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O fim da vida não é a pior coisa que pode acontecer ao ser humano, e
sim o fim da esperança. Porque isso significa estar morto estando vivo.
Eu andava pensando muito nisso ultimamente. Muito mais do que
seria considerado saudável.
Estava sendo difícil acordar. Levantar. Cumprir até as tarefas mais
insignificantes do dia. E, principalmente, ir dormir sabendo que o dia
posterior seria o mesmo que todos os últimos.
Naquela manhã, assim como as anteriores, eu tive uma briga interna
comigo mesma, perguntando-me se não podia permanecer deitada, sob os
cobertores que formavam uma bolha abstratamente protetora em aspectos
maiores do que o apropriado, ao invés de enfrentar tudo o que me esperava.
A parte mais dolorosamente racional de mim sabia que a resposta era
negativa. Ainda assim, relutei-me a ouvi-la por cada milésimo de segundo
que me era possível, confortando a mim mesma com uma hipótese vã.
Quando me levantei, apenas porque já sabia que estava exatos vinte
minutos atrasada para o começo do dia, tomei uma consciência maior de
meu corpo dormente, torturantemente pesado. Então, como o habitual, saí
da escuridão que envolvia meu quarto e desci a longa escada da casa
vitoriana, que parecia ser tão grande com o único propósito de deixar seus
moradores cientes de que “vazio” podia assumir dezenas de significados
diferentes.
Um par de minutos mais tarde, tive uma pequena surpresa pela
primeira vez em algum tempo, embora não fosse especialmente boa. Meu
pai estava sentado à cabeceira da extensa mesa de jantar, lendo o jornal do
dia.
21/08/1982
Ele abaixou o amontoado de papel assim que se deu conta de minha
presença, encarando-me, ou, para ser mais exata, analisando-me com
aqueles olhos que escondiam uma mente sagaz e nem sempre dócil.
Não o cumprimentei. Não exatamente porque não estava feliz em vê-
lo — eu não estava mesmo —, mas mais porque eu me sentia cansada
demais para sequer me obrigar a expulsar alguma palavra de minha boca.
Silenciosamente, sentei-me à mesa, de frente para minha mãe cujo
semblante demonstrava tédio e desinteresse por tudo à sua volta. Não me
importava tanto com isso, não mais. Ao menos, ela não me forçaria a
conversar ou a responder perguntas inconvenientes. Era o que eu dizia a
mim mesma já há alguns anos.
Ignorei o olhar persistente de meu pai sobre cada centímetro de meu
rosto ao servir um pouco de café em minha xícara. A mesa estava
perfeitamente posta, trabalho das duas empregadas que começavam seu
turno naquela casa exatamente às seis da manhã, porém não sentia muita
vontade de comer nada ali, ainda que, se eu fosse honesta comigo mesma,
reconheceria que estava com um pouco de fome.
— Como você está, Katrina? — o homem de físico bom e cabelos em
um misto de grisalho e castanho escuro enfim rompeu o silêncio. Não havia
de fato uma preocupação genuína implícita em seu tom de voz, entretanto.
Ele apenas… ainda estava me avaliando. Sua única prole.
O fato era que eu meu pai se importava muito com seu legado, com as
aparências. Filho de um advogado de renome e neto de coronel, o médico à
minha frente pretendia que o sobrenome da família continuasse a esbanjar
sucesso cru por mais algum tempo. Aparentemente, eu era um obstáculo
direto para isso. Ele nunca disse isso, porém era óbvio que temia que todas
as conquistas das últimas gerações de nossa família chegassem ao fim
comigo. Eu também pensava um pouco nisso.
Doía saber que o temor mais enraizado em meu pai tinha algum
fundamento.
— Bem — eu disse. A palavra não tinha passado de um ruído rouco.
Minha boca ainda estava seca.
Ele não engoliu a mentira descarada. Claro que não. Era inteligente
demais para isso.
Uma quietude mais desconfortável voltou a se instalar na sala de
jantar, e me apressei para terminar meu café.
Quando enfim me levantei para deixar a mesa, contudo, meu pai disse
em seu timbre mais severo:
— Sente-se.
Encarei-o.
— Estou atrasada para a aula. Preciso me trocar.
— Você não vai.
Contraditoriamente, aquelas palavras não causaram alívio algum em
meu interior. Não quando elas tinham saído da boca daquele homem.
Não deixei que ele me lançasse uma segunda ordem. Estava
acostumada a ceder. Apenas me sentir de novo.
Ele apenas retirou um folheto de seu terno perfeitamente passado e
estendeu em minha direção. Peguei-o.
Em seu topo e em letras maiúsculas, havia um “New Order Institute”.
Tinha uma foto em preto e branco de um largo prédio de três andares
com pilastras dóricas envolta por um gramado assustadoramente bem
aparado. Havia árvores e mais árvores atrás do local — em sua maior parte,
magnólias e longos pinheiros —, que implicavam que a tal instituição
ficava em um lugar mais isolado. Não foi isso que me assustou, no entanto,
e sim o fato de que havia grades em cada janela dali. Eram grossas, e eu
podia imaginar que eram de ferro maciço.
Corri o olhar pelo texto que se seguia, pegando as informações mais
importantes. Aquele era um internato, mas não um comum. Era um
internato para jovens diferenciados, exata palavra usada ali. Professores e
inspetores especializados em ordem, atos que prometiam disciplinar alguém
por toda sua vida e tratamentos particulares, não especificados no texto, que
prometiam em breve ser revolucionários para o mundo todo.
Meu coração se apertou no peito. Não terminei de ler tudo ao encarar
meu pai.
— O que é isso?
Ele não demonstrou muitas emoções ao dizer:
— Você está a menos de um ano de se formar, Katrina, e ainda não
tem uma fração da determinação necessária para iniciar sua fase adulta.
Sequer consegue cuidar de si mesma. — Ele tomou um gole de seu chá
calmamente, e eu me remexi na cadeira, inquieta. — Um colega de
faculdade criou este instituto já há alguns anos, Sr. Cole. Um homem de
uma inteligência renovadora, de fato. Estive acompanhando seu
desenvolvimento profissional, e estou certo de que ele anda cumprindo o
que promete neste internato. Ele passou muitos anos após nossa formatura
em Londres, estudando novos mecanismos de tratar mentes com uma
química diferente das demais, e agora enfim está tendo as oportunidades
perfeitas para que seus aprendizados façam a diferença. Tenho certeza de
que você estará em boas mãos.
Minha mente girava e girava com todas aquelas informações. Um
colega de faculdade? Então ele era um psiquiatra, tal como meu pai. O que
ele estava fazendo na direção de um internato?
— Não entendo o porquê disso tudo. O senhor também é um
psiquiatra, eu já estou em boas mãos — eu contestei, embora aquilo não
fosse exatamente verdade. — Qual o sentido de me enviar para um
internato logo agora?
— Há limites que não posso cruzar como seu pai, e está óbvio que
medicações não são o método mais eficaz de tratá-la, Katrina. Você nunca
se encontra disposta, parece como um maldito zumbi andando pelos cantos
e suas notas… francamente, ambos já sabemos que estão um fracasso há
algum tempo. Já está na hora de recorrermos a medidas mais drásticas. Você
deve aprender a lidar de uma vez por todas com o mundo real. Seus dezoito
não estão longe, e eu não posso mais aturar uma criança em minha casa que
não quer crescer.
— Mas, pai…
— Já teve as explicações das quais precisava. Não tenho tempo para
essa conversa, tenho que estar em meu consultório em menos de meia hora
— ele me cortou, o tom rude e indiferente como se eu fosse apenas um
contratempo. — Vá arrumar suas malas. Duas, no máximo. Virão te buscar
em três horas.
Parecia ser algo tão simples para ele. Me expulsar de casa, me mandar
para um instituto sobre o qual eu mal sabia o básico e que eu ainda sequer
tinha ideia de onde ficava. Minhas mãos começaram a tremer, como se só
então eu começasse a me dar conta da gravidade da situação, como se a
ficha enfim estivesse caindo. Instintivamente, lancei a atenção à minha mãe,
que não parecia se importar muito mais que meu pai com o fato de eu ter
sido matriculada em um lugar que eu não conhecia em nenhum aspecto.
Ainda assim…
— Você não vai dizer nada? Você… você concordou com isso?
A mulher de cabelos escuros, cabelos infinitamente mais arrumados
que os meus e que parecia ser muito mais nova do que de fato era
simplesmente deu de ombros.
— Seu pai é o chefe desta casa, sabe o que é melhor para todos nós. E,
francamente, querida, não é como se sua situação pudesse piorar. Acho que
uma mudança de ares vai fazer melhor para você, talvez você recupere sua
vitalidade com os tratamentos revolucionários que o Sr. Cole promete
oferecer. Além do mais, esse internato é de alta classe. Quem sabe você não
possa encontrar algum futuro marido de sobrenome decente por lá?
Inacreditável. Os dois eram inacreditáveis.
Abri a boca para continuar contestando-os, mas palavra alguma saiu
dali. Não parecia ter tantas energias para continuar discutindo, se é que eu
podia ter chamado a conversa dos últimos minutos de discussão. Eu
apenas... não consegui lutar tanto por mim, e isso pareceu me frustrar ainda
mais do que o fato de meu genitor estar me mandando para longe de uma
casa que não era tão minha quanto devia.
No fundo, eu ainda queria dizer que poderia melhorar, que iria tentar
mais dessa vez, se me deixassem ficar. Eu tentaria ter alguma motivação
todos os dias ao acordar, arrumaria algum jeito de ter mais energia para me
entregar mais aos estudos e projetos extracurriculares. Poderia arranjar
amigos se me esforçasse mais, assim não ficaria sempre em casa em meus
horários livres. Eu recuperaria a vitalidade que perdi em algum momento
indefinido de minha vida.
Porém eu também já sabia que tudo aquilo não passaria de uma
mentira cruel. Assim como meus pais sabiam. Eu não melhoraria ali,
naquela casa. Contudo, eu também não achava, de forma alguma, que
poderia melhorar em um instituto que continha grades nas janelas.
Pela primeira vez em muito tempo, estava sentindo um sentimento
muito mais intenso do que o vazio que andava me rondando de modo
amargo. Não demorei a identificá-lo como medo.
— Suba e vá arrumar suas coisas, Katrina. Eu não pedirei uma
segunda vez — a voz dura de meu pai chamou minha atenção. Voltei minha
atenção a ele, não conseguindo fazer o que me fora ordenado.
Inspirei fundo, fechando as mãos em punho.
Talvez... talvez eu pudesse insistir mais um pouco. Por mim, embora
não andasse prezando tanto pelo meu melhor já há algum tempo. Tive que
tomar todas minhas energias restantes para sussurrar:
— Então é isso? O senhor vai simplesmente me enxotar de casa com
um aviso prévio de três horas? Não vai fazer sequer questão de esclarecer
melhor para onde estou sendo obrigada a ir? Isso é…
— Chega — o homem de óculos redondos empoleirados na ponta do
nariz fino aumentou seu tom de voz, chocando a palma de sua mão contra a
mesa, fazendo com que minha xícara tremesse. Aquilo não surtiu efeito
nenhum em mim. Apesar da pontada de medo que persistia em consumir
minhas entranhas, meu corpo continuava dormente. — Não continue
questionando meu bom senso e minhas decisões. Estou fazendo o que é
melhor para minha família, e não há motivos para duvidar de que essa foi a
melhor escolha que fiz. Basta que você saiba que Sr. Cole é um homem de
confiança e perito em cuidar de jovens como você. Não estou te mandando
para qualquer lugar. Ouvi maravilhas sobre essa instituição de amigos
próximos que possuem filhos com adversidades até mesmo maiores do que
você apresenta antes de fazer seu registro.
Registro.
A palavra ressoou de forma pungente por cada canto de meu cérebro.
Registro. Não matrícula. Registro.
Foi provavelmente aí que tive a completa certeza de que estava certa
em temer o que viria ao meu encontro.
— Pai… — meu tom agora era quase inaudível. — Que tratamentos
revolucionários são esses aos quais Sr. Cole pode me submeter? E,
especificamente, que tipo de educação essa instituição promete oferecer?
Sua resposta foi jogar o jornal com uma força brutal sobre a mesa e se
colocar de pé de uma só vez.
— Arrume suas malas. Não faça com que eles a dopem para fazê-la
entrar no maldito carro. Acredite em mim, ninguém aqui gostaria que isso
acontecesse.
E, sem permitir que eu dissesse qualquer coisa a mais, o homem
responsável por minha existência me deu as costas e caminhou com passos
dizimadores até a saída, deixando-me com meu coração agora, mais
despedaçado do que nunca, sangrando em minhas mãos.
O sábado enfim tinha chegado, e, com ele, uma pequena folga. Eu não
seria encarregada pela limpeza nos finais de semana, e tampouco tínhamos
aula. Por isso, fiquei na cama até o horário do almoço, embora não estivesse
de fato dormindo pela maior parte do tempo. Eu apenas não sentia a mínima
vontade de me levantar, porém já estava acostumada com a sensação
mórbida.
Só fui me forçar a me colocar de pé quando o ponteiro do relógio
indicou que já era meio dia. Sem surpresa alguma, o quarto já estava vazio.
Eu não encontrava com Ashley com muita frequência. Provavelmente
estava muito ocupada causando confusão pelo instituto.
Vesti o uniforme, que era exigido até em dias não letivos, e fui para o
refeitório. Andava almoçando com Helen na mesma mesa desde o dia em
que vi Dr. Cole pela primeira vez, então não foi uma surpresa quando
encontrei com ela. Almoçamos sem falar muito, confortáveis com a
companhia silenciosa uma da outra, e então eu a segui até o cômodo de
larga janela onde eu a conheci de fato — seu canto, como ela mesma
denominava.
Helen começou uma nova leitura — provavelmente a décima da
semana —, enquanto eu não fiz absolutamente nada além de me perder em
meus próprios pensamentos enquanto observava a extensão da floresta além
de nós. Foi apenas quando o sol começou a se pôr que me deixei
interromper Helen:
— Como as pessoas não enlouquecem nesse lugar?
Ela arqueou as sobrancelhas para mim, fechando seu livro.
— Mais? — perguntou, erguendo um canto de seus lábios.
— Sim. Mais. As salas de pintura, estufa e quadras de esporte não
abrem no final de semana. O que eles esperam que fiquemos fazendo por
todo esse tempo? — resmunguei. Era o segundo fim de semana que eu
passava naquele Instituto, e esse não estava sendo muito melhor que o
primeiro. Dormir era a melhor parte de ter os dias livres, pois só durante
esse tempo era possível esquecer da realidade. No entanto, as horas
restantes eram intermináveis. Não havia nada para fazer senão se tornar
muito, muito introspectivo.
— Eles esperam justamente que passemos muito tempo imersos em
nossos pensamentos. Eu só nunca entendi se acham que isso nos traz algum
benefício ou se apenas estão querendo nos deixar mais loucos para que a
Instituição nunca venha a falir — respondeu, e não duvidei que a última
opção poderia ser seriamente levada em consideração. — Mas não se
preocupe. A direção não está conseguindo o que quer que deseja. Os
meninos daqui têm seus próprios meios para manter a cabeça ocupada.
— O que quer dizer?
— Sempre há festas rolando pelos cantos. Hayden e seus amigos as
organizam e disponibilizam o que conseguem contrabandear ao longo da
semana. Álcool e alguns comprimidos tarja preta rolam soltos. Imagino que
a de hoje já deva ter começado há um tempinho.
— Isso é sério? Como eles não são pegos e punidos? Festejar não vai
contra as regras?
— A Inspetora Foy e o Dr. Cole não passam os finais de semana aqui.
A inspetora, até onde sabemos, tem uma mãe doente para cuidar, e o
diretor… bem, ninguém realmente tem conhecimento sobre sua vida
privada, mas ele só fica aqui de segunda à sexta. Os inspetores que ficam no
comando são mais… subordinados, vamos dizer assim. Eles nos deixam
passar a noite fora do Instituto, mas não podemos sair com nada necessário
para uma fuga, como muita comida ou água. Todo mundo que sai tem que
voltar em menos de quatro horas também, caso contrário os pais são
acionados.
— Interessante — soprei honestamente. — E onde essas festas rolam
geralmente?
Tudo que Helen fez foi apontar para um lugar específico através da
janela. Desviando a atenção para onde ela indicava, encarei a floresta mais
uma vez. Não tinha nenhum indício de tumulto, mas, após alguns segundos,
notei um pequeno rastro de fumaça escapando de entre as árvores, a uns
bons metros de distância.
— Eles estão fazendo uma… fogueira?
— Exatamente.
Voltei a encará-la.
— É legal?
— Não sei. Nunca fui.
— Como assim, Helen? Nunca?
— Caso não tenha percebido, eu não sou muito popular por aqui. E
também não faço muito o tipo de festas. — Ela balançou seu livro no ar.
Pois é, fazia mesmo sentido.
Honestamente, festas também não eram minha praia. E o magnetismo
silencioso entre mim e aquela festa não ocorria porque eu estava
esperançosa de me divertir com álcool ou dançando, e sim porque aquela
me parecia a única escapatória de minha mente sufocante.
Coloquei-me de pé repentinamente, sem pensar muito. Não mais.
— Vamos.
Helen franziu o cenho.
— O quê?
— Nós vamos naquela festa. Temos que trocar de roupa, aposto que
ninguém vai de uniforme.
— Ashley também ajuda a organizar essas festas, Katrina. Vai por
mim, não seremos nem um pouco bem-vindas lá.
Suspirei. Helen provavelmente estava com a razão. Mas…
— O que temos a perder?
Isso fez a garota refletir. Também me fez deixar os vestígios de
hesitação de lado. Minha vida já estava um inferno mesmo. Antes que
Helen pudesse contestar, permite-me ser impulsiva e puxá-la comigo.
Quando fui para meu quarto após terminar a limpeza das áreas das
quais eu era encarregada, na quinta-feira, eu de forma alguma esperava
encontrar Ashley ali. Claro, aquele também era seu quarto, porém eu mal a
via ali acordada.
Naquele dia em específico, eu não apenas encontrei Ashley desperta,
mas também… chorando. Ela estava encolhida em sua cama, abraçando
suas próprias pernas.
— Ah, que ótimo — ela resmungou com a voz embargada, muito
provavelmente chateada por ter sido flagrada daquela maneira, e afundou a
cabeça entre os joelhos.
Fiquei sem reação por um momento. Não sabia o que fazer,
principalmente porque a garota me odiava. Suspirando, permaneci ainda ao
lado da batente. Ashley continuava a tremer um pouco, decerto ainda
chorando.
Não teria como ignorar aquilo.
— Você… tá legal?
— O que você acha, sua garota estúpida? — Ela levantou a cabeça de
imediato. Seus olhos estavam inchados.
Certo, isso realmente não seria fácil.
— Ok, admito, pergunta idiota. Você… hum…
Não soube quais palavras dizer, como consolá-la. Ainda não tinha
sequer certeza se queria o fazer. Não me simpatizava com Ashley,
entretanto… eu entendia muito bem de sentimentos ruins, que decerto era o
que ela experimentava.
— Você quer alguma coisa?
— De você? Vai sonhando.
— Eu sei que você não gosta muito de mim, e, para ser honesta,
também não gosto tanto de você por motivos óbvios. Mas… nós podemos
deixar as desavenças para trás por algum tempinho se você quiser conversar
um pouco.
— Tudo bem, acho que quero alguma coisa de você, sim — ela
balbuciou, enxugando suas lágrimas com força. — Quero que você me
deixe em paz!
Suspirei.
— Você tem…
Um travesseiro foi jogado em minha direção, mas me desvencilhar a
tempo.
— Que merda. Tá legal, vou deixar você sozinha — resmunguei,
saindo do meu quarto e fechando a porta.
Eu sabia que em breve seria dado o toque de recolher, mas ainda assim
decidi ir para algum outro lugar ao invés de ficar sentada no corredor, sem
fazer nada. Logo tomei rumo em direção ao local onde eu conhecera Helen,
pois lá eu pelo menos poderia ficar entediada com uma boa vista. Continuei
pensando em Ashley durante todo o caminho, entretanto.
Aquela garota parecia ter muitos defeitos, mas eu tinha que admitir
uma qualidade: ela parecia ser dura na queda, e não engolia nenhum
desaforo. Não imaginava o que podia ter acontecido para fazê-la se
desestabilizar daquela maneira.
Só fui tirar a garota da cabeça quando, minutos mais tarde, quando
passei por um vaso de flor de lótus azul. Fiquei com ela em minha mente
até chegar ao meu destino e perceber que não estava sozinha, mas também
não estava acompanhada por Helen, e sim por... David.
Ele tomou ciência da minha presença ao mesmo tempo que eu tomei
da dele.
O garoto de cabelos praticamente raspados por completo estava
sentado em frente à janela, observando-me com sobrancelhas arqueadas.
— O que você está fazendo aqui? — questionei de imediato.
— O que você está fazendo aqui? — ele retrucou, erguendo um canto
de seus lábios.
Considerei dar meia-volta e voltar para meu quarto, porém… eu sentia
que tinha mais direito sobre aquele lugar do que David. E, estranhamente,
eu estava começando a ficar cansada de ceder.
Eu fiquei.
— Só ver a vista — respondi, porém caminhei em sua direção e me
sentei ao seu lado, de frente para a janela — mas claro, mantendo uma
distância relativamente segura.
— É, eu também — ele disse, porém, por algum motivo, não me
pareceu tão sincero. Não insisti. — A floresta fica ainda mais assustadora à
noite, mas ainda há… uma certa beleza nisso, não acha?
Somente dei de ombros.
— Na segunda, não tive a chance de parabenizá-la por tê-la enfrentado
em menos de vinte e quatro horas, inclusive. Sendo bem honesto, não
pensei que conseguiria encontrar o Instituto com tanta facilidade. Erro meu,
claro. Já devia ter aprendido a não descredibilizar Hayden.
Ignorei o pressuposto de que Hayden tinha deixado claro que estava
certo de que eu sairia de lá.
— Então… você pensou que estava me enviando direto para morte
quando batizou minha bebida?
Ele riu, como se eu tivesse mesmo feito uma piada.
— Não exatamente. De fato, pensei que não seria tão fácil para você
achar o caminho de volta, mas pensei que você seria muito bem capaz de
encontrar algum chalé dos vários espalhados pela floresta após uns quatro
dias e pegar orientações. Brad mesmo fez isso.
— Muito consolador — resmunguei sarcasticamente.
— Já admiti meu erro, deveria ser suficiente.
— Bem, você não admitiu o erro de ter me drogado. Então, nada disso
é suficiente.
— Não posso dizer que isso foi um erro, sinto muito. Eu jogo
conforme as regras desse Instituto.
— Que regras?
— As regras para sobreviver aqui.
— E quem dita as regras? Hayden?
— Também — respondeu simplesmente. Aquela em específico, tinha
sido uma regra dele, foi o que David não disse. — Não quero acabar com
meu corpo desovado no meio daquela floresta, afinal.
Encarei-o.
Não demorei a me lembrar do modo que Hayden falara comigo na
segunda-feira, em seu quarto. Ele mencionara desovar meu corpo como um
assunto rotineiro. Meu corpo se arrepiou.
— Você está falando de…
— De George? Sim, claro — ele me cortou, como se eu conhecesse a
história, e retirou um maço de cigarros do bolso de seu uniforme.
Imediatamente me lembrei que George era o segundo garoto que
sobrevivera ao trote da floresta. Ele… devia fazer parte do grupo seleto de
Hayden. — Acho que ele teve que aprender da pior maneira possível a ficar
sob controle. — Ele riu, como se aquilo pudesse mesmo ser engraçado, e
me ofereceu um cigarro. Eu recusei, e ele acendeu um para si.
Imaginei que David estava pressupondo que eu conhecia a história,
então… decidi entrar no jogo, porque não achava que ele me contaria tudo
se eu perguntasse. Por isso, decidi obter algo dele de uma outra maneira.
— Quer saber? Não duvido nada que você e seus amiguinhos tenham
o matado. Vocês seriam muito bem capazes disso.
— Eu, não — ele murmurou, ainda tranquilo. — Posso ser um filho da
puta influenciável, mas não sou um assassino.
— O que está tentando dizer? Que Hayden e Brad poderiam…
— Não estou tentando dizer nada, novata — ele me cortou, mais na
defensiva. Engoli em seco.
— É? Me pareceu que você deu a entender que Hayden e Brad
andaram tendo problemas para controlar George. E que, dentre vocês três,
você é o único não propenso a cometer assassinato.
David tragou seu cigarro sem pressa alguma, encarando a floresta que
se estendia além de nós.
— Ele começou a nos dar algum trabalho com toda aquela indiscrição
ao vender… tudo que não deve ser vendido aqui, de fato. Mas nós não
éramos os únicos a entrarmos em atrito com ele. Dr. Cole cuidava
pessoalmente de seu estado, e, sinceramente, ele voltava cada vez mais
louco das consultas. Isso deve tê-lo frustrado um pouco e também colocava
em risco suas promessas de melhorias para nós. No fim, muitos tinham
muitos motivos para apagar o menino.
Estava mesmo surpresa com todas aquelas revelações.
Eu realmente não duvidava nada de que Hayden poderia muito bem ter
tirado a vida daquele garoto.
— Mas que seja, remoer isso não fará diferença alguma. Já faz quatro
meses que aqueles cães farejadores assustadores pra caralho acharam o
corpo de George na floresta. Nem mesmo os melhores detetives
particulares, contratados pelos pais ricos do garoto, puderam encontrar o
culpado, então com certeza não serei eu a fazê-lo.
Eu mal podia acreditar que era muito provável que ainda estivéssemos
vivendo sob o mesmo teto de um assassino. No começo, também fiquei
surpresa pela notícia não ter vazado, mas era de se esperar que todos
aqueles pais tivessem dinheiro o bastante para encobrir um crime onde seus
filhos moravam em tempo integral.
Será que meus pais sabiam daquele acontecimento? Não duvidei.
Eles possivelmente… apenas não se importavam.
— Ei, me desculpe o atraso. Não estava encontrando o livro, então…
— Helen interrompeu a frase assim que levantou a cabeça após virar no
corredor à frente, notando minha presença. — Ah, oi, Katrina. Você está
bem?
Era muito óbvio que Helen não estava esperando minha presença ali, e
sim… a de David. Por isso ele estava ali.
Ainda assim, sua pergunta tinha sido muito genuína e preocupada.
Porque eu devia estar em meu quarto agora.
— Tudo bem, sim. Só decidi vir até aqui porque estava entediada, mas
acho melhor voltar para meu quarto agora.
— É, hum… podemos voltar juntas para o dormitório. Eu só vim
emprestar esse livro para o David, de qualquer maneira — murmurou, como
se quisesse explicar que aquele encontro não era nada de mais.
Provavelmente não era mesmo, mas eu achava que Helen gostava de David.
E David, por sequer ter esclarecido que estava ali para encontrar
minha amiga, não se importava tanto assim com ela. Estava a usando, era
provável. Não gostei daquilo, mas não achava que era da minha conta.
Helen era inteligente, sabia reconhecer as situações que a rondavam e quais
decisões tomavam. Por isso, eu disse:
— Não, tudo bem. Estou com pressa. Nos vemos amanhã.
De todo modo, eu a alertaria quando estivéssemos sozinhas. Mas não
hoje. Hoje, eu não conseguia parar de pensar no assassinato de George e em
quem poderia ter sido responsável por ele.
Lancei um último olhar a David, e nenhum de nós dois se obrigou a se
despedir do outro. Inspirando fundo, deixei que meus passos me guiassem
para longe do garoto que acabava de me confidenciar o quão sombrio
aquele Instituto podia ser.
Cravo (Caryophyllaceae)
Cravo é uma planta exótica, com rizomas curtos e que
dão lugar a massas densas com alturas que podem superar
o metro. Na cor amarela, pode simbolizar a rejeição e
desdém, mas quando integrados em um arranjo podem
significar a alegria e vivacidade.
Katrina permaneceu quieta pelo caminho inteiro. Não achava que ela
sequer tinha notado o desvio que tomamos para sua cidade ou lido as duas
placas que davam direção ao nosso destino. Ela tinha passado para o banco
da frente, então eu tinha completa visão de seu rosto pelo espelho. Parecia
não somente perdida em seus pensamentos, mas sim… verdadeiramente
incomodada com algo.
Foi apenas quando estávamos muito próximos da entrada de sua
cidade que eu rompi o longo silêncio:
— Me diga, pequena aberração, por que não está sendo minha
presença seu maior incômodo no momento? Já está se sentindo tão
confortável comigo?
Ela bufou. Pareceu irritada por ser lembrada de onde estava e com
quem.
— Acredite, o maior problema da minha vida inteira é você — ela
retrucou, e eu realmente quis rir. Não estava muito acostumado com uma
Katrina que cuspia veneno quando provocada.
Eu gostava, entretanto. Mais do que seria considerado ideal.
A garota estava aprendendo a se defender mais, afinal.
Virei a cabeça em sua direção, encarando-a por um momento. Ela não
teve outra opção senão sustentar meu olhar.
— Tudo bem. Mas não foi em mim o problema que você passou a
viagem inteira pensando.
Ela revirou os olhos, desviando-os.
— Ah, de certa forma, foi sim, porque você é o centro de todos os
problemas, Hayden — disparou. Ainda era estranho ouvir meu nome
escapando de sua boca, e, quase que inevitavelmente, aproveitei cada
segundo daquilo. — Sabe, eu ainda não posso acreditar que eu deixei um
segurança inconsciente por sua causa. Não faço ideia do que me deu.
Certo.
Era isso que estava a afligindo.
Ter machucado o homem que estava a trabalho. Não pude dizer que a
entendia, porque eu não tinha muita intimidade com o sentimento de culpa
ou remorso, então tentei olhar as coisas com sua perspectiva.
Não consegui.
Ela não devia se incomodar mais com o sofrimento que causava às
outras pessoas do que com o sofrimento que outros lhe causavam, de forma
alguma.
Eu tinha certeza que o homem, àquela altura, já tinha recuperado a
razão, e enfrentava apenas uma dor inconveniente. Não lhe consolei, no
entanto, porque isso não fazia meu feitio. Apenas me perguntei,
provavelmente como ela, por que ela tinha machucado alguém por mim se
abominava tanto isso.
Não pude achar uma resposta certeira, mas apenas o questionamento
me fez esboçar um sorriso indevidamente satisfeito por uma fração de
segundo.
— Acho que você me deve um favor — ela soprou após longos
segundos, e eu a fitei de novo, surpreso. Tive que engolir uma risada
quando percebi que estava falando sério.
Nunca devia ter cogitado que era uma brincadeira, na verdade. Katrina
não era uma garota de humor, isso era óbvio. Eu achava… que nunca tinha
a visto sequer sorrir, quanto mais rir.
— Como é?
— Você está me devendo um favor — esclareceu com todas as letras,
ainda firme. — Já ouvi David dizendo que todos levam favores muito a
sério do Instituto, então acho que eu deveria cobrar a dívida
apropriadamente.
— Ok, se eu te devo um favor, você também me deve um, pequena
aberração. Eu te salvei daquele urso, afinal.
Ela semicerrou os olhos para mim, indignada pela menção.
— Eu teria dado conta dele. Estava prestes a acertar o rosto com o
canivete.
Estalei a língua duas vezes.
— E o que te faz pensar que eu também não teria dado conta daquele
segurança?
Katrina grunhiu.
— Não importa. Eu fiz o trabalho sujo.
— Posso dizer o mesmo.
— Ótimo.
— Ótimo — repeti, soltando um riso nasalado. — Estamos quites,
então?
— De forma alguma.
Eu estava me divertindo um pouco com aquilo. Encarei-a pelo
espelho.
— Tudo bem, Katrina… Hipoteticamente, se eu tivesse uma dívida
com você, o que você exigiria de mim?
— Que você sumisse da minha vida — ela respondeu entredentes sem
sequer pestanejar. Já estava na ponta da língua. Demonstrei um sorriso vil.
— Ah, pequena aberração — soprei em um falso pesar. — Deveria
saber que nenhum favor que você poderia me fazer seria suficiente para
cobrar uma dívida dessas.
Ela trincou o maxilar, contrariada, porém não pôde evitar de retrucar a
pergunta:
— E você? Teria exigido o que de mim, hein?
Meu sorriso apenas se alargou.
— Não se preocupe. Eu quero muito de você, Katrina, e nada disso
também pode ser obtido por uma simples dívida a algum favor. Tudo que eu
quero… você me dará por livre arbítrio.
Ela não acreditou nem um pouco em minhas palavras. Isso foi
realmente uma pena.
Não demos continuidade ao assunto, porque, quando entrávamos em
sua cidade natal… ela enfim se deu conta de onde estávamos. Seus olhos se
arregalaram.
— O quê…
— Ainda não. — Não era hora de lhe dar uma resposta mais
esclarecedora.
Surpreendentemente… ela não disse mais nada. Talvez porque, no
fundo, já soubesse para onde nos dirigíamos.
Seguindo as placas, não gastei mais do que quinze minutos para
chegar ao nosso destino. Estacionei do outro lado da rua de onde o
consultório de seu pai ficava. Katrina encarou o local com olhos alertas.
Sua postura exalava tensão crua, e ela apertava as mãos fortemente uma na
outra.
Avaliei-a com toda atenção do mundo.
Ela se ressentia, era óbvio. Porém, eu não identifiquei a que ponto.
Ainda.
Apenas quando ela desviou a atenção para seus pés que eu me deixei
dizer em um tom baixo:
— Não gastamos todo o querosene. O restante está na bolsa do banco
de trás.
Foi só então que ela me fitou, balançando a cabeça.
— Não…
— Não me dê uma resposta superficial porque você acha que é o que
deve fazer — cortei-a. — Pense. Pense no que quer.
— Nós… não temos tempo para isso. Os outros estão nos esperando,
eu escutei a conversa. Temos que…
— Os outros que se fodam, Katrina. Só você importa agora. Como
sempre deveria ter sido.
— Se chegarmos depois da meia-noite…
— Pare.
— Hayden…
— Pense — insisti entredentes, e ela pareceu frustrada, mas só por um
segundo, porque, no fim, ela desviou o olhar e se perdeu dentro de si. Em
um momento raro, ela pensou em si.
Segundos se confundiram com minutos enquanto ela se decidia,
pensava com mais afinco do que qualquer momento anterior, porque eu
tornara aquela situação uma muito possível realidade, e não uma fraca
hipótese. A escolha estava em suas mãos.
Ela encarou através da janela, ainda pensativa, mas, em alguns
segundos… algo lhe chamou a atenção. Meu banco estava um pouco à
frente do seu, então percebi quando seus olhos se arregalaram e suas narinas
se dilataram. Segui seu olhar, e não demorei a localizar o que prendera sua
atenção.
O consultório de seu pai era um prédio estreito de dois andares, e a
larga janela do segundo andar dava vista a um cômodo de luzes acesas,
dava vista ao homem que só podia ser o responsável do lugar. E a mais uma
mulher, que, embora eu não pudesse ver seu rosto, imaginava não ser a mãe
de Katrina pelo modo que a garota os encara. Ela estava… assombrada.
Sua boca sequer tinha cor, ela nem mesmo piscava enquanto via seu
genitor foder uma mulher que não era sua esposa perto de uma janela como
se não tivesse nada a esconder. Como se não estivesse escolhendo uma
amante ao invés de sua própria filha, principalmente naquele dia.
Em uma agilidade viva que nunca vi em Katrina, ela agarrou o boné
que eu deixara logo acima do porta-luvas e colocou em sua cabeça antes de
pular do carro. Ela não pegou o querosene, entretanto.
Segui-a sem sequer hesitar, mas, antes mesmo que eu atravessasse a
rua, a garota pegou uma grande pedra da rua e jogou no largo vidro do
primeiro andar, ao lado da porta. O vidro se estilhaçou, dando plena visão
da sala de espera do lugar e das camélias que a ordenavam. Katrina pegou
uma outra pedra, e dessa vez jogou na vidraça da porta. Ela quebrou em um
estrondo completo.
Cruzei os braços sobre o peito, um pouco perturbado mas muito
admirado com aquilo. Ela estava sentindo algo. Algo não muito bom, mas o
sentia com muita força, ao menos. Uma força que eu nunca tinha
presenciado dela. Ela esteve chegando ao seu limite em várias ocasiões
naquelas últimas semanas, mas nunca assim. Nunca ignorando todas as
amarras que achava que a seguravam.
Sorri.
Aquele era só o começo.
— Sabe, se quiser fazer um bom estrago, o querosene é realmente…
— Isso não é sobre ele. É sobre mim — ela me cortou com a voz cheia
de fúria.
Entendi o que ela queria dizer. Aquilo não era sobre o tamanho do
estrago que faria para seu pai arrumar. Ela não se importava com aquilo. No
momento, ela agia apenas para ela.
Quando Katrina jogou uma terceira pedra bem no balcão de madeira
ao fundo do local, destruindo-o, seu pai chegou na janela do andar de cima,
vestindo uma camiseta.
— Que porra é essa? Eu vou chamar a polícia, seus delinquentes de…
Antes que ele finalizasse a ameaça, Katrina se afastou e jogou uma
quarta pedra bem na parte de vidro daquela janela. Tive que me segurar
para não assobiar diante da mira impressionante.
A menina jogou mais uma pedra, porém dessa vez errou. Ela não
desistiu, e pegou e jogou mais uma na janela ao lado. Mais um ruído de
vidro se estilhaçando chegou como música em nossos ouvidos.
Puta merda.
Senti que poderia ficar vendo aquilo a noite inteira, mas então seu pai
desceu as escadas até a sala de espera. Sem nem mesmo hesitar, corri até
Katrina e a puxei pelo antebraço, mas não a tempo de impedi-la de jogar
uma pedra nele. Ela também acertou.
Tive que praticamente arrastá-la até o carro e colocá-la lá à força
enquanto seu pai voltava à sala de espera e gritar suas inúmeras ameaças.
Contornei o carro com a maior agilidade possível e, ao entrar, não hesitei
em dar partida e levar o carro para longe dali.
Apenas quando estávamos a quase dois quilômetros de distância que
me deixei desacelerar um pouco e a olhar Katrina. Sua boca rosada estava
entreaberta ao dar lugar a uma respiração acelerada, sua pele reluzia em
uma camada fina de suor e seus cabelos estavam mais rebeldes do que
nunca. O que realmente chamou minha atenção, entretanto, foram seus
olhos escuros… eles brilhavam, resplandeciam a intensidade de uma vida
inteira.
Um pensamento fugaz passou pela minha mente naquele momento.
Aquela era a coisa mais linda que eu já tinha visto em uma vida cheia
de horrores e deformidades.
— Ei — chamei sua atenção, e ela se virou para mim em um
movimento brusco.
— O quê? — disparou, e, por Deus… até sua voz carregava mais
vivacidade do que nunca.
Esbocei o mais largo sorriso de todos. Um sorriso diferente.
— Muito bem feito, Katrina. Muito, muito bem feito, porra.
Ela me encarou, e então… fez o que eu não me dava ao luxo de
esperar dela tão cedo. Ela riu. Não foi um riso de alegria, entretanto, e sim
mais de histeria. Foi bonito do mesmo jeito.
— Você é o maior filho da puta que eu conheço, sabe disso?
Eu sabia.
E tinha atingido o ápice da minha noite… talvez, o ápice de meus anos
ao escutá-la pôr aquilo em cada uma daquelas palavras.
Ainda sorria quando voltei a me concentrar na estrada diante de mim,
sabendo que agora teria que lutar contra o tempo para que aquela noite não
terminasse em destroços.
No dia seguinte, eu mal podia andar direito. Não era bem isso,
entretanto, que atraía frequentes olhares para mim pelos corredores do
Instituto. Imaginava que a fofoca sobre a briga do jardim já tinha se
espalhado pelo local. Isso me fez temer, porque, se muitos alunos estavam
sabendo, havia uma chance maior de as informações na noite anterior
chegarem à inspetora Foy ou, pior, ao Dr. Cole.
Apesar da promessa que Hayden tinha me feito, eu não queria que ele
trocasse minha cabeça pela sua. Nada daquela confusão teria acontecido
caso eu não tivesse lhe dado o maldito soco. Eu tinha que assumir as
consequências de meus atos se quisesse me deixar reagir, e não tivera a
racionalidade o bastante em seu quarto para lhe pedir desculpas. Eu dormirá
lá, porém, quando acordara, o garoto já não estava mais lá.
Estava indo para minha primeira aula, mas encontrei Ashley no
caminho. Ela não me deixou passar com tanta facilidade.
— Belo show o que você provocou ontem, hein?
— Agora não, Ashley — resmunguei. Já estava com muita coisa na
cabeça.
Tentei passar por ela, porém continuei sendo barrada.
— E, para completar, ainda passou a noite fora. Acho que tenho um
palpite de onde você dormiu.
Suspirei.
— Olha, eu não sei porque isso tudo seria da sua conta. Está com
ciúmes ou algo do tipo? — questionei, séria demais, e ela semicerrou os
olhos em minha direção.
— Isso é da minha conta porque eu me preocupo com ele.
— Hayden nunca pareceu precisar da preocupação de ninguém.
Agora, se me dá licença, eu preciso…
— O que quer que esteja acontecendo entre vocês, não tem como
terminar bem, Katrina. Espero que pelo menos tenha isso em mente.
Franzi o cenho, assimilando suas palavras. Ashley já tinha sumido da
minha frente antes que eu terminasse de o fazer. Não sabia porque ela tinha
me dito aquilo, porém decidi não me perguntar tanto sobre isso.
Principalmente porque eu duvidava que qualquer coisa ou pessoa pudesse
fazer Hayden deixar de pensar racionalmente.
Segui em frente pelo corredor e entrei na sala de minha próxima aula,
apenas porque era o que eu tinha que fazer. Não prestei atenção por um
segundo sequer no conteúdo, entretanto. Tudo que eu pensava era sobre o
que Hayden me fizera sentir ontem e tudo que ele também fizera por mim.
Ainda era difícil admitir a mim mesma que o mesmo garoto que me
colocara no meio de uma floresta sem ter conhecimento de nada podia
ainda prezar por mim. Eu aparentemente teria muito o que processar e
entender ao longo daquela semana.
Eu também olhava constantemente para a porta, como se a qualquer
momento algum inspetor pudesse entrar por ali e me pedir para acompanhá-
lo até lá em cima. Já fazia quase duas semanas que eu tivera meu encontro
com o Dr. Cole, e, ainda assim, a possibilidade de repetir a dose me causava
arrepios terríveis. Não imaginava qual seria seu tratamento caso soubesse
que eu estive infligindo regras do Instituto.
Quando a aula chegou ao fim, tomei rumo em direção à próxima
classe, mas parei quando, quase que magneticamente, minha atenção foi
atraída para Hayden em um canto meio escondido do último corredor à
minha direita. Ele estava com um garoto que eu não conhecia. Tive que
estreitar os olhos para ver o que faziam.
Hayden pareceu entregar um papelote para o menino, e, em troca,
recebeu algumas notas amassadas que guardou no bolso de seu uniforme. O
menino foi para longe em disparada, como se estivesse fazendo algo errado
e não quisesse ser pego.
Engoli em seco, lembrando-me também das palavras de David. Eu
tinha sido clara ao falar que não temia Hayden, porém não o temia por mim.
Isso não significava que eu não acreditava que ele era capaz de ter matado
George, de forma alguma. Era óbvio que Hayden tinha segredos. Muitos
deles, na verdade. E isso era assustador em uma perspectiva mais ampla.
Uma parte de mim, contudo… estava ignorando aquela informação até
então. Tinha sido inevitável após ele cumprir sua promessa e ser tão
honesto comigo em seu quarto, mostrar-me uma fase sua que eu estava
certa de que poucos, ou ninguém conhecia.
Hayden não demorou a me localizar. Aquela sua atenção cortante
demorou em mim, e ele se escorou na parede. Tive um certo calafrio
quando aquele olhar me trouxe memórias físicas. Ignorando-o, decidi me
aproximar dele. Ele já tinha me notado, de qualquer forma.
— O que estava fazendo? — perguntei assim que cheguei nele, apenas
para ver se ele me responderia.
Ele não o fez. Tudo que ele fez foi soltar um riso nasalado e perguntar:
— Andado engraçado. Com dor?
Hayden pareceu estar caçoando, e eu retruquei:
— Imagino que não mais que você. Seu olho está horrível. — Era
verdade. Sua pálpebra agora estava um pouco inchada, e a parte branca
continuava vermelha.
— É, você causou mesmo um belo estrago, pequena aberração. Belo
gancho de direita, aliás. Pena que descobri da pior forma possível. Nunca
pensei que você reagiria não diante de uma provocação, e sim de alguma
defesa.
Isso me fez me retrair um pouco.
— Você estava me confundindo com seu comportamento
contraditório. Além do mais, eu só acho que não estou muito acostumada
com…
— Com outras pessoas te ajudando? — soprou quando eu hesitei. —
Já deveria ter entendido que não lido bem com outros mexendo com o que é
meu.
— Eu não sou de ninguém — murmurei. — E não é tão altruísta da
sua parte me defender dos outros enquanto você é o pior de todos.
— Eu nunca quis essa fama — ele contestou simplesmente, quase que
achando graça. — E é diferente.
— Quando você me transtorna e quando os outros o fazem?
O garoto não me respondeu. Deixei para lá.
— Tá, que seja. Eu… ainda não pedi desculpas pelo seu olho, na
verdade. Acho que…
— Eu nunca pedi desculpas pela picada de Lilith ou pelo ataque do
urso. E não acho que você queira de fato pedir desculpas, é só seu senso de
bondade falando mais alto, então… não o faça. Seja mais fiel a si mesma.
— Mesmo assim, eu…
— Katrina… não — ele me interrompeu, sério. Não queria meu
pedido de desculpas.
Foi estranho aceitar que eu tinha machucado alguém, machucado ele
principalmente, e não precisava me retratar por isso. Eu não planejava ou
queria um dia fazer aquilo de novo, porém… eu não me sentia de todo
arrependida. Porque, no fundo, eu achava que Hayden tinha merecido
aquilo, não apenas pelos acontecimentos de ontem, mas por… tudo. De
alguma forma, o garoto enxergara isso. Ele também sabia que merecia e não
se importava.
No fim, me contentei em não fazer aquilo novamente, não importando
o quanto a situação pedisse, porque eu não era assim. Eu reagiria de outras
formas, prezaria por mim mesma sendo eu, o que, de todo modo, também
valeria muito mais que um pedido de desculpas. Para mim, isso bastaria.
— Hayden, está na hora de sua consulta com o Dr. Cole. — A
inspetora Foy nos trouxe de volta à realidade, aproximando-se, e o garoto se
afastou de mim de imediato. O movimento, entretanto, fez com que a
mulher tomasse ciência de minha presença. Ela franziu o cenho em minha
direção.
— Srta. Katrina? — soprou, e percebi como ela me tratou mais
formalmente enquanto chamava Hayden apenas pelo nome. Ela nitidamente
conhecia o garoto há mais tempo e julgava ter mais intimidade. Isso me
entristeceu por um momento. — Vocês são amigos, por acaso? — Ela
oscilou o olhar entre nós dois.
— Não, não somos — Hayden respondeu de prontidão, assumindo
uma postura indiferente e implacável. — A garota só esbarrou em mim por
acidente.
A mulher nos encarou desconfiada, porém pareceu optar por não
insistir e se virou para mim, avaliando-me enquanto pensava em algo, como
se fosse lembrada de minha existência.
— Srta. Katrina… Estou tentando me lembrar quando foi sua última
consulta com o Dr. Cole. Eu me lembro de ter marcado seu horário na
agenda para a última sexta assim que você saiu da sala dele há… o que,
duas semanas? Mas a consulta não aconteceu, não é? Não me recordo de vir
buscá-la.
Hesitei, desviando um rápido olhar para Hayden. Ele tinha armado
aquela confusão? Seus olhos impenetráveis não me deram resposta alguma.
— Não, Srta. Foy. A consulta não aconteceu — respondi por fim,
porque ela já sabia da verdade. A mulher parecia ter uma memória boa
demais para nosso próprio bem.
— Engraçado. Eu posso jurar ter colocado seu nome na… —
balbuciou seriamente, mais para si mesma, mas não finalizou a frase. —
Bem, marcarei sua consulta para o próximo horário livre que o doutor tiver.
É inaceitável ter um intervalo entre elas de mais de duas semanas.
Cerrei os dentes com uma força excessiva, já sentindo um calafrio
terrível percorrer minha espinha. A inspetora se virou para Hayden, que
continuava imóvel.
— Agora vamos, o doutor está te esperando. E que machucados são
esses em seu rosto? Jesus Cristo, quando você vai aprender a entrar na
linha? Ele vai querer saber tudo que aconteceu. Anda logo, vamos, vamos.
— A mulher saiu andando apressada, e Hayden me deu um último olhar.
Ele não parecia temer o encontro com o Dr. Cole como eu o fazia.
Provavelmente estava acostumado com aquilo. Isso era… pavoroso. Eu
esperava nunca ter que me habituar a perder o controle de minha própria
mente para apenas fingir viver normalmente.
O garoto pareceu sentir a dor em meu olhar, e foi por isso que retorceu
um canto dos lábios para cima, como se estivesse caçoando do que o
esperava antes de seguir a inspetora. Parecia dizer que estava tudo bem e
que aquilo não importava. Isso apenas me machucou mais.
Porque Hayden não devia mentir. Nunca e de nenhuma forma.
Com amor,
Thaísa