia, só sei


que agora posso dizer que, por cinco minutos, fui dançarino da
Anitta.
Quando eu estava lá em cima vigiei Gustavo, pois aquilo era
uma aposta, uma que ele achou que eu não iria conseguir. Meu foco
no meu melhor amigo mudou quando ele abraçou uma garota, aí eu
percebi que não era só uma garota, era Ana Júlia.
Meu olhar só conseguia girar em torno dela, e quando ela
virou para mim, eu quase desaprendi a dançar. Dei meu melhor
naquele momento, mas minha alma já tinha exaurido meu corpo...
Eu posso ser bem emocionado, mas senti que ela estava me
olhando, me analisando.
Desci dali o mais rápido que eu podia, não queria perder a
chance de falar com ela, de confirmar se o que eu senti foi puro sol
na cabeça causando alucinações ou se foi real. Cheguei pelas
costas do meu amigo, ele não perde tempo, estava flertando
inocentemente com as duas garotas. Esse nem dorme.
Já eu fico mais confuso que antes, lá em cima eu estava
adorando que ela me olhasse, já agora não sei se ela gostou. E,
bom, eu não sei mais nada agora. Era para eu ter algum tipo de
verificação do tipo “sim, vai rolar! Ela quer dar uns beijos”, mas não
aconteceu isso, eu só fiquei bem nervoso com qualquer coisa que
saísse da minha boca, por isso meio que não saiu nada.
— Admito que é um belo dançarino. — Não consigo conter
meu sorriso quando ela fala.
— Obrigada por admitir. — Ela rola os olhos verdes. — Me
apresenta sua companhia — digo, olhando para a garota loira de
cabelos raspados, bem mais baixa que Ana Júlia.
— Sou a Caterina, e para qualquer assunto íntimo com minha
amiga é bom você repensar — ela cerra os olhos.
Ela é uma amiga protetora, o que eu acho muito foda, uma
amizade dessas não é sempre que se encontra. Na minha visão os
amigos devem ser assim.
— Não liga para o meu cão raivoso, ela só não sabe se
comportar em público — Ana Júlia diz.
— Eu diria que tá mais para um pinscher... — Gustavo diz, e
Caterina o encara. — Um pinscher bem fofo e meigo! — E assim a
discussão começa entre os dois.
Eu aproveito para tomar o lugar que Caterina deixou vazio ao
lado de Ana Júlia. Nossos olhares se encontram, mas ela logo
desvia para encarar os sapatos e a multidão passando. Ela é
intensa, a cada olhar que ela me dá, eu sinto um puxão em meu
corpo. O rosto dela é marcante, um rosto que nunca serei capaz de
esquecer.
Às vezes, quando você está ao lado de alguém, mesmo sem
falar nada, é como se sentisse parte de ambos sendo
compartilhada. Ou talvez eu só esteja criando expectativa, e essa
garota quer que eu fique o mais longe possível sem dar um chute no
meu saco.

◆◆◆

Cheguei morto na casa de Gustavo. A casa do cara deve ter


uns oito banheiros, e eu estou em um deles quase dormindo na
banheira enquanto assisto ao “Up – Altas Aventuras” em uma
espécie de TV, algo assim.
Acho que Up é um dos filmes mais tristes da Disney, quando
eu era pequeno chorei assistindo, e olha que eu não chorava com
muitas coisas. Sempre que posso estou reassistindo, há algum tipo
de conforto durante o filme, e por mais dolorosa que seja ainda
quero ficar para ver o final.
Encontro Gustavo deitado no tapete usando um pijama
daqueles de manga longa, cetim preto. Mimadinho que eu amo.
— Sério, a gente tem que encontrar elas de novo!
— Você tá só o caco e já quer sair? — Ele se senta e cruza
as pernas.
— Quero sair com elas, você não?
Não exatamente elaS.
— Quero. É que... — Eu estou morrendo de ciúme por
dentro, mas não vou falar sobre isso. — Eu só tô meio cansado...
— Dorme aí, mano, amanhã é outro grande dia.
Vou para cama e fico ali, encarando o teto branco enquanto
minha cabeça faz o barulho “piii” de depois de festa. Capaz de eu
ter perdido cinquenta por cento da audição hoje.
E não dá outra. Capoto com a cara no travesseiro. Adíos.
19 A.J

A dor que eu estou sentindo ao levantar, graças a Deus, não


é de ressaca, e sim de andar por São Paulo inteira. Melhor estar
com pé estragado do que lidar com dor de cabeça o dia todo, ainda
mais hoje, que resolvi caçar cursinho. Eu não sei se passei na
faculdade que queria, quero cursar odontologia sem pagar as
mensalidades de milhões que tem por aqui. Resolvi esperar para ver
o resultado mais para frente, mas no caso de eu não ter passado
preciso de um plano B, que no atual momento é estudar mais e
fazer o Enem e os vestibulares de novo.
Já não bastam três anos de sofrimento no ensino médio,
agora tenho que lidar com pensamento de que “e se eu não
passei...”. Essa parte é horrível, eu estou meio que fingindo que
nem lembro de ter feito aquela prova, estou tentando fazer com que
meu cérebro acredite que não é nada demais — pois uma mentira
contada várias vezes pode se tornar verdade.
Ontem Cate me convocou para o primeiro treino pós-
carnaval. Éramos ratas de academia antes de eu começar namorar
o Felipe. Depois disso eu ia quando dava, quando ele não arrumava
uma festa para me deixar sozinha. Caterina, pelo menos três vezes
por semana me chamava para ir treinar, mandava foto de quantos
quilos ela já estava conseguindo levantar, ela é extremamente forte.
E só agora eu percebi que ela esteve segurando minha âncora esse
tempo todo, uma forma de eu conseguir respirar e ver que alguma
coisa na minha vida não estava certa.
Minha vida não está voltando ao normal, mesmo antes de
tudo, eu tinha objetivos que eram praticamente certeiros para
dependência emocional. Acho que agora estou vendo realmente as
pessoas ao meu redor. E uma das pessoas que não vejo a menor
necessidade de ter ao meu lado é Isabela, ela suga minha energia
e, de alguma forma, distorce meus pensamentos, fazendo com que
eu me sinta culpada por coisas fúteis.
Então, em comemoração às novas mudanças hoje, me
tornarei a ratinha de academia mais suada possível. E depois um
saco de pipoca amanteigada do cinema.
Meu celular vibra, é uma chamada de vídeo com meus pais.
— Filha! Como foi o carnaval? — minha mãe pergunta na
tela.
— Vocês já estão na praia uma hora dessa? — O céu azul
matinal atrás dela é tão calmante.
— Seu pai cismou que ele e a Larissa vão ter aula de Stand
Up nesse horário! Eu tô fora, fico aqui admirando essa imensidão...
— Então ela vira a câmera para o mar cristalino.
— Vocês estão no paraíso, já eu vou ir naquele cursinho
perto de casa dar uma olhada nos preços e tal.
— Tudo bem, mas vê se o lugar tem uma boa energia, não
adianta nada ser um lugar de ótimos resultados se sufocar os
alunos. — Concordo com ela e desligo.

◆◆◆

Creio eu que todo cursinho tenha essa energia de estudante,


não tem muito o que fazer, estão todos desesperados para estudar
cada vez mais. Achei o lugar bacana, e eles dão um desconto para
quem estudava na escola em que me formei. É uma opção bem
favoritada.
Mensagem de Cate: “Eai gatona? Ta chegando?”
Mensagem de Ana Júlia: “To no vestiário, onde você ta?".
Mensagem de Cate: “Um minuto”.
A porta da cabine do banheiro se abre, e lá está ela, com o
cabelo loiro baixinho, tatuagens na costela, usando um conjuntinho
rosa claro.
— Tô vendo que comprou roupas de treino? — ela pergunta.
— Ai, eu gostei tanto dessa calça! — respondo.
— Eu sei exatamente o motivo — gesticulo para ela continuar
—, olha essa costura, Anaju! É daquelas que deixa a sua bunda
maior que uma bola de pilates!
— Adorei a comparação — a gente ri, saindo do vestiário.
Começamos já no agachamento, o problema é tirar e colocar
os pesos a cada série revezada. Paramos um pouco no meio da
troca para beber um pouco de água. Meu cabelo já começou a
pingar, minha sobrancelha deve estar toda bagunçada.
— Sabe aqueles meninos de ontem? — Cate inicia.
— Uhum — respondo com a boca cheia de água.
— Eles são bem bonitos e parecem legais...
— O Gustavo é o máximo! — digo, e Cate cerra os olhos.
— Percebi que o Matias tava bem próximo de você...
— Cate, a gente tava literalmente num carnaval de rua, seria
impossível não estar próximo. — Ela assente.
— Pode ser, mas não sei direito... — Nego com a cabeça
para ela.
— Você sabe que seus supersentidos não funcionam, né? —
Ela abre a boca em indignação.
— Não quero ouvir mais nada, vamos terminar isso logo. —
Ela passa a toalha nas dobrinhas do braço.
Me levanto para retornar ao exercício, dou uma olhada para
ver se academia está cheia... Ah, não... Só pode ter sido o
supersentido da Cate funcionando uma vez na vida.
Lá estão eles, suados e gostosos.
Eu disse gostosos? Eu quis dizer sebosos!
20 M

Ainda bem que escolhi uma camiseta decente para treinar


hoje. O branco básico sempre é a melhor opção quando só existe
opção com seu nome e número do time. Sério, não dá, usar isso em
academia de shopping... Quer dizer, nada contra, mas eu não uso.
É, eu tenho algo contra.
Vi Ana Júlia e Caterina assim que entrei na academia, nem
sei como Gustavo não viu, deve ter sido porque ele está meio aéreo
hoje, depois de ter mergulhado o fígado no álcool ontem. Eu ia falar
com elas, mas é meio chato chegar quando estão fazendo
agachamento, não sei, parece desconfortável para todo mundo...
Coisa da minha cabeça.
Mas quando ela achou meu olhar fixado no dela... Não
consegui desviar, tive que sorrir, senão iria parecer um serial killer
procurando o alvo. Olha, eu não sei o que está acontecendo direito,
ela nem está na minha para eu bancar o apaixonadinho. Acontece
que é tão inevitável deixar de me sentir assim perto dela que eu
estou me rendendo neste exato momento.
— Ou — Gustavo me cutuca —, olha quem tá ali! — ele
cumprimenta Ana Júlia com um aceno.
— A gente vai lá? — pergunto, já sabendo a resposta.
— É lógico!
Me sentindo o próprio modelo desfilando na passarela para o
público, que no caso são duas garotas, mas está valendo.
— Vocês estão me perseguindo, né? — Ana Júlia brinca.
— Estamos perseguindo sua amiga também, agora — digo, e
Gustavo concorda comigo.
— Vi que os dois não aguentam nada, pouca carga — Cate
diz enquanto uma anilha de uns vinte quilos.
— Vocês não aguentam um treino nosso aqui — Gustavo
aponta de mim para ele.
— Como? — as duas perguntam ao mesmo tempo.
E foi assim que eu perdi a chance de estar vivo.
21 A.J

Mexeram com duas pessoas que não deixam um desafio de


lado. Pode ser idiota como for, mas se vier de um homem tenho que
provar ainda mais que consigo sim, mesmo que isso custe meus
músculos falidos. Acho que toda garota quando criança já teve
aquele momento em que a professora pede para pegar as cadeiras
e mudar de lugar... Nesse momento eu era o próprio Hulk.
Agora, aqui na frente desses postes disfarçados de homens,
eu e Caterina vamos iniciar nosso show de talentos.
— Duvido — a palavra saiu da boca vermelha de Matias, e já
estou preparada — você aguentar mais abdominal na barra do que
eu. — Ele inclina a cabeça, sorrindo.
— Tá falando sério? — pergunto.
— Claro, mas só se você quiser mesmo, não quero fazer
você se machucar. — Cruzo o espaço entre nós, e resta uma
mínima distância entre nossos corpos.
— Não vou me machucar, e você sabe que eu vou ganhar. —
Ele me olha lá de cima para baixo.
— Veremos — diz, e ficamos olhando um para o outro.
— Vamo agilizar aí, meus queridos! — Cate grita. — Não dá
pra ficar o dia todo se admirando... — Nós dois viramos para ela na
mesma hora.
— Eu vou fazer a contagem! — Gustavo diz, parado em
frente às barras.
Eu falei que iria ganhar, mas faz um tempinho que eu não
estou levando a academia a sério. Então sim, é muito provável que
caia morta daquela barra. Tudo tem um preço.
Gustavo faz a contagem para subirmos e começarmos. 3. 2.
1. Pulo e seguro a barra com toda força possível.
Caterina está em minha frente e gesticula para eu ficar
calma, ela tem jeito de treinadora mesmo. Eu amo essa garota. Mas
a porra da minha barriga já começou a arder.
Olho para o relógio da academia, e já se passaram cinquenta
segundos, esse homem quer me matar.
— Já quer descer? — Matias pergunta entredentes.
— Não vai funcionar — digo, com a respiração ardendo.
E o tempo passando, os músculos esticando e contraindo e
tendo que segurar o grito a cada repetição.
— O que não vai funcionar? — Sinto os olhos dele sobre
mim.
— Não vai conseguir me distrair. — Sei que o desgraçado
está sorrindo.
— Passaram mais trinta segundos! — Gustavo anuncia,
entusiasmado.
Estou sentindo meu coração sair pela boca, minha mão arder
com o peso, e mais dez segundos aqui eu desmaio...
— Pronto! — Matias diz, jogado no chão, enquanto olha para
mim. — Gustavo, traz uma medalha pra ela, por favor...
Cate pega minha garrafinha de água e eu não sei se eu
respiro ou engulo a água. E se eu fizer os dois ao mesmo tempo?
Melhor não passar vergonha nos momentos de glória.
— Mulher, acho que você levou um pouco a sério demais —
ela diz baixinho. — Espetacular! — Faz um sinal de joinha e vai com
Gustavo encher a garrafa no bebedouro.
Escuto a respiração de Matias diminuir a intensidade, até que
ele se senta e começa a fazer barulhos e gemidos... Abro os olhos
para ver o que está acontecendo. Ele tirou a bendita blusa e, gente,
me pergunto como eu ganhei dele?
— Sabe que foi sorte, né? — Desvio o olhar do abdome
definido dele e vejo o me fitar sorrindo, com o rosto vermelho igual a
um pimentão.
— Não aceita derrotas, vermelhinho? — Ele fica ainda mais
vermelho.
—Não fui eu que iniciei dizendo que ia ganhar. — Ele se deita
ao meu lado.
— Tudo bem, você quer uma competição séria? — digo,
virando a cabeça para ele.
— Quero. — Ele se vira para mim, e vejo a veia em seu
pescoço saltar.
— Todo dia eu e você aqui em qualquer exercício —
proponho, e ele assente, tirando o arquinho do cabelo escuro.
Escuto passos se aproximarem pelo piso de borracha, olho
para cima e me deparo com os rostos de Gustavo e Caterina nos
encarando.
— Eu ouvi que teremos uma competição séria? — Gustavo
pergunta.
— Eu tô dentro! — Cate diz e me puxa para levantar do
tatame.
Caterina me ajuda a abrir a cabine para tomar um banho,
pois eu real estou desmontada, e sair daqui com um pouco de
dignidade seria ótimo.
— Amiga, de onde você arrumou aquela força? — ela
pergunta da outra cabine.
— Não sei direito, acho que liberei toda tensão acumulada
que tava entalada em mim.
— Ratas de academias sentimentais — começo a rir, e minha
barriga reclama de dor.
22 M

Cansado eu realmente estava, mas ver o esforço surreal dela


naquela barra fez eu amolecer... Não que ela seja fraca, mas a
verdade é que eu treino desde sempre, então sim, eu aguentaria
mais um pouco ali. Sabia que tentar distrair ela só iria fazer com que
quisesse mais ainda ganhar. E quem acabou se distraindo fui eu...
A vontade dela me contagiou de uma forma que meus
músculos travaram. Tem momentos que perdemos para a vontade
da pessoa, é um sentimento de que você não é digno para vencer
aquilo, esse sentimento contagia todo o corpo, não para raiva e sim
para admiração.
Quantas vezes um jogo não foi ganho só pela garra... Esses
são os jogos mais bonitos tanto de fora e tanto de dentro da quadra.
Depois que ela falou que iríamos “competir de verdade”, eu e
Gustavo ficamos esperando a segunda ordem. Não tomamos
banho, e tenho uma leve certeza de que o desodorante não tem
mais utilidade no meu corpo. Então serei humilhado por causas
naturais na frente da garota bonita que eu estou levemente a fim.
— Eu não acredito que você deixou ela ganhar — Gustavo
diz com um sorriso de canto.
— Quem disse que eu fiz isso?
— Você sabe que fez, eu sei que fez, mas tudo bem, pode
tentar fingir que não foi exatamente o que aconteceu — ele dá uma
piscada para mim.
— Odeio o quanto você consegue entrar na minha mente. —
Ele dá de ombros.
— Você me ama! — Gustavo fala alto demais, fazendo todos
olharem para nós. — Elas estão vindo, finge normalidade...
— Sinceramente. — Ele me cutuca, e eu a vejo sair do
vestiário com o cabelo molhado, uma regata branca e uma calça
preta de flanela.
Tudo que eu peço é para ter controle dos meus batimentos
cardíacos. Sempre fui curioso para saber como é se sentir atraído
de verdade por alguém, mas isso aqui só pode ser um infarto! Tem
que ser.
— Ok! Amanhã no mesmo horário — Caterina fala, e nós
assentimos.
— Com muitas metas — Ana Júlia olha para mim.
— Metas difíceis dessa vez — digo soltando no ar, e ela
revira os olhos.
— Tá, eu faço o grupo e a gente organiza por lá — Ana Júlia
diz.
— Não preciso passar meu número, né? — Acho que mais
um pouquinho levo um tapa.
— Não, eu salvei lá como “O Impostor”. — Sua cara de brava
é a coisa mais fofa que eu já vi.
23 A.J

Enquanto eu e Caterina estávamos esperando o Uber, Matias


estava esperando Gustavo voltar com o carro do estacionamento.
— O que você tá comendo? — pergunta.
— Bolacha, e não vou te dar — Matias diz, com os dentes
sujos de chocolate.
— Atleta e não come aquelas barrinhas estranhas? —
pergunto, e ele faz cara de nojo.
— Eca, tem uva passa, é horrível! — Cate concorda com ele.
— Meu Deus, que fresco! — digo, e ele dá de ombros e
continua comendo.
— Você não pode falar nada, Anaju, você tem nojo de gema
mole — Caterina diz, me cutucando e sorrindo fazendo as
bochechas fofas formarem uma covinha, que só se forma quando
ela tá querendo zuar comigo.
— Só tem nojo de gema ou ovos em geral? — Matias
continua, e o silêncio perdura alguns segundos até Caterina
começar a rir. — Calma, não foi o que eu quis dizer, é...
— Aham — digo, tentando parar de rir da cara que ele fez —,
mas só de gema mole mesmo. — Ele assente, ficando rosa.
— O carro do Gustavo tá ali já, eu vou andando — ele fala
enquanto dá um tchauzinho ainda corando.
Matias caminha até o carro o mais rápido possível, entra e
gesticula para Gustavo seguir o caminho, mas ele para perto da
calçada em que estamos, abaixa o vidro da janela e vejo Matias
cobrindo o rosto.
— O que vocês fizeram para deixar meu argentino morrendo
de vergonha? — Gustavo brinca, mas acelera sem esperar
resposta.
Agora sou e Caterina, dentro do Uber, segurando a risada.
Assim que chegamos na minha casa, minha risada, que parece
mais uma tosse, explode. Até nos sentarmos no sofá e ficarmos
rindo.
— Então quer dizer que você só não gosta de gema mole? —
ela diz sério o que torna mais cômico ainda.
— É a prova que eu ainda não sai do ensino médio! Tenho
que melhorar!
— Foi fofo — franzo as sobrancelhas para ela.
— Como assim?
— Ele tentando se explicar pra você, tipo real não foi a
intensão dele — Caterina diz.
— É foi bonitinho até, mas com certeza ele sabia do duplo
sentido!
— Acho que não, aceite que ele é fofo — ela diz apertando
as bochechas que me faltam.
— Não sei não, agora tenho que estudar. — ela faz careta —
Quer deitar lá em cima? — ela assente e subimos para meu quarto.
Passo uma hora estudando os governos do Brasil, história é
mais fácil para mim, mas sempre esqueço detalhes então resolvi
revisar hoje. Mas minha vista começou a pedir socorro e desço para
pegar uma água e comer alguma coisa.
Caterina ficou dormindo no meu quarto, mas eu escuto a
vozinha dela no meu ouvido de como Matias é um fofo. Está bem,
ele pode até ser, mesmo assim tenho um pé atrás. Ele pode estar
apenas fingindo ser um cara legal para depois mostrar as garrinhas.
Meu celular ascende a tela com uma mensagem:
Mensagem de Matias: Oii, qual o número da Cate para eu
criar o grupo?
Só pensar no problema que ele aparece.
24 M

Descansei a tarde toda, não tinha nada para fazer, os treinos


são só eu e Gustavo que organizamos, porque é só eu e ele por
enquanto. Às vezes o assistente técnico junta a galera para fazer
um exercício ou outro pra gente se conhecer e ter uma intimidade
em quadra.
Eu e Gustavo até respiramos de maneira sincronizada
quando estamos em quadra, é surreal nosso entendimento sobre o
que precisa ser feito para ajustar o time. A primeira vez em que
jogamos juntos foi em um campeonato no sul do Brasil. Foram três
semanas de jogos e a gente simplesmente sabia fazer o jogo virar.
Desde então melhores amigos, mesmo que em países
diferentes na maior parte do tempo.
Já deve ser umas sete da noite e estamos treinando na
quadra do condomínio onde o ser mora. Gustavo deu uma bolada
na minha cara, e eu tenho quase certeza de que quebrei o nariz. Ele
foi pegar gelo, e eu fiquei aqui na quadra com o celular na mão. Já
olhei um milhão de vezes para a tela na esperança de ver uma
mensagem de Ana Júlia...
Mandei a mensagem faz dois minutos, Gustavo ainda não
apareceu com o gelo, e ela ainda não respondeu.
Mensagem de Ana Júlia: Hmm, você realmente quer perder
para mim né?
Mensagem de Matias: ata, vai pensando...
Por favor, para de sorrir para a tela igual um idiota, Matias.
Ela manda o número da Caterina e eu crio o grupo.
Grupo criado: Patinhas do Gustavo e Matias
Mensagem de Caterina: patinhas nada! Se preparem!
Mensagem Ana Júlia: Deixa eles pensarem que vão ganhar,
muita prepotência!!
Mensagem de Gustavo: eiii, qual o prêmio? Tem que ter
prêmio...
Mensagem Caterina: a dupla que perder paga uma viagem
para praia, o que acham?
Todo mundo concordou com a viagem, eu realmente estou
empolgado com isso...
Melhor eu subir, pois Gustavo já deve ter esquecido que
amassou a minha cara!
25 A.J

Acordei hoje sabendo que vou ter que ir resolver a questão


do cursinho, então vou dar uma passada lá para ver mensalidades e
afins.
Gostava mais quando meus pais eram responsáveis por essa
parte, mas depois dos dezoito tudo começa a desmoronar. Minha
mãe faz questão que eu lide com toda essa parte de assinar papéis
e cuidar de prazos, porque quer que eu saiba me organizar da
melhor forma para quando eu realmente precisar.
Depois de lá eu vou para a academia, então já vou colocar
uma roupa de treino, que consiste em uma calça legging azul
marinho, um top branco e uma camiseta para não andar de top pela
rua.
Pensei que os garotos não tinham levado a sério o negócio
da competição e que era só balela, por isso nem mandei mensagem
para o Matias. E eu não quero pagar nenhuma viagem para
ninguém nem ser conhecida como caloteira, então estarei presente
nos treinos.
Sai com minha garrafinha de água e hoje eu vou de bike, as
ruas estão vazias nesses dias, pois todo mundo foi para praia no
carnaval. Em SP só sobrou a garoa e os entregadores de qualquer
tipo de encomenda.
Chego no endereço e estaciono a bike lá dentro mesmo,
porque é capaz de levarem mesmo se eu amarrar ali na rua. Vejo
que tem algumas pessoas do colégio, mas são todas de outras
salas, e meu último ano foi o menos sociável possível, então não
posso considerar nenhum deles ao menos colegas.
A secretária passa todos os valores. Eu pego a papelada
para ler em casa, coloco na mochilinha e saio levando a bicicleta.
Uma mão segura meu braço.
— Ana, quando você vai parar de drama e voltar a falar
comigo? — Isabela diz em tom de brincadeira. — Sério, a nossa
amizade não pode acabar assim. — Fico a encarando por alguns
segundos, pensando se vale mesmo a pena falar o que eu sinto
para essa pessoa.
— Olha, só tenho uma coisa que posso te dizer, e é uma
coisa que somente amigas fariam, — ela ergue as sobrancelhas —
para o seu bem, fica longe daquele garoto. E sim, nossa amizade
acaba assim. — Desço a rampa emborrachada e começo a pedalar.
Algumas pessoas simplesmente não escutam seus
sentimentos, então eu não vou mais desperdiçar os meus para
quem os não sente.
O caminho que estou fazendo passa em frente à padaria
onde minha irmã, Débora, passa a maior parte do tempo, seja
estudando, lendo, seja com a namorada que trabalha lá. Decido
parar para tomar um suco de laranja e comer um bolo que Fernanda
— a namorada dela — sabe fazer como ninguém.
Vejo minha irmã pendurada no balcão fazendo aquela coisa
fofa que casais fazem, é horrível de assistir, mas ver minha irmã
feliz com alguém que também está feliz com ela me faz ter um
pouquinho de esperança, o que é difícil depois de ter sido tapeada
tantas vezes apenas por querer “a garota legal”.
— Olá, bonitas! — digo, encostando no balcão e
interrompendo o climinha.
— Quem é vivo sempre aparece, o que te traz aqui além do
meu bolo? — Fernanda pergunta sorrindo.
— Um abraço da minha cunhadinha — faço biquinho.
— Aonde vai com essa calça levanta bumbum, Ana Júlia
Lima? — minha irmã pergunta de olhos arregalados.
— Vou treinar — pisco para ela e me sento na banqueta.
— Ih, tem mais coisa nessa história — Fernanda diz
enquanto serve um pedaço de bolo gelado de morango.
— Acho que o correto seria mais alguém! — Débora
acrescenta e assente para eu falar alguma coisa.
— Não tem ninguém nessa história, vocês querem
contaminar todo mundo com essa paixão de vocês. — Cerro os
olhos e elas riem baixinho.
— Acho que você só vai ser contaminada pelo cupido quando
decidir que estiver realmente pronta, e eu vou estar aqui. Sempre.
— Débora toca meu ombro.
26 M

Hoje eu vou muito galã treinar, depois da falta de


desodorante e da confusão sobre ovos eu tenho que dar uma
arrumada. Tomara que ela me note...
Se eu chorar no chuveiro por ela, resolve?
— Mano, pra que tanto perfume pra treinar? — Gustavo
pergunta, colocando um short verde-água.
— Pra ficar cheirando bem? — Ele balança a cabeça. —
Você quer?
— Matias, diferente de você eu tomo banho, não preciso ficar
jorrando perfume no corpo inteiro — ele responde, sorrindo pelo
reflexo do espelho enorme no closet dele.
Mostro o dedo do meio com uma carinha de santo e vou
saindo para esperar na sala.
Me deito no sofá gigante no meio da sala, que tem uma vista
linda da cidade no fim de tarde. Capaz de eu dormir ali em dois
minutos, assistindo às luzes apagarem uma por uma nas janelas.
— Pode ir levantando, Bela Adormecida, é você que vai levar
o carro hoje.
— Se amassar, você sabe que não tenho um puto no bolso.
— Ele me chama, entrando no elevador.
Foram trinta minutos de esteira, nós quatro enfileirados, e
duplas alternadas para fiscalizar a velocidade um do outro. Ana Júlia
obviamente quer ver eu perder com os próprios olhos, mas não foi
dessa vez.
Corri o mais rápido que conseguia, não aguentava mais
aumentar a velocidade. O meu lado competitivo surgiu de uma
forma monstruosa para não diminuir nem um pouco e precisar beber
água. Foram os minutos mais intensos dentro de uma academia.
Terminamos, e nunca acabei com uma garrafinha tão rápido,
deveria ter tomado um shot de café antes de sair de casa. Vejo Ana
Júlia se sentar na ponta da esteira e amarrar a cabeleira que se
soltou enquanto corria.
— Cansada, já? — começo.
— Correr trinta minutos nem dá pra sentir, faço bem mais que
isso — ela diz, me olhando enquanto estou em pé.
Por favor, pequeno Matias, se comporte.
Ela estende a garrafinha dela para eu segurar e eu seguro.
— Meu carregador de peso tá pronto, qual o próximo
exercício? — Ana Júlia continua, caminhando com os outros.
— Me chamou do quê? — digo, e ela se vira para mim com o
semblante despreocupado.
27 A.J

Matias se aproxima de mim e eu dou um passo para trás, ele


passa minha garrafinha para Cate, que parou para olhar o quer que
seja que ele esteja fazendo.
— Sou um carregador de peso, certo? — Assim que eu
assinto, ele agarra minha cintura e me coloca em seu ombro como
um grande pacote de arroz.
— O que você tá fazendo, idiota? — pergunto enquanto me
sustentar segurando nas costas dura dele.
— Tô carregando seus pesos, ué. — Sinto a voz dele tremer
minha bunda.
— Me coloca no chão! — digo sussurrando — Sério!
— Pelo amor, a gente vai ser expulso da academia —
Gustavo diz, mas não consigo ver seu rosto.
Ele me coloca no chão com um sorriso de orelha a orelha,
vontade de o levantar e pendurar no teto!
— Tenta — ele aponta para si mesmo.
— Tentar o que? — digo cruzando os braços.
— Me levantar, eu sei que você tá morrendo de vontade —
Matias desafia.
— Como é bobo, um dia eu te levanto, quando você menos
esperar vai estar pendurado em outro poste! — Ele ri da minha
ameaça, mas para assim que vê minha cara.
— Você parece um coelhinho raivoso. — Passa por mim indo
para a área de tatame.
Faço um barulho o imitando e vejo suas costas se contraírem
rindo.
Chego ao lado dos três e ainda estou com uma pequena
raiva de Matias. Não é uma raiva real, mas ele me estressa por
viver. Meu Deus, que horror.
— Quer que eu ainda segure sua garrafinha? — ele pergunta
com aqueles olhos castanhos brilhantes.
— Não, quero é trocar de dupla!
— Respira, vai passar — Gustavo diz. — É da natureza dele
ser irritante, mas é um cara bonito. — Matias movimenta as mãos
para ele terminar a frase. — É... um cara legal também.
— Obrigada — Matias diz devagar.
28 M

Eu gostei daquela coisa de pôr ela no meu ombro. Gostei pra


caralho.
— Vamo parar de enrolação os dois, que eu quero ir pra praia
— Cate fala, e dá um soquinho em Gustavo.
— Ok, abdominais vocês dois, e a gente vai no legpress —
Gustavo diz, levando Cate e sorrindo, está rolando, eu sei que tá.
Pego os colchonetes para nós dois e coloco o cronômetro no
meu celular. Ana Júlia não para de desligar um telefonema
que insiste em retornar.
— Tá pronto pra trincar isso aí? — ela diz, apontando para
minha barriga.
— Trincar? — pergunto.
— É... Tipo ficar bem... é... — As bochechas dela ficam
vermelhas.
— Ficar bem?
— Ah, você sabe! — ela diz, sorrindo sem graça.
— Na verdade, não.
— Bem assim — gesticula na minha direção e suspira, —
gostoso. — o sorriso que cresce em meu rosto é incontrolável. —
Ok, pode parar de sorrir.
— Sem sorrisos por aqui. — me deito ao lado dos pés dela
para nos vermos enquanto fazemos abdominal.
Ela aperta o cronômetro, e quem desistir antes de cinco
minutos perde.
— Mais rápido, franguinho — ela diz, com a respiração
acelerada.
— Eu não era o trincado? — Ela me mostra o dedo, e eu rio.
O telefone começa a tocar novamente, e ela põe no
silencioso. Vejo seus olhos começarem a marejar depois de olhar o
celular. Ela para de fazer o exercício, bebe a água e se levanta,
deixando o celular no chão.
— Ei, está tudo bem? — Me levanto e seguro a mão dela.
— Não... — Ela olha para o teto para segurar o choro.
— O que houve? — Chego mais perto, cruzando o espaço
que nos separava.
— Eu vou lavar o rosto e já volto — ela sorri —, não ache que
você ganhou, ok?
— Vou te esperar, mas não garanto nada. — Ela sai e
caminha para o vestiário com os passos acelerados.
Não tenho a mínima ideia do que pode estar acontecendo.
Leva alguns momentos para eu relacionar tudo isso com aquele
garoto loiro da estação... Eu estou criando suposições demais, é
melhor esperar ela voltar e ver se ela precisa conversar sobre isso
ou se quer ir embora, não sei, qualquer coisa que ela queira.
Seu celular continua no chão, e agora que saí dos meus
devaneios vejo que continua a tocar. O nome “Isabela” é destacado
na tela. Não sei quem é, mas está muito desesperada ou quer tirá-la
do sério. Acho que a segunda parte funcionou.
Fico encarando a porta do vestiário, esperando a porta abrir
para falar com Ana Júlia, mas nada. Faz cinco minutos que ela se
foi, e o celular continua vibrando fortemente. E se eu atender e falar
que ela perdeu o celular, a pessoa vai parar de ligar... E vai deixar
Ana Júlia em paz... É, acho que é uma boa opção.
— Oi — atendo e me esqueço do que ia dizer —, é, eu não
sei de quem é esse celular, e...
— Não importa, fala pra ela que o namorado dela está
esperando pra conversar com ela — e desliga.
29 A.J

Me levanto do banco em que fiquei sentada com a cabeça


apoiada entre as mãos, dou uma olhada no espelho para ver se
meus olhos já pararam de fazer aquela coisa que eu odeio em
público, que se chama chorar. Eu odeio quando me veem nesse
momento. Matias já me viu chorar antes, mas naquele dia eu pensei
que nunca mais iria ver. Hoje foi diferente, ele já me conhece e
agora deve me achar uma menina dramática. E eu sou. É assim que
as pessoas julgam quando veem outras chorando, pelo menos era
assim quando eu começava a lacrimejar na frente de alguém que
não fosse da minha família.
Reprimir o choro foi virando rotina, é meu jeito de me
expressar, ou melhor, era, já que agora faço de tudo para não
derramar uma lágrima.
Abro a porta e avisto Matias me esperando, ele passa a mão
nos cabelos e coloca o arquinho preto.
— Então, seu telefone não parava de tocar, aí eu atendi e
falei que você tinha perdido o celular, mas a tal de Isabela não quis
ouvir e disse que — ele para de falar rápido — seu, é... namorado tá
esperando para falar com você.
— Quem tá esperando? — pergunto mais alto do que
deveria.
— Seu namorado?
— Não tenho namorado há meses! Só quero que esses dois
sumam da minha vida, é pedir demais?! — Ele começa a passar a
mão nos fios de cabelo castanhos de novo.
— O que houve? — ele pergunta, se sentando no chão, com
os braços apoiado nos joelhos.
— É uma história chata, quer ouvir?
— Só se você quiser contar. — Me sento do lado dele.
— Eu era uma garota que amava atenção, que achava que
pra ser feliz tinha que ter uma melhor amiga perfeita e um namorado
perfeito. E eu tinha a melhor amiga e o namorado, acontece que eu
era a porra do tapete deles. — Ele parece confuso. — Eles me
usavam pra tudo, pra me diminuir e se sentirem melhores, pra me
humilharem nas festas, na escola e em qualquer outro lugar... Enfim,
é isso, no geral.
— Eles precisam de muita terapia! — ele responde e me faz
rir um pouco.
— É, às vezes eu acho que eu preciso também... — Ele
encontra meu olhar.
— Acho que pode ser uma das melhores coisas que vai fazer
por si mesma, em alguns momentos das nossas vidas nossa mente
parece uma selva cheia de armadilhas. Terapia já me ajudou muito,
era muito bom para mim. — Ele parece formular algo enquanto tira o
suor dos cílios negros. — Sempre vivi sob pressão com minha
família, eu tinha que ser o melhor e corresponder a tudo que eles
traçaram antes mesmo de eu nascer. Tinha que ser o melhor aluno,
tinha que aprender mais que dois idiomas, tinha que entrar no
esporte e me destacar nele. Quando eu entrei para o vôlei, pensei
que ali teria paz, porque eu sou bom nisso, mas não era perfeito nos
primeiros meses. Então, quando chegava em casa, meu pai fazia eu
treinar até acertar todos os movimentos, e eu só tinha dez anos
nessa época. Aí eu cresci, e a quadra já fazia parte de mim. Fui
chamado para jogar em um time de ponta, que requeria mais
dedicação, e era normal para o esporte, mas eu tinha que lidar com
aquilo e com meus pais. Só que nesse time eu já tinha meus
dezessete anos, e tinha sessões com um psicólogo, tinha dia que
meu treinador me liberava mais cedo só pra poder passar um tempo
com ele. Eu treinava sem parar, uma obsessão, e meio que todo
mundo estava percebendo o porquê disso, então essa foi uma
escolha para o time, eu precisava respirar e me livrar de grande
parte do peso que eu carregava dia e noite. Os anos que eu passei
naquele time esclareceram muitas coisas sobre mim, foi a melhor
coisa que poderia acontecer antes de eu virar profissional, por isso
recomendo sempre — ele diz, e passa a mão no alto da minha
bochecha.
— É acho que você até pode ser um cara legal. — Ele dá de
ombros como se não ligasse. — Quero tirar eles da minha vida e
acho que vou começar bloqueando os dois em todas as redes, é um
jeito de eu me sentir mais segura. — Matias assente e entrega meu
celular, que estava no chão.
— Você ainda convive com eles? — ele pergunta.
— Fiquei sabendo que Isabela vai fazer cursinho no mesmo
lugar que eu ia, Felipe provavelmente também...
— Eu acho que você tem que cuidar de você mesma por um
tempo, e isso inclui dar um tempo dessas pessoas, elas estão
prontas pra te machucar, você já tá pronta pra lidar com isso?
— Não, sinceramente tem gente que eu não quero ver nunca
mais, nem que esteja armada com uma bomba nuclear — digo, ele
ri, negando com a cabeça.
— Isso eu não tenho nem o que opinar! — Ele estende a mão
para nos levantarmos juntos.
— Acho que você venceu hoje — digo.
— Empate, porque foi interrompido por causas irritantes.
Dou uma olhada na direção de Cate e Gustavo e falo para
irmos ver o que está acontecendo por lá. A academia está quase
vazia, o que eu particularmente amo, é como se tivesse alugado ela
inteira para mim.
Antes de ir até eles, paro na saída de ar do ar-condicionado,
renova até o humor, sério, um ventinho gelado nesse calor é o
próprio paraíso.
— Eu deixei você ganhar! — Cate diz para Gustavo.
— Você deixou porque quis, portanto um a zero — ele diz, e
puxa a trava do aparelho.
— A gente empatou — Matias diz, apontando de mim para
ele.
— Então as patinhas hoje vão ter que pagar um açaí! —
Gustavo cobra, colocando a mão no meu ombro.
— Passo, tem gosto de terra — Matias fala, e nós três
fazemos uma careta para ele.
— O fresquinho ataca novamente! — digo, ele rola os olhos.
— É impossível vocês realmente gostarem — Matias diz.
— Você comeu errado — Cate faz olhar de pena para ele.
— Se vocês aguentarem duas barcas eu pago. — Matias fala
e já estou indo pegar minha bolsa no armário.
— Sinto muito, mas hoje sua carteira vai sofrer, argentino! —
Cate diz ao meu lado.
Gustavo espera a gente na porta e fala que Matias é quem
vai dirigir, fala que não é para falarmos sobre os buracos que ele
atropela, pois ele fica nervoso e acaba em outro buraco na estrada.
No terceiro buraco ele suspira e para no farol.
— O governador de vocês não percebeu que a cidade inteira
tá cheia de crateras? — Matias reclama com as mãos no volante.
— Você tem que levar como se fosse um jogo, cada vez que
cair num buraco, perde uma roda — digo, e ele me encara no
espelho sem entender se é brincadeira ou se é sério.
30 M

Assim que estacionei o carro, os três desceram como se


tivessem dez anos de idade e se sentaram na mesinha de guarda-
sol. Sento e os fico observando passarem o cardápio de plástico
para lá e para cá até decidirem quais acompanhamentos querem.
— A gente vai querer a maior, com morango, banana, kiwi,
leite em pó e leite condensado — Gustavo pede.
— A maior mesmo? — Eles assentem juntos. — Ok, vou
pedir lá... — Eles continuam me olhando como se eu fosse uma
espécie de mamãe pássaro.
Enquanto faço o pedido, os escuto rirem. Ouvir os outros
rindo juntos numa mesa forma uma memória tão bonita, uma
memória que eu queria ter da minha família... Mas só nos
sentávamos juntos para comer e esporadicamente falar sobre o que
eu precisava melhorar para ser o ideal que eles queriam.
Toda minha vida foi regada de cobranças incubadas,
qualquer elogio tinha um propósito de crítica, e eu não aguentava
mais isso. Não nasci para ser o melhor em todos os momentos, não
nasci para alcançar objetivos dos meus pais. Então, em algum
momento, decidi que não queria viver daquele jeito, e meu foco era
ser o melhor em uma coisa, e era conseguir sair de casa o mais
distante possível e de forma independente, isso significa que teria
que me afastar deles. Eu os amo incondicionalmente, mas não
posso ficar com medo de explodir ali minha vida toda.
Eu só queria me sentar à mesa com eles e vê-los sorrindo
por algo do presente, por algo que eu não tenha me destruído
emocionalmente para conseguir. Queria falar sobre o dia, sobre a
comida, sobre como meus amigos eram irritantes aos meus onze
anos. E eu tentei, como tentei. Tudo em vão, pois terminava em
“ainda bem que você nunca vai deixar eles falarem isso de você,
tem que conquistar todos ali, Matias”.
Enxergo a mesa da sorveteria depois de voar com a
imaginação. É bom conseguir sentir isso com pessoas que você
conhece ao longo da vida, sentir que podem sorrir só com a
intensão de liberar toda energia de dentro de si.
— Agora eu quero ver! — Coloco o açaí na mesa, deve pesar
uns dois quilos. — Se não comerem, quero reembolso.
— Levamos o trabalho a sério — Ana Júlia diz, e Cate
assente.
Eles realmente estão comendo tudo, é humanamente
impossível.
— Ai, tô passando mal — Gustavo diz, largando a colher —,
cancela o treino mais tarde.
— Vocês treinam o dia todo mesmo? — Ana Júlia pergunta
enquanto limpa o açaí do lábio com a língua.
— Tipo isso, querem ir lá na quadra hoje? — convido.
— Não garanto que eu não vá vomitar! — Gustavo diz, se
levanta e pega a chave do carro. — Vou ficar no carro aqui tá muito
quente...
— Deixa o ar bem gelado! — Cate diz, e ele afirma com o
dedo.
— Hoje vocês vão jogar com um profissional — brinco, elas
riem, mas eu só olho para ela e só escuto a risada dela.
31 A.J

A quadra que eles estão treinando — sozinhos — fica no


condomínio onde Gustavo mora. Cara, isso é tão insano, é uma
quadra enorme daquelas de madeira alaranjada, é muito linda. Eles
estão montando a rede, mas pelo jeito Gustavo vai subir porque
está com dor demais na barriga.
— Matias — eles conversam a nove metros de distância —,
você pediu leite em pó e leite condensado sem lactose, né? —
Matias para o nó que estava fazendo.
— Então... Eu acho que a atendente não deve ter ouvido
essa parte... — Matias responde gesticulando.
— Puta merda, você não pediu! — Gustavo passa a mão
pelos cabelos raspados, — Eu vou subir antes que aconteça o que
não deve acontecer fora do banheiro, licença — ele anuncia
indignado com Matias.
— Eu juro que tinha esquecido, cara! Quer que eu compre
algum remédio? — o outro oferece, mas Gustavo parece não
escutar.
Caterina o ajuda chamar o elevador e dá sustentação para
ele, o que fica totalmente desproporcional. As portas de aço se
fecham e eu fico sozinha naquela quadra imensa com Matias.
— Ele vai ficar bem? — pergunto, sentada no banco.
— Vai — sua voz ecoa —, daqui a algumas horas ele tá
pronto pra outra. Você sabe jogar?
— Eu sei o que tem que fazer, mas fazer bem é diferente. —
A risada dele vibra o lugar.
— Tudo bem, eu vou atacar do chão e você bloqueia, ok?
— Juro que se um dos meus dedos quebrarem eu vou...
— Relaxa, estressadinha, vai ser bem devagar...
Ele fica de um lado da quadra e eu de outro, ele lança a bola
e eu fecho o olho com medo de pegar na minha cara.
— Sabe que se fechar o olho não vai conseguir ver a bola,
né?
— Óbvio que sei — respondo, e ele continua com um sorriso
bobo no rosto.
Matias lança a bola no ar novamente, mas dessa vez vai
muito alto, impossível ele acertar o tempo para encostar nela. Ou
melhor, impossível eu acertar o tempo. Assim que pulo, sei que não
foi na hora certa, vou sentindo a gravidade me puxar e a bola passar
como um foguete por cima da minha mão... Agora a melhor parte,
abro os olhos e percebo que enganchei meu dente na rede... Eu vou
perder um dente. Que ótimo, era exatamente isso que eu queria.
Matias parece não ter entendido o que ocorreu para eu ainda
não ter me afastado da rede. Ele arregala os olhos e faz parecer
que eu sofri o pior acidente possível.
— Como isso foi acontecer? Tá doendo? — Faço sinal de
negativo com a cabeça. Ele perguntou pegando o celular, será que
vai chamar a ambulância?
— O que você tá fazendo? — pergunto com a voz embolada.
— Posso tirar uma foto antes de tirar você daí?
— Você não pode tá falando sério! — Ele assente com a
bochecha ficando vermelha. — Pode...
Assim que ele tira a foto, guarda o celular. Segura meu
queixo e me faz abrir a boca. Por alguns segundos nossos olhares
se encontram, e eu não sei exatamente se foram só alguns
segundos mesmo. Matias puxa devagar o fio que estava preso, e eu
consigo sair dali com todos os dentes na boca.
Ele passa por baixo da rede e fica em minha frente, se eu
continuar olhando para frente só vou ter a visão do seu pescoço.
Olho um pouco para cima, lá está ele, um pouco rosa.
— Você quer que eu apague a foto? Eu posso apagar se
quiser. — Então desbloqueia o celular e o coloca em minha mão.
— Não, não precisa, meus dentes devem ser apreciados,
usei aparelho por cinco anos!
— Caraca, quanto tempo! Eu não usei, por isso alguns são
meio tortos. — Ele sorri como se eu fosse uma dentista.
— Mesmo assim é bonito — eu estou elogiando demais esse
homem —, mas me diz onde você aprendeu a falar português? Você
praticamente não tem sotaque e conhece muita coisa — pergunto.
— Minha avó nasceu no Pará, conheceu meu avô em uma
das viagens que ele fazia, ele morou lá um tempo, mas por causa
do trabalho dele foram para a Argentina. Enfim, eu passava muito
tempo com ela quando morava lá, e aí ela me ensinou contando
histórias... Foi mais ou menos assim — Matias diz, deixando o
cabelo cobrir parte da testa.
— Uau, ela... ela tá viva? — É sempre embaraçoso fazer
essa pergunta, mas eu fiz.
— Sim, ela tá lá pros oitenta, mas tá superativa ainda. Ela é
meu porto e um grande motivo pra sentir saudade de Buenos Aires.
— Ele fala com tanto amor pela avó, que fico sorrindo como se a
conhecesse. — Acho que um dia vou levar você pra conhecer ela.
— Ele segura a mecha solta do meu cabelo, seus dedos encostam
em minha bochecha e, por fim, coloca meu cabelo atrás da orelha.
Volto a respirar.
— É... claro — sorrio, e sinto minha bochecha esquentar
como o fundo de uma panela.
— Vamos subir para ver como o Sr. Gustavo está? — ele
convida, assinto e vou pegando a bolsa que deixei no banco.
Entramos e saímos do elevador em silêncio, eu tenho quase
certeza de que ele falou aquilo sem pensar no que poderia significar,
então eu não deveria estar agindo assim. E também viajar para
Argentina não seria a pior coisa que aconteceria na minha vida...
Meu Deus, eu estou levando em consideração algo que ele pode
apenas ter se empolgado ao falar.
— Cate, você não pode me deixar nas mãos desse paspalho!
— Gustavo diz, abraçando Cate.
— Ele é dramático assim sempre? — ela pergunta.
— Depende — Matias responde. — Gustavo, eu compro
aquela pizza, sem lactose, se você soltar a refém. — Gustavo solta
Cate, e ela dá um soquinho na barriga dele, que é muito mais alto
que ela.
— Com brócolis? — Gustavo pede com uma voz de dor, e
Matias assente.
— Vou levar as duas pra casa e volto com a pizza — diz.
— Ok. — Gustavo se abaixa para dar um beijo na bochecha
de Cate e logo depois vem e me dá um também. — Tchau, patinhas,
amanhã se preparem pra nova derrota. — Ele coloca a mão na
barriga, de dor.
— Acho que a gente não vai brigar com quem tá nessa
situação — Cate diz, e eu concordo, piscando para ele.
Vamos para o estacionamento, e eu me sento no banco da
frente. Matias foi ver se ninguém bateu a porta e amassou a lataria.
Cate não para de respirar mais alto do que o costume.
— Hmm, então, como foi lá na quadra? — ela pergunta cheia
de animação.
— Eu prendi o dente na rede — digo.
— Ah, que fofo, ele tá se tornando um personagem de livro
romântico, né? — ela diz, apoiada entre os bancos.
— Como eu paro essa sua imaginação?
— Não é imaginação, boba, só é muito melhor ver um
romance acontecendo ao vivo! — ela diz.
— Você se lembra do que aconteceu da última vez? — ela
passa a língua nos lábios enquanto lembra.
— Sim, eu lembro, mas lembro que você ia se dar uma nova
chance, ia fazer tudo diferente. E você tá fazendo, pois está
enxergando as pessoas como elas realmente são. Não fica com
medo, eu sempre vou estar segurando sua mão — Cate diz, toda
orgulhosa.
— Você sabe que ficou bem meloso? — Ela assente. — Eu te
amo.
— Eu também. — Ela diz assim que Matias entra.
— Hmm, cortei algum clima? — ele pergunta.
Saímos da garagem com aquele carro enorme, com qual eu
ainda não me acostumei. Dessa vez ele passa por menos buracos.
— Ah, eu vou ficar na casa da minha irmã, quer que eu
coloque no GPS ou vou guiando? — pergunto para ele.
— Pode ir guiando, é mais fácil, não me acostumei com
aquela voz mandando eu virar pra lá e pra cá.
Primeiro eu o guio para a casa de Cate, que vem primeiro,
depois vou falando para chegar na casa da minha irmã.
— Por que você tá falando igual a mulher do Google? — ele
pergunta, parando na frente do endereço.
— Nada disso, eu só estava passando as instruções corretas
— anuo enquanto digo.
— “Instruções corretas”! — Matias sai do carro e abre minha
porta.
— O que foi isso? — franze as sobrancelhas.
— Isso o que? — ele se aproxima para se despedir.
— O lance da... — Matias estava perto demais, e eu virei
rápido demais, eu o beijei.
Como ele vai acreditar que não foi de propósito?
— Nossa, desculpa, é que eu ia falar, aí eu virei, é... — digo.
— Tudo bem, eu... — ele começa a ficar com as bochechas
vermelhas, e eu fico muito sem graça apenas por um selinho.
A vergonha começa a me consumir, e ele fica em silencio por
muito tempo fazendo eu olhar para o rosto dele pela eternidade, me
viro rápido em direção da portaria e giro novamente para ele para
me despedir... Algo assim.
— Vou entrando. — Fico em dúvida se dou um beijo na
bochecha, então dou aquele tchauzinho. Sim, um tchauzinho.
Eu não estou acreditando na minha capacidade de acabar
com qualquer começo.
32 M

Sim, eu já fui beijado antes.


Mas não, eu não liguei o carro ainda, continuo encarando a
portaria de onde a irmã dela mora. A porta que ela fechou, e eu não
fiz nada além de olhar e olhar e olhar. Como eu queria meter minha
cabeça num poste agora.
E o tchauzinho, esse vai ser impossível de esquecer. Talvez
eu zoe ela no futuro... Meu Deus, onde minha mente está me
levando?
Primeiro eu cometi a gafe de falar para ela conhecer a minha
avó. Tipo, eu real levaria ela, Dona Sandra iria amar Ana Júlia com
certeza, mas, bom, eu poderia ter sido menos... Menos apenas.
Ai, isso aqui acontece. Isso alimenta minhas emoções, poxa.
Como eu vou saber se foi algo pensado ou apenas um erro mesmo.
Dúvida cruel. Mas o que eu não tenho dúvida é que eu vou
esperar ela chegar em casa agora.
É, mas onde é a casa dela?
Mensagem para Gustavo: Ei, deixei a Anaju no apê da irmã
dela, mas qual o endereço da casa dela?
Gustavo se lembra de todos os endereços possíveis em que
ele já tenha ido. Eu não sou bom nisso.
Ele manda o endereço sem o número, só a descrição da
casa.
Dessa vez tenho que colocar no GPS, e não ligo para a voz
robotizada, era só uma desculpa para ouvir a voz dela.
Avisto a casa, e bate certinho com a descrição que Gustavo
fez, única casa com portão branco e dois arbustos floridos na
calçada. Mas o que eu não esperava era ver um garoto de cabelos
loiros tocando a campainha.
Desço do carro, esse garoto não entendeu que ela o
bloqueou em tudo?
— Chegou nosso grande herói! — ele diz ao me notar na
calçada.
— Acho que você não tá entendendo que ela não quer mais
você.
— Acho que você não entendeu que ela é minha... — ele
chega cada vez mais perto. — Ela pode até querer fingir que me
esqueceu, mas assim que ela abrir essa porta, vai me aceitar de
volta — e mais perto. — Entendeu?
Ele me olha com raiva e ao mesmo tempo como se eu fosse
o merda que está infernizando a vida de uma garota. Juro que não
queria entrar no jogo dele, mas...
— Olha, acho que você não conhece a mesma garota que
eu, uma pena pra você e muita sorte dela não ter que ouvir tanta
merda que sai da sua boca. — Ele me empurra. — Você quer
mesmo fazer isso? — Seguro os dois braços dele e o tiro do chão.
— Sua última chance de desaparecer. — Eu o solto, empurrando
para baixo. — Só entre no seu carro e suma.
Ele entra olhando para mim, eu bato na janela e ele abre.
— As chaves, porra. — Ele me entrega a chave do carro.
Tranco ele dentro do carro e começo a escrever na lataria,
“SOU UM MERDA”. Escrevo em todas as portas e no capô. Volto
para entregar as chaves, só falta ele virar a própria raiva em pessoa.
— Você é louco! — grita lá de dentro.
— Talvez. — Abro a porta e jogo a chave.
Ele e o carro somem em questão de segundos.
E a minha sanidade também sumiu.
Um carro para na frente da casa, e Ana Júlia desce
desconfiada.
— O que você tá fazendo aqui?
Hmm queria saber se poderia te beijar de verdade??? — era
o que eu queria falar.
33 A.J

Não consigo acreditar no que Matias está dizendo. Na


verdade, consigo até imaginar, cedo ou tarde aquele traste iria me
procurar para voltar ou qualquer coisa assim, qualquer coisa que
alimentasse o ego dele.
A parte que está me tirando de indignada para quase pulando
de alegria são os riscos naquele carro do Felipe. Era tudo que eu
queria fazer para aquele babaca.
— Obrigada — digo, pulando no pescoço de Matias.
— Tudo bem — ele responde, e passa as mãos na parte de
cima das minhas costas.
— E sobre o beijo, — olho para cima, encontrando seu olhar,
mas desvio para sua pinta— foi um acidente, me desculpa, sério! —
Ele ergue as duas sobrancelhas antes de afirmar com a cabeça
devagar, como se esperasse que eu falasse algo a mais.
— Já que tudo foi resolvido, eu vou indo, prometi uma pizza
para o Gu. — Ele enrola uma mecha escura do cabelo no dedo.
— Não, entra um pouco, eu trouxe bolo — falo, e ele já está
de olho na sacola plástica em minha mão.
— É, não posso desperdiçar um bolo — ele diz sério, abro o
portão e entramos.
— Bom, essa é minha casa... — Ele olha ao redor,
assimilando o espaço não tão enorme, mas bom o bastante. —
Você não me contou por que estava aqui.
— Eu estava passando na rua, aí eu... Eu sou péssimo
inventando histórias quando tô nervoso. Vim porque queria falar que
tudo bem sobre o beijo, aliás só foi um selinho — ele diz com as
mãos no bolso.
— Sim, só foi um selinho... — digo, mas não sei se gosto
disso...
— Amigos fazem isso o tempo todo! — ele continua, sorrindo,
sorri com aqueles malditos lábios que eu disse que foi só um
selinho.
— Claro, o tempo todo. — Mordo o lábio sem graça. — O
bolo deve estar ótimo — digo, me sentando na banqueta.
— Sim, uma bela amiga para dividir um bolo — ele diz
enquanto se senta.
— Bela amiga? — Começamos a rir.
— Tenho muitos elogios melhores que esse — ele fala
abrindo a sacola.
34 M

De alguma forma ela se engasgou com ar e pelo jeito foi por


começar a rir do que eu falei. Falei algo errado? Não é possível que
eu tenha virado uma batata nesse negócio de flerte.
— O que foi? — pergunto.
— Nada, é que parecia aquelas falas de galã, sabe? — Ela
volta a rir.
— Vou embora, tô sofrendo muito bullying aqui! — brinco, e
ela coloca a mão no meu joelho para eu não me levantar.
— E se eu fizer brigadeiro pra colocar no bolo? — ela diz,
fazendo círculos na minha perna, se eu gemer não é culpa
inteiramente minha!
A cada circulo que ela faz em meu joelho sinto o toque
descer e subir pela minha coluna, sinto os pelos arrepiarem, olho
fixamente em seus olhos mantendo a respiração constante.
— Tudo bem, eu fico! — digo, e ela morde o lábio e me
encara antes de se levantar.
— Me ajuda a pegar a panela lá no armário alto... — Ela
aponta para o armário branco com um puxador de madeira.
Ela abre a lata de leite condensado, pega o cacau em pó e a
manteiga. Fica naquela posição de brigadeiro, quando um dos pés
fica apoiado na outra perna, famoso flamingo. Ela mexe tão rápido
que fico longe com medo de voar em mim.
— Ei, pega aquele prendedor de cabelo ali pra mim — ela
diz, aponta para a mesa, mas eu não consigo achar.
Pego a faixa reserva que deixo em todo shorts e me
aproximo dela. Ela se equilibra se esbarrando em meu peito, deixa
minha respiração abalada, e quanto mais eu mexo no cabelo dela
mais eu sinto o perfume que me atiça em todo lugar. Passo a fina
faixa pelo seu rosto, levanto o cabelo castanho e levo o tecido até
um pouco depois de sua testa. Eu passei a mão em seus cabelos
tão devagar só para tê-lo em mãos por mais tempo.
— Serve? — pergunto, apoiando as mãos nos ombros
magros dela.
Ela responde virando com um sorriso enorme no rosto, suas
bochechas sempre estão rosadas como terracota, não sei se é
maquiagem ou é a pele mesmo, mas eu acho tão lindo, combina
tanto com ela.
— Sabe, acho que vou jogar fora os papéis que ia assinar
para o cursinho, procurar outro lugar... — ela diz enquanto a panela
no granito frio.
— Vai ser um grande começo, vai ser ótimo — incentivo,
pegando uma colher e quase queimando a língua.
35 A.J

Coloco o brigadeiro por cima do bolo cheio de morangos, isso


melhora qualquer sobremesa, e o que importa é minha opinião. Eu
estou me perdendo no brigadeiro, é isso.
— Me diz, qual curso você quer fazer? — Matias pergunta.
— Odonto — respondo enquanto dou uma colherada.
— Não sei, acho que você não pode fazer esse curso. —
Paro até de comer.
— E por que o senhor tem esse veredito? — pergunto.
— Toda odonto é loira e você é morena — ele relaciona com
as mãos, e eu faço uma careta.
— Isso é um problema pra você?
— Muito pelo contrário, senhorita. — Ele olha meu cabelo, e
é como se eu pudesse sentir o olhar tocando os fios.
— Gosta do meu cabelo, senhor? — ele arruma a postura,
ficando mais do que reto.
— Não só do cabelo, milady...
— Você atua muito bem! — digo, sem saber o que dizer, mas
tenho certeza de que essa não era a resposta certa.
— Minha última atuação foi do Peter Pan na escola — ele
fala sério me fitando.
“Não fica com medo” — a voz de Cate surge, mas é difícil
escutar, são tantas armadilhas que eu criei para conseguir me
libertar.
Dizem que, quando você encontra alguém, deve sentir
segurança, mas acho que não devo buscar segurança no outro. Eu
tenho que me sentir segura dentro da imensidão, dentro de mim,
antes de achar meu porto. Um porto espera por você a vida toda, eu
só tenho que achar meu caminho de volta.
36 M

Sinto que, ao mesmo tempo que ela quer liberar a própria


risada, ela se reprime, como se estivesse pensando em seus atos
para agir. Como se eu fosse julgar.
— Você mora sozinha?. Ela cruza os braços no balcão.
— Não, meus pais estão viajando com minha irmã mais nova,
e as duas mais velhas moram sozinhas. — Ela boceja, e eu acho
que é algum tipo de alarme para eu dar tchau.
— Deve ser legal ter irmãs... — digo.
— Elas são ótimas, às vezes a gente se esbarra com uns
travesseiros.
Fica um silêncio, e percebo que estava encarando a junção
do pescoço dela com ombro, aquele espaço é onde eu queria estar
enterrado...
— Acho que vou indo, tá ficando tarde e, só para deixar claro,
eu nunca iria atuar com você, Anaju. — Olho para a janela e vejo o
céu alaranjado da tarde dar as caras.
— O que quer dizer com isso, engraçadinho? — Ela se
levanta na mesma hora que eu nos deixando próximos demais.
— Você sabe — ela espreme os lábios —, até amanhã,
Anaju. — Dou um beijo em sua testa e ela me guia até o portão.
Pensar em pizza. Pizza para o Gustavo. Pizza é tão bom.
Pizza é tão linda... Pizza, pensar só na pizza de brócolis do Gustavo
e não pensar no cheiro ou formato da boca dela, não pensar em
como deve ser o gosto dos lábios dela nos meus, como deve ser
amassar todo seu cabelo em meus dedos...
Eu consigo ser racional.
Chego com a pizza já sem um pedaço um pedaço porque
comi um no carro.
— Onde você tava? — ele começa —, ou melhor, com quem
e o que vocês estavam fazendo?
— Nossa! Tá bem melhor, acho que nem pizza tá merecendo.
— Gustavo pega um pedaço da caixa, que ainda está em minhas
mãos.
— Você tá caidinho, o que houve com ela? — pergunta.
— Eu... Eu não sei agir direito perto dela, eu acho que fico
muito... nervoso?
— Esse não é o Matias que eu conheço, já se apaixonou de
verdade antes? — Olho para ele sem graça. — Eu sei que você não
se apaixonou por mim tanto, não sei como, na verdade, mas tudo
bem, águas passadas e estranhas.
— Não sei, acho que sair de casa de verdade sabendo que
não vou voltar em dois anos pelo menos, mudou algo em mim. É
como se tudo que eu faço tivesse uma dose extra de liberdade, uma
sensação de que as coisas são tão grandes e que eu não sabia a
dimensão disso tudo — digo, e me jogo no sofá, que dá vista para a
cidade.
— O mundo é bem grande, Matias, acho que quando você
nasce brigando com ele é mais fácil entender o quão pequeno você
é. — Gustavo responde, enchendo dois copos com água tônica. —
Você tá sentindo tudo como deve ser sentido, sem a proteção dos
seus pais, sem a proteção da sua língua nativa, sem o seu país, e
agora com uma garota para destruir essa proteção ainda mais. Uma
garota que pode bagunçar tudo aí dentro desse seu coração vazio,
mas sabe, montar um quebra-cabeça pode ser divertido.
— Gustavo, o pensador. — Ele ri com a bebida na boca. —
Vou ter que dormir aqui e absorver todo esse pensamento.
— Eu nem sei pra que você pediu aquele quarto no hotel —
ele diz.
— Pra gente não se matar, óbvio — dou um peteleco na
orelha dele.
Entro no box e deixo a água gelada correr pelo meu corpo,
banho gelado é a solução para parar de pensar besteira sobre tocar
em uma garota e também faz bem para a pele.
37 A.J

Educação e flerte não são a mesma coisa. Por favor, alguém


me faça entender isso.
Consigo sentir o cheiro dele ainda na sala, um perfume suave
e forte e que não enjoa. Tenho que parar de ficar cheirando o ar
igual uma sem noção.
Na hora em que ele falou que amigos dão selinho o tempo
todo, algo mudou. Uma dúvida surgiu, uma dúvida horrível. Com
quantos amigos ele faz isso? E outra, por que eu nunca fiz isso com
nenhum dos meus? Talvez eu esteja vivendo errado esse tempo
todo.
Eu admito que bateu aquela pontinha de ciúme do que não é
meu. Sendo que o que aconteceu foi acidente e também não foi
aquela coisa. Foi só a droga de encostar minha boca na dele. Não
tive nem tempo de realmente sentir o impacto dos lábios dele.
Não é medo o que eu sinto. Acabei de notar que me sinto
angustiada dentro da minha bolha. Eu tenho que me libertar de mim
mesma, não posso viver assim. Não estou falando sobre o Matias e
sim sobre a vida, toda a vida. Viver pensando em todos os seus
passos é como estar me afogando a cada segundo.
Abro o computador e pesquiso por “psicólogas”, encontro um
consultório não tão longe e não tão perto, analiso os perfis de cada
um dos profissionais. Não sei fazer isso. Caterina não vai me
responder a esse horário, já deve estar no oitavo sono.
— Alô? Ana, tá tudo bem? — ela atende com a voz de quem
acabou de acordar.
— Sim! Quer dizer... desculpa! Eu tava marcando um
psicólogo, só que eu não sei fazer isso — digo rápido demais.
— Calma, por que você tá fazendo isso agora? Tipo, eu sou a
maior apoiadora, mas o que mudou? — ela pergunta.
— Eu me toquei da pequena bolha que está se tornando
cada vez menor ao meu redor, não quero viver dentro dela mais,
acho que é isso.
— Entendi, vamos pesquisar muito sobre cada um,
selecionando... Prometo que vou dar meu melhor nessa pesquisa
com você, mas sabe que eu não consigo pensar muito bem depois
das dez da noite.
— Sim, sim vai ser ótimo. — Sorrio enquanto ouço a
respiração dela na chamada —Obrigada, Cate, boa noite. — Ela diz
o mesmo e eu desligo sorrindo para o telefone.

◆◆◆

Assim que acordo, Cate já está no portão, fazemos todo tipo


de pesquisa, assistimos um milhão de vídeos sobre experiências de
outras pessoas, pegamos de tudo isso algo que represente um
pouco de mim e do que eu preciso.
Marcamos a consulta.
Hoje Cate e Gustavo não vão poder treinar, Gustavo pela
lactose que o deixou mal desde ontem, e Cate porque tem horário
no salão, pois vai platinar o cabelo. Matias não visualizou o grupo
ainda. Acho que vou sozinha treinar braços, projeto personagem de
filme de ação vai ser colocado em prática.
38 M

Fazia tempos que eu não treinava sozinho, a melhor parte é


poder colocar os fones no último volume e só prestar atenção no
exercício na hora do refrão, por isso já faz meia hora que estou
sentado no mesmo aparelho.
— Oi — uma garota para na minha frente, e tenho que tirar
os fones —, você pode me ajudar a colocar as anilhas ali, por favor?
— Ela toca meu braço.
— Claro — estranho, mas o que custa ajudar pegar uns
pesos.
— Eu sou Mariana, e sabe, eu tô aumentando a carga no
supino hoje e aí tô com medo de cair na minha cara — ela ri.
— Ah, tudo bem, eu posso ficar pra ajudar — digo o que ela
queria ouvir, ter medo de dizer não é horrível.
Ela se deita no banco e eu ajusto a barra para ela não acabar
enforcada. Quando termina as três séries não parece ter tido
nenhum problema com o peso. Ela agradece, e eu sigo para a
esteira para correr um pouco.
Quando subo na esteira, percebo que Mariana está do meu
lado, e não para de sorrir para mim. Sério, eu não sei o que fazer.
Coloco o fone nas alturas novamente e começo a correr.
Tinha pensado que todo mundo iria cancelar o treino hoje,
mas Ana Júlia está na academia, ela acabou de sair do vestiário
para ir embora.
— Ei, — digo ofegante, após acabar de correr, e ela vira para
mim. — Não sabia que ia treinar hoje.
— Não sabia que você ia também — ela diz, arrumando a
bolsa no ombro.
— Por que não falou comigo?
— Você tinha companhia, não queria ser intrometida e
atrapalhar o treino de vocês — ela fala calma demais.
— Não tinha companhia — digo.
— Qual o próximo? — Mariana pergunta de costas para Ana
Júlia. O que rolou aqui?
— Eu vou indo, personal — Ana Júlia diz, e faz um
movimento de corte no pescoço.
— É, eu vou ter que ir embora agora, Mariana...
— Meu número, pra gente treinar mais vezes — ela entrega
um papel com o número e um coração, assinto e vou pegar minhas
coisas no armário.
Que garota louca. Ela nem perguntou meu nome, falava igual
uma metralhadora... Como ela já tinha um papel com o número
dela? Ela entrega para todo mundo na academia? Ego abalado.
Pego minha bolsa e vou para onde Ana Júlia estava, mas ela
já foi. Vou até lá fora e ela não está lá também. Ótimo.
39 A.J

Foi uma das coisas mais vergonha alheia que eu presenciei,


a cara do Matias sem ter ideia do que falar para a garota... Também,
com aquela cara bonita é inevitável não ganhar uma stalker.
Ela ficou me encarando lá fora enquanto eu esperava Cate.
Fingi que nada estava acontecendo, apenas fui embora. Já bastam
as minhas velhas confusões, quero ficar longe de qualquer novidade
desse tipo. Vivendo a vida soft.
— Por que você não falou com ele? — Cate pergunta no
carro.
— Ele estava treinando com uma garota, seria tão possessivo
chegar no meio do treino deles — sinto ela olhar para mim.
— Você sabe que dar “oi” é só um cumprimento, né? —
Continuo encarando a estrada.
— Sim, mas eu não queria drama nem nada, então só treinei,
e bem que a gente podia trocar de duplas amanhã, o que acha?
— Acho que você ficou com ciúme de dividir sua dupla de
treino com aquela garota — Cate diz.
— Não fiquei, nem tem razão pra isso, dona Caterina.
Caterina me deixa em casa, e a coisa que eu mais quero
fazer agora é tomar um banho. No quintal tem uma encomenda,
deve ser um dos milhares livros de minha irmã.
“Six Of Crows”, parece ser um livro de fantasia. Nunca fui
muito dos livros, tenho tanta dificuldade em me concentrar para ler...
E olha que já tentei milhares de vezes com milhares de livros. Mas o
que custa tentar de novo? Hoje eu não tenho nada para fazer, e ler
um livro, nem que seja algumas poucas páginas, pode ser bom.
Eu consegui ler trinta páginas! Sério, isso pode ser pouco,
mas tudo bem, o que importa é que eu estou feliz agora. Estou
morrendo de sono, são sete horas da noite e eu pedi comida
chinesa.
Comi tudo que chegou naquela caixinha, acho que posso
explodir a qualquer momento, mas pelo menos bem alimentada eu
estou.
Quase esqueci de mandar no grupo que vamos trocar as
duplas amanhã. Enviado.
Agora sim.

◆◆◆

Eu e Gustavo estamos fazendo dupla, e ele é animado ao


extremo, o que é ótimo para um treino. Matias está com a Cate.
Estamos pedalando já faz vinte minutos, e ainda tenho bastante
energia, hoje vou ganhar deles.
— O que está acontecendo? — Gustavo pergunta, inclinando
a cabeça para Matias.
— Como assim?
— Você sabe — ele diz.
— Só sei que minha garrafinha tá vazia e você parou de
pedalar, enxerido.
— Ei, você me distraiu!
— Aceite que a vitória não é sua, Gu! — vou indo para o
bebedouro.
40 M

Quando cheguei na academia, Cate já estava me esperando,


disse que as duplas mudaram hoje, e que a Ana Júlia mandou no
grupo. Devia ter colocado o celular para carregar ontem, com
certeza eu iria questionar isso, não que eu não queira treinar com a
Cate, mas eu queria treinar com a Ana Júlia.
Estou tentando fazer contato visual com ela desde que se
sentou aquela bunda perfeita na bicicleta. Ela está enchendo a
garrafinha, ou seja, o momento certo para esbarrarmos um no outro
conforme os planos da vida.
Só tenho que terminar essa série e eu vou.
Olho de novo para ver se ela já terminou, o que encontro é
um cara falando com ela, sorrindo demais para ela, pegando no
braço dela, não sinto coisa boa desse cara...
— Já volto, tô com sede — digo rápido para Cate e me
levanto.
— Mas sua garrafinha... — escuto a voz dela a alguns metros
de distância já.
Esse cara, ele parece aquele tipo que só fala merda na
presença de qualquer um. Não fui com a cara dele, não adianta.
— Oi, tudo bom? — paro no meio dos dois.
— Quem é ele? — o cara pergunta como se eu não estivesse
exatamente na frente dele.
— Parceiro de treino — Anaju diz me olhando furiosa.
— Me diz aí cara, ela é a mais gata dessa academia, né? —
ele pergunta para mim, sabe que eu não estou gostando da
presença dele.
— Cara, eu não sei qual é a sua, só vou pedir pra deixar ela
em paz, ok? — digo, fitando os olhos dele, e ele olha Anaju de cima
a baixo antes de sair andando.
— Que porra foi essa? — Ana Júlia parece estar com fumaça
nos olhos.
— Como assim? — digo, será que ela não percebeu as
intenções do cara?
— Como assim? Você parecia um cachorro mijando no poste
e marcando território! — ela esbraveja.
— Você não é um poste — falo baixo, sentindo que exagerei.
— Obvio que não, você que tem 1,90 de altura — ela aponta
dos meus pés até meus olhos.
— Tenho um e 1,96, ok?!
— Senhor! Haja paciência — ela diz, jogando as mãos para o
alto.
41 A.J

Aquele cara já estava cruzando alguns limites que eu não


tinha dado a ele. Mas eu iria sair daquela sozinha ou veria se iria
continuar, não precisava do grande Matias vindo me proteger... Tá,
até que foi mais fácil com ele ali. Que inferno.
— Qual é o problema? — começo. —Um amigo deveria me
apoiar a superar, sabe?
— Eu não quero ser seu amigo... — ele diz gesticulando.
— Ok! Não precisa!
— Gente, tá tudo bem por aqui? — Cate aparece.
Nenhum de nós responde.
— É... Ainda tem o agachamento... — Gustavo diz quebrando
o silêncio da pequena roda que criamos.
— Anaju, eu... — deixo Matias falando sozinho.
Não entendo nada desse garoto, na minha casa aquele dia
ele foi um fofo, hoje vem dizer que não quer seu meu amigo. Quem
diz uma coisa dessas depois de passar dos oito anos de idade?
Não quero falar com ele agora, ainda mais depois disso. Não
tem nem mais assunto com ele. Eu desconfiei dele de início, e aí
está. E eu gosto da amizade de Gustavo, também estava gostando
muito da de Matias, tinha pensado que a gente já tinha certa
intimidade... Enfim, quebrei a cara. Mas se ele está achando que, só
porque não quer seu meu amigo, eu vou arregar nesse
agachamento, azar é o dele, pois ele vai perder o joelho hoje.
Ganha quem fizer mais repetições, e primeiro vai a Cate,
depois o Gustavo, eu e Matias. Quero ver ele bater meu recorde. Eu
rasgo minha calça hoje, mas eu ganho.
42 M

Não sei mais o que eu tenho que fazer para deixar na cara
dessa estressadinha que eu não quero ser só amigo dela. Pelo
amor, não é tão difícil de entender, ainda mais com todos os sinais.
Tudo bem, paciência, que tudo vai ser como deve ser.
Chegou a vez dela no agachamento com a barra, Gustavo
fez quarenta repetições, ela vai passar isso, e eu sei que não vai
parar no quarenta e um, o jeito que ela me olhou depois do que eu
falei significa que ela está em guerra. Mas eu não!
Em guerra com meu coração.
— Ok! Você ganhou, vai acabar rasgando a costura! — digo,
vendo o suor escorrer e molhar suas costas.
— Somente amigos têm essa preocupação, Matias — ela diz,
ainda insistindo em continuar.
— Tenho certeza de que amigos não ficam reparando tanto
na costura da calça de alguém...
— Sinceramente eu não tenho a mínima ideia do que você tá
falando.
— Elas estão ganhando, cara, amanhã é nossa última
chance de provar nosso valor — Gustavo diz.
— Uma batalha difícil, mas não recomendo comemorar antes
da vitória... — olho para as duas, e elas se entreolham.
— Amanhã é corda, eu amo pular corda — Cate diz.
— Você sabe que a gente não vai cantar enquanto você pula,
né? — Gustavo provoca.
— Palhaços — Cate responde.
— Por que está me incluindo nisso? — pergunto,
dramatizando.
— Não sei, acho que hoje você merece, atletinha.
— Amanhã as duplas voltam? — pergunto e olho para Anaju.
— É, desde que eu possa beber água em paz — ela diz me
fitando.
— Vou encher quantas garrafinhas você quiser — digo, e vejo
um quase sorriso se esboçar nos lábios desenhados dela.
Um puta sorriso que faz eu querer beijar ela todinha ali
mesmo.
43 A.J

Eu disse que ia ganhar mas, na verdade, eu queria ver


Matias perdendo... O espírito competitivo está tomando conta do
meu ser. Ele simplesmente falou que eu ganhei. Eu queria ver ele
ficar com a perna ardendo e tremendo, isso sim. O que mais me
estressou é que eu não consigo ficar completamente brava com ele.
Eu gosto dele.
— Então ele não quer seu amigo? — Cate pergunta do sofá
de casa.
— Pois é! Eu não entendi foi nada — comento, polvilhando
leite em pó na pipoca caramelizada.
O jeito que ele falou não fez sentido nenhum, eu quebrei
todos os meus pensamentos tentando identificar o que ele quis
dizer. Não é possível que eu tenha sido tão desinteressante a ponto
de ele querer deixar de construir uma amizade.
— Eu entendi muito bem — ela diz rindo.
— Então explica — me sento ao lado dela e coloco a pipoca
entre nós.
— Não — ela diz sorrindo.
— Por que não?
— Porque é impossível você estar tão cega! — continuo
olhando para ela sem entender. — Vamos ver Mulan que é melhor.
Fico emburrada por pedir a ela mais de quinhentas vezes
para explicar e ouvir que tenho que descobrir sozinha. Mas que
porra que eu tenho que descobrir? Parece até que eu estou num
filme de fantasia em que a protagonista tem que achar o motivo para
estar viva.
A tela do meu celular acende com a mensagem.
Mensagem de Matias: Lembrei de você, “Aprende que não
importa em quantos pedaços seu coração foi partido, o mundo não
para pra que você o conserte.
Aprende que o tempo não é algo que possa voltar para trás.
Portanto, plante seu jardim e decore sua alma, ao invés de
esperar que alguém lhe traga flores.”
– William Shakespeare
Mensagem de Ana Júlia: que cu, muito lindo
Mensagem de Matias: ta bom então
Mensagem de Ana Júlia: MDS ERA CULT, de cultura e tals
Mensagem de Matias: Sei :(
Mensagem de Ana Júlia: JURO
Mensagem de Matias: Não mando mais nada também, toda
hora esse bullying!!!
Mensagem de Ana Júlia: #chegadedramaparceiro
Mensagem de Matias: grrr
Fico um tempo encarando as mensagens, releio e rio de
novo. A que momento eu cheguei?
Cate dormiu no sofá, pego uma coberta e uns travesseiros
para ela. Subo para o meu quarto e assisto a uma aula de biologia
no Youtube, tem alguns professores que são capazes de nos distrair
e ensinar ao mesmo tempo, tem vezes que eu gosto tanto deles que
assisto às aulas sem nem perceber que era estudo.
Minha mãe me liga um pouco mais tarde, e eu conto sobre o
cursinho e a psicóloga, ela fica toda animada junto com meu pai.
Eles são fofos juntos.
É estranho imaginar que teve um tempo em que meus pais
não eram meus pais e sim dois adolescentes que se apaixonaram,
que brigaram, que se desculparam, que cresceram juntos e que um
dia resolveram ter filhos.
Eu sempre admirei casais, sempre quis que fosse comigo,
queria conhecer o garoto perfeito para mim, um que dissesse coisas
bonitas, que fizesse coisas bonitas...
Fiquei tão apaixonada pela ideia de me apaixonar, que me
permiti deixar meus valores de lado somente para amar. O amor é
uma arma, ao mesmo tempo que você usa para se salvar pode
descuidar e machucar a si mesmo.
Alguns dizem que problemas de amor se resolvem com amor,
mas como eu seria capaz de amar sem imaginar que no final vai ser
a mesma coisa?
Tudo bem que eu consegui superar grande parte, tudo bem
que eu não ligo mais para as vergonhas que eu passei. Só que eu
não quero fazer isso de novo. Eu não perdi a lucidez ainda, se for
amar alguém, não vou me submeter a nada que eu não queira.
44 M

Tomei um pré-treino do Gustavo hoje, gosto horrível, mas


estou sentindo cada centímetro do meu corpo se mexer. Cada
centímetro.
— Então gosta de Shakespeare? — Ana Júlia pergunta,
tensionando a mandíbula.
— Aquele texto me tira de algumas crises existenciais — digo
enquanto amarro o cadarço.
— Ele me deixou com uma crise existencial — ela brinca.
— Pensar sobre nós mesmos pode gerar novas ações, eu
gosto — digo, e ela assente.
— Já são três da tarde, anda logo com isso pra eu ganhar de
você!
Levanto e enrolo uma mecha de cabelo dela no meu dedo.
— Hoje eu ganho, parceira. — Os olhos esverdeados me
devoram.
— Veremos.
— Regras: são dez minutos sem pausa, sem enroscar o pé
na corda e mantendo o ritmo. — Digo e ela assente e coloca a corda
com força no meu peito.
— Cronômetro? — Começo a contagem.
Três minutos e começo a sentir minha camiseta grudar nas
costas, como eu queria tirar ou usar um top igual Ana Júlia. Top
aperta? É, aquele elástico não parece ser boa coisa... Ótimo
momento para pensar no top da garota que eu quero beijar, minha
imaginação já formou a imagem dela sem o top e pulando corda.
Ótimo.
Puta merda, eu tenho que parar de pensar nisso agora antes
que meu pau fique duro.
O cabelo dela chicoteia o pescoço vejo as gotas de suor pelo
ar, coitado de quem estiver passando. Vejo as gotas de suor
descendo pelo top...
Gustavo e Cate já terminaram, e quem ganhou foi Gustavo,
então para não empatar hoje e precisar de outra rodada no mesmo
dia, tenho que ganhar.
Vamos empatar o jogo e só amanhã resolvemos.
Oito minutos, Ana Júlia tenta tirar o cabelo que grudou perto
do olho e acaba pisando na corda. Jogo a corda no chão e me deito.
Ela fica em pé me olhando.
— Cabelo não estava nas regras — ela diz.
— Deita aqui e admire minha vitória — bato no chão
emborrachado.
— Você tá ensopado, eca.
— E como você acha que você está? — ela não responde,
esfrego meu braço no dela.
— Que nojo! — Passo minha perna na dela. — Matias, ah
não! — Ela solta o cabelo e começa a esfregar as pontas na minha
bochecha.
— Para, que eu tiro a camiseta e torço em você!
— Tira, quero ver!
— Quer ver o que? — ela me encara contendo um sorriso.
— Se você tem coragem de torcer essa blusa! — tiro a blusa
e estendo perto do rosto dela.
— E agora? — ela se levanta e eu também.
— Não aconteceu nada. — Ela fica parada me olhando por
cima da camiseta, passo a camiseta para trás de sua cabeça. —
Matias, se isso encostar no meu cabelo... — Eu finjo que vai
encostar e ela dá de cara com meu peito. — Que calculista! — fala
na minha pele e me empurra, eu me afasto cambaleando.
— Hoje eu venci, em tudo! — eu rio, ela faz uma careta.
— Quando você menos esperar eu vou aparecer, Sr. Matias
— ela diz com o dedo perto do meu pescoço, e eu seguro sua mão.
— Duvido. — Ela balança a cabeça, me encara e sai
andando para o vestiário.
— Quando menos esperar — ela diz, se virando para trás.
Caralho, esse foi o momento em que eu descobri que ela
pode foder com a minha vida. Em todos os sentidos.
Seus olhos, o cabelo, as curvas, o rosto, o jeito como ela fala
comigo, a expressão que ela faz quando fica brava, sua reação
quando é desafiada. Tudo isso é um compilado que fica em loop
umas dez vezes por dia. Eu queria tanto beijá-la, sentir ela em meus
braços, em meus lábios... Quero que ela queira isso também.
— Ei, e aí, diz que venceu! — a voz de Gustavo invade meus
pensamentos.
— Cara, é nosso — respondo.
— Vou chamar Ana! — Cate diz.
Ficamos só eu e Gustavo.
— A gente vai sair? — pergunto.
— Sim, mano, vamo num barzinho com elas, então, gatão,
fica bem elegante hoje, hein. — Ele quis dizer que nunca estou
elegante?
— Boyzinho — digo, e ele revira os olhos.
— Quer roupa emprestada? — Gustavo pergunta, sorrio na
hora.
Sou doido para usar uma roupa cara do closet dele.
45 A.J

Fomos para minha casa, Cate queria usar um vestido no


estilo tubinho que esqueceu aqui outro dia e desde então ficou
parado no armário, pois não usamos o mesmo tamanho. Cate é
uma mulher gorda cheia de curvas sensuais, já eu só tenho uma
traseira, então o vestido bafonico dela ficaria murcho em mim.
Tomei banho na academia, e quando ela me avisou que
íamos sair já tinha tacado xampu no cabelo. Agora ela está no
banho e eu não sei o que vestir.
Sei sim, só falta coragem, mas estou sentindo que hoje é
apropriado.
Um vestido azul como o céu estrelado de verão, de alças
finas, um tecido fosco e curto, que deixa minhas costas nuas até a
base da coluna. Ele fica perfeito no meu corpo e é daqueles
vestidos que só se usa uma vez.
— Que mulher linda é essa aqui? — Cate diz, com a toalha
ao redor do corpo e os cabelos loiros molhados.
— Gostou? — questiono já sabendo a resposta.
— Amiga, você tá uma grande gostosa — ela gesticula e
aperta o ar.
— Eu queria tanto usar esse vestido, acho que hoje é o dia
dele.
— É, acho que hoje é o dia! — ela me olha com olhar de mãe
que sabe o que está acontecendo. — Vamos, me ajuda a secar o
cabelo.
Enquanto ela passa maquiagem eu seco o cabelo dela, o que
não demora muito, já que ele está com uns dois dedos de
comprimento. Quando termina, ela me maquia. Muito blush,
iluminador, corretivo e rímel. Estamos prontas.
Gustavo disse que ia passar aqui as 19 h, já chegou o horário
e a Cinderela ainda não deu as caras. Ficamos sentadas nas
cadeiras do quintal esperando.
— E aí, você e Matias pareciam bem amigos hoje mais cedo
— Cate diz sentada, ajustando o vestido tomara que caia branco-
perolado.
— Não sei direito, foi o que pareceu, eu acho. — Ela assente
e se levanta, olha para o celular.
— Eles chegaram, vamos?
— Caterina do céu, esse vestido vai gerar tantos olhares de
tão lindo que é — ela faz uma pose com as mãos nos ombros.
Abro o portão e nem dá para ver se são eles no carro, pois o
insulfilm é escuro demais para conseguir enxergar o lado de dentro.
— Olá, meninas! — Gustavo diz.
— Aonde vamos? — Cate pergunta.
— Onde só boyzinhos de São Paulo frequentam — Matias
diz, virando para o banco de trás. Está escuro dentro do carro, então
não consigo ver o rosto dele.
— Vou passar na casa dos meus irmãos antes, vai ser rápido
— Gustavo diz.
Chegamos na casa dos irmãos dele, casa não, é quase uma
indústria, de tão grande. Gente, que São Paulo é essa?
Saímos para os seguranças verem nossos documentos e
avaliarem se podemos ficar ali. Dois garotos surgem, os dois são
gêmeos, e os dois têm os cabelos trançados. Eles têm o tom de
pele marrom-alaranjada, é impossível os diferenciar, e parecem ser
mais novos que Gustavo.
— Sou Marcos — um deles se apresenta.
— Sou Pedro, e somos mais velhos que o pirralho. — Ele
bate no ombro de Gustavo em cumprimento ao irmão.
Nos apresentamos, e tudo fica confuso quando eu
cumprimento duas vezes Marcos. Gêmeos, uau. Cate entra no carro
mas vai no banco da frente, os gêmeos entram, eu e Matias ficamos
para fora.
— Quer que eu vá no seu colo? — ele pergunta.
— Eu não vou conseguir respirar, e você vai bater a cabeça
no teto...
— Então... — ele diz.
— Eu vou no seu colo — respondo, ele assente e entra no
carro.
— Eu não estou suado, prometo. — Não, ele não estava
suado, ele estava de terno todo preto, que destacava cada músculo,
e com os cabelos escuros levemente bagunçados, me deixando
obcecada por querer passar a mão nele. Ele usa um perfume que
eu queria para mim.
— Certo — digo, me sentando devagar no colo dele, ele não
sabe onde colocar as mãos, então eu as coloco em meus quadris
—, isso foi uma péssima ideia.
— Isso foi uma péssima ideia — ele repete, o carro acelera, e
minhas costas colam no abdome dele. — Mesmo assim, você está
muito linda com esse vestido — ele diz entre meu ouvido e pescoço,
que arrepia na hora.
— Quando você vai visitar a família? — Pedro pergunta para
Gustavo.
— Quando tia Marlene voltar para casa dela — Gustavo diz.
— Ela só vai embora no final do mês!
— Estarei lá no final do mês, agora vamos falar de festa,
quem não vai beber?
— Eu, eu dirijo na volta — Matias diz, o carro freia no farol e
ele me puxa para si. Ô, senhor, pra que fazer isso comigo? — Não
foi uma péssima ideia — ele diz, mantendo as mãos onde eu deixei,
mas os dedos fazem um vai e vem perto da bunda. Eu coloco as
mãos na coxa dele.
— Se você diz — falo, e daí em diante só escuto sua
respiração, sinto a respiração em minhas costas.
Já a minha respiração acho que nem existe mais.
— Vai quebrar seu celular com o meu peso — digo, indicando
o bolso dele.
Vejo ele passar a mão na testa e alinhar as sobrancelhas
grossas.
— Não é meu celular — ele fala em um tom baixinho, que
deixa sua voz grave.
Se não é o celular dele... Ah. Grande. É só isso que sinto e
sei.
Entramos na festa, Gustavo pagou pulseiras vip que dão
acesso às bebidas e à comida. Matias fica ao meu lado o tempo
todo, o salão é enorme, só tem gente bem-vestida e bebida sendo
servida, aproveito e pego primeiro drink que passa, o problema é
que bastam dois drinks para mim.
— Vamos dançar? — Cate me puxa, e eu vou com ela.
Dançamos qualquer música que toca, e toca todas
famosinhas do momento. Eu e Cate descemos, subimos e nos
entregamos totalmente. Observo ela mexer a cintura avantajada e
me seguro nela para dançarmos juntas no mesmo ritmo. Olho em
volta e acho Matias, ele me olha fixamente sentado na mesa em que
deixamos as bolsas.
Talvez eu venha a pôr a culpa na bebida, mas mantenho o
olhar, danço olhando para ele. Passo a mão no meu corpo inteiro
olhando diretamente nos olhos dele.
Sinto minha pele borbulhar, me toco e imagino as mãos dele
ao invés das minhas. Não sei se estou sorrindo, meu corpo não é
mais meu. É como se ele estivesse em outra realidade vivendo
paralelamente e fazendo tudo aquilo que meu coração sente...
E é nessa hora que a bebida nos humilha. Eu acho.
Ele não desvia por um mísero segundo, e eu aproveito cada
momento. Gosto de me sentir vigiada ao dançar nos olhos dele, não
me sinto limitada, posso me mexer o quanto eu quiser, mas nunca
parece ser o bastante para o olhar faminto de Matias.
Caterina cansa de dançar e vai ao banheiro. E eu volto para a
mesa cambaleando um pouco, mas ainda o fitando.
— O que achou? — Pego um copo da bandeja do garçom.
— Nem tive tempo para processar ainda, só sei que fui
hipnotizado.
46 M

Quando ela desceu do carro, na casa dos irmãos de Gustavo,


eu senti a pressão cair. Eu a olhei por tanto tempo, não consegui
entender o quão bonita essa mulher é. Meus olhos simplesmente
não conseguiam desviar por nenhum segundo de cada parte do
corpo dela.
No carro foi difícil, quase conheci o outro lado quando ela se
segurou em minhas pernas. As mãos quentes e os dedos leves me
apertaram fazendo a minha alma sair do corpo. Sair andando
daquele carro foi uma das provas de resistências que o BBB está
perdendo.
Vi ela dançar, ela dançou olhando para mim. Ela mordeu o
lábio, passou a mão nos cabelos e dançou de costas. Não consegui
mover um músculo de tão paralisado que ela me deixou. Porra,
como eu vou esquecer ela rebolando se eu sequer posso tomar uma
gota de álcool? Pensando melhor, esse é um momento que eu não
quero esquecer.
Mas agora sei que dessa última parte ela não vai se lembrar
amanhã, sei que os drinks já estão subindo, sua voz está mais alta,
e os movimentos lentos demais.
— Por que a gente não pode ser amigos? — Ela apoia o
queixo em meu ombro, e eu a encaro, observando sua boca.
— Porque amigos não pensam o que eu penso de você. —
Ela continua em meu ombro.
— Tô confusa, aquele seu celular me deixou ainda mais,
acho que é a bebida.
— Eu te beijaria para explicar, mas não posso, você não
lembraria amanhã...
— Entendo, quer dizer... — Ela diz, nego com a cabeça.
— Anaju, a única coisa que quero é que, quando for se
apaixonar, que me dê uma chance de ser o primeiro.
— Você é tão bom, Matias — ela diz adormecendo e abrindo
os olhos e eu admiro toda a maquiagem que ela passou, todo os
brilhinhos que reluzem com a luz da festa.
Poderia deixar ela dormir no meu ombro a festa inteira, mais
que isso. Mas a o tempo foi passando e as pessoas começaram a ir
embora, e descobri que festa chique acaba cedo demais.
Voltamos para casa, Anaju vai no colo de Cate, dormindo a
maior parte do tempo. A amiga segura seu pescoço para que ela
não bata a cabeça.
Gustavo me ajuda a colocar ela no quarto, e então dou um
beijo em sua testa, boa noite, e desço as escadas.
— Obrigada por cuidar dela — Cate diz.
— Me liga se precisar de qualquer coisa. — Ela me leva até o
portão e se despede de mim e de Gustavo.
E se amanhã ela se lembrar do que eu disse?
Não vai ser nenhuma mentira, e eu realmente queria que ela
ouvisse aquilo.

◆◆◆

No outro dia, mortos, Gustavo mais ainda por ter bebido.


Aliás, ele sumiu boa parte da festa, a Cate também. Hmm. Mas
seguimos calados e com muito sono para a academia.
Hoje é o dia de desempate, e claro que seria com o aparelho
mais assustador da academia. A famosa escada.
Tem quatro escadas, o que significa que iremos fazer ao
mesmo tempo.
— Eu vou cair morta — Ana Júlia diz para Cate.
— Vai cair morta na praia, bebe água e vamo —responde a
amiga.
— Tem certeza de que vocês querem fazer escada? —
Gustavo pergunta.
— Você é uma máquina, não é? — Caterina o provoca, mas
eu não entendo bem o porquê.
— Chega de enrolação, a dupla que descer primeiro perde —
digo.
Anaju não trocou uma palavra comigo ainda...
Meu joelho já começou a doer, que inferno, vinte anos nas
costas e já estou em decomposição. Como vou explicar para o
técnico que eu o estraguei mais ainda numa competição que ele não
aprovou? Aperto “stop”, e a escada para de rolar. Gustavo estava na
velocidade quase parada, quando ele vê que eu desci, ele sobe em
um dos degraus e espera levá-lo até o chão.
— Calma, eu tô desidratado — ele diz.
— Quero ouvir “perdemos, não somos os melhores e nunca
seremos” — Cate diz ainda subindo os degraus.
— Eu não ouvi ainda — Ana Júlia diz enquanto pula para o
chão.
Dizemos em voz alta e juntos, elas pedem para repetirmos. E
mais uma vez...
— Tudo bem, vamos para a casa de praia da minha família —
Gustavo diz sorridente.
— Por que você não falou isso semana passada? — Caterina
pergunta.
— Assim teve mais emoção — Ana Júlia diz, e por um
segundo nossos olhares se encontram.
— Não precisa levar nada, só a roupa e o biquini, o resto tem
lá, e eu odeio ir como motorista, perde todo encanto de praia, então
a gente vai revezando. Ok? — Gustavo fala.
— Você que manda — respondemos juntos.
— Vocês são incríveis — Gustavo diz, olhando para cada um
—, eu vou chorar parem de me olhar!
Caterina revira os olhos, mas é a primeira que o abraça.
Depois ele puxa todo mundo.
— Ana Júlia não gosta de gente suada — digo, amassado.
— Cala boca, Matias — ela bate no meu braço e nos
soltamos.
— Galera, eu queria pagar um almoço e tal, mas tô destruído.
Se eu ficar aqui mais cinco minutos, durmo naquela bicicleta —
Gustavo diz.
— Sim, eu preciso ir pra casa e dormir umas dez horas
seguidas — Caterina diz.
— Eu tô morrendo de sono, mas não consigo dormir antes de
começar a entardecer, então vou ficar na cama assistindo a alguma
coisa, não sei — Ana Júlia diz.
— Eu, como um bom exemplo, vou treinar na quadra. — Eles
reviram os olhos para mim.

◆◆◆

Termino o tal treino. Treinei meu saque, pois fazia um tempo


que eu não acertava o alvo de cada posição. Hoje eu acertei todas,
meu braço implora por gelo, mas vou ter que me contentar com a
água gelada do vestiário, porque não vou subir para o apartamento
de Gustavo hoje. Vou passar a noite no hotel e arrumar a mala para
o fim de semana.
Entro no chuveiro logo de cara, molho a cabeça e uso só
xampu, acabei me esquecendo de pôr o condicionador na bolsa.
Assim que começo a fazer espuma no cabelo escuto alguém
chamar meu nome.
— Matias? — É Ana Júlia, pego a toalha e amarro na cintura.
— Tô aqui. — Ela entra e eu ainda estava ajeitando a toalha
para não cair. — O que você tá fazendo aqui? — digo desajeitado
no meio do vapor.
— Usei “cobertura do profissa” e me deixaram entrar — ela
diz, olhando para a porta.
— Eu tô de toalha, pode olhar para mim. — Ela suspira e me
olha, assentindo várias vezes.
— Então... O que te trouxe aqui, Anaju?
47 A.J

Eu lembrei.
Acordei e a primeira coisa que lembrei quando coloquei a
xícara de café na boca foi das palavras que ele disse durante a
festa. Quando eu estava em seu ombro.
O que eu não lembro é o que eu disse, eu mal conseguia
formar duas palavras sem ter que queimar vários neurônios. Mas eu
recordo de ele ter dito que queria que eu me apaixonasse por ele.
— Aconteceu alguma coisa? — Nego com a cabeça e avanço
para perto dele. — É melhor você não chegar perto...
Assim que eu dou dois passos, o sensor do chuveiro aciona e
me molha toda.
— Droga! Por que não disse? — Ele ri, e eu tento torcer a
regata branca que coloquei.
— Eu disse! — Ele olha para regata e eu percebo que ela
ficou transparente, merda. — Por que veio, Anaju?
Encaro o seu rosto cheio de ângulos, ele me olha fixamente,
mas eu analiso cada pedacinho do rosto dele que está molhado, o
cabelo castanho escuro cheio de bolhas do xampu, ele passa a
língua no lábio, fazendo com que eu pisque mais rápido. Desvio
para a pintinha no alto da bochecha. Um lugar seguro, acho...
Achava.
Por que eu vim? É complicado, mas talvez seja incrivelmente
simples. Tão simples que faz eu querer correr para todos os lados.
Quero passar a mão no cabelo na tentativa dessa sensação de
desespero que cresce em meu peito passe. Só que meu coração
acelera demais agora, sinto minha perna gelar. E se ele não se
lembrar de nada sobre ontem? Se eu simplesmente estive muito
chapada e imaginei toda essa fic? Abro a boca para dizer o que eu
vim fazer aqui... E a única coisa que consigo pronunciar é:
— Ontem — consigo dizer só uma palavra e para piorar ele
reprime os lábios lentamente.
— Sim, ontem. — Vejo o pescoço dele mexer.
— Por que não me beijou? — digo, e minha respiração
acelera e as bochechas queimam. Não acredito que eu realmente
disse isso.
— Quer que eu te beije? — ele pisca várias vezes.
48 M

Ela não responde, mas vejo seu olhar pousar em minha boca.
Cruzo o pequeno espaço que nos separa. Os olhos dela brilham
tanto, afasto o cabelo, agora escuro e tão ensopado, que grudou no
ombro dela.
Deslizo as pontas dos dedos por seu braço, seguro sua mão
e ela sobe a outra pela minha lateral. Quase perdi tudo ali. Ela se
junta ao meu corpo, e eu sinto seu peito subir desesperadamente
com a respiração.
— Quero. — Sorrio para ela e ela sorri toda boba de volta,
brincando com os dedos no meu cabelo espumado.
Uma palavra tão pequena, mas que confirma tudo aquilo que
eu estava louco para saber. Tudo aquilo que eu queria. Ela pode
estar nervosa, só que eu tenho certeza de que é capaz do meu
coração sair pela boca.
Os olhos dela imploram, poderia ficar dentro deles quanto
tempo fosse possível. Eu poderia rolar naquele olhar verde como
um gramado de fim de tarde, passar o dia todo ali e nunca me
entediaria. Meu devaneio acaba quando ela passa a língua nos
lábios entreabertos. Todo meu ser desmorona bem ali, na boca dela.
— Eu sei que quer.
Passo meu braço em volta da cintura dela e a encosto na
parede, fazendo o chuveiro acionar de novo. Mas ela parece não
ligar enquanto segura em meus ombros. Ficamos ali nos olhando,
em um momento olho para os lábios dela e a beijo.
Ela investe de volta, sinto sua língua na minha, seus lábios
nos meus. Algo em meu peito estremece, cada toque é em câmera
lenta, em meus ouvidos não ouço mais nada a não ser a respiração
entre os beijos. Ela morde meu lábio fazendo eu esquecer a
suavidade que começamos... Tudo fica mais intenso, mais eufórico
e sem a necessidade de ar.
Desço as mãos, que estavam em suas costas, e ela geme
em minha boca. Ela passa mão nas minhas entradas do abdome,
me deixa em um estado que ela vai poder sentir pela toalha se não
dermos uma pausa. Respiro em sua boca e a encaro, ela abre os
olhos e me encontra a admirando.
— É, eu tô sentindo — Ela passa a mão no meu pau por cima
da toalha.
— Meu deus, Anaju... — É a única coisa que consigo dizer
enquanto fito de suas pupilas dilatadas para sua mão no tecido.
— E agora?
— Agora somos mais que amigos, boba. — Ela limpa o
xampu que escorreu para minha bochecha.
— Eu gostei, muito. — Ela continua com a mão sobre a
toalha.
— Quando vai parar de me torturar?
— Agora. — Ela me dá um beijo suave deixando a minha
vontade de sentir seus lábios novamente ainda maior. — Vou ter
que arrumar a mala e estudar um pouquinho antes de dormir.
— Ainda continua me torturando — digo, e ela dá de ombros.
— Isso que dá não especificar que não quer seu meu amigo!
— Eu a seguro pelo braço e a puxo para mim.
— Vai sair com essa blusa transparente e sem sutiã na rua?
— Passo a mão pelo seio dela, e ela fecha os olhos com força,
mordendo o lábio.
— Que pervertido!
— Não foi eu quem invadiu o vestiário, sabia? — Ela cruza os
braços escondendo os peitos. — Não vi nada, prometo! — Ela revira
os olhos. — Pega minha camiseta limpa na bolsa, estressadinha.
Ela fica de costas e tira a regata, ficando com as costas nuas
para mim, passo um dedo em sua coluna, e ela continua se
trocando, como se não sentisse meu dedo ali.
— Adorei, vou roubar — diz ela, alisando a camiseta que
coube perfeitamente no seu corpo.
— Te vejo amanhã na viagem. — Ela me dá um último beijo e
sai nem olhando para trás e me deixando extremamente duro.
Na hora em que ela cruza a porta eu dou gritinho baixinho de
emoção, é incontrolável.
— Matias Miranda! — escuto ela gritar do corredor, mas as
portas do elevador se fecham e ela não tem tempo de zuar com
minha cara. Não me importaria, estou apaixonado demais para isso.
49 A.J

Eu estou com a blusa dele, depois de nos beijarmos. O cheiro


dele, do perfume dele. Os lábios dele.
Foi tão bom, por mim eu não terminaria aquele beijo nunca.
Ele era enorme em meus dedos magros, fiquei com uma puta
vontade de olhar tudo. A hora em que ele pressionou meu peito
minha visão já começou a escurecer. Pensei que não conseguiria
me sair daquele vestiário, tive que me esforçar muito para não abrir
as portas do elevador e sentir as mãos dele aninhadas em meu
cabelo.

◆◆◆

Chego na casa de Caterina e ela está no tapete pedindo para


eu contar o que aconteceu. Como eu vou contar algo que ainda
estou vivendo? Sinto as mãos dele no meu corpo ainda, sinto os
lábios dele colados nos meus.
— Vamos! — ela bate palmas.
— Ok, eu fui para a quadra falar com ele, mas ele estava
entrando no vestiário, então eu corri para não atrapalhar, mas ele já
tinha começado o banho... Eu entrei e comecei a falar sobre o que
rolou ontem, e a gente se beijou.
— O que rolou ontem?
— Ontem ele falou coisas que só amigos não dizem, e agora
faz todo sentido!
— Fazia sentido desde a primeira vez que ele falou, Ana! —
Dou de ombros.
— Amiga, ele é tão bonitinho, não dá pra mim e se eu
quebrar a cara?
— Eu quebro a dele, — ela diz assentindo mostrando os
braços fortes — sério.
— Agressividade, assim que eu gosto!
— Mas e aí, ficou só no beijo? — ela pergunta, e eu sorrio. —
Era disso que eu tava falando!
— Foi só beijo, mas eu senti ele... — Ela começa a rir.
— Puta que pariu, vamo parar por aqui! — A gente fica rindo
deitadas no tapete peludo enquanto a gatinha dela passeia pelos
móveis.
— Ei, queria tomar um cafezinho e um bolinho — sorrio para
ela.
— Vou pegar a chave do carro! Mas só porque você tá muito
felizinha.

◆◆◆

Eu e Caterina nos sentamos na bancada para ficar perto de


Fernanda, a namorada da minha irmã, que trabalha aqui. Ela
sempre me dá qualquer coisa que eu pedir da vitrine. E hoje ela
trouxe bolo arco-íris de brigadeiro, é a coisa mais linda por dentro,
tenho dó de comer de tão bonito. Porém recusar qualquer coisa que
envolva brigadeiro não é meu tipo.
A padaria está cheia essa tarde, e mesmo com uma queda
na temperatura, os vidros se embaçam por dentro. Sinto a presença
de dois homens enormes, tipo, eu estou vendo, mas também não
estou, pois eu conheço muito bem essas figuras.
Não é possível que, com tantas padarias nessa cidade, eles
tenham ido justamente onde minha irmã passa o tempo todinho. Ele
vai me ver aqui, eu vou ter que cumprimentar e apresentá-lo para
minha irmã e para Fernanda, que com certeza vai fazer alguma
gracinha.
Me viro para o lado, e os dois já estão vindo em nossa
direção. Matias está usando uma blusa de manga longa. Esfriou um
pouco essa tarde, mas eu lembro muito bem dele sem camisa no
chuveiro, o que faz minha boca secar só de pensar em como ele é
gostoso. Ele caminha como um atleta, como se fosse a estrela do
lugar, e não posso negar que ele e Gustavo prenderiam a atenção
de qualquer um no ambiente. Mas Matias ele me deixa diferente,
algo que eu não esperava estar sentindo, ou que eu estive
escondendo de mim mesma.
— Oi — ele diz, desviando o olhar da minha boca para meus
olhos —, você realmente está me perseguindo, Anaju?
Não tenho tempo para responder, a mão de minha irmã já
está no meu ombro. Não era para isso estar acontecendo agora.
— Matias, essa é minha irmã, Débora, e minha cunhada,
Fernanda.
— E eu? — Gustavo pergunta.
— Esse é o Gustavo, e ele ama um drama. — Ele me dá um
empurrão com a perna no meu joelho.
— Agora as peças se encaixaram! — Fernanda diz.
— Então — a repreendo franzindo as sobrancelhas —, é com
eles que eu vou fazer a viagem que estava te contando — digo para
Débora.
— As malas já estão prontas? — minha irmã pergunta.
— Só toalha e biquíni, hein — Gustavo diz —, quer dizer,
shorts, nunca usei biquíni. — Matias dá uma cotovelada nele. — O
que foi? É verdade.
— Foi um prazer conhecê-las — Matias diz enrubescendo —,
vamos tomar cuidado na praia, podem ficar tranquilas. — Débora
sorri para mim.
— É bom vocês cuidarem muito bem das duas! — Fernanda
diz apontando para os dois, que concordam imediatamente.
— Iremos. — Matias diz, Fernanda continua com as
sobrancelhas no alto, encarando-o. — É, a gente vai querer levar
um bolo — Matias olha para meu prato na bancada —, colorido. —
Fernanda abre um sorriso e vai embalar o pedido.
— Vejo você amanhã — ele me diz e se despede com um
beijo na bochecha.
Matias dá um tchauzinho para as meninas e vai levando o
bolo com Gustavo enquanto fala alguma coisa no ouvido dele.
— Para de sorrir, vai deixar marca no rosto! — Caterina ri da
minha cara.
— Ele é legal — Fernanda diz.
— E bonito — minha irmã diz, e as três ficam fazendo
corações no ar.
— Por favor, parem — digo revirando os olhos e morrendo de
vergonha.
Eu deveria estar me sentindo assim?
50 M

Maldita hora em que coloquei essa blusa para sair de casa,


estou suando por todo lugar.
Também, como eu ia imaginar que justamente naquela
padaria iria conhecer a irmã de Ana Júlia. Eu a beijei essa tarde era
muito cedo para conhecer a família dela ainda, eu queria ter me
preparado e passado um perfume caro.
— Você tá rosa — Gustavo diz enquanto dirige.
— Não fico rosa.
— Fica — ele diz.
— Não...
— Ah que fofo todo nervosinho!
— Por que você começou a falar de biquini cara?
— Era melhor do que deixar aquele climão que vocês dois
estavam causando, garanto.
— Não tinha nenhum climão... — fico emburrado na janela.
— Só faltava chover, — cai um pingo de água no para-brisa
— opa!
Recebo uma mensagem, no grupo do time, dizendo que
teremos uma reunião on-line para discutirmos alguns pontos e
datas. Vamos para o hotel onde vai acontecer a reunião com a
metade do grupo que está em São Paulo, enquanto a outra metade
está em Belo Horizonte.
Entramos e cumprimentamos todos, nos sentamos, e a
reunião não começou ainda, então a gente fica jogando sentado até
alguém quebrar o nariz e termos que correr na quadra. Essa última
parte não acontece só porque o assistente, Mário, chega e liga o
projetor.
— Molecada, sem bola — Mário diz.
— Eu tenho duas — Gustavo diz baixinho, mas a sala inteira
escuta.
— Não quer ficar sem elas agora, né? — Não consigo
controlar a risada baixa. — Miranda, quer fazer companhia? —
Mário diz, e Gustavo sorri inocentemente.
O assunto fica sério e rola toda aquela motivação e realmente
funciona, estou animado para começar os treinos com o time todo.
Mas óbvio que nem tudo é perfeito.
Resumindo, temos mais uma semana em São Paulo.
Uma semana.
51 A.J

Eu nem peguei uma mala de verdade, Gustavo mandou


mensagem ontem insistindo que não precisa levar nada além de
biquíni e escova de dentes, então coloquei tudo na ecobag. Como
vai ser só o fim de semana, dentro dela tem calcinha, biquíni, short,
top, pijama e um casaco. Tomara que seja o suficiente.
— Eu vou atrás — Gustavo diz, entrando no Porsche.
— Eu também, tem mais espaço para as pernas — Cate diz e
sorri para mim, eu sei o que ela está fazendo.
— Então eu vou na frente com o caça buraco — digo.
— Ei, não posso fazer nada se a cada dez centímetros tem
uma cratera! — Matias reclama enquanto coloca o cinto.
Fechamos as portas e ele liga o carro.
— Sem ar-condicionado, hoje é vento na cara — digo, e
escuto Gustavo murmurar.
— Coloca aí no GPS, só pra avisar que fica bem perto da
praia.
Matias sintoniza seu celular com o carro e coloca a playlist
“praia”, o caminho começa e todos vamos cantando várias músicas
que realmente são pura praia.
— Olha que lugar bonito, tira foto — ele cutuca minhas coxas.
— Desacelera que eu tiro. — Tiro a foto e ele fica admirando
a paisagem. — Vamos chegar amanhã...
— Shiu, a música é boa — ele diz.
Imagine Dragons começa a tocar, e todo mundo reclama,
menos ele.
— Por que você colocou isso na playlist de praia?
— Não é isso — ele nega com a cabeça —, e foi sem querer.
— Adianta a música.
Eu conheço essa batida há milhas de distância, como superar
“Idiota” do Jão?
Aquele homem me faz sofrer a cada álbum lançado e o da
vez é "Pirata".

[...]
Eu vou te amar como um idiota ama
Vou te pendurar num quadro bem do lado da minha cama
Ele faz questão de me olhar por alguns segundos. Esse
garoto quer minha alma, só pode ser isso.
— Idiota — digo sorrindo.
— Demais. — Como eu tiro esse sorriso da cara? — Não
para de sorrir, por favor. — Ele pousa a mão em minha mão sobre a
perna.
Olho para trás e vejo Cate dormindo no colo de Gustavo.
Chegamos na entrada do condomínio, e Gustavo acorda para
identificar quem está entrando. Passamos pelas casas, e todas elas
são extravagantes, mas todas com tema de praia.
— Aqui. — Gustavo aponta para um sobrado com muito
paisagismo. — Amaram?
— Você tem um hotel e não falou nada? — Matias diz.
— É, argentino, sou misterioso... — Matias e ele riem.
Pelo corredor enorme que separa a casa, consigo ver a praia.
A praia.
— Fica literalmente na praia? — eu e Cate perguntamos ao
mesmo tempo.
52 M

Gustavo toca a campainha e um homem mais velho e bem


bronzeado do sol forte do litoral abre a porta de madeira enorme.
Daria para passar com Gustavo em pé nos meus ombros.
— Olha só quem veio me visitar depois de anos — o senhor
diz para Gustavo.
— Que saudade, Chico. — Ele abraça o homem. — Gente,
esse é o Chico, ele cuida da casa quando a gente tá fora.
— O que é a maior parte do tempo! — Chico diz. — Entrem,
vamos.
— Um gatinho! — Ana Júlia se abaixa para passar a mão no
gato branco e cinza, fica brincando com ele.
— O gato entrou aqui e não sai mais, é bom que ele faz
companhia durante o dia — Chico diz.
— Ele não tem dono? — Gustavo pergunta.
— Ele é da casa — Chico responde, e nos leva para os
quartos. — Tem duas suítes, cada uma em um extremo do corredor,
ambas com saída para a praia. Comprei a lista do mercado que
você enviou, e o armário de roupa de banho e cama está cheio.
— Obrigada, Chico, a gente vai ficar esse fim de semana
então, pode ficar tranquilo, e prometo que a gente vai deixar tudo
arrumado — Gustavo diz.
— Não façam besteiras— Chico fala. — Vou indo, qualquer
coisa só chamar.
— Qual quarto é melhor? — Caterina pergunta, e Gustavo
aponta para esquerda. — Nós duas vamos ficar lá, vejo vocês na
praia — ela diz, dando pulinhos enquanto anda para o quarto.
— Não se esqueçam de levar as cadeiras — Ana Júlia
acrescenta e segue a amiga.
Eu e Gu tomamos uma água na cozinha e vamos para nosso
quarto. Tem uma cama só. Dormir com Gustavo é um desafio.
— Você não vai me abraçar essa noite — aviso a ele.
— Cara, como você tem coragem de negar um abraço
noturno meu?
— Tá muito quente.
— Por isso a casa é climatizada — Gustavo diz sorrindo.
— Você é impossível, sabia? — Ele assente. — Onde ficam
as cadeiras?
— Espera aí que vou com você, só deixa eu pôr o shorts.
Dou uma olhada no espelho para ver se meu cabelo não
desmanchou com o vento. Alguns cachos abriram e ficou uma
bagunça, mas um boné resolve isso. Também combina com meu
shorts azul marinho. Sou um símbolo da moda praia.
Pegamos as cadeiras e umas toalhas, o guarda sol já está
montado na areia. O céu ainda está um azul claro da manhã, o mar
um pouco agitado, pois choveu ontem. A faixa de areia não é tão
longa, é como se fosse um morrinho para chegar na beira do mar.
Ana Júlia aparece usando uma camisa branca aberta e
metade do cabelo preso atrás da cabeça.
— Caralho, esse lugar é lindo por que você não mora aqui?
— ela pergunta para Gustavo.
— Fica muito longe do clube, mas um dia, quem sabe, eu
torça o pé de vez e venha morar aqui — ele diz enquanto encena
uma torção no tornozelo.
— Ai, dá calafrio só de pensar na dor — Caterina fala, tirando
o short e ficando só de biquíni. — Corrida até o mar? — ela propõe
e Gustavo já se levanta.
Ana Júlia tira a camiseta. Meu shorts começa com uma
movimentação. Ela percebe que estou olhando e vê que minhas
mãos cobrem algo crescente. A garota sorri para mim, mas volta a
falar com a amiga como se não soubesse o que está fazendo
comigo. A camisa cai no chão, e ela faz questão de se abaixar em
minha frente. Não é possível que eu fique duro sem nem sentir a
pele dela na minha.
— Mano, a Cate é muito gata — Gustavo cochicha no meu
ouvido.
— Sabia. — Ele dá de ombros.
Ana Júlia está vendo alguma coisa no celular enquanto
passam protetor solar. Abro o contato dela no meu.
Mensagem de Matias: Cartão vermelho pra você
Olho por cima da tela e ela sorri para o celular, aquele maldito
sorriso.
Mensagem de Ana Júlia: que?
Mensagem de Matias: pela falta que sinto da sua boca
Mensagem de Matias: DESCULPA, eu precisava mandar
Mensagem de Ana Júlia: essa foi a pior cantada que eu já
recebi na VIDA
Vejo ela rindo e olhando para mim.
Mensagem de Ana Júlia: Esse shorts ta marcando tudo.
Mensagem de Matias: To em uma situação complicada,
anaju.
— Três, dois, um. Vai!
Eu sou o último a correr, mas tenho a melhor visão e eu não
estou falando do mar.
53 A.J

Nem dá tempo de eu chegar na beira do mar e Caterina já


até mergulhou. Paro de correr e sinto o impacto de dois braços
fortes me segurando. Matias me segura em seus braços, com uma
de suas mãos em minhas costas e a outra na parte interna da minha
coxa.
— O que é isso? — pergunto sem lutar para sair dos braços
dele.
— Sou eu, ué. — Ele começa a me girar, e eu seguro em seu
pescoço, com medo de cairmos.
Ele avança para o mar e me joga na parte funda.
— Você quer me afogar? — Ele me puxa para si.
— Aí eu poderia te salvar, e sabe aquele lance de respiração
boca a boca?
— Eu vou te afogar e não te salvar!
— Mas aí não teria a parte da respiração, Anaju — ele diz,
segurando meu rosto.
Agarro a bunda firme dele e ele se contorce colado em mim,
depois me solta. Aproveito para entrelaçar minha perna em sua
cintura, fazendo com que ele caia na água. Ele me leva junto para o
mergulho. Volto para superfície ofegante, mas Matias volta pleno,
com os cabelos jogados para trás, apenas com algumas ondas.
O sol está batendo em seu rosto, iluminando os olhos âmbar,
e os cílios quase pretos molhados fazem seu olhar ficar ainda mais
intenso, ainda mais cheio de desejo.
Fecho os olhos. Se eu não olhar tanto, não vou me apaixonar
tanto.
— O que foi? Entrou sal? — pergunta, tirando o excesso de
água de minhas sobrancelhas.
— Não, é que... — Escuto o barulho das ondas. — É entrou
água salgada.
— Vamos sair para lavar, eu pego água lá na casa, ok?
— Não precisa, já tá melhor — digo, e ele sorri, piscando os
dois olhos.
— Opa, olha quem quer chuva de mar? — Gustavo começa a
jogar água para cima e inicia uma guerra.
É tanta água que dessa vez entrou até no meu ouvido, nos
olhos, no nariz, mas foi bom e cansativo.
Ficamos nós quatro boiando como esteiras no mar, até que
minha barriga começa a fazer uns barulhos estranhos. Fome,
percebo que já deve ser cinco da tarde.
— Gente, eu vou entrar pra fazer a janta e tomar banho —
digo.
— Só pra não lavar a louça? — Caterina implica.
— Exatamente — pisco para ela e nado até certa parte, saio
do mar e pego as coisas que deixei na cadeira. Entro pelas portas
de vidro da casa.
Ligo o chuveiro e fico um tempo sentindo a água escorrer
pelo meu corpo. Me lembro das mãos de Matias me colando no
corpo dele, lembro do quanto eu queria beijá-lo ali no mar, o quão
atraída eu estava por ele. O quanto estou. Eu estou me
apaixonando, eu estava me apaixonando todo esse tempo e não
queria aceitar. Mas por quê?
Ele me trata bem desde sempre. Sempre está me irritando,
mas é de um jeito diferente, um jeito que não me deixa nervosa de
verdade ou chateada, só faz eu querer falar com ele cada vez mais,
ver ele cada vez mais.
Desligo o chuveiro, e não passou a vontade de sentir Matias
em minha boca.
Coloco um dos shorts molezinhos que eu trouxe e uma
regata. Mas a casa está tão gelada e eu não tenho mínima ideia de
como arrumar isso, então coloco meu casaco, que pensei que não
iria usar e apenas faria peso na bolsa.
Na cozinha tem uma ilha com o tampo branco enorme, os
eletrodomésticos todos em inox. A geladeira tem uma tela na porta,
para quê? Enfim abro a porta e tem de tudo, tem cogumelos
variados. Pego todos eles e os outros ingredientes para fazer um
risoto que meu pai me ensinou.
O gatinho da casa fica passando em meus pés. Ele para em
minha frente e com os olhos enormes fica me encarando. Sério,
muito fofo. Pego uma banana e descasco, corto um pedacinho, dou
para ele e como o resto. E ele fica lá, rondando a cozinha enquanto
cozinho.
Começo a picar a cebola, a salsinha, o alho...
Depois de um bom tempo cortando tudo e colocando na
panela, o risoto fica pronto.
Eles entram, os três rindo, vermelhos. Matias está com o
rosto vermelho perto dos olhos e do nariz. Está até bonitinho.
— Que cheiro bom é esse? — pergunta, apoiando as mãos
do outro lado da ilha.
— Risoto de cogumelos. — Ele se anima.
— Como descobriu que eu era vegetariano? — Lembro de eu
quase colocar bacon na comida.
— Por que não avisou antes? Eu quase coloquei bacon aí,
você não iria ter o que comer! — Ele passa a língua nos lábios.
— Tá tão preocupada assim comigo? — Ele provoca com um
sorriso.
— É melhor você começar a comer antes que eu mude a
receita.
— Sei que não faria isso comigo — Ele diz, pegando um dos
pratos que coloquei na bancada.
Todos pegamos um pouco da panela e comemos ali mesmo.
— Isso tá muito bom, Ana — Gustavo elogia.
— Já tô dizendo que vou repetir — Caterina diz.
— Eu já repeti — Matias diz.
— Gente, eu tô morta, vou ir dormir pra acordar cedo e correr
amanhã, alguém quer ir comigo?
— Eu — Matias avisa, com suco na boca — vou.
Caterina e Gustavo riem olhando para ele e depois para mim.
— Lavem a louça! — grito do corredor.
O gatinho da casa me segue até o quarto, ele se deita no
chão, perto dos meus pés, enquanto subo na cama. Fico olhando
para ele, e começa a miar. Deslizo para o chão, faço cafuné na
cabeça dele até ele fechar os olhos, então eu subo na cama para
fechar os meus.
54 M

Não dormi no mesmo quarto que Gustavo, dormi em um dos


cem quartos nessa casa. Quando Ana Júlia foi dormir ontem,
Gustavo e Caterina também foram, e eu fiquei na cozinha
arrumando algumas coisas Aí eu estava indo para meu quarto, mas
fui interrompido por barulhos que saíam do deles.
Nem sei se eles conseguiram deixar a cama viva. Dormi ao
som deles e acordei cedo ao som deles. Se fosse eu, com certeza
não estaria puto assim. Pelo lado bom acordei antes de Ana Júlia, o
que significa que vou ir correr com ela.
Ontem queria todo o corpo dela, o sorriso dela, ela dizendo
meu nome. Eu queria tudo. Tudo só para mim. Na verdade, eu
quero. Não me sinto como nas outras vezes, não é sobre conquista,
isso não importa mais... Eu só queria beijar ela como um
apaixonado beija.
— Bom dia — Ana Júlia aparece e se senta no balcão.
— Bom dia para alguns. — Ela espreme os olhos e fica em
silêncio.
— Isso é o que eu tô pensando?
Depende, na verdade. Seria muito impróprio eu dizer que
queria estar fazendo o mesmo só que com ela?
— Isso mesmo, dormiram e acordaram com o cabaré —
respondo. Ela ri, se vira para mim e pega o resto do meu café.
— Meu deus, cadê o açúcar? Gosta de viver amargamente?
—pergunta.
— Só quando tô de mau-humor — ela revira os olhos.
— Uma corrida resolve. — Pega metade do meu pão com
manteiga.
— Você não está ajudando roubando minha comida, sabia?
— Tô com preguiça, mas faço outro pra você comer — ela
diz.
— Não quero comer nada disso.
— Uma pena, pois é o que tem, pervertido.
Aperto a bochecha dela, que queimou no sol. O tom mais
lindo é a pele dela, um marrom que fica perfeito na luz do sol. Em
qualquer lugar fica magnífica, mas a admirar na presença do sol é
algo que quero ter gravado em minha mente. Fiquei tanto tempo
encarando a pele em meus dedos que me sinto parte dela já, ela
arqueia uma sobrancelha com um breve sorriso, e eu me abaixo em
um segundo para calçar meu tênis.
— A gente vai correr na praia? — pergunto.
— Não sei, só vamos indo — concordo com ela e saímos.
— Amanhã quero meu café na cama — ela diz.
— Muito folgada — levo um soquinho —, é claro que eu ia
fazer nem precisava de violência!
55 A.J

Não é difícil gostar dele. É fácil se apaixonar por ele,


extremamente fácil.
Corremos na areia por vinte minutos, e o sol da manhã já
começa a esquentar minha cabeça.
— Quer entrar no mar? —pergunta.
— Não quero molhar a calça — aponto para a legging que vai
até o joelho.
— Não faz xixi que ela fica seca.
— Você é um péssimo piadista — respondo, e ele cruza os
braços enquanto se equilibra.
— Você ri — ele diz e eu nego —, sabe que ri, posso ver nos
seus olhos, Anaju.
— Tudo bem, eu vou tirar a calça e a gente entra.
— Isso, aliás, calcinha é a mesma coisa que biquini... — Ele
olha para abaixo do meu quadril. — Porra, com certeza isso não é
um biquini! —Tampa os olhos deixando uma fresta.
— Eu tô vendo você espiar!
— Relaxa, eu já esqueci, nem lembro mais de uma calcinha
de renda branca num corpo de uma gostosa... Eu já esqueci.
— Que bom que esqueceu, fico grata, fala para seu
amiguinho esquecer também, Matias. — Ele vira de costas para
mim.
— Que humilhação torturante!
A verdade é que eu amo ver ele com vergonha, não sei
como, mas ele consegue ficar incrivelmente atraente quando
constrangido. A vontade de provar os lábios dele novamente surgem
cada instante que passo ao lado desse garoto.
56 M

Não tem ninguém na praia, não sei se isso é bom ou


preocupante. Deixamos os tênis e celulares na areia, e também a
calça dela. Ela sabe que eu estou olhando, quer que eu olhe, então
eu admiro toda aquela bunda.
Entramos no mar gelado, e ela fica com receio de entrar.
Água gelada não me incomoda, mergulho na primeira oportunidade,
agarro as pernas de Ana Júlia e a puxo para mergulhar comigo.
— Matias, eu juro que tô morrendo de vontade de acabar
contigo — ela diz, tirando a água dos olhos.
— Quero ver. — Ela se treme.
— Não consigo. — A mandíbula dela se mexe
involuntariamente. — Tá muito gelado! — Eu a abraço, e ela fica
com os braços cruzados enquanto eu a aperto.
— Quer voltar pra tomar um banho quente? — proponho, e
ela tira a cabeça do meu peito para me olhar.
— Você não presta. — Mordo o lábio tentando segurar um
sorriso.
Ver ela emanar essa raivinha falsa me deixa mais bobo por
ela do que já estou, ela não tem noção de como mexe com a minha
cabeça. O sorrisinho sacana que dá toda vez que me ameaça é a
melhor parte de irritá-la.
— Você sabe que isso é mentira. — Ana Júlia me derruba e
sai correndo de volta para a praia.
Ela seca o corpo com minha camiseta, e eu não sei se devo
usar aquela camisa o resto da minha vida ou se fico irritado com a
areia que vai grudar. A primeira opção é tentadora.
— Eu te perdoo — digo, e ela franze a testa.
— Pelo quê?
— Por grudar areia na minha blusa — respondo, e ela ri.
— Você ia colocar isso depois de sair do mar e ficar todo
areiado?
— Pensando assim, não.
— Coloca nos ombros para não queimar, você fica igual um
camarão — ela diz.
— Camarão é gostoso, dizem.
— Nunca comeu?
— Não, eu não gostava de nada que vem do mar, aí já faz
quatro anos que não como carne.
— Caraca, eu queria pelo menos diminuir a carne — ela
comenta enquanto caminhamos de volta.
— Eu comecei assim e depois eu fui me acostumando, tem
muitas opções quando a gente dá oportunidade para uma refeição
sem carne.
— Vou tentar diminuir, mas aí vou encher seu saco pedindo
receitas. — Ela arregala os olhos.
— Como se isso fosse me incomodar. — Nossas mãos se
esbarram enquanto caminhamos, e assim ficam.
Os dedos se entrelaçam, movimento meus dedos na palma
dela, que devolve apertando. Deixei de me importar com cada outra
parte do meu corpo somente para sentir a mão dela na minha. Ela
segura minha mão de volta, ela não solta, sequer titubeou em deixar
meus dedos.
Quando chegamos em casa, nossas mãos ainda estão
juntas, e só a solto quando ela encontra meus olhos e eu vejo o que
ela está sentindo. Vejo o castelo que ela montou em torno de si,
mas que está tentando desconstruir. Dou um beijo em sua
bochecha, e ela entra no quarto dela. Eu vou para a sala ligo a TV,
mas não presto atenção na tela, não tem como ver o que está
passando se minha tela é ela.
— Bom dia! — Gustavo chacoalha minha cabeça por detrás
do sofá.
— Teve festa ontem?
— Muita festa, você não tem noção — ele diz.
— Ô se tenho, dormi e acordei ouvindo você, babaca — ele
ri.
— Trabalho mais que bem feito — ele assente para si
mesmo.
— Mas e aí, o que tá rolando?
— Só sexo — Gustavo diz pegando o controle. — Mas que
porra é essa, que você tá assistindo? — Olho para TV, vejo uma
girafa parindo.
— É interessante — ele analisa meu rosto. — Girafas são...
interessantes.
— Sim, girafas, tenho certeza disso.
— Olá, meninos, o que vamos fazer hoje? — Caterina diz
com o cabelo molhado.
— Tava pensando em ir bater uma na praia — Gustavo
responde, e Caterina cospe a água no copo. — Bater uma bola,
mente poluída. — Ela começa a rir.
— Ele quis dizer que quer ir jogar vôlei — digo, dando um
peteleco na orelha dele.
— Assim é muito direto — Gustavo dá de ombros.
— Pelo menos ninguém entende que você quer bater
umazinha na praia — Ana Júlia se manifesta enquanto chega na
cozinha aberta.
— Hoje eu vou só ver vocês jogarem, tô exausta — Caterina
diz, e eu olho para Ana Júlia, que já estava rindo para mim.
— Ok, então vamos antes que chegue gente na quadra —
Gustavo diz.

◆◆◆

A gente jogou a manhã toda com uns garotos que chegaram,


depois foi ficando muito perto do meio-dia e a fome foi aumentando.
As meninas ficaram em um quiosque por perto, quando chegamos
lá, as duas estavam tomando sol na esteira.
Gustavo vai ao banheiro, e eu me sento na mesa. Pensei que
as duas estivessem dormindo, por isso nem falei nada enquanto
arrumava as cadeiras, mas Ana Júlia tira os óculos de sol e fica me
observando.
— Todo esse sol pra ficar mais gostosa? — pergunto
baixinho.
— Quanto mais melhor, né? — ela diz pegando o protetor.
— Eu jamais reclamaria. — Ela estende o frasco para mim.
— Passa nas minhas costas? — Me sento na areia do lado
da esteira. — Matias, se você for fazer uma esfoliação eu prefiro
queimar — ela reclama, olhando para minhas mãos cheias de areia.
— Muitas exigências. — Ela coloca o cabelo para frente e
deixa as costas apenas com a fita do biquini.
Começo a passar em seus ombros, e faço uma massagem
leve, desço pelas laterais, com meus dedos alcançando as laterais
do peito dela, ela solta uma respiração lenta e eu desço para sua
cintura diminuindo a intensidade do toque. Vejo ela fechar os olhos
enquanto passo o creme perto de onde a calcinha do biquini
começa. Ela fecha as pernas com força.
— Quer que eu passe nas pernas? — sussurro em seus
cabelos ondulados, e ela assente.
Começo do calcanhar e massageio as panturrilhas, a pele
macia das coxas dela encontram meus dedos ásperos, espalho o
creme por fora da coxa, e devagar levo minhas mãos para a parte
interna delas. Ana Júlia abre um pequeno espaço para que eu
consiga passar o protetor. Vejo ela contrair os glúteos.
— Tá tudo bem? — pergunto.
— Sim, continua — ela diz por cima do ombro.
No limite da coxa dela, aperto os glúteos e escuto algo rouco
sair de sua garganta...
— Gente, eu peguei uma porção de camarão e outra de
batata frita com mandioca — Gustavo diz com dois pratos na mão.
Ana Júlia se senta rapidamente, e eu fico parado com as
palmas brancas do protetor. Eu acalmo minha mente, que já estava
indo muito longe.
— Cate — Ana Júlia chama e a garota loira se levanta —,
almoço.
— Eu atrapalhei alguma coisa? — Gustavo diz sorrindo.
— Eu vou pegar o sal — Ana Júlia se levanta em direção do
quiosque com duas palmas de protetor na bunda.
— Que foi? — Caterina diz.
Como toda a mandioca, pois ninguém gosta. Ana Júlia
encarava minha boca enquanto comia, o que me deixava louco.
Infelizmente o climão acabou e chegamos em casa tarde,
desmaiados de tanto andar, nadar e jogar.
Nem dormir eu consigo. Não dá para dormir hoje, não
enquanto sentir o corpo dela em minhas mãos. Cada parte do meu
corpo sente calafrios só de lembrar da suavidade e imperfeições
dela.
57 A.J

Caterina está agitada, mas sei que isso vai durar pouco,
assim que ela encostar a cabeça no travesseiro vai apagar.
— Eu disse para ele no começo que ia ser só uma vez e
pronto — ela comenta sobre Gustavo —, mas a gente acabou
dormindo e ele acordou duro... Eu tinha que aproveitar aquilo.
— Aproveitou? — pergunto deitada.
— Não resisti, e foi bom, isso que importa, mas hoje ele
achou que iria rolar de novo! — assinto e lembro o quão na seca
estou.
— Me diz, era grande?
— Consideravelmente enorme — Cate diz, revirando os olhos
enquanto se deita ao meu lado.
— Deve ter dado trabalho... — respondo, me virando para
ela.
— Uhum — ela boceja. — Tanto que me fez querer dormir
hoje o dia todo.
— Tá calor demais nesse quarto, vou ver se acho o
climatizador. — Ela faz um barulho indicando que ouviu.
Ando pela casa procurando algum painel pelas paredes, mas
não acho nada. Quem escondeu essa merda? Fala sério, é capaz
de eu dormir na areia, que está mais fresca.
Pode estar até calor, mas tenho certeza de que depois do
evento do protetor, meu corpo não consegue se estabilizar com
nenhuma temperatura que não esteja pelando.
Vou para cozinha pegar um copo de água gelado, beber
quantos forem necessários para congelar o que pulsa no meio das
minhas pernas.
Pego um copo de vidro e coloco na porta da geladeira que sai
água, será que pego um suco? Abro a porta e pego a garrafa de
suco de uva. Assim que a fecho, me assusto com Matias encostado
no balcão sem camisa. Puta merda, só pode ser algum tipo de
alucinação que está a fim de me provocar hoje.
— Tá muito quente nos quartos — ele comenta, provando
que não é coisa da minha imaginação.
— Vim pegar uma água, parecia o deserto na minha boca. —
Vou andando para o corredor antes que ele toque no assunto da
praia e eu não saiba o que falar.
Ele segura meu punho, olho para a mão em volta do meu
braço, subo o olhar para encontrar o dele, que me esperava
brilhando, querendo dizer algo.
— Por que você não fica? — Ele suaviza os dedos que
contornam meu punho.
Merda, como eu vou dizer o que passa na minha mente com
esses olhos castanhos me devorando a cada instante?
— Eu quero, meu coração quer, mas ao mesmo tempo minha
mente diz para eu tomar cuidado, não pisar em falso e acabar indo
tão fundo, destruindo o que restou dele — digo, e a sua boca se
abre, pensando no que responder.
58 M

Um puta babaca. É assim que eu estou me sentindo agora.


Sabia que ela tinha questões do passado que ainda a deixavam
desconfiada. Em alguns momentos eu fico tão perdido em falar com
ela que acabo esquecendo que teve um passado... Um passado de
quem eu acabei com o carro, e que eu faria de novo só pelo fato de
ele ainda atormentar a mente dela.
— Anaju, não vou brincar com seus sentimentos. Te
machucar nunca foi uma hipótese pra mim.
— Você fica tão bonitinho falando essas coisas. — Ela sorri e
o mundo inteiro desaba.
— Posso falar essas coisas a noite toda, quando tô com você
coisas assim surgem em todos os lugares. É só você deixar eu
entrar um pouco... — Ela revira os olhos ainda sorrindo.
— Tudo bem, um pouco, por enquanto... — Se aproxima de
mim, me prensando contra o balcão.
Meus braços contornam sua cintura e a apertam contra meu
corpo. Ela sobe as mãos pelas minhas costas fazendo um caminho
suave e lento.
— Ele sempre tá duro? — ela pergunta, e eu começo a rir.
— É incontrolável toda vez que tô perto de você. — Ela fecha
os olhos rindo, e eu a observo abrir os olhos verdes e estudar meu
rosto.
— Sempre vou ter que pedir pra me beijar? — fala e se
acomoda entre minhas pernas.
— Posso te beijar sempre que quiser? — Brinco com a
bainha de sua blusa de tecido fino.
— Por que tá aí parado ainda? — Ela provoca, e eu a seguro,
colocando-a no balcão. Ela cruza as pernas em minhas costas e eu
sinto ela quente em minha virilha.
Seguro seus fios longos de cabelo, deixando seu pescoço a
mostra, e passo meus lábios por todo ele, ela geme em meu ouvido.
Minhas mãos querem ela toda, por cima do tecido fino aperto seus
seios mexendo em seus mamilos.
— Matias... — Não a deixo terminar a frase e tomo sua boca.
Ela abre os lábios, e eu encontro sua língua, uma corrente
elétrica percorre todo meu corpo. Ela se segura em meu abdome
descendo e subindo, deixando minha mente uma confusão e meu
pau ainda mais duro.
— Isso vai furar o shorts — ela diz na minha boca e eu
belisco seu mamilo, a fazendo falar meu nome alto demais em meus
lábios.
— Adoro quando você diz meu nome. — Seguro sua nuca e
observo seus olhos escurecerem de desejo tanto quantos os meus.
Me afasto dela antes que eu tire sua roupa nessa cozinha, e
suas pernas me puxam de volta, fazendo minhas pálpebras mais
pesadas.
— Aonde você vai? — ela pergunta.
— Vou levar você para seu quarto — ela nega com a cabeça.
— Eu vou levar você para meu quarto — ela pula do balcão e
arrasta o corpo no meu, arrancando uma respiração profunda de
minha garganta.
59 A.J

Abro a porta do quarto, e aí que eu lembro que estou


dividindo o quarto com Caterina e que ela está lá dormindo. Merda,
merda, merda. Matias segura minha cintura e se enterra em meu
pescoço.
— Tem quartos vazios, se você quiser. — Fecho a porta e
vou para onde ele me leva.
Viro em sua direção enquanto andamos e o beijo, sua mão
espalma em minhas costas enquanto me jogo para trás. Ele abre
uma porta e a fecha depois de passarmos por ela.
— Tá calor aqui — digo.
— Com você sempre tá — rio, e ele ataca meus lábios
novamente, sem suavidade dessa vez.
Ele se encosta na porta, e eu giro a chave ao lado dele. O
shorts é um daqueles de praia que marcam tudo. Eu sinto o pau
dele contra mim e não consigo deixar de querer tocar. Desamarro a
cordinha do shorts e vou descendo até que ele esteja no chão.
— Anaju, eu... — Brinco com os dedos em sua virilha. —
Caralho!
Tiro tudo que cobria ele e me deparo com pau que nem cabe
em mim. Seguro a base dele e movimento minha mão, encarando
seus olhos que fixam nos meus. Passo a língua na ponta e Matias
geme, segurando meus cabelos.
— Puta que pariu, como você é gostosa. — Coloco ele inteiro
em minha boca.
Fecho meus joelhos para tentar acalmar meu centro, que
implora por qualquer movimentação. Minhas mãos e minha boca
trabalham juntas e, cada vez que ele geme, eu chupo mais fundo.
— Linda, eu vou gozar. — Continuo com o pau dele em
minha boca, e ele movimenta os quadris — Vou tirar... — ele diz,
mas eu o seguro, quero sentir ele, o gosto dele.
Ele estremece em minha boca e eu sinto o jato quente em
minha língua. Revira os olhos com força e os fecha, quando abre.
com as pálpebras pesadas e a respiração descontrolada, avanço
para sua boca, que me recebe com desespero.
— Anaju, você não sabe o que despertou. — Me equilibro, e
ele me joga na cama, tirando a camiseta do meu pijama. — Você é
safada assim sempre?
— Depende de quem — digo, e ele desce a boca para meu
seio, chupando, e eu não consigo controlar os barulhos que saem
da minha boca.
Aninho meu quadril ao dele e sinto ele duro de novo, ele se
esfrega por cima da minha calça e eu acompanho o ritmo, até que
chega um momento em que o quero dentro de mim.
— Não tenho camisinha, linda — eu tinha me esquecido
totalmente desse elemento.
— Nenhuma? — Ele faz negativo em meus seios, desce me
lambendo e tirando minha calça.
— Eu poderia ficar olhando você assim para sempre — ele
diz, enquanto eu subo para me apoiar nos travesseiros.
Ele brinca em minhas coxas, passa o dedo por cima do tecido
e faz eu me contorcer.
— Matias, eu preciso — ele me fita com os cabelos suados e
posiciona, e se posiciona, abrindo minhas pernas.
60 M

Ela tira a calcinha em minha frente, bem na minha cara, e eu


só queria entrar nela, sentir ela apertando meu pau. Mas não trouxe
a porra da camisinha.
Ela me chupou, e foi o melhor boquete da minha vida. A
imagem dela ajoelhada não vai sair da minha mente por nada.
Mas ela totalmente nua na minha frente é outra coisa. Estou
igual uma pedra, de um jeito que começou a doer. Ela mexe nos
lábios, abrindo-os e me provocando, passando os dedos na sua
entrada.
Essa mulher só pode ser um delírio.
Ela é puramente fogo e eu quero me queimar nela.
Tomo seus seios, eles são do tamanho perfeito para mim,
cabem inteiros em minha boca. Ela segura meu cabelo quando
mordisco o mamilo endurecido. Desço minha mão pelo seu corpo
alcançado a abertura úmida, circulo o clitóris e ela solta um gemido
que faz eu descer para o meio das pernas dela.
Seguro seus quadris e puxo-a para mim. Passo a língua por
seus lábios e a vejo jogando a cabeça para trás, deixando o peito
aberto, a visão do paraíso.
— Isso é tão bom — ela diz com a voz rouca.
— Acho que posso passar a noite toda fazendo isso. —
Contorno o clitóris e ela abre as pernas ainda mais.
Passo meu dedo na entrada dela, e está mais molhada que
antes, não resisto e enfio um dedo, ela ergue o quadril em minha
boca.
— Ai, senhor — ela diz, se movimentando contra meu dedo.
— Mais um? — ela assente, e eu coloco outro dedo enquanto
pressiono ela com o dedão e ela geme freneticamente.
— Quero sua boca — observo os olhos dela cheios de luxúria
a boca entre aberta.
— Quer eu te chupando, Anaju? — Ela assente. — Não
entendi.
— Quero que me chupe agora! — Sorrio e coloco minha boca
nela.
Ela se posiciona para assistir o que eu faço com ela. Coloco
e tiro os dois dedos devagar, mais lentamente possível para, ver seu
rosto implorar. Enquanto sugo e lambo, fixo meus olhos nos dela,
vejo o suor acumular em seus seios. Assopro e ela abre a se
esfrega em minha língua.
— Matias, mais rápido, para de me provocar. — Continuo
devagar, ouvindo os gemidos prolongados, e ela segura minha mão
enfiando os dedos até a base.
— Deixa eu terminar sozinho. — Tiro os dedos de dentro dela
e coloco a língua em sua entrada.
Vejo sua respiração acelerar demais, ela segura os seios, as
pernas ficam trêmulas e eu coloco um dedo enquanto a chupo.
— Goza na minha boca. — Ela solta barulhos que formam
uma música para mim, começa e a se contorcer em minha boca, e
eu continuo ali até a última arqueada.
Eu a coloco contra meu peito, ainda com os olhos fechados
ela se acomoda em minha barriga e fica ali, a sinto molhada ainda.
— Faz de novo — ela diz contra meu peitoral.
Eu obedeço e a deixo onde está, dessa vez faço meu
trabalho só com os dedos. Agora todos os gemidos e arqueadas
foram com ela me beijando.
— Anaju, você tá bem? — pergunto após ela tremer contra
mim.
— Preciso dormir um pouco. — Eu a coloco no colchão e a
cubro com um lençol, me deito ao seu lado e ela se acomoda em
meus braços.
Meu pau continua duro e agora está pior a situação. Ela
encostou a bunda em mim, me deixando mais excitado ainda.
Abraço ela e me concentro em dormir. Dormir agarrado nela após
ter ela em minha boca. Quão apaixonado eu estou?
— Viu que por que não podemos ser amigos? — digo, e ela
continua de olhos fechados.
— Mas quero que seja, quero contar tudo sobre mim para
você, Matias — Ana Júlia diz com a voz sonolenta.
— Então seremos melhores amigos. — Ela ri contra meu
braço.
— Mas ainda vai fazer eu gozar, né?
— Na hora que quiser, gatinha. — Ela adormece, e eu me
aninho em seus cabelos e relaxo.
61 A.J

Voltamos para casa já faz um dia. Quando saímos de lá, o


gatinho não parava de roçar os pelos em minhas pernas, ele era tão
fofo, queria trazer comigo.
Desde aquela grande noite com Matias, não paramos de nos
falar por mensagens o dia todo. Simplesmente foi perfeito. Não
consigo parar de pensar nele um segundo, em tudo que aconteceu.
Não sei por que adiei tanto, poderia ter rolado tantas vezes
já. Mas tudo bem, melhor irmos com calma e acho que é isso que a
gente está fazendo.
Meus pais ainda não voltaram de viagem, então Caterina
continua aqui. Ela está de mau-humor desde aquela noite, e eu não
tenho a mínima ideia do que aconteceu.
— E você e o Gustavo, estão bem? — digo e ela dá de
ombros.
— Ah, foi só na viagem mesmo, não rolou mais nada. E você
e o Matias? — Assinto.
Sorrio de orelha a orelha só de falar sobre ele.
— A gente vai sair hoje à noite — ela sorri junto comigo —, e
esqueci de contar que minha psicóloga vai ser daqui quinze dias, tô
ansiosa.
— Ai, eu tô tão orgulhosa de você — ela faz biquinho.
— Obrigada. — Começo a subir as escadas — Me ajuda a
me arrumar!
— Ela vai para um encontro! — Cate vem atrás de mim
correndo.
Coloco as opções na cama e ela analisa cada uma.
— Pra onde vocês vão? — pergunta.
— Ele vai me levar para um restaurante argentino chique. —
Ela assente olhando as roupas.
— E no último dia da praia vocês já fizeram tudo, né?
— Quase. — Ela me encara com dúvida. — A gente não
tinha camisinha...
— Então hoje ele vai te comer? — ela pergunta naturalmente.
— Sério isso? — Ela assente. — Eu acho que sim, espero,
pelo menos.
— Ana Júlia! —diz e ri. — Ele é gostoso? Tipo, muito?
— O bastante pra eu pagar um boquete na primeira vez. —
Ela cobre a boca sem acreditar.
— Ok! — diz, e pega a saia preta com fendas laterais que
imita couro e um suéter verde com acinzentado. — Coloca por
dentro da saia e pega aquela bota preta e uma bolsinha — ela
aconselha futicando meu armário.
Visto tudo depois de tomar um banho e secar o cabelo. Ainda
bem que vou com um suéter, pois esfriou demais essa tarde e já
basta a saia que vai fazer minhas pernas tremerem de frio.
Eu nunca tive um encontro antes, era só sair e pegar sem
romance algum, o que eu até gostava na época mas, depois de um
tempo, comecei a sentir falta daquela baboseira toda de climinha
clichê e tal. Caterina se foi e eu fiquei na frente de casa esperando
Matias. Eu o vejo de longe caminhando com um agasalho cinza e
uma calça caqui, ele segura alguma coisa que eu não consigo ver
dessa distância.
Ele se aproxima com todo aquele gingado de jogador. Fico
boba só de o ver desfilar.
— Boa noite, Anaju — ele diz encostado no portão, cheirando
uma rosa.
— Boa noite, Matias. — Ele me puxa para si e me beija, um
beijo suave, e no final ele me olha nos olhos e me entrega a flor.
— Vamos, gatinha? — Pega a rosa e coloca em minha
orelha.
Ele segura minha mão.
Andamos de mãos dadas pelas ruas com a luz da lua
refletindo no cabelo castanho escuro dele, a pele pálida com as
bochechas e o nariz vermelho do sol. Acabo de notar que não
imaginaria um ser mais perfeito do que esse, ele é lindo de matar,
mas não é só isso. Tudo nele é bonito, tudo que ele faz, cada gesto
é leve e sem esforço e combina tanto com ele...
— Quando eu era pequeno, eu queria ser o homem aranha,
eu era fascinado em como ele tinha aquelas teias e salvava
qualquer pessoa — ele comenta divagando, olhando para as nuvens
perto dos prédios.
— Menos uma — digo, imitando uma tosse, e ele solta minha
mão na hora.
— Não precisava tocar na ferida! — ele diz, parando
dramaticamente no meio da rua.
— Tudo bem, desculpa, Peter. — Ele pega minha mão de
volta.
— Perdoada, minha MJ.
Foi aqui que eu perdi todas minhas estruturas.
62 M

Não levaria minha gata no carro do meu melhor amigo, seria


estranho para um encontro. Então a gente vai de metrô. Não julga, é
romântico, foi onde a gente se conheceu.
— Lembra quando você me mandou aquela mensagem por
engano e a gente se conheceu? — pergunto, sentado no banco do
metrô ao lado dela.
— Talvez tenha sido a mensagem certa. — Ela diz isso e eu
abraço com toda força que tenho. — Você vai me esmagar! —
anuncia, com a voz abafada.
— Também acho que foi a mensagem certa, na verdade eu
sabia desde o início. — Recebo um soquinho.
— Você literalmente deu um de homem aranha aquele dia e
me salvou — ela rola os olhos.
— Faria de novo, mesmo você ficando puta. — Ela segura
minha mão forte e apoia a cabeça no meu ombro. — Seu cabelo é
tão cheiroso, me dá um pouco do seu xampu?
— Não. — Ela ri.
— Por que não?
— Só vai poder sentir no meu cabelo. — Ela morde minha
orelha.
Não tem ninguém no vagão, então a coloco no meu colo
esperando chegar na estação. Ela pega o celular e tira uma foto
nossa no reflexo da janela.
— Me manda pra eu imprimir — digo, beijando sua bochecha.
— Imprime duas. — Caralho, essa garota quer me dar uma
overdose de amor.
Seguro sua saia para não subir, enquanto ela me beija e joga
minhas costas no banco. A voz robótica do metrô indica que a
estação chegou, e nos levantamos antes que as portas automáticas
fechem.
— Desculpa — ela diz para mim, limpando arredor da boca.
— Você me sujou de batom com gosto de morango? —
pergunto enquanto passo a língua nos lábios.
— Gloss, para ser mais exata. — Seguro a mão dela e
subimos as escadas rolantes para sair do subsolo.
O restaurante fica próximo, e o ar gelado das ruas fazem a
caminhada ficar leve. Chegamos no melhor restaurante de comida
típica argentina que eu já fui. A moça da recepção nos leva para a
mesa reservada.
Nos sentamos em cadeiras opostas, um de frente para o
outro. Peço um vinho tinto e uma porção de parrilladas de queijo
enquanto o prato principal não chega.
— Anaju — ela engole o vinho —, sobre o que eu falei na
viagem, que eu quero ficar, quero ser seu melhor amigo, quero que
você me ligue às três da manhã depois de uma festa, quero ser
mais que seu confidente, mas eu posso esperar o tempo que for
necessário... — Ela segura minha mão na mesa. — E... E semana
passada o técnico falou que tínhamos uma semana restante antes
de precisarmos que mudar de estado, eu tenho mais quatro dias
antes de me mudar para Belo Horizonte. — Ela toma o vinho todo.
— Onde você aprendeu a deixar uma mulher triste e
morrendo de amor ao mesmo tempo?
63 A.J

Vejo os ombros dele caírem enquanto suspira. Continuo


segurando sua mão e acariciando seus dedos.
Não quero que ele vá, mas não quero que ele se sinta preso
por algo que nem construído está.
— Você parece feliz que eu vou embora — ele sorri triste.
Me apoio na mesa para ficar mais perto dele.
— Não quero ficar longe de ti, Matias, mas eu não quero
pular as etapas com você. Quero te conhecer e aprender a te amar
por inteiro.
— Você tá me jogando fora? — ele cerra os olhos e eu entro
na brincadeira.
— Nem pense nisso, podemos ter um relacionamento a
distância? — digo devagar, e ele recompõe a postura.
— Tipo web namoro? Eu aceito! — Sorrio com a rapidez que
ele responde.
— Não tenho alianças — digo, ele pega os guardanapos e
começa a enrolá-los.
— Acho que essas e um beijo são mais que o suficiente para
oficializar. Ele coloca um anel de papel no meu dedo e o outro no
dele.
Esperamos a comida chegar, e não dá muito tempo para
terminarmos. Saímos às pressas do restaurante e aos beijos até o
metrô chegar. Ficamos ali brincando com as alianças de papel e
falando coisas bobas.
— Você virou minha vida de cabeça para baixo, Anaju — ele
diz, com seu corpo empurrando o meu contra a pilastra.
— Gostou?
— Sempre vou gostar.
64 M

Entramos na casa dela e subimos para o quarto, tiro sua saia


devagar, e ela tira a blusa, ficando seminua em minha frente. Não
importa quantas vezes eu veja, sempre vou parecer um adolescente
cheio de hormônios.
— Tira o resto. — Ela fica parada me esperando tirar o que
restou da roupa.
Tiro seu sutiã por trás e seguro seus seios com o braço, com
a outra mão desço a calcinha sua e me acomodo em suas curvas.
— Eu quero tanto sentir você — ela diz em meu pescoço.
Respondo abrindo suas pernas. Ainda de pé contra meu
corpo, ela se joga para trás, se esfrega em mim, mas eu só a solto
quando ela não consegue equilibrar os joelhos.
— Quero ouvir meu nome em seus lábios quando eu estiver
em você — ela assente com os olhos, deslizando para meu zíper.
Tiro o blusão que estava causando um calor insuportável. Ela
desabotoa a calça e eu tiro o resto. Ela me empurra nos
travesseiros, que têm o cheiro dos cabelos dela. Passo a camisinha
para ela e a ajudo a deixar no lugar certo.
— Você vai me fazer implorar? — pergunto enquanto ela se
senta em minha entrada.
— O que você quer, Matias?
— Quero ver você pulando em cima de mim, quero sentir sua
bunda em minhas mãos — ela segura a base do meu pênis e senta,
devorando ele inteiro.
Ela se movimenta em um ritmo constante, segura seus
cabelos acima da cabeça, arqueando as costas e deixando os seios
prontos para minha boca. Ela começa a se mexer mais rápido,
segurando meus ombros. Vejo ela chegar no ápice e soltar a cortina
de cabelos nas costas. Coloco-a no colchão e me enterro nela
novamente, indo mais fundo e mais rápido.
Ela diz meu nome várias vezes, o sussurra em minha pele.
Sinto minha visão escurecer, meu corpo estremecer, aperto a
mão dela contra o lençol e chego lá.
Me deito ao lado dela, tiro a camisinha e me limpo.
Ela contorna minhas costas com os dedos e eu me viro de
volta para ela, observando nossos corpos suados. O quanto ela
amolece depois do que fizemos, ela fica tão linda.
— Que foi? — ela pergunta sorrindo.
— Nada. — Ajeito seus cabelos e brinco em sua orelha.
— Vai dormir aqui comigo? — ela pergunta, passando a
perna na minha cintura, colando nossos corpos.
— Vou, mas amanhã vou ter que sair cedo para a
concentração do amistoso.
— Vai jogar amanhã? — Assinto.
— Quer ir me ver jogar? — pergunto, empolgado com a
resposta.
— É lógico que vou — ela diz, enrolando uma mecha do meu
cabelo. — É longe?
— Um pouquinho, mas nem tanto. — Ela cerra os olhos.
— Eu não sei muita coisa sobre vôlei — Confessa, eu ergo
uma sobrancelha.
— Vou te ensinar aos poucos, quero ver você lá na
arquibancada — digo, e ela me beija.
— Eu vou estar lá.
65 A.J

Acordo com os braços de Matias entorno de mim, assim que


me mexo o alarme do celular dele toca, ele sequer abre os olhos.
Entrelaço meus dedos em seus cabelos e o assisto acordar sem
pressa.
— Oi — digo, e ele pisca várias vezes.
— Isso tá acontecendo mesmo? — ele pergunta com a voz
rouca.
— Não, é tudo imaginação — brinco e o belisco.
— Maldade, e se eu estiver vivendo um sonho esse tempo
todo? — ele pergunta, se apoiando no cotovelo.
— Aí você vai ter que ver com o defunto Descartes. — Ele
revira os olhos.
— Acho que não, prefiro deixar assim. — Ele beija meus
lábios e se levanta da cama.
— Você vai ficar andando por aí pelado? — Matias se vira
para mim.
— Lógico, e também você já viu tudo. — Quando coloca a
mão na maçaneta, alguém bate na porta.
— Filha? — a voz de meu pai atravessa a madeira.
Jogo as roupas que estavam no chão para ele.
— Pai? — Ele não responde. — Só um minuto. — Eu coloco
a primeira roupa que encontro no meu armário.
— O que eu faço? — Matias pergunta sem som algum, e eu
aponto para ele arrumar a cama.
— Você tá com alguém? — dessa vez minha mãe diz.
— É... Sim? — Ajeito o cabelo o máximo que posso.
— E a que horas vai apresentar pra gente? — minha mãe
questiona. — Venham tomar café, Ana e pessoa ainda não
identificada.
— Uma pergunta rápida — Matias diz ainda baixinho —, eu tô
apresentável? — ele diz amassando os cachos.
— Você só pode estar brincando. — Ajeito o blusão dele, que
está todo amassado.
— Sua blusa tá ao contrário — ele avisa e a coloca no lado
certo. — Acho que podemos ir agora?
— Nem um pouco nervoso?
— Fingindo que não até não estar — ele pisca um olho para
mim, segurando a maçaneta.
Ele abre a porta e me espera do lado de fora do quarto,
descemos as escadas, e meu coração parece que vai sair pela
garganta. Como eu fui esquecer que eles iam voltar hoje? Teria
evitado esse encontro um tanto estranho.
Quero que Matias conheça meus pais, mas não sei se ele
queria fazer isso agora.
Meus pais e minha irmã mais nova estão sentados na mesa
grande, que fica na sala. Paramos antes de nos sentarmos, e eles
nos encaram por um instante. Minha mãe levanta e abre os braços
para me abraçar.
— Ai, que saudade que eu estava de você! — ela diz, me
apertando e balançando.
— Tinha esquecido que hoje era o retorno de vocês... — Ela
olha de mim para Matias. — Esse é Matias. — Ele sorri, corando. —
Essa é minha mãe, Maria, meu pai, Fábio, e Larissa, minha irmã.
— Matias, um nome bonito e um garoto bonito — minha mãe
diz, e Matias cora mais.
— Obrigada, é muito bom conhecer vocês todos, a família de
vocês é muito bonita, senhora — ele diz, e eu me contenho para
não o apertar de tanta fofura.
— Pode me chamar de Maria, sinto que ainda vamos nos ver
várias vezes. — Minha mãe puxa a cadeira do lado da dela para
Matias se sentar.
— Então, garoto, roubou o coração de minha filha? — meu
pai começa, e é minha vez de sentir o rosto queimar.
— Na verdade, ela roubou o meu — ele diz, desviando o
olhar para mim.
— Os românticos — minha mãe segura a mão de meu pai —,
eles são terríveis — diz ela, e me olha.
Matias conta sobre seu trabalho e fica um pouco mais do que
pode, pois eu sei que ele deveria estar no hotel para o jogo mais
tarde.
— Gente, Matias tem jogo hoje e está atrasado.
— Hoje? — meu pai pergunta animado.
— Sim, se vocês quiserem ir eu vou adorar ver vocês lá —
Matias convida, se levantando e colocando a sua xícara na pia.
— Não é muita pressão para um primeiro dia? — Larissa diz,
olhando para meu pai.
— Tem razão — meu pai diz —, mas levo a Ana, tenho
certeza de que já combinaram — ele diz, colocando mais café para
si.
— Tá bom, agora ele vai embora. — Coloco a mão em seu
ombro largo.
Saímos para o quintal.
— Boa sorte — minha mãe acena, fechando a portão.
Quando estamos no meio do caminho, um carro de luxo para
encosta ao nosso lado. Gustavo abaixa o vidro e tira os óculos de
sol.
— Olá, pombinhos do metrô — ele diz.
— Meus deus, eu já estava morrendo — digo, e Gustavo
sorri, levantando as sobrancelhas.
— Por que você é assim, cara? — Matias pergunta abrindo a
porta para eu entrar, e ele vai na frente.
— Querem alguma música em especial? — Gustavo diz, e
vejo Matias sorrir pelo retrovisor.
— A gente tá muito atrás deles, o técnico vai matar a gente
— Matias anuncia.
— Foi por uma boa causa o atraso? — Gustavo fica curioso,
e Matias dá um peteleco na orelha dele. — Ai! Que misteriosos.
— Gu, me deixa na casa da Cate? — Gustavo para de rir na
hora.
— É caminho, em cinco minutos te deixo na casa da
Caterina.
— Vou colocar o endereço — digo.
— Não precisa... — ele respira fundo —, acho que você me
disse alguma vez.
Não, eu não disse, mas não digo nada.
— Obrigada, bom jogo, meninos! — Abro a porta e saio.
Matias abaixa o vidro e pede para eu me aproximar.
— Te vejo mais tarde, gatinha! — Ele acaricia as pontas dos
meus dedos.
O carro acelera e Gustavo dá duas buzinadas quando se
afasta.

◆◆◆

Conto tudo do encontro para Cate, ela pede cada detalhe e


surta a cada coisa boba. Contaria quantas vezes ela quisesse, não
quero esquecer nunca. Todas as respirações e emoções que eu
senti com ele ontem quero que fiquem tatuadas em minha mente,
para que eu possa sempre voltar e reviver todos os segundos.
— Então a gente vai para um jogo? — Assinto.
— Eu não sei nada sobre o jogo, você sabe?
— Sei, eu gostava muito quando era mais nova, mas minha
altura complicou um pouco as coisas pra mim, então eu cansei.
— Não sabia que você tinha jogado — digo.
— Faz um tempão, então talvez eu tenha esquecido uma
coisa ou outra...
— Bem melhor do que os meus conhecimentos.
— Tá, então deixa eu me arrumar que a gente vai.
Ela vai para o banheiro tomar banho, e eu percebo que eu
estou o mais básica possível. Um jeans e uma regata fina vinho. E o
cabelo está o terror, cheio de nós, vou dar um jeito nele com um
pouco de óleo e pente. Ele é o único que restou para dar uma
melhorada no visual.
Consigo passar a mão nele sem me cortar, então pego as
duas mechas da frente e as tranço e prendo atrás da cabeça,
amasso um pouco as pontas.
— Você tá fofa — Caterina diz, colocando os brincos.
— E você tá pronta para matar um. — Olho para ela, vestida
toda de preto com acessórios prata.
— Quem sabe? — Ela corre com os saltos. — Vou pegar um
casaco para você, um branquinho felpudo.
Combinou, ficou uma vibe romance. Acho que tudo parece
“romance” quando você começa a se apaixonar de verdade.

◆◆◆

Que merda. O trânsito para chegar lá está enorme, parece


que aconteceu uma batida com um caminhão e travou as vias. Olho
a hora no celular e já foram vinte minutos de jogo. Morrendo de
vontade de sair do carro e ir correndo até lá.
— A gente vai chegar — Caterina diz firme no volante.
Depois de mais trinta minutos a gente consegue estacionar
no clube. Saímos do carro acelerando os passos. Ficamos perdidas
com tantos corredores e escadas, mas resolvo seguir o barulho da
bola e os gritos de comemoração.
Chego na arquibancada, que está cheia, de onde esse povo
surgiu?
Olho lá para baixo, na quadra, procurando Matias, reconheço
sua estrutura e o arquinho na cabeça, ele se movimenta rápido
como numa dança.
— A gente chegou no último ponto! — Cate diz.
— Mas quem tá ganhando?
— O time de BH. — Fico olhando para ela. — Matias está
ganhando.
Matias corre para pegar a bola, que voa para o fundo da
quadra. Ele se joga e a toca ainda no ar, outro jogador manda a bola
para o outro lado da rede. O outro time ataca, mas Gustavo, no
meio da rede, para a bola com um bloqueio que a manda direto para
o chão.
Matias corre para jogando o amigo no chão junto com todos
os outros jogadores.
Isso foi muito foda e eu só assisti a uma jogada.
E eles venceram.
Desço as escadas da arquibancada e fico o mais próxima
possível da quadra. Matias olha a entrada lá em cima e eu aceno
para ele. Ele corre em minha direção pingando suor. As mãos dele
se penduram no corrimão, ele se senta no concreto e o abraço.
— Pensei que não viria mais. — Eu o abraço.
— Eu só assisti ao último ponto, caiu laranja na estrada e
atrasou tudo!
— O ponto mais importante — ele ri olhando para mim. —
Você me abraçou todo suado?
— Não se acostuma, não. — Chamam ele para a quadra. —
Vai lá, vou te esperar aqui.
Combinamos de nos encontrarmos em uma pizzaria, então
pegamos a estrada de volta para casa. Matias vai com Gustavo e eu
vou com Caterina.
Passo o caminho todo pensando o quanto meu coração se
desesperou ao abraçar Matias. O quanto eu nem pensei duas vezes
antes de abraçá-lo, pode parecer besteira para alguns, mas não é
sempre que ao ver uma pessoa você morre de vontade de
comemorar algo com ela.
A droga do amor.
Não sabia que era tão viciante.
66 M

Depois da pizza, eu e Anaju vamos para a casa de Gustavo.


Tenho mais um jogo amanhã e implorei para ela dormir comigo.
Estou morrendo de cansaço, queimei meu cotovelo no chão de
borracha da quadra e só quero dormir. Mas qualquer tempo quando
estamos juntos é bom, e também eu queria mostrar uma coisinha
para ela.
— Aonde Gustavo foi? — pergunta quando saímos do
elevador.
— Ele disse que ia resolver a mudança para BH com os pais,
mas disse que volta logo.
— O jogo de amanhã é amistoso também? — ela pergunta.
— Sim, a gente tá tendo alguns jogos antes com a equipe
toda, para quando a temporada começar sabermos as deficiências
do time e como resolver isso no jogo.
— Eu vou ver o jogo inteiro amanhã — ela anuncia,
segurando meus ombros.
— Vai me desconcentrar de tanto que vou olhar você — digo
pertinho do rosto dela.
— Você disse que queria me mostrar algo. — Assinto, e fico
em silêncio.
— Escuta — digo, e ela fica em silêncio.
— Você não trouxe quem eu tô pensando, né? — Miados
ecoam atrás da porta.
— Chico disse que ele gostou de você e que ficou no seu
travesseiro quando fomos embora, então Gustavo deixou que ele
viesse para cá e ficasse comigo ou com você, caso queira... — Ela
corre para a porta.
— É lógico que eu quero, é a coisa mais fofa que eu já vi!
— Eu acho que eu sou a coisa mais fofa, mas eu aceito
perder para um gato...
— Não tem como comparar, amor — amor.
Ela se abaixa e o gatinho estica o pescoço enquanto ela
acaricia os pelos dele. Anaju me chama para eu me sentar ao lado
dela no chão, e eu me agacho ali.
— Você é perfeito, sabia? — ela diz, olhando para o gatinho.
— Tô falando dos dois, sem ciúmes!
— Tô me arrependendo, tá gerando muito ciúme no meu
coração! — brinco, e ela solta uma risada que faz eu rir.
— Matias, quero que seja meu namorado...
— Droga, — ela me olha preocupada — você vai pegar todos
os pedidos pra você!
— Isso é um sim? — Me aproximo dela e a encosto no
batente da porta.
— Óbvio que é um sim, mas eu quero que o próximo pedido
seja meu — os seus olhos se conectam com os meus e eu a beijo,
mas faço cócegas em suas costas.
— Para com isso!
— É um aviso para deixar meu pedido em paz, eu sei que
vou fazer, Anaju, vai demorar um tempinho, mas eu sei que vou. —
Vejo o sorriso dela crescer.
— Eu vou esperar — ela diz, e eu reparo cada milímetro do
seu rosto esquentando.
— Mas, me diz, qual vai ser o nome dele? — Indico com a
cabeça o gato, que já subiu na cama.
— Folião, onde nós começamos.
— Agora é você quem está falando coisas bonitas. — Ela
morde meu lábio me atiçando. — Vou fazer um macarrão com
molho branco, quer?
— A gente acabou de devorar duas pizzas!
— Eu sou uma pessoa esfomeada, se acostume!
Começo a cozinhar e ela fica sentada no sofá brincando com
Folião.

◆◆◆

Já estamos em quadra aquecendo, por enquanto posso olhar


o quanto for para arquibancada e ver o rosto da minha namorada.
Ver ela sorrindo o tempo todo.
— Ela já se enturmou, hein — Gustavo diz sobre Ana Júlia,
que está no meio da outras pessoas que sempre vêm assistir aos
jogos, não importa onde sejam.
— Ela conquista qualquer um — digo, e já chegou a hora de
ele ir assinar a folha do capitão.
O jogo começa, o saque é deles, comecei na rede. O técnico
quer que eu ataque para explorar o bloqueio do adversário. E eu
faço isso inúmeras vezes, defendo e faço passes na mão do
levantador. O jogo é leve, mas mesmo sendo um amistoso temos
que dar tudo de nós.
O juiz apita o último saque, e quem vai fazer sou eu.
Jogo a bola na altura suficiente e dou minhas passadas e
pulo, minha mão bate perfeitamente na bola que dispara para o
limite da quadra do adversário. A bola vai direto para o chão.
Ganhamos.
O técnico me parabenizou e falou que me vê em quadra
trazendo outras vitórias para o time.
Eu consegui. Treinei, treinei muito para vir pra cá e finalmente
vou jogar profissionalmente.
Ana Júlia desce para o canto da quadra e a reunião na
quadra termina e eu vou correndo para ela, tiro a água que joguei no
rosto.
— Puta que pariu que jogo foi esse? — ela diz animada.
— Gostou?
— Principalmente do camisa doze — sorrio apertando a
bochecha dela.
— Eu vou sentir sua falta — ela diz com a voz baixa.
— A gente vai dar um jeito, sempre vai ter um jeito — passo a
mão no nariz dela e ela faz careta.
Não importa como, mas eu quero estar com ela.
Vou estar com ela.
67 A.J

Chegou o dia de ele ir.


Juro que não o quero soltar. Estamos no aeroporto e o time
inteiro está aqui. Todos uniformizados de azul escuro com mochilas.
Despacharam as malas e agora vão ter que entrar para o portão de
embarque. É onde eu deixo Matias ir...
— Gatinha, eu escrevi um negocinho pra você. — Ele me
entrega um papel decorado com flores na margem.
— Você escreve? — pergunto, e ele sorri.
— Só pra você. — Desdobro o papel em meus dedos.
Sou idiota por você
Não importa quantas vezes eu pense em te ver
Todas as vezes eu estou a sua mercê
Mas o que eu posso fazer?
Pode me ligar que eu vou atender
Não tem uma vez que eu não queira você
Eu quero te ter
Meu coração vive nesse balancê
Sou teu até não me querer
Mas vou te amar mesmo sem te ver
Pode fazer qualquer dossiê
Eu sempre vou ser culpado por amar tanto você
Ass: Matias Miranda <3

Essa é a coisa mais linda que alguém já fez por mim. Nem
sei como reagir. Fico olhando para ele e para o papel várias vezes.
Passo a mão por sua bochecha e circulo a pintinha que eu encaro
toda vez que fico nervosa por ele fazer algo fofo.
— O que eu faço? Eu não sei escrever coisas assim, Matias
— digo, e ele ri em minha frente.
— Se me beijar eu te desculpo por isso — ele dá dois
pequenos passos, ficando colado a mim, seguro em seu pescoço e
toco meus lábios nos dele, sorrindo.
— Vou te visitar assim que eu conseguir — digo, e o abraço o
mais forte que eu consigo.
— Se eu tiver inteiro vai ser muito bom, gatinha — ele diz
com a voz sufocada.
— Matias! — Gustavo grita da fila. — Ana, vou sentir
saudades, vem no lugar dele, por favor! — Ele manda um tchau
assim que passa pela catraca e eu faço o mesmo.
— Tenho que ir. — Matias segura minha mão.
— Boa viagem, me liga quando chegar, promete? — digo.
— Prometo ligar até quando você não quiser. — Ele acaricia
minha bochecha e eu o observo se afastar.
Chego em casa e leio o que ele escreveu várias e várias
vezes. Quero tanto ouvir a voz dele de novo.
Eu estou tão apaixonada por esse garoto que seria capaz de
ir até Minas andando.
Epílogo

Faz três meses que eu não vejo Matias. Por todo esse tempo,
nosso namoro foi regado de ligações na madrugada e mensagens
todos os dias.
Mesmo longe, foram dias perfeitos, às vezes ele me irritava o
bastante para não querer atender, mas ele sempre me surpreende
no fofurômetro.
A gente assistiu a inúmeros filmes juntos, e pelo menos umas
duas vezes “Up - Altas Aventuras”. Matias fez até apresentação no
Power Point do porquê esse é o filme favorito dele. Escutei toda a
palestrinha, e minha conclusão é que ele gosta de filmes infantis
extremamente tristes.
No dia da minha consulta com a psicóloga eu estava
desesperada, estava ansiosa de ter que falar sobre mim, eu não
sabia o que dizer a ela. Fiquei na porta do lugar por um tempão,
mas Matias me ligou para perguntar como foi, e eu percebi que o
horário tinha passado, então ele me acalmou por ligação, conversou
sobre coisas idiotas de que a gente ri à toa. Então entrei na sala,
que estava vazia, e expliquei para a psicóloga o que houve, ela
estava com a agenda mais flexível naquele dia, então eu consegui
falar.
Agora que estou sentada dentro do avião, penso em tudo
isso e em como eu estou me sentindo, como eu cresci, como eu
consegui me enxergar e me permitir viver o que eu não suportaria
sofrer novamente.
Peço um Uber no terminal e vou para o apartamento que
aluguei, que coincidentemente fica no mesmo bairro em que Matias
mora. Obra do destino que eu tracei.
Deixo minhas malas e vou para o lugar que os meninos
alugaram para morar os dois junto com a metade do time.
Ligo para Gustavo dizendo que eu cheguei, e ele vem liberar
a entrada do condomínio para mim.
— Ele vai chorar, você sabe como ele é todo dramático — diz
me abraçando.
— Sim, só ele — Gustavo assente.
Me sento no sofá da sala e espero ele aparecer. A casa está
silenciosa, também são sete horas da noite numa sexta-feira.
Matias, desce as escadas usando um moletom todo cinza-
claro. Ele se senta no sofá digitando algo no computador e nem me
percebe ali. Me ajeito fazendo barulhos, mas ao mesmo tempo
sendo discreta.
Ele olha por cima da tela do computador e o fecha no mesmo
instante, jogando-o para o lado e me atacando no sofá.
— Espera! — ele diz me abraçando. — O que você tá
fazendo aqui? Como entrou aqui?
— Vou morar aqui — ele arregala os olhos. — Passei na
segunda chamada de odonto da UFMG, e o Gustavo me deixou
entrar.
— Eu estava escrevendo um e-mail pra você — a gente envia
e-mails um para o outro uma vez por semana — dizendo que eu ia
para São Paulo porque estava sentindo a sua falta.
— Agora não vai sentir mais. — Ele aperta meus lábios com
os dedos.
— Você passou na faculdade! É muita informação, eu vou
surtar! — Matias fica me encarando, e vejo seus olhos brilharem.
— Eu queria tanto ver você chorar. — O queixo dele cai
enquanto eu rio.
— Tenho uma namorada má, onde eu fui me meter?
— É bonitinho! — Ele sorri.
— E o Folião? — ele pergunta animado.
— Caterina vai trazer semana que vem, vou arrumar o
apartamento antes dele chegar. — Ele assente.
— Por enquanto tenho toda sua atenção, então? — Matias
diz, encostando o nariz no meu.
— Hmm, não sei não. — Ele me levanta em seu colo.
— Tenho, sim! — Sobe as escadas. — E a gente vai
maratonar filmes infantis.
Ele me deixa no quarto dele escolhendo o filme que iremos
assistir e traz pipoca doce. O dia está bem frio, então ficamos
aninhados debaixo da coberta.
— Por que você pausou? — pergunto com a boca cheia de
pipoca.
— É que eu precisava muito te dizer que eu amo você, eu
queria falar antes, tipo, eu escrevi, mas eu queria falar, sabe? — ele
diz rápido, e dessa vez sou eu quem fica com vontade de chorar.
— Eu também te amo. — Ele sorri com todos os dentes e
começa a beijar meu rosto inteiro.
— Juro que ainda vou fazer aquele pedido!
Agradecimentos
Esse livro só foi escrito por conta de vocês, leitores, que
queriam tanto quanto eu saber o que aconteceu com a Anaju.
Então, eu agradeço primeiramente a vocês.
Agora minhas betas, que fizeram comentários incríveis, e que
deixaram essa história melhor. Me diverti tanto escrevendo, mas
assistir a vocês lendo foi a melhor parte. Obrigada, Giovanna
@thebookdilemma, Leticia @mithy.art, Jessica @jessbybooks,
Rebeca @redomadelivros e Caroline @ccarolbooktok, sem vocês a
Anaju e o Matias não teriam vida.
Agradeço muito à minha família, que sempre entende meus
surtos, mesmo não tendo a mínima ideia de quem eu esteja falando.
Obrigada a você que acompanhou a história desse encontro.
E vocês sabem o que vem por aí, né?
Peço que avalie ao final da leitura, pois ajuda muito!

Muito obrigada e nos vemos em outras páginas,


Giulia
Books By This Author
No Natal existe amor em SP
Débora só quer viver sua vida tranquilamente e sozinha, mas sua
família não para de falar sobre relacionamentos. Ela deixou de ligar
para a pressão que eles fazem há um tempo, mas dessa vez é
diferente, pois o Natal está chegando e ela vai ser a única na família
sem alguém no jantar… Ela só não quer ter que escutar piadinhas
ou qualquer tipo de consolo como se ela realmente precisasse.
Fernanda trabalha na padaria da sua família. Ela é apaixonada pela
confeitaria e quer focar nisso e dar o seu melhor em si mesma, e
para isso está dispensando qualquer tipo de distração…
Mas no Natal mágica acontece, pessoas surgem e o amor floresce!

Almas Opostas
Ciaran é a princesa do império, e ao completar dezenove anos seu
pai vai obrigá-la a casar-se contra sua vontade.
No dia do aniversário ela decide que vai fugir e se algum dia ela
decidir retornar, não vai ser com um marido ao seu lado.
A noite da festa chega e ela conhece dois garotos, dois piratas, Ezra
e Milo. Eles vão encorajar e ajudar Ciaran a escapar do império.
O que eles não esperavam, é que os segredos daquele mundo iam
virar suas vidas de cabeça para baixo…

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