Você está na página 1de 406

COPYRIGHT © 2023 by Thaísa Lins

É proibida a reprodução, transmissão ou distribuição não autorizada de


qualquer parte dessa história. Os direitos da autora foram assegurados.
Plágio é crime.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens e acontecimentos descritos
aqui são frutos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
acontecimentos reais é mera coincidência.
Essa obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.

Capa: Thaísa Lins


Diagramação: Thaísa Lins
Revisão de Texto: Gabrielle Almeida
01 | O mundo real
02 | Fique alerta
03 | Dois a um
04 | Indiferença
05 | Necessidades primitivas
06 | Jogo de tabuleiro
07 | O trote
08 | Propriedade medicinal
09 | Todos os limites
10 | Revelações perturbadoras
11 | Punições – Parte I
12 | Punições – Parte II
13 | Punições – Parte III
14 | Primeira sessão
15 | Orquídea Fantasma
16 | Outros como eu
17 | Novas versões – Parte I
18 | Novas versões – Parte II
19 | Fora de controle
20 | Noite de caça – Parte I
21 | Noite de caça – Parte II
22 | Evolução humana
23 | À deriva da vida
24 | Feliz aniversário
25 | Um conto de fadas
26 | Fuga
27 | O que você quer
28 | Humanidade até irritante
29 | Nós sabemos
30 | Chave de ouro
31 | Nada menos que tudo – Parte I
32 | Nada menos que tudo – Parte II
33 | Nada menos que tudo – Parte III
34 | Sobrevivendo
Epílogo
Este livro contém gatilhos relacionados à depressão, transtorno de
ansiedade, ataques de pânico e relações familiares conturbadas, assim como
algumas menções a uma tentativa de suicídio. Também será retratado o
consumo de drogas lícitas, palavras de baixo calão e conteúdo sexual
explícito.
Devo deixar claro que a obra a seguir se trata de um Bully Romance, e
muitas das vezes você poderá se sentir desconfortável com atitudes e
palavras bruscas por parte dos personagens. Como pessoa, não concordo
com muitos de seus erros, porém cada um deles foi necessário para o
desenrolar de toda construção da história.
É de minha responsabilidade frisar aqui que a obra se passa nos anos
80, onde a terapia de eletrochoque ainda era utilizada com muita
irresponsabilidade. Meu intuito não é retratá-la como ineficaz, apenas
ressalto como a falta de limites e profissionalidade em situações tão
delicadas pode ser trágica. Deixo um lembrete de que, nos dias de hoje, a
eletroconvulsoterapia anda obtendo bons resultados e seguindo regras mais
rígidas para sua aplicação.
Não recomendo minha obra para menores de dezoito anos.
Agora, caso decida prosseguir... Seja muito bem-vinda(o) à New
Order Institute.
Para todos que já se sentiram desesperançosos e mortos por dentro.
Espero que, mesmo quando acharem que estão em seu limite,
consigam persistir. Vocês são fortes o bastante para seguir em frente.
Há dias, lugares e pessoas melhores te esperando.
Sobretudo, há um propósito único a ser achado especialmente por
você.
Cacto (Cactacea)
Conhecidos pela sua grande resistência e capacidade de
armazenamento de água para a adaptação a ambientes
hostis e improváveis. Apesar da característica espinhosa,
todas suas espécies são capazes de florescerem,
simbolizando, assim, a esperança.

O fim da vida não é a pior coisa que pode acontecer ao ser humano, e
sim o fim da esperança. Porque isso significa estar morto estando vivo.
Eu andava pensando muito nisso ultimamente. Muito mais do que
seria considerado saudável.
Estava sendo difícil acordar. Levantar. Cumprir até as tarefas mais
insignificantes do dia. E, principalmente, ir dormir sabendo que o dia
posterior seria o mesmo que todos os últimos.
Naquela manhã, assim como as anteriores, eu tive uma briga interna
comigo mesma, perguntando-me se não podia permanecer deitada, sob os
cobertores que formavam uma bolha abstratamente protetora em aspectos
maiores do que o apropriado, ao invés de enfrentar tudo o que me esperava.
A parte mais dolorosamente racional de mim sabia que a resposta era
negativa. Ainda assim, relutei-me a ouvi-la por cada milésimo de segundo
que me era possível, confortando a mim mesma com uma hipótese vã.
Quando me levantei, apenas porque já sabia que estava exatos vinte
minutos atrasada para o começo do dia, tomei uma consciência maior de
meu corpo dormente, torturantemente pesado. Então, como o habitual, saí
da escuridão que envolvia meu quarto e desci a longa escada da casa
vitoriana, que parecia ser tão grande com o único propósito de deixar seus
moradores cientes de que “vazio” podia assumir dezenas de significados
diferentes.
Um par de minutos mais tarde, tive uma pequena surpresa pela
primeira vez em algum tempo, embora não fosse especialmente boa. Meu
pai estava sentado à cabeceira da extensa mesa de jantar, lendo o jornal do
dia.
21/08/1982
Ele abaixou o amontoado de papel assim que se deu conta de minha
presença, encarando-me, ou, para ser mais exata, analisando-me com
aqueles olhos que escondiam uma mente sagaz e nem sempre dócil.
Não o cumprimentei. Não exatamente porque não estava feliz em vê-
lo — eu não estava mesmo —, mas mais porque eu me sentia cansada
demais para sequer me obrigar a expulsar alguma palavra de minha boca.
Silenciosamente, sentei-me à mesa, de frente para minha mãe cujo
semblante demonstrava tédio e desinteresse por tudo à sua volta. Não me
importava tanto com isso, não mais. Ao menos, ela não me forçaria a
conversar ou a responder perguntas inconvenientes. Era o que eu dizia a
mim mesma já há alguns anos.
Ignorei o olhar persistente de meu pai sobre cada centímetro de meu
rosto ao servir um pouco de café em minha xícara. A mesa estava
perfeitamente posta, trabalho das duas empregadas que começavam seu
turno naquela casa exatamente às seis da manhã, porém não sentia muita
vontade de comer nada ali, ainda que, se eu fosse honesta comigo mesma,
reconheceria que estava com um pouco de fome.
— Como você está, Katrina? — o homem de físico bom e cabelos em
um misto de grisalho e castanho escuro enfim rompeu o silêncio. Não havia
de fato uma preocupação genuína implícita em seu tom de voz, entretanto.
Ele apenas… ainda estava me avaliando. Sua única prole.
O fato era que eu meu pai se importava muito com seu legado, com as
aparências. Filho de um advogado de renome e neto de coronel, o médico à
minha frente pretendia que o sobrenome da família continuasse a esbanjar
sucesso cru por mais algum tempo. Aparentemente, eu era um obstáculo
direto para isso. Ele nunca disse isso, porém era óbvio que temia que todas
as conquistas das últimas gerações de nossa família chegassem ao fim
comigo. Eu também pensava um pouco nisso.
Doía saber que o temor mais enraizado em meu pai tinha algum
fundamento.
— Bem — eu disse. A palavra não tinha passado de um ruído rouco.
Minha boca ainda estava seca.
Ele não engoliu a mentira descarada. Claro que não. Era inteligente
demais para isso.
Uma quietude mais desconfortável voltou a se instalar na sala de
jantar, e me apressei para terminar meu café.
Quando enfim me levantei para deixar a mesa, contudo, meu pai disse
em seu timbre mais severo:
— Sente-se.
Encarei-o.
— Estou atrasada para a aula. Preciso me trocar.
— Você não vai.
Contraditoriamente, aquelas palavras não causaram alívio algum em
meu interior. Não quando elas tinham saído da boca daquele homem.
Não deixei que ele me lançasse uma segunda ordem. Estava
acostumada a ceder. Apenas me sentir de novo.
Ele apenas retirou um folheto de seu terno perfeitamente passado e
estendeu em minha direção. Peguei-o.
Em seu topo e em letras maiúsculas, havia um “New Order Institute”.
Tinha uma foto em preto e branco de um largo prédio de três andares
com pilastras dóricas envolta por um gramado assustadoramente bem
aparado. Havia árvores e mais árvores atrás do local — em sua maior parte,
magnólias e longos pinheiros —, que implicavam que a tal instituição
ficava em um lugar mais isolado. Não foi isso que me assustou, no entanto,
e sim o fato de que havia grades em cada janela dali. Eram grossas, e eu
podia imaginar que eram de ferro maciço.
Corri o olhar pelo texto que se seguia, pegando as informações mais
importantes. Aquele era um internato, mas não um comum. Era um
internato para jovens diferenciados, exata palavra usada ali. Professores e
inspetores especializados em ordem, atos que prometiam disciplinar alguém
por toda sua vida e tratamentos particulares, não especificados no texto, que
prometiam em breve ser revolucionários para o mundo todo.
Meu coração se apertou no peito. Não terminei de ler tudo ao encarar
meu pai.
— O que é isso?
Ele não demonstrou muitas emoções ao dizer:
— Você está a menos de um ano de se formar, Katrina, e ainda não
tem uma fração da determinação necessária para iniciar sua fase adulta.
Sequer consegue cuidar de si mesma. — Ele tomou um gole de seu chá
calmamente, e eu me remexi na cadeira, inquieta. — Um colega de
faculdade criou este instituto já há alguns anos, Sr. Cole. Um homem de
uma inteligência renovadora, de fato. Estive acompanhando seu
desenvolvimento profissional, e estou certo de que ele anda cumprindo o
que promete neste internato. Ele passou muitos anos após nossa formatura
em Londres, estudando novos mecanismos de tratar mentes com uma
química diferente das demais, e agora enfim está tendo as oportunidades
perfeitas para que seus aprendizados façam a diferença. Tenho certeza de
que você estará em boas mãos.
Minha mente girava e girava com todas aquelas informações. Um
colega de faculdade? Então ele era um psiquiatra, tal como meu pai. O que
ele estava fazendo na direção de um internato?
— Não entendo o porquê disso tudo. O senhor também é um
psiquiatra, eu já estou em boas mãos — eu contestei, embora aquilo não
fosse exatamente verdade. — Qual o sentido de me enviar para um
internato logo agora?
— Há limites que não posso cruzar como seu pai, e está óbvio que
medicações não são o método mais eficaz de tratá-la, Katrina. Você nunca
se encontra disposta, parece como um maldito zumbi andando pelos cantos
e suas notas… francamente, ambos já sabemos que estão um fracasso há
algum tempo. Já está na hora de recorrermos a medidas mais drásticas. Você
deve aprender a lidar de uma vez por todas com o mundo real. Seus dezoito
não estão longe, e eu não posso mais aturar uma criança em minha casa que
não quer crescer.
— Mas, pai…
— Já teve as explicações das quais precisava. Não tenho tempo para
essa conversa, tenho que estar em meu consultório em menos de meia hora
— ele me cortou, o tom rude e indiferente como se eu fosse apenas um
contratempo. — Vá arrumar suas malas. Duas, no máximo. Virão te buscar
em três horas.
Parecia ser algo tão simples para ele. Me expulsar de casa, me mandar
para um instituto sobre o qual eu mal sabia o básico e que eu ainda sequer
tinha ideia de onde ficava. Minhas mãos começaram a tremer, como se só
então eu começasse a me dar conta da gravidade da situação, como se a
ficha enfim estivesse caindo. Instintivamente, lancei a atenção à minha mãe,
que não parecia se importar muito mais que meu pai com o fato de eu ter
sido matriculada em um lugar que eu não conhecia em nenhum aspecto.
Ainda assim…
— Você não vai dizer nada? Você… você concordou com isso?
A mulher de cabelos escuros, cabelos infinitamente mais arrumados
que os meus e que parecia ser muito mais nova do que de fato era
simplesmente deu de ombros.
— Seu pai é o chefe desta casa, sabe o que é melhor para todos nós. E,
francamente, querida, não é como se sua situação pudesse piorar. Acho que
uma mudança de ares vai fazer melhor para você, talvez você recupere sua
vitalidade com os tratamentos revolucionários que o Sr. Cole promete
oferecer. Além do mais, esse internato é de alta classe. Quem sabe você não
possa encontrar algum futuro marido de sobrenome decente por lá?
Inacreditável. Os dois eram inacreditáveis.
Abri a boca para continuar contestando-os, mas palavra alguma saiu
dali. Não parecia ter tantas energias para continuar discutindo, se é que eu
podia ter chamado a conversa dos últimos minutos de discussão. Eu
apenas... não consegui lutar tanto por mim, e isso pareceu me frustrar ainda
mais do que o fato de meu genitor estar me mandando para longe de uma
casa que não era tão minha quanto devia.
No fundo, eu ainda queria dizer que poderia melhorar, que iria tentar
mais dessa vez, se me deixassem ficar. Eu tentaria ter alguma motivação
todos os dias ao acordar, arrumaria algum jeito de ter mais energia para me
entregar mais aos estudos e projetos extracurriculares. Poderia arranjar
amigos se me esforçasse mais, assim não ficaria sempre em casa em meus
horários livres. Eu recuperaria a vitalidade que perdi em algum momento
indefinido de minha vida.
Porém eu também já sabia que tudo aquilo não passaria de uma
mentira cruel. Assim como meus pais sabiam. Eu não melhoraria ali,
naquela casa. Contudo, eu também não achava, de forma alguma, que
poderia melhorar em um instituto que continha grades nas janelas.
Pela primeira vez em muito tempo, estava sentindo um sentimento
muito mais intenso do que o vazio que andava me rondando de modo
amargo. Não demorei a identificá-lo como medo.
— Suba e vá arrumar suas coisas, Katrina. Eu não pedirei uma
segunda vez — a voz dura de meu pai chamou minha atenção. Voltei minha
atenção a ele, não conseguindo fazer o que me fora ordenado.
Inspirei fundo, fechando as mãos em punho.
Talvez... talvez eu pudesse insistir mais um pouco. Por mim, embora
não andasse prezando tanto pelo meu melhor já há algum tempo. Tive que
tomar todas minhas energias restantes para sussurrar:
— Então é isso? O senhor vai simplesmente me enxotar de casa com
um aviso prévio de três horas? Não vai fazer sequer questão de esclarecer
melhor para onde estou sendo obrigada a ir? Isso é…
— Chega — o homem de óculos redondos empoleirados na ponta do
nariz fino aumentou seu tom de voz, chocando a palma de sua mão contra a
mesa, fazendo com que minha xícara tremesse. Aquilo não surtiu efeito
nenhum em mim. Apesar da pontada de medo que persistia em consumir
minhas entranhas, meu corpo continuava dormente. — Não continue
questionando meu bom senso e minhas decisões. Estou fazendo o que é
melhor para minha família, e não há motivos para duvidar de que essa foi a
melhor escolha que fiz. Basta que você saiba que Sr. Cole é um homem de
confiança e perito em cuidar de jovens como você. Não estou te mandando
para qualquer lugar. Ouvi maravilhas sobre essa instituição de amigos
próximos que possuem filhos com adversidades até mesmo maiores do que
você apresenta antes de fazer seu registro.
Registro.
A palavra ressoou de forma pungente por cada canto de meu cérebro.
Registro. Não matrícula. Registro.
Foi provavelmente aí que tive a completa certeza de que estava certa
em temer o que viria ao meu encontro.
— Pai… — meu tom agora era quase inaudível. — Que tratamentos
revolucionários são esses aos quais Sr. Cole pode me submeter? E,
especificamente, que tipo de educação essa instituição promete oferecer?
Sua resposta foi jogar o jornal com uma força brutal sobre a mesa e se
colocar de pé de uma só vez.
— Arrume suas malas. Não faça com que eles a dopem para fazê-la
entrar no maldito carro. Acredite em mim, ninguém aqui gostaria que isso
acontecesse.
E, sem permitir que eu dissesse qualquer coisa a mais, o homem
responsável por minha existência me deu as costas e caminhou com passos
dizimadores até a saída, deixando-me com meu coração agora, mais
despedaçado do que nunca, sangrando em minhas mãos.

Não me demorei com as despedidas. Apenas dei um abraço rápido em


Sylvia, uma das empregadas que cuidara de mim desde meus seis anos, e
tentei memorizar cada canto do jardim de casa em uma despedida
silenciosa, não tendo ideia de quando voltaria a vê-lo. Dei-me ao luxo de
pegar algumas mudas de minhas plantas preferidas, cactos em sua maioria,
envolvendo-as com cuidado em plásticos antes de colocar em uma das
malas.
Minha mãe não estava em casa quando um Chevrolet Chevette preto
veio me buscar, e meu pai ainda não tinha retornado. Então, como se eu
realmente não tivesse significado algum naquele lar, deixei-o sem olhar
para trás. No fim, não havia mesmo nada que eu estivesse deixando para
trás. Chegar a essa conclusão quando finalizei minhas malas, sentindo que
já havia guardado tudo que precisava, doeu ainda mais do que saber que
minha vida poderia tomar um rumo completamente diferente do que o atual,
e não potencialmente para a melhor.
Honestamente, por uma fração de segundo, eu cogitei fugir, porque
estava claro que o internato que me esperava usaria medidas no mínimo
duvidosas para doutrinar. No entanto, eu não tinha lugar nenhum para o
qual eu pudesse ir, não senti como se houvesse nada me esperando lá fora.
O sentimento de não pertencimento triunfou mais forte do que nunca em
meu peito. Portanto, eu simplesmente aceitei o destino ao qual meu pai
tinha me imposto. Arrumei minhas coisas em movimentos automáticos, sem
me deixar continuar lamentando como fizera na mesa de jantar. Aquilo não
seria de muita ajuda, afinal. Voltei a me submeter ao estado dormente de
sempre.
Desliguei-me da realidade também por todo o caminho até o que seria
minha mais nova casa. O motorista não dificultou isso por um segundo
sequer. Eu nem mesmo sabia seu nome, ele apenas se apresentou como
funcionário da instituição. O silêncio dentro daquele automóvel abafado era
quase ensurdecedor, e eu tentei me sentir grata por isso.
Não soube dizer quanto tempo levamos até chegarmos ao nosso
destino, mas já estava de noite quando, em uma rodovia aparentemente
afastada de quaisquer cidades, pegamos um desvio para uma estrada de
terra assustadoramente íngreme e escura, cercada por milhares de árvores
grandes de carvalho, ainda características do estado da Georgia, que nos
levaria à instituição.
O casarão que nos recebeu, ao menos um quilômetro dos grandes
portões que anunciavam o início do território da instituição, era muito
maior do que a foto no panfleto dera a entender. E, sob o breu da noite,
muito, muito mais assustador também, ao ponto de me dar calafrios na
espinha quando estacionamos o carro.
Hesitei alguns longos segundos para sair do automóvel após o
motorista se colocar de pé. Quando meus pés encontraram o gramado
minuciosamente bem aparado da região frontal da instituição e meu corpo
se deparou com a ventania fria que me empurrava em direção contrária ao
lugar, como se implorasse para que eu saísse correndo dali o mais rápido
possível, desejei ter me demorado um pouco mais no carro.
Prendendo a respiração quase que involuntariamente, avaliei de modo
mais preciso o que me cercava. As estruturas em modelos ainda mais
antigos que a casa de meus pais que lembravam a arquitetura gótica, as
paredes exteriores feitas de pedras desordenadas e claras, as largas e
torneadas pilastras, longas torres nas extremidades, as grades ainda mais
maciças do que eu imaginara que cercavam as extensas e inúmeras janelas
de vitrais coloridos, e, principalmente, a porta de pelo menos dois metros de
largura que parecia servir muito mais para impedir a saída do que para
permiti-la.
Arrepios consecutivos se alastravam por toda minha extensão de pele
de modo cada vez mais violento, lembrando-me de que eu ainda não estava
exteriormente tão morta quanto por dentro.
O motorista parou ao meu lado com minha bagagem no exato
momento em que a larga porta se abriu ruidosamente, dando lugar a uma
mulher esguia de meia idade vestida com um longo vestido preto e cabelos
pretos presos em um coque dolorosamente apertado no topo da cabeça.
Ela me analisou de cima a baixo sem pudor algum enquanto eu
permanecia imóvel, vítima de um olhar quase mortal. Foi apenas segundos
mais tarde que um sorriso tomou conta de seus lábios, um sorriso que era
tudo, menos reconfortante. Tive que abafar o ímpeto mais forte do que
nunca de seguir a direção a qual os ventos ainda me empurravam com toda
agilidade possível.
Era mais tarde do que nunca para me lamentar, no fim.
— Boa noite, Katrina Sherman. Sou a inspetora Rosalie Foy, e gostaria
de te dar as maravilhosas boas-vindas à New Order Institute.
Rosa Híbrida de Chá (Rosaceae)
Essa espécie é resultado de um processo de cruzamento
entre demais rosas, conhecida pela beleza, delicadeza,
facilidade de ser cuidada e grande durabilidade.

Encarei meu reflexo no espelho, inspecionando a mim mesma de


modo minucioso e lento. Um uniforme havia me sido entregue logo pela
manhã, e o vesti após meu banho. Tratava-se de uma saia azul marinho que
ia até os joelhos, uma camisa de botões branca com um brasão da
instituição representado por um falcão-peregrino na região esquerda do
peito, e um blazer combinando com a saia. Meias brancas que também iam
até os joelhos pareciam fazer parte do código de vestimenta, assim como
sapatos pretos de sola reta.
Elevando meu olhar, deparei-me com olheiras escuras sobre olhos de
orbes quase pretos, sem vida. Minha pele em um tom de dourado estava
seca, sem graça, e meus lábios sequer tinham muita cor. Meus cabelos
castanhos escuros, sempre rebeldes em ondas caóticas, estavam presos em
um coque baixo, com alguns fios escapando do penteado de forma irritante.
Fechei a porta do armário que continha o pequeno espelho enfim, não
querendo mais encarar a figura esguia e não tão atrativa que eu tinha me
tornado. Não gostava particularmente dos traços que formavam meu fino
rosto. Tampouco gostava de meu corpo, que continha pernas e braços
desproporcionalmente longos, tornando-me tão esquisita exteriormente
quanto interiormente.
Transferindo a atenção ao meu redor, avaliei mais uma vez o quarto
em que a inspetora Foy me colocara. Se tratava de um cômodo de poucos
metros quadrados com tacos no chão e paredes dolorosamente brancas.
Havia um simples armário logo ao lado da porta de entrada, uma
escrivaninha abaixo da larga janela e duas camas em lados opostos. Eu não
tinha conhecido minha colega de quarto ainda. Quando eu chegara na noite
anterior após uma longa tour por todo o instituto, a garota já estava
dormindo. Só pude ver seu cabelo loiro escuro espalhado travesseiro.
Quando eu acordei com batidas incessantes em minha porta de uma
funcionária que viera entregar meu uniforme, a menina já não estava aqui.
Sua cama fora deixada perfeitamente arrumada.
A inspetora, com uma voz monótona e quase entediada no fim da noite
— eu duvidava muito de que ela poderia aparentar ter muito mais emoção
em qualquer outro momento, na verdade — me informara que as aulas
começavam às oito e iam até às três da tarde, com intervalo de uma hora
para almoço. O restante das tardes seria destinado a atividades
extracurriculares de escolha própria e “sessões voltadas para reflexão
interior”, definição usada pela própria inspetora. Eu meio que estava com
um pouco de medo do que aquelas palavras bonitas escondiam, o que de
fato queriam dizer.
Também me alertou sobre as regras. Havia um toque de recolher pela
noite, e as portas de entrada seriam trancadas nessa hora. Quem fosse pego
perambulando pelo instituto fora de hora seria severamente punido. Havia
inspeções surpresas em noites aleatórias, para verificar se todos estavam em
seus quartos, e também poderia haver inspeções em outros horários em
busca de pertences que supostamente arriscavam o sucesso dos belos planos
que tinham para nós. Faltas às aulas só seriam permitidas sob atestados
fornecidos por enfermeiros do local, e apenas podíamos entrar no terceiro
andar quando chamados, havendo uma singela burocracia para passar pela
larga porta no fim da escadaria.
Ainda era difícil acreditar que eu estava ali, a centenas de quilômetros
de casa, em um lugar que eu ainda não conhecia direito. Principalmente, era
torturante não saber o que eu poderia esperar daquele instituto, do seu
diretor que não tinha um currículo certo para o cargo e também dos alunos
que supostamente eram diferentes dos demais. Estava com medo, e, não tão
diferentemente de todos os dias que vieram antes daquele, eu cogitei em
não sair da cama. Mais do que nunca, não me sentia preparada para
enfrentar tudo que me esperava. Saber, entretanto, que, se antes eu não tinha
escapatórias, agora não poderia ser menos diferente, me obrigou a fingir ser
forte.
Olhei para o relógio acima da porta, que marcava 07:45. Decidi pegar
minha mochila e sair do quarto de uma vez, porque ainda não tinha certeza
de onde seria minha sala. Inspirei fundo antes de abrir a porta, sentindo-me
como um cordeiro indo para o abate.
A ala feminina ficava do lado direito do segundo andar, e a masculina
no esquerdo; as salas de aula ocupavam todo o primeiro andar, e o último
continha as salas voltadas para tratamentos especiais dos alunos. Termo
também usado pela inspetora.
No corredor da ala feminina, garotas da minha faixa de idade também
tomavam o mesmo rumo que o meu, nitidamente não tão ansiosas para
encontrarem seus destinos. Suas feições transpareciam nada mais que
desinteresse cru. Isso me deixou um pouco mais nervosa. Minhas mãos, que
não pareciam ter parado de tremer nem mesmo durante meu sono
turbulento, cheio de pesadelos com aquele casarão no meio do nada,
suavam mais do que nunca. Desci as escadas ocas de madeira em passos
automáticos, assimilando cada canto agora melhor iluminado pela luz do
sol. O interior do instituto não parecia tão menos intimidador sob aquela luz
do que parecia na noite anterior.
Um fluxo um pouco maior de alunos se encontrava no corredor
principal do primeiro andar, em busca de suas respectivas salas de aula.
Pelo que a inspetora informara, o número de alunos não era tão grande. O
instituto, como eu já suspeitava, era voltado para a grande elite, afinal.
Retirei o papel com a minha grade já perfeitamente organizada, que
também me fora entregue naquela manhã, e vi que a sala de Cálculo, minha
primeira matéria naquela manhã, ficava na sala 97, e tentei ver um padrão
naqueles corredores para localizar a direção da sala, mas o lugar mais
parecia um labirinto. Por um momento, foi inevitável me perguntar se o
mapeamento confuso não era intencional. Fiquei parada no corredor
principal, que dava para a grande porta de entrada, por um bom tempo até
decidir em qual ramificação viraria.
Quando enfim localizei a sala, no quinto corredor em que tinha virado,
os sinos já estavam tocando, marcando o início das aulas. Passei pela porta
juntamente com o barulho estridente, esperando que eu pudesse passar
despercebida. Não foi o caso.
O professor à frente da sala parecia o único alheio de minha presença
enquanto começava as anotações do dia no quadro. Os quase quinze alunos,
entretanto, já tinham olhos ávidos em mim, como se já tivessem decorado
cada rosto pertencente àquela instituição e soubessem que nunca haviam me
visto. Senti meu coração palpitar com força no peito por puro nervosismo,
mas, como era boa em fingir e em mascarar os sentimentos mais
vergonhosamente característicos de quem eu era, mantive minhas feições
neutras ao caminhar com passos por pouco vacilantes até o fundo da sala e
me sentar em uma das carteiras vazias encostada à parede.
Pensei que todos esqueceriam de mim estando lá atrás, só que,
contraditoriamente, percebi que um interesse genuíno reluziu com mais
força em muitos pares de olhos dali. Senti-me julgada de diversas formas
diferentes, algumas até invasivas demais. Mesmo com as mãos trêmulas,
inspirei fundo e abri minha mochila com elas. Estava com a cabeça baixa
quando escutei o professor nos dar bom dia alguns minutos mais tarde e
também quando senti sua atenção seguir as demais até mim. Forcei-me a
encará-lo.
— Ah, bem, você deve ser a nova aluna sobre a qual a inspetora Foy
nos informou na semana passada — o homem calvo de cerca de quarenta
anos disse, limpando sua mão já suja de giz na outra. Achei aquela
informação estranha. Se a entrada de alguém novo deveria ser informada,
então isso ocorria com muita pouca frequência. — Bem, o que acha de se
levantar e se apresentar pessoalmente para o restante da sala, querida?
Honestamente, eu achava isso uma merda. Mas não achava que
poderia dizer aquilo em voz alta.
Além das minhas mãos, agora também sentia minhas pernas tremerem,
porém me forcei a me colocar de pé mesmo assim. Encarei os rostos diante
de mim com mais precisão pela primeira vez, e cheguei à conclusão de que
não sentia que nenhum era exatamente amigável. Eu suspeitava que o meu
também não era, no entanto.
Enfim abri a boca para dizer meu nome, mas fui interrompida pelo
abrir de porta estrondoso na frente da sala, que deu lugar a dois garotos de
alta estatura e ombros largos demais para nossa idade. Repentinamente, a
tensão que se fez naquela sala foi quase palpável, e não me senti mais como
o centro das atenções. Isso não foi exatamente como um alívio, na verdade,
porque a energia que tomou a sala com a entrada daqueles dois foi quase…
tenebrosa.
Por algum motivo, continuei em pé, e os garotos lançaram sua atenção
a mim de imediato. Sem sequer pedir licença ou desculpas pelo pequeno
atraso ao professor, que os encarava assustadoramente em silêncio, eles
caminharam até o final da sala. Até mim.
Com os rostos sob meu campo de visão por completo, não demorei
mais que uma fração de segundo para chegar à conclusão de que eles eram
igualmente bonitos. Mas não de um modo bom. Era intimidador.
Um deles, que tinha o cabelo castanho e era um pouco mais baixo,
esboçou um sorrisinho de divertimento, mas o outro, que tinha um cabelo
loiro, permaneceu friamente sério, avaliando-me. O moreno logo se sentou
no final da sala, porém o loiro parou ao meu lado, colocando seu rosto a
centímetros de distância do meu.
Foi inevitável encará-lo, principalmente quando ele me cheirou, como
se precisasse de mais de um sentido para estudar quem eu era. Senti uma
repentina repulsa naquele momento, tão intensa ao ponto de ser nauseante, e
também fiquei assustada por ninguém naquela sala falar absolutamente
nada enquanto aquilo acontecia.
Quando seus olhos enfim encontraram os meus, o loiro sorriu pela
primeira vez. Era quase como se ele conseguisse me ler através do olhar.
Odiei aquela sensação que ele me causou. Foi só então que ele se deixou
dizer, provavelmente aos amigos:
— Temos carne nova.
— Não brinque muito com ela, Brad. Ele vai querer ser o primeiro —
o moreno respondeu simplesmente, soltando um riso irritante.
Naquele instante, tive que engolir em seco, perguntando-me de quem
diabos ele estava falando.
O loiro, entretanto, ignorou o pequeno aviso.
— Bem, parece-me que interrompemos sua apresentação. Qual é o seu
nome, menina?
Apenas permaneci sustentando seu olhar. Ainda estava com medo,
porém havia vivido uma vida inteira enfrentando aquele pequeno temor ao
ouvir inúmeras perguntas de quem eu não queria dar satisfações, não no
fundo. Meu pai era o responsável por isso.
O loiro pareceu ficar um pouco impaciente repentinamente.
— Ei, eu te fiz uma pergunta.
Sim, eu tinha ouvido. Babaca.
Uma pontada de adrenalina invadiu meu organismo, e me senti mais
corajosa, o que não era um ponto muito positivo. Pelo modo que todos se
comportavam, até mesmo a única figura de suposta autoridade da sala, era
óbvio que aqueles dois garotos exerciam alguma influência sobre o
ambiente, e seria mais inteligente também abaixar a cabeça ali.
Entretanto… eu considerava que tinha passado muito, muito tempo morta
dentro de mim mesma, e não sabia muito bem como lidar com aquela
adrenalina que há muito eu não sentia.
E, embora um certo pavor diante do desconhecido andasse vigorando
continuamente em meu interior, eu sabia que ele era mais instintivo, não
muito racional. Porque, se eu pensasse muito sobre a situação, eu saberia
que, no fundo, não me importava muito as consequências que viriam ao
meu encontro naquele local. Eu já me sentia no fundo do poço de minha
vida.
— Ah, é surda, por acaso? Ou só muda? — Ele fez menção em pegar
uma mecha solta de meu coque rebelde em minha testa, provavelmente
pensando que eu não teria nenhuma reação. Foi um reflexo, mas segurei seu
pulso antes que ele encostasse em mim.
Vi por sua expressão que ele não esperava isso. Eu também não.
Por isso eu soltei, e tudo que fiz em seguida foi sussurrar:
— Nenhum dos dois.
Não lhe lancei um último olhar ao me sentar, e ignorei com mais
afinco toda a atenção voltada a mim, até mesmo os olhos agora mais
arregalados. Ainda assim, percebi que o loiro demorou alguns bons
segundos em pé ao meu lado antes de soltar um riso que em nada implicava
divertimento e dizer de forma que somente eu pudesse escutá-lo:
— Tudo bem, deixaremos as apresentações para mais tarde e em
particular. Mas, por enquanto, permita-me recepcioná-la apropriadamente:
que você seja muito bem-vinda ao nosso adorado Instituto. E também lhe
desejo boa sorte ao tentar sobreviver a ele. Acho que vai precisar.
Eu fechei minhas mãos em punho, sentindo as unhas rasgarem
intencionalmente minha carne, na intenção de focar na dor e não naquelas
palavras quase perturbadoras.
Quando o garoto foi para trás e se sentou longe de meu campo de
visão, vi o professor engolir em seco e se virar para a lousa, continuando
com suas anotações e me deixando em paz. Muitos alunos também se
viraram para frente, porém a garota da minha frente, que usava óculos de
armações grossas e um cabelo trançado em uma coroa demorou mais com a
atenção em mim. Uma espécie de preocupação transbordava de sua
expressão. Quis dizer que aquilo era desnecessário, mas ela se virou antes
que eu falasse qualquer coisa.
Um par de minutos mais tarde, entretanto, um papel amassado foi
colocado discretamente em minha mesa por ela. Imaginei que ela não
quisesse que os três garotos o vissem, então o recolhi com cuidado e o abri
perto da parede ao meu lado.
Eles irão atrás de você. Fique alerta.
Tudo que eu fiz foi amassar o papel e jogá-lo no chão.
Que viessem, então. Eu já não tinha mesmo tanto a perder, e em breve
me habituaria com aquele medo infundado que ainda dava náuseas no fundo
de meu estômago.
Minha grade de matérias obrigatórias estava de fato pronta, mas eu
ainda deveria escolher minhas atividades extracurriculares ainda naquela
tarde. Para isso, eu estava sentada em uma sala de espera do terceiro andar
após ter que dar meus dados e fornecer o nome do responsável pelo
chamado na entrada, esperando para ser conduzida para a secretária
responsável pelas matérias.
Eu estava inquieta, sentindo-me genuinamente desconfortável naquele
ambiente que cheirava a álcool e produtos de limpeza. O local também era
escuro, e a maior parte dos funcionários dali trajava roupas completamente
brancas e tinham expressões ainda mais frias que os alunos. Era mesmo
assustador.
Conseguia escutar perfeitamente o ponteiro do relógio à minha frente,
e era como se eu contasse os segundos que era obrigada a permanecer ali.
Tique-taque, tique-taque, tique-taque.
Já fazia 920 segundos que eu escutava aquele ruído penetrante e
desorientador. Parecia mais como uma eternidade.
Tique-taque, tique-taque, tique-taque.
Duas mulheres de cerca de trinta anos, estranhamente vestindo jalecos,
passaram correndo no corredor diante de mim, sumindo pela porta à sua
frente e me deixando envolta de minha bolha tenebrosa como se nunca
tivessem existido.
Tique-taque, tique-taque, tique-taque.
Seguindo o caminho das outras duas mulheres, um homem passou
com uma pressa igualitária, só que com um carrinho metálico que carregava
pequenos frascos de vidro que não pude identificar antes que ele também
sumisse pela porta.
Tique-taque, tique-taque, tique-taque.
Um grito estridente chegou aos meus ouvidos. Na verdade, um berro,
que parecia carregado de dor e angústia. Pela primeira vez em quase vinte
minutos, o barulho do relógio foi abafado, só que isso, de forma alguma, me
causou algo similar à alívio. Muito pelo contrário, eu me encolhi um pouco
involuntariamente, perguntando-me que diabos era aquele lugar para onde
meu pai tinha me enviado.
As paredes ao meu redor pareceram se fechar em minha direção, e o
lugar repentinamente se tornou sufocante demais para mim. Foi inevitável
me colocar de pé com a maior agilidade que me era possível com o corpo
trêmulo e percorrer o caminho pelo qual tinha vindo. Eu senti meu coração
palpitar em meu ouvido por todo o tempo.
Também encontrei alguns obstáculos para dar o fora daquele maldito
andar, mas consegui sair após dizer que tinham me mandado voltar mais
tarde. Desci as escadas com passos vacilantes até chegar ao primeiro andar
e me dirigir até as portas do fundo que tinham me sido mostradas no tour da
noite anterior. Tive que passar por uma outra inspeção pelo homem
uniformizado dali para conseguir sair. Queria ter a certeza de que eu não
tinha nenhum suplemento que me possibilitasse me manter viva na floresta
caso fugisse. Também tive que dar meu nome, pouco antes de receber o
aviso de que eu deveria aparecer em menos de quatro horas.
Eu estava mesmo em uma prisão.
Abrindo enfim as portas de uma só vez, senti o ar puro inflar meus
pulmões de modo reconfortante. Ainda não me sentia livre de forma
alguma, mas agora estava em uma gaiola de maiores proporções que a
anterior, e isso já servia de alguma coisa. Inspirei fundo e expirei o ar pela
boca diversas vezes consecutivas até que o ritmo de meu coração se
desacelerasse um pouco.
O jardim, que era composto por uma quadra de futebol, outra
improvisada de basquete, um espaço de lazer e uma estufa, estava
relativamente vazio. Estávamos no horário do almoço, então a maior parte
dos alunos se encontrava no refeitório, felizmente. Era como se eu me
encontrasse envolta de gente, asfixiada o tempo inteiro.
Após longos minutos, decidi ir até a estufa, tendo esperança de que ela
me desse algum consolo como o jardim de minha casa costumava o fazer
em raros momentos. Gostaria que tivessem me deixado com minhas mudas,
porém minhas malas foram examinadas pela própria inspetora, que dissera
que eu não poderia fazer meus próprios cultivos. Ela me deixara apenas
com dois pequenos vasos de cactos que agora estavam em cima de minha
escrivaninha.
A estufa era extensa, revestida por placas de vidro perfeitamente
limpas. Felizmente, suas portas estavam abertas, e o cheiro de terra
molhada invadiu minhas narinas no segundo em que passei por elas. Só
então senti que pude respirar com mais calma.
Havia diversas plantações ali. Uma área destinada apenas a flores,
outra a sementes e grãos e mais uma a pequenos frutos. Era tudo organizado
e… lindo. A única parte verdadeiramente bonita daquele local perturbador.
Vaguei pelo primeiro corredor, vendo que o pequeno pomar tinha sido
adubado recentemente e que havia aspersores de gramado estrategicamente
espalhados pelo local.
Lugares como aquele sempre haviam sido um refúgio para mim.
Talvez desde pequena, eu já me sentisse um pouco… desprovida de vida,
talvez. Não sabia ao certo como explicar o vazio que vigorava dentro de
mim, se havia se formado ao longo dos anos como uma bola de neve ou se
eu já nascera com ele. Mas eu sabia que estar envolta por cultivos,
quaisquer que fossem eles, me fazia sentir mais a vida. Gostava de como
cada plantio tinha suas particularidades. Como as angiospermas nos
ofereciam alimento após florescerem da forma mais bonita possível, a
forma que as gimnospermas se adaptavam às condições particulares mais
diversas como o frio e ainda cresciam fortemente ou como as briófitas se
desenvolviam, cresciam à sua maneira mesmo sendo avasculares, tão
diferentes das demais.
— Se eu fosse você, não faria isso. — Uma voz rouca e grave, quase
áspera, me trouxe à realidade quando estava prestes a pegar uma planta com
folhas largas e coloridas, uma das únicas que eu não conhecia em meio ao
cultivo dali.
Virando-me em direção à voz, deparei-me com um garoto… bem, na
verdade, um homem sentado em um terreiro no fim da estufa, a poucos
metros de distância. Embora não parecesse ter menos que vinte anos, ele
trajava o uniforme do instituto. Sua calça azul marinho se encontrava em
grande parte suja de terra, e sua camisa estava desabotoada até o peito e
muito amassada. As mangas estavam apertadas em seus braços nitidamente
definidos embaixo do tecido. Seus cabelos lisos, pretos como penas de
corvo, também estavam desgrenhados.
Apesar de ele estar ciente de minha presença e do que eu fazia, a levar
em consideração seu aviso, o moreno não tinha seu olhar sobre mim. Eu
apenas podia ver o perfil de seu rosto, pois ele estava concentrado no
cultivo de rosas híbridas de chá à sua frente. Ele estava tirando seus
espinhos com toda a cautela do mundo. Naquela posição, foi inevitável
notar a tatuagem escura de cobra que escapava da gola de sua camiseta,
estendendo-se na lateral de seu pescoço. A cabeça se encontrava na região
esquerda, a mandíbula estava aberta e com a língua à mostra.
Um arrepio percorreu minha espinha. Era muito intimidadora.
Naquele instante, ele se cortou com um dos espinhos, mas não ligou
nem um pouco, enquanto eu disse quase que instantaneamente:
— Você... quer ajuda?
Ele apenas retorceu o canto de seu lábio que estava à minha vista, não
me respondendo. Diante do silêncio, engoli em seco e me forcei a desviar a
atenção de volta à planta à minha frente e a sussurrar em resposta à sua
advertência:
— Por quê? Por que não devo me aproximar?
— Essa coisinha pode ser chamativa pela beleza, mas esconde um
certo perigo — respondeu, quase entediado. — Ela possui oxalato de cálcio.
Pode causar…
— Irritação e inchaço no corpo — eu completei inevitavelmente.
Conhecia outras plantas com tal propriedade. Voltei minha atenção a ele. —
Se é venenosa, por que a cultivam aqui?
E foi apenas então que ele virou o rosto para mim, e o ar escapou de
meus pulmões por uma fração de segundo.
A primeira coisa que me veio à mente foi que ele tinha uma beleza…
doentia. Eu não soube ao certo porque cheguei à tal conclusão.
Suas feições eram assustadoramente simétricas. Ele tinha um nariz
reto e comprido, maçãs do rosto altas e angulosas, lábios rosados e inchados
e maxilar esculpido. Seu rosto parecia quase ter sido criado pelo mais
talentoso dos pintores. Sua pele era pálida como a névoa, fazendo um
contraste intenso com seu cabelo escuro feito breu, e seus olhos… eles eram
tão azuis que chegavam a ser quase transparentes. Foi impossível deixar de
notar os quatro centímetros de cicatriz de um vermelho claro que se retorcia
sobre a lateral direita de sua testa e sumia pelo seu cabelo.
— Pelo mesmo motivo que eles nos mantêm aqui — respondeu
enquanto inclinava a cabeça lentamente de lado, avaliando-me centímetro
por centímetro sem pressa alguma. Repentinamente, coloquei-me ereta,
sentindo-me vítima como nunca antes de um olhar sagaz e lancinante.
Também me senti totalmente despida por aqueles olhos que não
transpareciam os pensamentos de sua mente. — Estão tratando-a até que
perca essa característica que só é danosa a quem não a conhece —
esclareceu quando enfim voltou a fitar meus olhos após o que pareceu ser
uma eternidade.
Arqueei as sobrancelhas, um pouco confusa com o que ele queria
dizer.
— Não acha que seria muito mais racional que todos aprendessem a
lidar com a flor do que mudar uma das propriedades que a faz ser o que ela
é apenas para não serem superficialmente feridos? — Ele voltou a cortar os
espinhos das rosas à sua frente. — O uso de luvas seria uma decisão muito
mais simples e menos maléfica, por exemplo, do que tentar mudar sua
estrutura genética por hibridização.
— Hum… é, acho que sim — respondi sem pensar muito, sendo
realmente honesta. Aquilo fazia sentido. — Parece que você andou
pensando muito nisso.
Ele soltou um riso nasalado. Não era exatamente um gesto de graça.
— Você vai perceber muito em breve que terá muito tempo aqui
dentro para mergulhar dentro dos próprios pensamentos, infelizmente —
disse, como se soubesse que eu era nova ali. — Eles se certificam disso,
claro — completou após um instante.
— Quem são “eles”? — eu questionei. Ele usava esse termo a todo
momento.
— Quem são eles? — repetiu lentamente, retomando o tédio no tom.
Ele estalou a língua duas vezes, como se eu já devesse saber a resposta. —
São as pessoas que farão de tudo para que nenhuma pessoa que saia deste
instituto seja exatamente a mesma que entrou, pequena aberração.
Pequena aberração
As palavras em sua voz áspera ressoaram de modo indesejado por
cada canto de minha cabeça. Isso me causou arrepios, embora ele não
parecesse tê-las dito de maneira a me provocar, e sim como constatação. Eu
com certeza não era a das mais normais se estava ali, mas também achava
que havia pessoas muito piores do que eu naquele Instituto.
— Meu nome é Katrina — eu disse, ainda assim.
Ele não me respondeu. Sequer tive certeza se ele tinha me escutado.
Suspirei e, mesmo que algo me dissesse para cair fora daquela estufa
de uma vez, eu me aproximei um pouco mais daquele garoto, porque,
mesmo que ele fosse nitidamente vago e gostasse de metáforas, ele era a
única pessoa além da inspetora que conversara comigo de uma maneira em
algum aspecto aberta naquele instituto.
— Então… se você está aqui, não mudou tanto quanto eles gostariam
que tivessem mudado.
— Prefiro ser torturado por me agarrar a quem eu sou do que ser
liberto como alguém que eu mal conheço — esclareceu simplesmente em
uma calma letal enquanto continuava afastar as rosas para retirar seus
espinhos. Percebi que muitos de seus dedos sangravam. Ele não parecia se
importar com isso.
— E quem você é?
Outro riso. Não esbanjou mais divertimento que o primeiro.
— Muitos diriam que não uma boa pessoa.
Embora eu não o conhecesse… eu não duvidei daquilo por um
segundo sequer.
Aquilo deveria ter me repelido de uma vez por todas. No entanto…
continuei ignorando todo meu bom-senso e me sentei na beira do canteiro
em que ele estava, a uns três metros de distância dele.
— E o que você diria?
Ele voltou a me encarar, e, agora que estava mais perto, percebi que
havia algo de tenebroso em seu modo de olhar. Senti que eu respirava ainda
pior do que há quase meia hora, quando estava no terceiro andar. De alguma
maneira… aquele garoto me afetava mais do que qualquer outra coisa. Eu
só não sabia como não tinha saído correndo como antes. Algo nele também
me magnetizava, me mantinha ali.
— Honestamente? — ele sussurrou, porém não esperou por uma
resposta. — Eu não discordaria. Mas não acho que isso seja uma
característica em si de minha personalidade, e sim consequência de outras.
— Uma consequência de quê? — forcei-me a perguntar.
— Curiosidade e desejo, provavelmente.
Engoli em seco.
— Curiosidade e desejo pelo que, exatamente?
E, pela primeira vez, ele esboçou um gesto sincero de divertimento
cru. Dentes brancos e perfeitamente alinhados se fizeram presentes em meu
campo de visão, dando lugar a um sorriso tão doentio quanto sua beleza.
— De tudo que o mundo possa me oferecer e que pessoas normais
tenham medo de explorar.
Naquele mesmo momento, senti meu coração parar no peito por uma
fração de segundo, e não apenas por suas palavras em um tom quase
sombrio, mas porque senti algo começar a rastejar na mão que mantinha
apoiada na terra do canteiro.
Quando disparei o olhar em sua direção, uma cobra já tinha tomado
conta de meu pulso. Minha respiração se acelerou enquanto eu arregalava
meus olhos, analisando aquele réptil de mais de um metro de comprimento
de diversas cores de vermelho se enroscando cada vez mais em meu braço.
Não soube o que fazer. Não tive ideia. A adrenalina que
instantaneamente começava a tomar conta de minha corrente sanguínea me
dizia para correr, mas minha racionalidade, embora afetada pelos instintos
mais enraizados em um ser humano, me dizia para ficar imóvel. Uma
náusea devastadora tomou conta de meu estômago conforme eu entrava
naquele dilema enquanto a cobra avançava cada vez mais.
Gastei alguns bons segundos para me lembrar de que não estava
sozinha, de que podia pedir ajuda. Quando lancei a atenção ao garoto à
minha frente, entretanto, percebi que ele voltara à tarefa de cortar os
malditos espinhos. Abri a boca para chamá-lo, para dizer qualquer coisa,
mas apenas um ruído esganiçado escapou de minha garganta.
— Agora chega de falar sobre mim. Me diga, meu bem, o que a trouxe
até aqui? — ele perguntou no segundo em que a cobra chegou ao meu
ombro. Ela agora estava tão perto que eu conseguia ouvir os movimentos
repetidos de sua língua escapando de sua boca. Seus pequenos olhos
capturaram minha atenção por um momento, e pensei que iria vomitar ali
mesmo. — Me fale quem você é, o que fez com que a mandassem até aqui?
A cobra passou para meu outro ombro, elevando sua cabeça um pouco
para me encarar, como se também quisesse ouvir a resposta para aquela
pergunta.
— Bem, suponho que você não seja uma pessoa normal. Nenhum de
nós é. — Ele riu. — Mas… o que a torna diferente dos demais? Qual a sua
particularidade? O que acham que você deveria mudar do que a faz ser
quem é?
E, em um movimento de reflexo, voltei a fitá-lo, e só então percebi
que ele estava mais perto e me observava com toda a atenção do mundo.
Seu interesse era quase… lúgubre.
Por que ele não me ajudava? Por que ele não fazia nada para tirar
aquele maldito bicho de mim?
Perguntas incessantes e ainda mais apavorantes começavam a ressoar
por todo meu ser.
— O que você vê que os outros não veem, pequena aberração?
Seu sorriso se alargou, e só então cheguei à conclusão de que ele
estava se divertindo com a situação. A cobra, naquela altura, começou a dar
a volta por trás de minha nuca, se enroscando cada vez mais em mim. Meu
corpo se arrepiava por completo e incessantemente diante do rastejar
daquele réptil.
— Desculpe-me, deixe-me corrigir: Katrina — ele sibilou meu nome,
saboreando-o na boca. — É um nome bonito. Por quê escondê-lo?
O quê?
— Eles não estão muito acostumados a serem contrariados, sabe? Nem
nas mínimas coisas. Não foi muito inteligente de sua parte desafiá-los, não
quando você está em um lugar totalmente desconhecido.
De alguma maneira, enfim consegui escapar do silêncio forçado ao
qual meu próprio organismo tinha me submetido:
— Eu não desafiei ninguém. De quem você está falando agora? — As
palavras escaparam em um tom quase inaudível, de forma confusa.
— Das pessoas mais perto de amigos que eu poderia ter neste
sanatório.
A cobra começou a forçar o aperto à minha volta, como se tivesse
alguma intenção de me sufocar, e nada mais do que ele falava me importou.
Tudo que eu fiz foi disparar:
— Tira isso de mim, faz alguma coisa, merda! Ela está me
machucando!
— Está? — ele perguntou, sem pressa alguma, apesar da situação em
que eu me encontrava. — Então grite.
Encarei-o. Ele agora me avaliava com uma curiosidade letal, sem mais
sorrisos ou divertimento nos olhos. Ele realmente esperava que eu gritasse.
Eu cheguei a abrir a boca. Eu queria pedir por ajuda, precisava que
alguém me tirasse daquela situação. Mas não consegui. Por algum motivo,
não fui capaz. Mesmo quando o garoto disse algo que me foi ininteligível,
uma palavra que provavelmente foi o que fez com que a cobra me mordesse
no pescoço.
Dois dentes afiados perfuraram minha pele de uma só vez, causando
uma dor dilacerante na região. Tudo que pude fazer foi fechar os olhos
bruscamente, ainda sentindo uma náusea excruciante. Subitamente, um
pensamento tomou conta de minha mente.
Estava tudo acabado.
Eu não deveria lutar, um pouco que fosse? Mesmo tendo essa certeza,
não deveria brigar para ter apenas um pouco mais? Por que eu
simplesmente… não conseguia querer mais?
Antes que eu obtivesse quaisquer respostas para aquelas perguntas,
minha audição afetada identificou uma outra palavra desconhecida em um
tom rouco já mais familiar do que eu gostaria. De repente, eu já não sentia
mais os dentes da cobra dentro de mim, e, em poucos segundos, tampouco
sentia seu rastejar.
Eu ainda não respirava quando abri os olhos.
Observei o garoto agachado ao meu lado, segurando uma caixa onde a
cobra entrava.
— Agora você sabe que pode lidar com o medo e ameaças. E também
que é resistente à dor — o garoto sussurrou para mim, embora estivesse
prestando atenção na cobra. — É apenas uma pena que sua falta de reação
não foi causada por coragem, e sim por... indiferença.
Que merda era aquela?
Levei minha mão ao pescoço em um movimento rápido, e meus dedos
encontraram o líquido pegajoso que escapava da região. Identifiquei,
entretanto, que eu não sentia queimação alguma, apenas uma dor crua. A
cobra não era peçonhenta?
O garoto se levantou quando o réptil se acomodou por completo
dentro da caixa, e eu me levantei junto dele quando tive a certeza de que
não morreria envenenada. A diferença de nossas alturas foi discrepante. Eu
tinha pouco mais de um e sessenta, enquanto ele devia ter mais de um e
noventa. Sangue escorria por baixo de minha camisa, mas não me importei
com aquilo por um segundo sequer. Raiva dominava tudo que eu era
naquele momento, substituindo por completo o medo indescritível que senti
nos últimos momentos. Não me lembrava da última vez que tinha sentindo
um ódio como aquele, ao ponto de me fazer reconhecer que estava mais
viva do que nunca.
— Do que diabos você está falando, seu psicopata do caralho? Que
porra foi essa?
Sua resposta foi segurar a caixa com a mão esquerda e retirar um lenço
do bolso de sua calça com a direita antes de pressioná-lo contra a ferida
deixada por sua cobra. Foi inevitável notar que ele observou com uma
atenção também doentia o sangue que escorria de meu pescoço e sumia pela
camisa branca na região do peito antes de olhar em meus olhos. Um de seus
dedos dolorosamente áspero arranhou minha pele em chamas, o que fez
com que eu mesma segurasse o lenço em um impulso, não querendo sentir a
sensação estranha que seu toque. Acontece que, tudo que eu fiz foi colocar
minha mão sobre a sua, mantendo-a ali. Sua pele era fria como gelo,
fazendo com que a minha se arrepiasse.
Foi apenas naquele momento que ele olhou bem no fundo de meus
olhos, avaliando-me com mais veemência do que qualquer anterior. Só
então percebi que ele estava tão perto ao ponto de que eu pudesse sentir sua
respiração perfeitamente controlada acariciar minha bochecha.
— Foi mesmo um prazer conhecê-la. — Ele enfim retirou a mão
debaixo da minha sem pressa alguma, transferindo-a para acariciar sua
cobra que deixara uma dor permanente em meu pescoço. — Tenho certeza
de que Lilith diria o mesmo se pudesse. Nos vemos em breve. Ah, e claro,
não posso me esquecer do mais importante: te desejo as mais atenciosas
boas-vindas ao Inferno, pequena aberração.
E foi assim que aquele garoto cujo nome eu sequer conhecia me
deixou. Como se não tivesse acabado de me fazer pensar que estive à beira
da morte e entender que havia mesmo algo muito errado comigo por ainda
não a temer tanto quanto deveria.
Espada-De-São-Jorge (Asparagaceae)
Comumente conhecida como amuleto contra energias
negativas e representa a prosperidade. Resistente e se
adapta à meia-sombra, sem incidência direta da luz do
sol.

Eu me sentia presa o tempo todo. Claro que eu já estava habituada


com a sensação de estar confinada dentro de minha própria mente, mas
agora… era como se minha alma também estivesse encoleirada. A rotina do
instituto começava a pesar, e eu não tinha refúgio algum naquele local.
Sentia-me julgada o tempo todo pelos monitores espalhados por cada canto,
perdida no meio daqueles jovens e adolescentes mais insatisfeitos do que
nunca e sufocada por todas as portas que eram trancadas à noite.
Na tarde do meu quarto dia no que realmente mais parecia um instituto
psiquiátrico do que educacional, eu decidi não ir para meu quarto direto
após a conclusão das minhas atividades extracurriculares — jardinagem e
desenho —, porque não encontrava muito conforto nele. Não era um lugar
especialmente aconchegante, e a falta de vida e personalidade dele me
deixava mais autoconsciente do que o normal de meu interior, além do que,
eu ainda não tinha me encontrado com minha colega de quarto e
permanecia sozinha o tempo todo. Ela saía sempre antes que eu acordasse e,
quando chegava, eu já estava dormindo. Eu acordava de vez em quando
com o bater da porta, mas estava sempre tão exausta que caía rápido no
sono.
Portanto, eu vagava sem rumo pelo instituto, que era grande demais
para uma curta exploração. Eu estava no segundo andar, em uma região não
pertencente aos dormitórios. Havia largos corredores e salas todas fechadas.
Alguns alunos se encontravam espalhados pelo espaço, uns solitários e
outros em grupos de cochichos que não me pareciam significar boa coisa.
Cheguei a encontrar dois garotos que falavam sozinhos, em alto e bom som.
Passava reto por todos.
Isso, contudo, até eu me deparar com um canto mais iluminado do
lugar. À direita do corredor, havia uma pequena região de alguns bons seis
metros quadrados com uma extensa janela à sua frente e um banco embaixo
dela. Embora ela também contivesse grades, como todas as outras, seu
vidro era apenas temperado, deixando que a luz do sol entrasse de forma
mais absoluta. Eu gostei do escuro durante minha vida toda, na verdade,
mas só fui apreciar a luz quando fui realmente privada dela por forças mais
externas, então caminhei até lá sem pensar muito.
Parei em frente à janela, avaliando o verde intenso que se estendia
além do instituto. Dali, eu podia ver perfeitamente a estufa — que não
visitava desde o episódio quase traumatizante —, e também as milhares de
árvores altas que compunham a densa floresta ao redor.
Era a única parte bonita dali.
— Parece que eles foram mesmo atrás de você.
Uma voz me tirou de meus devaneios, fazendo com que eu pulasse de
susto. Imediatamente encontrei a responsável por isso. Era uma garota de
cabelos escuros trançados, sentada, ou melhor, encolhida no chão logo ao
meu lado. Estava na penumbra entre o pilar e o vaso de uma espada-de-são-
jorge, e tinha um livro aberto em seu colo. Fitava-me de modo atento com
aqueles olhos grandes e verdes por trás dos óculos.
Levei alguns segundos para perceber que era a mesma garota da minha
turma de Cálculo, que me escrevera um bilhete na primeira aula alertando-
me.
— Ou melhor, ele — corrigiu-se, e eu franzi o cenho, confusa. —
Estou vendo a picada de cobra — esclareceu.
Subitamente levei a mão à lateral do meu pescoço, onde os dois
pequenos furos cicatrizavam.
— Sinto muito por isso, tentei alertá-la para tomar cuidado. Mas não é
como se você tivesse realmente alguma chance contra Hayden.
— Hayden? — O nome ressoou de minha boca inevitavelmente. Então
aquele era o nome dele.
— Hayden... Desculpe, eu não sei o sobrenome dele. Ninguém sabe,
acho. Muitos apenas o denominam como o líder da matilha.
Suspirando, sentei-me no banco em frente à janela, ainda prestando
atenção na menina.
— Isso supostamente quer dizer que muitos o temem?
— É exatamente o que isso quer dizer. — Ela assentiu, séria. — As
pessoas daqui são praticamente divididas em duas classes. Há os que foram
enviados para cá para aprenderem a seguir regras, e os que poderiam de fato
ser considerado loucos e foram enviados para serem curados. Hayden e seus
amiguinhos poderiam se encaixar na última. Eles meio que gostam de
extrapolar limites que alguém mais ajuizado sequer cogitaria serem
existentes, se é que consegue me entender. Eles se divertem em brincar com
pessoas. Suponho que esse seja esse o maior motivo pelo qual seus pais os
enviaram para cá.
Arqueei as sobrancelhas.
— E por que seus pais te enviaram para cá?
Ela soltou um riso nasalado.
— Não enviaram. Não tenho pais. Estou aqui por mero azar do
destino. Sou órfã, e completamente normal à medida que um ser humano
pode ser. O orfanato onde eu vivia fechou há dois anos, e alguma burocracia
infeliz me fez vir para cá. Mas tudo bem, se quer saber. Aprendo muito
estando aqui. Servirá de algo quando eu ingressar na faculdade de medicina
e me formar em psiquiatria. Claro que estou aprendendo com os erros, e
serei infinitamente uma melhor profissional do que o… — Ela pigarreou
repentinamente, como se se desse conta de que certas coisas não deveriam
ser ditas ali. — E você, por que foi enviada para cá? — perguntou,
mudando de assunto.
— Sei lá. Acho que só não sou tão entusiasmada com a vida como as
outras pessoas. Ou como meu pai gostaria que eu fosse. Não consigo dar o
melhor de mim com as tarefas mais simples, não me sinto tão motivada no
dia a dia, e isso o irrita, principalmente quando eu deveria ter um futuro
promissor. Ele gosta de dizer que há uma anormalidade na química de meu
cérebro.
— Sinto muito por isso.
Dei de ombros apenas.
— Ele disse que o Dr. Cole me faria melhorar.
— E você acreditou?
— Nem um pouco.
Ela riu. Foi um riso sincero.
— Inteligente. Gostei de você — disse simplesmente. — Me chamo
Helen. — A menina se levantou e se sentou logo ao meu lado, estendendo a
mão em um gesto de cumprimento. Apertei-a.
— Katrina.
— Bem, Katrina, acho que você se encaixa nas duas opções.
— Não sou louca.
— Mas está aqui para ser curada.
— Não há como ser curada de uma doença que ninguém sabe
determinar qual é.
Naquele momento, escutamos um barulho interromper a quietude do
instituto, e instintivamente transferimos a atenção à janela. Meia dúzia de
garotos saía da floresta espessa, adentrando no campo bem aparado do
instituto. Todos eles estavam agitados, rindo e gritando.
Não demorei a reconhecer Hayden, que liderava o pequeno grupo. Ele
estava sério, ao contrário dos demais, e carregava um cervo morto sobre
seus ombros. Sangue escorria pela sua regata branca, deixando seus braços
plenamente definidos à vista, e seus cabelos escuros estavam grudados em
suor. Era uma visão atormentadora. Os demais o seguiam, puxando alguns
outros animais mortos e menores.
— O que está acontecendo?
— Eles caçam nossa comida uma vez na semana.
— O quê?
Helen não me respondeu. Era mesmo aquilo que eu tinha escutado.
Aquele cervo provavelmente seria nosso almoço nos próximos dias. Um
arrepio horrível percorreu minha espinha por um momento.
Minha atenção foi transferida para uma outra coisa em poucos
segundos conforme eles avançavam, entretanto. Aqueles garotos… nenhum
deles pareciam adolescentes. Pareciam ser muito mais maduros que isso, na
verdade. Essa percepção logo me fez sussurrar:
— Eles parecem ser mais velhos do que dezoito anos.
— Eles são mesmo.
Franzi o cenho em sua direção.
— Eles não tiveram nota suficiente para se formar?
Helen ficou um pouco mais séria.
— Não exatamente. Nós… hum…. só podemos sair quando o Dr. Cole
nos der a permissão. Uma espécie de alta, na verdade. E nenhum daqueles
garotos convenceu o diretor de que estavam mentalmente saudáveis o
suficiente para serem inseridos em tempo integral na sociedade.
Que merda?
Desviei o olhar para os garotos novamente, e dessa vez encontrei o
olhar de Hayden fixo em mim. De alguma maneira, ele me encontrara
através daquela larga janela de onde eu o encarava. Ele elevou a espingarda
que segurava com a mão direita e apontou para mim, fazendo com que uma
certa adrenalina invadisse meu organismo. Ainda assim, não me movi, e
então o sorriso que se fez presente dentre seus lábios foi tão obscuro quanto
os de meus pesadelos das últimas noites.
Obriguei-me a olhar para Helen novamente, engolindo em seco o
súbito temor que se instalou em minha garganta.
— Então… só podemos nos livrar desse lugar provando estarmos
curados do motivo pelo qual fomos enviados para cá?
— Isso ou morrendo.
Arregalei os olhos.
— Alguém já morreu aqui?
— Ah, bem… Na verdade, isso…
Dois estalares de língua nos chamaram a atenção, e imediatamente nos
viramos para trás. Havia três garotas a poucos metros de distância,
encarando-nos com alguma espécie de… diversão sombria. Eu andava
vendo muito daquilo, aparentemente. O tédio não era o melhor remédio
para pessoas perturbadas.
— Burlando as regras, Helen? — a garota da direita, de cabelo loiro
escuro que ia até o fim das costas, disse, avaliando-a de cima a baixo. Ela
era muito bonita.
— Eu não ia falar nada — Helen murmurou, parecendo na defensiva
de repente. Encarei-a.
— Falar o quê? — balbuciei, franzindo o cenho.
— Você é a novata, não é? — a menina agora falava comigo. — Bem,
já deveria ter aprendido uma das regras principais deste instituto. Fique na
sua e não arranje problemas.
— Você é quem? Uma versão mais nova da inspetora Foy? —
resmunguei, estranhamente.
A menina parou de se divertir ali. Simplesmente semicerrou os olhos
em minha direção, quase irritada, e Helen logo pegou em minha mão.
— Escute, Ashley, já estamos de saída. A Katrina logo vai aprender
como se comportar aqui, não é necessário…
— Você vai. Ela fica — Ashley a cortou, e Helen, embora tivesse
parado de me puxar em frente, ainda não soltou minha mão.
— Ah, vamos lá, ela…
— Cai fora de uma vez, esquisitona — uma das garotas, a ruiva ao
lado de Ashley, disse, e aquilo pareceu tirar um sentimento a mais de mim.
Aquilo, na verdade, me irritou.
— Ei, qual o seu problema?
A menina apenas bufou.
— Uau. Impressionante como gente estranha sempre atrai gente mais
estranha ainda — respondeu após longos segundos, avaliando-me
centímetro por centímetro com uma expressão de repulsa.
— Você acha mesmo que está me ofendendo? — balbuciei, cruzando
os braços. Havia garotas como aquelas na minha escola antiga. Que
gostavam de humilhar para se sentirem mais especiais. Eu já estava
habituada com aquilo, no fim.
Helen me arrastou um pouco para trás pelo cotovelo quando ela se
aproximou um pouco.
— Ah, eu não estava tentando. Mas eu posso fazer isso agora, já que
insiste tanto.
Helen ficou petrificada quando ela me rondou como um urubu na
carniça.
— Você tem um jeitinho estranho de se mover, sabia? Meio
desengonçado ou desequilibrado eu diria. Você sequer é atrativa ao olhar e
não precisei ouvi-la falando mais de duas palavras para entender que
também é sem graça por dentro.
Soltei um suspiro forçado.
— Acho que vai precisar se esforçar mais.
A menina parou à minha frente, a centímetros de distância. Estava se
sentindo provocada.
— Deixe-me ver esse cabelo que você esconde nesse coque todo
desalinhado.
E, antes que eu conseguisse assimilar o movimento, ela soltou meu
cabelo de um modo que machucou um pouco meu couro cabeludo. Senti
quando minhas mechas rebeldes escaparam do lugar de uma só vez.
A menina riu. Assim como Ashley e a outra garota ao seu lado. Senti
minha respiração se alterar, e Helen pareceu se dar conta disso, porque se
colocou um passo à frente:
— Olhem só, imagino que vocês estejam cansadas. Sei que as matérias
avançadas que fazem requerem muito esforço, então por que só não vamos
todas para nossos quartos descansar? Me parece ótimo.
A ruiva foi em sua direção repentinamente, fazendo com que Helen
cambaleasse para trás.
— Acho que eu também estaria te fazendo um favor ao desmanchar
essa sua trança ridícula.
Dessa vez eu já estava preparada para o que ela iria fazer a seguir.
Empurrei a garota antes que ela encostasse em Helen, cujo medo e tensão
eram palpáveis no ar.
— Fica longe — eu avisei, e a ruiva voltou a me fitar.
— Ah, que bonitinha. Parece que finalmente conseguimos te arrancar
uma reação. Acho que quero ver isso de novo.
Ela avançou novamente em Helen, e eu estava pronta para empurrá-la
uma segunda vez caso Ashley não tivesse aparecido do meu lado e
segurado meu cabelo em um puxão doloroso. O riso dela ecoou por toda
minha cabeça.
— Vamos, brigue comigo. Me dê um motivo.
Motivo? Do que ela estava falando?
Um novo puxão em meu cabelo ofuscou todos meus pensamentos
racionais, e em uma reação instintiva, dei-lhe um chute no calcanhar.
Ashley me soltou de imediato, e então fechei o punho e o levei em seu
nariz, que começou a jorrar sangue.
A partir disso foi tudo rápido demais. A menina loira logo me
encontrou e levou ambas mãos até meu rosto. Suas unhas arranharam minha
bochecha direita, fazendo com que uma ardência lancinante tomasse conta
da região subitamente. Distraí-me com a sensação, e só pouco tempo depois
fui perceber que tinha sido conduzida para um cômodo escuro, uma
dispensa. Caí no chão quando a garota me deu um último empurrão.
Apressei-me em me levantar, mas não foi o suficiente. Em uma fração
de segundo, Ashley apareceu na minha frente, e o sangue que manchava
boa parte de seu rosto fez com que uma estranha e rápida sensação de
triunfo me invadisse.
— Seja bem-vinda ao Inferno, novata. Obrigada por fazer com que eu
esteja tendo minha cota de diversão do dia preenchida.
Só então a porta à minha frente foi fechada de modo abrupto. Corri até
ela, mas ela já tinha sido impedida de ser empurrada por algo. Escutei o
misto de risadas me deixar para trás aos poucos, mas mesmo assim
continuei dando murros na porta, embora já estivesse claro que nada
daquilo adiantaria.
Decidi parar quando as juntas de meus dedos estavam tão doloridas
quanto minha bochecha e meu couro cabeludo, então, no breu do cômodo
de não mais de dois metros quadrados, sentei-me no chão congelante, sem
nada para fazer além de assimilar o ódio cru que me avassalava por
completo.
Minha situação era quase cômica se eu a analisasse de fora, na
verdade. Porque, até poucos dias atrás, eu daria muito para me sentir viva.
Mas agora que eu o fazia, era da pior forma possível. Porque, ao invés de eu
sentir o nada, eu experimentava sentimentos mais odiosos e angustiantes, e
não gostava nem um pouco disso. Como meu pai gostaria, estavam
conseguindo obter reações de minha parte ali, mas aquela… simplesmente
não era nenhuma espécie de cura.
Uma parte de mim, bem pequena e indesejada, no entanto… se
perguntou se pelo menos, talvez… não podia ser o começo de uma.
O questionamento não demorou a ser expulso de minha mente, porque
ser esperançosa não era minha principal característica já há algum tempo.
Talvez nunca tivesse sido.
Os minutos se confundiram com horas, e, após gritar por socorro por
algum tempo, acabei caindo no sono. Quando fui acordada pelo abrir de
porta repentino à minha frente, uma luz artificial fraca veio ao meu
encontro. Já havia anoitecido.
— Srta. Katrina, levante-se já.
Mesmo antes que meus olhos se acostumassem com a visão à minha
frente, eu já sabia de quem se tratava. Inspetora Foy. Meu corpo se
enrijeceu, porque eu a temia, mas me coloquei de pé mesmo assim.
— Temos uma política de tolerância zero para violência neste
Instituto, como bem foi esclarecido por mim em sua primeira noite aqui.
Não será permitida nenhuma espécie de desavença neste lugar e nenhum
desrespeito por nossas regras, me ouviu?
— Mas, Srta. Foy, fui eu quem…
— Me poupe de explicações, Srta. Ashley já me elucidou de tudo.
Deveria se envergonhar de seu comportamento e de tê-la obrigado a lhe
trancar aqui. Você fez um estrago horrível no nariz daquela menina, ela só
foi deixar a enfermaria há poucos minutos.
Meus ombros caíram naquele instante.
Me dê um motivo.
Bem, eu realmente tinha lhe dado. Não acreditava em como tinha sido
estúpida.
Assustadoramente, contudo, não me arrependia de ter socado aquele
nariz arrebitado.
— Vá para seu quarto agora, já passa da meia-noite. Irei apurar uma
punição adequada para seu comportamento até amanhã de manhã.
Expirei o ar pesado pela boca, mas dei-lhe as costas. Não iria
continuar tentando me explicar, não tinha a mínima vontade e também iria
perder meu tempo. Que as consequências viessem ao meu encontro.
Não cheguei a dar um segundo passo em direção ao meu quarto,
entretanto, antes que a inspetora acrescentasse:
— E saiba que o Dr. Cole será informado sobre esses acontecimentos,
e ele tomará suas próprias providências.
Revirei os olhos apenas, o maior gesto de indignação que me permiti
ter.
Continuei seguindo em frente pelos corredores relativamente escuros e
sempre vigiados, e já estava em frente ao meu quarto em menos de dez
minutos. Estava ansiosa para encontrar minha cama que, apesar de não tão
macia, era muito melhor que o chão frio no qual tinha caído no sono. Todo
esse desejo súbito, contudo, foi extinto quando abri minha porta, porque
meus olhos de imediato localizaram Ashley sentada na cama do lado
contrário à minha, segurando gelo em seu nariz com uma mão e passando
páginas de uma revista com a outra.
Quando ela enfim levantou o olhar em minha direção, foi só para
dizer:
— Dois a um, vadia.
Dois a um.
Empate pelas feridas. Sua vitória final por meio da inspetora.
Suspirando, ainda parada atônita à batente, eu tive que me segurar para
não a corrigir e admitir que ela estava com dois pontos à minha frente
quando me dei conta da situação que me rondava. Porque eu nunca poderia
imaginar ter uma narcisista psicopata como aquela como colega de quarto.
Rosa de Jericó (Selaginellaceae)
Em ambientes menos propícios, a planta se enrola com
sua própria raiz e permite que o vento a transporte até que
encontre seu habitat mais natural, e apenas então ela se
permite florescer. Há sempre a possibilidade de que ela
volte à vida.

Duas semanas. Por duas semanas eu seria encarregada pela limpeza da


metade do primeiro andar do Instituto após minhas aulas, como se eu já não
estivesse sendo castigada o bastante por estar dividindo um quarto com uma
garota de possíveis complexos narcisistas e dissimulada.
Enquanto eu acabava de limpar a última sala de aula do corredor, já ao
entardecer, eu honestamente tentava tirar algo de bom daquilo. Ao menos
eu não estava tão entediada, afinal, e não tinha tanta disposição para focar
em meus próprios pensamentos quando tinha tanto trabalho físico a fazer.
Uma parte de mim tentava se sentir grata, mas a outra… continuava
indignada, lá no fundo.
O mundo não era justo, eu já sabia disso. Entretanto… a constante
sensação de não ser ouvida me incomodava seriamente. Em minha casa,
meu pai nunca de fato dera ouvidos ao meu estado quase necessitado da
ajuda certa, e ali… bem, minhas perspectivas tampouco importavam. Não
era à toa que eu estava esfregando um pano em um chão imundo enquanto a
garota que de fato iniciara a desavença do dia anterior estava livre por aí.
Coloquei um pouco mais de força no rodo, buscando por alguma
válvula de escape para minha frustração contínua. Não funcionou tanto
quanto eu gostaria, mas pelo menos eu acabei de limpar o cômodo em vinte
minutos. As salas de aula das quais eu fora encarregada da limpeza pela
inspetora Foy logo pela manhã já haviam sido todas visitadas, então segui
para a área fechada da piscina olímpica, que eu havia deixado por último
propositalmente. Eu não seria responsável pela piscina em si, mas sim por
toda a área ao redor, que devia estar imunda e toda cheia de rastros de
corpos molhados que passaram por lá.
Pelo menos, depois dali, eu estaria livre para descansar.
Empurrei o carrinho de limpeza para o extenso local que só tinha
visitado em meu tour com a inspetora, e, após parar para observar com uma
atenção estranhamente excessiva a rosa de jericó que descansava em uma
mesinha no corredor, abri as portas de uma só vez sem esperar por um
segundo sequer encontrar alguém ali. Mais precisamente, a matilha do New
Order. Sem Hayden entre eles.
Prendi a respiração involuntariamente quando os dois garotos que
conheci em meu primeiro dia transferiram os olhares para mim, e continuei
prendendo-a intencionalmente quando eles começaram a sorrir. Por um
momento cogitei em dar o fora dali, mas acabei desistindo da ideia. Eu já
estava me ferrando de mais formas do que poderia achar possível naquele
instituto, então poderia enfrentar o que estava à minha espera. Ao menos foi
do que eu tentei me convencer.
Ignorei aqueles sorrisos repugnantes e continuei empurrando o
carrinho de limpeza, sabendo que aqueles garotos nem deveriam estar ali,
uma vez que o horário de atividades extracurriculares já havia sido
encerrado. E de forma alguma que eles deveriam estar fumando e bebendo
o que bebiam. O moreno estava com as calças enroscadas no joelho e
pernas na água, enquanto o loiro, que me lembrava se chamar Brad, estava
escorado na pilastra por perto.
— Quem diria que a novata seria uma bela rebelde. — Brad foi o
primeiro a romper o silêncio, soltando um riso maléfico. — Já sendo
castigada em sua primeira semana aqui? E ainda exibindo alguns cortes no
rosto?
Contive-me para não revirar os olhos. Apenas peguei o balde de meu
carrinho e o rodo e comecei a limpar.
— Vamos lá, bonitinha, agora que já sabemos que você não é muda,
pode falar um pouco conosco. Mal conhecemos o tom de sua voz.
Continuei concentrada na imundice do chão, porém senti quando Brad
começou a se aproximar.
— Me diga, está se adaptando bem ao seu novo lar? Está se sentindo à
vontade aqui?
Quando não o respondi, ele parou à minha frente, impedindo-me de
continuar passando o pano no lugar. Foi só então que eu o encarei.
— Vocês têm permissão para ficar aqui nesse horário, é? — foi tudo
que resmunguei, sarcasticamente.
Sua resposta foi rir. Assim como a dos outros dois garotos.
— Que fofa. Ainda acha que precisamos da permissão de qualquer um
para fazermos o que acharmos melhor?
— Honestamente? Se vocês fossem tão livres quanto acham que são,
não estariam aqui. Então acho, sim, que vocês devem muitas explicações a
muitas pessoas e que são dependentes diretos de constantes autorizações.
A expressão de Brad não demonstrava mais tanto divertimento.
— Você não considerou a outra opção.
Arqueei as sobrancelhas, e ele se aproximou por um passo, ficando a
centímetros de distância. Dei meu melhor para me manter imóvel.
— Somos nós quem queremos, escolhemos estar aqui, onde temos
tudo e todos ao nosso dispor. Essa é uma pequena sociedade muito
organizada, novata, e, adivinhe só: nós estamos no topo da hierarquia
porque entendemos como viver a vida aqui. Temos onde dormir todas as
noites, fodemos quando queremos e caçamos sempre quando precisamos de
adrenalina nas veias. Somos autossuficientes aqui. Somos nós que fazemos
a direção de servidores, não o contrário.
Franzi o nariz e não hesitei em ser honesta:
— Isso pra mim nada mais é do que uma desculpa covarde para quem
tem medo da vida real.
Só fui me calar quando Brad arrancou de uma só vez o rodo de minha
mão, assustando-me de súbito pelo movimento brusco. Ele agarrou meu
braço, o que fez com que meu coração começasse a palpitar aceleradamente
no peito.
— É até inspirador como você pode dar uma de espertinha quando
pressionada. Mas quer um conselho? Para sobreviver aqui, você vai ter que
aprender a segurar essa língua, novata.
— Ou vai ter que aprender a se defender apropriadamente para
continuar dizendo o que bem entende.
Não consegui tirar os olhos de Brad, mas tampouco precisei. Eu sabia
quem tinha pronunciado aquelas últimas palavras, mesmo que não de onde.
Hayden.
Ele estava ali o tempo todo?
Brad não fez nada comigo, porém também não se distanciou.
Permaneceu ali, tão perto ao ponto que eu pudesse sentir sua respiração
alterada acariciar minha bochecha. Ele estava pronto para atacar a qualquer
momento.
— Você não tem muito preparo físico e está em desvantagem no
aspecto de força e habilidade. Mas ainda tem a agilidade ao seu favor.
Devido ao tamanho, suponho que você poderia ser mais rápida que ele,
pequena aberração — Hayden disse, como se estivesse se divertindo sendo
o telespectador. — A melhor maneira de se livrar dessa situação seria dando
um soco em seu pescoço e sair correndo. Ou quem sabe um chute entre as
pernas, também poderia dar certo.
E só então, pela minha visão periférica, pude ver uma figura alta que
se assemelhava a de Hayden sair de um canto escuro à minha esquerda. Ao
mesmo tempo, senti toda a atenção de Brad posta em mim, como se
esperasse que eu seguisse os conselhos de seu amigo.
— Vamos, tente, meu bem. Você tem alguma chance. É melhor do que
nada — Hayden continuou me incentivando.
Por uma fração de segundo, eu inevitavelmente cogitei em levar meu
punho ao seu pescoço. Eu acreditei que tinha mesmo uma chance. Mas…
eu não queria lutar. Eu... eu não consegui querer.
— Não vou brigar com você. Faça o que bem entender — foi tudo que
eu sussurrei para Brad no fim, envergonhada por mim em relação a mim.
— Patético — o loiro cuspiu, e só então exterminou o restante da
distância entre nós.
Fechei os olhos abruptamente, esperando pelo que quer que ele
pretendia fazer, mas então escutei a voz de Hayden, agora mais áspera e
autoritária, ecoar por cada cento do local:
— Não encoste nela. Ela é minha.
Abri os olhos. Brad ainda me encarava com aquela fúria reluzente nos
olhos, porém não fazia mais menção de fazer nada. Ele hesitou por mais um
pouco, mas enfim se distanciou. Contudo, não sem dizer:
— Não tem mesmo graça chutar cachorro morto.
Ele então me deu as costas, e eu sussurrei quase que em reflexo:
— Espero que saiba que essa poderia ser apenas outra desculpa
covarde de alguém que não é tão livre quanto pensa.
Brad virou de uma só vez em minha direção, e dessa vez tive certeza
que eu sofreria as consequências físicas quando prometeu:
— Eu vou acabar com você, cadela.
Ele estava a um passo de distância quando Hayden agarrou seu
cotovelo, parando-o sem esforço algum:
— Eu acho que não.
Brad transferiu a atenção para o amigo, que tinha feições contorcidas
em uma seriedade, talvez ameaça, crua. As narinas do loiro estavam
dilatadas em cólera.
— Ela. É. Minha — Hayden sibilou dessa vez, como se não quisesse
deixar dúvidas quanto à questão. A tensão do ambiente se tornou quase
palpável. — Eu ainda te considero meu amigo, Brad, mas você sabe que
posso ser um tanto quanto volátil. Se apenas pensar em me desobedecer
mais uma vez quanto a isso, não tenha dúvidas de que eu irei te fazer
clamar por misericórdia em plenos pulmões que não estarão mais dentro de
sua caixa torácica. É meu último aviso.
De algum modo, soube que Hayden não estava me salvando de nada
ali. Muito pelo contrário. Era somente ele mesmo que brincaria comigo,
ninguém mais.
Uma parte de mim dizia que seria muito melhor lidar com Brad do que
com ele, na verdade.
— Saiam.
Brad me lançou um último olhar, e disse silenciosamente que aquilo
não tinha acabado. Mesmo assim, girou os calcanhares e deixou o lugar,
assim como o moreno que assistia à cena quieto.
Enfim me dei a liberdade de encarar Hayden, que já tinha aqueles
olhos sombrios atentos em mim. Suas sobrancelhas tão escuras quanto seu
cabelo estavam um pouco franzidas, como se ele estivesse analisando cada
um de seus gestos. Não gostei toda aquela atenção ininteligível, então me
forcei a desviar o olhar e a pegar meu rodo do chão.
Voltei à minha tarefa, mesmo com minhas mãos tremendo e com
Hayden ainda me avaliando como se eu fosse sua presa mais especial. O
que diabos ele queria de mim?
Após quase um par de minutos, escutei seus passos ecoarem pelo
local, e não levantei o olhar até escutar um ruído mais estridente. Hayden
tinha acabado de chutar meu balde, espalhando água suja por todo o espaço
que eu acabara de limpar.
Encarei-o atônita.
— Que merda é essa?
— Limpe.
Aqueles orbes quase transparentes ainda me fitavam com uma
curiosidade sádica. Abri a boca para gritar com ele, sentindo uma fúria
maior do que qualquer anterior tomar conta de cada centímetro de meu
interior, mas, de alguma maneira, fechei-a em seguida. Inspirei fundo por
um momento, mas coloquei o balde de pé e fiz justamente o que o
desgraçado à minha frente queria. Limpei.
Segundos mais tarde, entretanto, ele tomou meu rodo. Minhas mãos
começaram a tremer mais, mas tudo que eu fiz foi pegar meu pano reserva
do carrinho e me ajoelhar no chão todo sujo e continuar a enxugar o líquido
amarronzado.
Esperei pela próxima provocação de Hayden, mas ela não veio. Tudo
que ele fez, após longos minutos, foi agachar à minha frente, sentando sobre
os calcanhares. Não queria, mas lancei minha atenção a ele de maneira
involuntária, largando o pano no chão. Seus olhos estavam semicerrados.
— Por que você não reage?
Cerrei os dentes com uma força excessiva, e, diante do meu silêncio,
ele fez menção em levar os dedos nos cortes de minha bochecha. Recuei de
súbito, e ele deixou sua mão ali, erguida no ar, a dois centímetros de mim.
— Está ferindo meu orgulho, pequena aberração. Não posso permitir
que alguém tenha arrancado uma reação maior de você do que eu pude o
fazer, mesmo que esse alguém seja Ash.
Ash.
Ashley?
— O que você sabe sobre isso?
Seu sorriso de dar arrepios tomou conta de seus lábios.
— Tudo — respondeu simplesmente. — Não há muito que aconteça
neste Instituto do qual eu não tome ciência.
Bufei e voltei a secar o maldito chão. Hayden continuou no mesmo
lugar.
— Você não gritou quando Lilith a mordeu, mesmo quando, por
poucos segundos, decerto pensou que iria morrer. Não quis se defender
mesmo quando Brad estava pronto para atacá-la e nunca fez nada senão
aceitar quaisquer de minhas provocações. Mas ontem… entrou em uma
briga física em poucos minutos de interação.
Apertei o pano com mais força.
— Você brigou ontem por aquela menininha esquisita, apesar de mal
conhecê-la, mas não consegue defender a si mesma. Por que, pequena
aberração?
Meu Deus. Como eu o odiava cada segundo mais.
— Acha que não merece muito? — Mais silêncio de minha parte. Um
riso nasalado da sua. — Não. Não acho que você já tenha feito algo de tão
errado para achar que merece o pior. Simplesmente não gosta de si mesma?
Apenas poucos segundos de intervalo.
— Também não, não é? Mas eu diria que você tampouco faz o tipo
que gosta muito de si. Pelo contrário, você é indiferente. Indiferente até
demais, certo?
— Este Instituto está mesmo cheio de jovens com alguns complexos
de superioridade, não é? Primeiro a sua amiguinha querendo dar uma de
inspetora, e agora você de psiquiatra. — Eu o observei. — Vocês são
mesmo dignos de pena, sabe? Querendo ser melhores e maiores do que
realmente são. Eu posso ser indiferente em relação a mim mesma, mas é
melhor do que me achar mais digna do que realmente sou. Vocês todos são
como eu, pessoas problemáticas, infelizes e insuficientes, só não se deram
conta de isso ainda.
Não havia mais indício de diversão em seu rosto, o que me fez
continuar:
— O que foi? A verdade é dolorosa? Sinto em te falar, Hayden, mas se
você está aqui, não é nem um pouco auto suficiente como seu amiguinho ali
afirmou. Muito pelo contrário. E se eu fosse você, usaria essas supostas
habilidades de psiquiatra para curar a si mesmo e ir viver a maldita vida real
de uma vez, antes que seja tarde demais.
— Eu não minto para mim mesmo, pequena aberração — seu sussurro
frio e firme fez com que um calafrio estranho percorresse minha espinha. —
Sei muito bem que essa daqui é uma prisão pior do que a grande maioria,
porque deixa muito de nós fantasiarmos que somos livres quando a verdade
é bem diferente. A esperança vã é uma das armas mais destrutivas da
humanidade, afinal. Só que, ao contrário de todos aqui, eu não tenho nem a
mínima perspectiva de deixar esse Inferno. Então, por que me preocuparia
em me curar? Principalmente quando já é tarde demais.
Aquilo me fez me calar por um momento. Repassei cada uma de suas
palavras mentalmente antes de inevitavelmente perguntar:
— Por quê? Por que você não pode sair?
Os cantos de seus lábios voltaram a se erguer da forma mais
horripilante possível, porque seus olhos não acompanharam o sorriso.
— Nunca te ensinaram a não fazer perguntas cujas respostas você no
fundo não deseja ouvir?
O que diabos Hayden tinha feito? A pergunta não parava de ressoar
por cada canto de minha mente, e isso me distraiu o suficiente para dessa
vez não me desvencilhar quando sua mão veio ao meu encontro. Seus dedos
ásperos e gelados alisaram a pele arranhada de minha bochecha antes de sua
mão envolver minha nuca, me impedindo de me mover. Arregalei os olhos,
sem conseguir reagir por estar assustada por um momento, e observei o
garoto tirar algo do bolso de sua calça com a mão livre. Folhas.
Ele as levou até a boca por poucos segundos antes de cuspi-las e
passá-las em meus cortes. A saliva que envolvia as folhas mastigadas, ao
contrário de seus dedos, esquentou minha pele, e isso… acalmou o palpitar
acelerado de meu coração. Mas não o bastante para me impedir de disparar:
— O que você está fazendo, seu psicopata de merda?
— Ninguém deixará cicatrizes em você a não ser eu. Nem mesmo
externas — ele respondeu enquanto continuava a espalhar as folhas em
minha bochecha com uma concentração desconcertante, ignorando o
xingamento como se não o afetasse nem um pouco.
Só então me deixei focar no aroma que aquelas folhas exalavam. Logo
concluí que aquelas eram folhas de cajueiro, que tinham propriedade
cicatrizante.
Quando Hayden enfim me soltou, fiz menção em levar minha mão até
a bochecha para limpá-la, mas ele me segurou com uma agilidade hábil.
Encarei-o com a mesma intensidade que ele me encarava.
— Fique com isso por dez minutos.
— Você pode exercer alguma autoridade em seus amiguinhos, mas
isso não funciona comigo.
Hayden voltou a sorrir. Voltou a se divertir.
— Não se preocupe, pequena aberração. Quando eu te der alguma
ordem, você não terá sequer a opção de contestá-la como agora. Por
enquanto, estou apenas lhe dando um conselho. Para seu próprio bem,
acredite se quiser.
E então ele soltou minha mão, levantando-se sem muito esforço.
— Vou deixá-la a sós agora. Vejo que ainda tem muito trabalho para
fazer.
Bufei. Talvez, àquela altura, eu já teria acabado tudo caso não fosse
por Hayden e seus amiguinhos. Isso me fez pegar o pano com força e
também a me levantar, sem querer lhe lançar um último olhar. O que não foi
exatamente possível, porque, no segundo em que ele murmurou, eu o
encarei em uma resposta automática de meu corpo.
— E, Katrina? Nós também encontraremos uma cura para essa sua
indiferença de uma vez por todas. Ela só provavelmente será mais
complexa que algumas míseras folhas.
Hayden simplesmente me lançou uma piscadela antes de me dar as
costas e me deixar sozinha exatamente como no dia em que nos
conhecemos. Com aquelas palavras em uma promessa não tão consoladora
pairando no ar, não hesitei mais em passar a mão em minha bochecha com
uma força excessiva, limpando todos os vestígios daqueles últimos
momentos que me acompanhariam em meus próximos sonhos turbulentos.
Ipomoea Obscura (Convolvulaceae)
Mais leigamente conhecida por suas propriedades
analgésicas, porém suas sementes são tóxicas quando
ingeridas e suas folhas podem causar náuseas, midríase e
hipotensão.

— Oi — Helen murmurou quando se sentou à minha frente, à mesa de


almoço, já empurrando sua bandeja com uma maçã e a sopa que nos
serviam.
Arqueei as sobrancelhas. Eu andava almoçando sozinha desde que
chegara, então fiquei surpresa pela súbita companhia.
— Oi — respondi. — Estava mesmo me perguntando se você estava
bem. Não sabia o que Ashley tinha feito com você após me trancar naquela
dispensa.
— Ah, você não precisava ter se preocupado comigo. Após dois anos
nesse lugar, eu já consigo aguentar o que qualquer um tem para mim.
— Bem, você não deveria ter que aguentar nada.
— Como se eu tivesse alguma outra opção…
Abri a boca para dizer que ela deveria enfrentar quem a incomodasse,
mas logo a fechei quando concluí que isso seria muita hipocrisia de minha
parte. Eu mesma não fazia aquilo. Por isso, apenas suspirei e enfim disse:
— Tá, que seja. Escuta, o que você estava dizendo antes que Ashley e
as amiguinhas…
— Psiu. Isso é assunto proibido — soprou antes que eu acabasse de
falar. — Muita gente aqui só fica à espera de ter uma desculpa para jogar
pessoas como nós na cova dos leões apenas para terem uma distração do
tédio, como você bem viu antes de ontem. Acho melhor não conversarmos
sobre isso. Não quero que você se meta em mais confusão.
— Se algum estudante morreu no lugar em que estou estudando, ou
supostamente internada, acho que eu tenho o direito de saber — sussurrei,
repentinamente séria.
— Nada aqui é sobre ter o direito ou não. Esse lugar não é sobre
justiça. Muito pelo contrário, na verdade. Agora ande, vamos mudar de
assunto antes que mais problemas venham ao nosso encontro.
Encarei seus olhos verdes por trás dos óculos de grau, nem um pouco
satisfeita. O assunto que Ashley tinha interrompido me deixara muitas
dúvidas, mas agora, com toda aquela hesitação, Helen tinha acabado de
admitir que algo muito sério tinha acontecido naquela instituição, algo que
a direção tentava impedir que fosse falado. Contrariar aquilo seria dar a
desculpa que a garota à minha frente tinha mencionado para qualquer
babaca entediado ver alguma punição ser aplicada a nós.
Honestamente, eu não me importaria em ser castigada por ter algumas
respostas. Quaisquer que fossem elas. Não tinha ideia de quem tinha
morrido, do porquê ou de como. Apenas que, se tentavam encobrir isso… a
situação não se tratava de um simples acidente. Pensar nisso me causou um
certo calafrio na espinha.
— Não fica com essa cara, tá? — Helen amenizou o tom, como se
tivesse percebido que eu estava atormentada pelos questionamentos sem
resoluções. — Me conta, já encontrou um passatempo legal? Vai ter que
achar alguma coisa para melhorar seus dias aqui — disparou, decerto
querendo me distrair. Quando eu me mantive em silêncio, ela acrescentou:
— Se quiser, posso te emprestar alguns livros. Ou te indicar alguns da
biblioteca. Considero ter um ótimo gosto literário, então…
— Já li alguns romances, mas acho que livros não são tão a minha
praia assim — cortei-a enfim. Ela pareceu quase indignada.
— Besteira. Livros são a praia de todo mundo. A maior parte das
pessoas só não encontrou um bom livro que as guiasse pelo caminho certo
— contestou. — Mas tá, se livros erroneamente não são sua praia, o que é
então?
Dei de ombros.
— Gosto de plantio.
— Sério?
— É. Gosto de ver o que muitos atribuem não terem vida florescerem
da forma mais bonita possível e darem mais frutos do que muitos de nós um
dia o faremos em todo nosso ciclo.
Helen me encarou, dando uma colherada em sua sopa. Já eu, mal
tocava a minha.
— Sorte a sua que temos uma estufa aqui com diversos cultivos. Ela
fica aberta por todo o dia.
— Não vou mais lá.
— Como assim?
— A primeira vez que fui não terminou muito bem — expliquei,
cutucando a ferida em meu pescoço que já estava quase totalmente
cicatrizada.
— Ah, certo. Hayden leva seu mascote para passear lá de vez em
quando, e acho que ele também gosta de agricultura. Bem, se é que sua
estranha condição mental permite que ele realmente goste de algo. Mas
você não precisa evitar o que gosta de fazer por causa dele. Só dar meia
volta quando encontrá-lo lá.
— Talvez você esteja certa — murmurei. — Eu só queria… ter minhas
próprias lavras para tomar conta, sabe? Mas a inspetora Foy tomou todas
minhas mudas e sementes, dizendo que não permitiam que trouxéssemos
coisas como essas de fora, pois apego poderia interferir em tratamentos
necessários. O que, na verdade, me pareceu bem ridículo, porque… merda,
o Hayden tem a porra de uma cobra. Isso é contraditório em níveis
astronômicos.
Helen somente deu de ombros.
— Como eles permitem regalias como essas? Não pode ser por causa
de dinheiro, acho que isso não deve ser problema para a maior parte das
pessoas aqui. Ainda assim, há uma espécie de estrutura social aqui, e eu já
percebi que há poucos no topo e muitos embaixo.
— Dinheiro influencia muito nossa ideia de poder, mas também há
outros aspectos a serem considerados.
— Quais?
— É do feitio do ser humano ser influenciado por quem supre suas
necessidades mais primitivas. E são eles que colocam comida em nossa
mesa. — Ela indicou com o queixo para trás de mim, e eu me virei para
trás. Demorei alguns bons segundos para encontrar Hayden, Brad e mais
um de seus amigos em uma mesa extensa em um canto do refeitório. Não
foi uma surpresa quando vi Ashley sentada logo ao lado do maníaco,
sussurrando algo em seu ouvido. Suas amigas também estavam com eles.
— Suponho que eles também sejam modelos… hum… ideais de nossa
espécie — acrescentou, e eu tive quase certeza de que ela se referia à sua
beleza. — A beleza e bom condicionamento físico na maior parte das vezes
é um sinal de saúde, e nós nos atraímos por isso porque somos programados
para escolher o melhor parceiro para procriar. Eles sabem usar essa arma ao
seu favor também, não poderiam ter mais consciência de que sua aparência
lhes abre portas. E não há nada mais perigoso que alguém autoconsciente de
seus melhores atributos e que sabe usar isso ao seu favor. Brad, por
exemplo, foi pego em uma relação sexual com um inspetor no mês
retrasado, enquanto Tonya, amiga de Ashley, ainda se encontra
frequentemente com um dos fornecedores de suprimentos externos que nos
visita uma vez por mês. Eles encontram meios de conseguir privilégios, e
com isso suprir outras necessidades de jovens trancafiados ao contrabandear
diversos utensílios ilegais aqui. Isso lhes coloca em um pedestal. Ou nós os
colocamos — ela sussurrava agora, com medo de que alguém a escutasse.
Tentei assimilar todas aquelas informações. Por um momento, foi
inevitável pensar que Helen era muito inteligente e também muito
observadora para saber de tudo aquilo.
Concluí que eu gostava mesmo dela.
— Tudo bem, eu entendi. Mas… se isso os fazem ser os líderes de nós
aqui… O que faz com que Hayden seja nitidamente o líder deles?
Eu não tinha me esquecido da forma como Brad e os demais o
obedeceram no dia anterior.
— O único aspecto que consegue conquistar respeito ainda mais
rápido que o dinheiro, beleza ou o domínio de importantes tributos —
respondeu, e não demorou a esclarecer de uma vez: — Medo.
Então… eles realmente o temiam. Todos eles. Eu estava prestes a
lançar mais perguntas possivelmente indevidas à Helen quando uma voz
austera chamou minha atenção:
— Srta. Katrina? Me acompanhe agora. O Dr. Cole está à sua espera.
— Era a inspetora Foy que se encontrava logo ao meu lado, e apenas por
seu olhar rígido, meu coração palpitou fortemente no peito.
Lancei um último olhar a Helen, que apenas sibilou seriamente um
“boa sorte” silencioso antes que eu me levantasse, deixando praticamente
todo meu almoço intacto na mesa. Segui a inspetora sem dizer
absolutamente nada, presa em meus próprios devaneios. A mulher que me
guiava tinha deixado claro que contaria os acontecimentos do dia retrasado
ao diretor, então… ele poderia estar prestes a me dar sua própria punição?
A suposição fez com que minhas pernas tremessem um pouco
enquanto em movimento, porque eu não tinha ideia de quais métodos ele
poderia usar para me castigar.
Subimos para aquele lugar horroroso do terceiro andar, e apenas o
cheiro de produtos de limpeza me deixou com náuseas. A inspetora me
guiou pelo corredor mais largo do final, e quando chegamos ao final dele,
após longos minutos, ela bateu na extensa porta de madeira. Uma voz
grossa e serena, porém não menos autoritária, permitiu nossa entrada, e a
inspetora anunciou minha presença.
— Katrina Sherman... É um imenso prazer enfim conhecê-la, querida.
Entre, entre. Estava ansioso para vê-la.
Desviei a atenção para a inspetora, que não demonstrava nenhuma
reação, como o usual. Ela fechou a porta, deixando-nos a sós, e o Dr. Cole
já estava de pé, vindo até mim. Ele era um homem magro e alto, beirando
os 1,90m. Seus cabelos eram pretos, porém ele era calvo, e tinha algumas
rugas ao redor de seus olhos… olhos aqueles, nitidamente sagazes e que
absorviam tudo ao seu redor. Odiei a forma como eles pareceram familiares
para mim.
— Venha até aqui, não se acanhe. Quero conversar com calma com
você. — Sua mão espalmou de leve minhas costas, e ele me guiou até a
cadeira de frente para a mesa executiva de madeira no começo de sua sala
de alguns bons metros quadrados. Havia um vaso com uma ipomoea
obscura ali em cima, única planta que orneava o cômodo.
O homem voltou para trás de sua mesa e se sentou, ainda com um
sorriso entre os lábios.
— Devo dizer, seu pai foi um amigo notável e de inteligência
excepcional em minha graduação. Temos uma relação de admiração mútua
de longa data, então pode imaginar o quão honrado fiquei quando recebi
uma carta dele pedindo para que eu cuidasse de sua única filha. Foi mesmo
uma pena que eu não tenha tido tempo de vê-la antes, e peço desculpas por
isso. Mas carrego uma enorme responsabilidade dirigindo esse lugar e
cuidando desses alunos que, convenhamos, dão muito trabalho, então tive
que esperar uma pequena brecha para chamá-la até aqui.
— Hum… Então foi apenas uma coincidência eu estar aqui dois dias
após eu ter me metido em uma certa briga? — murmurei, supondo que a
inspetora realmente tinha lhe confidenciado tudo. Dr. Cole apenas
gesticulou com a mão.
— Esqueça isso, querida. Meninas da sua idade podem ser más, eu
entendo. E imagino que a inspetora Foy tenha lhe dado um castigo mais do
que suficiente, então vou deixar isso passar. Você está aqui apenas para que
tenhamos uma conversa agradável, entendeu?
— Em outras palavras, estou aqui para uma consulta. — Arqueei as
sobrancelhas, e ele soltou um riso nasalado.
— Não exatamente. Só trato de alguns alunos em específico, os que
precisam de mais ajuda entre os demais, vamos dizer assim. A maior parte é
repassada para avaliação de outros profissionais de minha equipe, mas que,
claro, são muito competentes. Contrato-os pessoalmente. Chamo todos os
alunos novos em minha sala em suas primeiras semanas para realmente ter
uma simples conversa, e a partir disso saberei qual o melhor
encaminhamento para o tratamento de cada um. Então, não se preocupe,
apenas finja que sou um velho amigo e que estou querendo saber das
novidades de sua vida. Lembre-se, estou mesmo interessado em você, se
ajudar de alguma coisa. Você é filha de um grande amigo, ora.
Aquilo tudo pareceu como uma armação para mim. O Dr. Cole de
verdade não era aquele homem simpático e caritativo que estava à minha
frente. Muito pelo contrário, aqueles olhos que obviamente já viram demais
escondiam uma criatura esperta e perspicaz.
Ainda assim, contei-lhe sobre meus primeiros dias no instituto quando
ele primeiro perguntou sobre minha adaptação, mas com o devido cuidado.
Não mencionei nada acerca de Hayden, nem da briga de outro dia. Apenas
contei que estava tentando me concentrar nas aulas, atividades
extracurriculares e também que tinha feito uma amiga, embora isso não
fosse de todo verdade. Helen poderia ser considerada, no máximo, uma
colega. Eu apenas não queria lhe dar motivos para concluir que eu era
estranha. De forma alguma que eu queria permanecer ali até depois de
minha formatura, como muitos, afinal.
Dr. Cole me escutava com toda atenção, sem anotar nada em lugar
nenhum, fazendo jus à situação da conversa, e assentia de vez em quando
diante de certas sentenças.
Ele me fez mais algumas perguntas corriqueiras, sobre como eu me
sentia diante da mudança de ares, sobre meus hobbies e meu dia a dia em
minha antiga casa. Foi apenas depois de quase uma hora que ele decidiu ser
mais invasivo:
— Agora me diga, o que fez seu pai, um homem de uma formação
espetacular e grande intelecto, colocar sua filha sob os cuidados de um
outro psiquiatra?
Cruzei os braços em frente ao peito, nada contente com aquela
pergunta. Contudo, como eu não parecia ter a opção de me manter em
silêncio ali, respondi:
— Talvez ele tenha se frustrado de uma vez por todas.
— Pelo quê?
— Por não ter conseguido tratar quem mais precisava. Sua única
herdeira.
Ele se recostou em sua cadeira.
— Acha que você estava fazendo seu pai pensar que ele era um
fracasso?
Dei de ombros, divagando.
— Acho que é, sim, uma possibilidade. Eu tenho certeza de que ele me
acha um fracasso, mas talvez sinta tanta raiva além de apenas decepção por
achar que é responsável por isso — eu respondi, sem saber de fato o porquê
de estar sendo sincera. O fato era que eu andara pensando muito sobre isso,
e as palavras precisavam ser ditas em voz alta pela primeira vez.
— Mas você acha que ele ainda tem esperança de que outra pessoa te
faça ser quem ele precisa que você seja?
— Não sei. Meu pai sempre teve uma segurança muito grande de seu
profissionalismo, acho. Talvez ele pense que, se ele mesmo fracassou
comigo, todos os outros irão. Ele só tomou a decisão de me mandar para
longe porque estava cansado de se lembrar do fiasco que eu sou,
provavelmente. Não duvido que ele possa ter outro filho enquanto eu estou
fora apenas para dar continuidade à glória de nosso sobrenome.
Dr. Cole não me fez mais pergunta alguma, então o silêncio fez com
que eu desviasse o olhar dele pela primeira vez em um bom tempo. Minha
atenção foi para à direita da sala onde estávamos, onde uma cadeira
metálica nitidamente desconfortável e uma maca se encontravam lado a
lado. Havia um carrinho também metálico com algumas pinças e facas, e
mais atrás um equipamento estranho, com alguns cabos escapando dali. Só
após longos segundos que fui perceber que havia correntes nos pés da maca
e algemas largas de borracha na cadeira.
Imediatamente me lembrei da menção de meu pai que Dr. Cole
poderia oferecer tratamentos revolucionários naquela instituição. Era
daquilo que ele falava? E será que ele realmente acreditava que aquilo
poderia surtir algum efeito sobre mim ou eu estava certa e ele apenas me
queria longe? Ambas opções me pareciam igualmente ruins.
Por um momento, fiquei grata por aquela ser a primeira e última
conversa entre mim e Dr. Cole. Eu imaginava que seria repassada para um
psiquiatra de tratamentos mais brandos, que estava em uma escada mais
abaixo da organização da equipe do instituto. Eu não precisava de
intervenções tão dilacerantes quanto de muitos jovens ali dentro, era óbvio.
— Bem, já faz pouco mais de uma hora que você está aqui, e a
inspetora deve trazer meu próximo paciente muito em breve, então acho
melhor encerrarmos por aqui, querida. Mas devo agradecer imensamente
pela confiança que teve em mim ao longo dessa conversa. Significa muito
para mim, e sua honestidade nessa instituição sempre irá trazer apenas as
melhores coisas para você. Vamos, te acompanharei até a saída.
Com a mão em minhas costas, ele realmente me levou até sua porta,
mas antes de abri-la, ofereceu-me sua mão direita e eu a apertei.
— Foi um prazer conhecê-la, Katrina. Marcarei sua primeira consulta
para a próxima semana sem falta. Estou ansioso para nos aprofundarmos
mais sobre tudo que conversamos hoje.
O quê?
Pisquei repetidas vezes ao repassar cada uma de suas palavras.
O que eu tinha feito de errado?
— Minha consulta será com o senhor? — eu questionei enfim, porque
eu apenas podia ter entendido errado. Nem de longe eu precisava de mais
ajuda que a grande maioria daquele instituto.
— Ah, mas é claro. Não te deixarei nas mãos de mais ninguém. E nós
precisamos provar para seu pai que não é porque ele fracassou, que outro
também fracassará. Que eu fracassarei. Não há nenhuma outra opção aqui
senão melhorar essa química desse seu cérebro maltratado, querida.
Não demorei mais a entender o que acontecera. Que eu fizera o que de
forma alguma devia ter sido feito.
Eu tinha o desafiado. Mais que isso, eu pressupus que meu pai, quem
o próprio Dr. Cole tinha admitido ter um intelecto fenomenal, estava o
desafiando. Ou melhor, duvidando de seu potencial.
Eu ainda mal podia acreditar no que tinha feito quando saí da sala do
Dr. Cole sem dizer absolutamente mais nada. A porta fechou por trás de
mim, e fiquei ali no corredor, imóvel, perguntando-me como tinha
conseguido tornar a cura, de qualquer que fosse meu problema, uma
questão pessoal para o diretor da New Order.
Só fui escapar do meu estado estagnado quando escutei gritos no fim
do corredor, que se aproximavam cada vez mais. Logo avistei um garoto
magro desconhecido e de uniforme todo amassado sendo arrastado por dois
homens de uniforme branco de grande porte. Não demorei a localizar a
inspetora Foy atrás dos três.
Aquele seria o próximo paciente do Dr. Cole?
O menino gritava, implorava para que deixassem ele ir, que ele não
conseguiria aguentar mais uma sessão daquilo. Não consegui mover um
músculo sequer enquanto eles se aproximavam, apenas observei a cena
horrível. Também continuei malditamente parada mesmo quando o menino
gritou por minha ajuda, segundos antes de sumir dentro da sala do diretor.
Horrorizada, só fui deixar meu pequeno canto quando a inspetora Foy
agarrou meu antebraço e me forçou a deixar o andar. Não consegui olhar
para trás ao deixar que minhas pernas me levassem para o mais longe
possível da sala de onde os gritos de um menino jovem sumiram como se
nunca tivessem existido.
Loureiro (Lauraceae)
Na antiga Grécia, essa planta era emblema de vitória e da
glória, mas sua morte era um sinal irrefutável de mau
presságio.

O sábado enfim tinha chegado, e, com ele, uma pequena folga. Eu não
seria encarregada pela limpeza nos finais de semana, e tampouco tínhamos
aula. Por isso, fiquei na cama até o horário do almoço, embora não estivesse
de fato dormindo pela maior parte do tempo. Eu apenas não sentia a mínima
vontade de me levantar, porém já estava acostumada com a sensação
mórbida.
Só fui me forçar a me colocar de pé quando o ponteiro do relógio
indicou que já era meio dia. Sem surpresa alguma, o quarto já estava vazio.
Eu não encontrava com Ashley com muita frequência. Provavelmente
estava muito ocupada causando confusão pelo instituto.
Vesti o uniforme, que era exigido até em dias não letivos, e fui para o
refeitório. Andava almoçando com Helen na mesma mesa desde o dia em
que vi Dr. Cole pela primeira vez, então não foi uma surpresa quando
encontrei com ela. Almoçamos sem falar muito, confortáveis com a
companhia silenciosa uma da outra, e então eu a segui até o cômodo de
larga janela onde eu a conheci de fato — seu canto, como ela mesma
denominava.
Helen começou uma nova leitura — provavelmente a décima da
semana —, enquanto eu não fiz absolutamente nada além de me perder em
meus próprios pensamentos enquanto observava a extensão da floresta além
de nós. Foi apenas quando o sol começou a se pôr que me deixei
interromper Helen:
— Como as pessoas não enlouquecem nesse lugar?
Ela arqueou as sobrancelhas para mim, fechando seu livro.
— Mais? — perguntou, erguendo um canto de seus lábios.
— Sim. Mais. As salas de pintura, estufa e quadras de esporte não
abrem no final de semana. O que eles esperam que fiquemos fazendo por
todo esse tempo? — resmunguei. Era o segundo fim de semana que eu
passava naquele Instituto, e esse não estava sendo muito melhor que o
primeiro. Dormir era a melhor parte de ter os dias livres, pois só durante
esse tempo era possível esquecer da realidade. No entanto, as horas
restantes eram intermináveis. Não havia nada para fazer senão se tornar
muito, muito introspectivo.
— Eles esperam justamente que passemos muito tempo imersos em
nossos pensamentos. Eu só nunca entendi se acham que isso nos traz algum
benefício ou se apenas estão querendo nos deixar mais loucos para que a
Instituição nunca venha a falir — respondeu, e não duvidei que a última
opção poderia ser seriamente levada em consideração. — Mas não se
preocupe. A direção não está conseguindo o que quer que deseja. Os
meninos daqui têm seus próprios meios para manter a cabeça ocupada.
— O que quer dizer?
— Sempre há festas rolando pelos cantos. Hayden e seus amigos as
organizam e disponibilizam o que conseguem contrabandear ao longo da
semana. Álcool e alguns comprimidos tarja preta rolam soltos. Imagino que
a de hoje já deva ter começado há um tempinho.
— Isso é sério? Como eles não são pegos e punidos? Festejar não vai
contra as regras?
— A Inspetora Foy e o Dr. Cole não passam os finais de semana aqui.
A inspetora, até onde sabemos, tem uma mãe doente para cuidar, e o
diretor… bem, ninguém realmente tem conhecimento sobre sua vida
privada, mas ele só fica aqui de segunda à sexta. Os inspetores que ficam no
comando são mais… subordinados, vamos dizer assim. Eles nos deixam
passar a noite fora do Instituto, mas não podemos sair com nada necessário
para uma fuga, como muita comida ou água. Todo mundo que sai tem que
voltar em menos de quatro horas também, caso contrário os pais são
acionados.
— Interessante — soprei honestamente. — E onde essas festas rolam
geralmente?
Tudo que Helen fez foi apontar para um lugar específico através da
janela. Desviando a atenção para onde ela indicava, encarei a floresta mais
uma vez. Não tinha nenhum indício de tumulto, mas, após alguns segundos,
notei um pequeno rastro de fumaça escapando de entre as árvores, a uns
bons metros de distância.
— Eles estão fazendo uma… fogueira?
— Exatamente.
Voltei a encará-la.
— É legal?
— Não sei. Nunca fui.
— Como assim, Helen? Nunca?
— Caso não tenha percebido, eu não sou muito popular por aqui. E
também não faço muito o tipo de festas. — Ela balançou seu livro no ar.
Pois é, fazia mesmo sentido.
Honestamente, festas também não eram minha praia. E o magnetismo
silencioso entre mim e aquela festa não ocorria porque eu estava
esperançosa de me divertir com álcool ou dançando, e sim porque aquela
me parecia a única escapatória de minha mente sufocante.
Coloquei-me de pé repentinamente, sem pensar muito. Não mais.
— Vamos.
Helen franziu o cenho.
— O quê?
— Nós vamos naquela festa. Temos que trocar de roupa, aposto que
ninguém vai de uniforme.
— Ashley também ajuda a organizar essas festas, Katrina. Vai por
mim, não seremos nem um pouco bem-vindas lá.
Suspirei. Helen provavelmente estava com a razão. Mas…
— O que temos a perder?
Isso fez a garota refletir. Também me fez deixar os vestígios de
hesitação de lado. Minha vida já estava um inferno mesmo. Antes que
Helen pudesse contestar, permite-me ser impulsiva e puxá-la comigo.

— Essa definitivamente não é uma boa ideia — Helen resmungou


quando passamos por dois loureiros, um que morria, e começamos a entrar
no meio da densa floresta, em direção à fogueira. Já estava escuro, e nós
duas levávamos velas para iluminar o caminho. Era meio assustador, mas
também era bom sentir alguma espécie de adrenalina.
— Helen, me escuta, você não pode continuar deixando de fazer o que
quer por causa de Ashley e as amiguinhas, tá bom? Isso é ridículo — eu
contestei sinceramente enquanto a guiava entre as florestas. Eu já começava
a escutar alguns ruídos. — Talvez seja melhor que você mostre que não tem
medo delas, tá?
— Não sabia que você era do tipo corajosa e revolucionária — ela
murmurou atrás de mim, o mau humor quase palpável em seu tom de voz.
Suspirei.
— Eu não sou. Mas não me admiro muito, de qualquer maneira. E,
além do mais, quero o melhor para você — eu disse, sem pensar muito.
Percebi que ela parou de andar, o que me fez virar para ela.
— Por quê?
— “Por quê” o quê?
— Por que você quer o melhor para mim? — perguntou, desconfiada.
Aquilo me pegou desprevenida.
Abri a boca para respondê-la, mas não soube exatamente o que dizer.
— Ninguém nunca disse isso para mim antes — ela admitiu em um
sussurro diante de meu silêncio, e só então me dei conta de que aquilo
deveria ser mais estranho para ela do que para mim. Helen era orfã. Não
tinha família, e parecia ter tido tantos amigos durante sua vida quanto eu.
Expirei o ar pesado pela boca.
— Escuta, sei que ainda não nos conhecemos tão bem, mas você é a
pessoa que eu poderia chamar de mais próxima nesse lugar, tá? Conversei
mais com você nessa última semana do que com qualquer outra pessoa
nesse instituto. Talvez eu até tenha falado mais com você nesse tempo do
que com a minha família no último mês inteiro — eu murmurei meio que a
contragosto, porque era muito vergonhoso para mim admitir tudo aquilo. —
Escuta, eu nunca tive amigos nem nada do tipo, então não sei direito como
essas relações funcionam ou até começam, mas eu sei que sou grata por sua
companhia e que te acho muito inteligente. Também já entendi que você é
muito mais gentil e amigável do que a maioria dos estudantes daqui, e isso
tudo já é o suficiente para que eu queira que você fique bem, acho.
Helen me encarou com muita atenção, e não soube ler seus
pensamentos. Quando ela soltou um riso nasalado, foi um alívio para mim.
— Geralmente, as pessoas normais deixam uma relação de amizade
fluir de sua própria maneira. Nem tudo precisa ser considerado ou colocado
em termos burocráticos — ela disse, e imaginei que aquilo tivesse mesmo
sido estranho para ela. Minha necessidade de esclarecer tudo. — Mas claro
que eu só sei como as coisas supostamente deveriam acontecer por causa
das centenas de livros que leio por ano — não demorou a acrescentar,
soltando um riso mais divertido. Sorri também. — Podemos fazer as coisas
à nossa maneira, então… Amigas? — Ela estendeu a mão direita para mim.
Arqueei as sobrancelhas.
Ela também estava colocando as coisas em termos burocráticos.
Esclarecendo tudo. Senti-me genuinamente grata por isso. Apertei sua mão.
— Amigas.
Fiz menção em soltar sua mão, mas Helen a apertou uma última vez e
sussurrou, mais séria:
— Katrina? Obrigada.
Só assenti. Ela não precisava ficar grata por eu querer ser sua amiga.
Isso era ridículo.
— E, só para constar, você é de longe a primeira pessoa de mais
conteúdo e não influenciável que entrou neste instituto em um bom tempo.
Estou feliz que também queira ser minha amiga. E você deveria, sim, se
admirar. Não preciso te conhecer há muito tempo para saber que é uma boa
pessoa.
E, pela primeira vez em um tempo muito, muito longo, eu esbocei um
sorriso que considerei ser extremamente sincero. A sensação foi boa.
Em alguns minutos, enfim chegamos no lugar onde a festa acontecia.
Era uma região mais desmatada da floresta, com menos árvores e mato mais
baixo. Havia apenas alguns troncos caídos no chão, onde algumas pessoas
se encontravam sentadas. Dois garotos, desconhecidos por mim, ocupavam
um lado a lado e tocavam violão, enquanto um outro estava em pé com um
pandeiro nas mãos. O som deles era bom, e estava animando muita gente
ali.
Uma grande fogueira se fazia presente no meio do espaço, aquecendo
e iluminando o ambiente. Havia algumas mesas que decerto foram levadas
das salas de aula para lá, e bebidas alcoólicas e copos plásticos se
encontravam apoiadas nelas. Algumas boas dezenas de alunos estavam
espalhadas por todo o local.
A organização era quase que… surpreendente.
Felizmente, não avistei Hayden, Ashley e o restante do grupo
insuportável em lugar nenhum, então continuei seguindo em frente com
Helen agora do meu lado. Observei um pouco a dinâmica do lugar, e
percebi que as bebidas eram livres, pois qualquer um pegava. Aproximei-
me das mesas e peguei dois copos plásticos, colocando um líquido
transparente neles em seguida.
Entreguei um para Helen, e nós bebericamos a bebida ao mesmo
tempo. O líquido desceu queimando pela minha garganta de um modo
terrível, e fiz uma careta instantaneamente, assim como a garota ao meu
lado.
— Então esse é o gosto de álcool? Que horror.
— Geralmente não é para se beber sozinho. — Uma voz surgiu por
trás de nós, e quando nos viramos, nos deparamos com o garoto de cabelo
quase raspado e escuro que andava com Brad e Hayden. Eu ainda não sabia
o nome dele.
O garoto passou entre nós e pegou uma garrafa de vidro de
refrigerante e despejou em nossos copos.
— Isso vai amenizar o sabor.
Encarei-o, desconfiada, afinal…
Diga-me com quem tu andas, que eu direi quem tu és.
E sua companhia não era das melhores.
— Não tivemos a chance de nos apresentar, a propósito — o garoto de
olhos verdes disse para mim. — Sou David. — Ele estendeu sua mão, mas
eu não a apertei. — Vamos lá, não precisa ter medo, novata.
Bufei.
— Não tenho medo de você. E meu nome é Katrina — contestei
apenas, mas não apertei sua mão. Ele a recolheu por fim, parecendo achar
graça, e se virou para a garota ao meu lado.
— E… Helen? Devo dizer, é uma surpresa vê-la aqui.
— Foi Katrina que me arrastou — explicou, tão desconfiada quanto
eu. — E também estou surpresa por saber meu nome.
— Foi com você que fiz meu trabalho em dupla de Literatura Inglesa
no último ano. Quer dizer, você fez tudo sozinha, mas colocou meu nome.
Foi só por você que passei na matéria. Não teria como te esquecer.
— Ah… Não sabia que se lembrava disso.
— Já deveria saber que todos no Instituto levam favores muito a sério.
Ainda te devo uma. Cobre a dívida quando mais precisar.
Helen pareceu desconcertada, o que achei um pouco engraçado. Suas
bochechas coraram. A garota retrucou algo a mais, mas não pude continuar
prestando atenção, porque naquele momento, uma pessoa em específico
atraiu minha atenção. Ou duas.
Ashley e Hayden saíram de entre as árvores do outro lado juntos, e não
era na direção onde ficava o instituto. Pelo contrário, eles estavam
afastados, como se quisessem ficar sozinhos. Não precisava ser muito
criativa para imaginar o que faziam.
Infelizmente, os dois notaram minha presença no instante em que eu
notei a sua. Eram espertos o bastante para isso. Ashley semicerrou os olhos
em minha direção, e se virou para falar algo para Hayden, que não lhe
respondeu. Sua atenção era somente minha. A garota, entretanto, voltou-se
para mim e então apontou para o chão à sua frente. Queria que eu fosse até
lá.
Pensei em ignorá-la, mas logo concluí que as probabilidades de ela vir
até mim eram grandes, e eu não queria que ela estragasse a noite de Helen.
As duas não trocariam nem uma palavra se dependesse de mim. Por isso,
apenas disse a Helen:
— Preciso de dois minutos para mim. Volto já. Não sai daqui, ok? —
eu murmurei, e então fui até Ashley sem esperar por sua resposta. Deixá-la
com David não era exatamente uma opção segura, eu sabia, mas também
não era a pior. Imaginava que ele não faria nada no meio de toda aquela
pequena multidão.
Quando me aproximei, Hayden soltou um riso nasalado em sua usual
diversão obscura, com aquele olhar sagaz ainda preso a mim.
— Eu disse à Ashley que você viria. Ela não acreditou em mim, o que
sempre é um erro estúpido.
— Bom saber que já fui importante o suficiente para ter sido tema de
assunto de vocês — resmunguei, cruzando os braços.
— Se soubesse o porquê, não estaria contando vantagem — foi o que
Ashley respondeu, mal-humorada. Franzi o cenho.
— Como assim?
Ashley revirou os olhos.
— Escute, não vou te expulsar de minha festa porque você já
enfrentará consequências apenas por ter aparecido, mas saiba que essa sua
ousadia não está sendo nada bem vista. E eu realmente espero que você
aprenda a lição depois de amanhã e aprenda a ficar na sua de uma vez por
todas.
Sem esperar por uma resposta minha, ela passou diretamente por mim,
esbarrando em meu ombro sem poupar força, o que fez com que eu
derrubasse um pouco minha bebida. Encarei Hayden, que tinha ficado, e
prestei uma atenção maior nele.
Ele trajava uma jaqueta de couro e um jeans escuro. Seus cabelos
combinavam com a escuridão do céu, e estavam desgrenhados como o
usual. Seus orbes também estavam mais escuros, talvez pelas pupilas
dilatadas pelo breu. Sua pele, no entanto, parecia mais pálida sob o luar. Sua
beleza contrastante me foi mais desconcertante do que nunca, mas me
forcei a manter a maldita razão.
— Sua amiguinha pretende fazer o quê? Me dedurar para a inspetora
por estar participando de uma festa onde ninguém mais esteve presente?
Ele riu.
— Estou vendo que não tem medo dela.
— Eu deveria? — retruquei em um sarcasmo frio. Hayden apenas
alargou seu sorriso.
— Provavelmente sim — respondeu apenas, recostando-se na árvore
atrás de si. Eu bufei e beberiquei um pouco de minha bebida, e, sem saber
exatamente o porquê, continuei perto dele. Ele me analisou centímetro por
centímetro então, com mais precisão do que anteriormente. Minha pele
entrou em combustão diante daquela atenção desprovida de qualquer pudor,
e, ainda assim, mantive-me imóvel à sua frente. — É a primeira vez que a
vejo sem o uniforme. Linda. Está linda, pequena aberração.
Eu tinha vestido apenas uma calça de boca larga e uma camiseta preta.
Meu cabelo estava amarrado apenas em um rabo de cavalo baixo.
— Não caçoe de mim — eu retruquei, repentinamente na defensiva.
Senti que Hayden estava analisando minha reação, então dei meu melhor
para não demonstrar tantos sentimentos.
— Acha que eu estou?
— Eu sei que está.
Hayden inclinou a cabeça um pouco para o lado, ainda me fitando com
toda a atenção do mundo como se eu fosse seu bichinho de experimentos.
— Então você não sabe como é bonita… — disse, mais para si
mesmo. Ele semicerrou os olhos, como se se perdesse em seus pensamentos
por um momento. — Como já alertei à Ash, é um erro não confiar em mim.
Mas como acho que você seja mais inteligente que ela, tenho esperança de
que acreditará em mim: você tem um charme um tanto quanto peculiar, de
fato, mas isso apenas lhe torna mais atrativa. O modo como seus braços
esguios se movem e os dedos finos e pontudos gesticulam, a maneira como
seu cabelo rebelde te dá ainda mais personalidade e até a forma como seus
olhos grandes e mais escuros que já vi erroneamente transparecem tédio na
maior parte do tempo, não deixando tão fácil decifrar sua alma, e sua pele…
Sua cor é absolutamente cativante ao olhar, e, se deseja saber, convida-me
muito ao toque de sua carne… Essas particularidades somente suas são de
fato fascinantes para quem se deixa prestar atenção em você por algum
tempo, Katrina.
Suas palavras causaram um certo calafrio em toda minha extensão de
pele. Claro que Hayden sempre causava esse efeito sobre mim, mas
aquele… foi diferente. Tudo que ele dissera me deixara atormentada de um
modo diferente dessa vez. Ele entrou em um canto de minha cabeça que
ainda não tinha entrado.
Ninguém nunca, nunca… dissera nada do tipo para mim. Ninguém
nunca tentara me conscientizar sobre algo atrativo de minha aparência
física. Eu nunca me senti bonita.
Embora eu soubesse o tempo todo que, ao contrário do que Hayden
alegava, eu não devia confiar nele, foi inevitável me sentir afetada de um
modo peculiar por ele.
Eu imaginava que o encarava com tanta intensidade quanto a que ele o
fazia em relação a mim, mas até ele deixar a seriedade de sua fisionomia
para trás e sorrir:
— É mesmo uma pena, pequena aberração, que, ao contrário de
exteriormente, você seja toda estragada em seu interior. A estranheza de sua
mente nunca a deixou pensar com afeição sobre si mesma, não é? Pelo
modo que age… imagino que sempre foi indiferente também em relação ao
seu reflexo. Sinto muito por isso. É algo realmente digno de pena.
E, diante daquelas palavras… eu senti como se Hayden tivesse me
dado um tapete onde pisar, e, de repente, ele tivesse o puxado debaixo dos
meus pés de uma só vez. Ele me dera algo e tomara outro.
Não tive mais dúvidas do quão sádico Hayden era. Ele se divertia
jogando com as pessoas. Em ver como suas palavras afetavam outros.
Daquela vez, ele estava de parabéns, porque em frases mínimas, conseguira
mesmo fazer com que eu me sentisse mais desconfortável comigo mesma
que o normal. Porque, no fim, eu sabia que o garoto estava certo. Em tudo.
Eu nunca pensara com muita afeição sobre mim mesma, nem mesmo
em aspectos físicos. A verdade, de fato, doía. Muito.
Como se não tivesse acabado de me desestabilizar após me fornecer
uma pontada de esperança, Hayden simplesmente disse:
— Agora vou deixá-la se divertir. Ou deixá-la livre, pelo menos,
porque suponho que a primeira opção para você seja um tanto quanto
difícil. Já deixei Lilith passear por aí por tempo suficiente, e agora preciso
achá-la.
E então Hayden simplesmente me deu as costas antes de pegar uma
vela sobre um pequeno prato que tinha deixado no chão e se enfiar no meio
das árvores, em busca de sua maldita cobra. Honestamente, eu estava
cansada daquele garoto me deixar sozinha após causar um tormento
irremediável dentro de mim. As duas últimas ocasiões tinham sido todas
assim, e a terceira… seria demais.
Lancei um último olhar à Helen, e quando tive a certeza de que ela
estava bem, bebi o líquido de meu copo de uma só vez antes de jogá-lo no
chão e não hesitei mais em ir atrás de Hayden, embora a parte mais racional
de mim soubesse que aquilo poderia ser um erro irrevogável.
Não demorei a alcançá-lo, porém ele não olhou para trás. Ainda assim,
murmurou:
— Então eu continuarei tendo o prazer de sua companhia, pequena
aberração? Melhor ainda.
Àquela altura, eu sentia o palpitar acelerado do meu coração no
ouvido.
— Você é realmente muito cheio de si, não? Acha que pode mexer
com todos à sua volta, brincar como se regras algumas se estendessem a
você, como se consequências nunca fossem vir ao seu encontro. Acontece
que… nós não somos brinquedos e esse instituto não é seu jogo de
tabuleiro, Hayden. Qual a porra do seu problema, hein?
Apesar da raiva ofuscante, eu tentava tomar cuidado por onde pisava,
pois o mato ali era relativamente alto e havia pedras e gravetos por toda
parte. A fraca iluminação da vela de Hayden também não ajudava em
muito.
— É isso que você faz com todos, não é? Por isso que eles temem
você. Você sabe como jogar com palavras. Sabe o que dizer para cada um,
e, sobretudo, o que não dizer. Mas, sabe o que acho que ninguém aqui
percebeu? Que você só faz tudo isso porque é vulnerável. Tanto quanto eles,
ou até mais. Porque apenas uma pessoa nesse estado tem tanta necessidade
de também deixar outra pessoa indefesa na vã tentativa de se sentir melhor.
Vamos, me diga, qual seu passado sombrio? O quanto você sofreu para
carecer causar sofrimento em outros? Você é apenas um garotinho indefeso
que tenta usar sua inteligência como arma. Mas, adivinhe só: isso só te
torna patético. Tal qual sua versão do passado que se atormentou com o que
quer que tenha sido grave o bastante para te estragar para sempre.
Hayden continuava a andar com seus passos dizimadores, e isso me
irritou, então, em um movimento instintivo, levei minha mão ao seu ombro.
Ele segurou meu pulso antes que meus dedos encostassem nele por mais de
uma fração de segundo. O garoto se virou para mim de uma só vez, e o
movimento fez com que sua vela se apagasse, deixando-nos em um breu
absoluto.
Aquele pequeno indício de fogo não nos deixou, entretanto, antes que
eu tivesse um vislumbre de suas feições avassaladoras. Tudo em seu rosto
explicitava uma fúria primitiva, atroz e implacável. Não demorei mais a
concluir que não era apenas a inteligência de Hayden que todos temiam, e
sim… aquela besta que ele mantinha enjaulada. Ele podia ser tão destrutivo
mentalmente quanto fisicamente, eu tive a certeza.
Eu tinha o atingido com minhas palavras. Mais do que achava ser
possível.
Só então voltei a mim, embora minha cabeça começasse a ficar
enevoada, certamente por consequência da bebida.
Apesar da escuridão trevosa, eu captava sua presença por cada poro de
meu corpo. Ouvia a respiração pesada escapar de suas narinas, sentia seu
aroma cortante de menta e ervas e captava sua proximidade ameaçadora por
meus pelos eriçados.
Nunca tinha sentido nada como aquilo. Medo aterrorizante.
A cada segundo que passava, meus pensamentos começavam a ficar
mais turbulentos, e meus membros, pesados. Eu estava começando a ter
dificuldade em assimilar tudo que acontecia naquele momento, mas, mesmo
assim, ainda estava sã o suficiente para que sentisse toda uma eletricidade
que fluiu de seu toque.
Hayden deixou de segurar meu pulso, porém não afastou sua mão.
Pelo contrário, subiu-a lentamente sobre a pele nua de meu braço. Seus
dedos eram ásperos, calejados, e me arranhavam por onde passavam. Ondas
consecutivas de arrepios dilaceravam minha pele, mexendo com meus
sentimentos dominados de temor brutal, mas também fazendo algo com
meu corpo. Acordando-o, incitando-o. Aquilo me causava sensações nunca
antes experimentadas, atrozes ao ponto de eu não saber identificar o que
eram. Isso apenas serviu para me assustar mais.
Sua mão enfim alcançou meu pescoço, e, primeiro, ela apenas
espalmou a região. Descansou ali por algum tempo antes de, sem nenhum
aviso prévio, envolvê-la em um aperto por pouco forte o bastante para me
machucar. Era uma força contida, eu supunha, e, por um instante, perguntei-
me se Hayden estava fazendo muito esforço para controlá-la.
— Quer saber de uma coisa? — seu sussurro áspero soou perto demais
de meu ouvido direito, e eu tive a absoluta certeza de que sua boca não se
encontrava a mais de três centímetros de distância de mim. Eu até podia
sentir seu hálito quente contra minha pele. — Eu deveria estar orgulhoso
por ter obtido alguma reação digna de sua parte. Tenho que admitir, não foi,
nem de longe, tão intensa quanto a que eu busco. “Nós”, “eles”... Você
ainda se deixa expressar mais pelos outros do que por você e não chegou a
fazer uma única referência a si mesma nesse seu discursinho. Ainda assim,
é alguma coisa…
De repente, senti minha audição ser um pouco afetada, e percebi que
minhas pernas estavam ficando cada vez mais e mais pesadas. Àquela
altura, eu já me esforçava para me manter de pé. Senti que era apenas o
pavor que me deixava tão racional quanto o possível.
— Acontece que, você me irritou, pequena aberração. Muito. E, sendo
bem sincero com você, no momento eu não me encontro muito capaz de
sentir nada senão um desejo muito genuíno de retaliação.
Sua mão então foi para minha nuca, e ele a inclinou um pouco,
fazendo com que meu rosto se levantasse um pouco. Embora meus sentidos
estivessem afetados, eu soube que seu rosto agora estava logo de frente para
o meu. Sua respiração mais pesada do que nunca acariciava minha
bochecha.
— Eu poderia matá-la aqui e agora e ninguém saberia. Acredite em
mim, uma parte de mim deseja muito fazer isso, mas… Mas. Eu te quero
viva. Eu te quero mais viva do que você jamais foi, Katrina. E eu vou
conseguir isso, nem que seja da pior forma possível.
Era uma promessa. A pior que alguém faria para mim, eu pressenti.
— Essa será minha retaliação por sua ousadia, pequena aberração. E
eu me contentarei muito mais com isso do que com sua morte. Essa
punição, sim, será o bastante para mim.
Com aquelas últimas palavras, não consegui mais me manter em pé. A
última parte racional e breve de meu cérebro esperou que o choque do chão
encontrasse meu corpo, mas isso nunca aconteceu. Não consegui concluir o
porquê daquilo, pois, naqueles segundos, tudo que pude pensar foi que eu
não podia ter ingerido apenas álcool.
Meus últimos pensamentos foram dirigidos a David, com sua ajuda em
minha bebida. À Ashley com sua promessa de que enfrentaria
consequências por ter aparecido àquela festa. E, sobretudo, a Hayden, que
podia ter sido o único que organizara o que quer que esperava por mim após
a perda de minha consciência.
Gérbera (Asteraceae)
Uma flor silvestre que se adapta a diversos tipos de solo,
e necessita de quatro a seis horas de sol diariamente. A
flor simboliza a beleza da vida e o sucesso.

O primeiro sentido que recuperei foi o tato. Toda a parte de trás do


meu corpo parecia dolorida, pressionada por uma região íngreme,
pontiaguda e desconfortável. Logo comecei a ouvir ruídos de pássaros e
insetos, e, por fim, quando abri os olhos, avistei um denso conjunto de
galhos e folhas acima de mim, cobrindo boa parte do céu azul claro
desprovido de nuvens.
Continuei imóvel ali por mais um bom tempo, tentando recuperar
algumas memórias através da dor de cabeça intensa que me avassalava por
completo. As lembranças do lugar horrível onde eu agora residia e estudava
e das pessoas piores ainda que me rondavam me afligiram de uma vez, e
por conseguinte me lembrei da festa. Àquela que eu nunca poderia ter
comparecido.
Forcei-me a erguer meu tronco tenso e a me sentar, ainda um pouco
desnorteada. Começava a me recordar de que tinham me drogado. David,
provavelmente, mas decerto a mando de Hayden. Ele mesmo confidenciara
de que me esperava naquela noite. Porém… por que ele planejara aquilo? O
que ele queria?
Por um momento, perguntei-me se Hayden apenas tinha me deixado
no lugar que eu desmaiara, mas, olhando ao redor, percebi de imediato que
não se tratavam das mesmas regiões. O ambiente em que eu estava agora
era muito mais úmido, e a vegetação era ainda mais densamente
subtropical. Eu só podia estar mais no interior da Transtacáusia ocidental da
Georgia.
O Instituto ficava nessa mesma Transtacáusia, pois a vegetação, com
pinheiros e algumas magnólias que o rondavam, compunham também o
clima subtropical, porém estava mais à margem da região. Eu sabia disso
pois minha viagem até ali fora em grande parte em áreas de transição. O
Instituto, portanto, ficava mais perto da região oriental, composta por
estepes.
Então… se eu estava mais no interior da Transtacáusia ocidental… eu
devia estar mais a oeste. Que merda era aquela?
Coloquei-me de pé quando entendi a gravidade da situação. Eu estava
longe do Instituto. Alguém tinha me levado para longe. E era muito
provável que não haveria um sinal de vida humana a um raio de, no
mínimo, cinco milhas.
Olhei ao meu redor instintivamente, e só então me dei conta de que
havia uma bolsa jogada no chão e um pedaço de papel preso no chão por
um canivete. Aproximei-me primeiro da folha rasgada, retirando o canivete
e pegando ambos subitamente.
Parabéns, Katrina Sherman. Você foi selecionada para o décimo
sétimo trote de boas-vindas da New Order Institute.
Apenas os fortes podem sobreviver ao Instituto, então está na hora de
você provar que faz parte desse grupo seleto.
Volte viva para o Instituto. Se conseguir.
Eles estavam de brincadeira com a porra da minha cara? Que espécie
de trote era aquele?
Amassei o pedaço de papel e o joguei no chão com toda força que
tinha, frustrada de uma forma genuína, e então abri a bolsa ao meu lado.
Havia apenas uma garrafa de água e uma maçã.
Eu ainda não podia acreditar que aquilo era real. Primeiro cogitei estar
sonhando, ou melhor, tendo um maldito pesadelo, mas tudo ao meu redor
era surreal demais para que meu cérebro conseguisse inventar. Aquilo só
podia ser obra das mentes doentias daquele Instituto.
Como eles podiam ter sido capazes de deixar alguém sozinha no meio
do nada daquela maneira? Aquilo podia ser um possível… assassinato.
Só então me recordei das últimas palavras de Hayden. Não tive certeza
se ele tinha mesmo tomado a decisão final de não me matar. Eu poderia
muito bem morrer ali, sem que ninguém soubesse e nunca me encontrasse.
Fechei minhas mãos em punho.
Eu não temia a morte, e já tinha concluído isso há algum tempo. Mas
eu não daria a satisfação para Hayden e seus amigos de morrer ali, por
causa deles. De forma alguma.
A raiva começou a substituir minha incredulidade muito rapidamente,
e senti uma certa adrenalina adentrar em minha corrente sanguínea.
Respirando fundo, pensei em tudo que precisava fazer. Embora minha boca
estivesse seca e formigando um pouco, não seria muito prudente consumir a
água agora. Assim como a maçã. Eu também deveria dar um jeito de achar
o Instituto até o sol se pôr, porque de forma alguma eu iria querer enfrentar
aquela floresta à noite.
Se quem quer que tivesse me deixado ali havia levado não mais que
uma noite para me largar, eu poderia percorrer todo o caminho de volta em
um dia. Transferi minha atenção para cima, e percebi que o sol ainda não
estava no meio do céu. Devia ser umas sete ou, no máximo, oito da manhã.
Não era tão tarde, porém eu deveria me apressar mesmo assim. Também
pela posição do sol, consegui me localizar. Eu tinha que seguir à leste, pela
região onde a estrela tinha nascido.
Inspirei fundo uma última vez para me preparar, mas então ouvi um
som mais ruidoso atrás de mim que os pássaros e insetos ao meu redor.
Parecia ser de um graveto se partindo atrás de mim. A sensação de estar
sendo observada me afligiu por um momento, e eu envolvi o canivete que
me deixaram com mais força ao seguir em frente sem sequer hesitar.
Estava assustada. Não somente por aquilo, mas pela situação por
completo. E também pela noite anterior. A expressão aniquiladora de
Hayden seria algo que eu nunca deixaria de temer, eu supunha. Contudo,
não podia me deixar concentrar muito naquilo. Eu assimilaria toda minha
angústia anterior e continuaria refletindo na gravidade da situação quando
estivesse segura no Instituto. Ou em menos perigo.
Comecei a caminhada em um ritmo relativamente bom. Andava
rápido, tomava cuidado com todos os trechos íngremes e escorregadios e
lançava um olhar atento para todos os lados o tempo todo. Entretanto, eu
não era exatamente do tipo atlética, então, após quase duas horas de
caminhada intensa e incessante, eu já estava totalmente sem ar, com minhas
pernas pinicando muito e sem força alguma.
Não queria parar, entretanto, mas quando levei meu primeiro tombo,
não consegui me levantar. Decidi pegar minha maçã enquanto descansava.
Sequer consegui me mover para a sombra de uma árvore, apesar do sol
queimando toda minha pele exposta.
Embora a sensação de ser observada continuasse persistindo, dei meu
melhor para aproveitar cada mordida de meu almoço.
Só fui me levantar alguns minutos após chegar à metade da maçã,
quando uma aranha subiu pelo meu braço sem que eu visse e me lançou
uma picada dolorosa. Expulsei-a de mim de um modo desastroso, e minhas
unhas apenas machucaram mais a região, que ficou avermelhada de
imediato.
Bufando, guardei a metade da maçã, catei minha bolsa e me obriguei a
continuar seguindo com os passos intermináveis. Meu ritmo nas horas a
seguir se tornou mais lento, e, devido às minhas pernas exaustas e pesadas,
levei alguns tombos dolorosos. Em talvez quatro horas, as palmas de
minhas mãos estavam todas arranhadas, e minha calça estava rasgada na
região dos joelhos, deixando outros cortes visíveis.
Ainda assim, continuei persistindo, como se o suor de toda extensão
de minha pele, minha respiração falha e meus membros trêmulos não
importassem. Ignorei-os como ignorava meu ódio cru.
Quando imaginei já serem por volta das quatro, pela posição do sol,
comecei a me desesperar um pouco. Eu pensei que, àquela altura, eu já teria
encontrado o Instituto. Comecei a me perguntar se todo meu raciocínio
estava enganado por todo o tempo e se não tinha me distanciado ainda mais.
O clima ficara menos úmido, e a vegetação subtropical, menos
acentuada, mas… ainda havia grandes chances de eu ter ido parar em uma
outra extremidade da Transtacáusia ocidental. No momento em que o
pensamento de que eu poderia nunca encontrar sequer nenhuma casa por
ali, um coelho passou correndo por mim, e diante da distração, assustei-me,
caindo de bunda no chão.
Minha mão direita foi ao encontro direto de um graveto pontiagudo,
abrindo ainda mais a pele dali. Sangue escuro escorreu do corte
imediatamente, cobrindo uma pequena gérbera que florescia na terra, e a
dor tomou conta por completo da região.
Sem pensar muito, eu gritei. Embora sentisse dor, a reação não se
deveu apenas por isso. Eu tinha chegado ao meu ápice.
O berro que escapou de minha garganta durou cerca de cinco
segundos, e foi intenso e foi alto o bastante para fazer com que os pássaros
da região saíssem voando para longe de uma só vez. Quando acabei, eu
estava sem fôlego, porém… ainda não tinha sido suficiente. Sem saber o
porquê, gritei mais uma vez. E uma terceira e uma quarta.
O único pensamento que tomou conta de minha mente foi a certeza de
que eu odiava aquele lugar. Odiava tudo em minha vida e também quase
todos.
O cansaço me consumiu, assim como a ardência que se fazia presente
em cada centímetro de mim pelos mais diversos motivos possíveis, e então
foi inevitável dar meu último berro:
— É PARA ISSO QUE ESTOU AQUI, PORRA?
Eu não sabia se um dia já tinha dado voz à minha ira daquela maneira.
Ou se já tinha me permitido assimilar toda uma raiva.
A sensação que eu sentia era… estranha. Não era tão intensa quanto
alívio, porque nada daquilo mudara minha situação de merda, porém… eu
não me sentia tão intensamente presa dentro de mim. Só fui entender o quão
intensamente me sentia dentro de uma cela de minha própria mente naquele
momento, na verdade. Não sabia que precisava de ter uma escapatória
momentânea até acontecer, mesmo que aquilo tivesse sido mais instintivo
do que planejado.
Também só fui perceber que lágrimas ocuparam meus olhos quando
minha visão foi embaçada. Aquilo não chegava a ser um choro de fato,
porque eu nunca chorava, mas sequer a resposta de meu corpo de deixar
meus olhos lacrimejarem era surpreendente.
Fiquei perdida um pouco dentro de mim mesma, tentando entender o
que acontecia comigo mesma, até um ruído de mais um graveto ser
esmagado atrás de mim soar até meus ouvidos. Levantei-me e dessa vez me
deixei transferir a atenção em sua direção, e, embora não tivesse encontrado
nada, murmurei:
— Vê se para de me seguir, bicho idiota.
Meu coração ainda palpitava aceleradamente no peito quando bebi um
pouco de minha água e retomei o caminho que percorria, como se fosse
minha única opção possível, mesmo que fosse um erro.
Concentrei-me apenas em meus passos dessa vez, tentando afugentar o
desespero de não ter encontrado o Instituto. Eu lidaria com o anoitecer
quando isso acontecesse. Até lá, adiantaria o máximo de caminho possível.
Passo por passo, continuei floresta à dentro. E, algum tempo mais
tarde, o primeiro sinal de esperança me alcançou. Ao alto, havia folhas de
um pessegueiro. Talvez… apenas talvez, eu estivesse mais perto do que
esperava. Só então uma espécie de luz iluminou meu interior.
Não era sem tempo, pois não faltava muito para o sol se pôr.
A mesma impulsividade desconhecida que me fez berrar algum tempo
atrás me fez correr, como se a dor do meu corpo não existisse. Parei
abruptamente poucos minutos depois, entretanto, mas não por conta de
algum tombo ou cansaço, e sim porque…
Havia dois cervos a alguns bons metros de distância. Eles estavam
concentrados na vegetação, comendo-a como se não existisse nenhuma
ameaça ao seu redor. Como se eu não existisse. Eles estavam em paz, e
era… era lindo.
Talvez pela primeira vez no dia inteiro, eu tivesse me deixado prestar
atenção na vida que me cercava. Ao contrário da flora, eu não tinha muito
domínio sobre a fauna, mas era óbvio que os pássaros que cantavam acima
de minha cabeça eram de espécies diferentes. Seus cantos, cores e tamanhos
distintos eram simplesmente… cativantes. Também havia borboletas por
alguns cantos, cada uma seguindo o rumo que a própria natureza definira
para elas. E, voltando a atenção aos cervos, que agora tinham seus olhares,
estranhamente nada desconfiados, em mim, eu entendi que não tinha
experimentado nada como aquilo.
Nunca tinha sentido tanta vida ao meu redor. E por um momento…
por uma fração de segundo, eu senti toda aquela vida me preencher
também. Então, pela primeira vez em dezessete anos, eu entendi que havia
muitos motivos para alguém odiar o mundo, mas que também podiam
existir razões para se amá-lo. Essas razões apenas eram muito mais difíceis
de se enxergar para algumas pessoas, provavelmente. Mas elas sempre
estavam ali.
Fui tirada de minha própria mente quando os cervos mudaram de
postura repentinamente, e, como se eles pudessem me entender, levantei
minhas mãos em paz, tentando fazê-los entender que eu não lhes faria
nenhum mal. Um par de segundos mais tarde, contudo, eu entendi que eles
não me encaravam. Sua atenção estava centrada atrás de mim, e essa
percepção me deixou em estado de alerta instantaneamente.
Minha respiração se acelerou e eu me tornei muito mais ciente do
ambiente ao meu redor. O canivete ainda estava envolto pela minha mão
direita, e eu apertei com força o bastante para expulsar todo o sangue da
região.
Fazendo os menores movimentos possíveis, eu me virei. De súbito,
não encontrei nada, mas após poucos instantes, eu o vi.
O urso pardo de porte médio a uns vinte metros de distância,
escondido parcialmente por um tronco largo. A cena pareceu fantasiosa, era
difícil assimilar que aquela criatura ameaçadora e potencialmente fatal me
observava como uma presa em potencial.
Meus joelhos ameaçaram sucumbir, porém recorri às minhas últimas
energias para me manter de pé, imóvel. Agora, eu mal respirava, com medo
de que qualquer movimento pudesse atraí-lo para mim.
Ponderei minhas opções, e logo concluí que eu tinha apenas duas.
Correr ou ficar. Ambas ruins. O urso me alcançaria facilmente se eu me
distanciasse, e uma hora ou outra ele me atacaria se permanecesse.
Por mais de uma vez desde que chegara naquele Instituto, eu senti que
estava cara a cara com a morte. Naquele momento de pressão, lembrei-me
vividamente de quando pensei que morreria pelo veneno de uma morte. Eu
nunca lutara, apenas aceitara. Era de se esperar que eu fosse ceder uma
outra vez, porém… as coisas não foram tão simples.
Embora minha parte que sempre estivera pronta para desistir ainda
vigorasse em meu interior, agora também havia uma outra parte que parecia
estar pronta para lutar. Algo, uma coisa pequena tinha mudado.
Talvez… apenas talvez fosse toda uma vida que eu havia presenciado
há poucos minutos que ainda me afetava de modo direto. Eu ainda… queria
presenciar tudo aquilo mais uma vez?
O urso se aproximou mais um pouco de mim, com aqueles olhos
sagazes e famintos ainda fixos em mim. Girei o canivete em minha mão,
como se testasse se meus dedos não estavam atrofiados por toda a tensão. O
bicho parou e me encarou mais um pouco, quase me testando, e então
rosnou.
Em instinto, eu dei um passo para trás, inevitavelmente.
E foi então que o verdadeiro terror começou. Ele começou a correr.
Até mim.
No fim, não foi a parte pronta para ceder que prevaleceu. Foi a parte
que queria lutar.
Eu corri como se me importasse verdadeiramente de minha vida
depender disso.
Os segundos se confundiram com minutos e até horas enquanto eu
avançava mais e mais pela floresta, escutando, sentindo o urso avançar cada
vez mais. Correr mais rápido do que eu o fazia. Eu não conseguiria escapar,
tive essa certeza rápido demais. Seria impossível.
Não tive tempo para pensar muito mais. Só que, quando concluí que
ele em breve me alcançaria, eu me virei em direção ao urso em um gesto de
puro instinto. Fui guiada pelo meu próprio corpo antes que minha mente
soubesse o que estava acontecendo.
O urso já estava a quatro metros de distância. Três. Dois.
E foi quando eu me agachei. Apenas um segundo antes que ele pulasse
em mim, pronto para cravar seus caninos em mim. Seus rosnados
indicavam pura ânsia.
Fui para debaixo dele de imediato, e suas garras da pata frontal
esquerda feriram meu braço por completo, porém a adrenalina não permitiu
que eu sentisse muita dor. Mais uma vez, agi por reflexo e rasguei sua carne
desde o pescoço até o meio de sua barriga. Sangue quente molhou boa parte
do meu corpo, e eu esperei que o urso caísse. Ele não o fez.
O rosnado que escapou de si foi mais ruidoso que qualquer anterior, e
não tive dúvidas de que ele estava com muita dor. Mas ele também não
estava pronto para ceder, eu apenas tinha o atrasado. Enquanto ele
continuava a se agitar em cima de mim, tirei o canivete de sua barriga para
atingi-lo no pescoço. Enquanto eu o fazia, entretanto, eu senti que já era
tarde demais. Não haveria tempo para atacá-lo uma segunda vez.
Ainda assim, não parei de lutar. Estranhamente, nenhuma parte de
mim considerou o fazer.
Foi quando, então, que ouvi um som ensurdecedor. Ele foi seguido por
mais um rosnado angustiante. O mesmo barulho soou uma segunda vez, e
então uma terceira. Mais rosnados.
O urso saiu de cima de mim, virando-se. Foi preciso apenas mais dois
segundos para que outro ruído ferisse meus ouvidos novamente e o bicho
caísse a menos de um metro de distância de mim.
A intensidade dos últimos momentos, o ápice de todos meus sentidos
me desnortearam por completo, e, por longos segundos, não soube dizer o
que estava acontecendo. Era como se eu perdesse a razão, a consciência,
justamente como na noite anterior.
Porém eu não cheguei a desmaiar. Ainda havia adrenalina demais em
meu organismo para isso.
Não soube quanto tempo se passou até que eu enfim entendesse o que
tinha acontecido. O urso morrera. A tiros.
E quem atirara… fora Hayden.
Perdi o restante do ar de meus pulmões quando minha visão um tanto
quanto turva avistou o garoto se aproximando com uma maldita espingarda.
Como…?
Não consegui pensar em uma resposta certeira para minha pergunta,
uma justificativa para sua presença repentina, ainda estava afetada demais.
E meu corpo continuava a dominar sobre a mente. Foi por isso que, quando
ele parou ao meu lado e me ofereceu sua mão em silêncio para que eu me
levantasse, eu aceitei. Apenas para, com a outra mão, levar o canivete até
seu pescoço quando parei em pé a centímetros de distância de si.
Avistei seus olhos claros. As pupilas dilatadas, as feições
sombriamente sérias. Ele me encarou de modo lancinante, mas não tive
medo. O canivete encostava em sua pele, mas não ao ponto de cortá-la. Por
milímetros.
Esperei que Hayden reagisse, imaginei que ele era habilidoso o
bastante para escapar dessa situação. Mas ele não o fez. Pelo contrário, sua
mão soltou a espingarda, e ele me encarou como se me desafiasse.
— Vamos. Faça o que deseja. — Sua voz não passou de um sussurro
sombrio, e eu a escutei. Escutei de verdade.
A parte de mim que desejava lutar ainda queimava meu interior como
a pior das chamas. E sua presença era querosene para elas.
— Reaja — ele disse entredentes então. Segurei o canivete com mais
força, cerrando meus dentes com uma força intensa que poderia muito bem
rachá-los.
Continuei fitando seus olhos. Aquelas pupilas dilatadas talvez pelo
prazer, talvez pela adrenalina. Talvez por ambos. Uma parte de mim me
disse que ele temia a morte tanto quanto andei o fazendo antes daquele dia.
Hayden, talvez… morreria feliz ali e agora.
Isso fez com que eu fizesse menção de soltar o canivete. Isso não
aconteceu, no entanto, pois em uma fração de segundo, Hayden segurou
minha mão, mantendo o canivete no mesmo lugar.
— Me diga, já sentiu algo similar ao que te avassalou nos últimos
minutos, pequena aberração? — ele sussurrou, e me forçou a pressionar
mais o canivete em seu pescoço. Sangue escapou da região. — Já
experimentou algo parecido? — insistiu, e mais sangue escapou de sua
garganta. Meu coração ainda batia aceleradamente no peito. Ele sorriu. —
É, acho que não. Porque, até então, você nunca tinha entendido que quer
viver. Nada nunca te obrigou realmente a escolher sua vida de forma tão
ameaçadora e agonizante. Agora me fale, Katrina, qual a sensação de
verdadeiramente prezar por sua vida?
Parecia ter algo atrás de sua pergunta. Hayden pareceu me fazer uma
pergunta cuja resposta não sabia. Ele queria entender como era querer
viver?
— Tudo bem — ele murmurou diante de meu silêncio, apenas
alargando seu sorriso. — Entendo que ainda não tenha minha resposta.
Aposto que tudo é muito… novo para você. E talvez não muito certeiro.
Mas continuaremos trabalhando nisso, não se preocupe.
Foi então que empurrei seu peitoral enquanto um ruído gutural de
tensão e adrenalina cruas escapou de minha garganta, apenas para que
Hayden me soltasse. Ele o fez. Também soltei o canivete de imediato.
Não quis mais perder meu tempo com aquele garoto, nem mesmo para
verbalizar as palavras horríveis que começavam a ganhar espaço em minha
mente. Então, eu simplesmente girei os calcanhares e corri.
— Fuja o quanto quiser, pequena aberração. Você nunca escapará de si
mesma, de qualquer maneira.
Deixei suas palavras para trás.
Corri, corri e corri. Estava fora de mim.
Já estava de noite quando, sem saber como ou de onde, avistei as luzes
do Instituto.
Estava exausta, mas, passo por passo, entrei na propriedade. E,
conforme avançava mais e mais, mais olhares eram desviados a mim.
Olhares surpresos… assustados. Foi apenas então que me dei conta de que
estava coberta de sangue seco, e que a manga comprida de meu braço
esquerdo estava despedaçada em três cortes, dando lugar a também três
cortes que sangravam.
Não me importei com a dor, com meu próprio sangue e nem mesmo
com a maneira que eu era notada, enxergada como nunca havia sido. As
pessoas abriam espaço para mim.
Que bom, foi tudo que me veio à mente.
Era bom que me temessem. Porque, de certa forma, eu também tinha
motivos para temer a versão de mim que eu sequer sabia que existia até
agora.
Cajueiro (Anacardiaceae)
Dotado de diversas propriedades biológicas, destacando-
se anti-inflamatória, antimicrobiana, antioxidante e
cicatrizante.

Os cortes em meu braço esquerdo estavam me matando.


Mal sabia como tinha chegado à última aula sem desmaiar. Eu não
podia ter me dado ao luxo de faltar, porque faltas só eram permitidas com
atestado médico dado pela enfermaria. E claro que eu também não podia ter
comparecido à enfermaria, uma vez que aqueles três cortes no meu braço
eram, no mínimo, suspeitos. A floresta era zona proibida, e não teria como
eu explicar como tinha conseguido um machucado de garras sem ter estado
por lá.
Felizmente, dois dos cortes de cerca de trinta centímetros era mais
superficiais, mas o terceiro, o da direita, era mais profundo. Eu tinha
enfaixado meu braço com um pedaço de tecido por baixo do uniforme, na
esperança de estancar o sangramento constante. Tinha funcionado, porém a
dor ainda era dilacerante. Eu não tinha remédios.
Não tinha ideia de como daria conta de limpar o primeiro andar após o
almoço.
O sino deu final à aula de Literatura, onde por alto tinha escutado o
professor mandar como dever um poema sobre nossos sentimentos mais
profundos que ficaria sob seu sigilo, então peguei minha bolsa rapidamente
para dar o fora dali. Não foi difícil ser a primeira a sair da aula. Todos
abriram caminho para mim rapidamente, olhando-me torto. Parecia que os
boatos corriam soltos por aquele Instituto, e era como se todos eles
soubessem o estado em que eu voltara do maldito trote. Tinha escutado
cochichos em minha segunda aula sobre a suposição de que eu tinha sido
atacada por três porcos selvagens e matado todos com minhas mãos. Isso
era um pouco ridículo, porque esses animais nem garras tinham.
Só fui impedida de continuar seguindo em frente no corredor quando
Helen se colocou em minha frente.
— Finalmente — murmurou exasperadamente, como se estivesse me
esperando. — Estava preocupada com você. Todos aqui estão falando da
sua caminhada da vitória de ontem, coberta de sangue. O que diabos
aconteceu? Você está bem?
Continuei andando, e ela me acompanhou.
— A maior parte daquele sangue não era meu, mas estou com alguns
cortes feios no meu braço. Um urso me atacou — expliquei a contragosto, e
senti seus olhos se arregalaram em mim.
— Como é que é? Você está falando sério?
— Estou, sim — eu disse em um resmungo.
— Ei, por que você está tão ranzinza? Isso tudo é só dor ou…
— Ou o fato de que eu pensei que realmente podíamos ser amigas? —
completei, e Helen levou a mão em meu ombro, impedindo-me de continuar
com meus passos apressados.
— Do que você está falando?
— Por que você não me avisou sobre o trote de boas-vindas? Entendo
que tenha medo e que você não queria se meter em problemas ao revelar os
planos daqueles idiotas, mas puta merda, Helen, eu fui deixada sozinha na
floresta a dezenas de milhas do Instituto sem ter ideia do que estava
acontecendo.
— Katrina… Eu não tinha ideia de que eles iriam fazer isso com você.
Quando eles aplicam trotes em novatos, são sempre mais… suaves, à
medida do possível. Na maior parte das vezes, eles só os deixam amarrados
e trancados em alguma sala vazia e os soltam após vinte e quatro horas. O
trote da floresta foi aplicado apenas a duas pessoas, e todos homens. Nunca
pensei que poderiam fazer isso com você — ela sussurrou no meio do
corredor, e pareceu sincera. Ainda assim, fiquei hesitante, mas apenas por
poucos segundos.
Suspirei por fim.
— Tudo bem, me desculpe por presumir que você estava escondendo
isso de mim — murmurei, sincera. — E quem enfrentou esses dois trotes?
— Brad e, hum... George. Voltaram vivos, mas apenas após cerca de
três dias. Não sei como você conseguiu voltar tão rápido, a floresta é um
labirinto.
— Consegui por conta das vegetações.
— Inteligente. Acho que os outros foram seguindo o mapeamento das
estrelas.
— Não iria esperar anoitecer — expliquei. — E quem organizou esses
trotes para os garotos? Hayden?
— Exatamente.
— Por quê?
— É provável que fosse um teste. Sabe como é, ele possivelmente
estava à procura dos elos mais fortes daqui.
— Engraçado. Ele não deveria estar em busca dessas espécies de
provas de resistência se nunca provou isso a si mesma. O trote não foi
aplicado a ele, certo?
— Hum… é. Mas não teria como. O trote é para novatos, e Hayden já
estava aqui antes de todo mundo que estuda atualmente no Instituto,
aparentemente. Ninguém sabe ao certo quando ele ingressou. E, além do
mais, Hayden sempre caçou pela floresta. Ele deve conhecê-la como a
palma de sua mão.
Tantos mistérios. Isso começava a me irritar.
— Tá, que seja. Tenho mais com o que me preocupar do que com as
loucuras desse perturbado. Preciso dar um jeito nos cortes do meu braço,
estou com medo de inflamarem.
— E pretende cuidar deles como? Imagino que não queira ir para a
enfermaria.
— Não, não vou mesmo. — Expirei o ar pesado pela boca. — Acho
que vou até a estufa procurar por folhas de cajueiro. Elas têm propriedade
cicatrizante, talvez ajudem um pouco — acrescentei, lembrando-me do que
Hayden tinha me dado para ajudar com os cortes da minha bochecha.
Estava um pouco relutante, claro. Não pisava na estufa desde o
episódio com sua cobra, mas aquilo era necessário. Como se Helen visse a
hesitação estampada em minhas feições, disse:
— Eu vou com você.
Estava aliviada, mas ainda assim perguntei:
— Tem certeza? Talvez não dê tempo para você almoçar.
— Larga de besteira. Vamos logo.
A garota então saiu me puxando entre o pequeno tumulto que se
dirigia ao refeitório. Passamos direto pelo local, e, poucos minutos depois,
já estávamos na área livre do Instituto, em direção à estufa.
Só me dei conta de que prendia minha respiração quando a soltei de
uma só vez ao ver a estufa vazia. Vaguei pelos corredores do local buscando
pelas mudas específicas.
— Estamos procurando o quê mesmo? Cajueiros? — ela perguntou
após uns dez minutos de procura vã.
— É.
— E você tem certeza de que eles têm isso aqui?
— Hum… uma vez, Hayden me ofereceu elas. Ele só pode ter
conseguido aqui.
— Hayden te ajudou? — perguntou, embasbacada. Helen não sabia
muito sobre nossa dinâmica. Aquele garoto, nem de longe, era meu tópico
favorito de assunto.
— Vai por mim, a motivação foi cem por cento egoísta — resmunguei.
— Mesmo assim, isso é muito estranho.
Mais alguns minutos se passaram, e eu comecei a ficar impaciente. A
estufa era grande, mas, ainda assim, eu não deveria demorar tanto para
encontrar aquelas mudas. Não estava avistando-as em lugar nenhum.
— Hum, Katrina? Eu acho que elas não estão aqui, você já rondou por
todos os corredores.
— Elas têm que estar aqui.
— Mas não parece que estão. Talvez Hayden tenha as conseguido em
outro lugar. Se ele te ajudou uma vez, mesmo que por motivações próprias,
você não acha que poderia…
— Não — cortei-a apenas. Não queria sua ajuda.
— Mas, Katrina, você não tem tantas opções assim. Se seus cortes
estão tão feios quanto você diz que estão, eles não vão cicatrizar sozinhos
tranquilamente. Isso pode até gerar alguma infecção, e você sabe.
— Helen, eu não vou pedir a ajuda daquele psicopata. E, mesmo se eu
fizesse, ele provavelmente não me socorreria de nenhuma forma. Afinal, foi
ele que me mandou para aquele maldito trote, e eu só estou tão machucada
porque ele quis assim.
— Tá, eu sei. Mas ninguém nunca consegue prever as decisões de
Hayden. Ele é imprevisível e age de acordo com seus desejos estranhos,
então há uma chance de…
— Esse assunto acabou aqui — eu disse, adotando uma autoridade
estranha, nada comum. Helen provavelmente percebeu isso, porque se
calou.
Continuei entretida em minha busca até que ela se pronunciasse de
novo:
— Ok, tudo isso está sendo muito inútil. Vou comer agora, tá bem? Vai
ficar aqui?
— Vou.
— Vou tentar guardar as frutas que dão de sobremesa para você. Te
procuro depois.
— Obrigada.
Suspirando e já sozinha, passei pelo primeiro corredor pela quarta vez,
lançando meu olhar agitado por todos os canteiros. Onde estava aquela
merda?
Os segundos se confundiram com os minutos conforme eu avançava
pelos mesmos lugares daquela estufa, e, após minha quinta passagem por
todos os mesmos cantos, eu me deixei concluir que não havia cajueiro por
lugar nenhum. Grunhi por um momento, genuinamente frustrada. A dor que
latejava no meu braço o tempo todo também contribuía muito para me
deixar cada instante mais estressada. Então, como na tarde anterior, eu
estranhamente deixei extravasar um pouco daquele sentimento de tensão ao
resmungar:
— Merda.
Um riso atrás de mim chamou minha atenção, então eu girei os
calcanhares de imediato. Meu olhar se deparou com Hayden
instantaneamente. Ele estava escorado na porta de entrada e com os braços
cruzados sobre o peito, relaxada. Ele me observava como se eu fosse sua
fonte favorita de entretenimento.
Foi inevitável perceber o fino corte de cinco centímetros que decorava
seu pescoço.
— O que você está fazendo aqui, hein? Sua mascote não pode esperar
que eu saia para dar sua voltinha rotineira?
Outro riso nasalado.
Argh.
— Não blasfeme contra Lilith. E não estou aqui por ela. Estou aqui
por você, pequena aberração.
— Como é que é?
— Você tem uma boa amiga, sabe? Apreciei muito a coragem dela de
interromper meu almoço para pedir logo por minha ajuda. Fiquei tentado a
abaixar suas expectativas quanto a mim, mas imaginei que, se a situação
tivesse a obrigado àquilo, ela não deveria estar muito boa. Tive que vir ver
com meus próprios olhos.
O quê?
Helen tinha mesmo feito aquilo?
Bem, eu também apreciei muito sua iniciativa. Mas ela era
absolutamente desnecessária.
— Não preciso da merda de algumas folhas de cajueiro de você. Pode
voltar para seu almoço, vou dar o meu jeito.
Comecei a andar em direção à saída, e fiz menção em passar
diretamente por ele. Odiava estar no mesmo ambiente que aquele filho da
puta estranho. Não foi possível deixá-lo, entretanto. Hayden me barrou com
aquele braço cujos músculos eram irritantemente delineados atrás de seu
uniforme.
— Tem razão, acho que você não precisa mesmo dessas folhas. Porque
imagino que seu ferimento das garras do urso não estejam tão superficiais
para necessitar apenas de intervenção natural — disse, já retomando sua
usual seriedade sombria. — Arregace sua manga. Quero ver o estado.
— Sai da minha frente de uma vez — eu disse apenas, e ele
semicerrou os olhos em minha direção. Não gostou de ser ignorado.
Tentei passar por ele novamente, mas dessa vez Hayden foi mais bruto
ao me impedir. Uma de suas mãos segurou meu ombro enquanto a outra
tentou arregaçar a manga de meu braço machucado. Instintivamente, levei a
mão ao meu pulso, segurando o tecido com força.
Ele grunhiu, irritado, e então seus movimentos passaram a ser muito
rápidos para que eu sequer pudesse assimilá-los antes de impedi-los. Suas
mãos foram para os botões de meu uniforme, e elas o abriram de uma só
vez sem dificuldade alguma, fazendo com que alguns daqueles botões
caíssem no chão.
Por um momento, perguntei-me quantos uniformes de garotas ele já
tinha rasgado daquela maneira.
Soltei um ruído tanto de protesto quanto de susto, mas já era tarde
demais. Hayden já tinha exposto a fina regata branca que eu usava por
baixo do uniforme e enroscado a camiseta nos meus pulsos. Ainda com
movimentos precisos e olhar centrado, ele desamarrou o curativo
improvisado de meus cortes que eu tinha feito com tecido, e isso doeu.
Tentei me distanciar de seu toque mais uma vez, só que com mais violência
diante da sensação dolorosa, mas ele me segurou pelo antebraço, já
avaliando meus cortes.
— Será que dá para me soltar? Eu já disse que não quero sua ajuda. E
você também não tem intenção nenhuma de me ajudar!
Sem tirar os olhos do ferimento, ele disse em uma calma fria:
— Não faça tantas suposições sobre mim. Isso pode frustrá-la.
Bufei, tentando ignorar o aperto firme de suas mãos quentes sobre
minha carne. Isso que me fez transferir o olhar para meus cortes, e só então
percebi que o corte direito parecia um pouco pior do que naquela manhã,
quando o cobri com tecido. A região ao redor da pele aberta estava inchada,
e a cor era de um vermelho mais escuro do que antes. Isso me assustou um
pouco.
Hayden torceu meu braço um pouco enquanto analisava-o.
— Vai precisar de pontos. Isso não vai cicatrizar sozinho. — Foi só
então que ele me soltou, mas apenas um segundo antes de levar as costas de
sua mão até minha testa. Aquela proximidade me desconcertou, assim como
seu olhar atento a cada centímetro de meu rosto. — E você ainda está com
febre. O corte está inflamado. Vai precisar de medicação.
Apenas quando ele recolheu sua mão que fui capaz de dizer:
— Acontece que eu não posso ir para a enfermaria com os cortes dessa
aparência, seu idiota. Eles vão saber que estive na floresta.
— Ninguém falou sobre enfermaria, pequena aberração — foi tudo
que ele disse, voltando com o uniforme para o lugar e o fechando com os
botões que restavam. — Vamos.
Ele levou sua mão até a base de minhas costas para me conduzir em
frente. Desvencilhei-me no mesmo momento.
— Não vou a lugar nenhum com você! Prefiro que meu braço
apodreça do que ter sua ajuda.
Ele se virou para mim com feições sombrias.
— A escolha é inteiramente sua, mas espero que a tome com muita
cautela. Porque é justamente isso que vai acontecer se você não cuidar
desses cortes. A região pode infeccionar, e a infecção pode se alastrar pelo
braço. Você pode adivinhar o que irá acontecer depois.
Eu poderia… ter que amputar. Arregalei os olhos.
— É, pois é — ele disse, quase que entediado, quando percebeu o que
eu pensava. — Vou te dar uma última chance de vir comigo, Katrina. Caso
não aceite, voltarei para meu almoço que sua amiga então terá interrompido
por motivo nenhum. Saiba que, caso realmente tome essa decisão, ela não
será muito favorável para vocês duas.
Semicerrei os olhos.
— Isso é uma ameaça?
Um canto de seus lábios se ergueu.
— Não sei. É?
Manipulador desgraçado.
— Você sabe que já tomou sua decisão. Vamos de uma vez.
E, sem esperar por nenhuma resposta, ele girou os calcanhares e se
distanciou. Hesitei mais um pouco, entretanto. Eu não era extremamente
orgulhosa, não tinha tanto senso de autopreservação para isso, porém… de
forma alguma que eu queria sua ajuda.
Mas também não queria perder meu maldito braço, e não queria ter
que enfrentar mais punições da direção, e talvez dessa vez do próprio Dr.
Cole, ao violar mais uma regra do Instituto após comparecer à enfermaria.
E de forma alguma que eu queria que Hayden voltasse sua ira à Helen.
E, de todo modo… eu só estava machucada por causa daquele imbecil.
Ele não faria mais que sua obrigação de tratar meu ferimento.
Expirando o ar pesado pela boca, apressei-me para alcançá-lo.
Entramos pela porta principal dos fundos do Instituto, mas não
passamos pelo corredor que levaria às escadas. Hayden me guiou por
algumas portas que eu sequer sabia que podíamos passar, e então chegamos
a uma escada mais estreita, que, pelas janelas, ficava na extremidade
esquerda do casarão. Chegamos ao segundo andar e ele me guiou por mais
alguns cantos que me eram desconhecidos até chegarmos em uma área que
eu não conhecia. Ela era parecida com a área dos dormitórios femininos,
entretanto, então imaginei que estávamos na região dos dormitórios
masculinos. Alguns garotos passavam por nós e me encaravam de cima
abaixo, porém, após as últimas horas, já estava acostumada com aqueles
olhares inconvenientes.
Minhas mãos gelaram quando tomei ciência da presença de um
inspetor, que vigiava o lugar tal qual uma inspetora vigiava o corredor dos
dormitórios femininos. Já esperei pela proibição de seguir em frente e
ameaças de punições, mas isso não aconteceu.
O inspetor lançou um olhar de dois segundos para mim antes de
encarar Hayden por menos tempo ainda e desviar a atenção. Passamos
direto por ele.
Fiquei um pouco assustada diante de como era fácil para Hayden
violar muitas regras ali, mas não fiz observação alguma quanto a isso.
Chegamos ao fim do corredor, e ele abriu a última porta dali.
Fiquei estática na porta por um tempo, assustada por onde estávamos.
O réptil dentro de uma gaiola de vidro não deixava dúvidas.
Hayden tinha me levado ao seu quarto.
Girassol (Asteraceae)
Seu caule gira, posicionando a flor em direção ao sol
durante a fase de amadurecimento. Um ditado popular diz
que representa a felicidade — ou a esperança de uma.

Fiz uma observação minuciosa do cômodo. A primeira coisa que


percebi foi que seu quarto não era compartilhado, e era maior que o lugar
onde eu e Ashley dormíamos.
Havia uma cama de casal perfeitamente arrumada no canto direito, um
armário grande na parede frontal e uma escrivaninha ao seu lado com
alguns livros. Freud e Carl Jung se destacavam. Já à esquerda, estava a larga
gaiola de vidro de Lilith, com terra em seu fundo. O modo como o réptil me
encarava me deu calafrios, e a cicatriz que ela me deixou pareceu queimar
por um segundo, então desviei o olhar. Logo ao lado, em frente à larga
janela, estavam distribuídos alguns — muitos — vasos de plantas de vários
tipos. Gostei de ver que havia muitos cactos, mudas do maldito cajueiro,
caladium e... girassóis. Era a única planta que esbanjava cor no quarto. Não
parecia ser do feitio da versão que eu conhecia de si. Talvez a única versão
existente.
Por um instante, foi inevitável ficar irritada por Hayden ter todos
aqueles privilégios. A inspetora Foy não me deixara entrar com minhas
mudas e sementes.
— Entre logo. E feche a porta. — A voz de Hayden chamou minha
atenção, e só então percebi que ele tinha puxado a cadeira de madeira de
sua escrivaninha para o lado da cama, e remexia uma pequena maleta cinza
em seu colo. Engoli em seco, não querendo me trancar em um lugar com
ele, mas o garoto, como se realmente pudesse ler pensamentos, disse: — Se
eu pretendesse te matar, teria o feito na floresta naquela noite, pequena
aberração. Daqui seria muito mais difícil desovar seu corpo.
Ele falou aquilo com tanta naturalidade como se fosse um assunto
plenamente normal. Fiz uma careta, mas me obriguei a fechar a porta.
— Sente-se e tire a camiseta.
Suspirei.
Ainda não acreditava em tudo que estava fazendo.
Aproximei-me dele, e só então consegui ver o que estava na sua
maleta. Material de sutura. Hayden já envolvia uma linha grossa na agulha.
— Ei. É você quem vai costurar meu braço? — perguntei, atônita.
Tédio brincou em seu olhar quando me encontrou.
— Quem mais?
— Eu… não sei, eu pensei que você iria chamar algum enfermeiro
escondido ou algo assim. Todos aqui parecem fazer o que você manda, de
todo modo. Eu não vou te deixar mexer nesse corte, ficou maluco de vez?
— Posso te garantir que eu tenho muito mais experiência do que
qualquer enfermeiro deste Instituto.
— Bem, eu não vou confiar em ninguém que não tenha um diploma
para suturar minha pele — eu retruquei, mesmo sabendo que estava
testando a paciência de Hayden. Em seu próprio território.
Involuntariamente, olhei para a cobra, que eu jurei estar me
ameaçando com o olhar.
Voltei a atenção a Hayden quando o ouvi apoiar a maleta metálica com
força no chão e se colocar de pé. Sem paciência alguma, ele começou a
desabotoar sua camisa, o que fez com que eu perguntasse:
— O que você está fazendo?
Ele não me respondeu de imediato. Apenas tirou de vez sua camiseta,
deixando seu tronco nu. Prendi a respiração quase que instintivamente. Os
músculos de seu abdômen eram assustadoramente esculpidos, assim como
os de seus braços; seus tríceps e bíceps pareciam duros como pedra, não
dando lugar a nenhuma camada de gordura. Não tive dúvidas de que toda
aquela boa forma era apenas um belo convite ao perigo.
Não foi apenas seu corpo definido que chamou minha atenção, mas
também a tatuagem de cobra que dava voltas por todo seu tronco até chegar
no pescoço, e, principalmente, as inúmeras cicatrizes avermelhadas que
adornavam sua pele pálida.
Havia algumas semelhantes aos meus cortes em seus braços. Garras.
Mas também havia cicatrizes de outras diversas formas por outras regiões;
no peitoral, logo ao lado do umbigo, no ombro. Algumas eram largas, e
outras mais finas, porém ainda muito vermelhas. Algumas carregavam
consigo marcas de pontos ao seu redor.
Tudo nele… exalava ameaça pura. Era intimidador.
— Ainda precisa de algum diploma? — perguntou sombriamente, e
então voltei a encarar seu rosto. Engoli em seco.
— Esses cortes… todos eles, foi realmente você que costurou?
Nele mesmo? Isso não deveria ser impossível?
Tudo que Hayden fez foi gesticular para sua cama. Ainda queria que
eu me sentasse.
Não soube exatamente o porquê, estava muito afetada pelo que estava
em meu campo de visão, mas não hesitei muito mais. Apenas desabotoei
minha camisa, tomando o cuidado para deixá-la enroscada nos pulsos, e me
sentei em seu colchão enquanto Hayden voltou a se sentar em sua cadeira e
a se concentrar na linha e na agulha.
No momento em que ele se inclinou um pouco para frente, arregalei
meus olhos diante do reflexo delas no espelho do outro lado do quarto, e
então me dei conta de que o que eu tinha visto há poucos segundos não era
nem um terço das cicatrizes que Hayden carregava.
Suas costas… por Deus, eram cobertas da pele mais retorcida possível.
Até mesmo a tatuagem se tornava inconsistente.
— As cicatrizes das costas… Você não costurou elas, costurou?
Hayden me encarou de imediato. Pela primeira vez, parecia um
pouco… assombrado. Ele olhou para trás, e viu que o espelho revelava seu
reflexo. O garoto então pegou sua camiseta no chão sem dizer sequer uma
palavra e a vestiu. Não se preocupou em abotoá-la.
Eu senti como se eu fosse a primeira pessoa em muito tempo que via o
que Hayden não desejava que ninguém visse. A sensação foi estranha.
Fiquei sem reação enquanto ele acabava de arrumar o material de
sutura, e só fui reagir outra vez quando ele pegou uma garrafa de vidro de
um líquido transparente.
— O que você vai fazer?
Sem nenhum aviso prévio, ele apenas derrubou o líquido em meus
cortes. Imediatamente tive a certeza de que nunca experimentara uma dor
como aquela, que queimava e que corroía minha pele. Tive que morder
minha língua para não gritar.
— Você faz muitas perguntas. Fique quieta e facilite as coisas para
mim.
— Eu que tenho que facilitar as coisas para você? — rebati
entredentes quando a ardência alucinante começou a me deixar um pouco.
— Você está de brincadeira?
Hayden se aproximou com a agulha e a linha, e eu me desvencilhei
dele de súbito.
— Cadê a anestesia?
O garoto revirou os olhos e então segurou meu braço com sua mão
esquerda, imobilizando-o, e deu o primeiro furo com a agulha no começo
do corte direito.
— Ai, meu Deus, meu Deus! Para, tá doendo muito!
— Eu nem comecei.
— Não vou aguentar, tá? Pode parar. Tira, tira.
Tentei me movimentar, mas ele continuou me imobilizando com sua
mão.
— Não vou tirar e não vou te deixar sair daqui enquanto eu não
acabar, então facilite as coisas para nós dois. Você foi mais corajosa que
isso ontem, não seja tão decepcionante.
— Cala a boca! Você não tem direito de falar nada disso para mim.
Você ao menos tem alguma ideia de que eu só estou com esses malditos
cortes por sua causa? Foi você que…
Naquele momento de distração, Hayden furou o outro lado do corte,
puxando a linha. Contorci-me por completo. A sensação era simplesmente
agonizante. Pensei que minha pressão ia cair, e o garoto aproveitou mais
esses segundos para enrolar a linha duas vezes na tesoura e, com um
movimento confuso, dar o primeiro nó.
— Tá legal, não tem a mínima chance de eu aguentar isso sem
anestesia.
Ainda me ignorando, Hayden avançou para me furar novamente,
porém dessa vez me remexi toda, impedindo-o de achar um lugar para
fincar a maldita agulha. Ele apertou meu ombro e aproximou seu rosto do
meu. Suas sobrancelhas grossas estavam franzidas, e uma veia começou a
saltar de seu pescoço.
— Quer parar com essa porra? Você está fazendo com que seu corte
sangre, não está vendo?
Estranhei o modo como ele falou, suas palavras. Nunca tinha o ouvido
falar algum palavrão ou dizer uma sentença tão rapidamente assim.
— Eu não me importo. Eu…
— Tudo bem, vamos fazer isso da pior maneira, então — ele me
cortou, sombrio, e se sentou na cama ao meu lado. O aperto que deu no meu
braço foi muito mais firme que qualquer anterior, o que fez com que meu
corte doesse ainda mais. Quando ele passou a agulha em mim pela terceira
vez, todo o ar escapou de meus pulmões.
Não consegui mover meu braço, mas não fiquei quieta por um
segundo sequer. Hayden não pareceu ligar. Ele era rápido na sutura, mas
isso não fazia a ardência diminuir, de forma alguma. Logo, meus olhos
começaram a lacrimejar, porém eu não queria chorar na frente daquele filho
da puta, então, mesmo através da dor, me forcei a questionar entredentes:
— Você pode pelo menos tentar me distrair, então?
Hayden franziu o cenho e me encarou por um segundo. Um canto de
seus lábios se retorceu para cima.
— Não está esperando demais de mim?
Outro furo.
Se ele não iria ter a iniciativa, então eu iria. Fiz a primeira pergunta
que me veio à mente:
— Por que eu fui escolhida para aquele trote idiota? Por que eu fui
uma das poucas exceções?
No começo, pensei que Hayden não iria me responder. O silêncio que
se fez no quarto foi descomunal, porém, após longos segundos, ele disse:
— Porque você é capaz.
— Não tinha como você saber isso.
— Aparentemente, eu sabia, sim — ele contestou, quase vangloriando
a si mesmo. — Foi um tempo recorde o seu, sabe?
— Isso foi uma coisa doentia de se fazer, Hayden — eu sussurrei, com
raiva, e ele voltou o olhar para mim novamente. Mais especificamente, para
minha boca. Parecia ter sido pego desprevenido. Só então me dei conta de
que eu nunca o tinha chamado pelo nome.
Era como se, pela primeira vez, eu admitisse sua existência para si
mesmo.
Hayden demorou com o olhar em minha boca, e ele estava tão perto
que eu podia sentir sua respiração calma acariciar minha pele. Seus dedos
pesados ainda repousavam sobre meu braço, e eu sentia sua presença como
nunca antes.
Um arrepio estranho percorreu toda extensão de minha pele, não foi
possível controlar isso. E então meus mamilos enrijeceram debaixo de
minha regata branca.
O garoto tomou consciência disso rápido demais. Amaldiçoei-o
quando sua atenção se desviou para meus peitos. Um riso nasalado escapou
de si, e ele voltou a fitar meu rosto. Ele nitidamente estava consciente do
efeito indesejado que causara em mim, e não poderia estar aproveitando
mais o momento. Semicerrou seus olhos para mim por uma fração de
segundo antes de voltar a atenção à sutura.
Decidi ignorar aquele último par de minutos para meu próprio bem, e
então continuei:
— Me deixar lá na floresta, longe de qualquer lugar com vida humana,
sozinha… Isso passou de todos os limites.
— Você não estava — contestou calmamente.
— O quê?
Ele não esclareceu.
O que ele queria dizer? Que eu não estava sozinha?
Eu ainda não sabia explicar sua presença na floresta, quando o urso me
atacou. A possibilidade mais provável para mim até então era que Hayden
estava caçando ao redor e me encontrou por acaso, mas aquelas suas
palavras… davam a entender o contrário.
— Você esteve lá o tempo todo, não esteve? — Minha voz não passou
de um sussurro.
Ele não me respondeu.
— Então por que demorou tanto para atirar no urso? Você deixou ele
me atacar primeiro.
— Ninguém interfere nos trotes — constou apenas, o tom seco, sem
vida. — Ninguém esteve com os meninos quando eles foram largados na
floresta.
Ele não me encarava, mas eu o observava com toda a atenção do
mundo.
— Mas… você esteve comigo.
— Para te avaliar. Para saber se a experiência te afetaria do modo que
deveria afetar.
Ainda não fazia sentido.
— Se você não tinha a intenção de interferir… por que levou sua
espingarda, Hayden? Por que você interferiu, mesmo que tarde?
Seu silêncio significou algo. Ele mesmo não sabia a resposta.
Seu olhar enfim encontrou o meu. Não soube dizer com certeza se o
que Hayden sentiu foi confusão, porque isso não fazia nem um pouco o
feitio dele e do que todos pensavam dele, porém… foi o que seus olhos
transpareceram.
Minha respiração se tornou mais pesada, e eu pude jurar que, pela
primeira vez desde que conheci aquele garoto, sua respiração também se
alterou, nem que fosse por um pouco. Observei-o trincar o maxilar com
uma força excessiva enquanto me fitava com aquela impiedade crua,
intensa o bastante para fazer um arrepio estranho tomar conta de minha
pele. Ele pareceu se dar do efeito instintivo que causou em mim, pois enfim
relaxou um pouco quando um canto de seus lábios se repuxou para cima.
De alguma forma, sua atenção continuou fixa em meus orbes.
Quis sustentar aquele olhar febril que eu não podia decifrar. Quis de
verdade.
Mas não consegui. Porque acabei levando a atenção, em um estranho
reflexo, para seus lábios. Meu coração estranhamente palpitou mais forte, e
Hayden tornou aquele seu maldito sorriso mais explícito.
Naquele momento, felizmente, a porta de seu quarto abriu, chamando
minha atenção. Brad e David entravam falando alguma coisa, mas pararam
quando me viram. Expirei o ar que andava prendendo de uma só vez.
Hayden aproveitou e puxou a linha de uma só vez e deu um último nó
apertado, o que me fez me contorcer mais violentamente.
— Ai!
— O que ela está fazendo aqui? — Brad perguntou, semicerrando os
olhos para mim.
Nem eu, nem Hayden o respondemos.
Hayden apenas cortou o fio de vez, e eu me permiti conferir a sutura.
Tinha ficado… surpreendentemente boa. Ele limpou a região com um
algodão com movimentos precisos e colocou um curativo sem muita
demora. No instante em que acabou, disse com uma certa autoridade:
— Pode colocar sua blusa agora.
Foi o que eu fiz. Porque Brad e David me encaravam fixamente do
outro lado do quarto.
— Não consegue aguentar um cortezinho sem dar pontos? Patético —
Brad me provocou.
Essa provocação era diferente de suas demais, contudo. Tinha mais
amargura implícita ali.
Arqueei as sobrancelhas.
— Está nervosinho por quê? Porque uma patética como eu conseguiu
sair do meio da floresta em um terço do tempo que você o fez? —
resmunguei inevitavelmente, e, ao meu lado… Hayden riu.
— Sabe, eu realmente gosto muito mais dessa sua versão, pequena
aberração — Hayden disse enquanto limpava seus dedos sujos de meu
sangue como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Aquilo fez com que eu fechasse a boca.
Brad o encarou com ressentimento, mas logo voltou o olhar para mim.
Esperei que ele me contestasse com o fato de ter tido uma intervenção no
meu trote, mas isso não aconteceu. Perguntei-me se ele não sabia o que
Hayden tinha feito… Parecia que não.
Hayden se levantou e foi até sua escrivaninha, pegando sua bolsa dali.
Ele a abriu e pegou um frasco de remédios, e não pude deixar de notar um
frasco de vidro cujo lacre indicava “anestesia”.
— Isso é sério? — Apontei para o frasco, indignada.
Tudo que Hayden fez foi rir novamente, piscando um olho para mim.
— Você está se mostrando uma garotinha muito forte. Deveria se
orgulhar.
— Meu braço não para de latejar de dor, e agora eu vou ter que fazer a
limpeza do terceiro andar desse jeito, seu babaca!
Peguei o frasco de remédios de sua mão, que provavelmente era um
anti-inflamatório, de uma só vez e me coloquei de pé. Só então que percebi
que um risinho tomava os lábios de Brad. Com passos duros, parei à sua
frente e disparei:
— Podem rir da minha cara mesmo. Isso nunca vai mudar o fato de
que sou muito mais esperta do que vocês dois. Tivemos a certeza disso
ontem. Assim como todos no Instituto.
Brad se calou de imediato, e arregalou um pouco os olhos, como se
estivesse surpreso com minha provocação mais explícita. Eu também
estava. Nem por isso me impedi de falar por último:
— Tchauzinho, perdedores.
Não hesitei mais em sair do quarto, e, mesmo após eu fechar a porta
com força, a risada genuína de Hayden me perseguiu por muito tempo.
Senti-me bem. Assustadoramente bem.
Mas isso até eu entrar no quarto de limpeza e tentar empurrar o
carrinho de materiais com as duas mãos. Meu braço latejou mais forte.
Não tinha ideia de como iria dar conta da limpeza do andar naquele
dia.
Pouco tempo mais tarde, entretanto, eu descobriria que não precisaria.
Porque, sem nenhum motivo específico, me foi comunicado que eu estava
dispensada de minhas tarefas obrigatórias do dia.
Algo me disse que aquele havia sido um favor ao qual eu não deveria
me sentir tão grata assim.
Flor de Lótus (Nelumbonaceae)
Essa flor possui capacidade de florescer em águas
lamacentas e sujas, sendo associada, assim, à coragem.

Quando fui para meu quarto após terminar a limpeza das áreas das
quais eu era encarregada, na quinta-feira, eu de forma alguma esperava
encontrar Ashley ali. Claro, aquele também era seu quarto, porém eu mal a
via ali acordada.
Naquele dia em específico, eu não apenas encontrei Ashley desperta,
mas também… chorando. Ela estava encolhida em sua cama, abraçando
suas próprias pernas.
— Ah, que ótimo — ela resmungou com a voz embargada, muito
provavelmente chateada por ter sido flagrada daquela maneira, e afundou a
cabeça entre os joelhos.
Fiquei sem reação por um momento. Não sabia o que fazer,
principalmente porque a garota me odiava. Suspirando, permaneci ainda ao
lado da batente. Ashley continuava a tremer um pouco, decerto ainda
chorando.
Não teria como ignorar aquilo.
— Você… tá legal?
— O que você acha, sua garota estúpida? — Ela levantou a cabeça de
imediato. Seus olhos estavam inchados.
Certo, isso realmente não seria fácil.
— Ok, admito, pergunta idiota. Você… hum…
Não soube quais palavras dizer, como consolá-la. Ainda não tinha
sequer certeza se queria o fazer. Não me simpatizava com Ashley,
entretanto… eu entendia muito bem de sentimentos ruins, que decerto era o
que ela experimentava.
— Você quer alguma coisa?
— De você? Vai sonhando.
— Eu sei que você não gosta muito de mim, e, para ser honesta,
também não gosto tanto de você por motivos óbvios. Mas… nós podemos
deixar as desavenças para trás por algum tempinho se você quiser conversar
um pouco.
— Tudo bem, acho que quero alguma coisa de você, sim — ela
balbuciou, enxugando suas lágrimas com força. — Quero que você me
deixe em paz!
Suspirei.
— Você tem…
Um travesseiro foi jogado em minha direção, mas me desvencilhar a
tempo.
— Que merda. Tá legal, vou deixar você sozinha — resmunguei,
saindo do meu quarto e fechando a porta.
Eu sabia que em breve seria dado o toque de recolher, mas ainda assim
decidi ir para algum outro lugar ao invés de ficar sentada no corredor, sem
fazer nada. Logo tomei rumo em direção ao local onde eu conhecera Helen,
pois lá eu pelo menos poderia ficar entediada com uma boa vista. Continuei
pensando em Ashley durante todo o caminho, entretanto.
Aquela garota parecia ter muitos defeitos, mas eu tinha que admitir
uma qualidade: ela parecia ser dura na queda, e não engolia nenhum
desaforo. Não imaginava o que podia ter acontecido para fazê-la se
desestabilizar daquela maneira.
Só fui tirar a garota da cabeça quando, minutos mais tarde, quando
passei por um vaso de flor de lótus azul. Fiquei com ela em minha mente
até chegar ao meu destino e perceber que não estava sozinha, mas também
não estava acompanhada por Helen, e sim por... David.
Ele tomou ciência da minha presença ao mesmo tempo que eu tomei
da dele.
O garoto de cabelos praticamente raspados por completo estava
sentado em frente à janela, observando-me com sobrancelhas arqueadas.
— O que você está fazendo aqui? — questionei de imediato.
— O que você está fazendo aqui? — ele retrucou, erguendo um canto
de seus lábios.
Considerei dar meia-volta e voltar para meu quarto, porém… eu sentia
que tinha mais direito sobre aquele lugar do que David. E, estranhamente,
eu estava começando a ficar cansada de ceder.
Eu fiquei.
— Só ver a vista — respondi, porém caminhei em sua direção e me
sentei ao seu lado, de frente para a janela — mas claro, mantendo uma
distância relativamente segura.
— É, eu também — ele disse, porém, por algum motivo, não me
pareceu tão sincero. Não insisti. — A floresta fica ainda mais assustadora à
noite, mas ainda há… uma certa beleza nisso, não acha?
Somente dei de ombros.
— Na segunda, não tive a chance de parabenizá-la por tê-la enfrentado
em menos de vinte e quatro horas, inclusive. Sendo bem honesto, não
pensei que conseguiria encontrar o Instituto com tanta facilidade. Erro meu,
claro. Já devia ter aprendido a não descredibilizar Hayden.
Ignorei o pressuposto de que Hayden tinha deixado claro que estava
certo de que eu sairia de lá.
— Então… você pensou que estava me enviando direto para morte
quando batizou minha bebida?
Ele riu, como se eu tivesse mesmo feito uma piada.
— Não exatamente. De fato, pensei que não seria tão fácil para você
achar o caminho de volta, mas pensei que você seria muito bem capaz de
encontrar algum chalé dos vários espalhados pela floresta após uns quatro
dias e pegar orientações. Brad mesmo fez isso.
— Muito consolador — resmunguei sarcasticamente.
— Já admiti meu erro, deveria ser suficiente.
— Bem, você não admitiu o erro de ter me drogado. Então, nada disso
é suficiente.
— Não posso dizer que isso foi um erro, sinto muito. Eu jogo
conforme as regras desse Instituto.
— Que regras?
— As regras para sobreviver aqui.
— E quem dita as regras? Hayden?
— Também — respondeu simplesmente. Aquela em específico, tinha
sido uma regra dele, foi o que David não disse. — Não quero acabar com
meu corpo desovado no meio daquela floresta, afinal.
Encarei-o.
Não demorei a me lembrar do modo que Hayden falara comigo na
segunda-feira, em seu quarto. Ele mencionara desovar meu corpo como um
assunto rotineiro. Meu corpo se arrepiou.
— Você está falando de…
— De George? Sim, claro — ele me cortou, como se eu conhecesse a
história, e retirou um maço de cigarros do bolso de seu uniforme.
Imediatamente me lembrei que George era o segundo garoto que
sobrevivera ao trote da floresta. Ele… devia fazer parte do grupo seleto de
Hayden. — Acho que ele teve que aprender da pior maneira possível a ficar
sob controle. — Ele riu, como se aquilo pudesse mesmo ser engraçado, e
me ofereceu um cigarro. Eu recusei, e ele acendeu um para si.
Imaginei que David estava pressupondo que eu conhecia a história,
então… decidi entrar no jogo, porque não achava que ele me contaria tudo
se eu perguntasse. Por isso, decidi obter algo dele de uma outra maneira.
— Quer saber? Não duvido nada que você e seus amiguinhos tenham
o matado. Vocês seriam muito bem capazes disso.
— Eu, não — ele murmurou, ainda tranquilo. — Posso ser um filho da
puta influenciável, mas não sou um assassino.
— O que está tentando dizer? Que Hayden e Brad poderiam…
— Não estou tentando dizer nada, novata — ele me cortou, mais na
defensiva. Engoli em seco.
— É? Me pareceu que você deu a entender que Hayden e Brad
andaram tendo problemas para controlar George. E que, dentre vocês três,
você é o único não propenso a cometer assassinato.
David tragou seu cigarro sem pressa alguma, encarando a floresta que
se estendia além de nós.
— Ele começou a nos dar algum trabalho com toda aquela indiscrição
ao vender… tudo que não deve ser vendido aqui, de fato. Mas nós não
éramos os únicos a entrarmos em atrito com ele. Dr. Cole cuidava
pessoalmente de seu estado, e, sinceramente, ele voltava cada vez mais
louco das consultas. Isso deve tê-lo frustrado um pouco e também colocava
em risco suas promessas de melhorias para nós. No fim, muitos tinham
muitos motivos para apagar o menino.
Estava mesmo surpresa com todas aquelas revelações.
Eu realmente não duvidava nada de que Hayden poderia muito bem ter
tirado a vida daquele garoto.
— Mas que seja, remoer isso não fará diferença alguma. Já faz quatro
meses que aqueles cães farejadores assustadores pra caralho acharam o
corpo de George na floresta. Nem mesmo os melhores detetives
particulares, contratados pelos pais ricos do garoto, puderam encontrar o
culpado, então com certeza não serei eu a fazê-lo.
Eu mal podia acreditar que era muito provável que ainda estivéssemos
vivendo sob o mesmo teto de um assassino. No começo, também fiquei
surpresa pela notícia não ter vazado, mas era de se esperar que todos
aqueles pais tivessem dinheiro o bastante para encobrir um crime onde seus
filhos moravam em tempo integral.
Será que meus pais sabiam daquele acontecimento? Não duvidei.
Eles possivelmente… apenas não se importavam.
— Ei, me desculpe o atraso. Não estava encontrando o livro, então…
— Helen interrompeu a frase assim que levantou a cabeça após virar no
corredor à frente, notando minha presença. — Ah, oi, Katrina. Você está
bem?
Era muito óbvio que Helen não estava esperando minha presença ali, e
sim… a de David. Por isso ele estava ali.
Ainda assim, sua pergunta tinha sido muito genuína e preocupada.
Porque eu devia estar em meu quarto agora.
— Tudo bem, sim. Só decidi vir até aqui porque estava entediada, mas
acho melhor voltar para meu quarto agora.
— É, hum… podemos voltar juntas para o dormitório. Eu só vim
emprestar esse livro para o David, de qualquer maneira — murmurou, como
se quisesse explicar que aquele encontro não era nada de mais.
Provavelmente não era mesmo, mas eu achava que Helen gostava de David.
E David, por sequer ter esclarecido que estava ali para encontrar
minha amiga, não se importava tanto assim com ela. Estava a usando, era
provável. Não gostei daquilo, mas não achava que era da minha conta.
Helen era inteligente, sabia reconhecer as situações que a rondavam e quais
decisões tomavam. Por isso, eu disse:
— Não, tudo bem. Estou com pressa. Nos vemos amanhã.
De todo modo, eu a alertaria quando estivéssemos sozinhas. Mas não
hoje. Hoje, eu não conseguia parar de pensar no assassinato de George e em
quem poderia ter sido responsável por ele.
Lancei um último olhar a David, e nenhum de nós dois se obrigou a se
despedir do outro. Inspirando fundo, deixei que meus passos me guiassem
para longe do garoto que acabava de me confidenciar o quão sombrio
aquele Instituto podia ser.
Cravo (Caryophyllaceae)
Cravo é uma planta exótica, com rizomas curtos e que
dão lugar a massas densas com alturas que podem superar
o metro. Na cor amarela, pode simbolizar a rejeição e
desdém, mas quando integrados em um arranjo podem
significar a alegria e vivacidade.

Eu me sentia em uma apresentação de escola onde todos os pais de


meus colegas estavam presentes para ver suas crianças, menos os meus.
Era… sombriamente excludente.
Do segundo andar do Instituto, sentada no chão ao lado de uma mesa
com um vaso de cravo amarelo, eu via homens e mulheres, geralmente de
meia idade, entrarem pela porta principal e abraçarem seus filhos, alguns
como se realmente tivessem nutrido algum sentimento de saudades. Talvez
aqueles pais… não fossem mesmo iguais aos meus. Talvez pensassem que,
ao mandar seus filhos para aquele Instituto que prometia muito, estariam
fazendo o melhor para sua prole, e não apenas para si mesmos.
Não esperava a presença de meus pais, apesar da direção permitir
visitas familiares apenas uma vez por mês, sempre no dia primeiro; não
tinha expectativas quanto a isso, de forma alguma. Mas não deixava de ser
triste estar rodeada de afeto e não receber nenhum. Também começava a me
perguntar se, algum dia, tinha recebido um abraço tão apertado quanto
alguns de meus colegas recebiam ao se reencontrarem com sua família.
Após muito tempo refletindo, tive quase certeza de que a resposta era
negativa.
Suspirei, melancólica.
A possibilidade de escapar daquele Instituto, nem que fosse por um
dia apenas, me era tentadora, mas isso não seria possível. Só podíamos sair
naquele dia, porém acompanhados por familiares. Portanto, eu estaria presa
ali enquanto muitos dariam o fora daquele Inferno.
Precisava sair dali, mas meu amor próprio ainda não era dos melhores,
então… permaneci me martirizando diante de todo o amor que eu nunca
receberia.
— Acabei de ir ao seu quarto. Estava te procurando. — Uma voz
familiar chamou minha atenção. Helen se sentou ao meu lado, enfiando as
pernas entre os pequenos pilares de madeira que sustentavam um corrimão
de madeira, tal qual como eu. — Seus pais não vêm?
— Pouco provável. Meu pai está sempre trabalhando, e minha mãe…
não se importa muito. Nenhum dos dois se daria ao trabalho de dirigir por
mais de dez horas apenas para me ver.
— Isso é uma droga. Meus pais também não vêm.
Encarei-a, e ela começou a rir. Isso me tirou um riso nasalado também.
Helen era orfã.
— Desculpe. Tenho um fraco por humor negro — ela soprou.
— Bem, não há método melhor de superação do que piadas
autodepreciativas. — Dei de ombros, mas acabei ficando mais séria. — E
sinto muito, Helen. Estou aqui me lamentando pela minha situação e nem
pensei em como esse dia deve ser para você.
Ela estalou a língua.
— Não, estamos empatadas. Acho que esse dia é tão ruim para quem
não tem pais quanto para quem os tem, porém não possuem seu afeto.
É, talvez ela estivesse certa.
— Quer ouvir um conselho de quem enfrenta esse dia a cada mês dos
últimos dois anos? Não é benéfico ficar vendo todos esses reencontros e
ficar se lamentando pelos cantos.
— E você sugere fazer o quê?
— Vamos dar uma espiada no estacionamento. Riquinhos fúteis pelo
menos, na maior parte das vezes, têm um bom gosto para carros. Sem
ofensa, claro. — Ela se levantou e estendeu a mão para me ajudar a me
colocar de pé.
— Não sou uma riquinha fútil.
— Mas seus pais provavelmente são.
— Isso faz de mim apenas a herdeira fútil.
Enquanto descíamos a escada, Helen me lançou um olhar antes de
tampar a boca com a mão e rir. Dei de ombros como se dissesse “piadas
autodepreciativas, lembra?”.
Saímos pela porta principal do Instituto sem muitos problemas, e logo
percebi que Helen tinha razão. A maior parte dos carros ali estacionados
pareciam de última linha. Sabia reconhecer apenas alguns, infelizmente,
como Lamborghini Countach e um Porshe 928.
— Não que eu também queira ser uma riquinha fútil, mas, caramba, eu
iria adorar dirigir um carro desses até meu futuro consultório — Helen disse
ao meu lado.
— Você vai — eu disse, com toda certeza do mundo. Helen era
inteligente e sabia exatamente o que queria para sua vida, ao contrário de
mim. Isso a levaria muito longe.
Continuamos passando pelos carros, conferindo até o interior de
alguns, porém paramos quando chegamos à lateral, a poucos metros do
início da floresta à direita, porque percebemos que algo suspeito estava
acontecendo ali. Um grupo estava reunido perto de três carros, todos sendo
uma Belina II de parte traseira maior, só que de cores distintas. Não foi
surpresa alguma quando avistamos Brad, David e Hayden entre eles. Eles
sussurravam alguma coisa, e não vestiam uniforme. Ashley e mais outros
dois garotos que me eram desconhecidos também estavam ali, colocando
umas bolsas grandes pretas dentro do carro. Em cada carro, o banco do
motorista estava ocupado por pessoas que eu também não conhecia.
— O que eles estão tramando? — sussurrei para Helen atrás de um
carro, a alguns metros de distância.
— Hum… não sei. Eles pretendem… sair do Instituto?
— Os pais deles não vêm?
— Nunca vi os pais deles em nenhum dia das visitas. Na verdade, não
vejo nem mesmo eles nessas datas.
Virei-me para Helen para lhe fazer mais perguntas, mas me calei
quando percebi que seus olhos estavam focados até demais em David. Foi
então que eu me lembrei de seu encontro há dois dias. Deixei-os a sós com
a intenção de falar sobre a situação com minha amiga mais tarde, mas isso
nunca aconteceu. Não tínhamos nos visto no dia anterior por divergência de
horários, então… aquela tinha que ser a hora apropriada.
— Ei — chamei sua atenção. Helen me encarou. — Então, você e o
David… está rolando alguma coisa?
— O quê? Não.
Estalei a língua.
— Resposta defensiva demais. Vamos, me conta. Não somos amigas?
Ela suspirou.
— Estou falando sério, não está acontecendo nada de mais. Nós só…
conversamos um pouco naquela festa da fogueira, sabe? Ele foi legal
comigo, e eu só não estou muito acostumada com isso aqui. Nos
encontramos mais uma vez no corredor do Instituto entre as aulas e ele
mencionou um livro sobre o qual eu tinha lhe contado naquela noite, e eu
disse que lhe emprestaria. Pedi que ele me encontrasse no canto da janela.
Isso foi tudo.
— Helen, sinceramente… não conheço muito aquele garoto, mas ele
não parece fazer o tipo que se interessa por livros. Ele devia estar
interessado em outra coisa, e não sei se isso é bom ou ruim.
— Ele não tentou nada de mais comigo, tá? Não sou tão estúpida.
Arqueei as sobrancelhas.
— Nada de mais? — ressoei, surpresa. — O que aconteceu entre
vocês?
— O que aconteceu entre quem?
Brad se aproximou de nós sem que conseguíssemos notar sua
presença, de alguma forma, pegando-nos desprevenidas. Antes que
fizéssemos qualquer coisa, ele agarrou nossos braços para nos levar até
onde o grupo estava reunido. Comecei a me contorcer e balbuciar de dor de
imediato, pois ele estava segurando minha região machucada, que ainda
continha pontos.
— Olhem só quem eu peguei nos espionando — o loiro soprou, só
então me soltando. Afaguei meu braço, agora dolorido.
Hayden, que trajava a mesma jaqueta de couro da festa da fogueira e
tinha um boné azul marinho cobrindo os cabelos, arqueou as sobrancelhas
para nós, e David soltou um risinho. No entanto, foi Ashley quem se
pronunciou:
— Só podia — resmungou, aproximando-se e cruzando os braços.
Analisou-nos com repulsa sem pressa alguma e então se virou para Hayden.
— O que vamos fazer com elas? Elas podem contar para alguém que nos
viram.
— Não, elas não vão — David se intrometeu, e Hayden o encarou de
modo desconfiado. O garoto pigarreou. — Quer dizer, é só um palpite. A
esquisita nitidamente não é uma ameaça potencial. — Ele não olhou para
Helen ao dizer aquilo. Não tive dúvidas de que estava, novamente, jogando
de acordo com as regras. Não podia demonstrar afeto, obviamente, se é que
tinha mesmo algum à minha amiga. — E a novata… Ok, eu não confio
tanto nela, mas se ela nos delatar, contamos sobre os cortes que ela arranjou
na floresta.
Hayden suspirou, e também se aproximou de nós, avaliando-nos como
se fossemos dois inconvenientes.
— É, David pode estar certo — o garoto murmurou, e inclinou a
cabeça um pouco ao fixar o olhar em mim e acrescentar: — Mas também
pode estar errado. A esquisita se mostrou bem corajosa na segunda-feira —
ele fez menção à interrupção de seu almoço. — E o próprio bem-estar da
pequena aberração aqui talvez não seja uma barganha suficiente para ela.
Seu senso de autopreservação não é dos melhores, afinal.
— Olha, primeiro de tudo, será que dá para parar de chamar Helen de
“esquisita”? — murmurei entredentes, e a risada de Hayden ressoou até
meus ouvidos asperamente.
— Olhe como você acabou de comprovar meu último argumento.
Cadê o amor próprio, meu bem? Posso chamá-la de aberração, mas não
posso dar apelidos à sua amiga?
— Segundamente… — continuei, ignorando-o. — Eu e Helen estamos
pouco nos lixando para o que vocês fazem ou deixam de fazer. Temos mais
com o que nos preocupar. Estamos indo embora agora.
Agarrei a mão da garota ao meu lado e fiz menção de sair dali.
Quando nos viramos, entretanto, Brad estava barrando nossa passagem.
— Acho que não.
— Não, não podemos deixar vocês saírem sem a garantia de que não
vão abrir a boca — Hayden disse friamente, e eu tornei a me virar para ele.
— Não vou colocar nossos próximos escapes mensais nas mãos de vocês
duas.
— E pretende fazer o quê? Nos matar e desovar nossos corpos na
floresta como aconteceu com George apenas para nos calar?
Um silêncio descomunal se fez presente no ambiente, e, pela minha
visão periférica, vi Helen se tensionar por completo. Alguns dos garotos
que me eram desconhecidos arregalaram os olhos, e o restante… bem,
estavam todos inquietos.
Não sabia de onde aquela provocação tinha saído. Eu estava mais
impulsiva do que o normal, já tinha entendido isso, mas provocar um
potencial assassino nunca poderia ser algo do meu feitio. No entanto… era
de se esperar que, após passar todos aqueles últimos dias desde a conversa
de David pensando em como um jovem tinha sido morto sem que
providências tivessem sido tomadas, eu não estaria em meu melhor juízo.
Comecei a me arrepender conforme a tensão se tornava quase palpável
no ar e a fisionomia de Hayden se tornava inexpressiva como pedra. Já
estava perdendo o ar quando Hayden enfim verbalizou sua decisão:
— Elas vêm conosco.
O quê?
— A novata vai comigo e Helen com você, Brad.
— Você tá de brincadeira? — Ashley tirou as palavras de minha boca,
mas Hayden gesticulou com a mão em um gesto impaciente.
— A decisão já está tomada.
Ashley o acatou, mesmo que a um visível contragosto; eu, contudo…
— Ei, espera aí…
Antes que eu pudesse finalizar meu protesto indignado, Hayden me
conduziu até a parte traseira do último carro enquanto dizia:
— Mesmo esquema de sempre. Saímos primeiro. Depois de dez
minutos, vai o próximo carro. Mesma coisa para o último.
Fui empurrada para dentro do carro, e Ashley entrou atrás de Hayden,
que nos cobriu com uma espécie de manta preta grossa, como se a coisa
fizesse parte do carro, espremendo-nos de forma a nos obrigar a ficarmos
deitados. Ainda assim, uma fresta à minha frente ficou aberta, e vi David
entrando no banco da frente do motorista.
— Se acha que..
Hayden tapou minha boca com sua própria mão, e eu comecei a me
remexer, mas ele deu um jeito de me manter imóvel também.
— Fique quieta. Lembre-se de que, se eles nos pegarem, você também
enfrentará as consequências. E eu te garanto que as punições para quem
tenta escapar do Instituto são muito mais sérias do que algumas semanas
bancando a faxineira.
Engoli em seco, e, sentindo não ter muitas opções, tentei ficar quieta,
embora isso tivesse sido muito difícil, porque eu sentia a proximidade
excessiva de Hayden com cada um de meus sentidos, o que era mais
desconcertante do que devia. Sentia suas mãos em cima de mim, seu aroma
de ervas e menta, ouvia sua respiração irritantemente calma e o via
praticamente em cima de mim.
Eu mal respirava.
O carro entrou em movimento, e, em poucos minutos, já estávamos
nos portões do Instituto. Jurei que iríamos ser pegos, mas eu apenas
observei, pela fresta, o homem do banco do motorista entregar sua
identidade e a de David para um dos guardas. Um outro guarda conferiu o
interior do carro através das janelas de muito pouco bom grado, jogando a
luz de sua lanterna para dentro por não mais que um par de segundos.
— Tudo limpo.
O guarda entregou os documentos para o motorista e,
impressionantemente, seguimos viagem.
Simples assim, estávamos fora.
Mais alguns minutos se passaram até que Hayden retirasse a manta de
cima da gente, e David gritou em comemoração.
— Eu não acredito nisso! — balbuciei, incrédula, enquanto tentava
arrumar meu cabelo. — Eu pensei que…
— Somos nós quem fazemos daquele Instituto uma prisão, pequena
aberração — Hayden me cortou, como se adivinhasse meus pensamentos.
— Me diga, por que todos aqueles adolescentes iriam querer escapar do
Instituto se isso significaria serem deserdados pelos pais ao irem contra suas
vontades? Ficarem ainda mais desamparados do que nunca? E, além do
mais, a maior parte deles sequer tem de fato para onde ir, ao menos
permanentemente. Então não, não é tão difícil sair dali, mas é difícil sair
sem que os responsáveis sejam avisados e sem que punições também
externas sejam aplicadas. Por isso que aproveitamos apenas esse primeiro
dia do mês para sairmos e voltarmos antes da meia-noite sem que sejamos
descobertos.
Pensei um pouco sobre aquilo.
O fato era que… Hayden tinha razão.
Eu nunca pensaria em fugir permanentemente, mas não exatamente
porque temia ser deserdada. O dinheiro sempre significou mais para meus
pais do que para mim. Eu apenas… não tinha mesmo para onde ir.
De fato, tudo que Hayden me confidenciara fazia sentido. Ou quase
tudo.
— E por que você não foge permanentemente?
O garoto me encarou, arqueando as sobrancelhas em uma pergunta
silenciosa.
— Você não se incluiu em nada. Os nossos motivos de fazermos
daquele Instituto uma prisão não são os mesmos que os seus — sussurrei, e
Hayden simplesmente trincou o maxilar.
Eu não obteria uma resposta, era óbvio.
Ashley chiou ao lado de Hayden, como irritada por minha presença.
Em poucos segundos, na estrada de terra mesmo, o carro parou, e o
motorista apenas anunciou ao entregar a Hayden seu documento, que
provavelmente era falso:
— Encontro vocês aqui às onze e meia da noite.
— Valeu, maninho — David disse em despedida, sarcástico.
Não tive dúvidas de que o homem tinha se passado por irmão dele.
Hayden saiu do carro após o homem, ocupando o banco do motorista.
Foi só então que uma pergunta inevitável tomou conta de meus
pensamentos.
— Para onde vamos?
E, sem muitos rodeios, Hayden respondeu:
— Punir quem mais precisa de punições.
Pata de Elefante (Asparagaceae)
Versátil, resistente e fácil de cuidar, mas não tolera solo úmido.
Reconhecida pelo símbolo de força e tem o poder de atrair energia positiva.

A viagem foi longa, e, sinceramente, sequer sabia ao certo em que


cidade estávamos quando Hayden enfim estacionou o carro em uma rua
deserta. O sol já se punha, e não tínhamos nem mesmo parado para almoçar,
apenas comido alguns petiscos como bolachas e salgadinhos guardados no
porta-luvas.
Ninguém ali tinha me dado muitas informações específicas, então eu
não tinha ideia do que iríamos de fato fazer. Como iríamos punir quem quer
que precisasse ser punido.
Pelo retrovisor, vi os carros que estavam com os outros garotos —
Helen entre eles — estacionarem atrás de nós, e só então Hayden e David
saíram. Ashley também o fez, e eu os segui.
Em poucos segundos, avistei Helen saindo do carro, logo atrás de
Brad, e eu fui para seu lado de imediato. Ela parecia estar muito abatida.
— Você está bem? — sussurrei, e ela fez cara feia para mim.
— Minha bunda está doendo de ficar tanto tempo sentada, e eu
vomitei pela janela duas vezes. Viagens longas me dão enjoo. Ainda acho
que, se você não tivesse provocado Hayden por conta do menino morto, não
estaríamos nessa furada.
— Desculpa, tá? Também não estou nada feliz em estar aqui.
— Não temos tanto tempo, então vamos ser breves aqui, tudo bem? —
Hayden murmurou quando estavam todos reunidos na calçada mal
iluminada. — Alguém tem alguma dúvida sobre sua parte no plano?
Ninguém disse nada.
— Ótimo. Como já são quase seis horas, a maior parte dos
trabalhadores já deve ter deixado o local. Em breve, restarão apenas os
seguranças. Eles vão ser atraídos para o primeiro andar no momento em que
o alarme de incêndio de lá ser disparado, e só então agiremos, como o
combinado. Tudo certo?
Todos ali assentiram, e eu e Helen nos entreolhamos, confusas.
O que diabos eles estavam tramando?
— Ok, tudo certo. Mas… o que fazemos com essas duas? — um dos
garotos que eu não conhecia perguntou, indicando eu e a garota ao meu lado
com o queixo.
Só então Hayden pareceu se lembrar de nossa existência. Ele trincou o
maxilar, continuando a nos observar como se fôssemos um empecilho.
— A esquisita vomitou duas vezes na viagem. Acho que ela vai mais
nos atrasar do que ajudar em algo. — Brad cruzou os braços sobre o peito.
Semicerrei os olhos para ele.
Quando Hayden ficou quieto, David disse:
— Talvez seja melhor deixá-la esperando com John aqui.
Hayden se aproximou, nos avaliando mais de perto. Sustentei seu
olhar o quanto pude.
— Tudo bem. Helen fica — ele disse, surpreendentemente usando seu
nome, e voltou a me fitar. — Já você… vai ajudar Ashley.
— Como é? — eu e minha colega de quarto balbuciamos ao mesmo
tempo.
Hayden não se preocupou em esclarecer coisa alguma. Apenas se
voltou para o porta-malas do carro em que estávamos e, em poucos
segundos, trouxe uma camiseta de botões branca simples. Ele a jogou para
mim.
— Tira seu uniforme e veste isso.
Fiquei incrédula, mas antes que eu dissesse qualquer coisa, ele
murmurou entredentes:
— Seu uniforme pode revelar nossa identidade. E, além do mais, ele
não ajudará Ashley em nada na tarefa inicial.
— Só nascendo de novo que ela vai poder ajudar em qualquer coisa —
Ashley resmungou ao nosso lado. Nós a ignoramos.
— Escute, pequena aberração, caso não tenha me escutado, repetirei
pela última vez: nós não temos muito tempo aqui, então tire esse uniforme
de uma vez para darmos início aos planejamentos da noite.
— Por que eu faria isso? Sequer sei o que vamos fazer aqui e para quê.
— Acho que você não está em muita posição de escolher o que vai ou
não fazer no momento.
— Você não vai me obrigar a nada.
Naquele momento, Hayden grunhiu, e falou para os outros enquanto
segurava em meu antebraço, como se lembrasse do meu braço machucado:
— Vão pegando as bolsas e se preparando. Sairemos em cinco
minutos.
Ele me conduziu para um pouco mais longe e sussurrou para mim:
— Se você não tirar esse uniforme logo, eu vou tirar por você.
— Se você tocar um dedo em mim, eu vou gritar aqui mesmo. E
suponho que você não queira que nenhuma atenção seja atraída para vocês,
certo?
Hayden semicerrou os olhos, genuinamente irritado por ser ameaçado.
Com certeza não estava acostumado com isso. Qualquer pessoa com um
bom instinto de sobrevivência saberia, só de olhar para ele, que não deveria
irritá-lo.
Bom, de fato, eu sabia que eu não tinha muitas chances de sair daquela
situação intacta se optasse por não ajudar todos aqueles meninos grandes e
raivosos, porém eu não queria fazer o que me era indicado, que
provavelmente seria ilegal, como se eu fosse facilmente manipulável.
— Vou contar até três, Katrina, e, caso você ainda esteja relutante em
fazer o que lhe é ordenado, eu vou te tratar não apenas como um pequeno
inconveniente, mas como um verdadeiro obstáculo para meus planos. E, vai
por mim, você não vai querer que eu lide com você como se fosse um
estorvo concreto.
Percebi que sua ameaça era séria porque a veia de seu pescoço
começou a ficar evidente e suas narinas dilataram. Ele estava com raiva.
Muita.
— Um… — ele sussurrou. Seu tom não deixou de ser menos
alarmante pelo volume baixo.
Engoli em seco.
— Dois… — disse, um pouco mais alto, e inclinou a cabeça para o
lado para me avaliar. Ele me deu aquele olhar como se fosse meu predador.
Tudo em meu interior me dizia para correr.
Quando o garoto abriu a boca para verbalizar a última palavra que me
separava de uma possível decisão drástica, eu disparei:
— Tá, tá. Eu tiro. Mas… você vai ter que dar um jeito de eu ter
permissão de cultivar algumas plantas de pequeno porte em meu quarto.
Eu sabia que ele podia resolver aquilo. Ele mesmo cultivava plantas
em seu quarto.
Hayden estreitou os olhos. Não estava menos furioso. Muito pelo
contrário.
— Você está mesmo tentando barganhar comigo, menina?
Inspirei fundo.
— Não. Não tentando.
Minhas plantas eram importantes para mim. Se eu sofresse por tentar
tê-las de volta, que seja.
Hayden fechou os olhos bruscamente, e a veia de seu pescoço ainda
saltava violentamente. O instinto de correr ainda me avassalava por
completo, porém… esperei por sua decisão.
Quando suas pálpebras voltaram a se abrir, o olhar que se fixou em
mim foi vil e estranhamente decidido.
— Eu resolverei isso para você — ele disse apenas, e tive que reprimir
o sorriso que ameaçou tomar conta de meus lábios. Fiz menção em ir para
trás do carro para fazer o que me fora, não ordenado, mas combinado,
porém Hayden segurou meu antebraço ao acrescentar: — Mas, Katrina?
Nunca mais tente negociar comigo novamente, porque então você terá
muito mais a perder do que ganhar.
Quando percebi que ele estava apenas inconformado por ceder, talvez
pela primeira vez em muito tempo, eu me deixei sorrir. Seu olhar
resplandeceu uma fúria ainda mais crua, entretanto, ele não fez mais nada
quando eu me distanciei.
Tirei todo o uniforme quando estava longe da vista de todos, e vesti a
camiseta que tinha me sido dada, que felizmente era de mangas compridas.
Ela chegava até metade das minhas pernas, e parecia um vestido. Ainda
assim, revelava muito mais do que eu estava acostumada, só que, tendo em
mente que minhas sementes compensariam tudo aquilo, voltei para a
calçada.
— Belas pernas, novata — Brad provocou, o que atraiu os olhares dos
outros para mim. Bufei.
Hayden apareceu na minha frente, me avaliando. Sem aviso prévio
algum, ele levou a mão até meus cabelos, soltando-os do elástico em um
movimento preciso. Eles caíram em cascatas desgovernadas sobre meus
ombros.
Engoli em seco, porém o olhar ainda sombrio de Hayden ganhou uma
espécie de… aprovação. Era uma aprovação obscura. Embora, segundo ele
mesmo, não tivéssemos muito tempo, ele não se apressou muito ao me
analisar, centímetro por centímetro.
Por fim, quando já estava malditamente sem ar, ele se virou para
Ashley.
— Você sabe o que fazer. Vocês vão na frente.
Sem precisar de mais nenhuma instrução, Ashley saiu andando. Não
olhei para trás ao segui-la, mesmo não tendo ideia do que me esperava em
frente.
— O que eu tenho que fazer? — forcei-me a perguntar para a garota
quando eu a alcancei.
— Só… entra no personagem.
Muito esclarecedor.
Entramos em uma rua mais movimentada, e, em poucos metros, segui
Ashley quando ela virou para um prédio corporativo. Naquele instante, ela
segurou meu antebraço com força, apoiando em mim, enquanto começava a
gritar e a mancar.
Que merda era aquela?
— Ai, ai! Ai, meu Deus! — Ela já tinha começado a chamar a atenção,
mas ainda sussurrou para mim: — Só segue em frente.
Passamos pelo estacionamento e nos aproximamos da larga entrada
vidrada do prédio, vigiada por dois guardas.
— Ai, ai! — Ashley continuou com o drama, jogando todo seu peso
para cima de mim. Ela me deu uma cotovelada, parecendo dizer
silenciosamente que era a hora de eu entrar no personagem.
— Oi, é… hum… minha amiga… torceu o tornozelo? — A afirmação
saiu mais como uma pergunta, porque eu não tinha certeza se era isso
mesmo que eu devia fazer.
— Nossa, tá doendo muito. Vocês… se importariam de me ajudar?
Acho que preciso me sentar e conferir se não quebrei nada.
Os dois seguranças nos analisaram de cima a baixo de imediato, mas
não nos checando em termos profissionais. Sua atenção se fixou mais em
nossas pernas nuas. Tive que conter a careta.
— Claro, claro, querida. Venha, nós vamos levá-la para dentro — um
deles enfim disse, e os dois a seguraram pelos braços, deixando-me livre da
tarefa, e a levaram para dentro. Ali, nós encontramos mais três seguranças.
Todos transferiram a atenção para nós. — A menina machucou o tornozelo
— o mesmo segurança gritou em esclarecimento.
Enquanto Ashley era posta na cadeira da sala de espera, o segurança
pediu para um dos colegas pegar gelo na cozinha e um outro para que
achasse uma maleta de primeiros socorros. Dessa forma, só restaram eu,
Ashley e três seguranças, cuja atenção era inteira centrada em nós duas.
Um segurança se agachou e tirou o sapato de Ashley cuidadosamente,
inspecionando a região.
— Você torceu agora? Não parece machucado.
— É, eu acabei de tropeçar na calçada e errei feio o passo — Ashley
respondeu em uma voz manhosa. O segurança decidiu tocar de leve no
tornozelo, e, naquele momento, a garota gritou mais alto do que qualquer
vez anterior: — AI, TÁ DOENDO MUITO! JESUS CRISTO!
E foi então que eu vi Hayden e os outros quatro garotos entrarem no
local com mochilas grandes nas costas. Os seguranças permaneceram
concentrados no drama de Ashley, o que lhes permitiu passar sem ser
vistos.
Foi aí que entendi nossa parte do plano. Estávamos ali para distrair.
Era muito provável que aquelas mochilas fossem atrair a atenção dos
seguranças e serem inspecionadas. Foi inevitável me perguntar o que
aqueles garotos guardavam ali. Apenas quando eles entraram no elevador e
as portas fecharam à sua frente que Ashley disse:
— Acho melhor eu ir ao banheiro para jogar água. Amiga, você me
ajuda?
Franzi o nariz diante de como fui chamada.
— Acalme-se, já estão trazendo gelo para você. É melhor que…
— Não, não, acho que preciso só jogar um jato de água. Vem, me
ajuda. — Ela se virou para mim.
Ajudei-a a se levantar, e os seguranças tentaram se intrometer.
— Nós podemos ajudá-las, querida.
— Não, tudo bem. Não quero ocupá-los mais. Já voltamos.
— Tudo bem. O banheiro é a terceira porta à esquerda do último
corredor. Esperaremos vocês aqui. — O sorriso irritantemente doce que ele
nos deu me deu calafrios. Também entendi o motivo principal pelo qual
Hayden me fez trocar de roupa e porque enviou eu e Ashley para aquela
tarefa.
Duvidava muito que aqueles homens fossem ser tão prestativos e
desviar tamanha atenção para nós se não fôssemos meras garotas indefesas.
Nojento. Também estava irritada por Hayden nos usar daquela maneira.
Bem, pelo menos eu não estava fazendo aquilo tudo por nada, era meu
único e constante consolo.
Quando estava prestes a virar para o banheiro, Ashley se distanciou.
— Não vamos para o banheiro.
— O quê?
— Nossa parte do plano não acabou. Vem.
Inacreditável.
Ashley começou a correr pelo corredor vazio. Não encontramos
nenhum segurança no caminho, apenas duas funcionárias que limpavam o
local. Elas não nos deram tanta atenção. Ashley parou repentinamente à
minha frente, e, antes que eu pudesse adivinhar o que ela faria, ela acionou
um alarme de incêndio ali presente.
O som que chegou aos meus ouvidos foi dilacerante.
Lembrei-me das palavras de Hayden então.
Aquele alarme de incêndio era uma isca. A intenção era atrair todos
para aquele andar. Isso me fez perguntar por cima do ruído ensurdecedor:
— O que eles estão fazendo nos andares de cima?
— Anda logo — foi tudo que ela respondeu.
Continuamos a correr, e, quando chegamos ao final do corredor,
viramos à direita. Pouco tempo depois, ela acionou outro alarme de
incêndio, como se soubesse exatamente onde achá-los.
Seguimos em frente, e meu coração começou a pulsar com força no
peito. Não demorei muito para entender que já estava sob efeito de
adrenalina. A frequência que eu andava a experimentando era quase
assustadora. Parecia… que eu andava me sentindo mais alerta nas últimas
semanas do que nos últimos anos.
Eu andava vivendo uma vida inteira naquele pouco tempo.
Não sabia se isso era algo bom ou ruim. E, de todo modo, não estava
em condições de concluir isso no momento.
Poucos instantes após dispararmos o terceiro alarme, deparamo-nos
com três seguranças que estavam em direção contrária à nossa. Não eram os
mesmos da portaria.
— Ei, quem são vocês? Parem aí — um deles gritou, e eu e Ashley
giramos os calcanhares e voltamos para onde estávamos. Eles começaram a
correr atrás de nós, a nos perseguir.
Apavorei-me um pouco quando pensei na possibilidade de ser pega.
Não tinha ideia do que seria feito comigo, apenas que as consequências não
seriam boas. De forma alguma.
Poucos metros para frente, entretanto, encontramos mais dois
seguranças, e fomos obrigadas a virar para um outro corredor à direita.
Parei abruptamente no meio daquele corredor e forcei entrada para uma sala
à esquerda. Estava aberta. Ashley entrou logo atrás de mim e eu tranquei a
porta.
Distanciei-me um pouco para apoia as mãos em meus joelhos e
recuperar o fôlego. Suor escorria pela minha nuca, molhando alguns fios de
cabelos rebeldes.
Logo escutamos alguns passos ágeis e barulhentos passando através da
porta. Alguém perguntou para onde nós tínhamos ido, e outro segurança
deu a ideia de se separarem. Segundos se passaram, e não ouvimos mais
nada além do barulho horrível dos alarmes.
— Isso tudo estava nos planos? — perguntei entredentes.
— Tínhamos que ter soado o quarto alarme antes de dar o fora daqui.
Mas acho que os três alarmes já foram distração o suficiente. Deve ter
quase quinze minutos que acionamos o primeiro, os meninos já devem ter
dado conta da parte deles. Devem estar dando o fora agora mesmo.
— Por onde?
— Escadaria de incêndio que dá para a lateral direita. Não deve ter
nenhum segurança na área onde ela termina. Estão todos aqui, procurando a
origem do alarme.
— Ok, e como nós vamos sair daqui se há muitos seguranças nesse
andar? Todos eles já devem ter sido acionados sobre nós.
— Bem, os seguranças já devem estar deixando o andar. Os meninos
deixaram outras preocupações. Em poucos instantes, quando a coisa se
agravar, todos se darão conta de que não somos as principais preocupações
deles.
— Do que está falando?
Naquele momento, por cima do som dos alarmes, eu escutei alguém
alertando que havia fogo nos andares acima. Arregalei os olhos.
— Isso… está certo? Há mesmo fogo?
Ashley revirou os olhos.
— Dã. O que acha que os meninos estavam fazendo lá em cima? Além
disso, os alarmes de incêndio não foram acionados apenas por distração. O
objetivo hoje é apenas destruir o local, não machucar trabalhadores que não
tem nada a ver com isso. Os bombeiros foram chamados no primeiro
alarme. Se ainda não estão aqui, chegarão muito em breve.
Quis perguntar que diabos era aquele lugar, mas aquilo não importava
no momento. Então, eu questionei:
— O que nós vamos fazer agora?
— Primeiro de tudo, não existe um nós, entendeu? Pare de lidar com a
situação como se fôssemos parceiras.
— Olha só, eu não sei qual é o seu problema comigo, mas no
momento…
— Ah, quer saber qual o meu problema com você? É que eu já entendi
que você não é como nós, novata. Você não deveria estar aqui, e, se quer
saber… acho que você tem muito potencial de estragar tudo. Você é fraca
demais para fazer escolhas fortes e de risco.
Cerrei os dentes.
Que direito ela tinha para me chamar de fraca? Aliás, por que todos ao
meu redor tinham a necessidade de me intitular quando nem eu mesma
sabia quem eu era?
Era quase como se… todos achassem que eu não tinha autonomia
suficiente.
Bem, eu podia achar o mesmo sobre mim, mas isso foi antes. Eu…
começava a mudar minha percepção quanto a mim mesma. Eu começava a
me descobrir, e, sinceramente, cada acontecimento das últimas semanas me
mostrou que eu podia ser, sim, muito mais forte do que todos esperavam.
Inclusive eu mesma.
— Nós vamos resolver essa merda lá fora. Agora nós vamos dar o fora
daqui — eu me forcei a dizer entredentes, apesar da raiva. A prioridade era
conseguir escapar daquele prédio.
Ashley expirou o ar pesado pela boca, mas disse:
— Tudo bem. Vou ver se o caminho está livre.
Em um segundo, ela abriu a porta e saiu. Porém… ela a fechou atrás
de si.
Corri até lá, mas já era tarde demais. Escutei o barulho dela sendo
trancada. Transferindo a atenção para a região da maçaneta, percebi
instantaneamente que a chave não estava mais lá.
Levei longos segundos para assimilar a situação. Ashley tinha me
deixado lá. Provavelmente não para morrer, mas para ser achada. Fechei as
mãos em punho, sentindo cada centímetro de meu corpo tremer em
desespero. Senti que eu poderia matá-la com minhas próprias mãos se eu
tivesse alguma maneira de encontrá-la naquele momento.
Inspirei e expirei fundo, entretanto, porque… aquela raiva não
mudaria nada. Eu precisava me virar ali.
Forcei a maçaneta um pouco antes de admitir a mim mesma que não
seria daquela maneira que eu sairia dali. Não havia nem como arrombar a
porta, pois ela abria para dentro.
Olhei ao meu redor, ainda agitada, e avistei as janelas altas, que
pareciam dar para outro corredor, da parede contrária da sala de reunião de
alguns quatro metros quadrados. Elas eram largas, porém tinham uma altura
pequena, talvez de setenta centímetros ou menos. Isso… teria que servir.
Peguei uma cadeira e subi nela para conferir as malditas janelas. Eram
de vidro temperado fixo. Não havia como abri-las; a ventilação era feita
apenas pelo tubo de ventilação. Grunhi naquele momento. Por que diabos
eles tinham janelas de enfeite naquela merda?
Com o cotovelo direito, bati algumas vezes contra o vidro, mas não
teve muito efeito. O vidro era grosso demais. Suspirei, irritada, e lancei
mais um olhar ao redor.
As cadeiras eram de plástico, então eu suspeitava que não serviriam de
muita coisa também, mas havia… um vaso de pedra ocupado por uma Pata
de Elefante da porta. As chances de eu me machucar com aquilo eram
grandes, mas… era minha única saída.
Apressada, desci da cadeira e agarrei o fino tronco da planta e a
arranquei dali com muito esforço. Não deixei de lhe pedir desculpas ao
fazer isso. Esvaziei a terra do vaso e o peguei. Meus braços tremeram,
porque ele era muito pesado, mas fiz o maior esforço possível. Subi na
cadeira, desequilibrada, e contei até três para tomar coragem. Fechei os
olhos quando bati o vaso contra o vidro. Um barulho horrendo do material
se fragmentando chegou até meus ouvidos, e senti alguns cacos virem até
mim violentamente.
Felizmente, o vaso não tinha se quebrado. Soltei-o no chão e subi no
parapeito. As palmas de minha mão machucaram um pouco, porque tinha
muito vidro ali. A altura era grande para pular para o corredor, mas o pior já
tinha feito. Pulei ali sem pensar muito. Meus tornozelos sentiram o impacto
de uma só vez.
Por um momento, perguntei-me se poderia chegar viva até o fim do
ano. A quantidade de vezes que andava me machucando era simplesmente
ridícula.
Não me deixei pensar muito, entretanto, simplesmente porque não
podia. Não sabia onde estava e como fugir, mas corri na primeira direção
que me veio à mente. Não tive ideia de quanto tempo se passou até que eu
me localizasse. Dobrando um corredor, avistei, muito à frente, a porta de
entrada. Bombeiros e mais bombeiros entravam ali. Não podia sair por ali.
Instintivamente, girei os calcanhares e corri na direção contrária, e
então me lembrei da informação que Ashley soltara. Se havia uma escadaria
de incêndio que dava para a região externa direita, também deveria haver
uma saída de emergência para a mesma área. Tinha que ter.
Como os corredores do prédio eram fragmentados e confusos, gastei
um tempinho até encontrar o último corredor à direita. Corri, corri e corri,
mas tudo que eu achava eram portas que davam para mais salas.
Já estava perdendo as esperanças quando encontrei uma placa que
indicava a maldita saída de emergência. Segui na direção indicada e só
então encontrei a larga porta metálica. Uma onda de alívio invadiu meu
corpo de uma só vez quando passei por ela, só que então eu percebi que
ainda não estava tudo acabado.
Encontrei um segurança na área externa, que nada mais era que um
estreito corredor de concreto com algumas caçambas de lixo cercada por
muros. O homem uniformizado, no entanto, estava de costas para mim, e
não tinha notado minha presença. O barulho do alarme provavelmente tinha
abafado o som da porta se abrindo. Ele gritava algo para… Hayden.
O garoto notou minha presença de imediato, mas não moveu um passo
em minha direção. Estava sob a mira de uma arma.
— Deite no chão agora. Não vou repetir uma segunda vez, ouviu
bem? Deite ou eu vou atirar.
Algo pareceu tomar conta de meu corpo naquele momento. Um
instinto estranho que não deveria estar ali, que não tinha nenhuma
motivação plausível. Ao lado da caçamba, tinha um pedaço de madeira de
pouco mais de um metro de comprimento. Peguei-o e… acertei no
segurança.
Ele desmaiou na hora, e só então me dei conta da gravidade do que eu
tinha feito.
— Ai, meu Deus! — balbuciei, soltando a madeira enquanto encarava
o homem inconsciente no chão.
Hayden veio até mim e segurou minha mão para me puxar consigo,
mas eu gritei:
— Não, não. Eu… Ele pode estar morto. Jesus! — eu disparei de
modo confuso, e o garoto tentou me puxar mais uma vez. Não deixei ser
levada com facilidade e Hayden então bufou, mas me soltou.
— Puta que pariu.
Pensei que ele iria me deixar ali, porém tudo que ele fez foi se voltar
para o segurança e conferir, com dois dedos abaixo de seu nariz, se ele
estava respirando, e logo levou a mão até a região onde eu havia lhe
acertado.
— Ele vai ficar bem, está apenas com um galo. Você precisaria ficar
preocupada se a região estivesse afundada. Agora vamos — disse
entredentes.
Ele voltou a agarrar minha mão suada, mas eu insisti:
— Você pode estar mentindo!
Hayden me encarou, e, com uma sinceridade sombria, retrucou:
— Eu não minto.
Por algum motivo… eu acreditei nele. E deixei que ele me levasse
para onde pretendia. Não fomos para a parte frontal do prédio, e sim mais
para os fundos. Também havia um muro lá que delimitava o território do
prédio, e Hayden subiu em uma caçamba e sentou nele para me esperar. Fiz
o mesmo, embora meus tornozelos doessem um pouco ainda, e só quando
estava no muro que o garoto pulou para o outro lado. Hesitei, porque aquela
altura era o dobro da qual eu tinha pulado anteriormente, e eu já tinha me
machucado.
— Vem logo, Katrina — Hayden disparou, impaciente, mas eu não
consegui soltar o peso do meu corpo. — Katrina, que porra, vamos.
— Eu… eu não dou conta.
— Pare de besteira e pula — ele disparou.
O modo como Hayden falava era geralmente calmo e ponderado, e seu
modo de agir também. Eram raros os momentos que ele não agia assim, e
aquela era justamente uma exceção. Honestamente, eu ainda não sabia ao
certo quem aquele garoto era. Talvez, a camada sombriamente serena que
ele sustentava não fosse totalmente quem ele era.
Havia muito mais, foi aí que eu tive a certeza.
Hayden abriu a boca para provavelmente dar sequência aos seus
gritos, porém a fechou antes que dissesse qualquer coisa. Ele fechou as
pálpebras bruscamente e inspirou fundo por apenas um segundo. Quando
voltou a abrir os olhos, foi apenas para me encarar e sussurrar alto o
bastante apenas para que eu pudesse ouvir:
— Eu vou te segurar.
Era uma promessa. Mas…
— Sua amiguinha acabou de me deixar trancada em uma merda de
sala de um prédio em chamas para ferrar comigo enquanto seguia um plano
que era seu, Hayden, então me diga exatamente por que eu deveria confiar
em você agora.
— Porque eu voltei apenas para te buscar, porra — ele tornou a
disparar, agora mais furioso do que nunca. Talvez… não estivesse feliz por
admitir isso. — Agora salta logo desse muro antes que eu perca minha
paciência já escassa e vá aí apenas para te empurrar.
Engoli em seco, porém me forcei a repassar suas primeiras palavras
mentalmente. Eu ainda não tinha certeza se devia mesmo confiar nele, não
tinha absolutamente nenhum motivo para isso, entretanto… não havia
razões para ele estar ali sozinho. Talvez, apenas talvez… Hayden tivesse
mesmo tentado ir atrás de mim.
No fim, eu saltei. E, indevidamente, não foi uma surpresa total quando
ele me segurou.
Nós dois voltamos a correr, e, após virarmos a última esquina,
escutamos alguém gritando:
— Entra, entra.
Era David.
Hayden praticamente me empurrou para a parte traseira do carro que
David dirigia e entrou atrás de mim, e, instantaneamente, começamos a ser
levados para longe. Pela primeira vez, então, me permiti conferir o estrago
que eu tinha ajudado a fazer.
Meus olhos arderam no segundo em que me virei para trás, porque as
mais intensas das chamas consumiam três dos cinco andares do prédio
corporativo que deixávamos para trás. Cinzas encontravam os vidros do
automóvel em que estávamos, e só então entendi a gravidade do que
tínhamos acabado de fazer. Ainda estava sem ar quando questionei em não
mais que um sussurro:
— Que lugar era aquele? O que fizemos?
Para minha surpresa, não foi Hayden que me respondeu, e sim David,
que me encarava pelo retrovisor:
— Aquele lugar, novata, é o motivo pelo qual meu genitor nunca foi
me visitar em um maldito dia primeiro de cada mês. Aquele império agora
em ruínas é o que ele sempre colocou erroneamente como prioridade ao
invés de sua própria família, e o que fizemos… não foi nada mais que
retaliação.
Camélia (Theaceae)
Era cultivada no Quilombo do Leblon, local que abrigava
escravos fugidos e que foi importante ponto de
resistência e disseminação dos ideais de liberdade. Por
isso, é a planta que mais simboliza a liberdade.

Mesmo tendo deixado o prédio em chamas quase meia hora atrás,


Katrina ainda estava nitidamente desnorteada enquanto eu retirava
pequenos cacos de vidro de seu cabelo esvoaçante.
Honestamente… eu não a culpava.
Eu podia entender o receio que Ashley tinha de Katrina, embora isso
não amenizasse a fúria inconveniente que irrompia em meu interior. Aquela
garota não era exatamente fácil de controlar, afinal. Era, talvez, a pessoa
mais imprevisível que eu já tinha conhecido, porém de um modo estranho.
Ela meio que me fascinava, e eu nunca tinha gostado tanto de estudar ou
testar alguém quanto o fazia com a menina.
Eu tinha começado a perceber que tal imprevisibilidade provavelmente
se devia ao fato de que Katrina não conhecia muito bem a si mesma. Eu
achava que ela nunca tivesse entusiasmo o suficiente para se interessar
sequer por si mesma, e ninguém ao seu redor tinha lhe obrigado a viver sua
vida da maneira correta. Bem, aparentemente… a situação estava mudando.
Katrina estava sido imposta a seus limites e a lutar da maneira que era
capaz de diversos aspectos diferentes. Eu estava garantindo isso, e me
divertia muito com o que via. Ao menos, na maior parte das vezes,
aparentemente.
O fato era que seria mais esperado que eu estivesse satisfeito por
Katrina ter escapado por conta própria da situação em que Ashley tinha a
posto e ainda ter livrado minha pele ao desmaiar um segurança. Ela fizera
muito mais do que eu poderia esperar dela. No entanto… não tinha sido eu
quem a obrigara a nada daquilo. E eu não gostava nem um pouco de ter
outras pessoas testando-a além de mim.
— Então… é isso que vocês fazem? Todo dia primeiro vocês punem
os pais não presentes de alguém? — Katrina pronunciou as primeiras
palavras após algum tempo, tirando-me de meus próprios devaneios que
nunca cessavam.
— Quase isso — respondi apenas. Não eram todos dias primeiros.
A garota me encarou, como se só então se desse conta de que eu
estava logo à sua frente ainda recolhendo o vidro de suas mechas. Observei-
a engolir em seco e percebi que sua respiração se alterou um pouco; a
reação me extasiou completamente. Uma pessoa normal teria se deixado
sorrir diante daquilo, eu sabia, porém foi inevitável permanecer inalterável.
Esperei que ela nos julgasse ou que nos xingasse por tê-la colocado
naquilo, mas ela não o fez.
A coisa da imprevisibilidade ainda me pegava de jeito.
A garota ficou quieta por alguns segundos, apenas refletindo.
— E… hum… como seu grupinho escolhe os pais da vez que irão
castigar? — perguntou enfim, e, embora nitidamente tivesse tentado, a
curiosidade não soou tão casual quanto gostaria.
Semicerrei os olhos. Eu sinceramente não era muito bom em ler sua
mente, o que me irritava frequentemente. Entretanto, naquele momento, eu
tive um palpite de suas intenções mais vergonhosas. Uma parte de si, nem
que tivesse sido momentaneamente e também de modo volátil, se perguntou
como seria punir seu pai.
Eu suspeitava que ela nunca admitiria isso. Provavelmente nem tinha
se deixado levar a ideia à frente, ou, mesmo que inconscientemente, não
tinha admitido a si mesma que tinha o direito de querer que seu pai pagasse,
ao menos um pouco, por tê-la enviado para uma prisão por se preocupar
demais com sua carreira para cuidar de sua filha.
Foi por isso que eu não perguntei se Katrina queria que seu pai tivesse
sido o da vez a ser punido. A resposta dela, por ser mais simples, seria
negativa. Só que isso seria uma reação muito superficial. Também não
respondi à sua pergunta.
Dessa vez, consegui sorrir. Eu a obrigaria a descobrir o que de fato
queria. Empurraria-a ao seu limite agora mais pessoal. Teríamos mais uma
resposta naquela noite.
A cidade de Katrina não ficava a mais de uma hora de distância
daquela. Quarenta se corrêssemos. Eu já tinha decorado tudo de sua ficha.
— Pare o carro — eu disse a David simplesmente, que me encarou
pelo retrovisor.
— Estamos na beira da estrada.
— Pare o carro — repeti. Não foi necessário mais para que ele me
obedecesse. Também pelo retrovisor, vi que os dois carros que nos seguiam
também pararam atrás de nós. — Saia. Quero que você vá para o carro de
Brad.
Katrina e David balbuciaram um “o quê?” simultaneamente.
Não os respondi, somente saí do carro, o que fez com que ele fizesse o
mesmo. Já do lado de fora, ele parou à minha frente.
— O que você vai fazer, cara?
— O que está acontecendo? — Brad, que tinha saído do carro de trás,
perguntou, já se aproximando. Ashley estava atrás dele.
— Vamos seguir caminhos separados. Preciso fazer uma parada antes.
Vocês vão na frente.
— Cara, já são sete e meia, e temos que chegar ao Instituto antes da
meia-noite — Brad disse.
— Vou chegar a tempo — respondi, e fiz menção de entrar no banco
do motorista.
Ashley, contudo, se aproximou e disse, contrariada:
— Se não chegar, teremos um carro a menos. Nem todos conseguirão
passar despercebidos. Você está colocando nossas cabeças em jogo.
Virei-me para ela, e sequer hesitei em sussurrar apenas para que ela
me ouvisse:
— Exatamente como você fez com ela, não é? — indiquei para onde
Katrina estava. — Estamos quites agora.
— Não é uma troca proporcional — ela sussurrou de volta. Parecia…
chateada.
Bem, eu também estava. Ou puto, para falar a verdade. Era difícil
distinguir os piores sentimentos do caos constante que eu sentia.
Tudo que eu fiz foi estalar a língua.
— Nunca fui conhecido por ser justo, Ash — eu disse, sem mais se
preocupar com quem podia nos ouvir. — Lembre-se disso na próxima vez
que cogitar foder com ela, por mais razões que tenha. — Retomei meu
caminho, mas, antes de de fato entrar no automóvel, eu prometi: — Vejo
vocês antes da meia-noite.
No momento em que fechei a porta e dei partida, escutei a voz confusa
e incrédula de Katrina chegar aos meus ouvidos:
— O que diabos você está fazendo?
— Nós estamos adicionando mais uma tarefa na noite antes de
finalizá-la apropriadamente, pequena aberração.

Katrina permaneceu quieta pelo caminho inteiro. Não achava que ela
sequer tinha notado o desvio que tomamos para sua cidade ou lido as duas
placas que davam direção ao nosso destino. Ela tinha passado para o banco
da frente, então eu tinha completa visão de seu rosto pelo espelho. Parecia
não somente perdida em seus pensamentos, mas sim… verdadeiramente
incomodada com algo.
Foi apenas quando estávamos muito próximos da entrada de sua
cidade que eu rompi o longo silêncio:
— Me diga, pequena aberração, por que não está sendo minha
presença seu maior incômodo no momento? Já está se sentindo tão
confortável comigo?
Ela bufou. Pareceu irritada por ser lembrada de onde estava e com
quem.
— Acredite, o maior problema da minha vida inteira é você — ela
retrucou, e eu realmente quis rir. Não estava muito acostumado com uma
Katrina que cuspia veneno quando provocada.
Eu gostava, entretanto. Mais do que seria considerado ideal.
A garota estava aprendendo a se defender mais, afinal.
Virei a cabeça em sua direção, encarando-a por um momento. Ela não
teve outra opção senão sustentar meu olhar.
— Tudo bem. Mas não foi em mim o problema que você passou a
viagem inteira pensando.
Ela revirou os olhos, desviando-os.
— Ah, de certa forma, foi sim, porque você é o centro de todos os
problemas, Hayden — disparou. Ainda era estranho ouvir meu nome
escapando de sua boca, e, quase que inevitavelmente, aproveitei cada
segundo daquilo. — Sabe, eu ainda não posso acreditar que eu deixei um
segurança inconsciente por sua causa. Não faço ideia do que me deu.
Certo.
Era isso que estava a afligindo.
Ter machucado o homem que estava a trabalho. Não pude dizer que a
entendia, porque eu não tinha muita intimidade com o sentimento de culpa
ou remorso, então tentei olhar as coisas com sua perspectiva.
Não consegui.
Ela não devia se incomodar mais com o sofrimento que causava às
outras pessoas do que com o sofrimento que outros lhe causavam, de forma
alguma.
Eu tinha certeza que o homem, àquela altura, já tinha recuperado a
razão, e enfrentava apenas uma dor inconveniente. Não lhe consolei, no
entanto, porque isso não fazia meu feitio. Apenas me perguntei,
provavelmente como ela, por que ela tinha machucado alguém por mim se
abominava tanto isso.
Não pude achar uma resposta certeira, mas apenas o questionamento
me fez esboçar um sorriso indevidamente satisfeito por uma fração de
segundo.
— Acho que você me deve um favor — ela soprou após longos
segundos, e eu a fitei de novo, surpreso. Tive que engolir uma risada
quando percebi que estava falando sério.
Nunca devia ter cogitado que era uma brincadeira, na verdade. Katrina
não era uma garota de humor, isso era óbvio. Eu achava… que nunca tinha
a visto sequer sorrir, quanto mais rir.
— Como é?
— Você está me devendo um favor — esclareceu com todas as letras,
ainda firme. — Já ouvi David dizendo que todos levam favores muito a
sério do Instituto, então acho que eu deveria cobrar a dívida
apropriadamente.
— Ok, se eu te devo um favor, você também me deve um, pequena
aberração. Eu te salvei daquele urso, afinal.
Ela semicerrou os olhos para mim, indignada pela menção.
— Eu teria dado conta dele. Estava prestes a acertar o rosto com o
canivete.
Estalei a língua duas vezes.
— E o que te faz pensar que eu também não teria dado conta daquele
segurança?
Katrina grunhiu.
— Não importa. Eu fiz o trabalho sujo.
— Posso dizer o mesmo.
— Ótimo.
— Ótimo — repeti, soltando um riso nasalado. — Estamos quites,
então?
— De forma alguma.
Eu estava me divertindo um pouco com aquilo. Encarei-a pelo
espelho.
— Tudo bem, Katrina… Hipoteticamente, se eu tivesse uma dívida
com você, o que você exigiria de mim?
— Que você sumisse da minha vida — ela respondeu entredentes sem
sequer pestanejar. Já estava na ponta da língua. Demonstrei um sorriso vil.
— Ah, pequena aberração — soprei em um falso pesar. — Deveria
saber que nenhum favor que você poderia me fazer seria suficiente para
cobrar uma dívida dessas.
Ela trincou o maxilar, contrariada, porém não pôde evitar de retrucar a
pergunta:
— E você? Teria exigido o que de mim, hein?
Meu sorriso apenas se alargou.
— Não se preocupe. Eu quero muito de você, Katrina, e nada disso
também pode ser obtido por uma simples dívida a algum favor. Tudo que eu
quero… você me dará por livre arbítrio.
Ela não acreditou nem um pouco em minhas palavras. Isso foi
realmente uma pena.
Não demos continuidade ao assunto, porque, quando entrávamos em
sua cidade natal… ela enfim se deu conta de onde estávamos. Seus olhos se
arregalaram.
— O quê…
— Ainda não. — Não era hora de lhe dar uma resposta mais
esclarecedora.
Surpreendentemente… ela não disse mais nada. Talvez porque, no
fundo, já soubesse para onde nos dirigíamos.
Seguindo as placas, não gastei mais do que quinze minutos para
chegar ao nosso destino. Estacionei do outro lado da rua de onde o
consultório de seu pai ficava. Katrina encarou o local com olhos alertas.
Sua postura exalava tensão crua, e ela apertava as mãos fortemente uma na
outra.
Avaliei-a com toda atenção do mundo.
Ela se ressentia, era óbvio. Porém, eu não identifiquei a que ponto.
Ainda.
Apenas quando ela desviou a atenção para seus pés que eu me deixei
dizer em um tom baixo:
— Não gastamos todo o querosene. O restante está na bolsa do banco
de trás.
Foi só então que ela me fitou, balançando a cabeça.
— Não…
— Não me dê uma resposta superficial porque você acha que é o que
deve fazer — cortei-a. — Pense. Pense no que quer.
— Nós… não temos tempo para isso. Os outros estão nos esperando,
eu escutei a conversa. Temos que…
— Os outros que se fodam, Katrina. Só você importa agora. Como
sempre deveria ter sido.
— Se chegarmos depois da meia-noite…
— Pare.
— Hayden…
— Pense — insisti entredentes, e ela pareceu frustrada, mas só por um
segundo, porque, no fim, ela desviou o olhar e se perdeu dentro de si. Em
um momento raro, ela pensou em si.
Segundos se confundiram com minutos enquanto ela se decidia,
pensava com mais afinco do que qualquer momento anterior, porque eu
tornara aquela situação uma muito possível realidade, e não uma fraca
hipótese. A escolha estava em suas mãos.
Ela encarou através da janela, ainda pensativa, mas, em alguns
segundos… algo lhe chamou a atenção. Meu banco estava um pouco à
frente do seu, então percebi quando seus olhos se arregalaram e suas narinas
se dilataram. Segui seu olhar, e não demorei a localizar o que prendera sua
atenção.
O consultório de seu pai era um prédio estreito de dois andares, e a
larga janela do segundo andar dava vista a um cômodo de luzes acesas,
dava vista ao homem que só podia ser o responsável do lugar. E a mais uma
mulher, que, embora eu não pudesse ver seu rosto, imaginava não ser a mãe
de Katrina pelo modo que a garota os encara. Ela estava… assombrada.
Sua boca sequer tinha cor, ela nem mesmo piscava enquanto via seu
genitor foder uma mulher que não era sua esposa perto de uma janela como
se não tivesse nada a esconder. Como se não estivesse escolhendo uma
amante ao invés de sua própria filha, principalmente naquele dia.
Em uma agilidade viva que nunca vi em Katrina, ela agarrou o boné
que eu deixara logo acima do porta-luvas e colocou em sua cabeça antes de
pular do carro. Ela não pegou o querosene, entretanto.
Segui-a sem sequer hesitar, mas, antes mesmo que eu atravessasse a
rua, a garota pegou uma grande pedra da rua e jogou no largo vidro do
primeiro andar, ao lado da porta. O vidro se estilhaçou, dando plena visão
da sala de espera do lugar e das camélias que a ordenavam. Katrina pegou
uma outra pedra, e dessa vez jogou na vidraça da porta. Ela quebrou em um
estrondo completo.
Cruzei os braços sobre o peito, um pouco perturbado mas muito
admirado com aquilo. Ela estava sentindo algo. Algo não muito bom, mas o
sentia com muita força, ao menos. Uma força que eu nunca tinha
presenciado dela. Ela esteve chegando ao seu limite em várias ocasiões
naquelas últimas semanas, mas nunca assim. Nunca ignorando todas as
amarras que achava que a seguravam.
Sorri.
Aquele era só o começo.
— Sabe, se quiser fazer um bom estrago, o querosene é realmente…
— Isso não é sobre ele. É sobre mim — ela me cortou com a voz cheia
de fúria.
Entendi o que ela queria dizer. Aquilo não era sobre o tamanho do
estrago que faria para seu pai arrumar. Ela não se importava com aquilo. No
momento, ela agia apenas para ela.
Quando Katrina jogou uma terceira pedra bem no balcão de madeira
ao fundo do local, destruindo-o, seu pai chegou na janela do andar de cima,
vestindo uma camiseta.
— Que porra é essa? Eu vou chamar a polícia, seus delinquentes de…
Antes que ele finalizasse a ameaça, Katrina se afastou e jogou uma
quarta pedra bem na parte de vidro daquela janela. Tive que me segurar
para não assobiar diante da mira impressionante.
A menina jogou mais uma pedra, porém dessa vez errou. Ela não
desistiu, e pegou e jogou mais uma na janela ao lado. Mais um ruído de
vidro se estilhaçando chegou como música em nossos ouvidos.
Puta merda.
Senti que poderia ficar vendo aquilo a noite inteira, mas então seu pai
desceu as escadas até a sala de espera. Sem nem mesmo hesitar, corri até
Katrina e a puxei pelo antebraço, mas não a tempo de impedi-la de jogar
uma pedra nele. Ela também acertou.
Tive que praticamente arrastá-la até o carro e colocá-la lá à força
enquanto seu pai voltava à sala de espera e gritar suas inúmeras ameaças.
Contornei o carro com a maior agilidade possível e, ao entrar, não hesitei
em dar partida e levar o carro para longe dali.
Apenas quando estávamos a quase dois quilômetros de distância que
me deixei desacelerar um pouco e a olhar Katrina. Sua boca rosada estava
entreaberta ao dar lugar a uma respiração acelerada, sua pele reluzia em
uma camada fina de suor e seus cabelos estavam mais rebeldes do que
nunca. O que realmente chamou minha atenção, entretanto, foram seus
olhos escuros… eles brilhavam, resplandeciam a intensidade de uma vida
inteira.
Um pensamento fugaz passou pela minha mente naquele momento.
Aquela era a coisa mais linda que eu já tinha visto em uma vida cheia
de horrores e deformidades.
— Ei — chamei sua atenção, e ela se virou para mim em um
movimento brusco.
— O quê? — disparou, e, por Deus… até sua voz carregava mais
vivacidade do que nunca.
Esbocei o mais largo sorriso de todos. Um sorriso diferente.
— Muito bem feito, Katrina. Muito, muito bem feito, porra.
Ela me encarou, e então… fez o que eu não me dava ao luxo de
esperar dela tão cedo. Ela riu. Não foi um riso de alegria, entretanto, e sim
mais de histeria. Foi bonito do mesmo jeito.
— Você é o maior filho da puta que eu conheço, sabe disso?
Eu sabia.
E tinha atingido o ápice da minha noite… talvez, o ápice de meus anos
ao escutá-la pôr aquilo em cada uma daquelas palavras.
Ainda sorria quando voltei a me concentrar na estrada diante de mim,
sabendo que agora teria que lutar contra o tempo para que aquela noite não
terminasse em destroços.

Às quinze para meia-noite, encontrei os garotos na metade da estrada


de terra que dava para o Instituto. Todos tomamos nossos lugares às pressas,
e então os caras que eu mesmo contratei pessoalmente para se passarem por
parentes mais velhos colocaram os carros em movimento rapidamente.
Tivemos tantos problemas para entrar quanto para sair.
Na extremidade mais escura do estacionamento, próxima à floresta,
todos saímos dos automóveis rapidamente. Alguns deram a volta no
Instituto para entrar pela porta dos fundos. Eu, fiquei. Porque Katrina tinha
ficado.
À minha frente, a garota foi ao encontro de sua amiga, e quase pude
ouvi-la perguntando se estava bem. Também pude imaginar Helen
retrucando a pergunta e Katrina mentindo.
O fato era que “bem” era um termo muito simples para definir o
estado de Katrina. A intensidade da última noite tinha a atingido de uma só
vez na última hora da viagem. Tive certeza disso porque a garota não era
muito expressiva geralmente, então, quando suas feições começaram a ficar
contorcidas, percebi que havia algo muito veemente corroendo seu interior.
Isso, entretanto, não era algo ruim. Não a longo prazo. Ao menos, não
pior do que o nada permanente ao qual ela estava acostumada.
Era bom que ela tivesse se dado permissão total de sentir o que quer
que fosse de uma vez. Ao menos, era o que eu imaginava. Foi estranho
como quase realmente desejei algo de verdade, com meu coração, se é que
eu tinha um. Que seu bloqueio tivesse se destruído quanto eu achava.
As luzes do Instituto já tinham sido apagadas, porém minha visão se
acostumou rapidamente ao escuro. Era sempre assim.
Deixei que Katrina mantivesse alguns metros de distância de mim ao
subir as escadas, mas não deixei que ela virasse para os dormitórios. Ao
invés disso, segurei seu braço não machucado e a puxei em direção à
parede.
Ela assustou, senti isso. Entretanto, ficou imóvel quando se deu conta
de que era eu. Uma parte de mim não gostou nem um pouco que ela não
tivesse ficado ainda mais temerosa, mas a outra… se satisfez brutalmente
quando ela não fez menção nenhuma em escapar de meu toque, de deixar o
calor que se formava entre o contato de nossos corpos.
A fraca luz das estrelas que passava pela janela do outro lado do
corredor iluminava seu rosto o bastante para eu ver seus lábios se
entreabrirem em uma reação que me pareceu instintiva. Também senti sua
respiração se tornar mais entrecortada, e a observei engolir em seco uma
vez.
Eu não devia, mas foi inevitável levar minhas mãos à sua cintura.
Afaguei sua carne através do algodão de sua roupa enquanto descia o olhar
um pouco. Seu peito subia e descia violentamente. Não me lembrei da
última vez que algo me incitara tanto quanto a visão de Katrina em minha
camiseta, que agora estava suja de respingos de sangue, um pouco de terra e
suor.
Meu escasso autocontrole ameaçou me deixar quando foram suas
pernas nuas que chamaram minha atenção, as mesmas pernas que andei
ignorando boa parte da noite para manter a maldita razão que todas as
tarefas demandaram.
Contive um gemido de frustração que tomou conta da minha garganta
quando me forcei a me lembrar que não era a hora. Não ainda.
Voltei a encarar seu rosto, e, por um momento, seus olhos ainda
reluzindo uma vivacidade crua me arrebataram por completo, sobretudo
quando eles desceram para meus lábios. Eu teria sorrido se não estivesse
lutando tanto para reprimir os pensamentos de que, aparentemente, eu
queria ainda mais dela do que tinha concluído.
A percepção me confundiu um pouco, porque eu não desejava nada
nem ninguém como eu parecia estar desejando-a naquele momento. A
magnetização ali… era carnal, claro, e com isso eu estava habituado e
também não tinha dificuldades em saciar, mas a necessidade de tomá-la…
isso, eu não estava acostumado a ter, de forma alguma. Estar confuso, no
entanto, não significava estar assustado. Nunca. Pelo contrário, fiquei
apenas mais estimulado ao me dar conta de que havia mais limites próprios
que eu ainda testaria.
Limites esses que eu precisava sempre testar para me lembrar de que
era humano. Que o vazio dentro de mim podia ser rompido, ao menos
momentaneamente.
Tirei o boné de minha cabeça e, organizando calmamente seus cabelos
cheios, coloquei-o sobre sua cabeça, e só então dei tudo de mim para dar
um passo para trás. Pude perceber que ela soltou o ar que pareceu estar
segurando inconscientemente nos últimos segundos.
Um canto de meus lábios se ergueu involuntariamente, e a avaliei uma
última vez naquela noite antes de deixá-la, mas não sem dizer em não mais
que um sussurro:
— Considere isso um presente, pequena aberração. Uma lembrança de
que essa noite foi real e que não há nada de errado em prezar por você
mesma. Ainda há muito para que você se deixe sentir. Como hoje, mas
também de maneiras imensamente diferentes. De um modo bom,
possivelmente.
Flor Onze-Horas (Portulacaceae)
É uma suculenta com ciclo de um ano de vida, possuindo
tal nome por sempre se abrir em torno das onze horas,
fechando novamente à tarde. Para algumas culturas, pode
ser um símbolo de amor.

Quando acordei pela manhã, senti-me diferente. Não dormente ou


cansada, como o usual, e sim… agitada. Foi estranho.
Não especialmente bom, porque as memórias da última noite me
afligiram em um baque, vindo todas de uma vez no segundo em que
recuperei a consciência. A lembrança de meu pai transando com uma
mulher qualquer era agonizante, e a recordação da proximidade excessiva
entre mim e Hayden e como reagi a isso também me atormentavam de um
modo ainda incerto. No entanto…tudo isso me deixou muito vigorosa. Com
alguma energia, eu diria.
Realmente, era diferente.
Não precisei gastar tanto tempo na cama, enrolando para levantar.
Simplesmente me sentei, senti-me disposta o suficiente para isso. Foi então
que eu senti algo mais entusiasmante que eu de fato poderia classificar
como muito bom.
Eu sorri quando vi alguns pequenos vasos das mais diversas plantas
em cima da escrivaninha do quarto. Rosas onze-horas, algumas diferentes
espécies de suculentas, alguns cactos, uma costela-de-adão e, no meio de
tudo… uma muda de Caladium. Em frente a ela, repousava um bilhete.
Não hesitei muito antes de pegá-lo.
Essa é uma dívida que eu posso cumprir. Tente saber diferenciar na
próxima vez que for precipitada e achar que está no direito de cobrar
algum outro favor.
H.
Ele escreveu o bilhete como se tivesse certeza de que eu poderia me
precipitar outra vez. Isso me irritou um pouco, mas não fixei tanto minha
atenção nisso, nem em como ou quando ele tinha estado naquele quarto.
Não pude. Não quando Hayden deixara tão explícito com aquelas palavras
que ficar longe de mim não era algo possível de se fazer.
Isso não era algo bom, de forma alguma. Porque as intenções de
Hayden eram, no mínimo, duvidosas, e eu nunca sabia o que se passava
pela sua cabeça um tanto quanto deturpada. Entretanto… algo dentro de
mim se agitou de um modo inconveniente, embora minha parte mais
racional ainda o temesse.
Não tive tempo de distingui-lo, pois batidas fortes ecoaram da porta.
Antes que eu desse permissão para que a abrissem, a Inspetora Foy entrou
no quarto. Congelei, porque tinha sido justamente ela quem tomara minhas
sementes e mudas. A mulher de coque apertado encarou todas aquelas
plantas, semicerrando os olhos, e esperei por um sermão, uma ameaça de
punição que seria cumprida muito em breve. Contudo… no fim, tudo que
ela fez foi desviar a atenção para mim e dizer com a voz fria:
— Você terá uma consulta com o Dr. Cole no lugar de suas duas
primeiras aulas. Se troque e suba.
Ela saiu e fechou a porta com força por trás de si. Achei aquilo
estranho. Era de se esperar que ela fosse brigar pelas plantas, eu estava indo
contra as regras, afinal. Perguntei-me se Hayden tinha a comprado com
algo, porém Helen me dissera que ela era menos manipulável. Não tive
ideia do que acontecera, do que a obrigara a ignorar minha desobediência,
mas isso não me incomodou tanto, porque estava mais preocupada com a
consulta daquela manhã.
Ela seria longa. Muito.
Um calafrio horrível percorreu minha espinha quando me perguntei o
que me esperava no consultório do diretor. Não pude hesitar muito antes de
me preparar para ela, entretanto, porque não era como se eu tivesse muitas
opções senão comparecer a ela.
Eu podia ter escapado no dia anterior, mas aquele Instituto ainda
continuava a ser uma prisão, apesar do que os outros alegavam.

— O cérebro, Katrina, funciona pela comunicação entre neurônios,


que por sua vez se comunicam por meio de substâncias chamadas
neurotransmissores. Essas substâncias fazem trajeto de um neurônio a
outro, pode entender? — o Dr. Cole disse após quase vinte minutos de
consulta, quando me induziu a sentar na cadeira metálica estranha de sua
sala. Fiquei relutante no começo, mas hoje, havia um enfermeiro de grande
porte acompanhando-nos perto da porta, e imaginei que, ou eu iria por
escolha própria, ou faríamos as coisas do modo mais difícil. Como eu
estava cansada de me machucar fisicamente… segui as instruções do
diretor. — Acontece que, nem sempre, esses trajetos estão fluindo de modo
correto. Dessa maneira, os neurotransmissores encontram um certo
problema em passar mensagens adiante — continuou, prendendo um
monitor de batimento cardíaco em meu dedo. Não demorei a ouvir o ritmo
acelerado de meu coração. — É o que está acontecendo com você, querida.
Em termos mais simples, seu cérebro está desestimulado, em um certo
estado apático. Ele simplesmente… não consegue funcionar da maneira que
deveria.
Quis dizer para ele que eu não estava tão apática, especialmente
naquele dia. Que podia mesmo haver um problema com meu cérebro
quando se tratava de aspectos mais constantes, mas que não achava que o
melhor a se fazer era… o que quer que Dr. Cole pretendia. Eu pressentia
que algo estava errado.
No entanto, o médico continuou antes que eu dissesse qualquer coisa:
— Geralmente, remédios são usados para tratar essa espécie de
desestabilização do cérebro. No entanto, há pessoas que simplesmente não
correspondem a esses tratamentos. Pesquisas ainda são feitas para
determinar a causa, porém o que já nos é óbvio é que cada cérebro tem suas
propriedades particularidades. Seu pai me enviou sua ficha, e vi que você
foi tratada com as mais diferentes químicas medicamentosas. Nenhuma lhe
trouxe melhoria significativa; pelo contrário, algumas trouxeram apenas
mais prejuízos para sua saúde mental. Está claro, portanto, que seu cérebro
é uma exceção, minha cara. E é aí que eu entro com uma nova proposta.
Uma proposta que ainda está em estudo, claro, mas que em muito breve
será provada como o tratamento revolucionário do século.
O quê?
O tratamento… ainda estava em estudo? O que aquele doutor fazia ali,
afinal? Tratava seus pacientes, seus alunos como cobaias? Estudava como
cada cérebro correspondia àquele suposto tratamento revolucionário? Ele…
nos testava?
— Eu não tenho certeza se…
Minha voz eufórica foi cessada quando ele prendeu uma terminação de
um cabo por uma fita em minha têmpora direita, porque eu me assustei com
aquilo. Ele logo fez o mesmo com a têmpora esquerda, e eu me apavorei
ainda mais.
— Doutor…
— Acalme-se, querida. A primeira sessão é sempre a pior de todas.
Somos programados a ter medo do desconhecido. Mas as coisas vão
melhorar, eu te garanto. Em breve entenderemos como seu cérebro
corresponde ao tratamento, o que é melhor e o que é pior para ele.
Ele me deu a certeza que eu precisava. E foi inevitável me exaltar.
— Você vai realmente testar meu cérebro? Não, de jeito nenhum. Você
não pode fazer isso, eu não vou deixar.
Tentei me colocar de pé, mas então o enfermeiro se aproximou e me
manteve no lugar. Ele prendeu meus pulsos na cadeira com as algemas
metálicas dali e logo meus tornozelos, não importando o quanto eu
protestasse e me mexesse.
— Querida, me escute, por favor. Os trajetos de seus
neurotransmissores precisam ser limpos. E conseguiremos fazer isso em seu
cérebro com pequenas convulsões induzidas. Por meio dos eletrodos de
suas têmporas, pequeninos estímulos elétricos reorganizarão os
neurotransmissores de suas vias, deixando-as mais… livres. Iremos apenas
diminuir o trânsito de seu cérebro, ok? — ele tentou brincar, e tudo que eu
fiz foi arregalar meus olhos. Ele estava falando de… choques. — Eu posso
prometer que seu sistema nervoso estará muito melhor regulado em breve,
Katrina. Não precisa temer.
— Dr. Cole, por favor, isso…
— Não, por favor. Confie em mim — ele me cortou, aproximando-se
do carrinho esquisito ao lado da cadeira. Impulsionei meus pulsos
violentamente contra as algemas, mas… nada aconteceu. Nada aconteceria.
O som do meu batimento cardíaco frenético soou como a pior das canções
para meus ouvidos. — Tudo ficará bem.
Ele ligou algo ali, e o ruído, juntando-se ao monitor cardíaco, serviu
apenas para deixar tudo pior. Tive certeza que tinha chegado o final da
contagem regressiva para um teste que poderia muito bem ser dizimador.
O médico se agachou ao meu lado, e tudo que fez foi sussurrar:
— Você poderá começar a sentir uma coisinha dolorosa, mas não se
assuste. Há males que vêm para o bem, querida, e você já se provou forte o
bastante para dar conta deles — o Dr. disse, mas não foram aquelas palavras
que ressoaram por meu cérebro estragado.
De forma alguma.
Tudo que eu ouvi foi a voz sacana de Hayden naquele momento em
meu primeiro dia de aula.
Seja bem-vinda ao Inferno, pequena aberração.
Orquídea Fantasma (Orchidaceae)
Muito peculiar em termos de aparência, com caule de
poucos centímetros e flores pequenas e delicadas. Não
realiza a fotossíntese, e, portanto, não produz sua própria
energia. Não é uma planta fácil de cuidar e exige
cuidados especializados.

Batidas consecutivas se fizeram presentes na porta de meu quarto, e


não me obriguei a desviar a atenção de Lilith, que estava entretida se
alimentando de um rato que eu conseguira exclusivamente para ela, ao
murmurar um “entra”.
— Presentinho para você. — Ouvi a voz de Brad ao meu lado, e não
precisei de muito para saber que ele segurava um embrulho plástico macio.
— Acabei de pegar com o carregador — acrescentou, referindo-se ao
homem que nos abastecia de grãos, no geral, duas vezes por mês. Ele
também me abastecia de algo a mais, pegando a encomenda, que ele
provavelmente sequer fazia ideia do que era, com alguns contatos externos.
— Deixa na cama — eu disse, ainda encarando Lilith atrás de sua
gaiola. O rabo do rato ainda se movia quando ela começou a engoli-lo, sua
mandíbula se flexionando para se adaptar ao tamanho do roedor. — Verifico
tudo daqui a pouco e deixo pronto para fazermos a distribuição a partir de
amanhã.
— Tudo bem, cara, mas… preciso te contar algo antes. Estava
esperando que ficássemos sozinhos.
— Ok, fala.
Ouvi-o se sentando em minha cama e também seu suspiro.
— Escuta, antes de ontem eu tive minha consulta com o Dr. Cole e,
cara… ele voltou a me fazer perguntas sobre o George.
— Que perguntas?
— Se… eu sentia falta dele, já que nós éramos vistos na mesma roda
de amigos com frequência. Perguntou também o que eu achava que tinha
acontecido com ele. Parecia estar… me avaliando. Ele está desconfiado.
Sorri.
— Esperava que não estivesse?
— O problema não é esse. O desgraçado não devia estar resgatando
esse assunto após todos esses meses. A investigação foi encerrada.
— Ele só está fazendo os joguinhos mentais dele, e você sabe.
Procurando motivos para nos punir mais.
— Acho que isso é impossível — retrucou com a voz sombria, sem
muito de seu humor usual.
Eu podia apostar todas minhas fichas que a sessão não tinha sido nem
um pouco agradável. Nenhuma das nossas era.
Ainda assim… Brad não devia achar que o filho da puta não tinha a
capacidade de nos punir ainda mais do que o fazia. Ele ainda não tinha ideia
de tudo que o homem era capaz, afinal.
Não duvidava de que ele estivesse apenas buscando uma desculpa
concreta para submeter qualquer um às suas pesquisas mais intensivas. Se
ela fracassasse, as consequências não seriam graves. Ninguém quer um
assassino andando livremente por aí, não importando as circunstâncias.
— Enfim, eu só acho que devemos diminuir as vendas novamente —
continuou, como se quisesse afastar as memórias de sua sessão. — Se
alguém que tem a confiança do doutor nos pegar com os pacotes, ele
poderia dar um jeito de nos ferrar de vez. Sabe como é, se somos
responsáveis por uma merda que acontece aqui, poderíamos facilmente ser
responsáveis por todas.
— Não vamos diminuir as vendas. Teremos apenas que tomar mais
cuidado. As trocas serão feitas apenas nos pontos fixos, vamos deixar que
todos saibam disso. Nada de relaxar e receber dinheiro pelos cantos só
porque achamos que não estamos sendo vigiados. E nada de deixar os
pacotes jogados por aí, para o caso de haver uma vistoria surpresa pelos
dormitórios.
— Cara…
— Brad, não. Para de surtar, porra — sussurrei apenas. — Não há
como provar mais que fizemos algo, principalmente com as investigações
encerradas.
— Merda, tá, eu sei, mas…
— Mas nada. — Só então eu me obriguei a encará-lo. — Eu pedi sua
ajuda com George e não a de David por um motivo. Você é capaz de
carregar isso. Fica frio, entendeu? Nada vai acontecer conosco.
Brad tinha transtorno de humor, qualquer um podia chegar à conclusão
de que ele era inconstante e impulsivo. Entretanto, ele fazia o que devia ser
feito e não ficava se martirizando por uma culpa que não deveria existir. Eu
confiava nele.
Brad trincou o maxilar, porém inspirou fundo, assimilando minhas
palavras. Após longos segundos, ele murmurou:
— Você nunca pareceu ter perspectivas de sair daqui, então... para que
a pressa para conseguir o dinheiro?
Trinquei o maxilar. Não gostava de como andava tendo tão poucas
respostas para certas perguntas ultimamente, isso não era do meu feitio. No
fim, malditamente não soube o porquê de não querer diminuir as vendas,
racionalmente eu sabia que nunca sairia dali e não precisaria daquele
dinheiro, então me mantive em silêncio, um pouco irritado comigo mesmo.
Foi então que Brad murmurou, deixando o assunto para lá:
— É, tá, tá. Você está certo. Não vou perder a porra da cabeça. — O
loiro se colocou de pé, apressado. — Vou avisar para David começar a
conversar com as pessoas sobre os pontos de venda.
— Ótimo. Também vou fazer a pesagem e separação de tudo agora
mesmo — murmurei, já que Lilith enfim tinha acabado de engolir sua
pequena refeição. O rato ainda passava vagarosamente pelo esôfago.
Brad caminhou até a porta, porém parou antes de passar por ali,
lembrando-se de algo. Seu usual sorriso sacana tomou conta de seus lábios.
— Estava quase me esquecendo… Cara, sua novata deve ser mesmo
pirada da cabeça, né? Acho que eu estive a subestimando, afinal de contas.
— Ele soltou um riso divertido, como se não estivesse se matando de
preocupação há poucos minutos.
— Do que estava falando?
— Katrina esteve no consultório do doutor antes de minha consulta.
Não estava consciente quando saiu, inclusive.
— O quê? — balbuciei, sentindo com mais intensidade aquilo que não
me era muito comum. Confusão.
— Sabe o que estou dizendo, se o Dr. Cole está cuidando
pessoalmente dela, ela deve ser ferrada da cabeça como nós. Não é à toa
que você anda brincando um pouco com ela por aí, não é?
Não. Não era.
Era o contrário, na verdade. Katrina era diferente de mim. Sua mente
era diferente, ao menos na maior parte dos aspectos. E era isso que me
deixava intrigado.
Ela não devia estar consultando com aquele doente. Katrina tinha
quadro de depressão clínica. Não devia ser suficiente para chamar sua
atenção.
— Ok, que seja, vou dar o fora agora. Te vejo depois.
Mal vi Brad fechar a porta atrás de si. Estava perdido demais dentro de
mim mesmo, mais que o normal.
Aquele filho da puta…
Ele ia estragar tudo. Tudo que eu estava fazendo, o diretor daquela
prisão horrenda iria desfazer. Que direito ele achava que tinha de estragar o
único e pequeno escape que eu achara naquele lugar brutal após tudo que
tinha me feito? Após se apossar da minha vida inteira?
Coloquei-me de pé, sentindo uma ira crua começar a consumir minhas
entranhas, e saí do meu quarto, sem me importar muito com as drogas que
eu ainda tinha que separar.
O primeiro lugar em que eu fui foi no seu dormitório, já que já
anoitecia e o horário de aulas e atividades extracurriculares tinha sido
encerrado. Estava vazio. Ashley passava muito tempo com as amigas,
sobretudo ultimamente, e eu imaginei que Katrina também pudesse estar
com Helen. Tive que parar três garotas — todas assustadas pela minha
presença na ala feminina — até descobrir qual era o quarto de Helen. A
garota abriu a porta para mim, mas disse que Katrina não estava com ela.
Não me confidenciou mais nada, era óbvio que não gostava muito de
mim, mas pude ver pelo seu olhar que estava preocupada.
A última opção era a estufa, embora ela nunca tivesse ido até lá sem
uma necessidade plausível desde nosso primeiro encontro. Ela estaria sendo
quase fechada, mas desci mesmo assim. Havia poucas pessoas espalhadas
pelo Instituto, o toque de recolher logo seria dado, afinal.
Assim que me encontrei do lado de fora, a brisa fria veio de encontro à
minha pele de uma só vez. Meus pelos se arrepiaram, mas a sensação gélida
não me afetou. Eram poucas as coisas que tinham poder sobre mim, na
verdade. Uma vez eu pensara que isso era uma maldição, mas hoje… eu era
grato por aquilo.
Não encontrei Katrina na estufa de imediato. A iluminação era
escassa, o que dificultou minha procura, mas, em poucos segundos, meu
olhar foi atraído para ela sem que eu vasculhasse sequer dois terços do
espaço. A garota estava entretida com uma Orquídea Fantasma, que estava
nitidamente morrendo, mais ao fundo da estufa.
A flor estava sendo cultivada em um canteiro no chão, e Katrina
estava sentada bem ao seu lado. Seu uniforme estava sujo de terra em boa
parte.
Conforme me aproximei, não pude deixar de notar que seus
movimentos estavam… automáticos. Seus dedos esguios, na verdade,
tremiam um pouco. Seus lábios não tinham cor, e, quando ela se deu conta
de minha presença, percebi que sequer seus olhos tinham a mesma vida de
três dias atrás.
Fechei as mãos em punho.
O filho da puta tinha mesmo revertido tudo que eu fizera.
Meu consolo foi que eu ainda o faria pagar. Por tudo.
Katrina demorou a atenção em mim por não mais que um par de
segundos antes de voltar a se atentar às flores ao seu lado. Ela não fez
nenhum comentário sobre minha presença, não verbalizou nenhuma palavra
sobre os passeios rotineiros de minha mascote, como a última vez.
Ela simplesmente não se importou.
Uma parte de mim, contudo, pôde ficar aliviado por ela ao menos não
ter perguntado o que eu fazia ali. Porque eu mesmo não conhecia a resposta.
De novo. Se eu pensasse racionalmente no que me levara tão
impulsivamente até ali, eu não chegaria a nenhuma conclusão concreta.
De alguma forma, tive certeza de que ele tinha usado o tratamento
nela. Ele tinha mexido no que era meu. Forcei-me a inspirar fundo para não
perder a maldita cabeça ali enquanto terminava de me aproximar.
Engolindo em seco toda a raiva que me consumia, eu disse:
— Não é possível salvá-la.
Isso chamou sua atenção. Seus olhos mais mortos que o usual me
encararam.
— A flor. — Indiquei com a cabeça. — Ela não é autossuficiente. Não
é capaz de realizar fotossíntese sozinha, e a planta à qual está ligada não
está sendo capaz de lhe fornecer energia suficiente.
Katrina voltou a observar a orquídea como se fosse a coisinha mais
frágil do mundo, como se realmente sentisse ainda mais dor por ela.
— Então deveríamos deixar que outra planta a faça florescer —
retrucou em um tom baixo, surpreendentemente.
— É tarde demais.
— Ela ainda não morreu.
— Mas vai. Muito em breve.
— Ela só não encontrou a planta certa para salvá-la — insistiu,
sussurrando.
Franzi o cenho, estranhando toda aquela… esperança. Porque ela não
era do feitio de Katrina.
Expirei o ar pesado pela boca, ainda irritado. Estranhamente, uma
parte de mim não pareceu de fato querer despejar a raiva nela, mas foi
inevitável continuar contestando-a, principalmente porque não sabia com o
que estava lidando.
— Você está sendo absolutamente insensata, pequena aberração. Isso é
decepcionante.
Ela me ignorou, e, cuidadosamente, tirou a flor de seu canteiro junto
com suas raízes, colocando-a em um pequeno vaso vazio antes de se
levantar e procurar por outro canteiro.
— Katrina… — eu a chamei entredentes. Eu não estava a entendendo.
Hoje, menos que nunca.
A garota não me deu atenção.
— Não seja tão ridícula. Esqueça essa flor.
Ela simplesmente achou o canteiro pelo qual procurava. A de
Caladium. Bem, ela tinha mesmo perdido o juízo se achava que isso iria
funcionar. Katrina cavou um pouco da terra, parando provavelmente só
quando encontrou as raízes da flor, e só então colocou com cautela a
Orquídea Fantasma ali, ainda tomando cuidado com sua raiz.
— Katrina, é improvável…
— Improvável não é impossível — retrucou, cortando-me. Seu tom
soou mais alto.
— Porra, essa maldita orquídea não vai voltar a florescer ao lado da
Caladium, tá legal?
— Talvez… ela só precise que alguém tenha esperança por ela.
— O quê? Do que diabos você está falando?
— Estou falando que ela mesma já tinha perdido as esperanças,
Hayden. — Ela se virou para mim, se tornando menos apática enfim. — Ela
com certeza teria mesmo morrido naquelas condições, rodeada de plantas
que não lhe dão o que precisa. Mas… talvez ela apenas precise de alguém
com esperança para dar a ela uma chance. Ela precisava de alguém assim,
entendeu? Agora, ao menos, ela pode tentar.
Foi então que eu a vi sucumbir. Lágrimas encheram seus olhos de uma
forma que eu nunca tinha visto, nem quando Lilith a mordeu, nem quando o
urso a atacou ou quando ela viu seu pai a trocar por uma amante. Katrina
nunca, nunca tinha chegado àquele limite como agora.
Se eu tivesse um coração, supus que ele poderia estar se partindo
diante daquela cena, diante da dor explícita em cada detalhe de Katrina; em
seus olhos vermelhos, em suas mãos trêmulas, em seus braços esguios que
abraçavam o próprio corpo.
Ela chorou porque tinha mais medo da vida do que da morte. Na
desesperança que a rodeava em consciência, mas que ao menos não estaria
lá quando ela também não estivesse. Na verdade, era como se houvesse
mais esperança na morte do que na vida para pessoas como nós.
Meu peito pareceu se atrofiar de um modo estranho quando eu tive a
certeza de que seu desespero se tornara enfim mais forte do que ela podia
aguentar sozinha. A dor que ela provavelmente enfrentara há dois dias, a
invasão em sua mente, a invasão em tudo que ela tinha… tinha tornado sua
solidão mais imensurável do que nunca.
Vendo-a desmoronar pouco a pouco, eu achei que tive a vontade de
substituir seus braços pelos meus. Talvez pela primeira vez em muito
tempo, eu pude estar perto de abraçar alguém, de necessitar disso.
Contudo… eu não o fiz.
Então, ao invés disso, eu me aproximei, mas não para puxá-la para
mim, e sim para colocar, com o mesmo cuidado que Katrina tivera, o
restante da terra ao redor da Orquídea Fantasma que a garota não
conseguira ajeitar. No fim, peguei um regador no canteiro ao lado e a reguei
com a água restante ali, pois eu sabia que aquela flor gostava de umidade.
— Ele não vai fazer isso de novo com você — eu sussurrei quando
acabei de regar aquela flor à beira de seu fim. Só então percebi que Katrina
tinha parado de chorar e que me observava com olhos mais atentos. Ela
estava realmente prestando atenção em mim, e foi então que eu repeti em
um tom mais firme: — Isso não vai acontecer de novo. Nunca fui de fazer
promessas, mas isso... eu te prometo. Eu te juro.
Eu não tinha ideia de como impediria o desgraçado. Eu mesmo não
conseguira sequer fugir do que ele tinha para mim. Entretanto… eu livraria
a garota à minha frente da perversão daquele homem. Embora eu já tivesse
certeza que Katrina podia ser forte o suficiente até para enfrentar a dor
dilaceradora de mentes, eu também sabia que não seria possível que ela
resistisse sem mudar o que não precisava ser mudado.
Então não, de forma alguma que eu deixaria aquele homem intervir no
processo que eu tinha para ela.
Absurdamente… eu parecia estar disposto a fazer o que fosse preciso.
Flor-De-Lis (Lilaceae)
Sua principal característica são as pétalas de cores vivas e
haste ereta. Possui diversos significados atribuídos
durante a história, podendo representar desde a
purificação até a traição.

Em toda aquela semana, eu tinha conseguido fazer apenas uma


atividade requerida pelos meus professores. Era a de Literatura.
Tinha feito o poema que nos fora pedido somente na noite passada,
entretanto, pois todos os últimos dias tinham sido difíceis para mim.
Até hoje era, na verdade. Sinceramente, eu não considerava estar
totalmente recuperada até hoje. Nos dois dias seguintes à sessão com o Dr.
Cole, eu senti uma náusea horrível e uma certa confusão mental. Não
manifestara mais efeitos colaterais desde então, porém ainda me sentia
invadida. Talvez eu me sentiria traumatizada pelo restante de minha vida,
porque os choques elétricos aos quais eu fora submetida, o descontrole que
senti do que deveria ser unicamente meu, minha mente, não seriam algo que
eu esqueceria facilmente.
No entanto, algo em minha interação com Hayden há poucos dias, o
modo inesperado como ele reagira a mim, fizera com que eu me sentisse
cada vez menos… afetada. A maneira como ele tinha cuidado da orquídea
fantasma no fim tinha indevidamente despertado algo em mim que, embora
eu não soubesse exatamente o que fosse, tinha me feito bem. Eu me
envergonhava de ter praticamente desmoronado em sua frente, porém, de
alguma forma, eu não me arrependia de nada daquilo. Não conseguia,
apesar de ter mesmo tentado.
Eu estava pensando em cada um de seus gestos, de suas inesperadas
palavras quando eu escrevi meu poema na noite anterior. Senti-me um
pouco vulnerável quando o comecei, mas isso não era nenhuma novidade,
então eu simplesmente continuei.
Era bom saber que aquele pequeno poema, pelo menos, seria mantido
em privacidade — até de mim mesma. Era bem provável que eu acabasse o
jogando fora, com medo da intensidade de meus sentimentos e de meu caos
interno.
Andando pelo corredor principal a caminho da aula de Literatura,
passando às pressas por uma flor-de-lis, eu retirei aquele poema do meio do
meu caderno para lê-lo uma última vez antes que ele se tornasse apenas
uma memória provavelmente assustadora. Seria dizer demais que eu tinha
gostado dele, porém ele tinha seu significado que me trazia alguma…
perspectiva. Era uma coisa indevida, mas, ainda, importante. Algo
irrefreável.
Eu estava correndo o olhar pela última estrofe quando me choquei
violentamente em alguém e caí de bunda no chão, deixando meus dois
cadernos e algumas folhas também despencarem, espalhando-se pelo chão
ao meu redor.
Quando desviei a atenção para cima, não foi uma surpresa quando
encontrei Brad em pé diante de mim.
— Só podia… — ele resmungou, cruzando os braços sobre o peito.
Eu que estava jogada no chão e ele que estava reclamando?
Babaca.
Ashley parou ao seu lado, também me fitando com um ar de desdém, e
murmurou:
— Finalmente você está no lugar onde deveria.
Tive que me conter para não revirar os olhos.
— Não vai pedir desculpas? — Brad perguntou, e então eu cerrei os
dentes com força.
Uma parte de mim, a mais energética que andava sendo estimulada em
meu interior nas últimas semanas, quis lhe dar uma resposta afiada ou,
quem sabe, dar-lhe um chute entre as pernas. Nossas posições eram
perfeitas para isso.
Entretanto… eu não fiz nada disso.
Apenas inspirei fundo e dei a eles um tratamento de silêncio enquanto
começava a recolher minhas coisas. Ou a tentar recolher, porque em um
segundo Brad se agachou à minha frente, pegando minhas coisas antes que
eu tivesse a chance.
Coloquei-me de pé rapidamente, já dizendo:
— Devolve. Isso é meu.
— Ah, tá irritadinha? Por que, o que tem de tão importante aqui, hein?
— Ele riu, dando uma olhada nos itens de suas mãos. — Ah, olhe só, não é
que temos realmente uma coisa interessante aqui?
Repentinamente, ele largou meus cadernos e demais papéis avulsos, e
apenas uma folha continuou presente em sua mão. Meu coração começou a
palpitar forte no peito em puro nervosismo, porque eu já sabia qual que era
ela.
O sorriso de Brad se alargou conforme ele avançava na leitura de meu
maldito poema, e não pude fazer nada além de repetir:
— Ei, devolve isso. Isso é meu.
— Ash, você tem que ouvir isso — foi tudo que o loiro disse, olhando
para a garota de cabelos compridos. Fechei minhas mãos em punho
enquanto minha respiração acelerava mais e mais.
Mais pessoas pararam ao nosso redor, atraídas pela pequena confusão
dali, e então, quando Brad começou a recitar um texto que deveria ser
privativo, eu me senti em um dos piores pesadelos que alguém poderia ter.
Era como se eu estivesse nua no meio de todo um tumulto que só tinha
olhos para mim.
— “Semear. Adubar. Regar.
Um processo árduo e cuidadoso até fazê-la prosperar.
É algo difícil, alguns diriam. Esgotante.
Porém poderia ser necessário e, se se deixasse prestar atenção, também
gratificante.

Eucarionte. Fotossintetizante. Autotrófico.


Características exclusivas de seres que são mais vivos do que muitos
pensam.
Florescer não poderia ser possível para algo morto e estático.
Espinhos também são mais provenientes de vida do que tantos
imaginam.”

Brad parou de falar antes de finalizar a segunda estrofe, e eu abri os


olhos que eu tinha fechado quase que inconscientemente na vã tentativa de
mentalizar que aquilo não era real. Imediatamente vi Hayden ao seu lado e
com o meu poema entre suas mãos. Ele tinha tomado de Brad e… o lia.
Não soube se deveria me sentir mais temerosa ou aliviada. De todas as
pessoas, ele era o último que eu queria que soubesse do conteúdo de minhas
palavras. Tentei dizer a mim mesma que pelo menos parte da humilhação
tinha chegado ao fim, e que eu teria meu poema de volta. Daria um jeito de
lidar com Hayden, e isso… talvez fosse melhor do que lidar com as dezenas
de pessoas que se acumulavam à nossa volta. Era uma mentira deslavada,
mas meu inconsciente procurava meios de me fazer sentir melhor.
Hayden, quando o finalizou, levantou o olhar para mim. Seu rosto era
impassível de forma a deixar impossível que eu lesse o que se passava em
sua mente. Ele me analisou de modo dilacerante, como se absorvesse que
eu que tinha escrito aquelas palavras.
Por um momento, tudo que eu mais quis foi cavar um buraco no chão
e me enfiar ali mesmo.
— Tudo bem, pode me devolver agora — balbuciei enfim, derrotada e
envergonhada. Ergui minha mão para que Hayden me entregasse, porém…
ele não o fez.
Franzi o cenho, levemente atordoada, e, quando ele lançou a atenção
para o poema outra vez, me relutei a acreditar que eu teria, sim, que lidar
com todos à minha volta e também com Hayden.
Quando o garoto retomou a leitura de onde Brad tinha parado, me
senti traída de diversas maneiras inimagináveis. O que foi uma besteira,
claro, porque só podíamos ser traídos por quem confiávamos.
— “A esperança poderia ser cultivada?
Semeada, adubada, regada?
Seria ela eucarionte, fotossintetizante e autotrófica?
Viva como muitos subestimam, crescente que se frutifica?”
— Hayden, para — eu disse no fim da terceira estrofe, porém minha
voz já não tinha mais força. Surpreendentemente, ele fez o que lhe fora
pedido, mas não para me entregar o que era meu.
— Quer que eu pare? Então tome isso de mim — ele sussurrou,
erguendo a folha um pouco. Ele me avaliou. Mais uma vez, me senti testada
por ele.
Ergui minha mão para pegar a folha, entretanto ele a afastou mais um
pouco. Queria que eu tentasse com mais afinco.
Eu não reagi. Não da forma que ele gostaria. Me sentindo fraca, tola e
ainda erroneamente traída, afastei um passo para trás. Lágrimas começaram
a invadir meus olhos, mas eu não deixei que elas caíssem. Não iria
desmoronar outra vez em frente a ele. Esse pingo de amor próprio eu podia
ter. Tinha sido um erro me deixar sucumbir daquela maneira na última vez,
eu tive a certeza disso pela primeira vez.
— Você reagiu uma vez. Por que não pode reagir de novo? — ele
disse ainda mais baixo, seu tom sombrio arrancando calafrios de mim.
Imaginei que ele falava da maneira que eu reagira à traição de meu
pai. A primeira vez que reagira a alguma espécie de afronta.
Perguntei-me a mesma coisa por um instante. Mais uma vez, fiquei
tentada a lhe dar um murro, um empurrão, qualquer coisa que ele parecia
pedir, até que me dei conta de que, no fundo, eu não podia fazer isso. Não
daria o que ele tanto ambicionava daquela forma.
Hayden trincou o maxilar e enfim prosseguiu com sua leitura.
— “Não sei, não sei.
Mas poderia ter um palpite, se pensasse com sinceridade.
Poderia ter um achismo infundado que nunca aflorei ou ao qual
confiei.
Sobre os espinhos feios e fixos de... “
Naquele momento, ele parou com sua leitura novamente, e pensei que
era só para me dar uma última chance. No entanto, ele não desviou o olhar
para mim, apenas prosseguiu com uma leitura silenciosa, como se não
tivesse de fato assimilado a última estrofe anteriormente. Observei suas
narinas dilatarem e suas feições ficarem impenetráveis como pedra.
Após segundos que se confundiam com horas no Inferno, ele desviou
a atenção. Não para meu rosto, mas sim para meus pulsos.
Ele tinha entendido o que os versos significavam.
“Sobre os espinhos feios e fixos de minha pele mais sensível e
invisível, flores talvez nasceriam, não para um esconderijo, mas para um
alívio esperado por uma vida de calosidade e infimidade, uma vida inteira à
espera de fidelidade.”
Ele sabia o que eram meus espinhos e qual era minha pele mais
sensível, a pele escondida e invisível.
Hayden dobrou o papel e o guardou no bolso de sua calça antes de se
aproximar abruptamente. Não pude me desvencilhar antes que ele levasse a
mão até meu ombro e me conduzisse para a sala de aula ao lado, passando
bruscamente por todas aquelas pessoas.
Meia dúzia de pessoas estavam dentro do ambiente, à espera de seu
professor, e tudo que Hayden fez foi dizer em um tom de voz cortante:
— Saiam.
Eles fizeram o que lhes fora ordenado em menos de cinco segundos, e
Hayden fechou a porta atrás de nós antes de se afastar somente um metro de
mim.
— Mostre.
Cerrei os dentes com mais força, ainda contendo as lágrimas. Minha
visão estava um pouco embaçada, porém foi inevitável ignorar o olhar
dilacerante que ele dirigia a mim.
— Katrina, mostre para mim — ele disse agora entredentes, mais
autoritário. Estava perdendo a paciência.
Permaneci imóvel, sem querer, sem poder fazer o que ele desejava. O
ritmo de minha respiração era descontrolado, e toda extensão de minha pele
suava frio.
Foi então que ele se aproximou de uma só vez. Tentou pegar meus
pulsos para empurrar as mangas de meu uniforme para cima, porém eu os
levei atrás de meu corpo. Podia jurar que Hayden iria pegá-los à força, no
entanto… ele parou.
Um grunhido escapou de sua garganta quando ele se afastou
novamente, parecendo se obrigar a se levar para longe de mim.
— Você não vê que essa contenção à qual se impõe faz mal apenas
para você? — ele berrou quando parou do outro lado da sala. Pude jurar
que nunca tinha o visto não somente furioso, mas também frustrado daquela
maneira. — Por que você se deixa sofrer tanto dessa maneira? Por que não
faz nada para evitar os infernos aos quais te submetem?
— Por que eu deveria? — Foi minha resposta irrefreável. — Ninguém
nunca lutou por mim. Então por que eu deveria me dar ao trabalho?
— Porque você importa, porra. Porque você… porque você também
deveria ser importante. E você nunca, nunca deveria se levar a achar o
contrário por pessoas que não veem quem você é de verdade.
Ele parecia cruamente irado com todos que nunca me fizeram ver meu
próprio valor, e então foi inevitável perguntar em não mais que um
sussurro:
— E você vê? Vê quem eu sou de verdade?
Ele abriu a boca para me responder, mas as palavras ficaram entaladas
em sua garganta.
— Responda, Hayden.
Seu silêncio persistente foi minha resposta.
— Bem, se você vê quem eu sou… por que age como todos que
passaram por minha vida? Por que age como se eu fosse um nada em que
pessoas podem pisar quando bem entenderem?
— Tudo que eu tenho tentado fazer é que você enxergue que é tudo
menos isso — ele retrucou rápido demais, e então fechou as pálpebras
bruscamente, talvez arrependido por me dar aquela resposta. Talvez… nem
ele mesmo soubesse disso até dizer em voz alta. Isso me afetou mais do que
qualquer outra coisa. — Merda — disse, levando as mãos ao cabelo.
Parecia estar imerso em um caos interno. Um caos que eu não podia
identificar ou entender muito bem.
Quando ele enfim abriu os olhos, foi só para sussurrar:
— Se uma pessoa como você acha que não merece viver, o que resta
para os outros como eu?
Foi então que eu entendi. Hayden também tinha sua luta interna
consigo mesmo, com quem achavam que era e com quem realmente era. Eu
sentia que aquela era uma diferença gritante, porém nem ele mesmo se
deixava chegar a essa conclusão.
Não o respondi, porque ele não parecia querer uma resposta. Então,
tudo que ele fez foi engolir em seco e passar por mim como um raio. Ele me
deixou sozinha, levando consigo minhas palavras vulneráveis no bolso e
seus pensamentos que podiam muito bem ser ainda mais conflituosos que
os meus, se é que isso fosse possível.
Não me deixei comover por ele, entretanto. Não podia. Porque ainda
me sentia traída por uma pessoa que não só não merecia confiança, mas por
uma pessoa em quem eu de fato tinha confiado, ainda que por um momento.
Ainda que só naquela noite.
Naquele momento, jurei a mim mesma que eu não confiaria nunca
mais em alguém que não me mostraria ser digno de confiança. Porque, no
fim… eu deveria importar.
Eu deveria ser importante.
Eu podia ser. Se tentasse e acreditasse nisso, por mais árduo fosse o
processo.
Begônia (Begoniaceae)
Por sua beleza, essa é a flor é a preferida para a
decoração. Resistente às mais baixas temperaturas e
simboliza a lealdade.

Dei duas batidas na porta do dormitório de Helen, e ela a abriu em não


mais que cinco segundos. Ela pareceu surpresa ao me ver.
Era justificável.
Eu estava distante desde segunda-feira, sem muita vontade de sequer
conversar. Tinha me mantido distante desde então, mais introspectiva, e
Helen entendera o recado, dando-me o espaço que eu queria. Eu apreciava
isso nela, na verdade. Um amigo deveria mesmo reconhecer o que o outro
precisava sem haver a necessidade de deixar tudo explícito em palavras.
Entretanto, após todos aqueles dias, eu estava mais pronta para sair de
minha bolha. Começara a sentir saudade de Helen, para ser sincera. Só tinha
entendido a importância de ter uma amiga quando a garota apareceu em
minha vida, porque antes ninguém nunca se interessara em entrar em minha
vida. Eu seria sempre agradecida a Helen por isso.
— Roubei um docinho extra da sobremesa de hoje — eu disse como
cumprimento, estendendo o bombom em sua direção. Por um momento,
fiquei com medo de que ela estivesse um pouco irritada pelo meu sumiço
maior que o ideal, mas no fim ela pegou o melhor presente que eu poderia
lhe dar naquele Inferno.
— Oi para você também — ela soprou, já desembrulhando o doce.
— Quer descer para ver o pôr do sol enquanto conversamos um
pouco? Estamos precisando colocar alguns assuntos em dia, acho. — Tentei
sorrir, embora ainda não estivesse cem por cento bem.
— Depende. Vai continuar colocando essas suas habilidades de ladra
para jogo e roubar mais uma sobremesa extra para mim amanhã?
Revirei os olhos, e ela riu. O sorriso que eu demonstrei dessa vez foi
mais sincero.
Ela enfim saiu para o corredor e fechou a porta atrás de si antes de
descermos para a parte externa do Instituto, lado a lado. Já do lado de fora,
deparamo-nos com um jogo de basquete que ocorria na arena aberta
improvisada que se localizava perto da estufa. Não foi uma surpresa quando
vi David e Hayden entre os times.
Também havia algumas dezenas de pessoas espalhadas ao redor de
onde o jogo acontecia, atraídas pelo grupo de garotos suados e de roupas
esportivas. Eu e Helen acabamos nos sentando no meio de todas aquelas
pessoas, a uma distância segura da arena e ao lado de uma muda de
begônias ao chão.
— Nunca vou entender toda a comoção que a maior parte dos esportes
causa — Helen ponderou ao meu lado. — O que tem de tão interessante em
ficar acompanhando uma bola quicando pra lá e pra cá por cinquenta
minutos, por exemplo?
— Acho que estar no meio de uma torcida gera um sentimento de
pertencimento. Se seu time ganhar, poderão comemorar uma vitória juntos.
Se perder, também podem lamentar um com os outros. Não deve ser tão
ruim assim — respondi a Helen enfim, dando de ombros.
— Hum… é, você pode estar certa. Mas mesmo assim, isso tudo é
muito sem graça. — Naquele momento, alguém do time adversário acertou
o cotovelo no rosto de David durante a marcação, e Helen acrescentou: —
Menos quando alguém que merece apanha. Aí sim fica interessante.
Imediatamente me lembrei do dia em que nós tínhamos sido obrigadas
a escapar do Instituto com eles, de como David tinha a tratado. Ela estava
magoada, e com razão.
— Ei, você quer falar sobre isso? — questionei à garota, encarando-a.
— Acho que você não me contou como se sentiu em relação a tudo que
aconteceu naquele dia, e também a David e tudo mais. E eu tenho que pedir
desculpas por isso, eu sou a culpada. Foi mal por ter andado meio distante,
tá? Mas eu estou te ouvindo agora.
Ela me empurrou com seu ombro.
— Não precisa pedir desculpas. Não imagino o que você passou com o
Dr. Cole, você precisava de um tempo para você — disse calmamente. Eu
não tinha contado os detalhes para Helen em nosso almoço no dia posterior
ao tratamento macabro, porque nem eu mesma estava pronta para assimilar
a gravidade de tudo aquilo, porém disse o bastante para que ela entendesse
o motivo de eu estar mal. — E sei lá, acho que estou um pouco chateada —
ela continuou, só que em um tom mais baixo. — Eu não te contei isso, mas,
naquela noite em que eu fui entregar o livro para ele, nós ficamos
conversando até o toque de recolher, e ele me pareceu tão… diferente. Mais
gentil e inteligente do que parece normalmente. Ele também me ouviu falar
sobre as coisas mais aleatórias do mundo com a maior calma. Só que isso
tudo só foi uma mentira idiota, porque ele me tratou como um nada no
domingo. Me senti tão estúpida por… ter me deixado esperar algo de bom
dele. Eu não deveria.
Me identifiquei com Helen muito mais do que deveria. Não queria que
ela tivesse se sentido tão afetada ao ser tratada daquela forma por David,
porque eu entendia bem a sensação. Imediatamente me recordei de seu
silêncio descomunal, de como ela não fizera nada diante da situação
contraditória, e tudo que eu mais quis foi que ela tivesse reagido de alguma
forma. Como… como eu também sempre devia ter reagido ao ser tratada da
mesma maneira.
Não podia exigir muito da minha amiga, porque eu mesma não fazia o
que eu queria para ela. Aquilo me fez dirigir os pensamentos mais a mim
mesma, porque, se eu não desejava que alguém maltratasse a garota ao meu
lado, eu também deveria querer o mesmo para mim. Nós duas não éramos
tão diferentes assim, não tínhamos nos encontrado uma na outra naquele
Inferno por nada.
Mais uma vez, as palavras de Hayden ressoaram por cada canto de
minha mente inevitavelmente. Eu também deveria ser importante.
Andara pensando muito naquilo desde nossa conversa, sem conseguir
me esquivar.
Era mesmo difícil se importar comigo nos mesmos cenários em que
me importava com Helen. Nada em minha vida parecia ter me preparado
para lutar por mim mesma, como Hayden ao menos alegara que queria.
Talvez… eu devesse mesmo ter enfrentado algumas circunstâncias
árduas da última semana. Ter essa concepção, entretanto, não parecia
significar diretamente que eu me arrependia. Eu simplesmente não era
assim. Não queria revidar toda vez ao ser provocada, não queria ter que
ferir alguém de volta só porque eu estava ferida. Não era assim que o
mundo deveria funcionar. Pelo menos, meu mundo. Eu não me sentiria
melhor dessa maneira.
Claro que eu também não me sentia melhor me comportando da
maneira que eu me comportara desde… sempre. Algo, de fato, deveria ser
mudado, contudo não da forma que os outros achavam ser melhor.
Supus que o melhor modo de prezar por mim mesma era ser fiel a
mim. Nada mais, nada menos.
Não seria algo tão simples, no entanto. Só que eu poderia ao menos
tentar descobrir quem eu poderia ser ao importar comigo mesma. Poderia
enfrentar certas batalhas quando eu quisesse fazer isso. Eu deveria me dar a
esse luxo.
Eu e Helen ficamos em silêncio até que o jogo chegasse ao fim, quase
vinte minutos mais tarde. Supus que ela estava tão perdida em sua própria
mente quanto eu na minha. E foi só quando os times deixaram a arena e as
pessoas ao nosso redor começaram a se dissipar que eu sussurrei para ela:
— O que acha de fazer um pacto?
A garota transferiu a atenção para mim de imediato.
— Eu não acho que seja nossa culpa esperar o melhor das pessoas e
nos surpreender quando isso não acontece. Não somos imbecis por isso, de
forma alguma. Só que… talvez, a gente não deva se decepcionar com quem
não merece nossa decepção.
Helen piscava os olhos repetidamente, assimilando cada uma de
minhas palavras.
— Então esse é o trato: primeiro de tudo, nós vamos tentar não nos
deixar afetar com quem não merece uma reação nossa, tá bom? Só que,
quando estivermos inevitavelmente perturbadas, também não vamos ficar
quietas, se não quisermos. Nós podemos reagir, e esse deveria ser um
direito nosso, sabe?
Ela não se manifestou por longos segundos, porém, quando abriu a
boca, foi para dizer:
— Gostei do mini discurso. Promessa de dedinho? — ela ergueu o
dedo, e eu tive que segurar um riso ao envolvê-lo com o meu.
Foi quase engraçado como me senti mais forte ao compartilhar tudo
aquilo com Helen.
Eu disse para irmos um pouco para meu dormitório até que o toque de
recolher fosse dado, pois já tinha anoitecido e não fazia sentido
continuarmos ali. Assim que nos levantamos, entretanto, fomos
interrompidas pela provável última pessoa que Helen queria ver naquele
momento:
— Ei — David soprou, parando em frente à minha amiga. Ela
arregalou os olhos um pouco, surpresa por sua presença. Ele ainda trajava a
roupa esportiva dada pelo Instituto. Provavelmente estava voltando para o
interior do casarão quando nos viu. — O que achou do jogo?
Helen engoliu em seco, lançando-me um rápido olhar. Era provável
que estivesse repassando mentalmente cada uma de minhas palavras. Estava
tentando não se deixar afetar. Foi por isso que disse em um tom seco:
— Legal.
Ela se virou para mim e murmurou um “vamos” em seguida, mas
David continuou barrando nossa passagem.
— A gente pode trocar uma palavrinha?
— Acho que não.
— Ah, qual é? Nenhuma oportunidade para o vencedor da noite? —
ele tentou brincar, mas seu sorriso morreu diante das feições sérias de
Helen. Dava pra ver que ele estava se esforçando, porém… não era o
bastante. De forma alguma.
— Olha só, eu não sei o que você quer, mas…
— Mas você pode conversar um pouco comigo para saber — ele a
cortou, e eu decidi intervir.
— Não é uma boa ideia. Vai comemorar sua vitória com seus
amiguinhos, tá? A Helen nitidamente não tá a fim de falar agora.
Ele me ignorou.
— Helen, qual é? Eu…
— Olha, eu não faço ideia do porquê você está sendo tão insistente,
principalmente quando você já deixou bem claro que eu sou só uma
esquisita para você. Me deixa ir logo.
Ele inspirou fundo, fechando os olhos por um momento.
— Foi mal, ok? Eu não queria ter te chamado assim, não é o que eu
acho de você. Te acho muito, muito inteligente e mais interessante do que
noventa e nove por cento do pessoal daqui, só que… não seria prudente
demonstrar algum tipo de interesse em você no meio de tantas pessoas que
não são de confiança — ele sussurrou.
— E quem não é de confiança? — Helen murmurou.
— Todo mundo, tá legal? — ele soprou, ainda em um tom baixo. —
Eu… droga, eu escuto coisas ali e coisas aqui, e o que aconteceu com
George foi uma possível prova de como muitos nesse lugar não são nem um
pouco inocentes.
Mais uma vez David estava deixando claro que desconfiava de seus
amigos. Ele fazia parte de seu círculo íntimo, então, se temia… devia haver
uma razão realmente concreta. Engoli em seco.
— Se você tem tanto medo, deveria denunciá-los à direção ou até à
polícia ao invés de andar com eles — eu disse, e só então David me deu sua
atenção.
— A direção… bem, o Dr. Cole só castigaria os suspeitos de sua
própria maneira sem precisar de mais provas, eles seriam apenas mártires
de sua pesquisa. E sobre a polícia… vá por mim, eu não quero ter minha
cabeça dissecada quando algum deles deixar a prisão, o que decerto iria
acontecer.
— Então é isso, você tem provas, mas não está determinado a usá-las
apenas para preservar sua vida? Você pode estar colocando outras pessoas
em risco. Se eles mataram um, podem matar outros.
— Eu nunca disse que tenho provas, novata — contestou, firme. —
Tenho suspeitas, o que é bem diferente. De todo modo, estou tentando
avisar a vocês que é prudente tomar cuidado com o que falam por aí, igual
eu estou fazendo no momento.
— Como você está sendo generoso… — cuspi ironicamente,
incrédula.
— Olha só, se não percebeu, não era para você sequer estar nessa
conversa. — Ele perdeu a paciência. — Não dou a mínima para você, só
estou aqui para falar com Helen. Então, se não quer se mandar, pelo menos
fica na sua.
— Ei, não fala assim com ela! — Helen disse, indignada. David se
virou para ela.
— Então manda sua amiga não ficar me atacando por eu apenas ter
algum instinto de sobrevivência!
— Não estou te atacando, seu idiota — eu resmunguei
inevitavelmente, cruzando os braços. Ele fez cara feia para mim.
— Você acabou de me chamar de “idiota”, o que praticamente
contradiz sua defesa.
— O que tá acontecendo aqui? — Hayden parou ao nosso lado,
provavelmente tendo sua atenção chamada por nossas vozes agora mais
elevadas.
Ele também trajava uma regata e calça esportiva do instituto. Suor se
espelhava por toda sua pele visível que revestia os músculos inchados, e
tive que cerrar os dentes para não continuar prestando atenção nisso.
David parecia genuinamente irritado, e foi provavelmente por isso que
disse sem pensar muito:
— Sua mascote não foi apropriadamente adestrada e não faz ideia de
quando deve ficar quieta, é isso que está acontecendo.
— O que você disse para mim? — Hayden questionou em um tom
áspero, e só então David pareceu ter consciência de quem estava ao seu
lado. Alguém que ele praticamente admitira que temia. — Só para
esclarecer aqui, ela não é minha mascote, e ela pode falar o que bem
entender quando desejar.
— Eu não preciso que você me defenda!
— Então vamos, defenda a si mesma. Sabe que estou esperando
ansiosamente por isso — Hayden disse para mim, duro e firme.
Abri a boca para respondê-lo, mas logo a fechei e me forcei a inspirar
fundo e a repassar mentalmente meu pacto com Helen.
— Quer saber? Não vou me deixar afetar por quem de forma alguma
deveria ter poder suficiente sobre mim para me tirar do sério, é isso que vou
fazer, não importando o que você queira de mim. O que você espera não é
da minha conta.
Eu não me importava tanto com David para me deixar afetar, de forma
alguma.
— Ah, finalmente você foi capaz de chegar à conclusão de que nem
tudo é da sua conta — foi David que disse aquilo, e Hayden se virou
totalmente para o suposto amigo.
— Você perdeu o juízo? — questionou entredentes, uma veia
começando a saltar de seu pescoço, e David enfim cambaleou um passo
para trás.
— Belo instinto de sobrevivência mesmo, hein? — resmunguei para
David, também sarcástica, mas ele optou por não me responder, apesar da
raiva que ele nutria ter quase se tornado palpável. Dirigi-me a Hayden: — E
você, para de fingir que se importa com como as pessoas me tratam ou com
como eu reajo a isso quando na verdade adora que me humilhem.
Ele trincou o maxilar por um momento, estava nitidamente
enraivecido, porém parecia não querer perder o controle de si mesmo como
fez em nosso último encontro. Decidi insistir, porque… eu não queria mais
estar confusa. E eu também não queria continuar contendo a mim mesma,
não em relação a ele.
— Vamos, admita, você não se importa com ninguém. Fale que suas
intenções nunca foram boas em relação a mim. Fale que sua promessa na
estufa não passou de uma mentira, de mais uma brincadeira comigo. —
Aproximei-me um passo dele. Sua respiração era pesada, como poucas
vezes presenciei, todas há não muito tempo.
— Eu nunca fui capaz de me importar com alguém em meu passado
— ele disse com a voz ainda baixa, cedendo por fim. — Minhas intenções
nem sempre foram boas com você — acrescentou, e, inevitavelmente, por
um instante, recordei-me de certas palavras ditas por ele uma vez. “Eu não
minto”. — E minha promessa…
— Fale — sibilei entredentes diante de seu súbito silêncio.
Foi sua vez de exterminar o restante da distância entre nós.
— Ou o quê? — foi sua resposta. Estava escondendo a verdade.
— Diga que tudo foi uma farsa. — Não era um pedido.
Ele hesitou, mas enfim disparou:
— Por mais que isso fosse mais simples para mim, nenhum segundo
naquela maldita estufa foi um engano. Para nenhum de nós dois.
Não me contive mais, simplesmente agi instintivamente, perdendo
meu controle. Levei meu punho fechado em seu rosto, tão fora de mim que
sequer mirei na região que deveria atingir. Senti quando os nós de meus
dedos acertaram seu olho esquerdo em um choque violento, e só então me
dei conta do que tinha feito. Levei minha mão à boca rapidamente, caindo
em mim. Estava chocada com o que eu tinha feito, principalmente porque
uma reação de minha parte não fora arrancada por provocações ou alguma
briga, e sim porque… ele fizera uma alusão, mais concreta do que nunca, de
que poderia, sim, se importar comigo o suficiente para querer me manter
longe de um mal pior. Das mãos do diretor daquele Instituto.
Hayden cambaleou para trás e levou a mão ao olho, parecendo tão
incrédulo quanto eu. Assim que recuperou a racionalidade, entretanto, ele
riu. Foi um riso cortante, não de fato divertido, mas sombriamente
satisfeito. Sequer parecia sentir dor.
— Você não se deixaria afetar por quem não tem poder sobre você,
certo? — ele recorreu às mesmas palavras que eu tinha dito minutos atrás.
Não tive a chance de respondê-lo, porque dois inspetores gritaram para
que eu me afastasse de Hayden enquanto corriam em nossa direção. Eles
tinham visto o soco que eu tinha dado a ele, tinham visto… que eu burlara a
regra principal daquele lugar. Assim como diversas dezenas de outros
estudantes espalhados pelo gramado também testemunharam.
— Vamos levá-la para a inspetora Foy agora e Dr. Cole será avisado
sobre sua postura pela manhã — o inspetor mais próximo disse antes
mesmo de chegar perto. Eu mal respirava mais, tendo agora a certeza de
que o médico me puniria pelo segundo desvio das condutas. Calafrios
domavam minha espinha em puro horror.
— Encostem nela, e eu vou arrancar suas tripas pela boca para laçar
cada membro que amputarei de seus corpos imundos antes de enviá-los
como presente ao seu chefe — Hayden prometeu antes que qualquer um se
aproximasse de mim, tirando a mão de seu olho. Só então percebi que eu
tinha estourado uma corrente sanguínea da região, deixando a parte branca
tonalizada por um tom rubro. Não tive dúvidas de que aquilo doía como o
Inferno, mas o garoto não demonstrava indícios disso. Pelo contrário,
parecia mais impassível e nocivo do que nunca.
Imediatamente soube que aquilo… era Hayden cumprindo seu
juramento da estufa. Era ele me provando que não tinha mentido. Não
soube o que sentir em relação a essa conclusão. De que ele podia merecer
minha confiança.
O primeiro inspetor parou de imediato, hesitando, mas o outro se
aproximou mais um pouco.
— Não podemos deixar isso passar com tantas testemunhas. O doutor
ficará sabendo de todo modo — o homem sussurrou, o medo em sua voz
sendo quase palpável.
— Escutem bem — Hayden gritou para todos ao nosso redor. — Se
alguém abrir a boca para sequer mencionar o que acabou de ocorrer aqui, eu
vou atrás e corto a língua com um maldito canivete cego, estamos
entendidos?
Todos ao nosso redor se tencionaram, e nenhum ruído pôde ser
escutado por longos segundos. Eles estavam consentindo com seu silêncio.
Por um momento, pensei que o inspetor iria ceder, porém ele disse por fim:
— Sinto muito, isso não é suficiente. — O homem fez menção em me
agarrar pelo braço. Hayden quebrou cada um de seus dedos antes que ele o
fizesse de fato.
O que veio a seguir me mostrou, de uma vez por todas, porque todos
temiam Hayden.
Sua agilidade era quase que sobrenatural, assim como seus reflexos,
fazendo com que ele interceptasse qualquer investida que o inspetor
pudesse vir a ter. Mesmo quando o outro inspetor foi obrigado a entrar na
briga física, Hayden conseguiu se virar bem.
Era quase assustador de se ver a cena à minha frente. A agressividade
comedida, a força ávida, toda a devastação que Hayden podia representar…
Ele parecia ter um monstro enjaulado dentro de si, e eu o vira escapar pela
primeira vez naquela noite. Honestamente… eu esperava nunca mais vê-lo
de novo.
Tive que fechar os olhos quando um dos inspetores, já no chão,
implorou que Hayden parasse, e só fui abrir quando apenas lamúrias de dor
restaram. Os dois inspetores terminaram no chão, certamente com mais de
um membro quebrados, enquanto Hayden tinha um único corte que parecia
ser mais profundo logo abaixo do olho que eu tinha machucado.
— Saibam que o que eu causei a vocês não é uma fração do
sofrimento ao qual são coniventes — Hayden disparou, o desprezo
transbordando de seu tom rouco. — Vocês escolhem continuar aqui mesmo
com toda agonia que lhes cerca, escolhem fechar os olhos mesmo quando
muitos de nós somos feitos de cobaias por um sistema corrupto. Vocês não
mereceram minha piedade hoje.
Um silêncio lancinante se fez presente em toda a área externa até que
Hayden cuspiu à direita de onde os homens estavam caídos e lhes dirigiu
suas últimas palavras:
— Contem quem fez isso com vocês hoje e eu terminarei o que
comecei. — Ele então se virou para as pessoas restantes ao seu redor.
Muitos tinham entrado no Instituto, temerosos. — E vocês, todos para seus
dormitórios. Agora. — Não foi preciso mais para que os estudantes se
dirigissem às pressas para seus quartos. Foi só então que Hayden se virou
para mim. Seus olhos, apesar de serem os mais claros que eu já vira,
pareciam mais obscuros do que nunca. — Menos você. Você vem comigo.
Anêmona (Ranunculaceae)
Sua durabilidade dura em torno de cinco dias. É uma flor
pequena e triste, que representa o abandono.

Hayden fechou a porta atrás de si com força quando entramos em seu


dormitório. Sua respiração ainda estava acelerada, e uma veia de seu
pescoço continuava a saltar constantemente. Eram alguns indícios de que
ainda estava sob efeito de adrenalina.
Ele mal olhou para mim, sequer fez menção em esclarecer porque
tinha ordenado que eu o seguisse. Apenas entrou em seu banheiro privativo
e a molhou em seu lavatório antes de levá-la até o corte de sua bochecha
que sangrava. Fiquei ali, no meio do quarto, imóvel ao observá-lo. O garoto
passou a toalha com uma força muito maior que a necessária na região, o
que pareceu arrancar mais sangue dali. Sua mão tremia no ato, e só quando
me forcei a me aproximar que percebi que ela também estava ferida. Os nós
de seus dedos se encontravam na carne viva diante dos socos consecutivos
que ele tinha distribuído. Não era à toa que seus movimentos eram tão
bruscos. Sua coordenação motora não podia ser a das melhores diante da
dor que decerto sentia.
Acabei indo até ele de uma vez, pegando a toalha de sua mão
bruscamente antes que ele abrisse mais o corte de seu rosto. Hayden se
virou para mim, e culpa me consumiu por completo diante de seu olhar.
Diante de suas feridas, de seu olho esquerdo vermelho em grande parte.
— O que está fazendo? — Seu tom era áspero, frio. Engoli em seco.
— Você ordenou que eu o seguisse para ser útil em algo, não foi?
Ele me encarou bem nos olhos. Era um olhar penetrante, quase que
dilacerante.
— Não fiz você vir até aqui para me ajudar.
— Para que foi, então?
Ele pegou a toalha de minha mão e me deu as costas, caminhando até
sua cama.
— Se formos dedurados, você seria achada mais facilmente em seu
dormitório — respondeu simplesmente, seco.
Arqueei as sobrancelhas. Ele apenas… não queria que eu fosse levada
para o Dr. Cole ou para a inspetora Foy? Aquilo tudo ainda me confundia,
na verdade. Ter Hayden me protegendo, persistindo em cumprir sua
promessa. Era difícil assimilar tudo que tinha acontecido, que a pessoa que
superficialmente caçoara de mim por tanto tempo era a mesma que estava
garantindo minha segurança diante de outros.
Segui Hayden, e, sentando à sua frente, tomei sua toalha para mim
mais uma vez. Ele trincou o maxilar, nitidamente irritado, porém eu não tive
medo. De forma alguma. Ao invés disso, eu cheguei o mais próximo dele
que me permiti e sussurrei:
— Por quê?
Ele tinha entendido minha pergunta. Por que estava cumprindo sua
promessa. Não me respondeu, contudo. Não foi uma surpresa. Tudo que ele
fez foi sussurrar de volta:
— Uma vez eu disse que você deveria confiar em mim. Você nunca
chegou a o fazer de fato, chegou?
— Você nunca se mostrou muito disposto a provar que merecia minha
confiança. Você nunca parece estar apto a provar nada a ninguém, na
verdade — eu retruquei. Ele não me contestou.
Suspirei e decidi calar minha boca, ao menos momentaneamente, e
pegar sua mão direita para limpar o sangue dela com a toalha molhada.
Hayden não se moveu por um centímetro sequer, como se não tivesse se
importado com o atrito do material em seu corte, com a dor que isso
causou, então eu puxei sua mão para mais perto, pondo-a em meu colo.
Só então percebi que sua mão poderia muito bem ser o dobro da
minha. Havia terra debaixo de suas unhas curtas, assim como nas minhas, o
que era apenas um vestígio de que, como eu, ele se encontrava, nem que
fosse um pouco, no cultivo. A pele da região, num geral, tinha várias
cicatrizes finas, que poderiam ser de espinhos de diversas plantas.
Com a maior cautela que pude, sequei o sangue da pele aberta dali, e
então dobrei a toalha e a levei até o corte de sua bochecha. Hayden
encarava cada centímetro de meu rosto com toda a atenção do mundo, de
modo tão intenso que me causava um pouco de desconforto, sinceramente.
Era quase como se ele não estivesse acostumado com alguém cuidando de
si. Também como eu.
Tentei sustentar seu olhar lancinante e que me era até um pouco
desorientador o máximo que pude, o que não foi muito, pois minha
respiração já tinha se alterado e minha pele transpirava um pouco apenas
diante daquilo. Desviei a atenção de seus olhos, e acabei percebendo que
havia uma vermelhidão em sua cabeça, começando no lado lateral de sua
testa. Era provavelmente fruto de uma pancada. Lembrei do que o próprio
garoto me dissera uma vez, que quando a região afundava após uma batida
podia haver necessidade de alarde.
Sem pensar muito, levei minha mão até o local. Nenhuma parte estava
funda, porém não pude respirar em alívio, não quando, ao passar meus
dedos por seu cabelo macio, ainda molhado de suor, eu notei que aquela
cicatriz que começava no lado direito de sua testa era muito mais extensa do
que eu pensava. Ela se prolongava em uma linha por sua cabeça, tendo o
comprimento de cerca de doze centímetros.
Avaliei-a por segundos longos demais, chegando à conclusão de que
aquilo não era fruto de alguma briga física. Não podia ser. Era reta demais,
uma cicatriz de um corte muito minucioso, um corte… cirúrgico.
— Eu tinha quinze anos. — O sussurro de Hayden me trouxe de volta
à realidade, e eu soltei o cabelo que eu puxava cuidadosamente para
observar a cicatriz. Fitei seus olhos. Ele estava muito ciente do que eu fazia,
do que eu pensava. Quase tive certeza de que ele podia me ler por completo
naquele momento.
Hayden inspirou fundo e pegou minha mão que segurava a toalha em
seu rosto, afastando-a com cuidado. Não desviou a atenção de mim por um
segundo sequer enquanto fazia isso.
— Eles abriram minha cabeça para estudar fisicamente meu sistema
límbico — esclareceu, e eu franzi o cenho, sem ter ideia do que era aquilo.
Vendo minha pergunta silenciosa, o garoto continuou: — Esse sistema é um
conjunto de estruturas, mais conhecido como cérebro emocional, e fica logo
abaixo do córtex. Ele é o responsável por receber as informações externas e
transformá-las em emoções.
Pisquei os olhos repetidas vezes, tentando assimilar aquela
informação.
— Você está dizendo que… mexeram com seu cérebro?
— Não, não exatamente. Não ainda. O que fizeram foi um
mapeamento cauteloso de minhas estruturas cerebrais do sistema límbico,
um estudo de meu tecido cerebral, principalmente do hipocampo. Queriam
ver se havia alguma alteração física que podia exercer problemas em meu
modo de assimilar as emoções, se meu problema podia estar além de
influências de meros neurotransmissores. Eles querem provar que… a
psicocirurgia ainda pode ser usada para curar após o estigma das
consequências da lobotomia.
— Espera, eu… Eu não sei se estou entendendo. Eles estão querendo
te transformar na… cobaia deles?
Hayden engoliu em seco. Parecia relutante em falar sobre aquele
assunto. Honestamente, eu ainda não sabia porque ele estava o fazendo,
porém, no fim, respondeu secamente:
— Acho que poderíamos denominar dessa maneira.
— Hayden… Isso é horrível, isso é… é ilegal. Psicocirurgias estão
muito além dos limites. Por que você ainda está aqui? Você já escapou
várias vezes do Instituto, por que simplesmente nunca fez isso
permanentemente?
— Você está fazendo as perguntas erradas.
— O quê?
— Você não perguntou do que eles querem me curar. O que eu fiz para
que eles chegassem à conclusão de que há algo errado comigo.
— Nada do que você pode ter feito justificaria essa abominação — eu
disparei, incrédula.
— Você não sabe.
— Eu tenho certeza disso — retruquei entredentes.
— Katrina…
— Você não merece nada disso. Ninguém merece.
— Eu matei a minha mãe — ele praticamente cuspiu as palavras, e só
então eu fechei minha boca. Perdi um pouco do ar diante daquela
confidência tão crua, tão íntima e cruel. Tive os piores pensamentos e
receios naqueles primeiros segundos, e o instinto de me afastar de Hayden
me corroeu dolorosamente, principalmente porque eu me lembrara de todos
os alertas de David. Lembrei-me de que eu também acreditava que Hayden
podia ter matado George. Entretanto… a dor explícita em seu olhar me fez
ficar. Era a primeira vez que eu o via sofrer, eu tinha certeza. Engoli em
seco, simplesmente permanecendo, mas então o garoto à minha frente se
colocou de pé.
No fim, foi ele a impor uma distância entre nós.
Observei-o quando ele apoiou as mãos no parapeito de sua janela,
quando seu olhar vagueou através das grades não com repulsa da prisão que
elas explicitavam, mas com… conformidade.
Foi então que eu entendi.
— Você nunca fugiu não por causa da falta de dinheiro, ou porque não
possui um lugar para ir — eu sussurrei enfim, lembrando-me de certas
palavras que ele me dissera uma vez. — Você nunca fugiu porque uma parte
sua acha que você deveria ser curado.
— Você não acha o mesmo, pequena aberração? — ele questionou em
uma frieza calculada. Estava disfarçando o que quer que ocorria em seu
interior.
Hesitei por um momento, mas logo fechei os olhos e respondi:
— “Não acha que seria muito mais racional que todos aprendessem a
lidar com a flor do que mudar uma das propriedades que a faz ser o que ela
é apenas para não serem superficialmente feridos?”. Você me disse isso uma
vez.
Hayden se virou para mim. Seu maxilar estava fortemente trincado,
um indício de sua tensão decerto crescente.
— E como você lidaria comigo, Katrina? — perguntou, e eu não soube
o que responder. — Você provavelmente deveria correr para longe de mim,
sabe? — Ele voltou a se aproximar de mim, como se quisesse tomar uma
postura ameaçadora. — Se você tivesse um pingo de autopreservação, teria
saído do quarto quando eu lhe confessei um assassinato. Se enfim tivesse
chegado à conclusão de que não merece tudo de pior que esse mundo pode
oferecer, teria agido conforme o medo e fugido.
— Não. — Eu me levantei quase que instintivamente quando Hayden
estava próximo demais, ficando frente a frente a ele, ao lado de um vaso
com anêmonas terrestres. Ele parou de se mover. Sacudi a cabeça
freneticamente, não pensando tão racionalmente, mas nem por isso tão
hesitante quanto deveria. — Eu acho... acho... Você não é o pior que esse
mundo pode oferecer para mim. E eu não fui para longe porque não tenho
algum senso de autopreservação ou porque acho que mereço o sofrimento
que você supostamente pode causar a mim. Eu não fugi porque… porque,
embora eu tenha muitos sentimentos confusos em relação a você, eu sei que
medo não se encontra entre eles. Não mais — eu disse, sem conseguir
controlar minha sinceridade.
— Menina tola — ele disparou, porém eu me mantive imóvel. Eu não
iria fugir, não importando o quanto ele quisesse isso. — Você não me temeu
quando eu ameacei David, quando ele próprio me temeu? Quando eu
acabei com aqueles dois homens em questão de minutos, tirando seu sangue
sem sequer hesitar? Não me temeu quando eu não lhe dei escolhas senão
me seguir até aqui? Você não está me temendo agora, diante de minha
proximidade? Diante de tudo que eu poderia fazer com você?
— Não, não temi. Eu não tenho medo de você porque… estou
começando a achar que, no fundo, você não é o monstro que incorpora.
Você não vai fazer nenhum mal a mim — eu disse sem sequer pestanejar,
com uma convicção assustadora até mesmo para mim, e ele se inclinou um
pouco, deixando seu rosto rente ao meu.
Meu coração estava acelerado, e eu mal respirava direito. Ainda
assim… continuei ali. Bem ali.
— E como poderia ter tanta certeza disso, pequena aberração?
— Porque tudo que você fez foi por mim. Não foi?
Hayden me encarou com aqueles olhos veementes e impiedosos, mas,
no fim… ele se afastou. E eu exterminei a distância entre nós novamente.
— Sabe por que você me confidenciou tudo isso? O assassinato, a
causa de sua cicatriz, o seu próprio dilema de não saber o que é capaz?
Porque, mesmo que inconscientemente, você quis me mostrar que podia
merecer minha confiança. Você foi brutalmente sincero comigo porque, até
agora, nunca tinha me dado motivos para eu crer em você quando eu sequer
sabia um pingo de quem você era de verdade.
Ele se afastou, entretanto continuei me aproximando. Era inevitável.
Assim como continuar disparando todas minhas palavras impulsivas com
uma certeza talvez precipitada, porém ainda concreta.
— Acontece que você não achou que eu ficaria, não é? Achou que ao
se tornar digno de confiança, eu automaticamente iria optar por não querer
confiar em você, e é por isso que está agindo assim. Porque não planejou
nada disso, nunca. Eu acho que você não é tão impassível e confiante
quanto deixa que os outros acreditem, Hayden. Você achou que ninguém
nunca ficaria diante da sua verdade, mas, quer saber… por incrível que
possa lhe parecer, você está errado.
“Está errado porque eu fiquei. Porque eu sei que o Dr. Cole estava
enganado quando achou que havia algo de errado com o processamento de
suas emoções. E eu consigo concluir isso porque sei que você sentiu a
morte de sua mãe. Eu posso não saber o que aconteceu, mas eu consegui
ver em seus olhos que isso te afetou. E eu também afirmo isso porque…
porque você se importou em querer minha confiança, Hayden. Porque você
cumpriu sua promessa hoje, mantendo-me longe do diretor, e isso por um
único motivo. Você sente. Pela primeira vez, eu enxerguei isso, mesmo que
tenha sido apenas uma fração de tudo que você provavelmente pode sentir.
Acho que você sente mais do que se deixa admitir, muito mais do que
gostaria para seu próprio bem. Você apenas aprendeu a reprimir seus
próprios sentimentos talvez há muito tempo porque achou que assim seria
mais fácil. Só que não é.”
Hayden não teve como se distanciar mais, pois suas costas
encontraram a parede atrás de si. Foi estranha a posição de domínio em que
eu estava. Talvez fosse a primeira vez que eu estivesse no controle ao invés
do garoto à minha frente. Eu… eu precisei daquilo para chegar à conclusão
que eu gostava da sensação. Que eu podia me deixar gostar.
— Você não é um desgraçado insensível, Hayden, por mais que
preferisse — eu sussurrei por fim. — Você não é simplesmente porque
ainda há uma parte de você que se preocupa com o que poderia acontecer se
realmente fosse um. E é por isso que eu não vou me deixar ter medo de
você mais, mesmo quando tomar atitudes odiosas e duvidosas que só fazem
sentido em sua cabeça. Não vou temê-lo mesmo quando eu o odiar mais do
que tudo em alguns momentos, o que vai acontecer. Se quer saber, você tem
problemas. Tem sérios problemas, na verdade, e precisa dos tratamentos
certos. Mas nada disso te torna merecedor das piores punições que esse
Instituto certamente já lhe aplicou. Você nunca mereceu nada disso.
Observei sua garganta oscilar e suas narinas se dilatarem. A veia
constantemente saltitante de seu pescoço e a película levemente brilhosa
que cobria boa parte de sua pele. Sobretudo, fiquei ciente demais do ritmo
mais alterado que eu presenciara de sua respiração e da falta de distância
entre nós. Notei quando seus olhos começaram a se dilatar e quando ele
desviou a atenção para meus lábios entreabertos, que também davam lugar
a uma respiração acelerada diante da intensidade dos últimos minutos. Da
intensidade daquela noite inteira.
— Diz de novo — ele disse em seu usual tom áspero, mas agora ele
era consequência de algo mais. De um sentimento ou necessidade que eu
não tinha ideia se podia mesmo estar decifrando corretamente.
De alguma forma, tive certeza do que ele queria ouvir mais uma vez,
porém não verbalizei aquelas palavras de imediato, pois minha garganta
falhou. Minha boca estava seca, e toda extensão de minha pele, suada diante
do vasto calor que me afligia. Eu estava afetada demais por alguém que
inevitavelmente tinha muito, muito poder sobre mim. Foi doloroso admitir
isso a mim mesma pela primeira vez, mas talvez… necessário. Foi então
que eu me forcei a dizer:
— Eu não tenho medo de vo…
Hayden não deixou que eu completasse a frase, pois antes que eu o
fizesse de fato, sua boca ja estava selada à minha, dissipando de uma só vez
uma tensão que eu só percebi ser torturante quando exterminada.
Beijá-lo foi como encontrar um escape que eu não sabia que precisava
de minha própria bolha desorientadora. Era como se, ao tê-lo daquela
maneira, eu não precisasse de mais nada daquele mundo, como se nada
mais existisse ou importasse além de nós dois. Não me incomodava se
aquela conexão necessária e avassaladora fosse racionalmente errada, assim
como as consequências que nos encontrariam, porque… porque, ainda que
eu potencialmente estivesse com minha percepção afetada, nada nunca
tinha me parecido tão certo antes. O futuro não me foi importante, apenas
quem eu era no presente e o que eu mais desejava, e isso foi libertador.
Senti sua mão encontrar minha nuca em uma firmeza excruciante,
puxando-me mais para si como se nenhuma proximidade do mundo lhe
fosse suficiente. Sua língua acariciava a minha com ganância e lascívia, e
seus dedos afundavam em minha carne com uma exigência crua.
Suas mãos desceram por meu corpo até encontrarem minhas coxas,
levantando-me sem muito esforço. Não pude afastar minha boca da sua por
um segundo sequer, mas senti quando ele deu alguns passos comigo em seu
colo, quando se inclinou um pouco sobre mim e ouvi quando alguns itens se
quebraram de uma só vez. Assim que fui colocada em cima de algo plano,
tive certeza de que Hayden tinha jogado seus próprios pertences de sua
escrivaninha no chão apenas para mim.
Quase que instintivamente, abri mais minhas pernas para o garoto, e
ele se encaixou em meu corpo em perfeita harmonia. O choque de nossas
virilhas fez com que um gemido escapasse de minha garganta, causando
vibrações no toque de nossos lábios. Hayden sibilou um palavrão contra
minha boca em resposta, talvez satisfeito por meu desejo se igualar ao dele,
e não fiz nada além de me contorcer entre suas mãos que agora se
encontravam em minha cintura.
Meu interior inteiro se inflamava pela mais intensa das chamas
enquanto um misto de tentação, euforia e avidez consumia a boca de meu
estômago, deixando-me agitada e… viva. Viva de uma maneira diferente.
Eu nunca tinha experimentado absolutamente nada daquilo antes.
Passei meus dedos estranhamente trêmulos pelo seu cabelo,
agarrando-o em uma tentativa de também mantê-lo mais próximo do que
nunca a mim, como se eu precisasse de cada vez mais dele.
Senti uma de suas mãos descer pelo meu corpo até encontrar a bainha
de minha saia e então subir pela minha perna por debaixo do tecido. Um
arrepio me avassalou quando senti os calos de seus dedos arranharem minha
pele nua que continuava em chamas. Ele segurou minhas nádegas com uma
força que eu sabia ser suficiente para me deixar com hematomas enquanto a
outra mão arrancou o elástico que prendia meu cabelo em um coque e
entrelaçou meus fios entre seus dedos. Hayden desgrudou seus lábios dos
meus, e foi inevitável balbuciar uma palavra confusa em protesto, porém
sua boca logo encontrou a base de meu pescoço, puxando a pele dali. Ele
primeiro acariciou a região com sua língua, como se me saboreasse, e então
cravou os dentes em mim.
Contorci-me com mais força, porque aquilo doeu, porém de uma
forma assustadoramente boa. Ele estava me incitando ainda mais, era óbvio,
fazendo-me sentir uma ânsia de coisas que eu nem sabia que precisava.
Isso, entretanto, me assustou por um segundo, porque aquilo estava sendo
só o começo, e eu… podia não estar preparada para tudo que o garoto ainda
tinha para mim, não importando o quanto eu quisesse estar. Meu lado mais
primitivo, um desconhecido por mim mesma até então, quis mais que tudo
que Hayden continuasse, que eu o deixasse seguir em frente
desenfreadamente, entretanto meu último pingo de racionalidade se opôs
àquilo.
Podia ser perigoso demais ser tão precipitada. E… eu precisava tomar
alguma decisão antes que fosse tarde demais, porque eu não estaria
pensando com meu restante de juízo por muito mais tempo. Eu pelo menos
precisava que ele soubesse.
E foi quando Hayden fez menção de voltar os lábios aos meus, quando
ele estava quase levando sua mão mais acima por debaixo de minha saia,
que eu me forcei a sussurrar:
— Espere.
Hayden parou, sem precisar de nada mais. Ele manteve sua mão
debaixo da minha saia, mas a repousou sobre minha coxa enquanto afastou
seu rosto apenas para me encarar. A veemência de seus olhos não foi de
muita ajuda para que eu recuperasse meu ar. Pelo contrário, suas pupilas
dilatadas, onde uma luxúria crua, apenas me afetaram mais, porque só então
eu senti que ele me cobiçava muito mais do que eu me deixara assimilar
antes.
— Eu… eu nunca fiz nada disso antes.
Hayden engoliu em seco, e enfim se afastou um pouco de mim.
Pareceu precisar de um esforço excessivo para isso. Suas mãos foram
apoiadas na escrivaninha, cercando-me, enquanto seu olhar ainda se
encontrava fixo no meu. Estava absorvendo a informação. Não era como se
ele estivesse surpreso, era mais como se estivesse sendo lembrado do que
provavelmente já tinha concluído em algum momento anterior. O garoto
parecia estar se controlando.
— Nada? — ele sussurrou após longos e torturantes segundos, e eu
inspirei fundo.
— Nada.
Eu nunca sequer tinha beijado antes.
Hayden trincou o maxilar fortemente, e fechou os olhos de maneira
brusca por um momento. Sua respiração se tornou ainda mais pesada até
que ele voltasse a me encarar.
— Então me diga, pequena aberração, o que você quer que eu faça
quanto a isso?
Hesitei, confusa.
— Me diga, o que quer que aconteça a partir daqui? — ele continuou
em um tom baixo, avaliando-me com aquela atenção cortante. — Porque eu
não tenho a fama de ser doce. Não sou conhecido por ser cuidadoso ou
amável em nenhum sentido sequer. Eu mesmo não confio em mim para
continuar com isso. Na verdade, ninguém deveria confiar em mim a
experiência de nenhuma primeira vez, Katrina, e muito menos você. — Ele
foi brutalmente sincero. Queria que eu soubesse o que estava em jogo, e
talvez, também que não haveria garantias de eu não sair traumatizada
daquelas primeiras experiências, porque eu não tinha nada a que comparar.
Porém… eu ainda não tinha medo.
De forma alguma.
— Tá tudo bem. Eu… eu confio em você — sussurrei de volta, e,
assustadoramente… fui honesta. Mesmo que ele próprio não confiasse em
si.
Aproximei meu rosto dele vagarosamente, porém ele afastou um
pouco de mim. Ainda estava com o maxilar trincado, e parecia ponderar se
deveria mesmo continuar com aquilo, apesar do que eu tivesse alegado.
— Hayden — chamei baixinho, querendo que ele visse a certeza em
meus olhos, que se concentrasse em mim. E seu nome em minha boca
pareceu mesmo surtir efeito, pois percebi quando o garoto voltou a me
enxergar. Aproximei-me mais um pouco, e, ainda com os olhos abertos,
encostei meus lábios nos seus, avaliando-o como ele me avaliava.
Foram necessários alguns segundos até que ele tomasse sua decisão.
Foi então que ele aceitou meu beijo.
Não me beijou como antes, no entanto. Seu beijo foi mais cauteloso e
lento, mais… meticuloso. Ainda tinha aquela fome primitiva, mas de
maneira mais controlada. Eu quase podia sentir a precaução que Hayden
tinha adotado apenas por mim, e, embora uma parte de mim ainda queria
mais do que tudo ter sua versão mais instintiva e até brutal um dia, nada me
parecia mais necessário do que aquele cuidado naquela noite. Um gemido
mais gutural que os anteriores soou em minha garganta, e isso foi como a
aprovação que Hayden precisava para continuar.
Sem pressa alguma, seus dedos começaram a desabotoar meu
uniforme, e, quando terminou, eu deixei que ele a retirasse por completo.
Ele então se afastou para tirar minha regata, deixando a parte de cima de
meu corpo totalmente nua para si. Não foi para meus seios que ele desviou
sua atenção primeiro, contudo.
Foi para as cicatrizes de meu pulso que eu não tivera confiança o
bastante nele para mostrar antes. Não me senti constrangida como pensei
que um dia eu ficaria quando deixasse que alguém visse as memórias físicas
e permanentes do clímax de minha desesperança. Aquilo não me importava
mais, não naquela noite. Também esteve importando cada vez menos
conforme as últimas semanas passavam. Embora o período turbulento
nunca tivesse sido esquecido ou nunca fosse ser, eu… me sentia um pouco
mais apta para tentar superá-lo. Eu queria superá-lo.
Hayden não fez comentário algum sobre as cicatrizes, apenas as
encarou como se fossem tudo, menos feias como eu citara em meu poema
que ele tomara para si. Ele as via como se fossem parte de mim. No fim,
elas eram mesmo, sempre seriam. O garoto segurou minha mão direita,
virando-a para cima para si, e então… ele beijou cada centímetro da marca
rosada vertical, como se aquilo não o afugentasse. Aquilo era parte de mim,
e também podia atraí-lo.
Sua mão esquerda foi até o meu seio, e seu polegar acariciou meu
mamilo, que já estava arrepiado antes mesmo que ele o tocasse. A região
estava torturantemente sensível, e, embora parecesse impossível, uma
sensação ainda mais pungente me domou quando Hayden levou a boca ao
mamilo esquerdo. Contrai-me por completo quando o garoto sugou a região
ao mesmo tempo que sua língua trabalhava ali, assim como sua mão ainda
acariciava o outro seio.
Sua boca subiu até meu pescoço novamente, deixando um rastro
molhado pela minha pele, e beijou o lugar que acabara de morder. Só então
ele se afastou de mim, apenas para olhar o que faria a seguir. Suas mãos
desceram até o cós de minha saia, mas não para a tirar, e sim para subi-la.
Ele enroscou o tecido em minha cintura, deixando minha calcinha aparente.
Minha calcinha foi a próxima peça a ser despida. Hayden afastou mais
minhas pernas para si, abrindo-as até que ambas encostassem a madeira.
Tive que apoiar minhas mãos na escrivaninha para apoiar melhor o peso de
meu corpo. Meu estômago se contorceu em antecipação enquanto Hayden
praticamente me comia com o olhar. Contraditoriamente, não me importei
em estar tão exposta para ele, não como provavelmente deveria. Isso apenas
me estimulou ainda mais.
O garoto levou as costas de sua mão até a região entre minhas pernas,
percorrendo-a sutilmente. O gesto fez com que um espasmo percorresse
meu corpo, e foi inevitável perceber quando um canto de seus lábios se
retorceu para cima.
— Ainda confia em mim?
Engoli em seco.
— Sim.
Sem precisar de mais, Hayden me penetrou com o dedo médio, e um
gemido escapou de nossas gargantas ao mesmo tempo; o meu por
consequência de uma espécie de dor extasiante e o dele provavelmente pela
percepção do quão molhada eu já me encontrava. Sua mão esquerda
agarrou com uma força excessiva a escrivaninha ao meu lado, o que me
pareceu um indício de que o garoto ainda estava dando tudo de si para se
controlar. Ele torceu o dedo dentro de mim antes de tirá-lo vagarosamente,
apenas para subi-lo até minha região mais sensível.
Contorci-me mais quando ele começou a me acariciar ali, e sua mão
esquerda encontrou uma de minhas coxas, segurando-a contra a
escrivaninha para me deixar o mais aberta possível para si. Meu peito
descia e subia violentamente diante de minha respiração ofegante, e meu
abdômen estava contraído diante da sensação singular e consumidora que
Hayden me fornecia. O movimento com o qual ele me tocava era
circulatório, ora forte, ora mais sutil, levando-me cada vez mais perto do
limite com aquela oscilação.
Não demorou até que meus gemidos se tornassem incontrolavelmente
mais frequentes e de um timbre mais intenso, principalmente quando
Hayden passou a pressionar mais meu clitóris com o polegar e voltar a
meter em mim repetidamente com dois de seus dedos.
A região entre minhas pernas já queimava em uma sensação de um
estranho preenchimento, e eu sequer sentia muito minhas pernas. O mundo
ao meu redor estava um pouco enevoado, mas ainda pude me concentrar em
Hayden enquanto ele me olhava com aquela volúpia e capricho sempre
constantes em seus orbes claros. Foi bom me sentir como único objeto de
sua atenção. Era como se, ainda que momentaneamente, eu fosse tudo que
existisse para ele.
Essa percepção provavelmente foi o que me fez chegar ao ápice de
meu êxtase, tanto físico quanto emocional. Uma sequência quase que
dilacerante de espasmos tomou conta por completo de mim e minha visão
se escureceu de uma só vez enquanto uma chama mais avassaladoras que as
anteriores queimou em todo meu interior. Por longos segundos, eu não fiz
nada além de existir vividamente, e isso me aniquilou da maneira mais
prazerosa possível.
Quando comecei a recuperar a visão, percebi que Hayden ainda me
encarava precisamente, porém agora a sombra de um sorriso satisfeito se
fazia presente entre seus lábios. Ele parecia satisfeito apenas por me fazer
gozar, e isso me fez imaginar como seria seu rosto quando fosse sua vez.
Embora eu ainda estivesse trêmula, isso me fez me inclinar até ele. Fiz
menção em levar minhas mãos até o cós de calça, mas Hayden foi mais
rápido ao agarrar meus pulsos. Quando o fitei, percebi que ele tinha o olhar
mais sombrio sobre mim.
— Não. Não hoje — disse, levando sua mão até meu queixo. Ele
acariciou a região enquanto desviava a atenção para minha boca, engolindo
em seco. — Embora eu não possa pensar em nada que eu queira mais nesse
momento do que comê-la, ainda não tenho certeza se não iria perder o
maldito controle no instante em que metesse em você. Então, por
enquanto… vamos fazer essa noite ser apenas sobre você, sim?
Não fiquei tão satisfeita quanto provavelmente deveria, e achei que
Hayden leu isso em minha expressão, pois soltou um riso nasalado
enquanto segurou meu maxilar com uma certa força, inclinando meu rosto
para si enquanto me avaliava com aquelas pupilas ainda dilatadas.
Ele se aproximou para mais um beijo, e não tive como não o retribuir.
Esse, entretanto, foi mais rápido que os demais. Sem aviso prévio algum,
Hayden simplesmente se ajoelhou para mim, mantendo sua atenção ao meu
rosto a todo momento. Diante daquela visão, prendi minha respiração
inconscientemente.
Suas mãos foram para a parte interior de minha coxa, e as pontas de
seus dedos brincaram um pouco comigo, nunca chegando onde de fato
deveriam estar. Um sorriso lascivo e travesso também começou a tomar
conta dos lábios de Hayden.
— Sabe, eu gostaria muito, muito que você também pudesse se ver
daqui, Katrina. Talvez então você pudesse ter uma ideia do porquê estou
encontrando tanta dificuldade em não te foder da maneira que seu corpo
merece — o garoto disse após me testar por alguns segundos, apenas um
instante antes de percorrer toda minha abertura com a língua. Meu clitóris
ainda estava sensível, e isso só fez com que eu me mexesse mais sobre sua
boca. Segurei-me para não soltar um grito que poderia muito bem chamar a
atenção do lado de fora.
Hayden me abriu mais para si, apenas poucos momentos antes de
começar a me chupar sem clemência alguma. Tudo que eu mais quis foi
continuar sustentando seu olhar, vendo enquanto sua boca me envolvia
daquela forma, mas não consegui. Aquilo era demais para mim, e não tive
outra alternativa senão sentir a sensação que o garoto me trazia de olhos
fechados.
Conforme os segundos se passavam, conforme sua língua me
acariciava mais e mais e seus lábios envolvessem meu clitóris de modo
oscilante, eu passava a ter certeza de que podia me desmanchar sobre
Hayden a qualquer momento. Era um sentimento estranho, de plena entrega
e confiança crua. Eu sequer sentia mais a maior parte de meu corpo, tudo
que eu era ciente era da região entre minhas pernas e cada toque de certa
forma mordaz do garoto.
Foi inevitável agarrar os cabelos de Hayden, não querendo nunca que
ele se distanciasse. Assim que o fiz, uma risada rouca vibrou na minha
região mais sensível, e gemi mais alto.
Eu teria gozado rápido demais caso Hayden não tivesse afastado a
boca de mim, provavelmente por perceber o que estava prestes a acontecer.
Minha boceta já pulsava em seus lábios, afinal.
Abri os olhos um pouco, desorientada, a tempo de vê-lo dizer ainda
com um sorriso entre os lábios molhados:
— Ainda estou contando com sua confiança, pequena aberração.
Não tive tempo ou forças para respondê-lo antes que ele me colocasse
de pé e me virasse contra a escrivaninha. Minhas pernas estavam trêmulas,
e tive que me inclinar para espalmar as mãos na madeira, equilibrando-me
com as forças restantes do braço. Tive certeza de que iria desabar quando
senti Hayden abrir minhas nádegas com suas mãos pesadas, pondo o rosto
debaixo de minha boceta. No entanto… não o fiz. Não me dei outra
alternativa senão sentir tudo que ele ainda tinha para me dar.
Não tinha mais ar em meus pulmões quando ele contornou uma de
minhas pernas com o braço e continuou a acariciar meu clitórios com o
polegar enquanto me penetrava com sua língua. Aquela sensação úmida me
amoleceu ainda mais, inevitavelmente. Eu sentia seus cabelos fazerem
cócegas debaixo de mim, e isso foi apenas um aditivo para o encontro da
onda impiedosa de êxtase que me aguardava.
Quase sucumbi de vez quando sua boca substituiu o polegar,
chupando-me de modo mais atroz que qualquer anterior, porém foi apenas
quando sua mão encontrou minha nádega direita em um tapa violento,
provavelmente o único ato perto do descontrole que Hayden se deixaria
realizar naquela noite, que eu cheguei ao meu ápice. Gozei mais
implacavelmente dessa vez, enfrentando uma sensação que nunca sequer
pensei ser feita para que qualquer ser humano experimentasse. Nunca podia
imaginar que meu corpo um dia aguentaria tamanho êxtase dilacerante, e
tampouco que eu fosse encontrar alguém que me fornecesse aquilo.
Quando os espasmos, arrepios e a chama de meu interior passaram,
minha racionalidade não voltou de imediato. O que, de certa forma, foi algo
bom, porque eu ainda não estava pronta para enfrentar todos os dilemas que
a intensidade daquela noite trazia, dilemas não provocados apenas pelos
aspectos físicos, mas também pela confiança que eu nunca pensei ser capaz
de atribuir a Hayden e que, aparentemente, ele mesmo relutava atribuir a si
próprio.
Não havia dúvidas de que ainda haveria muito, muito a ser pensado. E
muitas decisões ainda a serem tomadas. Eu continuava certa de que não
temia Hayden, mas a situação em que estaríamos após aquela noite… isso
eu temi, desmedida e dolorosamente.
Frésia (Iridaceae)
Estão entre as flores mais bonitas do mundo, e podem
simbolizar a proteção e a confiança.

No dia seguinte, eu mal podia andar direito. Não era bem isso,
entretanto, que atraía frequentes olhares para mim pelos corredores do
Instituto. Imaginava que a fofoca sobre a briga do jardim já tinha se
espalhado pelo local. Isso me fez temer, porque, se muitos alunos estavam
sabendo, havia uma chance maior de as informações na noite anterior
chegarem à inspetora Foy ou, pior, ao Dr. Cole.
Apesar da promessa que Hayden tinha me feito, eu não queria que ele
trocasse minha cabeça pela sua. Nada daquela confusão teria acontecido
caso eu não tivesse lhe dado o maldito soco. Eu tinha que assumir as
consequências de meus atos se quisesse me deixar reagir, e não tivera a
racionalidade o bastante em seu quarto para lhe pedir desculpas. Eu dormirá
lá, porém, quando acordara, o garoto já não estava mais lá.
Estava indo para minha primeira aula, mas encontrei Ashley no
caminho. Ela não me deixou passar com tanta facilidade.
— Belo show o que você provocou ontem, hein?
— Agora não, Ashley — resmunguei. Já estava com muita coisa na
cabeça.
Tentei passar por ela, porém continuei sendo barrada.
— E, para completar, ainda passou a noite fora. Acho que tenho um
palpite de onde você dormiu.
Suspirei.
— Olha, eu não sei porque isso tudo seria da sua conta. Está com
ciúmes ou algo do tipo? — questionei, séria demais, e ela semicerrou os
olhos em minha direção.
— Isso é da minha conta porque eu me preocupo com ele.
— Hayden nunca pareceu precisar da preocupação de ninguém.
Agora, se me dá licença, eu preciso…
— O que quer que esteja acontecendo entre vocês, não tem como
terminar bem, Katrina. Espero que pelo menos tenha isso em mente.
Franzi o cenho, assimilando suas palavras. Ashley já tinha sumido da
minha frente antes que eu terminasse de o fazer. Não sabia porque ela tinha
me dito aquilo, porém decidi não me perguntar tanto sobre isso.
Principalmente porque eu duvidava que qualquer coisa ou pessoa pudesse
fazer Hayden deixar de pensar racionalmente.
Segui em frente pelo corredor e entrei na sala de minha próxima aula,
apenas porque era o que eu tinha que fazer. Não prestei atenção por um
segundo sequer no conteúdo, entretanto. Tudo que eu pensava era sobre o
que Hayden me fizera sentir ontem e tudo que ele também fizera por mim.
Ainda era difícil admitir a mim mesma que o mesmo garoto que me
colocara no meio de uma floresta sem ter conhecimento de nada podia
ainda prezar por mim. Eu aparentemente teria muito o que processar e
entender ao longo daquela semana.
Eu também olhava constantemente para a porta, como se a qualquer
momento algum inspetor pudesse entrar por ali e me pedir para acompanhá-
lo até lá em cima. Já fazia quase duas semanas que eu tivera meu encontro
com o Dr. Cole, e, ainda assim, a possibilidade de repetir a dose me causava
arrepios terríveis. Não imaginava qual seria seu tratamento caso soubesse
que eu estive infligindo regras do Instituto.
Quando a aula chegou ao fim, tomei rumo em direção à próxima
classe, mas parei quando, quase que magneticamente, minha atenção foi
atraída para Hayden em um canto meio escondido do último corredor à
minha direita. Ele estava com um garoto que eu não conhecia. Tive que
estreitar os olhos para ver o que faziam.
Hayden pareceu entregar um papelote para o menino, e, em troca,
recebeu algumas notas amassadas que guardou no bolso de seu uniforme. O
menino foi para longe em disparada, como se estivesse fazendo algo errado
e não quisesse ser pego.
Engoli em seco, lembrando-me também das palavras de David. Eu
tinha sido clara ao falar que não temia Hayden, porém não o temia por mim.
Isso não significava que eu não acreditava que ele era capaz de ter matado
George, de forma alguma. Era óbvio que Hayden tinha segredos. Muitos
deles, na verdade. E isso era assustador em uma perspectiva mais ampla.
Uma parte de mim, contudo… estava ignorando aquela informação até
então. Tinha sido inevitável após ele cumprir sua promessa e ser tão
honesto comigo em seu quarto, mostrar-me uma fase sua que eu estava
certa de que poucos, ou ninguém conhecia.
Hayden não demorou a me localizar. Aquela sua atenção cortante
demorou em mim, e ele se escorou na parede. Tive um certo calafrio
quando aquele olhar me trouxe memórias físicas. Ignorando-o, decidi me
aproximar dele. Ele já tinha me notado, de qualquer forma.
— O que estava fazendo? — perguntei assim que cheguei nele, apenas
para ver se ele me responderia.
Ele não o fez. Tudo que ele fez foi soltar um riso nasalado e perguntar:
— Andado engraçado. Com dor?
Hayden pareceu estar caçoando, e eu retruquei:
— Imagino que não mais que você. Seu olho está horrível. — Era
verdade. Sua pálpebra agora estava um pouco inchada, e a parte branca
continuava vermelha.
— É, você causou mesmo um belo estrago, pequena aberração. Belo
gancho de direita, aliás. Pena que descobri da pior forma possível. Nunca
pensei que você reagiria não diante de uma provocação, e sim de alguma
defesa.
Isso me fez me retrair um pouco.
— Você estava me confundindo com seu comportamento
contraditório. Além do mais, eu só acho que não estou muito acostumada
com…
— Com outras pessoas te ajudando? — soprou quando eu hesitei. —
Já deveria ter entendido que não lido bem com outros mexendo com o que é
meu.
— Eu não sou de ninguém — murmurei. — E não é tão altruísta da
sua parte me defender dos outros enquanto você é o pior de todos.
— Eu nunca quis essa fama — ele contestou simplesmente, quase que
achando graça. — E é diferente.
— Quando você me transtorna e quando os outros o fazem?
O garoto não me respondeu. Deixei para lá.
— Tá, que seja. Eu… ainda não pedi desculpas pelo seu olho, na
verdade. Acho que…
— Eu nunca pedi desculpas pela picada de Lilith ou pelo ataque do
urso. E não acho que você queira de fato pedir desculpas, é só seu senso de
bondade falando mais alto, então… não o faça. Seja mais fiel a si mesma.
— Mesmo assim, eu…
— Katrina… não — ele me interrompeu, sério. Não queria meu
pedido de desculpas.
Foi estranho aceitar que eu tinha machucado alguém, machucado ele
principalmente, e não precisava me retratar por isso. Eu não planejava ou
queria um dia fazer aquilo de novo, porém… eu não me sentia de todo
arrependida. Porque, no fundo, eu achava que Hayden tinha merecido
aquilo, não apenas pelos acontecimentos de ontem, mas por… tudo. De
alguma forma, o garoto enxergara isso. Ele também sabia que merecia e não
se importava.
No fim, me contentei em não fazer aquilo novamente, não importando
o quanto a situação pedisse, porque eu não era assim. Eu reagiria de outras
formas, prezaria por mim mesma sendo eu, o que, de todo modo, também
valeria muito mais que um pedido de desculpas. Para mim, isso bastaria.
— Hayden, está na hora de sua consulta com o Dr. Cole. — A
inspetora Foy nos trouxe de volta à realidade, aproximando-se, e o garoto se
afastou de mim de imediato. O movimento, entretanto, fez com que a
mulher tomasse ciência de minha presença. Ela franziu o cenho em minha
direção.
— Srta. Katrina? — soprou, e percebi como ela me tratou mais
formalmente enquanto chamava Hayden apenas pelo nome. Ela nitidamente
conhecia o garoto há mais tempo e julgava ter mais intimidade. Isso me
entristeceu por um momento. — Vocês são amigos, por acaso? — Ela
oscilou o olhar entre nós dois.
— Não, não somos — Hayden respondeu de prontidão, assumindo
uma postura indiferente e implacável. — A garota só esbarrou em mim por
acidente.
A mulher nos encarou desconfiada, porém pareceu optar por não
insistir e se virou para mim, avaliando-me enquanto pensava em algo, como
se fosse lembrada de minha existência.
— Srta. Katrina… Estou tentando me lembrar quando foi sua última
consulta com o Dr. Cole. Eu me lembro de ter marcado seu horário na
agenda para a última sexta assim que você saiu da sala dele há… o que,
duas semanas? Mas a consulta não aconteceu, não é? Não me recordo de vir
buscá-la.
Hesitei, desviando um rápido olhar para Hayden. Ele tinha armado
aquela confusão? Seus olhos impenetráveis não me deram resposta alguma.
— Não, Srta. Foy. A consulta não aconteceu — respondi por fim,
porque ela já sabia da verdade. A mulher parecia ter uma memória boa
demais para nosso próprio bem.
— Engraçado. Eu posso jurar ter colocado seu nome na… —
balbuciou seriamente, mais para si mesma, mas não finalizou a frase. —
Bem, marcarei sua consulta para o próximo horário livre que o doutor tiver.
É inaceitável ter um intervalo entre elas de mais de duas semanas.
Cerrei os dentes com uma força excessiva, já sentindo um calafrio
terrível percorrer minha espinha. A inspetora se virou para Hayden, que
continuava imóvel.
— Agora vamos, o doutor está te esperando. E que machucados são
esses em seu rosto? Jesus Cristo, quando você vai aprender a entrar na
linha? Ele vai querer saber tudo que aconteceu. Anda logo, vamos, vamos.
— A mulher saiu andando apressada, e Hayden me deu um último olhar.
Ele não parecia temer o encontro com o Dr. Cole como eu o fazia.
Provavelmente estava acostumado com aquilo. Isso era… pavoroso. Eu
esperava nunca ter que me habituar a perder o controle de minha própria
mente para apenas fingir viver normalmente.
O garoto pareceu sentir a dor em meu olhar, e foi por isso que retorceu
um canto dos lábios para cima, como se estivesse caçoando do que o
esperava antes de seguir a inspetora. Parecia dizer que estava tudo bem e
que aquilo não importava. Isso apenas me machucou mais.
Porque Hayden não devia mentir. Nunca e de nenhuma forma.

No fim da tarde, um inspetor veio me buscar em meu quarto, pedindo


para que eu o seguisse. Apavorei-me, tendo certeza de que a inspetora Foy
cumprira sua promessa. Entretanto, aquilo tinha sido muito mais rápido do
que o esperado, eu não imaginava que o primeiro horário livre do Dr. Cole
seria ainda naquele mesmo dia. Não tive tempo para me preparar, e,
honestamente… eu continuava confiando em Hayden. Eu não me deixei
pensar na possibilidade de ver o diretor, porque, no fundo, tinha certeza de
que o garoto continuaria me livrando daquelas mãos horrendas.
Sabendo que eu provavelmente seria levada à força caso me recusasse
a seguir o inspetor, eu o acompanhei depois de longos segundos
processando o que aconteceria. No caminho até o terceiro andar, minha
mente ainda em negação procurava escapes. Sair correndo antes que o
inspetor tivesse a chance de me agarrar, ou, de alguma forma, avisar a
Hayden para onde eu estava indo. Foi quase estranho como eu realmente
tivera expectativas naquele garoto. Não deveria, porém… naquele momento
e naquela situação, ele era o único a quem eu sentia que podia me agarrar.
Isso nunca tinha acontecido, e não esperava que a primeira pessoa de
quem eu podia mesmo esperar alguma ajuda seria justamente ele.
Ainda não tinha pensado em nenhuma solução quando o inspetor
começou a me guiar não pelo caminho que levaria até a sala do doutor, e
sim pelo corredor contrário. Apavorei-me um pouco mais.
— Espere, para onde estamos indo?
Ele não me respondeu, e eu parei ali mesmo.
— O que vão fazer comigo? O quê…
O homem apenas apoiou a mão na base de minhas costas e me
conduziu em frente. A ideia de que estava indo para alguma sala de cirurgia
se fez presente em minha mente, que poderia acontecer comigo o que
acontecera com Hayden, e estava prestes a parar de andar novamente, mas
então o inspetor abriu a porta do cômodo à nossa direita.
Arregalei os olhos naquele mesmo momento.
Era apenas uma sala de reunião com uma mesa extensa e cadeiras
giratórias, e, nela, havia apenas uma pessoa.
— Papai?
O homem estava sentado à base da mesa, com seus olhos escuros me
avaliando precisamente atrás dos óculos de lentes pequenas.
— Vamos, entre, Katrina — ele disse. Não havia tom de afeto algum
em seu tom.
Hesitei, mas acabei fazendo o que me fora ordenado. Meu destino, no
fim, tinha sido menos pior do que a sala do Dr. Cole. O inspetor fechou a
porta atrás de mim quando dei alguns passos, deixando-me a sós com meu
genitor. Só então o homem se levantou e se aproximou. Suas mãos vieram
até mim, mas não para um abraço. Ele me segurou pelos ombros,
analisando-me com um olhar profissional.
Um arrepio nada agradável percorreu toda extensão de minha pele.
— Você… começou a ganhar um pouco de peso. Isso é bom —
soprou.
Era verdade. Não sabia exatamente quando, mas eu tinha começado a
me alimentar um pouco melhor. Ainda faltava muito para que meu corpo
aparentasse estar de fato saudável, mas… era um começo. Não gostei,
contudo, que aquele tivesse sido seu primeiro comentário.
Permaneci imóvel enquanto ele observava centímetro por centímetro
de mim. Seu olhar se demorou em meu rosto. Meu pai nunca sorria, mas
quase pude jurar que o faria, provavelmente ao perceber minhas olheiras
que eu sabia estarem menos evidentes do que quando deixei sua casa, há
um mês e meio, ou minha pele, menos sem vida. No fim, isso não
aconteceu.
— Na verdade, tudo em você parece melhor. Muito melhor. O Dr.
Cole está mesmo fazendo o que me prometeu, afinal. — Ele voltou a se
sentar, e só então me deixei soltar o ar que andava segurando.
— Não acho que o doutor tenha nada a ver com isso — resmunguei,
também me sentando. — E o que o senhor está fazendo aqui? Visitas não
são permitidas fora do primeiro dia de cada mês.
— Ser um colega do diretor me isenta de certas regras.
— E por que o senhor não pôde fazer como todos os pais e ter me
visitado há algumas semanas, no dia certo?
Ele gesticulou com a mão simplesmente.
— Minha agenda estava lotada. Trabalhei até tarde da noite.
Encarei-o, sentindo mesmo… raiva. Não decepção, contudo. Nunca
esperei tanto dele para sentir tal coisa.
Só era inacreditável como ele conseguia sentar à minha frente e mentir
tão facilmente. Por um momento, me perguntei quantas vezes ele fazia
aquilo até para minha mãe, que, provavelmente tendo seu dinheiro, não se
importaria, mas… enganar qualquer um daquela maneira era uma falta de
caráter grande demais, até para ele.
— Enfim, como estão as coisas? Imagino que deixarão você sair daqui
assim que se formar, se continuar dessa maneira. Assim não haverá atraso
algum para o ingresso da faculdade, em poucos meses. O que acha disso? O
Dr. Cole disse que serão necessárias mais algumas sete sessões de seu
tratamento para uma melhora definitiva. Seu cérebro começará a…
— Pai — cortei-o em um sussurro. — Eu não posso aguentar mais
sete sessões. O senhor sequer sabe o que ele está fazendo comigo? Com
muitos outros estudantes? Ele está…
— Katrina, uma sessão entre um paciente e um psiquiatra deve ser
mantida em sigilo. Não me importa o que está acontecendo, desde que você
melhore de uma vez por todas no fim. Isso é apenas o que deveria importar
para você também.
— Então é isso? Os fins justificam os meios? — eu questionei,
fechando as mãos em punho. — Os pais supostamente deveriam proteger os
filhos.
— Eu estou protegendo você. — Ele aumentou seu tom de voz.
— De quê?
— De você mesma.
— E em que eu forneço risco para mim?
— De arruinar a merda do seu futuro.
— Não. Isso é um risco somente para o senhor. A ruína de um futuro
promissor em sua perspectiva só te afeta, não a mim.
— Katrina…
— Não — cortei-o, também elevando meu tom, inevitavelmente. Ele
arregalou os olhos, surpreso. Deveria ficar mesmo, eu estava. Eu nunca
tinha tido coragem ou determinação antes para contestá-lo, mas, agora…
algo estava mudando. Muitas coisas pareciam estar, no fim. — O senhor
pelo menos consegue enxergar que não me colocou nesse lugar terrível por
mim, e sim pelo senhor? Eu não preciso desse tipo de ajuda. Isso é a última
coisa que eu poderia precisar, na verdade. A perda da única liberdade que
possuo, a liberdade de meus pensamentos e opiniões, não é algo que deva
acontecer com ninguém. Tudo que eles fazem aqui é impor limites, ditar
regras e mais regras, e nos tratar como animais, tentando nos curar de
formas que ninguém poderia desejar ser curado. Ninguém aqui está nos
ajudando com nossa saúde mental, fazendo com que nós nos encontremos
do modo correto. Eles estão… apenas ajustando coleiras em nossos
pescoços construídas por pessoas que não vivem nossas vidas.
— Isso é o suficiente — ele gritou, levantando-se de sua cadeira e
vindo até mim. — Você nunca mais vai elevar a voz para mim, garota. Me
julga tanto por te colocar aqui, mas não vê que algo precisava mudar. Acha
que o que você estava levando era uma vida? Devo lembrá-la que você
estava tão insatisfeita quanto eu ao tentar tirá-la, dois anos atrás?
A menção ao ocorrido doeu, principalmente porque meu pai nunca
falara daquilo. Apenas tinha ignorado o fato até então. Isso me fez ceder um
passo para trás e inspirar fundo, porque aquilo só provou que minha família
nunca lutara mesmo por mim. A tentativa de tirar minha vida não devia ser
usada apenas como argumento para provar que ele estava do lado certo da
história, de forma alguma.
Aquilo, no entanto, não me fez querer lutar menos por mim mesma,
como poderia ter feito há algum tempo. Aquela certeza só me fez querer me
importar comigo da forma que ninguém tinha se importado até então.
Algo dentro de mim se aqueceu, como se, pela primeira vez em muito
tempo, eu estivesse mesmo começando a fazer as coisas do modo certo.
Para mim.
— Bem, nisso o senhor tem razão. Algo tinha que mudar. Eu… eu
quero mudar. Mas não nos critérios que somente te importam, não da forma
que estão me forçando a mudar aqui. Eu vou descobrir como viver a vida
que eu desejo, que eu mereço, mas o senhor não vai ter nenhuma influência
sobre isso, e muito menos o Dr. Cole. Eu não estou arruinando o futuro que
deveria ser meu destino, principalmente quando eu sequer sei o que quero.
Ainda. Eu estou apenas arruinando o futuro que o senhor sempre impôs a
mim de modo a nunca deixar escolhas.
Nunca tinha visto meu pai daquela maneira, tão… fora de si. Seu rosto
estava vermelho, e ele tinha retirado seus óculos de uma maneira brusca
para me encarar com aqueles olhos furiosos. Não o temi, porque a perda
permanente da vida que sempre deveria ter sido minha por direito me
assustava muito mais. Eu já tinha me desapossado dela o bastante.
— Nenhuma pessoa deveria colocar outra nesse mundo sem a
consciência de que ela não seria uma extensão da sua existência, e sim
alguém de vida própria, com o direito de ser livre para ser quem é — eu
sussurrei por fim, e, naquele momento, a porta se abriu.
Dr. Cole passou por ela.
— Como estamos? — Ele sorriu antes de se dirigir ao meu genitor. —
Tenho certeza de que viu que Katrina está…
— Que merda você está fazendo aqui, Cole? A menina está fora de
controle. Não foi essa pessoa que eu deixei em suas mãos, sob seus
cuidados. Eu exijo que comece a cumprir a promessa que me fez.
A perda de expectativas na expressão do doutor me fez querer sorrir
por um instante. Não o fiz, no fim. Apenas me virei para meu pai por uma
última vez e disse:
— Tudo bem, mande-o me tratar com mais afinco. Isso poderá, sim,
me despedaçar, mas não do modo que você quer. Se eu não vou ter minha
vida para mim, o senhor também não a terá. Não mais.
Não pedi permissão a nenhum dos dois ao sair da sala. Eu sabia que o
Dr. Cole, decerto com seu ego ferido, iria atrás de mim com muita mais
determinação agora, e, sinceramente, eu temi isso. Porém, seria um preço
justo a se pagar por, pela primeira vez, me impor como deveria ter feito
muito antes.
Bambu-Da-Sorte (Asparagaceae)
Não é um bambu de verdade, pertencendo à família dos
lírios. Atrai prosperidade e também deixa o ambiente
energizado.

Ashley entrou no quarto de uma só vez. Ela geralmente desrespeitava


o toque de recolher, mas, naquela noite, chegou cerca de dois minutos após
ele ser dado. Arqueei as sobrancelhas, surpresa, porém a garota apenas me
ignorou.
Não demorei a voltar minha atenção no livro de História em meu colo,
o qual eu estudava para a prova do dia seguinte. Eu ainda planejava sair
daquele Instituto o mais rápido possível, e, embora a faculdade não
estivesse em meus planos atuais, uma vez que eu não sabia sequer do que
gostava o suficiente para estudar e seguir carreira, manter minhas notas era
uma prioridade para provar que eu estava saudável e preparada o bastante
para voltar à vida real. Aquele, ao menos, era um critério que o Instituto
levava amplamente em consideração.
Escutei Ashley retirar os sapatos e jogá-los com força no chão ao meu
lado antes de soltar o peso do corpo em sua cama de uma só vez. Parecia de
mau humor. Como sempre. Tentei me concentrar no texto à minha frente
com mais afinco, deixando a menina de lado. Isso não foi possível, pois ela
logo resmungou:
— Você deve ser a única pessoa que estuda nessa merda de lugar.
Expirei o ar pesado pela boca, passando de página.
— Vá por mim, nunca fui muito fã de estudos e coisa e tal, e isso é até
um dos motivos pelos quais estou aqui, mas acho que encontrei uma
verdadeira causa para forçar a barra quanto a isso.
— Que é?
— Liberdade.
— E vai fazer o que com ela?
— Ainda não sei. Mas quero muito ter a oportunidade de descobrir.
A garota não me lançou nenhum comentário espertinho, o que eu
estranhei. Franzindo o cenho, desviei o olhar para ela. Parecia pensativa. Eu
hesitei um pouco, mas enfim perguntei:
— E você? Faria o que com ela?
Minha voz a trouxe de volta à realidade. Ela fez uma cara feia ao me
encarar.
— Não é da sua conta.
Voltei-me para meu livro enquanto me deixava murmurar o que me
veio à mente:
— O mundo provavelmente vai acabar quando eu presenciar algum
indício de bom humor de sua parte.
— Vai se foder.
— Você realmente sempre foi tão desagradável assim? Jesus.
Um curto silêncio se fez presente até que ela sussurrasse:
— Ninguém deveria se achar no direito de esperar alguma parte boa de
mim após tudo que eu tenho passado.
O comentário chamou minha atenção.
Dessa vez, observei-a mais seriamente, fechando o livro em meu colo.
Seu maxilar estava cerrado, e suas feições se contorciam em um amargor
estranho.
— Se eu perguntar pelo que você passou, você dirá novamente que
nada disso é da minha conta?
Ashley me encarou de volta e abriu a boca para possivelmente retrucar
mais palavras maldosas, porém ela a fechou em seguida. Pareceu entrar em
um dilema interno, como se ao menos uma pequena parte de si necessitasse
desabafar sobre o que eu achei que ela nunca falava. Pela sua fisionomia, eu
pude supor que a garota não estava fazendo drama algum. Tensão pura
transbordava de sua expressão.
Inspirei fundo e larguei o livro de lado, virando todo meu corpo para
ela.
— Ashley… o que aconteceu com você?
Diante da pergunta mais direta, horror se fez presente em seu olhar.
Pude vê-lo apenas por um par de segundos, entretanto, pois logo a luz do
quarto nos deixou.
— Merda. — Escutei a voz da garota, e em seguida alguns passos.
Ouvi a porta sendo aberta, mas nenhuma luz nos encontrou. O corredor
também estava sem energia. — Mas. Que. Merda.
A porta se fechou em um estrondo, porém, mesmo com o breu intenso,
podia saber que Ashley não tinha deixado o local. Eu ouvia sua respiração
pesada e quase podia sentir receio exalando de si.
— Ei, qual o problema? É só uma queda de energia. Deve voltar em
breve.
— Não, não vai voltar. Já está de noite, os técnicos só vêm para
descobrir o que há de errado amanhã — ela disparou em um estranho misto
de irritação e agonia.
— Tá, que seja. Já é quase hora de dormir mesmo, então…
— Não, você não entende — ela me cortou rispidamente. — Ninguém
vai dormir essa noite.
— Do que você está falando?
— Não vê o que a escuridão total proporciona aos alunos revoltados
daqui? Uma rara oportunidade de agirem sem serem vistos, sua idiota.
— E você não é um desses alunos revoltados? Não deveria estar feliz
ao invés de estar prestes a surtar?
— Nada disso me deixa feliz, porra. Não mais.
— Como assim, Ashley? — eu sussurrei, agora mais séria, porque eu
podia mesmo sentir um certo desespero cada vez mais crescente em sua
voz. — O que você quer dizer com “não mais”?
— Porque… porque muitas coisas terríveis aconteceram na última
queda de energia.
— E quando foi isso?
— Há quase cinco meses. Puta merda, como você pode não saber de
nada?
Muitas coisas terríveis… Cinco meses…
Fiz os cálculos mentalmente e relacionei as pequenas pistas que tinha.
Não. Não podia ser.
— Ashley… George morreu na última queda de energia? — Minha
voz soou falha e hesitante. Seu silêncio foi resposta suficiente para mim.
Naquele instante, coloquei-me de pé, mais alerta do que nunca, e então
um barulho horrível começou a soar de longe. Ele foi chegando cada vez
mais perto, e só então percebi do que se tratava. Alguém… muitos estavam
passando pelo corredor batendo em todas as portas dos dormitórios.
— O que é isso? — perguntei, assustada, conforme os ruídos
arrepiantes se aproximavam.
— Regra número um. Ninguém fica em seus dormitórios.
— O quê? Por quê?
— O que quer que aconteça nessa noite, o culpado não será achado.
Todos estarão espalhados por aí, confundindo os poucos inspetores que
permanecem para o turno da noite.
— Mas o que acontece se ficarmos aqui?
— Você é arrastada para fora à força. E se for pega voltando… você
pode ser lidada como uma traidora pelo grupo ao qual pertence. As presas
nos dias diferentes desse.
A porta então foi aberta, e o barulho de batidas repetitivas soou mais
intensamente. Minha visão tinha se acostumado um pouco com a escuridão,
e pude ver o vulto de Ashley na entrada.
— Ei, o que você vai fazer?
— Encontrar um lugar em que não serei achada dessa vez. E, se quer
um conselho, novata… eu te aconselharia a fazer o mesmo.
Ela não ficou para responder mais perguntas. Meu coração parecia
pulsar no mesmo ritmo acelerado que as batidas soavam, e minha
respiração também se encontrava descontrolada. Por uma fração de
segundo, considerei me esconder debaixo da cama. No entanto, isso era
óbvio demais por ser o único esconderijo possível dentro do quarto. Eu não
tinha muitas opções.
O barulho do corredor chegava cada vez mais e mais perto, e eu estava
sem tempo. Já estava com a blusa velha, larga, e que chegava até metade de
minhas pernas que usava para dormir, mas não tinha tempo para me trocar.
Saí correndo no que eu senti ser o último segundo, e, quando pisei no
corredor, pude ver que uma certa massa do que podia ser quase duas dúzias
de jovens se aproximando conforme abriam as portas dos dormitórios.
Todos seus rostos eram escondidos pelo breu do corredor fechado. Disparei
com meus passos descalços para longe deles e virei para a direita no final
do corredor. Batidas também soavam no corredor paralelo ao de meu
quarto, então não segui para lá, embora tivesse que dar um jeito de
encontrar as escadas para o primeiro andar, que era um labirinto ainda mais
confuso que o segundo andar. Encontrei algumas pessoas que também
pareciam fugir, e as segui. Logo encontramos um corredor que já tinha sido
esvaziado, a levar em consideração as portas abertas, então eu o percorri
com a maior agilidade que pude. Passei algumas pessoas e esbarrei
fortemente em outras, assim como também fui empurrada diversas vezes até
encontrar as escadas.
— Ei, voltem para seus quartos agora, ou vamos tomar providências
para todos de uma vez logo pela manhã — um dos inspetores gritou pouco
depois que eu passei por ele. Ele estava perto de uma larga janela, sendo
iluminado pela fraca luz da noite quase que nublada por completo. O temor
em sua voz não entregava autoridade nenhuma.
Levei a mão à boca quando, pelas silhuetas, vi alguém acertar o
cotovelo no rosto do homem. Seu grunhido de dor ecoou pelo local, e eu
disparei pelos degraus ainda mais agitada.
Meu instinto ao chegar ao primeiro andar foi procurar pela saída. Eu
talvez pudesse correr pela floresta. Entretanto, quando comecei a me
aproximar do fim do corredor principal, percebi que já havia um grupo de
pessoas batendo repetidamente na larga porta de madeira. Imediatamente
me lembrei da minha primeira impressão diante de sua imagem. Ela não
fora feita para manter pessoas de fora e sim… para mantê-las dentro.
Não foi preciso mais para que eu girasse meus calcanhares e corresse
na direção contrária. Não conseguiria nada ao tentar escapar daquele
potencial abatedouro. Gotas de suor começaram a correr por minha nuca,
grudando em meus cabelos, e meus pulmões começaram a arder, mas não
parei. Em todos os cantos eu encontrava perigo à espreita, embora a maior
parte fugisse como eu. Garotos gritando não por medo, e sim por vitória.
Alguns quebravam o que viam pela frente, outros brigavam entre si, como
se estivessem esperando muito tempo por isso, e também havia os que
destruíam quaisquer lanternas que pudessem aparecer nas mãos dos
inspetores que corriam de um lado para o outro.
O caos estava instalado.
Enquanto corria, pensei em Helen, se ela estaria bem. Foi estranho ter
alguém com quem me preocupar, e isso aqueceu meu coração apenas por
uma fração de segundo. Assim como o pressentimento de que eu também
passaria por sua mente em algum momento. Imaginei que ela estaria ok, já
teria achado algum lugar para se esconder, porque não era a primeira vez
que enfrentaria uma noite assim.
Também pensei em Hayden. Foi inevitável. No entanto, não me
preocupei por um segundo sequer. Porque ele seria um dos predadores
daquela noite. Decerto tivera sido na última também. Da pior maneira
possível.
Então, no fim, tudo com o que me preocupei foi comigo mesma. Eu
precisava disso.
Conforme passava pelos inúmeros corredores, tentei abrir algumas
portas das salas de aula, mas não dei sorte com nenhuma; todas que tentei
estavam trancadas. Estava tudo tão escuro que sequer sabia direito os rumos
que pegava, mas, após o que me pareceu ser uma eternidade, cheguei ao
refeitório. Esbarrei em alguém na entrada, e, como se todos tivessem
tomado a versão mais primitiva de si, isso foi motivo o suficiente para uma
retaliação. Ou a tentativa de uma.
Felizmente, vi o vulto de uma mão vindo até mim, e me desviei rápido
antes de voltar a correr. Eu precisava arranjar um esconderijo. Não tinha
quase ninguém no refeitório, porque ali era o local que havia mais janelas, e
estava muito bem iluminado. Por isso mesmo, também não permaneci, e
consegui achar a cozinha. Três pessoas pareciam roubas coisas do lugar,
então segui reto, mesmo que não soubesse para onde. Nunca tinha estado
ali.
Forcei entrada na primeira porta do corredor dos fundos, mas algo
pesou contra ela. Não estava trancada, parecia apenas que alguém já estava
ali, se escondendo. Segui reto, e então encontrei uma porta metálica. A
empurrei com uma força excessiva, e o cheiro que encontrou minhas
narinas de imediato foi torturantemente desagradável.
Pisquei diversas vezes, tentando compreender o que estava ao meu
redor enquanto andava alguns passos adiante, lançando minha atenção a
todo canto. Tinha… coisas penduradas. Mesas metálicas para muitos cantos
e o lugar era gelado ao ponto de fazer toda minha pele nua pelo pijama
arrepiar.
No meio do extenso lugar, manchas chamaram minha atenção,
destacando-se do piso branco. Agachei e encostei um dos meus dedos ali
antes de levá-lo até o nariz, porém o afastei instantaneamente. Tinha um
cheiro metálico, um cheiro de… sangue.
Olhei para tudo que estava pendurado ao meu redor.
Eu estava em um… frigorífico.
Soltei um chiado assustado, e só então percebi que as manchas eram,
na verdade, letras.
Tive que semicerrar os olhos para separar as manchas escuras do piso
claro.
“Não somos esses anima”
Animais. Alguém queria ter escrito animais. Não estava… finalizado.
Ainda tinha alguém ali. E tinha usado sangue de animais mortos para
dar seu recado. Jesus Cristo.
Levantei a cabeça subitamente, já pronta para dar o fora dali, porém
era tarde demais. Alguém me agarrou pelos cabelos, e eu percebi que a
pessoa já estava diante de mim. O garoto. Podia perceber que seus cabelos
eram curtos e claros, talvez loiros ou ruivos, e seu porte era muito maior
que o meu.
Ofeguei enquanto sentia seu olhar queimar em mim, apesar do relativo
breu.
— Eu… eu já estava saindo. Eu juro, eu não sabia que tinha alguém
aqui — soprei, atropelando as palavras.
— Você não vai. Não até eu saber que não vai me delatar.
— Eu não vou. Eu nem estou te vendo direito, é sério. Eu vou te
deixar terminar o que começou, eu vou…
— Eu não posso saber disso. Todos nessa merda de hospício são uns
mentirosos do caralho. Não posso confiar em ninguém, porra — ele gritou,
e eu entendi que ele não me deixaria ir tão facilmente. Foi então que agi por
instinto.
Eu virei meu rosto e mordi o antebraço cuja mão ainda agarrava meu
cabelo. Ele urrou de dor e eu disparei para fora. Mesmo depois de chegar ao
corredor pelo qual tinha vindo, eu não estava livre. Porque eu ouvi a porta
abrir e se fechar atrás de mim, apenas poucos segundos depois de eu ter
passado por ela.
Corri o mais rápido que pude, porque eu sabia que ele também seria
ágil, a levar em consideração seu grande porte. Cheguei ao refeitório, e era
impossível me esconder ali por conta da iluminação. Minha chance seria
chegar ao corredor, que era mais escuro e onde havia mais gente. Eu
poderia me confundir com elas.
Consegui, de fato, alcançar o local, porém no meu segundo passo, fui
agarrada pelo braço. Tentei me desvencilhar, porém a força do garoto foi
mais bruta. Estava preparado dessa vez, caso eu viesse a reagir.
Foi então que um berro inesperado se alojou em minha garganta,
ecoando por todo o corredor principal um segundo antes que eu tivesse de
volta ao refeitório. Eu tinha chamado por Hayden, quase que
inconscientemente.
Fui jogada bruscamente para trás, e minhas costas se chocaram
fortemente contra uma das mesas do lugar. Naquele momento, pude ver
melhor o rosto do garoto, assim como ele pôde ver o meu.
— Acho que agora você saberia me identificar, estou errado? — ele
disse asperamente enquanto se aproximava sem muita pressa, sabendo que
eu estava cercada. Ainda assim, cheguei mais para trás.
— Não há porque eu ter que te identificar, tá legal? Nós… nós
estamos do mesmo lado aqui.
— Não há um mesmo lado aqui, garota. Estão todos por si.
— Mesmo se quisessem ir atrás de quem fez… aquilo lá, se de alguma
maneira chegassem a mim, eu não diria quem foi o responsável, ok? E o
estrago amanhã vai ser grande demais para irem atrás de todos que
causaram cada coisinha catastrófica.
— Acredite, eles vão — rebateu com certeza. — E como eu disse, eu
não posso confiar em você. Eu sei quem você é. É a novata que andou
causando uma tremenda bagunça por aí. Acha que não falam de você? Da
pessoa que voltou coberta de sangue da floresta, da única menina que
fizeram que enfrentasse o pior de todos os trotes. Da única pessoa que
conseguiu despertar algum explícito senso de empatia do escolhido do
doutor, pelo motivo que seja. Não, eu realmente não acho que você seja
alguém de confiança por ter sido uma exceção a tantas regras.
Joguei uma cadeira nele, e ele desviou a atenção de mim por um
momento. Aproveitei aquilo para me misturar à sombra de uma das três
paredes do local.
— Vamos, isso está ficando cansativo, novata — ele cuspiu, mais
irritado agora enquanto disparava o olhar para todos os lados. — Pare de
fugir, vamos acabar logo com isso. Só quero te dar uma pequena
comprovação de que também posso ser destrutivo caso provocado. Você
deve temer a mim tanto quanto teme a inspetora Foy ou o Dr. Cole.
Continuei andando o mais rápido que podia, porém mantendo a maior
quietude possível. O barulho dos corredores estava ao meu favor,
felizmente. Colada à parede e sempre de olho nele, continuei indo em
direção contrária para onde quer que ele fosse. Até que ele também sumiu
pela penumbra do local.
Xinguei mentalmente, tentando manter meus ouvidos mais alertas.
Ainda assim, continuei me movimentando, porém até ser agarrada por trás.
Uma mão tampou minha boca ao mesmo tempo que outro braço contornou
minha cintura ao me puxar contra uma estrutura sólida. Contra um corpo.
Um calafrio impiedoso percorreu toda minha espinha por uma fração de
segundo, mas cessou assim que um cheiro familiar adentrou em minhas
narinas.
Menta e ervas.
Parei de contorcer, e então ouvi um sussurro em meu ouvido direito:
— Olá, pequena aberração.
Sua mão deixou minha boca, descendo até encontrar meu pescoço.
Não o envolveu em um aperto, apenas o espalmou para me puxar mais
contra si conforme continuávamos a andar para trás vagarosamente, como
se fôssemos somente um corpo. Sua outra mão segurou meu quadril pelo
tecido fino de meu pijama, esses dedos afundando na carne dali com uma
força maior que a ideal.
— Me diga, por que está fugindo? Não seja tão decepcionante.
— Hayden…
— Shhh — soprou ainda em meu ouvido. — Não se comporte como a
caça. Você não quer mais ser uma, e essa noite está te dando a oportunidade
de você provar a si mesma que é capaz. Confie em você mesma, como eu
confio.
Minha garganta oscilou sob seu toque.
— Foi um golpe de sorte eu ter estado por perto quando você chamou
por mim, sabe? Mas a sorte nem sempre está ao nosso favor. Na verdade,
ela raramente está, e nós dois sabemos disso mais do que ninguém. Nunca
devemos confiar nela mais do que confiamos em nós mesmos.
Tensionei a mandíbula quando me perguntei aonde ele queria chegar.
— Eu estou aqui, de fato, mas você ainda está por si só, Katrina. Você
não precisa de mim, não precisa de ninguém. Tente finalmente reconhecer
isso por nós dois, sim? Ter qualquer um ao seu lado é uma escolha sua, não
uma necessidade. De forma alguma.
— Hayden, não…
— Embora esteja absolutamente deliciosa nesse pijama, você não é a
presa aqui, e sim a predadora. — Sua mão acariciou minha coxa nua por um
momento, deixando-me ainda mais alerta, mais… possessa. — Mostre para
aquele imbecil que está aqui para atacar, não para correr. Mostre porque
chamou a atenção do escolhido do doutor, porque voltou ensanguentada da
floresta e porque foi escolhida para o pior dos trotes. Mostre porque você é
uma exceção à regra, meu bem.
E então, Hayden sumiu como se nunca tivesse estado ali.
Isso foi apenas poucos segundos antes de eu ser agarrada outra vez,
mas não por Hayden mais, e sim pela minha… presa.
— Te achei, novata. — Ele me virou para si e me envolveu em um
mata-leão, e eu realmente me apavorei ali. Eu o temi. Mas só por um
segundo. Porque, embora eu estivesse odiando a decisão de Hayden de me
deixar, no fundo eu sabia que ele estava certo. Eu enfim tinha a
oportunidade perfeita para mostrar que eu não só queria como podia cuidar
de mim.
Ao menos foi o que eu disse para mim mesma. Foi a última vez ali que
me deixei pensar ao invés de simplesmente agir.
Levei meu cotovelo para trás com força na expectativa de encontrar
sua cabeça. Não o atingi na primeira tentativa, mas na segunda, sim. Ele me
soltou, porém não me deixou a oportunidade de ir para longe, como mais
cedo. Não que eu pretendesse fugir mais.
O garoto grunhiu e segurou meu maxilar com força ao jogar minha
cabeça na parede. Honestamente, aquilo doeu ao ponto de meus olhos
lacrimejar, mas não parei, porque, logo ao meu lado estava uma bancada
com as bandejas metálicas onde serviam nosso almoço. Peguei uma e a
choquei em seu rosto com toda força que pude. Dessa vez, o garoto
cambaleou para trás, levando a mão até seu rosto.
— Sua puta. Eu vou…
Aproximei-me e lhe dei um chute entre as pernas. Exatamente como
Hayden um dia me instruíra. O garoto se calou na hora, parecendo se
atormentar com a dor, e eu aproveitei para virá-lo de costas e empurrá-lo
contra a mesa mais próxima, derrubando um vaso de bambu-da-sorte no
caminho e voltando para uma melhor iluminação. Segurei seus cabelos
justamente como ele segurara os meus e o deitei na superfície, fazendo-o
chiar mais uma vez. Inclinei-me, apenas para que ele pudesse ver meus
olhos.
— Eu não vou te machucar mais, apesar de ter a possibilidade, me
ouviu? Você não é meu inimigo aqui, embora tenha agido como um. Mas
não pense que, na próxima vez que tentar machucar alguém assim,
principalmente uma garota, vai sair ileso, porque eu irei atrás de você,
babaca — eu cuspi de modo… impensado. Foi bom ameaçá-lo, na verdade.
Eu realmente esperava, entretanto, que aquilo fosse ser suficiente. — Agora
vai acabar o que você começou lá no frigorífico. Mas comece a fazer jus ao
que escreveu, pelo menos. Não somos mesmo animais para ficar nos
atacando assim. Isso é apenas o que o verdadeiro adversário quer que
pensemos.
Soltei-o de uma vez e lhe dei as costas, tomando o caminho da saída
sem nenhuma pressa, diferentemente de antes.
Pude ver a silhueta de Hayden ao lado da porta que dava para o
corredor, e a iluminação era boa o suficiente para que eu visse a expressão
irritantemente satisfeita em seu rosto. Seus braços nus estavam cruzados
sobre o peito, e seus cabelos, desgrenhados como sempre. Sua pele estava
ainda mais pálida naquela noite.
Ele bateu três palmas lentas quando me aproximei, e seu sorriso
realmente demonstrou aqueles dentes malditamente alinhados.
— Fácil como tirar doce de criança.
— Não vai se acostumando com isso. Embora eu não queira mais ser a
presa, não acho que isso automaticamente signifique que eu precise ser a
predadora. Essa foi só uma exceção.
Um riso genuinamente divertido chegou aos meus ouvidos, e Hayden
passou a caminhar logo ao meu lado enquanto eu me dirigia ao corredor.
— Se você soubesse o quão excitante fica com essa personalidade, não
estaria dizendo isso.
— Isso provavelmente importa mais a você do que a mim.
— Honestamente? Você meio que me fascina em todas suas versões,
pequena aberração, então talvez não faça tanta diferença assim. Mas me
faça um favor, transforme essa noite inteira em uma exceção, sim? Porque
ela está apenas começando.
Gerânio (Geraniaceae)
Extremamente perfumada, fácil de cuidar e capaz de
florescer qualquer época do ano. Pode significar carinho,
harmonia e respeito.

— Estávamos te esperando há mais de meia hora, cara. Onde é que


você… — Brad interrompeu a si mesmo quando a luz de sua lanterna
encontrou Katrina ao meu lado. — O que ela está fazendo aqui?
— Ela está comigo.
— Isso eu estou vendo, mas…
— Não há um “mas”. Eu a trouxe, e ela vai permanecer.
O garoto trincou o maxilar, nada satisfeito, e se aproximou um pouco.
— Você confia mesmo nela? — sussurrou, e Katrina expirou um ar
pesado pela boca, deixando claro que estava escutando tudo, porém não
retrucou. Queria ver o que eu lhe responderia.
Eu também acabei por me aproximar um passo de Brad, apenas para
dizer com uma sinceridade brutal e inevitável:
— Mais do que eu já confiei em qualquer um. — O garoto não
pareceu gostar de ouvir aquilo. Eu não o culpava, Brad já tinha feito muito
por mim, e ele realmente tinha minha fé, assim como minha lealdade
quando ela fosse necessária. Mas Katrina… ela não tinha a malícia que nós
poderíamos ter. E isso por si só era o suficiente para que eu não duvidasse
dela por um segundo sequer. — E, pelo bem da credibilidade que você
também tem de mim… Não fale mais de Katrina como se ela não estivesse
aqui. É apenas um pedido. Por enquanto.
Brad apenas desviou o olhar para Katrina, mas não disse mais nada.
— Podemos ir logo? Estou ansioso pela diversão — David murmurou,
e eu me deixei sorrir.
— Tudo bem, vamos — respondi, e os outros também sorriram.
Deixei que eles fossem na frente, agora com a lanterna apagada, e Katrina
me acompanhou.
Ainda estávamos no primeiro andar, e, ao tomarmos rumo ao nosso
destino, dobramos o corredor principal. Muitos ainda passavam correndo
por ali, e havia uma certa histeria espalhada por muitos cantos. O lugar
estava caótico, e, sinceramente… eu gostava disso. Não aceleramos nosso
passo, não como a maior parte dali. Não tínhamos do que fugir naquela
noite. Muito pelo contrário.
— Ei. O que exatamente vamos fazer? — ela perguntou, a curiosidade
comum dando as caras.
— Você vai ver em breve, pequena aberração.
— Os outros parecem saber perfeitamente para onde estamos indo. Por
que eu também não posso?
— Porque, por mais que eu de fato confie em você, ainda gosto de te
testar. Estou mexendo com sua imaginação, não estou?
— Você é um idiota.
Alarguei meu sorriso.
— Sim, eu sou. Mas você sempre soube disso.
— Sobre isso, eu não posso discutir.
Quase dez minutos mais tarde, paramos apenas para ter alguma noção
da movimentação. Katrina tentou me passar para ver o que observávamos,
mas eu a barrei com o braço antes que ela chegasse muito longe.
— Ei, sossega. Não queremos ser vistos — eu disse em um tom baixo,
e, mesmo diante da precária iluminação, pude vê-la cruzar os braços
esguios cobertos pelo tecido fino da camiseta larga e clara que usava para
dormir.
— Então me fale o que estamos fazendo aqui.
— Eu ainda acho que ela… — Brad começou, mas se corrigiu
rapidamente: — que você tem uma enorme capacidade de estragar tudo.
— Eu ajudei vocês quando incendiaram o prédio do pai de seu amigo,
né? E se me lembro bem, me saí muito bem.
— Acho que ela tem um bom argumento. — A voz de David chegou
aos nossos ouvidos.
— Será que dá para parar, todos vocês? — eu disse, agora mais
impaciente, e puxei Katrina para mais perto para sussurrar: — Aquela ali…
é a entrada para o porão.
Naquele segundo, a larga porta de madeira se abriu, e dois inspetores
saíram de lá às pressas.
— Ei, vocês… Parem aí — um dos inspetores, o que segurava a
lanterna, gritou para alguns garotos que rabiscavam a parede com lápis no
corredor perpendicular ao que estávamos. Eles saíram correndo, atraindo os
homens consigo para longe.
— O que tem ali no porão? Por que aqueles inspetores saíram dali? —
Katrina sussurrou.
— É procedimento padrão que os garotos pegos participando de um
possível levante sejam levados ao porão e mantidos lá até segunda ordem.
Como o terceiro andar é onde há os equipamentos de tratamento mais caros,
diversos relatórios e estudos, eles não arriscariam levá-los para lá. Alguém
poderia se soltar e fazer uma tremenda bagunça. O porão é onde há espaço
suficiente para todos. Um lugar sem riscos.
Outra inspetora saiu de lá às pressas. Ela segurava uma vela e uma
seringa. Imaginei que tinha algum sedativo ali, caso fosse necessário. Essa
empurrou a porta o máximo que dava, e quando ela seguiu em frente,
também no corredor perpendicular, Brad se aproximou um pouco dali. Ele
voltou no segundo em que a porta bateu.
— O lugar não parece tão bem iluminado, deve ter, no máximo, três
lanternas ali. Imagino que não tenha muitos inspetores também. Acho que
nós damos conta — ele constatou.
Um canto de meus lábios retorceu para cima.
— Eu sei que damos — afirmei.
— Nós damos conta de quê? — Katrina perguntou ao meu lado, mais
irritada. — Aliás, eu ainda não tenho certeza se quero fazer mesmo parte
desse “nós”. Sequer sei o que vocês querem ou… por que eu estou lhes
seguindo.
Soltei um riso nasalado.
— Nós, Katrina, soltaremos os garotos que estão sendo mantidos ali
apenas por aproveitarem a pequena liberdade que lhes é proporcionada
somente de tempos em tempos. E você não está exatamente nos seguindo, e
sim me seguindo. Não acho que queira que eu lhe dê a resposta para isso
perto dos meninos.
David soltou um risinho, e quase pude sentir Katrina revirando os
olhos. Ela, entretanto, não contestou mais nada. Soltar aqueles garotos era
um argumento justificável para que ela ficasse, para que continuasse a
participar daquele caos. Por isso, ela expirou o ar pesado pela boca e disse:
— E qual o plano, hein? Vão me usar de novo? Servir como a isca,
como na última vez?
Estalei a língua.
— De forma alguma, pequena aberração. Você entrará conosco, e terá
exatamente a mesma tarefa que cada um de nós — esclareci, e David me
deu a mochila que trazia consigo sem que eu precisasse pedir. Abri o zíper.
— Ah, é? E entraremos todos juntos pela porta da frente simplesmente
desafiando cada funcionário? É óbvio que eles estão vigiando a entrada.
Belo plano — ironizou, e eu apenas peguei sua mão e a abri antes de
colocar um canivete ali.
— Vamos entrar todos juntos, sim, mas acontece que não usaremos a
porta da frente.
— O quê?
— Vamos logo.
Eu disse, agora tomando a dianteira. Segui reto, para quase uns
cinquenta metros de distância do ponto onde estávamos. Não quis arriscar
acender a lanterna, então apenas comecei a tatear pelo local até encontrar
um armário de madeira empoleirado pelo corredor escuro, que eu sabia
ficar ao lado de uma mesa onde um vaso com gerânios descansava.
Estranhei que ainda não tivessem derrubado a mesa com a planta. Eu
também não ousei fazê-lo. Arrastei-o apenas o suficiente para que
pudéssemos entrar pela passagem que a madeira oca, disfarçada também
pelo papel de parede usado em todo casarão sobre a madeira.
— Brad, vá na frente, mas não desça as escadas ainda. Só acenda a
lanterna quando todos estivermos dentro — eu disse quando afastei, com
alguma dificuldade, a porta deslizante. Ele me obedeceu sem dizer nada,
assim como David. E ao contrário de Katrina, claro.
— O que é isso?
Soltei um suspiro pesado e a puxei pelo braço para dentro, já fechando
a porta por trás de mim. Brad acendeu a lanterna, iluminando a estreita
escada de concreto que havia embaixo de nós dentro de um ambiente
completamente fechado. O lugar fedia a mofo, e teias de aranha se
estendiam por cima de nossas cabeças. Eu não era o único que conhecia
aquele lugar. O diretor daquela imundice também conhecia, ele era o único
que tinha a planta original do casarão, porém nunca tinha achado utilidade a
ele, então preferiu ignorá-lo. Enquanto eu, já precisara usar a passagem
algumas vezes.
— Hayden… — Katrina sussurrou, agora olhando bem no fundo dos
meus olhos. — Como você conhece essa passagem?
— E isso importa?
— Sim. Muito — respondeu sem sequer hesitar. Gesticulei com a
mão, entediado.
— Conversa para outra hora — respondi, e me virei para todos. — No
fim da escada haverá uma porta como a pela qual entramos. Também terá
uma prateleira em sua frente, então teremos que movimentá-la um pouco.
Isso fará barulho e atrairá a atenção dos inspetores, então teremos que ser
rápidos. Entraremos rápido e nos espalharemos a partir de então. Vocês
sabem o que fazer depois.
— Eu, não — Katrina resmungou. Sorri.
— Então entra no jogo.
Desci na frente depois de pegar a lanterna de Brad, e só a acendi no
final das escadas. Abri a porta como abri a última, e tentei ao máximo não
fazer barulho. Uma iluminação melhor nos encontrou, mas nem de longe
boa o suficiente para que alguém nos visse com facilidade. Inspirei fundo e
arrastei a prateleira o mais rápido possível. Ela rangeu sob o chão, o que fez
com que alguém lá dentro murmurasse:
— Que barulho foi esse?
— Não sei. Parece ter vindo lá de trás. Vá olhar.
Já era tarde. Todos tínhamos nos separado. O porão era grande, com
diversas mesas e cadeiras estragadas empoleiradas pelos cantos, assim
como outros móveis usados nos dormitórios. No centro do local, havia uma
coluna de madeira de cerca de três metros de altura em cima de um altar
quadrado de três andares. Eu estava habituado com ela, mais do que seria
considerado ideal.
Era justamente pela região central que havia pouco mais de uma dúzia
de alunos sentados, com ambos braços presos atrás de seus corpos por
algemas de plástico descartável fixos em seus pulsos. Todos, sem nenhuma
exceção, estavam machucados. Alguns, eu diria, por brigas físicas entre si
ao resolver assuntos pendentes com algum colega, mas a maior parte
decerto fora machucada por aqueles funcionários. Havia nove deles. A
inspetora Foy estava entre eles, trajando uma camisola tão escura quanto
sua alma. Apenas três, entretanto, tinham lanternas, enquanto sete velas
estavam espalhadas em cima de algumas mesas, aos cantos.
— Não encontrei nada ali — o inspetor que foi conferir a fonte do
barulho avisou ao voltar. A inspetora soltou o ar pela boca, impaciente.
— Os canos sempre rangem por aqui. Não é nenhum…
Apaguei a vela mais próxima de mim, chamando a atenção de todos os
alunos, assim como dos funcionários. Sorri. Eu acabara de dar a largada.
Um homem, de uniforme branco que revelava sua profissão de
enfermeiro, pegou seu cacetete enquanto desviava a lanterna para a direção
da vela apagada. Eu já estava longe dali, observando-os de trás de um
armário arruinado por cupins.
— Céus, isso não é nada, não sejam patéticos. Controlem-se — a
inspetora disparou, assumindo toda a autoridade que achava que tinha. —
Eu vou acendê-la de novo.
A inspetora não chegou a dar três passos antes de outra vela, do outro
lado de onde eu estava, fosse apagada. Um outro inspetor sibilou um
palavrão, e todos os funcionários assumiram uma postura alerta, assim
como Foy. Enquanto isso, alguns alunos jogados no chão sorriram.
Perto da parede à direita da minha, Katrina chamou minha atenção
atrás da vela, apenas uma fração de segundo antes de apagá-la. A menina
tinha mesmo entrado no jogo. Não esperava menos dela.
— Ei, quem está aí? — um homem gritou. Todos os funcionários se
encontravam de costas para Brad, que estava atrás de duas velas que não
tinham sido apagadas. Aproveitando a oportunidade, ele jogou um canivete
no meio do grupo de alunos. Uma garota a escondeu com o pé rapidamente,
empurrando-a para um menino. Ele a pegou e começou a cortar sua própria
algema. — Porra, que barulho foi esse?
— Calem-se — a inspetora Foy ordenou, pegando uma seringa de uma
das mesas. — Quem quer que esteja aí, saiba que não vai se livrar disso.
Apareça de uma vez para acabarmos logo com isso.
O menino com o canivete se soltou e passou disfarçadamente o objeto
para outra pessoa. Apaguei a quarta vela, atraindo a atenção de todos para o
local, e Katrina, que estava próxima de um menino que devia ter quinze
anos de idade, se agachou e cortou a algema dele silenciosamente. De
alguma maneira, senti um coração que não pensava que tinha até pouco
tempo atrás se encher de orgulho.
Boa garota.
Era esperta o bastante para ser uma de nós. Não que ela quisesse, no
fim. Mas era capaz.
O adolescente se levantou e saiu correndo para um canto escuro,
confundindo os funcionários, que se deram conta da movimentação mais
explícita. No entanto, eles não tinham ideia de onde tinha vindo, e lançavam
a luz fraca de suas lanternas para todos os cantos. O terror em seus rostos
era prazeroso demais.
— Ouça bem, você vai levar a pior das punições caso não apareça em
três segundos, criança — a inspetora Foy gritou, segurando a seringa com
uma força excessiva e sua lanterna com a outra. — Eu vou começar a contar
agora, entendeu? E que Deus te ajude caso não mostre sua maldita cara
nesse curto período de tempo. Três.
A quinta e sexta vela foram apagadas ao mesmo tempo, e David soltou
uma garota ao mesmo tempo que um soltou a si mesmo com o canivete de
Brad.
— Puta que pariu, o que está acontecendo? — um inspetor murmurou,
atordoado.
A inspetora continuou, resoluta:
— Dois.
Katrina entregou seu canivete para um garoto já solto, que cortou
agilmente a algema de outras duas pessoas à sua frente. O outro canivete
entre o grupo foi usado para soltar mais três. Uma gargalhada ecoou do
outro lado do salão, que eu tive certeza ser de Brad, atormentando os
predadores que experimentavam ser as presas. Que viviam como nós, ainda
que por poucos minutos.
— Que se foda, eu vou dar o fora daqui — um dos funcionários, que
não parecia ter mais de trinta anos, sussurrou e correu para a escadaria que
levava até a porta principal. Mais dois o seguiram. O terceiro, contudo, foi
impedido por mim antes de chegar ao primeiro degrau. Segurei sua cabeça e
a bati no corrimão, deixando-o desnorteado. Ele só foi recuperar a razão
segundos mais tarde, e subiu as escadas com passos incertos e apressados,
gritando de medo.
— UM — a inspetora berrou tremulamente ao ouvir o forte baque, e
foi a minha vez de rir. O desespero em sua voz foi impagável. Naquele
momento, todos já estavam soltos. Eles se levantaram em conjunto, e
metade também correu para fora, decerto para arranjar mais confusão, mas
a outra metade ficou para punir quem tinha lhes punido por nada.
A iluminação agora era quase inexistente, pois dois dos funcionários
que estavam com as lanternas já tinham saído, mas eu ainda podia ver
perfeitamente o rosto da inspetora no meio daquela anarquia. Fui até lá.
A mulher se deu conta de minha presença no segundo em que me
aproximei de suas costas, e ela tentou se virar para injetar o líquido de sua
seringa em mim. Segurei sua mão antes que ela o fizesse e a mantive de
costas para mim. A mulher soltou um grunhido, e eu aproximei meu rosto
de seu ouvido para sussurrar, de forma que ela não ouvisse perfeitamente
minha voz:
— Sabe, depois do doutor, você é a pessoa que mais desprezamos em
todo esse Instituto, o que diz muito sobre você. Você, melhor do que
ninguém, conhece cada passo que o maldito diretor dá, e não há nada mais
repugnante do que cubri-los. Você ainda vai receber o que merece, mas não
serei eu quem lhe darei isso. Tudo que você faz aqui vai se virar contra si,
de uma forma ou de outra, e eu estarei rindo, observando enquanto tudo te
consome pouco a pouco. — E, sem esperar por mais, levei sua própria mão
até seu pescoço e, com seu polegar embaixo do meu, ela lhe injetou o
veneno que pretendia usar em nós. Ela ficou inconsciente não mais que dez
segundos mais tarde.
Quando a soltei, percebi que, ao meu redor, apenas David, Brad e
Katrina tinham restado, e dois outros funcionários desmaiados no chão.
Virei-me para Brad e David.
— Tirem os três daqui e os amarrem ao corrimão das escadas que
levam ao segundo andar. Quero que os alunos vejam o estado decadente que
estão quando forem para seus dormitórios, assim como esses inspetores
veem o nosso em todos os outros dias e nunca movem um dedo para mudar
a situação. Andem, eu não acabei aqui.
Brad comemorou, feliz o bastante até para lançar um “você até que me
surpreendeu, novata” para Katrina, que apenas revirou os olhos.
Em dois minutos, os garotos já tinham arrastado o corpo dos três
escadaria acima, fechando a porta por trás de si. Duas lanternas sobraram
no porão, iluminando bem Katrina em sua camiseta fina. Ela estava
tentadora.
Sempre era.
— Bom trabalho, pequena aberração — eu soprei enquanto pegava a
mochila que Brad tinha me deixado e tirava um serrote dali.
Ela ignorou minha parabenização cem por cento sincera. Uma pena.
— Ei, o que diabos é isso? O que você vai fazer?
— Vou cortar essa maldita coluna — eu respondi, subindo os dois
degraus da coluna de madeira no centro do porão para começar a serrá-la,
agachado. Katrina expirou o ar pesado pela boca, porém subiu atrás de mim
para segurar a madeira a fim de me ajudar.
— Por que você quer acabar com ela? Para que ela serve? — ela
disparou, entretanto, e eu continuei serrando. — Hayden, sério… Ela é
usada para quê? Você já veio até aqui antes?
Continuei com meu silêncio, concentrado em minha tarefa, e ela
grunhiu, impaciente.
— Não vai me responder? — perguntou após pouco tempo.
— Você faz perguntas demais, algumas desnecessárias. Escolha uma
que valha a pena ter resposta, e eu posso cogitar te dar uma.
Naquele momento, consegui cortar toda a madeira, e Katrina soltou-a.
Ela caiu no chão em um baque que foi música para meus ouvidos. Sorri e
me coloquei de pé, deparando-me com a garota bem diante de mim. Não
tinha cedido. Na verdade… parecia tensa.
— Uma pergunta? Uma pergunta importante?
— De preferência.
Katrina engoliu em seco. Parecia quase… temerosa em fazer a única
pergunta realmente significativa que ocupou sua mente. Seus olhos, os
mesmos de um castanho tão intensos e penetrantes, me encararam
fixamente. Sua respiração era pesada, acariciando minha pele diante de
tamanha proximidade. Perdi-me um pouco nela até que ela tomasse a
devida coragem para sussurrar:
— Foi você? Foi você quem matou George?
Inclinei um pouco a cabeça para avaliá-la.
— Ashley deu a entender que ele morreu na última queda de energia, e
parecia… apavorada.
Ela tinha motivos para estar mesmo.
— Você acha, Katrina? Acha que eu o matei?
— Você teria sido capaz — foi o que ela respondeu. — Você… você
tem segredos, Hayden. Segredos demais, isso é óbvio. Sabe de coisas que
um simples estudante desse Instituto não deveria saber, e é habilidoso. Sabe
se defender, é muito inteligente. Você seria esperto o bastante para matar
alguém e se livrar da culpa.
— Responda à minha pergunta, Katrina — eu sussurrei de volta. Ela
fechou a boca, tomando o ar que parecia ter perdido. Ela ponderou, e,
honestamente, aquilo não me ofendeu. Nem poderia.
— Não. Não acho — admitiu enfim, contudo ainda estava um pouco
tensa.
Assenti uma vez.
— Isso deveria lhe ser suficiente — murmurei, passando por ela para
guardar o serrote.
A conversa, entretanto, aparentemente ainda não tinha chegado ao fim.
— Essa não é uma resposta apropriada.
— É a melhor que posso dar.
Katrina voltou a se aproximar, e a encarei mais seriamente.
— Como você conhecia a passagem lá em cima? — lançou-me mais
uma pergunta, cruzando os braços. Parecia estar avaliando de quais
perguntas obteria uma resposta. Fitei-a fixamente.
Eu entraria na brincadeira para ver até onde iríamos.
— Eu sou o aluno mais antigo daqui. Sei de muitas coisas sobre esse
Instituto que vocês não sabem.
— Quando você ingressou no Instituto?
— Há muito tempo.
— Quem te colocou aqui?
— Meu genitor, obviamente. Após a morte de minha mãe.
— Não sente falta dele?
Soltei um riso nasalado.
— Não. Certamente não.
— Não gosta dele?
— Ele é o responsável por absolutamente todos meus fantasmas,
Katrina. Por me deixar apodrecendo nesse Inferno. Então me diga, como eu
poderia sentir algo por ele a não ser a mais genuína repulsa de todas?
— E você consegue chegar a gostar de alguém? — disparou, e eu
semicerrei os olhos. Ela não me deu tempo de lhe responder. — Ashley. Ela
teve uma conversa muito interessante comigo. Se preocupou com você.
Vocês já tiveram algum relacionamento?
— Nós já transamos, se é isso que quer saber. Mas não a toco há
meses.
Percebi que sua garganta oscilou.
— Você também se preocupa com ela?
— Ela está passando a noite em meu quarto. Ninguém ousaria entrar
lá, nem em uma noite como essa.
Suas narinas dilataram.
— Não consegue admitir em palavras explícitas, não é? Que sente algo
do tipo bom por alguém?
Por um momento, me diverti com suas palavras.
— Gostaria que eu admitisse que nutro algum sentimento por Ashley?
Ela se aproximou um passo de mim, mas parou de repente.
— Não, não por ela.
Foi a minha vez de dar um passo em sua direção. Katrina gostaria que
eu admitisse algo para, por ela.
— Por quê? — Também foi a minha vez de exigir uma resposta ali.
Katrina hesitou.
— Porque… porque eu estou confusa. Não tenho medo de você mais,
só que isso não torna tudo tão preto no branco. Você me confunde, Hayden.
O que eu acho de você e o que você realmente é podem ser coisas distintas,
e você nunca faz questão de esclarecer nada para mim, para ninguém. Você
é ambíguo, o que você sente é um mistério. Todas as respostas que você me
deu até agora foram indiretas, nenhuma foi direto ao ponto.
— Se está buscando algum esclarecimento de minha parte, não deveria
ser por meio de palavras. Pensei que já tivesse entendido que sou uma
pessoa que gosta da prática, meu bem.
Katrina não me respondeu. Dei mais um passo até ela, não deixando a
possibilidade de qualquer um de nós se aproximar mais. Nossos rostos
quase se encostavam.
— O que precisa mais de mim? Pensei que já tivesse provado merecer
sua confiança. Que… — Pela primeira vez, hesitei.
Ela completou:
— Que você preza por mim. Que você… que você realmente consegue
gostar de mim. Não é?
Pressionei meus lábios, agora sem palavras.
— Você mostrou, Hayden. Surpreendentemente, para nós dois, você
provou, ainda que à sua maneira, certo? Mas até onde o que você sente por
mim, o que você é capaz de sentir por alguém, se limita? Isso eu não sei.
Não faço ideia de até onde sua melhor versão pode sobrepujar a pior. Todos
nós temos diversas facetas, não é? As boas e as más. O que muda entre nós
são essas linhas tênues que separam o que somos capazes de fazer do que
realmente fazemos. E eu não sei onde a sua fica.
A garota inclinou a cabeça para mim, tentando encontrar melhor meus
olhos.
— Até onde, Hayden, você poderia ser uma boa pessoa, uma pessoa
que eu, no fundo, tenho esperanças que seja, e não simplesmente a pessoa
que faz tudo que é capaz? — insistiu, e, quando, como ela provavelmente
esperava, não obteve uma resposta, deu um passo para trás.
De forma alguma esperava de Katrina o que viria a seguir.
Na mesa ao lado de onde ela estava, havia uma garrafa de água,
provavelmente deixada por um dos funcionários. A garota a abriu, e
então… despejou seu líquido no chão sob nossos pés. Semicerrei os olhos,
tentando entender o que ela estava fazendo, até que ela sussurrou:
— Limpe.
Cerrei os dentes com uma força excessiva, entendendo de imediato
aquela espécie de teste.
Katrina estava fazendo exatamente a mesma coisa que eu fizera com
ela em sua segunda semana aqui, quando ficara responsável da limpeza de
boa parte do primeiro andar do Instituto. Eu merecia, era claro. Mas isso
não era apenas uma maneira de ficarmos quites, porque aquele jogo era
mais complexo. Katrina esperava que o que eu fazia, não era tudo que eu
poderia fazer.
Tinha esperanças de que, por mais que eu fosse capaz, eu realmente
não tinha matado um estudante daquele lugar. Assim como… parecia
esperar que, o que quer que eu sentisse por ela, não era tão limitado assim,
não como eu poderia esperar, porque, até aquele momento, eu não sabia até
onde minha capacidade de sentir ia.
Minha respiração se alterou, e fechei as mãos em punho, tendo o
instinto doloroso de lhe dizer que ela não era ninguém para me ordenar
algo, muito menos para limpar o maldito chão diante de seus pés. Só que eu
não fiz isso. Porque não seria verdade, de forma alguma. Admitir isso a
mim mesmo me assustou, e, pela primeira vez em muito tempo, eu tive
medo. Medo de mim porque talvez eu não soubesse ainda quem eu
realmente era. Isso não era algo de todo ruim, entretanto, porque eu sempre
esperava meu pior. Apenas significava que ainda havia muito para eu
descobrir sobre mim mesmo, e talvez com Katrina ao meu lado.
Sustentei seu olhar, que não revelava muito do que ela sentia. Estava
me avaliando, como tantas vezes eu a avaliei.
Minha respiração se tornou pesada, porém, não fazendo tanto esforço
como eu pensei que seria necessário, eu tirei minha camisa. E sequer
hesitando como eu pensei que hesitaria, não tendo tanto do meu orgulho
usual e mortal, simplesmente porque tal sentimento amargo não me parecia
importar nem um pouco diante daquela garota, eu fiz menção em me
ajoelhar diante dela para limpar aquela poça com o tecido.
Katrina não deixou que eu encostasse meus joelhos no chão,
entretanto. Ela agarrou meu braço com firmeza e me puxou para cima, não
permitindo que eu de fato cumprisse o teste, porque não lhe era necessário.
Então, em um ato repentino, que também me pareceu inevitável e
genuinamente aliviado de sua parte, seus lábios encontraram os meus.
Foi um beijo diferente de qualquer um em meu quarto. De ambas
partes. Porque, agora, eu tinha plena consciência de que Katrina podia
significar muito mais do que eu pensara ser possível qualquer um
simbolizar para mim. E ela também chegara à tal conclusão.
Ela me empurrou contra a parede, e parecia realmente faminta. Foi
incitante como ela permitiu que uma parte mais primitiva de si viesse à tona
na mesma proporção que eu barrei a minha há poucos momentos. No fim,
um equilíbrio sempre se faria necessário nos mais diferentes aspectos da
vida.
Levei minhas mãos às suas pernas nuas, empurrando sua camiseta para
cima como passei boa parte da noite querendo fazer. Um gemido
involuntário escapou de minha garganta assim que meus dedos afundaram
na carne macia de seus quadris, pressionando-os contra minha virilha.
Katrina, entretanto, levou suas mãos até as minhas e empurrou-as para a
parede enquanto também distanciava os lábios dos meus. Sequer tive tempo
de repreendê-la por isso, pois ela disse mais rápido:
— Hoje à noite é uma exceção, certo? Eu sou a predadora aqui.
Honestamente, não gostei de ser privado de quando ou como poderia
tocá-la, de forma alguma. Tudo que eu mais queria era tirar sua roupa e
sentir, mais uma vez, como seus seios macios cabiam perfeitamente em
minhas mãos, como seu corpo respondia ao meu… Queria arrancar seus
gemidos baixinhos, cada vez menos acanhados conforme eu a idolatrava, de
minha maneira, e, mais do que isso, me afundar entre suas pernas e ver a
maneira como ela se adaptava a tudo que eu ainda tinha para dar para ela.
No entanto… algo me disse que eu não iria me arrepender por abdicar
de todo o controle com o qual eu estava acostumado. Não para ela.
A garota sorriu com os olhos quando percebeu que eu cedi, e só isso
fez tudo valer a pena. Avaliei-a por um instante… seus cabelos soltos
ondulados e rebeldes, mais lindos do que ela mesma se dava conta,
emoldurando um rosto de cor mais vívida do que quando o vi pela primeira
vez, um rosto absolutamente arrebatador com sobrancelhas grossas, olhos
grandes, nariz arrebitado e boca rosada do qual eu desejava sempre fazer
bom uso.
Sua mão envolveu a lateral do meu pescoço, e não tive nenhuma
objeção quanto a isso. Pelo contrário, eu gostei. Gostei quando ela apertou
os dedos ali, quando sua boca também encontrou o outro lado, oscilando em
chupar a pele e cravar os dentes na pele dali, exatamente como eu tinha
feito com ela.
Era óbvio que a garota aprendia rápido.
Continuei experimentando sensações diferentes quando me forcei a
ficar imóvel, permitindo que ela avançasse com o que tinha para mim. Não
fiz nada além de observá-la ficar de joelhos para mim, principalmente
quando seu olhar abrasador, que realmente me consumiu mais do que
qualquer outra coisa, encontrou o meu. Quando ela puxou minha calça de
moletom para cima, expondo meu pau já duro, e enfim desviou sua atenção
para ele ao salivar sua boca, eu tive uma única certeza. Que ela poderia
muito bem ser meu fim.
— Você sabe que eu nunca fiz isso antes, então… Me diga se eu fizer
algo errado.
Foi inevitável sibilar um palavrão quando sua boca me encontrou e
começou a me chupar, porque uma onda excruciante de alívio me consumiu
por completo. Não foi preciso de nenhum auxílio, muito pelo contrário.
Tudo que Katrina tinha para mim era tudo que eu poderia querer, que eu
poderia precisar.
Fiquei hipnotizado por ela. Minha respiração estava acelerada de uma
forma estranha, e uma excitação maior do que qualquer uma que eu
experimentara com outras garotas consumia a boca de meu estômago ao
ponto de eu ter que contrair o abdômen violentamente. Tudo nela mais do
que me atraía… tudo me fascinava. O modo como seu cabelo se espalhava
entre meus dedos quando levei a mão até ali, a maneira como seus olhos
cheios de uma intensa vida que eu sempre esperei estar em seu interior se
atentavam ao meu rosto, a forma como seus lábios envolviam meu pau…
Não era apenas seus detalhes físicos que me traziam tanto prazer Era
sua maneira de se comportar, de se mover, de tocar em mim. Era… era tudo
nela que me cativava, malditamente.
Foi inevitável me amaldiçoar pela maneira que me deixei ser
enfeitiçado por Katrina. No entanto, eu não estava arrependido. De forma
alguma.
Estranhamente, nada mais no mundo me importou além de nós dois
ali. Nenhum barulho que vinha do andar de cima, da possibilidade de
alguém nos flagrar ali, que nós pudéssemos enfrentar consequências ao ser
pegos… Nada nunca poderia tirar a intensidade do que ocorria naquele
porão não mais imundo apenas por conta de sua presença.
Katrina levou sua mão até a minha, pressionando meu aperto em seus
cabelos. Queria… que eu a conduzisse. Tudo que eu mais parecia querer ali
era machucá-la, porém, agora com sua permissão, foi inevitável levar sua
boca mais afundo.
Um ruído escapou de sua garganta tentando se adaptar ao meu
tamanho, porém, quando ela não se afastou, eu continuei a guiando. Um
gemido mais sonoro involuntariamente escapou de minha garganta,
ecoando por cada canto dali. O prazer que o som pareceu dar à Katrina
reluziu eu sem olhar, o que me estimulou ainda mais, embora a ideia de que
eu podia lhe dar tanto prazer como ela me dava me parecesse impossível.
Continuei guiando-a em um ritmo cada vez mais acelerado. Estava
muito autoconsciente de seus lábios me pressionando, do toque molhado de
sua língua por todo meu membro e de sua pele que agora ganhava um tom
de rosado, talvez estando tão em chamas quanto a minha.
Segundos se confundiram com minutos, que eu queria muito bem que
fossem horas, até que eu chegasse ao meu limite. Gozei em sua boca, e ela
engoliu tudo que eu lhe dera enquanto espasmos me comiam vivo,
impiedosos e que tinham o potencial de serem dilacerantes. Não me deixei
fechar os olhos por um segundo sequer, contudo, embora tivesse sido uma
das coisas mais difíceis que eu fizera. Estranhamente, ao sustentar seu
olhar, uma parte de mim queria que ela visse o que podia fazer comigo,
tudo que podia causar em mim, que era muito mais veemente e poderoso do
que qualquer um de nós dois cogitara.
Quando ela enfim se colocou de pé com uma sombra de sorriso nos
lábios, sussurrei assim que me senti capaz:
— Sabe, eu estou com um pressentimento de merda, pequena
aberração. Um pressentimento de que você ainda vai acabar comigo, e que
você terá muitas, muitas maneiras de fazer isso.
Sansevieria (Asparagaceae)
Apesar de ter grande resistividade, sobrevivendo em
locais de sombra, a planta se beneficia de raios solares
para chegar à sua beleza máxima.

— Essa noite foi absolutamente inaceitável — a inspetora Foy


praticamente gritou no meio do auditório, cercada por todos estudantes,
obrigados a comparecer ali ao meio-dia. — O que vocês acham que são, um
bando de animais selvagens? As regras deste lugar não se apagam com as
luzes, me ouviram? — A mulher parecia quase desorientada. Pela primeira
vez eu a via sem o seu coque dolorosamente preso; seus cabelos estavam
bagunçados, e seu uniforme, todo amassado. Tinha mesmo perdido a razão
ao passar a noite amarrada ao corrimão.
Ela não era tão forte e resoluta quanto pensava, aparentemente. Muitos
de nós enfrentávamos coisas muito piores do que permanecer sentados em
degraus duros por apenas uma madrugada. E também sofríamos
humilhações mais exageradas, na certa.
— Isso foi um absurdo! Foi a pior coisa que vocês já fizeram neste
Instituto, e eu imaginei que já tínhamos atingido o limite na última queda de
energia. De forma alguma que vocês vão sair impunes, estão entendendo?
Não são vocês que mandam aqui, se esqueceram? Se coloquem eu seu
devido lugar, vocês não têm poder nenhum aqui, e como prova disso,
enfrentarão consequências nas mesmas proporções que seus atos
impensados e violentos. Vocês aprenderão a entrar na linha, e da pior…
— Srta. Foy, por favor — Dr. Cole apoiou a mão em seu ombro. Ele
usava seu tom impassível e calmo, apenas um disfarce para sua verdadeira
face. A pior que eu já conhecera. — Deixe-me continuar a partir daqui,
sim? — acrescentou, como nem mesmo a segunda no poder ousava
desobedecer aquele homem, ela se forçou a engolir em seco e dar lugar ao
diretor no centro do salão. — Devo começar dizendo que estou
absolutamente decepcionado com todos vocês. O que foi isso, crianças?
Pensei que fossem mais inteligentes que isso. Vocês vandalizaram o que
atualmente é sua escola, seu hospital, sua casa. Seu lar. Vocês não causaram
danos a nós ou a mim, não de verdade, e sim a vocês mesmos. Porque é
para vocês que cada canto desse casarão, cada objeto e até nossas profissões
se fazem existentes. E, no fim, é o dinheiro de suas famílias que arca com
os custos de cada item danificado.
Éramos nós os prisioneiros dali, era o que ele queria nos lembrar.
Bem, ele conseguiu. Todos naquele local ficaram mais sérios, mais tensos.
— Acho que preciso realmente lembrar a vocês que as consequências
de seus atos nesse Instituto, de forma alguma, afeta quem está aqui para
lhes ajudar, e sim apenas vocês mesmos — declarou, elevando a voz ao
assumir um tom de autoridade obscura. — A energia caiu por volta das oito
da noite, certo? E vocês estiveram soltos pelos corredores até o amanhecer,
às seis, como pessoas patéticas e envergonhadas que só conseguem agir
longe da luz esclarecedora, não é? Portanto, vocês tiveram dez horas para
destruir tudo que está destruído ali fora. Então, eu também lhes darei dez
horas para ajeitar tudo que foi vandalizado. Tintas, verniz e materiais de
limpeza estão sendo deixados para vocês de fora desse auditório. Vocês têm
até às dez da noite para deixar tudo impecável, entenderam? Se eu encontrar
um caco de vidro sequer no chão ou um risco na parede, todos vocês serão
punidos. Por um mês, de quatro refeições diárias, teremos apenas duas.
Suas aulas serão estendidas para os finais de semana, e muitas das
atividades extracurriculares, as mesmas que são suas únicas fontes de
entretenimento, serão cortadas. Entretanto, mesmo se chegarem a colocar
tudo em ordem até o horário estipulado, seus respectivos psiquiatras e
psicólogos estarão autorizados a intencionar seus tratamentos, quaisquer
que sejam eles. Aparentemente, estamos sendo muito gentis, e os resultados
que queremos não estão sendo obtidos. Afinal, vocês realmente estão se
comportando como animais, e precisam ser lembrados de que deveriam agir
como pessoas ponderadas para o bem de todos, inclusive para o de suas
famílias. Se isso não acontecerá da forma mais agradável, infelizmente,
deverá acontecer de outra maneira.
Todos estavam descontentes diante de cada ameaça e elucidação sobre
nossa real situação proferidas pelo diretor, porém nem todos estavam
arrependidos. Como eu. Porque podíamos ver a leve inquietude escondida
por um ar de superioridade daqueles funcionários, inclusive, ou
principalmente, no doutor chefe. De fato, tínhamos sido lembrados de muita
coisa naquele sermão, porém eles também foram alertados naquela noite
que não seríamos tão fáceis de domar, e não aceitaríamos tudo que nos era
feito de bom grado. Nunca, não importa o que acontecesse.
Nossa descontentação e revolta era mútua, e, embora a situação
estivesse contra nós, havia pequenas ressalvas que sempre aproveitaríamos
para revidar. Porque sempre teríamos em mente que tudo que era feito
naquele Instituto era errado e abominável. E, apesar de sermos animais
selvagens, nós… não merecíamos aquilo. Eu pelo menos sempre tentei me
convencer da última parte, mesmo que em vão, no entanto, agora… eu
pensava nisso com mais afinco. Por algum motivo, eu andava tentando ver
que poderia haver alguma parte boa dentro de mim, embora fosse difícil de
procurar.
Um pequeno desejo de fato vigorava sob minha pele com intensidade
nas últimas semanas, mesmo que no começo tivesse me sido imperceptível.
Talvez pela primeira vez, eu quisesse acreditar que podia ser bom para
alguém que merecesse minha bondade. Isso podia significar algo. Tinha que
significar algo.
Entrei no meio do fluxo que caminhava em direção à saída, porém foi
impedido de continuar diante da ordem que chegou aos meus ouvidos:
— Hayden, você não. Você vem comigo.
Mesmo sem me virar para trás, eu já sabia que a voz era pertencente
ao doutor chefe. Eu nunca me esqueceria daquele som, no fim. Ela
provavelmente sempre estaria presente em meus pesadelos até o fim de
minha vida.
Expirei o ar pesado pela boca, imaginando que ele tivesse vistoriado o
porão e ligado os pontos, descobrindo que eu era o responsável por retirar
aquela coluna de madeira em específico. Ou talvez ele apenas estivesse a
fim de ligar outro tipo de destruição a mim. Não seria uma surpresa, o
homem sempre arranjava as menores desculpas para me pôr como cobaia de
seus testes quando eu passava algum tempo sem precisar de punições. Ele
fazia isso com muitos outros também, claro, embora comigo fosse com
mais ênfase. Muito mais.
Os alunos abriram caminho para o doutor, que logo chegou até mim.
Eu passei a segui-lo em silêncio e, em poucos minutos, já estávamos no
terceiro andar. Ele abriu a porta de seu consultório para que eu entrasse
primeiro. Tomei caminho até a maldita cadeira metálica, e arregacei minhas
mangas depois de sentar ali.
— Suponho que queira me testar eletrochoques de frequência mais alta
hoje como punição adequada. Devo me amarrar mais forte, certo? —
questionei em um tom indiferente ao me inclinar para amarrar meus
próprios tornozelos à cadeira.
Ele, entretanto, respondeu:
— Não lhe trouxe para isso. Sente-se aqui. — Apontou para a cadeira
em frente à sua mesa enquanto tomava sua própria cadeira. Não se importou
com falsas cortesias ou a suavizar seu tom, como fazia com seus outros
pacientes. Eu não era um comum, afinal.
Embora não tivesse tantos dias desde minha última consulta, estranhei
o fato de ele não ter a intenção de me aplicar os eletrochoques. Já havia o
feito antes com pequenos intervalos, apenas para ver como meu organismo
responderia. Não foi um bom resultado. Adquiri um estado de catatonia por
quase duas semanas.
Após longos segundos, acabei me sentando à sua frente, e o homem
não fez nada além de empurrar um amontoado de papéis grampeados para
mim em cima da mesa.
— O que é isso? — questionei, mas ele não me respondeu. Estava
esperando que eu conferisse os papéis. Suspirei, entediado, mas os peguei.
Percebi que a primeira página era a cópia de minha ficha. Meu nome
completo, minha idade, cidade de origem e outras informações sobre mim
se encontravam ali. Histórico de violências e motivos que me levaram a ser
internado aos catorze anos se encontravam nas páginas seguintes, e depois
havia algumas opiniões clínicas sobre minhas condições. Claro que havia
apenas duas além das do Dr. Cole. O último monopolizava páginas e mais
páginas com seus textos sobre minha mente. Não precisei ler para sabia o
que tinha ali. Tendência à sociopatia, transtorno de personalidade e
transtorno explosivo intermitente decerto eram os ítens mais abordados do
texto.
Folheei os papéis até que algo mais chamou minha atenção. Tinha
imagens minhas impressas em algumas páginas. Eu estava inconsciente, e
eram fotos da minha cirurgia. De meu cérebro aberto e depois do corte
recém fechado sobre a região onde rasparam meu cabelo. Cerrei os dentes
com uma força excessiva, não gostando nem um pouco de ver aquilo. A
seguir tinha trechos e mais trechos que descreviam a estrutura de meu
cérebro, a suspeita de uma anomalia na formação do hipotálamo, um dos
órgãos do sistema límbico, quando comparado a outros, e mais textos de
como isso poderia afetar o processamento de emoções. Avancei a leitura um
pouco mais, e, nas páginas finais, havia textos sobre como o problema
poderia ser corrigido cirurgicamente, narrando minuciosamente técnicas
que eu não tinha um bom domínio sobre. Não era só redigido por Dr. Cole.
Havia outros médicos envolvidos naquilo.
Todos, no fim, afirmavam que a inclinação à violência, hostilidade e
raiva diminuiria drasticamente.
Joguei o amontoado de páginas com força em cima da mesa, e só
então o doutor se pronunciou:
— Enfim temos tudo necessário para realizar o procedimento de
nossas vidas, Hayden. Passei os últimos cinco anos o estudando,
procurando os profissionais certos que se interessam na área e na cura
definitiva de cérebros afetados; médicos, como eu, esperançosos pela
instauração de um mundo melhor, desprovido de doenças psicológicas que
afetam não somente os indivíduos portadores, mas todos ao seu redor. Suas
famílias… — disse, e eu entendi muito bem a menção ácida que ele fazia.
Era impossível ignorar o amargor cru em seu tom de voz. — Busquei pelo
mundo todo opiniões qualificadas sobre o procedimento, e cheguei a
encontrar seis casos minuciosamente detalhados em que a psicocirurgia
obteve um sucesso absoluto. Intervenções cirúrgicas obtiveram uma
melhora significativa de pacientes com depressão psicótica, esquizofrenia e
em estado catatonico.
— Cirurgias, essas, ilegais, certo? — soprei, recostando-me em minha
cadeira. — Porque práticas como essas não são toleradas desde o fracasso
total da lobotomia.
— A lobotomia só foi mal vista por causa de pessoas leigas que sequer
poderiam se chamar de doutores, realizando o procedimento com tanta
sutileza quanto um tiro entrando na cabeça. As psicocirurgias de hoje estão
sendo realizadas com uma precisão muito maior, com técnicas mais
refinadas e menos invasivas, ao contrário dos procedimentos da lobotomia,
onde o médico mais famoso por trás dela foi conhecido por realizar a
cirurgia com picador de gelo.
Estalei a língua.
— Não fale comigo como se eu fosse um leigo. Ambos sabemos que
não sou um desde que me obrigou a entrar nesse mundo de merda. Conheço
Freeman, sei toda a história da lobotomia e sei como, desde sua proibição,
não há nenhum estudo realmente válido e aceito pela OMS de que a
intervenção cirúrgica em doentes mentais é favorável em qualquer aspecto.
O cérebro é absolutamente complicado, e você e seus colegas não estão
mais perto de entender como tudo está interligado do que os lobotomistas
estavam quando achavam que pensamentos obsessivos giravam e giravam,
e que era necessário apenas interromper o circuito para pará-los.
— Não fale assim comigo, garoto. Esse procedimento é a nossa
chance. A sua de ser alguém normal, e a minha de ajudar mais pessoas
como você sem ser discriminado — ele cuspiu, elevando o indicador até
mim. Era quase cômico como ele achava que ainda podia me enganar com
seu falso altruísmo. O homem já devia saber que eu, mais do que ninguém,
entendia que sua maior motivação era o reconhecimento na sua profissão.
— Não me trate como um ignorante, e não pense por um segundo sequer
que é mais esperto que eu. Não vou ficar discutindo com você quanto aos
meus estudos, você não gastou anos da sua vida estudando para entender
meus argumentos. Entretanto, posso te afirmar que não tive pressa para
pesquisar sobre a cirurgia que será a próxima revolução do mundo
moderno, e que, se após tanto tempo de estudos eu querer realizá-la, é
porque sei exatamente o que vou fazer.
Ele então jogou mais um arquivo para mim. Não precisei pegá-lo para
identificar do que se tratava. Era um contrato de consentimento voluntário
para a realização da experimentação científica.
Soltei uma risada sombria, voltando o olhar ao doutor.
— Não. Você não quer realizar essa cirurgia porque sabe exatamente o
que vai fazer, e sim porque está sem tempo. Em poucos meses faço vinte e
um, e serei maior de idade. Você não conseguirá me manter aqui contra
minha vontade.
Pude vê-lo trincar o maxilar, e em um movimento súbito, eu peguei o
contrato em cima da mesa e o rasguei ao meio.
— Não vou assinar porra nenhuma, me entendeu?
— Você sabe que eu tenho toda a autoridade necessária para te
submeter a essa cirurgia, Hayden. E você está certo, também tenho a
minoridade ao meu favor, embora esse não seja o principal fator que me fez
marcar sua cirurgia. Eu posso muito bem te declarar como incapaz e tomar
as rédeas de tudo.
— Sim, você pode. Mas de todo modo estará infringindo o principal
princípio do Código de Nuremberg. Se tudo der errado, de alguma forma, e
alguém te levar a julgamento, você não terá uma prova do meu
consentimento voluntário para o procedimento. Isso poderia pesar, e muito,
principalmente com testemunhas neste Instituto que poderiam dizer que sou
plenamente são, apesar dos pesares.
O homem se colocou de pé, empurrando sua cadeira tão fortemente
que ela caiu para trás. Também me levantei, domado pela fúria crescente.
— Eu nunca serei levado a julgamento porque tudo que eu faço é
contribuir para a evolução humana. Meus estudos e testes são vantajosos
para a sociedade, e qualquer idiota poderia ver isso. Você apenas não vê
porque não se importa com ninguém além de si. Você deveria se
envergonhar de não querer o melhor a todos a quem você oferece perigo,
moleque. É justamente esse risco de sua personalidade que estou tentando
mudar, e você deveria ser agradecido por isso, porra.
Naquele momento, não senti nada mais do que uma genuína e
dolorosa repulsa por aquele homem.
— Quem é você para me dizer sobre os riscos que ofereço a outros?
Esqueça esse discurso falsamente moralista que fantasia sua ambição
nojenta e olhe para o local ao seu redor, olhe para a violência gerada neste
Instituto na última noite, a revolta e raiva pela sua direção. Olhe quantos
saíram machucados pelo ódio que você é o primeiro a instigar e me fale:
quem é você para achar que é muito melhor do que eu?
— Não fui eu quem cometi a merda de um assassinato — ele disparou,
e isso me calou por um momento. Minhas narinas se dilataram em pura ira e
eu fechei as mãos em punho, pronto para lhe acertar um soco que me faria
sorrir.
Não fiz isso, entretanto. Estranhamente, minha decisão final foi
sussurrar:
— Você não estava lá. Não tem ideia do que aconteceu.
Não era uma defesa. De forma alguma. Porém isso não o inocentava
de tudo.
O homem não me respondeu, e me deixei satisfazer por um momento
com seus olhos arregalados e respiração pesada antes de lhe dar as costas e
caminhar até a saída. Não passei pela porta, contudo, antes que ele dissesse
friamente:
— A cirurgia ocorre em trinta dias, com ou sem seu consentimento.
Disparei corredor afora, levado pela cólera, tormento e revolta. Os
pensamentos de minha mente eram conflituosos, quase dolorosos, e eu não
nutria nada além de uma cega necessidade de extravasar tudo aquilo.
Sequer sabia qual rumo eu tomaria ou o que faria quando cheguei ao
segundo andar, porém não tive a chance de descobrir de imediato, não
quando alguém agarrou meu antebraço.
— Ei.
Virei-me para quem erroneamente me impedia de levar minha fúria
crua para longe, e me deparei com Katrina. Seu cabelo estava amarrado em
um coque baixo com apenas poucas mechas soltas e seu uniforme estava
perfeitamente bem passado e limpo, como sempre. Ela segurava uma
vassoura com a outra mão, que parecia estar servindo para juntar a muda
destruída de sansevieria no chão.
— Eu ouvi quando o doutor te chamou. Estava te esperando para…
hum… ver se está tudo bem. — Ela pareceu hesitante, provavelmente
percebendo que havia algo muito errado por minha expressão.
— Agora não, Katrina — foi tudo que respondi, ainda com uma ira
crescente se contorcendo em minhas entranhas, e fiz menção em ir para
longe. A menina, no entanto, tentou se colocar em minha frente.
— Hayden…
— Agora não, porra — eu gritei, chamando a atenção de todos ao
redor, antes concentrados em suas próprias tarefas de limpeza. Engoli em
seco, fechando a boca no instante em que as palavras involuntárias,
estimuladas pela raiva cega, escaparam de minha boca.
A garganta de Katrina também oscilou enquanto ela me encarava com
aquele olhar malditamente intenso, o mais particularmente penetrável com
o qual já tinha me deparado. E, diante daqueles olhos tão ávidos e…
bondosos, a vergonha se misturou ao misto de sentimentos horríveis e
caóticos.
Expirei o ar pesado pela boca e passei diretamente pela garota para me
levar para o mais longe possível dela. Ela não deixou.
Katrina me segurou novamente, mas pela mão. Um baque ruidoso
chegou aos meus ouvidos, e só quando eu virei para trás que percebi que ela
tinha soltado sua vassoura para me segurar com suas duas mãos. Quando
fiquei, não porque ela me segurava com força, porque não o fazia, e sim por
conta de uma resposta instintiva àquele toque cuidadoso, ela me observou
com uma veemência ainda maior. Uma certa sensibilidade transbordava
daquele olhar, até uma espécie de… preocupação.
Talvez fosse exatamente preocupação.
Não saberia reconhecer com perfeição, nunca havia a experimentado,
porém, ainda assim, foi inevitável sussurrar naquele mesmo segundo,
assumindo toda a vergonha brutal, mais dilacerante que qualquer outro
sentimento, que sentia de mim mesmo:
— Me desculpe. Desculpa.
Ela não me respondeu. Não com palavras.
Katrina não esperou mais para fazer o que ninguém nunca fez. Ela me
abraçou.
Uma de suas mãos se fixou em minha nuca enquanto o outro braço
contornou meu tronco ao prender meu corpo contra si em um gesto
assustadoramente íntimo, tão pessoal ao ponto de me deixar sem reação ao
assimilar tudo aquilo.
— Tudo bem. Tá tudo bem.
A força que ela mantinha em seu aperto era tanta, o calor de seu corpo
e a sinceridade de suas palavras eram tão intensos que eu realmente achei
que tudo estava perfeito. Que tudo ficaria bem. Então, sem sequer tomar
total consciência de meu ato instintivo, eu retribuí o abraço. Apertei seu
corpo frágil e esguio contra mim da mesma maneira que ela me mantinha
preso a si. Não me importava que estivéssemos chamando a atenção das
pessoas ao nosso redor, que outros vissem um momento tão privado que
sequer eu mesmo tinha presenciado antes.
Tudo que importava era ela e quem eu me tornava ao seu lado.
Quando enfim nos distanciamos, após um tempo que nunca poderia ter
sido longo o bastante, eu não tinha mais a necessidade de extravasar todos
os sentimentos horrivelmente dolorosos de antes. Eu não os sentia mais
com tanto vigor; uma parte de mim, de alguma forma, até tinha se
esquecido deles.
Tudo que eu fiz foi pegar uma vassoura deixada em um canto e
acompanhar Katrina quando ela voltou à sua tarefa.
Permaneci com ela até o fim daquela noite, limpando a bagunça que
nós tínhamos ajudado a fazer. E isso, de forma alguma, me pareceu uma
punição. Pelo contrário, estar ao seu lado, fazendo o que fosse,
estranhamente me pareceu como um raro presente que fora concedido ao
longo de minha vida. Talvez fosse um dos últimos que eu viria a ter, no fim.
Ibogaína (Apocynaceae)
Vem sendo muito utilizada, com sucesso, no tratamento
de distúrbios emocionais e psíquicos há centenas de anos.
Tem como principal função estimular a redução da fissura
e abstinência, sintomas de quem está tratando o vício.

Batidas se fizeram presentes em minha porta, e eu enrolei um pouco


antes de me levantar da cama. Estava deitada ali, apenas encarando o teto,
desde que chegara das aulas da tarde. Quando abri a porta, arqueei as
sobrancelhas, surpresa com quem encontrei ali.
— Consegui adubo dos bons — foi o que Hayden disse como
cumprimento, passando direto por mim ao adentrar em meu quarto sem
precisar de um convite sequer enquanto segurava um saco com o adubo e
um pequeno vaso com uma muda de ibogaína.
— Oi para você também — retruquei, fechando a porta e voltando
para minha cama, que eu sentia ser um buraco negro onde eu poderia me
afundar às vezes. Dessa vez, entretanto, apenas sentei no colchão enquanto
Hayden, em seu uniforme desabotoado no colarinho e com seu cabelo
desgrenhado, avaliou as plantas que ele me dera, que ainda estavam em
cima da escrivaninha.
Suas sobrancelhas estavam franzidas. Eu já sabia o que se passava em
sua mente antes mesmo de ele dizer:
— Estão secas.
Expirei o ar pesado pela boca.
— É. Não reguei elas ontem e hoje.
— Por quê?
Dei de ombros. Simplesmente não tinha encontrado forças para isso.
Hayden entendeu aquilo.
— Você… teve alguma consulta com o Dr. Cole? — questionou, mais
tenso, e eu neguei com a cabeça.
— Não. A Inspetora Foy nunca veio me buscar depois daquele aviso,
há quase uma semana — eu disse. Pude jurar que Hayden ficou aliviado,
mas não surpreso. Eu não tinha ideia do que ele estava fazendo para evitar
meu encontro com o diretor, e provavelmente teria perguntando algo sobre
isso se outro assunto não fosse mais importante. — E você ainda não
comentou o que aconteceu na sua consulta para você ter estado tão…
afetado. Você está…
— Não estamos falando sobre mim, e sim sobre você, pequena
aberração — ele rebateu, gesticulando com a mão como se aquilo não
importasse.
O fato era que importava. E muito.
Já fazia três dias que Hayden saíra daquela consulta mais abalado do
que eu nunca tinha visto. Nunca me esqueceria do pavor em sua expressão.
Pensava, até vê-lo assim, que ele não era capaz de sentir tal coisa. Devia ter
acontecido algo muito grave para tirá-lo de si daquela maneira.
Bem, eu não achava que ele estava completamente normal até agora,
para falar a verdade. Eu nunca esperaria uma visita sua repentina assim.
— Chegue para lá. — Ele irritantemente assumiu aquele tom
autoritário. Era óbvio que não estava acostumado a fazer até os pedidos
mais simples. Revirei os olhos, mas não disse nada. Apenas… dei espaço
para que ele se sentasse.
Hayden se colocou logo ao meu lado, encostando o tronco na
cabeceira. A cama era pequena, então estávamos próximos demais ao ponto
de nossos braços se encostarem. Apenas o sutil toque foi capaz de fazer
meus pelos se eriçarem. Assustadoramente… me senti melhor.
— O que está te incomodando? — ele perguntou então, mais sério.
Inspirei fundo e desviei a atenção daqueles olhos que poderiam ser intensos
o suficiente para me tirar o ar. Encarando o nada, então, pensei em sua
pergunta sem pressa alguma.
— Honestamente? Acho que… nada. E tudo. Não sei — resmunguei,
confusa. — Eu só estou deprimida como estive tantas vezes, não é grande
coisa.
Hayden não pareceu prestes a encerrar o assunto. Muito pelo contrário,
porque ajeitou uma almofada e se deixou em minha cama, virando de lado
para mim como se quisesse estar confortável para me dar sua total atenção.
— E o que você sente quando está assim?
Engoli em seco.
Eu achava que ninguém nunca tinha me perguntado isso, ninguém
nunca sequer tinha se importado o suficiente, e, por isso… Eu não tive uma
resposta rápida. Acabei ajeitando minha própria almofada e deitando
também, e me virei para si.
Foi uma coisa meio íntima encará-lo daquela maneira, e eu me senti
estranha, só que não de um modo ruim. Muito pelo contrário. Era bom ver
aquela versão de Hayden, uma que decerto muitos não viam. Talvez uma a
qual nem ele mesmo era habituado.
— Estar deprimida é como… se esquecer de como os sentimentos
bons são, eu acho — respondi após longos segundos, e não consegui
desviar o olhar do seu dessa vez. — É como se esquecer das lembranças de
quando você os sentiu, de que esses sentimentos e sensações já foram reais,
e então, simples e repentinamente, você só se vê consumido por uma
angústia crescente e… paralisante. Paralisante ao ponto de você não
conseguir sequer pensar em uma saída para ela. Então o tempo para, e tudo
que você consegue fazer é esperar que as coisas ao seu redor melhorem
para que você volte a se sentir bem, porque tudo parece horrível, sua
própria existência parece insignificante. Você não gosta muito de quem é na
maior parte das vezes, suponho, e, quando gosta, torna tudo pior, porque é
inevitável sentir uma autopiedade dolorosa, como se você tomasse
consciência de que essa não é a vida que você deveria estar vivendo. —
Suspirei, perdendo-me na minha própria reflexão. — Essa melhora,
entretanto, pode demorar tanto às vezes ao ponto de você começar a se
perguntar se tudo sempre será assim. Então você é consumido mais e mais
pela… desesperança até, muitas vezes, chegar em um fundo do poço onde
não há luz. Pode ser muito trabalhoso achar algo que te guie de volta à
superfície, sabe? Estar deprimido é meio que… estar à deriva da vida.
Hayden assimilou as palavras mais difíceis que eu provavelmente
tinha procurado para pronunciar sem pressa alguma, piscando aqueles olhos
assustadoramente claros enquanto me observava fervorosamente. Ele só foi
desviar a atenção do meu rosto após muito tempo, e a levou até meu pulso,
coberto pela manga do uniforme, antes de tocar a região levemente.
— Era isso que sentia quando você fez isso? — perguntou, e eu tive
que engolir em seco. Nunca tinha falado daquilo também.
— Acho que sim. Foi quando eu senti tudo que eu lhe expliquei mais
intensamente — balbuciei, honesta. Por algum motivo, não foi difícil falar
aquilo. Não para Hayden. Pelo contrário, foi boa a sensação de ser
realmente ouvida. — Eu realmente tinha a certeza de que não haveria
momentos bons à minha espera, que tudo que eu sempre sentiria era aquela
melancolia dilacerante e mais enraizada em meu ser. Que todos meus dias
seriam um ciclo interminável de nada e mais nada — murmurei, ainda não
tendo total certeza do porquê eu estava sendo tão cruamente sincera com
Hayden. Era apenas… inevitável responder àquelas perguntas diante da
tanta atenção que ele me dava. Eu estava sendo notada. — Só que eu… eu
estava errada. Acho que estou começando a ver isso enfim. A vida pode ser
mais do que sempre foi para mim. Estou feliz por meu pai ter me
encontrado a tempo, na verdade. Quando estou deprimida, não é mais tão
doloroso e ofuscante como antes, o que é um sinal bom. Talvez… eu esteja
com uma esperança vigorosa o bastante para não ser apagada por completo
pelos meus piores momentos. É assim que deveria ser.
— E o que mudou?
— Tudo — eu disse sem pensar muito dessa vez. — De forma alguma
que estar nesse Instituto seja uma coisa boa, mas ao ir para longe de meu
pai, eu entendi que tinha uma vida com mais da que ele sempre moldou
para mim. Eu entendi que havia outras maneiras de me sentir viva além das
que sempre me impuseram serem certas, não sei. Acho que meu pai sempre
foi feliz se dedicando aos estudos, ambicionando o sucesso, só que as coisas
não funcionam assim para mim. Simplesmente não funcionam, os segredos
da felicidade e vontade de viver dele não são os mesmos que os meus. —
Inspirei fundo outra vez, porque despejar de uma só vez todas aquelas
palavras que possivelmente sempre esperaram para serem despejadas me
tomava muito de meu fôlego. — Talvez… hum… você tenha tido alguma
participação nisso, embora definitivamente não seja um herói. É só que…
mesmo estando preso, você ainda tem suas próprias regras. Você
simplesmente… é fiel a você mesmo, não é? Honestamente, eu ainda sinto
um certo ódio por algumas coisas que você me fez, só que muitas delas me
mostraram como os momentos realmente bons, onde você vive
intensamente, podem compensar os piores momentos. O misto de
adrenalina, emoção e agito é um lembrete de que a sensação de estar morta
por dentro é sempre passageira.
Um canto de seus lábios se retorceu para cima, e eu imediatamente dei
um tapa no seu ombro.
— Ei, eu disse que você não é o herói e fez muitas coisas erradas. Não
fique aí se achando.
— Isso nunca seria do meu feitio, pequena aberração — disse
sarcasticamente, e eu fiz uma careta, porém logo ficamos mais sérios. —
Você provavelmente sempre carregará essa pequena versão consigo. A mais
melancólica, mais… cansada. Um dia você poderá achar um tratamento que
te ajude, e eu acredito realmente nisso, mas, de todo modo, essa parte
sempre estará aí dentro. E você não deve lutar contra ela, deve assumi-la
quando necessário. Isso é o que possivelmente te torna tão especial. Sua
bondade se deve ao fato de que você é ciente do quão danoso esse
sofrimento interno pode ser, e isso faz com que você não queira que os
outros sintam o mesmo, não é? Eu apenas espero que essa sua versão nunca,
nunca seja mais intensa do que as outras, não de modo permanente. Não
mais intensa que a sua consciência de que merece e deve viver a melhor das
vidas. Espero que um dia você possa ter algo… alguém que nunca te lembre
disso quando você mesma se esquecer.
Assenti, tão séria quanto ele, absorvendo cada uma de suas palavras
mais intensas que eu um dia pensei que Hayden nunca pudesse ser…
humano o bastante para verbalizar. Cada diz mais eu descobria estar errada
sobre ele. Talvez o garoto mesmo estivesse descobrindo a mesma coisa
sobre si. Fiquei ali, apenas o encarando por um longo tempo, até enfim
conseguir sorrir um pouco.
— Sabe que eu te disse muitas coisas que eu nunca tinha dito para
ninguém?
Um canto de seus lábios se repuxou para cima.
— Hum, é mesmo?
— É. Espero que você nunca use nada disso contra mim.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Posso ser um filho da puta às vezes, pequena aberração, mas eu
nunca faria isso. Deveria saber que te machucar dessa forma não é algo que
me interesse. De forma alguma — sussurrou, e pareceu totalmente honesto.
Inspirei fundo.
— Não pode me culpar por pedir isso. Nunca… confiei em ninguém o
suficiente para contar como eu me sentia de verdade. E você nem sempre é
a melhor das pessoas também.
Ele soltou uma risada sombria. Não era exatamente de diversão.
— Nunca te machuquei por puro entretenimento, Katrina. Acho que
não no fundo. Pensei que tivesse entendido isso.
Hayden então se virou de barriga para cima, mas eu continuei o
observando. Não tinha ideia do que estava pensando, de qual decisão estava
pensando em tomar, até que enfim disse, após talvez um par de minutos:
— Eu tinha nove anos quando minha mãe morreu.
Franzi o cenho, surpresa, porém logo entendi o que ele estava fazendo.
Estava me contando algo que também nunca tinha contado a ninguém.
Mostrando que, da mesma maneira que ele agora podia usar algo concreto
contra mim para me machucar, eu teria o mesmo direito. O que Hayden
estava prestes a me contar… era algo que ainda o machucava.
Foi por isso que eu não interrompi para dizer que aquilo não seria
necessário. Eu queria desesperadamente saber uma das prováveis únicas
coisas que o afetava, que o trazia sentimentos de verdade, ainda que ruins.
Queria saber o que o tornava… humano.
— Ela nunca foi normal. Não mentalmente falando. Tinha transtorno
bipolar com episódios de mania constantes — disse em um tom baixo após
um longo tempo, como se separar as palavras para dizê-las doesse. —
Éramos só eu e ela na maior parte do tempo. Meu pai nunca parou em casa,
estava sempre viajando em prol de suas pesquisas, e deixava apenas uma
governanta para hipoteticamente cuidar de minha mãe. Só que ela não dava
conta na maior parte das vezes, porque esses episódios podiam ser
realmente muito feios. Dessa maneira, era eu quem sempre estava com ela.
“Sua doença a tornava muito volátil. Ela poderia ficar semanas na
cama, sem se comunicar muito e sem sequer se alimentar. Imagino que
esses momentos de sanidade fossem um Inferno para ela, porque era óbvio
que ela experimentava uma tristeza profunda para sequer conseguir viver.
Só que… quando criança, eu não via as coisas dessa maneira, e só
conseguia ficar aliviado quando não escutava nada mais que silêncio pelos
corredores de minha antiga casa antes de dormir, ou quando não havia
nenhuma movimentação estranha quando voltava da escola. Era só… eu. E
eu aprendi a me contentar com isso, principalmente quando os momentos
onde eu não estava sozinho podiam ser muito piores. As fases realmente
ruins, quando ela entrava em estado de mania, eram feitas de um estado
psíquico muito instável. Por uma semana inteira, às vezes ela podia
permanecer com apenas duas horas diárias de sono. Andava pela
madrugada pela casa inteira, nem sempre se lembrando de onde estava, e
falava consigo mesma. Muitas vezes ela tinha… alucinações, e podia se
tornar violenta também. Era simplesmente agonizante vê-la assim.”
Hayden trincou o maxilar fortemente por um momento, não deixando
dúvidas de que tudo aquilo realmente o machucava. Não tinha como ser de
outra forma. Era torturante até para mim mesma pensar em uma criança
vivendo sob aquelas condições, sob a tutela de um pai ausente e uma mãe
sob aquele estado. Inevitavelmente, eu segurei sua mão, e observei a
garganta de Hayden oscilar. Ele seguiu em frente com suas palavras.
— Meu pai, ele conseguia frequentemente remédios em fase
experimental para minha mãe. Quando ele a conheceu, foi por causa de sua
doença, mas ela não estava tão grave. O transtorno só foi ter piora após a
gravidez, talvez pela bomba de hormônios ou outra causa que nunca pôde
ser identificada. Antes, quando ela não estava em mania, ela podia ter uma
vida relativamente normal, saía da cama e cuidava de si mesma. Meu pai
sempre tentou trazer aquela versão dela de volta, mas eu acho que aquelas
dezenas de tratamentos, muitos que nunca foram aprovados legalmente,
apenas serviram para piorá-la. Isso não deveria ter acontecido, mas o passar
dos anos a deixou mais e mais instável.
“Em seu último ano de vida, ela passou a machucar a si mesma em
seus momentos mais instáveis, como se incorporasse uma outra
personalidade que quisesse feri-la. À noite, ela gritava para que parassem,
que estava com muita dor, mas era ela mesma quem fazia aquela consigo.
Também passei a acordar no meio da noite com ela me observando diante
de minha cama, simplesmente paralisada e como se tentasse se lembrar de
quem eu era. Isso era simplesmente… aterrorizante. Era como uma paralisia
do sono, só que o que eu via ao estar imóvel era real. Por causa de toda essa
inconstância mais perigosa, e talvez pela frustração em nunca ter achado a
cura para minha mãe, meu pai acabou se mudando definitivamente para a
Europa, onde fazia parte de uma pesquisa que sempre dizia ser a próxima
revolução do mundo. A última vez que ele viu minha mãe foi cerca de oito
meses antes de sua morte.”
Foi só então que Hayden voltou a me encarar. Pela primeira vez, vi
seus olhos realmente reluzirem uma humanidade profunda, e realmente
pensei que o veria chorar. Isso não aconteceu, entretanto. Ele não se
permitiu.
— Um pouco mais velho, talvez mais maduro diante da ausência
definitiva de meu pai, eu realmente tentei ajudá-la. Tentava falar com ela
nos momentos de lucidez, falar que estava tudo bem. Nada surtia efeito na
maior parte das vezes. Era difícil trazê-la de volta à realidade. Cada vez
mais difícil, eu diria.
“Uma noite… Ela teve mais um de seus picos. O último. Eu estava
dormindo quando ouvi um barulho de algo se quebrando do andar debaixo.
Fui correndo até lá e encontrei louças espalhadas por todo o chão da
cozinha e minha mãe com uma faca. Ela golpeava o ar ao seu redor e
gritava para que a deixassem em paz. Ela estava cortando a si mesma sem
querer, e isso apenas a fazia chorar mais. Foi… uma coisa terrível de se ver.
Sua pele já tão roxa por causa de outros golpes também ser marcada com
cortes profundos de um vermelho rubro. Acho que nunca vou me esquecer
dessa imagem, de seu sofrimento agora físico, como se o psicológico já não
bastasse. Eu tentei ir até ela e tomar sua faca, como se já soubesse que a
cena já seria suficiente para ser lembrada até o resto de minha vida. Só que
minha mãe me pensou que eu fosse uma de suas alucinações que tentava
feri-la. Ela se jogou para cima de mim, e eu caí no chão com força. Ela…
ela levou a faca até meu pescoço então, com seu rosto a centímetros do
meu. Eu pude ver o desespero quase inumano em sua fisionomia,
principalmente quando uma parte de si foi trazida de volta à realidade. Eu a
vi arregalando os olhos e gastando apenas um par de segundos para
entender o que estava acontecendo, e então ela levou a faca ao seu pescoço
enquanto começava a chorar. Suas lágrimas caíam em meu rosto enquanto
ela parecia lutar com algo dentro de si para enfiar aquela faca em si mesma,
como se ela quisesse que seus próprios demônios a deixassem pôr um fim
neles também. Só que… ela não conseguiu. E aqueles segundos que
poderiam muito bem ser horas de uma luta interna fizeram com que ela me
implorasse. Foram apenas duas palavras. Por favor. Mas carregavam a
intensidade descomedida de súplica de um mundo inteiro. No fim, fui eu
quem enfiei a faca em sua garganta, com minhas mãos por cima das suas. E
sua última palavra para mim foi um “obrigada”, dito em não mais que um
sussurro. Ela morreu caída ao meu lado, e lá ficou até que a governanta nos
encontrasse na manhã seguinte.”
Levei a mão à boca, quase que inconsolada por tudo aquilo. Pelo
sofrimento da mãe de Hayden, assim como a sua própria. E eu também
estava atordoada por, aparentemente, eu também ter sido a primeira para
quem ele contava aquilo tudo. Tudo que viveu e até o pedido de sua mãe.
Sua última palavra em vida.
Hayden, contudo, pareceu entender a expressão pesarosa de meu rosto
da pior forma possível, porque soltou um suspiro pesado.
— Vou te deixar sozinha agora — respondeu sombriamente, tomando
a sua postura comum de frieza. Estava pensando que eu… que eu estava o
julgando. Quando aquilo não podia estar mais longe da verdade.
Segurei seu ombro antes que ele conseguisse se levantar da cama e me
sentei logo ao seu lado, não lhe deixando outra opção senão a me encarar.
— Hayden… Você não fez nada de errado. Não é possível que no
fundo ache isso — eu sussurrei, e sua respiração se tornou mais pesada. —
O sofrimento de sua mãe foi simplesmente avassalador, mas o seu também.
Você não sempre me disse que eu importava? Bem, você também importa.
Você era uma criança, meu Deus. Como pode carregar tantas
responsabilidades de uma atitude que uma pessoa de nove anos teve? Uma
pessoa que já tinha vivido mais do que alguém de uma vida inteira. Você
não pode fazer isso consigo mesmo. Ninguém nunca deveria tê-lo deixado
sozinho com uma pessoa tão instável assim. Nada do que aconteceu foi
culpa de sua mãe, claro, mas muito menos sua. Você… você não fez nada
mais do que achou ser o certo. Você deu o que provavelmente sua mãe
desejava há tanto tempo. A paz. Não há como nada disso ser errado, nunca.
Ele me observou como se assimilasse minhas palavras de verdade, e
então foi inevitável acrescentar:
— Não importa o que os outros pensem, não importa nem mesmo o
que você pensa. Eu sei que não é um monstro. Talvez… talvez isso não
poderia estar mais longe da verdade. Você merece seguir com sua vida
como parece achar que eu mereço, Hayden — sussurrei, lembrando-me de
certas palavras que ele me dissera uma vez.
Se uma pessoa como você acha que não merece viver, o que resta para
os outros como eu?
O olhar de Hayden se suavizou por um pouco, e ele inspirou fundo,
tomando o ar que tinha perdido nos últimos minutos. Nós dois ficamos ali,
nos encarando, por um momento perdidos em nossos próprios pensamentos.
Não me lembrei mais da melancolia repentina à qual estive imersa naquele
dia, ela não era mais tão importante assim. Não diante de toda a intensidade
do que acabara de acontecer. De minha sinceridade e a sinceridade daquele
garoto. Da exposição de minha face mais crua e também da exposição da
sua.
Uma onda de alívio percorreu meu corpo por completo quando um
canto de seus lábios se repuxou para cima, como se ele estivesse mesmo
absorvendo o que eu falara, cogitando que aquilo podia ser verdade. Senti
que havia um quê de agradecimento em seu olhar enquanto ele analisava
cada centímetro de meu rosto. Talvez, mesmo que inconscientemente, ele
estivesse mesmo esperando que alguém o libertasse da responsabilidade do
passado.
Sua atenção acabou sendo fixada em um ponto específico, e logo
percebi que ele observava uma mecha rebelde solta de meu coque, ondulada
não tão harmoniosamente. Hayden levou seus dedos até ela, distraindo-se
um pouco com os fios antes de juntá-los atrás de minha orelha e voltar o
olhar aos meus olhos.
— Seu cabelo é uma das minhas coisas preferidas em você. Acho que
nunca te disse isso — sussurrou, e suas palavras também me distraíram um
pouco. Eu honestamente não gostava nem um pouco do meu cabelo, de
como cheio ele era, mas ouvir aquele elogio especialmente em sua boca…
Me fez achá-lo bonito talvez pela primeira vez.
— Uma das? E qual a preferida?
— Suas cicatrizes, Katrina. Cada cicatriz interna e externa que te fez
ser quem é hoje e que te trouxe até aqui. Elas são minha parte favorita em
você.
Foi inevitável dar, talvez, um dos sorrisos mais sinceros de toda minha
vida. Hayden também me acompanhou, dando um sorriso singelo em
resposta, que provavelmente significava mais do que nós dois podíamos dar
conta.
— Obrigado — foi o que ele sussurrou enfim.
Não tinha nada a que agradecer. Eu não tinha falado nada além da
verdade para ele, a verdade que já deveria ter lhe sido dita há muito tempo.
E eu também estava provavelmente tão grata pela sua coragem de ser quem
era ao meu lado, ali, quanto ele estava em relação a mim, então… aquela
estranha conexão que tinha se estabelecido ali significava o mesmo para nós
dois. Não havia mesmo a necessidade de um agradecimento de nenhuma
parte.
Hayden permaneceu naquele quarto até Ashley chegar, e suas visitas
se tornaram mais frequentes pelos próximos dias, dias esses que se
transformaram em duas semanas, cada uma com um motivo inicial que nós
dois, no fundo, sabíamos ser uma desculpa esfarrapada. Não importava, não
realmente.
Era mais fácil do que admitirmos que estávamos começando a prezar
muito mais que o ideal pela companhia do outro, e que isso possivelmente
já estava acontecendo há mais tempo do que gostaríamos de pensar.
Coração Sangrento (Lamiaceae)
Pode ser plantada em diferentes locais e floresce
facilmente quando cuidada da maneira certa. Tem o
formato de coração e é cercada por uma “gota” que
parece sangue, conferindo à planta um significado
simbólico de amor e paixão.

Meu tempo estava acabando. E eu não poderia estar mais consciente


disso.
Ainda assim… eu não fazia nada para mudar o destino que me
encontrava, porque, estranhamente, eu me importava mais com meu
presente. Estava mais preocupado em não desperdiçar o tempo que eu
pensava ser meu restante, a gastá-lo da maneira que eu mais… queria. Nem
mesmo tinha feito bom uso do último dia primeiro, quase duas semanas
atrás. Não tivera vontade. Estava sendo uma surpresa de como eu estava
usando todo esse tempo, de fato, porém eu não estava me dando tantas
oportunidades de me questionar tanto. Deixei que as coisas fossem mais
simples como deveriam sempre ter sido.
Claro que nem todos conseguiam fazer o mesmo que eu.
— Cara… você tá legal? — Brad murmurou ao meu lado, no horário
do almoço, e eu o encarei. — Você anda mais quieto que o normal
ultimamente. E não está aprontando nada, o que é suspeito. Sei lá, eu…
— Está preocupado? — cortei-o, arqueando as sobrancelhas, e o
garoto bufou.
— Como uma mamãe se preocupa com seu bebê — disse
ironicamente, revirando os olhos. — Não, sério. Nós deveríamos temer essa
sua quietude? Parece estranha demais. Você não está arrumando alguma
confusão por trás de nossas costas, não é? Odiaria que não nos envolvesse.
David soltou um risinho à nossa frente.
— Não está acontecendo nada, Brad.
O fato era que eu sequer queria pensar em problemas para causar.
Tinha coisas mais importantes com que me preocupar e, aparentemente,
coisas que agora me pareciam mais interessantes para fazer.
— Você nunca foi tão chato assim — ele retrucou, quase que
decepcionado, e só então eu sorri.
— Eu sempre digo para que nunca criem tantas expectativas sobre
mim, em nenhum aspecto sequer. Não tenho tanto medo de decepcionar as
pessoas assim.
— É, eu sei — resmungou, voltando a se concentrar em sua refeição.
— Mas que você está estranho, está.
— Vocês não sabem da missa a metade — Ashley murmurou do outro
lado da mesa. — Ele andou vendo a novata por quase todos os dias da
última semana. Já estou começando a achar que Hayden virou meu mais
novo colega de quarto.
Todos me encararam, como se pedissem um esclarecimento
silenciosamente. Como nunca senti que devia satisfação a alguém, apenas
me recostei em minha cadeira, comendo o resto de minha sobremesa.
— Então a personalidade dela está passando para você por osmose, é?
— Brad enfim rompeu o silêncio. — Você está simplesmente entediante.
Encarei-o.
— Eu nunca me interessei tanto por alguém como me interessei por
Katrina, então suponho que isso a classifique como muita coisa, mas
entediante não se encontra entre a lista. Ela apenas é diferente de nós.
— Diferente como? — Ashley perguntou, cética.
Voltei a sorrir.
— Ela não é corrompida. Não como cada um de nós é.
A garota revirou os olhos, descontente, mas não disse mais nada. Foi
David que pronunciou as seguintes palavras.
— E por que você anda precisando tanto dela? Dessa falta de…
corrupção. Isso nunca aconteceu antes. Muito pelo contrário, você sempre
buscou pelo exato oposto. Não é à toa que nós estamos almoçando juntos
hoje.
Sustentei seu olhar, ponderando por poucos segundos.
— É uma boa pergunta, David. Mas eu tenho uma resposta simples
para ela. Ninguém nunca sabe o que realmente precisa até tê-lo, suponho
eu.
— Você está dizendo que… você não quer ser quem é mais?
Soltei um riso nasalado.
— Creio que eu não tenha mais tempo para fazer essa escolha. Mas, se
tivesse, eu provavelmente não abdicaria de nada de mim mesmo, por nada
nem por ninguém. Eu apenas iria querer conhecer mais versões de mim que
agora eu sei que existem, versões que eu apenas nunca me deixei explorar
porque achei que não podia assumi-las dente a corrupção que eu sempre
vivi.
— Hayden… — Ashley sussurrou, chamando minha atenção. — O
que você quis dizer quando falou que não tem mais tempo?
Fiquei mais sério. Não queria falar disso com eles, então tudo que
respondi, no fim, foi:
— Isso não importa realmente. Acho que o fim… nem sempre é mais
importante que o caminho até ele.
— Engraçado alguém que sempre pareceu acreditar que os fins
justificam todos os meios — Brad disse, e um canto de meus lábios se
contorceu para cima.
— É. Eu sempre tive certeza disso, não é? — eu murmurei, achando
graça de mim mesmo. Não foi tão difícil admitir que eu estava errado
quanto aquilo, não como um dia pensei que seria. Coloquei-me de pé ao
acabar com minha sobremesa, e simplesmente disse para eles: — Tenho que
fazer algumas coisas agora. Vejo vocês amanhã.
— Temos a próxima aula juntos — David soprou enquanto eu já lhe
dava as costas.
— Tenho planos melhores. E não se incomode em pegar anotações
para mim. Não preciso delas.
Era o lado bom de estar caminhando diretamente para a morte. Você se
esquecia de coisas que não importavam nem um pouco em vida. Era apenas
uma pena que só nos déssemos conta disso, alguns mais do que outros,
quando já era tarde demais.
Não tinha tantos arrependimentos quanto a isso também. Eu fora mais
fiel a mim mesmo, ainda que a uma versão danosa de mim que
aparentemente sempre me obriguei a sustentar, mais do que a maioria.
Todos no fim deveriam ter esse consolo.
Dirigi-me para a mesa de Katrina. Ela almoçava com Helen, e parecia
bem naquele dia. Parecia bem em todos os últimos, na verdade. Era quase
cômico como isso fazia com que eu também me sentisse menos… vazio
como sempre estive.
Aproximei-me e apoiei a mão em seus ombros disfarçadamente antes
de sussurrar:
— Me encontre atrás da estufa em dez minutos.
Honestamente, de forma alguma que eu era alguém ansioso ou aflito.
Mas eu estive esperando muito por aquilo. Ao fazer os planos, só achei
melhor que fosse depois do almoço. Nós dois precisaríamos ter forças,
afinal.
Passei em meu quarto primeiro para pegar o que era necessário, e
então desci com a mochila nas costas. Não podíamos passar com bolsas
para fora do Instituto, e todas as portas eram vigiadas por inspetores, mas
isso não me impediu. Amassei algumas notas em minha mão e entreguei
disfarçadamente para o homem ao lado da porta dos fundos, que vistoriou
rapidamente minha mochila e, tendo certeza de que não havia nada
necessário para passar muito tempo na floresta, ele me deixou passar.
Então, simples assim, continuei com a mochila nas costas. Era
impressionante como muitos poderiam cometer tantas traições em função
apenas de alguns pedaços de papel. Era aquilo que governava o mundo, no
fim. Bem, ao menos a maior parte dele.
Quando cheguei no local combinado, Katrina não estava ali, porém ela
não demorou mais que um par de minutos.
— Oi — soprou, desconfiada como sempre, e eu a avaliei sem pressa
alguma. Estava com o cabelo solto hoje. Isso fez com que uma sombra de
sorriso ocupasse meus lábios por um segundo. — O que está acontecendo?
Estalei a língua.
— Nada de mais, pequena aberração. O que poderia estar acontecendo
de tão especial em um dia tão bobo e insignificante como esse? —
ponderei, e ela semicerrou os olhos. Forcei um suspiro. — Em um dia tão…
irritantemente claro e em que os pássaros não calam a boca. Até parece que
ele está bonito o bastante para anunciar silenciosamente que algo
comemorável está prestes a acontecer. Algo como… o aniversário de
dezoito anos de alguém. Não, de forma alguma que algo importante poderia
estar acontecendo.
Katrina pareceu embasbacada por um momento, mas se apressou a
recuperar a compostura. Então, pareceu querer rir, mas também não se deu a
esse luxo. Ainda. Foi então que eu sussurrei, mais sério:
— Feliz seu dia, Katrina. — Tirei as mãos de trás de minha mochila.
Elas escondiam um vaso com duas flores. Pareceu-lhe impossível continuar
reprimindo o sorriso no segundo em que se deu conta de qual era seu
presente.
— É a…
— Orquídea Fantasma que você pateticamente teve esperança que
florescesse ao lado da Caladium? É, acho que sim.
Katrina apenas alargou seu sorriso ao se deixar pegar o vaso de barro
com todo o cuidado do mundo antes de cheirar ambas flores. Eu tinha que
admitir, era uma combinação bonita. E inesperada, claro.
— Eu… tinha me esquecido dela. Você cuidou. — Ela transferiu a
atenção para mim.
— É. Mais ou menos. — Eu tinha feito uma visitinha todos os dias ao
seu canteiro desde a noite que a vi chorar pela primeira vez para adubar e
regar as malditas flores.
— Eu lhe disse que ela apenas precisava achar a planta certa para
salvá-la. Eu estava certa e você… errado — constatou, uma alegria que eu
nunca tinha presenciado antes crescente em seu tom de voz.
— Não exatamente. Eu disse que as chances dela florescer eram
mínimas.
— Você disse que de forma alguma ela iria florescer. — Katrina
semicerrou os olhos. Soltei um suspiro audível.
— Um “obrigada” já seria suficiente, pequena aberração.
Seu riso soou abafado antes dela ficar um pouco mais séria.
— Obrigada, Hayden. Esse é o melhor presente que alguém já me deu.
Não que a lista seja grande ou… hum… existente. Mas ela ganharia de todo
modo. Sempre — disse baixinho, e eu senti a sinceridade crua transbordar
de cada uma de suas palavras. O coração que eu começava, lentamente, a
achar que tinha se aqueceu por um instante.
A sensação, entretanto, desapareceu quando eu me dei conta de que
nunca seria possível fazer pessoalmente com que a lista de seus presentes
fosse do tamanho que ela merecia. Foi estranho me frustrar por isso. No
fim, tudo que eu disse foi:
— Vamos. Temos uma longa caminhada pela frente. — Indiquei com a
cabeça em direção à floresta, mas Katrina hesitou.
— Se eles derem falta de nós em um dia letivo como esse, vão…
— Não se preocupe. Já dei um jeito nisso. — Eu meio que tinha
subornado a enfermeira para assinar dois atestados para nós. — Vamos
logo.
Surpreendentemente, Katrina não me contestou mais. Apenas me
seguiu, porque… porque, talvez, enfim confiasse em mim.
Quase duas horas mais tarde, horas essas compostas por constatações
frequentes de Katrina dizendo que não era uma pessoa atlética, de
reclamações pelo sol quente e trilha íngreme e pedidos para que eu
revelasse para onde estávamos indo, chegamos ao nosso destino. Senti
quando ela parou ao meu lado, atônita pela paisagem diante de nós. Eu a
tinha levado a um córrego de água praticamente transparente, cercada por
pedras de grande parte e flora atrativa e mais diversa devido a abundância
de água.
— Meu Deus — ela balbuciou, encantada diante da beleza que a
rodeava, e eu sorri.
— É, eu sei. Nunca acreditei muito Nele, mas, se há algum lugar em
que Ele poderia ser encontrado, acho que seria aqui.
Eu tinha descoberto aquele lugar por acidente enquanto caçava. Tinha
praticamente seguido um veado até ali. Não o matei, entretanto. Não pude.
De alguma forma, aquele lugar me pareceu etéreo demais, quase como um
templo, não tendo espaço para desvirtuação de nenhum tipo. Uma pequena
parte de mim sentiu que eu não poderia pertencer àquele lugar, então nunca
voltei desde a primeira vez.
Algo tinha mudado, de fato.
Embora aquele ambiente combinasse muito mais com Katrina do que
comigo, senti que também podia ter um lugar para mim.
Sem nenhum aviso prévio, a garota desceu pelo chão íngreme,
correndo por alguns corações sangrentos, até encontrar o córrego,
esquecendo-se completamente de que não era atlética. Tive que dizê-la para
tomar cuidado com as pedras escorregadias quando ela começou a percorrê-
las para chegar ao córrego maior. Ela me ignorou.
Não foi uma surpresa.
Não me importei, no entanto. Porque nunca, nunca tinha a visto feliz
daquela maneira. Na verdade, eu nunca tinha presenciado nenhuma
felicidade de absolutamente ninguém naquela proporção. Isso me purificou
momentaneamente de alguma maneira, me fez me esquecer de todos meus
problemas.
— Isso é incrível, Hayden! Olha, olha — ela gritou enquanto eu me
aproximava, inclinando-se à beira da água para colocar suas mãos ali. — A
água é tão translúcida. Ninguém nunca tinha me levado a nenhum lugar
assim.
— Ninguém nunca encontrou um lugar assim — retruquei, ainda
achando graça de sua rara euforia, enquanto me sentei ao lado de onde ela
estava ajoelhada em direção a água. Retirei a mochila das costas, onde tinha
colocado de volta o presente de Katrina temporariamente, e então peguei
uma pequena gaiola que servia para locomoção dali.
Soltei Lilith no meu colo, e Katrina ficou mais tensa imediatamente.
— Ei. Ela esteve com a gente durante toda a trilha? — resmungou ao
se sentar, mas sem nunca desviar o olhar da cobra coral. Estava alerta.
— Nós não somos os únicos que vivemos presos. Não quero fazer com
ela o que outros fazem conosco — eu disse simplesmente enquanto ela
rastejava sobre minhas coxas. O réptil encarou Katrina enquanto a garota
também a observava. Foi a menina que desviou o olhar em uma careta
primeiro.
— Não gosto dela.
Soltei um riso nasalado.
— Como você não gostava de mim?
— E eu alguma vez já disse que passei a gostar? — murmurou. Estava
irritada por eu ter trazido a cobra, era óbvio.
Ri outra vez, mais divertido dessa vez.
— Não precisou, pequena aberração — respondi, e ela revirou os
olhos, mas não me contestou. — Aqui, toma. Se você consegue sentir algo
do tipo bom por mim, certamente também poderá fazê-lo em relação a
Lilith. — Peguei a cobra cuidadosamente, levando-a até Katrina, que se
desvencilhou de imediato.
— Não, não quero! — disse de imediato.
— Por quê? — Arqueei as sobrancelhas. — Você está a repudiando
sem nem tentar conhecê-la. Não lhe parece uma questão familiar?
Observei-a engolir em seco, e, quando aproximei Lilith mais um
pouco dela, ela disparou:
— Ela é só uma cobra!
— Vá por mim, humanos podem ser muito mais dignos dessa
indiferença em sua voz. Ande logo.
— Hayden, eu… eu tenho medo dela.
Suspirei, e enfim afastei Lilith um pouco da garota, mas não por
definitivo.
— Não a afaste apenas por uma perspectiva mais enraizada e
infundada de que essa cobra pode ser perigosa. No fim, ela é menos
venenosa do que você e ela mesma acha que é, ok? Só dê uma chance.
Katrina trincou o maxilar fortemente e dilatou as narinas. Era óbvio
que ainda estava relutante, porém estava pensando no que eu tinha lhe dito.
Pude ver que uma parte de si queria enfrentar seu medo, mas a outra ainda
estava hesitante.
— Não sei se…
Antes que ela finalizasse a frase, coloquei a cobra em suas pernas
descobertas pela saia. Katrina arregalou os olhos, paralisando diante da
sensação do réptil rastejando sobre sua pele.
— Pensei que você tivesse parado de me levar ao limite — ela
balbuciou sem mal mexer a boca, como se qualquer movimento pudesse
fazer com que a cobra a mordesse.
— Nunca — sussurrei, vendo a cobra rastejar mais e mais por Katrina.
O réptil rastejou até seu ombro, e a garota sequer parecia respirar mais.
Ela também parou de piscar quando a cobra levou a cabeça rente à sua,
chamando o olhar de Katrina para si. Ela pareceu se lembrar de sua última
experiência com a cobra, quando eu tinha ordenado que a mordesse.
Lilith não a machucaria agora. Assim como eu.
Eu estava descobrindo coisas sobre Katrina de uma outra maneira mais
sutil e mais… atrativa até para mim, embora isso pudesse ter parecido
impossível para meu eu do passado.
A cobra colocou sua língua bifurcada para fora por um momento, e
senti no olhar de Katrina que ela pôde jurar que Lilith avançaria nela. Ela
não o fez. Apenas estava sentindo o cheiro de Katrina, pois cobras tinham
um órgão no céu da boca que capturava o sentido. Quando o réptil apenas
permaneceu ali, quieto ao lado de Katrina, ela relaxou um pouco, e ficou a
avaliando.
— As escamas dela são meio estranhas assim de perto — constatou
baixinho, ainda encarando a cobra. — Me deu um pouco de aflição à
primeira vista. Mas, avaliando mais de perto, elas são bem… hum…
— Bonitas — acrescentei, porque Katrina provavelmente não queria
admitir aquilo em voz alta. Que tinha valido a pena enfrentar seu medo.
Sempre valia. No fim, era algo bom que ela andasse tendo dificuldade de
pronunciar isso em voz alta, me dar razão. Estava enfim tendo um pingo de
orgulho. Esse sentimento em excesso era amargamente prejudicial, mas sua
inexistência, como a que ela já experimentou, poderia ser devastador.
Eu estava feliz com suas pequenas mudanças.
Lilith acabou deixando Katrina após um par de minutos, saindo
rastejando para um outro lado. A garota continuou a analisando, um pouco
interessada, e eu disse:
— Tá vendo como o senso comum pode ser uma vadia às vezes? Não
é porque todos temem algo que você deve temer também, pequena
aberração.
Katrina transferiu a atenção para mim por um segundo, mas voltou a
encarar a cobra que explorava alguns cantos. Ela sorriu um pouco.
— Ela gostou daqui. Acho que ela está se sentindo livre também.
Eu não olhei para a cobra. Ainda encarava Katrina.
— Também? — ressoei. — Você está se sentindo livre?
Dessa vez, ela passou a me encarar de modo mais fixo.
— Você não?
Pensei um pouco sobre sua pergunta, e não demorei a chegar em uma
conclusão insondável diante do sol quente ardendo em minha pele, do vento
que bagunçava meu cabelo, do som da água caindo e do canto dos pássaros,
e, principalmente… da visão de uma Katrina livre perante mim.
— Sim. Eu estou — respondi sem sombra de dúvidas, retirando meus
sapatos para enfiar meus pés na água fria. Eu estava mesmo me sentindo
mais livre do que nunca, na verdade. — E o que você fará depois?
— O quê? — balbuciou, confusa, e eu apenas fechei os olhos para
aproveitar melhor a sensação da água corrente em minha pele.
— O que você vai fazer quando cansarmos deste córrego? Para qual
lugar irá? Decerto não pode ser para o Instituto. Você está livre, afinal.
Katrina era esperta o bastante para entender como eu queria brincar
naquele momento. Mesmo de olhos fechados, tive certeza de que ela
começou a encarar o nada à sua frente ao entrar no jogo ilusório.
— Eu vou… vou achar um lugar só meu, onde eu poderei ser quem eu
quiser ser — respondeu não muito tempo depois. — E esse lugar
provavelmente seria no campo. Perto de um córrego como esse, onde eu
possa ir toda vez que me sentir prisioneira de minha própria mente, apenas
para me lembrar de como é a liberdade. Eu… hum… faria uma casa
simples para mim. Não grande como a de meus pais, que só servia para que
eu me sentisse ainda mais solitária do que realmente sou. Eu então encheria
essa casa com cores, sem me importar para tendências, e também colocaria
vida nela. Haveria plantas em todo canto, o bastante para que eu acordasse
todo dia e sentisse o cheiro de terra e ar fresco e que também me lembrasse
de que, após certos desafios do outono, há sempre a primavera. Do lado de
fora, eu plantaria um pomar e minha vida seria autossustentável, sem muito
contato com o mundo exterior. Depois de já estabilizada, eu tentaria investir
em terras maiores e as semearia para viver da agricultura ao mesmo tempo
que também me centraria em reflorestamento, apenas para manter tudo em
seu devido equilíbrio. Dia após dia, eu acordaria com um desejo de viver a
vida que escolheria apenas para mim, e, embora as crises me encontrassem,
eu sempre melhoraria, porque eu estaria vivendo exatamente onde eu
escolhi e, talvez… com quem eu desejei. E então, após todo esse tempo,
com setenta ou quem sabe oitenta anos, eu iria dormir sem arrependimentos
ou sem sequer me lembrar de como era me sentir presa, porque eu teria
aprendido muito nova a ser fiel a mim. E, em paz, eu deixaria uma vida que
tivesse valido a pena ser vivida.
Katrina pareceu pensativa após acabar de verbalizar toda aquela cena
que montara em sua própria mente, mas, no fim, ela sorriu ao me olhar.
Sorri também, pois imaginara tudo que ela queria para si. Muito daquilo
poderia ser o que eu desejaria para mim se eu tivesse um futuro.
— Agora você tem. Tem um lugar para ir — constatei, e seu sorriso
desapareceu um pouco ao entender o que eu queria dizer, o que minhas
palavras implicavam.
— Só há dois motivos pelos quais nós fazemos do Instituto uma prisão
— ela balbuciou, ainda com o olhar fixo no meu. — Ou porque ainda
queremos a chance de herdar o que supostamente é nosso, ou porque…
— Não temos um lugar para ir — completei. — Você achava isso, não
achava? Que não tinha um lugar para você no mundo. Acontece que agora
você descobriu que estava errada.
A respiração de Katrina se tornou mais pesada repentinamente.
— Você… acha que eu deveria fugir?
Engoli em seco, pensando naquilo. Não me agradava nem um pouco
pensar em Katrina sozinha, perdida naquele mundo imenso, mas… ela já
tinha passado por coisa pior naquele maldito Instituto. Já se mostrara forte o
bastante para sobreviver a adversidades, e, lá fora, ela teria mais chance de
prosperar do que aqui. Lá, ela poderia correr atrás de seus sonhos, ao
contrário do que se ficasse. Se ela permanecesse, eu não poderia continuar
me assegurando do juramento que eu lhe fizera.
O diretor daquele Inferno não iria descansar até acabar com a sanidade
de todos ali, e, comigo longe para livrar Katrina de tudo que ele podia
fazer… Não havia lugar para ela ali. Menos do que nunca.
Aquele era um mundo onde a perversidade era comum e sua bondade
era a exceção. Uma bondade que, talvez, no fundo, eu nunca tive a intenção
de mudar, apenas de… aprimorar para que Katrina a destinasse mais para si
mesma do que para outros quando necessário. Em um lugar de normais, ela
era a verdadeira aberração, e precisava encontrar um lugar onde as coisas
fossem diferentes. Onde as coisas fossem diferentes com e para ela da
maneira que merecia.
— Quer que alguém viva como deve viver? Faça com que ele tenha
um propósito — eu sussurrei. — Você enfim achou o seu, Katrina. Você
encontrou o caminho básico que mais deseja seguir, e o resto você pode
descobrir nas bifurcações. O que mais você poderia precisar para ir para o
mais longe possível daqui?
Katrina me encarou com uma intensidade poderosa o bastante para me
fazer perder o ar por um segundo.
— Eu... — Ela hesitou.
— Você está pronta para ir.
— Eu não acho que estou.
— O que mais poderia lhe faltar?
— Hayden...
— Você não estará deixando absolutamente nada para trás.
Foi então que ela fechou os olhos bruscamente, apenas para sussurrar:
— Sim, eu acho que... Eu tenho certeza de que estaria.
— O quê?
— Não o quê, e sim quem — ela soprou, enfim voltando a abrir as
pálpebras, dando lugar às suas pupilas dilatadas. — Você, Hayden. Eu
estaria deixando você.
Não tive mais palavras para dizer. Apenas a encarei, um pouco
desnorteado diante da veemência de suas palavras. Foi então que ela se
aproximou, ajoelhando-se enquanto apoiava as palmas de suas mãos em
minhas coxas.
— Eu não estou pronta para deixar a única pessoa em minha vida que
se esforçou para que eu encontrasse um propósito particularmente meu. De
forma alguma, Hayden, eu estaria pronta para abdicar de quem já me
ensinou tanto sobre mim mesma, assim como eu acho que, ainda que em
menor proporção, eu lhe ensinei sobre si mesmo. Eu não estou pronta para
te deixar, principalmente quando sinto, com todo meu ser que uma vez
pensei estar morto, que ainda temos tanto a conhecer um do outro e de nós
mesmos quando juntos, que esses últimos meses não podem ser o único
tempo do qual fomos presenteados.
Franzi o cenho, atordoado pelo significado e… possibilidade que cada
pequena coisa que ela falava trazia. Pela porta que elas abriam que, por
algum motivo, eu sempre pensei estar trancada a sete chaves. Decerto ainda
não estava pronto para ouvi-la completar:
— Eu poderia precisar da pessoa que não merece estar naquele
Instituto mais do que eu mereço e que deveria se dar ao luxo de pensar que
há uma vida lá fora para ele também. Eu… eu poderia precisar da pessoa
que ainda não conheci por completo, mas que desejo conhecer. Cada uma
de suas versões, até as ainda piores. E eu também poderia precisar das
versões que eu me torno apenas ao seu lado, algumas sendo minhas
preferidas. Você me disse há pouco tempo que ter alguém ao meu lado é
uma escolha, e não uma necessidade, mas eu... Eu escolho precisar de você
comigo, Hayden.
Jiboia (Araceae)
Encontrada facilmente perto de cachoeiras, e seus ramos
podem chegar aos 1,20m. Com boas práticas de cultivo,
essa medida pode ser ainda maior.

— Você não sabe o que quer, Katrina — foi a resposta instintiva de


Hayden quando eu praticamente lhe pedi para que fugisse comigo. — Você
sequer sabe completamente quem eu sou.
— Eu sei tudo que importa, Hayden, e o resto... eu posso conhecer
depois. Eu quero conhecer depois — eu disse em não mais que um
sussurro, querendo mais do que tudo que ele continuasse a prestar atenção
em mim como tanto tinha feito nos últimos dias. Como tinha feito, talvez,
desde que eu entrara naquele Instituto. Eu nunca me senti notada de verdade
até… ele. — Me escuta, por favor. Eu sei que você acha que é uma pessoa
ruim. Só que você não é. Você… você pode fazer coisas ruins, sim. Isso é
óbvio. Mas as decisões que você tomou, mesmo as piores, não definem
você, principalmente porque esse Instituto tira de nós as piores coisas que
temos a oferecer. Você merece estar em um lugar, com alguém que possa
tirar o melhor de você, me entendeu?
Hayden fez menção em se levantar, mas eu apoiei as mãos em suas
pernas com mais força antes de tocar em seu queixo para que continuasse
com o olhar em mim.
— Só me ouve — insisti, mais firme. Eu estava lutando pelo que eu
queria, e desejava muito que ele desse valor naquilo o bastante para
cooperar um pouco comigo. O garoto expirou o ar pesado pela boca, como
se uma parte de si achasse que não pudesse continuar me escutando.
Continuei falando antes que ele se levantasse de uma vez: — Você mesmo
não deixa de sentir medo de você, não é? Esse é o problema. Você não pode
ignorar sua pior versão, eu entendo. Só que… você tem que considerar a
sua melhor também, Hayden.
— Katrina…
— Quando você me viu pela primeira vez… Você sentiu que eu estava
morta por dentro, não sentiu?
Ele hesitou, e eu respondi por ele:
— Você notou isso. E, ao fazer aquela maldita brincadeira com Lilith,
você estava confirmando isso. Você viu que eu não me importei tanto
comigo mesma para lutar pela minha vida. E o que você fez depois? Você
me abordou naquela piscina enquanto eu era encarregada de limpá-la. Você
quis que eu reagisse quando provocada, que eu assumisse um pouco de
orgulho para isso. E pareceu… transtornado quando tudo que eu fiz foi
ceder. Após isso, você continuou me levando mais e mais até meu limite, e
eu acredito mesmo que, ainda que inconscientemente, você fazia isso para
me obrigar a me lembrar de que eu deveria lutar. Você me pregou aquele
trote não porque tinha certeza que eu era capaz de enfrentá-lo, e sim porque
você desejava que eu fosse. Eu fui, no fim das contas. Eu fui determinada o
bastante para cruzar milhas e mais milhas daquela floresta e lutar contra um
urso. Você viu que eu ouvi meus instintos mais enraizados pela primeira vez
e dei valor à minha vida quando combati a morte. Isso foi o bastante para
você, e foi por isso que você atirou nele, certo? E também foi por isso que
você tratou das feridas deixadas por ele, por isso que… cuidou de mim.
“Mais tarde, naquele trote, você se importou o bastante comigo para ir
me buscar quando percebeu que Ashley tinha me deixado trancada naquele
prédio, mesmo que você pudesse ser pego. Você colocou a si mesmo em
segundo lugar, Hayden. Você foi tudo, menos egoísta, ao menos naquele
momento. E então você me levou até minha cidade, lutando contra o tempo,
apenas para me dar a oportunidade de sentir raiva. Para me mostrar que eu
podia e devia me magoar pelas ações de outros, principalmente de minha
família. Você não provocou o pior de mim em frente ao consultório de meu
pai, não exigiu mais que eu reagisse, você simplesmente… me deu a
possibilidade de extravasar o ressentimento que eu sempre me obriguei a
silenciar. E, meu Deus, isso foi tão bom, porque só então eu percebi que eu
guardava muitas coisas para mim, e isso estava consumindo pouco a pouco
minha alma como a mais danosa das ervas daninhas. A partir daí, eu
comecei a me sentir um pouco mais… eu. Quem quer que eu fosse. Senti
que eu poderia ser muito mais do que andava sendo. Depois disso, quando
eu tive uma recaída ao sair de minha primeira sessão de tratamento com o
Dr. Cole, você foi o único que soube… me amparar. Você não estava pronto
para resguardar ninguém de maneira tão profunda, parece que nunca foi
ensinado a isso, mas, ainda assim, de sua própria maneira, você deixou
claro que tinha esperança por mim quando nem eu mesma tinha. O presente
que você me deu hoje é a prova viva disso, me ouviu? Você fez mais por
mim naquela noite do que eu mesma fiz.”
Hayden me encarava com o maxilar trincado e mal respirava ao passo
que meus olhos começavam a lacrimejar. Ele não hesitava, não mais. Ele
tinha tomado sua decisão, ainda que inconscientemente. O garoto escolhera
ficar. Simplesmente permaneceu, bem à minha frente, dando-me toda a
atenção do mundo.
Ainda assim, estava com pressa para falar tudo que eu tinha a dizer.
Queria prosseguir com as palavras excruciantes, necessárias e tão
significativas para nós dois. Eu sentia que já tinha desperdiçado tempo o
bastante em minha vida, e agora que realmente descobrira como não o
fazer, não pestanejaria mais. De forma alguma.
— Dias depois, quando você leu meu poema em voz alta, eu realmente
odiei você. Me senti humilhada e traída, mas você só fez aquilo porque,
mais uma vez, sentiu medo de você, não foi? Ainda que bem lá no fundo.
Não queria saber como poderia me machucar se se deixasse se aproximar
demais. Ninguém nunca criou expectativas sobre você como eu comecei a
fazer. E você continuava a me testar, ainda à espera de uma reação digna
minha. Só que então você chegou na última estrofe e entendeu o que ela
quis dizer. Sua primeira reação foi sentir raiva de mim por ter tentado tirar
minha própria vida, porque achava que ela era importante demais, de
alguma forma. Você… você ainda acha isso. Deixa sempre claro nas
entrelinhas. Isso te afetou de uma certa maneira, talvez porque tenha
percebido que eu não precisava apenas que alguém me colocasse em
situações para me obrigar a decidir que eu importava, mas de uma pessoa
que lutasse por mim para que eu desejasse lutar também. Então você
cumpriu sua promessa da estufa e colocou a si próprio em risco ao me
manter longe daqueles inspetores que me queriam levar para o diretor. Você
continuou me protegendo ao me levar para seu quarto, e, quando as coisas
evoluíram lá, você nunca me machucou, mesmo pensando que poderia
cruzar os limites comigo. Você fez de minha experiência sexual… talvez até
amorosa, nada mais do que perfeita, Hayden. Eu precisava daquela
conexão, eu precisava… de você. E só entendi isso até muito pouco tempo
atrás.
“Semanas atrás, na queda de energia, você sequer hesitou em ir atrás
de mim quando eu chamei por seu nome, estou errada? Mas, mais do que
me proteger, você se certificou de que eu era capaz de cuidar de mim
mesma se eu realmente quisesse. E isso me fez me ver de uma maneira
completamente diferente, tá legal? Finalmente me fez perceber que eu
podia, sim, ser autossuficiente. E quando, horas mais tarde, você engoliu
seu orgulho, talvez pela primeira vez, por mim, ao se prontificar a limpar o
chão que eu molhara intencionalmente? Isso só mostrou que você poderia
ser alguém que abdica de seus piores instintos em função de alguém que
possa merecer isso. Porque você acha que eu mereço isso, certo? Eu mereço
sua melhor versão. No dia seguinte, você foi chamado à sala do Dr. Cole, e
voltou de uma maneira que eu nunca tinha visto. Você estava
simplesmente… desmoronando. E quando eu o abracei, eu senti, Hayden,
que você precisava daquele toque humano. Você queria alguém para lhe
amparar da mesma maneira que andava me amparando, mesmo que
inconscientemente. Você queria ser sentido. E eu senti você. Com cada
pedacinho da minha alma não tão irrevogavelmente quebrada quanto uma
vez pensei que estivesse. Isso então, por fim, despedaçou sua última
barreira de autopreservação, é o que eu acho, porque poucos dias depois
você apareceu na porta de meu quarto com uma desculpa ridícula de que
tinha adubo bom para minhas plantas. Você apenas… queria conversar
comigo, certo? Queria ser ouvido, compreendido e visto de verdade, assim
como queria me escutar como ninguém antes tinha escutado. Você
continuou aparecendo nos dias seguintes por causa disso. Você… você me
trouxe aqui para comemorar meu aniversário, e eu nem faço ideia de como
você teve conhecimento de que era hoje, mas eu também não ligo, porque
ninguém nunca se importou com a data em que eu nasci ou com o fato de
eu ter completado mais um ano de vida antes. Ninguém nunca… se
importou comigo assim. Então, depois de tudo que eu falei aqui, depois de
ter deixado claro que você provavelmente mudou minha vida de uma
maneira definitiva em tão pouco tempo como ninguém nunca mudou em
todos meus últimos anos, você consegue realmente crer que é uma pessoa
plenamente horrível? Quer saber, só o fato de você provavelmente achar
que o mundo seria um lugar melhor com você preso naquele Instituto prova
que eu estou certa sobre você, e você está errado. Você só está…
irrevogável e inteiramente enganado.”
Comecei a desabar em lágrimas, como se tudo em mim doesse. Minha
alma, meu corpo, meu coração. Tudo, tudo. Machucava ver como Hayden
punia a si mesmo, como ele não conseguia enxergar a si mesmo como era
de verdade.
Tudo que eu mais queria era que ele entendesse que valia a pena criar
expectativas em cima de si mesmo, e que outros também podiam ter
esperança nele. Nada disso era um erro, como ele sempre tentara alertar. Eu
o queria comigo. A pessoa quem ele era, ele por completo. Nada mais, nada
menos. Mais do que isso, desejava que ele apenas tivesse me escutado, que
enfim me julgasse capaz de fazer minhas próprias escolhas da melhor forma
possível.
Minha visão estava embaçada, mas eu percebi sua mão se aproximar
de meu rosto. As pontas ásperas de seu dedo arranharam minha bochecha, e
após longos segundos, que podiam mesmo ter se confundido com minutos,
ele sussurrou:
— Ei, não chora. Não por mim, tá?
— Eu estou chorando porque eu nunca me senti tão importante para
alguém como me sinto para você. E você nem consegue reconhecer
abertamente que se importa porque isso significaria que você tem
sentimentos e que é uma pessoa boa, seu babaca.
— Katrina… — Ele enxugou minhas lágrimas, passando os polegares
cuidadosamente sobre meus olhos, e só então percebi que seus próprios
olhos estavam marejados. Parei de chorar na mesma hora. — Eu nunca me
importei com ninguém como me importo com você. Nunca me preocupei
com ninguém como me preocupo com você. E, pensando bem agora… acho
que nunca pensei que conseguiria amar alguém como amo você. Então,
apenas... pare. Pare de chorar. Porque nada nunca doeu em mim como dói
vê-la desabar.
Pisquei repetidas vezes, tentando compreender se tudo aquilo era real.
Se ele tinha dito mesmo o que eu havia escutado, e se eram lágrimas que
realmente brilhavam em suas bochechas. Foi difícil confirmar que aquilo
não se tratava de um simples sonho, porque era tudo tão… etéreo. Aquele
lugar afrodisíaco, meus sentimentos que começavam a se tornar
deslumbrantes e avassaladores, a visão de um Hayden mais íntimo e muito
mais… bonito. Uma versão de si que eu tinha certeza de que conheceria
mais caso tivesse a chance, caso tivesse tempo. Caso ele me desse seu
tempo.
Ajoelhei-me e envolvi seu rosto com as mãos, sentindo suas lágrimas
molharem minha pele quente, o que só então me deu a completa
confirmação de que Hayden sentia. Sentia demais, sentia muito.
— Você vem? Vem comigo?
Ele voltou a tocar meu rosto, como se também tentasse distinguir o
sonho da realidade. Ali, ele me avaliou sem pressa alguma, cada centímetro,
cada milímetro de meu rosto. Jurei que meu coração podia parar bem ali,
diante de seu olhar tão cru e significativo. Bem, meu coração não chegou a
parar de fato, sabia que não podia, porque parecera que por toda a vida ele
tinha batido apenas para escutar as seguintes palavras escaparem da boca do
homem que eu já amava e sabia que, de alguma forma, seria capaz de amar
mais e mais conforme os dias se passassem entre nós:
— Sim, pequena aberração. Eu vou com você.
Eu sorri. Sorri como nunca sorrira antes. E me sentira viva como
nunca também. Imediatamente entendi que tudo tinha valido a pena. As
cicatrizes que me trouxeram até aquele lugar, até ele, eram necessárias. Não
podia querer que nada tivesse acontecido diferente em meu passado,
apenas… que meu futuro fosse diferente. Que nosso futuro fosse diferente
de nosso passado. Era tudo, tudo que me importava.
Honestamente, eu não saberia dizer se fui eu quem o beijei ou se foi
ele quem me beijou. Isso tampouco importava. Um ansiava pelo outro da
mesma maneira, no fim.
O ritmo do beijo foi lento, mais apaixonado que os outros. Não
tínhamos pressa, não ali, onde o tempo parecia ter parado. Nossos toques
também eram demorados, exploradores e tão intensos quanto deveriam.
Com uma exigência crescente de um pelo outro sem as barreiras que
nos impediam de estarmos como um só, logo nos livramos de nossas
roupas, e, de alguma maneira, fomos parar na parte mais rasa do córrego, a
água gelada servindo como um aliviante regularizador para nossos corpos
ferventes. Senti que meu corpo foi realmente contemplado ali quando
Hayden levou a boca a cada centímetro de meu corpo, revezando entre
beijos e chupões cujas sensações eram lancinantes, e principalmente quando
ele penetrou a região entre minhas pernas totalmente abertas em meio à
água sem recorrermos a preliminares dessa vez.
Nossos gemidos se misturaram em uníssono com o som das dezenas
de córregos dali e do vento batendo nas folhas de jiboia ao nosso lado, e eu
tive mesmo a certeza do futuro que eu queria. Eu acharia um lugar como
aquele em uma região que não houvesse nada que me lembrasse o Instituto,
e seria feliz lá. Poderia ser feliz com Hayden, não importando as versões de
nós mesmos que assumiríamos por definitivo. Elas não poderiam ser ruins
se um estava ao lado do outro, era meu pressentimento imensurável e
incontestável.
Em um sentimento de plenitude, tanto em aspectos físicos quanto
emocionais, eu cheguei ao ápice de meu prazer quando ele chegou ao seu.
Isso, entretanto, não foi suficiente. De forma alguma.
Continuamos tomando tudo que um podia dar ao outro, ou ao menos
tentar, porque tínhamos muito para fornecer, até o sol começar a se pôr.
Mesmo que ainda não satisfeitos por completo, nos conformamos que ainda
teríamos mais tempo. Só fomos nos dar conta de que Lilith tinha sumido
antes de sair, mas Hayden não se importou tanto. Se ele pudesse ser livre
permanentemente, sua cobra deveria ter o mesmo destino.
Tínhamos que esperar apenas mais um dia para também
conquistarmos a liberdade do réptil, porque, já no próximo entardecer, nós
pegaríamos tudo que precisávamos e fugiríamos. Juntos e sem nunca olhar
para trás.
Ao menos, foi o fim que nos deixamos idealizar para um conto de
fadas não tão condizente com a realidade lá fora.
Samambaia (Dennstaedtiaceae)
Uma das plantas mais antigas da Terra por conta de suas
folhas pontudas. Há quem acredite que pode cortar as
energias negativas do ambiente, mas também há crentes
de que ela traz azar.

Eu chegara a mencionar no dia anterior para que esperássemos o dia


primeiro do próximo mês para fugir, quando todos os inspetores estivessem
distraídos com as visitas, ou até o fim de semana, quando os inspetores não
estivessem com tanto medo de serem pegos pela inspetora Foy ao serem
subordinados, mas Hayden, por algum motivo, disse que não podia esperar
até lá. Então, ele traçara um plano que me pareceu simples até demais.
Juntaríamos nossas roupas, sendo a maior parte agasalhos para
aguentarmos a noite na floresta, duas lanternas, fósforos para uma fogueira,
alguns poucos litros de água e também comida, tudo sendo apenas o
suficiente para algumas semanas. Hayden conhecia a floresta e sabia para
qual direção ficava a estrada. A caminhada, segundo ele, levaria algumas
sete horas se não parássemos para descansar. Lá, pegaríamos uma carona e
iríamos descer apenas quando estivéssemos a centenas de milhas de
distância. Nós poderíamos decidir o resto depois. Parecia mesmo fácil.
Assustadoramente fácil. Eu rezei silenciosamente para que a prática
seguisse o mesmo pressuposto da teoria por todo o dia.
Eu tinha acabado de arrumar minha mochila na hora do almoço,
colocando só as roupas e água ali. Hayden tinha ficado encarregado do
resto. E também tinha… dinheiro. Não sabia o quanto, mas isso não
importava. Apenas após ver minha última aula da tarde que eu fui voltar
para meu quarto e pegar minhas coisas. Eu encontraria Hayden na escada
mais desconhecida que levava à ala masculina, a mesma que ele me
mostrara ao me levar até seu quarto pela primeira vez. Queríamos nos
manter longe de vista do maior número de inspetores possível por conta das
mochilas. Hayden disse que não conseguiria subornar nenhum inspetor ao
ponto de passar nós dois com aquelas mochilas maiores para fora, então
pegaríamos a única saída não vigiada. Eu não sabia ao certo onde ficava,
mas eu confiava nele.
O sol estava quase se pondo, e então eu coloquei a mochila
inevitavelmente estufada em minhas costas e olhei ao meu redor. O
sentimento de despedida não me machucou nem um pouco, muito pelo
contrário. Pensar que eu nunca mais veria aquele quarto, as grades na
janela, me trouxe um alívio arrebatador. No fim, não haveria absolutamente
nada naquele Instituto do qual eu não sentiria falta, com exceção apenas de
uma coisa… ou um único alguém.
Eu decidira não me despedir de Helen, porque não queria colocá-la em
apuros ao avisá-la de meus planos que iam contra todas as regras do
Instituto. Também sabia que ela não iria querer fugir comigo. Ela queria
construir uma carreira, e precisaria do diploma daquele lugar. Ela se
formaria em poucos meses, e era perfeitamente saudável para que eles a
deixassem ir. Ninguém pagaria o diretor para mantê-la presa ali também.
Ainda assim… quando levei a mão na maçaneta da porta, não
consegui deixar o quarto com a sensação de também estar prestes a deixar a
única amiga que eu tivera em toda minha vida. Por isso, inspirei fundo e,
inevitavelmente, girei os calcanhares em direção ao único canto de minha
escrivaninha desprovido de vasos de planta. Peguei um pedaço de papel do
meu caderno e uma caneta e comecei a escrever as primeiras palavras mais
sinceras que me vieram à mente.
Helen, quando você ler isso, eu provavelmente já estarei longe. Sinto
muito por não me despedir pessoalmente, mas eu não quis torná-la uma
cúmplice.
Obrigada por ter me mostrado, pela primeira vez, o que realmente é
um laço de amizade verdadeiro.
Eu te encontrarei quando você sair daqui, de uma forma ou de outra, e
então passarei a acompanhar sua caminhada em direção a um sucesso
límpido e justo de perto. Isso é uma promessa.
Até breve, minha amiga.
K
Dobrei a folha com todo o cuidado do mundo e escrevi o nome de
Helen na parte da frente, sorrindo por um momento. Foi um sorriso triste,
mas não pesaroso. Nós duas seguiríamos nossos próprios rumos, e isso era
algo bom. Não importava que tivéssemos que nos separar apenas por pouco
tempo. Nós nos encontraríamos no fim.
Sem perder mais tempo, saí daquele quarto horroroso e fui para o
primeiro corredor onde ficava o quarto de Helen. Eu sabia que ela ainda
estava em sua última aula, então enfiei o papel debaixo da porta e tomei
rumo em direção ao quarto de Hayden.
Não cheguei a dar mais de cinco passos, contudo, quando senti algo
estranho. Passos pesados e numerosos pareciam estar se aproximando, o
que era algo estranho. Ainda havia muitos em suas aulas, e aquela
movimentação era, no mínimo… suspeita.
Foi aí que talvez uma dezena de inspetoras apareceram no corredor,
batendo às portas enquanto anunciavam uma vistoria surpresa. Arregalei
meus olhos, atordoada, e também perdi o ar.
Não, não, não, não.
Voltei a atenção à porta do quarto de Helen, pensando em pegá-lo de
volta, mas já era tarde demais. Eu não conseguiria pegá-lo de volta sem
atrair suspeitas, as inspetoras ordenaram que todas presentes nos quartos se
mantivessem no corredor. O único tempo que eu parecia ter era para…
correr.
Corri como se minha vida dependesse disso, porque dependia mesmo.
Desci até o primeiro andar tão desgovernadamente que não fiz ideia de
como não caí ao chegar ao fim dos degraus, e então corri até a lateral do
Instituto onde eu me lembrava ficar a escada em que me encontraria com
Hayden.
Avancei pelo corredor ainda com passos agitados, atraindo a atenção
de alguns alunos dali. Não podia me dar ao luxo de me importar. Conforme
eu avançava, entretanto, eu percebia que alguns inspetores começavam a
abrir a porta estreita em direção aos dormitórios masculinos. Eles…
também estavam indo vistoriar a ala.
Sem saber o que fazer, entendendo que Hayden não estava ali, eu
parei, apavorada. Mas, assim que o fiz, alguém me puxou pelo antebraço.
Estava prestes a gritar quando a ideia de que eu tinha sido pega me passou
pela cabeça, mas então minha boca foi tampada. Mordi aquela mão sem
sequer hesitar, pronta para fugir, porém parei quando escutei um sibilar de
palavrão em uma voz muito familiar.
Só então percebi que era Hayden que estava diante de mim na sala
vazia para a qual tinha me puxado.
— Você realmente se tornou uma monstrinha desagradável, não é? —
Hayden soprou, avaliando o sangue que escorria de sua mão. Não parecia
irritado, entretanto. De forma alguma.
Aliviada, eu ignorei o comentário ao abraçá-lo rapidamente.
— Pensei que fosse tarde demais — sussurrei, ainda com a respiração
acelerada e coração agitadamente palpitante.
— Ainda não, mas temos que ser rápidos — ele disse também em um
tom baixo ao retribuir o abraço nem nenhuma hesitação, como foi da
primeira vez. Seu corpo já respondia automaticamente ao meu. Hayden se
sentia confortável o bastante para se deixar corresponder a mim daquela
forma.
— É, eu sei — eu disse, enfim me soltando dele. — Escuta, eu… eu
fiz besteira, tá? Me desculpa, eu não sabia. Eu escrevi um bilhete de
despedida para Helen antes de saber da vistoria. A essa altura eles já devem
saber que há algum fugitivo. Eu não queria…
— Katrina, tá tudo bem. A vistoria na ala masculina começou
enquanto eu pegava as últimas coisas restantes para a fuga, e eu não tive
tempo de cobrir o maldito esconderijo do dinheiro. Tinha… tinha mais
coisas lá que com certeza não deixaram os inspetores contentes. Eles já
devem estar à minha procura também.
E, em resposta, escutamos alguém gritar lá de cima para que todos
entrassem em alerta, pois havia fugitivos em algum lugar. Hayden
imediatamente colocou a cabeça para fora da sala, e provavelmente vendo
que não havia nenhum inspetor, sussurrou:
— Vai dar tudo certo. Apenas temos que ser rápidos, ok?
Ele não esperou por uma resposta. Apenas segurou minha mão com
uma força quase destruidora e me puxou consigo para onde quer que fosse
nosso destino. Alguns alunos nos encararam, decerto ligando os pontos ao
verem nossas mochilas enquanto mais gritos de alerta soavam por todo
canto. Surpreendentemente… nenhum deles disse nada. Alguns deles, na
verdade, pareciam até ter expectativas em seus olhares.
Assustei-me, quando, em poucos metros, Hayden jogou seu corpo na
frente do meu, tendo instintos mais rápidos ao avistar dois inspetores
correndo. Ele me empurrou para trás de uma pilastra, e os inspetores
passaram direto por nós. Soltei o ar que prendi involuntariamente de uma só
vez, e o garoto voltou a me puxar.
Tivemos uma visão do corredor principal ao dobrarmos um corredor
periférico, e fiquei um pouco mais apavorada quando vi a quantidade
excessiva de inspetores acumulados ali, correndo de um lado para o outro.
Eles ameaçavam os alunos, perguntando se alguém tinha visto algo, mas
todos continuaram calados.
Hayden me conduziu pelos corredores como que em um movimento
de zigue-zague a fim de evitar os inspetores, mas, em certo momento, foi
inevitável encontrá-los. Três deles dobraram um corredor ao mesmo tempo
que nós, quase esbarrando no vaso de samambaia à nossa frente, e o garoto
soltou minha mão de imediato ao reagir. Um deles tentou gritar que tinha
nos achado, mas em sua segunda palavra Hayden já tinha empurrado sua
cabeça contra a parede e o deixado inconsciente. Ele estava prestes a lutar
contra os outros dois, principalmente contra o segundo inspetor que se
aproximou. O terceiro inspetor, no entanto, barrou-o com o braço antes de
avançar em Hayden.
— Vá, garoto. Você já passou por muita coisa aqui. Encontre sua paz.
Hayden trincou o maxilar fortemente, mas o escutou. Não o agradeceu
entretanto, como se todos ali soubessem que os inspetores não estavam
fazendo nada mais do que deveriam ter feito muito tempo antes.
Continuamos a correr, e, em pouco tempo, parecemos adentrar em um
caminho que me era um pouco familiar.
Não o reconheci explicitamente de imediato, mas então, em poucos
segundos, eu soube o porquê. Eu tinha percorrido aquele caminho quando
não tinha muito auxílio de minha visão. Estávamos indo… até a passagem
do porão.
Em um par de minutos, chegamos ao armário que escondia a porta, e
Hayden a empurrou e a abriu sem se importar de fechá-la atrás de nós. Nós
descemos as escadas e entramos no porão, porém, ao percorrermos alguns
passos, eu parei involuntariamente ao desviar minha atenção para o centro
do local.
Franzi o cenho, assustada quando percebi o que havia ali. Um mastro
de metal maciço havia substituído o de madeira que Hayden tinha cortado.
O garoto seguiu meu olhar, e percebi que ficou um pouco desnorteado
também. Ele mal parecia respirar, mas, no fim, se obrigou a recuperar a
racionalidade ao murmurar um “vamos” e correr para o lado oposto de onde
tínhamos entrado.
Havia uma saída de duas portas no teto inclinado dali. Não tinha a
visto antes por conta da fraca iluminação, mas agora ela quase brilhava
como a chance de ouro de escaparmos. Ela tinha uma fechadura, contudo, e
estava trancada. Logo comecei a me apavorar, pensando que aquilo não
estava nos planos de Hayden, só que então o garoto tirou uma única chave
de seu bolso.
— O que é isso?
— Eu tirei a cópia dessa chave há muito tempo. Talvez uma parte de
mim sempre esperou que eu pudesse encontrar alguém que me levasse para
longe daqui — foi o que ele sussurrou, antes de… abrir as portas. Tive a
vontade de perguntar como ele tinha conseguido fazer aquilo, mas em breve
isso não importaria mais. A luz do sol encontrou nossos rostos na mais
reluzente das sensações, e pude respirar mais livremente.
Meu coração palpitava ainda mais agitadamente no peito, só que agora
era por esperança.
Hayden subiu primeiro e se inclinou para me puxar para cima. Quando
nós dois estávamos de pé, na região da lateral direita do Instituto, nos
prontificamos a correr até as árvores, enfim… libertos. Libertos de verdade,
como sempre talvez tenhamos desejado lá no fundo.
Aqueles segundos provavelmente foram os mais felizes de minha vida,
pois eu pensei em todas as possibilidades mais reais que aquela liberdade
autêntica poderia trazer. Foi mesmo uma sensação devastadora e
potencialmente traumatizante quando eles chegaram ao fim, quando o
barulho do engatilhar de uma arma colocaram fim neles.
Eu e Hayden paralisamos na mesma fração de segundo, a apenas dois
metros de sumirmos na floresta.
— Eu sabia. Sabia que podia ser apenas você que conseguiria entrar
naquele porão sem ser pela porta da frente — a inspetora Foy cuspiu com o
sorriso mais repugnantes de todos ao manter a espingarda que eu sabia ser
usada por Hayden e outros meninos na caça apontada para nós. — Você
gostou, não foi? De orquestrar aquilo tudo, de me deixar inconsciente e me
amarrar junto a outros inspetores naquele maldito corrimão, apenas por
termos tentado te ajudar durante boa parte de sua vida. Dr. Cole sempre
esteve certo, Hayden. Você precisa de ajuda. Há uma parte mesmo muito,
muito perversa em você.
Quis gritar com aquela mulher, dizer-lhe que todos que trabalhavam
naquele Instituto eram simplesmente asquerosos e malucos, mas um
movimento brusco de Hayden me fez calar a boca. Ele se colocou à minha
frente, percebendo que a inspetora tinha desviado a atenção para mim.
Ainda assim, foi inevitável levantar a cabeça atrás do ombro do garoto e
encará-la com toda minha repulsa.
— E você, menina… Deveria se envergonhar de ter se deixado
convencer a fugir com esse menino. Você não tem ideia das coisas que ele
poderia fazer com você. Você vai pagar o preço de tamanha estupidez.
Hayden soltou uma risada sombria. Estava assumindo aquela postura
impassível e falsa, a mesma que eu pensei que nunca mais veria. Doeu
presenciá-la.
— Está me subestimando. Acha que eu precisei da boa vontade dela
para vir comigo? Eu não lhe dei outra escolha, Srta. Foy. Você sabe como
preciso de certas distrações deturpadas para me manter vivo. Odiaria não ter
uma boceta para me entreter até achar um outro lugar definitivo para
começar a destruir.
— Hayden, não — eu disse freneticamente. Eu sabia o que ele estava
fazendo, e eu não ia deixar. Nós tínhamos escolhido aquilo juntos, e
enfrentaríamos a consequência juntos. — Na verdade, fui eu quem tive que
convencê-lo a vir comigo. Você não tem ideia do que está falando, e,
sinceramente, você quem deveria ter nojo de seu próprio reflexo por se
achar mais justa do que nós. Você ainda vai pagar por todos seus pecados,
inspetora, e eu e Hayden estaremos presenciando isso bem de perto, não
porque estamos à procura de vingança, e sim por justiça.
Palmas lentas soaram atrás de nós, e quando eu girei os calcanhares,
me deparei com o Dr. Cole demonstrando um sorriso ainda mais agonizante
que o da inspetora, se é que isso fosse possível. Havia uma dúzia de mais
inspetores atrás dele. Tive que engolir em seco.
— Belas palavras, mocinha. Uma pena que elas só sejam parte de um
devaneio que você criou em sua própria cabecinha afetada. Engraçado, eu
não estive te vendo há um bom tempo, não é? Talvez seja por isso que você
esteja ainda mais… doente do que quando entrou. — O doutor desviou a
atenção para Hayden, estalando a língua. — Vendo vocês juntos assim, é
inevitável me perguntar se você, garoto, não esteve sabotando as sessões
dela. Você pode ter muitos defeitos, mas é esperto o bastante para isso, não
é? Se uma parte disfuncional de seu cérebro acha realmente que ela é
importante para si, deveria se envergonhar de estar atrasando o tratamento
dela. Você não é capaz de amar ninguém, Hayden, e ela não sabe
reconhecer quando é amada. A ingratidão dela com o pai é uma prova disso.
— Você não vai entrar em nossas cabeças — Hayden praticamente
cuspiu as palavras, tão enojado quanto eu. — Você nunca mais vai me fazer
crer que eu sou o verdadeiro monstro entre nós dois, me ouviu? E você
também não vai colocar ela nos seus jogos perversos. Eu sou o mais
importante para você, certo? Não da forma que deveria, mas, ainda assim,
sou eu quem você quer, então deixa ela de fora disso.
Não entendi completamente o que Hayden quis dizer, mas tampouco
pude pensar muito nisso, pois Dr. Cole logo se aproximou do garoto, que
permaneceu imóvel ao meu lado. Tive vontade de chorar ao ter certeza,
mais do que nunca, que estava tudo acabado, mas não me deixei derramar
lágrimas na frente do diretor ou daqueles inspetores. Eles não as mereciam.
— Não se preocupe, garoto. Ela vai obter a punição dela, mas nada
comparado ao que tenho para você. Afinal, é você quem mais deveria ter
gratidão por mim após tudo que lhe fiz, mesmo quando percebi o tirano que
você é. — Ele levou sua mão até a bochecha de Hayden, e pude jurar que
iria vomitar naquele momento. — Você vai pagar por isso sendo humilhado
como eu estou sendo por toda sua traição. E ela… bem, por enquanto, me
contentarei em fazê-la assistir tudo de camarote antes de retomar seu
tratamento para entregá-la em perfeito estado para o pai.
— Você nunca vai nos domar, doutor, não importa o quanto tente —
foi o que eu disse no tom mais frio que senti sair de minha garganta. Ele me
encarou com uma fúria febril por um momento, e então eu tive a certeza de
que estava olhando para quem ele era de verdade.
— Inspetora, por favor.
A última coisa que presenciei foi Hayden gritando e sendo segurado
por alguns inspetores apenas uma fração de segundo antes da inspetora Foy
acertar a parte traseira da espingarda com toda força possível em minha
testa.
Áster (Asteraceae)
Seu nome vem da palavra grega “estrela” devido ao
formato. Na mitologia grega, era colocada em altares dos
deuses, e sua mensagem implícita era “cuide de você
mesmo, por mim”.

Quanto retomei a consciência, não soube direito onde estava ou que


tinha acontecido, porque a dor aguda de minha cabeça ofuscou tudo.
Demorei longos segundos para me tornar mais ciente do mundo exterior
além do meu estado interior agonizante, e, quando o fiz, senti uma náusea
ainda maior que dilacerava meu estômago. Senti até mesmo bile subir pela
minha garganta quando o caos que me cercava agora me lembrou de tudo.
Senti que os sonhos que eu me deixara ter foram consumidos de uma
só vez por aquele lugar horroroso e esfomeado por sofrimento, dando lugar
ao pior dos pesadelos.
Eu estava jogada perto de uma pilastra, e havia estudantes demais
naquele local um tanto quanto carente de iluminação e de teto baixo. Toda
aquela presença era simplesmente sufocante, e logo eu também me senti
sem ar. Minha audição ainda estava um pouco afetada, mas pude identificar
perfeitamente um ruído terrível o suficiente para me causar arrepios, como
algo cortando o ar rápido demais.
Logo também recuperei mais sentidos, e percebi que algo incomodava
a lateral do meu rosto. Era sangue seco. Chiei quando concluí que a maldita
inspetora tinha colocado força o bastante na espingarda para abrir minha
pele.
— Ei, ei. — Escutei uma voz familiar ao meu lado. Era Helen que
estava agachada ao meu lado. — Você tá bem?
Não consegui responder. Meus pensamentos ainda estavam um pouco
turvos, lentos. Eu estava muito assustada, como nunca antes. Após longos
instantes, entretanto, eu me forcei a perguntar:
— Onde está Hayden? O que aconteceu?
A garota me pareceu hesitar por um momento, mas começou a dizer:
— Ele… ele… Nós pensamos que fosse só um boato. O doutor nunca
nos fez assistir a isso antes.
O quê?
Do que ela estava falando?
Ainda não estava cem por cento recuperada, mas fiz menção de me
levantar. Helen me segurou.
— Eu acho melhor você não ver isso.
— Afaste-se, garota — um inspetor que estava ao meu lado disse,
tomando ciência de que eu tinha despertado. — O doutor deixou claro que
ela deveria assistir tudo. — O homem então me colocou de pé, e só não me
desvencilhei de seu toque porque precisava entender o que estava
acontecendo.
Bem, isso até desejar ter escutado Helen.
Meus joelhos ameaçaram ceder de novo quando tomei plena ciência
do que acontecia à minha frente, o porquê de um silêncio descomunal pairar
sobre o lugar mesmo que houvesse muitas pessoas ali, e, principalmente…
do motivo que Hayden tanto odiava o pequeno altar do centro do porão.
Levei a mão à boca, atônita, ao ver o garoto ajoelhado com as mãos
amarradas à frente da coluna agora de metal e o tronco apoiado também
naquilo. Ele não vestia nenhuma camisa mais, deixando suas costas
plenamente expostas. Minha alma sentiu a mais torturante das dores quando
eu me dei conta da causa de sua pele retorcida da região. Eram cicatrizes de
chicote.
Pude jurar que meu coração parou por um segundo inteiro quando vi
Dr. Cole, de mangas arregaçadas e nenhuma piedade no rosto vil, usar um
chicote de couro de diversas tiras em Hayden, arrancando sangue da pele já
machucada. O garoto não gritou. Sequer grunhiu. Eu não podia ver seu
rosto, ele estava de costas para mim, mas não tive dúvidas que nem mesmo
uma careta fazia.
Aquela cena parecia tão tenebrosa para ser real que eu realmente
duvidei de minha sanidade, principalmente porque ninguém fazia nada para
intervir. Eram todos egoístas demais, ou por medo de também sofrerem
aquelas punições, ou porque, no fim, fosse apenas o dinheiro que os
guiasse. Eles não queriam colocar suas heranças em jogo ao se rebelarem
tão explicitamente para serem denunciados aos pais, era óbvio.
— Acho que isso está lhes servindo de alguma lição, não está? A dor
molda caráteres, afinal de contas — o doutor gritou para nós ao limpar o
sangue do chicote. — Quando quiserem me transformar no vilão, saibam
que eu encenarei o papel muito bem. Eu sou fiel a vocês, a cada um dos
casos que me é enviado, e por isso eu exijo o mesmo de vocês. Vocês estão
aqui por um motivo: para serem curados. E eu não vou deixar que saiam até
que isso ocorra. Quero cuidar de vocês, e vou me garantir mesmo que tenha
que obter seu respeito da pior forma, estão me entendendo?
Outra chicotada. Essa enfim me fez escapar de meu estado inerte, e eu
fiz menção em abrir espaço entre as poucas pessoas que estavam à minha
frente para ir até lá. O inspetor me manteve no lugar com uma força
fulminante, no entanto.
— Agora, Hayden, sirva de exemplo e diga que está arrependido de ter
tentado escapar quando tudo que eu fiz foi dedicar parte de minha vida a
você. Diga a esses meninos que se rebeliarem é absolutamente
insignificante. Nada nunca vai tirá-los daqui a não ser eu. Apenas eu posso
me decidir claramente se vocês estão preparados o bastante para enfrentar a
vida lá fora. Vamos, diga.
Hayden não o fez. O doutor manuseou seu chicote outra vez, e eu
tentei gritar, mas tudo que saiu de minha garganta foi um fraco sussurro:
— Não.
— Diga.
Tudo que se fez presente foi uma quietude angustiante, o que pareceu
irritar o doutor apenas mais. Mais duas chicotadas se fizeram presentes,
porém Hayden ainda não disse nada. Dr. Cole, grunhindo, se aproximou
repentinamente do garoto, segurando seu cabelo ao trazer sua cabeça para
trás. Só então tive um vislumbre de seus olhos. Havia nada mais do que
uma coragem crua e triste reluzindo neles.
— Diga, moleque. Ou pelo menos admita a si mesmo que nunca vai
sair daqui a não ser por mim. Eu sou tudo que você tem, e você mesmo
cavou essa cova.
O doutor soltou sua cabeça, mas antes de se distanciar, Hayden a levou
para trás bruscamente, atingindo o doutor do homem de meia-idade, que
soltou um grunhido apenas por aquele golpe. Isso arrancou um riso de
Hayden, que apenas sussurrou:
— Você é patético. E de forma alguma que é tudo que eu tenho.
Tristemente… eu que sou a única coisa que lhe sobrou.
— Eu vou acabar com você, menino. De uma forma ou de outra — o
doutor respondeu entredentes, enxugando o sangue que escorria de seu
nariz. O homem então, com toda determinação tenebrosa do mundo, chegou
para trás, decerto se preparando para o que iria fazer a seguir.
Não pude mais aceitar ser contida. Porque, se Hayden, naquele estado,
tinha conseguido reagir… eu também conseguiria. Tinha que conseguir.
Antes mesmo de entender o que fazia, como se os instintos enfim fossem
mais poderosos que a racionalidade limitada, eu consegui me soltar do
inspetor ao afundar as unhas na mão que me segurava sem nenhuma
piedade. E então eu não hesitei mais.
Abri espaço entre as pessoas à minha frente sem dificuldade alguma e
corri até o centro do porão. Coloquei-me na frente de Hayden e tentei
avançar até o doutor para segurar seu pulso, mas já era tarde demais. As
tiras acertaram a parte esquerda do meu rosto em uma força lancinante,
jogando-me no chão no mesmo minuto. Perdi os sentidos por longos
segundos, sentindo a ardência baixar minha pressão. Mesmo sem tocar nas
feridas, tive certeza que o que acabara de acontecer me deixaria cicatrizes
tanto internas quanto externas. Quando comecei a recuperar a audição, a
primeira coisa que escutei foi a voz desesperada de Hayden chamando pelo
nome, exigindo que eu respondesse, que dissesse que eu estava bem.
Também ouvi o ruído incessante de suas mãos, pela primeira vez, tentarem
se soltar da coluna de metal.
— Sabe, menina, eu realmente estava disposto a deixá-la de fora disso,
mas essa interrupção foi a gota d’água. Ainda não entendeu que eu sou a
única autoridade aqui? — ouvi o doutor dizer a mim, mas o interior de
minha bochecha estava tão machucado que não consegui dizer nada de
imediato. Tudo que eu conseguia fazer era cuspir sangue. — Vamos, mostre
suas mãos para mim. Já percebi que você gosta um pouco de jardinagem,
não é? Talvez interromper a estabilidade de seus dedos por um tempo te
faça pensar apropriadamente sobre o que anda fazendo de errado. Você
pode agradecer a mim por isso em um futuro próximo.
— Se você tocar nela, eu juro por tudo que é mais sagrado que…
— Ameaças não ajudarão em nada aqui, garoto — o doutor
interrompeu as palavras quase mortais de Hayden. Senti o homem se
aproximar de mim e exigir outra vez: — Me mostre suas mãos antes que eu
perca o restante de minha paciência, Srta. Katrina.
Continuei relutando, principalmente porque sequer tinha mais forças.
Meu rosto parecia estar em chamas. Não entendia como Hayden pôde
aguentar tanto daquilo, e ainda quieto. Era simplesmente… uma incógnita.
Quis gritar mais pela dor interna quando me dei conta de que ele era a
pessoa mais forte que eu conheceria em toda minha vida.
— Srta. Katrina, eu falarei uma última vez, se você…
— Não toca nela — Hayden disse entredentes, e quando me inclinei
um pouco percebi que ele virava a cabeça para trás o tanto quanto era
possível. Seu olhar estava agitado, oscilando entre mim e o doutor de
segundo em segundo. — Está me ouvindo? Se você fizer isso, não haverá
mais volta. Eu nunca vou descansar até sua carcaça virar pó.
O doutor pareceu apenas mais irritado pelas palavras de Hayden, e
então se agachou até mim e pegou uma de minhas mãos ao esticá-la no
chão, fazendo com que meu corpo perdesse o equilíbrio e caísse por
completo no chão.
— Mantenha a mão aí ou eu serei obrigado a feri-la em um lugar que,
infelizmente, seu pai não gostará nem um pouco. Não que isso me importe
tanto.
— Eu ainda vou te ver ruir muito em breve, doutor — foi o que eu
disse, ainda que a parte interna de minha bochecha estivesse muito
lesionada. Que ele me chicoteasse, eu poderia aguentar mais dor. Mas, no
fim, as consequências de todo o sofrimento que ele causava seria muito
piores para si mesmo. Eu sentia isso. Ele apenas se alimentava da dor, e isso
o levaria para o pior destino possível.
— É o que veremos, garota — ele disse sombriamente, e então
levantou o braço um pouco para se preparar para o golpe.
Fechei os olhos, esperando por mais uma onda de dor excruciante,
porém, ela nunca veio. Porque, talvez uma fração de segundo antes que o
diretor levasse as tiras do chicote até minha pele, Hayden gritou:
— Pai, não.
Abri as pálpebras de uma só vez, atônita com o que achava que tinha
ouvido, deparando-me com a visão de um vaso de Áster que nunca tinha
notado no porão. Aquilo… não podia ter sido real. Aquela única palavra
não podia ter saído de sua boca, não ao denominar o diretor daquela
instituição podre.
Estava incrédula, no entanto… os burburinhos também atônitos que
me se espalharam pelos alunos, até por muitos dos inspetores, deixaram
claro que eu não tinha ouvido errado. Minha respiração falhou, e todo meu
corpo se encontrou repentinamente dormente diante da tentativa de
assimilar que Dr. Cole era o pai de Hayden. Automaticamente, foi
inevitável pensar que tudo fazia muito sentido. Mais do que deveria.
Hayden era o aluno mais antigo da instituição. Tinha muitas regalias e
conhecimentos que nenhum outro aluno deveria ter. Até a história que ele
tinha me contado sobre a morte de sua mãe fora mais complementada com
aquela formação. Aquela mulher devia ter sido paciente de seu pai, e as
viagens que ele fazia eram para as pesquisas que seriam usadas naquele
Instituto.
Dr. Cole não pareceu nem um pouco feliz por todos terem descoberto
aquele laço de parentesco. Não era muito aceito que psiquiatras atendessem
seus próprios parentes, afinal. O homem trincou o maxilar, e ali vi
nitidamente a semelhança com o seu filho, ainda que o rosto daquele
homem fosse muito mais dolorosamente cruel.
— Eu posso dar o que você quer. Apenas… não toque mais nela —
Hayden sussurrou enfim, como se quisesse garantir que o doutor tivesse
mesmo cedido.
O homem semicerrou os olhos em nossa direção, mas, no fim, expirou
um suspiro contante e largou o chicote ao dizer:
— Levem os dois à minha sala após limparem todo esse sangue. Não
quero que sujem meu consultório.

— Você tá bem? — eu sussurrei para Hayden assim que dois


inspetores o colocaram sentado na cadeira ao meu lado com uma força
excessiva. Inevitavelmente, aquela foi a primeira coisa que saiu de minha
boca, embora quisesse muito falar sobre o fato de Dr. Cole ser seu pai. Seus
lábios estavam sem cor e sua pele, mais pálida que o normal. Ainda estava
sem camisa, e marcas de corda estampavam a pele de seus pulsos. Não
conseguia sequer pensar qual o estado de suas costas agora que não havia
sangue cobrindo a pele aberta.
Hayden me encarou por um momento, fitando especialmente os
ferimentos de minha bochecha. Eu não tinha encarado meu reflexo ainda,
mas sentira que duas tiras haviam me atingido mais profundamente quando
tateei pela região. Elas realmente deixariam cicatrizes. Eu não me
importava. Assim que o garoto voltou a encontrar meu olhar, uma dor crua,
não exatamente por razões físicas, mas sim por outros motivos, reluziu em
seu olhar.
— Eu sinto muito, Katrina — ele disse em um tom muito mais forte
que o meu. Não soube exatamente pelo que ele se achava culpado. Talvez
por tudo no passado, presente e, estranhamente… pelo futuro. Quis
perguntar o que tanto Dr. Cole queria dele, mas não tive a chance, pois logo
o próprio Diabo entrou em seu consultório e se sentou atrás de sua mesa
com uma expressão nada convidativa.
— Eu estou te ouvindo — o médico soprou com o olhar impetuoso
fixo no filho, que também tinha toda a atenção no pai.
— Eu assino. Apenas… deixe-a fora de suas punições — disse, e eu
não entendi que acordo era aquele.
— Assinar o quê? — eu perguntei para Hayden, que nem mesmo
transferiu o olhar para mim. Estava esperando a resposta do homem à sua
frente.
Dr. Cole se recostou em sua cadeira, avaliando a proposta sem pressa
nenhuma, como se estivesse em vantagem ali.
— Tudo bem. Eu não a punirei — foi tudo que o doutor disse, e fez
menção de se levantar da cadeira.
— E eu não quero que você seja mais o médico dela. Quero que você a
repasse para outro profissional enquanto ela estiver aqui, e que garanta que
nunca mais apliquem terapia de eletrochoques nela.
Dr. Cole voltou a se sentar, soltando um riso de escárnio que fez com
que um calafrio horrível percorresse minha espinha.
— Está pedindo demais, garoto. Não vou abdicar do caso dessa
menina. Vou provar para o pai dela que, embora tenhamos tido uma disputa
acirrada pelo primeiro lugar de nossa turma, eu me sobressaí depois de
formado. Eu cuidarei de sua própria filha e entregarei uma versão dela que
ele sempre quis, mas que nunca conseguiu aplicando seus próprios
métodos. — Por um instante, não teve nada no mundo que eu não quisesse
mais do que cuspir na cara daquele ser humano odioso, mas eu não faria
isso com Hayden. Não me colocaria mais em apuros quando ele parecia tão
determinado a me livrar de problemas. — Não a punirei pelos últimos
acontecimentos, e você deveria considerar isso mais do que justo a troco de
uma simples assinatura sua, que dará permissão para algo que irá ocorrer de
todo modo.
Franzi o cenho.
— Do que vocês estão falando? O que vai acontecer? — insisti, um
pouco mais desesperada, mas continuei sendo ignorada.
Aparentemente, eu não era a única aflita ali, porque Hayden soltou um
suspiro que deixou claro que ele estava inquieto, mais… atormentado. Vê-
lo assim me deixou ainda pior.
— Katrina, nos deixe sozinhos, por favor. Amanhã, sem falta, teremos
nossa primeira sessão, e irei buscá-la pessoalmente. Até lá, seja…
— Eu assino a confissão do assassinato de George — Hayden
praticamente cuspiu as palavras, chamando nossa atenção para si. Arregalei
os olhos, desnorteada, mas o garoto ainda não me encarava. Pelo contrário,
ainda tinha uma atenção crescente sobre o pai, que ficou mais sério.
— Acha que eu sou estúpido, garoto? Não pode confessar um
assassinato assim. Não me provoque mais, eu estou…
— Ele foi encontrado enterrado a seis quilômetros a leste do Instituto,
não foi? Logo abaixo de um barranco e ao lado de um tronco caído —
continuou, e reconhecimento assombrou as feições de Dr. Cole. — Ele
morreu por uma fratura craniana. Morte instantânea. A causa da morte
nunca foi revelada, certo? Então só há uma forma de eu saber disso tudo.
Eu o enterrei. Eu o matei.
Não. Não podia ser verdade.
Não me importei que Dr. Cole estivesse ali. Simplesmente disparei
para Hayden sem conter as palavras:
— Não, você está mentindo. Você me disse que não o matou. Eu não
vou deixar que você negocie algo absurdo apenas para me manter longe de
alguns choques. Eu posso aguentar isso, eu posso…
— Eu nunca disse que não tinha o matado, Katrina. E você sabe bem
disso — Hayden disse sombriamente, ficando… distante. Como foi por
muito tempo. — Pelo contrário, tudo que eu fiz foi garantir que você não
me conhecia por completo. Não deveria estar tão decepcionada.
Eu não estava decepcionada. De forma alguma.
Eu estava inconsolável.
Não tive mais o que dizer porque sequer sabia o que pensar. A sala
começou a rodar um pouco ao meu redor, e voltei a me sentir nauseada. O
chão sob meus pés parecia ruir ao poucos, deixando-me em uma queda
livre. Em algum momento, eu passei a ter certeza que Hayden não tinha
matado George. Não apenas achei isso, mas estava certa. E ele nunca disse
que não tinha o matado, mas também nunca falou que o fizera.
Segurei os braços da cadeira com uma força excessiva até que os nós
dos meus dedos ficassem brancos. Por que ele não me contara? Ele me
contara sobre sua mãe, sobre como a matou.
Uma única resposta me veio à mente após pouco tempo. Talvez ele
não tivesse contado porque… porque se envergonhava daquele assassinato.
David uma vez dissera que George estava ficando instável, e que estava
ameaçando os negócios de Hayden.
Eu nunca quis pensar mais afundo no assunto, mas eu sabia que
Hayden vendia medicamentos, calmantes. E o dinheiro de hoje não tinha
como ter sido obtido de outra maneira. Talvez… David estivesse certo o
tempo todo, eu apenas me relutei a acreditar.
Somente cogitar essa ideia me fez ficar sem ar. Pensar que eu não
conhecia todas as partes de Hayden que precisava conhecer… começou a
dilacerar toda a confiança que eu pus nele, ainda que isso tenha sido uma
responsabilidade unicamente minha.
— Você sabe que o que vai fazer é arriscado, principalmente porque
envolveu outros médicos da área. Você está apostando alto, e, por isso, se
tudo der errado, a queda também será brusca. Você tem medo de que tudo
se volte contra você. Eu vi isso em nossa última conversa. Você nunca
conseguiu provar que eu tenho uma tendência concreta à psicopatia ou que
há uma necessidade irrecusável de uma intervenção cirúrgica para que eu
possa viver normalmente em sociedade, certo? Mas uma confissão de que
eu matei um garoto mais novo do que eu a sangue frio mudaria tudo. Então,
ter minha tutela não será o único fator ao seu favor mais. Você terá um
motivo plausível ao defender que estava apenas tentando ajudar seu filho
caso tudo termine com o pior cenário possível.
Dr. Cole voltou a me encarar, semicerrando os olhos em minha
direção. Suas narinas estavam dilatadas e seus lábios pressionados em uma
fina linha. Segundos torturantes e longos demais se passaram até que ele
voltasse a atenção ao filho e dissesse em não mais que um sussurro:
— Eu sempre soube que estava certo em mantê-lo longe do mundo.
Acordo feito, filho. Eu mesmo cuidarei da papelada da confissão.
O homem então fez um gesto com a cabeça em minha direção, e um
inspetor veio até mim e me colocou de pé. Não pude me deixar ser
distanciada daquela forma, embora meu coração tivesse mesmo começado a
quebrar. Uma parte de mim ainda não conseguia acreditar que Hayden tinha
feito aquilo, então me desvencilhei do inspetor e me agachei ao lado do
garoto, que até então evitava meu olhar.
— Por favor, por favor. Eu não vou deixar que você faça isso.
Apenas… me fale a verdade.
Hayden enfim transferiu a atenção para mim. Sua mesma versão fria e
implacável do dia em que eu o conheci tinha voltado.
— Você quer a verdade, pequena aberração? Bem, foi bom para meu
ego encontrar a primeira pessoa estúpida o suficiente para achar que eu
poderia ser uma pessoa boa. Você nos enganou direitinho, não foi? Mas essa
é a realidade, e, nela, eu sou o lobo mau, não o caçador nobre que acreditou
que eu fosse. Foi até divertido pensar sobre mim como alguém agradável,
só que isso foi uma mentira. A todo momento. Mas pelo menos nos
divertimos um pouco, estou errado? Não se sinta tão frustrada. Lá no fundo,
já deveria saber que ninguém nunca achou que eu fosse o bom moço por
nada. Há motivos concretos e inegáveis de que eu sou um pesadelo vestido
de sonho.
Balancei a cabeça freneticamente, não querendo absorver suas
palavras.
— Não, Hayden… Você… você é bom. Você está fazendo tudo que
faz para me manter longe do seu pai. Eu sei que…
— Sim, eu estou querendo mantê-la longe dele. Mas não por você, e
sim por mim — respondeu calmamente, sem um pingo de sentimentos. Não
do tipo bons. — Eu sou egoísta o bastante para não querer que a pessoa que
eu mais odeio nesse mundo fique obsessivo em outro caso depois de mim.
Você iria ser a próxima fixação dele, sabe? Por conta do ego. Ele iria tentar
consertar o que acha que você tem de errado apenas porque tem a
necessidade de conseguir um feito que ninguém mais conseguiu. Ele
tentaria, a todo custo, superar seu pai. É instintivo da parte dele se
sobressair. Mas não, eu não quero isso. Quero que o doutorzinho aqui
demore o máximo possível para encontrar seu futuro caso compulsivo,
apenas para que seu vazio o consuma pouco a pouco. Esse será um castigo
para ele que realmente me deixaria feliz depois de passar uma vida toda
tentando consertar a mim e minha mãe freneticamente. A falta de propósito
profissional é a única coisa que poderia deixá-lo louco.
Encarei-o, atordoada e ainda sem chão. Não podia… não queria
acreditar naquilo.
Tive que fechar as mãos em punho, enfiando minhas unhas na palma
da mão, apenas para me concentrar um pouco na dor física e não tanto da
dor emocional, que parecia ser a mais mordaz e penosa que eu já sentira em
toda minha vida.
Tive certeza de que meu coração acabou de se partir em mil
pedacinhos quando Hayden esboçou aquele sorriso vil e cruel que só ele
sabia dar quando o inspetor me arrastou para fora.
— Adeus, Katrina — foram as últimas palavras da versão de si que eu
não tinha ideia se era forjada ou dolorosamente real.
Copo-De-Leite (Araceae)
Essa é uma flor branca que pode simbolizar a pureza, mas
também o renascimento e a ressurreição. Por isso, é usada
tanto em casamentos quanto funerais.

Não eram as pessoas que tinham o poder de nos decepcionar, e sim a


ideia que tínhamos delas.
Isso era tudo em que eu conseguia pensar nos últimos três dias. Eu me
afundava em um vazio que se estendia além do meu interior. Era uma
sensação horrível. Eu me sentia muito sozinha, mas não como antes. Agora
o sentimento era muito mais avassalador e inquietante, pois eu enfim tinha
experimentado como era ter alguém ao meu lado. Ou ao menos, ter a ideia
de um alguém.
Mesmo após aquele tempo, eu não tinha certeza do que pensar. A
confissão de Hayden, os detalhes que ele dera sobre o assassinato de
George continuavam a afligir minha mente de modo quase enlouquecedor.
Eu sabia que ele era capaz, tinha lhe dito isso uma vez. Entretanto… eu
realmente achei que o garoto não tinha o matado, mesmo quando tudo
gritava pelo contrário. Até ele mesmo. Eu… podia mesmo ter sido
imprudente. Havia essa chance. A primeira pessoa estúpida o bastante para
acreditar que Hayden pudesse ser uma pessoa boa, segundo as palavras
dolorosas do próprio.
Mesmo tendo tudo isso em mente, uma parte de mim continuava a se
relutava a acreditar que Hayden tinha matado George a sangue frio, como
alegara ao seu pai. Mas… havia muitas lacunas abertas. Havia apenas duas
explicações plausíveis do porquê de Hayden não ter me contado sobre
aquela morte quando contou a de sua mãe, uma pessoa muito mais próxima
de si; ou ele realmente se envergonhava daquela morte por ela não ter tido
um motivo plausível, ou ele não era mesmo tão bom quanto me deixei achar
para não se importar comigo ou com George o bastante para falar sobre
aquela morte.
As duas opções me machucariam na mesma proporção.
Pensando racionalmente, não havia resposta pessoalmente aliviante
por trás daquele segredo. De forma alguma.
Eu devia começar a me conformar que, se não tudo, muito do que eu
atribuí a Hayden não passara de uma mentira. Contudo eu não conseguia.
Uma parte de mim, a mais rebelde e quase insensata, se agarrava fortemente
a todo bem que o garoto me fizera, mesmo que houvesse uma grande
possibilidade de que seus motivos não tivessem sido tão puros quanto uma
vez eu ponderei até mesmo em voz alta para ele naquele maldito córrego,
há quatro dias.
Parecia que eu estivera naquele paraíso — ou a ideia de um —
décadas atrás, quando na verdade fazia tão pouco tempo. Como as coisas
podiam ser tão suscetíveis à mudanças súbitas me assustava imensamente.
Ouvi a porta do meu dormitório se abrir abruptamente, mas não me
importei em tirar a coberta de cima de minha cabeça para ver de quem se
tratava. Já imaginava que fosse Helen me trazendo alguma comida como
fizera no dia anterior. Eu não tinha me importado o bastante para descer
para alguma refeição, muito menos para ir às aulas. Surpreendentemente,
nenhum inspetor tinha aparecido para me arrastar para fora.
Talvez os malditos cortes em meu rosto me serviam como atestado
suficiente.
— Tira o cobertor da cara, novata. — Não foi a voz de Helen que
chegou aos meus ouvidos. Era uma muito mais irritante.
Não o fiz, mas, em poucos segundos, meus olhos encontraram a forte
luz que entrava em meu quarto pela janela. Tive que piscar repetidas vezes,
pois isso machucou minha retina, principalmente por estar tão sensível após
horas de choro incessante. Brad entrou em meu campo de visão.
— Sente-se. Quero conversar com você.
— Como você conseguiu entrar aqui, hein? — resmunguei baixinho
antes de empurrar o travesseiro contra meu rosto. Ele também foi tirado de
mim.
— Acredite em mim, tive que gastar um bom dinheiro por isso.
Apenas por sua causa, na verdade, então vê se coopera. Aqui, te trouxe
isso.
Só então percebi que ele segurava algumas folhas. Eram de cajueiro.
Isso enfim me fez sentar em minha cama.
— Você se importa comigo desde quando?
— Não me importo — respondeu simplesmente, revirando os olhos.
— Mas Hayden sim. Roubei do quarto dele. Passa no seu rosto.
— Não quero. E você não deveria ter tanta certeza de que ele se
importa. Eu… eu tenho minhas dúvidas.
Brad franziu o cenho.
— Do que está falando? Você não ia fugir com ele? Deveria confiar
nele.
— É, mas isso foi… antes.
— Antes de quê?
Hesitei. Não sabia até onde Brad sabia. Por isso, o que eu retruquei
foi:
— Você sabia? Sabia sobre Dr. Cole ser o pai de Hayden?
— Não. Mas eu tinha minhas suspeitas — respondeu, e pareceu ter
sido sincero. Engoli em seco, imaginando que, se o loiro não tinha
conhecimento daquele segredo, provavelmente não sabia sobre o autor do
assassinato de George. — Não pode ter sido essa revelação que te fez
hesitar quando a ele. O que aconteceu naquele consultório?
Por algum motivo, não consegui lhe contar sobre a confissão,
principalmente agora que imaginava que Brad não sabia de nada. Também
não tinha como falar sobre o acordo em boa parte silencioso que Hayden e
Dr. Cole fizeram, porque eu não tinha entendido muito disso. Não sabia o
que Hayden estava trocando para me manter longe do médico, pelo motivo
que fosse. Isso também me confundia, e muito.
Odiava a forma como aquele garoto estava mexendo com minha
cabeça, me fazendo duvidar da única coisa que eu parecera ter certeza em
minha vida.
— Isso não importa — eu respondi Brad, minha voz não passando de
um doloroso sussurro. Ele cruzou os braços sobre o peito, ainda em pé
diante de mim.
— Importa, e muito, novata, porque ele não deu as caras neste
Instituto nos últimos dois dias. Pelo menos não do primeiro e segundo
andar.
— Você por acaso viu o estrago que fizeram nas costas dele? Ele só
deve estar na ala médica ainda.
— Não, Katrina. Eles nunca o levaram para lá antes. Hayden podia
ficar mofando naquele porão até três dias depois de ser chicoteado. Foi isso
que o fez usar aquela passagem escondida do porão, ora e outra. Ele
precisava de, no mínimo, antiinflamatórios. Era eu quem lhe entregava. E,
além do mais, você interrompeu a sessão de tortura de merda antes que ela
mal tivesse começado. Ele não ficou tão ruim assim ao ponto de precisar de
alguma emergência.
— Você está falando sério? Acha mesmo que aquilo não era ruim?
Você viu o tanto de sangue que o Dr. Cole arrancou? — soprei, incrédula.
— Eu já tive que literalmente costurar pedaços que despencavam das
costas de Hayden no mínimo duas vezes, novata, então não, não acho que
tenha sido tão ruim — retrucou, mais sério, e eu engoli em seco. Então suas
costas… não eram suturadas por ele mesmo. Provavelmente a única região
de seu corpo onde outros botaram a mão para curar, apenas porque era a
única opção possível.
Pensar nisso resgatou um pouco mais de comoção que eu tinha por
Hayden. O… afeto e a preocupação instintiva, que tivera aparecido pela
primeira vez há muito tempo, quando eu deixara um inocente inconsciente
pelo garoto na lateral de um prédio em chamas.
Só que aqueles sentimentos não me faziam bem. Apenas afetavam
mais minha razão, como se já não tivesse abalada o bastante. Reprimi o
máximo possível aquela intuição protetora que tinha em relação a Hayden
para sussurrar a Brad:
— Olha, ainda não entendi direito o que você veio fazer aqui, mas, por
favor, só me deixa sozinha agora.
— Não, Katrina. Não vou te deixar em paz enquanto você não me
dizer o que aconteceu naquele maldito consultório e para onde o Dr. Cole
deve ter o levado.
— E você tem mesmo a capacidade de se importar, por acaso?
Ele hesitou, mas, em um tom mais sombrio, enfim respondeu:
— Ele foi a única pessoa a me dar um propósito na droga desse
presídio. Embora tenha sido um propósito de fato digno de dúvidas por
vocês, pessoas sem graça, foi isso que me manteve o mais racional possível
aqui. Eu devo muito a ele.
Engoli em seco.
— E que propósito é esse?
— Lutar por mim da maneira que eu precisava lutar — foi o que ele
respondeu. Cerrei os dentes com uma força excessiva. — Tudo que eu fiz,
eu precisei fazer. Por mim, para que eu não me estrangulasse com a raiva
em meu interior, incessante e apenas mais estimulada pelos tratamentos sem
limites do doutor. Hayden não me julgou por um segundo sequer porque
sabia que eu precisava ao menos me sentir liberto da minha forma. Não me
arrependo de nada, embora ainda não seja tão psicopata para não ter
consciência de que nem tudo que eu faço é bom, porque eu precisava me
manter vivo das únicas maneiras que me mostraram durante toda minha
vida. Repressão gera uma violência mais letal do que qualquer outra coisa,
Katrina.
De alguma forma, tive certeza de que aquelas poderiam ser as últimas
palavras cruamente sinceras que Brad diria para qualquer um em um bom
tempo. Desviei o olhar para o chão, absorvendo cada uma daquelas
informações.
Cada um dá o que há no coração, era o que ele parecia dizer. E
ninguém provavelmente nunca tinha mostrado a Brad como oferecer o
melhor de si. Consequentemente, foi inevitável pensar que ninguém tinha
mostrado para Hayden também, e, talvez, por isso não tinha conseguido
mostrar um caminho melhor a se seguir para o loiro. Entretanto… ele tinha
o ajudado da forma que pôde. Deixando-o confortável para ser livre de sua
maneira antes que a repressão o implodisse.
Voltei a encarar Brad, que ainda me fitava com toda atenção.
— Você… você acha mesmo que há uma parte verdadeiramente
bondosa em Hayden? E foi essa mesma parte que lhe ensinou a lutar por si?
— foi inevitável perguntar, ainda com a voz falha e exausta, e,
surpreendentemente, Brad pareceu ponderar mesmo sobre minhas palavras.
— Eu tenho certeza, Katrina, de que Hayden seria alguém repleto de
uma humanidade até irritante caso alguém em sua vida tivesse lhe mostrado
que há motivos genuínos no mundo para que valha a pena mostrar tal
característica — ele disse, não exatamente respondendo minha pergunta,
mas falando o que parecia saber que eu precisava ouvir. — Só que… isso
nunca aconteceu, não é? De fato, há uma faísca de bondade em seu coração
que nunca se apagará, e você não deveria questionar isso. A questão é: ela
poderia se tornar mais incandescente do que as brasas de seu cérebro
forjado? O homem é o produto do meio, mas até que ponto não é tarde
demais para recuperar a verdadeira natureza de alguém? De si mesmo?
Podia haver uma parte boa em Hayden. Devia ter. Mas… ela talvez
nunca fosse ser mais forte que a má. Aquela era uma corrida entre sua
essência e seu desenvolvimento. Entre como ele nascera e como ele
crescera.
Aquela percepção foi como querosene na chama caótica que andava
tomando minha mente. Além de confusão, tristeza e frustração, agora eu
também sentia raiva. Senti uma fúria genuína do Dr. Cole pela possibilidade
de ele ter diretamente corrompido Hayden para todo sempre.
Também senti raiva de Hayden pela chance de ter deixado que a
criação de seu pai ganhasse a corrida de quem ele podia ter sido.
A náusea constante em meu estômago repentinamente ganhou mais
intensidade diante da completa anarquia de meus pensamentos, concepções
e achismos. Eu me forçava tanto a descobrir a resposta de quem Hayden
tinha sido e de quem podia ser que eu parecia mesmo fraca. Fraca demais.
E Brad não estava ajudando em absolutamente nada. Pelo contrário,
tudo que ele tinha feito era me deixar consciente de questões ainda mais
complexas. Foi por isso que, repentinamente, eu disse ao desviar o olhar do
loiro, estranhamente fixando a atenção à flor copo-de-leite da minha
escrivaninha que ele tinha me dado:
— Sai. Sai, sai, sai.
— O quê? Você ainda não me disse o…
— Se você não sair agora, eu vou gritar. Não quero mais nada que
envolva Hayden e sua turma desequilibrada. Isso está só… me adoecendo
mais. Cai fora do meu quarto, anda.
Brad pareceu furioso, mas, após longos segundos, deixou as folhas
caírem abruptamente no chão antes de se dirigir à porta. Ele não me deixou
a sós com minha própria companhia desagradável entretanto, até dizer:
— Não há porque se frustrar por minhas conclusões, nem eu mesmo
estou certo delas. Embora eu o conheça há muito mais tempo que você, eu
suponho que ele tenha te deixado enxergá-lo muito mais intensamente. É
você quem deveria ter as respostas sobre quem Hayden realmente é, e não
qualquer outra pessoa.
Crisântemo (Asteraceae)
Enquanto a flor vermelha transmite amor, a branca
simboliza a verdade e lealdade. Amarela, por outro lado,
simboliza o amor frágil.

No dia seguinte, a inspetora Foy enfim foi me buscar em meu quarto e


me escoltar até minha primeira aula. Não cedi de muita boa vontade, a ideia
de sequer sair da cama para enfrentar um mundo que eu achei que deixaria
para todo sempre era quase dilacerante. Eu não pareci ter outra opção,
entretanto.
Embora o Dr. Cole tivesse me deixado livre de seu acompanhamento
médico, a inspetora fez questão de me lembrar em um longo discurso que
não havia acordo nenhum sobre punições de outras violações às regras.
Honestamente, eu não me importava tanto assim com qualquer outra dor
física que pudesse me ser imposta, ela não chegaria nem aos pés da
psicológica que me afligia, contudo, em um certo momento, eu acabei me
esgotando da presença repulsiva da mulher e vesti o uniforme que, por um
momento, pareceu queimar minha pele. Eu abominava ele também.
Minha mente continuou existindo tanto nas aulas quanto andava em
meu quarto. Fui capaz de ignorar plenamente os olhares fixos em minha
direção sem muito esforço, assim como os burburinhos e as doutrinas
intermináveis dos professores. Eu estava em um estado de introspecção
maior do que qualquer um anterior ao qual fui submetida. Passara a tentar,
no entanto, evitar pensar um pouco em Hayden desde minha conversa com
Brad, porque nenhuma das perguntas que eu fazia a mim mesma tinham
respostas definidas ou explícitas. Estava sendo difícil, mas andava dando
tudo de mim para isso.
A manhã passou se arrastando lentamente por meus olhos ofuscados
pelo meu estado dormente. Eu tinha dificuldade até de me mover. Era como
se, após encontrar uma certa posição, eu pudesse ficar ali, confortavelmente
paralisada por todo sempre. Eu sabia que estava deprimida. Estava muito
interiormente machucada. Entretanto… uma parte de mim ainda via uma
falha luz no fundo do túnel, mostrada talvez por a ideia de alguém porém
mantida lá por mim; uma pequena parte ainda tentava me manter consciente
de que aquilo um dia teria que passar, que eu conseguiria me curar, ainda
que eu passara nos últimos dias deixaria a pior das cicatrizes em mim. No
fim das contas, eu tinha mesmo mostrado que era capaz de cuidar de mim
mesma, e era isso que importava.
Perdê-lo, ou perder alguém que eu achava que conhecia, tinha sido…
estava sendo simplesmente devastador. Mas eu não permitiria me perder,
não após ter demorado tanto para me encontrar. Eu usaria todas minhas
forças restantes para isso.
Muitas coisas tinham sido tiradas de mim naqueles últimos dias, só
que minha esperança de dias melhores, nem que fossem dias diferentes dos
que eu imaginara ao lado dele, não esteve entre a lista por um segundo
sequer, e essa percepção provavelmente era tudo que eu realmente precisava
para confiar em mim mais do que precisaria confiar em qualquer um. Eu era
suficiente, e aquela experiência de perder tanto e ainda ter a mim pelo
menos me certificara disso.
O fato era que… eu apenas tinha pensado que poderia haver outro
alguém que escolheria querer cuidar de mim também; que, esse esforço
transferido em minha função deixaria espaço para que eu também
transferisse minhas forças para também ampará-lo. Eu tinha mesmo
acreditado nisso, que, apesar de poder, não precisaria estar sozinha o tempo
todo, que alguém poderia querer me conhecer e tentar entender minha dor
enquanto eu fazia o mesmo por ele. Isso só… não foi possível.
E tudo ficaria bem. Eu suportaria o fracasso de minhas expectativas,
de todas elas, de algum modo. Superaria os momentos difíceis, estava
aprendendo a o fazer. Algum dia. Ainda que distante, mas… um dia.
Quando o horário de almoço chegou, me sentei à mesma mesa de
sempre, e não foi nenhuma surpresa quando Helen ocupou a cadeira à
minha frente.
— Oi — ela cumprimentou em um baixo, cauteloso. O mesmo que
andava adotando nos últimos dias.
— Oi — eu respondi de volta, e tentei sorrir por um segundo. Não deu
muito certo, mas achei que Helen notou o esforço.
— Então enfim não vou ter que roubar algum lanche do almoço para
levar escondido até seu quarto, hein? — ela tentou brincar, e eu dei de
ombros.
— Você só estava retribuindo a sobremesa que te roubei há algumas
semanas. Com juros.
Helen não riu, provavelmente porque meu tom também não era dos
mais brincalhões apesar das palavras sarcásticas, porém sorriu sem mostrar
os dentes, avaliando-me por um momento.
— Você… tá bem? — questionou então, mais séria. Era a primeira vez
que me perguntava isso desde a tentativa da fuga, como se soubesse que a
pergunta tinha uma resposta tão óbvia. O fato de ela apenas ter esperanças
para verbalizá-la agora ao me analisar devia significar alguma coisa.
— Vou ficar — foi o que eu respondi.
— Vai? — Ela arqueou as sobrancelhas, e eu inspirei fundo.
— Vou, sim — afirmei após longos instantes.
Eu realmente não tinha dúvidas de que eu nunca me esqueceria do que
eu estava passando, nunca me esqueceria… dele. Porém, eu tinha
esperanças que concluiria de uma vez tudo que fora mentira e tudo que fora
verdade dessa parte de minha vida de alguma maneira, ainda que isso
pudesse mesmo demorar, que eu pudesse precisar de tempo para isso. E,
mesmo que tais conclusões não fossem tão boas, eu seguiria em frente. Por
mim.
Helen colocou sua mão em cima da minha, e eu transferi o olhar para
seus orbes. Não encontrei nada mais que um genuíno apoio e fé
transbordando dali, e então me lembrei de que, embora pudesse lidar com
isso, eu não estava de todo sozinha. De forma alguma.
Pela primeira vez em dias, eu sorri, ainda que por apenas uma fração
de segundo.
— Fico feliz, Katrina. Fico muito, muito feliz — ela sussurrou por
fim.

Na próxima manhã, eu não acordei muito melhor, mas Helen foi me


buscar em meu dormitório, como se soubesse que seu incentivo fosse
melhor que a imposição da Inspetora Foy caso percebesse que eu não tinha
comparecido à primeira aula. Ela ficou comigo até que eu trocasse de
roupa, me esperando pacientemente enquanto tentava me distrair de meu
próprio estado absorto com assuntos aleatórios. Não deu muito certo, mas
considerei muito a tentativa mesmo assim. Apenas sua companhia servia
para que eu me sentisse mais… amparada.
Nós descemos até o primeiro andar com Helen ainda monopolizando a
conversa, o que não era ruim. Eu gostava de sua voz. Ela parou de falar,
contudo, quando avistou, provavelmente no mesmo momento que eu,
David, Brad e Ashley escorados na pilastra mais próxima das escadas. Eles
me observavam fixamente, como se estivessem justamente me esperando,
mas eu desviei o olhar.
Puxando Helen, fiz menção em virar o corredor à direita, mas Brad foi
mais rápido ao me barrar ao lado da mesa com um arranjo de crisântemos
de diversas cores.
— Cinco dias, novata. Faz cinco dias que Hayden não aparece. Já está
na hora de você me dizer o que há de errado.
— Eu não sei de nada, tá legal? — balbuciei e tentei passar por ele
novamente. O garoto segurou meu braço.
— Isso não é verdade. Você deve saber de alguma coisa aí no fundo. O
que está acontecendo com Hayden? Por que você saiu daquele terceiro
andar há cinco dias e ele não?
— Eu não sei — repeti, sincera.
— Mentira. Você está mentindo — Ashley se intrometeu, e eu expirei
o ar pesado pela boca.
— Helen, por favor. Fale para sua amiga nos dizer o que está
acontecendo. Todos nós já tivemos problemas com Hayden, mas isso não
quer dizer que possamos simplesmente… deixar para lá. Isso está muito
estranho — David disse, assumindo um tom mais ameno que os amigos,
mas a garota ao meu lado cruzou os braços sobre o peito.
— Katrina está bem do meu lado e escutando tudo que você está
falando. E, se ela diz que não sabe de nada, eu acredito — Helen
resmungou, fazendo com que o garoto suspirar audivelmente.
— Olha só, chega. Você vai nos contar o que aconteceu naquele
maldito consultório e porque nunca mais vimos Hayden agora — Brad
disse, mais alterado, e eu entrei em um estado de alerta.
— Ah, é? Ou o quê? — soprei, e ele se aproximou de mim.
— Vai querer esperar para descobrir?
Eu simplesmente o empurrei bruscamente para trás, também adotando
um tom mais firme:
— Não vou deixar que você me mostre nada. Não sou mais a garota
indefesa que você conheceu há alguns meses.
— Mas é isso que vamos ver então, sua cadel…
Naquele instante, um movimento atípico nas escadas chamou nossa
atenção, fazendo com que Brad calasse a boca e se distanciasse de imediato.
Era Dr. Cole quem descia as escadas em um movimento apressado, seguido
por mais três inspetores. Havia um sorriso entre seus lábios que de modo
algum podia significar boa coisa. Vê-lo causou calafrios terríveis em toda
minha espinha, e eu até estremeci um pouco. Ele era um monstro, e disso eu
nunca teria dúvidas.
Os quatro passaram diretamente por nós e seguiram até a porta
principal. Foi Dr. Cole quem a abriu, e imediatamente dois homens também
de meia idade, usando ternos caros e segurando maletas de couro, entraram
em nosso campo de visão.
— É um imenso prazer vê-los novamente, cavalheiros. Entrem,
entrem. Mostrarei aos senhores minha simples instituição antes de levá-los
lá para cima. — Dr. Cole cumprimentou ambos com um aperto de mão
firme.
Um dos homens pediu desculpas por ter pedido o adiamento da
cirurgia, e o outro disse estar animado pelo que eles fariam juntos já no dia
primeiro. Enrijeci meu corpo por completo naquele momento, começando a
ter minhas suspeitas. Entrei em estado de relutância, entretanto, porque a
pequena cogitação de minha mente me assustou muito. Logo a deixei de
lado, contudo, pois, antes do Dr. Cole seguir com os homens pelo pequeno
tour do casarão, ele os apresentou aos alunos que estavam ao seu redor,
observando a rara visita que tínhamos naquele Inferno.
— Meninos, conheçam o Dr. Saymon e Dr. Pétrus, neurocirurgiões e
psiquiatras de extremo renome que tenho a imensa satisfação de
compartilhar ideologias. Eles ficarão conosco por alguns dias. Agora
venham comigo, senhores, lhes mostrarei o lugar.
Eu já estava paralisada quando os três homens se distanciaram. Minha
pele suava frio e ar deixava meus pulmões por completo.
Não. Não, não, não.
— O que eles estão fazendo aqui? — Brad resmungou para ninguém
em específico, mas chamou a minha atenção. Eu arregalei os olhos para ele,
que me encarou no mesmo momento.
— Qual seu problema, novata?
Não o respondi. Estava imersa demais em meu caos interior.
Eles fariam a intervenção cirúrgica em Hayden, o momento havia
chegado. Não havia outra explicação plausível para suas presenças aqui,
principalmente se eram de tanto renome assim. Não perderiam seu precioso
tempo neste fim de mundo por nada.
Havia sido por isso que Hayden estivera tão apressado em fugir do
Instituto. Ele não tinha tempo, dissera. Ele… ele já sabia. De tudo. O ódio
confuso que sentia dele se esvaiu um pouco pela primeira vez em dias,
dando lugar a um temor e angústia avassaladores.
— Ei, Katrina. Katrina. O que está acontecendo? — Helen chamou
minha atenção, e só então percebi que eu lutava para respirar. Levei minha
mão à garganta, de algum modo tendo esperança que ela abrisse o suficiente
para deixar o oxigênio que eu precisava entrar. Não funcionou.
Parecia que eu ia morrer. Eu acreditei mesmo nisso por um momento.
— Merda, ela está tendo um ataque de pânico — meus ouvidos que se
entupiam identificaram, por pouco, o murmurar de David.
Minha visão se escureceu um pouco, e senti uma onda de frio começar
a consumir meu corpo. Já não tinha forças em meu corpo, e minhas pernas
ameaçaram ceder quando alguém me arrastou para algum lugar que não me
importou.
Após um tempo que não pude ter discernimento para concluir, fui
colocada sentada no chão, e escutei alguém me dizer para colocar a cabeça
entre as pernas. Foi o que eu fiz. Meus pulmões ainda chiavam à procura de
ar, e minhas mãos tremiam incontrolavelmente. Após pouco tempo,
contudo, comecei a recuperar a visão e a audição, e então alguém chamou
minha atenção.
Era Helen que empurrava uma garrafinha de água em minha direção.
Agarrei-a quase que instintivamente, dando-me conta de que minha boca
pregava de tão seca.
Engoli uma boa quantidade do líquido de uma só vez, e só quando fui
entrar a garrafinha de volta à garota que me dei conta de que eu tinha sido
levada para uma sala vazia e que todos ainda estavam diante de mim,
encarando-me sentada no chão.
— O que foi? Qual o problema? — Helen perguntou em um tom
baixo, agachada à minha frente.
— O Dr. Cole… Hayden… — tentei lhe contar, mas as palavras
saíram confusas e falhas. Eu estava desnorteada diante da gravidade de
tudo, do que o diretor faria com seu próprio filho.
— O que está acontecendo, novata? Desembucha — Brad disse diante
de mim, impaciente, mas eu mal o escutei.
Meus olhos começaram a lacrimejar e um pavor cru consumiu minhas
entranhas enquanto mais e mais palavras de Hayden invadiam minha mente
inevitavelmente.
Eles querem provar que… a psicocirurgia ainda pode ser usada para
curar após o estigma das consequências da lobotomia.
Hayden seria a cobaia daqueles doutores, e as chances dele morrer no
processo eram quase gritantes.
— Eu… eu não sabia — eu sussurrei, ainda desorientada e um tanto
quanto irracional. — Hayden disse que assinaria dois documentos naquele
consultório. Eu não me dei conta de que um deles era de consentimento
para sua cirurgia.
— Cirurgia? Cirurgia de quê? — Ashley perguntou, e eu a encarei pela
minha visão embaçada por lágrimas.
— Psicocirurgia. Os médicos querem provar que ela ainda pode ser
viável. Eles vão intervir fisicamente no cérebro de Hayden — eu respondi,
e comecei a chorar mais por um verdadeiro e inigualável pânico. Eu podia
talvez não conhecer de fato aquele garoto e podia me ressentir por coisas
que ele me fizera, mas aquilo… aquilo não era justo. Aquele tipo de coisa
não seria feito a ninguém que tivesse outra escolha. Ser o teste de
intervenções como essa, sendo suficientemente racional, era mais do que…
cruel.
— Dr. Cole não seria tão estúpido — Brad cuspiu secamente. — Essas
coisas não são permitidas, são? E se são, não deveriam ser aplicadas a
pessoas que só tem essa chance de melhorar? Até onde sabemos, Hayden
não poderia ser tido como um caso perdido a esse ponto. Ninguém
provavelmente teria provas concretas de classificá-lo com algum transtorno
que oferece tanto… — o garoto pareceu começar a pensar um pouco,
abaixando o tom — tanto perigo à sociedade. Merda. — Brad
repentinamente veio em minha direção e se agachou logo ao meu lado. Não
tive outra escolha a não ser dar minha atenção para ele. — Você disse que
ele assinaria dois documentos. Qual o outro?
Hesitei.
— Qual o outro, Katrina? Se ainda há a possibilidade tirarmos esse
dessa, precisamos saber de toda a situação. Vamos, me fale qual o…
— Ele assinou uma confissão do assassinato de George, tá legal? —
eu o cortei subitamente, como se reconhecer aquilo em voz alta mais rápido
fosse fazer a dor também ser mais ligeira. Não foi.
Ashley cambaleou um pouco para trás, David arregalou os olhos e
Helen soltou um chiado de susto. Brad, contudo, não pareceu em choque.
Nem um pouco.
— Você… você sabia? Sabia que ele o matou?
O garoto se colocou de pé.
— Eu não sei como aconteceu. Mas eu o ajudei a se livrar do corpo,
sim.
— Vocês estão falando sério? — Helen murmurou, parecendo
indignada, mas ninguém a respondeu.
— Olha, isso não importa agora — Brad murmurou. — Nós temos que
fazer alguma coisa, ou Hayden também pode ser morto, entenderam? Que
porra do caralho. Nós… nós temos que intervir de alguma maneira. Temos
que traçar um plano ou…
— Ou não fazer nada — David murmurou baixinho, ainda com os
olhos arregalados. Todos nós nos voltamos para ele. — Essa não é a prova
que Hayden oferece, sim, risco à sociedade? Quer dizer, isso que Dr. Cole
está fazendo, tornando seu filho como cobaia, é obviamente errado, mas
talvez seja preciso. E se houver uma chance de a cirurgia obter sucesso? E
se Hayden conseguir melhorar qualquer que seja o distúrbio que tenha e as
pessoas ao seu redor também sejam beneficiadas com isso? Merda, nós
sabíamos como George era. Como estava por aí louco abusando das drogas
que Hayden repassava para ele vender. Ele tinha muitas alterações de
humor e estava colocando nosso sistema em risco, claro, mas uma pessoa
normal não teria resolvido as coisas assassinando um garoto de vinte anos.
Isso é ridículo.
— Nós não sabemos como as coisas aconteceram, se foi esse mesmo o
motivo de Hayden ter o matado — Brad disse entredentes, se aproximando
mais de David, que fechou as mãos em punho.
— Inferno, não é óbvio? Hayden sempre se esforçou muito para
manter tudo e todos sob seu controle. Ninguém nunca o ameaçou o
suficiente para descobrir tudo que ele faria caso o desobedecesse com
exceção de George.
— E com exceção dela. — Brad apontou para mim, deixando-me
atordoada por um momento. — Na verdade, eu diria que Katrina fez tudo
isso ainda mais que George. Não se lembra de como ela lhe deu um soco na
cara na parte de fora do Instituto, instigando-o como George nunca se
arriscou a fazer? Não viu tudo que essa garota lhe fez arriscar, todos os
planos dele próprio que ela afetou? Quando colocamos fogo no prédio de
seu pai e ele teve que voltar apenas por ela, colocando sua própria cabeça
em jogo ou quando ele decidiu incluí-la no último plano da queda de
energia, mesmo sabendo que ela não tinha tanta experiência com aquelas
merdas e tendo a possibilidade de ela estragar tudo? — O garoto levou o
indicador ao rosto de David. — E me diga agora, o que ele fez no fim? Ele
tentou fugir com ela, cara. Ele se prontificou a iniciar toda uma vida com
ela.
— É diferente — David refutou amargamente.
— Diferente como?
— Ele estava apaixonado por ela.
Ouvir alguém dizer aquilo alto me afetou de uma maneira que eu
sequer pude identificar ao certo.
— Se ele estava mesmo, isso só mostra que ele é capaz de sentir o
bastante para não precisar de uma cirurgia para despertar sua humanidade
ou qualquer coisa do tipo.
— Talvez isso não seja suficiente — David elevou a voz, empurrando
a mão que Brad apontava para si com força. — Escute, não há outro motivo
para Hayden ter matado George senão pelo seu descontrole. Se ele
assassinou alguém por um motivo não tão significativo, pode fazer de novo.
Se há a possibilidade de essa cirurgia ter sucesso, é melhor que ela ocorra
do que manter Hayden longe da sociedade atrás das grades.
— Isso é ridículo pra cacete. — Brad empurrou David bruscamente, e
só então tentei dizer para que eles parassem, que aquela briga era
desnecessária, mas não consegui. — Como pode querer que ele sirva como
cobaia para um doutor doente o bastante para causar um Inferno na vida do
filho? Como pode duvidar tanto dele quando ele já fez muito por você? Ele
incendiou as corporações de nossos pais apenas para que nos sentíssemos
mais justiçados, porra. Ele pode ter feito muitas atrocidades, sim, mas não
se esqueça de que algumas foram por nós.
David o empurrou de volta, parecendo irritar ainda mais Brad. Helen
falou para que eles se acalmassem, mas eles não a ouviram.
— E você acha que a espécie de dívida que temos com ele é o bastante
para passarmos pano para a morte de um garoto da nossa idade, cacete?
— Nós não sabemos o que aconteceu, eu já disse — Brad contestou,
agora gritando. Saliva escapou de sua boca, fazendo com que meu coração
se acelerasse ainda mais. A raiva de ambos era quase palpável.
— Nós sabemos, sim. Sabemos mais do que ninguém de tudo que ele
é capaz — David berrou de volta, e Brad lhe acertou um soco no queixo.
Levei a mão à boca, chocada.
— Ele pode ser capaz de muita coisa, mas não temos ideia ao certo do
que ele realmente faria.
David, recuperado, jogou o corpo de Brad contra a mesa do professor,
mantendo-o lá.
— Pare de ser apenas o seguidor cego de sempre, cacete. É óbvio que
Hayden matou aquele garoto sem sequer hesitar.
— Você não sabe como foi! — Brad insistiu, tentando tirá-lo de cima
de si.
— Ele matou!
— Nós não temos ideia do que aconteceu!
— Chega! — foi Ashley quem berrou mais alto do que qualquer um
quando David estava prestes a esmurrar Brad. Ela chamou toda nossa
atenção, e só então percebemos que ela estava encolhida à parede e que
lágrimas frenéticas deixavam seus olhos, ensopando seu uniforme. — Fui
eu, tá bom? Fui eu quem matou George.
Dália (Asteraceae)
É de porte médio, perene e, quando adulta, pode atingir
até 1,50m. Demonstra o compromisso e vínculo
duradouro entre duas pessoas. Por isso, é ótima para
aniversários. Também pode simbolizar aviso, mudança,
ou — quem sabe — aviso sobre mudanças.

Imediatamente todas as peças de um quebra-cabeça que eu nem sabia


que existiam começaram a se encaixar em minha mente.
Um silêncio ensurdecedor se fez presente na sala, e isso me deu a
oportunidade de pensar sobre as últimas palavras de Ashley enquanto
fixava o olhar em um arranjo de dálias presente na sala, na mesa do
professor.
A primeira memória que me veio à mente foi de meu primeiro
encontro com Ashley, quando ela me pegou fazendo perguntas sobre o
assassinato de George. Sua reação não havia sido desproporcional ou
infundada como eu pensara quando ela tentou me punir por isso. A garota
apenas não queria que o assunto ficasse circulando pelos cantos.
Também me recordei de quando eu a peguei chorando no quarto,
sendo que ela sempre me parecera tão forte. Ela provavelmente estava
enfrentando o que quer que aquele incidente lhe causara. Isso também
explicava o motivo de ela nunca estar no dormitório. Uma vez Hayden me
dissera que ela andava precisando das amigas mais do que nunca. Nunca
tinha pensado no porquê disso até agora.
As palavras de Ashley antes que ela me trancasse na sala daquele
prédio em chamas logo me encontraram.
Você não deveria estar aqui, e, se quer saber… acho que você tem
muito potencial de estragar tudo.
Por tudo, ela queria dizer os segredos daquele assassinato. Ela dissera
aquilo pouco depois de eu ter acusado Hayden da autoria da morte do
garoto em frente a tantas pessoas. A garota estava reagindo à ameaça que eu
lhe signifiquei ao me deixar para trás naquele dia.
E, na última queda de energia, quando ela pareceu apavorada, não foi
porque estava com medo do assassino como eu pensei, e sim porque…
poderia haver outros como George. Chegar a essa conclusão me fez
transferir a atenção à Ashley de imediato e romper aquela quietude de puro
choque:
— O que aconteceu? — eu sussurrei, ainda… assombrada.
A garota ainda chorava, mas levou as mãos aos olhos ao dizer em um
tom embargado:
— Foi um acidente, ok? Ele… ele estava descontrolado.
Diante daquelas palavras, os garotos também fixaram toda sua atenção
à Ashley, que teve que inspirar fundo e fechar os olhos para continuar.
— Na penúltima queda de energia, nosso plano era pichar as salas.
Vocês se lembram — disse, provavelmente se dirigindo a Brad e David, que
mal pareciam respirar. — Hayden mandou Brad para as salas do primeiro
corredor da ala A e David para a segunda. Eu, Hayden e George ficamos
encarregados das salas abertas do corredor principal.
“Eu e George seguimos para o corredor principal antes de Hayden,
porque ele tinha atraído a atenção de inspetores que ameaçaram nos pegar.
No caminho, eu vi George tomar MDMA, e, honestamente, não acho que
tenha sido a primeira bala da noite. Ele estava transtornado. Não disse nada,
no entanto, apenas segui com o plano. Entrei na primeira sala que encontrei
aberta, mas ele… ele me seguiu. George fechou a porta atrás de si,
impedindo que eu saísse, e ele começou a dizer algumas coisas loucas. Não
era nenhum segredo que Hayden e ele andavam tendo alguns problemas,
Hayden tentava mantê-lo sob controle e ele estava de saco cheio de ser
pressionado ou colocado em uma coleira, segundo suas próprias palavras.
Ele me falou que poderia tomar o lugar de Hayden, que as coisas no
Instituto ficariam muito melhores com ele no comando, alguma coisa
assim.”
Ashley enfim abriu as pálpebras, e perdi o ar por um momento quando
vi nada além de puro pavor escorrer de seus olhos junto com suas lágrimas.
— Eu disse que ele estava ficando maluco, que ninguém nunca
tomaria o lugar de Hayden no último patamar dentre os estudantes,
principalmente porque, embora pudesse ser descontrolado em alguns
momentos isolados, podia manter o controle quando mais necessário das
mais diversas situações. George… ele não gostou de ouvir isso, e ele
começou a levar o assunto para outro lado. Ele disse que eu só estava o
defendendo porque… porque já tinha tido relações sexuais com Hayden,
mas que ele me mostraria que poderia fazer tudo ainda melhor que ele. Ele
tentou me estuprar.
Meu coração palpitou com força no peito diante de suas últimas
palavras, e por um momento senti toda sua dor. Imaginei que todos na sala
sentiram pela forma que a observaram, na verdade. Mais uma vez, Ashley
enxugou suas próprias lágrimas com uma força ainda maior do que
qualquer anterior.
— Eu me lembro de gritar quando ele veio para cima de mim, mas
ninguém me ouviu. Tudo estava muito caótico do lado de fora. Eu me
lembro de, então, pensar que eu estava apenas por mim mesma. E… eu me
lembro de, no segundo em que ele subiu minha saia, empurrá-lo com toda
minha força. Ele já estava fora de si, então se desequilibrou e caiu com a
cabeça em cima de uma das mesas da sala. Ele… ele morreu na hora.
— Jesus Cristo — Helen balbuciou, decerto chocada como todos nós
estávamos.
— Tudo que Hayden fez foi me ajudar, tá legal? — ela disse rápido
demais, gesticulando agitadamente com as mãos. — Eu entrei em desespero
e saí da sala. Ele estava no corredor quando passei pela porta, e eu contei
tudo para ele. Eu… eu senti que só podia confiar nele. E estava certa.
Hayden me mandou cair fora e disse que cuidaria de tudo. Ele realmente o
fez.
E então, pela primeira vez desde que Ashley confidenciara a autoria da
morte de George, eu me deixei pensar em Hayden.
Lágrimas voltaram a marejar meus olhos sem que eu pudesse evitar.
Não era tarde demais para Hayden. Nunca tinha sido, não de verdade.
Repentinamente me senti pior do que nunca em toda minha vida,
porque… porque eu tinha duvidado dele. Eu me deixara acreditar que ele
podia ter matado George para realmente manter o mínimo do controle com
o qual estava acostumado, só que eu tinha me enganado.
Tinha me deixado enganar por uma versão que Hayden queria que eu
acreditasse que fosse existente nele talvez… talvez pelo meu bem. Porque
só duvidando de quem eu conhecia que eu poderia deixá-lo abdicar de si
mesmo por mim.
O que eu tinha feito?
Senti-me cruamente desolada não apenas por ter duvidado de Hayden,
no fim, mas também por ter duvidado de mim mesma, de minhas próprias
percepções. Não cheguei a me odiar, não era mais capaz de fazer isso, mas
eu soube, quase que instantaneamente, que ter acreditado no pior daquele
garoto enquanto ele me dava seu melhor seria o segundo maior
arrependimento que eu levaria para a vida toda. O primeiro seria nunca ter
me amado o bastante para aprender a confiar em mim em todos os aspectos
da minha vida. Até agora.
Eu não pude mais me permitir continuar duvidando do significado de
tudo pelo qual e Hayden passamos, de como eu tinha sido amparada por ele
a todo momento, mesmo que nem sempre de uma forma tão explícita para
ambos. Deixar de contestar tudo aquilo, entretanto, tornou as coisas ainda
piores, porque isso automaticamente significava que Hayden, de forma
alguma, merecia o que estava muito perto de enfrentar. Ele nunca merecera
sequer nosso julgamento, meu Deus.
— Não foi culpa do Hayden. Mas… também não foi sua culpa,
Ashley. — Surpreendentemente, foi a voz de Helen que chamou minha
atenção. Só então percebi que ela continuava a chorar, ainda de forma
histérica, ao contrário de mim, cujas lágrimas desciam silenciosamente. Eu
experimentava o mais profundo dos desconsolos, um do tipo paralisante e
que sequer fazia meu coração acelerar; pelo contrário, ele mal parecia bater,
eu nem mesmo respirava direito.
Enquanto permaneci ali, sentada e imóvel, Helen se levantou, e fiquei
o mais aliviada quanto foi possível quando vi a menina que eu tinha orgulho
de chamar de amiga envolver Ashley em um abraço apertado. A garota
hesitou, mas, no fim, retribuiu o gesto, chorando um pouco no ombro de
Helen.
Brad acabou se aproximando também, e o vi oferecer à Ashley o
maior sinal explícito de carinho que provavelmente se permitiria ter. Ele
passou a mão pelos cabelos dela enquanto sussurrava um “sinto muito por
tudo isso, Ash”.
David parecia um pouco mais desolado, como se se arrependesse de
ter duvidado de Hayden. Ele se tornou mais introspectivo, embora houvesse
uma genuína compaixão em seu olhar quando fixado em Ashley.
Ashley enfim se afastou do abraço de Helen, e pela primeira vez em
algum tempo parou de chorar, apenas para dizer:
— Nós temos que tirar Hayden dessa, ok? E rápido, antes que seja
tarde. Eu não posso deixar que uma responsabilidade minha ajude alguém a
tomar uma decisão capaz de acabar com a vida dele. E ele também não
possui nada em seu cérebro que precise ser consertado. Nada, nada.
Brad encarou David, que desviou o olhar. A visível tensão entre ambos
chamou minha atenção.
— Agora ele está livre o bastante do seu senso de julgamento para ter
a ajuda que merece?
— Eu estava errado, tá bom? E admito isso. É o mínimo que poderia
fazer, eu sei — David balbuciou, um pouco envergonhado, mas
acrescentou: — Só que, no fim, isso não se trata de ele merecer nossa ajuda
ou não. Não conseguiríamos ajudá-lo nem se tentássemos. Hayden
provavelmente está internado em alguma ala do terceiro andar, e sabemos
que lá é uma fortaleza. Não vamos conseguir entrar.
— Essa é só uma justificativa para sua covardia de merda, filho da
puta — Brad cuspiu, mais transtornado, e David dilatou suas narinas.
— Não, não é. No fundo você sabe que não há mais o que fazer. Não
há como mudar o destino que provavelmente sempre esteve à espreita de
Hayden, e seria burrice tentar nos convencer do contrário. Estaríamos
literalmente arriscando nossas cabeças por uma causa perdida O Dr. Cole
continuará buscando por alunos para realizar suas cirurgias experimentais,
qualquer que seja o fim de Hayden. Se der tudo errado, ele continuará
tentando provar sua hipótese, e se der certo… bem, ele terá um motivo
concreto para nos aplicar esse tratamento.
— Essa não é uma causa perdida — Brad respondeu de prontidão,
firme e resoluto. — Não ainda. Ela apenas pode ser uma se não lutarmos
como a coisa mais perto de uma família que todos nós pudemos ter.
Nenhuma das pessoas cujo sangue compartilhamos estiveram aqui por nós,
nunca. Tudo que apenas tivemos foi… semelhantes em alma — ele disse,
agora em um tom mais baixo porém nunca menos estável. Aquilo… tudo
aquilo me afetou de alguma maneira, tirando-me por definitivo do meu
estado absorto. Eu pensei, pensei demais. — Nós não podemos desistir
assim, não podemos abdicar do tão pouco que pudemos ter. Eu não vou
desistir, porra.
— Eu também não — Ashley sussurrou sem sequer hesitar logo em
seguida.
Helen, que sequer tinha relação com Hayden, surpreendentemente
também assentiu quando os dois o encararam, e David tentou intervir:
— Helen, não. Se eles te pegarem, irão te manter presa para sempre.
Você é o elo mais fraco, ninguém te procuraria, não… não lá fora.
Ele estava certo, eu tive que admitir isso a mim mesma. No entanto,
Helen sequer deixou que eu falasse algo quanto a isso, pois foi mais rápida
ao dizer com toda certeza do mundo:
— Eu tampouco iria querer sair sabendo que contribuí para que
alguém nunca tivesse nem uma fração de chance de também escapar. Isso…
isso vai tudo contra eu acredito. Essa cirurgia, da forma que o Dr. Cole está
conduzindo e em quem vai simplesmente contra toda a dignidade humana, e
isso foi a única coisa que eu tive em todos esses anos e uma coisa que
levarei até a sete palmos debaixo da terra. Eu quero fazer uma carreira
centrada nisso, na justiça e na honestidade. Então, se eu realmente me
recusar a dar tudo de mim para ajudar alguém que está prestes a ser
simplesmente destruído das piores formas possíveis, tendo sua própria
mente deformada, o que me resta?
Quis chorar mais. Na verdade, tudo que eu desejava era me derramar
em lágrimas até que todo aquele pesadelo passasse. Mas eu não podia. Eu
não iria deixar que uma semelhante em alma se machucasse num plano por
alguém que também já arriscara absolutamente tudo por mim.
Eu cuidaria dela, assim como cuidaria de Hayden. Embora fosse
difícil, quase impossível, eu teria que ser mais corajosa que Helen e Hayden
juntos. Eu seria corajosa para livrar a nós três da repugnância daquela
instituição para todo o sempre, nem que fosse a última coisa que eu faria.
Eu devia isso a mim. Devia isso à única amiga que eu tivera em minha vida
e devia à pessoa que era… que era o amor para minha vida.
Eu agora tinha certeza disso porque ele, dentre tantos, fora o único a
valorizá-la mais do que eu mesma o fazia até pouco tempo atrás. Hayden a
valorizava o suficiente para trocar a sua pela minha.
E, no fim, eu também entendera que ele era o amor da minha vida,
porque Hayden, o Hayden real que era mesmo todas as versões que eu
presenciara, era meu ponto forte assim como era meu ponto fraco. Ele era a
pessoa a quem eu entendera que poderia dar tudo de mim e de quem eu
poderia obter tudo que pedisse, tudo que precisasse. Hayden… ele era a
pessoa que me ensinara que viver poderia ser bom e necessário, nem
sempre angustiante. Mas, principalmente, ele me mostrara que, embora eu
pudesse viver sozinha, eu não queria, não no fundo. Não se eu pudesse tê-lo
ao meu lado para tornar minha vida não apenas agradável, mas
dilacerantemente vívida.
Eu podia não precisar dele, mas o queria com toda a energia que agora
sabia ser devastadora de meu ser.
— Eu vou lutar por Hayden e não há nada que você possa fazer para
me impedir, David — Helen frisou por fim, encarando-o com toda
veemência do mundo. — Eu estou fazendo o que sei que é o correto.
— Mas, Helen…
— Uma vez você disse que tinha uma dívida comigo, não disse? —
minha amiga a cortou, e ele trincou o maxilar com uma força excessiva. —
Bem, eu não posso arriscar que você arrisque sua vida. Mas eu posso cobrar
que você também faça o que, no fundo, sabe ser o certo. Por você e pelos
que já se arriscaram por você. Você se acha uma pessoa digna, não acha?
Então prove a si mesmo.
David desviou o olhar outra vez, fechando as mãos em punho. Todos
nós o encaramos, mas ele sequer pareceu se dar conta. Pareceu se afundar
imensamente em seus próprios pensamentos, com tanta intensidade que até
o sangue deixou seu rosto. Sua respiração também se alterou, e ele fechou
os olhos bruscamente após alguns segundos. Quando ele voltou os abrir,
não havia mais hesitação em seus orbes. Ainda havia medo e inquietação,
de fato, porém não mais incerteza.
— Tudo bem. Eu farei o que for preciso. Ele… ele merece minha
lealdade, no fim das contas.
E então, de uma só vez, os três me encararam. Eu não chorava mais,
sequer continuava a sentir aquela tristeza estática, embora ainda me
angustiasse com a necessidade constante do perdão de Hayden e do meu
mesmo. Não deixava isso me paralisar, contudo, porque não podia, e
também porque não queria, não no fim das contas.
Quer que alguém viva como deve viver? Faça com que ele tenha um
propósito, Hayden me dissera uma vez.
Eu já sabia qual era o meu quando ouvi tais palavras, porém, não sabia
até agora que era um propósito por pouco completo. Eu apenas viveria
como deveria viver se ele também fizesse isso.
Meu propósito era a mim mesma. Mas também eram meus
semelhantes em alma.
Levantei-me enfim, não mais com o corpo trêmulo, com lágrimas nos
olhos ou sem oxigênio em meu pulmão. Pelo contrário, foi com toda
firmeza do mundo que eu me mantive de pé, sentindo o primeiro pedacinho
de centenas de meu coração quebrado se cicatrizar. Seria um longo caminho
até a finalização do processo, mas aquele era um caminho que eu desejava
muito percorrer.
— Ninguém vai cair, não sem lutar — eu disse para os três que me
encaravam, e vi determinação reluzir em seus olhares como um espelho do
meu. — E nós não vamos dar nada menos do que tudo que Hayden merece.
Não vamos fazer nada além de fazer por ele tudo que já fez por nós. Ou por
vocês.
Brad franziu o cenho.
— O que quer dizer, novata?
Inspirei fundo, dando meu primeiro sorriso grande o bastante para
demonstrar um pouco dos dentes em dias.
— Vocês sempre deixam algumas marcas nos locais de trabalho de
genitores que nunca deveriam ser chamados de “pais” nos dias primeiros de
cada mês, certo? — Estalei a língua enquanto dava de ombros. — Bem,
vocês não acham que deveríamos fechar o último dia primeiro que
passaremos nesse Inferno, que acontece em dois dias, com chave de ouro?
Suas expressões ficaram mais sérias enquanto eles colocavam suas
mentes para funcionar. Só então me permiti dar um sorriso digno de um
plano que a mente sagaz de Hayden poderia traçar.
— Sabem o que a chave de ouro perfeita faria? Fecharia esse Instituto
de forma a nunca ser aberto outra vez.
Antúrio (Araceae)
Trata-se da maior flor do mundo e pode exalar um
cheiro forte antes de desabrochar. Apesar de sua
popularidade, está na lista de flores venenosas, uma vez
que possui oxalato de cálcio.

— Ei, ei! Olhe para mim! O que você está sentindo?


Abri a boca, mas nada saiu dali. Agitei as mãos, frenética, como se
pudesse dar a resposta à enfermeira por meio de gestos, mas ela apenas
pareceu mais atordoada.
— Abra bem os olhos, anda! — Ela levou uma das minhas mãos ao
meu olho direito, empurrando a pálpebra para cima e colocando uma
lanterninha de luz forte à sua frente. — Agora siga meu dedo, entendeu?
Balancei a cabeça ainda de modo agitado, inspirando o ar com
dificuldade.
— Você tem que me dizer o que está sentindo! — ela insistiu. —
Tente.
Foi aí que meu corpo começou a tremer por completo em cima da
cama hospitalar. O colchão rangia em um ruído horrível embaixo de mim, e
meus pés até mesmo batiam violentamente na grade metálica.
Pela minha visão um tanto quanto afetada pela quantidade excessiva
de vezes que eu piscava, pude ver a enfermeira se afastando bruscamente,
aproximando-se da mesa metálica antes de pegar uma seringa e uma
ampola. Ela colocou o remédio dentro do recipiente de plástico, e, antes de
vir até mim, se virou de costas para puxar a cortina e gritar:
— Eu preciso de ajuda aqui, tem uma menina convulsionan…
A mulher já estava entre meus braços antes de terminar a frase.
Levei o lenço umedecido até seu nariz com alguma dificuldade, pois
ela se debatia muito. Ela até chegou a me machucar um pouco, e tive a
certeza de que no dia seguinte — se ele chegasse —, eu estaria com alguns
hematomas. Segundos longos se passaram comigo dando tudo de mim para
não deixar a enfermeira fugir, e isso pareceu demorar tanto que me fez
questionar meus próprios métodos. Estava mesmo começando a me
apavorar, mas então a mulher à minha frente parou de lutar. Seu corpo
pesou, mole, e eu a coloquei devagar no chão. Estava mesmo inconsciente.
Soltei um suspiro de alívio audível, e então, quase que
instantaneamente, a cortina diante de mim foi aberta, assustando-me, mas
logo percebi que se tratava de Brad com seu uniforme de enfermeiro. A três
cortinas de distância, as que separavam os pequenos quartos da ala
hospitalar do terceiro andar, pude ver que havia uma mulher e um homem,
agora seminu, também inconscientes no chão.
Bem, ele tinha sido mais rápido do que eu, isso eu tinha que admitir.
Brad balançou seu pequeno lenço em minha direção, arqueando as
sobrancelhas.
— Tenho que dizer, estou muito, muito surpreso por isso ter
funcionado.
Revirei os olhos.
Há dois dias, eu tinha deixado uma mistura de Antúrio e Dedaleira,
ambas plantas tóxicas que podiam abaixar a pressão, descansando na água.
Não tinha plena certeza se funcionaria para deixar alguém inconsciente
inalando o líquido, mas era nossa única esperança. A última vistoria tinha
sido mais precisa, e nenhum dos meninos tinha mais droga alguma para
sedar alguém, e poderíamos não ter a chance de roubar sedativo da própria
ala em que estávamos.
Portanto, estávamos realmente dependentes daquelas plantas.
Estávamos dependentes de mim.
Aparentemente, o primeiro passo tinha sido concluído com sucesso.
Ou quase.
Não me deixei sorrir, ainda havia muito para fazer, então
simplesmente me agachei ao lado da mulher e comecei a retirar sua roupa.
Deu um pouco de trabalho, mas em um par de minutos eu já tirava meu
uniforme e colocava o da enfermeira. Agitada e com adrenalina correndo
em minha corrente sanguínea, tinha me esquecido da presença de Brad até
ele assobiar e murmurar:
— Corpo bonitinho, novata. É mais compreensível Hayden ter virado
o mais perto que pode ser de um cachorrinho por você.
Semicerrei os olhos em sua direção enquanto abotoava o vestido
branco que ia até os joelhos.
— Tenho certeza de que ele iria adorar ouvir sobre esse comentário.
O garoto repentinamente ficou mais sério.
— Eu só estava tentando descontrair, beleza? — resmungou,
colocando sua máscara. — Não precisa falar nada para ele.
E foi então que, pela primeira vez no que pareceu um longo tempo, eu
tive que engolir uma risada.
— Não precisa se preocupar com ele. Agora eu sei lutar minhas
próprias batalhas.
Sem aviso prévio algum, eu joguei o sapato que eu acabara de tirar
nele, acertando em cheio seu ombro.
— Ai!
— Está tudo bem aí? — Uma voz masculina soou do lado de fora da
cortina frontal diante dos ruídos, e nós dois ficamos mais alertas.
— Está tudo ótimo — eu murmurei, tentando mudar um pouco o tom
de voz. — É só um desses pestinhas mimados dando trabalho. Acabei de
sedá-lo.
Brad fez uma careta, e eu dei de ombros. Eu não estava mentindo no
fim.
O homem lá fora soltou um riso nasalado.
— Sei bem como é. Se fosse por mim, eles estariam dopados o tempo
todo. Quem sabe o Dr. Cole algum dia não faça uma imposição assim,
facilitaria muito nosso trabalho.
Cerrei os dentes com uma força excessiva. Aquela gente era
simplesmente repugnante.
Coloquei a máscara da enfermeira e amarrei meu cabelo em um coque
apertado para tentar escondê-los atrás da touca que também tinha roubado.
A mulher aos meus pés tinha a pele e cabelo mais claros que o meu, e quem
prestasse atenção o bastante no crachá que eu acabara de colocar no
uniforme notaria isso.
— Vem, me ajuda aqui — sussurrei para Brad quando peguei em um
pé da enfermeira. Ele pegou o outro e nós dois a arrastamos para o mesmo
quarto onde os outros dois enfermeiros estavam desmaiados. Deixamos ela
ali mesmo antes de fecharmos as cortinas que davam visão para outros
quartos.
— Precisa repassar alguma coisa? — eu questionei a Brad antes de
darmos o fora dali, e ele bufou.
— Eu sou o veterano em maquinações como essa, novata. Se alguém
tivesse que repassar algo aqui, seria você. Ser namoradinha do chefe não te
torna uma.
— Não sou namoradinha dele!
— Puta merda. É, tá. Uma namoradinha não faria o que você está
fazendo, no fim das contas — ele admitiu, embora eu também não tivesse
dito que era algo mais sério para Hayden.
Era provável que… eu não fosse absolutamente nada dele àquela
altura após tê-lo deixado. Contudo… aquilo não importava. Nossa relação,
qualquer que fosse, não era significante naquele momento. Hayden era. Ele
sempre fora, embora provavelmente nunca tivesse se deixado acreditar
nisso.
— Vamos logo — resmunguei por fim, porque não podia me dar ao
luxo de parar para pensar muito, não naquele dia. No último dia daquele
Instituto de pessoas perversas e egoístas.
Eu e Brad enfim saímos para o corredor de cabeças abaixadas,
fechando a cortina por trás de nós. Provavelmente era só questão de tempo
até que alguém entrasse no quarto e visse os enfermeiros inconscientes que
deixamos para trás, porém também não precisaríamos de mais de uma hora
para acabar com tudo. Ao menos, de acordo com os planos, que tinham
algumas margens de erro.
Passamos por toda ala da enfermaria, trombando com alguns outros
enfermeiros no caminho. Todos pareciam muito agitados para prestar
atenção em nós, então apenas seguimos até a saída. No corredor principal
do andar, nós enfim nos prontificamos a pegar ramificações opostas. Brad
teria que ir para a parte mais perto da entrada do andar, onde ficava a
secretaria, e eu iria para a ala dos consultórios psiquiátricos, à leste. Não
nos distanciamos de imediato, contudo, pois Brad sussurrou, retomando
uma seriedade com a qual não estava acostumada vindo dele:
— Novata? Vê se não fode com tudo.
Encarei-o.
— Boa sorte para você também.
Vi um vislumbre do canto de seus lábios se repuxar para cima antes de
nos separarmos.
Ainda com cabeça baixa, atravessei todo o andar, encontrando pessoas
de ternos, médicos e ainda enfermeiros por todo canto. A dinâmica do andar
era assustadora, com todos correndo pelos corredores, como se estivessem
com pressa para provar algo. Bem, para provar a eficácia de cada um de
seus tratamentos às nossas custas.
Brad e David, que estavam mais familiarizados com o andar,
mapearam o local para mim como puderam, mas eu ainda me confundia
aqui e ali. O lugar era um labirinto pior do que o primeiro andar, mas eu não
deixava me abater. Não podia.
Foi só após, talvez, quinze minutos que eu reconheci o caminho onde
era levada até o consultório do Dr. Cole, que era o último do corredor
central de sua ala. Eu não iria até ali, entretanto. Aquele era um peixe
grande, e seria tolice me arriscar tanto. Eu poderia conseguir algo que
incitaria toda a reação que precisávamos sem tanto.
Por isso, eu estava indo atrás do Dr. Heins, o segundo psiquiatra de
renome após Dr. Cole, que era quem tratava William. O garoto também era
submetido a tratamentos de eletrochoque, então o doutor deveria ter os
registros de tudo em seu consultório.
Sua sala ficava no corredor à direita do principal da ala, mas de nada
adiantaria ir para lá direto. Ela estaria trancada, uma vez que não havia
atendimento no dia primeiro de cada mês por conta das visitas, então o
doutor não estaria lá. Por isso, eu conseguiria obter a chave apenas em outro
lugar além de com o Dr. Heins.
— Estou sob ordens do Dr. Cole — eu disse seca e audivelmente
quando parei em frente uma parte do balcão de madeira em formato de um
círculo de alguns cinco metros de raio, que ficava no centro do corredor
principal. Nessa parte do plano, eu tinha sido instruída por Ashley. Estava
mais acostumada a manipular as pessoas com austeridade do que eu, no
fim. — Preciso da chave da sala do Dr. Heins. Agora.
— Desculpe-me, Srta… — A secretária que me atendeu abaixou o
olhar para o crachá preso ao uniforme, mas eu me inclinei um pouco para
lhe impedir a visão e a cortei.
— Você não me ouviu? Estou aqui sob ordens e preciso dessa sala
agora.
A mulher arregalou os olhos um pouco em minha direção. Estava
apenas ela do lado de dentro do balcão, uma vez que no dia primeiro
provavelmente não havia muito movimento naquele andar e muitos eram
dispensados.
— Eu… eu não tenho permissão de conferir as chaves a alguém não
autorizado.
— Ah, então o diretor do lugar onde você trabalha não está autorizado
a pedir as malditas chaves?
— Claro que está, mas eu precisaria de um pedido pessoal dele. São
instruções básicas.
— Então suas instruções básicas dadas por um inspetor qualquer são
mais importantes que o pedido urgente do seu chefe? — Ela abriu a boca,
mas eu me apressei em dizer: — Dr. Cole precisa que eu pegue as fichas de
pacientes específicos do Dr. Heins, pacientes esses que serão transferidos
para ele imediatamente por pura incompetência. Não há nada que irrite mais
o diretor do que alguém que não sabe fazer suas funções direito, no fim das
contas. Não preciso acrescentar mais nada para que você entenda como ele
anda irritado nesses últimos dias, preciso?
Ela hesitou, porém disse baixinho:
— Mas… é a Inspetora Foy que cuida de todas as fichas dos pacientes
do Dr. Cole.
— E ISSO IMPORTA? — gritei, sentindo-me imediatamente um
pouco mal por usar aquele tom com alguém, mesmo que fosse alguém não
tão bom. — Importa se eu estou aqui a mando da inspetora ou o Dr. Cole, se
ela segue as ordens diretas dele?
A mulher engoliu em seco, ainda de olhos arregalados. Expirei o ar
pesado pela boca, ficando ainda mais tensa.
— Ah, quer saber? Que seja! Você vai conseguir seu pedido pessoal de
um dos dois, uma pena que o preço certamente vá ser o seu trabalho que eu
farei questão que eles vejam que é desrespeitoso e incompetente. Um dos
dois estará aqui em dez minutos, sem dúvidas furiosos por você estar lhes
fazendo perder o precioso tempo. Inclusive, se quer um conselho: vê se
nesse intervalo de tempo arruma suas coisas para dar o fora daqui, vai
poupar estresse.
E então eu lhe dei as costas.
Dei um, dois, três passos.
No quarto passo, eu já pensava que uma parte imprescindível do plano
tinha ido por água abaixo, e que eu não era tão talentosa quanto Ashley na
arte da persuasão. Eu provavelmente acharia isso bom em qualquer outro
momento, mas não agora. De forma alguma.
Uma onda fria de nervoso invadiu toda minha espinha, porém, quando
dei o quinto passo incerto, escutei um tintilar de chaves.
— Aqui, aqui — a mulher atrás de mim gritou às pressas, e eu me
virei para ela. Com a mão trêmula, ela segurava um molho de chaves por
uma específica. — É essa aqui. Me desculpe, minha intenção não foi
desrespeitar a ordem de nenhum dos dois. Eu preciso desse emprego!
Encarei-a nos olhos. Não pareciam perversos como a maior parte dos
do andar, entretanto, não me deixei ter piedade por ela. Todos tínhamos
escolhas, no fim, e quem dizia o contrário não era nada mais que alguém
covarde e desesperado. Ela sabia como éramos tratados e escolhera ficar,
pressionada pela sua motivação. Alguém assim de forma alguma teria mais
minha neutralidade.
— Qualquer que seja o motivo dessa necessidade, não devia cegá-la
mais que sua dignidade — eu sussurrei inevitavelmente, e a mulher ficou
atordoada.
— O que disse?
Simplesmente arranquei a chave que ela estendeu para mim e, com
passos mais firmes, segui até o consultório do Dr. Heins. Com o corredor
vazio, não estive mais tão nervosa, e então entrei ali sem muita demora. O
consultório era similar ao do Dr. Cole, embora um pouco menor. A visão da
cadeira metálica, voltada para eletrochoques, em um canto específico da
sala me fez estremecer um pouco, mas me obriguei a ignorá-la e a seguir até
um pequeno armário de gavetas metálicas ao fundo do lugar.
Puxei a primeira, e de imediato encontrei fichas de alunos masculinos
cuja primeira letra do nome ia de A a D. Cada aluno tinha uma pasta grossa,
organizada minuciosamente. Folheei a primeira, e, tomando algum tempo
para ler as páginas, percebi que havia tudo detalhado. Tratamentos, efeitos
colaterais, mudanças de temperamento e personalidade. Havia até a
voltagem dos choques aplicada, a intensidade de tudo. Pensamentos do
doutor escritos à mão, muitos confidenciando implicitamente que tudo
aquilo ainda estava em estudo e não sabiam ao certo o que esperar de cada
frequência dos eletrochoques e também dos intervalos.
Peguei muitas das pastas com folhas avulsas, inclusive da de David, e
considerei já ser o bastante.
Girei os calcanhares para dar o fora daquele consultório, torcendo que
fosse a última vez que visse algum daquele Instituto, porém a porta se abriu
à minha frente. Congelei no mesmo instante, e continuei paralisada quando
vi a inspetora Foy entrar por ali.
Escondi as pastas atrás do meu corpo, como se pudesse salvar a prova
que tinha contra eles permanentemente. Eu não podia.
— Inacreditável! — a inspetora balbuciou avaliando-me de cima
abaixo. Ela parecia mais amarga que o normal. Até mesmo a visão de seu
rosto ou o som de sua voz fina e rouca fazia com que bile subisse em minha
garganta. — Sua… pirralha.
Dei um passo para trás quando ela avançou um.
— Não pense, em hipótese nenhuma, que você vai sair daqui com
essas pastas! Você achou mesmo que conseguiria entrar aqui sem que
ninguém soubesse? Eu tenho olhos e ouvidos em todos os lugares, garota.
Engoli em seco, repentinamente aflita. Senti como se tudo estivesse
desmoronando ao meu redor, mas me forcei a manter a racionalidade.
Éramos uma contra uma, certo? Eu podia ter uma chance.
— Agora me devolva essas pastas para que não passemos por mais
contrariedades. Com sorte, você será mantida trancada sem punições físicas
até após a cirurgia de Hayden. Com o sucesso do procedimento, você
provavelmente será a próxima a ser submetida a ele. Céus, olhe para você,
como está descontrolada e insensata! Você precisa recuperar a sanidade,
menina.
— Vocês nunca vão me submeter à cirurgia alguma — eu sussurrei,
porém não fui menos firme pelo tom ameno da voz. — E também não vão
submeter Hayden. Eu não vou deixar.
Uma gargalhada fria escapou de sua garganta. Não tinha motivos, eu
não estava fazendo nada menos do que a promessa mais sincera de toda
minha vida.
— Você se acha mesmo valente, não é? Bem, deixe-me te dizer uma
coisinha, Srta. Katrina: você deveria ter se mantido como a pessoinha
inofensiva e inerte que era quando chegou, porque pelos menos assim você
não teria tornado as coisas piores para si e para todos com quem
aparentemente se importa. Tudo que você fez aqui, com essa sua
brincadeirinha de criança, foi adiantar o procedimento de Hayden. Ele já
está sendo conduzido à sala de cirurgia nesse momento. Sua impulsividade
e também a de seu parceiro, quem quer que seja ele, não vão colocar a
cirurgia em risco, me entendeu agora?
Por pouco não soltei as pastas. Meu corpo fraquejou por completo, e
ar escapou de meus pulmões.
A mulher asquerosa se aproximou ainda mais, dando um sorriso
repulsivo de lobo.
— Ah, não achou que pensávamos que você estava agindo sozinha,
certo? Os seguranças já se deram conta de um movimento suspeito e estão
atrás de quem quer que seja seu amiguinho presente nesse andar. Também
há pessoas procurando pelos registros de andar, então muitos já sabem
quem é. Ah, os seguranças, inclusive, já devem tê-lo pegado e estão sendo
encaminhados para cá. Preciso mesmo frisar que você não sairá daqui?
— Não.
— Eu não preciso frisar?
— Não, você está errada — forcei-me a dizer entredentes, agora mal
escutando suas palavras. Ainda assim, desviava toda minha força para
manter as pastas juntas a mim. — Eu não devia ter me mantido como a
pessoa que era. Nunca devia ter sido ela, na verdade. Nada de bom nunca
foi feito ou gerado por ela.
Suas feições se fecharam um pouco, e eu me obriguei a continuar:
— Nada do que eu fiz foi tornar as coisas piores para mim ou para os
outros. Tudo que eu fiz foi… foi me dar uma chance. Foi dar uma chance à
pessoa com quem me importo. E mesmo se perdêssemos, o que não vamos,
apenas o fato de reconhecermos que poderíamos ter uma batalha que fosse
nossa de verdade já teria sido significante o bastante. A luta mais pessoal e
digna importa mais do que nosso destino, qualquer que seja ele.
— Belo discurso, garota, uma pena que ele seja absolutamente
desnecessário. Agora me dê as pastas.
— Não.
— Me dê agora.
Dei um outro passo para trás, e isso exterminou o restante da paciência
da inspetora. Ela foi atrás de mim com uma agilidade que deveria ser
impossível para uma mulher tão esguia e de meia-idade como ela. Dei a
volta pelo sofá do centro do consultório e corri para a porta, desesperada. A
mulher agarrou meu cabelo, soltando-o um pouco do coque, quando eu
estava a poucos metros de distância da saída. Não consegui revidar, eu
mantinha as pastas juntas do meu peito como se fôssemos um só.
— A primeira coisa que vamos fazer com você será cortar esse seu
cabelo para a cirurgia, entendeu? Nós iremos raspá-lo, menina, e eu poderia
dar pessoalmente um jeito que ele nunca volte a crescer.
Há alguns meses, eu poderia não ter dado a mínima para aquilo. Não
gostava tanto assim de meus fios caóticos, de qualquer maneira.
No entanto… eu não era mais assim. Alguém tinha me mostrado que
era possível que esses mesmos fios fossem dignos de alguma cativação, que
eu… que eu merecia amor, mesmo que fosse o meu.
A simples lembrança de Hayden brincando com meu cabelo e o modo
como ele o observava me deu mais energia, e eu levei a cabeça para trás
bruscamente. Senti que ela se chocou contra o rosto da inspetora, que me
soltou. Estive mais perto do que nunca da porta quando ela me alcançou
outra vez. Meu coração palpitou fortemente no peito, como em derrota.
— Chega! Acabou! Já é tarde, você não vê? Acabe com essa sua
esperança de uma vez. É simplesmente patético de se ver.
Eu entrei em um estado de relutância, e uma vozinha me dizendo que
não podia ser tarde demais, que nunca tinha sido, ressoou por cada canto de
meu cérebro. Não, não, não.
Era impossível.
As coisas não podiam… acabar assim.
E, simplesmente, algo que uma vez pareceu tão improvável de se ter,
agora era impossível de ser deixada de lado, porque eu havia a
experimentado crua e impiedosamente. Aquela esperança.
Uma mão da inspetora ainda agarrava meu cabelo com força enquanto
a outra abriu a porta. E então um movimento brusco me encontrou. Ele não
se deu diretamente a mim, eu fui apenas um dano colateral.
A mesma secretária que tinha me atendido empurrou a inspetora Foy
para dentro da sala com toda força que tinha e me arrastou para fora
rapidamente, quebrando o contato com a inspetora.
— O que é isso? Você vai ser despedid…
Antes que a inspetora acabasse de verbalizar as palavras, a secretária
puxou a porta e a trancou com a chave que eu deixara no trinco. Pisquei
repetidas vezes, tentando entender se tudo aquilo era real. Só fui chegar a
uma conclusão concreta quando a mulher à minha frente disse baixinho:
— Eles tinham oferecido um plano de saúde para meu filho. Ele… ele
está doente. Nunca quis estar aqui, eu apenas achei que precisava. Ainda
acho, mas… não quero que meu filho um dia saiba que seu crescimento foi
às custas da sanidade de outros. A dignidade é uma das únicas coisas que de
forma alguma deveríamos perder ao longo da vida, não é? Acho… acho que
já perdi a minha, mas não quero que ele pense que exterminei a dele
consequentemente.
Inspirei fundo, assimilando suas palavras, mesmo que meus
pensamentos estivessem acelerados e meu sangue corresse quase que
desordenadamente. Após longos segundos, encarando aquela mulher
enquanto batidas incessantes da inspetora Foy soava na porta, eu pensei
estar pronta para lhe dar as costas. Não consegui me distanciar, entretanto.
Não até retirar minha máscara e dizer:
— Eu realmente acredito que os fins, de forma alguma, justificam os
meios. Mas, sabe em que mais eu acredito? Que, se alguém quiser e
realmente lutar por ela, uma segunda chance pode lhe ser merecida e até…
concedida.
A mulher trincou o maxilar, mas assentiu uma vez.
— Não desejo nada mais do que o melhor para seu filho e que ele
tenha muito orgulho da mãe dele. O que você fez aqui pode não ser algo
para se valorizar, mas pelo menos você está lutando por ele, e isso eu
admiro. Gostaria de ter tido alguém que tivesse feito tanto por mim
também, mas, no fim das contas… isso não importa. Não mais.
Eu tinha achado alguém que fizera muito por mim.
Não me demorei mais. Corri, corri e corri.
Corri com toda agilidade possível, e não parei quando meus pulmões
começaram a queimar ou quando meu coração pareceu começar a sair pela
boca. Eu ainda não me deixaria acreditar que estava tudo acabado.
Deixei que meus passos tomassem caminho próprio, como se eles
soubessem até onde me levar, e rezei mentalmente para que, quem quer que
tivesse me concedido uma vida que valia a pena ser vivida, me desse forças
suficientes para lutar para mantê-la junto a mim.
Minutos se confundiram com horas, mas, em certo momento, eu
encontrei um movimento turbulento demais para o terceiro andar. Eram os
seguranças correndo atrás de algo. De alguém.
Não era tarde demais.
Segui-os, sem precisar mais recorrer ao meu mapeamento mental do
andar, e então encontrei uma pequena salinha no centro do corredor
principal, bem próximo à saída. A sala tinha um pequeno vidro de abertura,
e o resto era fechado por madeira, e provavelmente havia algum tipo de
isolamento acústico ali. Os seguranças se concentravam mais e mais na
porta, tentando arrombá-la enquanto alguns gritavam para que achassem a
chave dali de uma vez. De longe, avistei Brad pelo vidro, e pude sentir seu
olhar queimando sobre mim como se dissesse “você demorou, porra”. Não
me importei, apenas agitei as pastas para ele. Um sorriso triunfante enfim se
esboçou em seus lábios, e eu assenti. Depois disso, disparei para fora do
terceiro andar, sem me importar em chamar a atenção.
Debrucei-me no para-peito do andar, jogando as incontáveis folhas
que eu segurava no ar, que caíram lentamente em direção ao primeiro no
momento em que a voz de Brad começou a soar nas pequenas caixas de
som espalhadas por todo o instituto.
— Olá, câmbio. Brincadeirinha, sei que isso não é um Walkie-Talkie,
embora se pareça muito com um. Só estava querendo testar mesmo.
Revirei os olhos.
Aquilo era sério?
O garoto pigarreou.
— Escutem, agora é sério: estou meio sem tempo aqui, então serei
breve. Primeiro de tudo, vocês, caros pais de nossos excelentíssimos alunos,
devem estar se perguntando o que diabos está acontecendo. Bem, eu vou
explicar para vocês: eu, um simples garoto de vinte anos, meio que tomei a
sala de som do terceiro andar, e sozinho. Isso por si só já explica a vocês
que o controle que esse Instituto prega pode ser desafiado quando realmente
desejado. Essa infração, no entanto, não é a única coisa que seria escondida
da maior parte de vocês caso não estivessem aqui hoje. Indo direto ao
ponto: acontece que muitos de seus filhos estão servindo como cobaias para
seus psiquiatras, meus caros. Uma propaganda que lhes prometia a
conversão de seus diabinhos para lindos anjinhos foi feita, certo? Bem, ela é
uma MENTIRA! Esses picaretas nem sabem ao certo o que estão fazendo.
Estão apenas usando a fortuna de vocês para custear suas pesquisas que não
passam de meras teorias e testá-las em seus herdeiros. Nunca houve estudos
comprovados de que seus métodos podem surtir um efeito mais desejado do
que indesejado, seus idiotas. E, como não sou um amador como esses
incompetentes e lido com provas, alguns papeizinhos foram lhe jogados
agora mesmo. Eles são dos estudos de um só dos nossos doze psiquiatras.
Imagino que deva haver uma confissão bem explícita de que certos
tratamentos são feitos às cegas, assim como dos inúmeros efeitos colaterais
críticos. Para vocês que não escutaram seus filhos quando lhes imploraram
para os tirarem desse manicômio: meus mais sinceros vão se foder, otários.
Eles estavam certos, esse lugar só trouxe mais desgraça para suas famílias.
Mesmo do terceiro andar, consegui escutar o burburinho que se fez
presente no primeiro enquanto muitos alunos e seus pais começavam a ler
os papéis avulsos que lhes foram jogados.
— Agora, quero deixar um recado para todos os adoráveis
funcionários (espero que sejam inteligentes o bastante ao menos para
compreender a ironia) dessa merda: agora tem gente muito poderosa com
provas do que esse lugar está fazendo com seus próprios filhos, todos
herdeiros de seus impérios. Se eu fosse vocês, daria o fora rapidinho daqui e
iria para o mais longe possível antes que sejam pegos. Garanto a vocês que
tem gente poderosa o bastante aqui para lhes aplicar uma punição muito
mais severa do que exorbitantes processos, filhos da puta. Também convido
humildemente os meus a estenderem nossas melhores festinhas ao terceiro
andar pela primeira vez, ninguém mais têm o poder sobre nós, porque,
muito em breve, esse Instituto vai queimar, porra.
Naquele momento, um ruído estrondoso soou pelas caixas de som,
fazendo com que eu levasse as mãos aos ouvidos rapidamente. Tive certeza
de que a porta da caixa de som enfim tinha sido arrombada. Não
identifiquei tom de arrependimento algum na voz de Brad, no entanto,
quando ele gritou histericamente antes que seu microfone fosse desligado:
— Ah, puta que pariu, tirei um peso enorme das minhas costas, seus
babac…
Virei-me para trás, e havia alguns poucos seguranças arrastando Brad
para fora com uma força brusca, mas a maior parte… hesitava. Estavam
confusos, assim como outros dos funcionários que se acumularam ao redor
para ver a confusão que estava sendo feita.
Havia uma paralisação majoritária no lugar, e eu tensionei mais uma
vez, começando a me perguntar se o susto não tinha sido suficiente, mas
isso até alguém berrar lá do primeiro andar:
— Nós vamos destruir cada um de vocês, seus manipuladores de
merda!
Não dava pra saber se o grito veio de algum estudante ou de algum pai
irritado por ser passado para trás com a falsa propaganda passada com total
confiança, mas não importava, porque as vozes que se juntaram em seguida
pareciam vir de todos os presentes do andar.
E foi aí que a segunda fase do plano foi concluída com sucesso.
Homens e mulheres de uniforme da enfermagem, secretaria e
segurança correram aos montes em direção à única saída do terceiro andar,
e em um fluxo pesado, desceram as escadas como se entendessem que
deveriam fugir do que estava prestes a acontecer, indo ao encontro direto
dos alunos uniformizados que começavam a subir em meio a um grito de
guerra.
A instituição onde sempre foram tão cuidadosos em manter o controle
das formas mais abomináveis possíveis estava prestes a enfim ser tomada
pelo maior e último caos de todos.
As noites de queda de energia eram brincadeira de criança, não
passaram de um simples treino para o verdadeiro dia da caça sob a luz do
dia. Não precisávamos mais nos esconder.
Que o dia primeiro oficialmente começasse, desgraçados.
Estrelícia (Strelitziaceae)
Pode ser usada para indicar expectativa para algo
grandioso e emocionante. Também pode significar
“paraíso”, afinal, “ave-do-paraíso” é outro nome pelo
qual ela é conhecida.

— Tem muito mais lá embaixo! — Ashley gritou por cima do misto de


berros das dezenas de alunos que forjaram a entrada no terceiro andar
diante da abertura plena de portas provocada pelos funcionários em fuga.
Não havia muitos mais para impedi-los ou para assustá-los.
A garota segurava dois galões de querosene. Helen, que subia logo
atrás dela, segurava mais dois, e David, três.
Brad conseguira se comunicar a tempo com seus cúmplices em datas
como aquela para que nos trouxessem álcool o bastante para queimar um
castelo. Eles provavelmente tinham levado o pedido a sério.
Ainda estávamos em frente à porta que dava total acesso ao terceiro
andar quando Brad nos encontrou. Seus braços estavam vermelhos, os
seguranças provavelmente tinham usado muita força ao arrastá-lo antes de
darem o fora, consumidos pelo medo que poder e dinheiro causavam, e
tinha um olho um pouco inchado, porém estava mais radiante do que nunca.
O garoto era adrenalina pura.
— Ok, me escutem com atenção agora — eu disse quando todos
estavam próximos. Fechamo-nos uma roda, tentando ignorar toda a
vandalização que começava a se estender rapidamente além de nós. — Vou
ter que fazer uma pequena alteração nos planos, e peço que confiem em
mim para não me questionarem. Eu e Brad continuaremos juntos, não
vamos nos juntar a vocês mais. David e Helen, vocês desçam e espalhem os
galões entre todos, e se assegurem de que haverá álcool em cada canto do
Instituto em uma hora. Ashley, você fica encarregada por se assegurar de
que não há ninguém inconsciente nesse andar. Ninguém aqui vai queimar se
não tiver a capacidade de escolher fugir. Há três pessoas desmaiadas na
enfermaria, comece por lá.
Silêncio entre nós se fez presente, e eu arqueei as sobrancelhas.
— Alguma objeção?
— Ainda estou meio puto por você estar dando uma de chefe.
— Alguma objeção? — repeti mais alto, ignorando Brad, que bufou.
Surpreendentemente, ninguém disse nada, e então eu acrescentei: — Nos
vemos lá fora em uma hora, então.
Ashley disparou para o lado da enfermaria, e David se prontificou a
descer até onde os motoristas que supostamente eram seus familiares os
esperavam com mais querosene, mas Helen ficou.
Ela me puxou para um abraço apertado, e eu me assustei um pouco,
mas o correspondi em não mais que uma fração de segundo. Foi o primeiro
momento de paz que senti naquele dia que definiria nossos destinos de uma
vez por todas.
— É uma promessa, certo? Aconteça o que acontecer, você estará lá
fora.
Por um instante, eu sorri.
— É uma promessa — concordei, não me deixando hesitar por um
momento sequer e ignorando o receio que consumia todas minhas entranhas
ao ponto de me deixar nauseada. — Nós todos estaremos lá fora em uma
hora. Agora vá.
A garota, minha primeira e única amiga, me obedeceu, mas não sem
olhar para trás. Com todo meu coração, valorizei cada fração de seu
carinho.
— Suponho que tenha um motivo plausível para me manter preso a si,
novata. Gosto da sua companhia tanto quanto você gosta da minha — Brad
disse ao meu lado, e eu enfim me virei para ele.
Expirei o ar pesado pela boca.
— É, tem sim. Preciso que você coloque seus poucos neurônios para
funcionar.
Ele semicerrou os olhos para mim, nada contente, mas eu o ignorei.
— Estamos com um problema. A cirurgia de Hayden foi adiantada, ele
já deve estar no centro cirúrgico.
— O quê? E por que você não falou isso antes? Que merda você…
— Porque esse lugar precisa ser destruído de uma vez. Não pode haver
brechas para que esse sistema continue, de forma alguma. Isso acaba
conosco, ninguém mais vai ser atraído por mais alguma propaganda
enganosa de uma perfeita instituição. Alguém precisava se garantir disso. E
eu também não vou deixar ninguém que machucamos no caminho não ter a
chance de escapar do fogo, embora possam merecer. Nós não seríamos
muito melhores do que esses funcionários se fôssemos para fora,
preocupados conosco enquanto teríamos consciência de que causamos tanto
sofrimento.
Ele abriu a boca para provavelmente continuar me repreendendo, mas
fui mais rápida ao dizer:
— Isso não importa mais, todos já foram e não temos tempo para
procurá-los. Somos só eu e você aqui, e eu sei que nenhum de nós dois sairá
sem Hayden, então melhor começarmos logo. Hayden não está mais nos
aposentos de hóspedes como achamos, precisamos achar esse centro
cirúrgico. Você é o que mais se meteu em problemas no grupo e que foi
encaminhado a esse andar. Faça mais um mapeamento minucioso pelos
corredores que já passou, tente achar a direção dessa ala.
A anarquia ao nosso redor não existia para nós, de forma alguma.
Tudo que havia era eu, Brad e Hayden.
O garoto trincou o maxilar com força enquanto pensava, com os olhos
vidrados em mim.
— Consultórios ficam ao leste, enfermaria a oeste. Secretarias,
tesourarias e monitoria de entrada ao sul, logo na entrada. Aposentos de
hóspedes ficam ao nordeste, já passei pela entrada ao fugir de um segurança
ao ser encaminhado para uma sessão com o Dr. Cole. Há um pequeno
refeitório para funcionários perto dos consultórios no sudeste do andar.
Sobram… norte, noroeste e sudoeste — disse, parecendo pensar alto
enquanto se perdia em sua própria mente. Foi torturante não ter a
capacidade de ajudar em absolutamente nada naqueles segundos torturantes.
— Cortamos sudoeste, o centro cirúrgico não seria colocado tão perto da
entrada. Ficamos com norte e noroeste, contudo… a enfermaria toma muito
espaço, não deixando tanto para uma ala médica digna dos luxos do Dr.
Cole na segunda direção, então… Norte. Centro cirúrgico fica ao norte do
andar — concluiu com uma convicção absoluta, e eu o encarei ainda
ignorando o mundo lá fora.
— Tem certeza? Não temos muito tempo para perder em palpites.
O garoto bufou.
— Eu duvidei de você quando me disse que sua misturinha de plantas
poderia tirar a consciência de alguém?
— Duvidou.
— Tá, esquece, eu duvidei mesmo. Só… me escuta pela primeira e
última vez na sua vida.
Suspirei.
— Não é como se eu tivesse outra escolha, então… só vamos logo.
E, quase que instintivamente, nós dois assentimos ao mesmo tempo
um para o outro, estabelecendo um laço de confiança por um propósito em
comum, a única coisa capaz de juntar pessoas de um modo genuíno. Nosso
propósito, ali, era a vida de nosso amigo.
Não esperamos por mais. Corremos o mais rápido que podíamos
enquanto, frequentemente, nos desviávamos de móveis e outros utensílios
sendo quebrados contra alguma parede. Era meio que assustador ver as
consequências da repressão danosa sob a luz do dia, mas ainda havia uma
certa beleza nisso. Muitos estavam quebrando suas correntes.
Seguimos pelo corredor principal que levava ao sul, que parecia quase
interminável. Suor já cobria minha pele, e eu decerto não tinha mais muito
oxigênio em meus pulmões. Nada daquilo me importava, no entanto.
Apenas continuei seguindo com os passos determinados, tentando não
pensar na possibilidade de a cirurgia já ter tido início. Não, eu não podia
nem cogitar isso.
Após minutos que me pareceram uma infinidade, começamos a avistar
o fim do corredor muito à frente, e naquele momento eu expirei o ar pela
boca diante do tamanho alívio que me invadiu. Esse sentimento não durou
muito, contudo.
Tudo simplesmente aconteceu rápido demais.
Havia uma ramificação do corredor principal à minha direita, e, pela
minha visão periférica, eu percebi algo muito brusco acontecer, mas já era
tarde demais para fugir das consequências. Um garoto empurrou um
armário de madeira e vidro contido na pequena esquina em nossa direção, e
eu cheguei a empurrar Brad para o lado, na vã tentativa tanto de livrá-lo
quanto para livrar a mim mesma. O garoto saiu ileso, mas o armário caiu
em cima de mim, levando-me ao encontro do chão em um choque brutal
pela perna.
O armário concentrou todo seu peso em cima da minha coxa direita.
Uma dor me consumiu de modo tão lancinante ao ponto de fazer meus
olhos lacrimejarem. Também perdi boa parte dos sentidos por alguns
segundos. Era minha pressão caindo.
— Merda. Merda, merda, merda — escutei Brad xingar por alto. —
Ei, cuzão, reze para que eu não veja essa sua cara de aberração nunca mais
— gritou em seguida para o menino que já estava longe.
Brad retirou o armário de cima de mim, e a libertação do peso fez com
que eu pudesse expirar o ar que andava prendendo, mas a dor ainda
continuava em minha perna. Só então percebi que havia um caco de vidro
abrindo minha pele acima do joelho em uns bons quinze centímetros.
Sangue ensopava o chão debaixo de minha perna.
— Que porra do caralho — Brad continuou a resmungar, agachando-
se ao meu lado para avaliar o ferimento. Preocupação reluziu em seu olhar,
mas não por mim.
Aquilo me fez engolir o choro na mesma hora e a ignorar a ardência
dilacerante o máximo possível para sussurrar:
— Tá tudo bem. Eu dou conta disso aqui. Vai atrás dele. Eu apenas iria
atrasar tudo.
Brad desviou a atenção para mim, tensionando a mandíbula e
dilatando as narinas. Tive certeza de que ele percebeu que eu falava sério,
que eu queria que ele seguisse em frente.
— Eu me viro aqui. Só… ajuda Hayden. Por favor.
O garoto surpreendentemente hesitou, mas só por um momento. Ele
não assentiu nem falou nada, apenas se colocou de pé, e então continuou
seguindo em frente. Ele deu um, dois, três passos. E então parou de súbito.
Observei suas mãos se fecharem em punho e toda sua postura se moldar de
acordo com sua tensão.
Não demorou mais do que um par de segundos para ele se virar
bruscamente e se voltar para mim enquanto retirava sua jaqueta branca e
murmurava um “que se foda”.
— Ei, o que você está…
Antes que eu terminasse o questionamento, Brad forrou suas mãos e a
jaqueta e retirou o caco de vidro de uma só vez de minha coxa. Minha visão
voltou a ficar cheia de pontinhos pretos enquanto uma sensação
simplesmente angustiante me domava. Minha pressão só começou a
normalizar poucos instantes depois de Brad ter amarrado a jaqueta em um
torniquete acima do corte profundo. Ele me colocou de pé, e eu clamei em
protesto, sentindo muita dor, mas ele não me deixou voltar para o chão
quando pesei meu corpo.
— Ele me mataria se eu te deixasse machucada e cercada por tanta
gente faminta por confusão, tá legal? Hayden praticamente trocou a vida
dele pela sua, então acho que não poderia colocá-la em risco se ver aquele
idiota novamente está entre meus planos — ele balbuciou asperamente,
colocando meu braço atrás de seu pescoço ao apoiar meu peso em si.
Encarei-o, ainda um pouco aturdida, e ele bufou. — Além do mais, acho
que agora somos um time, gostando ou não. Cada um de nós estará sempre
ligado pelo que passamos juntos, no fim das contas.
— Ah, meu Deus! Acho que a dor está me fazendo delirar — eu
murmurei seriamente. Não sabia se Brad tinha mesmo dito aquelas
palavras.
O garoto estalou a língua, mas não comentou mais nada. Apenas
continuou seguindo, obrigando-me a acompanhá-lo. Eu sentia que estava
sendo realmente torturada ali, mas me obriguei a continuar. Eu precisava.
Tentava dizer a mim mesma que aquele corte deixaria somente mais
uma cicatriz que seria valorizada mais tarde. Nenhum achismo de estar
passando por um momento de fraqueza nunca mais me faria esquecer de
minha força. Eu teria lembretes para me assegurar disso.
Com muito esforço, chegamos ao fim do corredor, e fomos recebidos
por portas de mesmas estruturas das de entrada do Instituto entre duas
mesinhas com estrelícias. Elas eram sólidas, de madeira boa e com uma
fechadura malditamente resistente, era óbvio.
Brad levou a mão à maçaneta, mas ela estava trancada. Ele sibilou um
palavrão baixinho, continuando a forçá-la, mas de nada adiantou. Foi então
que, sem nenhum aviso prévio, ele virou o ombro desocupado por mim e
empurrou uma das portas com toda sua força. O movimento me fez chiar de
dor, e ele não fez uma segunda tentativa, principalmente porque a porta mal
se mexera.
— E agora? — eu balbuciei, quase desesperada. — Nós voltamos?
Procuramos a chave em algum lugar? Deve haver uma reserva em algum
local, talvez…
— Deve haver, mas ela vai estar misturada com outras centenas. Não
temos tempo, cacete — disse, tão desorientado quanto eu, e me colocou
sentada no chão do lado da porta, escorando-me na parede.
Agonia desconcertante exalou de Brad quando ele começou a andar de
um lado para o outro à minha frente, passando as mãos pelo cabelo de modo
agitado enquanto pensava o que fazer.
— Ei, se acalma — eu disse baixinho, embora também estivesse
apavorada, e ele se virou para mim.
— Me acalmar? Bem, então me diz o por que de eu dever fazer isso.
Está tudo dando errado, então está vendo? — ele praticamente gritou,
deixando extravasar sua raiva. Isso me fez calar a boca. — Esse lugar de
merda está virado ao avesso. Quem não merece está fugindo, e quem
deveria se manter o mais longe possível parece estar fadado a apodrecer
aqui. Que maldição do caralho! Não faço ideia do porquê ainda tento.
— Tenta o quê?
— Viver, porra.
Hesitei por um instante, porque nunca pensei que veria Brad naquele
estado de pura confusão interna. Ele voltou a andar de um lado para o outro,
fechando os olhos bruscamente, e eu continuei a avaliá-lo com toda cautela
do mundo. Honestamente, eu não gostava realmente dele. Não achava que
nossas personalidades um dia seriam compatíveis, de forma alguma.
Contudo… eu agora o respeitava mais. Sua lealdade e determinação eram
surpreendentes, e o garoto nunca mais teria meu desprezo. Foi por isso que
eu me afetei diante de sua inquietação em diversos aspectos, muito mais do
que considerava ideal. Rangendo os dentes, eu me coloquei de pé então,
dando meu melhor para não me apoiar na perna machucada, que ainda ardia
como o Inferno. Isso chamou a atenção de Brad, e eu a aproveitei para lhe
dizer baixinho:
— Você ainda tenta pelos mesmos motivos que todos tentamos, todos
os dias. Temos esperança, ou, no fundo, queremos ter uma diante de dias
melhores e mais justos. Acho que todos estamos em busca de chances mais
explícitas de moldarmos nossa vida da forma mais íntima possível,
desviando-nos de posições que são grandes obstáculos mas não de fato
significativos, apenas vazios. Também acho… que, mais do que tudo,
também buscamos pessoas com quem possamos nos identificar, apenas para
diminuir o sentimento de solidão ao qual cada ser humano está fadado até o
fim de sua vida. Estamos buscando pessoas que lutem por nós e pessoas por
quem possamos lutar, porque isso nos dá um propósito de verdade, não dá?
Um propósito de uma vida não vazia.
Brad piscou repetidas vezes, e, sinceramente, eu achei que ele nunca
tinha me ouvido intensamente, se importado em assimilar cada uma de
minhas palavras, até aquele momento.
— Escute, só de estar aqui lutando por algo que acredita ser
importante com todo o coração, a liberdade sua e de outros, já não fez o
“tentar” valer a pena? Você está dando seu sangue em batalhas que escolheu
lutar, e não está sozinho. Isso já não deveria ser o completo oposto de estar
morto? E, por isso, não deveria ser considerado o modo correto de viver?
Insistir é recompensador, e é uma pena que muitos de nós demoramos tanto
para descobrir isso. Nós temos que tentar até fazer funcionar. Você
provavelmente tem tentado muito, mas hoje… hoje você não está apenas
fazendo isso. Você está mesmo vivendo, Brad.
Foi estranho como não disse todas aquelas palavras somente para ele,
mas também para mim. Tive que repassar mentalmente de a luta importava
mais que o destino, uma vez que a névoa que recaía sobre o futuro me
atordoava irracionalmente,
Não podia me deixar esquecer disso, nunca.
Um movimento brusco de Brad me trouxe de volta à realidade. Ele
simplesmente jogou todo o peso de seu corpo contra a porta outra vez. Ela
mal se mexeu. O garoto não desistiu, e, na segunda tentativa, pude jurar que
ouvi seu ombro ser deslocado.
— O que você pensa que…
— Estou dando a porra do meu sangue nessa merda, sua falastrona.
Vamos realmente viver até morrer.
Levei a mão à boca quando ele se jogou uma terceira vez contra a
porta. Ele ia se matar ali.
— Brad, meu Deus, eu não sei se…
— O que tem aí? — alguém atrás de nós perguntou, chamando nossa
atenção. Era um garoto, parecia ter cerca de dezesseis anos. Ele estava
curioso diante da determinação insensata de Brad para arrombar aquela
porta.
— Não é o quê. É quem — Brad respondeu simplesmente ao empurrar
a porta mais uma vez. Um grunhido inevitável escapou de sua garganta
diante da dor que decerto sentia. — É Hayden. Hayden está ali dentro.
Um outro garoto, um pouco mais velho, se juntou ao outro.
— Hayden? O que estão fazendo com ele?
Brad jogou a si mesmo na maldita madeira novamente.
— Dr. Cole pretende fazer uma intervenção cirúrgica no maldito
cérebro dele — fui eu quem respondi, tentando não pensar muito na
gravidade daquelas palavras.
Não estava tudo acabado. Não podia estar.
— Esse velho ficou maluco de vez? — o garoto mais novo soprou,
incrédulo. — Ele já causou danos demais, não pode fazer essa porcaria!
— Ah, mas ele vai, se essa porta infernal não sucumbir logo — Brad
praticamente cuspiu as palavras, tentando arrombar as portas mais uma vez.
Ele segurou seu ombro com uma força excessiva em seguida, e seu rosto
estava vermelho.
Os garotos decerto perceberam o esforço que Brad fazia, pois se
entreolharam, franzindo o cenho. E então, em não mais que um par de
segundos, o garoto mais velho ocupou a direita de Brad e o mais novo, a
esquerda.
— No três, beleza? — o mais velho murmurou, e Brad ficou
nitidamente confuso diante da espécie de solidariedade, o que fez com que
o garoto acrescentasse: — Que foi, hein? Aquele cara é meio psicopata,
mas não é por isso que merece ter alguém invadindo seu cérebro. Já
permitimos que o Dr. Cole cometesse loucuras demais. Já é o bastante, não
é?
E foi então que, no fim da contagem regressiva, os três se chocaram
contra a porta com uma força estrondosa. Ela se mexeu um pouco mais,
mas não o suficiente. Na segunda tentativa, a atenção de mais dois alunos
que passavam correndo pelos corredores foi desviada para lá, e eles também
perguntaram o que estava acontecendo. Fui eu quem explicou a situação, e,
sem que eu tivesse pedido, eles se juntaram em frente à porta.
Logo aqueles cinco garotos chamaram outros, que chamaram mais e
mais, e, em poucos minutos, já havia um grupo assustadoramente grande
agindo como uma só pessoa em um movimento ordenado demais para
forçar entrada ao centro cirúrgico.
Honestamente, eu nunca tinha visto nada assim naquele Instituto. A
maior parte sempre pareceu estar mais por si, mas, naqueles minutos,
muitos tiveram um mesmo propósito, trabalharam realmente juntos.
Eu consegui sorrir diante da cena. Era um sorriso genuíno, de pura
satisfação.
Quando as duas portas cederam, um ruído tempestuoso chegou aos
meus ouvidos como a melhor das músicas, e meu coração voltou a bater
mais vividamente no peito. Os garotos que estavam na frente caíram,
inclusive Brad, mas eu não me importei em passar por eles. Eu mancava
muito, e me inclinava um pouco para tampar meu corte com a mão, mas
não deixei que nada, nem menos a dor que piorava a cada segundo, me
parasse.
Imediatamente adentrei em um corredor cujo chão não era mais de
taco, como todo o restante do Instituto. Havia piso vinílico claro sob meus
pés, parecendo o mais novo possível. Havia salas cirúrgicas de meus ambos
lados idênticas, visíveis pela larga janela de vidro, aparentemente contendo
aparelhos, instrumentos e camas de última geração. Era com aquilo que o
dinheiro do qual muitos eram herdeiros estava sendo gasto.
Ambas salas, no entanto, estavam vazias, e eu continuei avançando
pelo corredor mais iluminado pela grande janela ao seu final do que
qualquer outro canto do instituto, mas todas as salas continuavam
desprovidas de vida.
Comecei a andar mais rápido, embora cada passo fosse quase
dizimador, enquanto inevitavelmente me perguntava se a cirurgia já tinha
sido finalizada. Todo meu corpo ficou trêmulo, e meus joelhos ameaçaram
ceder conforme eu avançava mais e mais, e não por causa da dor física. Era
por causa da dor interna, abstrata porém tão concreta em certos aspectos,
irreal mas ao mesmo tempo infinitamente presente em meu ser.
Era um sentimento assustador, o medo de perder alguém que eu
realmente conhecia, não mais somente a ideia de quem essa pessoa era.
Eu não fazia ideia de como seria não o ter mais agora que me deixara
reconhecer que o tivera de verdade.
A ausência da única coisa, o único quem que eu deixara me conhecer
mais intensamente, que quisera de fato me conhecer, seria um dano
irreparável. Um dia algo com o qual eu poderia aprender a conviver, mas
nunca esquecido ou aceito. Nunca remediável.
Hayden não era alguém que poderia ser substituído, eu estranhamente
sentia isso com todo meu coração, embora ainda houvesse tanto para
conhecer dele. No fim, eu sempre conheceria tudo que importava, e nunca
deveria ter duvidado disso. Havia muito para que eu conhecesse de mim
também, e não tinha nada mais que eu pudesse desejar do que que ele
pudesse aprender sobre todas as versões que eu poderia ser junto a mim.
Meus passos já estavam desgovernados, e eu estava certa que não
faltava muito para que sucumbisse, mas então eu o vi. Na última sala do
corredor, à minha direita, eu avistei três homens e mais quatro enfermeiros
ao redor de uma maca, onde um garoto… um Hayden, quase irreconhecível
de cabelos raspados, corpo mais magro, e pele ainda mais pálida, se
encontrava inconsciente.
Aproximei-me do vidro bruscamente, com bile subindo pela minha
garganta. Havia um pequeno cômodo que separava o corredor daquela sala,
onde ficavam as pias. As duas paredes que me mantinham distantes de
Hayden tinham as janelas do mesmo tamanho, dando-me visão plena do
que acontecia dentro do lugar.
Havia um tecido cobrindo parte da cabeça de Hayden, deixando
impossível que eu visse se a cirurgia já tinha sido iniciada. Não soube o que
fazer, se sua cabeça estivesse aberta, não seria prudente que eu entrasse ali,
mas… imaginei que, ao moldar o cérebro de Hayden daquela maneira, ele
não seria mais o mesmo, seus traços estariam para sempre
descontrolavelmente mudados. Ele já estaria morto de certas formas.
Não esperei mais. Não podia, não podia.
A porta que dava para o cômodo estava trancada, mas essa era mais
fraca, mais estreita, e, embora nas periferias da minha visão cujo foco era
apenas Hayden, eu tivesse visto três seguranças, eu não me importei. De
alguma maneira, mesmo com minha perna machucada e com forças já
escassas, eu arrombei a maldita porta em minha primeira tentativa. Sequer
percebi os seguranças se atirando em mim, assim como não vi quem os
tirou de mim, segundos mais tarde. Somente adentrei na sala cirúrgica
assim que pude, chamando a atenção dos três médicos e dos enfermeiros.
— O que é isso? Tirem ela daqui, ela não pode estar aqui! Está
comprometendo a…
Dr. Cole parou de falar no segundo em que eu retirei o bisturi de sua
mão com uma força excessiva, já atrás da maca. Pela primeira vez em
muito, muito tempo, senti que pude respirar apropriadamente quando vi que
a cabeça de Hayden ainda estava intacta, que ele ainda era ele. Havia
apenas uma marcação de caneta nele, nada mais. Desviei a atenção mais
além, e só então pude me dar conta de que ainda estavam aplicando a
anestesia. Um dos outros dois doutores injetava a substância na sonda
ligada em seu braço.
Virei-me para o Dr. Cole, praticamente cuspindo as palavras com uma
energia que há algum tempo pensei ser inexistente em minha essência:
— Não há mais ninguém para te manter longe das consequências de
suas atitudes egoístas e enganosas, Cole. Não há nada mais lá fora para
você, me ouviu? Agora retire essa sua bunda enrugada dessa sala e sua
equipe ainda mais patética que você dessa sala, porque tudo acabou! Você
deveria saber que eu aprendi a confiar em mim mesma o bastante para fazer
promessas que posso cumprir com o seu filho, e você deveria ter acreditado
em mim quando lhe disse que nunca iria nos domar, não importando o
quanto tentasse.
E ainda sem pensar muito, frenética e agora sempre indomável, eu fui
em direção ao carrinho metálico e peguei uma ampola e uma seringa,
colocando a substância dentro da última antes de empurrar bruscamente o
médico encarregado da anestesia e injetar adrenalina na sonda.
Naquele momento, alguns garotos entraram, dentre eles Brad,
segurando fortemente um ombro, afugentando por definitivo os enfermeiros
e os outros dois médicos. Cole permaneceu, inconformado com tudo que
lhe cercava.
— Não, não, saiam! SAIAM AGORA! Vocês estão arruinando tudo!
Isso é melhor para ele, o melhor para…
— Nada do que você nunca foi além do melhor para você, sua
aberração! E aposto que isso tudo nunca foi provocado por sua mente, e sim
pela sua alma deturpada, e isso nunca vai ter conserto. Você vai ruir
juntamente com esse seu império degenerado, filho da puta — Brad berrou,
e pela minha visão periférica o vi fazer o que provavelmente desejava há
tanto tempo. Ele socou o homem com uma força brutal, e Cole desabou no
chão no mesmo momento. — Porra, esqueçam o que eu disse antes, isso
sim me fez me sentir vivo!
Esqueci-me do que acontecia ao meu redor, esqueci até mesmo da
minha dor pujante. Simplesmente arranquei o tecido que cobria parte da
cabeça de Hayden, arrancando também o tubo de oxigênio de seu nariz e
segurando seu rosto entre as mãos.
— Hayden, Hayden! Acorda. Acorda. — Dei leves tapas em sua
bochecha, desesperada. Estava torturantemente preocupada com a junção
das reações da adrenalina e da anestesia.
Continuei chamando pelo seu nome freneticamente, cada vez mais
alheia ao exterior e concentrada em meu mundo. Em nós dois.
— Por favor, por favor, acorda. Eu tenho muito que te falar, muito,
muito que… viver com você. Muito que descobrir de você e de mim, eu
quero mais do que tudo descobrir o que podemos ser juntos. Eu quero essa
chance com você, e quero que você tenha a vida que sempre mereceu viver,
não importa o que tenha achado e o que eu mesma achei. Me perdoa.
E então uma de minhas lágrimas que eu nem notara terem começado a
escapar de meus olhos caiu em seu rosto, escorrendo até sua boca. Meu
corpo amoleceu por completo quando seus lábios se mexeram um pouco
diante da sensação úmida.
— Ei, ei. Sou eu. Fica comigo, por favor. Por favor.
Hayden abriu os olhos de modo repentino, alerta demais. Seu corpo se
impulsionou para cima, como se ele estivesse assustado, e seus olhos
estavam vítreos, disparando para todo canto. Sua respiração se acelerou, e
eu segurei seu rosto com mais força.
— Hayden, sou eu. Sou eu — repeti, tentando fazer com que ele
encontrasse meus olhos. — Está tudo bem, eu estou aqui. Você está aqui.
Você é você, ainda com todos seus defeitos mas também com suas inúmeras
virtudes.
Suas sobrancelhas franziram um pouco, mas seu olhar encontrou o
meu. Sua respiração continuava pesada, mas seus olhos se tornaram mais
reconhecíveis. Ele voltou a deitar sua cabeça vagarosamente, tentando
entender o que acontecia.
— Você é você — insisti. Devia ter lhe sido aterrorizante deitar
naquela maca e pensar que estava prestes a ter algo que deveria ser só seu
invadido de formas irreparáveis. Sua mente. — Você é você. Ainda é a
pessoa por quem eu sou apaixonada, mesmo com todos esses defeitos, que
não são nem uma fração das suas virtudes. Você é a pessoa que eu nunca
temi e é a pessoa de quem eu nunca deveria ter duvidado em minha vida,
tá? Me desculpa. Mas eu estou aqui agora, irrefutável e firmemente.
Sempre, se você quiser.
Sem que eu notasse, Hayden levou seu indicador áspero até meu rosto.
Mesmo que eu não o esperasse, seu toque não me afugentou por um
centímetro sequer. Pelo contrário, eu tive uma sensação estranha, que eu
nunca tinha experimentado antes. Senti que aquele poderia ser o início de
um lar para mim.
Seu dedo desceu pela minha bochecha, e só então entendi que ele
estava tocando o corte maior que o chicote de Cole havia deixado em meu
rosto. Ele descascava agora.
Meu coração quase saltou pela boca quando vi um canto dos seus
lábios se retorcer para cima e seus olhos se dilatarem de uma só vez em
uma espécie de luxúria.
— Oi, pequena aberração — ele disse com a voz rouca e falha, mas
não menos cheia de um cru… afeto. O mesmo afeto que nunca fora uma
mentira de minha mente. — No fim das contas, essa cicatriz vai te deixar
com cara de fodona, sabe disso?
Sem esperar mais, soltei todo o peso do meu corpo em cima de si,
abraçando-o como se Hayden fosse parte de mim, porque ele era mesmo.
Sempre seria parte da pessoa que eu me tornara, uma pessoa de quem eu
realmente gostava.
— Eu também te amo, tá? Muito, muito.
Margarida (Asteraceae)
Essas flores gostam muito do sol e temperatura quente,
embora sejam resistentes também ao frio. Representa a
inocência, pureza e a esperança, além da ideia de amor
leal.

Ainda não podia acreditar no que estava acontecendo. Em nada.


Meu organismo estava estranho, formigando, minhas mãos estavam
trêmulas, e toda extensão de minha pele suava frio, mas minha mente…
ainda estava ali. Meu consciente e inconsciente. Eu ainda era eu. E,
honestamente… eu estava feliz por isso. Por continuar a ser quem eu era,
mesmo ainda tendo a possibilidade de exercer todas minhas piores versões,
que… talvez não fossem mesmo mais poderosas do que o melhor que eu
poderia dar de mim. O melhor que eu podia desejar oferecer.
O calor de Katrina entre meus braços me fazia sentir mais
reconfortado do que nunca. Era como se eu estivesse no lugar certo, com a
pessoa certa, e nada mais importava além de nós. Inspirei seu aroma de
terra fresca e chuva, toquei sua pele macia e ouvi sua respiração acelerada
como se fosse a primeira vez, porque de certa forma era mesmo. Eu tinha o
pressentimento de que era tudo a primeira vez em uma vida nova.
Não pensei que teria essa chance, de forma alguma. Passara a última
semana trancado em um dos aposentos de hóspedes, como se esperasse uma
morte, que aconteceria em pelo menos algum aspecto após a cirurgia,
achando que eu nunca descobriria quem eu poderia ser diversidade diante
de circunstâncias que não fossem tão repressoras. Em nenhum momento,
entretanto, arrependera-me de ter assinado um termo de abdicação do
restante de minha liberdade. Eu lutara pelo que acreditava. Katrina foi a
primeira coisa na qual realmente acreditei, no fim.
Ela tinha sido o primeiro raio de sol que iluminou as trevas nas quais
eu habitava.
A névoa estranha de paz que me rondara chegou ao fim quando
alguém gritou “fogo” muito além da ala em que estávamos, e Katrina
inclinou seu tronco de imediato, tão alerta quanto eu. O calor de seu corpo
deixou um vazio imenso em mim, mas eu esperava que ele fosse apenas
temporário. Para sempre.
Enfim me sentei, me esforçando para me concentrar no mundo além
do que era nosso. Tudo naquela sala cirúrgica estava destruído, e Cole
estava jogado ao chão, com a mão segurando uma parte de seu rosto que
parecia machucada. Parecia desnorteado, como se não aceitasse o que
acontecia ao seu redor.
Alguns garotos saíram às pressas daquele consultório, decerto sendo
incitados pelo grito de aviso de poucos segundos atrás, e Brad os seguiu
para ver o que acontecia lá fora. Voltei a encarar Katrina um tanto quanto
incrédulo.
— Sua… garota tola, o que você fez?
O sorriso conspiratório que se esboçou dentre seus lábios fez meu
coração se encher de vida.
— Eu destruí tudo para vir atrás de você, Hayden. Foi isso que eu fiz.
Eu deveria estar indignado por ela ter se colocado em risco de mais
formas que eu podia imaginar agora, mas tudo que eu fiz, no fim, foi sorrir,
apenas um segundo antes de envolver seu rosto com minhas mãos e beijá-
la.
— Menina estúpida. Eu pensei que fosse mais inteligente que isso —
sussurrei contra seus lábios, embora não tivesse mantido o tom de censura
como deveria querer.
— Eu sou inteligente ao ponto de não me deixar perder quem já me
salvou nos mais diversos sentidos. Foi você quem me ensinou que um
pouco de egoísmo pode ser importante às vezes, certo?
— Porra. É, eu ensinei mesmo, não foi?
— Escutem, temos que ir — Brad disparou quando voltou para a sala.
— Não começaram a colocar fogo ainda, provavelmente foi Ashley quem
espalhou o boato para que todos dessem o fora, mas o lugar vai queimar
muito em breve.
— O quê? Não, não, não. — Cole foi trazido de volta à realidade, e
tentou se colocar de pé, embora estivesse nitidamente fraco.
Também me coloquei de pé, e fiquei zonzo por um momento, mas me
forcei a me manter centrado quando observei Katrina cambalear para trás de
um modo manco. Abaixando o olhar, percebi que ela trajava um uniforme
de enfermeira, mas não foi isso em que me concentrei, e sim no corte
profundo de sua coxa abaixo de um torniquete improvisado.
— Ei, tá tudo bem. Não está mais sangrando tanto — Katrina disse,
como se visse o sangue escapar de meu rosto, mas eu não a escutei.
— Inferno. O que foi que vocês fizeram por mim? — sussurrei, agora
infinitamente mais sério.
Foi Brad quem me deu uma resposta, embora minha pergunta tenha
sido retórica. Ele apertou meu ombro, dizendo:
— É muito bom te ver também, cara.
Encarei-o, e teria soltado um riso caso a situação não fosse mais
perturbadora do que com as quais eu estava acostumado. Tudo que eu fiz,
no fim, foi dar-lhe um abraço sincero. Brad hesitou, como uma vez eu
hesitara ao ser abraçado de verdade, mas logo retribuiu o gesto.
— Obrigado — eu disse sinceramente ao me afastar, e ele assentiu
uma vez. Era o suficiente.
Não perdi mais tempo. Girei os calcanhares e fui em direção ao
carrinho metálico. Peguei material de sutura e dessa vez anestesia e me
voltei para Katrina. Enfiei o material no bolso de seu uniforme, uma vez
que eu estava apenas com um avental descartável.
— Aguenta só mais um pouco, tá? — eu disse para Katrina, que
concordou com a cabeça. Não havia dúvidas que ela sentia muita dor, mas
não deixava transparecer muito.
Naquele instante, Cole grunhiu em meio a uma tentativa vã de se
colocar de pé, e Brad e Katrina me encararam, esperando para ver o que eu
faria. Aquela decisão cabia a mim, no fim.
Meu primeiro instinto foi dizer para irmos sem nunca olhar para trás,
mas, por algum motivo, não fiz isso.
— Puta que pariu. — Não soube dizer por que, mas acabei girando os
calcanhares e indo até o patético homem. Coloquei-o de pé com uma mão
em seu braço. Ele mal me encarava, ainda estava incerto diante de tudo que
acontecia em seu império. — Vamos logo — cuspi, e ele enfim me fitou.
Não como um filho, mas como um fracasso do objetivo de sua vida.
Não me importei. Ele não era nada para mim, assim como suas
opiniões. Vingança... não me era mais importante como um dia foi. De
forma alguma.
Aquela parte da minha vida, seu domínio sobre mim tinha acabado por
definitivo. Eu moldaria uma nova no momento em que saísse daquele
Instituto pela porta da frente uma última vez.
Voltei-me para Brad e Katrina, que ainda me esperavam, e murmurei
para que déssemos logo o fora dali. Fiz com que a garota apoiasse seu peso
em mim, e então seguimos em direção à saída da ala médica. Já não havia
ninguém no corredor do lugar.
Chegamos a larga porta que levava ao corredor principal, e de
imediato o cheiro de queimado encontrou minhas narinas. Parei de
imediato, pisando em cima de margaridas que estavam jogadas no chão,
caídas de um vaso mais próximo.
— Começou — eu sussurrei.
— O plano era que David e Helen iniciassem o incêndio no último
andar — Katrina explicou. — Tínhamos que garantir a oportunidade até o
último segundo para que, quem quer que tivesse sobrado nesse andar,
pudesse descer sem encontrar muitos obstáculos no caminho. Logo mais
eles vão espalhar fogo pelos outros andares.
Arqueei as sobrancelhas.
— Vocês pensaram em tudo, não foi?
— Fizemos o melhor que pudemos sem você — a garota respondeu.
— Vocês se viraram bem sem mim.
— Isso não quer dizer que não precisemos de você — Brad
murmurou, e eu soltei um riso nasalado ao voltar a andar com Katrina ainda
apoiada em mim.
— Acreditem, vocês não precisam de mim. E é justamente por isso
que estou tão feliz por estarem aqui — eu disse sinceramente, ainda
sorrindo.
— O que vocês fizeram com o meu instituto? — Um berro chamou
nossa atenção, e então nos viramos. Era Cole, que tinha chegado ao
corredor principal, que estava todo vandalizado. O homem então mexeu um
pouco seu nariz, decerto sentindo o cheiro de fogo como nós. — Vocês…
vocês estão queimando ele? — Ele se apavorou. Estava frenético,
nitidamente descontrolado.
— Sim — respondi simplesmente, continuando a seguir em frente,
embora mantivesse meus olhos vidrados nele. — Nós colhemos exatamente
o que plantamos, sabe? E tudo que você plantou por aqui foi dor. Você
colherá os frutos agora, todos seus alunos se garantiram disso hoje.
— Não — ele sussurrou, os olhos arregalados. — Todas minhas
pesquisas, teorias, experimentos… Tudo, tudo está em minha sala. O estudo
de minha vida, porra. O que vocês fizeram? — repetiu, e eu expirei o ar
pesado pela boca enquanto continuava a seguir em frente, embora
mantivesse os olhos vidrados nele.
— O trabalho de sua vida vai virar cinzas. Você agora é um diretor
sem instituto e um médico sem pacientes, e todos que você enganou vão se
garantir que continue assim para sempre. Aceite isso e não seja um covarde
pela primeira vez na vida. Enfrente as consequências de seus erros lá fora,
além da bolha repleta de podridão que você construiu.
— Não, não — continuou dizendo, ainda em negação. — A minha
vida… A minha vida é esse Instituto. Tudo está aqui.
Engoli em seco, dando-lhe um último olhar.
— A escolha é sua, Cole.
Voltei a me concentrar no caminho à minha frente. No meu futuro.
O cheiro de queimado ficava cada vez mais forte, e eu tive certeza de
que o fogo se aproximava, e rapidamente. Havia querosene por todo canto,
e, uma vez com as chamas instaladas, era questão de tempo até que o andar
todo fosse sucumbido.
Acelerei o passo o mais rápido que pude, e, embora Brad pudesse ir
mais rápido, ele nos acompanhou. Já tínhamos avançado alguns poucos
metros quando escutei passos pesados atrás de nós. Já era tarde.
Só tive tempo de virar o rosto para ver o que estava acontecendo antes
que algo sólido se chocasse contra minha cabeça. Isso fez com que eu
cambaleasse, e, me desequilibrando em cima de cacos de vidro no chão, caí
em cima de Katrina, cujo grito agudo de dor crua soou até meus ouvidos de
forma a não deixar dúvidas de que eu teria pesadelos com ele para sempre.
— Seu desgraçado. Você foi o maior fracasso de minha vida, eu me
envergonho de você!
Cole segurava um cacetete, decerto deixado para trás por algum
segurança. Ele teria me acertado mais uma vez com ele caso Brad não
tivesse o empurrado com força para trás.
— Qual a porra do seu problema? — Brad gritou para o homem, mas
eu não me importei com o que ele dissera, nem por um segundo sequer. Eu
agora sabia quem eu era, meu genitor que se fodesse.
Tudo que fiz foi me virar para Katrina. Sua perna voltara a sangrar,
agora mais freneticamente. Seu rosto já não tinha mais cor.
— Me desculpa — sussurrei, já colocando seu braço ao redor de
minha nuca para levantá-la.
— Não é sua culpa. Nada disso. Somos as vítimas, tá?
Cerrei os dentes com força, realmente absorvendo o que ela dissera, e
fiz menção em levantá-la de uma vez. Parei quando uma luz incandescente
chamou minha atenção instintivamente.
De uma só vez, o fogo chegara ao corredor principal pela segunda
ramificação mais próxima à minha direita, perto demais de Brad e Cole, que
estavam entre uma briga física. O primeiro fazia segurava o pulso do
homem com força, dando seu melhor para fazê-lo soltar o cacetete. O
homem, no entanto, estava simplesmente incontrolável, decerto sob efeito
de uma adrenalina obscura.
Já de pé, segurando Katrina com toda força possível contra mim,
gritei:
— Brad, deixe-o. Vamos, vamos.
Ele não me escutou. Tudo que fez foi falar para Cole:
— Você deveria saber que nada que você faça, nem as palavras que
diga, nos afeta mais. Nós estamos livres.
— Brad, vem logo — surpreendentemente, foi Katrina quem berrou
aquilo diante do fogo que se aproximava rapidamente. O garoto ainda não
ouviu. Na verdade, ele só sorriu.
— Hoje é mesmo o fim, Cole. De tudo.
Aquilo provocou uma certa reação no homem, uma fúria
desgovernada. Com sua mão livre, Cole transferiu um golpe na garganta de
Brad, afastando-o rapidamente.
— Se esse é o meu fim, é o de vocês também — Cole retrucou
amargamente ao chocar o cacetete na lateral da cabeça de Brad com uma
força cruel. Eu e Katrina gritamos o nome dele de imediato, mas ele caiu, e
fogo o alcançou. Tudo foi rápido demais.
Cole disparou para nós, e antes que eu conseguisse colocar Katrina no
chão, Cole já segurava o maldito cacetete como se fosse um taco de
beisebol para disparar mais um de seus golpes. Dessa vez, o cacetete
alcançou meu ombro, porque eu me virei bruscamente para proteger
Katrina.
— Vocês vão ruir comigo, me ouviram? Vocês são as verdadeiras
aberrações aqui, e se eu não posso curá-los, não vou deixar que voltem para
a sociedade.
Outro golpe foi transferido, e dessa vez na parte de trás do meu joelho.
Katrina implorou para que Cole parasse, as chamas se aproximavam mais e
mais, e a fumaça começava a me asfixiar. Desorientei-me por completo,
pensando em um maldito plano.
Não tinha nenhum.
Não tinha como ir atrás de Brad, não tinha mais tempo de soltar
Katrina para me livrar de Cole com as chamas tão próximas.
Outra pancada, agora nas minhas costelas, impiedosa o bastante para
me fazer sibilar um palavrão. Tentei empurrar Cole após essa com a mão
que não aparava Katrina, mas assim que a levantei senti que meu ombro
estava deslocado. Não consegui impulsionar meu braço mais para cima, não
tinha forças.
— Não tem nada para nós lá fora.
E então Cole levantou o braço para mais uma pancada, uma que
poderia ser dizimadora. Tudo que eu pude fazer foi lhe dar as costas para
livrar Katrina dela. Tudo que eu podia pensar era nela, na nova vida que nos
esperava… que a esperava lá fora, e que a garota poderia não ter a chance
de ir ao seu encontro. Naquele momento, eu rezei. Rezei de verdade para
quem quer que pudesse ouvir meus malditos pensamentos, porque, pela
primeira vez, eu tinha um propósito pelo qual orar. Eu tinha um desejo para
colocar em preces, alguém por quem acreditar que havia mais além de nós.
Alguém por quem valia a pena ter esperanças.
Rezei para que Katrina ficasse bem e que ela encontrasse a vida que
merecia. Tudo que fizemos não podia ser em vão. Simplesmente… não
podia.
O choque do cacetete não me encontrou, o que fez com que eu virasse
a cabeça em direção a Cole. Foi a tempo suficiente para ver Brad saindo do
fogo e puxando Cole para trás pela gola de seu avental cirúrgico.
— Há tudo lá fora. Tudo.
— Brad, não — eu berrei, minha voz saindo em meio a tosses
inevitáveis, mas já era tarde demais. O garoto já tinha jogado Cole contra a
parede em chamas atrás de si, à esquerda. A parede, já fraca, sucumbiu, e a
estrutura do teto da região em cima deles desabou de uma só vez.
Cole foi coberto por completo pelo material desabado, e Brad da
cintura para baixo. Katrina chamou por ele, mas seu nome não foi
finalizado. Tosses violentas escaparam de sua garganta. Agora havia
fumaça escura para todo lado, e o calor era insuportável. O Inferno agora
estava explícito naquele Instituto.
— Brad, cara — chamei de novo, contendo as tosses, ao me
aproximar. Katrina ainda mancava, mas seu esforço para se manter firme ao
me acompanhar até Brad foi impossível de não ser reconhecível.
Mais próximo, percebi que ele estava consciente, mas havia sangue em
sua boca. Descendo o olhar, percebi que havia estruturas de ferro em cima
de suas pernas e costas. Embora fogo já tivesse nos alcançado, coloquei
Katrina no chão apressadamente, avançando em Brad para retirar toda
aquela merda de cima dele. Enfiei minhas mãos através do fogo nos
escombros, e gritei ao tirar a primeira por conta do ombro deslocado.
Brad murmurou algo roucamente, o que fez com que eu disparasse
minha atenção desorientada para ele.
— O quê?
Mais sangue saiu de sua boca em jato, mas ele se esforçou para repetir:
— Há tudo lá fora para vocês dois. — Estava completando o que
dissera a Cole.
— Nós não vamos te deixar — Katrina disse em meio às tosses,
balançando a cabeça freneticamente.
Tentei tirar mais uma estrutura de cima dele, com a pele de minhas
mãos já sensíveis demais ao calor. Quando a levantei, senti meu ombro se
fraturar. Meu braço cedeu, eu não tinha mais controle sobre ele. A estrutura
despencou em cima de Cole mais uma vez, mas o garoto não gritou, não fez
nada.
Ele não estava mais sentindo o corpo.
— Cara — Brad disse. Sua voz não passou de um sussurro. — Está
tudo bem. Tudo bem. Eu nunca pensei que sentiria isso, mas… eu encontrei
paz. Não há muito para mim lá fora, você mais do que ninguém sabe que,
apesar dos pesares, esse Instituto sempre foi minha casa. Tudo está
acontecendo como deve acontecer. Não há nada para mim lá fora, mas para
vocês, sim. Você também encontrou sua paz, e, sinceramente… eu estou
muito feliz por você.
— Brad, eu vou…
— Você nunca fez promessas que não pode cumprir, então não comece
agora — ele me cortou e sorriu. Aquele sorriso estranhamente honesto cujo
sangue cobria seus dentes brancos era algo que nunca sairia de minhas
memórias.
— Eu me senti liberto aqui da minha forma, Hayden. E foi você quem
garantiu isso. Você se garantiu que eu não me asfixiasse com a raiva em
meu interior, não me julgou quando eu a extravasei das piores formas
possíveis. Mas isso tem que chegar ao fim, não tem? O monstro que a vida
forjou dentro de mim não deve ter lugar lá fora.
— O quê? Cala a porra dessa boca, Brad, que merda! Você veio atrás
de mim, não veio? Você fez tudo por alguém que não era você. Você não é a
porcaria de monstro nenhum.
Tudo que ele fez foi alargar seu sorriso.
— Ok, acho que eu não podia ficar um passo atrás de você a vida toda.
Você encontrou sua redenção, não encontrou? — Não precisou de muito
para que eu entendesse que ele falava de Katrina. — Bem, eu também devo
ter tido minha redenção hoje, no fim das contas. E isso foi mais divertido do
que eu achei que pudesse ser.
— Brad, para, para! — Katrina disparou, e lágrimas começaram a
invadir seus olhos. Não sabia se era por conta da fumaça ou realmente por
Brad. Talvez fosse igualmente pelos dois. Brad desviou o olhar para a
garota, suavizando um pouco o sorriso.
— Sabe, você é muito mais durona do que pensei, novata. Mas não
pense que isso é um pedido de desculpas.
— Você vai voltar com a gente, vai…
— Você merece ele. E ele também te merece. Igualmente.
Mais sangue jorrou de sua boca, sua pele sequer tinha mais cor, porém
Brad, como o filho da puta teimoso que era, não cedeu até dizer tudo que
queria:
— Eu realmente dei meu sangue na batalha de minha vida, não dei?
E então o garoto deu um último sorriso antes de sua respiração chegar
ao fim. Brad morreu de olhos bem abertos, e com nenhum resquício de
lamentação ou medo. Aquela morte era mesmo do seu maldito feitio, foi o
que eu pensei.
Imediatamente não tive dúvidas de que Brad tinha acabado de garantir
que aquele dia entraria para história. Para a minha história. Porque não
haveria um dia sequer que me esperasse lá fora em que eu não pensaria
nele.
Quando transferi o olhar para Katrina, percebi que ela já começava a
perder a consciência. Não esperei mais, não podia. A peguei com o braço
bom para auxiliá-la através de todo aquele fogo.
— Katrina! Ei, fica comigo, me ouviu? Nós vamos sair daqui.
— Eu… eu não sei se vou conseguir.
— Aguenta só mais um pouco, tá? Por mim… Por nós. Eu juro pela
porra da minha vida, eu vou tirar a gente daqui. Apenas… confie em mim.
Ela soltou uma palavra ininteligível em resposta, mas foi o bastante.
Seguimos reto pelo corredor principal, em meio ao calor mais intenso que já
sentira na vida e uma fumaça delirante. Já não tinha mais oxigênio em meus
pulmões quando cheguei às escadas do terceiro andar, mas não cedi.
Não soube como, mas conduzi Katrina pelos degraus abaixo.
Chegamos ao segundo andar, que também estava sob as chamas mais
ardilosas possíveis, e seguimos direto ao primeiro. O lugar todo estava em
ruínas.
Nós saímos do Instituto pela porta da frente para nunca mais voltar.
No gramado, nós caímos de joelho, com os pulmões chiando em busca de ar
puro. Ao nosso redor, todos observavam com toda atenção do mundo as
brasas que se alastravam mais e mais pelo Instituto. Satisfação genuína
transbordava dos olhos de cada aluno ali presente enquanto apenas a
inspetora Foy, com o rosto coberto de fuligem e cabelos desgrenhados,
lamentava aos prantos pelos escombros de um império degenerado.
Era realmente uma pena que ela fosse a única que não tivesse se dado
conta de que a queimada era o principal método de limpeza e preparo do
solo para um plantio novo, um melhor e muito mais purificado que qualquer
anterior.
Caladium (Araceae)
Cresce em áreas abertas de florestas e a beira de riachos e
apresenta dormência durante épocas secas. Pode ser
tóxica quando não lidada da forma correta, mas quando
conscientizada sobre os cuidados a se tomar, pode ser
uma das plantas mais lindas a se cultivar em seu lar.

Não escutávamos nada além do som da água corrente.


Tínhamos vindo para o córrego. Todos nós, com exceção apenas de
uma pessoa.
David me carregara durante todo o caminho de duas horas, porque
Hayden estava com o braço quebrado e as mãos, com queimaduras
provavelmente de segundo grau. Fora Hayden quem contara sobre tudo que
acontecera dentro daquele Instituto durante a primeira meia hora de trilha,
e, desde então, ninguém ousara romper o silêncio cruel que pairou sobre
nós.
Hayden deixara suas mãos sob a água por quase vinte minutos antes
de retirar o material de sutura do bolso de minha roupa e começar a limpar
meu corte com a mão que conseguia mover. Ela tremia muito, e tinha
algumas bolhas sob sua pele, mas ele nunca reclamou. Apenas injetou a
anestesia em mim com a maior precisão possível antes de enfiar a agulha
em minha pele aberta.
— O sol já está no meio do céu — foi Ashley a primeira a se
pronunciar em muito tempo, quando Hayden já terminava a sutura. Sua voz
não passava de um sussurro. Eu desviei minha atenção para cima, e só então
percebi que ainda devia ser em torno de meio-dia.
Foi estranho.
Era como se uma vida toda tivesse acontecido, mas se tratara apenas
de poucas horas.
— Os bombeiros e ambulâncias já devem ter chegado a essa altura —
ela completou. — Não seria melhor voltarmos?
Eu e Hayden nos encaramos na mesma fração de segundo.
Eu sabia porque ele tinha vindo para cá. Eu viera pelo mesmo motivo
que ele.
— Eles não vão — David disse, como se sentisse a resposta no ar.
— O quê? — Helen soprou, seguindo o olhar de David para nós.
Passei a fitar minha amiga, cujas feições se retorciam em confusão e…
melancolia.
— Eles vão tomar seus próprios rumos — David respondeu Helen,
porém não deixou de nos encarar por um segundo sequer. — Katrina não
vai voltar para os pais, que já devem ter sido alertados sobre o incêndio, e
Hayden… não vai enfrentar as consequências pelo pai dele. Nem deveria.
Aquele incêndio é a chance deles desaparecerem, de… começarem uma
vida totalmente nova longe daqui. Todos estavam atentos demais ao fogo,
ninguém os notou saindo. Podem ser dados como mortos. — O garoto então
se sentou na pedra mais próxima e se dirigiu a nós pela primeira vez: —
Estou errado?
Observei-o, mas apenas por um momento, porque voltei a atenção à
Helen para dizer:
— David está certo.
A garota abaixou o olhar, um pouco tensa, contudo logo assentiu,
talvez mais para si mesma. E então, após longos segundos… ela sorriu,
embora lágrimas escapassem de seus olhos.
— Vocês estão fazendo a escolha certa.
Lágrimas também começaram a inundar meus olhos, e foi inevitável
abrir um de meus braços para ela. A garota sequer hesitou em vir até mim.
Ela se agachou e me abraçou com cuidado, porque Hayden ainda acabava
de suturar meu corte.
— Você vai ficar bem? — eu sussurrei para ela. Suas lágrimas
molhavam meus ombros, igual as minhas molhavam os seus.
— Você vai? — ela retrucou, e começou a rir, como se soubesse da
resposta para sua própria pergunta tanto quanto eu deveria saber da minha.
A menina se afastou um pouco, e eu memorizei cada um de seus
traços. As tranças agora desgrenhadas, seus óculos tortos em cima da ponta
do nariz, as sardas de suas bochechas e suas feições harmônicas. Eu nunca
me esqueceria de seu rosto, do significado que Helen tinha tido para mim.
Tampouco precisaria temer esquecer, e por isso enxuguei suas lágrimas e
sussurrei:
— Essa não é uma despedida definitiva, tá? Vou te procurar quando
estiver estabelecida em minha nova vida. Pode demorar um pouco, mas eu
vou te achar. Eu prometo.
— Eu estarei esperando ansiosamente, minha amiga. — Ela retirou
minha mão de seu rosto e a segurou com força, assentindo mais uma vez.
Ela ainda sorria. — Eu não desejo nada mais do que o melhor que a vida
poderia te proporcionar.
— Eu também, Helen. Algo me diz que, em poucos anos quando te
ver, vai ser em seu Porsche mais recente de fábrica, saindo de seu
consultório localizado na melhor região de qualquer que seja sua cidade
após ter um dia cheio ajudando com toda determinação do mundo todos que
forem procurar por você — eu disse, lembrando-me de cada conversa que
tínhamos tido. De seu desejo por certos luxos, embora isso não significasse
que ela um dia planejasse ser fútil, seu anseio por se tornar uma psiquiatra
de valores e ajudar as pessoas dando seu melhor.
A garota alargou seu sorriso por um instante, e suas lágrimas enfim
cessaram.
— Eu vou sentir sua falta.
— Eu também. Muita — respondi, e ela se colocou de pé, enxugando
por completo suas bochechas e se dirigindo a David, que jogou uma
mochila que carregava em suas costas até agora para o chão ao lado de
Hayden.
— Aí tem água, comida e algumas roupas. Para vocês dois — disse
antes de inspirar fundo. — Você é um cara bom, Hayden, e eu te devo um
pedido de desculpas por ter duvidado disso mais vezes do que deveria.
Hayden cortou a última linha da sutura e o encarou.
— Eu não te culpo. Não preciso te desculpar por nada, David.
Um canto de seus lábios se retorceu para cima.
— Nós tivemos um tempo bom, ao menos, né? Nós três — David
disse. Estava se referindo também a Brad.
Hayden também conseguiu sorrir um pouco.
— Nós nos divertimos um pouco, sim — ele concordou, assentindo
uma vez.
David apenas o observou mais um par de segundos antes de me
encarar e dizer:
— Cuida dele. Ele merece.
— E você, cuida dela. — Indiquei com o queixo para Helen, firme.
O garoto virou a cabeça para o lado para fitá-la, e seriedade
transbordou de seu tom quando respondeu ao se levantar:
— Eu vou.
Achei graça quando as bochechas de Helen coraram. Algo me disse
que ainda havia muito para rolar entre aqueles dois.
Ashley enfim se aproximou, e Hayden se colocou de pé. Fiquei um
pouco chocada quando a garota jogou seus braços nele e o puxou para um
abraço, porque ela parecia ser alguém de demonstrar afeto tanto quanto
Brad fora. Vi que o garoto estremeceu um pouco por conta da dor, mas não
hesitou por um instante sequer ao abraçá-la de volta com o braço bom.
— Obrigada. Por tudo que fez por mim e por Brad. Eu vou levar vocês
para sempre em minha história, e, apesar de ter passado por muito
sofrimento, vou sorrir quando me lembrar de vocês e da ajuda que me
deram como podiam.
— Tá tudo bem, Ash. Tudo que eu fiz por você, tudo que Brad fez, foi
porque você mereceu, embora soubesse como ser uma vadia às vezes —
Hayden brincou, provocando um riso sincero em Ashley. Ela deu um tapa
no ombro bom do garoto ao se afastar.
— Como vocês, não me arrependo de nada que fiz. Mas vou tentar ser
melhor daqui pra frente — soprou, e então transferiu a atenção para mim.
Ashley hesitou, mas fez menção em ir para minha frente. Espalmei o chão
para me levantar, e Hayden me ajudou a parar de pé na hora. Eu ainda
estava sob efeito de anestesia. — Eu estava errada, falou? Quando eu disse
que você iria estragar tudo. Você… meio que fez o contrário, novata.
— Hum… Obrigada?
A garota revirou os olhos.
— Tá, que seja. Fica bem, beleza?
— Vou ficar. Assim como você — eu disse baixinho, ficando um
pouco mais séria. — Procura ajuda quando puder, tá? Ajuda de verdade —
acrescentei. Ela tinha passado por muito.
Ashley assentiu, e pelos seus olhos pude ver que realmente assimilou
minhas palavras. A garota não disse mais nada ao se dirigir para onde
David e Helen estavam.
Todos nós nos encaramos por longos segundos, preparando-nos para
encerrar aquele longo capítulo de nossas vidas. Quando eles enfim
estiveram prontos para se virar, não olharam para trás. Observei-os se
distanciar passo por passo pelo barranco acima deles, e, quando por fim já
não se encontravam em meu campo de visão, eu… desabei.
Lágrimas mais frenéticas se acumularam em meus olhos e desceram
em disparada pela minha bochecha. Minha respiração se acelerou, e meu
coração, embora agora em processo definitivo de cicatrização, doeu no
peito. Pela visão embaçada, vi que Hayden se virou para mim de imediato.
Ele me ajudou a sentar no chão outra vez, e se colocou à minha frente ao
sussurrar para mim:
— Você tem certeza de que quer vir comigo?
Não estava pronta para parar de chorar, mas suas palavras fizeram com
que eu secasse meus olhos, apenas para ver seu rosto. Ainda havia um
pouco de fuligem sob sua pele pálida, e suas pupilas estavam dilatadas sob
os olhos cristalinos. Seus cabelos raspados ainda me causavam uma certa
estranheza, mas não o suficiente para fazer com que eu não me sentisse no
lugar certo com ele. Nada nunca mais causaria tal efeito.
Preocupação crua, uma que ninguém nunca tinha sentido por mim,
reluzia em seu olhar e se retorcia por sua expressão. Isso fez com que eu o
puxasse para mim, e, embora tentasse tomar o maior cuidado possível com
seu braço, apertei-o contra mim, como se nenhuma proximidade fosse
suficiente para mim.
— Eu nunca tive certeza de nada na minha vida quanto tenho disso.
Nunca quis nada como quero ir com você, Hayden — eu respondi, e,
embora meu tom estivesse embargado, a firmeza era quase palpável em
meu tom de voz. — Eu só… Me desculpa. Eu não me arrependo de ter ido
atrás de você, nada no mundo nunca me fará me arrepender disso. Eu
apenas não queria fazer com que você carregasse mais culpa sobre suas
costas. Brad… aquilo não devia ter acontecido.
— Katrina, ei — ele disse para mim, em um tom de voz muito mais
alto que o meu para atrair minha atenção. Ele se afastou, mas apenas para
me olhar nos olhos. — Eu não me culpo pela morte dele, da mesma forma
que você não vai se culpar. Essa foi uma perda que não deveríamos ter tido
de modo algum, e eu vou sempre sentir a perda que tivemos até o último dia
de minha vida, mas… aconteceu. E não podemos fazer nada a não ser
guardarmos Brad… guardarmos tudo que perdemos com apreço em nossa
memória e seguirmos em frente, não é?
Encarei-o, tomando meus braços. Hayden continuou ali, também me
observando com uma imobilidade assustadora, como se apenas eu existisse
para ele. No fim, ele esboçou um sorriso reconfortante, um sorriso pelo qual
eu sempre viveria.
— Na primeira vez que eu te vi, naquela estufa, você parecia um
bichinho indefeso e assustado, sabe? Você era dolorosamente magra, tinha
olhos muito inocentes e fazia tudo com muita, muita cautela.
Franzi o cenho.
— O que você está…
— Shh. Na última vez em que estivemos aqui, você falou muito.
Agora é a minha vez — cortou-me simplesmente, e… eu deixei que ele
continuasse até onde quer que queria chegar. — Você se lembra de como
ofereceu sua ajuda naquele dia? Sem sequer me conhecer? Aposto que lhe
pareceu muito natural, não foi? Você simplesmente correspondeu
instintivamente quando um simples espinho arranhou minha mão. Mas isso
foi muito incomum para mim, Katrina. Quer saber, não me lembro de
ninguém antes de você ter me oferecido ajuda nem mesmo no aspecto mais
fútil de uma maneira sincera, sem esperar nada em troca, como você fez.
Desde aquele momento, lá no fundo, eu soube que você era diferente de
qualquer criatura que eu já tinha conhecido. Uma pequena aberração em
meu mundo. Você representou uma estranheza para mim, parecia simbolizar
uma espécie de esperança, mesmo quando você não tinha nenhuma. Você
parecia vir direto de… um mundo que apenas tinha sido idealizado por mim
antes de perder minha já escassa inocência, presente apenas na infância.
Você me disse, bem aqui, que quando eu te vi pela primeira vez, eu percebi
que você estava morta por dentro. Você supôs que eu me mantive tão fixado
em você por isso. Você estava certa, mas só em partes. Eu de fato me dei
conta de que você estava deixando que a brutalidade ao seu redor te matasse
aos poucos, vi que você não tinha a malícia necessária para lidar com ela.
Eu, instintivamente… tentei mudar isso. Mas não foi apenas por isso que
fiquei simplesmente obcecado com você, de forma alguma. Eu sempre fui
egoísta demais, e eu continuei a seguindo por onde fosse porque apenas
queria ter mais de você. Eu a estudei durante todo o tempo, ainda hesitante,
mas não demorei a descobrir que você era mesmo autêntica. Você não era
forjada por nada, apenas por você, e foi justamente por desejar se manter
tão fiel a si mesma que sofreu tanto. Você se relutava muito a
metamorfosear em termos de outros. Você sempre travou uma batalha
interna entre a pessoa que era e a pessoa que outros impunham que fosse.
Embora não soubesse lidar com isso, nunca se deixou ceder por completo,
não é? Inferno, você nunca mudou nem mesmo por mim, tudo que você
transformou em si foi de acordo com seus termos, por você. Você somente
foi você. Por um segundo sequer, foi menos do que a coisa mais
encantadora em que eu já botei meus olhos. Nunca foi nada senão… a
pessoa mais linda, em todos os sentidos possíveis, que eu conheci e irei
conhecer em toda minha vida repleta de trevas. — Ele passou seu polegar
pelo meu maxilar com muita cautela, como se eu pudesse quebrar, e só
então percebi que eu já tinha parado de chorar. Eu não fazia nada além de
existir apenas para escutá-lo. — Linda, pequena aberração. Malditamente
linda — frisou, sorrindo.
Eu também sorri. Tinha sido o primeiro desde que saímos daquele
Instituto, deixando Brad para trás. Meus olhos estavam secos, cem por
cento focados no garoto diante de mim.
— O fato é que, embora tenha mantido sua essência tão…
estranhamente atrativa para mim, que muitas vezes representou o oposto de
quem eu era e de todos que eu conheci, você floresceu mais. Você aprendeu
a lutar pelo que de fato queria para si, porque, infelizmente, no mundo em
que estamos, não ceder não é suficiente. Você deixou de ser aquele bichinho
indefeso que eu conheci para se tornar uma mulher cheia de… afinco.
Corajosa pra caralho e que aprendeu a se dar o pleno direito de querer o que
quer. Eu te admiro tanto, tanto. Te admiro por tudo que fez hoje, por mim,
mas também por cada dia que se antecedeu a este, por tudo que você fez por
você e por tudo que continuará fazendo. E é por te admirar muito, por saber
que você escolhe estar comigo embora eu ainda não tenha certeza se te
mereço mesmo ou que um dia eu vá merecer, e também por você me fazer
conhecer mais a mim mesmo, versões das quais eu consigo realmente
gostar, que eu nunca poderia sentir nenhuma culpa ao permanecer com
você. Como eu disse, a perda de Brad vai ser sempre muito sentida por
mim, mas não vou deixar mais nada se colocar entre nós. Porque, apesar de
termos tanto para conhecermos de nós mesmos lá fora, eu sei que você
sempre será tanto a pessoa da minha vida quanto para minha vida. Nós já
passamos por muitas provações, certo? Acho que fomos testados o bastante,
então agora… é o bastante.
Segurei o pulso de sua mão que ainda me tocava com força, ainda
sorrindo. Ainda me encontrava inevitavelmente triste, quase em luto, mas
meu coração… ele estava repleto de vida.
— Agora, me prometa que você também não vai se culpar por tudo
que fez por nós, tá bom? Você pode fazer isso?
Meus olhos voltaram a ficar úmidos um pouco, mas eu pensei com
todo afinco possível em suas palavras até chegar em uma resposta para sua
pergunta. Eu confiava em mim mesma para dá-la com toda certeza do
mundo:
— Eu prometo. Prometo que não vou deixar nada, nem ninguém,
interferir no que temos e no que construiremos juntos, porque é você quem
eu escolho para minha vida, Hayden. É você, acima de tudo.
Hayden assentiu uma vez, e recolheu sua mão, apenas para segurar a
minha e se aproximar um pouco mais. Ele encostou sua testa na minha,
deixando sua presença ainda mais marcante para mim, e não fiz nada além
de saboreá-la com toda intensidade que podia. Saber que eu continuaria a
fazer isso até o fim da minha vida me trouxe a mais genuína paz.
— Uma vez eu te perguntei como era se sentir viva. Eu queria saber a
resposta para isso da forma mais desesperada possível, mas eu não preciso
mais que você me explique, eu não preciso entender nada disso por você.
Porque eu enfim entendi como é realmente viver com você. Eu te escutei lá,
naquela sala de cirurgia horrenda, um lugar que agora não passa de uma
distante lembrança, Katrina. Ouvi cada pequena palavra. E eu também
tenho muito o que descobrir sobre quem eu posso continuar sendo tendo
você ao meu lado. Sobretudo, tenho muito o que descobrir de você, e não há
nada nesse mundo que eu um dia quis mais do que isso. Não importa o que
aconteça, eu tenho plena convicção de que minha liberdade vale tanto a
pena por tê-la usufruindo disso comigo.
Meu coração batia forte como nunca no peito, fazendo-me me sentir
mesmo cheia de vida de uma maneira que eu podia ter certeza de que era
revigorante. Revigorante demais.
Imediatamente eu entendi que dias ruins talvez nunca deixariam de
estar à minha espera. Eu ainda poderia me sentir fraca, desmotivada e até
um pouco desesperançosa. Poderia ser uma cruz que eu levaria para o resto
de minha vida. Só que essa seria uma vida essa da qual eu nunca iria desejar
de fato desistir, não mais, porque eu tinha encontrado alguém com quem
queria dividi-la plenamente e que, de alguma forma, eu tinha convicção de
que sempre me faria ver as pequenas flores, porém tão coloridas e vívidas,
dentre espinhos. Eu faria o mesmo por essa pessoa. Aquele seria um dos
propósitos que me faria acordar dia após dia e dar o melhor de mim, mesmo
quando fosse tão difícil.
— Você sabe que passaremos por muitas dificuldades, certo? Ainda
temos uma trilha inteira após a estrada mais movimentada, e estamos
deixando absolutamente tudo para trás. Isso é só o início de um plantio
árduo e demorado até a colheita significativa.
Estranhamente, aquilo me fez sorrir. Sorrir de verdade.
— É, eu sei. Mas nós valemos a pena. E, além do mais, não foi o que
sempre fizemos? Nós sempre sobrevivemos através da dor.
— É, foi o que sempre fizemos, sim. Mas não mais — Hayden
sussurrou, e quase pude sentir seu sorriso se espelhando no meu.
— Não?
E foi então que ele me beijou. Um beijo que esbanjava confiança,
promessas e paixão. Eu estava certa de que era o primeiro de muitos.
— De forma alguma. Porque, a partir de hoje, pequena aberração,
estaremos de fato vivendo através da dor.
Novembro de 1982
THE NEW WORK TIMES
Alunos provocam incêndio em internato ao oeste da Georgia
Na manhã do último dia primeiro, uma catástrofe se rompeu no
interior dos portões de um instituto intitulado como “New Order”. Um
incêndio na fundação se deu início por parte dos próprios alunos, embora
nenhuma de nossas fontes tenha dado os nomes dos principais incitadores
da rebelião.
Bombeiros encontraram dificuldades em apaziguar o fogo, fazendo-o
de fato apenas no fim da tarde. O lugar atualmente se encontra
completamente carbonizado com danos irreparáveis e sem expectativa de
recuperação.
Com a queda física da instituição, também veio sua queda moral.
Nosso jornal teve acesso direto a documentos que explicitam abusos
psicológicos e testes ilegais feitos nos alunos em uma suposta busca de sua
melhoria mental. Também conversamos com alguns desses estudantes, que
relataram precisamente as terapias de eletrochoque brutais às quais eram
impostos sem sua autorização e punições degradantes para quem infligisse
uma das centenas de regras da direção, que estava sob o comando de Cole
Anderson, um psiquiatra formado em Harvard e com um histórico
profissional duvidoso.
Por baixo dos tapetes, ele conduzia todo um sistema corrupto e que ia
contra à dignidade humana. Nosso jornal também obteve informações de
que ele pretendia realizar uma intervenção cirúrgica no cérebro de um dos
alunos cujo sucesso nunca foi comprovado ainda naquela manhã junto com
mais dois colegas cujas identidades não foram reveladas. Sabe-se que a
polícia abrirá uma investigação contra ambos, assim como muitos dos
funcionários que tinham total conhecimento dos horrores que ocorriam por
trás das portas da New Order Institute. A inspetora chefe, Rosalie Foy, se
encontra detida e sem possibilidade de sair sob fiança.
Quanto a Cole Anderson, seu corpo foi encontrado carbonizado dentro
do casarão, assim como seus estudos. Testes foram realizados para
comprovar a identidade do corpo. Em breve seu nome entrará para o
esquecimento, assim como suas teses, pois é certo que ninguém irá querer
se lembrar de um homem cuja ambição foi muito mais intensa que sua
humanidade.
Até agora, apenas o corpo do psiquiatra foi encontrado, embora dois
alunos estejam desaparecidos. Apesar de seus nomes não terem sido
revelados por nenhum dos garotos com os quais conversamos, alguns
afirmam ter consciência da identidade dos alunos que julgam estar sumidos
e parecem ter a certeza de tê-los visto desaparecer pela floresta após o ápice
das chamas ter início. Será esse um devaneio de estudantes afetados pelo
monóxido de carbono ou fantasmas realmente existem?
Nós, do The New York Times, desejamos o melhor para todos os
sobreviventes dessa catástrofe, que infelizmente não implica somente um
incêndio. Que vocês sigam em frente em plena liberdade, um direito esse
que nunca, em hipótese nenhuma, deveria ter lhes sido tirado de maneira
tão covarde. Que vocês superem os tempos difíceis e vivam suas vidas
exatamente como devem ser vividas.
Vou começar agradecendo a duas pessoas que, estranhamente, nunca
citei em nenhum dos meus livros: Jaci e João. Minha segunda mãe e meu
segundo pai. Obrigada por terem orgulho de mim, por sempre me acharem
mais inteligente do que realmente sou e por me amarem tanto! Ah, e
obrigada por me fazerem rir toda vez que me perguntam sobre meus estudos
quando na verdade querem perguntar sobre minha escrita. Amo muito
vocês.
Obrigada, mãe, por sempre fazer com que eu me sinta em paz comigo
mesma. Acho extremamente fofo quando estou preocupada com a evolução
do livro e você fala que eu mereço descansar e aproveitar minhas férias da
faculdade. Tá tudo bem, eu gosto de surtar com minhas obras em meu
tempo livre, ok? Sou feliz assim. Além do mais, eu adoro acordar e ir te
chamar para tomar café comigo, e adoro mais ainda quando você pergunta
se escrevi até muito tarde com muito interesse e preocupação. Te amo
infinitamente, você é o melhor presente de toda minha vida.
Ao meu pai, que sempre pergunta quando acordo quantas páginas
escrevi só para me irritar, sabendo que eu vou dizer que eu conto por
palavras e que páginas variam da diagramação. Agradeço pelos inúmeros
potes de açaí e garrafinhas de água que me trouxe em meio às maratonas de
escrita durante todas as férias em que passei em sua casa. Valorizo muito
seu interesse em meu trabalho, por mais que você não ache. Quero deixar
eternizado aqui que eu só demorei a te mostrar a capa desse livro depois de
pronta porque acho muita graça na sua ansiedade por saber de tudo que
faço. Te amo demais e sou muito orgulhosa de você!
Agora esse parágrafo é dedicado à Manoella e ao Breno. Há quase
uma semana eu saí com vocês e, embora tivesse passado um pouco das
doses de álcool, ainda não estava bêbada o bastante para esquecer do pedido
para que eu os incluísse na dedicatória do livro novo. Isso não rolou, mas
estou citando vocês aqui. Manu, você é incrível, amiga! Obrigada por me
distrair tanto em meus dias mais deprimidos (que você diz serem causados
pelos motivos mais bobos possíveis) em BH. Ah, e eu não te contei, mas
outro dia quando estava saindo da sua casa, me despedi da sua mãe falando
que precisava escrever, e achei a coisa mais fofa quando ela me ofereceu
toda ajuda no lançamento mesmo não sabendo ao certo no que poderia me
auxiliar.
Obrigada à Malu e à Gio (ou Gi, porque aparentemente só eu que não
te chamo assim, help!) pelo apoio com esse livrinho. Fiquei mandando mil
rascunhos das artes, capa e sinopse para vocês e vocês me deram toda a
atenção do mundo. Vocês são minhas melhores amigas nesse meio literário,
apesar de todas nós sumirmos do nada às vezes! Valorizo muito os
conselhos de vocês para cada lançamento que faço. Espero um dia
conseguir retribuir toda atenção que vocês me dão.
Por fim, agradeço tanto a você, caro leitor. Você é uma parte muito
importante da minha vida, tá? É por você que estou aqui abdicando do meu
esperado descanso da faculdade para escrever loucamente. Não estou
reclamando, tudo que eu mais amo é conversar com meus leitores sobre o
efeito que minhas histórias causam em suas vidas (gosto até de ouvir
xingamentos sobre mortes de personagens e afins). Saiba que minha dm
está sempre aberta para papearmos sobre todo o caos dos meus livros!

Com amor,
Thaísa

Você também pode gostar