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ABDUCTION

Copyright © 2023 Ruby O’Hara


Todos os direitos reservados.
Capa: Designer TTENORIO.
Revisão: Laila Nascimento.
Leitura crítica: Luna Leituras.
Diagramação: Ruby O’Hara e LN Editorações.
Ilustração: Luuhdraw.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de
quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o consentimento da autora. A violação dos direitos
autorais é crime estabelecido pela lei nº 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal. Esta é uma
obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos de imaginação do
autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Edição Digital ǀ 1ª Edição
Dezembro de 2023
Street takeover + Corridas ilegais (rachas) + Enemies to lovers +
Dark Romance + Slow burn + Redenção do pior entre os piores +
Relação tóxica + Fogo no parquinho, na estação, na universidade, na
cidade.

Aaron Walker é um delinquente com passado sombrio e misterioso.


Estudante de Engenharia Mecânica, ele lidera uma gangue e propaga o caos
na universidade, desde que pisou os pés lá. No entanto, com a perda do irmão
mais velho, seu pior lado foi disperso e não existem preces que o manterão
longe do responsável por tamanho erro.
Brianna Abernathy é filha do mais novo delegado do Brooklyn e
sofre, desde a infância, nas mãos de um pai ausente, autoritário e
manipulador. Ela se verá obrigada a protegê-lo quando sua felicidade for
posta em jogo, junto à vida dele, na mesa do terrível Alien, como é chamado.
O problema é que nem todo mundo tem medo do escuro. Estrelas não o
amam, seria loucura, mas elas sabem que só brilham quando envolvidas por
ele. No entanto, sempre existe uma que contraria as leis do universo, e
Brianna é essa insana exceção.
Ele jurou matar o delegado.
Ela jurou proteger o pai.
Ele tomou o trono do irmão e se tornou líder do crime no Brooklyn.
Ela é o único vestígio de justiça em meio à tanta perversão.
Ele vai massacrá-la.
Ela não tem escolha a não ser permanecer lá.
Será mesmo possível que algo floresça em um caos como esse?
Se acostumar com os espinhos que te machucaram, buscando mais deles e
abraçando-os para se sentir em casa, pode parecer triste, mas nada supera a
repressão voluntária dos próprios espinhos para não te ver sangrar. É aqui que
você percebe o quão destroçada está a sua alma, e foi assim que Aaron
Walker me curou.
Ser transformado em um monstro, aprender com os piores e usar isso como
arma, pode ser em tudo útil, mas quando você percebe que está apenas
reproduzindo o que fizeram com você e criando um ciclo contínuo, aquela
chave gira na cabeça. Foi assim que a ratinha me curou para ela, porque, para
todo o resto do mundo, continuo sendo o mesmo.
Sinopse
Ela
Ele
Nota da autora
Playlist
Dedicatória
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Agradecimentos
Oi! Tô vendo que você encontrou o meu primeiro romance dark. Ele
faz parte de uma série e, para que haja coerência nos fatos, recomendo que
leia na ordem de lançamento.
Também preciso ressaltar que, aqui, você encontrará a história da
evolução dos personagens. Brianna tem traumas desde a infância, assim
como Aaron. Cada um responde a eles de um jeito, busca silenciá-los ou
supri-los de alguma maneira. Não vai encontrar pessoas ou ações maduras,
mas dois jovens em evolução, descobrindo seus sentimentos.
Se atente aos gatilhos: Violência física e psicológica gráficas, tortura,
consumo de drogas, assassinato, cenas +18 explícitas.
Continue lendo se essa for sua praia! Espero que esses dois conquistem
você como fizeram comigo.
Com carinho,
Ruby.
Ouça a playlist de “Abduction” enquanto aprecia a leitura. Para ouvir, basta
clicar aqui ou apontar o leitor a câmera para o código abaixo:
Para a leitora que lê o caos com a carinha de quem está lendo um conto de
fadas. Prepare a egípcia, você vai precisar.
Meu coração ameaçou saltar pela boca, quando olhei de novo para
baixo.
O pergolado de finas barras nuas e escorregadias, de um prédio velho,
ficava a mais de vinte metros do chão. Era por onde eu tentava andar.
Eles chamavam de "desafio à morte".
Dê uma resposta convincente a cada pergunta que fizerem e suas
chances de chegar "viva" ao final eram consideráveis.
Fechei os olhos.
O vento frio da madrugada soprava contra meu corpo fraco, me
fazendo tremer, como quem se vê ao fio da espada.
Na minha cintura, uma corda decrépita remendada, que encontraram ali
pelos destroços. Chiava, amarrada em uma estrutura enferrujada não tão
longe dali.
À medida que me movia, ela parecia querer arrebentar sozinha, e a cada
resposta dada às suas perguntas, não importava se era verdade, caso
desgostassem, um dos caras miraria meus calcanhares e esguicharia jatos de
água, do lugar de onde assistiam a mim, em uma parte coberta do telhado.
Senti que não deveria estar ali, naquele estado, naquelas circunstâncias,
com a sensação de que batizaram minha bebida quando eu estava em terra
firme.
Meu corpo parecia estar anestesiado. As pupilas iam e voltavam pelo
abismo escuro embaixo dos meus pés, e uma incógnita se estendia além de
qualquer compreensão, mostrando o que existia dentro de mim.
O escuro. Sem penumbra, sem começo, sem fim.
Tremi, fraca.
Eu estava e era fraca. Tinha certeza disso naquele momento, quando
cogitei voltar. Afinal, era uma tarefa simples.
Era pegar e fazer, Brianna.
Michel, o carinha a quem eu queria impressionar, ria ao lado dos
amigos, como quem sentia deleite no que via, prazer na aflição.
Era atraente. Perigoso, mas atraente. E era a minha ameaça de vida.
Evitei olhar para baixo e dei mais um passo.
Coloquei forças nos pés, mantive as pernas tão retas quanto as
soldaduras daquelas estruturas. Ainda assim, pareciam bambear. Eu estava
tonta, e não era por conta da altura.
— Colocaram alguma merda na minha bebida? — perguntei, sentindo
meu corpo completamente mole. Olhos semicerrados já falhavam em me me
davam respaldo para enxergar melhor no escuro da noite neblinada.
— Você está indo bem, gata! — Michel gritou, me mostrando os
polegares. — Próxima pergunta!
— Michel… — falei seu nome, pesando na entonação, como um aviso
de que eu não estava gostando do rumo daquele entretenimento inócuo, como
o chamavam.
— Quem é a pessoa que você mais odeia? — Alguém elevou a voz
com a pergunta e o grupo gritou em uníssono, almejando ouvir minha
resposta.
— Meu pai — respondi, sem ao menos pensar direito. Foi automático.
Eles vibraram, como se comemorassem a minha resposta.
— Você e todo mundo aqui, querida! — uma das meninas berrou e os
outros riram ainda mais alto. — O delegado é o motivo do ódio coletivo!
Longe.
A voz soou longe.
— Outra pergunta! — um dos caras soltou, e passei a perceber ainda
mais a sensação de que meus ouvidos estavam tampados.
O som do vento assobiava como uma serpente por mim, senti o corpo
pesado à medida que dava passos para longe deles, na tentativa de acabar
logo com aquilo.
— Por qual motivo odeia o seu pai? — Ouvi a indagação como um
sussurro e pisquei algumas vezes. Era difícil me concentrar para responder.
— Por qual motivo você odeia o babaca do delegado, garota? Responde!
Minha cabeça começou a girar. Abri os braços tentando me equilibrar,
em vão.
A água golpeou meus calcanhares, que cederam à pressão, e eu
escorreguei.
Me vi no ar. Como em um frame congelado. Meu corpo parecia estar
tão leve quanto uma pluma.
A corda esticou me dando um aperto mais forte na silhueta, o que
serviu para me acordar momentaneamente. Agarrei, com quatro dos dedos,
uma das barras e fiquei ali, pendurada, tremendo, tentando gritar por socorro
enquanto ainda ouvia as risadas, reverberando como o som de um alaúde.
O volume forte de água batia contra os nós dos meus dedos,
empurrando-os dali sem piedade, e só então percebi que a pergunta ainda
estava lá. Como um fantasma. Me fazendo perder a faísca de equilíbrio que
mantinha minha mente ligada.
Por que você odeia o seu pai?
Responde!
Responde!
— Eu o odeio porque… — Mesmo não querendo, meus olhos
fechavam devagar. — Ele nunca foi um… pai para mim…
Meus dedos cederam e eu despenquei, ouvindo absolutamente nada,
como se tudo estivesse se apagando ao meu redor.
Como se eu estivesse, enfim, morrendo.
Alguns anos antes
Arrastei meu urso de pelúcia contra o peito e encostei o ouvido na
porta do escritório do meu pai.
Eu sabia que aquela mulher loira estava lá com ele, ouvi sua voz
quando entrou. Contei nos dedos e era a terceira vez só naquela semana.
Era difícil pensar que, depois que a mamãe foi embora, ele nunca mais
brincou de caça ao tesouro comigo e não fazia um esforço sequer para ir
buscar mamãe de volta, já que não tinha tempo para mim.
Mas o que um homem sem tempo fazia com aquela mulher quase todos
os dias no seu escritório particular?
Era isso que eu estava tentando descobrir, mas quando cogitei
empurrar a porta, alguém segurou o meu ombro.
— O que você está fazendo aqui, mocinha? — Era Yume, minha babá.
Ela pegou minha mão. — Você deveria estar dormindo. Acha que não
percebi os travesseiros na cama?
Começamos a sair de lá bem rápido, mas eu ainda olhava para trás, na
esperança de vê-lo sair do escritório.
E eu vi.
— Pai! — berrei, me soltei de Yume e corri até ele.
— Deveria estar dormindo. — Sua voz era grossa e seus olhos feios
encararam minha babá. Senti que ele já estava mudando de novo. Como se
não estivesse feliz em me ver.
— Eu queria saber quando vamos…
— Depois — falou, sem nem esperar eu terminar e puxou a mulher
pela mão para sair dali.
— Mas e a mamãe? Quando vamos buscar ela?
Ele parou e a mulher fez uma cara estranha. Os dois trocaram olhares.
Ele voltou até mim, abaixou um pouco e olhou nos meus olhos.
— Onde está a sua agenda? Aquela que sua mãe te deu no seu
aniversário. — Apontei para o meu quarto e ele suspirou. — Todos os dias
faça um pontinho em cada linha. Quando terminar, será o dia em que iremos
buscá-la.
Meus olhos cresceram, tristes.
— Mas… são tantas linhas e tantas folhas…
— Vai passar rápido, tenha paciência. É uma tarefa simples. Só tem
que pegar o caderno e fazer, Brianna. Você disse que gosta de estrelas,
lembra? Vai desenhar inúmeras constelações. — Deu aquele sorriso
quadrado que eu quase nunca via e que não parecia ser de verdade.
— E quando poderemos brincar? Só passa o seu tempo com ela… —
Olhei com cautela para a mulher .
— Amanhã, nós conversaremos. — Meu pai decidiu encerrar a
conversa e sair de perto de mim o mais rápido possível.
— Quero conversar, agora! — gritei. — A mamãe está por aí em algum
lugar e você nem me disse onde ou por que ela foi embora! — Comecei a
caminhar atrás dele. — Só precisa ir buscar ela e trazer de volta, mas só
perde tempo com o seu trabalho e com essa mulher!
— Já chega, Brianna! Vá para o seu quarto! — gritou também.
— Eu não vou! Quero buscar a minha mãe!
Senti a pele da minha bochecha ardendo em milésimos de segundos.
Começou a esquentar. Minha boca ficou com gosto de sangue e ardeu por
dentro. Quando a abri, o sangue manchou o Senhor Coelho.
Minha respiração sumiu e corri de volta para Yume, sem conseguir
falar.
— Nunca vou buscá-la, se continuar com essa palhaçada! — O medo
me fez fechar os olhos. A voz dele se tornava assustadora quando estava com
raiva e me fazia tremer mais.
Minha voz estava entalada, eu só sentia as lágrimas, nada mais saía de
mim.
— Você vai continuar com a Yume por anos e anos! Só você e ela, sem
a sua mãe e sem mim. — Minhas mãos apertavam a barra da saia da mulher,
enquanto ele apontava o dedo indicador na direção do meu rosto. —
Continue com esse mau comportamento e será só a sua babá que vai querer
estar com você, e por obrigação. Só porque ela é paga para isso.
Tentei engolir o choro, mas era impossível. Me virei e corri até o
quarto, enxugando o rosto.
Limpei a boca com água, como mamãe me ensinou, e esfreguei a
minha pelúcia no tapete. A mancha não saía, mas a Yume daria um jeito.
Ela sempre dava.
Fechei a porta e arrastei o Senhor Coelho comigo até a cama. Voltei a
apertar os olhos quando senti uma mão no meu ombro. Já sabia que era
Yume.
— Vai ficar tudo bem, e eu não estou aqui por obrigação. Gosto de
você.
Sacudi a cabeça em sinal positivo e desci da cama. Caminhei até
minha estante cor-de-rosa, peguei minha agenda e a deixei em cima da
minha mesinha.
— Por que deixar aí? — Yume perguntou.
— Para me lembrar de fazer pontinhos todos os dias quando acordar.
— Ela me olhou nos olhos e então desviou, puxando ar pelo nariz de forma
engraçada. — Está com alergia de novo, Yume?
— Sim. Deve ter sido o pó do carpete. Tirei para limpar e troquei por
outro. Seu quarto já estava acumulando uma poeira…
Olhei pela janela.
A lua estava tão grande e bonita que se parecia com um dos olhos de
uma preguiça gigante. Aquilo me fez lembrar de algo.
— O pai da minha amiga, Mavi, disse que vai levar ela em um museu
para ver preguiças gigantes.
— Sério? — Yume parecia estar entusiasmada, e isso me fez sorrir.
— Sim! — Assenti e me deitei, enquanto ela ajeitava os travesseiros. —
Ela disse que eu poderia ir, se meu pai deixasse.
— Que legal, Bri… talvez eu possa falar com ele amanhã, que tal?
— Faria isso?
— Claro!
— Obrigada, Yume! Você é a melhor! — Saltitei na cama enquanto ela
fazia sinal de silêncio.
— É hora de dormir, mocinha!
— Tudo bem, eu vou, mas antes só me diga: qual vestido você acha que
posso usar?
— Aquele rosa com bolinhas brancas, que tal?
— Não sei se o pai da Mavi vai gostar…
— Ora, por quê? — Ela ergueu a sobrancelha.
— Ele não gosta de rosa.
— Mas ele não tem que gostar, querida. É você quem precisa gostar.
Rosa não é sua cor favorita, Brianna?

— Brianna? — Senti o sussurro do vento bater em meu rosto e pisquei


algumas vezes. Minhas pupilas diminuindo sob o brilho da luz do sol me
causou injúria. Encolhi, franzindo as sobrancelhas, e a imagem da minha
melhor amiga, Mavi, começou a surgir diante dos meus olhos. — Brianna?
— Eu estou viva, Mavi, só me deixe respirar. — Suspirei, sentindo meu
corpo funcionar como deveria.
Era dia, eu estava lúcida, inteira. Foi aliviador.
— Quantos dedos tem aqui? — A mão dela dançou em frente aos meus
olhos, me mostrando dois de seus dedos magros.
— Ai… para com isso! — resmunguei, minha tontura se esvaía
depressa. Em pouco tempo, estaria pronta para sair andando. — Eu estou
bem.
— Só vou parar quando você parar de ser uma idiota! — reclamou e
comecei a me levantar, passando as mãos pelo rosto para tentar acordar de
verdade. — Que porra foi aquela? Fez aquilo tudo pra ter a validação daquele
ridículo? Que necessidade de aprovação é essa, cara? — perguntou,
evidenciando o balanço dos fios escuros extremamente alinhados e os olhos
amendoados, bem desenhados.
— Eles disseram que era só uma brincadeira, eu tinha bebido alguma
coisa, não me lembro nem de ter aceitado… mas estou bem… — A frase saiu
como quem segreda um importuno. Foi o fio de percepção de exaustão que
até eu percebi.
— Que brincadeira saudável e como você está maravilhosamente bem!
— Riu, irônica.
— Cadê o meu celular? — Tateei pela cama, minha cabeça vibrava
como quando me embebedei pela primeira vez.
— Pra que você o quer? Para falar com o Michel? Acho que não vai
rolar — impôs, me olhando nos olhos.
— Tenho cara de quem está brincando, Mavila? — perguntei. Ninguém
tirava meu celular de mim. Era quase um amuleto.
— E acha que eu estou, Brianna? Você quase morreu, caralho. Já olhou
as marcas na sua cintura? — Sua pergunta serviu como um dissipador da
sensação anestésica, logo senti o ardor nu e cru na pele.
Puxei a blusa para ver linhas vermelhas de quase cortes, inflamadas e
latejantes, que pareciam flamejar ao toque.
— Você ficou pendurada lá, sem consciência por uns vinte minutos
enquanto o perfeito Michel Cameron e seus amigos fodiam as meninas atrás
do prédio abandonado.
Gemi de dor e encostei a cabeça na cabeceira da cama para só então
perceber que estávamos em sua casa.
Senti a formação de um vinco no meu coração, quando me lembrei do
mediador da lei.
— Meu pai…
— Ele não sabe. — Mavi se adiantou, e engoli o tremor. — Desconfiei
que você estaria fazendo merda e, quando descobri que estava certa, te
arrastei até aqui.
A sensação de alívio era absurda. Me permiti suspirar devagar sob o
olhar cauteloso de Mavi, que sabia o porquê de eu ter tido aquela reação.
— Precisa fazer as coisas certas, Brianna — bedelhou.
— E o que quer que eu faça? — Meus olhos arregalaram. — Sou uma
boa filha, estou na faculdade, cursando medicina! — exclamei. — Tenho
notas altas, só namorei uma vez, ele ainda acha que sou virgem e, se
depender de mim, morrerá achando. Só preciso me distrair um pouco, Mavi,
só preciso de intensidade.
— Talvez, se você encontrar um cara legal… — Bati na mão dela e
virei o rosto.
— Qual o problema com os meus caras legais?
— Todos eles parecem precisar de ajuda psicológica! Esse é o
problema — falou e fechei os olhos.
Era uma discussão antiga. Ela sempre me tratava como a "dedo pobre",
mas sequer namorou na vida. A discrepância dos nossos gostos era algo
compreensível, mas ela já deveria saber que não era como se eu fosse me
entregar a qualquer maluco em qualquer lugar.
Eu conhecia o meu genitor, sabia que não estaria acordada para
explicar quem era o cara de jaqueta de couro e piercings, caso ele me visse
com um.
O meu telefone tocou. Tentei me levantar para pegá-lo, mas Mavi
chegou até ele antes. Quando estava me preparando para lhe dar um olhar
feio, afrouxando as cordas vocais para proferir o pior dos xingamentos, ela
simplesmente estendeu o aparelho na minha direção.
— Só porque não é o traste do Michel — falou, e meus olhos piscaram
algumas vezes.
— E quem é? — Me mostrou uma feição um tanto quanto
desesperadora, da qual só descobri o motivo quando olhei para a tela do
celular.
Meu pai.
Atendi de uma vez. Se ele tivesse descoberto e fosse me dar um
sermão, que fizesse logo.
Mas não foi isso que aconteceu, e à medida que ouvia cada palavra que
diferia, tinha certeza de que meu rosto esmorecia como o de um morto.
Aquilo, com certeza, era bem pior que qualquer coisa que eu estivesse
esperando.
Enquanto caminhava pelo Brooklyn eu conseguia ouvir os ruídos da
sola do meu sapato, apertando grãos de areia dispersos pelo chão molhado da
rua escura. Era noite, me sentia cansado para um caralho depois de ter
ganhado uma série de apostas em partidas de Drift com os caras, mas decidi
dar ao meu irmão a dádiva de me ver em sua festinha de comemoração.
Puxei a ponta da manga da blusa. Meu Rolex apontava exatas duas da
manhã. Continuei arrastando os pés, sentindo que o vento culminaria em mais
uma tempestade naquela droga de inverno, que só servia para congelar
engrenagens e deixar as pistas escorregadias.
Estalei meus ombros quando avistei o cume do império escuro. Mais
alguns passos e eu estaria lá. Me dopando por escolha, diminuindo os dias de
vida por vontade própria. Era um gosto singular.
O lugar aonde ele me mandou ir ficava no centro do Brooklyn, e preferi
ir andando a usar o carro que visivelmente precisava de reparos, depois de
tanta pancada. Em outras circunstâncias, eu até roubaria uma máquina
qualquer que encontrasse por aí, mas a pedra do fim da corrida resolveu bater
naquela hora, o amargo voltava pela minha glote e conseguia me arrancar
uma careta. Meus demônios perderiam a linha e me fariam correr sobre
quatro rodas de novo.
A única coisa que eu tinha certeza, além de que ficaria ainda mais
louco enquanto aquela porra continuasse no meu organismo, era a de que só
voltaria para casa no dia seguinte.
Com isso em mente e ainda raciocinando direito, puxei o celular e abri
a conversa em grupo com os babacas, para deixar um recado.

Eu:
Esqueçam as apostas dessa madrugada.
Só vou estar por aí amanhã.

Brandon cuzao:
Dando pra trás, fdp?
Nós já trocamos os pneus.

Ryus Yag:
Qual foi, Alien? A localização já foi
compartilhada, geral vai tá lá.

Benedete ruiva:
Eu falei que ele daria uma de "mestre dos magos".

Eu:
Tenho um compromisso, vão sfd!
Encheção de saco do caralho!

Benedete ruiva:
Vai foder quem?
Ryus Yag:
Se falar "você" eu te mato, Alien
Eu:
Tô no John, porra.
Benedete ruiva:
Ihhh ah lá…

Brandon cuzao:
Ah, suave.
Eu:
Vocês mudam pra caralho quando o assunto é meu
irmão, parça.

Benedete ruiva:
Você já deve saber o motivo.
Eu:
Vsf.

Brandon cuzao:
A gente se fala amanhã.

Benedete ruiva:
Se ele voltar vivo…
Eu:
Vai lavar uma louça, Benedete.

Bloqueei o celular e o coloquei no bolso.


Como Benedet disse, eu sabia, sim, o motivo da repulsa pelo meu
irmão. Era o que todo mundo sentia.
John ficava no Burgo, enquanto eu morava em Manhattan. Mesmo que
estivéssemos distanciados por míseros quilômetros, existia um motivo
plausível, mas preferia não pensar no início daquela bagunça, remoer aquele
inferno, as raízes que entregavam o desenho do que, de fato, o fez sair de
casa, no que fez tudo desabar como uma merda sem estrutura, sem o pilar
principal. Eu sempre partia do que já éramos, deixando de lado o que nos
tornou aquilo.
Afinal, a indiferença tinha início ali, no presente, na posição atual.
Eu era o líder da gangue composta por dois babacas e uma vadia, mas
meu irmão comandava o Brooklyn.
Inteiro. Pelas sombras, camuflado entre os pilares de sua própria
facção, evoluindo a cada dia, a ponto de começar a fazer parte da base de
grandes negócios ilícitos e se associado a máfias.
Eu até daria os parabéns pela conquista, se ele não fizesse jus ao seu
caráter quase inexistente e se aliasse a pessoas que tinham a cara cravada no
livro do inferno de nossa casa: inimigos.
Meu irmão se desfez de algo que nos era sagrado, desde que nos
conhecíamos por gente, quando se juntou a inimigos de sangue e de alma.
Inimigos de juramento.
Eu podia ser um demônio de outro mundo, mas existiam juramentos em
minhas costas, e aprendi a honrá-los desde cedo, mesmo que nosso império já
não existisse mais.
Salivava, assistindo a ele fazer o que bem entendia, extorquir da
população e mantê-la sob seus pés, debaixo de ameaças que o tornavam
autoridade ali. Eu compreendia a verdadeira orquestra de facas flutuantes que
só ele exibia dominar, mas enquanto mantivesse aqueles laços, aquilo não me
cabia.
Mas uma coisa não se podia negar: o pedaço de desordem dominado
pelos Skulls, como eram chamados, só crescia a cada dia e, com certeza, John
estava comemorando a conquista de mais um hectare para suas corridas
ilegais e furtos altos.
Com mais alguns minutos de caminhada, comecei encontrar alguns dos
capachos dele, chapados pelos cantos das ruas. Aquilo era sinal de que a festa
estava indo bem. Apressei a porra do passo, abrindo caminho até lá.
Tirei as mãos dos bolsos da jaqueta de couro e agarrei a maçaneta de
ferro de uma singela mansão no centro do lugar. Esbanjar era típico dele.
Master Of Puppets, do Metallica, estourou em meus ouvidos assim que
coloquei os pés no batente. Em poucos segundos, bati os olhos em uma orgia,
no sofá disposto no canto da sala.
Com certeza, o puto do meu irmão não viu isso.
Só precisei pensar alto para que ele surgisse, rugindo como um animal,
e os infelizes desocuparam o estofado em um piscar de olhos.
Ri internamente quando o desgraçado percebeu minha presença e
começou a vir até mim, com o cabelo longo desgrenhado, tatuagens
desbotadas do rosto para baixo, alargadores imensos e olheiras de quem
estava há um mês sem dormir.
— Vejo que o mediador do caos ainda preza pela ordem interna, mas
está tendo dias difíceis — falei, cruzando os braços em seguida.
— Todo rei precisa lidar com camundongos nos porões do palácio pelo
menos uma vez na vida — respondeu, abrindo a blusa para tirar dois rolinhos
de lá. — Isqueiro?
Assenti e peguei o baseado.
Estávamos assistindo ao movimento segundos depois, enquanto a
fumaça embaçava a visão que tínhamos do lugar iluminado com muita gente
dançando.
— Ainda com aquela pouca ideia de continuar na universidade? —
Demorou, mas John Walker, o enxerido, perguntou.
— Vamos começar mais uma droga de semestre em poucos dias. Não
tente me tirar de lá, você tem grandes chances de conseguir. — Me adiantei.
Eu tinha certeza de que essa era sua intenção. Ele já tinha deixado
aquilo muito claro.
— Por que ainda continua lá, idiota? É por causa daquela mulher ou
pelas professoras? — perguntou.
John sempre se referia à mulher que nos trouxe ao mundo assim e, para
falar a verdade, eu também não tinha vontade alguma de proferir seu nome.
Ela não merecia.
— Aquela perua já te expulsou da casa quantas vezes? — Evidenciou o
tom zombeteiro.
— Não importa. Ela vai ter que me aturar. Ninguém mandou ter me
jogado no mundo para agradar um... — Engoli as palavras. Não valia a pena.
A mulher que me gerou era abominável, mas o genitor havia
conseguido ser pior quando estava vivo.
— Isso é humilhante e você sabe — meu irmão pontuou, e olhei para
ele, sério.
John não fazia ideia de que eu estava lá, porque nunca quebrava
juramentos. Mesmo que eles fossem feitos quando ainda era uma criança
inútil e burra.
Ele continuou. Fumaça saindo do nariz e boca.
— Esquece universidade, se esqueça daquela velha, cara. Manhattan
ainda está nas rédeas, Aaron. Você não tem espaço para abrir as asas lá sem
que sejam cortadas.
— Gosto da adrenalina. Onde o errado continua sendo errado e
proibido. Dá mais prazer — respondi e ele riu.
— Deixa aquele pedaço de merda e vem pra cá, cara. Nós mandamos
aqui.
— Só volto se for para liderar essa joça — pontuei sério e a risada do
infeliz reverberou pelo lugar.
— Talvez em outra vida, mano… isso pode ser um pedaço de terra sem
lei, mas nós ainda prezamos por cabeças vivas. — Me olhou dos pés à
cabeça. — Você quase matou toda a população, infeliz, quando tomou conta
do meu trono por um dia.
— Eles me tiraram do sério.
— Um líder nunca sai do sério com um olhar torto.
— Então precisa conhecer novos estilos de liderança, irmão. — Dei
mais uma tragada e ele balançou a cabeça.
— Você consegue ser pior que eu. — Assentiu, segurando o riso típico.
— E já passou da hora de aprender comigo.
— Então vai vir? — Ele se sentou em uma das poltronas do lugar,
enquanto algumas mulheres o circulavam seminuas. — Conseguimos mais
um pedaço de terra. — E eu sabia que aquele era o motivo da comemoração.
— Tenho uma casa pra você. Coisa boa, no centro, mobília bacana, suítes…
cabem cinco mulheres numa das banheiras… é uma das melhores que
comprei. — Ergueu uma sobrancelha. — A não ser que o riquinho herdeiro
não queira receber…
— Já falei para não me chamar assim — reclamei, ríspido, e ele ergueu
as mãos. Minhas narinas voltaram ao tamanho normal e me concentrei na
fumaça que saía da minha boca. — Se eu disser que não quero, sou um filho
da puta mentiroso.
— A primeira coisa você já é. — Riu. — E a segunda também
consegue fazer com maestria.
— Apareço aqui no fim de semana.
— Para ficar?
— Ainda não.
— Frouxo. — Levantou-se. — Te falta ódio, adrenalina de verdade,
Aaron!
Ele estava enganado. Nada daquilo me faltava. Eu tinha de sobra.
Por ser filho de um defunto criminoso e abominável e ter herdado não
só seu império, depois que meu irmão abdicou de tudo, mas os seus piores
traços, eu conseguia mais do que respeito em Manhattan. As pessoas sabiam
quem eu era, do que era capaz, tinham medo e me veneravam para não se
tornarem alvos.
O problema não era a cidade ou a universidade, mas a mulher que por
muito tempo chamei de mãe.
— Ter que segurar sua natureza para tentar se encaixar no que ela quer
é inútil, você sabe — John falou, se referindo a ela, como se lesse meus
pensamentos.
— Não tenho intenção de agradá-la — rebati. — Eu a aturo porque sei
que me aturar é muito pior, e ela merece.
— Claro… e você está na universidade, porque ama a vida acadêmica.
— Ele riu e me entregou um copo com bebida. — Vamos ter um campeonato
de Drift hoje. Sei que você gosta.
Engoli a água quente e cerrei os dentes.
— Não sei, cara.
— Que foi, porra? Rejeitando uma noitada?
Estar ali não era ruim. Quando a adrenalina se misturava ao sangue em
minhas veias e as drogas faziam efeito em um lugar como aquele, sem regras,
sem amarras, eu me tornava um verdadeiro monstro desgraçado, sentia prazer
em cada fucking célula do corpo e não colocava limites em meus impulsos
mais insanos.
Esse era o problema. Quando estava assim, perdia a porra do controle
que eu estava indo bem em manter. Era uma escolha inteligente. Eu não
precisava ser abominável para ter respeito. Bastava ser o delinquente corredor
de racha, que cometia um crime ali ou aqui. Bastava ser eu, o Alien. O filho
do sangue azul.
— Não vai rolar, cara. — Coloquei o copo de volta na mão dele.
No entanto, antes que eu saísse, um burburinho tomou conta da
baderna.
O silêncio reinou. Um dos caras veio até John e cochichou alguma
merda no ouvido dele, o que fez com que a risada do meu irmão reverberasse
mais alto pelo lugar.
— Souberam que estão transferindo um novo delegado para cá? E eu
ouvi um "o melhor" sair da boca dele. — John apontou para o moleque do
recado e todos começaram a rir.
— Foi o que eu soube! — Ele se juntou aos outros, zombando da
própria fala.
Aquilo era notícia nova.
Inicialmente, todos achavam que haviam desistido daquela parte podre
de Nova Iorque. As investidas eram disfarces, o próprio John as tramava,
junto aos farsantes da lei que ponderavam aos arredores, com o mero intuito
de parecer com que eles estivessem fazendo alguma coisa, que se
importavam, que intervinham. Mas, pelo visto, a parte sã da justiça estava
começando a abrir os olhos.
— Um novo animalzinho de estimação? — meu irmão desdenhou. —
Preparem a coleira. Vamos domesticar mais um! — Aproximou-se do
mediador das boas novas. Sua pergunta saiu entredentes. — De onde vem o
porco?
Orlando, Flórida
Sim, daquela vez estava fadada a sair de Orlando, do centro da Flórida.
Sair da minha vida quase estruturada, romper meu ciclo de amizade recém-
construído e virar as costas para a minha universidade.
Detalhe: naquele mesmo dia.
O Delegado Abernathy tinha uma coleira invisível no meu pescoço, e
seu punho era forte para puxá-la contra a minha vontade. Sempre foi. E,
assim como toda a minha dura cerviz, eu me dobraria às suas vontades, sem
questionar.
Afinal, seria aquilo ou aquilo. Minha intervenção poderia me custar
caro, meu algoz almejava o dia em que eu ultrapassasse a linha imposta a
mim. E eu tinha quase certeza de que estava chegando nela, mesmo que
tivesse amor à minha vida.
A notícia me foi dada por ligação, como quem dizia ir tomar um
sorvete na praça em cinco minutos. Sempre foi assim. O desenrolar de nossas
conversas, a falta de compreensão. Sempre vivemos assim, mudando a rota
devido a uma implicação superior, seguindo um caminho sinuoso sob sua
insistência de que nossa rotina era normal.
Normal para ele. Desumana para mim.
Daquela vez, naquele lugar, ele disse que seria diferente. Afirmou que
ficaríamos. Eu até convenci minha melhor amiga a sair de Boston, a vir para
cá.
Achei que iria acabar.
Percebi que, assim como o sedento no deserto escolheria a água em vez
da comida, preferiria um sermão do delegado a ter de ouvir aquilo pelo
telefone, e foi por isso que entrei pelas portas da delegacia como um soldado
imparável.
— Oi… nós vamos entrar… — minha amiga falou, completamente sem
graça, para a mulher que ficava na portaria enquanto eu marchava para
dentro, olhando fixamente para o percurso que deveria fazer.
Mavi acompanhou meus passos sem entender absolutamente nada. Eu
não contei o que meu pai tinha dito na ligação e ela também não me
perguntou. Com certeza, minha revolta era indicativo de que iria explodir se
me cutucasse, a coitada preferiu falar de tudo, menos sobre o assunto em
questão e mesmo sabendo que não responderia. Não importava o que fosse.
— Você parece não ter uma gota de apreensão neste lugar — ciciou,
tentando disfarçar que se encolhia sob os olhares dos policiais enrijecidos, tal
como maldições esculpidas para matar. — Ah, é. Às vezes, me esqueço de
que você cresceu em meio às armas e aprendeu até a usar elas, mesmo
escondida e contra a vontade do seu pai… — Suspirou. — Essa é Brianna
Abernathy nas horas que não está à procura do pé no saco do Michel. Tinha
até me esquecido de que você não é uma completa idiota — completou e lhe
entreguei um olhar furioso, antes de empurrar a porta do escritório de
Magnus Abernathy.
— Dê meia-volta e suma daqui. Estou ocupado. — Ele mal esperou
meus pés se acomodarem no lugar.
— Eu não quero ir com você. — Joguei minha escolha sobre a mesa,
mesmo sabendo que ele não me daria chances de escolher nada.
Silêncio.
Os dedos cantarolavam por folhas e mais folhas, desenhando sua
assinatura sutilmente, como se a caneta não estive à mercê da besta que vivia
dentro dele.
— Eu disse que não quero ir! — insisti, o choro querendo fechar a
minha garganta. Com passos rápidos, me aproximei da mesa e coloquei as
mãos sobre as folhas impedindo que continuasse me ignorando. — Não
aguento mais viver assim! Qual a parte do "eu não sou um animalzinho, para
viver pulando de galho em galho nas suas costas todas as vezes que é
transferido" você não entendeu? — Soltei em forma de desabafo, sabendo
que feria a sua autoridade e esperando pelo pior. Ele deixou a caneta de lado
para me encarar.
— E qual a parte do "eu mando e você obedece" ainda não entendeu,
mesmo depois de todos esses anos? — Levantou-se como uma sombra
imponente, circulando a pouca parte sã que eu usava para tentar me defender.
— Por que não vai sozinho? — ciciei a pergunta, contendo mais do que
apreensão no peito e reprimindo o medo.
— Porque você não manda em algo. Eu mando em você e eu digo que
você vai aonde eu for. — Suas pupilas se dilataram. — Eu digo para você
calar a porra da boca e me obedecer, e você cala a boca e me obedece. —
Soltou o ar pelas narinas. — Fui designado à outra delegacia por dois anos. É
só o que precisa e vai saber antes de ir para casa, fazer as malas e me esperar
no banco de trás do carro.
Era o ponto final; eu deveria me virar e sair, depois que ele se sentasse
na sua poltrona marrom de couro.
Não o fiz.
— Ficaríamos aqui fixamente e já estamos saindo com menos de três
meses? — perguntei, segurando o tremor dos lábios.
— Acontece — grunhiu, me fazendo piscar algumas vezes.
Era como se eu fosse uma planta séssil. Como se não pudesse criar
raízes, porque, mesmo tendo acabado de completar a maioridade, meu pai
não permitia que me afastasse.
— Você precisa ter paciência — completou, tentando esboçar
compreensão.
— Paciência? Como quando você falou que ia buscar a mãe, há 12
anos? — Ele me olhou feio, mas continuei. — Eu tive paciência! Risquei o
caderno inteiro com pontinhos, como pediu, para anos depois você me dizer
que não sabia de nada sobre o paradeiro dela!
— Sua mãe abandonou a família! Sumiu no mundo, garota! Ela nunca
quis ser encontrada, já falei isso mil vezes!
— Ela não teria motivos para fazer isso! E você dizia que sabia onde
ela estava.
— Porque você era uma criança, imbecil! Inventei desculpas para não
dizer que sua mãe te abandonou.
Virei o rosto para o lado, não queria olhar para ele.
— Não finja que se importava! — Funguei. — Nunca se importou, nem
comigo nem com a mamãe. Você levava mulheres para casa quase todos os
dias!
— Queria que eu ficasse depressivo, Brianna? — perguntou,
entredentes. — Ou queria que eu aliviasse minhas vontades com você?
Estremeci diante da pergunta, mas não me calei.
— Queria que fosse verdadeiro comigo! — Abaixei o tom de voz. — E
que não me abandonasse também — falei e ele semicerrou os olhos.
— Sempre estive naquela merda de casa! Pare de mentir!
— Esteve na casa, mas nunca esteve perto. Nunca foi pai!
— Para de falar, Brianna!
— Quer que eu pare de falar a verdade?
— Eu mandei calar a boca, sua infeliz! — Demorou, mas ele
finalmente se exaltou, fazendo com que a delegacia inteira ficasse em
silêncio.
Mais silêncio do que já se tinha. Mais escuro do que já se era.
Aquele era o retrato do que eu via, a amostra do que ouvia todas as
vezes que o confrontava. Todas as vezes que tinha coragem para o fazer, na
verdade.
Fugir era sempre a melhor opção, se eu não quisesse perder um pouco
de sangue com um tapa na cara ou deslocar um osso. Me virei para sair dali,
mas ele continuou.
— Estive pensando que talvez ela possa estar lá. — Parei. Sua voz
parecia amarrada, mas ainda saía. — Em Boston.
— Vamos voltar para Boston? — Meus olhos lacrimejaram e
sobrancelhas franziram.
Era incrível como a menção de uma simples frase esperançosa me fazia
esquecer de tudo em segundos. Bastava ter relação com a minha mãe.
Boston era o berço de todas as minhas lembranças, foi onde passei toda
a minha infância turbulenta, onde vi minha mãe, Elizabeth Abernathy, pela
última vez, antes que ela saísse de casa e nunca mais voltasse.
Meu pai dizia que ela não levou nada, só sumiu no mundo. Insistia em
dizer também que sempre a procurou e que aquelas promessas não foram só
para enganar a criança de cinco anos. Um tempo depois, abriu um inquérito
para investigar, mas nunca obteve sucesso nas buscas e, por isso, engavetou o
assunto há alguns meses.
— Nós vamos para um lugar próximo. Ficaremos intercalando entre
Manhattan e Brooklyn. — Sua seriedade camuflou o tom áspero. — Estou
sendo transferido para uma delegacia no burgo — esclareceu. — Pensei que
poderia ter mais chances de descobrir algo se voltasse a olhar por perto, aos
arredores do lugar onde ela nos deixou. — Demorou um pouco mais para que
concluísse com uma pergunta. — Tudo bem para você? — Seu tom soou um
pouco indiferente. Balancei a cabeça em afirmação. — Ótimo.
Era minha mãe. A única de quem precisava, a única que poderia
consertar as coisas e fazer tudo voltar a ser como era antes. Se para ter
chances de ter minha família de volta eu tivesse que me submeter ao controle
do meu pai, que assim fosse.
Comecei a sair de lá, ainda com a cabeça a mil. Só depois percebi que
Mavi esteve comigo o tempo todo. Silvando como o vento, impaciente,
nervosa.
— Então você vai se mudar de novo… — Suspirou. — Que
cansativo… — Seus dedos batiam devagar sobre a perna e ela me olhava com
cuidado, como se tentasse entender a súbita mudança de direção. Procurando
pelo meu eu que desbravou aqueles corredores. Já não era a mesma ali, de
frente a ela.
— Eu não tenho escolha — falei, triste. — É o preço a se pagar quando
se tem um "bom delegado" como pai — completei.
— Você se refere ao "bom" em relação a fazer o trabalho sangrento,
pesado e perturbador?
— Você entendeu.
— E o Michel? — Seu tom de curiosidade saltou em cima de mim.
— Ele vai me ligar, se quiser mesmo ficar comigo — continuei
andando, mas, ainda assim, sentia o ar de surpresa de Mavi.
— Uau! Então Nova Iorque será um recomeço? — Ela estava tentando,
a todo custo, disfarçar a tristeza de me ver ir embora de novo.
Eu sentia isso.
Mas ela ficaria bem. Era necessário.
— Nova Iorque será o surgimento de uma nova esperança, Mavi. —
Sorri para ela. — Não vou abrir mão da minha mãe, ela é a chave para tudo.
Se ela voltar tudo vai ser como era antes, e isso é a única coisa que me
importa.
É um pau grande…
Pisquei quando meu pai fungou no volante e suspirei baixinho,
agradecendo aos céus por ter dito aquilo em pensamento.
Meus dedos lançaram parte do manto escorrido de fios para trás e,
devagar, me permiti cruzar as pernas. A saia curta ao redor de minhas coxas
esticou, apertando a pele e me fazendo suar um pouco mais na nuca. Minha
tensão era palpável. Deixei a espuma do banco de trás engolir minhas costas
e fechei os olhos um momento, antes de puxar o celular para baixo e voltar a
salivar pelo nude na minha tela.
Dean Mizuno era um deus, e o Twitter, o seu templo.
— Deveria deixar o celular de lado por pelo menos cinco minutos ao
dia. — A voz grave do meu pai estilhaçou a minha concentração e, mesmo
sem querer, tremi com o celular entre os dedos. — Isso vai te dar mais alguns
dias enxergando, caso alcance os quarenta — concluiu, me mostrando uma
carranca entranhada à face.
— Como se eu tivesse algo melhor para fazer. — Meu resmungo o fez
voltar a olhar nos meus olhos pelo espelho do carro, mas ele me deu apenas
silêncio.
Típico.
Mordi os lábios por dentro e deslizei o telefone pelo meio das pernas,
tentando fazer a boa ação, mas aquilo era um inferno móvel.
Meu estômago me fazia sentir pequenos nozinhos de enjoo, a estrada
parecia seca e sem vida, e o rifle velho que ele tinha como amuleto batia no
couro do carro toda vez que passávamos por buracos. Era uma tortura para
qualquer ser que se desse o castigo de viajar com ele.
Agarrei meus fones, abri minha melhor playlist e aumentei o volume do
hino "Slow down" do Chase Atlantic, para me livrar daquela tortura
monótona enquanto meu pai mantinha uma postura rígida e imponente na
direção, fazendo com que arrogância e prepotência emanassem de sua pele.
E não demorou para que me olhasse feio pelo espelho, de novo, e eu
soubesse que meus earphones estavam incomodando o mediador da lei.
Inferno.
Silêncio.
Ele não precisava dizer nada. Seus olhos, frios como aço, transmitiam a
mesma mensagem de desaprovação de sempre. Seu rosto sério e autoritário
contrastava com o lugar frio, bucólico e acinzentado, e ele segurava firme o
volante, com uma atenção desumana aos quatro cantos do lugar, tentando
impor ordem em tudo sem ao menos abrir a boca.
Magnus Abernathy conseguia essa façanha tão fácil que parecia
inacreditável, e eu já deveria ter me conformado com o fato de que, depois
que minha mãe foi embora, eu tinha a rigidez como uma madrasta.
Abaixei um pouco o volume e cruzei os braços quando o vi voltar a
focar na estrada, satisfeito. Como se o simples ato de dirigir fosse uma
missão de vida ou morte e, se eu respirasse, estaria o atrapalhando na entrada
de seu novo grande concerto.
Daquela vez, o cenário começava a ser desenhado aos poucos, com
muitas luzes distantes e o mesmo cheiro de drogas, que apodrecia os becos
sujos das zonas. Eu já podia ouv-lo dizer que estava "pisando em mais um
terreno hostil para prender os porcos em seus lugares".
— Olá, Brooklyn. — Suspirei a frase, encarando o sumiço da
vegetação pela janela.
Ficaríamos em Manhattan naquele primeiro momento, mas ele decidiu
dar uma olhada no seu novo campo de trabalho, antes de irmos para casa de
uma vez.
Como se um dia inteiro de viagem fosse pouco. Como se a terceira
mudança no ano fosse irrelevante…
Mal tive tempo para continuar reclamando e senti que os pneus
passavam por cima de pequenas pedrinhas até parar.
Meu pai, como sempre, não deu uma palavra, rosto endurecendo de
raiva. Ouvi o desafivelar do cinto de segurança junto ao estalar de sua língua
e assisti a ele descer do veículo, com passos firmes.
Me esquivei para frente e tirei os fones do ouvido. O pneu não furou,
eu não sentia cheiro de gasolina vazando, nada errado.
Pelo menos não até que eu avistasse um cara deitado no chão. Imóvel.
No meio da rua, bloqueando a nossa passagem.
Parece que alguém está tentando ser o Damon Salvatore no Brooklyn.
Era uma cena bizarra para qualquer um que não tivesse assistido à série
de vampiros. É… para quem a viu também, mas meu humor ácido se
apoderou de mim e um sorriso brincou em meus lábios.
Desembarquei do carro, curiosa, para ver de perto o quão patéticos
eram os jovens dali. Aquela era, com certeza, a forma mais broxante de zoar
com a cara dos turistas. Mas escolheram atazanar o "turista" errado.
— Fique no carro, Brianna — ele falou, passando os dedos pelo cabo
de sua arma perto da cintura. — Eu vou cuidar disso. — Abaixei um pouco
para que ele tivesse a sensação de que o obedeci, e continuei o observando
andar devagar até lá e empurrar a perna do cara com a ponta do pé. — É
melhor se levantar se não quiser ter reais motivos para estar impossibilitado
de o fazer — disse, mas não teve resposta.
Os ventos silvavam por nós.
O silêncio maldito estacionou e permaneceu, enquanto os fios de cabelo
do maluco no chão balançavam no escuro, beirando à pura escuridão,
envolvendo o rosto, do qual quase não via nada, mas que parecia ser puro
pecado.
Isso é patético.
Meu pai perderia a paciência mais cedo do que ele pensava.
— Tudo bem, pai, damos a volta. — Levantei um tom sugestivo meio
duvidoso e ele olhou para mim por baixo dos cílios grossos. Era uma ameaça
e eu deveria calar a boca. — Então passa por cima do cara. — Me virei e
comecei a entrar no carro de novo.
Ele enquadraria o filho da mãe e me levaria junto por tentar opinar.
Mas foi bem nessa hora, com os dedos colados no metal gélido do carro
e sentindo o sopro branco que saía dos meus pulmões ao ar frio do inverno,
que ouvi pneus derraparem pelo lugar.
Minha acusticofobia diante do aumento constante do barulho dos
motores começou a dar sinal de vida: subindo, enquanto minha pressão
arterial declinava.
Eu estava entrando em pânico e tudo só piorou quando os vi. Eram três
carros. Eles aceleraram até parar ao nosso redor, e mais caras surgiram em
um piscar de olhos.
Todos mascarados, com roupas escuras e…
— Armados, pai! Estão armados!
— A melhor recepção que tive em dias! — o velho exclamou, soltando
um riso frio. As rugas na cara só não eram mais evidentes do que o broche,
uma bosta maior do que qualquer outra e que ele esbanjava abotoado à farda.
Me levantei junto ao som decrescente dos motores que paravam ao lado
do seu Porsche 968 preto, trazendo reforços.
Estávamos em seis. Os melhores caras do John, o próprio infeliz e eu,
vestido a caráter: máscara, colete peitoral, luvas integradas com socos
ingleses e meu melhor sorriso perturbado.
Fazia um tempo que não me via mergulhado em uma onda como
aquela.
Um dos caras teve a infeliz ideia de fazer um de nós aparecer primeiro,
como um morto, deitado no chão com o propósito de fazer o velho descer do
carro. Isso evitaria uma perseguição, uma possível chamada de reforços, uma
perda de tempo.
Eu me propus ao papel de ridículo, claro. Não por ser burro, mas pelo
fato de poder estar perto, ser o primeiro, estar à frente. Apreciava a sensação
de ter o controle, de começar o inferno, mesmo que o problema fosse do
cuzão do meu irmão e eu não tivesse nada a ver com o novo porco que
tentaria impor ordens no Brooklyn.
Mas, afinal, "irmão é para essas coisas", como ele disse, e eu estava ali
para ajudar, mesmo tendo certeza de que quem estava comandando meu
corpo eram as drogas, não meus neurônios.
Munidos de alguns truques, não demorou para que soubéssemos qual
era o modelo, placa e até a cor do carro que ele conduzia. Levamos ainda
menos tempo para encontrá-lo no radar. Nossos informantes nos avisaram
quando ele atravessou a ponte e demos início ao plano que John bolou. Algo
rápido. Tirá-lo da estrada, matá-lo e se livrar do estorvo.
Antes de sair do ponto de encontro, juramos só dar o fora quando não
existisse sequer vestígios do novo delegado por aquelas bandas. Esse era o
plano. Só isso. Mas tão certo quanto dois mais dois são quatro, teríamos
pedras no caminho. Mesmo chapado, eu evidenciei isso, mas John me
mandou ir para o inferno na primeira oportunidade, e agora lá estava a brecha
para propensão de erro:
Uma garota.
E não uma qualquer, como as de Manhattan, parecidas com poodles
brancos com fitinhas cor-de-rosa e pedrinhas quebráveis.
Estava mais para uma ratinha arisca, perspicaz e fujona.
E era o meu mais novo alvo.
Me aproximei devagar, em segundo plano, o nosso real objetivo se
desdobrava pela noite escura do Brooklyn e uma luta brutal ganhava força.
Ter cinco contra um nos entregava a certeza de que o velho estaria morto em
poucos minutos e não havia necessidade de tantos homens para garantir isso.
A garota estava atenta. Cada troca de tiros, gemido ou até mesmo o
estalar das folhas da vegetação que contornava a pista, fazia com que ela
supervisionasse quadrante por quadrante em segundos.
Seu medo era palpável, mas controlado, dentro do peito, mesmo que
seus pulmões sofressem com aquilo. Vi quando se abaixou devagar, com os
cabelos castanhos escuros ao vento e as mãos apalpando a porta do carro. Os
olhos se fecharam em sequência, na tentativa de regular a respiração e manter
a calma.
Esperta.
A maioria das garotas começaria a chorar e tremer como cadelas
indefesas.
Cheguei um pouco mais perto, pela lateral de um dos carros parados
ali. Aos poucos, o formato de seu corpo começou a ganhar mais precisão sob
meus olhos. A posição evidenciava a pele das pernas, o volume dos quadris e
os glúteos apertados por uma saia de couro fino e curta. Ela apertava os seios
contra a lateral do carro e seus olhos brilhavam no escuro, como uma
roedorazinha percebendo a ratoeira, pronta para correr para o mais longe
possível da morte.
E foi isso que ela fez.
Enquanto o pai se embolava com os caras no meio da pista, minha
atenção a seguiu pela vegetação rasteira do lugar e, a cada passo que ela dava
sobre a terra, olhando para trás, uma quase premunição me fazia acreditar que
ela seria um problema se fugisse, e que eu deveria cuidar daquilo.
Joguei meu corpo pela pequena depressão que circulava o asfalto.
Estava me preparando para segui-la floresta adentro, até perceber que John
planejava o mesmo.
O arrastar de sua roupa alcançou meus ouvidos e, em segundos, eu o vi
ao meu lado, olhando na direção que ela havia sumido pelas árvores,
juntando-se a mim para farejar, como animais fazem às suas presas.
— Seu alvo é o porco, eu cuido dela — falei, pressionando os dedos
nos olhos para me livrar da sensação de poeira ali.
— Volte para a pista, os caras estão cansando. — Ele rebateu a
responsabilidade e segurou meu ombro. Olhos mais vermelhos do que os
meus e o cheiro de drogas exalando pelo ar. — Vai ser o reforço que veio ser.
— Vi para onde a garota foi, cara. Só vou certificar de que não vai ser
um problema, ela não viu nossos rostos.
— Não viu nossos rostos, mas ainda pode chamar por ajuda, foder com
a nossa missão aqui. — Fungou, olhando para os lados. — A garota é
diferente, você sabe disso, percebeu como eu percebi. — Riu, agora com as
duas mãos nos meus ombros. — Vai ver por isso somos irmãos, pirralho.
Temos o mesmo faro, os mesmos impulsos, mas agora, cabeção… — bateu
na minha nuca — o gato é quem persegue o rato aqui. Trate de abduzir o
careca lá em cima, os caras estão apanhando, vão precisar de você.
— Os caras vão precisar do líder deles — rebati, segurando seu braço.
— Você está se distraindo, já deveria ter a cabeça daquele velho nas mãos,
como disse que faria pessoalmente!
— A garota é minha, Aaron. — Igualou-se a mim na seriedade. — Eu
não vou discutir isso com você. Estamos aqui, acima de tudo para nos
divertir, não? — Seus braços se abriram, seguidos de um sorriso e alguns
passos para trás. — Eu trago um tufo de cabelo para você, sei que gosta de
morenas.
— John! — esbravejei entredentes, assistindo a ele correr para dentro
da mata, procurando por ela.
Pela minha presa.
Fiquei ali, como um animal barrado da caça, colocado em segundo
plano.
E era louco, porque ela não era o centro de tudo. O velho delegado era.
No fim das contas, John me deixou para comandar o ataque a ele, matar a real
ameaça, mas desde que coloquei os olhos nela, passou a ser meu maior alvo.
Preparei os pés para uma corrida, eu iria entrar na mata. No entanto,
mal tive tempo para qualquer ação e recebi uma pancada na cabeça.
Era o delegado.
— Mato você na volta, verme — grunhiu, seguindo o mesmo rumo que
o meu irmão e eu me vi impossibilitado de impedir.
Revirei pelo chão, sentindo a porra da cabeça latejar. Meus olhos
perdiam a pouca lucidez que tentava manter, mas, em meio a nuances e
borrões, vi que o porco, sozinho, massacrou todos que trouxemos.
Os poucos feridos, mais precisamente dois, arrastaram-se até seus
carros, deram partida e deixaram poeira para trás. Como covardes.
Passei a sentir uma puta fraqueza me abraçar e constatei que precisava
de um choque, um sacode para acordar, me levantar de uma vez, mas da
floresta só saía o som dos animais noturnos se rastejando e chirriando como
os imprestáveis que eram. Precisava acabar com aquela ópera deprimente,
pedia até ao inferno por isso. Só não esperava que fosse saltar junto a um
bando de pássaros ao som de dois tiros altos.
Rolei meu corpo na direção das árvores, à medida que o cenário voltava
a fazer sentido, com árvores verdes, apenas um chão em suas bases e uma lua
iluminando aquele inferno. Me coloquei de pé. Era o puto do meu irmão lá
dentro, não iria deixá-lo para trás, mesmo que ele soubesse se virar.
Como previa, uma vez dentro da mata, a escuridão não me deixava
enxergar quase nada direito, mas ainda tinha meus ouvidos e a pouca luz da
lua, que os galhos deixavam entrar pelo caminho.
Semicerrei os olhos quando ouvi o movimento de folhas secas a poucos
passos de mim. Tinha alguém andando depressa por ali, voltando para a pista.
Me esquivei em silêncio, passando pelos galhos. Com certeza era o
John, e, pelo que conhecia, ele havia matado os dois.
Cerrei os dentes e suspirei, aliviado.
O que importava era que sua missão maluca estava cumprida e já era
hora de dar o fora. Com tanta coisa dando errado, ficar ali mais um segundo
era um risco, e mesmo que correr riscos fosse meu combustível, meu tanque
pedia trégua.
Cheguei perto o suficiente dele e, quando senti sua presença, segurei
seus ombros com um único movimento.
Estava diferente.
Pele macia, ofego suave, fios de cabelo mais longos. Uma porra de
cheiro doce, ombros pequenos que se moldaram perfeitamente em meus
dedos.
Nem fodendo.
Puxei quem quer que fosse para o vácuo de galhos que permitia a
passagem da luz da lua e, diante da claridade ridícula, constatei o óbvio.
Não era o John. Era a garota.
Gotas de sangue brilhavam em sua testa como respingos de tinta — ela
esteve perto de quem sangrou — seus olhos cansados se entornaram em
medo e a respiração ofegante passou a ficar ainda mais rápida, quando ela
finalmente percebeu quem estava ali, segurando-a.
Fiz questão de apertar sua pele, de sentir meus dedos deixando marcas,
de permear com minha raiva em sua alma.
Não era ela quem eu queria ver. Não naquela hora, não com aqueles
olhos que entregavam vestígios de um presságio infernal.
— Me solta! — Ela encarou meus olhos, a única parte à mostra sob a
máscara de pano. — mandei me soltar!
— Onde ele está? — rugi em sua direção, tendo o vislumbre de pura
confusão em seus olhos. — Responde! Onde ele está? — Quando iria jogá-la
no chão o motor do Porsche, na pista, ligou.
Eu estava na margem da floresta, ainda conseguia ver o automóvel e
me agarrei àquilo como uma maldita esperança.
A garota conseguiu se soltar do meu aperto, mas concentrei minha
atenção em quem estava ao volante. Tinha que ser ele, fugindo com o carro
do velho, como o ladrão miserável e oportunista que sempre foi.
Vamos, seu puto, mostra a cara.
Mas, para a construção do meu inferno pessoal, os fios grisalhos
fizeram minhas narinas se dilatarem. O velho manobrou para dar o fora e a
desgraçada da garota, que eu tinha presa entre os dedos segundos atrás, já
corria para abrir a porta e entrar no carro também.
— Não…
Corri como um louco por aquele inferno escuro, chamando o filho da
mãe, esperando por sua resposta, por um sinal de vida. Esperando encontrá-
lo.
E encontrei. Debaixo de uma árvore, envolvido pelas sombras.
A fivela de seu cinto e seus colares pesados eram os únicos pontos de
luz ali, o que me fez vê-lo de longe.
— John! — Segui a diante e cheguei perto dele, para descobrir o
porquê de parecer tão imóvel.
Ele estava morto.
Um tiro no braço esquerdo perto do cotovelo, aparentemente por tentar
se proteger, e outro na testa. No meio da testa. Pele fria como gelo e folhas
agarradas ao sangue ainda quente, que escorria por sua roupa. Olhos
cinzentos, ainda abertos, e a expressão de quem não estava esperando por
aquilo. De quem foi pego de surpresa.
Caí de joelhos ali e, ao lado dele, tirei minha máscara.
— Não, não, não. John, acorda, cara! — Segurei o rosto sem cor e o
sacudi, mesmo conseguindo enxergar o outro lado pelo buraco que fizeram
em sua cabeça. Não quis acreditar. — Acorda, porra! Levanta, John…
levanta…
Ninguém sabia a dimensão que aquela dor insuportável estava
tomando. O cara no chão poderia ser odiado, malvisto ou rejeitado por
muitos, senão todos os seres viventes que o conheciam, mas era meu irmão.
Ele fez coisas por mim que ninguém nunca teria feito. Me ajudou como
um verdadeiro irmão mais velho. Ele fez seu papel, mesmo sendo torto,
infame. Mesmo saindo como o vilão da história.
Ele era o desgraçado cabeça dura que me faria matar se quisesse, e por
quem eu mataria mesmo se não me pedisse.
John era o vilão, porque escolheu me poupar, e fazia o trabalho sujo
para que eu não passasse pelo que ele passou.
Ele era a porra do cara mau para o meu bem. Para que não me vissem
como o viam, e mesmo que insistisse para que me juntasse àquilo, sabia me
colocar em lugares menos ruins do que os quais ele se enfiava.
John era o vilão para que eu não fosse o diabo, mas morreu sendo a
ponte para que eu cruzasse o inferno rumo à terra, em busca de uma única
coisa:
Vingança.

Eu costumava usar ironia quando me via em situações difíceis. Tentei


fazer isso hoje, mas já deveria saber que aquilo não me daria a mesma
margem de segurança e alívio à tensão, como quando era pega roubando os
doces da Mavi.
Não era o mesmo cenário. Deus! Nunca seria!
Não quando esse cenário envolvia um homem morto em cima de mim.
Olhei para o meu pai na direção. Respiração calma. Sem um pingo de
remorso. A velocidade do carro começava a se estabilizar e ele segurava o
volante com as mãos ensanguentadas, me causando enjoo. Na minha testa, o
sangue que não era meu secava, esticando-a quando minhas sobrancelhas
franziam, me forçando a chorar.
Ele sequer perguntou se eu estava bem. Chegou atirando no momento
em que o cara me alcançou. Ele nem hesitou ou pensou que poderia errar.
Fechei os olhos. A cena se repetia como um looping infernal na minha
cabeça.
A voz do mascarado me mandando parar de correr. Suas mãos me
derrubando. O momento em que ele me puxou pelo pé, repetindo que iria me
matar e enterrar junto ao meu pai.
Meus músculos gritando, tentando empurrar a força brutal para longe,
tentando me salvar, e então os tiros.
O som que rasgou o silêncio ao meio, me fez revirar e encolher ao
mesmo tempo, esperando pelo escuro perpétuo até perceber que era ele quem
estava sendo morto, pelo meu pai.
A confusão nas ações dele, a forma horrenda de como olhou nos meus
olhos e percebi o orifício gotejando em sua testa.
Sua queda por cima de mim. Sangrando. Com os olhos
embranquecendo, tendo uns espasmos involuntários aterrorizantes. O quão
quente ele estava, como o coração parava de bater lentamente e a respiração
sumia devagar.
Abri os olhos de novo, o som do rifle batendo ao couro passou de um
porre a um alívio, algo no qual colocar a atenção, em que me concentrar para
parar de tremer, ou pelo menos tentar.
— Pai… você… matou alguém. — Minha voz soou estática para
caralho.
— Matei uns três, se contar com os que ficaram na pista — falou,
conduzindo o volante com uma única mão, enquanto segurava uma flanela na
outra e tentava se livrar do sangue.
Eu sabia que ele fazia isso como algo rotineiro, mas, presenciar uma
ação tão violenta quanto aquela, me destruiu por dentro.
— Pai, você…
— Cala a boca, Brianna! Engula essa frescura! Era ele ou você. —
Olhou para mim pelo espelho. — E agora está começando a fazer com que
me arrependa de ter atirado somente nele — grunhiu e eu tampei a boca com
as mãos.
Quieta, Brianna.
Quieta.
Seu dedo apertou um botão no painel. Era o rádio.
Uma música clássica começou a tocar enquanto ele cobria o volante
com flanelas brancas manchadas e começava a assoviar, me dando uma única
certeza além do recente trauma:
Eu não tinha um pai. Tinha um monstro como genitor, e se minha mãe
não voltasse mais cedo ou mais tarde, seria o meu sangue em suas mãos,
cobrindo o volante do carro ao som de uma orquestra de violinos.
Nunca pensei que uma merda como aquela poderia me atingir. Não
àquela altura do campeonato. Com o meu irmão, o puto mais forte e
destemido que já conheci. Não com a porra de vida em migalhas que eu
tinha.
Achei que nada poderia piorar. Mas a minha existência era foda demais
para se manter em equilíbrio, mesmo estando em trapos.
Os cantos dos meus olhos ardiam de tão abertos e eu os mantinha
erguidos na direção, sem piscar, sem desviar nem por um maldito segundo.
Eu só enxergava, respirava e me alimentava da estrada, o meio pelo qual
chegaria no que se dizia o novo xerife do faroeste.
A risada que soltei estalou, enquanto limpava o suor escorrendo pela
testa.
Eles não faziam ideia do tipo de louco que conseguiram libertar, do tipo
de pessoa a quem deram um motivo para se levantar todas as manhãs a partir
daquele dia.
As últimas vinte e quatro horas em que fiquei preso no luto,
submergindo e voltando à superfície para respirar, me serviram como
combustível. Juntei cada gota de ódio em um galão e estava sonhando com a
arte que teria, ao final da combustão.
Faria tudo sozinho. Por ele. Como ele sempre fez por mim.
Iria sozinho ao encontro do homem que matou o meu irmão e não
pararia até tê-lo debaixo dos meus pés, retalhado, perfurado com mil buracos
de bala. Me certifiquei de passar no armazém dos Skulls e alimentar o porta-
malas com armas só para aquela ação, para aquela festa.
E que festa seria!
Meu motor ganhava força, elevando o som do ronco e fazendo os pneus
do carro se desgastarem sobre a pista. Com certeza, estaria em Manhattan em
um piscar de olhos.
Eu almejava aquilo.
Mas, como sempre, nem tudo sairia como eu planejava e a infeliz
verdade foi lançada na minha cara, no momento que me vi indo de encontro
com os três cavaleiros do apocalipse do inferno: Brandon, Ryus e Benedete.
Em seus carros, com os olhos em mim e a determinação de um batalhão de
forças armadas.
Pelo visto, eles sabiam para onde eu estava indo e o que estava prestes
a fazer. Fazendo jus aos merdinhas que eram, nunca iriam me deixar passar
sem antes tentar enfiar os dedos onde não foram chamados. Era isso ou não
seriam os filhos da mãe que eu conhecia.
O som de seus motores acelerando junto ao meu não negava que fariam
de tudo para me impedir, mas não era como se eu fosse parar.
Nem se tivesse que passar por cima de todos eles.
— Eu vou matar você, Brandon! — gritei pela janela, quando o vi
tomar a frente dos outros e jogar o carro na minha direção. — Sai da frente!
Acelerei o motor feito um louco, até sentir a colisão abalar a estrutura
ao meu redor.
Estilhaços enfeitaram o lugar enquanto ele ainda insistia, com o vidro
trincado e gasolina vazando, o cheiro de ferro ardendo nas narinas e o ranger
de metal contra metal causando uma fissura infernal.
Também não parei. Mesmo que minha testa latejasse com a pancada,
comecei a empurrar o para-choque dianteiro do carro do desgraçado.
— Mandei sair da minha frente! — vociferei, mas, em segundos,
Benedete e Ryus se juntaram a ele, dando força para me empurrar para trás.
Estava encurralado. Não tinha outro jeito a não ser descer, e foi o que
fiz.
— Ficou maluco, porra? — Brandon bateu a porta de seu carro com
dificuldade após desembarcar, seguido do Ryus e da ruiva Benedete, a mãe
do grupo.
— Pra quê, cara? — Ryus acentuou a seriedade. — Vai matar quem?
— Você quer saber quem ele quer matar depois de nos matar, certo? —
Benedete ergueu o tom sarcástico que só ela conseguia sustentar diante de
mim. — Eu também quero saber. — Cruzou os braços.
A insistência do trio em me fazer descontar tudo neles era nítida.
Nenhum escondia isso, e faziam seus papéis tão bem como nunca. Eles
sabiam que aguentavam ser meus sacos de pancadas, e preferiam isso a me
ver voltar a ser aquele monstro nômade e sem controle.
Segurei meu braço que sangrava e apertei a carne. Era o preço que
tinha que pagar por escolher aturar eles.
Procurei regular a respiração, mas não perdi a oportunidade de os
encarar, como o diabo faria com a cruz, antes de começar a falar.
— Vão se foder e saiam da minha frente. — Passei a língua por dentro
da bochecha, sentindo o gosto metálico de sangue, e me desviei deles. —
Vocês sabem para onde estou indo, não preciso me explicar. Agora, saiam da
frente se não quiserem que eu amasse essas latas e vocês junto.
— Não vai fazer isso — disse Brandon, convencido.
— Não tenha tanta certeza! — falei mais alto.
— Não vai fazer isso, Aaron. — Foi a vez de Benedete, me chamando
pelo nome, pela primeira vez em muito tempo.
Comecei a me virar para abrir a porta e eles sequer se mexeram.
— Você tá chapado, porra. Para e se acalma. — Ryus deu um passo à
frente, livrando-se do traço silencioso que lhe caía muito bem.
Balancei a cabeça, a pouca paciência escorrendo pelos meus dedos.
Comecei a sibilar.
— Vou es-ma-gar vocês no asfalto se não saírem agora. — Vi quando
Brandon cruzou os braços firmando os pés ali e soltei uma risada sincera. —
Tudo bem, só espero que saibam que eu não vou enterrar nenhum de vocês.
Segurei a maçaneta e abri a porta com força, mas, antes de me lançar
dentro do carro, Brandon começou a falar.
— Já perdeu um, não vai matar os outros.
Pareceu reverberar pelo espaço aberto, como um tiro, trazendo aquela
desgraça toda de novo. Daquela vez, triplicada.
Olhei nos olhos dele pelo que pareceu ter sido um século. Minhas
narinas se dilataram, senti que meu sangue borbulhava por dentro, por saber
que ele estava certo.
Mais certo do que gostaria.
Bati a porra da porta com força, fechei os punhos e comecei a
descarregar minha raiva ali, no vidro da janela.
Uma, duas, três vezes, seguidas de um grito ensurdecedor, de um fervor
na cabeça, do sangue bombeando desordenado pelas veias. Queria sentir os
cortes profundos, a porra da dor. Era para me concentrar nela e evitar fazer
uma monstruosidade maior do que me cabia.
Feri-los não me cabia.
Matá-los não me cabia.
Percebi o movimento de Benedete, tentando se aproximar, mas
Brandon a impediu. Ele sabia que eu precisava daquilo para me acalmar. Era
o babaca que mais me conhecia.
Assim que acabei, joguei o braço exausto e vermelho como carmesim
em cima do capô. Respiração ofegante, visão turva, exaustão suficiente para
me manter na rédea, até controlar a sede por sangue.
— É um filho da puta mesmo — Ryus reclamou, com os olhos no meu
braço.
— É melhor assim. Nós vamos pensar no que fazer, cara. Se matar não
é uma opção — Brandon falou e usei a força que me restava para rir.
— Achou mesmo que eu seria abatido, se vocês não tivessem me
impedido com essa palhaçada?
— Se você fosse atrás do delegado, seriam dois Walkers mortos. — A
ruiva se adiantou. — Ouvimos boatos de que ele estaria saindo de Manhattan
hoje, e os porcos estão à espreita. Sabem que existe um desejo de retaliação.
— E acha que isso vai me parar?
— Se você for inteligente, e acho que você é, sim. Ou estou me
enganando? — Virei a cara e ela continuou. — O delegado já deve estar
longe, Alien. Seu irmão era a peça central de muitos jogos, o desgraçado
assinou própria sentença quando o matou. Os aliados de John também estão
na cola dele agora.
— Vou caçá-lo, encontrar primeiro e o matar, não importa onde ou
quando. — Dei mais um soco no carro e meu corpo me forçou a recostar em
um dos pneus. A adrenalina já se desvanecia e eu sentia a dor tentando me
massacrar. — Como souberam? — Fechei os olhos e funguei, apertando a
carne viva contra o chão.
— Como todos os outros. No boca a boca — Bene esclareceu. — A
notícia voou por Manhattan. — Seus passos a trouxeram até mim enquanto
falava. — Você precisa cuidar desse braço…
— Já o enterramos — interrompi, com o assunto que me importava
mais do que minha ferida no momento, e ela engoliu a ajuda. — Eu e os
caras, nós… fizemos. — Dei uma pausa mordendo a boca por dentro. — Não
é como se ele tivesse mais pessoas para comparecer ao funeral.
Silêncio.
Ainda assim, Benedete se abaixou e segurou o meu braço sem me pedir
permissão.
Aquela era a ruiva atrevida que eu conhecia.
— O que quer fazer agora? — Brandon se aproximou, soltando a
pergunta mais imbecil que ouvi na vida. — Além de desossar o delegado,
claro.
Passei os dedos pelos cabelos e os joguei para trás, a ruiva arrancava as
lascas de vidro da minha pele como a porra de uma enfermeira.
— Vou pensar em uma maneira de desossar o delegado vivo, para que
sinta cara mísera dor, que tal? — respondi.
— Vamos ajudar nisso — falou, e voltei a rir.
Nós já trabalhamos com queima de arquivo antes, os trocados rendiam
as melhores noitadas, drogas para um mês inteiro e passagens para uns shows
badalados. Era uma das melhores barganhas, mas os certinhos deram um
tempo. Preferiram focar na universidade, esquecer um pouco o hobby do
crime.
Me perguntei o que os motivava a voltar agora.
— Vamos fazer isso por você, cabeça quente — Ryus, o calado,
justificou o grupo, como se lesse meus pensamentos.
— Não preciso de ajuda. Vão se foder!
— Mas nós vamos ajudar, e vamos tirar você daqui — Brandon
afirmou, percebendo a fumaça dos motores dançando sobre nós.
E de fato, se eu não saísse dali, iria sucumbir a uma merda sem
tamanho. A mistura estava conseguindo me sufocar. Drogas, álcool,
adrenalina, dor e, agora, fumaça.
— Vamos, você precisa se recuperar para o início das aulas — a ruiva
soltou, me fazendo rir pela terceira vez.
— Aulas no inferno, você quer dizer. — Cerrei os dentes enquanto eles
olhavam para mim em silêncio, a expressão dela sendo a mais surpresa entre
todos.
— Não vai mais voltar para a universidade? Vai mesmo comprar a
ideia do seu irmão? — Balançou a cabeça. — É a nossa âncora, Alien, o
lugar onde nós mantemos um ao outro humanos. — Revirou os olhos. — Ou
quase humanos… — Mal olhei para ela, discutir era uma perda de tempo,
assim como aquela instituição de merda.
Estavam com receio de me perder ainda mais depois da morte de John,
eu via isso. Mas o direito de escolha não era deles, e não iriam conseguir me
manter na matilha por tanto tempo, já deveriam saber.
No entanto, ainda assim, lá estava, o tom despretensioso da infeliz de
cabelos ruivos, me tratando como quem trata uma criança que se recusa a
comer legumes.
— É uma pena, porque, aparentemente, a filha do delegado irá
ingressar na Libert University. — Ergueu o celular em uma questão de
segundos. — Usando somente o sobrenome da mãe, como forma de
segurança… Seria um belo ponto de partida para descobrir onde o pai está, se
for mesmo verdade que ele está saindo de Nova York... — Minhas pupilas se
dilataram no exato momento que perceberam a imagem da garota no telefone
celular.
Era a ficha de inscrição dela, e acho que nem mesmo o diabo saberia
como Benedete tinha descoberto e conseguido aquela porra.
Meu tato voltou à ativa e a visão começou a clarear, como uma bomba
de sangue novo pulsando do coração por todo o corpo.
E ela continuou.
— Mas como o Aaron está pensando em desistir da universidad… —
Antes que terminasse, tomei o celular com a mão debilitada e o trouxe aos
meus olhos.
De fato, era ela. A minha presa voltando a ser presa de novo. Voltando
a cheirar como a caça do dia, me fazendo salivar por sua carne.
— Eu acho que alguém está repensando algumas decisões… —
Benedete riu, olhando para os demais, mas sequer desviei os olhos da tela.
Se existia uma certeza para mim, naquele momento, era a de que a vida
daquela garota se tornaria um verdadeiro inferno do dia para a noite.
E seria eu quem o comandaria, com um puta prazer imensurável.
Com um suspiro de cansaço, olhei pela janela do meu quarto novo em
Manhattan.
Haviam se passado dois dias desde aquele trauma. Dois dias que meu
pai agia como se nada tivesse acontecido.
Dois dias que nem precisei desfazer as malas. Estavam todas
empilhadas ali no canto, reluzindo o selo do alojamento da Libert University,
o motivo pelo qual qualquer um expressaria alguma reação, mas a minha cara
parecia estar petrificada.
Era uma universidade nova, pessoas novas, vida nova. Tentei me
animar de todas as maneiras possíveis, mas parecia ser impossível, porque eu
via o homem morto todas as vezes que fechava os olhos.
Todas as vezes.
Não tinha controle sobre aquilo, não conseguia parar, mesmo que
quisesse. Nada adiantava e não adiantaria por longos meses, supunha, porque
minha atenção lutava contra tudo que eu insistia em fisgar.
Olhei para os móveis impecáveis, meticulosamente organizados, como
se eu estivesse em um quarto de hotel decorado em tons neutros, sem
personalidade.
Fechei os olhos. Eu ainda o via.
Talvez meu telefone me tire dessa merda.
Desbloqueei a tela.
Mil e uma mensagens em grupos, minha última conversa há algumas
horas com Mavi, na qual eu escondia o porquê do meu nervosismo refletido
na voz trêmula dos áudios, e…
Meg.
A menina nova com quem estive conversando recentemente, quer dizer,
hoje. Iniciamos a troca de comprimentos sem graça pela manhã. Ela seria
minha colega de quarto no alojamento e, para nos conhecermos melhor,
sugeriu vir me buscar mais tarde.
Hospitalidade, pelo menos, parecia existir. Organização também; a
iniciativa de comunicação entre calouros e veteranos provava isso. Ter
alguém para ajudar sempre era bom, afinal tudo que é novo assusta.
Só não mais do que aquele meu trauma recente, e para provar isso, lá
estava ele, de novo.
John Walker…
Suspirei o nome que ouvi meu pai repetir inúmeras vezes em suas
últimas ligações, contando aos amigos sobre seu triunfo.
Quem eram aqueles caras e o que queriam com aquela merda toda?
Roubar o carro? Coagir a nova autoridade?
Enquanto me rendia às paranoias, a noite caía lá fora e o silêncio do
meu quarto, antes rompido apenas pelo sussurro do vento contra a janela, deu
lugar ao som de uma discussão acalorada.
Era a voz do meu pai, mas parecia ter mais alguém.
Quem diabos está aqui?
Me agarrei à curiosidade e desci até a sala. No meio do ambiente meio
morto, adornado com móveis pesados e cortinas escuras que impediam a luz
de entrar, reconheci a visita. Já tinha o visto em alguma reportagem na TV.
É o antigo delegado do Brooklyn.
O homem sobre o qual meu pai falou ter sido amolecido. O que deixou
o lugar virar um caos comandado por criminosos.
Ele tinha rugas profundas marcadas pelo tempo, ainda usava a farda,
parecendo ter orgulho dela. Os fios grisalhos só não eram tão evidentes
quanto a roupa alva por baixo do casaco, e ele encarava meu pai com uma
expressão de urgência e preocupação.
Pelo pouco que ouvi, já tinha certeza de uma coisa:
Matar aquele cara havia sido um erro.
— Não estariam pedindo seu afastamento, se não entendessem o que se
passa — o velho exclamou. — Vivo aqui há anos, Abernathy, e devo dizer,
você se colocou na mira quando eliminou o meliante. Você errou.
— Que autonomia você tem para me dizer o que é certo ou errado? Ou
sobre como agir ou o que fazer a seguir? — meu pai vociferou. — Minha
vinda a Nova Iorque esteve sendo preparada há meses. Não vou retroceder
por ter matado um delinquente, e um homem fardado com esse símbolo no
peito não deveria estar tentando me aconselhar o contrário! — apontou.
— Sua conduta não foi correta, você sabe disso! Continuar aqui é
colocar a operação que tanto defende em risco.
— Não é correto ter que ouvir você me dizer o que fazer! Não sou
sujeito a controle, gozo de independência funcional e técnica como
autoridade, onde quer que eu atue!
— Leu o ofício, sabe do que se trata. Não estamos falando sobre
convicções em indiciamentos, não há interferência em seus enquadramentos
técnicos. Não é a esse tipo de controle que está sendo submetido, Abernathy.
— Então, pelo visto, mudaram os termos e se esqueceram de me
atualizar.
— Sua carreira é submetida a chefes maiores, como a de qualquer
outro. Sabe que não tem cacife para peitar a hierarquia.
— Assim como sei que não vou ouvir um exonerado — soltou. — Sou
seu substituto, Jamar. Sou o martelo novo do juízo, a ferramenta que vai
garimpar esse lugar até os confins da terra, se possível, para encontrar e
retirar a podridão entranhada a ela. — Seus olhos pareciam flamejar. — Eu
sou o pioneiro, o escolhido para começar a grande limpeza em Nova Iorque!
É o cúmulo do ridículo ter vindo aqui me dizer o que fazer.
— Tenho conhecimento da dimensão da operação e da sua posição
quanto a ela, Abernathy. E é por isso que medidas apaziguadoras como essa
devem ser tomadas. Não sou eu quem está impondo regras e, como você
mencionou, é meu substituto, logo está sujeito às ordens dos superiores tanto
quanto eu. — O velho semicerrou os olhos. — O cúmulo é querer ignorar
isso, mesmo sabendo que é para a sua segurança, para o andamento do que
tanto preza.
Sobre o que eles estão falando? Que tipo de operação é essa?
— Vou fingir que acredito nisso. Só não sei se consigo superar você. —
Meu pai sorriu sem vontade alguma.
— Ninguém está ferindo suas garantias estatuídas. Continuam intactas
em suas mãos, mas é visivelmente promissor acatar as ordens, se não quiser
perdê-las como eu perdi.
— Perdeu, porque não aguentou o tranco e se rendeu à pressão dos
criminosos. É um merda que não deveria estar usando essa farda! — falou e o
Senhor Jamar fechou os olhos, como se estivesse se segurando.
Depois de suspirar, ajeitando a roupa, ele retornou ao discurso, como se
não tivesse ouvido a última frase.
— Você mal pisou naquele lugar e arrancou a peça central dos jogos
deles. Os jogadores vão cobrar a perda do peão.
— Não tenho medo de criminosos.
— Estamos falando de uma rede perigosa, Abernathy. Eles trabalham
nas sombras, lutam entre si sem que ouçamos o som de uma bala cair ao
chão. Em seus círculos, há muitos na linha de frente da justiça, muitos no
poder, sentados em tronos da lei. Tem muitos que se vestem como nós e que
ajudam a manter o crime no comando para benefício próprio.
— Por que não cita seu nome? Você é o exemplo vivo do que é a
milícia. — Ele deu alguns passos na direção do meu pai.
— Eu posso ter falhado como autoridade, mas estou fazendo o certo
como posso, e te alertar faz parte disso. Você escolhe por quem quer ser
morto. Pelo sistema, por não acatar as ordens e colocar tudo a perder, ou
pelos abutres do Brooklyn, que querem sua cabeça.
Aquela fala foi o que eu precisava para me aproximar, sentindo um nó
de medo apertar minha garganta. Se pegassem meu pai, eu daria adeus à
esperança que me moveu até ali.
Daria adeus de vez para a minha mãe.
— Pai, você precisa ouvir o que ele está dizendo. Você prometeu que
procuraria por pistas sobre a mãe aqui. Se algo acontecer com você por causa
disso, nunca saberei o que aconteceu com ela! — soltei em tom de súplica,
minha voz tremendo com a urgência das minhas palavras.
Mas parecia ter me esquecido de que ele estava nervoso. E quando meu
pai ficava nervoso, eu não deveria me aproximar.
— O que você está fazendo aqui, garota enxerida? — Ao som do
timbre sombrio dele, o velho me fitou e decidiu intervir.
— Ele não tem escolha. Já foi decidido, eu só vim reforçar — falou, me
dando uma ponta de alívio.
Bem naquele momento, vi, pela janela, um carro deslizando pela pista e
a buzina suave bateu em meus ouvidos quando estacionou.
— Parece que sua carona chegou — o senhor falou, olhando para o
símbolo na minha bolsa. — Libert University? — Acenei e sua expressão
estarreceu. Ele olhou de mim ao meu pai, mais sério do que antes. Os dois
pareciam conversar com um único olhar, até que ele pigarreou. — Não abra a
boca a não ser em sala de aula, mantenha distância dos garotos e procure não
frequentar as festas. — Piscou para mim. — Bons estudos!
Bons estudos para quem? Eu não teria sequer uma boa noite de sono,
depois de ouvir parte daquela conversa.
Meu pai fez merda ao matar o criminoso, agora está correndo risco de
vida e não quer recuar.
Era o que me faltava.
Busquei minhas malas no quarto e segui para fora.
O porta-malas do carro preto lustroso se abriu no momento que pisei no
batente. Olhei para a garota de cabelos escuros e olhos brilhantes, que sorria
para mim através do vidro semiaberto.
— Precisa de ajuda com as malas?
— Não. Tranquilo!
Coloquei minhas malas lá e entrei no carro em segundos. O interior
estava impecavelmente limpo, o cheiro de automóvel novo ainda pairando no
ar.
Acomodei as mãos no colo, sem jeito, depois peguei o celular e abri as
mensagens. A garota pareceu perceber o meu nervosismo e acenou uma vez,
antes de ligar o motor.
— Bom, também fico nervosa quando conheço gente nova.
— Não estou nervosa.
— E eu também falo isso, mas a gente nunca percebe nada em nós
mesmos. — Apontou com a cabeça. — Tem chocolate na gavetinha ali.
— Não, obrigada…
— Ouve música? — perguntou, passando o dedo em um botão e um
som suave começou a tocar. — Costumo ouvir sons ambientes. — Olhou
para mim.
— É… eu curto alguns sons, mas esse é bom. Acalma.
Silêncio.
— Então… como você veio parar aqui? Vi na sua ficha que era de
Orlando.
— Meu pai veio à trabalho e, consequentemente, vim junto.
— E o que a minha colega de quarto cursa? — Ela brincou com as
sobrancelhas, esperando pela minha resposta.
— Sabe até meu endereço, achei que saberia meu curso também.
— Eles não são tão detalhistas com o que importa, e só sei de algumas
coisas a mais, porque precisei levar seus dados à irmandade. — A seta
começou a bater enquanto ela entrava em outra rua. — Ou seja, nada além do
fato de que você vai fazer dezoito anos, veio de Orlando, e se chama Brianna
Kumon…
— Brianna Abernathy Kumon — consertei.
— Como? — Piscou, o sorriso sumindo de seu rosto.
— É meu nome. O Kumon é sobrenome da minha mãe, Eliz… — Ela
freou, antes que eu terminasse.
— Você é a filha do novo delegado? — Sua fala estarreceu.
— Algum problema com isso? — Franzi o cenho.
— Deus! Por isso só você estava sobrando na lista. — Bateu na testa e
fechou os olhos. — Eu e minha síndrome de boa samaritana…
— Tá legal, de que merda você está falando?
— É complicado… — Seu suspiro me fez erguer a sobrancelha. —
Você sabe que seu pai virou o centro das atenções por aqui, né? Ele matou..
— Um criminoso. E não foi aqui, mas no Brooklyn.
— Ele matou O criminoso. O cara que comandava o Brooklyn, o Burgo
vizinho a Manhattan. — Ela apertou o volante e girou a chave devagar, dando
partida. — Acontece que o irmão do cara morto estuda na Libert.
O chão pareceu ter sumido debaixo dos meus pés.
— Por pouco você estaria de frente a um delinquente recém-reabilitado,
ou quase reabilitado, do vício de ser um psicopata, tóxico, cruel… —
Inspirou fundo.
— Por pouco?
— É. O motivo de eu não ter entrado em colapso total é o mesmo que
proporcionou uma boa noite de sono aos universitários de bem na última
semana. — Olhou para mim. — Ele vai desistir da universidade, se já não
desistiu. — Soltei o ar que segurava no peito e ela fez o mesmo de forma
mais tranquila. — É, fique aliviada. Ele e os amigos eram os piores de lá.
Acho que o máximo que você vai ter será olhares curiosos.
— Com medo de sofrer bullying comigo por dividirmos o mesmo
quarto, Meg? — Forcei um riso. Ela ainda apertava o volante, nervosa.
— Quando se trata do Alien, acredite, você iria preferir o bullying e
agradeceria por isso.
— Alien… — repeti o que parecia ser o apelido do cara, e era uma
pena ter parte do meu fascínio obscurecido pelo irmão do morto. Eu amava
astronomia. Todas as vezes que pensava em vida fora da terra, o que eu mais
fazia nas horas vagas, iria me lembrar da merda toda. — Por que Alien?
— Dizem que ele é de outro planeta — respondeu, tensa. — Também
dizem que ele caiu do céu, mas nunca foi anjo e demônio algum o supera. —
Falou e me arrepiei. — Há boatos de que além da beleza de outro mundo, ele
não tem o que a psicanálise freudiana chama de controle de impulsos. —
Olhou para mim. — E vai muito além de um problema psicológico normal.
— Acho que estão exagerando…
— É… pode parecer exagero, mas nunca pensei em pagar para ver com
os meus próprios olhos. — Riu, nervosa, e engoli em seco. — Bom, como
seu sobrenome não estava em evidência, provavelmente seu pai pediu alguma
medida de segurança para você, então vai ficar tudo bem no final — falou,
parecendo que estava tentando se convencer. — E se pensarmos que você ter
ficado sem um quarto pode ter sido uma coincidência, até então só sei quem
você é de verdade. — Voltou a sorrir e começou a nos tirar da estrada
deserta.
Meu pai, aquela universidade, a conversa entre ele e o velho delegado,
a morte do cara… eu estava no meio de uma teia de mistérios, mas preferi
ignorar. Eu tinha coisas mais importantes para tratar no momento. Além de
me manter longe dos olhares curiosos, precisava saber como se faria a busca
pela minha mãe, agora que ele iria se afastar.
Olhei pela janela. A noite já havia caído sobre o campus da Libert
University, lançando uma aura de mistério sobre o lugar, trazendo sombras
dançantes nas paredes e criando padrões intrincados que pareciam sussurrar
segredos há muito enterrados. A sensação só não era mais sinistra do que a de
olhar para Meg.
— Consegui te deixar nervosa — falei, aproveitando o ar mórbido.
— Não estou nervosa.
— A gente nunca percebe algo em nós mesmos. — Usei sua frase
contra ela e a vi balançar a cabeça, deixando a tensão esvair um pouco.
Quando estacionamos e as portas destravaram, suspirei.
No fim, não parecia ser tão ruim assim, mesmo que fosse tudo tão
estranho para mim, incerto e desesperador, ao mesmo tempo.
— Ah, e eu faço medicina — comentei e fechei a porta do carro,
pousando na calçada.
Minhas pernas tremeram ligeiramente. O ar gélido me inebriou e voltei
a fechar os olhos.
Ele ainda estava lá. John Walker. Morto.
E, quando os abri, sua sombra permaneceu, como se fosse real.
Pulei para trás, piscando algumas vezes. Parecia que alguém estava
encostado em uma coluna de pedra em meio ao breu.
As luzes fracas das luminárias do campus me permitiam ter um singelo
vislumbre dos olhos do estranho, e eles pareciam insanos, de outro mundo.
Me hipnotizaram para que eu permanecesse ali, olhando para ele, sem ver
mais do que me permitia.
Meg ainda estava falando — sozinha — até perceber minha inércia.
E, depois disso, mais silêncio.
O vento soprou, trazendo uma sensação de expectativa, como se tudo
ao redor segurasse a respiração, almejando assistir ao desfecho.
— Entra no carro — Meg falou, mas seu comando não surtiu efeito.
Não até que o vi se aproximar.
O reconhecimento se instalou em meu peito como um soco enquanto o
encarava com uma mistura de temor e determinação.
Ele estava lá naquela noite. Me lembrava de seus olhos, assim como da
morte, do calor intenso que parecia consumir o ar ao nosso redor quando ele
me apertou, da sensação de desespero que parecia querer me sufocar.
Eu me lembrava do ódio em ascensão desde aquele dia.
Está mais intenso hoje. Vai me matar se me alcançar.
Ele era o irmão do cara morto. O Alien.
Me virei para pegar a maçaneta, mas sua mão forte agarrou meus
cabelos primeiro e me atirou no chão.
Se eu não captasse faróis acesos e motores que rugiam, surgindo em
meio à escuridão, diria que tinha apagado ali, mas eu estava consciente, e
pelo visto viveria a pior noite da minha vida.
Ergui a mão, tentando esconder os olhos do brilho quente dos faróis dos
carros. Tentava enxergar melhor, encontrar o filho da mãe que me jogou ali,
mas já não o via mais.
Comecei a apalpar o chão para me colocar de pé e tive a visão um
pouco mais clara do ambiente. Fui lançada no meio de um extenso círculo
concretado, um dos muitos que enfeitavam a entrada quilométrica da
universidade.
Me vi encurralada. Presa ao cenário ideal para que alguém vivesse uma
aflição desumana.
Meu corpo impulsionou para trás quando um dos automóveis acelerou.
Abri os olhos em cima da clareza dos faróis, e pelas falhas dos dedos que
insistiam em me proteger o rosto por instinto, estavam os olhos dele, de novo.
Como se me desse um aviso:
Aquilo era só o começo.
As rodas começaram a girar e ele veio na minha direção, criando
velocidade, ganhando impulso.
— Para! — gritou minha alma, com certeza.
Uma aflição sem tamanho fluía pelo meu peito e, quando achei que ele
me esmagaria entre os pneus, o som do freio brutal me fez puxar o ar, como
um morto voltando à vida.
O carro fez uma curva, desenhando um rastro escuro no chão e na
minha mente. Os demais começaram a segui-lo, derrapando em um círculo ao
meu redor.
Me coloquei de pé, tremendo como nunca na vida, com a sensação de
que minhas pernas cederiam e que desmaiaria a qualquer segundo. Minhas
pupilas acompanhavam os movimentos. Eram como predadores carnívoros e
eu, o peixe fora d'água. Aumentaram a velocidade, o surgimento de
telespectadores me fez sentir uma fadiga desoladora.
Era um tormento assistido, no qual ninguém interviria.
À medida que o barulho começava a ficar mais intenso, minha pressão
arterial caía em resposta à minha acusticofobia. Um nó se formava em minha
garganta, dificultando a respiração toda vez que o metal dos carros rangiam
ao se moverem em círculo ao meu redor.
O barulho ensurdecedor parecia me dar a possibilidade de tocá-lo, de
tão intenso. Meu abdômen colou nas costas. Não respirava. Tontura iminente.
Indício de falência dos músculos. Mãos nos ouvidos.
Comecei a apertar minhas orelhas de forma cruel, sentindo as lágrimas
escorrerem contra a minha vontade. precisava sair dali, mas a sensação de
impotência me envolvia como uma sombra, obscurecendo qualquer
pensamento claro que eu pudesse ter.
Senti minhas veias se encherem com mais força, quando o Alien do
inferno começou a abaixar o vidro do carro preto que ele pilotava. Em pouco
tempo, acomodou-se com parte do corpo para fora em uma das janelas aberta
e outra pessoa tomou a direção do veículo.
Os estudantes que assistiam vibraram quando ele tirou uma coisa
grande para fora. Era uma pistola, e comecei a entrar em desespero quando vi
que fogo vivo saía dela.
Fogo vivo.
Cru.
Vermelho como o inferno. Eu podia sentir queimar.
Meus olhos se encontraram com os dele e, naquele momento, o mundo
ao nosso redor parecia em câmera lenta. Seu semblante irradiava uma fúria
incontida e inebriante que me dilaceraria se chegasse perto o suficiente.
Aquilo estava mais que claro.
O desgraçado jogou os cabelos escuros para trás e tirou a camisa,
evidenciando o peitoral tatuado e as repartições no abdômen. A demonstração
de poder continuou quando ele soltou outra rajada flamejante direto da arma
para o céu.
Comecei a lacrimejar. Pernas apertadas para segurar a bexiga.
— Olé! — alguém gritou, e meus olhos arregalaram quando um vento
quente soprou em minhas costas. Subindo pelos cabelos, obrigando minha
nuca a arrepiar.
Labaredas subiram por cima de mim e morreram no ar vazio diante dos
meus olhos.
Comecei a ficar tonta, enjoada e sem cor. O rugido dos motores
pareciam ser trovões constantes, ecoando em meus ouvidos e reverberando
em minhas entranhas.
A cada volta que davam, com os pneus frouxos em um círculo torto, a
força do vento me golpeava, fazendo meu cabelo voar descontroladamente ao
redor do rosto.
Cada vez que se moviam, o ar era cortado pelo som agudo dos freios e
a vibração do solo sob meus pés me fazia bambear. Meus músculos estavam
tensos, preparados para qualquer movimento repentino que precisasse fazer
para escapar de seus dedos; pular de volta na água, me salvar.
Mas não sei se seria possível, porque as buzinas, os gritos e risos dos
que assistiam à cena, fogo queimando e sumindo pelo ar, os freios bruscos
que faziam os pneus chiarem em cima de mim… tudo isso contribuía para
que eu enlouquecesse ali no meio e entrasse em pânico.
Apertei os olhos com força e me abaixei. Mantive o corpo encolhido no
chão, gritando contra aquele caos. Gritando de raiva, medo e desespero. Era a
única solução ao meu alcance e faria aquilo até que alguém me ouvisse. Até
que me deixassem em paz.
Começaram a diminuir o ritmo. As vozes ficaram mais altas do que o
som dos motores. Ergui os olhos inchados, tentando escapar dos flashes de
luz das câmeras que registravam a tormenta.
Me levantei, sentindo que meus pés não tinham fixação. Manobrei,
completamente tonta, com a única missão na cabeça: sumir dali. Mas já
deveria imaginar que o extraterrestre saltaria do carro e me seguraria com as
garras imundas.
— Eu só vou perguntar uma vez, ratinha. — Sua voz era grossa e os
dedos puxavam a raiz do meu cabelo, me forçando a olhar em seus olhos. —
Onde está o infeliz que chama de pai?
— No inferno — respondi com os dentes cerrados. — Esperando por
você.
Meus olhos desceram inconscientemente até o sorriso que ele abria
devagar. Tive vontade de arrancar um pedaço da boca com os dentes, só para
mostrar que não havia graça alguma, mas ele não me deu tempo para a
realização do meu maior desejo momentâneo. Começou a me empurrar por
uma escada escura, antes mesmo que eu pudesse piscar.
Os universitários sem noção nos seguiam de perto como se estivessem
indo para uma festa, com bebidas na mão e lasers elétricos.
Reconheci o ambiente no momento que vi as pilastras. Era um
estacionamento subterrâneo.
O ar úmido e pesado do subsolo parecia prenunciar o que estava por
vir. O lugar escuro e vazio começou a encher e se tornar aceso. O som
distante de gotas de água pingando, que ecoava pelas paredes, sumiu e outro
começou a aumentar no fundo de um dos carros.
— Você prefere o jeito difícil… também acho mais gostoso —
sussurrou no meu ouvido.
Vi quando arrastaram uma cadeira velha e a jogaram no meio do lugar,
as mãos fortes dele me levaram até lá, mesmo que lutasse para não ir.
— Soube que ela é caloura de medicina. — Um cara estranho de
cabelos azuis se aproximou, cantarolando, e percebi que podia ver dois dele
na minha frente. — Bom, estou com meus materiais…
— O quê? — Franzi o cenho. Estava longe de ver bem, mas ouvir eu
ainda conseguia, ou achava que conseguia, porque duvidei do que ouvi.
— Testes com a ratinha… que tal, Alien? — completou, olhando para
mim.
— Me solta! — Tentei me debater. Esforço em vão. A aspereza da
corda grossa arranhou meus punhos estendidos para trás e o cheiro de poeira
me sobreveio às narinas, quando amarraram uma gaze velha na minha boca.
A mochila do cara foi aberta e alguns equipamentos reluziram aos meu
olhos, mas o Alien do inferno agarrou uma seringa.
Balancei a cabeça, negando. Ele não precisava fazer covardia para
conseguir alguma coisa, mas quem disse que minhas súplicas seriam levadas
em consideração?
— Cadê o nerd da biologia? — Ergueu a voz e um garoto apareceu. —
Trouxe seu baixinho, nerd?
O garoto balançou a cabeça em afirmação e se virou. Enquanto isso,
uma ruiva e dois outros caras se aproximaram de nós.
— Se divertindo, Alien? — o de pele marrom-clara e sorriso fino
perguntou.
— Você acha que não, Brandon? — a ruiva respondeu, pendurada no
pescoço de um loiro. — É disso que ele gosta. De estar no controle.
— E de obter informações — o tal Brandon destacou.
Quando menos esperei, o nerd voltou com uma gaiola enorme que
deixava escapar as pontas das asas de algum animal pelas partes pergoladas.
— Eu até deixaria ele se alimentar por conta própria, mas acho que o
morcego do Kaio ainda toma mamadeira, então… — Ergueu a seringa e o
maluco de cabelo azul, como um palhaço, sorriu. — Enfermeiro do segundo
semestre, que tal fazer as honras?
Pressionei as costas contra a cadeira quando, seguindo as ordens dele, o
cara segurou o meu braço e enfiou a seringa na minha veia. Dor dilacerante.
A agulha rompia minha pele seca, me fazendo sentir cada camada ceder.
Olhei para baixo. Uma fita vermelha alimentada pelo sangue fresco que
escorria do braço era sugada pelo piso cinza do lugar.
— Aí, infeliz. — O Alien bateu no ombro dele. — Melhor consertar
isso. — Referiu-se à pequena poça que se formava nos meus pés.
Senti uma fita adesiva grudar na minha pele sensível. Meus olhos
lacrimejaram diante da quentura do sangue acumulado na bolsinha de ar entre
a cola do plástico e minha pele.
— Sangue direto da veia! — Alien exclamou e empurrou o êmbolo,
fazendo o líquido vermelho esguichar para cima.
A ave batia as asas tão forte que o garoto não conseguia segurar a
gaiola nas mãos.
— É tão bom assim? — O de cabelos azuis abriu a boca, arrancando
risadas das pessoas. Fechei os olhos. Que porra era aquilo? — Hum…
Docinho… — completou. — Que delícia!
— Tem sorte que ela é limpa — o meu pesadelo mencionou enquanto
se aproximava. Seu dedo indicador me forçou a erguer o rosto para ele. — Li
a ficha completa, nem mesmo anemia essa ratinha tem. — Tirou o pano da
minha boca.
— Me deixa ir, por favor… — pedi, minha voz embargando.
— Onde ele está? — insistiu. — Espero que não diga "inferno".
Mesmo sem forças, me esforcei para responder.
— Eu não sei…
— Ah… você sabe, sim. — Ergueu a mão e pegou outra seringa vazia.
— Aí, aspirante a médico, ouvi dizer que tiram sangue da veia no pescoço
também, é verídico?
Meus olhos abriram com força assim que assimilei o que ele tinha dito.
— Não faz isso, por fa… — O pano estava lá de novo, me impedindo
de falar. Ele colou os lábios no meu ouvido.
— Shhh… — Senti lágrimas voltarem a banhar meu rosto. — Se não
for verdade, teremos o primeiro teste agora. — Seus dedos deslizaram pela
pele do meu pescoço.
Arrepios.
Arrepios para um caralho.
O toque dele era diferente. Tinha intenção, ia além do “só fazer”.
Ele fazia meu sangue bombear como se não houvesse amanhã com um
único toque. Seu polegar pressionou uma das minhas veias e o ouvi suspirar.
— Elas estão aparecendo para mim sem que eu peça… que adorável.
— Riu. — Vamos lá, se abrir a boca agora… — sussurrou. — Juro que te
poupo o sofrimento.
Balancei a cabeça, sentindo a fraqueza me alcançar quando a agulha
ameaçou romper minha pele.
Fechei os olhos.
Ele iria me matar. Perfurar a minha jugular. Eu iria gotejar pelo
pescoço como um boi no matadouro.
No entanto, tão rápido quanto se aproximou, afastou-se. Meu suspiro de
alívio pareceu sair da alma. Suas mãos se entenderam, ele pegou a seringa
cheia e deu um sinal na direção de alguém.
— A vadia das bijuterias. Aqui!
Uma pessoa, da qual eu não conseguia enxergar sequer a cor dos
cabelos, se aproximou e ela entregou alguma coisa ao desgraçado.
No dente, ele abriu o que parecia ser um pingente em forma de tubinho
e derramou meu sangue lá dentro. O pequeno tubo foi fechado e ele o
pendurou em uma corrente no pescoço, antes de me mostrar de perto.
— Quer dizer que pertence a mim agora — sussurrou a centímetros dos
meus lábios. — E espero que saiba o que isso significa. — Minhas mãos
foram soltas em um só golpe. Ele ainda mantinha os olhos nos meus olhos.
— Corra.
Percebendo que estava livre, me levantei como uma maluca para dar o
fora dali, cambaleando, tonta e sem ar. Passar pela multidão de universitários
que dançavam foi um verdadeiro sufoco, mas consegui. Estava mais perto do
que nunca de um refúgio.
Só não esperava que esse refúgio fosse coberto de sombras que
pareciam dançar acima da penumbra, e que levaria a minha consciência
devagar, como um orvalho.
E ali, no meio da corrida, antes mesmo de conseguir alcançar as luzes
fracas do campus, desmaiei.
— Vamo, porra!
Empurrei o botão do telhado móvel e o teto não abriu.
Eu deveria estar na Libert, mas tinha sol naquele lugar pela primeira
vez no mês. Almejava fazer a única coisa que meu corpo pedia no momento:
tomar um banho de piscina.
Nem isso consegui.
Atirei o controle para o lado e me joguei em uma das esteiras, para só
então perceber de onde vinha aquela puta energia carregada, que nem mesmo
o ambiente relativamente mais abastado conseguiu conter.
Do que adiantava uma casa espaçosa, com móveis elegantes e
decoração luxuosa, se essa fachada só servia para esconder tensões que
borbulhavam sob a superfície?
Não existiria trégua enquanto existisse a rainha de todas as intrigas.
Ela se chamava Emília Walker e era minha mãe.
Não perdeu tempo em lançar seu olhar reprovador na minha direção.
Estava sentada elegantemente em sua cadeira de rodas, sua expressão fria e
distante.
Engoli um suspiro e comecei a me levantar.
— Você voltou — ela disse, sua voz gelada, enquanto empurrava a
cadeira de rodas para mais perto de mim. — Tive esperanças de que também
estivesse morto.
Apertei os punhos tentando manter entre os dedos a pouca compostura
que eu ainda tinha diante daquela mulher.
Sorriso sarcástico. Abri um desses. Era uma das minhas melhores
armas.
— Achou mesmo que iria se livrar da sua única família, mãe? — Ergui
as sobrancelhas e ela soltou um riso cínico.
— Família? Você é a escória que apodrece o meu sobrenome. —
Cuspiu as palavras. — Você é apenas um lembrete constante de tudo que
perdi.
Fechei os olhos, escolhendo as palavras certas. As mais pesadas. As
que me fariam dormir em paz depois que eu deixasse sair.
— Deveríamos ter deixado você apodrecer junto dele, velha ingrata
miserável.
Deixei-a falando sozinha e rompi o amplo espaço da área de lazer,
sentindo a fisgada da raiva de sempre, daquela vez mais forte que nunca.
O meu passado naquele lugar tentava me assombrar como um fantasma
arrombado. Ele estava nas palavras, nos olhos dela, pelas paredes dos
cômodos, pelos objetos no mesmo lugar há anos, sendo polidos duas vezes ao
dia.
Pela foto no grande salão que antecede a sala.
Uma desgraça de tinta à óleo que Emília Walker insistia em expor.
Uma arte morta, sem cor e com um demônio ao lado dela. A imagem de uma
família que nunca existiu, de uma farsa que foi destruída mais tarde do que eu
gostaria.
Com certeza a universidade é melhor do que este lugar agora.
Agarrei a mochila com a mão, já pronto para atirá-la no banco de trás
do carro. Passei os dedos livres no tecido justo de uma das trocentas
camisetas pretas que eu colecionava, conferi a jaqueta de couro que já viu
dias melhores e a bandana preta na cabeça.
Até que decidisse usar aquele uniforme ridículo preto e azul da
universidade, aquele seria meu traje.
Liguei o motor da lata na qual derraparia com os caras mais tarde, uma
Lamborghini. Meu sorriso voltou a crescer quando me ocorreu que o puto do
John derrubaria o portão da garagem, se estivesse no meu lugar.
Mas eu? Eu faria coisa pior.
Girei o volante, fazendo os pneus irem pelas laterais do jardim, e
cheguei até a porta principal. Acelerei. O carro estava dentro da sala de estar
em segundos e a imensa porta de vidro, em estilhaços.
Aquela era pela memória do meu irmão. Do filho renegado pela própria
mãe, que não hesitou em comemorar sua morte. E ela ouviria cada uma
daquelas palavras no momento que olhasse para cada mísero pedaço de vidro
no chão e soubesse que fui eu.
Manobrei e saí de lá tentando deixar para trás o fato de que tinha uma
mãe, como em todas as outras vezes. Todas as que saí de lá por causa dela, do
ódio dela, do inferno que aquele lugar se tornava.

Olhei no relógio de pulso.


Da última vez, levei dez minutos para chegar na Libert. Desta ez,
quando conferi os ponteiros, os três minutos me parabenizaram brilhando na
telinha fria.
Tô de volta, vadias.
Minha reputação chegava primeiro, como sempre. À medida que me
aproximava do prédio da administração, me via sendo o centro das atenções.
Empurrei os cabelos para trás e dei meu toque característico na borda da
porta, um gesto que se tornou meu ritual, um teste silencioso de resistência.
Um passo para dentro e dois filhos da mãe colaram em mim.
Brandon e Benedete.
— Onde está seu cãozinho de estimação, Benedete? Melhor ir cuidar
dele. E Brandon, seus pneus estão horríveis, eu trocaria.
Conforme andávamos, as conversas entre as pessoas só variavam em
palavras, mas tratavam do mesmo assunto.
— Ela simplesmente sumiu. Ninguém sabe dela desde ontem à noite —
uma imbecil cochichou para outra, olhando na minha direção.
Mas bastou um passo torto, dando a entender que iria até elas, e as duas
correram dali.
Ri enquanto ouvia o resto dos desocupados, como fantasmas pelos
corredores, sussurrarem “merda”, até que os fantasmas ao meu lado
começaram a falar.
— Levou ela pra onde? — Brandon se esforçou para forjar o tom de
desinteresse.
— Abre o jogo, Alien. A gente sabe que você está tentando estender a
diversão, mas precisa saber. — Cruzou os braços. — Ela vai definhar nas
suas mãos se for longe demais.
Antes que respondesse alguma coisa, a imagem da velha, branca como
neve, e uniformizada como um soldado do exército surgiu à minha frente.
Era a reitora.
— Na minha sala, Aaron Walker. Me acompanhe.
Olhei para eles e me esforcei para erguer os ombros de forma natural.
— O julgamento me espera.
Me sentei na cadeira da sala cinzenta e cruzei as pernas, mostrando
minha genuína despreocupação. Afinal, o que ela achava que iria conseguir
com aquilo, além do esgotamento da minha paciência?
Um sorriso cínico brincou em meus lábios quando levei essa pergunta à
tona apenas com um olhar, e a fiz molhar os lábios, nervosa.
— Fique à vontade para perguntar, mas já adianto que não encontrará
nada que me incrimine.
— Como se já não tivesse antecedentes suficientes — murmurou firme,
e eu abri os braços gesticulando pelo lugar.
— E que pelo visto não estão sendo de muita valia. Não me vejo numa
prisão.
Ela soltou um suspiro.
— Vamos resolver como humanos civilizados, que tal? Essa instituição
preza pela segurança dos alunos resistentes. Espero que saiba que as vidas de
outros universitários não fazem parte do seu domínio.
— Disse a rainha sem trono. — Cruzei os braços. — Esse lugar é
povoado por filhotes de meliantes, como chamam, Senhora Hunter. É uma
concentração de ovelhas negras aprendendo a dominar, condenar e destruir.
— Me recostei na cadeira. — Deveria se preocupar em se manter viva até o
final do semestre, e não em me fazer perder tempo. — Era maravilhoso ver a
cara dela quando uma ameaça era sutilmente jogada à mesa.
— Posso estar num ambiente abastado por filhos de pessoas errantes,
como disse, mas não vou me tornar uma também, e vou intervir onde puder.
Eu prezo por ordem e segurança — estabeleceu, determinada.
— Ordem e segurança?— Soltei um riso frio. — Você realmente
acredita que essas palavras têm algum significado aqui?
Ela inspirou fundo.
— Você viu Brianna Abernathy, Aaron Walker?
Meu sorriso desapareceu. O nome dela atingiu um nervo sensível no
cérebro. Acomodei os cotovelos na mesa e me aproximei devagar da velha.
Minha voz saiu em um sussurro.
— As pessoas estão sempre curiosas para ver até onde podem me
provocar… — Minha língua estalou. — Não me subestime, reitora. Você
pode não gostar do que eu escondo.
Vi quando ela engoliu em seco, tentando manter a compostura, mas
seus olhos mostraram um lampejo de insegurança. Ela sabia tão bem quanto
eu que, no final das contas, eu era quem ditava as regras do jogo.
Me levantei da cadeira.
— Não sei para onde a sua aluna foi e não me importo. Que se fodam
você e ela. — Saí da sala com passos firmes, deixando a porta aberta.
Agora, ela se levanta.
Um, dois, três passos. O suspiro. Porta fechada e o som da plaquinha
para tocar a campainha, caso precisem de algo.
Narrei as ações da velha em conjunto com sua execução e continuei
andando pelo corredor para dar de cara com Ryus.
— Passando pela salinha dos reclames logo cedo, bundão?
— A velha tá cansada da mesmice, parece pedir por um descanso. —
Começamos a descer alguns lances da escada para o refeitório. — Se ela me
perturbar mais uma vez, não vai estar mais aqui para conferir as cadernetas
dos poucos sangue bons que circulam esse lixo de universidade.
Paramos pouco antes do fim dos degraus. Ryus colocou o boné por
cima do cabelo loiro e puxou a jaqueta surrada para alcançar o bolso.
— Vai rolar corrida hoje? — perguntou com um olho meio fechado
enquanto tentava pegar um maço. — Achei que você precisaria de um tempo.
— Pra quê? Reviver aquela porra toda a cada segundo? Prefiro correr
— respondi.
— Então teremos um pós no apê do centro? Tô sonhando com a
banheira de lá, ainda não encontrei uma parecida.
Ele se referia ao apartamento azul, como apelidamos. Uma cobertura
no centro de Manhattan. O lugar onde nos reunimos na maioria das vezes
quando saíamos de uma corrida pelas redondezas.
Era um prédio único, levava a marca de uma empresa famosa e servia
os maiorais, uma fatia tinha o nosso sobrenome. Uma das muitas
demonstrações de poder dos Walker naquele lugar, comprado com o dinheiro
da minha mãe por um infeliz interesseiro, mas agora era meu. Eu o tomei.
E, pela primeira vez depois de muito tempo, as portas não estavam
abertas para os babacas.
— Vamos pro Booking, tô a fim de um hambúrguer — falei e ele
franziu o cenho.
— Certeza que não vai rolar, cara? — Puxou o isqueiro. — Ir pra lá
depois das corridas já é quase uma lei. — Soltou a fumaça pelos dentes.
Antes que eu respondesse, erguemos os olhos quando Benedete se
aproximou.
— Sem chances. — Abri um pouco as pernas para ajustar a coluna. —
Tô com uma mina no porão.
Ela semicerrou os olhos na minha direção.
— Vai manter ela presa até quando, babaca? Não acha que se a
princesinha de porcelana soubesse onde o pai está, teria dito ontem?—
Cruzou os braços. — Você aterrorizou ela.
— Tirando o fato de que você está convicta que eu sou a mente
maquiavélica por trás do sumiço da ratinha, que preocupação é essa? —
questionei e ela ergueu uma sobrancelha.
— Ela é a carta que você tem para acelerar as coisas. Se estragar, vai
ficar sem nada, e você sabe que costuma estragar tudo no que toca. — Jogou
a cabeça para o lado. — É só um conselho de quem pensa.
Comecei a rir.
— Está me subestimando… acha que não sou capaz de brincar com um
bichinho?
— Suas brincadeiras sufocam, Alien. No fim, você fica sem respostas e
sem o brinquedo.
— Talvez eu consiga alguma coisa antes do último suspiro, hum? —
Pisquei para ela. — Cadê a sua positividade, ruiva?
Meus olhos estavam pesados, como se todo o peso do mundo estivesse
acomodado nas linhas das minhas pálpebras. Minha bunda doía, dormente,
como se eu tivesse ficado sentada por horas.
O vento forte que me acordou não perdia o ritmo, batendo na janela.
Cada silvada me fazia estremecer, de frio, susto, medo.
Olhos ainda fechados. Mãos no chão, apalpando. Tentei me mover, mas
meu corpo estava pesado demais, como chumbo. Como se tivesse mil grãos
em cada célula, dissolvidos.
— Abra os olhos. — O sopro do vento pareceu sussurrar em meus
ouvidos.
A pouca luz do ambiente me golpeou. Com o cenho franzido, tentei
identificar o que era aquela sombra densa pairando sobre o meu rosto.
Saía uma respiração de lá. Quente, penetrante. Tinha uma energia forte
também. Me fez ficar intrigada, mesmo estando grogue. À medida que as
coisas começavam a focar, eu via traços.
Era um rosto.
— Ah! — Tentei dar um pulo para trás, mas só consegui que minhas
costas fossem arremessadas contra uma base resistente.
Ferro puro balançou, entregando o sonido que me fez piscar várias
vezes em descrença.
Meus punhos estavam envolvidos por correntes.
Ergui os olhos de novo. Eu já enxergava com mais clareza e então vi.
O lugar era enorme, mas, antes de prestar atenção nos quatro cantos do
cômodo, ele me fisgou os olhos.
O riso frio estava lá, crescente e baixinho, emoldurado pelo rosto
esculpido. Ele era bonito, mas sombrio e perturbador ao mesmo tempo.
Uma mistura de tudo que se podia e não podia.
— Alien? — Pisquei algumas vezes, tentando descobrir se era real.
— Você dorme como um anjo, ratinha — falou, e me perdi nele.
Diferentemente das últimas vezes, os detalhes eram mais evidentes
agora.
Cabelos sedosos e pretos jogados sobre os olhos, escuros como a noite,
os tons vibrantes do dourado do lustre contrastavam seu maxilar marcado em
um ângulo perfeito. A pele era surreal, dentes brancos e lábios carnudos. O
pescoço grosso exibia o pomo de Adão pouco evidente, ombros largos de um
rato de academia.
Encarei firme, tentando guardar cada traço e particularidades.
Ele estava sem camisa, usando o colar com meu sangue e, salteadas
pelas inúmeras tatuagens, ele tinha pintinhas. Muitas delas. A mais evidente
se mostrava ao lado da boca, perto da bochecha. Ela se esticava quando ele
sorria, e ele sorria como um psicopata.
— Pelo jeito como se assustou, apareço em seus pesadelos. Estou
certo? — perguntou. Sua mão fria agarrou meu rosto enquanto se aproximava
devagar.
Meus olhos piscaram como se eu saísse de um transe.
— Sai de perto de mim! — rosnei e sacudi as correntes. Podia ver a
energia empoeirada de seu feitiço dissipando no ar. Cerrei os dentes, na
mente uma única intenção devastadora: mantê-lo longe. Mas só consegui a
proeza de aumentar o sorriso.
Irônico e frio ao mesmo tempo. Atraente e perigoso ao mesmo nível.
Seus olhos estavam nos meus lábios e seus dedos, cravados na minha
pele trêmula enquanto me fazia sentir sua respiração contra a minha
bochecha.
— Se a resposta for não, acho que de hoje em diante vou começar a
aparecer, ratinha.
Virei o rosto com força até sentir seus dedos escorregarem da minha
pele. As correntes balançaram de forma mais severa, apertando meus punhos,
e os músculos sob a pele do meu pescoço arderam, tensionados. Não me
importava. Faria o que fosse preciso para me livrar dele.
Uma vez livre, tentei manter a calma e captar tudo que conseguisse ao
meu redor para fazer um apanhado da minha atual situação.
Minha pele absorvia o frio caótico do piso. Sentada, amarrada ao pé da
cama de um quarto duas vezes maior do que o de uma pessoa normal, eu me
via em uma cobertura, que tinha seu requinte empoeirado pelos quatro cantos.
Contei três portas. Uma levava a uma suíte de vidro transparente, outra
ao que assemelhava a um closet e a última era a saída, todas pareciam ser
muito resistentes.
Uma parede de janelas vidradas completava o cenário, entregando a
visão do movimento frenético das ruas. Bastou bater os olhos ali para que eu
soubesse que estávamos em algum lugar da parte nobre de Manhattan. E a
pergunta que não queria calar era: de quem aquele filhote de marginal tinha
roubado aquela cobertura?
Na primeira tentativa de olhar para ele mais uma vez, me encolhi. Senti
seu olhar predatório e recuei. Não precisei ver para saber que suas pupilas
permeavam na minha direção. Eu sentia isso.
O frio do metal contra minha pele e o amargo na minha boca eram duas
das piores sensações que eu sentia no momento, mas perderam para o que
senti quando percebi o meu bolso vazio.
Ele tinha pegado o meu celular. Aí,, sim olhei para ele. Ninguém
tocava no meu celular.
— E ainda é bravinha… — Sorriu de lado e engoli em seco.
— E você é o irmão do cara morto que acha que vai conseguir alguma
coisa com essa palhaçada — soltei.
Reuni toda a minha raiva naquelas palavras e não me arrependia de ter
dito com tanta expressão, mas, confesso, tive medo de permanecer olhando
nos olhos dele quando o percebi em silêncio.
— Aí está a filha do desgraçado! — grunhiu e, em um piscar de olhos,
estava segurando o meu rosto com força de novo. — Cadê ele? — Sua voz
saiu áspera e mais grossa do que o normal.
Olhei nos olhos. Escuros, sombrios. Intensos para caralho, um
verdadeiro propulsor de arrepios, mas ele não iria ter nada de mim.
Mesmo se eu soubesse a localização exata do meu pai, não diria. No
fim, a ameaça ia além da vida dele. Ela alcançava e estragaria a possibilidade
de reencontrarmos a minha mãe.
— Já disse que não sei! — retruquei com os lábios apertados entre seus
dedos. — E você não vai conseguir nada me mantendo aqui contra a minha
vontade!
— Ou você fala, ou ele vem até mim. De um jeito ou de outro, vou
conseguir, ratinha. — Ao som do apelido ridículo, puxei meu rosto de suas
mãos
Um riso cínico escapou dos lábios dele, antes de começar a se levantar.
Seus músculos flexionando e relaxando sob a sombra que contrastava o lugar.
Ele parecia ter quase dois metros de altura.
Aquilo me pegou muito, confesso.
No cós da calça, um molho de chaves sacudia e, como um carcereiro,
ele tocou nelas, como se soubesse à qual fechadura cada uma pertencia.
— Quanto tempo acha que ele precisa para perceber que você sumiu?
— perguntou.
— Meu pai sabe o que faz. Ele não é burro para cair numa dessas!
— Claro que ele sabe o que faz. — Olhou para mim. — Matar meu
irmão foi uma escolha dele. — Deu alguns passos na minha direção, com as
mãos na cintura. — Salvar você também será uma escolha dele. Ou não? —
Tentei controlar o tremor diante dele. Foi em vão. — Bom, talvez nem você
tenha tanta certeza… eu soube que ele fugiu e, pelo visto, te deixou para trás.
— Balançou a cabeça. — Não achei que homens como ele sentissem medo.
— Acha que tem medo de você? Ele vai acabar com você! — Puxei as
correntes.
Eu odiava meu pai, mas, no momento, nada me deixaria ficar por baixo
daquele maluco.
— Espero por isso desde o dia em que vocês pisaram no Brooklyn,
vadia. — Riu, as sobrancelhas franzindo. — Se lembra de mim, como me
lembro de você? Faz tão pouco tempo… — Seu rosto voltou a ficar a
centímetros do meu.
Era impossível não me mostrar ofegante, nervosa, receosa.
Porra, ele era um estranho e eu estava amarrada!
— Vamos ver quanto tempo aguenta até decidir cooperar. — Comecei
a hiperventilar enquanto seus olhos escuros percorriam meu corpo. Ele puxou
um dos meus braços, a marca da corrente já o deixava vermelho. Seu polegar
o massageou em círculos e eu só conseguia ver meu peito subindo e
descendo, como se eu tivesse corrido uma maratona. — Vou mesmo ter que
assistir a você definhar? — Seu toque era como uma brasa viva contra minha
pele e ele me encarou. A pergunta no ar, como um eco reverberando na
minha mente. Tão rápido quanto começou, ele parou, deixando minha mão
cair e se virando de costas. — Será um prazer, filha do delegado.
Era frio. Sem sentimento algum além do rancor. Ele deixou claro que
não mediria esforços. Não quando se tratava da cabeça do meu pai.
O molho de chaves voltou a balançar em sua cintura, me tirando
daquele mar de certezas obscuras, e percebi o cintilar mais nítido de uma
delas.
Era familiar, distorcido e meio feio, mas familiar. Eu já tinha visto
antes.
Semicerrei os olhos, tentando focar melhor, captar mais detalhes e me
lembrar, no entanto bastou piscar mais uma vez para que ela sumisse no meio
das outras, enquanto ele desaparecia pela porta da suíte.
Comecei a ouvir um barulho de água.
A torneira tinha sido aberta e parecia encher algum recipiente. Só fui
ter certeza quando o vi voltar com um balde na mão.
— O que vai fazer? — Meus olhos subiam e desciam em uma dança
desesperada entre ele e o balde de água.
O desgraçado não respondeu, apenas o colocou no chão, aproximou-se
de mim e colocou as mãos na minha cintura.
— Gosta dessa roupa? — Os dedos fortes juntaram o tecido da minha
blusa e ele a rasgou no meio.
— O que você está fazendo? — berrei, impossibilitada de cobrir a
renda do meu sutiã.
— E essa calça? — perguntou, investigando o tecido jeans e comecei a
me debater para tentar chutá-lo, mas foi em vão.
Aquele homem parecia ter uma força desumana sobre mim. Me fez
virar de lado, segurou nas bordas das costuras laterais e abriu a peça no meu
corpo.
O frio me fazia gemer. Puxei as correntes e me encolhi no canto da
cama, sob seu olhar satisfeito. Ele seguiu até o balde, trouxe-o até mim e
despejou até a última gota sobre o meu corpo, arrancando um grito da minha
alma.
— Com frio, ratinha? — Comecei a tossir, sentindo cada célula do meu
corpo reagir àquilo. Os poucos tecidos estavam ensopadas e agarravam na
pele como um abraço congelante. — Vou deixar pior.
Seus passos rasteiros o levaram até as janelas. Com o toque em um
botão, todas elas se abriram.
Me encolhi como uma louca quando o vento frio, salteado por lâminas
finas de água sólida, começou a entrar para dentro.
Era inverno em Nova Iorque. E era um inferno para mim.
— Talvez amanhã você esteja mais disposta a conversar — falou e
levantei os meus olhos repletos de raiva.
Eu podia me ver pálida, com os lábios vermelhos e tremendo como
uma infeliz.
— Onde você pensa que vai? — gritei. — Não vai me deixar aqui!
Porta fechada. A tranca girou duas vezes e eu puxei as amarras de ferro
com força.
— Volta aqui, seu desgraçado!
A dor só me fazia querer romper uma a uma de suas emendas.
Impulsionei o meu corpo, mas a cama era pesada demais parecia embutida à
parede.
As correntes eram curtas, eu não podia sequer me levantar, mas não
queria e não iria ficar presa. Não suportava aquela sensação de inutilidade,
medo e raiva que eclodia dentro de mim, todas juntas, como um tormento.
— Me solta, seu desgraçado! — Senti as lágrimas nos cantos dos olhos.
— Me solta… — Voltei a me encolher, tremendo, sentindo gotas d'água
ainda escorrerem pelo meu queixo.
Era isso.
Eu era uma prisioneira e, com certeza, morreria, porque não sabia de
nada sobre meu pai, e ele não viria me salvar. Nunca se arriscaria tanto por
tão pouco.
E, mesmo que fosse triste, era melhor assim. Se ele se mantivesse vivo,
a esperança da garotinha de cinco anos atrás também viveria.
Me virei de costas para a ventania, querendo fechar os olhos, deixar o
cansaço me vencer. No entanto, uma centelha de esperança passou a competir
com a sensação de derrota quando, lá no canto do quarto, vislumbrei meu
celular.
Um pequeno raio de luz na escuridão em cima da peça polida, há
metros de distância, enquanto eu não conseguia dar ao menos um passo,
sequer me levantar.

Não fazia ideia de como aquilo mexia com a minha cabeça, até ver o
quanto mexia. A vingança parecia uma droga desgraçada e tudo que me fazia
promessas de tê-la se tornava algo intocado, que eu mantinha longe de tudo e
todos.
Foi ali que percebi isso, porque nunca pensei que odiaria ver os
bundões dos meus amigos como odiei naquela hora, enquanto saía da
cobertura.
— Com pressa, Alien? — Benedete e seu tom de mãe protetora me
atingiram primeiro. Seus braços se cruzaram, e assisti a ela se encostar no
capô do meu carro com os olhos afiados.
Mesmo que negasse, ela parecia querer copiar a porra de agiota que
tinha como tio. Ele cuidava dela como uma filha adotiva e, pelo visto, além
do mau exemplo, a ruiva também copiava sua síndrome de acolhimento a
órfãos com problemas.
Com as mãos nos bolsos, como uma dupla de almofadinhas deslocados,
Ryus e Brandon se juntaram a ela. Com seriedade e imponência, me
encararam. Era o poder que eu dava somente a eles, de me tratar de igual para
igual, porque conquistaram aquilo.
E era algo engraçado, porque se, anos atrás, me dissessem que o filho
de um criminoso morto faria parte do meu círculo, eu até acreditaria. Esse era
o caso do Ryus. Mas o filho do Governador de Manhattan? Eu duvidaria se
não soubesse quem Brandon era. O pior entre todos os outros e o mais
próximo a mim.
— O que tá pegando, cara? — ele perguntou com a cara inexpressiva.
— O que que tá pegando? — Ri. — O óbvio! Vocês são idiotas?
— Nós sabemos que está mantendo a garota aí. — Benedete olhou nos
meus olhos. — Mas ninguém sacou o porquê de se fechar sobre o assunto
com a gente. — Franzi as sobrancelhas, sabendo exatamente sobre o que
estava falando.
— Tá falando de que merda, ruiva?
— A mina não é um segredo, cara. A gente falou que ia te ajudar. —
Ryus se posicionou ao lado da namorada.
— Ajudem ficando longe dela. — Olhei para a Benedete. — Afinal, ela
é a minha única carta.
— Vai massacrar a garota. Ninguém seria pior nisso, logo… — Me
seguiu até a porta do carro. — É uma grande hipocrisia da sua parte dizer que
afastou a gente para manter a sua presa segura, já que o perigo é você.
— Benedete… sei onde bater, essa é a grande questão. — Semicerrei
os olhos. — Sou o dono, domino, e a corrente da coleira está nas minhas
mãos — completei. — Sei como tirar tudo dela antes que perca a capacidade
de falar.
Fui abrir a porta, mas me impediram.
Era Brandon.
— Ela está cooperando? — indagou, seus olhos fixos em mim.
— Não do jeito que eu gostaria — falei, um sorriso sinistro brincando
em meus lábios. — Já tinha percebido que ela banca a marrenta, mas todo
mundo tem um limite. — Abri a porta. — Vou cavar até encontrar o dela.
Uma vez dentro do carro, assisti a cada um assumir seus volantes.
Nós tínhamos uma linguagem só nossa.
Aquele único diálogo resolveu muita coisa. O fato de terem me deixado
em paz dizia que tinham superado a exclusão da minha parte.
Mesmo que fosse complicado, eu entendia como nós funcionávamos,
mas ao contrário disso, nada explicava toda aquela concentração na vingança.
Eu tinha todos os detalhes, todos os planos, tudo que faria com a filha do
porco, na cabeça, repassando isso a cada segundo.
Sempre coloquei muita intensidade nos meus passos. A Abernathy era
o meio para um fim e, enquanto não colaborasse, iria conhecer esse meu lado
até ceder.
Eu só pensava em apertar, arranhar e morder aquela garota. Nutria a
certeza de que, quando tudo terminasse, ela ainda sentiria minha presença há
quilômetros de distância. Seria como uma sombra, surgindo todas as vezes
que corresse em direção à luz.
Ela nunca teria paz.
Nunca.
— Só mais um… pouco… — Tentei conter o ardor no meu abdômen
enquanto me dobrava para terminar de puxar uma parte fina e longa da
estrutura de madeira da cama.
Bati nela a noite inteira, tentando manter a adrenalina para não
congelar, mas não adiantou tanto para mim. Meu corpo tremia mais do que
antes, sentia que minhas forças iam embora a cada segundo decorrido e meus
lábios estavam roxos, assim como as pontas dos dedos.
Pela manhã, a neve estava lá, colando em mim, enfeitando meus
cabelos, me deixando quase azul. No fim, ainda estava sofrendo com o frio, e
agora tinha um ombro quase deslocado, mas para alguma coisa o esforço
valeu: tinha algo longo para tentar derrubar o meu telefone dali mesmo, sem
precisar sair do raio de meio metro ao qual estava presa.
Levantei um dos pés, mirei a base da cama e dei um chute, a ripa fina
caiu comigo. Gemi quando minhas costas bateram no chão e comecei a me
sentar, zonza, quase morta, mas envolvida em esperança.
A madeira era pesada para caralho, mesmo sendo fina. Sinal de que era
boa, dizia minha mãe.
Fechei os olhos. Lembranças dela eram tudo que eu tinha e o que me
dava forças ali. Cada movimento era uma tortura, mas, com muito esforço,
consegui derrubar o telefone e comecei a puxá-lo pelo piso polido.
Com um progresso considerável, me livrei da madeira. Minhas mãos,
que já tremiam, pioraram ao me aproximar. Estendi os dedos ao máximo,
tentando alcançar o que poderia ser minha única conexão com o mundo
exterior.
— Ah… por favor…
Finalmente, meus dedos roçaram a tela fria do celular. A sensação foi
como encontrar água no deserto. Meus olhos se encheram de lágrimas
enquanto eu digitava freneticamente o número de Meg. Quando a chamada
foi atendida do outro lado, meu corpo inteiro pareceu esquentar.
— Alô? Quem está aí? — Sua voz soou distante e preocupada.
— Meg, sou eu, Brianna. Estou presa... preciso de ajuda. — Minha voz
saiu fraca e trêmula, mas a sensação de falar com alguém me trazia uma certa
onda de alívio.
— Onde você está? — Soou afobada. — Estou indo aí agora mesmo!
— exclamou do outro lado da linha e meus olhos piscaram algumas vezes.
Deus. Onde eu estava? Não fazia ideia de onde eu estava.
— Você precisa ir até a polícia e pedir para que rastreiem… — Antes
que terminasse, um estalar me chamou a atenção.
Olhei para a porta. Alguém estava chegando. Ele estava chegando.
Meu coração doeu quando ouvi Meg chamando o meu nome
repetidamente, em desespero, e apertei o botão desligar. Engoli o choro com
o corpo tremendo e enfiei o celular embaixo de mim. Fechei os olhos, a
cabeça encostada na madeira da cama e um pouco de cabelo no rosto.
Eu esperava que ele entrasse, me visse e fosse embora. Só isso.
Vá embora…
A porta se abriu. O uivo do vento batendo nas cortinas pareceu se
intensificar, e então lá estavam os seus passos.
Um.
Dois.
Três.
Compassadamente, como um maníaco. Um predador.
Ouvi quando parou diante de mim. O som do tecido de sua calça
esticando ficou mais alto quando ele se agachou.
Senti a mão quente entrar pelos meus cabelos e acomodar a minha
bochecha na palma. Era forte, imponente até no toque. Era bom, eu estava
com tanto frio.
Ele segurou os meus ombros, mantive os olhos fechados e o corpo
mole. Seus dedos tiraram os fios de cabelo do meu rosto e, por um momento,
pude sentir a intensidade do seu olhar sobre minha pele. Mas, antes que meu
corpo aproveitasse a pouca quentura que suas mãos me transmitiam, ele se
afastou e passou a caminhar para longe.
Abri um pouco os olhos quando a claridade absurda começou a
enfraquecer.
Está fechando as janelas?
Mais passos. Ele estava voltando. Fechei os olhos. Silêncio.
No ar, somente o meu corpo tremendo incontrolavelmente e sua
respiração podiam ser ouvidas.
— Não é tão frágil assim, ratinha — murmurou firme, e um arrepio
diferente cobriu a minha espinha. — Não pode morrer agora.
Ele abaixou de novo. Senti suas pernas me envolverem, me puxou para
perto.
Deus, o que ele está fazendo?
Quando menos esperei, Aaron me fez encostar em seu peito e apertou
os braços ao meu redor, deixando clara a sua intenção: aquilo era uma
tentativa de me manter viva, me esquentar. Ele não conseguiria nada se eu
sucumbisse, e sabia disso.
A vontade de empurrar aquele infeliz para longe era desumana, mas a
sensação quente envolvendo meu corpo malroupido e frio, o peito que
continha os meus espasmos, suas mãos grandes passando por minhas
costas…
Me aconcheguei nos braços do meu fantasma, do mais novo pesadelo
da minha vida. Ele me puxou um pouco mais para perto, fazendo meu
coração começar a sacudir no peito. Era como se não achasse suficiente me
ter colada nela, e eu não pensava diferente. Era calor o que o meu corpo
pedia, eu queria mais, muito mais, e foi ali que, por um fio, pude sentir que o
celular começava a escorregar por baixo das minhas pernas. Não tive tempo
de segurar, eu tremia mais do que pensava, queria seu corpo quente mais que
qualquer coisa, e com isso, assisti ao desenrolar do fim da linha para a minha
esperança.
A risada que ele soltou ecoou por todo o lugar. Um som que seria
difícil de se esquecer.
— Eu estou impressionado — falou no meu ouvido. Quando eu tentei
pegar o aparelho, ele o empurrou para longe com uma das pernas e fez meu
rosto permanecer junto ao dele, segurando-me com força, apertando minhas
bochechas. — Tirei a camisa, coloquei você no meu peito… — Seus olhos
dançaram junto aos meus. — Eu estava te dando o meu calor, ratinha. — O
dedo polegar passou pelos meus lábios, quando ele voltou a se afastar, franzi
as sobrancelhas sem pretensão alguma de o fazer.
Por tristeza? Raiva? Devido à falta de seus braços quentes ao meu
redor?
Eu não sabia.
Forcei meus olhos a acompanharem cada passo e o vi pegar o telefone
no chão. Estava desbloqueado, e, ao perceber minha primeira e única ligação
ali, eu poderia afirmar que seu suspiro foi audível por todo o bairro.
— Teve a oportunidade de chamar o seu papai, e ligou para Meg
Girard? — Seu cenho franziu. — Sério? — Ele colocou o telefone de volta
no chão. — Só tinha uma chance e a desperdiçou. — Sua sola esmagou o
meu celular com um único golpe.
— Não! — gritei ao som dos estalos.
Acabou. Lá se foi a minha chance.
— Não vou esperar que rastreiem e saqueiem você de mim. — O
desgraçado continuou: — Seu pai conseguiria te encontrar se fizesse isso,
estou errado? — Me encostei na cama em silêncio, com os olhos fechados. —
Começo a achar que ele quer mais é que você se foda. — Riu. — Mas eu vou
ter que provar a hipótese.
Sem forças, meus olhos caíram em algo pendurado em sua calça. Não
eram mais chaves, como antes, era algo…
— Gostou dela? — perguntou e tirou de lá. Era uma máscara. — Posso
colocar para você. — O elástico esticou e eu tinha um ghostface maníaco,
tatuado e sem camisa na minha frente. — Qual é o seu filme de terror
favorito, Brianna? — A frase de Scream fizeram meus pelos se arrepiarem
duas vezes mais.
Em passos lentos, ele passou para trás da cama. Senti as correntes
ficarem folgadas, pareciam estar sendo soltas de algum lugar e maiores. Mas,
quando pensei em me levantar, ele as puxou de novo.
Confirmei que eram longas, ele as trazia nas mãos. No entanto, voltei a
ter um pedaço curto para me movimentar quando o desgraçado começou a
enrolá-las pelo meu corpo, prendendo-me na estrutura da cama.
Cada volta me fazia estremecer sob metal gelado, ele circulou minhas
coxas passando pelo meio das pernas, sobre a virilha, e reforçou as voltas em
meus pulsos, elevando-os para cima. As correntes passaram por dois orifícios
circulares da moldura da cama, e tendo certeza de que eu estava apertada o
suficiente, seus passos o levaram até uma cadeira a poucos passos de mim.
Eu não sabia distinguir os diferentes sentimentos que me tomavam
quando via o modo como segurava as pontas das correntes nas mãos,
ofegante e mascarado, enquanto eu sentia cada parte sensível da minha pele
sendo castigada pelo metal.
— Vou fazer algumas perguntas. — Começou a puxar as correntes de
onde estava e meus braços seguiram para cima conforme elas iam para ele,
enrolando-se na parte vazada da cama. — Acho bom me responder.
Ele balançou um pouco minhas mãos, movimentando as corrente. Eu
podia enxergar seu sorriso por baixo da máscara antes que a voz grossa
abafada reverberasse pelo lugar.
— Já que diz não saber onde ele está, vamos pensar em outros pontos
importantes… acho que você pode ter visto mais alguém com ele, ouviu uma
conversa, talvez? Um telefonema?
— Não sei de nada… — murmurei, meus olhos nos dele, suplicando
em silêncio. Suas mãos puxaram mais das correntes, me fazendo encostar na
madeira pesada da cama, com o punho latejando. Minhas pernas já se uniam,
sendo forçadas a dobrar. — Não ouvi nada, juro… — Ele parou.
Não disse uma palavra. Apenas ficou me observando, sua máscara
parecia impenetrável. Era como se estivesse pensando em como intensificar a
dor, a agonia.
Naquele momento, uma faísca de coragem surgiu dentro de mim.
— Você acha que essa máscara vai te esconder? — Soou mais firme do
que eu esperava. — O que você está tentando esconder? — Puxei as
correntes. — Sei que não quer fazer isso… — Era uma tentativa.
Meio merda, mas era minha única opção.
Ele permaneceu em silêncio por um momento, seus olhos expressando
algo indecifrável por trás do tecido fino da máscara.
— Você não me conhece, vadia — murmurou com a voz baixa. — E
nunca vai me conhecer completamente, ninguém foi capaz até hoje. — Com
isso, ele puxou as correntes de uma só vez.
Senti meus punhos serem apertados, as minhas mãos formigaram,
pareciam querer explodir. A emenda me obrigou a erguer as coxas, eu podia
sentir minha virilha queimando, o ferro fazia uma pressão inigualável nas
bordas da minha calcinha agora completamente à mostra. Gemi e me
contorci, tentando fazer o sangue voltar a circular, mas era em vão.
Eu comecei a entrar em desespero quando olhei para cima e vi meus
punhos sendo espremidos, envoltos pelo ferro, meu corpo sendo forçado a
obedecer às suas rédeas, mas quando olhei para ele, sentado na cadeira com
aquela máscara, com total controle sobre mim, eram minhas pernas que
esquentavam, tremiam, me faziam parecer uma desgraçada que gemia.
— Mais apertado? — A voz saiu abafada e seus dedos hábeis fizeram
com que só as correntes nas minhas pernas se movessem. Ele as abriu um
pouco mais e começou a fazê-las subir. — Não fique excitada, eu vou matar
você.
— Já chega… — exclamei. Ele parecia não ouvir.
Com mais um puxão, senti as correntes chegarem ao limite, unindo-se
em cima da minha calcinha, meus grandes lábios latejavam enquanto eu
buscava por ar.
— Oh… você quer que eu pare? — brincou, se levantando com as
pontas das correntes envolvidas nas mãos. Seus dedos deixaram um pouco
escapar, me dando uma trégua, e eu choraminguei. — Quer que eu pare,
ratinha? — Puxou mais uma vez e minha voz já não saía mais. — Você não
me disse nada sobre o seu papai ainda e já quer que eu pare, hum?
Mais forte. O aperto parecia cada vez mais forte, e ele estava perto, de
pé, assistindo enquanto eu perdia a cor.
Depois de alguns segundos, constatei que Aaron poderia me manter ali
pelo tempo que quisesse. Eu já não sentia o fluxo da minha corrente
sanguínea. Com certeza iria apagar, mas percebendo isso, quando eu já estava
quase desmaiando, ele soldou as correntes. Meu corpo caiu para frente e
tentei reagir.
Força nas mãos. Fixei as duas no chão com um impulso. Impedi uma
queda de cara ao mesmo tempo em que sentia o guinchar do sangue voltando
a correr por minhas veias como fogo, ardendo.
Ele caminhou até mim e abaixou devagar. Sua mão tirando os fios de
cabelo do meu rosto suado.
— Isso é tudo que você vai ter se continuar lutando.
Olhei em seus olhos, exausta, o tecido fino da máscara me permitia vê-
los, mas eu queria mais.
Ergui a mão com dificuldade e segurei a base da máscara.
Ele deixou.
Comecei a levantá-la livrando seus lábios, nariz e então olhos, do
disfarce para só então sussurrar, cara a cara. Olho no olho.
— Eu vou te fazer pagar — soprei, quase sem forças.
Ele segurou o meu braço em um piscar de olhos e eu engoli outro
gemido, quando o senti apertar minha pele levemente.
— Eu vou devorar você primeiro. — Sua língua passou pela minha
orelha e não consegui conter o franzir das sobrancelhas. — Ratinha…

Seguir para mais uma aula era o mesmo que andar em direção à tortura.
Essa seria a definição para quem quer que me perguntasse. Mas nem sempre
foi assim, confesso.
Contrário do que meu irmão achava, não frequentava a universidade
para ganhar a aprovação de Emília Walker, afinal nem se eu quisesse teria
aquilo. Era a Libert University, fundada por bandidos, comandada pelos seus
descendentes. Frequentava o lugar, porque acreditei em seguir alguma coisa
no início.
Mesmo em um ponto de elite, que decaiu nos últimos anos e, no fim, só
servia para conter os piores, formar criminosos, o fato era que a maioria não
pensava apenas em destruição. Aquele também era o lugar para quem estava
indeciso ou queria se munir de conhecimento de alguma forma para seus fins
pessoais.
A princípio, eu gostava do que estudava, depois passei a almejar
conhecer para comandar, mas agora? Agora, só tinha um motivo para estar
ali, e eu já a tinha amarrada em um lugar seguro e distante.
Nada era mais importante naquela joça. Claro, com exceção da minha
soberania.
O lugar era dividido por quadrantes, literalmente, e em cada um, uma
"gangue" diferente tomava seu troninho de merda. Não passavam de grupos
de filhos da mãe que se achavam no direito de ter alguma coisa, quando na
real tudo era comandado por mim.
E isso era refletido no movimento, que permanecia em sua plena
normalidade. Bastava passar diante dos ditos líderes para ouvir nada mais do
que silêncio. Os corredores eram repletos de olhares assustados que recuavam
quando me viam. Regalias não solicitadas, e bocetas acenando pelos quatro
cantos do campus.
A autoridade me fazia ficar excitado de tão prazerosa. Ter onde pisar,
em quem pisar e, com um simples olhar, ter quem limpasse o sangue, depois
que eu o derramasse pelo chão, fazia parte do meu dossiê. Chamava-se
poderio e corria por minhas veias. Era o meu tipo sanguíneo.
Ninguém batia de frente comigo, e isso me entregava carta branca para
qualquer coisa ali dentro, principalmente quando se dizia respeito aos meus
assuntos.
— Meg… — Me aproximei devagar. Ao som da minha voz, a garota
quase se enfiou dentro do próprio armário. — Parece que você está em um
estado de desespero. Algum problema? — Eu adorava falar assim quando
sentia o cheiro do medo nas pessoas.
Ela olhou para mim com olhos suplicantes.
— Só estou preocupada… — Engoliu. — É a minha colega de quarto...
— Sorri de lado, estava me divertindo com o pânico dela. Só não era melhor
que o da ratinha.
— Então o que você acha que deve fazer? Ir até a polícia? Talvez seja
uma boa… Eles adoram lidar com casos perdidos como esse. — Ela me
encarou, os olhos se estreitando com desconfiança e apreensão. Ergui as
mãos como quem fala por falar. — Talvez, se você for até a polícia, o pai
dela apareça. Quem sabe? Talvez, ele finalmente encontre uma razão para se
importar.
A expressão da vadia se transformou de confusão para compreensão,
misturada a um medo palpável.
— Você... você quer que eu faça isso! Quer chamar a atenção do pai
dela. — sussurrou baixo. — Está com ela, não é?
Minha risada foi áspera, ecoando pelos corredores vazios.
— É mais inteligente do que parece. Achei que demoraria um pouco
mais para sacar. — Abaixei o tom de voz. — Parece que você finalmente tem
uma razão para ainda estar andando. Faça seu trabalho e, quem sabe, eu até
considere não brincar com a sua vida também.
Me afastei, passando uma linha em mais uma investida. Àquela altura,
ele já sabia, mas pelo visto estava pagando para ver até onde eu seria capaz
de ir.
A única certeza que eu tinha era a que vinha dos meus demônios, e eles
berravam sobre a perda que o delegado de merda teria se não mostrasse a
cara. Isso aconteceria mais cedo do que tarde.
Parei no estacionamento particular da cobertura, saí do carro e bati a
porta do carro com força, mirando a fachada com os olhos semicerrados.
Passaram cinco dias.
Cinco dias e o infeliz não apareceu, mesmo que a notícia tenha corrido
pelos quatro cantos de Nova Iorque como um cavalo preto, mesmo que
ninguém soubesse da garota.
Cinco dias e ela não abriu a boca, mesmo não tendo nada a que segurar,
sentindo fome diante das migalhas que eu lhe dava, sede com o mínimo de
água para sobreviver.
Olhei para o céu, as nuvens densas cooperavam para que o sangue
borbulhasse em minhas veias, decepando o oxigênio e me entregando
moléculas de raiva. O componente vital para a minha sobrevivência.
Essencial para que eu respirasse.
Enquanto a avenida abastada pela classe alta cheirava a dólar, caminhei
até a porta sentindo o fedor de pneu queimado entranhado às narinas, a
máscara pendurada na calça, como de costume depois das corridas, e minha
atípica presença solitária por ali, para mais do que apenas uma olhada na
prisioneira. Eu a faria falar.
A bandeja de comida e a garrafa de água tinham acompanhamento. A
ratinha só ergueria o cloche mediante pagamento. Informações. Precisas,
verdadeiras e sem enrolação. Só se cooperasse, conseguiria evitar que
dissecasse por longos meses naquele chão gélido.
Assim que entrei, seus olhos agarraram minhas mãos. Era o que ela
movia, como se apalpasse à distância, salivando. Garganta seca, sem água
suficiente por dias, clamando por uma gota, lambendo o próprio corpo
molhado. As roupas rasgadas me davam a visão do sutiã vermelho úmido, o
corpo esguio tremia levemente, o quarto estava um pouco mais quente com as
janelas fechadas, seus cabelos desgrenhados, a pele seca e os olhos mortos
não mudava o fato de que ela parecia ser feita de porcelana; sem defeito
algum.
— Booking — falei, antes de colocar a água e a bandeja sobre a peça
de madeira atrás de mim. — Os salgadinhos de lá são ótimos. — Ela molhou
os lábios.
— Eu tô morrendo de fome e…
— Sede, eu sei. — Cruzei os braços. — Está sem banho por cinco dias
também, e olha… você não cheira a um animal morto, meus parabéns. — Ri
e ela franziu o cenho. Como uma bonequinha expressiva.
Seus olhos não saiam da comida e água, então me coloquei na frente
delas. Percebi as narinas dilatadas. Ela encarou para o meu abdômen e
começou a subir, à medida que eu subia a máscara de volta para o rosto. O
olhar mudou e, como da última vez, suas pernas apertaram um pouco mais. O
pequeno vão se abriu entre os lábios.
— Percebi que fica excitada quando uso isso — pontuei, sentindo o
suor que dava viço ao meu abdômen. — Só vai me ver assim agora.
Ela se recostou na madeira da cama, seus olhos oblíquos cintilando. Era
difícil decifrar se era desejo de me morder para se alimentar, saciar a raiva ou
outra coisa.
— Uma resposta e algo para comer ou água para beber. Você escolhe.
— Sorri. — Onde ele está? — De tanto pressionar essa tecla, já parecia
querer se soltar do teclado da mente de Brianna. Percebi, porque seu corpo
amoleceu um pouco mais.
— Eu não… — Fechou os olhos, uma lágrima traçou um fino percurso
pela bochecha.
— Não sabe — falei, sério. — O seu pai conversou com algu…
— O antigo delegado do Brooklyn, o que será exonerado — respondeu,
e a linha da minha testa começou a sumir. Eis uma informação relevante.
— Sobre o que conversaram? — Eu queria mais.
— Não sei… — respondeu. — Só vi os dois juntos… — Ergui a
garrafa e seus olhos abriram um pouco mais. — Juro…
Soou convincente diante urgência no tom de voz.
— Foi difícil? — Comecei a me aproximar, a água reluziu em seus
olhos. — Com sede? Hum?
— Só um pouco, por favor… — suplicou. Abaixei a mão e passei as
pontas dos dedos em sua bochecha, a respiração ofegante fazia minha pele
formigar. Era como cócegas.
Abri a garrafa, seus olhos hipnotizados em meus dedos, seguindo o
movimento circular, engolindo a pouca saliva. Ergui a mão, os olhinhos dela
quase saltaram para fora. Fechei os meus.
Em instantes, a água cristalina escorreu pelo meu peito. Senti o toque
gelado e líquido que ela almejava ter em sua garganta desenhar na minha
pele, percorrendo cada músculo, respingando em minha calça.
Gemeu. Ela gemeu pelo desperdício, como a planta seca quando a
primeira gota do orvalho cai a centímetros de distância de sua estirpe na
manhã de mais um dia escaldante.
Dei mais um passo em sua direção, as correntes em seus punhos
balançaram.
— Se quiser matar a sede… — Coloquei meu abdômen a centímetros
de seu rosto. — Use a língua, ratinha.
— Você é um idiota! — Percebi que sua pele tremeu mais que o
normal. As sobrancelhas franziram mais, formando um vinco perfeito na testa
lisa.
Eu a irritei.
— Um idiota pronto para matar a sua sede, enquanto tem boa
vontade…
— Chega mais perto que te mostro! — Evidenciou os dentes e meus
dedos inclinaram a garrafa. Derramei um pouco mais de água.
Silêncio.
Ofegos.
Eu sentia sua sede.
Por conta própria, começou a trazer o rosto para perto. Sua respiração
soprou quente contra a mim enquanto ela mirava uma gota generosa no vão
de um dos meus gomos.
Seus lábios tocaram na minha pele. A pouca força que usou para
pressioná-los em mim fez com que algumas gotas de água se juntassem e
sublinhassem meu músculo, formando o que lhe serviria um gole generoso
em um dos vãos.
A água estacionou em seus lábios secos e ela a engoliu como o último
gole do melhor vinho existente.
Olhos fechados de alívio.
Eu via o alívio. Via que queria mais. Buscaria por mais.
Sua boca começou a chupar minha pele, procurando por qualquer
vestígio que pudesse matar a sede, me puxando para perto.
— Oh… você quer mais? — Estendi a mão e agarrei seus cabelos. Eu
queria aqueles olhos em mim. — Quer mais? — refiz a pergunta, firme.
— Sim, por favor… — Soou como música para os meus ouvidos.
A garrafa girou entre meus dedos e parou com a boca para baixo, me
banhando, escorregando de cima. Ela abria os lábios com os olhos fechados,
as mãos em minha calça enquanto engolia cada gota que conseguia aparar ali,
colada em mim.
Suas unhas me arranhavam, a língua fria serpenteava por mim sem
controle algum de seus impulsos. Ela queria mais, e eu não tinha certeza se
falávamos sobre água agora.
Me afastei devagar e puxei seu cabelo para trás. Ela lambia os lábios
quando seus olhos miraram o que havia restado na embalagem plástica, e
como uma boa quantidade caiu fora de sua boca pequena, ela ainda tinha
sede.
— Mais? — Balançou a cabeça, afirmando, e coloquei o polegar em
seus lábios. Adorava fazer aquilo. Ela tinha a boca macia, estando molhada
então… — Implore — sussurrei pela máscara e seus olhos se estreitaram.
A visão de cima me deixava animado de um jeito que ela não fazia
ideia. Uma súplica faria a minha noite e eu mataria sua sede de uma vez.
— Por favor, me dê mais…
— Meu nome — impus, por saber que seria um sacrifício. Para ela, eu
era um filhote de meliante, aspirante a criminoso. — Seja uma boa garota e
me chame pelo nome.
— Aaron — falou, de uma vez. — Por favor…
Abaixei, fiz da minha mão uma concha e derramei mais um pouco lá. A
garota não esperou ao menos que eu levasse até seus lábios, quase engoliu
minha palma, como um animalzinho sedento. Estendi os últimos quatro
dedos que restavam na garrafa e pisquei para ver que ela a tinha vazia entre
as mãos. Meus dedos acariciaram seu cabelo, sorri enquanto ela lambia a
boca, suspirando.
— Boa menina. — Olhou em meus olhos através da máscara assim que
falei, como uma presa indecisa, sem saber se corre ou se entrega para morrer.
Eu particularmente adoraria uma caçada.
Percebi que seus lábios se curvaram devagar e as duas pontas me
mostravam um sorriso fino. Mal tive tempo para semicerrar os olhos e a
vadia cuspiu o último gole de água que mantinha na boca na minha cara.
Puxei a máscara, agarrei seu rosto e o trouxe até o meu enquanto ela
relutava.
— Vai se foder! — rosnou.
— Depois de você, Abernathy.
Meu dispositivo tocou no exato momento. Era o fone especial que me
mantinha em contato com os babacas. Levei-o para a orelha sob seu olhar
atento e me afastei devagar, reconhecendo a voz de Brandon.
— Estão correndo? — perguntei.
Aqueles fones só eram usados em emergência ou quando estávamos
correndo, para nos comunicar. Afinal, tirar os outros carros da pista exigia
uma certa rede de olhos e ouvidos em variadas posições.
— Chegando na pista livre, vamos finalizar uma aposta com a
Benedete — respondeu, a voz cortando por causa da velocidade que o
embuste investia na lata dele.
— Apareço aí daqui uns minutos.
— Aaron! — Pisquei uma vez.
Vinha dela. Brianna.
Sua voz estava mais firme, não podia negar, mas não foi o que me fez
parar. Foi por a ouvir me chamar pelo nome, sem que estivesse esperando.
Isso, sim, me deixou um tanto quanto surpreendido.
— Quando vou poder ir embora? — perguntou, e me virei para olhar
em sua direção. — Por favor, me deixa ir embora.
Saquei o plano.
— Tá com quem aí, cara? — Brandon questionou.
— Cuidando de alguns assuntos — respondi sem dar evidências de
quem estava comigo ao telefone.
— Até quando vai me manter aqui? O que mais você quer de mim? —
gritou e Brandon ficou em silêncio. Não era só ele que podia nos escutar,
Ryus e Benedete também. Nossa linha era compartilhada e, naquele
momento, passou a compartilhar silêncio.
— Me deem cinco minutos. — Desliguei a conexão e caminhei até ela.
— O que foi isso? Acha mesmo que vai conseguir algum tipo de ajuda? Pelo
visto, não faz ideia de com quem eu estava falando.
— Qualquer um deve ser melhor que você — cuspiu as palavras.
— Você acha? — Entreguei um sorriso frio.
— Eu tenho certeza, desgraçado, infeliz! Me solta! — Começou a se
debater, de novo.
— Então foi só matar a sede e a rebeldia voltou? — Minhas pálpebras
tremeram. Sinal de que a paciência estava indo embora, e a vadia continuava
se batendo, sacudindo correntes…
— Mandei me soltar!
Dei um pulo para perto dela. Suas costas bateram na estrutura de
madeira. Apertei seu rosto com a mão. Olhos nos olhos.
— Melhor calar a boca, filhinha abandonada. — A marra definhou
diante das minhas palavras. — Cadê o seu papai que não veio te buscar,
hum? Sequer mandou os amiguinhos fardados. Como é um covarde, era o
mínimo a se esperar. Ele te deixou aqui, para morrer, e você prefere me
atazanar a cooperar.
— Meu pai sabe que eu sei me cuidar! — falou com dificuldade, a boca
presa por meus dedos.
— Por isso deixou você sozinha na universidade mais perigosa de Nova
Iorque? Porque sabe se cuidar? Onde você está agora, ratinha? Segura?
Confortável? Que belo cuidado… — Seus olhos latejavam, me mataria com
eles se pudesse. — Mas não foi culpa sua, foi algo inevitável… — Franzi as
sobrancelhas junto às dela. — Nem se você fosse para o inferno estaria longe
disso. Eu te encontraria e pegaria. Eu te teria. — Sorri e me afastei devagar.
— Ainda acredito que, mais cedo ou mais tarde, ele vai aparecer. Afinal… —
Meus passos me levaram à maçaneta da porta. — Seu pai se importa com
você. — Ela me encarou com uma frieza indecifrável. — Ou estou enganado?
Os poucos raios de sol banhavam minha pele, como se fosse nada,
enquanto eu marchava até a casinha do porco exonerado. Empurrei a porta
sem bater, para ver o lugar desgastado e sem cor, que cheirava a papel velho
e café amargo.
Jamar estava lá, encurvado pela idade e pelas escolhas duvidosas.
Olhou para mim com os olhos inchados. O velho burro ainda trabalhava,
mesmo não tendo obrigação alguma, sem ao menos receber por aquilo.
Era como se tivesse uma dívida impagável que crescia todos as noites
em que colocava a cabeça no travesseiro para tentar descansar. Ele parecia
nunca ter dormido direito.
— Achei que estaria apodrecendo a essa altura, neste lugar — falei e
passei os dedos pelo nariz. A poeira cintilava pelo ar como as minúsculas
lâminas de água congelada do inverno.
— Não como os que estão nas celas, acredite — murmurou, me
arrancando uma risada que reverberava ameaças não ditas. — O que veio
fazer aqui, rapaz?
Levei a mão por baixo de sua mesa velha de madeira, sendo seguido
por seu olhar cauteloso, e agarrei uma garrafa de vinho. Para estar ali o dia
todo, aquele cabrito deveria mesmo ter álcool. A rolha estava intacta.
Arranquei com o dente e tomei um gole generoso.
As bolhas dançaram por minha língua, doce e ácido. Leve e gelado,
acionando papilas que nem sabia que ainda existiam ali. Fazia um tempo que
eu não tomava vinho. Vai ver a sede da ratinha me fez ter sede também,
mesmo que inconscientemente.
— Achei que encontraria o novo verme que substituirá você por aqui,
no estábulo do Brooklyn. — Arranhei a garganta quando o vinho me deu a
sensação de rasgo à pele, empurrando o nó que se mantinha ali e roubava
minha atenção, para que não me concentrasse em esganar aquele velho. — A
gente precisa trocar uma ideia. — Cruzei os braços. — Mas soube que ele
fugiu, e você foi o último a ser visto com ele. — O velho semicerrou os olhos
com a boca fina entreaberta.
Ele se sentou e apontou para a cadeira, para que eu fizesse o mesmo.
Continuei de pé. Braços cruzados e olhos atentos em seus movimentos.
Seu suspirou silvou como o planar do vento pela janela. Olhou as
próprias mãos em cima da mesa e se voltou para mim.
— Sabe quando foi que decidi ser delegado, Walker? — Os ossos que
chamava de dedos alcançaram chaleira e xícara. — Este velho que você vê,
tinha dez anos e assistia a uma série de TV todos os dias pela manhã quando
voltava da escola. — O líquido quente passou a preencher o recipiente. — Se
chamava “Os donos da lei”. Era para crianças, e ensinava a como se portar
perante autoridades. — Encostou-se na poltrona, a xícara branca nos dedos.
— Meus olhos viam aquilo com um certo encantamento e não importava
quantas vezes repetissem a mesma frase no fim de todo episódio. Sempre
tinha significado para mim. — Olhou para cima. — Os donos da lei —
soprou, como um infeliz deprimido.
— Corte o discurso de merda! Não vim para ouvir suas historinhas —
pontuei, mas ele parecia estar viajando.
— Cresci, segui a carreira e estou aqui hoje. — Olhou para mim. —
Sabe a única certeza que eu tenho hoje em dia, Aaron Walker?— A porcelana
intocada foi posta sobre a mesa. — A de que vivi uma grande mentira quando
criança. Os donos da lei são marginais. Não se pode fazer justiça como ela é,
nunca se pôde. A convicção contrária a isso não passa de uma farsa. Sou a
prova viva disso. — Estalou a língua. — Coopero com a gangue do seu irmão
desde que fui encaminhado para o Brooklyn. Fui forçado a isso, a fechar os
olhos, fingir que não os vejo. Me fazer de cego, surdo e mudo. Esses são os
atributos agora, são as qualidades, habilidades.
— Foda-se, Jamar! Eu não vim até aqui…
— E sabe quem me obrigou a fazer isso? — me interrompeu. Queria
dar continuidade ao relatório, à história do seu próprio fracasso. — Não
foram os bandidos. Foi o nosso próprio sistema. — Olhou nos meus olhos. —
O Delegado Abernathy matou o peão que mantinha essa dinâmica em
equilíbrio, seu irmão. — Pegou a xícara. — Se eu soubesse de alguma
informação te diria, afinal, com vocês, é isso ou a morte, mas não, não sei. —
Encarei-o, minha expressão dura como aço. — Em nossa última conversa, a
única coisa que saiu da minha boca foram palavras similares a essas, um
breve resumo do que ele teria, caso conseguisse se manter vivo, seguido do
manto que eu lhe passaria para tomar o meu lugar e um genuíno "muito boa
sorte".
— Então foi contar historinhas ao colega?
— Fui informá-lo sobre como as coisas funcionam. Mas, acredite, não
foi como se ele tivesse aceitado tão bem, sequer ouviu tudo.
— Aconselhou seu amigo a fugir, Jamar? Por acaso sabe onde ele se
enfiou?
— Digo não a todas as suas perguntas. — Tomou um gole do maldito
chá, finalmente. — Ele se escondeu, porque sabia que seria um homem
morto. Pelo sistema ou pelos vingadores de John Walker. — Olhou para
mim. — Vejo que você tomou a liderança do rancor coletivo.
— Não só tomei como já estou me movendo.
— Percebo, sim… afinal, chegou até mim, mesmo que os Skulls já
tenham me visitado para gentilmente me perguntar sobre Abernathy —
pontuou. — Eles só não me disseram terem sabido que estive com Magnus.
Como soube?
Ri. Ele estava conseguindo me tirar a paciência. A criatura interna,
submetida às minhas correntes, rugia para mostrar as garras e cartas do meu
jogo.
— Que tal chutar? Pense em um metro e sessenta e cinco, cabelos
escuros, olhos amendoados… — Quando percebi sua expressão perdendo os
traços, me aproximei, sorrindo. — Se conseguir, envie um recado ao
"grande" Abernathy. Diga a ele que para cada dia que não aparecer, a filha
perde um dedo. — O homem estreitou os olhos. — É engraçado que, pela sua
cara, parece surpreso. O que foi? Achou que eu não encontraria ela? Na
Libert University? — caçoei, diante de sua apreensão disfarçada de inércia.
A sala ficou tensa, carregada com a gravidade das minhas palavras. Saí
por onde entrei, ciente de que Jamar iria tentar intervir em meus planos, mas
fracassaria, e quando acontecesse, havia grandes chances de se comunicar
com meu alvo outra vez.
Acenei furtivamente para Rufos, o designado a liderar os homens que
estavam à espreita. Se Jamar desse algum sinal de que falava com Abernathy,
seria pego.
Arrematei mais uma investida. Uma das inúmeras que fechavam o
círculo do infeliz. Mas que só funcionaria se ele se importasse com a filha.
E disso, eu estava começando a duvidar.
Alguns meses antes
— Pai, trouxe seu café. — Acomodei o capuccino na ponta da mesa
polida de madeira. Meu dorso enxugava o suor da testa pela corrida. Ele não
gostava de atrasos, e eu tentava dar o meu máximo para fazer tudo direitinho.
No fim, não recebia ao menos um “obrigado”.
No entanto, o fato que me fazia questionar a veracidade do pedido se
apresentava a mim pela poltrona vazia. Não havia ninguém lá. O estalo do
relógio contando os segundos sussurrava o aviso de que eu deveria sair dali.
Era estritamente proibido estar no escritório do delegado sem sua
presença. Eu sabia, mas resolvi arriscar minha cabeça, só daquela vez. Nunca
tive acesso a nada relacionado a sua profissão. Nada relacionado a ele, na
verdade.
Considerava um milagre ter recebido aquele pedido, por ele deixar tão
claro quanto a luz do sol que odiava quando eu ia à delegacia, seja em qual
cidade estivéssemos.
Talvez ele quisesse me dizer alguma coisa, e descartando a
possibilidade de outra mudança, só restava uma coisa: minha mãe.
Como um aviso bom do Universo, reparei que existia uma fotografia
dela em uma pasta. Eu sabia o que era. O que significava. Estava bem na
minha frente, ao alcance das minhas mãos. Bastava um passo.
Suspirei, nervosa. Meu pai contou a verdade sobre ela ter saído de casa
por escolha própria, mas eu não entendia o porquê de nunca ter entrado em
contato comigo desde então, por isso ele abriu uma investigação quando
percebeu que ela havia, de fato, desaparecido. Minha insistência o venceu, fiz
bom uso dela quando podia e agradecia a mim mesma por isso.
A investigação durou meses sem respostas, mas finalmente eu o via
remexendo aquelas coisas de novo.
Além da etiqueta que nomeava os dados confidenciais da investigação
de Elizabeth Abernathy, percebi que alguns documentos também estavam
espalhados sobre a mesa. Era hora de usar a cabeça.
Comecei a fotografar folha por folha. Se fossem pistas, eu as
investigaria também, sozinha, sem que ele soubesse. Faria o que mamãe
sempre instigou em mim, a ruptura da normalidade de uma jovem que se via
presa pelo resto da vida. Ela me ensinou que deveria voar. Para isso, tinha
asas.
Eu o faria. Por ela. Assim como aprendi a atirar por mim, e meu pai só
soube quando acertei a perna de um tarado na rua.
Garota impertinente, ele dizia quando me via trilhar os caminhos
proibidos para mim. Eu deixava meu chapéu de capitã de lado, esmorecida.
Você é brilhante!, ela dizia quando eu erguia o remo do nosso navio
imaginário e me intitulava capitã, aos cinco anos de idade, fazendo escolhas,
mandando nos tripulantes.
— Vamos lá, mãe… — Voltei minha atenção às folhas. As letras
minúsculas sendo captadas pela minha câmera. E, então, uma chave.
Uma chave?
Em cima da pasta. Escorregou quando a abri, mas era tão estranha que
me chamou atenção mesmo de lado. Como um objeto amaldiçoado,
procurando os dedos do desatento. Uma estrela de seis pontas esculpida em
sua base. Era tetra, quatro segredos em seus dentes.
Isso não pertencia à minha mãe.
O que diabos estava fazendo ali?
— E você está remexendo nas minhas coisas de novo. — Meu pai
surgiu, me fazendo pular.
— Só vim trazer o café.
— Mandei deixar na recepção, não na minha sala! — Sua mão bateu
forte contra a mesa, por cima dos papéis.
— Procurando pela mãe?
— Organizando documentos antigos — falou e engoli em seco, lutando
contra a raiva.
— Nós vamos ficar quanto tempo até pular em outro galho? —
perguntei firme, segurando o celular contra o peito, me referindo ao seu
deslocamento constante entre as delegacias da vida.
— Pergunte ao diretor geral. Se ele olhar para a sua cara, considere
uma vitória.
Diante daquilo, me retirei. Não valia a pena debater com o meu pai e,
se insistisse, com certeza iria ser humilhada ou pior.
Cansei de esconder os machucados pelo corpo causados por uma
simples pergunta. E cansei de me mostrar forte, mesmo depois do primeiro
golpe, era o que ele precisava para continuar.

Dias atuais
A chave.
Pisquei algumas vezes. Sirenes, buzinas, barulhos ambientes, todos
assobiavam desde o cume da cidade, como um aviso de que tudo estava em
movimento, menos eu.
O sono me tomava. Dias mal dormidos, fome e sede. Eu já via vultos
furtivos, a tontura era parte da rotina. Fechei os olhos.
A chave…
Senti meu cérebro pinicar. Precisava me levantar e tentar fazer alguma
coisa. Mas o quê? Meu corpo se via preso em nuances vivas todas as vezes
que eu apagava. Era como agarrar uma passagem para outra realidade.
Uma realidade onde tudo de ruim me acometia, como algo
predestinado.
— Levanta, Brianna! Ficou acordada até que horas? — meu pai
berrou, ao meu lado.
Minha cama com o cobertor cor-de-rosa mesclava entre uma bagunça e
algo impecável.
— Eu não dormi, não consegui… tinha uma chave. — Franzi o cenho.
— Yume não estará aqui para sempre. Faça alguma coisa que seja útil
e ao menos arrume essa joça de quarto!
Pisquei.
Em meio segundo, estávamos na sala.
O carpete alvo sob meus pés pequenos reluzia com gotas de sangue
vermelho. Meu nariz ardia.
— Eu mandei limpar o sangue! Quer que eu acerte seu nariz de novo?
— Não pai, vou limpar! — Minha voz tremeu, me abaixei.
Tudo girou, de novo.
Era a casa de Mavi. Daquela vez, o cenário me deixou um pouco mais
confortável.
Até que uma mão fria tocou em meu ombro.
— Bri, ele quer falar com você. — Mavila estendeu o telefone na
minha direção. Inerte. Séria.
— Quem é?
— Ele disse que vai matar você.
— Ele? — Não me respondeu mais. Dei alguns passos em sua direção.
— Eu preciso sair daqui, Mavi, mas antes… — Olhei nos olhos dela. — A
chave. — Estendi a mão.
— Qual chave? — Piscou algumas vezes, a franjinha engraçada que
sua mãe fazia em seu cabelo se mexeu junto dos cílios. — Você não precisa
de chaves para abrir portas. Você morreu, Brianna.
Abri os olhos.
Eu estava sufocando até perceber que era só mais um pesadelo.
Só um pesadelo…
Contrário do que o imbecil dizia, ele não aparecia em nenhum. As
únicas coisas que eu via eram inúmeras faces do monstro que me fez crescer
debaixo de suas asas, e a chave.
A maldita chave da qual me lembrei de onde tinha visto e que não saía
da minha cabeça, enquanto tentava relacioná-la a Aaron Walker e sua cópia
quase idêntica, no molho que ele tinha pendurado no cós da calça.
Me recostei de novo. A pele tremendo. Conseguir descansar naquele
chão duro, sem sentir os braços, parecia ser impossível, mas o cansaço me
vencia de novo e de novo.
A cada cinco minutos.
Meu olhos pesaram. Não queria, mas estavam tentando fechar. Eu não
resistiria, sabia e provei disso. Era o cansaço vencendo minha vontade, meu
medo.
Alguns minutos se passaram. Sem pesadelos.
Minha carne latejava suplicando para que tivesse mais alguns minutos
com os olhos fechados, mas eu os abri tão rápido quanto a força da porta
sendo arrombada.
Meu coração deu um salto, comecei a ter uma crise de pânico.
— Brianna? — Uma voz soou estranha em meio aos meus gritos.
Meus olhos se arregalaram quando quem quer que fosse apareceu. Era
o senhor Jamar, o antigo delegado do Brooklyn.
— Sou eu! — Ele abaixou a arma que mantinha em uma mira de linha
reta e se aproximou de mim, jogando um tecido denso sobre meus ombros. —
Você vai ficar bem. — Seus olhos travavam uma dança entre me inspecionar
e avaliar as correntes.
Comecei a regular a respiração com um pouco de dificuldade, minha
garganta arranhava a cada mísera tentativa de engolir saliva. O delegado
Jamar trabalhou depressa, em poucos segundos minhas mãos estavam livres e
permiti meu tronco cair para frente, mole, sem forças para me manter firme.
— Vamos sair daqui. — Ele segurou meus braços e começou a me
levantar. — Você precisa vir comigo.
— Eu não vou — sussurrei e ele parou no caminho, seu rosto se virou
para me olhar com calma. Continuei: — Eu tenho que voltar para a
universidade.
O homem me encarou como se eu fosse uma louca.
E eu era. Mas era uma louca que faria tudo para encontrar a mãe.
A chave me daria respostas. O Alien me daria respostas. Existia alguma
relação. Não era pura coincidência, não podia ser, e eu precisava descobrir
mais.
— Preciso descobrir qual a relação — respondi. — Vou ficar, sou a
capitã dessa merda de navio — completei e o homem franziu o cenho. Meus
olhos se reviraram sozinhos, me forçando a desligar.
— Pode fazer o que quiser depois, mas agora tem que vir comigo. Foi
sorte ter te encontrado tão rápido. Sermos pegos não é uma opção — falou,
olhando em meus olhos e não tive tempo para debater, porque tudo ficou
escuro.
Apaguei.
Só voltei a acordar depois do que pareceu ser séculos, no sofá em uma
casa grande. Era dia e parecia ser a manhã fria de uma quinta-feira qualquer.
Minha mente girava, meu corpo estava repleto de suor. Não fazia ideia
de que lugar era aquele até ver o velho arrastando os pés até mim e me
lembrar, mesmo que quase vagamente, do que havia acontecido.
O tempo em que passei oscilando entre o mundo real e os delírios de
exaustão me levaram a perguntar qual era a data, e quando descobri que
aquele desgraçado me manteve presa por duas semanas, quase voltei a
desmaiar.
Devagar, o homem me acomodou sentada e buscou roupas —
masculinas —, água e comida. Me viu atacar tudo como um monstrinho
faminto.
— Espero que não tenha achado que eu estava delirando — falei
enquanto mastigava um pedaço de lasanha à bolonhesa. — Vou ficar na
universidade. — Quase engoli o copo junto da água fresca, para obrigar a
comida a se acomodar no estômago dolorido.
— Quem sou eu para dizer o contrário? — questionou. — Se quer
voltar, fique à vontade. — Se abaixou para olhar em meus olhos enquanto,
desta vez, eu engolia um pedaço de torta. — Só não seja pega de novo.
— Eu não vou — respondi.
— O que é tão importante para que volte para os pés de Aaron Walker?
— Não vou voltar para os pés daquele desgraçado. — Dei a ele uma
careta. — E são meus assuntos. — Impus limites. Ninguém deveria saber
qual era minha intenção.
A testa riscada por linhas de surpresa suavizou e ele riu.
— Igualzinha a seu pai.
Ele se levantou e começou a procurar alguma coisa na gaveta da sala
cinzenta. Fiquei ali olhando, pensando que estava sendo fácil demais.
— Não vai mesmo tentar me impedir?
Era bom demais para ser verdade.
Ele pareceu finalmente ter encontrado o que estava procurando e veio
até mim.
— Você toma suas próprias decisões, mocinha. E acredite se quiser,
mas esse era o pedido que estava pensando em como fazer a você.
— Você quer que eu volte para lá? — Pude ver o desenho da minha
confusão em seus olhos.
— Não só eu. — Levantou o envelope que tirou do fundo da gaveta. —
Antes de ir, seu pai me mandou entregar isso a você. — Com o olhar
semicerrado, ele me entregou e se recostou no estofado ao meu lado, como se
esperasse que eu lesse. — Eu o alertei sobre a universidade, sabia? Falei
quem são os alunos da Libert University, naquele mesmo dia que você saiu
para o alojamento. Me fiz de bobo, porque era óbvio que ele tinha
conhecimento do lugar onde estava enfiando você, eu só queria saber o
porquê. — Olhou para o envelope nas minhas mãos. — Concordei com ele
pela primeira vez desde que o conheci. — Me olhou sério.
— E por que além de ler, só o está me dando agora?
— Porque quando avaliei sua ficha de inscrição percebi que ao menos
uma coisa decente ele fez: escondeu que você era filha dele. Você não
precisava se envolver em nada dessas coisas ou se colocar em perigo, caso a
camuflagem funcionasse, mas pelo visto as coisas não deram muito certo.
Logo, acho que está na hora de você saber a intenção do seu pai e colocar
isso em prática, já que está determinada a voltar para lá.
E a intenção de Magnus Abernathy estava escrita por extenso, seguindo
sua tara em me mandar usar folhas para pontilhar ou anotar, dizendo as
seguintes palavras:
"Você tem uma lista em branco e uma caneta barata. Entre lá, faça o
dossiê de cada filhote de meliante e entregue em minhas mãos, sabendo que
levará meu sobrenome aos livros da história da justiça. Iremos riscar um a
um junto às suas famílias e limpar esse lugar de uma vez por todas.
Espero que não me decepcione".
Dobrei aquele papel na força do ódio.
— Então essa era a intenção dele? — esbravejei entredentes. — Ele
prometeu procurar pela minha mãe! Afirmou que viria a trabalho e que eu
teria um lugar para continuar os estudos aqui enquanto… — Amassei meu
rosto, impaciente. — Ele me trouxe para cá com planos para mim? De me
transformar em um de seus soldados?
O velho me estudou com cautela, mantendo silêncio como se esperasse
pelo cessar da minha indignação.
Não iria passar. Nunca iria.
No fim, Magnus Abernathy havia me ludibriado. Tinha conseguido,
mais uma vez, me enganar para fazer o que ele queria. E o pior era saber que
voltar para lá era um desejo meu, mas ao mesmo tempo dele também. Eu
estaria cumprindo suas ordens, mesmo sem intenção de o fazer, e isso me
fazia ferver.
Me levantei, sentindo fraqueza nas pernas. Queria sair dali como um
raio, cortando desde os céu ao inferno nomeado Libert University, com a
convicção de que era eu quem me mandava, não meu pai.
— Viu do que eles são capazes, menina. Já que vai voltar para lá, volte
com uma missão. — Jamar colocou uma arma na minha mão. O metal frio
enviou arrepios pela minha pele. Era a melhor arma em que eu tinha tocado
na vida. — Seu pai me disse que sabe atirar. Acredito que tenha aprendido
com o melhor.
— Aprendi sozinha. — Virei o rosto de lado. Abri o zíper da mochila
que me acompanhou desde o dia em que pisei na universidade, ao canto do
meu cárcere e agora ali. Puxei a arma e a coloquei na mochila, dois
hambúrgueres e uma coca dividiam espaço com ela no segundo instante.
Meus dedos amassaram o bilhete e o atirei nos pés do velho.
— Vou entender como um “sim” à ordem de seu pai. — Ignorei-o,
investindo força para atravessar a porta principal. — Você estará fazendo um
favor à Manhattan! — Seus passos desenharam o mesmo percurso que eu
fazia. — Se soubermos mais sobre eles, chegaremos aos que estão acima
deles. É o início do cintilar da justiça neste lugar!
— Justiça essa que você não foi capaz de manter no Brooklyn. — Sorri.
— Mas não faz mal, meu pai também fugiu.
— Seu pai não fugiu, ele continua lutando. Essa ordem é a prova.
— Errado! — Dei a ele o pior dentre os meus olhares. — Ele fugiu e
colocou uma carga nas minhas costas. Aquela merda de bilhete é a prova.
Impulsionei a quase corrida. Não queria ouvir sequer vestígios da voz
dele.
— Cuidado ao entrar mais uma vez naquele lugar, Abernathy. Espero
que esteja ciente de que a Libert University não forma profissionais, mas
criminosos.
Segui, colocando forças nos pés com os olhos atentos em algum táxi.
Manhattan que se foda. Os criminosos que se ferrem. Meu pai que
suma! É o que ele faz de melhor.
Me arrastar até a Libert não seria uma tarefa fácil, mas, com tudo que
eu tinha nas mãos, era hora de fazer o que o Delegado Abernathy não teve
capacidade de fazer.
E, sim, anotaria os nomes de cada um daqueles imbecis em uma lista.
Mas não para o meu pai ou seu ego, para mim. Por mim. Para eliminar um
por um, na ordem que me confrontassem.
Aaron Walker estava no topo dela.
Tive certeza de que quase causei um ataque cardíaco em Ryus quando
bati a porta do meu carro como um animal.
Apertei o tecido da camisa na mão e marchei até ele, nos fundos do
campus, onde estava fumando.
— Tá virado, cara? — Me encarou de longe, ciente de que aquilo não
era eu, e, como confirmação, joguei-o contra a parede em um único golpe.
— Quem foi? — Senti minhas narinas se dilatarem, meus olhos
arderem como se banhados ao fogo.
— Segura a onda, porra! — balbuciou. As sobrancelhas quase
tampando os olhos de tão franzidas. Só não tanto quanto as minhas. — O que
que tá pegando?
Não tinha sido ele, percebi no instante que me encarou com aquela cara
de quem estava perdido.
Sem deixar ao menos uma palavra, avancei para a sala de aula de
Brendon e Benedete, os aspirantes a matemáticos. Puxei-os para fora e os
empurrei contra a parede também.
— Quem foi? Quem libertou ela? — rosnei tal como um animal.
Brendon tentou argumentar, mas eu não estava disposto a ouvir nada
além de um nome. Um culpado. Minha paciência havia se esgotado e já era
substituída por uma ira incontrolável.
— Quem libertou Brianna? — Minha voz era um trovão, ecoando pelo
corredor vazio.
— Ninguém, Alien! Pra que diabos alguém aqui faria isso? —
Benedete tentou cobrir meu tom de voz. — Poderia ao menos contar essa
história direito antes de tentar nos matar?
— Pelo visto a garota sumiu — Ryus se adiantou.
— Ela conseguiu fugir? Da cobertura? — A ruiva franziu o cenho em
descrença.
— Ela não iria sair sozinha daquela merda! — vociferei.
— Quem mais sabia? — Brandon perguntou e uma chave girou na
minha cabeça.
Jamar.
Fechei os olhos, sentindo a raiva ganhar uma forma diferente dentro de
mim.
Como aquele filho da puta descobriu a agulha no palheiro? Eu fiz
questão de usar a cobertura por ser impenetrável, impensável. O último lugar
em que procurariam por alguém. O mistério perfeito para atrair o porco
Abernathy e deixá-lo sem rumo, tateando no meio do campo, para que eu o
atacasse.
— Vou matar aquele velho infeliz! Mas, antes, mato os homens de
John — grunhi entre dentes, me lembrando dos infelizes que mandei ficar de
olho nele.
— Está trabalhando com os caras da gangue do seu irmão? — Ryus
perguntou.
— Mandei ficarem de olho no Jamar, mas pelo visto foram passados
para trás.
— Olha, ele agora dá ordens e os peões obedecem — cantarolou
Benedete.
— Todos nós queremos o mesmo, Benedete: a morte do novo delegado.
E não é como se eles fossem diferentes de nós. — Minha voz era áspera.
Contida por um fio. Ela ergueu as mãos em sinal de rendição.
— Ainda acho melhor ouvir a gente, ir com calma, pensar antes de
fazer merda. — Brandon se posicionou.
— Passo. — Me virei para sair. Eu já não tinha atenção em mais nada
além da procura pela fujona.
— Aonde você vai, cara?
— Ensinar àquele porco o que acontece com quem interfere em meus
planos e depois… — Puxei as chaves no bolso, caminhando na direção do
meu carro. — Caçar a minha presa.

Os olhares julgadores das pessoas não eram tão extravagantes como


pensei que seriam.
Vai ver a roupa do velho é uma boa camuflagem.
Olhei para as minhas mãos. Os últimos trocados que eu tinha pagaram
meu almoço, enquanto me via aos arredores da Libert University. Relutando,
repensando.
Em minha cabeça, não deveria ter dúvidas. Não quando se tratava da
mãe, quando existia a chance de saber mais sobre o que aconteceu. Mas só
seria possível se encarasse o Alien de frente. Pelo modo como o via rasgar
aquela pista de carro, como um louco prestes a matar qualquer um que
surgisse à sua frente, ele já sabia. Com certeza sabia que fugi, e estava me
procurando.
Mas eu era Brianna Abernathy. Já tinha aturado muito na vida, mesmo
sendo jovem. Não seria um filhote de criminoso que me coagiria. Afinal,
agora ele tinha provas de que me prender não traria meu pai até aqui.
Quanto mais rápido for, mais cedo tudo acaba.
Cruzei a entrada do campus com a cabeça baixa, me vendo com a árdua
missão de chegar ao alojamento sem ser vista por muitas pessoas. Por incrível
que pareça, consegui. Caindo pelos cantos, zonza, fedendo e completamente
bagunçada, mas consegui.
Bati na porta do quarto 13, era o que eu estaria dividindo com Meg,
caso não tivesse sumido na primeira noite.
— Quem é? — perguntou do outro lado.
— Se não abrir agora, eu derrubo essa porta e te atiro pela janela! —
gritei e, em segundos, ouvi seus passos desesperados.
Ela abriu a porta com força, o vento que bateu em mim ameaçou me
derrubar.
— Brianna?

Meg me afogou em pedidos de desculpas. Encarei o teto cor-de-rosa do


quarto padrão com duas camas dispostas de cada lado e um tapete felpudo
redondo debaixo de uma escrivaninha única.
Ela estava contribuindo para minha exaustão. Desculpas por não ter
intervindo naquela noite, por não ter procurado por mim fora do campus, por
não ter acionado a polícia… era uma avalanche de repetições que só me fazia
querer fechar os olhos e me entregar ao sono. Foquei na sensação de banho
tomado. Parecia de outro mundo. Só não era melhor do que a pomada gelada
sobre a minha pele vermelha.
Enquanto Meg massageava meus punhos, insistindo que aquilo era o
mínimo por ter me deixado na mão, suas súplicas pelo meu perdão deram
lugar às muitas perguntas que faziam sua língua coçar na boca.
— Então quer dizer que ele te amarrou com correntes? — A expressão
perplexa era notável, mesmo que estivesse concentrada em enfaixar minha
pele.
Um rubor subiu pelo meu rosto e precisei escancarar as narinas para
ventilar o cérebro.
— E ele te ameaçou nos corredores? — rebati com outra pergunta.
— Deu a entender que queria disseminar a informação do seu sumiço,
queria atrair a atenção do seu pai — falou, cautelosa.
— O Alien está perdendo tempo se acha que meu pai vai aparecer para
me salvar.
— Então não foi ele quem…
— Me libertou? — Ri com vontade. — Até parece! Só cheguei aqui
por conta do senhor Jamar. Ele me procurou por conta própria.
— Brianna… — Ela piscou algumas vezes, como se só naquele
momento sua ficha estivesse caindo. — Que caralho você está fazendo aqui?
— A voz soou estridente em meus tímpanos sensíveis. — Aaron Walker te
sequestrou, torturou por duas semanas, e quando foge, decide voltar para
dentro do covil dele? Isso é, no mínimo…
— Loucura, eu sei — completei e me remexi sobre a cama. — Estou
disposta a receber o título.
— Mas por quê? Pra quê arriscar tanto? Pedir para morrer? — Franzi a
testa na última pergunta. Era como se eu fosse insignificante diante dele.
E era um inferno, porque era justamente como me sentia quando aquele
imbecil de quase dois metros me encarava de cima. Mas nem tudo que se
sente é a verdade absoluta. Eu era tão forte quanto ele, e sabia disso, ou não
estaria ali.
— Voltei, porque Aaron pode ter a chave de um problema que procuro
resolver há anos, literalmente. E ele já provou que não valho o esforço. Como
você disse, fiquei duas semanas em cárcere e meu pai nem mesmo mandou
alguém me procurar.
Ela se aproximou, diante do meu timbre meio desanimado.
— Espero que saiba que eu iria à polícia, só estava tentando encontrar
coragem e…
— Eu sei, Meg. Você não precisa se preocupar — afirmei. — Ele
precisa.
Ela riu, encolhendo os cantos da boca e me olhando um pouco sem
graça.
— Você fala como se pudesse abater todos eles de uma vez. Você é
louca!
— Se eu conhecer melhor cada um deles, talvez os possa derrubar, sim
— falei e ela semicerrou os olhos. — Não sou louca, só sou a filha do
delegado, e peço encarecidamente por mais informações, queridíssima
veterana.
Ergueu as sobrancelhas.
— Achei que tínhamos planejado um tour pela universidade, não uma
noite de fofocas sobre o mal que ronda este lugar.
— A exploração pelo castelo fantasmagórico pode esperar. — Me
ajeitei na cama, mantendo ereto o corpo cansado. — Vamos começar pelo
líder. Quem é Aaron Walker? Ele tem pais? Qual é mesmo a idade e quando
ele entrou aqui?
— Calma, garota, você acabou de sair de um cativeiro. — Franziu o
cenho. — No centro de Manhattan, dentro de um quarto luxuoso de uma
cobertura. — Voltou a olhar para mim. — Mas era um cativeiro! —
Suspirou. — Para começar, ele tem vinte e três anos e vive com a mãe
doente. O pai era podre de rico, um grande influente no meio econômico, mas
dizem que os abandonou — cochichou. — Soube que ele tinha um padrasto,
mas o cara também foi embora.
— Então estou sendo alvo de um delinquente riquinho psicopata com
síndrome de abandono?
— Digamos que essa pode ser uma das trocentas definições para Aaron
Walker. — Ela se levantou.— Quer alguma coisa? Acho que a conversa vai
ser longa…
— Vou precisar de um celular. Você tem um reserva? — Ela parou na
porta, olhando para mim com a testa franzida.
— Estava falando sobre comida, Brianna. Qual é o seu problema,
garota? — Riu, desconfiada.
Eu tinha muitos problemas, mas ela não precisa saber de nenhum deles.
Pelo menos, não agora.
Megan me manteve deitada naquela cama por uma semana. Repito:
fiquei de cama por uma semana. E, sim, admitia que não havia sido por falta
de razão, eu mal ficava de pé e passava mal se fosse ao banheiro sozinha.
Foram os piores dias, a sensação de que estava parada no tempo em
desolação.
Por horas, fiquei observando o telefone novo que Meg me emprestou.
Continha tudo que perdi no meu antigo aparelho. Esse era o benefício de ter
salvado todos os arquivos na nuvem.
Pela milésima vez, pressionei os lábios com um pouco de força, abri a
galeria, segui até a pasta de imagens registradas naquela data e lá estava. Me
lembrava de que não havia conseguido ler muito dos documentos, a
qualidade tinha ficado péssima com o meu nervosismo, mas a chave? Era
igual.
Era um passo mais perto dela, de saber o que havia acontecido. Se
aquela chave fazia parte da investigação e Aaron tinha algo parecido, eu não
poderia ignorar. Teria de descobrir que tipo de porta maldita ela abria, por
qual caminho iria me levar.
Ali era meu lugar, apesar do medo e da incerteza; aquele era o lugar.
Fechei os olhos, soltando um suspiro suave. Havia chegado o momento
em que eu tentava criar coragem para um monte de coisas, admito, e elas iam
desde colocar o pé fora do alojamento e, em algum momento, dar de cara
com Aaron Walker pelos corredores da universidade a abrir o aplicativo de
mensagens e xingar até a última geração do meu pai.
Ele me colocou no meio dos lobos, sem meu consentimento. Disse que
viríamos pela minha mãe, me deu esperanças. Eu não iria ajudá-lo em nada.
Fechei a aba da galeria e abri o aplicativo de mensagens.

Eu:
Pai?
Não vai mesmo me responder?

Perda de tempo, Brianna. Perda de tempo.


Joguei o aparelho de lado. Minha mente flutuando pelos últimos
acontecimentos, fazendo com que eu nutrisse ainda mais raiva por ele. Alien.
Ergui o corpo totalmente fraco e me inclinei ao espelho. As faixas nos
punhos, alvas como neve, contrastavam com minha pele bronzeada. Meus
cabelos lavados já secavam. Rosto Limpo. Cheiro de banho, a febre que
oscilava desde o início da semana já me dava trégua, e uma vontade imensa
de sair daquele cubículo me tomava.
Era um risco. Mas um ao qual me submeteria mais cedo ou mais tarde.
Naquele momento, preferi que fosse mais cedo. Terminaria logo, ou não
terminaria nunca, mas eu saberia em breve.
Pisar no batente do lugar me remeteu à liberdade que senti quando saí
do cativeiro, como chamava Meg. Segui, confiante, passando pelos
corredores. Os olhares carregados me acompanhavam em maior número
agora. Secando minha pele, averiguando meus passos, poderia dizer que até
mesmo contavam quantas vezes meus cílios batiam.
Tudo piorou quando cheguei a um dos pátios na frente do prédio da
universidade. O lugar onde me aterrorizaram. A imagem que me trazia
remorsos e lembranças ruins, mas aos quais eu deveria me acostumar e
enfrentar, ser forte.
Um som repetido de passos rápidos me alcançou enquanto tinha os
olhos inertes nos umbrais da Libert.
— Brianna! — Era Meg. Ela parecia estar tremendo. — O que você
está fazendo aqui?
— O que acha? — perguntei, minha expressão oscilando entre
confusão e riso.
— O que está fazendo aqui fora? — ciciou entredentes.
— Vou ficar, Megan. — Pisquei algumas vezes. Ela me encarava como
quem olharia uma pessoa com um parafuso a menos. — Achou que eu estava
alucinando?
Era a única explicação para tamanha surpresa.
— Você chegou naquele estado, falou tudo o que passou, parecia meio
distante, ficou de cama por uma semana… eu… não levei a sério! Achei que
seu cérebro apagaria assim que tivesse a oportunidade, estive pensando em
como te tirar daqui ou…
— Não preciso de ajuda, Meg. Sei me virar. — Cruzei os braços. Não
era uma escolha, era uma obrigação estar ali. — Não vai ser um maluco com
problemas com o meu pai que vai me fazer ficar escondida como uma rata
por aí.
— Você não entendeu. — Ela riu, nervosa. — Aqui não é mais seguro,
Brianna. Você é o único vestígio da lei no meio de…
— Acha que vão me caçar? Me amarrar? — Me aproximei dela. — Eu
não tenho o que o Alien quer e não devo nada a ninguém aqui, logo não tenho
o que temer — falei, tentando me convencer daquilo. Afinal, eu era filha de
um delegado, isso bastava para que eu fosse massacrada.
— E o que pensa em fazer agora? Assistir à sua aula de anatomia, como
se não se visse no lugar daqueles porcos estirados sobre as mesas? —
perguntou.
Bati os cílios. Havia um ruído estranhamente familiar se unindo à voz
dela.
— Responde, Brianna! Vai fingir que nada aconteceu, ou pode
acontecer, e continuar vagando pelo matadouro?
Uma sensação gélida percorreu meus ossos. Virei a cabeça, procurando
por algo que nem eu sabia o que era.
— O que você tem?
Senti o sopro do vento nos cabelos. O tempo pareceu escurecer, meus
olhos se abriram um pouco mais, como se pudesse alcançar um raio maior,
me dar mais detalhes. Minhas narinas, farejando o cheiro familiar, me
fizeram sentir ameaçada.
Ameaçada. Como uma presa.
Firmei o pé, levantei o olhar mais adiante e afirmei o meu lugar.
Eu era, sim. Era uma droga de presa indefesa diante do olhar perverso
dele, meu predador. Com os braços cruzados, no ápice da penumbra, do outro
lado do campus.
Aaron havia, finalmente, me encontrado.
Descobri que ela havia sumido pela manhã, quando passei no prédio
para deixar comida o suficiente para que não morresse de fome, e me deparei
com suas correntes jogadas ao chão.
Mas, naquele momento, a tarde sem sol de Manhattan anunciava, além
de mais neve, a genuína devastação do lugar quando coloquei os olhos em
Brianna.
Depois de não ter tido nada do porco Jamar, além da afirmação de que
ela tinha pegado um táxi e sumido, achei que teria mais trabalho para a
encontrar. Mas estava ali, na minha frente. Olhando para mim com aqueles
olhos oblíquos.
Me convenci de que não era uma miragem quando senti seu cheiro, de
longe; seu medo envolvido por um império de tentativas de ser forte.
A ratinha fujona longe do seu lugar. Como se não soubesse a quem
pertencia, como se pudesse fazer escolhas, me desafiar.
— Aquela é a Abernathy? Aqui na universidade? — perguntou
Benedete e, ao confirmar por si mesma, franziu o cenho. — Essa garota não
bate bem.
— Pegue meu carro e o traga até mim. Agora que a encontrei, nós
vamos dar uma volta — falei, vidrado nela, e comecei a caminhar em sua
direção com os olhos semicerrados, maxilar travado e uma única pergunta
correndo feito um animal pela minha cabeça:
Por que voltou para mim?
Seus olhos vacilaram quando me viram em movimento, e ela começou
a fugir.
— Nem tente! Já vi você. — Segui sua corrida desajeitada. — Não vai
falar comigo? Vai continuar fugindo de mim? — Ergui a voz alta, sabia que
estava me ouvindo, mas as pessoas que estavam mais à frente, não.
E foi na tentativa de passar por um desses aglomerados que ela se
mostrou uma ratinha coagida.
Era a gangue dos caras do Câmbio, infelizes mexicanos que eu
precisava puxar as rédeas vez ou outra. Brianna estava no centro, rodeada
pelos imbecis que a encaravam como carne fresca.
Inspirei fundo, soltando uma risada alta no final. Pisei com vontade até
lá e entrei na roda. Brandon e Ryus se juntaram a mim, formando uma
barreira ao redor dela.
Nossa presença foi o suficiente para desencorajar uns cinco, que já
começavam a se afastar como os cães fracos que eram, mas isso ainda não
deu segurança a ela. Seu corpo tremia. Eu via, mesmo que tentasse esconder.
Eram uns onze caras, não a julgaria por sentir medo.
Encarei o que parecia ser o líder daquela merda como quem pergunta
“o que está pegando aqui?”.
— A filhinha do delegado aí — um deles falou. — Essa garota não é
bem-vinda aqui, Alien. — Olhou para ela. — Por que não volta pro buraco de
onde veio? Ninguém aqui é obrigado a dividir o mesmo ar que a filha de um
porco!
— Vai se foder! — ela respondeu ao nível e, antes que uma fagulha de
riso escapasse dos meus lábios, me coloquei na frente do infeliz que deu um
passo em sua direção.
— Sabe o que eu fiz com o último filhinho de porco que encontrei,
vadia? — ele vociferou.
— O mesmo que eu vou fazer com você se não calar a porra da boca
agora. — Cuspi as palavras olhando no olho. Assisti a quando recuou com
ódio.
Todos me olhavam sérios, até que o corajoso líder ergueu a voz.
— Ela vai servir de comida pra todo mundo aqui e vazar, ou então
morre.
Silêncio.
Ninguém moveu um músculo diante de mim. Quando ele fechou a
boca, ergui os olhos. Não os meus, os dos meus demônios. Os que fizeram
com que me chamassem de Alien.
O canto dos meus olhos voltaram a arder como o inferno. Os últimos
caras se afastaram, deixando-o sozinho na minha frente.
— Acho que não ouvi direito. — Cruzei os braços e dei mais alguns
passos na sua direção. Meu corpo fervia para um caralho. Eu estava louco
para descarregar tudo na cara dele, bastava proferir mais uma vogal.
— Eu disse que… — A frase morreu quando dei um soco no olho. Ele
levantou para receber uma cabeçada, que com certeza partiu o nariz em dois.
Senti o osso do miserável cortar minha testa.
Os outros não ousaram me impedir, e só parei quando ele estava no
chão, sem levantar mais.
— Mais alguém? — vociferei, o sangue do infeliz escorrendo pelo meu
rosto.
— Tá de brincadeira, Alien? — Um dos que se dispersaram abriu os
braços, indignado.
— Quer que eu prove que não? — Ao som da minha ameaça, ele
recusou. — Tá vendo isso aqui? — Ergui o pingente. — É o sangue do que
me pertence. Se alguém sequer olhar para ela nesse lugar, fica cego ainda
vivo. Eu arranco os olhos com minhas próprias mãos.
Antes que eu saísse, o quase morto agarrou o meu pé. Virei o calcanhar
e minha sola acertou o crânio do infeliz, mantendo a cabeça dele contra o
chão quente. Ele riu.
— Vai me matar, Alien? — Segurei-o pelo colarinho e o ergui para
olhar nos olhos. — Por uma vadia filha de um porco?
— Ela é minha chave de vingança — grunhi. — Se proferir mais uma
palavra a respeito dela, mato você. — Externei o inferno que me dominava e
ele parou de sorrir.
— Foda-se. Faço e falo o que eu quiser.
Bastou.
Benedete estava estacionando dentro do campus, ao meu lado, como
pedi. Aproveitei e atirei o infeliz no chão. Abri o fundo do carro, peguei
minhas cordas e lacei o pescoço do merdinha. A outra ponta foi amarrada na
traseira da lataria.
— Meu Deus, o que você vai fazer? — Brianna parecia estar atordoada.
— Quietinha. — Ryus a manteve calada, enquanto eu tomava o lugar
da ruiva no volante. — Você não vai querer intervir. Ninguém interfere —
falou e, pelo meu retrovisor, vi os muitos que estavam com o cara assistindo
de longe.
Quando Benedete bateu no capô, acelerei. As rodas giraram depressa e,
pelo retrovisor, assisti ao corpo se debater pelo asfalto. Abri o teto móvel, o
vento batia em meus cabelos. Inspirei e soltei o aroma que transcendia o
poder, nas minhas mãos, na minha cabeça.
O carro ficou mais leve. Percebi que a corda se arrastava sozinha com a
ponta estilhaçada por uma lâmina. Ele se libertou. Mas não iria muito longe.
Não naquele estado.
Pisei no freio, girei as mãos, mudei a marcha. As rodas giraram dando
ré. Avistei-o se arrastar para longe da pista e só parei quando ouvi o barulho
do seu corpo bater no chão.
Manobrei, passei pelos portões do campus e estacionei no mesmo
lugar, olhando para a Abernathy, que parecia estar paralisada. Meus pés se
moveram para fora do carro no mesmo instante. Segui até lá, passando pelos
rostos contorcidos dos caras que saíam para buscar o infeliz jogado no
asfalto.
— Tudo certo, babacas? — Meus amigos acenaram, saindo dali em
seguida.
Peguei-a, joguei no ombro e comecei a voltar para o carro debaixo dos
muitos olhares assustados, que também se dispersavam aos poucos.
Aquele era só mais um recado dado. Algo que soava como uma bela
ameaça a quem tentasse chegar perto, e que não ousaria denunciar, ou
exporiam coisas similares já feitas por eles mesmos.
Estávamos bem com a demonstração de poder. Eles se lembravam de
seus lugares.
Brianna, no entanto, não parecia estar bem. Debatia-se como um peixe
fora d’água em meus braços. Não parou até que a colocasse no chão.
— Eu não precisava de ajuda! — grunhiu, ajustando a roupa no corpo,
sua voz trêmula era um traço de medo inegável. — E não é como se eu esteja
salva agora — balbuciou, dando um passo para trás.
— Não te ajudei — falei. — Eu te tomei. Deixei claro quem é o seu
dono. — Seus olhos cintilavam, diferentes. — Quanto à segunda questão,
você está certa, mas agora sabe que só eu posso te assustar.
— Vai pro inferno! — Seus pés embolaram em uma trama de fuga, mas
eu me adiantei.
— Ora se não é a ratinha que fugiu do meu porão. — Segurei pelo
cabelo e a fiz virar.
— Me solta!
— Só não entendi o porquê de ter fugido e voltado pra cá. Quer os
parabéns pela petulância ou os pêsames por não conseguir ficar longe de
mim? — sussurrei, olhando seu rosto.
— Voltei, porque não devo nada a você, e deveria agradecer por eu não
acabar com a sua raça!
— Oh… está me ameaçando, ratinha?
— Posso fazer pior se quiser. — Empurrei-a um pouco mais contra a
parede. Ela suspirou.
— Quero ver você tentar. — Diante do meu olhar, ela passou a ofegar
devagar. Ergui o queixo, olhando ao redor enquanto a trazia para perto do
meu corpo.
— Por que não me deixa em paz? Viu que aquela merda toda não
adiantou. Você me manteve lá por dias e não teve sequer vestígios de que ele
viria. Já não é o suficiente? — constatou, impaciente.
— Não, não é. Você é a facilitação do meu caminho. — Passei o dedo
em sua bochecha. — Talvez eu só não tenha te torturado o suficiente, ou
precise variar as estratégias.
— Pois engula suas estratégias! — grunhiu.
— Vou fazer você engolir a língua, se falar comigo assim de novo. —
Senti minha voz reverberar pelas narinas em um rosnado baixo.
— Que poder acha que tem sobre mim? — Franziu as sobrancelhas. —
Você só pode ser maluco!
— Ainda não entendeu que pego tudo que quero, ratinha?
— Não sou qualquer coisa para que me possua…. — Ela recuou um
passo, seu rosto revelando um misto de medo e determinação. — Não sou
sua, Aaron. Nunca serei. — Bati a mão na parede atrás da cabeça dela.
Engoliu as palavras. Por um instante. — Você não me assusta. Eu sei o que
você é capaz de fazer, mas não vou me curvar diante de você.
Um sorriso cínico brincou em meus lábios
— Você deveria ter medo, Brianna — murmurei, meus olhos fixos nos
dela. — Porque não tenho limites quando se trata do que é meu.
— Não sou sua.
— Quero você, tenho você — pontuei e ela olhou no fundo dos meus
olhos. — É assim que as coisas funcionam.
— Não! — rebateu, a ponta do nariz erguida.
— Ah, é sim — rosnei, colocando meu rosto acima do dela. Sua
respiração pulsava, cortada pelo nervosismo que crescia junto à minha
aproximação.
— Não! — Outro protesto, daquela vez sua voz tremeu quando me viu
mais perto.
— Eu disse “sim”. — Colei meu corpo no dela e senti sua pele arrepiar,
as sobrancelhas franziram quando enfiei os dedos em sua nuca para terminar
a frase. — Nem mesmo você pode negar que me pertence. Em hipótese
alguma, sob nenhuma circunstância. É minha ferramenta, ratinha. A isca para
atrair o infeliz, o meio para chegar a um fim, simples assim. — Seus olhos se
abriram um pouco mais e senti que esmoreceu sob meus dedos.
— Sai de perto de mim! — Ergueu a mão e acertou o meu rosto.
O barulho reverberou pelo lugar, ela se encolheu quando percebeu o
que fez.
Eu a joguei contra a parede com mais força, arrancando um gemido
baixinho que atingiu meus ouvidos tão rápido quanto o som de surpresa dos
poucos alunos que circulavam por ali às pressas.
— Gosto disso, ratinha, acredite, gosto que me provoquem, mas precisa
saber… — Colei os lábios em seus ouvidos. — Só permito que tentem me
arranhar dentro de um quarto. Não me faça descontar a minha raiva em você
em público. Seria um tanto quanto inapropriado, até para mim.
— Vai pro inferno!
— De novo? Hoje, não — falei, segurando seus braços. — Hoje, você
vai comigo até o seu salvador.
— O quê?
— Delegado Jamar, conhece? — Comecei a arrastá-la até o meu carro.
— Vamos fazer uma segunda visita ao homem que interveio nos meus planos
e tirou você de onde coloquei. — Empurrei-a para dentro do carro. — Estou
com o distintivo dele. — Tirei-o do bolso e o joguei no colo dela, para vê-la
pular. — Esse sangue é uma lembrança da primeira conversa, em que ele não
me disse nada de útil, mas a segunda… — Suspirei. — Você vai ver com
seus próprios olhos.
Antes que ela falasse mais alguma coisa, bati a porta e caminhei até a
frente, mas parei ali, com a mão na maçaneta, tentando validar a sensação de
que algo parecia estar fora do lugar.
Aquilo conseguiu me deixar em alerta por um instante. Não seria a
primeira vez que um infeliz procurava por uma retaliação depois de ter
levado uma coça, e esse poderia ser o caso.
No entanto, antes que eu pudesse reagir, fui surpreendido por uma
sombra se movendo rapidamente em minha direção. Em seguida, fui agarrado
e jogado à força dentro de outro carro que surgiu de repente.
Nunca imaginaria que um saco na cabeça, mãos e pés atados e alguns
longos minutos de viagem me aguardavam pelos próximos trinta minutos,
mas lá estava. Eu diria que o tempo que passei me debatendo feito um animal
ali no fundo só não foi tão desgastante para mim quanto foi para o motorista.
Eu balançava o carro, como um touro com os sentidos em alerta máximo.
Mesmo sem enxergar, o som abafado dos pneus contra o asfalto e a
sensação de movimento constante me indicavam que eu ainda estava sendo
levado a algum lugar. Assim como me indicaram quando o carro parou.
Me empurraram por um percurso silencioso marcado por minhas
tentativas de romper as cordas que atavam minhas mãos com os próprios
dentes, até que de repente, em um só golpe, puxaram o pano que cobria
minha cabeça.
Fui jogado em uma cadeira enquanto a luz do ambiente me cegava por
um momento. Quando finalmente consegui focar, percebi que estava dentro
de um espaço escuro e opressivo, iluminado apenas por uma luz fraca e
amarelada de uma lâmpada pendurada no teto. O lugar era desconhecido para
mim, suas paredes escuras e sujas pareciam se fechar ao meu redor, mas o
filho da puta de terno, gravata e pentelho grisalho de pé na minha frente?
Esse eu conhecia desde que o filho passou a andar comigo.
— Ora, ora… — Minha voz reverberou, entornada de sarcasmo. — Se
não é o aclamado da nação... — Sorri, abrindo um pouco as pernas. — Aí,
governador… parece que os bastidores da política são mais sujos do que eu
pensava.
— Não tão sujos quanto suas festinhas rotineiras — falou e estreitei os
olhos, tornando o tom sério.
— O que você quer?
Mantive os olhos atentos e segurei firme no banco quando senti mais
movimentos perto do carro. Eu estava preparada para me arremessar em
quem quer que surgisse que ouvi a primeira pessoa falar.
— Cadê ele? — Era a garota ruiva.
— O comunicador, Bene. — O loiro ergueu o dispositivo que o Alien
usava e olhou para mim.
— Onde ele está? Viu quem o levou? — o que chamavam de Brandon
perguntou enquanto a garota me puxava para fora do carro.
— Eles foram rápidos, eu estava dentro do carro.
— Vamos levar ela — um deles determinou.
— O quê? Mas pra onde? — Puxei meu braço da mão apertada da
garota e os três me encararam como uma matilha separada de seu alfa.
— Você vai ficar com a gente até ele voltar e vai responder a tudo que
perguntarmos — ela sibilou, sua boca vermelha como os fios de cabelo e
intensa como os raios do sol. — Para o seu bem, ratinha.
— É melhor não me chamar assim. — Encarei, elevando o tom de
ameaça.
— Por quê? Só dá autoridade ao seu dono? — Pisquei algumas vezes.
As palavras fugiram da minha cabeça quando me vi sob seu olhar risonho. —
Que fofa! Dá pra ver o porquê do Alien ter tanto ciúmes. — Olhou para o
loiro. — Quero uma igual, Ryus.
O governador permaneceu sério na minha frente, como uma figura
misteriosa, tentando manter a pose de poder no meio daquela podridão.
— E esse é o seu escritório particular, político respeitável? —
perguntei, olhando para ele. — O que foi? Isso aqui é uma tentativa de
afastamento? Acho que Brandon é grandinho o suficiente para escolher as
amizades, e para ser sincero, seu filho não diz coisas muito boas sobre você.
Acho que tudo de ruim que ele aprendeu partiu de casa. — Ele continuou
sério. Me encarando como estatua imprestável. Voltei a rir. — Eu estou
começando a ficar irri…
— Tenho uma proposta para você — falou, sua voz reverberando pelo
espaço vazio.
— Eu digo que é uma ordem. — Outro homem se aproximou. Vestido
de terno. Envolto por uma energia podre. Segurei o ardor do fogo em
palavras na garganta. Eu queria vomitá-las uma a uma quando o vi.
Era um inimigo. O inimigo.
Leonardo Salvatore.
O abutre italiano de merda. O líder da corja da qual John, meu irmão,
se juntou para planar mais alto. Um mafioso imundo que não conseguia
sequer esconder as tatuagens do corpo. Os desenhos iam da cabeça às pontas
dos dedos. Quem soubesse o significado de cada traço, saberia o valor que
pagaria por olhar para elas por mais de dois segundos.
Eu pagaria para o ver tentar impor aquelas regras a mim.
— Avvoltoio! — Cuspi no chão. — Vou mandar vocês dois para o
inferno! — Puxei as mãos. As amarras rangeram. Eu já não domava a minha
raiva, abriria caminho até eles, mesmo que perdesse os braços no processo.
Senti o soco do lado do rosto. Meu sangue respingou enquanto me
olhavam sérios.
O governador pareceu estar tão indignado com a presença do infeliz
quanto eu. Seu olhar sério na direção dele só desviou porque ele ergueu a
sobrancelha de aviso, dando a entender que faria o que quisesse.
E, naquele momento, seu desejo era o de me testar a resistência.
— Vai se auto desossar, verme — o mafioso murmurou, erguendo um
charuto grosso à boca. — E pensar que seu irmão veio até nós por livre e
espontânea vontade, enquanto você…
— Meu irmão traiu nosso sangue!
— E você acha que seu sangue ainda tem valor, Aaron Walker? — O
governador me olhou nos olhos, à distância. — A proposta é simples, você só
precisa…
— Não — falei, antes mesmo de ouvir. — A minha resposta é “não”,
pilar da lei. — Comecei a rir quando vi que ficou em silêncio. —
Governador… você é o imundo por trás da sujeira das ombreiras do
Brooklyn? Esperava mais de você, por ter sido eleito com tantos votos —
zombei, e ele colou a cara na minha.
— E eu de você, por ter me parecido tão inteligente. — Aproximou-se.
— O reino no qual nasceu está quebrado, Aaron. Não tente sustentar o
respeito que não te deram. Não se submeta a dar orgulho a um homem morto,
ao…
— Não diga o nome — grunhi. Ele fechou os olhos, passando a língua
por dentro da boca. — Se não me soltar agora, mesmo que eu morra, vou
acabar com a raça de todos os presentes neste lugar.
O governador olhou para mim com uma expressão fria, seus olhos sem
vida me analisando como se eu fosse um quebra-cabeça a ser resolvido.
— Você acha que sabe de tudo, Aaron. — Sua voz continuou calma e
calculada. — Mas há muito mais em jogo aqui do que se pode imaginar.
Não pude deixar de rir novamente, embora dessa vez fosse uma risada
amarga.
— Sabe onde enfiar suas cartas.
— Você tem duas opções: Se junta a nós e arruma a bagunça que a
ausência do seu irmão está acarretando, ou enfrenta as consequências de um
“não”. A escolha é sua.
— Querem que eu tome o lugar dele? Seja seu peão? — Ri alto. —
Tenho cara de quem serve de associado à máfia?
— O Brooklyn traz retorno. Conseguimos monitorar toda Nova Iorque
também, é um baú que não estamos dispostos a deixar afundar junto ao navio,
se pudermos fazer algo para contê-lo a bordo — explicou, sem que eu
indagasse, me arrancando o semicerrar dos olhos. Logo foi a vez do abutre
mafioso começar a falar.
— Rivais do John estão invadindo aquela área, nós não temos…
— Problema seu. Não vou ajudar um abutre como você. — Ele
sinalizou e um dos capangas me acertou com um soco. Meu tronco dobrou e
voltei soltando um riso de fúria. — Abutres desgraçados! — Mais um soco.
Gargalhei. — Merdinhas!
— Você é audacioso, Walker — o pai de Brandon destacou. — Vi
como comandou boa parte deles e como atenderam ao seu pedido para se
instalar nos quatro cantos de Nova Iorque, à procura de seu alvo em comum.
— Colou as mãos nos bolsos. — Eles seguem a sua voz, obedecem seu
mandado, e você os conhece, bem como tem ciência dos passos do seu irmão,
logo não precisa se familiarizar com o serviço. Vai dar conta. — Cruzou os
braços. — Diga seu preço.
Fiquei em silêncio com o maxilar travado, encarando os dois.
— Diga o seu preço — ele sibilou, sem paciência.
Ergui a cabeça e abri a boca. Seus olhos atentos fizeram a leitura labial.
— Vá se foder! — sussurrei.
— A porra do preço, moleque! — gritou. Suas veias saltaram pela testa.
Perfurou meus olhos com os dele e eu dilatei as narinas, sentindo meus
demônios sorrirem.
— A cabeça dele. — Apontei para o mafioso. — Se me der, comando o
pedaço de merda que você acha tão importante. — Ele olhou para o homem,
sério como pedra, e então para mim.
— Tem certeza de que quer mais isso que a cabeça do delegado que
matou o seu irmão?
Parei. O infeliz tocou a minha ferida.
— Bem sabe que nós éramos como tutores para John, logo também
estamos sentindo esse desejo de vingança que você sente, mas nós somos
cachorros maiores — pontuou com um ar de arrogância, e captei o meu
grande problema.
— Então é de vocês que ele está se escondendo. — Segui com os olhos
pelos dois. — O delegado de merda que matou o John está fugindo das babás
do meu irmão. — Apertei os dentes. — É a dupla de patetas que está
dificultando o meu caminho até aquele porco?
— Não temos culpa de carregar tamanho poderio, garoto — o mafioso
disse.
— Cala a boca! — Outro soco e cuspi o sangue no chão.
— É pegar ou largar. Pense bem, Walker. Se nós abrirmos mão do
delegado, você o terá para fazer o que quiser. — Olhei dele ao abutre e
estreitei os olhos. Meu orgulho queria me enforcar. Eles se viraram, seus
passos ecoando pelo lugar até a saída. Precisava resolver aquilo, ou nunca
teria minha vingança.
— Está feito. — Pararam na porta e engoli meu sangue, imaginando ser
a última gota do deles, na minha boca, depois de eu ter estraçalhado ambos
com os dentes.
O governador voltou.
— Não exceda limites maiores que os que John excedia. — Começou a
listar regras imundas. — Foi numa dessas que ele teve a testa esburacada.
— Eu estava lá — afirmei e o vi agachar ao meu lado.
— Então vejo que fará bom proveito do prêmio por trabalhar conosco.
— Tire o plural da frase. — Olhei para o abutre. — Meu acordo é com
você, e estará de pé somente até que eu encontre o delegado — pontuei.
— Claro.
— E contanto que mantenham suas mãos nos bolsos quando o assunto
disser respeito a mim.
O mafioso riu. Olhei para ele, desejando o matar com os olhos. O
ambiente estava impregnado com uma tensão palpável, o ar carregado de
ameaças não ditas. O pai de Brandon tocou em meu ombro.
— Espero que se lembre de que será observado de perto. Qualquer
deslize e suas chances acabam — declarou. Um de seus capangas me
segurava pela amarra para me levantar. — Não queremos deixar sua posição
tão explícita por enquanto, então tente ser cuidadoso. Você será monitorado
na universidade e no Brooklyn.
— Não sabia que levavam o trabalho de babá ao pé da letra. Fizeram
isso com o John também?
— John não tinha a cabeça tão quente, e aprendeu com o tempo a
manter o controle — esclareceu. — Você ainda é uma pedra bruta, vai
precisar de supervisão.
— Claro… e se eu, por um acaso, atear fogo em quem estiver me
monitorando…
— No primeiro sinal de que você está saindo da linha, enviarei reforço.
— O mafioso se adiantou. — Não vai querer que isso aconteça. — Encarei-o
sentindo minha mandíbula quase trincar, me direcionei ao governador.
— Mantenho aquela merda em ordem até encontrar o meu alvo. Depois
que eu o matar se esqueçam de mim.
O governador pareceu repassar minha palavras cuidadosamente antes
de acenar.
— Certamente. Já deixou isso claro. — Concordou, mais uma vez. —
Você aprenderá rapidamente que, nesta cidade, as alianças são feitas para
serem quebradas, mas, enquanto durarem, precisa andar conforme nossas
ordens.
— Ainda não entendi qual é a do sigilo. — Me adiantei quando percebi
que ele se afastava.
— Nós temos uma rede corrupta em meio à lei, Walker. Está bem
amarrada e encobre muitas das ações ilícitas, se assim posso dizer, mas isso
não nos isenta de ter que lidar com a parte sã. — Olhou no meu olho. —
Abernathy é o aviso de que essa parte acordou, e enquanto estiverem de olhos
abertos, nós andamos pelas sombras — pontuou, e o saco cobriu a minha
cabeça de novo.
— Então você é o líder dos Skulls agora? — Ryus foi o primeiro a
dizer alguma coisa, contrariando sua natureza calada. — Isso é insano.
O letreiro luminoso do Booking refletia nos capôs dos carros e se
repartia em linhas até dentro da hamburgueria. Eu, Brandon e Benedete
compartilhávamos a mesma mesa. Um pouco distante, Brianna olhava para
fora enquanto era mantida como refém pelos meus amigos, por ter sido a
última pessoa a me ver antes de me levarem.
Finalmente me recostei, levantando os olhos depois de contar toda a
história, desde a reunião ao momento em que fui jogado em um beco ali
perto, sem me esquecer de detalhes importantes como a identidade dos
sequestradores e a minha mais nova posição.
Brandon se manifestou, parecendo conformado com a descoberta sobre
o pai.
— Não estou surpreso com nenhum detalhe além da sua aceitação —
pontuou. — Vai mesmo encarar?
— Algum dia duvidou disso? — Empurrei a bebida com as pontas dos
dedos, sem tirar os olhos da ratinha que evitava me encarar.
— Bom, além de surpresa com o fato de que Aaron aceitou, estou
surpresa com seu pai, Brad. Ele esteve nisso desde o início e nós só
descobrimos agora — Benedete acrescentou, evidenciando o que Brandon fez
questão de ignorar.
— Nunca duvide das estratégias de um corrupto que estudou na Libert
University em seus dias de glória — falou e tomou um gole de bebida. —
Meu pai é a escória das câmaras.
Silêncio.
Todos pareciam estar digerindo as novas informações até que eu
interviesse em suas inércias repentinas.
— Sei que odiavam a ideia de eu me juntar ao John e o abominavam —
afirmei, percebendo que fisgava a atenção.
— Nem tanto… — A ruiva espremeu as palavras, literalmente.
— Não precisa tentar disfarçar, Benedete.
— Ele só não era o melhor amigo que você poderia ter. Eu tinha a
sensação de que te mataria com uma brincadeira.
— Então sempre esteve enganada, “mãe”. — Ela enrugou a cara. —
Meu irmão poderia ser um idiota, mas não comigo. — Soltei o ar, com o
corpo ocupando apenas metade da cadeira na minha tentativa de esticar a
coluna. Volta e meia, levantava o copo gelado para pressionar contra o
inchaço no rosto.
— Agora, sem John na jogada e com esse peso nas costas, acho que já
sabem o que espero de vocês. — Suspirei. — Quero uma parceria para ficar
por perto. Apoio. Algo como o que já temos, mas…
— No crime — Brandon completou, e acenei.
— Não que já não fôssemos do crime, mas agora oficialmente. —
Pausei. — Se não toparem, vou entender. — Ergui o copo aos lábios. — São
fracos demais para tal posição…
— Quero um carro novo — Benedete falou. — E permissão para dar
um sacode em uns caras da estação do BK. — Seus olhos semicerraram. —
Me proibiram de passar pela ferrovia, quando seu irmãozinho ainda
comandava lá. Me lembro do rosto de cada um.
— Permissão concedida, ruiva, só não se esqueça que teremos babás.
— Olhei para Brandon. — O grande governador não quer que ultrapassemos
o limite do limite.
— Pode destruir Nova Iorque cara, eu estarei lá, contanto que tenhamos
mais Drifts na sexta à noite — Ryus murmurou quase bêbado e descobri o
porquê de estar falando tão abertamente.
Quando nos voltamos para Brandon, sua expressão séria já dizia tudo
sem que precisasse de palavras.
Ele estava fora.
— Então é isso. — Troquei olhares com os outros, confirmando a velha
equipe até que ele erguesse os olhos na minha direção.
— Vocês não vão para frente sem mim, e acho que sabem disso.
— Filho da puta!
Era o pedaço que faltava naquele merda toda, e ele sabia disso, mas
preferiu nos fazer sentir o desfalque primeiro. Típico do Brandon. O mais
bundão de todos.
— Ouvi festinha no subsolo? — Ryus cantarolou.
— Você ouviu — afirmei. — Mais tarde, quero todo mundo lá.
Nos levantamos, meus olhos pairando sobre a ratinha que fazia o
impossível para nem mesmo olhar na minha cara. Cheguei perto e ela virou o
rosto, esperou Benedete passar para acompanhá-la, fingindo não me ver ali.
— Me ignorando? — Ergui a voz. — Que foi, ratinha? Estou de volta
para você, não está feliz? — Não me disse uma palavra sequer, apenas
esperou Benedete abrir a porta do carro e entrou.
— Ela odeia você, cara — a ruiva sussurrou para mim, e a acompanhei
enquanto seguia até o carro de Brandon.
— Ela me ama. Não consegue ficar longe — pontuei, sério, como se
falasse de uma verdade absoluta, e assisti a Benedete erguer as sobrancelhas.
— O que fizeram com ela?
Quando me viu querer cerrar os punhos, Brandon segurou meu ombro.
— Só perguntas, cara. Ninguém tocou no seu brinquedinho.
— E ela não estava com tanto mau humor assim, passou a ficar quando
você chegou — a ruiva completou. O franzir cínico de sua sobrancelhas me
fez cerrar o maxilar. — Vai continuar a mantendo presa?
— Não. Falei, sério. Mas meus olhos estarão dia e noite em cima dela.
Quero saber o que a fez voltar para o campus.
— Era o que eu iria sugerir — a ruiva disse. — Essa aparição repentina
é suspeita.
— Por hora, leve minha presa para o dormitório dela em segurança.
Preciso cuidar de alguns assuntos.
— O senhor importante já está tratando de negócios? — Ela riu, e segui
Brandon até seu carro.
— Ele sempre tratou de negócios, Benedete. Os nossos negócios,
quando roubávamos bancos por pura diversão — o bundão falou, me
encarando. — Deveríamos antecipar a ação do mês que vem, já que você é
oficialmente rei da tirania agora.
— Cala a boca, idiota! — Suas risadas se misturaram à buzina que
Ryus, o bebezão bêbado, fez cantar.
— Vamos, porra! Antes que eu mije nesse carro.
— Se mijar no meu carro te mato, Ryus! Desce e procura um lugar por
aí!
— A urina desse merda é uma fanta. — Aticei Brandon. — Seu carro
vai ficar azedo por uma semana, cara. — Ele bateu no teto com a face
transtornada.
— Desce, porra! — berrou.
As meninas pararam ao nosso lado com o carro. Benedete abriu o
vidro.
— Boa sorte aí, caras! Qual a personalidade que ele adotou dessa vez?
— A de um velho filho da puta que não tem a capacidade de urinar
num poste! — Brandon respondeu.
— Homens entendem homens, então se virem — falou e começou a
fechar o vidro. Toda minha atenção se concentrava na Abernathy. Inerte, com
os olhos do outro lado da pista, ainda me ignorando.
Era natural ter aquilo dela, eu sabia, mas alguma coisa dentro de mim
fatigava, ganhava mais atenção que o habitual, me fazia só pensar nisso. Ela
deveria olhar para mim. Eu deveria fazer com que me desse atenção,
confessasse seus planos.
Mas não tinha tempo para isso agora. E enquanto as via sumir do meu
campo de visão, as duas crianças brigavam, como animais sem a mãe para
impor ordens.
— Vai partir para a agressão, Brandon? Eu bêbado, sem total
equilíbrio. Acha justo?
— Sai do meu carro, Ryus!
— Eu não vou descer daqui nem se me obrigarem!
— Então não vamos sair daqui enquanto você não esvaziar essa porra!
— No carro?
— Não!
— Me arruma uma garrafa que resolvo sem sair daqui.
— Fala isso mais uma vez e te quebro no meio.
— Isso, com certeza, iria me fazer mijar mais depressa…
— Sai, porra!
Trinta minutos.
Respondi às perguntas por trinta minutos e tive que ouvi-los falar sobre
Aaron Walker pelo tempo todo durante as últimas seis horas em que ele
desapareceu.
Não assisti nem mesmo a uma aula desde que cheguei ali, e via o início
do semestre escorrer pelos meus dedos enquanto o Alien me fazia de peça em
seu jogo de tabuleiro.
Quando o vi entrar por aquela porta, senti um mix de ódio e frustração.
O que eu queria mesmo era que ele sumisse do mapa, deteriorasse, virasse
fumaça, mas pelo visto precisaria continuar fingindo que não via sua
existência, ou ao menos tentar.
Em contrapartida, não conseguia fazer o mesmo com o grupinho do
Alien. Nossa interação ainda estava fresca na minha memória, e sabe quando
a gente tem uma visão errada sobre algo e se surpreende quando descobre a
real?
Para falar a verdade, me sentia um pouco surpresa com eles. Pareciam
até gente. Mais gente que pessoas do meu próprio sangue.
Suspirei, exausta física e psicologicamente.
Me lembrar de que sumi por quase uma semana e com certeza meu pai
soube, mas não fez nada, fazia com que me sentisse arrasada, mesmo que eu
o conhecesse bem e soubesse que isso é a cara dele.
Os caras maus são mais humanos do que o homem da lei.
Eles se preocupavam com o babaca, como se fosse digno de alguma
coisa. Não me estrangularam, não tiraram meu sangue, só me ameaçaram,
claro, mas me ouviram e mantiveram as garras longe.
Nunca pensei que teria diálogos assim com o bando do Alien, mas tive.
Dentre todos, Benedete parecia a mais lúcida, isso era inegável. Ela me
trouxe até o alojamento e me deixou na porta do meu quarto, mesmo que
seguisse ordens do desgraçado, ela era leve. Eles pareciam ser leves quando
estavam juntos, quando eram íntimos. Escondendo suas sombras, pareciam
até ser legais.
Mas eles ainda eram a escória daquele lugar, e eu precisava me lembrar
constantemente disso.
Me virei de lado na cama. O som distante da música que vinha do
subsolo ecoava pelo corredor do alojamento e, agora, me encontrava imersa
nas mensagens não respondidas pelo meu pai.

Eu:
Oi
Oi, pai! Tá aí?
Oi, pai?
Estou bem, se quiser saber. Mesmo que tenha passado dias presa,
sentindo frio, sede e fome.
Oi?
Cada palavra digitada, cada pergunta sem resposta, era um grito interno
de frustração. Me perguntava constantemente o que havia feito para ser tão
odiada por ele, porque essa era a única explicação: ele me odiava.
O lugar em que me colocou, a posição em que me deixou… isso não se
fazia nem ao pior filho. E mesmo que eu insistisse, o silêncio persistente era
o único eco que recebia.
Joguei o telefone de lado e suspirei, amassando o rosto com as mãos.
Meg surgiu como um vulto, xingando a maquiagem que se espatifou no
chão enquanto se arrumava. Estava se arrumando para a festa do Alien do
inferno no subsolo, como chamavam. Perguntar o porquê de se misturar era
pedir para sentir raiva com a resposta.
Ela dizia que os bons sangues lutavam para ser invisíveis e evitar ser
fantoche da elite de criminosos. Ir às festas deles era como ganhar pontos.
Fazer parte da plateia de plebeus pouparia alguém de muita coisa. E era o
melhor a se fazer, além de ter uma diversão a cada noite de desordem.
Seus olhos me encararam com preocupação quando peguei o celular de
novo e, pela milésima vez, reli as mensagens.
— Se eu sugerir que vá à festa, vai soar como uma loucura? — Franziu
o cenho diante de suas próprias palavras. — É, vai… — Estalou a língua. —
Olha, sei que é difícil, mas talvez seja uma boa ideia sair um pouco, se
distrair — sugeriu. Sua voz suave tentava quebrar o silêncio tenso que
pairava sobre nós.
Balancei a cabeça com determinação, apertando meu celular com força.
— Não, Meg. Não consigo encarar Aaron depois do que ele fez sem
querer arrancar a pele dele com os meus dentes. — Apertei as pernas. A
simples menção a ele fazia minha barriga boiar. — A raiva ainda está fresca
demais — acrescentei, tentando me livrar da sensação intrusa.
Meg suspirou, sua expressão refletia uma mistura de pena e
preocupação.
— Tudo bem, mas, por favor, se precisar de algo, me chame. Vou estar
lá embaixo, aproveitando um pouco. — Ela tocou em meu ombro antes de
sair do quarto.
Assim que se foi, fechei os olhos com força.
Aaron Walker pagaria pelo que me fez, podia jurar que sim, mas
naquele momento precisava focar no que era ainda mais importante do que
minha raiva por ele. Mergulhei na galeria de fotos do meu celular, e fiquei
horas vendo a imagem que me trouxe de volta à universidade.
A chave que encontrei nos documentos relacionados ao
desaparecimento da minha mãe.
O que ela significava? E por que Aaron tinha uma semelhante?
Foi ali que decidi fazer merda. Decidi que precisava de respostas.
A festa era a oportunidade perfeita para investigar discretamente.
Mesmo que não quisesse admitir, no fim, o Alien do inferno era a razão de eu
ter voltado.
Olhei no relógio, eram quase três horas da manhã. Vestindo um short
curto, feito de um paninho fino, uma blusinha com o desenho de mil
morangos, fazendo conjunto com a parte de baixo, um cardigã preto e a arma
que Jamar me deu bem presa no elástico da minha calcinha, desci as escadas
do alojamento da irmandade com o coração batendo forte. Aquela,
infelizmente, era uma das reações do meu corpo diante do simples ato de
pensar em ver aquele desgraçado de novo.
Enquanto me aproximava, a atmosfera parecia mudar e uma mistura de
curiosidade e repulsa me impulsionava em direção ao estacionamento
subterrâneo, cenário de uma parte da minha aflição.
A batida alta da música reverberava pelo meu corpo. Escuridão era
interrompida por luzes coloridas piscando de maneira frenética. Convidativas,
inebriantes. Desci as escadas do subsolo devagar percebendo o espaço lotado,
meus olhos procuraram por ele, e o encontrei. No centro das atenções, como
sempre.
Um brutamontes barbudo tatuava algo abaixo do peito dele, e quando
me arrisquei olhar mais de perto, percebi que era uma representação dos
meus próprios olhos, capturados naquele momento de vulnerabilidade
durante o trote, quando estavam me aterrorizando com os carros.
O homem parecia estar nos últimos detalhes, porque ela estava pronta.
Cintilava como se fossem as minhas pupilas vivas ali, sentindo medo,
impotência e raiva. Cada movimento da agulha na pele me fazia estremecer,
ao mesmo tempo que uma raiva intensa queimava dentro de mim.
Como ele podia ser tão sádico e insensível? Por que registrar a minha
vulnerabilidade, como quem registra significados marcantes?
Sentimentos conflitantes fizeram meu estômago revirar. Precisava sair
dali, mas vi quando Aaron abriu os olhos, como se tivesse cochilado
enquanto a pele era perfurada. Prendi o ar nos pulmões e passei a traçar
passos para trás, mas parei ao perceber que ele inclinava o rosto na minha
direção, e mesmo à distância, seus olhos encontraram os meus.
Era como se ele soubesse que eu estava ali, escondida, assistindo. Era
quase como uma ligação extraterrestre.
Um sorriso cínico brincou em seus lábios, antes que piscasse para mim.
Ele piscou para mim?!
Aquilo desencadeou uma teia de sensações que deixavam turva a linha
tênue entre elas, isso tornava a maioria inexplicável, mas ainda identifiquei a
raiva. E era uma raiva desumana.
Quase vacilei quando ele acenou para o homem, levantou-se e começou
a vir em minha direção, nas sombras.
Seu olhar era intenso e parecia cheio de emoções conflitantes que eu
não conseguia interpretar. Percebi, pela primeira vez, o modo como a
repetição em seu abdômen era perfeita, logo abaixo dos meus olhos, tatuados
ali.
Inspirei fundo.
Mesmo que ele parecesse ser de outro mundo sem aquela camisa, com
os cabelos ao vento e o maldito sorriso matador, eu o via como um pesadelo.
Por tudo o que ele representava, por me manter prisioneira, por forçar um
jogo perigoso que não pedi para jogar.
Decidi que não iria mostrar fraqueza na sua frente, apesar da confusão
que sentia por dentro. Segurei a ponta da minha arma e tentei manter a
postura ereta. Era a primeira vez que estaríamos cara a cara depois que voltou
e, ali, eu não iria conseguir ignorá-lo, mesmo se quisesse.
Seus passos cessaram na minha frente. Nossos olhos se fixaram um no
outro enquanto fitas luminosas nos rodeavam.
— Parece que gosta de estar nas minhas mãos, já percebeu isso? —
Riu, cruzando os braços. — Você sempre volta, não importa onde ou como.
Senti minhas mãos formigarem e o encarei, com os olhos quase
saltando para fora. Estar ali não tinha nada a ver com ele! A insinuação
parecia até um insulto.
— Costumo registar uma lembrança no corpo a cada mau ato. —
Referiu-se à tatuagem. — A sua é uma das mais evidentes, acho que sabe que
isso é um forte indicativo de que só estou começando… — Deu mais um
passo até mim e, em um deslize, apertei a arma na cintura.
Seu sorriso aumentou. Suas mãos me empurraram contra a parede e
desceram ali, apalpando até encontrá-la.
Os dedos deslizaram levando minha calcinha para baixo. Olhos nos
meus olhos. Lábios tão próximos que me faziam sentir sua respiração. Meus
seios tocavam no peitoral dele e eu me via cada vez mais encurralada.
Aaron segurou a arma devagar, livrando minha pele do metal gelado
até que ela aparecesse diante de seus olhos.
— Isso não é brinquedo para você — falou, olhando para a pistola
pesada. Fiquei em silêncio. Esperando o momento certo de tomar e o fazer
implorar para não levar um tiro. — Onde conseguiu? — Sua sobrancelha se
ergueu. — Por acaso, se encontrou com o seu papai? — Ele destravou a arma
e olhou para mim. — Eu fiz uma pergunta, ratinha. — A ponta fria do metal
roçou a base dos meus seios.
Prendi a respiração. A mão dele era pesada e desenhava caminho pelo
meio deles com firmeza, separando o meu decote quase inexistente, expondo
a minha pele.
— Não vai me responder, hum? — Seu rosto voltou a se aproximar do
meu. — Odeio quando você é assim teimosa, sabia? — soprou no meu
ouvido e minha respiração falhou. — Se lembra do que fiz para que abrisse a
boca da última vez? — Me empurrou um pouco mais contra a parede e senti
seu calor familiar.
— Vai para o inferno! — Senti minhas cordas vocais mais trêmulas do
que gostaria e, quando pensei em golpeá-lo, vi que se separou e sumiu,
simplesmente. Pisquei algumas vezes, assim que me livrei da tontura na qual
ele me submergiu. Não havia sinal do desgraçado ou da minha arma.
Comecei a entrar na festa, amaldiçoando a hora em que pensei que ir ali
seria uma boa ideia. Avistei Brandon. Parado em um dos cantos e tentei me
recompor. Ele poderia saber onde a unha se enfiou, já que lhe era como
carne.
— Curtindo a festa? — Ele me olhou por um momento e virou uma
bebida entre os lábios. — Soube que você é filho do governador… — Tateei,
sem saber o que falar. — O que faz aqui? — Mantive a expectativa,
esperando sequer uma resposta, mas ele parecia um carcereiro mudo. — Pelo
que percebi, o caladão é o loiro. Você fala. Por que tá me ignorando? —
Franzi o cenho. Diante da confusão no meu rosto, ele soltou um sorriso. Algo
ligeiro. Como se não pudesse segurar. — Olha… ele ri.
Quando se virou para mim os fios de cabelo caíram em cima dos olhos
e a barba por fazer brilhou sob as luzes fortes do lugar.
— Aaron não quer ver você conversando por aí — falou, sério. Seus
olhos semicerraram. — Muito menos perambulando. Ele sabe que você tá
aqui?
Minha expressão de confusão só não foi tão expressiva quanto o grito
que ouvimos vindo de um carro.
A música parou e avistei Meg em cima da estrutura do som,
completamente bêbada.
— Meg! — Comecei a correr até ela, mesmo sabendo que se fosse eu
em seu lugar, ela iria sumir, como em todas as outras vezes. Mas eu não
deixaria ela ali, e como imaginava, Aaron surgiu na minha frente como um
raio.
— Acho que ela está se divertindo — falou, com os olhos fixos em
mim. — É uma altura considerável se pensarmos que essas caixas de som
podem subir automaticamente, se um botão for acionado. — Apertou
levemente um ponto vermelho e a estrutura deu um leve pulso para cima.
Meg gargalhou.
— Vem, Bri! É divertido…. Opa! — Meu coração quase pulou para
fora quando a ponta do salto dela deslizou um pouco para a beirada, antes que
se equilibrasse e voltasse a tomar mais um pouco da bebida.
— O que você quer? — Fuzilei o infeliz com os olhos e ele cruzou os
braços, encostando-se no carro. — Me diz! O que você quer de mim? —
gritei, fazendo minha voz reverberar pelo estacionamento agora silencioso.
— Diga onde ele está.
— Eu não sei! — exclamei, meus olhos estudando sua expressão séria.
Olhei dele a Meg e de Meg a ele.
Fechei os olhos. Punhos cerrados. Precisava pensar em alguma coisa.
E pensei.
Uma pistola de pressão que liberava fogo, do lado de um dos pneus do
carro. Era igual a que ele usou para me aterrorizar em frente ao campus. Era a
minha chance.
Fingi a minha melhor cara de derrota e comecei a ir até ele devagar,
com os ombros caídos, colocando os fios de cabelo atrás da orelha.
— Já que você quer tanto saber… — Olhos nos olhos, ele sorriu. Sem
esboçar qualquer tipo de expressão, joguei o corpo para o lado e agarrei a
arma. — Então toma!
As chamas rugiam, criando uma cortina de fogo na direção dele, que
recuou para o lado com os olhos se alargando em surpresa e choque.
Apertei o botão que vinha na sequência do vermelho, torcendo para não
estar fazendo merda. A estrutura desceu. Segurei Meg pelo braço e a forcei a
me acompanhar em uma corrida para fora dali.
Começamos a subir a escada. Cada batida dos nossos corações parecia
sincronizada, um lembrete constante de que estávamos vivas, mas ao mesmo
tempo à beira da morte.
Olhei para trás. Ele estava vindo.
Ninguém ousou tentar impedir e, se eu estivesse em seus lugares,
também não me colocaria na frente daquele furacão.
Seus olhos brilhavam no escuro, refletindo fúria e descontrole. Eu
podia ouvir a respiração junto a grunhidos, como se estivesse bem próximo
ao meu ouvido. Aquilo reverberou pelos meus ossos e fez minha pele tremer.
— Meu Deus! Rápido, Meg! — Assim que fechei a boca, ela tropeçou.
Tropeçou e levou meu coração junto.
Seu corpo caiu no chão, como uma fruta podre. Ela gemeu de dor e
começou a chorar, fedendo à bebida alcoólica. Senti as solas dos meus pés
formigando quando o vi avançar enquanto estávamos paradas ali.
A risada que ele soltou me fez estremecer.
— Ah… quando eu alcançar vocês… — Aaron mancava, nos seguindo
como uma sombra. Um predador.
— Levanta, Megan! — Segurei-a pelos braços e quase a joguei para
cima, não sabia de onde tirei tanta força, mas o fiz. — Você está bem? —
Minha voz ondulou e de sua boca não saía nada além de um choro baixinho.
Coloquei o braço dela em meu ombro e continuei guiando nossa corrida
o mais rápido que conseguia.
Arrisquei olhar para trás depois de alguns passos mais lentos do que eu
gostaria e calculei poucos sete metros de distância entre nós e a destruição em
pessoa.
— Você acha que correr vai me impedir, ratinha? — Sua voz rouca e
carregada de ameaça ecoou pelo lugar aberto. — Acha que vai se salvar?
Meus olhos arderam, coloquei força nos pés e continuei nos arrastando,
mas Megan estava muito pesada e não me ajudava em quase nada, além de
sustentar uma parte do peso do próprio corpo com dificuldade.
— Aaron! — Era Brandon. Me virei para olhar e ele corria atrás do
amigo, como se tivesse tomado coragem para o impedir de nos massacrar.
— Agora não, porra! — Olhei por cima do ombro de novo e percebi
que eles estavam discutindo, mas Aaron ainda insistia em andar, mesmo que
pouco.
No entanto, já era alguma coisa, uma chance.
A garota já estava com a cabeça jogada para um lado e seu peso me
fazia envergar junto dela. Bati os pés no chão.
— Acorda, Megan! Você quer morrer, caralho? Temos uma chance! —
Ela sacudiu a cabeça e se concentrou nos pés, soluçando com o choro
entalado.
Foi a caminhada mais sofrida da minha vida. Quando chegamos nas
escadas e olhei para trás, consegui discernir sua silhueta da penumbra.
Brandon não nos deu muito tempo. Nem mesmo perguntei a ela se
conseguia subir, dei alguns passos nos degraus e, quando a vi tropeçar,
coloquei os braços por baixo de suas axilas.
Olhos fechados. Inspirei fundo e comecei a arrastá-la para cima.
Quando os degraus acabaram, Aaron pulou no primeiro lá embaixo e
meu corpo gelou.
— Espere por mim, ratinha…
Não tinha tempo para mais nada, então só continuei arrastando Megan
pelo longo corredor, até a porta do nosso quarto, que era perto da entrada.
Para a minha felicidade, ou não, só ali ela reagiu. Sua mão segurou a
maçaneta, ajudei a abri-la e nos joguei lá dentro. Trancamos a porta com
pressa, esperando que fosse suficiente para nos proteger.
Fechei os olhos. O silêncio reinava no lugar, anunciava que tinha dado
certo. Me aproximei da porta nas pontas dos pés. Prendendo a respiração.
Pálpebras tremendo. Fiz sinal de silêncio para Meg, que choramingava
incontrolável e encostei a orelha na madeira.
Nada.
Meu suspiro veio do mais íntimo e se dissipou no ar em forma de
alívio.
Pelo visto, desistiu da perseguição.
— Acha mesmo que pode se esconder de mim? — ele sussurrou, sua
voz rouca me fazendo tremer.
Pulei para longe da porta, o som dos punhos de Aaron contra a madeira
ressoavam pelas paredes.
Meg recuou com os olhos arregalados de medo e eu me via paralisada
com o corpo tenso, olhando para a porta. As investidas faziam o chão tremer.
A cada golpe, a estrutura ao redor da porta ameaçava desmoronar e levar meu
coração junto.
Com um estrondo ensurdecedor, a fechadura cedeu. A porta foi lançada
contra a parede.
Ele entrou no quarto, sua presença dominante parecia invadir o lugar
como um oceano em uma tempestade noturna. E tal como um, ele veio até
mim.
Recuei até me ver presa contra a parede enquanto seus olhos tentavam
me engolir e nossos ofegos se misturavam. Ele apertou os dedos em meus
cabelos e eu apoiei as mãos em seu peito.
Forte, suado, com os meus olhos tristes tatuados ali, na carne.
— Aaron… — chamei seu nome, com a voz cortada pela respiração
irregular. Não sei por qual motivo, só veio e o liberei.
Lutamos com os olhos. Sem armas, armaduras, nada.
Nus e crus.
E naquele momento, tudo sumiu. Minha barriga parecia um pedaço da
galáxia, fria, flutuante, cheia de energia granulada.
Eu queria odiá-lo, queria resistir àquela sensação magnética que parecia
nos puxar um para o outro, mas algo em seu olhar me segurava, me mantinha
cativa, submersa, desarmada.
Não houve movimento, não houve palavras. Apenas a sensação
avassaladora de que algo grande e incontrolável estava se formando ao nosso
redor. Me fazendo sentir ao mesmo tempo atraída e repelida por ele.
Os alunos do matutino já movimentavam os corredores da universidade
quando, depois de termos levado as minhas coisas e as de Meg para um
quarto novo, me vi sentada em uma cadeira na sala fria da Reitora Freyer, a
senhora séria de cabelos grisalhos puxados para trás em um coque apertado e
que tinha uma verruga exuberante perto da sobrancelha esquerda.
Sua roupa era repleta de pregas e o cetim parecia menos brilhante que o
normal.
Fechei os olhos e os abri de novo.
A saia era preta, ela usava o que parecia ser um scarpin, também preto,
e uma meia fina.
Detalhes…
Tinha um óculos pequeno, menor do que seus olhos, eu diria, e ficava
na ponta do nariz.
Fechei os olhos de novo. Respirei fundo.
Eu precisava focar em mais detalhes, desviar a atenção.
Dizia isso a mim mesma enquanto meu dedo indicador batia
freneticamente contra o joelho.
Dias atrás, eu fechava os olhos e via um morto, agora mesmo sem
fechá-los, conseguia ver os olhos dele, do Alien.
Esquecer daquela sensação de estar em um vendaval enquanto eu
olhava para ele no meio do quarto com a porta quebrada e uma tensão
palpável no ar, ainda parecia impossível, mesmo depois de algumas horas.
Acho que isso se devia ao fato de que ainda o ouvia ofegar. Tanto em
pensamentos quanto ali, ao meu lado.
Aaron estava fervendo. Eu podia sentir o quão quente sua energia
vibrava, e o compararia facilmente ao sol, se me pedissem um exemplo.
Para completar, algemaram-no na cadeira, por segurança. Mesmo que
ele não me tivesse feito sequer um arranhão, ao contrário de mim, que fiz ele
torcer o tornozelo para desviar do fogo.
E ainda assim, preso, ele conseguia sacudir as minhas estruturas.
A reitora o fitava com uma expressão severa. Ela parecia ter a firmeza
de um general, mas seus olhos tinham um toque de receio por trás da
autoridade que tentava impor. Isso era perceptível.
Ela tinha acabado de dar um discurso sobre bons modos e nos
comparado a crianças do colegial. Convenhamos, crianças sequer sonhavam
em fazer algo como o que acontecia naquele lugar. Mas o que ela estava
apontando era "nossa" imaturidade.
Fiquei em silêncio o tempo todo, escutando apenas o estalar da língua
do Aaron e suas risadas de desdém. Piorou quando ela fechou o discurso
dizendo que nos aplicaria uma penalidade no nível da nossa maturidade:
cartas.
Eu escreveria uma para ele. Ele, uma para mim. Um pedido de
desculpas e juramento de que tentaria ser melhor.
Essa parte arrancou mais que uma simples risada, mas uma gargalhada
dele.
— Acho que não ouvi direito. — Passou os dedos pelas sobrancelhas
grossas. — A senhora poderia repetir?
A mulher ajeitou o óculos na ponta do nariz e deu o seu melhor para
refazer a frase, dando um ar de credibilidade à ideia, mesmo sabendo que não
iria adiantar.
— É uma forma de melhorar o convívio neste ambiente acadêmico, Sr.
Walker.
— Tô farto, tira isso de mim — falou, balançando a mão algemada.
— Nós vamos tirar, sim, só preciso que você…
— Eu mandei me soltar! — gritou, e me segurei na cadeira ao lado.
De alguma maneira, aquilo era contraditório a mim. Aquele desgraçado
de cabeça quente nunca se deixaria ser preso, mas ele permitiu e aguentou o
sermão da senhora por quase dez minutos inteiros.
Ela deveria agradecer por ele só estar surtando agora. Deve estar
usando de uma força desumana para não a atirar pela janela. Pensei, me
nomeando expert quando o assunto era ele.
Depois de entregar a chave, a Senhora Freyer pegou duas folhas de
papel, canetas e as colocou na mesa. Começou a falar enquanto, impaciente, o
Alien se livrava da algema.
— Escrevam uma carta de desculpas um para o outro. Não é apenas
uma tarefa, é um exercício para refletir sobre suas ações e mostrar… —
Antes que terminasse, Aaron estava saindo.
A porta se fechou e ela tirou os óculos. Seu suspiro de exaustão
reverberou pela sala. Olhou para mim, ainda séria.
— É meu penúltimo dia aqui. Pensei em agir como uma líder de
verdade pelo menos por um ou dois dias. — Seus dedos empurraram um
pouco mais a folha até mim. — Faça a sua carta.
— Mas… eu…
— Não vai querer criar uma rivalidade com Aaron Walker. Só escreva
um pedido de desculpas, entregue-o e se mantenha o mais longe possível —
falou, me olhando com cuidado. — É o conselho que dou à minoria que
estuda aqui, aos filhos de pessoas do bem que não puderam recusar uma
bolsa de estudos, mesmo que fosse para este lugar — completou, e segurei a
caneta em silêncio. — O seu pai te colocou em maus lençóis, minha filha,
mas você sobreviveu até aqui. — Sua boca fina me mostrou um sorriso. —
Se quiser continuar respirando, peça desculpas e suma dos corredores antes
que não sobre nada de você.
Fiquei ali por mais alguns minutos, encarando a folha. A mulher abriu
seu notebook e começou a trabalhar. Depois de quase uma hora, ela abaixou a
tela e olhou para mim.
— E então? — indagou. Suspirei, deixando a minha vontade falar mais
alto que a noção do perigo.
Apertei a caneta e escrevi um grande "foda-se" em letras bastão para
enfim dobrar o papel. Meu sorriso mais sincero foi entregue à diretora e saí
de lá em direção ao alojamento da fraternidade dos meninos, do outro lado do
Campus.
Com certeza ele não merecia menos do que aquilo e eu até entregaria,
se tivesse coragem suficiente para encará-lo sem a minha arma, por isso a
primeira coisa que fiz foi desviar o percurso e começar a caminhar até o
alojamento da irmandade. Eu ainda tinha coisas embaladas que não iriam
para seus lugares sozinhas.
No entanto, mesmo com os olhos fixos no caminho, percebi que estava
sendo observada, de longe. Pelo canto dos olhos, descobri a diretora.
Acompanhando cada um dos meus passos pela janela do prédio de
administração.
Era uma droga que ela tinha tanto medo quanto todos ali, e queria que
eu me ajoelhasse aos pés do Aaron para evitar ser alvo de suas tiranias.
Como se eu já não fosse seu brinquedo preferido.
E lá estava eu, indo até ele, sendo seguida pela supervisão da senhora
que já me fazia desejar antecipar a sua aposentadoria para ontem.
Quando alcancei o corredor dele, vi que a porta estava entreaberta,
alguns barulhos estranhos pareciam vir de lá, mas eu já estava de pé ali, a um
passo de mandar Aaron Walker se foder depois de quase matarmos um ao
outro horas atrás.
Era promissor.
Empurrei a madeira devagar, usando as pontas dos dedos e ouvi a voz
rouca dele reverberar pelo lugar.
— Porra, Brandon! Mandei me dar um minuto! Você pode pegar essa
merda depois, mas essa vadia tem aula em dez minu… — Parou de falar
quando me viu.
Prendi a respiração quando o vi nu. Uma professora de olhos escuros e
cabelos castanhos estava com a saia embolada na cintura, ajoelhada diante
dele, segurando a ereção com as duas mãos e a empurrando goela abaixo.
Puta merda!
Seus seios estavam à mostra. Ele apertava um dos mamilos dela
enquanto a outra mão segurava o cabelo com força — como ele segurava o
meu — forte, apertando os fios entre os dedos.
A mulher parecia faminta, sugando o pau que mal cabia na boca. Boa
parte ainda estava fora, mostrando veias saltadas e uma vermelhidão suave.
Os testículos balançavam à medida que ela movimentava a boca, envolvendo
desde a glande. Seus gemidos eram contidos, mas estavam lá, misturados
com o barulho da sucção que me fazia arrepiar.
Aaron me olhava de modo indecifrável enquanto a mulher o chupava,
tornando minha situação ainda mais caótica, porque eu já sentia o filete de
líquido quente escorrer devagar pela parte interna da minha coxa. Pude jurar
que o vi empurrar a pelve um pouco mais contra o rosto dela, ao mesmo
tempo que olhava para mim, e depois bateu na cara dela. Forte. Fazendo-a
gemer e abrir um pouco mais os lábios, nos quais ele se acomodou com mais
espaço.
A mulher tateou a extensão do membro e o tirou da boca, deixando-o
balançar sozinho até parar e apontar para cima, escorregadio, brilhando com
sua saliva. Seus dedos abaixaram ainda mais o decote e ela se aproximou
para enfiar aquilo tudo entre os seios. Seus olhos subiram na direção dos dele
e, reparando no olhar fixo que ele lançava para longe, ela o seguiu, parando
em mim.
Sua expressão se mostrou inexplicável. "Vergonha nua e crua" parecia
ser raso demais para expressar.
As mãos dela trabalharam depressa, agora longe daquela coisa enorme.
Em segundos a roupa estava no lugar e seu dorso limpava a umidade ao redor
dos lábios, queixo e bochechas. Ela passou por mim com a cabeça inclinada
para baixo, ajeitou a roupa com uma pasta na mão e olhou para trás sem
graça alguma, me vendo boquiaberta na porta, com a carta meio amassada
nas mãos.
Cerrei os punhos, tentando engolir o sentimento estranho que aquela
merda me fez sentir, e perdi a noção de que, assim como ela, eu já deveria
estar longe. Antes que eu saísse de lá, Aaron me puxou pelo braço e me
empurrou contra a parede. Meus seios foram amassados contra a superfície
lisa e ele se aproximou do meu ouvido.
— Começo a ter certeza de que você me irrita de propósito, ratinha. —
Senti o ar quente que soprava contra mim e fechei os olhos.
Eu não podia apertar as pernas. Não ali. Ele iria perceber. Mas também
não conseguia disfarçá-las, tremendo.
— Me solta, Aaron — pedi, minha vontade oscilando entre ir e ficar,
meu senso me sacudia por ainda existir outra escolha além de sumir dali.
— Claro, só preciso pegar a sua cartinha de amor — falou, e me
lembrei da razão de ter ido lá. Por um momento, tudo aquilo havia sumido da
minha cabeça.
Ele me libertou quando pegou o envelope entre os dedos, mas não me
movi. Continuei virada de costas, em silêncio.
— A porta está aberta, ratinha. Pode fugir quando quiser. — Sua voz
soou um pouco mais rouca. Pelos distintos sons, ele segurava a folha com
uma mão e o pau com a outra. — Espero que saiba que vou pensar em você.
— Não vi, mas pude sentir que sorria.
Minha saliva entalou na garganta. Tateei a porta com os olhos fechados
quando percebi que sua respiração ofegante se movia pelo cômodo. Ele
seguiu até o banheiro, a poucos passos dali, com os olhos no papel dobrado,
massageando a ereção. Daquela vez, percebi porque, enquanto se afastava,
virei um pouco o rosto, curiosa. Foi o suficiente para que eu voltasse para a
parede de novo, quente como o inferno.
A porta de saída estava do meu lado, aberta. Só precisava girar a
maçaneta e ir embora, mas aquilo era uma merda. A vontade de ouvir
permanecia. O meu desejo obscuro vencia a razão.
Ouvi o barulho da fricção mais alto, seguido de ofegos que faziam
alguma coisa dentro de mim transbordar. O som do papel desdobrando
atingiu um nervo no meu cérebro. Algo específico que me fez arregalar os
olhos.
O banheiro parecia estar com a porta aberta, eu ouvia tudo como se ele
estivesse ao meu lado. Senti a gota de suor percorrer a minha testa quando ele
parou.
Silêncio.
Estava lendo.
O vão entre os meus lábios começou a aumentar. Engoli em seco,
virando um pouco o rosto. Olhos semicerrados, ouvidos atentos e respiração
presa até que…
Mais movimentos começaram a surgir. Fortes, em conjunto com o
papel sendo embolado. Sua risada alta se misturou com um gemido e me fez
morder a mão.
— Oh… amor… me odeia tanto assim, hum? — Ele continuou
batendo, os movimentos ficavam ainda mais rápidos e um calor desumano
subia por minhas pernas.
Mesmo que não visse nada, continuei de costas. Era uma proteção
contra aquele desejo desumano. Contra a mistura de sentimentos assustadora
que crescia dentro de mim. Meus dedos tremeram e senti tudo molhar lá
embaixo. O infeliz voltou a falar.
— Queria estar entre as suas pernas agora. — Puxou o ar com força e
suspirou depressa, soltando um som rouco do fundo da garganta. Apertei
minha boca com mais força quando quase gemi junto dele. — Eu abriria você
devagar… penetraria com calma, e então daria o que você merece. — Meu
coração pulsou, descompassado. — Nós iríamos ver quem estaria fodido no
fim do dia.
O som reverberava pelo banheiro e ficava mais alto com o eco
ambiente. Cruzar as pernas trêmulas já não adiantava muito. Ele rugia, me
causando arrepios incalculáveis.
— Ainda aí, ratinha? Eu gostaria muito que estivesse… — soprou,
antes de bater contra a parede. — Gostaria que me ouvisse até o fim. Que me
imaginasse gozando, mas não na minha mão. — Riu, os ofegos fazendo sua
voz ficar ainda mais grave. — Na sua bocetinha. — Minha calcinha, além de
molhada, passou a esquentar.
Me virei de frente para ver os dedos de sua mão segurando a base da
parede. Deu um passo para sair do banheiro, ainda hiperventilando.
Estava completamente vermelho. As veias pulsavam ao redor enquanto
o apertava com a mão grande.
Franzi as sobrancelhas, assistindo a ele movimentar o punho para cima
e para baixo.
— Oh… Brianna… — Soltou meu nome em um rosnado. Os olhos
meio fechados, aquelas sobrancelhas grossas querendo franzir.
A glande rosada parecia crescer cada vez mais sob a pressão que ele
investia com o polegar. A pele fina subia e descia pela extensão dura, longa e
grossa o bastante para tomar boa parte de sua palma, que também não era
pequena.
Meus olhos não saíam de lá. Minha boca acumulava a saliva, que era
engolida a cada segundo decorrido. Chegou mais perto e fui dando alguns
poucos passos para trás, sentindo minha calcinha colar na pele e deixando
tudo escorrer pela minha coxa. Abri a porta, e ele me seguiu com a boca
entreaberta, os olhos em mim, peito suado, a respiração de um animal.
Não poderia ficar mais ou iria me arrepender. Sequer deveria ter
permanecido ali, na verdade. Tinha certeza de que mais um pouco e eu
também estaria sem roupa.
Desenhei um passo maior para fora. Quando aquela coisa enorme
atravessou a porta, segurei a maçaneta, puxando-a com força.
Era a minha resposta àquela merda toda.
Aaron agarrou a porta tão forte que quase me levou ao seu encontro,
impedindo que ela se fechasse.
— Vadia! — soltou, e as veias do pescoço saltaram enquanto ele se
masturbava mais rápido. — Oh… eu vou acabar com você! — Comecei a
quase correr quando o vi revirar os olhos.
O grunhido alto alcançou meus ouvidos, antes de começar a se dissipar
no ar, e ele rosnou entredentes.
Não havia um ser vivente pelos corredores, e agradeci aos céus por
isso. Eu parecia estar tendo um treco ao tentar chegar no alojamento da
irmandade.
Entrei pela porta do novo quarto, quase derretendo de tão suada. Meg
me olhou com uma sobrancelha arqueada. O último quadro, com a foto de
quando ela era bebê, estava quase sendo posto em sua estante.
Passei direto para o banheiro, ela me acompanhou e parou na porta para
receber a porta na cara.
— Foi mal — ciciei enquanto arrancava a roupa e abri o chuveiro
gelado.
— Posso saber o que tá acontecendo? — perguntou. Pelo tom de voz,
ela ainda estava no mesmo lugar.
Sentia a energia caótica irradiando de mim. Não iria contar nada
daquilo a ela, sequer voltaria a pensar naquilo de novo.
E não. Não era como se eu nunca tivesse visto um pau antes, um cara se
masturbar ou gemer o meu nome.
Mas era Aaron Walker, o Alien do inferno. O cara a quem eu deveria
odiar por incontáveis motivos, mas era por quem queimava feito palha no
fogo, cedendo às suas provocações, dando ouvidos ao demônio no meu
ombro esquerdo.
Eu preciso me internar.
— Aquela tour ainda está de pé? — Abri a cortina, como se ela fosse
me ouvir melhor. — Podemos ir agora? Estou precisando espairecer — falei,
segurando o nervosismo, e ela ficou em silêncio, como se me estudasse pela
voz.
— Claro. — A animação no tom de voz me pareceu um pouco
duvidosa. — Por onde quer começar? Temos a sede, as quadras esportivas, a
biblioteca, esse alojamento, que você já conhece, o alojamento dos menin…
— A sede! Ou a quadra, não sei… — Suspirei. — A biblioteca também
seria legal!
— Quando sair do banho comemos alguma coisa e…
— Certo, eu já estou saindo! — gritei, afobada, e fechei os olhos.
Mal senti quando entrei debaixo da água fria, e isso me parecia um
problema, pois não estava fazendo efeito. Parecia que nada nunca iria fazer.
Depois de vestida, enxuguei o cabelo com uma toalha enquanto me
olhava no espelho. Meg se aproximou com os braços meio cruzados. Os
olhos em mim não escondiam a confusão.
— Então…. como foi na diretoria? — Só ali me lembrei de que fomos
à diretoria pela manhã. Eu e… ele.
— Foi normal.
— Normal?
— É… ela só reclamou e…
— A reitora não tem muita autonomia por aqui. Na verdade, ninguém
tem. Eles só tentam manter as aparências mesmo, mas já são dominados há
anos. O que aconteceu? Você chegou tensa.
— Ficar no mesmo ambiente que ele me deixa tensa — pontuei.
— Ele? O Alien? — Não respondi, estava engolindo em seco quando
ela me olhou, esperando uma confirmação. — Sinto muito que tenha que
passar por isso, Bri, e agradeço mais uma vez pela ajuda. — Olhou para os
lados. — Você agiu bem diferente de mim, deve estar se arrependendo agora
que a adrenalina passou.
— Não me arrependo. — Vi quando ela voltou a erguer os olhos na
minha direção. — Poderia ter sofrido fraturas graves. — Sacudi a toalha e fui
pendurá-la no banheiro. — Está bem calma. Muito mais do que eu achei que
estaria — destaquei e ela riu.
— Estudo aqui há anos. Você está falando com uma veterana que já
presenciou de tudo. — Pareceu afobada. — Aquela não foi a primeira vez
que tentaram me matar aqui no campus, mas também não é como se
acontecesse com frequência. Costumo me misturar bem. Ou pelo menos
costumava…
Suspirei.
A situação era mais caótica do que eu imaginava. E conseguia enxergar
que a culpa da recente tormenta era minha.
— Sou eu quem está atraindo isso, e você estando comigo…
— Pode ir parando. — Meg ergueu a sobrancelha. — Não vou abrir
mão de dividir esse quarto com você! Estamos começando a ter regalias que
só o Alien e seu pessoal tem.
— Regalias? Por quê?
— Ele anda berrando por aí que você é dele, então… — Franzi a cara
inteira. Ela continuou: — Resquícios da veneração que você recebe, estão
respingando em mim. — Apontou para a porta. — A Jennifer não liga mais o
som de madrugada para disfarçar a transa com o namorado. Acho que eles
nem passam mais a noite nesse alojamento. — Apontou para o banheiro. —
Não temos mais que dividir nada porque esse quarto é para líderes da
irmandade, tem dois banheiros. — Olhei, confirmando o fato e tentando
entender como tomei banho ali e não percebi. Meg girou pelo lugar. —
Metade do que tem aqui não caberia naquele cubículo em que estávamos, e…
— Aproximou-se de mim. — Me pagam bebidas e lanches no refeitório. Já
tenho até alguns encontros… — Diante da minha reação perplexa, ela sorriu
sem graça. — Mas então qual o motivo desse seu colapso por distração?
— Ao contrário de você, sou nova aqui, e o alvo preferido do pior
arruaceiro deste lugar. Mesmo sendo filha de um delegado, não passei por
tantas aventuras mortais como nos últimos dias. — Olhei para ela. — Eu
preciso de um ar.
— Agora mesmo, patroa!

Meg estava animada e eu, tensa como uma idiota.


Preferi ir à biblioteca primeiro, o lugar onde Aaron Walker nunca
colocaria os pés imundos. Ela seguiu na frente, me guiando pelos corredores
do lugar imponente. O aroma de livros antigos pairava no ar, enquanto o som
suave de páginas sendo viradas acompanhava nossos passos.
— Conheça o coração da nossa universidade — falou, seus olhos
brilhando de excitação. — A biblioteca é como um santuário para os
estudantes. Aqui, você pode encontrar respostas para todas as suas perguntas.
— Algo sobre astronomia?
— Uma seção inteira! — exclamou. — Mas é no último andar. —
Olhamos para as escadas e seu cenho se franziu. — Outro dia, limpei aquilo
tudo por ter acumulado pendências na devolução dos livros. Dá pra me
poupar de estender a tour até lá? — Pareceu ser uma súplica.
— Tudo bem. Passo lá depois.
— Você é a melhor!
Me despedi da biblioteca, ouvindo sussurros de estudantes
concentrados em suas leituras e o ocasional som de uma cadeira sendo
arrastada no chão de madeira.
Entramos na área de divisão entre os pavilhões e seguimos para o
refeitório. Eu já me sentia melhor, a tensão tinha me dado trégua. Sair
pareceu ter sido uma boa ideia.
Até que eu visse o meu castigo. Sentado, não tão distante, ao lado do
Brandon.
Ainda não tinham me visto até que um cara se aproximou e bateu em
seu braço, acenando na minha direção.
Comecei a perceber que era o mesmo cara por quem eu passava não
uma, duas ou três, mas todas as vezes que eu pisava fora do meu quatro.
Esse imbecil colocou alguém na minha cola?
Evitei olhar para lá. Comecei a suar frio.
De que caralho eu tirei a ideia de perambular pelo campus?
— Tudo bem? — Meg percebeu meu corpo tenso.
— Melhor impossível — falei firme, como se respondesse a um
tenente.
— Certo… — Seu tom pareceu duvidoso.
Continuamos andando e eu já sentia o aroma de comida deliciosa
flutuando pelo ar. O lugar estava repleto de estudantes animados,
conversando e rindo enquanto se preparavam para suas refeições.
— O pessoal da tarde sempre se adianta para o almoço, porque as aulas
começam à uma e meia — falou, e meus olhos lutaram para focar onde
apontava. — Este é o nosso refeitório propriamente dito. — Acenou para a
variedade de estações de comida. — Aqui, você pode encontrar uma ampla
seleção de pratos, desde opções saudáveis até indulgentes. Vem, vou te
mostrar ao redor.
Seguimos enquanto uma sombra nos acompanhava a alguns passos, me
deixando nervosa a cada segundo decorrido.
— Você pode escolher o cardápio que preferir. Desde o mais fresco até
o mais apimentado.
— Não curto pimenta.
— Hum… — Uma voz masculina se ergueu e encarei Meg com a pior
cara que poderia fazer, quando percebi que era o desgraçado.
Que merda ele está fazendo aqui? Está brincando comigo…
— Então você pode gostar das saladas — Meg falou, franzindo as
sobrancelhas para mim, sem entender o porquê de eu parecer querer matá-la
com o olhar. — Pode personalizar também, mas é bom seguir a ordem das
estações.
— Aqui tem carne? — Tentei mudar de assunto, quando puxei a tampa
de um dos recipientes e encontrei mais salada.
— Todo tipo de carne — respondeu.
— Literalmente. — A voz rasteira do Aaron complementou e cerrei os
dentes, olhando pela visão periférica para vê-lo segurar um cardápio junto a
Brandon.
Estavam tirando sarro com a minha cara.
— Carne de verdade, Meg! — exclamei. — Carne de boi, não bezerro
ou vaca.
Ela quis rir.
— Bom, nós temos a origem e procedência dos ingredientes de cada
prato, junto à etiqueta dos valores nutricionais ao lado dos recipientes. É só
dar uma olhada antes de pegar para consumir…
Continuamos andando. Ela apontou para as massas.
— Variedade de massas. — Sorriu. — Gosta de ensopados?
— Nem tanto.
Ela apontou para um espaço um pouco mais distante.
— Temos cardápio japonês também.
— Não curto japonês. Nada cru me agrada, na verdade.
— Ih… perdeu, Itachi. — Ouvi a voz de Brandon dessa vez e meu
sangue ferveu nas veias.
— Sabe se o hashi perfura a pele, Meg?
— O quê? — Me pareceu surpresa.
— Só por curiosidade… — Lhe entreguei minha melhor cara inocente,
que desmoronou quando senti que os dois passavam ao meu lado.
— Talvez sirva para outras coisas também — Alien sussurrou para
mim e fez um sinal com os dedos nos olhos, como se disse que estava de olho
em mim.
Não demorou para que o imbecil que me vigiava surgisse ali perto, com
um cardápio nas mãos.
Marchei para longe do refeitório, possessa, sendo seguida por Meg.
— Bri? O que que deu em você?
Não parei até chegar em um dos imensos murais, próximo à estrada do
pavilhão de ciências da natureza.
— Só me dê um tempo, Meg. — Minha mãos escoraram na base
vidrada. Eu estava tentando dissolver minha raiva, me lembrar do porquê de
estar ali.
Explorei o mural, tentando me dispersar. Um cartaz me chamou a
atenção.
"Inscrições para líder da irmandade"
Ela me viu olhar ali e se aproximou.
— Interessada?
— Talvez... — Semicerrei os olhos. — Esse lugar parece precisar de
um pouco de ordem.
— Pode ser uma perda de tempo, sem querer te colocar para baixo…
— Me olhou com uma certa cautela.
— Por quê?
— A Glenda sempre vence. Não importa quem concorra com ela.
— Quem é Glenda?
— Você não vai querer conhecer, mas para resumir, pense no filme
"Meninas Malvadas”.
— Ah… elas ainda existem? — Não consegui conter a testa enrugada.
— Acrescente pais milionários e corruptos ao roteiro. — Piscou
algumas vezes. — A princesinha é intocada, mas, para a nossa alegria, vive
nas aulas de dança ou nas quadras balançando pompons para os atletas. —
Ergui uma sobrancelha.
— Atletas gangsters?
— Bem-vinda à Libert University, o North Shore versão crime. —
Segurei uma das fichas de inscrição entre os dedos e a segui até o jardim na
parte externa do campus. — Mas se quiser continuar com a ideia, é legal —
exclamou. — Faz um tempo que a irmandade não tem melhorias ou novas
propostas... — Me olhou com ainda mais cuidado. — E como o Alien parece
ter te dado uma trégua…
— Acha que ele me deu trégua depois de eu quase ter posto fogo nele,
e com a sede insaciável de arrancar a cabeça do meu pai, que só cresce a cada
dia decorrido? — perguntei, perplexa.
— Bom, você estava conversando com ele… — Ergueu os ombros.
— Eu o quê?
— Você e Aaron Walker, dialogando em códigos. Desde que
começamos a tour pelo refeitório. — Soltei um riso nervoso e joguei os
cabelos para trás das orelhas. — Ele sabe que você não tem nada sobre o seu
pai, Bri. Sabe que te levou ao limite.
— Discordo. Algo me diz que está apenas variando as estratégias.
— Acredite, te faria falar se quisesse. Aquele cara sabe pegar pesado
— pontuou. — O que parece que ele está fazendo agora é… protegendo
você?! Soa até estranho… — Esboçou confusão enquanto disfarçava um
olhar para o cara que me vigiava.
Ela também tinha sacado.
— Está garantindo que os abutres me deixem para ele. Para que só ele
me cace mais tarde. — Meg segurou o riso. Meu rosto pareceu pegar fogo. —
Não digo de forma literal. Sou a isca, ele só está se certificando de que só ele
pode me machucar, procurando uma brecha para me forçar a dizer alguma
coisa sobre o meu pai.
— E você sabe sobre o seu pai? — Piscou algumas vezes.
— Ele nem responde às minhas mensagens. — Segurei o celular,
olhando para a tela vazia.
— Então não tem o que temer. Só jure que não sabe.
— Nossa, Meg… como não pensei nisso antes? Você acabou de
resolver todos os meus problemas! — ironizei.
— Desculpa, sou péssima com essas coisas... — Mordeu o lábio
inferior. — Vamos? Tenho que te mostrar o auditório. — Virou-se enquanto
eu mantinha a atenção em uma mensagem brilhou na minha tela.
Comecei a rir ao ver a figurinha que Mavi me mandou. Já fazia um
tempo que não conversávamos, então abri o chat para responder.
Bem nesse instante, mais uma notificação cintilou sob meus olhos. E,
por um momento, não consegui acreditar no que via.
— Pai?
Ele me respondeu.
Já era noite quando meus pneus giraram feito loucos pela pista que
levava ao Brooklyn, guiando os babacas que seguiam atrás de mim em
direção ao nosso novo império, o que tornaria nossa gangue o maior pedestal
naquele lugar.
Era esse título que ganharíamos quando eu me tornasse líder dos
Skulls. Era o que merecíamos depois de tantos dias cinzentos.
Semicerrei os olhos, o sopro frio do inverno mais parecia ter vindo de
alguma parte do inferno. Deixava meu para-brisa esbranquiçado, me
obrigando a limpar a cada dois segundos.
Estava nervoso, mas por incrível que pareça, o motivo não vinha de
nenhuma dessas questões. Pressionei o volante contra os dedos e impulsionei
o carro a andar mais rápido, enquanto na minha cabeça só se passava um
grande: "tem alguma coisa errada".
Na verdade, tinha muita coisa errada naquele caralho, e todas elas se
relacionavam com a Abernathy.
Primeiro, qual era a intenção da filha do infeliz? Por que voltou? Com a
oportunidade de sumir, com a ajuda do traste do Jamar, o que ela fazia na
Libert? E mais confuso do que essa merda toda era o fato de que eu estava
me dobrando demais por ela. Mesmo que fosse pelos meus objetivos.
A vadia não hesitou em lançar fogo na minha direção e tudo que senti
foi um tesão desgraçado que me fez gozar quando bati a porra de uma
punheta pensando nela.
Eu estive preso.
Na cadeira de madeira da diretoria, por alguns minutos, mas eu, Aaron
Walker, estive preso. Colocaram a porra de uma algema em mim e eu
permiti. Não fazia isso nem em brincadeiras, tudo porque preferi não confiar
em mim. No meu autocontrole. Preferi prevenir para não a machucar, mesmo
tendo certeza de que não esmagaria a única chance de ter o delegado nas
minhas mãos.
No fim, era tudo pela vingança, mas só girava em torno daquela garota,
e isso me tirava do sério.
Parecia que, quanto mais eu cavava, menos sabia sobre ela. Por mais
que tentasse, era ela quem me lia, quem tinha algum tipo de poder sobre as
coisas,e que me fazia andar em círculos.
Pisei no freio e virei o volante quando percebi que quase bati na traseira
de um carro bem na entrada da mansão.
Olhar para lá era como receber um maldito soco no estômago. Foi onde
aconteceu a festa, sua última comemoração antes de perder a vida. Onde o vi
sendo o puto corajoso que sempre foi. Um verdadeiro líder.
Mas, naquele dia, o lugar era um mero ponto de encontro, escolhido
para tratar de assuntos importantes. Daquela vez, a minha coroação em seu
lugar segundo a concordância da maioria, claro. Coisa que eu não tinha
dúvidas de que teria.
Vou fazer por merecer a sua cadeira, irmão.
Funguei e desci do carro para encontrar com Brandon na porta do lugar,
me esperando para entrarmos enquanto Benedete e Ryus monitoravam a
entrada com seus carros.
— Tá chapado, cara? — Ele nem esperou que eu pisasse no batente
para perguntar.
— Eu não viria tomar posse do Brooklyn como um doido cheirador.
Por que a pergunta? Pareço ter comido pó?
— Se tratando de qualquer outro filho da mãe, eu diria que sim, caso
flagrasse a mini perseguição à isca no refeitório por pura diversão. — Olhei
para ele com os olhos semicerrados. — Dando lugar ao bom humor? É
diferente de você. Esses não são seus jogos. A coisa toda deveria ser sangue e
dor até que ela abrisse a boca.
— Gosto de ver o constrangimento dela. — Ri, me lembrando da cena
no quarto. — Além disso, preciso descobrir o que quer ali, por que voltou, e
acredite — olhei para ele —, não vou ser bom.
Entramos no lugar, vendo um cara quase morto no chão da imensa sala
detalhada por tons madeira. O cheiro de mofo só não era tão forte quanto o de
sangue. Ao redor dele, os homens seguravam armas e o encaravam como
animais sedentos por sangue.
Me aproximei junto a Brandon para ver que o antigo Conselho,
formado por uns vinte homens, todos designados pelo meu irmão, estava
reunido. Percebendo que o homem nocauteado tentava se arrastar e pisei no
pescoço dele, mantendo-o ali.
Afinal, para estar naquela situação, sob a mira de tantos dos homens,
algo ele tinha feito.
Nem precisei perguntar e já começaram a falar. Tom, o cara negro com
rosto redondo, parecia ser o único que não tinha chupado um limão.
— Tivemos problemas para tomar uma decisão importante. Bruce era a
minoria, iria colocar a gente em risco. — Olhei para eles e acenei devagar,
tirando a arma da cintura para finalizar o serviço. Depois de dois tiros no
crânio, estávamos frente a frente.
Encarei os homens ao meu redor. Não eram estranhos para mim; muito
menos eu para eles. John fazia questão de me chamar de seu aprendiz pelos
quatro cantos daquele lugar, já tinham meu rosto cravado na mente, mas
ainda assim seus olhares eram desconfiados, me avaliando com cuidado,
enquanto esperavam para ver se eu tinha o que era necessário para liderá-los.
— Como as notícias correm, creio que já saibam que as babás do meu
irmão me levaram a uma reunião — falei. Todos permaneceram atentos. —
Eles apostam em mim para tocar isso aqui na ausência permanente do John.
Perguntaram até o meu preço. — Fiz uma pausa, encarando cada um. — E
querem saber o que pedi em troca? — Silêncio. Os ventos silvavam ao nosso
redor balançando as janelas. — Pedi caminho livre para arrancar a cabeça do
homem que matou seu líder. — Percebi o aceno de alguns. Brandon, ao meu
lado, acenou também, me dando apoio. — Vocês todos conhecem a história
do meu irmão, do que ele construiu aqui no Brooklyn. Agora, é meu dever
manter essa chama acesa. Não sou aquele puto desgraçado, mas compartilho
o mesmo sangue, a mesma determinação. — Minha voz cortou o ar,
carregada de convicção. — Estamos juntos nisso.
O silêncio pairou por um momento, as palavras ecoando entre nós.
Então, um a um, os membros assentiram. Um gesto sutil, mas significativo. A
aceitação se espalhou como um fogo entre eles e, ali, eu soube que lideraria
oficialmente aquela porra.
Relaxei a pressão que exercia sobre o maxilar e ergui um pouco mais a
cabeça. Assumir o lugar do meu irmão não era apenas uma questão de poder,
era uma herança suja, manchada de sangue e tragédia. Um caminho tortuoso
que tinha a minha cara, uma desgraça na qual eu não via erro.
Afinal, ser quem eu era me fazia sentir conforto ali, no trono, na
escuridão. Como quando eu o via ordenhar o rebanho.
— Também quero acesso ao quarto de John. — Tom me seguia até a
caverna dos Skulls, nossos pés afundando em neve na porta do lugar
resguardado. — Preciso me inteirar, saber onde ele parou. Disseram que os
registros ficavam com ele? — Acenou. — Ótimo. Vou dar continuidade a
essa porra, mas preciso saber, como estão as coisas?
— Concluímos o transporte da maioria das cargas.
— E o retorno? — Abri a porta do lugar, a área externa abrigava de
tudo um pouco, desde armamentos a mercadorias para transporte.
— Uma parte foi saqueada por alguns rivais que dominaram uma
porcentagem da parte Sul — respondeu e olhei para ele, sério. — Estávamos
sem um líder, as coisas se complicaram, mas conseguimos segurar.
— E a outra parte?
— Depois de passar o que não nos cabe aos aliados de John, sobraram
migalhas. Dividimos entre nós. — Andamos para dentro, comecei a averiguar
a situação. — O Bruce tocou a partir de então e as coisas começaram a andar
novamente, mas ele era um pouco difícil de lidar.
— Não é mais — afirmei, quase sentindo o gosto do sangue do cara.
— É, não mais…
— E quanto ao…
— Nem sinal do Abernathy. — Ele nem precisou que eu completasse a
pergunta. — Estamos procurando por toda a parte desde aquele dia. Os
homens estão dando tudo de si.
— Imagino. — Suspirei. Era inacreditável como aquele porco
conseguia se esconder tão bem, e eu me via sem respostas mais uma vez.
Mudei de assunto, saber que fracassava me fazia sentir a lâmina do diabo
atravessando o meu peito. — Preciso que saiba que os aliados de John
mandarão alguns espiões para me monitorar. Faz parte do acordo, avise aos
caras para não destroçarem eles.
— Você precisa de supervisão? — Pareceu surpreso.
— Frescura dos imbecis. Sabem que se estou no comando, seja do que
for, decola. — Olhei pra ele. — Estão tentando me podar.
— E o acordo vale mesmo a pena? Vai mesmo levar essa base de
associados nas costas e aturar ser monitorado para matar um porco? —
perguntou, como se duvidasse dos meus ideais.
— Mantenho os negócios funcionando por aqui e eles abrem caminho
para que eu tenha o Delegado Abernathy, autor da morte do meu irmão, seu
antigo líder. — Diante do meu olhar desafiador, ele esmoreceu.
— Tem razão, é um bom negócio.
— É o meu negócio — afirmei. — A única coisa que importa para mim
no momento, e que nunca pode ser questionada.
— Não está mais aqui quem perguntou, chefão. — Ergueu as mãos, me
vendo pegar algumas caixas para conferir as mercadorias. — O que faremos
agora? — Olhei para ele por baixo das sobrancelhas grossas. Até parece que
daríamos as mãos para cantar ciranda.
— O que faremos? — Ri, me lembrando do dia em que quase ateei
fogo em todo o burgo quando estava no comando. — Tomamos de volta o
que tiraram de nós.

Saímos da caverna e seguimos direto para a pista livre, não tão longe
dali. Era o lugar no Brooklyn onde aconteciam os rachas que cortavam
Manhattan e atravessavam as tábuas da lei, como tijolos inúteis empilhados.
Era revigorante saber que, além de correr, eu mandava ali agora. E
mesmo que aquilo não fosse um racha, me trazia a mesma adrenalina que
aqueles momentos proporcionavam, o mesmo prazer que me tomava quando
eu estava com as mãos no volante, sentindo o cheiro de pneu queimado e o
balanço das molas sobre a pista. Mas ainda conseguia ter um toque diferente,
porque não iríamos correr, iríamos matar.
Fixei o olhar afiado, percorrendo o grupo que se reunia ao redor dos
carros. Cada rosto era uma máscara, escondendo intenções obscuras e desejos
destrutivos. Benedete, Ryus, Brandon, todos ali tinham seus motivos para se
juntar a mim, e iam além do nosso vínculo. Eram pessoais, e ainda assim nos
ligava pelo fio invisível do crime e da lealdade distorcida.
— Benedete, você abre caminho. Ryus, fique na retaguarda. Brandon,
cubra o lado leste. Souberam de movimentos estranhos por lá. Provavelmente
os rivais que nos roubaram e tomaram uma porcentagem do que é nosso,
estão estabelecidos lá. — Minhas ordens eram curtas e precisas, um reflexo
da autoridade que agora pesava sobre meus ombros. — Vamos brincar um
pouco com os inimigos.
A noite se desdobrou diante de nós. Carros rugiam como feras
famintas, rasgando o asfalto na direção do que buscávamos. Sob o meu
comando, o reinado de metal retorcido e pneus em chamas.
Cada curva, cada derrapagem controlada era uma declaração de poder.
Eu sabia que não havia mais volta. As sombras do meu passado se estendiam
sobre o Brooklyn, uma lembrança constante de que nasci para ser e qual era o
meu objetivo estando ali.
Nunca haveria paz para mim. Apenas poder, controle e a eterna busca
pelo próximo movimento no jogo mortal que eu liderava. Porque, o
Submundo em que vivíamos, a dor era nossa aliada e a vingança, nossa
amante.
"Estou cuidando do caso de sua mãe. Sabia que iria resistir, continue.
Quero o nome de todos, todos os detalhes. Conto com você".
Completaram dois dias que tinha lido aquela mensagem no meio de um
dos pátios da universidade. Estava relendo a cada cinco minutos e o que me
prendia, todas as vezes, era a primeira parte.
Ele estava cuidando do caso da mãe! Finalmente!
Minhas mãos tremiam sempre que pensava naquilo e na minha cabeça
só se passava uma coisa: eu precisava manter o Alien longe dele. Precisava
servir de saco de pancadas, dar cobertura.
Me esquecia até de quem meu pai era, do monstro que se tornou na
ausência dela. Porque, no final, se ela voltasse, tudo estaria resolvido.
Tudo vai melhorar.
— Bri? — Meg me chamou, talvez pela milésima vez. — Diz que
ouviu uma palavra do que falei, eu imploro.
Franzi o cenho para ela.
— Pode repetir?
Depois de bufar, Meg começou a tecer o resumo do resumo.
— A nova Reitora acabou de tomar posse do cargo. Dizem que foi
designada para cá pelo próprio governador.
— Legal. — Tentei colocar o máximo de ânimo possível na fala e
voltei para a telinha.
— E tem mais. — Ela tomou meu telefone e jogou de lado.
— Cara?!
— Você também foi anunciada como líder da irmandade, garota!
— O quê? Já anunciaram?
— O resultado sairia hoje, junto com a nova liderança da secretaria.
Você se inscreveu e não leu sobre as datas? — perguntou e minha cabeça se
embolou em uma confusão.
— Mas como ganhei se…
— Glenda? — Ela riu. — Estou depositando as minhas cartas que você
teve um grande poder de influência.
— Devido a?
— Aaron Walker. — Franzi o cenho e ela continuou. — Ser o centro
dos recentes shows dele te fez se tornar intocável, Brianna. Ele literalmente
anunciou que você é dele.
— É um babaca maluco e obcecado pelo meu pai.
— E, por saber disso, as pessoas não querem vê-lo irritado. Por isso,
você ganhou.
Suspirei. Tudo parecia girar em torno daquele infeliz.
— O que vai fazer agora?
Além de manter uma barreira entre Aaron e meu pai, recuperar minha
arma, descobrir qual é a da chave e registrar tudo que puder sobre os mini
criminosos ali?
— Vou pegar o meu crachá de líder e anunciar festas o ano inteiro. —
Deixei escapar somente o que uma pessoa normal diria.
— Essa é a garota que esperei ver o semestre inteiro! — exclamou.
Sair do prédio de administração foi uma verdadeira luta. Precisei
improvisar o meu discurso, mostrar estratégias acadêmicas de um post de
dicas na internet, e sorrir o tempo inteiro para a direção. em uma sala bege
com o ar condicionado gelado, enquanto a nova reitora do campus me
encarava com os olhos de uma víbora.
Depois que tomei posse da liderança, tive ainda mais certeza de que
preferia não ter conhecido Glenda. A sala inteira precisou aturar quase duas
horas, em que ela tagarelava e apresentava provas de que a votação foi uma
fraude. A boneca cor-de-rosa estava na frente, mas bastou eu colocar o meu
nome no painel de votação e o jogo virou aos quarenta e cinco do segundo
tempo.
Eu não tinha um discurso, não tinha uma chapa, sequer participei dos
encontros com a direção, mas meu nome estava lá, como líder da irmandade
segundo a votação contabilizada.
Parecia até loucura, mas esse era o poder da influência daquele
desgraçado.
Caminhei rápido pelos corredores do alojamento dos meninos. Os que
passavam por mim com a cara feia recebiam uma careta pior da minha parte,
mas nenhum me dizia sequer uma palavra.
O que eu estava fazendo ali? Aproveitando a minha carta branca de
líder, inventando uma reunião com o líder da fraternidade para conversarmos
sobre a união dos grupos e projetos em comum. Cartada que consegui
elaborar durante a reunião, e que me levaria direto ao quarto do Alien.
Com o sinal de vida do meu pai e tendo decidido que o manteria longe
do alcance do Alien enquanto procurava pela minha mãe, precisava me sentir
segura perto daquele maníaco, logo, recuperar a minha arma parecia ser uma
boa.
O problema era que não seria tão fácil assim, e eu sabia disso.
Segundo a folha a que tive acesso na sala da diretora, o quarto dele era
o maior. Por que será, não é? Tinha a droga de uma porta diferente e isso me
fez perder algum tempo para averiguar a fechadura com um pouco mais de
calma.
Minha experiência não era tão vasta para aquelas coisas, mas eu sabia
usar um grampo, e foi no que investi. Os minutos se arrastavam enquanto me
via pendurada na porta trancada, tentando mover o maldito grampo de cabelo
ali dentro.
Agradeci aos céus os dias que passei abrindo portas sem a permissão do
meu pai, para treinar com as armas dele, ou eu levaria um século ali.
Os cliques agressivos ressoavam pelo corredor e minha testa já pingava
suor. Manter um olho no serviço e outro ao redor, para garantir que ninguém
me veria. Estava sendo um horror.
Quando a fechadura cedeu, um leve estalo reverberou pelo lugar e eu a
empurrei suavemente.
Ao entrar no lugar, a primeira coisa que percebi foi o quarto limpo e
cheiroso, o que era um milagre. Não vi nenhum daqueles marmanjos com
cara de quem arejava um chão.
Percebi que tinham duas camas lá, o que indicava que ele dividia o
lugar com um colega.
Enfim, gente como a gente.
Fechei a porta atrás de mim e mergulhei na atmosfera intensa. Paredes
com pôsteres desgastados de bandas de rock, CDs e vinis espalhados,
marcados por incontáveis riscos de rotação, miniaturas de carros
cuidadosamente posicionadas em prateleiras na parede. Uma jaqueta de couro
pendurada em um gancho na parede exalava o cheiro dele. Fresco, forte e
imponente.
Avistei minha arma em cima da escrivaninha, esbanjando a
despreocupação do rei daquele lugar em expor armas de fogo como enfeites
de cômoda. Agarrei-a primeiro e a coloquei na cintura, depois passei a abrir
as gavetas dando um "olá" à minha curiosidade de saber o que tinha no
dormitório de filhotes de criminosos.
Preservativos, uma boca sintética de borracha que preferia não ter visto,
coisinhas embaladas que facilmente os fariam pegar alguns anos na cadeia,
chicletes, barrinhas energéticas, suplementos — afinal, aqueles músculos
tinham que sair de algum lugar — e mil e uma latinhas de álcool em um
refrigerador maior do que seus próprios guarda-roupas.
Nada parecia de meu interesse até que eu olhasse na cabeceira.
— Isso!
Estava lá. O molho de chaves e a cópia do que meu pai tinha junto às
coisas da investigação. Tirei-a de lá e olhei um pouco mais de perto,
comparando com a foto no meu celular.
Era igual, e eu não sabia onde enfiar tanto entusiasmo. Não até ouvir
passos se aproximando da porta, aí enfiei o entusiasmo, a chave, a arma e a
mim mesma debaixo da cama mais próxima.
Apertei os olhos e prendi a respiração quando vi os pés entrarem. Seja
quem fosse, fechou a porta, caminhou para dentro e se sentou na cama.
Segundos depois uma bermuda caiu no chão, ao redor dos pés. Ele tirou
a cueca também, vi quando o tecido caiu sobre o jeans e comecei a entrar em
desespero silenciosamente.
A maçaneta girou e mais alguém entrou no lugar.
Era a voz de Aaron.
— Pior do que foder com a minha privacidade é entrar aqui e te ver
pelado, cara — falou.
— Sei que você entra em depressão quando vê o tamanho do meu. O
seu chega a quanto? Sete centímetros? — Brandon finalmente respondeu e eu
ergui as sobrancelhas.
Tinha me esquecido completamente de que era com ele que o Alien
dividia o quarto.
— Sua mãe e sua irmã não conseguiram mamar sozinhas — o
desgraçado rebateu e Brandon riu.
— Vai se foder!
— Aí, punheteiro, manda esse molho de chave. — Ouvi quando
Brandon pegou a penca e jogou para ele.
— Seu irmão deve estar se revirando debaixo da terra. Você se apossou
de tudo que era dele. Até às chaves de carcereiro. — Riu, apertei a chave que
tinha pegado entre os dedos e me encolhi um pouco mais ali.
As chaves eram de John?
Minha cabeça sacudiu. Saber que pertencia ao irmão dele não aliviava
as coisas, mas pelo menos ele as tinha. Era provável que soubesse bem onde
usar cada uma.
Só voltei a respirar quando Aaron saiu do quarto. Mas ainda tinha
Brandon. Pelado.
Esperei ele entrar no banheiro ou algo assim para sair dali o mais
rápido possível, mas percebi que sua respiração começava a ficar mais forte.
Quando o som da fricção surgiu duvidei dos meus ouvidos.
Eu iria presenciar mais uma punheta? Esses caras não tinham uma
garota para aliviar a tensão?
Engoli as interrogações no exato momento que ouvi o nome que ele
sussurrou enquanto ofegava.
Era a porra do meu nome.
Loucura.
Era pura loucura, mas me deixou excitada também, admito.
Os pelos nas pernas dele se eriçaram e eu via suas panturrilhas
tremerem. Tampei a boca e continuei ouvindo. Não tinha muito o que fazer, e
o calor no meu corpo clamava involuntariamente por mais.
Brandon era diferente do Aaron. Suas investidas eram firmes, mas ao
mesmo tempo mais lentas. Ele ofegava baixo, contendo aquilo tudo no peito,
e parecia ronronar a cada pausa.
Apertei a chave em uma das mãos e a arma na outra quando voltou a
murmurar o meu nome, batendo com força e rosnando entre dentes. No
entanto, o movimento começou a parar devagar. Em um piscar de olhos,
puxou a roupa para cima e ficou de pé.
Nossa, ele nem gozou?
Que porra de punheta foi aquela? Segurei a vontade de sair ali debaixo
e perguntar por que parou, mas, poucos segundos, depois senti sua mão
envolver o meu pé. Brandon me arrastou para fora do meu esconderijo.
— Que merda você está fazendo aqui? — Seu rosnado me golpeou, os
cabelos escuros caindo sobre o rosto me fizeram lembrar do Aaron.
Tudo me fazia ver, comparar e me lembrar daquele imbecil. Devagar,
comecei a ficar de pé.
— Como você soube que eu…
— O seu cheiro. Doce e irritante. — Me encarou.
Pisquei algumas vezes sem saber muito bem o que dizer, até que ele viu
a arma na minha mão. Aproveitei sua atenção ali para esconder a chave no
meu bolso.
— É minha. Aaron roubou na festa, só vim pegar de volta. — Encarei-o
também, percebendo seu olhar ao redor, como se soubesse de cada mísero
objetivo e estivesse conferindo se estavam em seus lugares.
Me senti ofendida, mas engoli a indignação.
— Posso saber… — engoli em seco — o que foi aquilo? — Olhei um
pouco para baixo e ele ergueu as sobrancelhas.
— É meio que uma necessidade masculina, você não vai entender.
— Necessidade? — Foi a minha vez de erguer as sobrancelhas.
— Aaron não quer que sequer olhemos pra você. Eu só tô sendo um
backstabber (talarico) de um jeito menos errado.
— Mas não tenho nada a ver com aquele imbecil! O termo backstabber
não faz sentido aqui.
— O que torna isso ainda menos errado. — Riu. — Mas continua sendo
proibida, como se fosse dele, fantasiar com você fica mais gostoso. — Meus
lábios se abriram devagar. Ele continuou. — Juro que se assumirem namoro
um dia, nunca mais te imagino nua. — Ergui as mãos.
— Eu desisto de homens! Quer dizer… — Voltei atrás. — Vocês não
passam de riquinhos metidos a criminosos. — Me preparei para sair de lá
como um raio, tentando esconder o rubor que me assolava, quando ouvi o
infeliz mandar um áudio para o amigo.
— Aí, Alien, adivinha quem estava aqui dentro como uma ratinha
debaixo da minha cama? — Me virei para olhar para ele com sangue nos
olhos.
— O que você está fazendo?
— O óbvio. Ele vai perguntar pela arma.
— E em vez de a tomar de mim, você me deixa sair com ela e avisa a
ele?
— Qual parte do "ele não quer que ninguém toque em você" ainda não
entendeu? — questionou, e minha raiva borbulhou pelas veias.
— Então o que acha que ele vai fazer se souber que você se masturba
pensando em mim? — desafiei.
— Falando assim, até parece que namoram… Não foi você quem disse
que não tem nada a ver com ele? — Cruzou os braços, rindo, mas enquanto
se aproximava, seu tom voltava à seriedade. — Aaron divide todas comigo,
ratinha, só com você está sendo diferente. Ele te tem como um tesourinho
intocado.
— Não me chama de "ratinha", idiota! — esbravejei e ele se afastou
voltando a rir.
— Claro, só ele te chama assim. — Caminha até o frigobar. — Aaron
mantém tudo sobre você só para ele, sabia? — Abriu uma lata, o álcool
chiou, fazendo o efeito borbulha, e eu assisti a ele tomar um longo gole. —
Ele está completamente obcecado por você e pela vingança. Só não diz que te
contei isso. — Tomou mais um pouco. — Acho que ele nem chegou à parte
boa ainda, pelo menos isso ele me diria. — Ergueu a sobrancelha. — Ou
vocês já…
— Ele não está louco o bastante para tentar fazer isso!
— Ah… Então essa pode ser uma das razões das tantas regras quando o
assunto é você. Ele quer ser o primeiro daqui a experimentar.
— Então acho que o Aaron perdeu a vez. — Me aproximei. — Você
será o primeiro a experimentar… — ergui a arma — balas na cara!
— Por que não fala isso a ele? — Seus dedos agarraram o celular. —
Alien já viu minha mensagem e deve estar voltando para cá agora mesmo.
Engoli o xingamento e saí de lá correndo.
Pior do que suportar Brandon, com certeza, seria suportar Aaron. E eu
precisava esconder aquela arma, antes que ele a tirasse de mim de novo.
Olhei no relógio.
Passei duas horas com a chave na mão, meu crachá de líder na outra e a
certeza de que Aaron me colocaria contra a parede quando soubesse que
estive em seu quarto.
Meu desejo era de correr para a casa do meu pai, ali em Manhattan, e
procurar por qualquer coisa relacionada àquela chave enquanto ainda estava
livre, mas inventei de iniciar um projeto naquele mesmo dia, em
comemoração à minha vitória, para mostrar o quão engajada estaria na
liderança.
Agora, eu estava na mira do Alien e da reitora.
Minha expressão moribunda levou um tapa de Meg, que parecia
animadíssima com o novo projeto que propus ao corpo acadêmico.
Ele surgiu da primeira coisa que pairou a minha cabeça durante a
reunião. Tratava-se de um trabalho com pessoas de cursos distintos. Uma
proposta de interação e junção de diferentes ciências para resolução de
problemas ambientais. Os ganhadores iriam concorrer ao destaque na revista
de Manhattan em trabalhos acadêmicos.
Viva o ensino, viva a união estudantil, as ciências e suas importâncias,
blá-blá-blá. E viva a minha burrice de inventar essa merda.
Caminhei rápido pelo pavilhão administrativo. Iríamos nos reunir no
auditório de lá por ser maior do que a quadra esportiva, e só de olhar pela
porta dupla, pude perceber que estava lotado.
Entrei bem rápido, tentando disfarçar que estava atrasada, circulei as
cadeiras muito bem organizadas e subi no palco, para me sentar junto aos
líderes e secretários, sob a atenção meticulosa de Penélope, a nova reitora.
Ela era uma mulher mais jovem que a Senhora Hunter, exibia cabelos
cacheados curtos e uma pinta no nariz. Seus olhos eram claros e, assim como
na reunião, me fitavam como os de uma serpente.
A secretaria estava em peso e os funcionários também, além dos
universitários mais compromissados e o corpo docente.
O primeiro a falar foi Doug, líder reeleito da fraternidade, e devo dizer:
me surpreendi com suas propostas. Confesso que o arrependimento de não ter
ido até ele, em vez de me enfiar no quarto de Aaron, bateu como um balde de
água fria. Eu teria uma bela bagagem para apresentar, se tivéssemos entrado
em acordo para unir irmandade e fraternidade, ou mesmo só trocando
algumas ideias.
Mas foi para um bem maior. Agora, eu tinha com o que me defender do
Alien, e tinha a chave.
Quando o garoto branco de cabelos ralos terminou, foi a minha vez de
discursar e colocar o que eu havia prometido em jogo. Me levantei da cadeira
e, com os olhos em cima de tanta gente, decidi que seria breve, o nervosismo
estava me matando, apresentei minha satisfação em fazer parte do corpo da
liderança, destrinchei detalhes sobre a minha proposta e finalizei com um
sorriso forçado para, com um aceno, a direção concordar com o meu projeto
relâmpago.
— Já pode começar a se organizar, Brianna — Penélope pontuou. —
Estou curiosa para ver o rendimento dos universitários. São desses tipos de
projetos que se extraem os novos Einsteins das classes. — Seus olhos
permaneceram fixos em mim. — Se me permite saber, e que sirva até para
que os demais usem como exemplo no ato de escolha…— Ergueu a
sobrancelha. — Com quem pensa em fazer dupla para o projeto?
Soltei o ar devagar. Não era uma pergunta difícil.
— Bom, desde o início do projeto tive em mente que a união entre a
Medicina e outra área do conhecimento, que preferencialmente não esteja
enquadrada nos limites dessa ciência, poderia resultar em algo esplêndido,
então por que não…
— Medicina e Engenharia Mecânica? — A voz masculina me fez
vacilar. Todos viraram as cabeças para ver quem abriu as portas do lugar com
tamanha falta de educação e não pareciam nem um pouco surpresos quando
viram Aaron. Meu coração, no entanto, faltou saltar pela boca e
cumprimentá-lo na porta. — O que acha, reitora? Equipe? — perguntou alto,
enquanto caminhava até a frente e eu prendia a respiração. Quando
finalmente chegou à primeira fileira de cadeiras, seus olhos miraram os meus
e, em seguida, passaram das pessoas sentadas ali à reitora, que suspirou como
se já soubesse o que estava vindo. — Como está o governador, senhora? —
perguntou a ela, como se fossem íntimos.
Foi bem ali que minha esperança de ter um final de dia normal morreu.
— Receio não saber sobre a vida de políticos, Walker. — A mulher se
desviou dele, sacudindo a perna cruzada e acenou para que eu prosseguisse.
— Alguma ideia para um projeto assim, Brianna Abernathy? — Sua voz
feminina e firme me atingiu como um tapa, depois do soco do Alien.
— Não… não mesmo, eu iria dizer Medicina e Artes…
— Então comece a pensar no que fazer em um projeto com Engenharia
Mecânica — determinou.
— O quê? Mas…
— Você falou que os universitários precisam sair da zona de conforto e
que sua proposta visa isso, ou entendi errado? — Baixei levemente a cabeça e
ela continuou: — Essa é a hora de ser o exemplo para a irmandade. Não vai
colocar em prática o que já iniciou planejando, vai sair da sua zona de
conforto — Pontuou me deixando perplexa em cima do palco. Sua voz
aumentou um pouco mais. — Diante disso, vou escolher as duplas, para que
não haja situações cômodas de afinidade ou algo similar. A relação estará
pronta em alguns minutos nos murais da universidade. Agradeço a atenção e
presença de todos. — Levantou-se para sair, levando todos presentes consigo.
Meu olho esquerdo piscou sozinho enquanto a sombra sorridente do
desgraçado se aproximava do palco.
— O que mais você quer de mim? — Olhei para ele, o colar ainda
balançando no pescoço, ele não o tirou desde que o pendurou ali. — Eu já
falei tudo que sabia!
— Quer que eu seja sincero? — Mordeu o lábio inferior. — Não quero
assistir a você definhar.
— E por que não iria querer isso? Você me odeia tanto quanto te odeio.
— Semicerrei os olhos.
— Você vale a minha vingança. Não posso perder a oportunidade de
amassar a cara do seu pai, e é a minha melhor carta para isso. — Lá estava, a
razão principal. — Sei que já espremi tudo de você, mas continua sendo a
filha do delegado, e uma bela moeda de troca. — Inspirei fundo e olhei para a
pasta na minha mão, o nome de Meg, ao lado do meu, pronto para dar lugar
ao daquele infeliz.
— Por que todo mundo parece obedecer você nesse inferno?
— Nesse inferno e fora dele, e é o que eu espero de você também, já
que conseguiu pegar a arma de volta. — Seus braços cruzaram. — Não está
pensando em me atacar, está?
— O que você acha?
— Acho que precisa tentar, vadia, mas sabendo que vou foder com a
sua vida de um jeito ou de outro — pontuou, e virei o rosto para o lado.
Era o inferno que escolhi, não tinha como voltar atrás. Mas seria breve.
Pelo menos, eu esperava que terminasse logo. Saí de lá formando fogo a cada
passo que dava, mas, antes de desaparecer, sua voz alcançou meus ouvidos.
— Ah, e eu vi a planilha! — Olhei para a pasta, o ponto vermelho de
reuniões entre Meg e eu. — Já que seremos eu e você, passo na biblioteca
mais tarde?
A biblioteca estava uma zona. Mais especificamente, a minha parte da
mesa, para ser sincera.
Minha cabeça era uma confusão e eu ainda tinha Meg fazendo
perguntas.
— Aturou a Glenda a reunião inteira? — Ela apertou os olhos,
querendo rir.
— Por um milagre — respondi, tentando formular o pedido que iria
fazer a ela.
Eu precisava do carro e de cobertura, para sair furtivamente e ir até a
casa em que estive com meu pai. Não tinha certeza de nada, mas aquele era o
único lugar propenso a encontrar alguma coisa, visto que passamos dois dias
lá quando chegamos do Brooklyn.
— Eu imagino… — Percebi que suas mãos trabalhavam sem vontade
alguma, enquanto ela empilhava alguns livros no meio da biblioteca
movimentada, e constatei que aquela não era hora de pedir favores.
— Também tô mal por ter dado errado, Meg… E agora você vai ter que
fazer dupla com Benedete… — Meu suspiro soou pesado.
— Amiga, você tem Aaron como dupla. Estou no céu, se compararmos.
— Colocou alguns fios atrás da orelha. — Vi que ele te manteve por mais
tempo no auditório. O que houve?
— Pelo visto, o desgraçado sabe que não tenho nada a oferecer sobre o
paradeiro do meu pai.
— Finalmente!
— Depois de me torturar e quase me matar inúmeras vezes, é… mas
ele ainda quer me usar como moeda de troca ou qualquer outra coisa que
sirva como ponte para chegar ao delegado.
— Seu pai não falou com você desde aquele dia… — Disse, e olhei
para o meu celular. O número dele suspenso em uma aba invisível à qual só
eu tinha acesso. — Sei que pode ser para a segurança dele, mas e a sua? Ele
te mandou pra cá e é isso?
Se ela soubesse que desde o início o plano era que eu fosse uma espiã,
e nem eu mesma sabia disso, ficaria chocada.
— Não quero pensar no meu pai agora, Meg. Mas no meu problema
maior: Aaron Walker.
— O problema que escolheu quando decidiu voltar para cá.
— Esse mesmo. — Meg riu de mim e cruzou os braços.
— Você é uma incógnita, Brianna… não dá pra te entender, sabia? —
Esticou as mãos, pegou seus livros e começou a sair.
— Às vezes, nem eu mesma me entendo… — murmurei sozinha e
voltei a folhear meu livro.
A filha com o nome dele estava lá, dobrada entre as páginas, com os
poucos dados que eu tinha de sua vida, família e amigos. Embolei-a e a atirei
no lixo mais próximo.
Eu tinha coisas maiores para me preocupar do que ficar escrevendo
sobre cada filhote de bandido naquele lugar. Tudo que descobri sobre eles
estava embalado na minha cabeça, se necessário, eu saberia o momento exato
para usar.
Não demorou para que a familiar sensação de estar sendo observada
ressurgisse das cinzas.
Com certeza, era um dos capanguinhas do Alien, me vigiando.
Essa certeza se desvaneceu quando ergui os olhos e vi o próprio Aaron
passando pela porta, com os olhos em mim.
O lugar já poderia pegar fogo sozinho agora e todos achariam normal,
porque algo mais icônico acontecia: Aaron Walker estava entrando na
biblioteca.
Ele tinha um livro na mão. Algo novo, em uma case preta que não me
deixava saber sobre o que se tratava. Vi quando o acomodou na mesa, entre
os inúmeros outros que eu tinha espalhado ali.
Por incrível que parecesse, as pessoas falavam com ele, sorrindo. E, por
um momento, distraíram-no com bajulações, mas logo se voltou para mim.
Continuei em silêncio, sentindo seu olhar cortante. O ar ficava tenso a cada
minuto decorrido, e folhear aquela enciclopédia já não me livrava daquele
suor frio na espinha.
Puxei uma cadeira, um pouco distante dele, segurei o livro e comecei a
me sentar. As tábuas de madeira me pareceram ser mais macias que o normal,
e eu não quis acreditar no que aquele desgraçado fez quando me dei por mim.
Eu estava no colo dele.
— O que você…
— Quietinha. — Suas mãos apertaram a minha cintura, me forçando a
ficar lá, a sentir aquele volume todo tocando o exato lugar que eu sentia
esquentar.
— O que você quer com isso? — Minha pergunta saiu entredentes.
Estávamos sussurrando no meio da biblioteca.
— Eu só quero um pouco mais de proximidade.
— Vai ter proximidade com o…
— Shh… tem alunos exemplares estudando aqui, ratinha, seja uma boa
menina. — Ele me fez virar para si com uma facilidade que me deixou
perplexa. Sua boca estava estrategicamente perto da minha nos próximos
instantes.
— Sua nova jogada é tentar me seduzir para conseguir o que quer?
— Você tem o que quero?
— Sabe que não, seu desgraçado — sussurrei, apertando os olhos, e ele
riu.
— Estive me perguntando o que você estaria fazendo aqui, por que
voltou… — segredou, olhando para mim enquanto brincava com uma mecha
do meu cabelo.
— Talvez eu só queira uma vida normal, estudar e morar num lugar
fixo.
— Mesmo que eu more a poucos passos de você? — Seus dedos
colocaram um pouco do meu cabelo atrás da orelha e ele aproximou o rosto,
me deixando hipnotizada. — Eu pediria uma prova de que está aqui porque
quer. — Olhou nos meus olhos, seus lábios se entreabrindo devagar a cada
palavra levaram os meus a fazer o mesmo. — Mas não confio tanto assim em
você. — Me desviei de sua boca, e percebi os olhos desafiadores. — Sei que
está escondendo coisas, e vou descobrir. Tudo. — Puxei o ar quando o vi
jogar a cabeça para trás e vir com tudo contra a minha testa.
O baque me fez perder os sentidos e amoleci de forma instantânea,
caindo em seus braços enquanto me segurava com força.
— Shh… tudo bem. Pode dormir no meu ombro… eu deixo.
Senti sua respiração leve no meu pescoço e deixei escapar um sorriso.
Minhas mãos apalparam sua calça e puxei o telefone do bolso de trás. Passei
Brianna do meu colo para a cadeira e acomodei a cabeça dela sobre a mesa.
Os fios de cabelo caíram pela madeira maciça, e eu podia ver seu rosto na
minha direção.
É adorável quando não fala, ratinha.
Sua mão pequena à mercê da minha curiosidade e desconfiança, tinha o
dedo indicador deslizando sobre o leitor de impressão digital segundos
depois. A tela acendeu e eu tinha seu baú secreto, aberto bem diante dos
meus olhos.
Em tudo havia astronomia, e isso ia desde nebulosas no papel de parede
a icons personalizados organizados por tons de azul e violeta com planetas
flutuantes sobre a tela. O telefone era literalmente uma galáxia ambulante.
Fez um santuário para mim?
O ícone da galeria de fotos brilhou em meus olhos primeiro e segui
para lá. Uma pasta com um emoji de pêssego me chamou a atenção mais do
que qualquer coisa naquela seção e eu não pude medir o tamanho da minha
perplexidade quando vi o que ela guardava lá.
Imagens de seu corpo seminu.
No subtítulo do álbum, algo como "moda praiana" — ou fosse lá qual
fosse a merda que tinha a ver com praia — reluzia.
Empurrei a sequência de imagens olhando uma a uma só para ter
certeza de que ela não guardava nada ali — nunca se sabe —, mas parei
quando cheguei em um conjunto vermelho.
Meus dedos descobriram o zoom.
A porra do tecido fino que marcava os mamilos da vadia e a fenda no
meio da calcinha me fez abrir um pouco mais as pernas e passar os dedos
pelo cabelo, suando frio como um animal no período de acasalamento.
Soltei o ar quente pelas narinas e fechei todo o aplicativo. Bastava de
fotos. Eu não tinha tempo para ficar duro.
Percorri rapidamente as mensagens, tentando encontrar algo que
justificasse sua presença ali, algo que explicasse por que diabos ela voltou, ou
talvez uma conversa com o porco, para que eu pudesse rastrear.
Perdi tempo na conversa com uma garota. Mavi. Pelo visto, eram
amigas íntimas e moravam distante uma da outra. Só falavam sobre a ratinha,
seu gosto duvidoso para homens — coisa que me pareceu interessante — e
trocavam sugestões sobre qual roupa usar para ir a algum lugar —
mulheres… Ela tinha umas cinquenta mensagens não respondidas daquela
garota, e a julgar pelas últimas, em caixa alta, era uma amizade a menos.
Logo em seguida, fui bombardeado por grupos disciplinares da
universidade e grupos de leitura de livrinho de romance.
— Isso é romance? — Enruguei a testa para uma capa com serpentes,
sangue e rosas vermelhas. As figuras que elas mandavam ali beiravam ao
insano. — Você tem um gosto duvidoso para literatura também, docinho. Seu
pai sabe sobre seus livros de histórias para dormir?
No entanto, não demorou muito para encontrar algumas outras
mensagens. Eram caras da universidade, de outras gangues. Meus olhos
quiseram latejar.
Onde diabos conseguiram o número dela?
Mais mensagens começaram a surgir, como se estivessem zombando da
minha paciência. Não sabiam ao menos abordar uma garota. Era uma pior
que a outra.
Peguei o meu telefone no bolso e registrei todos os números. Depois,
selecionei as conversas iniciadas nos últimos trinta dias e exclui
absolutamente tudo.
Aqueles imbecis eram um risco aos meus planos. Ninguém chegaria
perto da vadia quando valia tanto para mim.
Assim que a limpeza foi concluída, uma aba suspensa pulsou sob meus
olhos, alegando ser impossível excluir, e sem paciência joguei o telefone de
lado.
Brandon apareceu em frente à biblioteca no momento ideal, caminhei
até ele. Pela sua cara, eu não aparentava algo agradável com a minha.
— Encontrou alguma coisa? Vai matar quem? — perguntou, seguindo
os meus passos.
— Esquece o telefone. — Meu resmungo saiu pelas narinas.
— Como assim esquece o telefone, cara?
— Temos que pegar uns caras.

Acordei em um sobressalto.
Meu coração estava acelerado e buscava ar para os pulmões com
dificuldade, sob a exigência das pontadas que tomavam minha cabeça
dolorida. Eu estava sozinha na biblioteca, que tinha poucas luzes acesas,
pronta para fechar.
Aaron!
O nome dele foi a única coisa que reverberou na minha mente.
Ainda desnorteada, avistei o meu celular um pouco distante. Agarrei-o
e o trouxe até mim. Com certeza Meg estava pirando com o meu sumiço,
eram quase onze da noite.
Precisava ver as mensagens.
Abri o aplicativo e fiquei por exatos cinco minutos ali, inerte, me
perguntando: quais mensagens? Tinha porra nenhuma lá.
Indignada, saí da biblioteca e me arrastei para fora do pavilhão,
seguindo o caminho iluminado pelas luzes fracas do campus. O vento frio da
noite cortava minha pele enquanto caminhava em direção ao alojamento.
— Ainda não acredito que ele me fez apagar e fuçou meu telefone! —
reclamei sozinha, querendo rir da minha surpresa.
Era o Alien. O que deveria esperar?
Meu aplicativo de mensagens podia estar zerado. Mas eu ainda estava
aliviada pelo fato dele não ter tido acesso à principal. Suspensa na tela, em
modo invisível e que só eu sabia como abrir, com uma senha segura especial.
Estava em vantagem. Pelo menos, por enquanto.
Depois daquilo, a urgência em adiantar a minha busca por respostas
não parava de apitar. Não podia mais perder tempo.
Ao entrar em nosso quarto, fui direto ao ponto.
— Meg, preciso da chave do seu carro. — Abri a gaveta da minha
cômoda e peguei a chave que roubei do Aaron e a minha arma. — Eu... tenho
que fazer algo. Algo importante. — Coloquei tudo em uma bolsa, sob o olhar
desconfiado dela.
— Garota, onde se enfiou? E que merda é essa que você tirou da gaveta
e colocou na mochila? Uma arma? — balbuciou.
— É uma proteção — falei, e ela ainda pareceu ficar abalada. — Sou
filha de delegado, Meg. Sei o que estou fazendo. — Suspirei. — Me empresta
o carro? — A garota de cabelos curtos franziu ainda mais o cenho. Estalei a
língua com as mãos nos bolsos de trás da calça. — Juro que não é nada ilegal
— implorei, sentindo a urgência em minhas palavras. — Só preciso ir a um
lugar, verificar algo. É relacionado ao meu pai, Meg.
Ela hesitou por um momento, antes de suspirar e pegar as chaves do
carro na mesa ao lado da cama.
— Troquei os pneus a menos de um mês…
— Entendi, obrigada! — Mal a ouvi e saí do quarto, dirigindo-me ao
estacionamento. A noite estava cada vez mais fria, mas a determinação me
aquecia por dentro.
A cada passo que dava até o carro, o rosto de Aaron piscava em minha
mente. O infeliz não queria aproximação, não estava me dando trégua, nunca
me daria. Ele estava diversificando as estratégias.
Até então, sua insistência não conseguiu nada de mim, e isso me era
como alívio e lembrete de que precisava ser mais esperta do que ele.
— "Bom dia, gata. Vi você no refeitório mais cedo, te achei
interessante" — vociferei, apertando o pescoço de Karl Deep. O terceiro que
eu esmurrava nos fundos do campus. — Onde conseguiu o número dela?
— Quando soube que ela era assunto seu, parei de mandar mensagens,
cara, juro! — Tentou se esquivar.
— Perguntei onde conseguiu a porra do número! — Amassei a cara do
imbecil.
— A amiga dela! — Me deu o nome de Megan. — Pedi quando a vi
com a ficha da caloura, antes das aulas começarem.
— E como os outros conseguiram? Todos eles disseram que alguém
mandou num grupo.
— Eu repassei. — Ergueu as mãos, tentando se livrar de mais das
minhas investidas, mas ultrapassei a barreira. — Não achei que você ficaria
bolado por causa de um papo, cara. Ninguém pegou a mina. Ela ignora geral
— falou com dificuldade, e meus olhos flamejaram.
— Acha que sinto ciúmes? — Apertei os dentes. — Aquela rata é a
minha isca. Ninguém chega perto das minhas iscas.
— Não vou. Nunca mais. — Suplicou.
— Acho bom. — Dei um último golpe e ele ficou no chão.
Enquanto puxava as ataduras das minhas mãos para o lugar, Brandon
acenou na direção de uma sombra que se aproximava.
Era Luke, o cara que deixei na cola da Abernathy.
— Sua garota tá saindo de carro. — Já chegou falando e com os olhos
no quase morto atrás de mim. — Deixa eu adivinhar, esse aí respirou perto
dela — falou e o encarei com o maxilar cerrado.
— Pra onde ela está indo? — Me olhou com cautela.
— Não sei. Só vi e achei melhor vir avisar… — Passei por ele, sendo
seguido por Brandon. — E esse cara? O que faço com ele? — perguntou.
— Deixa aí ou ateia fogo. — Dei meu último murmúrio.
— Sério? Mas ele ainda tá vivo.
— Leva pro alojamento, porra. — Brandon desenhou para o burro e
seguimos até o estacionamento com os olhos atentos.
Ainda conseguia ouvir o motor pesado se distanciando da universidade.
Entrei no carro sozinho e fechei a porta. Pela janela, Brandon assistiu quando
girei a chave.
— Ela acabou de cortar a avenida. Quer reforço?
— Não. — Puxei a marcha e segurei o volante. — Vou sozinho. — Ele
bateu na traseira, antes dos meus pneus girarem pelo asfalto.
A perseguição se deu à distância. Ela não poderia me ver, então
priorizei isso.
Minha atenção estava nela enquanto estacionava debaixo de uma
árvore, à beira da rua iluminada, o motor do carro ainda ronronando. Esperei
alguns segundos antes de me aproximar, movendo os pneus como uma
sombra.
Esfreguei o rosto com o dorso da mão. Suor e sangue da luta pareciam
ter grudado na minha pele. Eu estaria batendo em mais uns dois dos que
tentaram contato com ela, se não tivesse sabido que saiu às pressas, no meio
da noite.
A máscara estava em meu rosto em segundos. Ajustei os olhos olhando
no retrovisor, antes de abrir a porta.
Minhas intenções eram claras: eu a seguiria até descobrir o que estava
planejando.
Desconfiança voltou a piscar em meu cérebro quando a vi na porta da
frente de um lugar imponente. Aquela, provavelmente, era a casa do porco
Abernathy, e se eu estivesse certo, ela poderia estar me levando até o próprio,
ou a pistas sobre ele.
Segui até lá a pé e dei passos silenciosos em sua direção. Brianna não
percebeu minha presença até que a agarrei pelo braço, girando-a para mim.
— Oi de novo. — Meu sussurro foi seguido do vislumbre de suas
pupilas diminuindo e se dilatando, quando me reconheceu.
— Me larga! — gritou.
Ela era rápida, esperta. Mas não tão forte quanto eu. Segurei meu cinto
e destruí a fivela com uma única mão, trouxe até seus pulsos e os amarrei sob
aquele olhar enraivecido. Segurei-lhe o rosto, erguendo uma arma diante de
seus olhos.
— O que você está fazendo aqui? — silabei, minha voz carregada de
raiva contida.
— Só vim pegar algumas coisas. — Pareceu ser uma desculpa fajuta.
— Então nós vamos pegar suas coisas juntos, que tal? — Fiz sinal de
silêncio e abri caminho para que ela tivesse acesso à porta.
Depois que a abriu, empurrei-a para dentro da casa, mantendo minha
arma apontada para ela. Cada passo que dávamos dentro da escuridão o vazio
ecoava.
Fiquei em alerta máximo, pronto para agir a qualquer sinal de perigo,
mas à medida que explorávamos os cômodos marrons e sem vida, ficou claro
que não encontraríamos nada além de móveis vazios ali. O lugar estava
silencioso como um túmulo, exceto pelo som distante de carros na estrada lá
fora.
Paramos na porta do que parecia ser o quarto dela, e soltei um suspiro
frustrado.
— O que quer de mim? — insistiu naquela pergunta idiota. — Já falei
que não tenho nada para você.
— Que tal começar respondendo por que voltou? Não acha melhor
admitir que sentiu saudades?
— Aonde está querendo chegar? — Arqueou as sobrancelhas. — Acha
que voltei por sua causa?
— Estamos falando da mesma garota com problemas de escolha dos
interesses amorosos?
— Então, antes de ser um completo maluco e apagar todas as minhas
mensagens, você as leu? — Seus olhos arregalaram. — É claro que as leu…
— Sorri por baixo da máscara e pareceu saber exatamente o que mais eu
tinha visto. — Você também viu as… — O queixo caiu devagar.
— Gostei do conjunto vermelho. Deu para ver que a sua bocetinha tem
carne.
— Idiota! Imbecil! — Ela se contorceu de raiva e a empurrei para
dentro do quarto.
Sua pequena corrida parou perto da mesinha vazia ao lado da cama
meio empoeirada, e ela levantou as mãos atadas.
— Me solta!
— Pra tentar me bater? Acho que não. Odeio cócegas.
— Não sei se percebeu, mas não tem ninguém aqui. A casa está vazia e
só vim pegar alguns objetos pessoais! — Bateu o pé no chão como uma
mimadinha do caralho, depois de jogar a bolsa com dificuldade em cima da
cabeceira da cama.
— E o que você quer levar, hum? — Circulei pelo lugar e comecei
abrir portas e gavetas de um grande guarda-roupas de madeira. Tudo vazio.
— O que pensa que está fazendo?
— Vou te ajudar, ratinha, mas não acho que tenha pertences por aqui.
— Me aproximei de uma caixa à parte, feita de palha trançada e com alguns
laços.
— Não abre ess… — Abri. Ela fechou os olhos, suspirando.
Tinha um vibrador no meio de algumas revistas e papéis coloridos.
Aquilo me arrancou um riso sincero. Mordi os lábios e ergui uma
sobrancelha junto à máscara. Pude sentir sua tensão quando meu dedo tocou
o botão do dispositivo e ele começou a vibrar.
Segui até ela, encostada na parede, com as mãos atadas e o rosto de
lado, vergonhosa.
— Pelo visto, encontrei o que você veio buscar...
— Desliga isso!
Me aproximei, puxei-a pela cintura e pressionei o botão outra vez, a
velocidade do dispositivo aumentou, me fazendo curvar os cantos da boca
para baixo em surpresa.
— Aguenta isso tudo, ratinha?
— O que você acha? — Me desafiou. Ela borbulhava de raiva.
— Acho que não. — Olhei para o vibrador pulsando entre meus dedos.
— Em quem você pensa quando enfia um desses entre as pernas, hum?
— Pode ter certeza de que não é em alguém como você.
— E se o usar olhando para mim? — Seus olhos se arregalaram. — Vai
pensar em quem? — Pressionei o botão de novo, o vibrador passou a pulsar.
Captei seu suspiro contido. A pele dela tremia, suas pernas se apertavam uma
na outra. — Está se contorcendo por quê, vadia? — Deixei meu aperto em
sua cintura um pouco mais forte.
— Você está me excitando, caralho!
— Com isso aqui? — Ergui o aparelho. — Está derretendo por causa
dessa merda que vibra? — Apertei seu corpo contra a parede, meus lábios
alcançaram seu ouvido. — Tenho algo muito maior e melhor para você. —
Me afastei, depois de sorrir contra sua pele.
Brianna trouxe o rosto para perto do meu com as sobrancelhas
franzidas e dentes cerrados. Seu movimento rápido levou a cabeça para trás e
ela voltou com o rosto na direção do meu.
Uma tentativa de fazer o que fiz na biblioteca. Uma falha que a deixou
com a boca sangrando. Seu gemido me fez molhar os lábios, vi quando
apertou os olhos lacrimejando com o queixo trêmulo.
— Oh… você está sangrando, ratinha. — Segurei o rosto dela, sentindo
que respirava pesado. Um filete vermelho escorria pelo canto da boca, me
chamando para mais perto, fazendo com que a ponta do meu nariz roçasse em
sua bochecha.
Coloquei a língua para fora e lambi devagar, subindo do queixo ao
canto do lábio contornado por um tom marrom, sentindo aqueles olhos
arregalados se fechando junto a um suspiro instável. O gosto metálico parecia
doce na minha língua, me fazia querer a engolir inteira, chupar cada cantinho
enquanto ouvia seus xingamentos, sentia suas unhas arranharem minha pele
em súplica, com certeza por mais.
Me afastei devagar, dando alguns centímetros para que respirasse.
Meus olhos estudaram o modo como sugou o lábio machucado, em uma
tentativa de me manter longe dali.
— Odeio você. Com todas as minhas forças — sussurrou, colocando
toda sua atenção em mim.
— Já me odiava antes, então nada mudou — murmurei em resposta.
— A diferença é que vou ter mais um motivo para isso.
— Qual motivo?
Não respondeu. Apenas juntou a boca com a minha.
Puxei-a para mim, apertando levemente a parte sensível com os dentes.
Ela gemeu tão gostoso que pareceu ter sido tudo que precisava para sentir as
veias bombearem mais sangue pelo meu corpo.
— Sabia que era isso que você queria. Só não estava sabendo pedir. —
Atirei o vibrador para o lado e a puxei para cima.
Suas pernas entrelaçaram a minha cintura e as mãos atadas laçaram
meu pescoço. Pressionei as costas dela contra a parede, me alimentando
daquela boca pequena, suguei sua energia e chupei a língua macia, os lábios
carnudos.
Uma parte da minha cabeça dizia que seguir adiante poderia me trazer
problemas, mas a outra parte era uma filha da puta que fazia parecer ser certo,
de algum modo. Como se, no fundo, fosse aquilo que eu queria.
E eu queria. Percebi que queria pra caralho.
— Sua boca é tão gostosa quanto parece ser — sussurrei e ela sorriu
pela primeira vez, me encarando.
Algo passageiro, um erro visível que não conseguiu conter. Parei com
os olhos ali e segurei seu rosto, assistindo a ele desvanecer enquanto me
olhava ofegante.
Seu sorriso me deixava submerso em ira e atração ao mesmo tempo.
Era bom e ruim. Eu queria morder e beijar ao mesmo tempo.
— Deus, acho que estou ficando louca. Era você quem deveria estar
estonteado depois da pancada, não eu. — Ri da fala.
— Quando vai perceber que não pode me atingir? — Brinquei com
seus lábios enquanto falava. — Sou eu quem brinca, castiga, maltrata e
mantém você respirando, ofegante, sem ar… escolho, faço seu corpo reagir,
tiro o melhor de você como um ladrão, um impostor, o vilão da sua historinha
sem graça. Faço o que quero, sabe disso. — Apertei a polpa da bunda com
uma das mãos e ela enrijeceu. — E quero foder você, ratinha. Agora.
Aquelas palavras reverberam pelo lugar e pelos meus ossos. Cada
célula em meu corpo clamava por ele, almejava se entregar.
Eu queria fazer aquela loucura. Quis desde as primeiras provocações.
Era como se, no fundo, ele fosse o que sempre procurei. A adrenalina que eu
precisava, o prazer inumano que bombeava mais sangue pelas veias. Me fazia
mal na maior parte do tempo, mas me sentia viva de alguma forma. Atenta.
Era como uma droga que entregava perigo e prazer inigualáveis, simultâneos.
Já sentia a ereção roçar minha coxa, olhos nos olhos, nossas pupilas
pareciam valsar em uma dança infernal e proibida. Meus lábios estavam
trêmulos, seios que subiam e desciam roçando aquele peitoral tatuado de
forma impiedosa, o suficiente para enrijecer meus mamilos.
Ele ergueu uma das mãos e envolveu meus punhos, mantendo-os para
cima. Sua outra mão me segurou ao redor da cintura. Ele estava sussurrando
em minha orelha no segundo instante.
— É isso que quer? — Sem respostas. Meu corpo gritava por si só,
mas, mesmo percebendo, ele insistia em perguntar. Seus músculos me
pressionaram com um pouco mais de força contra a parede, o gemido que
deixei escapar o fez mordiscar meu lóbulo. — Quer mesmo que eu acabe
com você? Quero ouvir da sua boca… — sussurrou.
Era óbvio que ele queria me ouvir falar aquilo em voz alta, seu ego era
grande demais para apenas me ler o corpo, Aaron queria ganhar em tudo, e,
naquele momento, eu estava disposta a lhe entregar os troféus.
Cerrei os dentes, a respiração já ofegante começou a ganhar mais ritmo.
Senti o aperto de sua mão livre em minha coxa, me fazendo encaixar
perfeitamente em cima do pau ereto, me dando estímulo para falar mais
rápido.
— Sim… — Escapou de forma trêmula, como uma súplica. Ele se
afastou da minha orelha e colocou o rosto a centímetros do meu.
— Não ouvi…
— Me fode, Alien. — Fechei os olhos, cada mínimo movimento me
fazia sentir o quão dura era sua ereção. Não suportei segurar a vontade de me
esfregar ali.
Mesmo que ele usasse a calça grossa do fardamento da fraternidade,
pude sentir seu tamanho e formato por cima da minha calcinha. A saia do
uniforme da irmandade contribuiu, levantando com o movimento.
Agora, ele tinha as duas mãos na minha bunda e, concentrado,
empurrava para cima o tecido branco da saia e a minha cintura para baixo,
fazendo-me sentir melhor, perceber que crescia e ficava ainda mais duro a
cada segundo.
Olhei para ele, sua boca entreaberta junto da expressão séria, meio
surpresa, era impagável e me tirava o pouco fôlego. Não demorou para que
me encarasse de volta, como quem tinha fome, sede e tudo que houvesse
necessidade de ser sanado na hora, não com uma mordida, uma chupada, uma
faísca; ele queria tudo que eu poderia oferecer, e me vi disposta a entregar.
Ele levou os lábios aos meus, devagar, atiçando. Fechei os olhos e,
quando me aproximei, recuou. Fez isso mais uma vez, e outra. Na quarta ação
de castigo, minha pelve queimava e meus lábios formigavam, sedentos.
Aaron parecia saber controlar muito bem a vontade, mas eu? Eu o
morderia se conseguisse alcançar.
— Está jogando comigo? — sussurrei a pergunta entredentes e abri os
olhos.
— Com raiva porque não alcança a minha boca? — Permiti que minhas
pupilas explorassem cada canto daquele rosto esculpido enquanto ele me
espremia contra a parede. — Só estou procurando ter certeza de que você
quer tanto quanto eu. — Puxou as alças da minha blusa para baixo usando
apenas os dentes. — Mas não se preocupe, ratinha vou te dar o que deseja —
falou, colocando a língua em meu mamilo.
A sensação gelada e persistente me fez arquear a coluna. Seus lábios
seguiram mesclando de um a outro, envolvendo-os e os sugando tão forte que
salpicava arrepios por toda a minha pele.
Aaron mordiscou levemente um deles e um gemido mais alto escapou
da minha garganta.
— Começo a ter certeza de que cada canto do seu corpo é delicioso. —
Ele juntou os dedos em um dos mamilos sensíveis e o apertou, me fazendo
lacrimejar. — Mas, para isso, preciso provar.
Ele me girou tão rápido que meus cabelos derrubaram a bolsa na
cabeceira da cama e todos os objetos se espalharam por ali. Meu corpo pulou
sobre o colchão e só parou quando o peso dele caiu sobre mim. Era um
homem de quase dois metros de altura, que me mantinha debaixo de si como
se eu fosse nada.
Seu corpo me empurrou um pouco para cima e mantive as mãos atadas
na cabeceira. Com a saia embolada na cintura, ele me fez abrir as pernas para
lhe dar a visão que almejava.
— Vamos ver como está aqui embaixo? — Os dedos grandes passaram
pelo tecido da calcinha e, quando achei que a arrancaria, recebi um tapa forte
ali. Foi como uma descarga elétrica. Diante da minha contorção, suas mãos
me seguraram pelas pernas com força. — Vai ser pior quando for o meu pau,
ratinha. — Mais um tapa e gemi, tremendo. — Isso, geme pra mim, vadia. —
Outro golpe e senti minha boceta encharcada por baixo do tecido. Meus
choramingos tiraram um meio sorriso dele. — Boa menina — soprou,
lambendo os lábios devagar e a atenção voltou para as minhas pernas.
Finalmente puxou o elastano, pude sentir o ar frio acariciar aquela parte
quente e molhada, que latejava devido aos tapas. Olhei para ele, percebendo
que apreciava a vista sem ao menos piscar. Meu rosto pareceu pegar fogo e,
em segundos, seus olhos miraram os meus. Desviei, minhas pernas se
fechando ligeiramente, mas suas mãos me apertaram as coxas e as puseram
de volta ao lugar, completamente abertas, à mercê de suas vontades.
Aaron segurou as extremidades das duas alças e rasgou a calcinha no
meu corpo. Segurei a respiração quando ouvi o tecido, sendo destruído e
jogado no chão.
— Hum… caralho, se pudesse ver… — Ele aproximou o rosto das
minhas pernas, passando a ponta do nariz ali. — Me dê suas mãos —
ordenou em um murmúrio e abaixei os braços para vê-lo separar dois dos
meus dedos, o olhar predatório me fez vacilar. — Coloca o dedinho aqui. —
Levou minha mão até lá querendo provar que eu estava molhada pra caralho.
— Enfia o dedo lá dentro — falou, e me vi seguindo sua ordem. Deslizei com
facilidade as pontas dos dedos sob sua supervisão e logo percebi que não
estava satisfeito. — Você não usa vibradores, vadia? Enfia mais fundo. —
Empurrei para dentro com mais força por pura raiva, meu corpo vibrou
pedindo menos e puxei de volta. — Agora, chupa o dedinho — completou
com a voz rouca e os olhos acesos. Coloquei o dedo entre os lábios, sentindo
o gosto salgado. — Mais uma vez. — Repeti o ato enquanto tiravaei os dedos
molhados de lá, sua mão forte me impediu de chupar. — Dá aqui pra mim. —
Colocou-os na língua, seus lábios os envolveram e meu corpo inteiro tremeu
quando o vi fechar os olhos.
Logo foi a vez dele usar os seus, em círculos, massageando a minha
entrada. Seu rosto se inclinou ao meu e, quando alcançou os meus olhos,
senti os três dedos sem piedade.
— É assim que você merece. — Apertei o braço dele e liberei um
gemido trêmulo. Quando os tirou dali, minha boceta pingava sob seu
estímulo. — Está do jeito que eu gosto. — O sussurro enviou incontáveis
arrepios pela minha espinha. — Abra as pernas. — Obedeci, como a boa
menina que era, e quase lacrimejei quando senti seus lábios lá embaixo. Eram
gelados e precisos.
Me fez revirar e balançar o corpo sob o poder de sua língua e beijos
naquela parte sensível. A respiração quente cobria meu clitóris e seus dedos
me abriam para que explorasse mais, intercalando entre chupar e mordiscar.
Sua língua aumentou a velocidade e ofeguei feito uma condenada. Era
impossível conter os gemidos, manter as unhas longe da cabeceira da cama
ou sentir o lençol embolar sob meu corpo completamente molhado. A
sensação de que a barriga flutuava estava lá, e minha boceta latejava dentro
de sua boca.
Mesmo que tentasse fechar as pernas, ele me mantinha parada, fazia
com que meu corpo sentisse todo aquele prazer de uma só vez, e murmurava
coisas ali embaixo.
— O seu gosto é tão bom, vadia… — Puxou minha pele com os dentes
e passou a língua em seguida. — Eu a chuparia a noite inteira. — O modo
como sugou meu clitóris me induziu a arquear sobre a cama. Quando achei
que iria gozar, ele se ergueu passando a língua pelos lábios. Seu sorriso era
de outro mundo e, com os olhos nos meus, segurou o pau, massageando-o
entre os dedos.
Aaron fez a glande passear por toda a extensão lubrificada, pincelando
devagar, espelhando o molhado entre nós. Suas mãos separaram ainda mais
as minhas pernas e usando apenas a ereção dura, passou a subir e descer
friccionando, esfregando-se em mim. Massacrou minha boceta, me fazendo
ver toda aquela cena. Quando mirou a entrada, comecei a tremer.
— Você não vai usar…
— Acha mesmo que eu vou te foder com camisinha? — perguntou,
sorrindo. — Quero sentir cada parte dessa sua bocetinha molhada e te fazer
conhecer a sensação da minha porra quente forrar o seu útero. Então peça. —
Seu dedo tocou em minha boca. — Peça como a puta que você é. — Tentei
mordê-lo, mas ele o tirou e me roubou um beijo. — Delícia.
Ergui o rosto para continuar com sua boca na minha, mas se afastou.
— Quantas vezes precisa ouvir? — sussurrei.
— O necessário para que me lembre de você como uma putinha
implorando pelo meu pau nessa sua boceta. — Aumentou a fricção e eu
revirei os olhos.
— Por fav… — Ele entrou com tudo, me fazendo engasgar no final da
frase.
— Vadia do caralho! Vou te dar o que você quer. — O pau me
preenchia e esvaziava freneticamente, levando ar, batendo forte na pele e
reverberando como palmas molhadas. Quando ele empurrava para dentro, eu
o sentia deslizar em mim e alcançar o ponto certo.
Aaron cravou os dentes em meu ombro e fez a cama balançar debaixo
de nossos corpos. Cada estocada era complementada por um de seus urros e
meus gemidos cantarolados ao fundo.
Eu estava quase delirando quando, com as mãos atadas, cravei as unhas
em algo gelado na cabeceira.
Meu celular. Ele tinha escorregado da bolsa junto das outras coisas.
Minha mente lutava para me fazer pensar, mas toda vez que aquele
filho da mãe metia em mim, tudo virava uma bagunça.
Ele diminuiu o ritmo, mexendo o quadril devagar e beijando meu
pescoço. Com os olhos revirando, tentei repassar o que fui fazer ali e o fato
de que precisava ficar sozinha naquela casa. Talvez, eu não tivesse outra
chance, então tinha que fazer algo.
Lutando contra aquela sensação de prazer que me fazia querer gritar,
tentei calcular como tocaria a tecla digital de chamada de emergência que
deixei programada no meu telefone, por precaução. Ela enviaria uma
mensagem à unidade policial mais próxima com a minha localização. Com os
dedos tremendo e sem conseguir enxergar a tela do telefone, senti a vibração
de confirmação. Funcionou.
— Abra essa bocetinha apertada, ratinha. Eu quero tudo. — Ele sorriu
contra o meu pescoço, fazendo a voz reverberar pela minha carne trêmula,
penetrar minhas veias como mel quente.
— Oh… Aaron… — O nome escapou com uma súplica.
— Sim, Brianna… — Ele aumentou a velocidade outra vez e meu
corpo inteiro começou a amolecer mais depressa.
Seus rugidos no meu ouvido arrancaram minha pouca sobriedade, meus
dedos vacilaram e o telefone escapou caindo no chão.
Sem parar os movimentos, ele olhou na direção do ruído e eu o segui.
Na tela, a imagem de confirmação de mensagem entregue brilhava e,
instantaneamente, sirenes surgiram em um raio de poucos quilômetros.
Aquele homem virou o rosto para mim com os olhos escurecendo.
— Surpresa… — Foi o que consegui sussurrar recebendo suas
investidas.
— Vadia! — grunhiu e sua pelve me acertou em cheio. Senti os
testículos baterem forte contra mim, minha boceta engoliu seu pau por inteiro
e ele começou a se movimentar mais rápido, com uma força desumana.
— Aaron! — gritei, sentindo que ele acabaria comigo.
Uma de suas mãos juntou meus cabelos com força e a outra envolveu
meu pescoço. Seus lábios pressionaram contra os meus e ele grunhiu, rouco:
— Vou acabar com a sua raça! — A intensidade me fez afundar no
colchão. Meus gemidos eram cortados pela maneira impiedosa com que ele
me fodia e se misturavam ao aumento do som das viaturas.
Cravei as unhas em suas costas, soltando um riso de quase morte, mas
eu morreria satisfeita. Aquele prazer me tomava de uma forma inimaginável,
meu único desejo era que o Alien tomasse tudo de mim, descontasse aquela
raiva daquele jeito, que acabasse comigo.
— Só saio daqui depois de deixar essa sua bocetinha cheia de porra,
para aprender! — Bateu com mais força e gritei. Minhas pernas estavam
molhadas. Senti que seu pau crescia ainda mais dentro de mim, pulsando
enquanto batia lá dentro, escorregadio e grande, e alcançando uma parte
dentro de mim que nunca soube que existia, que me fazia salivar, ficar tonta.
Meu clitóris latejou, uma dor prazerosa e fina na vagina me fez
contorcer, abrir mais as pernas e me empurrar contra ele. Perdi a noção de
espaço e tempo, já não enxergava nada além de seus músculos, seus olhos, o
tamanho daquele homem e o quão forte ele se fazia em cima de mim. Senti a
barriga flutuar, os bicos dos meus seios balançando esquentavam, as pontas
dos pés enrijeceram e eu parecia entrar em um colapso iminente de tanto
prazer.
— Eu acho que vou…— Apertei os olhos quando Aaron mordeu meu
ombro com mais força, e continuou metendo em mim como um selvagem.
Não consegui segurar e gozei. Era como se tentasse expulsar ele de dentro,
mas o teimoso permanecia e pulsava, me fazendo ter espasmos de tão
deliciosa que era a sensação. Esguichei ainda mais forte quando senti que ele
gozava também em uma última estocada, forte e bruta, que me fez sentir a
porra quente se espalhar por minha carne e escorrer quando ele deslizou para
fora.
As sirenes só não eram mais altas que nossas respirações quando se
aproximou do meu rosto com aquela ereção ainda pulsando, gozando, e
salpicou seu gozo em minha pele suada.
Satisfeito por ter deixado minha boceta escorrendo e meu rosto sujo,
ele empurrou a glande inchada na minha boca.
— Engole o que sobrou do seu leite, vadia. Engole tudo. — Uma gota
generosa ganhava impulso escorrendo pela cabeça rosada. Sua outra mão
apertou minhas bochechas e não resisti.
Abri os lábios e deixei que entrasse, com meu corpo completamente
anestesiado por espasmos, quebrei a dormência do paladar ao sentir seu gosto
salgado. Chupei com os olhos fechados, ouvindo-o suspirar, antes de arrancar
dos meus lábios.
Vi quando puxou a calça para cima sem tempo a perder além do que
usou para me encarar da porta, ofegante, suado e estonteante, me deixando
ali, jogada, com as pernas bambas, sem ar.
Seu último olhar era uma mistura de tudo que ele podia me oferecer
junto a algo que nunca tinha visto antes. Algo novo.
Mas eu não tinha tempo para descobrir do que se tratava, não tinha
tempo para ficar perplexa comigo mesma, me dar um soco no meio da cara
ou gritar feito louca pela casa. Ele estava saindo e a polícia estava chegando.
Me sequei como consegui e ajustei a roupa, saindo do quarto e
segurando pelas paredes. Já não havia sinal do Alien, mas pude ouvir o ronco
de seu motor em algum lugar daquele bairro quando me aproximei da porta e
a abri, antes mesmo de baterem.
— Peço mil desculpas, houve um mal-entendido. — O policial de
Manhattan me encarou por alguns segundos com a sobrancelha arqueada.
Juntei as pernas que ainda tremiam completamente úmidas e me segurei na
porta sem forças. Um sorriso instável surgiu em meu rosto. — Eu estou bem
e estou sozinha.
Fechei a porta do banheiro no quarto do alojamento, pela segunda vez
no dia. Me sentei no chão, abri meu notebook e puxei a folha na qual anotei
os e-mails do meu pai. Foi tudo que eu tinha encontrado em casa, na noite
anterior, em um computador velho que ele deixou para trás.
Com certeza, algum dentre eles estava ativo. Mesmo escondido, o
Delegado Abernathy estava trabalhando, isso era certo, mas tão certo quanto
isso era o fato de que ele não trataria de assuntos investigatórios importantes
por e-mail. Mesmo assim, queria tentar.
Era aquilo que eu passava a maior parte do tempo fazendo:
investigando, dando ouvidos à minha válvula de escape daquelas lembranças
frescas.
Quando não se quer pensar tanto num erro, tentamos nos esquecer
dele, certo?
O que aconteceu entre mim e Aaron, naquele lugar, foi o pior que
poderia ter acontecido, pior do que um erro, mas eu estava trabalhando duro
para me esquecer, já que parecia ser quase impossível.
Segurei a cabeça por mais um minuto. Os pensamentos ainda estavam
lá, me fazendo remover o fato de que gostei, me entreguei. Nem tudo fez
parte do plano. Sequer pensei em um plano, inicialmente. Chamar a polícia
foi algo de última hora. Não fiz aquilo para o distrair, parecia vir de mim
também, não foi contra a minha vontade, e isso me irritava de modo
desumano.
— Presta atenção, porra! — gritei, voltando a olhar ao meu redor.
Eu tinha tudo que precisava ali. Tudo que consegui de pistas, e um
diário.
Sim, um diário que contava a história de um romance entre um buraco
negro e uma estrela.
Esse era o livro que o desgraçado do Alien estava lendo, na biblioteca,
quando se distraiu e o deixou por tempo suficiente junto aos inúmeros que eu
tinha aberto sobre a bancada.
Agora, ele tinha uma cópia do volume três de anatomia humana da
biblioteca e eu, um romance fofo, escrito à mão com letra feminina, desenhos
bonitos e com poucas palavras.
A primeira página era uma graça, contava sobre o encontro dos dois.
Como o sombrio ajudou a iluminada e a manteve com ele. E só por isso eu o
guardei. Porque estava fascinada.
“A última estrela e seu devorador”.
"Quando o vi pela primeira vez, em minha passeata, condensei todo o
medo que uma galáxia podia conter nas minhas pontas douradas. Ele
flutuava, imponente. Meu percurso beirava suas bordas e o horizonte de
eventos parecia borbulhar ao meu redor. Eu sabia que era meu fim. Vi
muitas sendo sugadas, espaguetizadas e explodidas. Eu as vi morrer. Nunca
pensei que justo comigo pudesse ser diferente, mas foi. Foi como se ele
tivesse calado sua própria natureza para me ver passar. Impossível, o
Universo diria, mas aconteceu. Nunca mais consegui sair do horizonte, e o
via todos os dias me observar perambulando sozinha. Foi assim que, no fim
de um passeio, fiquei presa em meio à escuridão, mas sem amarras,
brilhando. Ele mantinha minha luminosidade acesa. Viva. Quando perguntei
o porquê, disse que fui a última, porque há muito me poupava. Ele achou
minha luz bonita e me manteria ali, como um dos últimos vestígios da
galáxia. Brilhante como um broche. A última ainda acesa, mas flutuando
somente em seus horizontes”.
Fechei o diário e suspirei.
Era poético. Irreal e impossível, mas poético. Dizia muito a uma mente
aberta à interpretação, e era disso que eu precisava: interpretações e
especulações sobre o Universo. Distrações enquanto eu não estava submersa
na investigação sobre aquela chave ou nos meus estudos.
Distribuir a atenção em tantas lacunas era o meu segredo de sucesso,
porque se eu pensasse na minha vida naquele momento, iria enlouquecer.
Olhei para a capa forrada por galáxias. Ela estava sendo coberta por
uma case preta enquanto ele lia.
O ruído da minha risada baixa reverberou pelo banheiro.
Com certeza, não era dele. Eu julgava que talvez tivesse tomado de
alguma pobre coitada e a usado para fazer chacota, mas, no fim, de muito
estava me servindo; isso, eu não podia negar. Afinal, tudo que me servisse
para me esquecer da noite passada era bom, para mim, para minha sanidade.

Os pelos dos meus braços se eriçaram sob o vento noturno, e apertei as


mãos nos bolsos da calça enquanto me encostava no meu carro, em meio às
muitas luzes de Nova Iorque.
"Quieto demais".
Foi o que os babacas repetiram para mim, desde que cheguei da casa do
Abernathy.
Talvez eles entendessem meus motivos se eu dissesse que estava
enfrentando uma luta interna, depois de foder com vontade aquela vadia e
precisar correr, porque a dissimulada me enganou.
Aquelas duas viaturas para mim não eram nada, mas o ato dela, sim.
Me deixou indignado, enraivecido. Foi como uma traição.
Passei as mãos pelo rosto e esmurrei o capô do meu carro.
O pior de tudo estava no fato de ser uma raiva diferente. Algo que se
desdobrava em alguma merda que nunca senti.
Para cada ação, há uma reação; assim como, para minha raiva, há um
distúrbio, uma vontade incessante de ver sangue, matar, estripar. Mas não
com a Abernathy. Nunca era assim com ela.
Talvez isso acontecesse por eu ter idealizado que, por ser a chave da
minha vingança, ela não devesse ver esse meu lado, para se manter
preservada. Essa era a única explicação, e era nisso a que me agarrava.
O que só me fazia acreditar que eu deveria encontrar o porco o quanto
antes, lhe dar o fim merecido e me livrar daquela garota o mais rápido
possível.
Minha mente estava uma confusão, e o resultado daquela merda era
pura adrenalina, a mesma que me levou a ficar em frente ao covil do
Governador.
New York State Executive Mansion, ou uma versão melhorada dela.
Com o reflexo da arrogância e prepotência do atual político, o lugar era
imponente, mesmo mantendo o ar clássico e patético em estilo colonial. A
neve se misturava às suas estruturas, impossibilitando ser distinguida — uma
bela imitação da casa branca, eu diria — e era cercada por altos muros,
guardada por homens armados que, para mim, não passavam de um batalhão
de fracotes em treinamento.
Ajustei a máscara no rosto e, com um impulso de adrenalina, saltei o
muro, aproveitando a escuridão da noite para me esconder nas sombras.
Evitei as câmeras de segurança, movendo-me silenciosamente pelos jardins
bem cuidados. Sabia que a entrada principal seria fortemente vigiada, então
decidi procurar uma rota alternativa.
Encontrei uma janela nos fundos da mansão, na qual a segurança era
um pouco mais relaxada. Com minhas próprias mãos, forcei-a e entrei.
Estava em um corredor escuro e silencioso em segundos. Minha pulsação
nivelada. Se mostrando resultado de muitas invasões bem sucedidas.
Ser quem eu era e carregar o sangue que carregava nas veias, mesmo
que fosse um fardo, também era uma vantagem. Invadia qualquer lugar que
quisesse, saqueava e matava quem me desse vontade também. Infelizmente,
nenhuma daquelas duas opções tinham me levado ali, porque, mesmo que a
Abernathy tivesse me deixado com uma raiva desumana, o democrata
precisava permanecer vivo. Mas isso não o isentaria de ter o que merecia, se
eu percebesse que estava tentando me enganar.
Caminhei furtivamente pelos corredores até encontrar a sala na qual o
governador costumava receber visitantes importantes. O ar quente que saiu
pelas minhas narinas não era bom sinal, mas segui andando ainda assim.
Os olhares surpresos dos guardas não me intimidaram. Avancei com
passos firmes até alcançar a porta do escritório. Sem hesitar, empurrei de uma
vez, fazendo a madeira bater na parede e ecoar pelo ambiente, mas eles me
seguraram, antes mesmo de eu colocar o pé na sala, e ergueram minha
máscara.
— Walker, o que diabos está fazendo aqui? — O governador se
levantou de sua mesa, surpreso com minha presença.
— Vim para ter uma conversa, não importa o que eu tenha que fazer
para isso. — Minha voz era baixa, mas carregada de autoridade. — Esses
merdinhas fazem você se sentir seguro de alguma forma? — Subi as
sobrancelhas, encarando o aperto frouxo sob o qual me mantinham. Suas
mãos mal se fechavam em meus bíceps.
O governador os olhou, indicando que me deixassem entrar. Eu sabia
que ele estava ciente da minha reputação e da minha capacidade de causar
estragos. Era uma vantagem que eu não hesitaria em explorar.
A porta foi fechada, e ele ajeitou a gravata, preparando-se para voltar a
sentar.
— Posso saber o motivo da "visita" inesperada? — Seus olhos se
semicerraram. — Acho que não preciso lembrar a você o que é uma invasão e
que isso fere leis, e mais importante: fere nosso acordo sigil…
— Cadê o porco? — interrompi e ele quase juntou as pálpebras às
sobrancelhas. Fez silêncio por um momento, até que sua risada se espalhou
pela sala branca.
— Acha que se soubéssemos não diríamos?
— Não o encontro em lugar algum de Nova Iorque e fontes seguras
afirmam que ele não saiu deste solo americano. Não vou perguntar outra vez.
— Cruzei os braços e me aproximei. — Onde ele está? — Antony Beinsen
me encarou com aqueles olhos esbranquiçados e ar superior.
— Por que acha que se soubéssemos onde Abernathy está você não
saberia?
— Eu poderia citar uma ampla lista de razões, governador. — Ele riu.
— Sendo a primeira delas o fato de que permaneço no comando do Brooklyn
enquanto não o encontrar. — O infeliz me deu um sorriso frio demorado,
como se estivesse jogando um jogo muito maior do que eu poderia
compreender.
— Nosso acordo foi especificado, Walker. Você comanda o Brooklyn e
nós paramos de perseguir Magnus Abernathy, deixando a vingança em suas
mãos. Não tente culpar os outros para tentar diminuir o fato de que não
consegue fazer isso sozinho. Lide com a sua frustração de outra maneira —
pontuou e se sentou. — Você só não estava sabendo usar todos os recursos a
seu favor. Tem homens, tem olhos em muitos lugares, tem influência, tem a
garota... — Tocou no assunto e minhas narinas se dilataram. Pareceu
perceber. — O que aconteceu com a garota? Matou-a antes que lhe desse o
tesouro?
Ela me deu o tesouro. Penso nisso todas as horas desde então, babaca.
— A rata é inútil. Preciso me livrar dela. — Foi o que deixei escapar.
— Por quê? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Achei que ela fosse
uma chave importante…
— A garota não sabe de nada e só me traz problemas — rosnei, me
lembrando da noite passada.
— Ou talvez você não saiba fazê-la falar. Já arrancou algum dedo?
— Conheci o limite dela e o ultrapassei. Não tem nada para mim.
— Acredita mesmo nisso, Walker? — Riu. — O que a garota fez para
você desejar se livrar dela? — Lhe entreguei o pior dentre os meus olhares.
— Sabe bem com quem está falando. Percebo quando estou perdendo o
meu tempo com algo ou alguém irrelevante — sussurrei, ameaçador.
— Sei, sim. — Sua língua estalou. — E é por saber que acho estranho o
seu trabalho malfeito. — Cruzei os braços, ele continuou: — Ela pode não ter
informações cruciais, mas continua sendo a filha do Magnus. — Abriu uma
de suas gavetas na parte acoplada da mesa. — Deve haver alguma coisa que o
atinja. Só precisa pensar melhor. — Ele estendeu um envelope. — É um e-
mail constitucional. Faz parte da instituição e percebemos que era ativo. O
delegado o esteve usando nos últimos dias.
— Onde conseguiu isso?
— Não importa. A questão é que se quiser mandar algum recado, seja
onde estiver, ele vai receber. — Olhou para mim. — Contanto que não repita
o erro de invadir este lugar, considere que lhe daremos o que conseguirmos
sobre o Abernathy — falou e sua tentativa de convencimento soou familiar.
— Faça bom uso, Walker, e lembre-se: seu alvo não sou eu. Se tentar me
colocar na sua mira, vai cair antes de apertar o gatilho.
Revirei os olhos, cansado das ameaças veladas.
— Então, sob pressão, você abre a mão?
— Torno o cenário confortável. Sou o mediador da paz. A última coisa
que quero é ter que lidar com uma guerra iniciada pelo seu gênio
descontrolado. E é por isso que a supervisão será reforçada. — Pigarreou. —
Um novo supervisor estará no campus da Libert University o mais rápido
possível.
— Por que tantos olhos em cima de mim? Não já bastam os que
rodeiam o Brooklyn e a reitora na universidade? — Estreitei os olhos.
— Se não tivesse invadido o meu escritório, não estaria me
questionando isso, porque não veria a necessidade de te manter na linha eu
mesmo. — Juntou os dedos com os cotovelos sobre a mesa. — Você é
impulsivo, Walker. Já viu aonde isso levou seu irmão. A nova reitora e os
espiões estão aqui para garantir que você não cometa os mesmos erros que
ele — afirmou, sua voz cheia de falsa preocupação.
— Ninguém me mantém em linha alguma.
— Nosso acordo diz o contrário.
— Vou cortar essa sua linha no dente e veremos onde você vai ter que
enfiar o acordo — grunhi, e ele bateu palmas.
— É filho de quem é filho mesmo… Tem o mesmo jeito que ele. —
Acomodou a mão com os dedos dobrados embaixo do queixo e o indicador
na cara, como se observasse um animal num zoológico.
— Tenho a mesma sede por sangue. Espero que não se esqueça disso.
Saí do escritório e segui para o hall principal, mantendo os guardinhas
longe com um único olhar. Uma vez fora daquele inferno branco, puxei o
telefone e acionei Tom, o cara que me passava as informações sobre a
procura do porco. Assim que ele atendeu, fui rápido.
— Tenho certeza de que o governador está com o delegado, continuem
procurando e concentrem mais homens ao redor dele e de seus movimentos.
— Olhei para o envelope na minha mão. — Qualquer sinal de evidência, me
comunique. — Desliguei e procurei por Benedete na minha lista de contatos,
para enviar uma mensagem.
Eu iria tentar só mais uma coisa com a ratinha. Ela era algo importante
demais para ser deixada de lado tão rápido. E daquela vez, se não
colaborasse, iria morrer.
Faria qualquer coisa para vingar o meu irmão, não era um blefe. Assim
como ele não media esforços para comigo, nunca mediu. Não importava se
fosse para me dar sua bola de basebol cara, ou encarar minhas batalhas por
mim.

— Droga! — Atirei minha bola furada no chão do corredor que levava


ao meu quarto. Percebi quando John saiu do dele e a pegou. Os cortes
fundos denunciavam que aquele não era um furo comum que se consegue
brincando com os amigos.
— Quem fez isso? — perguntou. Seu tom sério, que sempre chegava
antes que seus pés, estava lá.
— Foi o Dimitri — respondi com a cabeça erguida. Aquele bosta não
me assustava.
— Dimitri? O ajudante do pai? — Sacudi a cabeça em afirmação. —
Por quê?
— Eu estava no quarto da mãe quando o vi entrar. Ela estava
dormindo, cansada. E ele começou a tocá-la e…
— Você viu? — me interrompeu. Ele já sabia do que se tratava.
— Atirei nele com a minha arma gangster. — Apontei para os
destroços do brinquedo na caixa.
— E o que aconteceu depois?
— O imbecil a destruiu, pisou em alguns dos meus nikes e furou a bola
de basebol. Também disse que me afogaria na banheira, caso eu abrisse a
boca.
— O que você fez? — Ele continuava perguntando e perguntando. Mas
eu não me irritava em responder, até que ajudava a tirar aquela raiva que
sentia.
— A mãe me impediu de chutar as bolas dele, mas garanti que ele
precisasse de uma cirurgia nos dedos do pé. O problema é que, quando ele
saiu, ela também pediu para que eu ficasse de boca fechada. Disse que faz
parte do juramento de silêncio.
— Ela disse isso? — Afirmei com a cabeça e ele me olhou, cauteloso.
Eu sempre reclamava, fosse o que fosse, com John. Meu irmão era um
imbecil, mas parecia me entender melhor do que qualquer outro naquela
casa, principalmente do que meu pai.
— Você tem certeza disso, pirralho?
— Se não acredita em mim, vou contar agora ao pai e pedir para
executar aquele…
— Deixa que falo com o pai — pontuou. — E toma essa. — Puxou sua
bola do mini pedestal no armário. — É nova.
— A sua bola autografada pelo Jordan Hugerio?
— Sou o irmão mais velho, tampinha. Não me importo com essas
coisas. Só não a destrua. — Me deu um tapa na cabeça. — Agora diz que não
sou o melhor.
— Você é razoável — pontuei, averiguando a costura.
— Razoável?
— Um carro seria muito melhor.
— Vai dirigir com essa idade? Com esses seus seis anos, você nem
alcança o volante.
— Não vai demorar para acontecer. Logo terei quatorze, como você.
— É, eu sei. E quando acontecer, você vai perder o controle e bater
num poste no meio da rua, quando estiver indo ao mercado.
— Não vou usar para locomoção, burro! Vou ser líder de corridas.
— Pior ainda. Você vai bater e vai amassar junto ao carro. Suas
entranhas saindo para fora... — Fez um barulho irritante com as mãos na
barriga. — Oh, não! O líder foi abatido! — Comecei a empurrá-lo e me
segurou pelo pé.
— Vou acabar com você! — Pendurado no ar, esmurrei seu joelho.
— Isso é o que vamos descobrir, Alien!
Um pigarrear fez meu irmão me colocar no chão em um piscar de
olhos. Consertamos as posturas quando nosso pai nos entregou um olhar
sério.
O lugar passou a ficar estranho, como todas as vezes que ele saía de
suas reuniões com os Homens de Honra.
— Jonathan — falou o nome dele e o vi segui-lo para dentro do
escritório. Fazia parte de sua preparação, e a minha, logo iria chegar.
— E você pode consultar esses livros. — O professor apontou para uma
coleção enorme em uma das prateleiras da biblioteca, depois que pedi
algumas dicas para ir bem no teste de anatomia da próxima semana.
— Obrigada, professor. Vou começar agora mesmo.
— É o melhor que você faz. — Firmou o tom de repreensão. Só esperei
que saísse dali para suspirar e me descabelar em silêncio e à vontade.
Meus olhos bateram no diário de capa preta, o romance estava me
prendendo como nunca. Algo que nunca pensei que aconteceria. Quando eu
iria escapar para continuar a leitura, meu telefone vibrou.
Era Mavi. Eu não falava com ela há quase uma semana.

Mavi:
Eu vou matar você, Brianna!
Eu:
Não precisa. Acho que quando me
Encontrar, já vou estar morta.

Mavi:
Que merda aconteceu nesses últimos dias?
Deixa eu adivinhar, você escolheu um outro cara
problemático como par romântico.

Eu:
Nunca pensou que talvez, pelo menos
uma vez, o maluco poderia me escolher?

Levantei os olhos, Benedete caminhava na minha direção como um


furacão.

Eu:
Se eu te contar, você não vai acreditar,
então esquece. Te mando mensagem depois.

Bloqueei o telefone e comecei a me levantar depressa. Eu sabia que lá


viria problema.
— Já pode parar, pequena roedora. O Alien quer ver você — falou e
engoli em seco.
Depois daquela noite, ele não me procurou mais e eu estava evitando ao
máximo também. Nada daquilo deveria ter acontecido, e nós dois sabíamos.
Mas, agora, o que ele queria?
— Não mesmo. Não posso.
Ela segurou o meu braço.
— Você vem comigo.
— Não vai me obrigar — desafiei.
— Ah, eu vou. — Ela roçou os dedos na ponta de uma arma na cintura.
— Aaron mataria você — falei firme, como se aquilo fosse minha
maior proteção. Ela se inclinou para sussurrar no meu ouvido.
— Não sei o que fez, mas ele está com tanto ressentimento que me
mandou usar isso se fosse preciso, e como minha paciência não está em seus
melhores dias… — Apontou para a porta. — Aconselho que me acompanhe.
— Posso pelo menos guardar minhas coisas? — Mostrei o meu
material com uma carranca no lugar da cara e ela acenou.
Meus sapatos bateram pela porcelana enquanto a eu seguia para fora,
submersa em pensamentos.
Eu iria. Não por não ter escolha, enganar Benedete seria fácil, mas para
saber o que o Alien estava aprontando desta vez. Até porque, se eu não
soubesse agora, descobriria de um modo pior.
Poucos minutos depois, entramos no carro e ela deu partida. As luzes
de Manhattan deram lugar à aura sombria da noite no Brooklyn no instante
que passamos pela ponte. Nem tudo ali era comandado pelo irmão do Aaron,
mas só do pedaço de terra fazer parte daquele todo, eu o sentia.
O clima frio e a escuridão lá fora só não eram tão devastadoras quanto
a sensação ruim que começava a crescer dentro de mim. Mas só pude, de
fato, ter certeza do que estava por vir quando o cheiro de combustível e
borracha queimada impregnaram o ar.
Paramos em um ponto de encontro improvisado. Carros esportivos
estavam estacionados ao longo das ruas escuras. Cada rugido de motor
parecia ser uma ameaça, uma lembrança de que eu estava no território deles,
em um pedaço sem lei, sem segurança, sem respaldo.
Desci do carro junto com Benedete e ela passou por mim com os braços
cruzados, já falando.
— O nosso líder virá até você.
Aaron, com certeza. Soube por Meg que ele lidera essas corridas
ilegais, então eu já sabia o que esperar, mas quando um dos homens
mencionou a palavra "roubo" com uma tranquilidade invejável, bem atrás de
mim, tirei a conclusão que estava na minha cara.
Aquele era o Submundo do Brooklyn, e o Alien estava em seu trono. Ia
além das corridas, além do grupo arruaceiro na universidade. Ele tomou o
lugar do irmão.
Não demorou para que os olhares dos caras ao redor me fizessem sentir
como um pedaço de carne. Os sussurros vieram logo depois.
— É a filha do porco que matou John. — Fechei os olhos quando os
ouvi cuspindo no chão.
Minhas pernas tremeram. Eu podia ter a coragem que fosse, mas estar
ali só me fazia sentir medo, e tudo piorou nos segundos seguintes, quando
pneus derraparam pela pista se aproximando.
Era ele. Entrei em pânico quando o vi. Meu corpo se encheu de tensão
e pude sentir a energia caótica tomando conta de mim novamente. Quando o
motor parou um pouco próximo a nós, Aaron desceu do carro e caminhou até
mim.
Seu rosto era sério como pedra. Ele tinha marcas no maxilar que
afirmavam estar apertando os dentes e seu olhar era devastador. Sem dar uma
palavra, segurou o meu braço.
— Pra onde tá me levando? — Minha voz ondulou em nervosismo. —
Pra onde… — Ele abriu a porta e colocou a mão na minha cabeça, me
forçando a abaixar e entrar antes de bater na porta.
Assisti, impaciente, a ele dar a volta, abria a porta do lado do motorista
e se acomodava ali.
— O que você quer?
— Quero que me diga tudo. — Girou a chave.
— Você não se cansa disso? — Passei as mãos pelo rosto, respirando
fundo.
— Sei que me fez sair da casa ontem à noite para fazer o que pretendia
desde o início, sem que eu estivesse lá. — Vi quando apertou as faixas que
tinha nas mãos com os dentes e logo depois colocou um cinto duplo. —
Quero saber o que você está escondendo de mim. O que não consegui
arrancar ainda. — Sua voz era áspera. Aaron não olhava para mim enquanto
falava, mas ainda assim eu via o quão transtornado estava o seu olhar.
— Eu.. — Os sons dos motores começaram ficar mais alto, e quando
ele ligou o dele, minhas pernas vacilaram. — Não, Aaron, não quero ficar
aqui! Por favor, me deixa sair! — Minha voz soava estrangulada, mas ele
parecia não se importar. — Estou falando sério, me deixa sair. — Segurei a
porta, mas estava travada, e diante da minha aflição, ele deu partida.
Só ali, no meio do caos, enquanto uma multidão parecia berrar às
margens da pista, eu caí em mim.
Ele iria correr em um racha e estava me levando à força.
— Por que está fazendo isso? — Precisei aumentar o tom de voz para
que ao menos eu me ouvisse, pois parecia que falava e nada saía. — Você
mesmo viu que não tinha ninguém na casa. Só fui pegar algumas coisas! —
gritei, mas não obtive resposta. — Você está magoado porque chamei a
polícia?
— Vou te mostrar o que estou sentindo, ratinha. — Começou a acelerar
e meu coração apertou, procurando por oxigênio nas veias. — Só paro
quando você abrir a boca! — gritou. — Não ligo se eu morrer, contanto que
você vá junto, Abernathy.
A sensação de estar presa no veículo, o som dos motores rugindo e o
barulho ensurdecedor da noite me envolvendo, tudo isso fez meu coração
acelerar descontroladamente.
O carro começou a se mover mais rápido, a velocidade aumentando a
cada segundo no ponteiro me fez arregalar os olhos. Luzes ao redor se
transformavam em um borrão colorido enquanto Aaron acelerava. Meu corpo
tremia, a claustrofobia se misturava com a acusticofobia, formando um
coquetel mortal de medo.
Enquanto eu tentava respirar, ele apertava o volante com mais força. A
sensação que tinha era de que iríamos afundar na pista a qualquer momento.
Tampei os ouvidos e, percebendo isso, ele abriu as janelas.
O vento frio chicoteou meu rosto, trazendo o som que parecia penetrar
em meus ossos. Os motores dos carros ao redor, o cheiro de combustível no
ar, o som estridente dos pneus no asfalto; tudo isso se amontoando, me
levando ao limite.
Ele ergueu a mão e ligou o som. Seu dedo começou a aumentar uma
música de rock, que ultrapassava as minhas mãos nos ouvidos.
Fechei os olhos, a tontura se apossou de mim enquanto uma pressão
selvagem me jogava para trás junto do banco. Meu corpo amoleceu e senti
que batia pelo carro, sem controle.
Abri os olhos, o grito preso saiu. O barulho era muito alto, não me
permitia pegar o controle de volta. Respirar doía. Tudo era um borrão, exceto
ele.
— Para, por favor! — Me ignorou e comecei a sucumbir,
dolorosamente.
Minha consciência desligou de novo por alguns segundos e, quando
voltei a mim, partes do meu corpo doíam por prováveis tombos. Arregalei os
olhos, a pista era um borrão indecifrável. Mais gritos rasgaram minha
garganta. Eu estava tremendo.
— Para agora, Aaron! — Forcei meu pescoço rígido a girar e percebi
que ele tinha os olhos em mim enquanto acelerava. Eram sombrios,
incontestáveis. Me causavam arrepios, me fizeram começar a chorar. — Você
não se importa tanto com seu irmão? Também tenho alguém! Alguém com
quem me importo e… faria qualquer coisa… — Apertei os ouvidos e os
olhos. — Por favor! — Meu corpo ondulou e o carro apareceu voar.
Arregalei os olhos, captando os dele. Diferentes. Menos mórbidos. Os pneus
pousaram e puxei o ar que não vinha. Senti o corpo amolecer. Ele ainda
olhava para mim, quando fez as janelas subirem, e pegou alguma coisa no
colo.
Eram seus fones de ouvido, os que usava para comunicação com os
outros.
Senti sua mão tocar na minha clavícula. Ele estava me dando os fones,
talvez achasse que poderia me ajudar em alguma coisa, mas eu mal tinha
forças para manter os olhos abertos.
— Brianna? — Sua voz soou um pouco longe. — Acorda! — Ele
pareceu gritar pouco antes de pisar no freio. Eu ouvi o cantar de pneus pelo
asfalto. O vento de seus braços anunciou a manobra de mãos para girar o
volante, e logo uma delas estava em mim. Me mantendo no banco.
Abri os olhos em um sobressalto, a tempo de ver quando saímos da
pista. O carro levantava poeira, saltando barrancos e levando galhos de
árvores pelo caminho. Eu me sentia à beira do colapso. Apagava e voltava
para apenas gritar, até que os pneus pararam.
Quando tudo acabou, parecia que eu tinha voltado de outra dimensão.
Meus cabelos embolados no rosto, suor pingando da testa, ainda suspirava
pesado e engolia com dificuldade. Minhas unhas estavam cravadas no braço
dele, completamente arranhado, mas firme embaixo dos meus seios. Folgou o
aperto do braço sob os gritos das pessoas que anunciavam um ganhador que
não era ele. Recebíamos vaias e xingamentos, mas seus olhos estavam em
mim. Não saíam de mim, mesmo que ele não tivesse dito uma palavra, e os
meus lutavam com todas as forças para permanecerem longe.
Comecei a me afastar, virando o corpo de lado e bati na porta, sem
enxergar direito por causa das luzes fortes e tremendo a cada estouro de
fogos.
— Espera — falou.
Gritei por cima, rouca:
— Abre a porta! — Pude ouvir seu suspiro seguido do clique que me
fez empurrar o metal. Caí no chão em seguida, sem equilíbrio algum nas
pernas.
— Espera, Brianna. — Não sei ouvidos, comecei a tentar me levantar
quando Brandon e Benedete chegaram e me ajudaram a ficar de pé.
Minha cabeça amoleceu e caiu no ombro de Brandon. Senti que
vomitaria até o meu estômago e meus ouvidos zuniam sem descanso.
Senti a mão de Benedete pousar na minha testa.
— E o que foi isso?
— Acusticofobia. Parece que ela entrou em pânico — Brandon
explicou, colocando o dedo no meu pulso. — Posso levar ela… — Estava
zonza, mas captei quando os dois se entreolharam e a ruiva acenou.
— Cuido do Alien. — Bateu no ombro dele.
Enquanto saíamos do meio do nada e voltávamos para onde os carros
estavam, vi quando Aaron saiu do carro e atirou uma garrafa no chão.
— Ele estava bêbado? — Minha respiração voltava ao normal pouco a
pouco e me vi agarrada à porta, relutando para entrar no carro de Brandon.
— Não vou correr. Você não pode ter um treco aqui dentro ou o Alien
me mata.
— Fala o nome desse desgraçado de novo e mato você. — Bati os
cílios devagar. — E não é como se ele se importasse comigo. — O sussurro
me fez segurar o peito.
— Você viu que ele perdeu o racha? Acredite. Ele quer que você viva.
A pergunta era: para quê? Me assolar viva?
Eu não tinha respostas e ele sabia disso. Não tinha valor para o meu
pai, ele mesmo provou isso.
Já deveria ter me matado por vingança, mas não fazia. Nunca
ultrapassava o meu limite de verdade, e eu não fazia ideia do porquê.
A corrida de volta foi tensa. Sempre gostei de carros, exceto quando
precisava viajar com meu pai, mas, naquela noite, eu faria de tudo para nem
mesmo ver um automóvel na rua.
Estávamos em frente ao campus em poucos minutos. Desci do carro e
comecei uma corrida rápida até o alojamento da irmandade para só então me
lembrar de que Meg havia dito algo sobre uma festa de casamento de algum
parente. Ela me mandou pegar a cópia da chave na escrivaninha um pouco
mais cedo, mas Benedete me levou antes que eu me lembrasse de o fazer.
Que você já tenha voltado… que você já tenha voltado…
Supliquei aos céus, mesmo sabendo que seria impossível. Não era nem
meia-noite ainda.
— Meg? — Bati na porta. Como esperado: sem respostas. Brandon
apareceu tal como uma sombra bem atrás de mim e dei um pulo quando ouvi
sua voz.
— Relaxa, ela deve estar chegando. Sabe pra onde foi? — Tentei
revirar os olhos, mas nem isso consegui. — Você não tem uma cópia da
chave? — Encostei a testa na porta e fechei os olhos.
— Eu espero por ela.
— Sabe que horas ela costuma voltar?
— Das últimas vezes, só no dia seguinte. Esse fim de semana, aposto
que no horário do almoço — murmurei e ele ergueu as sobrancelhas.
— Pode dormir em outro lugar.
— Qual outro lugar? — Seus dedos ergueram a chave do quarto que
dividia com Aaron. — Ele não vai voltar hoje.
— Sabe onde enfiar a proposta.
— Tudo bem, então — falou como se tivesse sido vencido, mas
permaneceu ali me olhando. Antes que eu o mandasse se foder, senti a ânsia
de vômito voltar. — Você precisa de ajuda? — Suspirei, olhando para a porta
e ele deu um passo para trás. — Não vou arrombar uma porta porque não
quer dormir em outro lugar que não seja o seu quarto, mimada.
— Mimada é o caralho! Não fico perto de nenhum de vocês! —
vociferei, engolindo a bile.
— Não sei se reparou, mas só estou tentando ser legal.
— Tá tentando ser legal por quê? Vocês são mesmo todos iguais!
— Só não vou te deixar ao relento, o Alien…
— Foda-se o Alien! Ele quer me ver morta!
— Você não o entende, não é?
— Que ele é completamente louco? Entendo, sim. — Voltei a encostar
a testa na porta.
— E por que ainda está aqui, depois de todas as chances que teve de se
afastar dele? Deve ter uma boa razão…
Parecia que não me davam trégua. A todo momento queriam descobrir
mais, saber de tudo. Aquilo já estava me dando nos nervos.
— Não te interessa! — gritei e a tontura me alcançou. Segurei na
parede e ele me ajudou. — Me leva até a casa do meu pai.
— Não pode ficar sozinha. — Olhei para ele.
— Então abra essa porra!
— Você vai para o alojamento dos caras. Não vou mais discutir. Se
tiver um ataque, não quero me responsabilizar por ter te deixado sozinha —
pontuou, me arrastando de lá.
Eu sabia o porquê da insistência. O canalha só queria a oportunidade
de passar um tempo comigo.
Seguimos até lá e, quando ele abriu a porta, o aquecedor me abraçou
como um pai a um filho. Não importava mais se era o ambiente onde o infeliz
dormia, eu não sairia dali.
— O desgraçado com quem divide esse lugar, sabe que está tentando de
todas as formas que eu durma com você?
— Está aqui para que durma bem. Dormir comigo é outra história.
Desviei o olhar, me desvinculando de seu ombro e seguindo até uma
cadeira gamer em um dos cantos do quarto.
— Conta outra, filho do governador.
— Ele me mataria se soubesse que fodi você. — Seus passos o levaram
até o guarda-roupas. Brandon o abriu.
— Assim como te mataria se soubesse que bate pun…
— Não precisa falar em voz alta. — Jogou uma camisa na minha cara.
— Se quiser tomar banho… o banheiro é ali. — Apontou com a cabeça.
— Vou tomar banho. Não é uma questão de escolha, é necessidade. —
Seus braços se ergueram, apontando a porta.
— Fique à vontade.
— Neste lugar? Nunca estarei à vontade.
Meu banho foi rápido e encontrei tudo de que precisava no banheiro, o
que parecia ser um milagre. Toalhas secas, escovas de dente reservas,
sabonetes e condições normais no sanitário me deixaram de boca aberta.
Saí de lá satisfeita, mas nem tão feliz quando me deparei com Brandon
sem camisa.
— Me deu a sua última peça de roupa limpa? — perguntei, passando
para o outro lado e ele me olhou da cama, deitado com os braços apoiados
atrás da cabeça.
— Digamos que o aquecedor está muito quente.
— Abaixe a intensidade.
— Não iria adiantar muita coisa, e você precisa dessa temperatura. —
Brandon se levantou e caminhou até mim. Sua mão tocou na minha testa.
— O que pensa que está fazendo? — Meu sussurro pareceu bater em
sua pele de tão perigosamente próxima.
— Conferindo a temperatura — sussurrou de volta, seus olhos caindo
nos meus.
Por um maldito segundo, ele se pareceu com o meu pesadelo de outro
planeta. Os cabelos jogados por cima dos olhos, sob a sombra do quarto, me
permitiu confundir.
Foi daquele jeito que o Alien me olhou, de cima, autoritário e
imponente, quando me viu pela primeira vez. Quando me aterrorizou e
apertou no nosso primeiro encontro naquela floresta, em um pós-inferno
vívido que caiu tanto sobre ele quanto sobre mim. Era assim que me
mantinha sob seu feitiço todas as vezes que se aproximava, e foi assim que
Brandon conseguiu me beijar.
Seus lábios fisgaram os meus em segundos e a boca fresca meio gelada
e ácida de bebida me inebriou. Mantive o corpo imóvel por um momento,
limitei um pouco a perna que queria subir e lutei para não arranhar sua nuca,
mas ele me puxou contra seu corpo com força e eu abri um pouco mais a
boca.
Brandon passeou por ela sem pressa, com a língua macia e os lábios
precisos, sua respiração cobria o meu rosto e, aos poucos, começou a
acelerar. Abri os olhos no momento que ele me prensou contra a parede e ali,
quando eu o vi, tudo desmoronou. Puxei meus lábios dos dele e ergui minhas
mãos para o afastar.
— Não dá… — Relutei, ofegante. Brandon ficou em silêncio por um
momento, regulando a respiração, até que finalmente decidiu falar.
— Fiquei chateado quando ele disse que eu não poderia pegar você —
sussurrou.
— Chateado? — Minha expressão fazia jus à confusão.
— Coisa de homens.
— Você quer dizer coisa de criança que divide brinquedo. — Passei
por baixo de seu braço e segui até a cama ao lado.
— Essa aí é do Alien… — disse, quando me viu deitar lá.
— Foda-se o Alien do inferno, essa noite é o lugar onde vou dormir. —
Ele começou a rir e ergui a cabeça para o encarar. — O que é?
— Não o odeia de verdade…
— O quê?
— Nenhum dos dois sente raiva de verdade um pelo outro. — Foi a
minha vez de rir, nervosa.
— Só pode estar cego!
— Inicialmente podem até ter sentido, mas depois ela foi convertida em
outra coisa. — Semicerrou os olhos.
— Por que diz isso?
— Me beijou pensando nele — respondeu e minha voz simplesmente
sumiu. — Você colocou os cotovelos no meu peito, antes de subir com as
mãos até a minha nuca, e ergueu um pouco a perna direita. — Começou
andar até a própria cama e o segui com os olhos. — É a marca registrada do
Alien. Prende a garota pelos punhos no peito e aperta a bunda com a mão
livre. — Ele se atirou na cama. — Saber disso é o fardo que se carrega
quando se passa muito tempo junto a um mulherengo que não mede esforços
para levar mais uma pra cama.
— E isso realmente acontece com frequência? — A pergunta saiu sem
que eu percebesse e ele gargalhou. — Não… quer dizer, não é isso que quero
saber…
— Nem mesmo negou a minha afirmação de ter pensado nele,
percebeu?
— Não pensei.
— Tarde demais para tentar refutar — falou e me recostei na cama.
Pouco a pouco o silêncio nos cobria.
— Aaron não era tão perverso assim antes do irmão ser morto. — Ele
se virou para olhar na minha direção. — A morte de John desencadeou algo
que ele escondia há um tempo.
— Mas por quê? O irmão era mesmo a única família? Soube que ele
tem uma mãe… — mencionei e Brandon se virou de bruços.
— John era o único que o entendia, assim como nós, mas a diferença
era que ele tinha o mesmo sangue — completou. — É só disso que precisa
saber.
Mais silêncio. Meus olhos começaram a pesar, e Brandon se virou de
costas para mim.
— Aaron sente alguma coisa por você, mas não é raiva. Ele sabe que a
culpa não foi sua, mas também sabe que o sangue nas suas veias é o mesmo
que tirou a vida de John. Nessa dança desgovernada, mesmo que ele tente te
odiar, sempre acaba amarrado por alguma outra coisa. Uma coisa maior. —
Ouvi seu leve suspiro. — Talvez vocês sejam parecidos em algo a mais além
da loucura — acrescentou e tudo apagou.
Dormi.
A noite voou. Só percebi quando amanheceu, porque uma fresta de luz
impiedosa, que vinha de uma das janelas, acertava sua luminosidade direto no
meu olho esquerdo.
Assim que despertei, engoli o mini surto que ameaçou me dominar
quando me vi ali, no quarto dos caras. Brandon dormia tal como uma criança,
com uma das pernas para fora da cama de solteiro e o corpo meio torto.
O quarto estava silencioso, mas uma sensação de apreensão pairava no
ar. Me levantei, ajustei a camisa ao corpo, peguei minhas roupas e caminhei
devagar até a porta. Quase tive um treco quando a voz rouca dele reverberou
pelo lugar.
— Sabia que você iria tentar sair furtivamente.
— Acontece com frequência? — A pergunta soou sem graça.
— Na maioria das vezes, sou eu quem faz isso com elas. — Dei a ele
uma revirada de olhos e girei a maçaneta.
— Então espero que mais garotas te abandonem pelas manhãs. E
quando acontecer, acredite, você é suficiente e merece ter alguém na vida,
não importa o que sua mente diga naquele momento. — Ele riu e eu me virei
para sair.
Ou melhor: para dar de cara com um abismo de olhos devastadores e
energia imponente.
Aaron Walker. Parado na porta, olhando para mim.
Seus olhos fixos na camisa que eu vestia já diziam muita coisa, mas foi
quando me puxou para perto de si que tudo ficou ainda mais claro. Os dedos
seguraram o tecido da roupa com força, vi sua testa franzir e as sobrancelhas
quase taparam os olhos.
— Tira isso. — Saiu como um rosnado baixo. Seu rosto me mostrou o
que parecia ser resquícios de algo indecifrável. — Tira isso, agora! —
Segurou o tecido e puxou para cima e me empurrou para o quarto.
— Ficou maluco? — Não consegui lutar contra sua força. Fiquei de
sutiã e calcinha ali, enquanto Brandon tentava falar com ele, sem obter
sucesso algum. Usei os braços para reforçar o trabalho do pouco tecido das
minhas peças íntimas, sendo guiada até a cama por ele.
Abriu o guarda-roupas e puxou uma de suas camisas. Ainda envolvido
por um silêncio mórbido, ele a atirou em mim, a expressão era contida por
algo maior, mas eu poderia jurar que conhecia aquilo. Se me perguntassem,
eu diria que era uma das inúmeras faces do ciúme, trajada de armadura
sombria, envolvida por uma aura de raiva e adrenalina desenfreada. Mas era o
Alien, podia ser tudo, menos isso…
Comecei a me vestir depressa para tentar impedir que as coisas
piorassem, mas, quando alcancei a porta, era tarde. A chave girou por fora,
me mantendo presa longe dos dois, naquele quarto, em que só ouvia suas
vozes.
— Aaron, me deixa sair! — Era em vão, mas queria tentar. — Abre
essa porta! — Bati com força contra a madeira, mas fui ignorada.
— Agora, nós podemos conversar. — Seu tom sério ressoou como um
murmúrio seco e, seguido dele, o barulho alto de um soco me fez morder os
lábios com força. Sapatos rangeram sob a porcelana e a confusão que teve
início dizia que eles estavam brigando feio.
— Parem com isso! — Segurei a maçaneta e comecei a chacoalhar. —
Abre essa porta! — Quando gritei pela segunda vez, se fez silêncio. Eles
estavam ofegantes.
Inclinei contra a madeira e coloquei um olho no buraco da fechadura. O
tronco do Aaron tomava quase todo meu campo de visão e, além dele, eu só
via meia dúzia de corajosos assistindo a tudo do outro lado do corredor da
fraternidade.
— Não rolou, cara! — Brandon vociferou do outro lado, sua voz
parecia vir de baixo, como se estivesse no chão.
— Mas você queria, e duvido que não tenha tentado! — Rebateu com a
pergunta que, se fosse respondida de forma sincera, avaliando a situação,
causaria uma morte no Campus.
— Eu só me habituei à nossa dinâmica, porra! — Era o fim do cara.
— Falei para não tocar nela! — Seu tom de voz voltou a aumentar.
Tampei a boca quando ele virou um vulto e me fez sentir, pela fresta da porta,
que se aproximava de Brandon com uma força inumana.
— Ei, ei, pega leve, cara. O que tá rolando? — Os passos rápidos do
Ryus ecoaram pelo lugar.
Ryus! Ele vai apartar a briga!
Estava apostando no caladão, mesmo sabendo que, se tentasse intervir,
existiam grandes chances de ele apanhar também.
— Vou matar esse filho da puta!
— Não na minha frente. — Foi a vez da voz de Benedete anunciar sua
chegada. — Qual o motivo da briga, crianças? — Ignorada.
— Me conhece, porra. Sabe que eu teria dito se algo acontecesse. —
Pelo suspiro, Brandon também sentia raiva. Me desesperei à procura de outro
jeito para assistir àquilo, já que não restava ninguém na linha do buraco da
fechadura. Ele continuou: — Só achei melhor que ela tivesse onde dormir a
ficar ao relento, caralho! A garota apenas tomou um banho e vestiu uma
camisa para dormir. — Olhei por baixo da porta, seus pés estavam próximos,
eles pareciam estar cara a cara. — Sei que marcou aquela boceta como sua
exclusividade. Não mexi nela, mas também não posso dizer que não queria,
você me conhece. — Os pés se aproximaram um pouco mais, tensão se
alastrava pelo lugar diante de um silêncio perturbador, em que os dois se
encaravam.
O que me fez borbulhar, no entanto, foi aquela última fala do Brandon
babaca. Senti o sangue subir à cabeça e quando pensei em esmurrar a porta,
Benedete ergueu a voz.
— Que pouca ideia é essa de brigar por mulher? Já estão de fato
comprando como propriedade?
— O Alien que tá virado — Brandon rosnou. — Ele só quer ela para
um fim, não deveria se importar tanto.
— Quero ela até depois do fim. — Aaron fez a voz reverberar pelo
lugar, o silêncio sequencial deu a entender que deixou aquelas palavras
escaparem sem pensar. Sua conclusão trouxe à tona a verdadeira intenção. —
Até depois do fim, para acabar com ela e todos os vestígios que indiquem que
existiu um dia. — O tom de voz abaixou e pareceu falar entredentes. — Se
tentar entrar aqui pelas próximas vinte e quatro horas, será um homem morto.
— Ele bateu na porta com força, me fazendo pular para longe. — E você,
curta o castigo. volto mais tarde.
— O quê? — Pulei de pé. — Abre essa porta ou eu vou…
— Vai o quê? — A pergunta ressoou por trás da madeira e me
aproximei um pouco mais dela.
— Acabo com você!
— Adoro te ver tentar, ratinha. — Percebi quando se afastaram e quase
arranquei meus cabelos de tanta raiva.
Eu odiava ficar trancafiada. Aquele infeliz fazia de propósito porque,
com certeza, sabia disso.
Passar o dia presa no quarto dos dois marmanjos aspirantes a
criminosos só não foi de todo mal, porque novamente explorei cada cantinho
daquele lugar sombrio e incrivelmente limpo. Se aquele quarto fosse
minúsculo como os da irmandade, com certeza eu já teria tido um treco, mas
era enorme — até nisso os filhos da mãe tinham vantagem.
Tirando as drogas, bebidas e uma coleção de chaves velhas de carros —
com certeza, inúteis — eles tinham um bom gosto para música e uns jogos
legais em um PC gamer. Detalhe: somente jogos de corrida de carros — com
certeza, pertenciam ao Alien do inferno — mas, ainda assim, era legal. Me
fazia lembrar da época em que eu jogava com a Mavi, ouvindo rock no
último volume enquanto seus pais trabalhavam fora.
Se eu não estivesse ouvindo músicas, fuçando mais do lugar, dormindo
ou testando jogos de última geração, eu estava comendo alguma coisa e
torcendo para não ter nada ali.
Meu café da manhã tinha sido três barras de cereal que encontrei em
uma das gavetas de Brandon. O almoço, um hambúrguer meio mordido com
a embalagem da Booking no canto da geladeira, que encheu os meus olhos ao
me fazer lembrar do gosto, de quando aquele infeliz me manteve presa na
última vez. Mesmo que não fosse minha praia, tomei duas latinhas de bebida
alcoólica antes do anoitecer, só para aliviar e fazer a coragem de massacrar
aquele infeliz dobrar de tamanho.
Parecia ser madrugada quando ouvi a chave girar por fora. Me
aproximei da porta e, quando ele pisou no batente, avancei para esmurrar seu
peito.
— Some da minha frente! — Minha voz saiu firme e lutei, tentando
passar pela porta. Aaron sequer se abalou, me deu um olhar matador e, em
vez de ceder, segurou meus braços com uma única mão. Fechou a porta e
trancou a fechadura, indo na direção de suas gavetas em total silêncio.
Estava suado e sem camisa, a máscara pendurada no cós da calça
anunciava ter voltado de mais uma de suas corridas clandestinas. Ele não
tinha cheiro de drogas ou álcool, mas me inebriou só de passar por mim. Os
músculos em suas costas me fizeram engolir em seco de tão flexionados,
enquanto ele explorava a parte de baixo da estante. Pela gaveta, eu já sabia o
que estava procurando, vi lá quando estava fuçando suas coisas, mas, ainda
assim, um arrepio subiu a minha espinha quando as pegou nas mãos.
Correntes.
— Vamos brincar de cativeiro de novo? — ciciei, vendo-o desenroscar
o volume de argolas entrelaçadas barulhentas e, como esperado, não obtive
resposta alguma. — Por que você age assim? — Minha voz expressava
confusão e dúvidas caóticas, mas não tinha medo daquele jeito dele, só raiva.
Suas mãos empurraram minhas costas contra a parede e laçaram meus
punhos com as correntes. Nunca pude contra aquela força, por isso nem
mesmo insisti em lutar.
— Acorrentar as pessoas virou sua linguagem de amor, Alien? — Seus
dedos trabalhavam de forma rápida, estava concentrado ali. — Acha que tem
o direito de ficar magoado? — Percebi que o ritmo diminuiu, continuei. —
Sei que quase nos matou naquela pista, porque chamei a polícia naquela
noite, e está fazendo isso agora por conta do Brandon. — Ele me fez parar de
falar, apertando minhas bochechas com força.
— Olha bem pra minha cara e diz se pareço alguém que se chateia com
as ações de uma vadia como você — murmurou, me fuzilando com aqueles
olhos de pura escuridão. Arranquei o rosto de seu poder e cerrei os dentes. —
O que vê se chama irritabilidade por ter perdido uma corrida importante e ter
passado o dia inteiro resolvendo burocracias. — Puxou as correntes,
induzindo meus braços para frente. — Agora, cala a boquinha e me deixa
trabalhar — pontuou e minha raiva borbulhou no peito.
Decidi fazer a única coisa que estava ao meu alcance: tirar aquele
merda do sério até vê-lo explodir.
— Me sinto uma idiota por ter tido a oportunidade de ir para cama com
o seu amigo e desperdiçado — falei, encarando a carranca que ele formava no
rosto. — Se eu soubesse que passaria por isso pela manhã, teria valido mais a
pena.
— É tão otária assim? — Riu, sacando meu plano como o infeliz astuto
que era.
— O que você acha? — Ergui as sobrancelhas.
— Acho que está perdendo seu tempo e a dádiva de poder escolher
ficar calada.
— Não tenho culpa se as imagens do que eu e Brandon não vivemos
são tão vívidas e intensas na minha mente quanto as nuances de quase morte
que vivenciei naquele carro desenfreado ontem. — Suspirei. — Ele quase me
carregou nos ombros para este quarto…
Aaron passou as pontas das correntes por um gancho preso no teto,
meus braços foram puxados para cima e a camiseta que eu usava esticou,
deixando a calcinha à mostra e fazendo meus seios balançarem.
— Vou te dar motivos para parar de falar em poucos minutos —
grunhiu satisfeito em me ver presa.
— E por que isso te afeta? — Deixei o rosto no vão dos braços
suspensos, fitando-o.
— Não me afeta — declarou, formando uma seriedade perturbadora à
face. A linha na testa, no entanto, ainda estava lá, e pelo maxilar super
marcado, pude perceber que pressionava os dentes.
— Não foi o que pareceu quando brigou com seu melhor amigo
naquele corredor.
— Briguei pela tentativa de traição da confiança que eu tinha nele —
grunhiu. — Dei ordens para que ninguém chegasse perto de nenhuma
maneira, porque tenho muito em jogo, e você é a chave dos meus problemas.
— O que vai fazer? Me torturar para provar esse ponto? — Ergui a
sobrancelha. — Preferiria a tortura do Brandon, em uma cama…
Bastou para que ele quase corresse até mim.
— O que está tentando fazer, vadia? — Saiu entredentes.
— Acho que você sabe.
Ela me deu aquele olhar dissimulado e minha vontade de apertá-la
quase excedeu o limite. Entendi de primeira qual era sua intenção. Estava
tentando provar que me afetava, que aquilo tudo ia além da vingança, mas
eram puros delírios da vadia. Só era autoritário demais para aceitar que minha
melhor carta fosse passada de mão em mão.
Ou, pelo menos, achava.
Sentir aquela puta raiva não era normal. Nunca tinha passado por algo
parecido e não era como se eu me importasse com todas as bundas que
passavam pela minha cama, mas aquela desgraçada conseguia me fazer vidrar
só nela, como uma droga almejada do caralho.
Por um tempo, achei que fosse pelo fato de ela ser importante demais
para a minha vingança, mas já tenho receio de admitir que pode ir além disso.
— Tomei um belo banho bem ali… — Voltou a suspirar feito uma
cadela no cio e minhas veias inflaram. — Não sabe o quanto me segurei para
não chamar por ele e…
— Cala a boca, Abernathy. — Fiz seus punhos se apertarem com um
puxão nas correntes e ela gemeu, mas riu logo em seguida.
— Faríamos coisas inumanas naquele chuveiro… Brandon tem braços
enormes… — Me aproximei dela com os punhos cerrados.
— Não me faça repetir a ordem. — Fiz reverberar pelo lugar e ela
encarou os meus olhos, a voz aveludada acariciando meus tímpanos.
— Já me fodeu, Alien — ciciou com aquela boca carnuda, usurpando a
minha sanidade. — Então sabe exatamente o que seu amigo sentiria quando
metesse…
— Mandei calar a boca! — Meus dedos entraram em seus cabelos,
apertei o couro cabeludo e mordi seu lábio inferior e o trouxe para mim. Ela
gemeu, me olhando nos olhos até que eu soltasse. — Cala a boca, ratinha, se
não quiser que eu faça pior — murmurei em uma distância perigosa de seu
rosto e ela inspirou fundo, antes de voltar a falar.
— Por que você só injeta adrenalina no meu corpo para me colocar de
volta na gaiola? — Apertou as pernas. — Me excita e amordaça a minha boca
de novo e de novo… — Aqueles olhinhos me mostraram súplica. — É algum
tipo de tortura? Porque é a mais covarde. — Minhas pupilas dançaram
confusas junto às dela. — Diga a verdade: sabe que não valho a pena, então
por que ainda insiste em brincar comigo? Por que ninguém além de você
pode me tocar? — Lhe dei silêncio até que a última pergunta ressoasse. —
Por que vive repetindo que sou sua?
— Porque é minha — falei sério e levei a mão para apertar seu maxilar
pequeno.
— Em qual sentido? — As sobrancelhas desenhadas franziram
levemente.
— É minha para que eu faça o que quiser, para me dar o que quero,
quando quero. — Apertei a cintura e sua respiração trêmula me fez fechar os
olhos.
— Sabe que não tenho o que quer.
— Você tem, e vou pegar. — Meus lábios brincaram com os dela. —
Vou pegar agora. — Beijei com força, puxando para mim e fazendo-a sentir
minha língua dentro da boca, agarrada à dela, sugando e batendo,
demonstrando o que eu faria ao seu corpo e alma. — Quero foder cada
buraco em você, Brianna. — Soltei as correntes de cima e, uma vez livre dos
braços suspensos, puxei-a pelos cabelos, fazendo-a ficar de costas para mim.
Minhas mãos subiram por dentro da camiseta, arranquei o sutiã e
rasguei a calcinha no corpo — parecia amar sentir o tecido esmiuçar ainda na
pele, como da última vez — não consegui disfarçar que sentia fome e raiva o
suficiente para engolir aquela rata atrevida ali mesmo, mas existia um desejo
queimando feito o inferno dentro de mim que me levava a ansiar enterrar
tudo naquela garganta primeiro.
Virei seu corpo para mim e, quando achou que a beijaria de novo, eu a
fiz descer.
— Ajoelhe e abra essa boquinha gostosa pra mim. — Desabotoei a
calça, sentindo o pau pulsar dentro daquela sauna feita de tecido. Coloquei o
monstro para fora e assisti à sua boca entreabrir. — É isso que você quer não
é, vadia? — Ela me deu um meio-sorriso.
— Continua me chamando assim e vou te morder — falou, erguendo as
mãos com as correntes penduradas e segurando firme.
— Você gosta — respondi, abrindo um pouco mais as pernas. —
Agora, faça seu trabalho. — A atrevida conseguia mexer comigo quando me
olhava por baixo. Ver meu pau na sua boca, então… me fazia querer tomar o
controle a todo momento.
Quando Brianna colocou a glande entre os lábios e franziu as
sobrancelhas como uma puta, fixei os pés com mais força no chão.
— Tá fraquinha? — Ela ergueu as sobrancelhas, engolindo metade do
meu pênis. — Lubrifica o meu pau, vadia! Chupa tudo! — Juntei seus
cabelos e a trouxe para frente, fiz com que ela me engolisse por inteiro.
Quando ergueu a mão para me afastar, segurei-as longe pelas correntes e
empurrei a pelve contra seu rosto. — Oh… está sufocando? — Tirei um
pouco, lhe dando trégua, e sem perder tempo, segui goela a baixo de novo.
Vi-a apertar os olhos com força e puxei para fora novamente.
Passei a segurar sua cabeça com as duas mãos e me movimentar
devagar, fodendo aquela boquinha com calma e sentindo o quão quente era a
língua, macios os lábios e pequena a cavidade bucal. Antes de gozar gostoso
ali, puxei para fora, trazendo um fio de saliva gelada comigo. Meu pau
balançou parando ereto diante de sua respiração ofegante, ansiando por
aquela coisinha que ela escondia entre as pernas.
Levantei-a com força e a fiz ficar de costas para mim. Meus dedos
escorregam pela boceta carnuda tão molhada quanto eu me lembrava.
— Ficou molhada por pensar nele? — Puxei os cabelos para falar em
seu ouvido. E com a outra mão passei a corrente enrolada em seu punho por
entre as pernas. — Fale agora ou cale-se para sempre…
— Fiquei molhada por causa da sua reação enquanto eu falava dele,
idiota. — A voz saiu trêmula, uma delícia.
— Bom… muito bom… — Segurei os punhos dela embaixo dos seios
e com a outra mantive uma das correntes entre as pernas.
O toque gelado fez com que gemesse e quase babei, sentindo a
facilidade com que a corrente escorregava. Comecei a puxar e soltar,
esfregando ali embaixo. Ela se contorcia gemendo e eu a mantinha no lugar
com os dentes em seu pescoço, chupando a pele como um animal.
— Geme pra mim.
— Aaron… eu não… — Sua fala cessou, dando lugar a algo contido.
— Geme mais alto!
— Podem escutar… — ciciou. Larguei a corrente e seu suspiro de
frustração foi perceptível.
— Se essa é sua preocupação, vou dar um jeito. — Segurei-a forte pelo
pescoço e desfiz uma das amarras em seu punho. Ergui o emaranhado de
argolas diante de seus olhos. — Eu vou te colocar numa coleira, vadia. —
Dei duas voltas em seu pescoço, sentindo a pele sensível arrepiada. — E vou
foder essa sua bocetinha na sacada desse quarto até que não sinta mais as
pernas. — Apontei para a porta que levava àquela parte do dormitório. —
Você vai desejar poder gritar e gemer, mas será impossível.
— Não é tão louco a esse ponto…
— Sabe com quem está lidando, ratinha… está me deixando ofendido
com essa subestimação. — Bati na bunda com força e ela gemeu muito mais
alto. A risada que deixei escapar foi de pura satisfação. — Sempre soube que
você sentia tesão por coisas assim. — Mais um tapa e ela segurou minha
mão.
— Qual o intuito de me marcar por todo o corpo? Já faz questão de
anunciar que sou sua pelos quatro cantos deste lugar — falou entre os ofegos.
— Quero fazer você acreditar nisso também… — Mordisquei a orelha
dela. — E pelo modo como suplica por mim, não está longe de acontecer.
Pude ver seus olhos revirando e bati com mais força, antes que
rebatesse. O arrastar das corrente foi como música para os meus ouvidos e,
quando chegamos à sacada, o campus estava completamente apagado.
O vento frio passava por nossos corpos como um intruso, mas não
incomodava, nós dois estávamos quentes como o inferno. Diante da paisagem
escura da Libert, colei meu corpo no dela, mantendo o pau no meio de suas
pernas, uma mão em um dos seios e outra no pescoço, por cima da corrente.
Meus lábios dançaram por sua orelha.
— A quem você pertence, ratinha? — Pressionei a ereção nos grandes
lábios e ela se contorceu. Passei a massagear a nós dois devagar. — Só te dou
mais quando disser em alto e bom som. — A fricção se tornou mais intensa e
o som mais alto. Bati nela com minha própria ereção, massacrei o clitóris
macio, a pele delicada. O corpo de Brianna amolecia sob meu poder. —
Quem é o seu dono, Abernathy?
— Você… — Foi um sussurro.
A porra do sussurro mais gostoso que ouvi na vida. Uma injeção de
adrenalina direto no sangue.
— Que delícia que é ouvir você admitir isso… mas quero mais —
grunhi e posicionei a glande na entrada escorregadia, iniciando movimentos
circulares. — Fala mais alto, vadia! Quem é o seu dono? Fala… — sussurrei
a última palavra. Meus dentes passearam na pele de seu ombro, senti que
todo o corpo dela tremia. — Fala pra mim, hum?
— Você é meu dono… — ciciou com os dedos na base do parapeito,
olhos fechados, pernas bambas.
— Mais alto… — Empurrei a glande para dentro e ela gemeu,
empurrando-se para baixo e tentando engolir um pouco mais. Segurei sua
cintura com força e a mantive em seu lugar. — Você quer ele não quer?
— Eu sou sua, Alien! Só sua…
— Só minha. — Bati com força na bunda e apertei o pescoço dela por
cima das correntes. — Só minha, caralho! — Pressionei a boca contra a
orelha dela e penetrei de uma vez. Meu pau deslizou pela carne quente e
macia, pulsando por ela. — Empine essa bunda, fique na ponta dos pés e
respire enquanto pode, ratinha. Seu dono promete apertar a coleira até que
não consiga emitir sequer mais um gemido.
Ela encostou a barriga no parapeito, segurei a corrente que lhe servia
como coleira e a fiz se inclinar para frente, levantando a camisa devagar. Vi
quando colocou os dedos entre as argolas e o pescoço, como garantia de que
não morreria sufocada.
— Coitadinhos dos dedinhos, ratinha… — Ri alto, puxei minha pelve e
bati com força contra ela, penetrando de novo. — Toma aqui o que você
merece, toma — rugi, aumentando o movimento. — Merece que eu foda essa
boceta com vontade!
Uma das minhas mãos puxava a corrente e a fazia inclinar a cabeça
para trás, ao passo que a outra a empurrava pelas costas contra o parapeito.
Seus gemidos já estavam cortados e quanto mais apertada a coleira, mais sem
ar ela ficava.
Os cabelos dela voavam pelo vento e, mesmo que não pudesse ver, eu
tinha certeza de que os nós de seus dedos já não tinha cor, na insana tentativa
de folgar a corrente ao redor do pescoço. Naquele silêncio fantasmagórico, o
som dos nossos corpos se chocando, da fricção molhada, só não predominava
o lugar, porque existiam meus rugidos.
Quando a vi tremer por completo, tirei a coleira. Brianna suspirou
como quem não tinha ar há séculos, tive certeza de que seu gemido alcançou
o pavilhão administrativo. Parecia ter soltado tudo que guardou de uma vez.
— Já passou… passou… — sussurrei, metendo com força. — Ainda
vai segurar os gemidos? — Não me respondeu com palavras, mas com um
som mavioso, que claramente suplicava por mais, pois suas pernas tremiam
como nunca. — Fala que quer mais, ratinha…
— Aaron…— A voz definhou, antes de completar o meu nome. Ela só
sabia gemer e receber o que eu tinha para dar.
— Fala, Brianna!
— Eu quero… — Apertei seu pescoço com força e entrei por inteiro
dentro dela.
— Entenda uma coisa. Você não atende por esse nome quando está
assim comigo. Quando estou fodendo essa bocetinha, você é a minha puta. A
minha ratinha. Você é minha. — Voltei a me movimentar, a fricção se
tornando tão audível quanto seus gemidos. — A quem pertence, ratinha?
— Eu sou sua…
— E vou matar quem, além de mim, tentar fazer isso com você. Vai me
contar se sequer te olharem. — Apertei a cintura com força. — Vai dizer se
tentarem falar com você, deixe claro que só abre as pernas para mim. —
Trouxe sua cabeça para que encostasse em meu peito e coloquei as mãos por
baixo da camisa, alcançando os seios. Apertei com vontade, sentindo aquelas
coisinhas macias com mamilos enrijecidos enquanto ela apertava meu pau,
contraindo a boceta com as pernas molhadas.
— Aaron… — Ela estava prestes a gozar.
Fiz seu tronco se dobrar no parapeito e continuei acertando o ponto que
a fez perder o controle sobre o próprio corpo. Seus músculos se contorceram
diante dos meus olhos e a sensação quente envolveu meu pau depressa,
arrancando um grunhido do fundo da minha garganta.
As marcas da minha mão formavam um mosaico em sua pele. O som
da afirmação de que era minha reverberando na cabeça e seu corpo tenso por
espasmos me fizeram franzir o cenho. O ápice do prazer parecia criar raízes
em meus pés e subir como lava pelas veias. Meus testículos tremeram e senti
o esguichar bater lá dentro, fazendo-a choramingar mais uma vez.
— Oh… que delícia! — Brianna estava tendo espasmos, jogada contra
o parapeito, enquanto eu lambuzava cada canto daquela coisinha carnuda e
gostosa com a minha porra quente.
Segurei os cabelos e a fiz se erguer. Contemplamos as luzes dos
alojamentos acesas e poucos corajosos envolvidos pela penumbra tentavam
nos reconhecer.
— Acordou a vizinha, amor? — Ela gemeu em resposta e seus olhos
confusos se viraram para mim. Mudei de assunto. — Ainda me sente aqui,
não é? — Coloquei a mão lá, estava pingando. Passei os dedos por cima de
seu clitóris e esfreguei sob a entrada. — Abre a boquinha. — Enfiei os dedos
entre os lábios e ela os chupou. — Boa menina. — Peguei-a no colo,
caminhei até minha cama, com as correntes se arrastando pelo chão, e a
coloquei lá. Assisti ao sono repousar sobre suas pálpebras, pesando o
suficiente para que começasse a adormecer, mas ainda com uma mão
agarrada ao meu braço.
Tirei de lá e a acomodei perto de seu seio, também tirei as correntes e
as joguei de lado. Bati o cobertor e a cobri antes de caminhar até o meu
telefone, na estante, deixado em um ângulo perfeito que captasse trezentos e
sessenta graus daquele ato.
— Aaron? — Sua voz soou fraca. Ergui a cabeça para vê-la tentando
franzir o cenho. — Você… nos gravou? O que vai fazer com isso?
Eu apaguei.
Apaguei sem respostas, e quando acordei, ele já não estava mais lá.
Meu corpo ainda parecia trêmulo, as marcas das correntes latejavam em
minha pele, enviando eletricidade por todos os meus ossos.
O quarto estava silencioso e parecia estar intocado, mesmo depois do
que fizemos ontem. Ajustei a camisa amarrotada no corpo, peguei minhas
roupas da noite passada e saí de lá em direção ao alojamento feminino, com a
cabeça a mil.
Tinha acontecido de novo. Pela segunda vez, era porque eu queria,
provoquei e me entreguei a ele. Suspirei. Naquele momento, achei que nada
poderia ser pior do que meus pensamentos tentando sufocar a pouca sanidade
que me restava, no entanto, pelos corredores, um movimento absurdo e
buchichos por todos os lados me chamaram a atenção.
Na minha cabeça só se passou uma coisa:
Ele espalhou o vídeo por todo o Campus.
Me aproximei de um círculo de garotas e uni as mãos, apreensiva, antes
de perguntar.
— O que houve? — Uma delas mal me deu atenção enquanto
respondia.
— Alunos novos chegando. — Foi o suficiente para que eu soltasse um
suspiro de alívio, mas a estranheza ainda estava lá, não consegui conter.
— E estão nesse alarde todo por conta de novos alunos? — Ela me
olhou de cima a baixo e se afastou junto às outras.
Enquanto caminhava, os sussurros sobre novos universitários
ganhavam força e me entregavam uma tranquilidade genuína que quase não
me coube no peito. Puxei as pontas do meu cardigã e cruzei os braços,
seguindo o corredor até o quarto.
Estava tudo bem até eu voltar a pensar naquilo.
Ele não fez a merda que achei ter feito. Mas ainda tem a gravação, e
eu não faço ideia de qual é sua intenção.
Pude jurar que vi nos olhos dele o reflexo da mágoa. Ter dormido
comigo, gravado tudo e sumido pela manhã mais parecia uma revanche.
Como quem paga com a mesma moeda. Mas, no caso do Alien, o troco seria
maior, e eu temia isso mais do que tudo.
— Aí está você. — Meg surgiu na minha frente, antes dos meus dedos
sequer tocarem a maçaneta.
— Meg, preciso de um banho! — falei, impaciente. Previa que seria
arrastada para fazer alguma coisa no campus.
— Cinco minutos e descemos para a apresentação do corpo estudantil.
— O quê? — Meu cenho se franziu como nunca, diante da morena de
olhos brilhantes.
— Vamos receber mais calouros nesse semestre! — disse, empolgada.
— Sempre há uma programação. Na sua vez, você só não viu, porque
esteve…
— Não precisa me lembrar disso — afirmei, como se não tivesse vivido
algo parecido na noite passada.
— Vai, anda, anda.. não quero me atrasar. Soube que a maioria são uns
gatinhos. — Meus olhos se reviraram e corri para o banheiro. Ela seguiu para
dentro do quarto também. — Fique impecável, Líder. Você vai representar a
irmandade — completou e pisquei algumas vezes, me olhando no espelho.
Precisava limpar mais do que a pele; precisava limpar a minha cabeça
de Aaron Walker, caso quisesse conseguir falar em público depois daquela
noite.

O vento frio do Brooklyn varria meus cabelos como um infeliz, quando


desci do carro em frente à Booking e pisei na calçada.
Os babacas já estavam lá dentro bebendo e não demorou para que eu
também me jogasse em uma das cadeiras, depois de acenar para o Boo, o
dono da lanchonete.
Atirei minha máscara junto da bolsa, que tinha o zíper quebrado, ao
meu lado. O dinheiro deslizou pela borda sob nossos olhos.
— E claro, Aaron Walker vence com a maior quantia roubada para
variar — Ryus murmurou e bateu o copo na mesa, mostrando a personalidade
falante que só dava sinal de vida quando ele ingeria uma certa quantidade de
álcool.
— Ainda nem contamos, babaca — Benedete rebateu, teimosa como
sempre.
— São feixes de cem dólares. Nós só ficamos com a parte queimada
que foi dispersa. Você sabe disso, Benedete. Segura o espírito competitivo aí
— Brandon pontuou.
— Tanto faz. — Ela piscou algumas vezes enquanto eu abria uma
garrafa de bebida no dente. — Pensei que tinham pegado você. Demorou
para aparecer.
— Olha bem pra minha cara e diz que está brincando. Só sou pego nos
seus sonhos, ruiva.
— Acha que algum deles nos seguiu registrar alguma coisa? —
perguntou. — Ficamos um tempo fora da pista. Estou sentindo todo mundo
meio enferrujado. — Olhei para ela com a sobrancelha erguida. — Menos
você, chefe. — Tomou um gole da própria bebida.
— Não registraram nada. Ryus fez um bom trabalho. — O loiro
acendeu um cigarro e se recostou na cadeira.
— Há quanto tempo que não corríamos para cá, depois de uma dessas?
Parece fazer décadas — falou, abrindo a brecha que a ruiva precisava.
— Se for considerar o tempo que o Alien voltou a falar com irmão, de
fato, demoramos para voltar a ser uma equipe como antes. — Ela colocou os
cotovelos sobre a mesa, me observando. — Conta aí, Alien. John aceitou o
seu pedido de desculpas, mas proibiu as amizades?
— Por isso iam tanto contra ele? Ciúmes? — Ergui uma sobrancelha.
— Voltei a falar com John aos poucos. Ele ainda tinha traído o sangue da
minha família, mas era meu irmão e o único ainda ativo no meio. Vocês só
pensavam em vender merda naquela droga de universidade.
Puxei o celular e, depois de bater os olhos no vídeo congelado em uma
frame de Brianna completamente nua, bloqueei a tela novamente.
— O que tem aí? Você não desgruda disso. — Benedete tentou arrancar
algo de mim e lhe dei meu mais sincero silêncio. — Espero que não esteja
vendo pornografia.
— Não sou o seu tio, ruiva.
— Ha-ha. Muito engraçado. — Foi a vez dela puxar o próprio telefone.
— Tá sabendo que alunos novos serão transferidos para a universidade? —
Diante da pergunta, abri um pouco mais as pernas e cruzei os braços.
— Sempre sei de tudo, mas isso…
— Você não soube. — Ela ergueu o telefone.
— Quando chegam e de onde estão vindo? — perguntei, sério.
— Chamam de Chicago, hoje. Novas matrículas, quartos sendo
liberados… Acho que te deixaram de fora dessa reunião, chefão — ironizou
enquanto eu via a notícia sendo propagada no grupo da irmandade por vadias
e mais vadias assanhadas. — Quem é que passa essas informações mesmo? O
líder da fraternidade?
— O líder daquela merda sou eu. Aquele imprestável só tem o título
para efetuar projetinhos idiotas que eu nunca faria.
— E te deixar informado… coisa que não parece estar funcionando —
completou e apertei o maxilar bem na hora que mais alguém chegou, me
chamando com um aceno na porta.
Era Tom. Quem supervisionava o Brooklyn para mim.
Mal saí e ele já começou falando.
— Os caras trouxeram boatos de movimentos.
— Do que se trata? — Me animei. Nossas buscas pelo porco estavam
caminhando bem, depois que saquei a jogada do governador de merda.
— É superficial e pode não ser verídico, mas… — Estendeu uma folha.
— Alguns homens de Salvatore estiveram nesse ponto. — Averiguei o nome
do bairro. Lugar nobre, mas com pouco movimento. Ficava na margem do
burgo, na divisa entre Brooklyn e Manhattan. — Levavam sacolas,
aparentemente mantimentos. Se o delegado estiver lá, vamos saber.
— Com cuidado. Não quero que a dupla de patetas saiba que saquei
sobre estarem com o porco. O governador acha que me ludibriou.
— Claro. — Pigarreou. — Até porque tem mais uma coisa. —
Coloquei minha atenção nele. — Também soubemos que o Salvatore está
encaminhado mais um para vigiar você. Pelo visto, estão desconfiando.
— Mais um? — Franzi o cenho. — Tudo isso para me impedir de
encontrar o porco Abernathy?— Era um tremendo exagero, já que ele me
tinha como um delinquente tampa buracos.
— É a única explicação — Tom pontuou e eu ri.
— O governador gosta de brincar com a minha paciência, mas ele não
conhece os meus limites, até porque não tenho limites. — Funguei. — Para
onde vão mandar o infeliz da vez?
— Achei que saberia.
— Ele foi vago nas informações da última vez que estivemos cara a
cara. Sabem de alguma coisa?
— Aparentemente, sua nova babá estará no campus — falou e estreitei
os olhos.
— Na Libert? Ele já colocou uma perua lá para me acompanhar de
perto, tem certeza disso?
— Foi o que eu soube.
Dilatei as narinas, possesso.
— Vou cuidar disso. Dar um basta nessa merda.
Fosse lá o que o governador e o abutre estivessem aprontando, não era
coisa boa. Não sabia o porquê de tanta insistência em me vigiar, e estava
começando a ficar irritado com aquilo.
Tanto que, em um instante, estávamos eu e os babacas no inferno
chamado Libert University, onde eu averiguava cada detalhe, como um
soldado pronto para atacar.
— Depois da conversa com o Tom, você se interessou pelos
movimentos estudantis ou é impressão minha?
Mal ouvi Benedete tagarelar. A Abernathy estava na frente da
recepção, como líder da irmandade, e fisgava toda a minha atenção, com
aquele uniforme emoldurando o corpo e cabelos ondulados, quase cacheados.
Olhei ao redor, a fraternidade de merda juntava seus jogadorezinhos de
hóquei em uma fila e o auditório era tomado pelo musical franzino, dando
início ao evento tedioso que faziam para receber os calouros todas as vezes,
mas aquilo era algo novo. Era uma turma atrasada, o que só reforçava o fato
de que era uma ação para inserção de um espião em nosso meio. Fiquei
atento, os rostos de calouros se misturavam no movimento.
— O que você tá farejando? — Brandon murmurou a pergunta que com
certeza não deixava nenhum deles em paz.
— A nova babá.
— Então mandaram mais? — A ruiva se adiantou, curiosa. Fiquei em
silêncio, trabalhando em uma inspeção. — É… eu iria mandar tomar cuidado
no banho. Um deles pode estar te observando no cantinho do box, mas já sei
qual seria a sua resposta. — Ergueu a sobrancelha.
— Algum suspeito? — perguntou Brandon e não respondi.
Brianna tinha começado a discursar. Sua voz conseguia entrar no meu
cérebro de alguma maneira. Era estúpido o que passava pela minha cabeça
quando a via. Daria um filme se registrasse e com certeza terminaria de
chutar cinquenta tons para a lata de lixo.
Era uma vadia gostosa pra caralho. Vivia na minha cabeça desde a
primeira vez, mas estava mais intenso agora, depois do que fizemos.
Ela me percebeu encarando e virou o rosto. Aparentemente, voltou a
me ignorar depois da última noite.
Quem estava magoada agora, ratinha?
Seu discurso acabou e seguida por uma salva de palmas, ela desceu do
palco do auditório. Percebi que um infeliz estava indo em sua direção.
Pinta de almofadinha. Mãos nos bolsos. Conseguiu minha atenção. Eu
farejava seu sangue podre perto do dela.
Era ele. O merdinha enviado pelo abutre Salvatore.
Chamei Benedete e seguimos até lá. Minha cabeça começou a
esquentar enquanto passamos pelo amontoado de universitários. Eu só tinha
uma certeza: fazer o infeliz conhecer o chão, antes de sequer estender a mão
para cumprimentá-la. Mas, antes que eu o fizesse, ele abriu a boca.
— Você é a líder da irmandade? — Sorriu e começou a erguer a mão.
— Filippo Salvatore, muito prazer.
O abutre havia mandado o próprio filho.
O Campus tinha um movimento frenético alucinante, calouros e
veteranos se misturavam e a turma nova parecia se encaixar muito bem
naquele ambiente caótico que era a Libert, tive certeza disso quando um dos
novatos surgiu na minha frente depois que terminei meu discurso.
Ele era encantador.
Dono de olhos escuros, mandíbula desenhada e uma energia caótica
entornada pelo cavalheirismo. Filippo Salvatore, pelo sobrenome um italiano,
modelo exato pelo qual Mavi aconselharia a me aproximar.
Fiquei ali olhando para ele e tentando encaixar a sementinha de
interesse em algum lugar na minha cabeça, mas as raízes escuras que me
cercavam apertaram no exato momento que vi o Aaron marchar até nós. Uma
de suas mãos envolveu o meu braço.
— O que você está fazendo? — Me debati para que soltasse, mas ele
apertou ainda mais forte. — Tira a mão de mim. — Ignorando a minha cara
feia, ele se aproximou.
— Quietinha. Não faça parecer que odeia quando aperto você. — A
piscada que me deu conseguiu arrancar um rubor das minhas bochechas e ele
se desviou de mim para encarar o calouro enquanto completava. — Você vai
com a ruiva.
Percebi ali que Filippo era o problema em questão. Aaron o encarava
como se pudesse matá-lo com um pensamento.
— Não sei se percebeu, mas estávamos conversando. — Ergueu
ligeiramente as sobrancelhas, me olhando por baixo dos cílios grossos, e
então se voltou para o Alien.
— Foda-se sua conversa. — Seus passos o levaram um pouco mais
perto do novato e Benedete me impediu de me aproximar deles. — Só
preciso mandar um recado para o governador & cia. — Seus rostos ficaram
mais próximos, ecoando ameaças não ditas. — Se quiserem me monitorar,
que venham eles mesmos. Até porque, depois de matar você, eles terão
motivos para me considerar fora da linha.
— Do que você está falando? — Puxei o braço de Benedete e segui até
lá, mas pareciam vidrados um no outro, como se sequer me vissem ali.
— Não preciso de tantas babás para me ditar regras, seu verme! —
Aaron completou.
— De babás, não, mas de rivais eu acredito que sim — Benedete
resmungou, juntando-se a mim.— Tá na cara que mandaram ele, porque
sabiam que você iria colocar a atenção nele. Estão tentando te distrair. —
Suspirou quando viu os olhares mortais que os dois trocavam. — E estão
conseguindo.
Quando menos esperei, Aaron sinalizou aos veteranos e um movimento
começou a aumentar por ali. Repetiu que iria começar a inicialização dos
calouros, e pela cara dele, eu sabia que não seria nada bom. Nunca era.
Dois dos caras agarraram o novato pelos braços e o fizeram caminhar
como um prisioneiro ao cumprimento da sentença de morte. Percebendo
minha apreensão, Felippo sorriu para mim, frio e imperturbável.
— Vou ficar bem, gatinha. — Recebi a segunda piscada da noite e
mordi a boca por dentro.— O alienígena não me assusta.
E quem ele deveria ser para conseguir tamanha façanha?
— Quer assistir? Vai ser divertido. — A ruiva falou e não perdi tempo,
seguindo-a até o pátio principal na entrada da universidade, onde Aaron se
sentava em uma cadeira como o rei em seu trono, assistindo à preparação ao
ritual.
As poucas luzes na entrada no campus piscavam fracas, refletindo a
desordem que habitava aqueles umbrais, como na noite que me receberam e
me aterrorizaram ao limite.
Me encostei no capô do carro de Benedete ao lado dela, concentrada na
ação. Os caras tiraram tudo de Felippo e, quando restou somente a roupa no
corpo, fizeram-no tirar a camiseta e sapatos.
— Que merda vão fazer com ele? — Eu já estava sem paciência.
— Vão só tirar a prova. Ver se ele é digno de estar aqui. — Ela me
olhou com aqueles olhos intensos. — Mas com esse aí, é mais o início de
uma guerra mesmo. — Sorriu. — Só tente não vomitar no meu carro.
Voltei a olhar para aquele cenário perturbador. Aaron encarava Felippo,
que fazia o mesmo em troca. Era absurdo o modo como um embate se fazia
perceptível mesmo à distância. O Alien era uma força eminente, como o puro
ódio encarnado, e Felippo tinha um sorriso de lado, como se o desafiasse a
fazer o seu melhor, a colocar aquilo tudo para fora.
Comecei a entrar em desespero e me virei de costas, tentando pensar
em como resolver aquela merda. Rocei a arma que mantinha bem escondida
por baixo do meu uniforme tendo certeza de que a usaria se necessário.
Eu já tinha passado por algo semelhante, mas, daquela vez, parecia ser
ainda mais pessoal para o Aaron. Ele não iria pegar leve.
— Se chama obsessão — Benedete falou e ergui a cabeça devagar,
olhando para ela pelo canto dos olhos. — É o que Aaron nutre por você. Ele
fica irracional quando tentam se aproximar, essa guerra em ascensão vai além
de seus motivos pessoais, é por você também. Estão querendo o distrair por
algum motivo, e o espetinho ali sacou que, usando a ratinha, vai conseguir.
— Voltou a falar da história misteriosa.
— Quero que o Aaron se foda!
— Eu também iria querer, acredite. Nunca o vi agir assim. — Um
cigarro surgiu entre seus dedos.
— Ele é maluco!
— Você também é — continuou falando enquanto procurava por algo
no bolso, a voz saindo meio abafada por já estar com o rolinho na boca. —
Afinal, voltar pra ele foi uma escolha sua.
— Não voltei para ele! — quase vociferei.
— Voltou sabendo que ele dizia que era dele.
— Tive meus motivos!
— E, mesmo assim, permanece aqui… — Ela ergueu um isqueiro.
— Porque tenho meus motivos, caralho!
Benedete deu uma pausa. A fumaça dançava por seu rosto, aliviando a
tensão em seus músculos.
— Aaron mudou — pontuou, olhando para o movimento. — Depois da
morte do irmão, achei que ele surtaria e daria lugar à força maior que
esconde. Pensei que viraria um monstro.
— E ele não é um? — Ergui a sobrancelha.
— Não com você. Pensei que ele seria um monstro para você. — Com
essa, ela conseguiu que eu me virasse em sua direção, incrédula.
— Em que terra você vive? Está dizendo que ele pode ser pior do que
já é? — Minha risada era pura descrença.
— Você não viu nada, Abernathy, mas pode ver agora. — Ergueu a
mão com o cigarro. — Se olhar bem nos olhos dele, vai ver o maldito Alien
sem controle. — Segui a linha de seus olhos e alcancei o alcancei. — Vê? Ele
está lá agora.
Parecia fumegar. Como se estivesse em chamas, mesmo que ninguém
visse. Aaron sequer piscava. Era como se toda sua raiva viesse à tona. Era
diferente de como olhava para mim, quando parecia querer me matar. Eu
diria que ele destruiria o mundo inteiro agora, bastava querer.
— O que ele tem contra Filippo? E que papo é esse de…
— Aaron é o novo líder da facção do irmão — disse e eu quase me
engasguei, mas já era de se esperar algo similar, vindo dele. — Fez um
acordo com alguns caras e acabou encontrando um antigo inimigo da família.
— Estalou a língua, como quem não poderia contar. — Esse é o filho do
chefe da família inimiga. Foi enviado para monitorar o Alien. — Cruzou um
dos braços, levando o cigarro até a boca.
— Com chefe você quer dizer…
— Máfia — respondeu e engoli em seco. — Essa briga é antiga,
Abernathy. Vem do sangue, e se quer saber, é assim que ele deveria olhar
para você — completou. — Afinal, é a filha do homem que se tornou inimigo
quando matou John.
— É diferente…
— Constatei há alguns dias que Aaron esconde toda sua maldição de
você por algum motivo. — Semicerrou os olhos. — Já deveria estar morta, e
sabe disso. — Sorriu para mim. — Por que ele não matou você?
— Ele diz que sou dele. — Meu rosto esquentou quando mencionei.
— Mas não ofereceu nada de que precisa. Você é inútil, e mesmo
assim, o Alien te trata como se valesse muito.
— Sou filha de seu alvo. Posso servir para alguma coisa — continuei,
tentando lançar respostas por já saber aonde ela queria chegar.
— Seu pai não se importa com você. Isso, todo o Campus percebeu,
não insinue que o Alien seja um idiota. E, além disso tudo… você o faz sentir
raiva, mas ele não revida como deveria.
— Fala como se ele fosse um animal.
— Ele é uma besta, e uma besta não escolhe a quem atacar, só ataca —
falou. — Aaron colocou a concentração toda em você e não é para te
destruir.
— Eu não teria tanta certeza. — Minha voz saiu mais trêmula do que
eu pretendia. — Posso falar algo de que não goste e ser encontrada morta na
lata de lixo mais próxima amanhã.
— Brianna Abernathy… a quem está tentando enganar? Você fala
merda desde que o encarou de frente, e olha só… — Fingiu surpresa. —
Ainda está respirando! — Virei o rosto e ela riu. — Te daria um conselho,
mas confesso que nem eu saberia o que fazer na sua situação, então te desejo
boa sorte! — Começou a se afastar.
— Por que me contou isso tudo? — Ela parou. — A história por trás da
intriga entre os dois, o fato de que agora ele é o líder de uma facção e…
— A obsessão incomum que ele nutre por você. — Sorriu, virando-se.
— Gosto de você, ratinha, e acho que, de alguma forma, o meu líder também.
Mal tive tempo para processar aquela conversa quando um motor rugiu,
me chamando a atenção.
Filippo estava no chão, usando apenas sua calça, amarrado pelas mãos
na traseira de um carro. Os espectadores estavam lá, esperando o início do
show de horrores.
Aaron iria fazer como da última vez, amarrar e arrastar alguém até a
morte ou quase morte. E, sim, eu sabia que atrocidades eram normalizadas,
mas isso? Isso lá era um trote universitário?
Aaron ergueu o que parecia ser a chave do dormitório. Todos ficaram
em silêncio para ouvir o que tinha a dizer.
— Se seus restos mortais não estiverem espalhados por esse chão, vai
conseguir um crachá de estudante no fim do dia e uma passagem exclusiva
para o inferno por minhas mãos, filhote de abutre. — Sua voz reverberou
diferente, tão intensa como quando me ameaçava.
Aceleraram o carro e os pneus cantaram sob o granizo cinza da Libert.
Meu coração começou a bombear mais forte quando Felippo foi puxado e
suas mãos arrastaram pelo chão, concentrando o peso do corpo ali.
Que merda você está tentando fazer?
Só saquei a tentativa quando ele se virou de bruços e começou a
balançar as mãos, usando o peso corporal para se livrar das amarras.
Os universitários ao redor vibraram, como infelizes sedentos por
sangue. Eu não via nada muito nítido, afinal era noite e os pneus faziam
curvas rápidas ao circularem o campus como um foguete sob o olhar frio de
Aaron.
Felippo se mexia freneticamente, batendo nas calçadas e sendo
arrastado pelo chão, mas de algum modo ainda parecia saber o que estava
fazendo. Ele era rápido e colocava força nas mãos para se soltar; isso, eu via.
Até que sua cabeça bateu forte em uma valeta. O som uníssono que
saiu dos que assistiam me fez apertar os olhos com força e só os abri
segundos depois, com o coração pulando, tendo a certeza de que ele estava
morto.
Mas o novato tinha agora apenas uma mão agarrada à corda e
conseguia fazê-la escorregar do laço com mais facilidade, surpreendendo
todos ao redor, menos o Alien que o encarava como a própria morte faria ao
pecador.
Pisquei os olhos. Ele soltou um grunhido que me causou desespero.
Inspirei fundo. As pessoas pareciam torcer por ele, mas ainda havia
vaias.
Pisquei de novo. Ele passava, sendo arrastado, bem perto de mim,
algumas garotas me empurravam com os flashes ligados, tentando captar
cada momento.
Fechei os olhos. Iria acabar, mais cedo ou mais tarde. E então os abri
para vê-lo a poucos metros de mim, fazendo a mão deslizar da corda.
Felippo se soltou e pulou de pé, como um ninja treinado por toda uma
vida. Seu corpo pegou impulso e a corrida parou quando ele chegou até mim,
com a testa sangrando, o corpo banhado de suor e grãos de terra colados nas
feridas frescas, mas sorrindo.
— Disse que ficaria bem — ciciou e não tive palavras para lhe dar. Ele
me pegou de surpresa de todas as formas possíveis.
Meus olhos se arregalaram quando Aaron desceu do lugar onde assistia
e se aproximou, batendo palmas ocas. Ele se colocou na minha frente,
bloqueando Felippo. O sorriso do novato cresceu. — Encontrou alguém no
mesmo patamar que você, está surpreso?
— Quem te iludiu? Não sou como você — rebateu com outro sorriso
frio.
— Vai dizer que não é filho de um…
— Eu calaria a boca. — Aaron se livrou do tom sarcástico.
— Tenha mais orgulho do seu sangue, Alien.
Ele se aproximou do Felippo com as duas mãos para trás. A tensão era
palpável.
— Só vou perguntar uma vez. Por que te mandaram aqui e o que estão
tentando esconder?
— Invadiu o escritório do governador. Isso já foi motivo suficiente.
Governador?
— Não deveriam temer minha presença, a não ser que escondam algo.
— Escondem, sim, suas verdadeiras identidades. Prezam pela
furtividade. Você sabe disso, não é burro — pontuou. — É um problema,
Aaron Walker.
— E acham que é você quem vai resolver?
— Tenho minhas cartas. — Olhou para mim e engoli em seco. — Você
é um livro aberto quando está com raiva, dá pra saber exatamente o que se
passa aí dentro. — Apontou com os olhos a cabeça dele.
— Aposto que não, mas já que insiste… — Aaron riu. — Me diga se
sabia sobre isso. — Ele deu uma cabeçada em Filippo que firmou os pés no
chão e partiu para cima.
Captei apenas borrões. Me empurraram cada vez mais para trás e uma
confusão se instalou no lugar em segundos. Minha cabeça dava indícios de
que iria explodir quando, sem que eu estivesse esperando, meu telefone
vibrou no bolso e o tirei para ver uma notificação do meu pai.
Numa hora dessas?

Pai:
Estou na casa. Preciso falar com você
pessoalmente.

Meu coração recebeu uma pontada avassaladora. Olhando bem, era um


momento relativamente bom. Aaron e os outros estavam distraídos, eu tinha
chances de sair sem que eles me vissem. E foi o que fiz.
Corri até o quarto, eu sabia onde Meg guardava suas chaves e não pedi
daquela vez. Só as joguei dentro da minha mochila e sai furtivamente em
direção ao estacionamento.
Meu celular estava encaixado onde ela usava o GPS. Fiz questão de
reler a mensagem durante o caminho inteiro. Na minha cabeça, só se passava
uma coisa: ele podia ter notícias da minha mãe.
Quando finalmente estacionei, percebi pelo vidro que a porta estava
entreaberta. Pulei do carro e a empurrei devagar. Sua sombra estava lá. Ele
estava com as mãos nos bolsos com a habitual aura sombria e autoritária.
Apesar de tudo, era bom vê-lo de novo.
— Pai? — Caminhei até ele, sem perder tempo. — Meu Deus! Achei
que você… — Minhas palavras cessaram quando ele me deu um tapa tão
forte no rosto que me fez cair.
— Sua vadia!
Antes que me levantasse, recebi um chute perto dos seios. Foi uma dor
que nunca senti na vida. Meu corpo contorceu pelo chão, sentia na carne a
ponta de seu sapato social bater em mim mais e mais vezes.
— Vadia! — ele continuava gritando. Ergui os braços, tentando
proteger o meu rosto, mas sua mão me puxou pelo cabelo.
Meu grito morreu quando dois socos seguidos me atingiram o rosto, ele
me jogou no chão e finalizou com mais um pontapé, daquela vez em minha
cabeça.
Silêncio.
Senti o gosto metálico do sangue na boca, meu olho esquerdo inflou,
envolvido por uma bolha de ar quente e a ardência, que tomava meu nariz,
assemelhava-se a cócegas se comparado ao rosto inteiro formigando.
Minhas lágrimas queimaram como lava sob a pele, coloquei uma mão
no chão, sentindo o sangue quente espalhado pela porcelana, e com a outra,
segurei os seios doloridos, comecei a me levantar devagar, mas parei sentada
de costas para ele, sem força alguma nas pernas para ficar em pé de uma vez.
— Eu queria dizer que isso serviria para que aprendesse, mas sei que
não vai. Você nunca aprende nada! — Jogou alguma coisa na minha direção
e ergui o braço por instinto.
O pequeno objeto quicou no chão e parou perto de mim, era um
pendrive.
— Mandei entrar lá e me ajudar a destruir um a um. — Ele segurou
meus cabelos de novo, com força, me arrancando um longo gemido de dor.
— Mas você preferiu abrir as pernas para um criminoso! — Me empurrou
contra o chão e por pouco não bati a cabeça.
Naquele momento, mesmo depois de ter ouvido tanto, senti que aquelas
últimas palavras doeriam mais do que qualquer surra.
Meu coração pareceu se despedaçar de forma tardia, como se esperasse
aquilo dissolver, a minha mente assimilar. Só então percebi meu corpo inteiro
como um grande chuvisco, formigando. As lágrimas ganharam mais força e
passaram a banhar minhas bochechas doloridas.
Aaron fez com que a gravação chegasse ao meu pai. Me usou para
atraí-lo.
— Você não deveria carregar o nome que tem! O meu sobrenome! —
Seu brado me fez estremecer. Voltei ao momento em que estávamos em um
piscar de olhos.
O delegado estava transtornado por ter assistido a mim com o Alien.
Ele só pararia quando me tivesse imóvel no chão. Eu precisava sair dali.
Ergui minha voz trêmula
— Se não parar agora, aviso que está aqui! — Foi o que consegui
soltar. Só depois percebi o tamanho do problema que causei com aquela
simples frase.
Ele me balançou, repuxando o couro cabeludo dolorido.
— Você está… — Suas palavras foram cortadas quando mais um de
seus tapas fez meu rosto virar. — Me ameaçando? — Senti o ardor do corte
que seu anel fez em minha bochecha. O sangue gotejou no chão e minha pele
esquentou, como se envolvida a fogo. — Vai chamar o criminoso? Se ouviu,
Brianna? — Sua mão forte voltou a agarrar meus cabelos, ele me forçou ficar
de pé. — Está recebendo essa surra, porque ele me enviou aquela porcaria!
Ele acabou com você, sua honra! E está do lado dele?
Tentei, até conseguir me afastar de seu aperto. Minhas pernas
cambalearam ao encontrar a parede, na qual me apoiei e passei a enxugar as
lágrimas.
— Não estou do lado dele! Só quero que pare de me bater…
— Não tente se justificar, Brianna! — O grito reverberou pelo lugar,
tampei os ouvidos. — Acabou de dizer que iria chamar aquele meliante!
Falou com todas as letras… Deus… — Riu, passando a mão pelo rosto. —
Estou empenhado nas buscas, dando tudo de mim para realizar não só o seu
como o meu desejo de ter sua mãe de volta, e agora você fala com todas as
letras que me entregaria a pessoas que querem me matar. Eu. Seu pai! Vê que
merece? — Começou a se aproximar. — Você merece tudo isso e muito
mais! — Quando ele ergueu a mão de novo, puxei minha arma da cintura.
— Já chega! — Soltei o grito da alma e ergui na sua direção. — Chega!
— Mantive o cano apontado para ele, mesmo que minhas mãos tremessem.
— Quem te deu isso? — Desenhou mais um passo na minha direção e
eu destravei a arma, dei um tiro no chão e voltei a mirar nele. — Eu disse que
chega!
— Foi aquele marginal, não foi?
— Foi o delegado Jamar. O homem que foi mais pai do que você e me
deu alguma coisa que servisse de proteção naquele lugar. O homem que me
tirou de um cárcere, me deu comida enquanto você se fazia de surdo e cego,
mesmo sabendo da minha situação.
Ele começou a rir.
— São tantas piadas na sua fala… — Passou a mão pelo rosto de novo.
Fazia isso quando estava com raiva. — Proteger do quê, se você pulou em
cima do pior entre os piores na primeira oportunidade? Sua descarada! —
grunhiu. — O que passou na mão dele foi pouco! Deveria servir de lição para
que soubesse quem são eles e como devem ser tratados! Para que fizesse o
que eu te mandei fazer! De que serve essa merda de arma, depois de ter sido
uma vagabunda e entregado a única coisa que te fazia valer alguma coisa
àquele verme? — Engoli a raiva, como se fossem pedras antes de responder.
— Está servindo para me proteger de você. — Olhei em seus olhos
repletos de ira. Mas não tanto quanto os meus. — Peça ajuda ao diabo para
ter o dossiê dos universitários marginais! — Ele rangeu os dentes. — Se você
der mais um passo, vai fazer isso pessoalmente em segundos.
— Não deveria ao menos pensar em falar algo assim para mim, garota.
— Foi a minha vez de rir.
— Não pense que não vou atirar, pai. Não se engane, porque eu
acertaria a sua testa sem pensar duas vezes. Tenho raiva de sobra agora e,
acredite, ela sana qualquer tipo de remorso ou falta de coragem.
Comecei a andar para trás, ainda apontando para ele, ouvindo sua voz
como trovões, me atormentando por todos os lados.
— Vai se arrepender, sua vadia! Ainda vou pegar você e te ensinar de
verdade! É igual a sua mãe. Uma maluca infeliz que não respeita um homem
de autoridade! Vai ficar sozinha como ela.
Passei pela porta com arma em uma só não. Com a outra, eu tentava
enxugar minhas lágrimas. Quando me vi livre de sua fúria, abri a porta do
carro, me lancei lá dentro e dei partida.
Segurei o volante tremendo, meu corpo inteiro ardia e minha roupa
estava molhada pela urina que não consegui conter na bexiga, pelos respingos
de sangue, pelo meu suor frio.
Pisei no freio com força. Uma buzina me fez acordar e, quando
coloquei os olhos na estrada, eu estava fora dela.
Desnorteada, sem forças ou equilíbrio algum. Só me restava chorar e
chorar, como nunca na vida, porque a dor que sentia era indecifrável. Ela me
fazia submergir sem dar chances de subir à superfície. Só me destruía e eu
não podia fazer nada para parar.

Entrei com o carro no estacionamento bem devagar, custou chegar ao


alojamento sem ser vista, já que a baderna com os outros calouros
continuava, mas eu não tinha visto sinal do Aaron ou Filippo.
Estava tão atrasada que mal pensei na situação que ambos poderiam
estar, depois daquele caos de iniciação, eu só queria correr para o meu quarto,
lavar o rosto, tomar um banho, encher uma bolsa de gelo e ir dormir com ela.
Como se eu fosse conseguir dormir.
Me arrastei até a porta com sucesso em passar despercebida e torci para
que Meg não estivesse no quarto.
Quando girei a maçaneta e abri a porta, o lugar estava vazio, mas não
demorou para que eu ouvisse a voz de Meg bem atrás de mim.
— Bri, onde você estava? Perceberam há pouco que você sumi… — a
fala morreu quando não consegui esconder o rosto a tempo.
— Depois, Meg — ciciei com a cabeça baixa, os cabelos agora
cobrindo os hematomas.
— O que aconteceu, Brianna? — A voz soou horrorizada.
— Não se preocupe, vou ficar bem. Só me dê algumas horas. — Pulei
para dentro do quarto, mas, antes de fechar a porta, Meg ergueu a mão contra
a madeira.
— Você some por vinte minutos, volta nesse estado e diz que vai ficar
bem? Para onde você foi?
— Me dê só algum tempo, Meg, por favor. — Empurrei a maçaneta
com mais força e girei a chave por dentro, ignorando suas batidas insistentes.
Meu choro voltou, daquela vez entalado na garganta. Fechei os olhos e
desci ao chão tentando silenciá-lo, mas era quase impossível, então me
arrastei até o banheiro e desmoronei quando me vi no espelho. Meu pai tinha
feito aquilo, o delegado. Nem em toda a minha aflição naquela universidade,
me trataram com tamanha violência. Mas ele, sim. Ele sempre.

Foi fácil acordar cedo. Na verdade, quase não dormi, e agora com
certeza passaria a manhã inteira no banheiro, tentando esconder aquelas
marcas. Foram horas com bolsas de gelo e pomadas para suavizar as manchas
arroxeadas e seguir para a maquiagem.
Sabia que o dia seria longo e que em algum momento alguém chegaria
perto o suficiente para ver meu estado, então, além de quase cem camadas de
corretivo e base, decidi usar dois cachecóis. Os hematomas estavam
distribuídos por quase todo o meu corpo e, mesmo que eu estivesse de calça e
blusa de mangas longas, meus ombros e pescoço estavam um pouco à mostra.
Saindo do banheiro, virei olhando para Meg e seu olhar impaciente. Na
noite anterior, quando abri a porta, me deitei e não troquei uma palavra com
ela. Agora, a veterana estava tal como um guarda na porta. Eu não tinha para
onde correr.
— Vai conversar comigo agora? — perguntou, seu tom envolvido por
cautela.
— Preciso ir pra aula. — Mantive a cabeça baixa a todo momento e
passei por ela para pegar meus materiais.
— O que foi que aconteceu? — Como previ, a garota me seguiu pelo
quarto.
— Meg, não tenho tempo… — Foi tarde quando tentei desviar de suas
mãos. Eu estava muito fraca e ela conseguiu me manter na sua linha de visão
ao segurar meus ombros.
Quando viu meu estado, sua boca entreabriu ligeiramente.
— Brianna, que aconteceu com você? Foi o Alien? — Ela olhou em
meus olhos, minha pele a latejou sob a tensão que emanava de suas
perguntas.
— Não. — Me virei tocando suavemente o lugar dolorido.
— Você está quebrada. Quem fez isso?
— Não importa agora. — Segurei meus livros. — Preciso ir.
— Mas…
— Não quero falar sobre isso, Megan. — Saí pela porta e segui pelo
corredor.
Só precisava chegar na sala de aula e me debruçar sobre a mesa para
captar as explicações do dia, antes de me trancar ali de novo.
O movimento estava ainda maior que nos últimos dias, provavelmente
a chegada de mais universitários era um dos motivos. Fechei os olhos, o
sopro do vento frio silvava pelas grandes janelas do pavilhão e o som dos
meus passos se misturavam às conversas, burburinhos, pessoas sugando o
capuccino em seus canudos nada recicláveis, gemidos abafados em uma das
salas em manutenção.
Nada novo sob a pouca luz solar.
O cheiro característico de drogas sendo inibido pelo perfume das flores
de cerejeira molhadas era um acalento. Dizia muito sobre como o diferente
apaziguava. Trazia equilíbrio.
Inspirei fundo. Mesmo que fosse impossível, desejei não encontrar
nenhum membro da gangue, pelo menos naquele dia. O anseio de permanecer
invisível intensificava quando me lembrava do Alien.
Seria pedir demais?
No entanto, para provar ser inevitável, não precisei ao menos erguer os
olhos para percebê-lo no canto de um dos corredores.
Aaron.
Seu cheiro familiar me alcançou as narinas e, pela visão periférica,
percebi seu vulto.
Abaixei um pouco a cabeça, mantendo os livros no peito enquanto
caminhava com certa dificuldade. Eu não queria olhar na cara daquele
desgraçado. A culpa daquilo tudo era dele.
Seus passos me acompanharam, permaneceu em silêncio, mas pude de
sentir que me encarava e mordi os lábios, com os olhos dançando por nossos
pés.
Ele usava a calça preta com listras azuis da fraternidade, o que
raramente acontecia, e o tênis caro riscava a porcelana, seguindo lado a lado
comigo. Quando percebeu que eu o ignorava, tão rápido quanto um flash de
luz, colocou-se na minha frente.
— O que foi? — Fiquei em silêncio, procurando por uma válvula de
escape. — Soube que não saiu do quarto a manhã inteira — complementou e
me virei para entrar na sala, mas sua mão agarrou o meu braço, para o meu
azar, justamente na parte mais dolorida. Soltei um gemido de dor, deixando
os livros caírem no chão.
Aaron arregalou os olhos, afrouxando os dedos, e me pegou pelos
ombros.
— O quê… — Sua mão ergueu meu rosto e pude sentir, como se uma
imensidão de pura escuridão me encarasse. Abri os olhos, lacrimejando, e vi
os dele transformados em algo irreconhecível.
Antes que eu pudesse lutar, me atirou em seus ombros e caminhou
comigo até o banheiro feminino naquele corredor.
— Sumam daqui! — gritou com um grupo de meninas, que evaporou
em um piscar de olhos. Ele me colocou de pé e voltou a erguer o meu queixo,
mantendo uma força desumana ali, contra a qual eu não conseguia lutar.
— Me deixa em paz! — ciciei. Seus olhos continuavam dançando por
meu rosto com as sobrancelhas franzidas e uma seriedade perturbadora.
Em um impulso, tirou a camisa que estava usando e abriu a torneira da
pia atrás de mim, umedecendo-a. Seus dedos levaram o tecido ao sabão perto
da pia e ele o esfregou ali. Quando me debati, me prendeu ao seu corpo com
um de seus braços.
— Não resista! — Me segurou com força passando o pano pelo meu
rosto. Gemi quando a fricção apertou a bolsa debaixo de um dos meus olhos.
Estava tão roxo e dolorido que parecia pegar fogo. Custou para que eu
conseguisse cobrir com maquiagem e, agora, Aaron desmanchava tudo.
— Para com isso! — Era uma merda estar tão fraca quando eu queria
dar um soco na cara dele. Estreitei as sobrancelhas, entregando a raiva que
sentia, mas foi olhar para ele e perceber que tinha as pupilas tão escuras
quanto um abismo, narinas dilatadas e respiração acelerada.
— Quem fez isso com você? — Jogou a camisa no chão e me puxou
para perto. — Fiz uma pergunta, Brianna! — Fiquei em silêncio, sentindo
seus olhos me examinarem, mesclando entre algo assustador e reconfortante
ao mesmo tempo. — Quem foi? — Virei o rosto. Estava tudo entalado na
garganta e, ao mesmo tempo que queria falar, todas as palavras sumiam. —
Quem fez isso, Brianna? — Me sacudiu e, quando puxei o ombro dolorido,
ele arrancou meus cachecóis e baixou a blusa de uma vez. Os hematomas em
meus seios, clavícula e pescoço estavam à mostra. Sua boca entreabriu e os
dentes cerraram com força.
— Me deixa em paz! — gritei e empurrei suas mãos. Ele sacudiu a
cabeça em negação, o maxilar travado.
— Nem por um caralho. — Me segurou ali e, quando captei que faria a
mesma pergunta, ergui a voz.
— A culpa é sua. — Senti como se sua energia escaldante desse trégua,
farfalhando com o vento, diminuindo aos poucos em um franzido
acinzentado. — A culpa é sua, Aaron Walker.
Silêncio.
Ele sabia o que tinha acontecido. Sabia quem tinha feito aquilo e
porquê fez.
— Mas olha pelo lado bom. — Ergui os ombros, segurando o choro de
raiva. — Funcionou dessa vez. Você só não estava lá para pegar ele. —
Funguei. — E não estou danificada a ponto de perder o meu valor para seus
planos, Alien. Ainda continuo sendo a filha do delegado, pode tentar de novo.
— Meu sorriso falso morreu e o empurrei com dificuldade, puxei minha
roupa de volta ao lugar, peguei os cachecóis e saí de lá sem olhar para trás.
“A culpa é minha”.
Era a única coisa que pairava a cabeça enquanto assistia ao papà
arrastar John para uma das salas vazias da mansão.
Me arrependi de ter falado sobre a mãe e o Dimitri ao meu irmão. Ele
tentou passar adiante, mas nosso pai não acreditou nele. Era como se John
já soubesse que iria acontecer e preferisse se ferir a me ver ferido.
Segurei em uma das extremidades da porta, estudando os materiais de
tortura de nosso pai. Ele escolhia a dedo quando levava quem o desobedecia
até lá. Eu esperava que, daquela vez, fosse o idiota do Dimitri, mas ainda
será John, “o mentiroso”.
E, assim como em todas as outras vezes, Giordano Bonanno olhou
para mim. Distinguindo minha imagem da penumbra escura do cômodo,
mostrando que me via ali.
Na minha cabeça, era como se afirmasse saber da minha culpa, da
tentativa de proteção que John exercia para comigo. No entanto, era mais
que isso. Papà sabia que, se eu visse meu irmão sofrer em meu lugar, doeria
mais do que se fosse eu ali. Por isso, permitia que eu assistisse.
A dor me tornaria inumano, e ser inumano, naquele mundo, era
essencial para a sobreviver.

— Tá aí, cara? — Brandon bateu uma palma perto do meu rosto e eu o


encarei, sério. — Vai ficar por aqui até quando? — perguntou, olhando pelo
corredor do alojamento feminino, no qual eu estava recostado na porta de
Brianna, esperando-a sair para o almoço.
Quem nos visse conversando normalmente, não acreditaria que tive a
vontade genuína de o matar poucos dias atrás. Brandon só estava vivo porque
jurou não ter tocado nela, e ela afirmou depois.
No entanto, eu ainda mantinha uma orelha em pé em sua direção por ter
feito aquela merda. E, como se não bastasse, me irritava fácil quando insistia
com aquela ideia infeliz de obsessão.
Não importava o que me induzia a fazer aquelas coisas, a persegui-la,
vigiá-la, prendê-la a mim, estar à espreita na porta de seu dormitório. A única
coisa que eu queria no momento era ver aquela garota.
Fazia dois dias que a vi naquele estado. Dois dias que, pela primeira
vez, não pensei em correr na direção do porco primeiro.
Ela tomava o espaço de todos os meus pensamentos.
Brandon se recostou ao meu lado. A cara de quem queria perguntar
qual era o motivo para eu estar ali era perceptível. Poupei meus ouvidos da
pergunta e parti para a resposta do infeliz.
— Ela se trancou aqui dentro e não quer sair. — Deixei escalar como
um resmungo e cruzei os braços.
— E o que você tem a ver com isso?
— Não me faça responder, Brandon.
— Falo sério, cara. Essa preocupação já excedeu o limite há um tempo
e… — sua fala cessou quando alguém girou a maçaneta.
Era Megan, ela nos percebeu ali e tentou fechar a porta de volta, mas eu
e Brandon a empurramos tal como uma pluma. A madeira bateu do outro
lado da parede e vasculhei aquele lugar em um milésimo de segundo até
encontrá-la, deitada na cama, com o cobertor em seu corpo. Seus olhos
levantaram devagar para conferir a amiga e, quando nos viu, quase saltou
sobre o colchão.
Marchei até lá, sem lhe dar tempo para pensar e enfiei a mão no meu
bolso. Os olhos dela arregalaram quando me viu erguer uma algema. Fechei
uma das argolas ao redor do meu pulso e me aproximei o suficiente para
fisgar o braço dela com a outra, em segundos estávamos presos um ao outro.
— O que você fez? — Sacudiu a corrente curta fumegando em cima de
mim. O olho roxo pareceu se abrir tanto quanto o são.
— Não disse que eu deveria estar preso, ratinha? Estou preso a você
agora. — Me aproximei de seu rosto. — Ninguém te toca, ninguém te olha,
ninguém sequer respira perto de você sem que eu saiba, e para cada uma
dessas ações, haverá consequências — pontuei tão sério quanto achei que
podia ser. Seus olhos aumentando de tamanho me mostraram isso.
Encaramos um ao outro por alguns segundos, até que a garota
pigarreasse.
— Bri, o seu almoço. Ainda quer que eu busque?
— Ela vai almoçar comigo — estabeleci e suas sobrancelhas franziram.
— O refeitório estará vazio. Somente eu e você. Agora, me siga.
— Você vai dar meia-volta e sumir daqui. Não vou a lugar algum —
grunhiu.
— Tudo bem. — Me virei e puxei seu braço comigo. Seu corpo se
arrastou pela cama e se segurou para não cair.
— Cadê a chave? — Tremeu tal como uma pequena roedora.
— Não tem chave — murmurei. — Vai comigo ou ficaremos os dois
com fome aqui. — Me aproximei da orelha dela. — Fico mil vezes mais
chato quando estou com fome.
Arrastei Brianna até o refeitório mantendo um certo cuidado já que
tinha o corpo inteiro dolorido.
Conseguir que a praça de alimentação ficasse vazia foi moleza. Bastou
um comando e todos sumiram do lugar até que eu permitisse que retornassem
outra vez. Com os pratos feitos, caminhamos até as mesas.
Brianna se sentou ao meu lado, por conta da algemas, mas pela cara e
pelo gelo que me dava, estava odiando cada segundo ali. Segurando a barra
do moletom que usava, suas pernas tremiam levemente e ela se encolheu no
banco.
Ela era forte demais, marrenta demais para ficar daquele jeito. Ver a
mudança me deixava inquieto e fumegando por saber que era tudo culpa
daquela desgraçado.
— Coma — falei, apontando para a comida, e ela brincou com o garfo
nos legumes. — Se desmaiar, não vou te carreg…
— Por que mandou esvaziar para que eu viesse até aqui? — ciciou pela
primeira vez depois que saímos do alojamento da irmandade.
— Não é o que você quer? Ficar longe de todos?
— Ficar longe de você — pontuou, segura, e ergueu o garfo com
algumas ervilhas.
No entanto, sua mão direita, algemada, puxou a minha esquerda e ela
parou no caminho. Percebendo isso, ergui o braço e deixei o cotovelo sobre a
mesa, consequentemente meus dedos tocaram em seus cabelos. Mesmo
relutando, ela começou a comer.
Parei um pouco, observando-a até que seu talher batesse com força no
prato.
— Vai ficar me encarando?
Oi de novo, ratinha…
Ignorando sua rigidez, segui com os olhos e mão ao seu pescoço. Tinha
um dos maiores hematomas, depois do olho, em tom roxo escuro, repleto de
sangue por baixo da pele. Toquei ali e, mesmo tentando ser suave, ela soltou
um suspiro trêmulo.
O que me fez afastar, no entanto, foi a presença indesejada da mais
nova sombra infernal entranhada ao campus.
— Dispensou todo mundo para um encontro romântico? — O filho do
abutre ergueu as sobrancelhas, mas seu ar sarcástico morreu quando a viu. —
O que houve?
— Você entrou aqui quando ninguém podia entrar. — Estreitei os olhos
e Brianna pigarreou.
— Estou satisfeita — disse e empurrou a cadeira para se levantar.
Dando um último olhar de aviso ao desgraçado, me virei e segui com
ela para o pátio. Ela se sentou no fim da escada que levava para fora do
campus e fiz o mesmo.
Mesmo que estivesse movimentado, quase ninguém olhava em nossa
direção por muito tempo, isso fez Brianna parecer ficar um pouco mais
confortável a ponto de abrir a boca mais uma vez, para reclamar.
— Quando pretende tirar isso? — Balançou as algemas.
— Qual a parte do nunca mais não entendeu? — Ergui a sobrancelha.
— Mesmo que precise arrancar o meu braço, vou me soltar —
murmurou, impaciente.
— Não vai, teimosa. Você fica presa a mim até que eu decida que deve
andar com as próprias pernas — falei, sorrindo, e ela me olhou nos olhos por
um longo momento. Quando percebi que estava tão expressivo, virei o rosto.
— Até que seu pai tente te pegar de novo. Estarei longe de você na primeira
oportunidade, não se preocupe.
Silêncio.
Ela fazia de tudo para me ignorar, mas, volta e meia, eu a pegava
encarando as chaves do meu carro pendurada na calça.
— Gostou delas? — Virou o rosto e eu sorri. — Ganhei do meu irmão
quando completei a maioridade.
— O seu irmão bandido? — Saiu entredentes.
— É, o meu irmão bandido — afirmei e percebi que esmoreceu um
pouco.
— Eu não tive a intenção de…
— Seu pai também vai dizer essa frase quando me levar até ele? —
Balancei a algema e ela se enfureceu.
— Você… — Virou-se de costas e suspirei, olhando para o lado
oposto.
O silêncio reinou por horas sobre nós dois ali, observando o
movimento, Brianna ficou sonolenta e encostou na base do corrimão da
escada, cedendo ao sono. Precisei chegar um pouco mais perto para que
ficasse confortável, uma vez que seu braço se esticou para manter distância
entre nós.
Tendo certeza de que estava dormindo, tirei-a de lá e coloquei sua
cabeça em meu colo, já que acordada nunca aceitaria, e daquele jeito, eu não
teria dor no músculos por causa da teimosia daquela vadia.
O tempo passou rápido e, quando percebi que escurecia, peguei-a nos
braços e caminhei de volta ao alojamento feminino, pelo menos até que ela
acordasse no caminho e começasse um berreiro para que eu a colocasse no
chão.
— Estamos quase chegando.
— Mandei me colocar no chão, caralho!
— Você vai andar como a porra de uma lesma sedentária. — Ignorando
a firmeza com a qual eu a mantinha ali, moveu-se freneticamente e encarei
sério. — Não me deixa irritado, ratinha.
— É desconfortável ter você por perto! Abre essa merda de algema!
— Se sente tão desconfortável que adormeceu algemada a mim… —
Ri, mordendo os lábios.
— Eu estava cansada!
— Então terá a oportunidade de descansar um pouco mais. — Empurrei
a porta do quarto com o pé e Megan pulou quando nos viu. — Dê meia-volta
e suma. Vou ficar com ela aqui — falei.
— O quê? — As duas ergueram a voz em uníssono.
— Não vou repetir. — Essa frase bastou para que a garota evaporasse e
a Abernathy ameaçasse me arrancar um pedaço da carne com os dentes.
— Saia do meu quarto!
— Se eu sair por aquela porta, vou te levar junto, e eu acho que vai
preferir dormir aqui. — Ela bufou e cruzou os braços, mas acabou me
puxando para mais perto. — Vai ter que me aturar. — Percebi que estávamos
perto de seu guarda-roupas e abri as portas. O cheiro doce me atingiu como
um maldito banho frutado e me surpreendi quando vi a minha camiseta ali.
Ela guardou junto com suas coisas. — Qual quer usar para dormir depois do
banho? A minha peça parece a única coisa confortável para uma ratinha se
esquentar. — Seus olhos arregalados me fizeram erguer as sobrancelhas.
— Não vou tomar banho com você! — Puxou a algema e revirei os
olhos.
— Está nos fazendo perder tempo, Brianna. — Ela sacudiu a mão com
mais força.
— Vai se foder!
— Então quer do jeito difícil. — Segurei-a pelos braços e a levei com
roupa e tudo até ao banheiro. Liguei o chuveiro e a coloquei embaixo
comigo.
— Me larga! — berrou.
— Não! — Apertei-a com mais força contra mim, a água morna
escorria por nossos corpos, encharcava seus cabelos e nossas roupas. Brianna
continuava se debatendo. — Você vai se machucar!
— E o que isso importa para você? — gritou entredentes com o queixo
erguido, me olhando nos olhos sob a fina cascata de água. Os fios de cabelo
estavam colados ao rosto e o corpo amolecendo aos poucos. Ela fechou os
olhos, dando-se por vencida, e eu a trouxe até meu peito, apertando o
maxilar.
Passei os dedos por seus cabelos, a água quente fazia o vidro embaçar
aos poucos. Senti sua mão roçar, levemente, nas minhas costas e ali ficamos.
Desliguei o chuveiro quando achei suficiente e a tirei do box, junto a
mim.
Sem ter como nos separar, me aproximei dela e segurei a alça da blusa.
— Vou rasgar e te cobrir com toalhas. Depois, quero que troque a parte
de baixo, não vou deixar que durma molhada — falei baixinho e puxei sua
blusa, rasgando no corpo, deixando o sutiã à mostra.
Ela ergueu a mão e me parou ali. Desabotoou a parte de trás e segurou
os seios, me dando a alça dele para rasgar também. A toalha alva estava sobre
seus ombros assim que terminei e, depois que pegamos uma peça para a parte
de baixo, seu rosto já parecia estar menos cansado.
— Melhor? — Ela não respondeu, apenas abaixou a cabeça devagar.
Resguei a roupa molhada do corpo e chacoalhei a cabeça como um
felino. Brianna me evitou quando desci a calça e só me olhou de novo quando
eu estava com uma toalha na cintura e o jeans pendurado em uma cadeira.
Seguimos até a cama em silêncio. Ela se deitou na ponta do colchão de
solteiro, com o braço esticado mantendo uma distância considerável de mim,
e me acomodei ali, ao seu lado.
— Foi ele, não foi? — Não consegui controlar.
— Não sei onde ele está agora, por favor… — Sua voz ondulou, fraca.
— Não quero saber dele. Só quero que me confirme. — Ficou em
silêncio e suspirei. — Por que deixa que seu pai tenha tanto poder sobre
você?
— Por que se importa, agora, depois de tudo? — Foi a minha vez de
não responder. — Pelo visto, realmente nunca vou entender você, Alien —
sussurrou, sonolenta.
Sua respiração logo se tornou pesada e, tendo a certeza de que dormia,
juntei nossos corpos.
— Me importo porque já não dói só em você — soprei a reposta em seu
ouvido, observando-a adormecida.
Passar por aquilo foi como reviver minha maldita infância, quando
Papà torturava meu irmão para me atingir. Ele sabia que doeria mais em mim
do que em John. E foi o que tentei replicar com o pai de Brianna, para acabar
concluindo que aquele porco imundo fechava os olhos diante da própria filha
sendo sacrificada em seu lugar. Mas, quando vi que ela estava machucada por
minha causa, senti algo ainda maior do que tudo já experimentado antes.
Não doía somente nela. Doía em mim também, e foi ali que entendi
isso.
Passei a ponta do nariz próximo ao hematoma em seu ombro, jurando
estraçalhar aquele porco sem piedade, somando mais um grande motivo para
buscar vingança.
A única coisa que eu temia era aquele sentimento de necessidade e
importância que já ultrapassava o que eu sentia pelo próprio John, meu irmão
de sangue.
Ainda com os olhos fechados, levei as duas mãos ao rosto e bocejei. Já
era manhã e meu corpo estava relaxado como nunca, naquela cama forrada
por um edredom cor-de-rosa e travesseiros brancos como neve.
Apalpei o colchão, esperando encontrá-la ali, descansando, mas para
minha surpresa, estava vazia.
Abri os olhos erguendo a mão para ver a porra da algema pendurada no
braço.
— Como ela…
Procurei por todo o lugar e não havia sinal da ratinha. Me levantei e,
vestido com a roupa ainda meio úmida, meus passos ressoaram pelos
corredores segundos depois. Narinas dilatadas, procurando pelo cheiro dela.
— Onde está o seu fardamento, Walker? — Era a reitora. Surgindo
como um fantasma no exato momento em que eu me aproximava do
refeitório. Ignorei. Ela era o menor dos meus problemas. No entanto, a
mulher continuou me perseguindo. — Qual é o seu problema? Não consegue
manter os pés na linha por um dia? — Me virei, transtornado, mostrando que
ganhou atenção.
— E você está aqui para anotar os meus deslizes e mandar uma cartinha
para minha mãe? Foi isso que o governador pediu?
Seus olhos semicerraram, mas se manteve firme ao me encarar.
— Estou aqui para garantir que não coloque fogo nesta universidade ou
anuncie aos quatro ventos quem é o governador em uma de suas crises de
loucura.
— Ainda não me viu em crise, vadia.
— Me pergunto como já não deram um jeito de te fazer sumir. Filho de
um caído, sem valor algum para ninguém além do seu orgulho. — Cerrou os
dentes. Eu podia distinguir a raiva entranhada em cada palavra. — Dizem que
você tem muito do seu pai, mas só vejo um pirralho mimado que usa de
artimanhas e dinheiro para se esconder.
— Gostaria de ver alguém tentar matar o filho do CDC. — Falei a sigla
que pensei nunca repetir na vida, e ela deu um passo para trás com os punhos
cercados. — Dizem que tenho os olhos dele também. Deve ser verdade, não?
— Semicerrei-os em cima dela.
Nos viramos para ver Brianna no refeitório, usando a minha camiseta
que manteve no guarda-roupa desde o dia em que dei a ela, tomando café ao
lado da amiga, Meg.
Quando percebi que a capacho iria a advertir, me coloquei em sua
frente.
— Ela usa o que quiser. Quando quiser. — Me deu um olhar traiçoeiro,
antes de variar o sorriso que nunca mostrava.
— Aproveite, Aaron. Logo não terá mais espaço para brincar sob o
limite da régua que o seu sangue irá lhe impor.
Deixei a vadia falando sozinha, caminhei até lá e ergui a algema
pendurada.
— Como fez isso?
Ela não me respondeu. Megan enrugou a cara e ergueu o dedo.
— Se me permite lembrar, você está lidando com a filha de um
delegado. — Olhei para ela como um animal e, em um piscar de olhos, a
garota abaixou a cabeça. Brianna ergueu a dela.
— O que você quer?
— Conversar.
— Não tenho nada para conversar com você.
— Por que o porco aparece para te machucar, mas não surge na minha
frente? — Vi quando virou o rosto. — Onde ele está?
— Procure você mesmo.
— Não há sinal desse infeliz por aí, nenhum dos meus homens dormiu.
— Ela começou a se levantar e a cerquei na cadeira. — Estão até agora
focados em encontrar aquele verme, e, se você sabe de alguma coisa…
— Não sei de nada! — gritou, chamando a atenção de todos ao redor.
— No final, é só com isso que você se importa de verdade, não é? —
Balançou a cabeça. — Vê se deixa a gente em paz. Vamos, Meg.
O porco Abernathy estava brincando com a minha paciência. Ter se
movido tão rápido ali só afirmava que estava na sombra do governador. Mas
o que mais me indignava era o fato de ele ter vindo com o único intuito de
machucá-la, e eu não ter sabido a tempo.
Eu estava brigando com Filippo Salvatore quando aconteceu, estava
sob a supervisão furtiva da reitoria, sob o olhar dos espiões aos arredores.
E foi ali que percebi que algo ainda maior poderia estar acontecendo
enquanto me distraíam. Aquele monitoramento com a desculpa de me manter
na linha era a maior mentira mal contada que ouvi.
Todo aquele esforço não era apenas para garantir que eu não
encontraria o delegado, a fim de me manter no comando do Brooklyn. Disso,
eu tinha certeza.
Mas o que estava acontecendo por trás dessas cortinas?

A fachada da universidade parecia um formigueiro naquela terça-feira.


Enquanto caminhávamos, Meg me olhava com aquela cara de quem queria
perguntar, mas não sabia como. No entanto, não demorou para que ela
encontrasse um jeito. O pior deles.
— Adoraria saber o que você e o Alien fizeram naquele quarto ontem à
noite. — Teve a audácia de sorrir. — Só pra saber se preciso trocar a roupa
da minha cama ou meus travesseiros…
— O que você está insinuando? — Minha voz reverberou pelo lugar.
— Algo selvagem? — Olhei para ela com a cara feia. — Tô brincando,
Bri, é só pra te levantar…
— Não preciso me levantar, tendo que ouvir esse tipo de merda.
— Então vocês dormiram? — Voltei a olhar para ela indignada. — Tá
legal, quero saber o que rolou, admito.
— Tomei banho, troquei de roupa e dormi. — Antes que perguntasse
sobre as algemas, me adiantei. — Ele se manteve à distância, com o braço
esticado enquanto eu estava nua.
— O Alien? Te dando privacidade? — Pareceu não acreditar.
— Por que a surpresa?
— Você sabe… aquele cara não é do tipo que faz o que os outros
querem. E bom… — Pigarreou. — Ele se prendeu a você para ter maiores
chances de pegar seu pai, caso ele reaparecesse.
— Então, ontem, não foi ele que estava algemado comigo — pontuei
com um sorriso falso e voltei a andar.
Se ela tivesse visto o que, de fato, Aaron fez, duvidaria da própria
sanidade.
Me sentei em um dos degraus da escadaria de um pavilhão menos
movimentado, olhando para as mãos, esperando aquela sensação de vazio
preencher os meus ossos.
Ela sempre vinha, era difícil burlar aquilo. Sempre aparecia quando
meu pai se mostrava maior do que eu, me ensinava como se "portar", onde
era o meu lugar, mas daquela vez? Não senti nada disso.
Era como se alguma coisa tivesse estancado a ferida antiga reaberta
pelo meu algoz, como se tivessem cuidado dela para não deixar inflamar, eu
só não sabia o quê.
— Então foi ele… — Meg ergueu a voz e só então percebi que havia se
sentado ao meu lado. — Seu pai — completou e fiquei em silêncio. — Pode
me contar, Bri. Posso não ser tão corajosa quanto você e me esconder em
algumas situações difíceis, mas sei guardar segredos, se me pedir. — Piscou
para mim. — Deve ser difícil guardar tudo aí dentro. Você não me falou nada
a respeito disso, desde que nos sentamos no refeitório, age como se nada
tivesse acontecido… — Suspirou. — Se eu soubesse que iria pegar as minhas
chaves, não teria…
— Ele disse que precisava falar comigo pessoalmente. — Olhei para
longe. — Achei que me receberia com a notícia de que tinha encontrado uma
pessoa que buscamos já há algum tempo…
Ela ficou em silêncio e deixei escapar um suspiro.
Falar sobre minha motivação para estar ali, revelar o meu segredo, não
era o ideal, sabia disso, mas aliviaria aquela agonia. E eu precisava, pelo
menos, de um pouco de alívio daquela pressão.
— Estou aqui por causa da minha mãe, Megan. — Voltei minha
atenção aos seus olhos largos. — Ela foi embora quando eu era criança e
nunca mais voltou. Ninguém sabe dela. — Passei o pé nos grãos de areia do
concreto do lugar. — Desde então meu pai se tornou um amargurado. Só vive
para sua carreira e empurra tudo e todos que o atrapalharem nisso. — Passei
as mãos pelo cabelo e cruzei os braços. — Eu deveria estar colhendo dados
para ele, mas não o fiz e esse foi o preço que paguei. — Apontei o meu olho
roxo. — Recentemente, percebi que não preciso tanto assim dele para
continuar procurando por ela, e é por isso que ainda estou aqui.
— Ela está aqui?
— O Aaron está, e ele tem algo que pode me ajudar a encontrá-la. —
Meg abriu a boca como se estivesse vendo todas as peças se encaixarem
diante de seus olhos.
— Então pega!
— Eu já peguei, mas receio que precise dele para descobrir como ou
onde usar. — Voltei a olhar para longe. — Não estou preparada para pedir
ajuda, mas acho que vou estar.
— Você vai conseguir encontrá-la. — Sua mão tocou em meu ombro.
Mas, pelo que entendi, acho que fazer as pazes com seu pai pode ser o melhor
a se fazer. — Balancei a cabeça, tentando conter o riso irônico.
— Se eu disser que o Alien fez mais por mim na última noite do que
meu pai em uma vida, você acreditaria? — Ela me olhou com cautela.
Aaron era um desgraçado, eu não negava isso, mas na última noite,
senti que parecia diferente, mesmo que pela manhã ele tenha voltado a ser o
babaca de sempre.
Eu estava começando a acreditar na hipótese dele ter contribuído com a
cura da ferida entranhada em minha carne. Meg, por outro lado, parecia
espantada com meu comentário.
— Não sei, Brianna… e se o seu pai ainda for o certo?
— Fazendo isso comigo? — questionei.
— E o que o Aaron fez é diferente?
— Aaron é um bandido. O líder de uma gangue, ele tem isso no sangue.
Meu pai, o delegado, deveria ser diferente.
— Ele pode achar justo te tratar assim, afinal está o trocando por
criminosos.
— O quê?
— Já pensou que ele pode ter te colocado aqui para ajudar em algo
maior? Talvez fazer o que ele pede ajude a controlar a criminalidade nesse
lugar, no Brooklyn… pode ser que seja o que falta para limpar um pouco
dessa podridão e, quem sabe, descobrir o que aconteceu com sua mãe. — Me
levantei.
— Talvez meu pai só esteja sendo o babaca que sempre foi e tentando
me usar para benefício próprio. — Diante do meu tom de voz agressivo, ela
se levantou também.
— Desculpa, eu não queria…
— Me dá um espaço, Meg. — Comecei a caminhar em meio aos
universitários. Só queria sair dali.
A última coisa que me faltava era uma pessoa opinando sobre o que era
certo ou errado na minha vida sem me conhecer, sem ter vivido o que vivi.
Chamavam o Aaron de monstro, mas as monstruosidades dele não me
afetavam como as do meu pai. Não tinham o mesmo efeito e nunca teria.
Excitar, fazer a barriga flutuar e conseguir transformar minha raiva em
atração não era o mesmo que puro medo, tristeza e desolação.
Me encostei em uma das pilastras da entrada do campus, com os braços
cruzados, e logo em seguida ouvi um pigarreio.
Só porque queria ficar alguns minutos sozinha.
A sombra do misterioso crescia, enchendo os meus olhos sobre a luz
fraca do sol naquele dia frio.
— O olho roxo foi em uma briga de bar? — Era Filippo, em toda sua
maestria em como tirar alguém do fundo do poço.
— Tenho cara de quem briga em bar?
— Eu diria que, com uma latinha na mão, você faria estragos em
qualquer barzinho por aí. — Não consegui conter o riso.
— E você? Onde conseguiu toda aquela agilidade? Achei que pisaria
nos seus restos mortais quando carro parasse.
— Digamos que tenho uma certa experiência.
— Por ser filho de um mafioso? — perguntei e ele enrugou a testa
perfeita. — É, sei sobre os seus podres, mas acredite… — Seria diante de sua
sobrancelha arqueada. — Há famílias piores por aqui.
Ele me deu um sorriso de canto e retribuí. Quando achei que a conversa
fluiria e eu descobriria qual era a relação da família dele com a de Aaron,
Benedete surgiu entre nós como um raio.
— O que está fazendo fora do seu cercado, ratinha? Alien sabe que está
aqui? — perguntou, séria, encarando o riso cínico do Filippo.
Estalei a língua diante daquele saco, mas antes de sair de lá, ela me
parou.
— Um minuto, apressadinha. — Cruzou os braços. — O Alien quer
você no racha de sexta. — Meus olhos se arregalaram.
— O quê? Sem chances — pontuei, decidida.
— Não tem escolha, querida. Te pego às onze. — Antes que eu
contestasse, Filippo acrescentou:
— Também vou correr nessa. Espero ver você lá torcendo por mim,
Abernathy. É a minha estreia no Brooklyn.
Pisquei algumas vezes para só então compreender o tamanho da
oportunidade. Era uma corrida no Brooklyn. O burgo onde John morava,
lugar ideal para descobrir mais sobre aquela chave!
A pista lisa e escura do Brooklyn se estendia nua e crua sob meus
olhos. Era madrugada quando uma fina camada de neblina caía do céu,
deixando o ar um pouco mais gelado do que o habitual.
Estiquei a camiseta colada ao corpo e alonguei os braços. Ao meu
redor, os mais variados tipos de motores rugiam, vozes se misturavam como
em uma feira livre e apertos de mãos em apostas ressoavam de cinco em
cinco minutos.
Nada daquilo me chamava mais atenção do que a área em que ficava o
público. O lugar onde Brianna estava.
Benedete perguntou de mil e uma maneiras diferentes o porquê de
convidá-la para o racha, e em todas as suas tentativas, a ruiva não obteve
resposta.
Mesmo porque, a razão era incerta até para mim no momento. Só
pensei em tirá-la daquele ambiente por algumas horas.
Apesar do Brooklyn ser muito pior, era onde eu me sentia em casa.
Nunca imaginei que ela aceitaria o convite, mas lá estava. De pé, com
os braços cruzados e a carinha redonda. Seu olho já estava bem melhor e não
parecia ter tido sequer um arranhão com a maquiagem que ela usava para o
cobrir, mas ainda assim, toda vez que me lembrava daquilo, meu sangue
mudava para um estado físico diferente.
Ela usava um jeans preto, botas longas, jaqueta, cachecol e um gorro e
roubava minha atenção de uma forma indescritível, como na primeira vez que
a vi. Estava ao lado da colega de quarto, assistindo a tudo de maneira atenta,
usando aqueles olhos para se certificar de que não corria perigo, tendo a falsa
sensação de estar no controle, quando eu a observava de todos os ângulos
possíveis, tanto com meus olhos quanto com os de mais cinco capangas,
afinal era a filha do porco que matou meu irmão e muitos dos que o seguiam
não hesitariam em derramar seu sangue pelo simples fato de ser quem era.
Deixei claro que não encostariam um dedo nela, mas estávamos falando
do Brooklyn, núcleo da infestação de mortos-vivos comandados por
entorpecentes e drogas caras, sem uma gota de sobriedade para seguir minhas
ordens, e para provar esse ponto, vi quando um infeliz bêbado se aproximou
dela.
Com a postura torta e a típica coceira no nariz, ele se inclinou perto de
seu rosto. O desconforto era quase palpável, eu já estava furioso só pelo fato
daquele magrelo estar respirando o mesmo ar que ela, piorou quando ergueu
a mão tentando tocar seus cabelos. Alguma coisa dentro de mim foi liberta,
me inclinei para marchar até lá, mas Brandon me segurou o braço.
— Cara, você já colocou uns cinco na cola dela — resmungou. — É só
um bêbado miserável, a própria Brianna derruba aquele infeliz.
Sem lhe dar resposta alguma, me livrei de sua mão decidido a ir até lá,
mas quando ergui os olhos, os infelizes já estavam fazendo o trabalho e
tirando aquele desgraçado de perto dela.
Sinalizei a um deles, que se aproximou de mim. Era o mais jovem, o
que insistiu em trabalhar para mim em troca de trocados para sustentar o
vício.
— Estão dormindo?
— Não, senhor.
— Estão, sim… — Me aproximei devagar. — Arranco seus dedos se
vacilar de novo, só para ver como vai acender seus cigarros. — Ele engoliu
em seco. — Levem o bêbado para a caverna. — Só de citar esse lugar, já
sabiam o que eu pretendia. — Pendurem pela perna, cuido dele depois. —
Ele acenou e saiu.
Ao meu lado, Brandon balançava a cabeça com o rosto indecifrável e
era genuinamente ignorado por mim. A última coisa de que precisava era
mais um me monitorando, as babás da dupla de patetas bastavam, por
enquanto.
Voltei a observar o movimento caótico e inebriante que se formava
antes de todas as corridas, caracterizando meu habitat natural, o santuário de
carros que me consolava todas as noites.
Puxei as faixas para acertá-las nas mãos com o dente. Já podia sentir o
cheiro da pista, a adrenalina pulsando nas veias, o borrão das luzes fracas dos
postes e, pela primeira vez, os olhos da Abernathy em mim enquanto corria.
Tudo ia bem até que Ryus, Brandon e eu passássemos a compartilhar
da mesma visão do inferno: Fillippo. A poucos metros de nós, preparando seu
carro.
— O filho do abutre parece saber o que está fazendo. — Ryus quebrou
o silêncio, analisando o manuseio calculado do infeliz.
Brandon assentiu, um sorriso se formando em seu rosto.
— Tenho que concordar. O cara tem habilidade. Não subestimaria.
Mantive o olhar fixo na pista, sem expressar totalmente minha opinião.
Ele só correria porque nunca fui de negar uma disputa. Eu respirava aquilo,
era impossível dizer não ao amasso que aquele merda pedia.
Me virei e abri o capô do meu carro para dar a supervisão furtiva de
sempre, antes de entrar na pista.
— O infeliz tá há horas ali e só vai correr na segunda partida. Isso tem
outro nome — pontuei e eles se entreolharam — Iniciantes… eles precisam
ter certeza de que todas as pecinhas estão no lugar. — Fechei a tampa do
capô e terminei de puxar as faixas das mãos.
— Com aquele arsenal de peças monstruosas num único carro, até eu
ficaria namorando a lata. Preciso descobrir alguns fornecedores, inclusive, tá
na hora de eu montar uma ainda melhor pra amaciar nessa pista — disse
Ryus.
— Talvez, se você rastejar até lá, ele te passe algumas dicas, panaca. —
Minha voz soou mais séria do que pretendia, não consegui evitar.
Brandon percebeu meu tom e tentou acalmar as águas.
— Relaxa, Alien.. Ninguém aqui planeja convidar o cara para o
próximo churrasco.
— Ele não deveria nem mesmo estar aqui — murmurei e segui pela
margem, chamando a atenção de todos que se preparavam. — Vamos dormir
esperando por vocês, merdinhas! Mexam as bundas, não temos a madrugada
toda! — vociferei. — Não precisam enfeitar tanto os carros cor-de-rosa,
vocês vão engolir mais poeira do que podem imaginar. Estão prontas para
perder suas apostas?
No meio dos uivos e gritos de rachadores e telespectadores, o filhote de
abutre me encarou com o sorriso torto e a cara suja de graxa. Era um otário
mesmo. Eu estava confiante e já imaginava o estrago que minha máquina
faria àquela latinha dele. Aquela vitória merecia ser marcada na minha pele
de tão ruim que seria para ele.
Voltei para o meu carro, passando os olhos no turbo enquanto aquela
parte morta do Brooklyn era acendida pelos faróis. Quando o alvoroço
começou a abaixar, ouvi a voz de Brianna do lugar onde estava, sendo
direcionada a ele, e não quis crer naquela palhaçada.
— Vai, Filippo! Estou torcendo por você!
Isso é sério?
Me virei para encarar aquela atrevida, mas ela sequer olhava para mim,
tinha toda a atenção nele. Assisti a quando o infeliz a chamou e ela começou
a caminhar até lá, como se tivesse permissão, ignorando minha presença ali
ou mesmo o fato de que aquele almofadinha era meu inimigo.
Fiz as narinas se dilatarem, coloquei as mãos na cintura e me virei de
costas, dando uma trégua ao meu cérebro.
— Ela sabe. — Saiu como um grunhido.
— O quê? — Brandon, que passava uma flanela em seu vidro, me
encarou.
— A vadia sabe me deixar puto — completei e os dois ergueram os
olhos.
— Aí é foda. — Ryus já imaginava o tamanho da minha raiva quando
completou. — Vai matar ele agora ou depois da corrida?
Pude sentir sua troca de olhares com Brandon, que se apressou para
abrir a porta do meu carro.
— Você já tem cinco caras de olho na garota. Vamos encostar as latas,
Alien, o racha já vai começar.
Era como se soubesse o que viria caso eu continuasse assistindo àquela
cena, e coisa boa não iria ser, eu tinha certeza, e só por isso, obriguei a mim
mesmo a entrar no carro.
Só serviu para que eu continuasse assistindo à cena, só que sentado.
Já estavam anunciando a corrida quando liguei o motor e o acelerei,
olhando fixamente na direção dos dois. Ela conversava com ele tão
entusiasmada que mexia as mãos no ar, como uma boneca.
Apertei o volante e mexi nas chaves. Impaciente, fechei os olhos.
Precisava ignorar.
Olhei para lá, ela sorria. O som da risada se destacava e alcançava meus
tímpanos, como se só ela fizesse barulho ali em meio àquela poluição sonora
do inferno.
Está sorrindo para ele?
Ela nunca sorriu daquele jeito para mim.
Mordi o lábio inferior e funguei, virando a cara. Minha mão bateu na
testa e me forcei a prestar atenção em qualquer outra coisa. Aquele infeliz
não ficaria nela, os caras estavam de olho e eu só precisava me concentrar no
racha.
Estava encarando os dois pela vigésima vez segundos depois, para
captar Brianna colocando fones nos ouvidos.
Claro, devido à fobia de som muito alto, seus tímpanos eram
sensíveis…
O infeliz resolveu ajudá-la, ajustando o gorro por cima do das orelhas,
passando os dedos por seu cabelo. Tocando nela.
Bati no volante e olhei para a pista. Estavam prestes a anunciar a
largada e, enquanto os motores borbulhavam, minha cabeça parecia querer
explodir.
Não fazia ideia de como consegui aturar aquilo ou até onde minha
paciência se estenderia.
Descobri no momento seguinte, quando o filhote de abutre acomodou a
mão no vão de sua cintura e a induziu a entrar no carro.
Comecei a rir feito um maluco. Minha chave girou, acordando o motor
da em um rugido agressivo. Passei adiante pela pista e fiz meus pneus
derraparem no meio do asfalto, bloqueando a corrida.
Pulei para fora do carro sob burburinhos, gritos e até vaias.
— Ninguém passa adiante — murmurei. — Preciso resolver alguns
assuntos antes dessa merda começar ou não vou ser capaz de correr sem
partir ao meio todos os carros que surgirem no meu caminho.
Marchei pela margem da pista, espumando feito um animal, e cheguei
aonde estavam em poucos segundos. Os dois já me olhavam com expressões
distintas um do outro. Enquanto o infeliz me entregava uma carranca,
Brianna tentava esconder o que eu facilmente classificaria como satisfação.
Satisfação em me ver tendo um ataque de raiva.
— Só estou conversando com seu amigo, Alien. — Sua voz ondulou
quando me aproximei.
Segurei-a pela cintura levei e a joguei no capô do carro dele, o barulho
da bunda reverberou pelo lugar, eu a fiz abrir as pernas, me coloquei entre
elas e a puxei para mim. Meus dedos estavam em sua nuca e minha boca a
centímetros da dela quando grunhi.
— Continua com essa merda e eu fodo você na frente dele. Nada
melhor que te fazer gritar o meu nome para deixar claro que me pertence,
hum?
— Não faria iss… — Fisguei seus lábios com força e ela não resistiu.
Quando nos separamos, estava ofegante.
— Odeio você, Alien.
— Você me ama, ratinha, e vai torcer por mim. — Olhei nos olhos
dela, segurando seu rosto com força. — Vai entrar no meu carro, vai deixar
eu te ajudar com seus fones. — As pupilas cintilaram, dilatando-se devagar.
— Por quê? — ciciou.
— Porque eu quero — respondi. — Porque é minha. Você mesma disse
isso. — Deixei mais um beijo em seus lábios e a puxei para o outro lado, sob
o olhar risonho e os braços cruzados do Salvatore.
Quando a coloquei junto da amiga e sob a supervisão dos meus
homens, ouvi o anúncio de que todos os carros correriam juntos devido ao
atraso que se acarretou — com minha ajuda, claro.
Era bom.
Ela não ficaria no mesmo ambiente que o filhote de abutre enquanto eu
corria, e ainda me veria dar um trato nele naquela pista. Coisa melhor eu não
poderia querer.
Estávamos um pouco distante da pista livre, observando os carros
esquentando seus motores para dar partida.
Suspirei devagar sentindo os olhos insistentes de Meg em mim. Quando
seus lábios deram sinal de que ela falaria alguma coisa, me adiantei.
— Você está tentando falar sobre aquilo de novo.
— E você está tentando ignorar.
Fechei os olhos.
— O que quer que eu diga, Megan? — Apertei os olhos, farta.
— Que merda foi aquela? Deixou ele te beijar! E pareceu retribuir.
— Não foi nada disso! — Ela era a cópia de Mavi no quesito
implicância.
— Eu vi, Brianna.
— Só estava…
— Sim? — insistiu e apertei os cantos dos olhos com os dedos.
— É carência, tá legal? Nada além disso. — Tentei me convencer
também, mas nem acreditava naquela merda.
— Cara, você é maluca! Pra começo de conversa, nem deveria estar
aqui.
— Ah, ótimo. Agora, vai ditar regras pra mim.
— Posso ficar calada e fingir que não vejo você se jogar nos braços de
um doido.
— É uma ótima ideia! — Me virei com a testa franzida, tentando
ignorar a energia caótica que ela emanava.
Só a chamei para ir comigo, porque insistiu em saber aonde eu estava
indo. E só estava ali por causa daquela maldita chave. Se John morou ali,
alguma fechadura aqueles segredos bem desenhados abririam.
Suspirei com os braços cruzados, observando uma fileira de telões
transmitirem recortes de câmeras de segurança do trânsito. Pelo que Benedete
me disse, eles conseguiam hackear o sistema e formar uma espécie de
cobertura em primeira mão dos rachas. As transmissões aconteciam às sextas-
feiras para o público disposto a pagar para assistir. Olhando aquele lugar
superlotado, com certeza faziam uma grana.
Meus olhos piscaram na direção dos carros. Não era nada como eu
imaginei. Máquinas enfileiradas, bandeirinha xadrez anunciando o início da
partida… nada. A coisa era um tanto quanto descontraída. Ninguém ligava
para posição inicial, mas com certeza brigavam feito animais pela linha de
chegada.
Meu coração palpitou quando vi o carro do Aaron. Preto como a noite,
brilhante como um espelho. Os vidros escuros não me impediam de sentir sua
energia intensa, de relembrar coisas que eu preferia esquecer.
Apertei as pernas e mordi os lábios. Ele acelerou naquele exato
momento e eu tive certeza de que estava olhando para mim, o tempo todo.
Dei um pequeno pulo quando, seguindo-o, um a um os carros
aceleraram. Em segundos, cobriram a pista e, no telão, as imagens
começaram a estabilizar, mostrando os líderes no racha.
Aaron e Filippo já começaram lado a lado, deslizando pela pista com
uma facilidade e habilidades incríveis. Pelo menos, foi o que achei até
perceber que se aproximavam um do outro. Suas latarias se bateram, fazendo
faíscas de fogo voarem pela pista escura.
— Podem fazer isso? Não existem regras? — ciciei, desesperada, e
Benedete, a ruiva, surgiu em um piscar de olhos.
— Quem está liderando? — Parou ao meu lado, averiguando a tela. —
Hum… interessante.
Cada batida me fazia encolher os ombros.
— Interessante? Eles vão se matar!
— Não se não quiserem — falou, antes de franzir as sobrancelhas. —
É, e parece que eles querem. — Suspirou. — Droga, Alien! — Seus dedos
fuçaram o bolso de trás e agarraram um dispositivo parecido com o que ele
usava. Ela colocou no ouvido. — Alien, que merda é essa? — Pelo estalar de
sua língua, ele não respondeu. — Ótimo, está me ignorando.
— Faça alguma coisa! — exclamei quando os telespectadores ergueram
a voz em uníssono, diante de mais uma batida bruta. — Me dá isso aqui. —
Segurei o aparelho. — Aaron, já sabemos o que vocês estão fazendo, parem
agora!
Como resposta, ele empurrou Felippo para a margem, mas dessa vez,
quando o italiano revidou, seus pneus derraparam.
— Não…
Foi tão rápido que, se eu piscasse, perderia o exato momento em que
ele se transformou em um borrão, formando uma linha grossa na pista. O
barulho do freio fez todos ao redor franzirem a cara.
Aaron girou no ar e eu contei três vezes em que meu coração deu
cambalhotas junto dele. De ponta cabeça, a lateral do automóvel ralou pelo
asfalto e se arrastou até parar mais adiante.
O fone de Benedete ainda estava na minha mão e a pequena vibração
me fez levá-lo até o ouvido.
Era como se respirasse, lentamente, quase nada, e então sussurrasse,
vagamente, o meu nome.
— Brianna…
Meg estava terrivelmente impaciente ao meu lado enquanto
esperávamos em frente a uma porta alta e grande de um lugar totalmente
estranho.
Cruzei os braços, sentindo o corpo tremer de frio e o sono querer me
abraçar. Era pouco mais de três da manhã e já fazia horas que haviam trazido
Aaron de volta, mas o mantinham confinado lá dentro, no que chamavam de
caverna dos Skulls, cercada de guardas.
Minhas mãos não paravam de suar. Sentia a pele trêmula e os lábios
frios. Tentava ignorar o fato de que Megan queria me matar e esperava por
algum sinal de vida dentro ou fora daquele lugar, e eu o tive, mas vindo de
fora.
Benedete finalmente apareceu e meu primeiro impulso foi o de seguir
até ela, como se minha vida dependesse daquilo.
— Vai entrar? Onde você estava? Ele está sozinho lá dentro e nem sei
se… — Ela segurou um dos meus ombros.
— Calma, garota. Estávamos atrás de Fellipo. — Nem precisei
perguntar e já se adiantou. — Não o encontramos.
— Foram perseguir aquele merda enquanto o Aaron…
— O Aaron está bem, fofinha. — Piscou para mim. — Aquele ali é
ruim demais pra quebrar com um golpe. — Me empurrou uma caixa de
primeiros socorros. — Pode ir lá, acho que ele vai preferir você a mim, e
como estou percebendo que está super preocupada….
— Eu não estou… — Fez sinal de silêncio quando me viu erguer o
tom, com os dentes semicerrados.
— Ele tem alguns ferimentos, mas nada muito alarmante. É teimoso e
insiste estar bem. — Se aproximou. — Você faz medicina, vai saber dar uma
olhada melhor e bom… — Piscou de novo. — O Alien vai gostar de te ver, já
que foi a primeira pessoa de quem perguntou quando me ligou há uns dez
minutos.
— O que disse a ele ?
— Que você estava segura e com a gente… — Ela me deu um sorriso e
agarrei a caixa.
— E você mentiu, porque eu sozinha aqui com Meg.
— Precisávamos encontrar o filho do mafioso, era prioridade. — Dei
um último olhar em sua direção e quando iria falar com Meg, Benedete a
segurou pelo braço.
— Deixo sua amiga no alojamento, estou indo para lá. — Acenei sob o
olhar apreensivo da coitada e forcei um sorriso.
— Tudo bem, Benedete não é tão ruim assim. Você vai chegar inteira.
— Sem dar tempo para que contestasse, segui até a porta e os caras as
abriram, finalmente.
Assim que entrei, fecharam-na por fora e me vi presa no que pareceria
ser um saguão muito bem iluminado, repartido em cômodos e repleto de
caixas empilhadas. Minha curiosidade aflorou e dei alguns passos adiante,
para então ouvir sua voz.
— Veio me visitar, ratinha? — Vinha do único lugar que tinha sombra,
em um dos cantos daquele imensidão, e fisgou minha atenção como nada ali
conseguiu fazer.
— Onde você está? — Minha voz ondulou nervosa e sua risada me
atingiu tão próxima que se fez como um impulso elétrico por toda a minha
carne.
— Estou bem atrás de você. — Estremeci quando seus braços me
seguraram e ele me abraçou por trás, levando os lábios até minha orelha. —
Oi, ratinha.
Me virei para averiguar cada canto de seu corpo sob aquela expressão
convencida. Pela cara, ele realmente estava muito bem, mas eu não confiava
nisso. Tinha uma ferida na testa, os braços estavam ralados, mas não era nada
muito profundo. No entanto, o acidente tinha sido horrível. Com certeza ele
quebrou ou deslocou algum osso.
— Não minta pra mim, Aaron. Você está bem? — Segurei um de seus
braços e o ergui com dificuldade, examinando. — Sente dor em algum lugar?
— Estava apreensiva, meu coração apertava no peito toda vez que olhava
para ele.
— Que linda, preocupada comigo… — soprou, me fazendo querer
encolher.
— Não estou.
— Não minta…
— Faria isso por qualquer um.
— Até pelo Filippo? — Ergueu a sobrancelha.
— Menos pelo Filippo! — Minha cara se contorceu de raiva genuína,
sem que eu soubesse de onde vinha aquilo. Ele me olhou com um sorriso e
senti meu corpo inteiro esquentar, foi o que me trouxe de volta ao agora. —
Me diga onde sente dor, por favor. — Entreguei meu tom de quase súplica e
assisti a ele se esticar.
— Minhas costelas. Estão me matando — apontou. — E meu
tornozelo, acho que quebrei.
— Deus! E você fica aqui?
— Foi o mínimo que poderia ter acontecido, estou bem pra quem
sofreu um puta acidente como aquele. — Chiou. — Mas vou ficar melhor
quando amassar o crânio daquele infeliz… — Comecei a arrastá-lo para a
cadeira mais próxima, em uma mesa de madeira que tinha por ali.
— Agora, fique quieto. Vou cuidar disso — falei, olhando para a ferida
na testa. — Ele tirou a camiseta branca manchada e afrouxou o botão da
calça, grunhindo.
Precisei me segurar.
Como era possível que até quebrado aquele imbecil fosse um tremendo
gostoso?
Abri a caixinha, peguei alguns equipamentos e, de pé em frente a ele,
comecei a limpeza sob seu olhar predatório. Eu sabia que não me deixaria em
paz, e não demorou para aproveitar nossas posições e segurar minha cintura.
— Está mesmo cuidando de mim ou estou sonhando, ratinha? — Riu.
— Isso me faz ter vontade de quebrar um braço toda semana, sabia?
— Essa ferida está me dando agonia, só isso — falei, passando o
algodão pelas margens. — E parece que você nem mesmo se importa com
quanto sangue pode perder se isso continuar exposto. — Apertei um pouco
mais e ele grunhiu.
— Às vezes, me esqueço de que cursa Medicina.
— Faria mais sentido se eu tivesse escolhido ser veterinária. — Sua
risada rouca ecoou pelo lugar. — Você não para quieto. — Apertei a ferida e
ele quase rugiu. Meu pequeno sorriso o fez erguer a sobrancelha.
— Então essa é a sua intenção, me ver sofrer…
— Não. Só você é o maluco aqui. Não tenho prazer em ver as pessoas
sofrerem.
— Está enganada se acha que sinto. — Nos encaramos por mais alguns
segundos até que eu desviasse.
— Você vai ficar bem. — Guardei as coisas. — Depois que for a um
hospital. — Cruzei os braços e ele amoleceu na cadeira.
— Odeio hospitais — resmungou.
— Odeio você e ainda estou aqui. — Me virei olhando ao redor. —
Tem água em algum lugar? — Segui andando na direção de um dos
cômodos. — Eu estou morrendo de… — Meus olhos piscaram,
desacreditando do que eu via. — Sede…
Era um homem. Pendurado no teto. Em sua perna, um gancho
atravessava a panturrilha e saía do outro lado, esticando a pele. Sangue
escorria desde ali até rosto magro, e ele girava como um pedaço de carne no
açougue.
Puta merda.
— Não precisava ver isso. — Me virei para vê-lo encostado na porta,
com os braços cruzados.
— É por isso que chama quem não gosta de porco? — Ele riu. — Esse
era o cara que tinha tentando…
— O cara que te assediou lá fora. — Descruzou os braços. — Todos
sabiam que ninguém deveria chegar perto de você. Era uma ordem. —
Devagar, começou a entrar no cômodo e parou na minha frente. — Sou um
líder aqui, preciso mostrar como as coisas funcionam. — Seus dedos
ergueram meu rosto aos seus olhos. — Preciso punir quem não anda na
minha linha — pontuou e, pela cara que fez, parecia estar esperando um
escândalo da minha parte.
— Já vi coisas piores. Sou filha de um delegado — ciciei e ele riu.
— Por que você é tão diferente? — sussurou. — Sou perigoso, Brianna,
um monstro, e mesmo assim não está tentando se distanciar de mim… por
quê?
— Talvez porque você não me deixa em paz. Você que me prende, diz
que te pertenço.
— Engraçado… não me lembro de ter te obrigado vir até aqui.
E foi ali que me lembrei do meu real objetivo naquele lugar: encontrar
uma porta para a chave, respostas, pistas. E o que eu estava fazendo? Aaron.
Tudo se resumia ao Aaron. Estava focada demais cuidando dele, me
preocupando com ele, sendo uma idiota. Era como se tudo se apagasse sem
que eu percebesse, e só o Alien restasse ali.
Ele me segurou pelo pescoço e me fez inclinar para trás enquanto eu
via o cara pendurado, em cima de nossas cabeças.
— É isso que faço com quem toca em você, ratinha, e eu acho que sabe
o porquê. — Seus lábios se juntaram aos meus e, debaixo do sangue fresco
gotejando, nos beijamos.
Separar nossos corpos foi mais difícil do que pensei e, quando o fiz,
estava ofegante como uma condenada.
— Por que faz assim comigo, Alien?
— Isso?
— Você faz parecer que vai me dar algo e nunca o faz, é só mais
escuridão. Está fazendo isso agora. Quanto tempo acha que vai me ver
chorando por sua culpa? — Passou os dedos pelos meus cabelos.
— Deveria me odiar, Abernathy.
— Estou tentando e claramente fracassando. — Olhei para seus lábios.
— Deveria me massacrar, Alien.
— Estou tentando e pretendo não fracassar… — sussurrou. — Pelo
menos não na cama.
Uma semana depois
Nunca pensei que estar no meio dos livros fosse se tornar algo rotineiro
para o Aaron, mas o vi entrando pela milionésima vez na biblioteca porque,
com certeza, soube por alguém que eu estaria lá.
Só de pisar naquele lugar, o ar ao redor mudava. Era como se tudo
ficasse mais intenso enquanto o cavalheiro all black caminhava até mim.
Seus fios de cabelo estavam meio úmidos, jogados para cima dos olhos e o
cheiro de banho me inebriou como álcool.
Escondi o diário que roubei dele e cruzei as pernas, puxando meus
materiais para voltar a estudar. Quando ele se aproximou o suficiente para me
ouvir, ergui a voz.
— Não sei de nada sobre meu pai se é isso que vejo perguntar.
— E eu não sei do que está falando — pontuou, cruzando os braços.
— Como é? — Coloquei o livro de lado.
— Decidi que não quero falar sobre esse homem com você. Não mais.
— Ele estava sério demais para ser uma brincadeira.
— Tudo bem… o meteoro já pode cair — gritei aos céus, ignorando a
exigência de silêncio ali e o encarei. — Está desistindo? — Ele ergueu uma
sobrancelha e se inclinou a mim.
— Estou tirando você da jogada, mas ainda continuo caçando o seu pai
e já tenho pistas sobre onde ele pode estar — sussurrou. — Espero que fique
feliz por ambas as notícias.
Olhei para minhas mãos. Não ter tido nada sobre a minha mãe nos
últimos dias ainda me fazia ficar presa ao meu pai. Na minha cabeça, se eu
fracasse, ele seria o único a conseguir. Estávamos nisso há anos.
Engoli aquilo antes que me percebesse estranha e me voltei para ele. O
meu sangue no pingente que balançava em seu pescoço, e o sorriso
característico emoldurado por aquela manchinha, me fisgou.
— Se quiser dar uma volta, sair dessa merda de biblioteca, tô lá fora. —
Meus olhos semicerraram.
— Às vezes, eu acho que você não vive no mesmo mundo que eu.
— Por quê
— Porque estou, neste exato momento, fazendo nosso projeto sozinha
quando devíamos estar fazendo em dupla, mas você prefere tentar se matar
em uma pista a se sentar aqui e falar sobre como a Engenharia Mecânica pode
ajudar o meio ambiente — pontuei para só então respirar.
Minhas mãos empurraram o livro para o lado e, por baixo ele, uma
página com a grande imagem de Júpiter chamou sua atenção. Fechei os
olhos, agradecendo mentalmente por não ter sido o diário. Eu lia um capítulo
todos os dias, era pequeno e não queria acabasse tão rápido, mesmo que
parecesse ser feito à mão, era uma das histórias e artes mais bonitas que já vi.
— Gosta mesmo dessas coisas…
— Digamos que seja um hobby… — disse, sentindo as bochechas
esquentarem quando o vi concentrado na imagem. Era tão lindo quando
olhava fixo para alguma coisa… — Passo a maior parte do tempo aqui
quando não estou estudando ou fazendo alguma outra coisa.
— Sou um exemplar de vida fora da terra — mencionou. — É só dizer
quando quiser fazer testes no meu corpo.
— Adoraria dissecar você — falei e me encarou, abrindo um sorriso.
— Olha a conversa, hein. Te prendo no pé da minha cama outra vez.
Não consegui segurar o riso e precisei abaixar a cabeça para não
demonstrar que estava me divertindo de alguma maneira junto àquele
desgraçado.
— Estou lá embaixo. — Sem que eu esperasse, segurou o meu queixo e
deixou um beijo na minha boca, seguido de uma mordida, antes de sair.
Tá legal… que merda foi essa?
— Namoradinhos. — Brandon quase silabou, acompanhando os meus
passos. — É isso que parecem ser: namoradinhos.
— Cala a boca, cara. — Apressei a caminhada, seguindo até meu carro
para esperar por ela.
Maldita hora em que fui encontrar com ele ao sair da biblioteca.
Agora, não iria me deixar em paz.
— Achei que a queria para um fim, Alien.
— E a quero para um fim. — Olhei para ele. — Mas os fins mudam.
Você tem algum problema com isso?
— Problema nenhum.
— Então estamos bem — pontuei, já avistando a escada que dava para
fora do pavilhão.
— Mas e o pai dela?
— Estou procurando.
— E o filhote de abutre?
— Também estou procurando.
— Cara, na moral, para um pouco. — Coloquei as mãos nos bolsos e o
encarei.
— Manda.
— Agora, além de líder da nossa gangue, comanda os Skulls no
Brooklyn. Já sabe que o governador está com o delegado, e o filho do
mafioso tentou te matar, o que está esperando para agir? — vociferou e me
aproximei. — Já tem tudo de que precisa.
— Aprendi uma coisa com o meu pai há muito tempo, e vou te dizer:
nunca inicie o jogo, se não souber quais são as cartas e quem as tem. Só estou
esperando o momento certo.
— Errado — pontuou. — Você só está tirando a importância dessas
coisas e colocando nela. — Balançou a cabeça. — Se aquela garota não te
fisgou, não sei o que tá pegando.

Seria louco dizer que eu queria guardar todos os meus materiais, passar
no quarto, vestir algo confortável e correr de carro por aí com o marginal de
quem eu deveria manter distância?
Sendo loucura ou não, foi o que fiz, e fugindo dos olhos perspicazes de
Megan, pousei no pátio principal da universidade, onde o movimento
frenético se estabelecia.
Meu sapato batia contra a porcelana com reflexo amadeirado e as
mangas longas da minha blusa voavam junto ao movimento. Pelas grandes
janelas do pavilhão, percebia que a neve tinha dado trégua por um momento e
a luz do sol atravessava um pouco mais as nuvens densas. O ar puro que
encheu meus pulmões foi o mais satisfatório que senti há dias, e me fez
relaxar a um passo de parar no topo da escada que dava para a fachada da
universidade.
O sopro frio do vento acariciou meu rosto e fez os meus cabelos
balançarem. Procurei por ele, juntando as mãos na barra saia, e continuei
andando para fora.
A gangue do Aaron não era a única que fazia coisas legais sobre quatro
rodas, logo o campus estava infestado de carros esportivos modificados.
Inspecionei um a um à distância, mas achei um de estilo parecido com o que
ele usou na última corrida. Se não levasse em consideração o fato de que
trocavam de carro como trocavam de roupa, era algo parecido com aquilo que
ele teria.
No entanto, quando tentei tocar a maçaneta, um estranho saiu de lá.
— Tá perdida? — Ele tinha tatuagens até no rosto, os dentes amarelos
me fizeram arrepiar. Nunca tinha visto aquele cara na universidade.
— Só me confundi, mas já tô saindo. — Me virei rápido, mas seus
dedos ásperos seguraram o meu braço.
— Pra que tanta pressa? Gostou do meu carro? — Sua voz se projetou
em um sussurro. — É com ele que vou passar por cima de Aaron Walker.
— Sabe de onde saí ontem, boneca? — O aperto se intensificou em
meu braço. — Da cadeia. Estávamos presos. Eu e meus manos, no lugar do
seu namorado. — As palavras saíam compassadas, como se ele se desligasse
e voltasse de novo.
Mesmo que eu não tivesse namorado, já tinha uma ideia de sobre quem
ele falava. No entanto, não perdi tempo em responder.
— Não tenho namorado. — Puxei o braço com força.
Sua língua estalou e, com um franzir cínico nas sobrancelhas, ele
começou a me puxar dali para trás do carro, dificultando as chances de
sermos vistos.
— Os boatos são sempre uma mentira, não é? — ironizou, balançando
meu corpo com força. — Mas é bom saber que não tem vínculos.
Cravei as unhas na carne, olhando direto nas pupilas infelizes dele.
— Furo seus olhos se não me soltar agora. — Meu grunhido não lhe
arrancou mais que uma risada ridícula.
— Corajosa… nunca me senti tão ameaçado em toda a minha vida! —
exclamou e senti a raiva borbulhar nas veias.
— E nunca senti tanta falta da minha arma como agora — murmurei
com a força que o ódio me proporcionava no momento.
— Tenho uma. Você quer? — A pergunta reverberou pelo lugar. Não
soube dizer o que era aquilo que crescia feito uma raiz fasciculada no meu
coração, medo ou raiva.
Ele levou a mão ao cós da calça jeans batida e puxou uma pistola velha.
— Só não te faço engolir as balas porque vale mais viva que morta. —
Fungou o meu cheiro. — Gosto de comer carne quente. — A risada voltou a
reverberar e o encarei com puro ódio.
— Vou acabar com você! — Me ignorou, olhando ao redor como um
maluco chapado.
— Quanto tempo acha que vai levar para que ele perceba que sumiu e
apareça aqui?
— Nem mais um minuto. — A voz masculina ressoou atrás de nós.
Aaron.
O homem fraquejou ao receber a pancada de um bastão na cabeça. Seus
dedos afrouxaram e me soltei dando alguns passos para longe com o coração
a mil.
— Vai! — Aaron gritou, mantendo o cara no chão. Minhas pernas
tremeram. — Anda, Brianna! Eu cuido disso!
Foi tão intenso que saí de lá sem olhar para trás e me escondi atrás do
primeiro muro que encontrei dentro do campus, era um dos que cercavam o
jardim, o pior lugar para se estar em uma possível perseguição, porquE as
plantas tinham espinhos e, só de olhar para eles, eu imaginava a ardência na
pele.
Molhei os lábios, ouvindo o som da luta entre os dois. Estavam
trocando socos até que um tomou o controle e surrou o outro. Percebi porque
os intervalos entre as batidas eram sincronizados, era um nocaute. O som de
vidro estilhaçando precedeu o alarme do carro que começou a apitar feito
louco até que…
Tun tun, desativado.
Silêncio.
Meu coração gelou. Apenas o uivo do lá ventos preenchia o lugar.
Pisquei algumas vezes, fosse quem fosse, estava se aproximando do
muro. A tensão crescia à medida que os passos ecoavam como um eco
ameaçador. Olhei para cima, o vento frio sussurrava entre as folhas das
árvores, tão intenso quanto as batidas do meu coração.
Estava chegando perto e, quando o arrastar dos pés me alcançou e
alguém emergiu de trás dos tijolos, meu corpo inteiro pareceu congelar em
resposta ao reconhecimento tardio.
— Aaron! — Abraçá-lo foi algo automático.
— Tô aqui, ratinha. — Parecia ofegante, e jogou o taco, que não faço
ideia de onde tirou, de lado para me abraçar.
Me afastei devagar e percebi o olho esquerdo roxo. Seu corpo me
prendeu contra a parede.
— Você está bem? — perguntou.
— Sou eu quem pergunto. — Passei o dedo sobre a bolsa que inchava
ao redor da linha d'água. — Vai precisar de pontos…
— Sabe dar pontos? — Seus lábios se esticaram, a pintinha na
bochecha emoldurando o sorriso de criança que não quer ir ao hospital.
— Vou fazer o meu melhor — ciciei e ele apontou para o carro. —
Você vai dirigindo?
— Vou fazer o meu melhor… — sussurrou me arrancando um sorriso e
seguimos até lá.

Andar de carro em Manhattan não era cem por cento seguro. Com o
Aaron dirigindo, piorava. Com um olho a menos, a coisa ficava mil vezes
mais sinistra. Mas quando ele abria aquele sorriso…
Ah, aquele sorriso…
Puxou a marcha e pegou o celular, segurando o volante com uma mão
só. Seu dedo desbloqueou a tela e começou a falar.
— Parando na encruzilhada, chama a galera. — Olhei para ele, séria,
meu coração começou a acelerar e talvez tenha percebido, porque colocou
uma mão na minha perna. — Não se preocupe, ratinha. Cuido de você antes
de cuidar de mim.
Suas mãos deixaram o volante em uma reta e se aproximou de mim
para afivelar meu cinto. Entrei em desespero.
— Aaron! Dirige! Eu coloco o cinto! — Usou o dedo indicador para
calar meus lábios. — Aaron… — Minha voz saiu em tom de aviso.
— Vai gostar — respondeu. E eu não duvidava, só de estar com ele,
meu corpo parecia flutuar.
Sua máscara estava no rosto pouco tempo depois e agora ele colocava
uma em mim, esticando o elástico sobre o meu cabelo.
— Fica bem em você, ratinha. — Olhei em seus olhos por aquele fino
tecido preto e ele se afastou.
Quando segurou firme o volante, apertei o banco. Estávamos em um
atalho, percebi porque, com um giro rápido, entramos na rodovia
movimentada.
O carro correu até o ponto que a dividia em quatro retas distintas,
formando uma encruzilhada e, Deus, quando ele girou aquelas rodas, fazendo
com que derrapássemos no meio da pista, meu corpo inteiro se arrepiou.
Apertei a perna dele, fazendo-o rir.
— Nem começamos, ratinha. — Buzinas e mais buzinas ressoavam, o
trânsito parou ao redor do carro, que girava ali no meio, deixando marcas no
asfalto e levantando fumaça.
Eu via automóveis por todos os lados, seus faróis viraram borrões e
meu coração seguia a mesma linha quando Aaron fazia os pneus rasgarem o
asfalto.
— Uhuuuul! — gritou e comecei a rir.
Não sei se pelo nervosismo, adrenalina… eu mal me lembrava de que
tinha fobia de sons altos demais.
Ele abriu as janelas e sob o sopro agressivo do vento, assisti a mais
carros se juntarem a nós, girando feito peões e induzindo o trânsito à
loucura.
Fechei os olhos, sentindo o vento bagunçar meus cabelos, e coloquei a
cabeça para fora.
Era errado. Um crime. Surreal, e era bom, muito bom!
Ficamos ali, vivendo o momento de maior adrenalina da minha vida até
que uma sirene tocou.
Ele olhou na minha direção.
— Se quiser, pode segurar em mim. — O vidro fechou feito um flash,
só tive tempo de apertar a barra da camisa dele e o carro entrou em uma das
vias feito um furacão na contramão, desviando de outros veículos.
— Aaron! Você é maluco! — gritei sob o barulho do motor e tampei os
ouvidos.
— Quando descobriu, ratinha?
Voltei a rir com o corpo inteiro tremendo, sentindo que minhas veias
iriam explodir de tanta adrenalina, e sentindo que vinha dele. Era ele. Era de
outro mundo.

Já era noite, o ar frio e familiar do lugar era confortável. A luz azul


fazia a sala luxuosa tinir igualzinha à que tinha no quarto em que fiquei presa.
Suspirei, segurando um bolinho de algo.
Nunca pensei que voltaria àquela cobertura, muito menos que ele
próprio me levaria até lá de novo, mas tinha uma coisa que conseguia me
surpreender ainda mais: eu não sentia raiva alguma.
Era como se aquele na minha frente fosse outro, como se tivesse sido
outra vida. Mesmo que ele parecesse idêntico ao Aaron que sempre chegava
para me visitar pelas manhãs e noites, usando calça preta, máscara pendurada
no cós, corpo suado e respiração ofegante.
— Sinto muito por ter te trazido aqui — falou. — Não encontrei outro
lugar na fuga, e…
— Quieto — disse e ele piscou confuso. — Está pronto — falei,
terminando de limpar a pele depois de ter dado dois pontos de sutura perto do
olho. Percebi que ele estendia a mão e bati nela. — Não pode tocar! — Quase
ri quando grunhiu. — Vai precisar esperar um pouco para colocar o gelo
também. — Afofei as almofadas e coloquei em suas costas. — Fica aí e fica
quietinho. — Ele riu.
— Ah… a minha médica favorita…
Tentei esconder as bochechas quentes e me virei de costas, mas o Alien
estendeu as mãos e me colocou em seu colo.
— Aaron! — Senti a ereção pressionando a minha bunda.
Ele estava excitado porque cuidei dele?
— Me deixa te beijar… — murmurou, passando as mãos pelo meu
corpo.
Juntei todas as minhas forças para continuar com o sermão.
— Você precisa de um tempo para se recuperar. — Tirei as mãos dele
de mim e me coloquei de pé. — Fica aí. — Percebi que seus olhos
escureceram e engoli em seco. — São quarenta e oito horas para que possa
aplicar gelo, mas vou separar algumas medicações que encontrei na caixa de
primeiros socorros e…
— Para de faltar e me dá logo esse remédio. — Saiu como um
murmúrio e estendi duas opções em pílulas.
— Qual você quer?
— O seu chá, ratinha. A noite toda. — Suas mãos voltaram a me puxar
para o colo e eu estava tão trêmula que não consegui resistir daquela vez.
Ele afundou o rosto no meu pescoço, chupando minha pele. Comecei a
me esfregar em sua ereção.
— Coloca isso. — Ergui a máscara que ele pendurava religiosamente
no cós da calça. — Não quero que seu olho infeccione — sussurrei, e assim o
fez.
Levei os dedos ao zíper e comecei a abri-lo. Aaron segurou minha mão
e terminou o serviço, exibindo as veias saltadas pelos braços, contornando
seus músculos e me fazendo desejar lambê-las.
Quando tirou para fora, assisti ao pau subir devagar e, sem que eu
percebesse, um vão se abriu em meus lábios. Aaron colocou o dedo indicador
entre eles.
— Abra essa boquinha e faça seu trabalho. — Apertou minha língua
com o polegar. — Quero meu pau lubrificado com a sua saliva. — Encarei a
ereção e não sabia como respirar direito.
A máscara que ele usava me deixava ainda mais excitada, senti meus
mamilos endurecendo.
Passei a língua pela extensão, as veias saltadas me deixaram
hipnotizada, estava tão duro quanto me lembrava de que poderia ficar. Lambi
os lábios, assistindo a ele balançar a ponta e passar por minha bochecha,
como se me acariciasse ali, até que ele bateu forte contra minha pele, me
arrancando um gemido.
— Engole o meu pau, ratinha. — Agarrou meu queixo. — Com
vontade. — Tentei morder seu dedo, mas ele tirou antes e me entregou a
visão da ereção pulsando para cima.
Abri a boca devagar, a glande rosada se encaixou direitinho em meus
lábios e segurei a extensão com mais força. Não demorou para que ele me
empurrasse a cabeça, enchendo minha boca.
Subi e desci por conta própria, sentindo a pele macia e quente
preencher até o fundo da minha garganta.
— Chupa. — Aaron apertou meus cabelos e empurrou a pelve contra
meu rosto.
Quando estava perdendo o ar ele puxou para fora, meus lábios o
deixaram escapar como quem perdia o melhor pirulito.
Ele me segurou pelos ombros e me induziu a sentar em seu colo de
novo.
— Agora quero te ver gozando.
Me encaixei nele e desci, fazendo todo aquele volume me preencher
por completo. Ele levantou minha blusa e puxou o sutiã para ter acesso aos
meus seios, que passaram a se acomodar em suas mãos.
— Ah… assim… — Soltou o ar enquanto eu cavalgava em cima dele.
O estofado nos acompanhava estalando levemente.
Estremeci quando passou os braços por minhas costas e me apertou
contra seu peito, me obrigando sentar mais rápido e estapeando a minha
bunda.
Os gemidos contidos pela máscara eram minha perdição, comecei
revirar os olhos com o rosto enterrado em seu ombro. Ele percebeu que já me
faltava ar nos pulmões e se afastou para segurar meu pescoço. Aumentei a
velocidade, sua glande já acertava o ponto perfeito dentro de mim.
— Goza pra mim, hum? — Minha pelve começou a tremer e ele
grunhiu. — Ah… tão gostosa, continua. — Bati com mais força, abrindo os
lábios trêmulos sem emitir som algum, até que saiu.
Tão alto quanto pude gritar de prazer. Minhas pernas o apertaram junto
a mim e liberei tudo.
Seus músculos tonificados se enrijeceram, ele apertou minha cintura e
arrancou a máscara. Seu queixo estava no meu ombro e seus dentes no meu
pescoço, como se pudesse sugar toda a minha energia e potencializar o ato.
Estava conseguindo, porque perdi a noção de tempo e espaço, e sentia como
se cada espasmo fosse um choque elétrico na carne.
Amoleci por cima do corpo dele e senti quando me segurou para deitar
primeiro e fazer com que me deitasse com a cabeça em seu peito. Continuei
com os olhos fechados, sua respiração acariciava meu rosto, acalmando meus
ofegos, fazendo-me adormecer ali.
A noite pareceu ter voado de tão cansados que estávamos, provei isso
por só ter acordado quando ele me ergueu nos braços, pela manhã.
— Aonde vamos? — Foi a única pergunta que consegui raciocinar ao
perceber a claridade.
— Vamos para um banho — respondeu, com a voz rouca.
— Banho? — Um dos meus olhos ainda estava fechado.
— Preparei a banheira. — Passou o nariz pelo meu maxilar. — Está
quente.
Antes que eu respondesse, a campainha tocou. Ficamos ali olhando um
para o outro, até que ele me colocasse no chão.
— Quem é? — ciciei.
Em silêncio, caminhou até a porta e olhou pelo olho mágico, para só
então tocar a maçaneta com a testa franzida.
Ele abriu a porta e a figura de um homem misterioso, dono de uma
presença indescritível, surgiu ao batente.
— Pai? — Quando Aaron fechou a boca, quase me engasguei.
Ele disse “pai”?
— Gostei da cobertura, pirralho. Comprou ou roubou de algum infeliz?
Anos antes
A luz dourada do meu quarto refletia sobre o papel no qual eu escrevia
a sigla mais uma vez.
“CDC”
Significava “Chefe dos chefes”. Era como chamávamos meu pai, o
chefe da máfia.
John já tinha dito muitas vezes que eu não podia expor aquilo, mas
quem iria ver, afinal? Não havia um bundão que não soubesse quem era meu
pai dentro daquela casa, e eu não saía de lá, então não tinha risco de outras
pessoas verem.
Recostei a cabeça no travesseiro, olhando para o teto. Era rotineiro
fazer isso todas as vezes antes de dormir. Aproveitava para pensar sobre o
meu dia também, as aulas — em casa —, os jogos — em casa —, as refeições
que também aconteciam naquela casa, mas em lugares diferentes. Sala de
jantar para o jantar, almoço no saguão bege da minha mãe e café da manhã na
área do jardim, quando a cuidadora estava disposta.
Fazer tudo em casa era um tédio. Por isso, eu queira me tornar um
Homem de Honra o mais rápido possível e poder sair para onde quisesse.
Comprar o que eu quisesse e fazer o que desse na telha também.
Desci da cama, caminhei até minha estante e agarrei a caixa do jogo de
xadrez que havia encontrado nas coisas de Papà e me sentei no chão.
As peças polidas em ébano e marfim tiniam sob influência do reflexo
da luz fraca do meu quarto e, com quatro delas, formei um círculo no chão.
Voltei à caixa, peguei a maior de todas e a posicionei no centro com a sigla.
Cada uma daquelas quatro peças era uma família, e a do meio era meu
pai, Bonanno. O Chefe dos chefes da máfia. Essa era a repartição da
hierarquia ali, e era assim que aprendíamos desde cedo.
Um dia, seria tão poderoso quanto Papà.
Olhei pela janela, era só mais uma noite em que o céu semeava neve lá
fora. Assisti a quando um carro parou no estacionamento e um guarda se
aproximou do motorista, provavelmente para coagi-lo.
— Acelera e derruba ele! — gritei da janela, mesmo sabendo que não
podiam me ouvir. E, se me ouvissem também não adiantaria, o cara era um
frouxo, como dizia John, nunca faria o que nós faríamos.
Mas quando chegasse a minha vez, eles iriam ver só! Todos eles! Papà
dizia que John e eu estávamos sendo treinados para ocupar cadeiras da
hierarquia e, para isso, deveríamos saber de algumas coisas. Essa era uma
delas, não dar mole aos que diziam ser justos, porque justiça nunca existiu.
Chamávamo-nos de porcos. Todos eles. Mas ninguém podia saber,
porque não sabiam quem éramos, tínhamos códigos secretos e um juramento
de silêncio. Era complicado, mas aprendi bem rápido.
A única coisa de que não gostava era que não tínhamos crédito algum,
e ainda não podíamos participar das reuniões com os Homens de Honra. Pelo
menos, eu não. John, quando podia, quase sempre levava um castigo por
quebrar alguma regra.
A mãe vivia sendo assediada por Dimitri, mas Papà nunca acreditava
no meu irmão, e John nunca me deixava contar eu mesmo o que via.
Foi por isso que decidi parar de falar e começar agir. Já tinha um plano
na cabeça e iria derrubar aquele verme, custe o que custar!
Uma batida forte à porta fez com que me levantasse, agarrasse e
erguesse a arma de brinquedo. Apontei para a porta e me esquivei para trás da
cama, em silêncio.
Quase atirei quando John arrombou a porta e me olhou com a cara toda
suja de cinzas.
O que parecia ser uma nebulosa de fumaça passou a tomar o corredor
depressa.
— O que aconteceu, John? — Meus olhos se arregalaram.
— Precisa ficar aqui e se esconder. Vou pegar a mãe. — Tiros
começaram a ser disparados não tão longe de nós.
— O que foi, John? — Voltei a perguntar, impaciente.
— As famílias estão nos atacando, é uma rebelião. Os Salvatore estão
no comando, querem matar Papà.
— O quê? — Meus punhos se cerraram. — Mas não podem fazer isso!
Ele me olhou, sério,e não respondeu nada. Antes que saísse e eu o
seguisse, Dimitri apareceu.
— Seu pai está em fuga. Vou tirar vocês daqui. — Nossa mãe tremia
em seus braços.
— Tira as mãos dela! — vociferei. — Não vamos a lugar algum com
você!
— Cala a boca, pirralho. Vocês dois estão sem ninguém agora. Se não
me seguirem, serão mortos. As famílias adorariam exterminar os herdeiros de
Bonanno.
A mãe tremeu ainda mais, mostrando estar em choque. Era o que as
famílias tinham feito. Aquele rebanho de filhos da puta.
— As famílias têm um vínculo! Não podem fazer isso!
— Você não sabe o que as pessoas são capazes de fazer por poder,
tampinha, então cala a boca! — Foi a vez dele de vociferar.
— Papà me designou para cuidar do meu irmão e da mãe — disse
John.
— Mas eu estou me designando. Vai seguir as minhas ordens, como
Conselheiro do Bonanno, ou morre.
Alguns anos depois
Aaron 16 anos
Mantive os pés no topo da escada que levava à sala principal da mansão
em Manhattan, Nova Iorque. Fugimos para lá, desde que sofremos o atentado
na Itália. Nosso pai havia sumido, e estávamos à mercê de um tirano: Dimitri.
Eu podia ouvir as engrenagens elétricas girando sobre a porcelana do
hall do outro lado da casa. A mãe disse que caiu da escada, por isso estava na
cadeira de rodas, tinha fraturado o fêmur.
Não era verdade. Ela mentiu.
Assim como mentiu sobre ter queimado a mão na cozinha, cortado o
braço sem querer durante um preparo, ou batido a cabeça no box do banheiro.
Eu e John sabíamos que não tinha sido assim. Foi Dimitri, o homem
que a destruía aos poucos, que se aproveitava de sua sensibilidade, da mágoa
gerada pelo abandono de nosso pai.
Dimitri era tudo para ela. Era o ar que respirava, o consolo que
esperava, era o homem no maldito quadro da sala, sorrindo ao lado dela,
prometendo uma vida normal, uma família de verdade.
Mas eu e John também tinha promessas para ele e garantíamos que
aquele inferno estava prestes a acabar. Nós daríamos um fim a ele.
Mataríamos Dimitri. Mesmo que tivéssemos de aturar o ódio de nossa mãe.
Alguns anos depois
Aaron 22 anos
Minha voz reverberava pelo beco escuro. John me encarava da
penumbra, com as veias do pescoço alteradas também.
— Por que fez isso? — vociferei.
— Não tive escolha, tá legal? Os Salvatore nos encontraram!
— Você se juntou à família que liderou a rebelião contra o nosso
sangue! É parceiro dele agora e diz não ter tido escolha? — Ri, nervoso. —
São nossos inimigos, John! Por causa deles estamos aqui!
— E você acha que se tivéssemos ficado na Itália teria sido melhor?
— Acho! É, eu acho, sim. — Passei as mãos pelo rosto. — Nosso pai
está sumido há anos e você sequer honra…
— Não vou honrar nada que venha dele! Nos abandonou!
— Está quebrando o juramento, agindo assim.
— Ele quebrou o dele primeiro quando se esqueceu de nós, sua herança
de sangue. — Virou-se e começou a sair.
— Não acredito que tá sendo tão filho da puta!
— Foi a condição para que não nos matassem. Para que não matasse
você ou aquela mulher.
— Você odeia a mulher que nos gerou, pare de fingir.
— Não quer dizer que quero vê-la morta. — Virei a cara com as mãos
na cintura. — Estou no Brooklin, quando quiser. As portas estarão abertas
para você. — Abriu os braços, dando alguns passos para trás. — Alguma
hora vai se cansar dessa universidade, desses coleguinhas de racha e, quando
acontecer, vai ter seu irmão no burgo vizinho.
Dias atuais
Permaneci parado na porta. A história de toda a minha vida ainda
rodando como um maldito filme, quando ele empurrou a madeira e entrou.
— Por que voltou? — Me coloquei na frente dele. Cara a cara, e não
pude conter a surpresa quanto a sua aparência idêntica, mesmo depois de
tanto tempo. Eram as mesmas linhas de expressões, marcas cravadas na pele,
o mesmo riso que usava como disfarce para sua maldição e os olhos meio
mortos, que diziam ser nossa característica física em comum, contrastados
com os fios de cabelo meio grisalhos.
— Quer que eu diga que senti saudades ou conte a verdade? — Seus
passos ecoaram pelo lugar. A roupa que usava o fazia parecer um recorte da
alta hierarquia colado em um ambiente qualquer.
— Como me encontrou? — Cerrei os dentes enquanto ele observava
tudo ao redor com as mãos nos bolsos do casaco pesado.
— Nunca perdi você de vista. Nenhum de vocês. — Olhou para
Brianna, que parecia um pouco apreensiva, e me juntei a ela sob seu familiar
olhar semicerrado.
— Eu vou direto ao ponto. Estou aqui porque…
— Não tem onde cair morto — completei, impaciente, e a risada dele
reverberou pelo lugar.
— Você adoraria isso, não é?
— Fala de uma vez!
— Salvatore. — Uniu as mãos e me olhou com cautela. — O estorvo
continua se movendo em sua incansável missão de me destruir neste exato
momento, e já tenho tudo de que preciso para acabar de uma vez por todas
com ele e as outras três famílias.
— Então vai. O que tá esperando? — Forcei um riso. — Melhor: por
que veio me contar a boa-nova?
— Talvez porque vocês dois foram as peças de um jogo muito maior do
que imaginam. — Inclinou a cabeça para o lado, como sempre fazia quando
esperava por reações extremas. — Jogo esse que envolve nosso inimigo e
seus dois parceiros: o governador, pai de um de seus colegas, e um delegado,
pai da sua namoradinha — pontuou e a porra toda começou a se encaixar na
minha cabeça.
— O quê? — Brianna estremeceu e colocou as mãos em suas costas.
Ele continuou:
— São a tríade do fracasso. O mafioso, o político e um porco. — Olhou
para mim. — Achei que deveria saber que serviram de distração um para o
outro esse tempo todo.
— Não estou entendendo nada, Aaron… o que está acontecendo? —
Brianna balançou a cabeça. Eu podia ver a confusão instalada ali. Meu pai
riu.
— Estou de bom humor, então vou explicar. — Seus olhos passavam
como um slide de mim a ela. — Fui chefe de cinco famílias mafiosas aqui em
Nova Iorque depois que saí de Itália. Conhecido como o Chefe dos chefes. —
Com essa única frase, senti o corpo dela tremer. — No entanto, numa bela
noite de inverno nos umbrais da grande Albany, meus liderados se uniram
para me tirar do trono. — Contrastou o tom de ironia sobre o fato fatídico. —
Estavam liderados pela família mais hostil entre as quatro…
— Os Salvatore — completei com o maxilar travado e ele me olhou
satisfeito com a percepção do ódio que emanava do meu corpo.
— Consegui me esconder por algum tempo e desfiz todos os meus
laços, o familiar incluso. — Fez uma pausa passando a língua nos dentes. —
Seria melhor assim.. — Suspirou. — No entanto, Salvatore não iria parar, e
mesmo que estivessem bem escondidos, usando outro sobrenome e iniciando
uma vida disfarce do zero, ele os encontrou aqui em Manhattan, meus filhos.
— Seu tom se tornou mais áspero. — John se juntou a ele como vingança a
mim, por guardar uma mágoa incalculável e afirmar aos quatro ventos que os
abandonei. — Olhou para mim e cerrei os dentes. — Ele agiu de má-fé,
desfazendo-se de tudo que aprendeu e abrindo espaço para que a família
inimiga se consolidasse aqui, no lugar que eu comandava.
— E o que meu pai tem a ver com isso? — Brianna perguntou e ele
abriu um sorriso.
— Salvatore precisava formar um time e seu pai aceitou entrar nele. —
Bonanno parecia se divertir com as expressões de surpresa que saíam dela. —
Graças ao governador, Abernathy saiu de Orlando de acordo fechado com o
mafioso. O plano? Ter o maior delegado da América, cheio de credibilidade e
premiações, na minha cola. Risque a tarefa número um: encontrar e prender
Bonanno, o CDC — pontuou. — Depois, ainda com a ajuda da figura política
e alguns subornos ali ou aqui, abrir uma investigação mais aprofundada sobre
mim. Com isso, teriam o passo dois concluído com sucesso. — Estalou um
dos dedos. — Por último, juntar tudo que fiz com algumas muitas acusações
falsas para conseguir um tempo de prisão inestimável e sem margem para
isenções. Xeque-mate! — Estalou a língua. — Um bode expiatório no qual
jogar a culpa de toda e qualquer desgraça que acontece neste lugar. — Uma
vingança bem fraca, não acha? — Enrugou a testa. Brianna parecia estar em
choque.
— Isso não é verdade… meu pai veio com a missão de fazer justiça!
Sempre… justiça. — Bambeou, e eu a segurei.
— E acreditou nele? — O tom da pergunta pareceu carregado de
deboche. — Seu pai já estaria nadando em rios de dinheiro sujo, se não
tivesse saído da linha justo no primeiro dia que colocou os pés neste solo e
matou John, que estava sendo um idiota, como sempre, usando de sua
rebeldia e arrogância ao se colocar na frente dele, sem saber que era só mais
um dos aliados de Salvatore. — Grunhi e ele ergueu as sobrancelhas. — Essa
morte acarretou problemas para eles. — Apontou para mim. — Você. E, para
se livrar, o delegado apenas jogou a filha na mira. Ele sabia que assim teria
um bom tempo para concluir o que de fato veio fazer aqui.
— O quê? — A voz dela ondulou.
— Então era isso… — Apertei os punhos. — Por isso tantas babás,
estavam monitorando uma possível aproximação!
— Tirando o filho do Salvatore, que tentou te matar, sim. Estavam
monitorando. — Ele se desviou de mim e soltou para ela. — E você… —
estalou a língua — seu pai não disse que seria o saco de pancadas dele? Em
que momento achou que entrar naquele lugar, com meu filho, depois de
terem matado John, seria uma boa ideia? Achou mesmo que seu pai só queria
que continuasse a formação acadêmica? — Aproximou-se dela. — Não é tão
burra assim. O que fez você se manter lá?
— Para com isso — falei alto. — Ela só queria uma vida normal!
Ele fechou os olhos e prendeu o riso.
— E eles só queriam uma distração depois da burrada. Colocar um
contra o outro foi uma jogada muito boa, admito, só acho que não contavam
com o fato de que são jovens e…
— Mandei parar! — vociferei e ele riu, encolhendo os cantos dos
olhos.
— Sinto o cheiro de seus hormônios daqui, Aaron, não precisa
disfarçar. — Suspirou, dando alguns passos pelo lugar. — Ainda sobre o
grandioso trabalho do trio, também tenho os documentos, as provas de que
eles estavam juntando evidências contra mim. — Parou. — Algumas são
minhas, admito, mas outras são adulterações e falsificações exorbitantes.
— Não… meu pai não faria algo tão… Não acredito em você — ela
retrucou, tremendo.
— Azar o seu, criança — sussurrou de modo perturbador, como fazia
comigo. Coloquei Brianna atrás de mim e o encarei.
— O que você veio fazer aqui? Pedir ajuda?
— Eu vim oferecer o prêmio. Tenho todos eles na palma da minha
mão, só preciso apertar — disse, convicto. — O delegado pode ser seu
quando quiser. Se me pedir hoje, eu te dou. — Senti Brianna enrijecer sob
minhas mãos.
— O que quer em troca?
— Nada. Só estou te dando algo, já que vamos nos reestabelecer aqui…
— Não vou fazer nada com você. — Me adiantei e assisti à frustração
bater no rosto dele como uma lâmina afiada. — Só se importa com isso? E
quanto ao John? Nem tocou no nome dele direito, fala como se fosse um
estranho.
— Queria que eu estivesse chorando? O quão sentimental essa garota te
deixou? — Enrugou a testa. — John escolheu seu destino, e já que estamos
falando sobre família — aproximou-se —, mandei a vadia que chamava de
mãe para o inferno antes de vir para cá. Fiz o que não tiveram coragem de
fazer.
Fechei os olhos por um breve momento e soltei o ar quente pelas
narinas.
— Também escolhi o meu quando me juntei a eles e aceitei liderar o
Brooklyn — pontuei.
— Foi diferente.
— Não foi. Logo, quebrei suas regras também. — Segurei Brianna e
comecei a tirá-la dali.
— Não tem como fugir, Aaron. É meu único herdeiro agora. Só sairá se
estiver morto.
— Foda-se!
— Não está seguro.
— Tô nem aí
— Ela também não. — Ele sabia. Sabia qual era meu ponto fraco e
tocou nele. — Piora quando ela não acredita em uma palavra do que falei
aqui. — Me entregou um olhar passivo. — Mas você sabe que é verdade.
Acredita no óbvio. — Bastou falar isso para que eu irrompesse pelo lugar,
voltando até ele.
— Está sentindo? Era assim que me sentia quando falávamos sobre
Dimitri e você se fazia de desentendido — vociferei, espumando.
— Não era como se eu não soubesse. — Ergui as sobrancelhas,
perdendo a expressão.
— Sabia o que estava acontecendo e fingia não acreditar?
— Eu estava esperando o momento certo para dar o fim merecido aos
dois. E, sim, fingia não acreditar, porque era John quem me contava. —
Cruzou os braços. — Eu estava esperando o dia em que você faria isso. Seria
o dia que estaria pronto. Quando tivesse coragem e não ficasse mais na
sombra de Jonathan. — Inclinou a cabeça mais para frente. — Veja só, você
conseguiu a façanha só depois da morte dele.
Cerrei os punhos, minha veias dobravam com a pressão sanguínea.
— Vê o que sempre nos fez passar? O quão infeliz era para fazer isso?
— Fiz para o seu bem.
— Quem fez algo para o meu bem foi meu irmão! John se uniu aos
Salvatore quando ele chegou aqui. Fez isso para que me poupassem.
— Ele continuava te colocando na sombra dele. Isso não é para o bem
— insistiu e fechei os olhos com força.
— O que quer de mim?
— A pergunta correta seria: o que vim buscar de você. Eu digo: você,
meu herdeiro.
— Herdeiro de um rei sem reino?
— Meu reino está muito bem construído na Arábia, lugar onde passei
os últimos anos. — Rangeu os dentes. — Um ano refugiado, três tentando
acordos e dois me consolidando. — Sua expressão voltou a uma seriedade
mórbida. — Demorei, mas estou aqui agora. — Olhei nos olhos.
— Preferiria que estivesse morto, Bonanno.
Alguns dias depois
O alojamento parecia vazio naquela noite e, enquanto olhava para o
meu celular, me via perdendo mais umas horas de sono.
Meu pai permanecia em silêncio enquanto as perguntas fervilhavam em
minha cabeça, eu digitava cada uma delas no celular, na aba de conversa, mas
minha urgência contrastava com o vazio de respostas.
O que Bonanno falou tinha uma verossimilhança incontestável, eu
admitia, mas não queria acreditar, mesmo sabendo quem Magnus Abernathy
era. Meu pai seria esse monstro? Não hesitaria em usar a desculpa de
procurar pela mãe, para manipular a situação a seu favor?
Mas e aquela conversa com o antigo delegado Jamar? A coisa toda
sobre ele “ser o pioneiro, o escolhido para começar a grande limpeza em
Nova Iorque”, a “operação” a sua “posição quanto a ela”.
Era uma atuação calculada ou o delegado Jamar estava genuinamente
enganado como eu?
O dilema me queimava por dentro.
E se a operação realmente não passasse de um ato criminoso? O de se
unir a um mafioso para prender outro e usufruir disso? E se o pai de Aaron
estivesse certo?
Suspirei.
Sendo sincera, no fim, eu já não ligava se meu pai morreria ou vivia. A
única coisa que me importava no momento era minha mãe e o tempo que
perdi caso Magnus Abernathy tivesse de fato me enganado.
Me sentei na cama do quarto perplexa.
Pensar que as promessas dele eram meras artimanhas e que sua sujeira
transcendia não apenas a figura paterna, mas também a de autoridade, me
provocava náuseas, uma sensação de traição, repulsa.
Pisquei algumas vezes, sentindo uma aproximação. Meg, sempre tão
atenta, entrou no quarto com uma leveza que contrastava com a tempestade
rugindo dentro de mim.
Seus olhos buscaram os meus e, antes que pudesse evitar, as palavras
ácidas escaparam dos meus lábios.
— Eu não quero conversar. Muito menos responder às suas perguntas.
— Meg arqueou as sobrancelhas, claramente surpresa com minha explosão.
A atmosfera pesou, mas minha irritação não permitiria que eu explicasse.
— O que você tem?
— Não é da sua conta. — Minha resposta soou mais dura do que eu
pretendia.
Vesti minha armadura invisível de indiferença e saí do alojamento,
deixando para trás as perguntas não feitas de Meg e a sombra do meu pai,
agora comprometido com as trevas que jurou combater.
O mundo ao meu redor parecia ser uma extensão da minha raiva, e eu
precisava encontrar uma válvula de escape, antes que tudo desmoronasse.
Meu coração apontou em direção à mão que agarrou meu braço, assim
que saí no corredor.
Era o Alien.
— Quer vir comigo? — Os olhos escuros permearam os meus.
— Pra qualquer lugar.
Entramos na casa onde ele morava com a mãe. Era uma mansão
enorme, com móveis antigos que contavam histórias de uma época passada.
Os fios de cristais dos lustres pesados dançavam suavemente com a brisa que
entrava pelas janelas, enquanto o eco dos nossos passos preenchia os
corredores majestosos.
Aaron me contou toda a história de sua família. Algo tão trágico quanto
o desdobramento da minha, até o momento. Fatos que esclareceram muito do
porquê de ele ser como era enquanto caminhávamos pelos cômodos. Cada
objeto, textura e móvel parecia transferir suas emoções, afirmar a história.
Mas o mais curioso ainda era o fato dele não demonstrar tristeza ou
desejo de vingança perante a morte da mãe. Talvez eu nunca soubesse se era
por tanto a odiar e já não se importar mais, ou por ter os mandamentos da
máfia tão enraizados à carne, que se deixava convencer por eles.
Observei o quadro da sala, queimando na lareira. Aaron disse que a
mãe não os permitia que tocassem. Era seu refúgio depois de ter perdido o
segundo marido e afundado em um mar de amargura e solidão mais uma vez.
A cadeira de rodas dela ainda estava no canto da sala, vazia. Ele a
encarava de pé, perto da lareira com a expressão dura como pedra. Caminhei
até lá e o abracei por trás.
— Você está bem?
— Não sinto nada. — Olhou em meus olhos. — Nada. — Sua mão se
ergueu e agarrou alguns papéis sobre a mesa. Ele havia empilhado muita
coisa ali e, provavelmente, queimaria tudo.
Meus olhos caíram sobre algumas pastas e tomei a liberdade de as
abrir. Eram desenhos, e em muitos deles havia rascunhos de corpos celestes.
— Aaron… — sussurrei. — São lindos! — Ele olhou de sobressalto e
voltou a atirar coisas no fogo.
— Pegue pra você.
— São seus?
— Eram da mulher — falou, referindo-se à mãe, e continuei
explorando os fichários, reconhecendo aquele traço.
— Quando era sã, ela costumava passar as horas livres nisso — falou e
fez uma fileira de faíscas voaram quando atirou uma caneta na lareira. —
Gostava de se iludir, representar nossas vidas com desenhos, contar histórias.
Ela dedicava tudo a Bonanno. — Riu. — E, depois que recebeu um pé na
bunda, nunca mais tocou em uma caneta. Nem mesmo por Dimitri, o verme
que dizia ser tudo pra ela.
Precisei segurar o queixo para que não caísse.
Deus! O diário era dela! A história no diário. O romance entre o
obscuro e a estrela. Era sobre sua história com o pai de Aaron…
Ele lia… Aaron lia! Foi assim que o peguei.
E ali eu tinha uma bela prova de que, sim, ele se importava. Pelo
menos, com a primeira versão de sua mãe. A que desenhava e contava
histórias.
— E você gostava das histórias dela? — Deixei escapar.
— Por que a pergunta? — Ergueu a sobrancelha e fiquei muda por
alguns segundos.
— Curiosidade…
— Não. — Puxou mais folhas na mesa e ateou ao fogo. Suas mãos
bateram uma na outra e ele me segurou pelo braço, me guiando pela grande
escada de madeira.
— Aonde vamos? — ciciei, subindo logo atrás dele.
— Vai gostar.
Foi a única coisa que me disse, antes de fazermos o percurso às cegas
pelo corredor apagado do andar de cima e entrarmos em uma sala escura. Não
precisou ao menos acender as luzes, porque o teto era todo em vidro e as
estrelas nos entregavam um verdadeiro show.
Senti os olhos se encherem com aquele brilho.
— Por que não me trouxe aqui antes? — Sorri sem parar diante da
cena.
— Seu fascínio com aqueles desenhos que me lembrou. — Sentou-se e
o segui. — John ficava aqui quando chegamos à casa, mas desistiu do lugar
por conta dos pássaros. — Pouco a pouco, nos deitamos lado a lado.
O que tinham os pássaros?
— Não deixavam ele dormir. E aquele puto não viveria sem as suas
duas horas de sono, com certeza. — Rimos, antes do silêncio reinar no lugar.
Ficamos ali, apreciando a vista repleta de pontinhos brilhantes por
tempo suficiente para dormir, se quiséssemos.
Alguns minutos depois, notificações fizeram nossos telefones vibrarem.
Erguemo-nos ao mesmo tempo e, quando menos esperei, sua voz rompeu o
silêncio do momento.
— Brandon brigou com um novato e está pedindo minha ajuda para
esconder um corpo. — Parecia estar lendo as mensagens. — E Ryus me
encaminhou dois áudios com uma frase que entrega muito uma briga com a
ruiva.
— O que diz a mensagem?
— “Ela me odeia”. — Ri alto e ele continuou: — Tom está com
problemas no Brooklyn e alguns caras estão planejando parar a rodovia de
novo. — Rolou a tela, mais mil e uma mensagens surgindo. — E você?
Ergui o meu, me livrando da sensação inumana de raiva, quando vi a
aba invisível sem sequer uma resposta.
— Mavila, a melhor amiga com quem não falo há semanas, acabou de
me mandar fotos de opções de roupas, perguntando qual usar para ir ao
cinema.
— Não vai responder? — perguntou com um tom um tanto quanto
divertido.
— Ela já respondeu, se passando por mim. — Estendi o celular e
mostrei a encenação da gata, foi a vez de ele rir. — E Meg… — Trouxe o
telefone ao meu rosto de novo. — Perguntando onde me enfiei e se preciso de
ajuda.
— Ela deve achar que estou te torturando em algum lugar por aí. —
Olhei para ele, a pouca iluminação das estrelas refletindo em seus olhos.
— Dependendo do tipo de tortura, eu aceitaria sem problemas. — Pude
ver, pela penumbra, aquele sorriso psicopata junto aos olhos semicerrados.
Ele me puxou para perto.
— Ah, é? — Seus dedos apertaram meu couro cabeludo. — Você se
esquece muito rápido de que sou maluco — sussurrou a centímetros da minha
boca.
— Se estou aqui é porque também sou, então estamos quites —
devolvi, encostando os lábios nos dele até que estivéssemos em uma troca de
beijos lentos.
Para se afastar, ele puxou meu lábio inferior com o dente e suspirei.
Adorava quando fazia aquilo.
— Algum dia imaginou que chegaríamos a esse ponto? — A pausa que
deu nos fez ouvir o barulho abafado da cidade nos rodeando. — Eu e você,
tão distintos, inimigos de sangue… — completou.
— Acha que é impossível?
— Na verdade, não sei como aconteceu, nem o porquê — respondeu,
olhando para cima, e suspirei.
Era como se tivesse perdido o sentido, e foi o que aconteceu. Não tinha
para que me perseguir, não existia lógica usar meu sangue pendurado ao
pescoço, me marcar como sua propriedade.
O pai dele deixou claro que, quando quisesse, podia amassar o meu
com as próprias mãos. Aaron já tinha tudo, não precisava me manter por
perto.
Dali em diante, tudo que ele fizesse seria reflexo do que sentia de
verdade.
— E agora? — perguntei, e ficou em silêncio. — O que nós somos?
Malucos? Delinquentes? — Comecei a citar. — Pessoas amargas que não se
importam com mais nada? Apenas universitários? Dois jovens com
problemas de família? Ficantes? — Olhei para a boca dele e desviei quando o
vi virar o rosto.
— Agora, nós temos assuntos mais importantes para resolver. — Sua
voz rouca terminou de cortar o clima.
— Claro. — Pisquei algumas vezes, olhando para cima. Eu estava
chateada? — Quem você acha que está pior? — Comecei a me levantar. —
Você, com seu pai mafioso ressurgindo dos mortos e matando sua mãe, ou
eu, enganada e feita de escudo pelo meu próprio pai? — Bati as mãos na
roupa e caminhei até a porta.
— Aonde está indo? — Sua voz soou distante.
— Ao banheiro.
Desci as escadas e entrei no banheiro, depois de uma bela caminhada
pelo lugar. O percurso deveria ter me livrado daquela sensação de frustração,
mas não aconteceu.
Dei de cara com um recanto luxuoso. A banheira de hidromassagem,
adornada com detalhes em ouro, aguardava como um convite tentador.
Encarei o espelho amplo que refletia o ambiente alvo e a tensão que se
desenhava nos traços do meu rosto.
Abri a torneira e joguei um pouco de água fria na cara. Não era possível
que eu estivesse mal quando deveria estar feliz por me ver livre de Aaron.
Tentei a todo custo jogar a culpa daquela tristeza no fato de que ele mataria
meu pai, mas, para ser sincera, não era aquilo que me deixava triste. O que
fazia isso era a droga da certeza de que Aaron se afastaria de mim.
Isso tomava uma dimensão tão grande na minha cabeça quando, como
ele mesmo disse, tínhamos problemas maiores. Eu tinha problemas maiores.
Fechei os olhos e inspirei fundo. Ficaria ali até me acalmar e então iria
embora.
No entanto, sem que eu esperasse, o celular vibrou no bolso. Daquela
vez, de forma contínua, indicando uma chamada.
Tateei com as mãos úmidas e o rosto pingando para ver o nome dele
piscando na tela. Meu pai.
Um nó se formou em minha garganta e hesitei antes de atender.
— Alô? — Minha voz denunciava a tensão, mas a dele? Eu nunca tinha
visto tão nervoso.
— Brianna, estão atrás de nós!
— Quem?
— Bonanno. — Suspirou. — Eu…
— Então é verdade? — Minha cabeça ferveu. — Você se juntou a
criminosos para derrubar outro criminoso?
— Brianna, agora não é hora.
— E quando é hora? Fez um acordo com um mafioso e me deixou aqui,
para servir de saco de pancadas enquanto tentava incriminar o pai do Aaron
para ele! Essa é sua operação de justiça?
— O pai desse verme é só o maior dos criminosos da história de Nova
Iorque! — gritou.
— Isso não justifica ter me enganado, ter mentido pra mim, pisado no
que tanto pregou! — vociferei e ele soltou o ar, tenso.
— Preste atenção: quando falei “nós”, não estava me referindo ao
governador ou… — fez uma pausa — ao mafioso.
— Que se fodam você e seja lá quem for!
— Sua mãe. — Parei. — Sou eu e sua mãe. Eu a encontrei, estamos
correndo perigo.
— O quê… — Meus olhos começaram a arder.
— O filho de Bonanno. Foque nele! — Adiantou-se, me passando seus
planos. — O mafioso quer ganhar a confiança do filho e vai dar o que ele
pedir. — Fez uma pausa. — Você sabe que ele quer minha cabeça, mas,
comigo, vai levar sua mãe.
— Pai.. se você estiver mentindo…
— Não estou mentindo, ouça. — Uma voz feminina distante foi o
suficiente para que eu desmoronasse.
— O que ela falou? Quem mais está aí.
— Estamos em um lugar público, nos escondendo.
— Me deixa falar com ela. — O desespero me tomava como um corpo
d'água. — Pai, passa para ela…
— Agora não, Brianna!
— Pai… — Enxuguei as lágrimas.
— Quanto mais tempo perder, menos temos chance.
— Mas…
— Faça Aaron se esquecer da minha cabeça por um tempo, eu suplico.
E prometo, mando te buscarem aí assim que estivermos em um lugar seguro.
— Deligou.
Minhas tentativas de retorno não funcionavam e concluí que ele usava
um telefone descartável.
Encostei na parede e fiquei ali, tentando assimilar o que tinha acabado
de acontecer. O choque não me deixava feliz nem triste, mas estranha, em
conflito, totalmente perdida.
Como eu iria fazer aquilo?
— Achei que tivesse se perdido. — Aaron surgiu no lugar como um
fantasma. Diante de um soluço ele se aproximou de mim e ergueu meu rosto
com o dedo indicador. — O que foi? — Fiquei muda, coração doendo, falta
de ar. — Brianna! O que você tem? — Suas mãos me sacudiram.
— Eu só… estava pensando… — Voz embargada. Sentia meus olhos
estáticos, apenas derramando lágrimas sem parar.
— Pensando no quê? — As pupilas dele começaram a se agitar.
— Em como te contar… — Apertei os olhos e abaixei a cabeça. —
Perseguir e matar o meu pai, com a ajuda do seu, não vai vingar a morte de
John.
— Por quê? — O sussurro rouco me fez arrepiar.
— Porque… meu pai é inocente. — Olhei nos olhos dele. — Eu matei
seu irmão naquela noite.
Aaron pareceu crescer diante de mim, como uma sombra escura saindo
de seus quase dois metros para algo exorbitante. As pupilas seguiram a
mesma linha, tomando toda a extensão da íris, tornando seus olhos
devastadores como a noite.
— O que você disse? — A interrogação fez meu coração acelerar. Ele
me empurrou contra a parede. — Perguntei o que disse.
Funguei, virando o rosto, mas ele apertou minha bochecha com força e
me fez voltar.
— Sinto muito… — Meus olhos embaçaram em meio ao choro e os
dele se fecharam com força. Seu corpo balançava, como se não conseguisse
comportar a raiva ali dentro, uma veia saltou na testa e ele mordeu o lábio
inferior como se pudesse arrancar um pedaço e, no fim, soltou uma
gargalhada.
O som reverberou na minha alma e voltou distribuindo arrepios pela
pele. Cada célula, cada átomo, sentiu.
— Sai… — sussurrou e apontou para a porta. Em resposta, me encolhi.
— Sai! — A curva em seus lábios desapareceu e a voz se tornou um
verdadeiro trovão.
Era ficar e morrer, correr e morrer; eu não tinha opções, mas estava
disposta a tentar salvar minha vida.
Passei feito um raio pela porta, sentindo a cabeça pesar, arder, como se
fosse explodir por tanto prender o choro.
Olhando para trás de forma frenética, vi quando ele pisou fora do
banheiro, imponente e imbatível puxou a máscara pendurada no cós da calça
para encaixar no rosto. O barulho das chaves do carro balançando a cada
passo que dava na minha direção parecia golpear meus ouvidos durante a
corrida até a porta.
Quando finalmente estava do lado de fora, acenei para um táxi e me
joguei lá dentro, a tempo de não o ver sair. Só quando o motorista deu
partida, olhei para trás e lá estava.
Sem camisa, com o colar no pescoço, as veias saltadas nos braços,
respiração ofegante, os cabelos escuros ao vento, e a máscara.
Seu tronco torceu para frente e, com as unhas, cavou pedregulhos no
chão. Agarrando duas grandes pedras que ficavam salteadas no chão, voltou a
se erguer e meu coração ameaçou parar.
— O senhor poderia, pelo amor de Deus, acelerar? — Não faço ideia de
como não gaguejei, mas o homem me olhou pelo espelho do carro e
simplesmente ignorou meu pedido.
Para se arrepender segundos depois quando, com dois estrondos, o
vidro virou mil e um quadradinhos contidos pelo plástico antiestilhaço. Me vi
encolhida enquanto o pneu derrapava e ele voltava a si, aumentando a
velocidade de uma vez.
Não me levantei. Não ousei olhar pelo vidro, porque não precisava de
mais provas.
Ali, soube que o Alien tinha voltado, eu o trouxe de volta. E, daquela
vez, não sabia se conseguiria escapar de sua fúria e de ter o coração
dilacerado, porque…
Dali em diante, tudo que ele fizesse seria reflexo do que sentia de
verdade.
E ele exalava o desejo de me matar.
Minhas pernas ainda sentiam o balanço do táxi e meu coração não
parou de palpitar, mesmo depois de já estar um tempo em terra firme e longe
de pedras no vidro.
Os sons do ambiente do alojamento da irmandade estavam lá, como em
todos os outros dias, e a pior parte disso era que já não passavam aquela
sensação de “estar no meu quarto”, mas de desespero. Tudo me fazia ter um
espasmo de susto. Conversas no fundo, camas sendo arrastadas no quarto ao
lado, o som das líderes de torcida ensaiando não tão distante dali.
Era como se eu estivesse ficando louca, paranoica. E como se não
bastasse, me obrigava a prestar atenção nas vozes trêmulas das minhas
amigas, as mesmas que também ameaçavam me matar depois de descobrirem
pelo que passei nos últimos dias até ali.
Contei tudo em um ato de desespero, por não querer enfrentar aquela
merda toda sozinha.
— Você ficou maluca, caralho?
As vozes de Meg, no quarto comigo, e Mavi, em uma chamada de
vídeo, reverberam em uníssono, como se tivessem ensaiado.
— não tive escolha! — gritei com elas também. — Aaron tem meu pai
nas mãos agora! Se ele fosse atrás dele, tudo estaria perdido.
— Quem garante que o seu pai está falando a verdade? — Meg tremia,
andando de um lado a outro pelo piso do lugar.
Inspirei fundo, me agarrando à prova que ele me deu naquela chamada:
a voz feminina murmurando algo baixo no fundo.
— ouvi uma voz… parecia ser dela. — Me expliquei sob o olhar
impaciente de Mavi do outro lado da tela do meu celular. — Não pude
arriscar, o destino dos dois estava nas minhas mãos.
Diante das minhas palavras, Mavila se sentou no chão de seu quarto em
Orlando, fazendo sua imagem, já trêmula, se distorcer com o movimento, seu
suspiro atravessou o alto-falante como um desabafo.
— Você precisa sair daí agora — falou, a voz sendo cortada pela
conexão instável.
Meg, que completava a vigésima volta no quarto, ergueu a voz.
— Não consigo dirigir, precisamos chamar um táxi.
Fechei os olhos e inspirei fundo. Se eu não tivesse pedido ajuda, com
certeza, já teria chegado a uma solução.
— Preciso pensar — pontuei. — Pensar no que fazer.
— E você acha que tem tempo pra isso? — perguntou Meg, e Mavi
citou as horas.
— São nove e meia, temos que ter um plano formado até às dez.
Minha cabeça latejou quando as vi cronometrando os passos. Suspirei
de exaustão e ansiedade.
— Meninas, calma! Ele não vai entrar aqui e decepar o meu pescoço!
— Falei o mais alto que podia para cobrir suas vozes, mas o grito que deram
sem seguida foi insuperável.
— IMAGINA… ele não é NEM um pouco DESEQUILIBRADO.
— Não é. Quando ele não quer ser… — Mordi o lábio.
— Brianna, chega. Você vai dar um jeito de sair daí e voltar pra cá —
Mavila falou, sua voz saindo mais robotizada que uma assistente de software.
— Para Orlando? — Senti as sobrancelhas se enrugando.
— Sim. Hoje mesmo, já estou abrindo o site, vou comprar passagens.
— Percebi o balanço da câmera de novo, ela estava com seu notebook.
— Passagens? — questionei e Meg deu sinal de vida daquela vez,
estática, olhando pela brecha da cortina na janela.
— Mas é claro! A outra é pra mim! Eu que não fico aqui. Pra ele me
esfolar viva até eu dizer onde você se escondeu? — Balançou o dedo
indicador. — Não, senhora.
— Tudo bem, mas… quanto tempo pro voo mais próximo sair, Mavi?
— Olhei para tela, atenta.
Seus olhos apreensivos me deixavam nervosa.
— Eu estou procurando o mais próximo e rápido possível, mas… pode
demorar.
— Você pode ir me mandando mensagens e… — Antes que eu
continuasse, ergueu a mão.
— Espera! — Parei. — Tem certeza de que não dá pra ir à polícia? Ou
ligar?
— Aaron daria um jeito e, no fim, seria pior. Acredite em mim. O
melhor a se fazer agora é controlar a situação, ou morrer tentando. — Ri,
nervosa, e ela abaixou os olhos. — Não quer desligar? — perguntei,
percebendo que hesitava em encerrar a chamada.
— Se cuida, Brianna, e pelo amor de Deus, não faça loucura. — A voz
reverberou um pouco mais baixa. — Vou conseguir as pesagens e já te ligo
de volta.
— Tudo bem, mas quando você… — A imagem dela sumiu.
As luzes se apagaram de uma só vez junto ao barulho parecido com o
de um gerador sendo desligado.
Me virei para a janela, os pavilhões do campus permearam na
escuridão.
Vozes desesperadas das universitárias passaram a ressoar pelo
alojamento e eu fiquei ali, com a tela do celular como única fonte de luz e
com uma única certeza na cabeça: fodeu.
— Meg? — sussurrei seu nome e segui até ela com o celular. Não
estava na janela, mas no chão.
— Tô bem, foi só uma tontura.
Me coloquei de pé e segui até a minha gaveta, na parte de baixo. Peguei
a arma e a chave, amarrei-os com um elástico de cabelo e os coloquei na
cintura.
— Eu não sei…
— É algum tipo de simpatia? — perguntou.
— São as coisas importantes que, se eu precisar correr só com a roupa
do corpo, precisam estar comigo.
— Ah… legal, e você vai sobreviver com uma xuxinha, uma arma e
uma chave.
— Shh! Meg! — Um movimento estranho passou pelos corredores,
parecia ser garotas cochichando, ouvimos todas entrarem em seus quartos e
trancarem as portas. Olhando pela janela, nada de anormal, além do apagão,
acontecia no campus e minha cabeça começou a girar.
— Que merda ele tá planejando? — Soltei um grunhido. Megan parecia
estar zonza.
— Eu não sei… — Seu telefone tocou.
— Você tem internet?
— Dados móveis.
— E não fala? Estou sem recarga, precisamos falar com Mavi! Dá isso
pra cá. — Quando me aproximei, ela arregalou os olhos.
— Quer falar com Mavi ou descobrir o que o Alien vai fazer? Porque
isso aqui rolando nos grupos, com certeza vem dele.
Peguei o telefone de sua mão e a notificação da mesma mensagem, em
vários grupos, me golpeou.
“Galáxia apagada e um único aviso: não se aproximem do horizonte de
eventos se não quiserem morrer”.
Engoli em seco, a sensação era devastadora. Ler aquilo me fez perceber
que ele pensou meticulosamente em como me aterrorizar. No entanto, alguma
coisa batia em uma parte do meu cérebro, forçando um neurônio a se acender.
Reli a mensagem mais uma vez, e outra. Quando Megan pegou o
telefone de volta, me lembrei.
— Horizonte de eventos? — A palavra ressoou por meus lábios.
— Horizonte de eventos — ela confirmou, me olhando.
— Horizonte de eventos? — Meus olhos arregalaram.
— É?! — Meg ergueu uma sobrancelha.
— Horizonte de eventos! — confirmei, erguendo o dedo indicador.
— Tá legal, tá ficando louca? Sentindo a presença dele? O que é? —
Enquanto ela fazia perguntas, corri para minha estante e joguei todos os
livros no chão, me atirando junto a eles e procurando por um em especial
com a lanterna do celular.
Meg ergueu o dela lentamente, me encarando como se eu fosse louca.
— Tá me deixando com medo, Brianna.
— Acho que sei o que ele está fazendo! — Sentia o coração acelerado,
sensações mesclando, um horror.
— Ele quem? Aaron?
— A última estrela e o seu devorador. — Citei o título. — No diário,
ou livro, carne como quiser, a história se passa no horizonte de eventos do
buraco negro.
— Ih, ela pirou…
Achei o bendito, segui de joelhos até a cama e o abri.
— Primeiro evento. — O trecho brilhou sob meus olhos.
O principal ato: “ Uma amostra da estrela”.
“Nós sempre soltamos um pouco de pó brilhante, e parecia que isso o
atraía em nossa direção. Era como se fôssemos dele no momento que tinha
um pedaço de nós. Mas comigo? Ele foi gentil. Me deixou inteira, porque,
para ele, eu não poderia ser tocada nem mesmo por suas mãos”.
E o que significa?
Um romance entre uma estrela e um buraco negro. Antes de destruir,
ele pegava um pedaço delas para seguir seu rastro, mas foi diferente com ela.
— Ah, pronto! — Suspirou e eu balancei a cabeça.
— Aaron tirou meu sangue e manteve consigo no primeiro dia de aula.
— Faz sentido. — Ela se aproximou e se sentou na cama comigo. s
pode ser só uma coincidência. Acha mesmo que ele leria isso?
Me virei para o livro.
— Segundo evento…
“Sua escuridão fazia correntes elétricas girarem ao meu redor, seus
impulsos me faziam flutuar, girar em meu próprio eixo”.
— Ele fez… o contrário também, a corrente de energia foi, na verdade,
de terror…
— Ele usou carros. Foi o trote na frente da universidade — falou, um
pouco mais convencida.
— Terceiro evento…
“Foi assim que, no fim de um passeio, fiquei presa em meio à
escuridão, mas sem amarras, brilhando. Ele mantinha minha luminosidade
acesa. Viva”.
— Aqui, ele…
— Ele te manteve em cárcere, garota! Passando fome e sede. — Olhei
para ela, minha respiração pesada. — Parece que faz tudo ao contrário do que
tá aí. — Passei a folha.
Quarto, quinto, sexto… todos os atos batiam com uma ação e todas
eram contrárias ao romance, ultrapassavam o horror. Parei em mais uma,
depois de ter perdido as contas.
“O devorador contrariava sua natureza e me acariciava o pescoço”
— Ele te enforcou? — A voz surpresa de Meg me fez esquentar.
— Ok, vamos saltar essas… — Comecei pular algumas páginas. —
Essa foi no racha, quando cuidei dele…. — E fui identificando enquanto ela
me olhava de soslaio.
Até que as páginas ficaram em branco. Olhamos uma para a outra
enquanto eu continuava folheando. Um aviso do autor, como se fosse uma
anotação, surgiu:
— Aqui, nós entramos no segundo ato, mas diz que ele só tem uma
página.
— Por quê?
— Não sei… — Levantei a folha, para ver o que viria, e engoli em seco
com os olhos fixos ali.
— O que vem depois? — Meg soava impaciente. — Fala!
Virei a página de uma vez, no último capítulo. A folha havia sido
rasgada.
— Eu não sei…
Ficamos ali. Olhando para o rasgo até que alguma coisa bateu na porta.
Um som oco, sem muita evidência, mas que nos fez ficar em alerta.
Megan começou hiperventilar e se encolheu perto da parede.
— Meu Deus, de novo não… — suplicou, como se revivesse o
momento em que ele arrombou a porta do quarto antigo.
Daquela vez, no entanto, não senti a mesma sensação do que o outro
dia. Conseguia ser pior.
Silêncio.
Ele nos deu o familiar silêncio.
O tempo que o predador usa para sentir o medo da presa na ponta da
língua, fazer valer, tornar mais divertido.
Uma sombra se moveu lá fora, vinha de uma lanterna.
Abri um pouco os lábios, tentando respirar sem fazer barulho, manter a
calma enquanto averiguava a altura da janela. Era uma boa opção já que eu
não tinha muitas.
Virei a cabeça na direção da porta de novo, quando o primeiro baque
alto a acertou. O celular quase caiu da minha mão, mas o mantive ali,
iluminando.
Outro baque e farpas de madeira voaram pelo quarto. Comecei a
tremer, o ar faltava aos pulmões.
Na terceira investida, a ponta curva e metálica, do que parecia ser um
machado, atravessou a porta.
Coloquei a mão na boca, me impedindo de gritar e apertei os olhos, me
abaixando devagar perto da cama. Quando um rasgo grande o suficiente para
uma criança passar se formou, ergui a lanterna do flash.
Mãos trêmulas, suor pingando na testa. A luz fraca do meu celular
bateu no que restou da porta e eu vi.
Anunciando um final não tão feliz quanto pensei.
Destruindo as minhas esperanças.
Apagando tudo ao meu redor.
O abdômen trincado reluzia, suado. No cós da calça, a máscara e uma
arma. Seu punho apertava o cabo do instrumento com força e eu ouvia seu
ofego àquela distância.
Ele começou a agachar devagar, o pingente aparecendo primeiro,
balançando, com meu sangue intacto, vermelho como carmesim. Depois,
apareceu o queixo desenhado e a boca, quando seu rosto surgiu na brecha, um
formigamento subiu por todo o meu corpo diante daquela seriedade.
Era mórbido, fora do comum, tornava tudo imprevisível.
Sua mão bateu forte contra a madeira e ele me encarou com as pupilas
completamente escuras.
— Parece que encontrei uma ratinha.
Existia um botão na minha cabeça.
Uma merda que tinha o poder de deixar a mente em branco e colocar a
raiva no comando. O motivo de me chamarem daquele apelido idiota, de
temerem a mim. O motivo de fazer o que eu fazia sem remorso, o
responsável por não haver delimitações em meus impulsos.
Eu o estava usando agora, apertando com tanta força que já não sentia
minha humanidade. Tudo para chegar a um fim, cumprir uma tarefa.
Coloquei a mão pelo rombo que fiz na porta, atravessando as pontas
afiadas dos restos da madeira oca. Eu podia sentir a frieza do metal do trinco,
agarrei e rasguei aquela merda, deixando cair lá dentro. O tinido ecoou pelo
espaço como um anúncio de que eu estava entrando.
Empurrei o que sobrou da estrutura e dei um passo para dentro. A luz
da lua entrando pela janela era suficiente para que meus olhos se ajustassem à
penumbra enquanto buscavam por ela. O silêncio era ensurdecedor, e o único
som perceptível vinha do uivo dos ventos.
Lá estava ela. A silhueta esguia se ergueu e, à medida que me
aproximei, deu alguns passos para trás até encostar na parede.
Eu não via seu rosto nitidamente, a escuridão nos engolia, mas os
traços já estavam cravados em minhas pupilas. Era como se sua silhueta me
mostrasse cada microexpressão e, com certeza, ela também via as minhas.
— Parece que brinca comigo. Ama brincar comigo. — Deixei sair
como um grunhido. — Mente e não foge, não faz jus à rata que é. — Bati o
machado no chão e vi quando estremeceu. — Assina a sentença de morte e
aguarda que ela vá até você. — Mais um passo na direção dela e a vi tocar
em algo na cintura. — Eu não ousaria se fosse você. — Cheguei mais perto e
estendi o braço, tocando na parede atrás dela. Podia sentir sua respiração
alcançar minha pele de tão intensa. — É melhor aceitar e vir comigo. Vou
fazer você sentir o que é dor — sussurrei. — Dor de verdade.
Fechei a boca e ela passou por baixo do meu braço, quando me virei,
tentou me acertar. Segurei seu punho e parei a tentativa de me dar um soco.
Induzi seu corpo de volta à parede e segurei a cabeça dela com as duas mãos.
A minha foi para trás e voltou acertando sua testa, dando um fim àquela luta.
Meus olhos caíram sobre os dela e assisti a eles revirarem, pálpebras se
fechando lentamente, perdendo os sentimentos. Eu a fiz apagar.
Eu a apaguei, mas ainda mantinha a mão em sua nuca, como calço.
Eu a apaguei, mas amparei sua cabeça antes da queda, colando nossas
testas.
Eu a apagueiar, mas permaneci ali, sentindo a respiração desacelerar e
ficar estável.
Precisava apertar um pouco mais o botão. Aquilo era uma maldita
fraqueza. Assim que o fiz, como uma corrente rompida, me desvencilhei de
sua testa, sentindo sua cabeça cair para o lado e pousar no meu ombro.
Ergui-a, colocando seu corpo inconsciente sobre meus ombros, e o peso
dela se fez sentir. Segurei as pernas contra o meu peito e na outra mão,
mantive firme o machado.
Quando girei, percebi, em um dos cantos do lugar, Megan observando
tudo, tal como uma criança acuada com medo de ser a próxima.
— É melhor sumir daqui enquanto tem chance. — Foi a única coisa
que deixei escapar antes de passar para fora.
A escuridão do corredor da irmandade era profunda, mas meus olhos já
se acostumavam a ela. Era como trilhar por meu habitat natural.
Relaxei o braço que levava o machado e o arrastei pelo trajeto,
deixando a porcelana marcada. À medida que nos movíamos em direção à
saída, a luz fraca lá fora começava a se filtrar, delineando a forma dos
corredores.
Desci as escadas, sentindo seus cabelos voarem por minhas costas e os
braços balançarem a cada passo dado. Ao alcançar o limite do pavilhão, os
contornos dos meus amigos se tornaram visíveis.
Era óbvio que apareceriam. Óbvio que sabiam quem era o autor
daquele apagão, do aviso em códigos, da energia caótica que pairava no
Campus.
— Bloquear meu caminho é uma má ideia — avisei, o tom sombrio
cortando o silêncio. Eles sabiam quem estava ali, não ousariam debater.
Benedete até tentou falar, mas um olhar duro bastou para silenciá-la. O
machado reluzia, um aviso não verbal do que eu estava disposto a fazer caso
dessem um passo na minha direção.
— Não se metam — declarei com uma firmeza inabalável. — Isso é
entre ela e eu. — A ameaça pairava no ar, e, diante da minha determinação,
recuaram.
Passei por eles, levando Brianna comigo, e a escuridão nos envolveu
pelo trajeto aos fundos do lugar. Depois de amarrá-la a uma árvore, bem
como o local da morte do meu irmão, estudei seus traços, esperando que
acordasse.
Foi o meu erro.
Olhar para ela, me lembrar de coisas, momentos…
Eu tinha sede de sangue, mas não o que corria naquelas veias. Sabia
que deveria matar alguém, mas não aquele alguém.
Não até o momento em que admitiu ter me enganado.
Me equilibrei novamente, buscando a raiva do mais profundo.
Essa vadia me enganou!
A escuridão da noite envolvia os fundos da universidade, apenas a lua
lançava uma luz fraca sobre nós. Brianna estava amarrada à árvore, sua
expressão revelando confusão ao despertar naquele ambiente desconhecido.
Permaneci nas sombras, observando cada movimento dela com olhos
intensos.
O silêncio era tangível e quebrado apenas pelo sussurro das folhas
movidas pela brisa noturna. Seus olhos, gradualmente, ajustaram-se à
escuridão, e quando percebeu a situação, tensão refletiu em seu rosto.
— Aaron, por favor… — Tentou mover os braços. — O que vai fazer?
— Meu olhar permanecia fixo nela.
Puxei o machado para perto e vi quando entrou em desespero.
— Sinto muito… — Esforçou-se para falar sem que a voz tremesse. —
Segurei os cabelos dela com força.
— Sente mesmo? — Meus dentes rangeram.
— Sinto! — Quando gritou, gotas de chuva começaram a cair sobre a
terra. A luz da lua delineava seu rosto, revelando algo que nunca vi antes. —
Aaron, se eu pudesse escolher, eu…
— Você o quê?
— Não teria feito isso… — sussurrou como se dissesse a si mesma, e
fechou os olhos.
— Foi por isso que ficou? Aceitou ser torturada porque sabia que
merecia, é isso? — Meu tom de voz denunciava o quão transtornado eu
estava.
— Fiquei por outro motivo! — pontuou, séria. — Mas, com o passar do
tempo… você se tornou esse motivo. — Olhei em seus olhos. — Estaria
mentindo se dissesse que não me senti dependente de alguma forma.
Protegida, mesmo que de um jeito tóxico. Livre — falou e minhas narinas se
dilataram. — Me senti livre com você. — Abriu um sorriso em meio ao
choro.
A chuva começou ficar mais intensa, gotas agressivas batiam na pele
anunciando uma tempestade, e, junto dela, meu coração idiota palpitava
diante daquelas palavras.
— Me enganou — falei entredentes e, puxando os fios de seus cabelos,
apertei o cabo do machado.
— O que você vai fazer? — ciciou com os olhos marejados.
— O mesmo que fez comigo. Estraçalhar seu músculo cardíaco.
Ergui o instrumento, o metal afiado cortou o ar. Brianna tinha os olhos
cintilando de medo, vidrados na minha direção. As sobrancelhas se franziam
para cima e contrastavam com os lábios trêmulos. Suas roupas já colavam na
pele devido à chuva e se embolavam sobre o corpo frio.
Parei com o braço lá em cima e ela soluçou.
— Acaba logo com isso…
— Diz que foi um acidente — murmurei. — Fala que ele tentou te
matar primeiro e só se defendeu…
— Por que eu diria isso?
— Estou procurando motivos para não… — Quando senti minhas
sobrancelhas ondularem, virei o rosto e travei o maxilar. Silêncio. Seus
soluços e o temporal que vinha do céu se misturavam. Fechei os olhos. —
Conseguiu superar as maiores atrocidades que já me alcançaram, Brianna —
sussurrei. — Superou todas elas. — Ela apertou os olhos, chorando, e deixei
o machado cair junto à fortaleza que construí ao meu redor. — Não achei que
sentiria tanto até me ver obrigado a te matar e… Por quê? — Olhei para ela e,
com os olhos molhados, bati na árvore. A dor rasgava meu peito, uma lâmina
fria cortando através das camadas que eu mantinha intactas por tanto tempo.
— Por quê? — gritei, um rugido selvagem ecoando pelo lugar. Brianna
chorava. — Por que fez isso? — Deixei escapar um soluço agressivo e
abaixei a cabeça. — Esse não sou eu. Não falo assim, não digo o que sinto e
não… — Suspirei. — Que merda fez comigo? — Segurei os ombros dela. —
Desfaça! — Sacudi seu corpo. — Desfaça isso, porque… dói.
— Me desculpe… — ciciou, fungando.
Eu mirava seus olhos quando, pelo reflexo deles, vi alguém se
aproximar.
— Ela não matou seu irmão. — Me virei para ver Meg, de pé, com as
mãos unidas em meio à tempestade. — Brianna mentiu para proteger e dar
tempo ao pai dela!
— Megan! Para! — Ela começou a se contorcer e senti que a corda
escorregava de seus punhos molhados.
— Isso é verdade? — A rouquidão se apossou de mim. — O que ela
disse é verdade, Brianna?
Seus punhos se livraram das amarras e, olhando nos meus olhos,
tentou escapar de mim. Eu a apertei em meus braços, sentindo a pele fria e
trêmula, impedindo que desse sequer um passo.
— Fala pra mim… — Soou como a porra de uma súplica.
Senti que faria de tudo para ouvir uma confirmação sair de seus lábios.
Isso tiraria um peso das minhas costas. Me faria acordar de um pesadelo.
Ela não o fez.
— Aaron, me deixa ir ..
— Não. — Ela tentava escorregar e eu a apertava. — Não vou deixar.
— Aaron… me solta, por favor… me deixa… — Pareceu desesperada.
Como se tivesse que ir, quisesse ficar longe.
Sabendo que aquela seria uma da maiores burradas da minha vida,
soltei. Ela saiu cambaleando, apressada, sem ao menos olhar para trás, e eu
fiquei no gramado, me perguntando o porquê.
Por que fazer isso?
— Eu sei o porquê — Megan falou, como se lesse meus pensamentos, e
eu a encarei, me lembrando que estava ali.
Que era a fonte de respostas às minhas perguntas.
Conseguir um táxi, naquele horário e em meio a uma tempestade
devastadora, nunca foi tão difícil, mas eu estava disposta a tentar até
conseguir, e foi isso que fiz.
O percurso? Casa do senhor Jamar, o antigo delegado do Brooklyn.
Na minha cabeça, ele era o único que poderia me ajudar a chegar em
alguma coisa no momento, me ajudar a ter respostas, já que, depois daquela
ligação, meu pai não entrou mais em contato e não me respondia.
Ganhei o tempo que consegui. Distraí Aaron o máximo que pude, me
sacrifiquei para isso. Doeu no coração, mas fiz. E eu esperava que valesse a
pena.
Respirei fundo e fechei os olhos por um instante. O motorista se
preparava para parar e eu precisaria abrir aquela porta e correr o máximo que
conseguisse, porque não tinha dinheiro para pagar a corrida.
Ele me olhou pelo espelho do carro, um homem idoso e com marcas de
expressões no rosto. Dava pra ver que trabalhava debaixo daquela tempestade
porque precisava, mas eu não tinha muito o que fazer.
E quando ele parou e pegou uma flanela para limpar o vidro por dentro,
abri a porta, pulei para fora e comecei a correr, como se minha vida
dependesse daquilo.
As gotas agressivas de chuva quase não me deixavam respirar direito,
e, quando avistei a fachada acidentada da casa de Jamar quase desmoronei de
alívio. Isso até perceber que não tinha ninguém lá e a porta estava trancada.
— Delegado Jamar? — Bati os dois punhos contra a madeira, com o
corpo tremendo.
Cruzei os braços e averiguei os arredores com os olhos atentos. Mesmo
que a chuva tornasse tudo um grande borrão, percebi que seu carro ainda
estava na garagem, uma viatura que, com certeza, já deveria ter sido
devolvida à base, mas, pelo visto, ele queria manter como algum tipo de
lembrança.
Cansada de esperar, decidi fazer o que já deveria ter feito há muito
tempo: abrir aquela porta. Passei a andar com grampos por todos os lados,
nunca se sabia quando se iria precisar, mas daquela vez estava claro que não
funcionaria. A fechadura era uma fortaleza.
— Vou ter que apelar para outra coisa. — Puxei a arma da cintura, a
chave amarrada ao cano ainda estava lá e mirei o trinco. Dois tiros e a
estrutura amoleceu, o som sendo abafado pelo ecoar da tempestade. Com
maior facilidade, dei alguns passos para trás e bati na madeira, jogando a
porta para dentro.
Meus passos ecoaram pelo lugar vazio, gotas de água marcando o
trajeto que fiz por toda a casa, para confirmar que ele não estava lá. Exausta,
me joguei no estofado. O lugar onde descansei depois que me ajudou sair do
cativeiro, no qual Aaron me mantinha.
Sem Jamar, sem respostas.
Minha cabeça começava a girar, nuances de lembranças, pensamentos e
angústias. Eu estava com o metal gelado da arma na mão, a roupa pingando,
pele fria. Passei a sentir uma agonia indescritível e me levantei.
A vontade de atirar para todo lado e descarregar a arma e aquela tensão
era desumana, não consegui evitar.
Soltei um grito de frustração e apertei o gatilho, um vaso de flores meio
secas estilhaçou. Mais uma bala e o relógio antigo de parede virou cacos.
Mas, quando mirei a estante, meus olhos captaram algo.
Me aproximei de um envelope em cima da estrutura. Era a única coisa
ali, como se fosse deixado de propósito, para que quem entrasse, visse.
E de fato. Provei isso quando comecei a ler uma carta escrita por ele,
para mim:

“Não me pergunte como, mas eu sabia que você chegaria aqui antes da
polícia. Era isso ou eu não reconheceria a garota que enfiou um sanduíche e
uma arma na bolsa e saiu rumo a Aaron Walker, decidida a encará-lo”.

O primeiro trecho me arrancou um riso genuíno.

“Se estiver lendo isso, saiba que já não estou mais neste plano, e não
consegui evitar minha morte. Foi seu pai”.

Minha expressão caiu e passei a hiperventilar.

“Descobri que a operação que tanto defendia era, na verdade, uma


farsa. Ele estava envolvido em algo que se distanciava da lei. Seu pai se
contaminou, e não foi como eu, obrigado, mas por livre e espontânea
vontade.
Abernathy não gostou quando descobri e tentei convencê-lo. Não
gostou quando intervim, te ajudando. Ele queria você como alvo para
trabalhar nas sombras e conseguir ajudar criminosos. Ele me enganou, te
enganou.
Mas não vim falar somente sobre o quão abominável ele foi para com a
farda que vestia, também tenho algo que, com certeza, você gostaria de
saber.
É sobre sua mãe”.

Parei ali. Bem ali, naquele trecho, e fechei os olhos. Suspirando, voltei
a olhar para a folha, mas não enxergava nada além da ansiedade. O que me
fez ver uma localização, no final.
Associei uma coisa à outra e, sem ao menos ler o restante, corri até a
garagem. A chave estava no carro, tinha gasolina e eu tentava ligar o meu
celular ensopado.
O nervosismo me impedia de enxergar tudo, menos aquelas
coordenadas e o fato de dar a entender que eu poderia encontrar minha mãe
ou algo sobre ela naquele lugar.
— Brianna é uma cabeça dura! Ingênua! Uma… — Passei as mãos
pelo rosto, impaciente.
Megan havia contado tudo a mim e aos babacas, sentados na sala de
estar da cobertura.
O ambiente azulado transmitia tensão e perdia o ar da última lembrança
que tinha de nós ali. Assim como eu, estavam todos indignados, podia
afirmar somente olhando suas caras.
— Por que fazer isso para ajudar aquele desgraçado? — vociferei, uma
tempestade caía lá fora e refletia dentro de mim.
— É a mãe dela, Alien! — Benedete pontuou. — E, pelo visto, o pai
sabe muito bem como usar isso a seu favor.
— Quase a matei por causa dele! — Segurei a base da mesa de centro e
a lancei longe. Megan se encolheu e Benedete veio até mim.
— Mas não matou, cara! Mesmo achando que ela era culpada, não iria
matar, percebemos isso enquanto assistíamos de longe... — deixou escapar e
eu ri, nervoso.
— Claro! — Meus dedos mergulharam nos cabelos e os joguei para
trás.
— Foi por precaução, cara — Brandon gritou do computador, não tão
longe dali, onde se concentrava em sua tarefa, junto ao Ryus. — Você estava
transtornado… — Encarei-o, nervoso, e comecei ir até lá.
— Como estão aí? Encontraram ela?
— Ainda não. — Seus olhos semicerraram e o barulho do teclado sob
seus dedos me causavam agonia. — Tem certeza de que ela está com o
celular?
— Tenho. Não tirei nada dela, nem mesmo a arma… — Funguei,
cruzando os braços, a perna mexendo, impaciente.
— E tem certeza de que esse microchip funciona?
— Eu mesmo instalei para monitorá-la, ainda funciona… — Dei uma
pausa para a ressalva.— Se ela estiver com o aparelho ligado.
Nessa hora, passos desconhecidos ressoaram, adentrando a sala.
— Isso que eu chamo de nível elevado de controle. — Meu pai riu,
ajustando a gravata. Meus passos se fizeram precisos até ele, deixando fogo
pelo caminho.
— O que você está fazendo aqui? — Cerrei os dentes.
— Deixou a porta aberta da última vez e tomei a liberdade de fazer
uma visita. A propósito — apontou para o quarto —, gostei da banheira.
Todos os meus amigos ficaram tensos. Sabiam de quem se tratava,
reconheciam o tom de voz e sarcasmo que eu descrevia quando falava sobre
ele, o CDC. Benedete foi a primeira e única a erguer a voz.
— Então esse é o seu pai? — perguntou, tensa.
— E isso é o quê? Um encontro de delinquentes? — Ergueu a mão. —
Não precisa responder, eu ouvi toda conversa. — Seu riso espalhou pelo
rosto. — Abernathy achou mesmo que distrair Aaron seria o mesmo que me
distrair? A cabeça dele é um presente para o meu filho, mas não quer dizer
que eu só a pegaria quando meu filho quisesse. — Bateu as mãos. — Aaron
consegue ser rebelde até quando recebe ajuda. Iria demorar para aceitar e isso
não daria tempo a Abernathy.
— Eu não pedi ajuda. — Dei a ele um olhar caótico. — E tenho coisa
mais importantes para resolver. — Me virei para a garota de cabelos curtos.
— Megan, não sabe mais nada sobre Brianna? Nada que não contou ainda?
— Não… — falou, nervosa. — Além de ter ficado na universidade por
conta da mãe… bom, ela disse que você tinha algo que a ajudaria a encontrá-
la, e disse que tinha pego, mas não sabia onde usar?! — Franziu o cenho e eu
fiz o mesmo.
— Onde usar?
— É… pelo visto, era importante.
— O que mais? Ela não disse o que era? Onde colocou?
— Não, mas andava pra cima e pra baixo com aquela arma e uma
chave.
— Chave? — questionei.
— Aqui! Encontrei ela! — Ryus bradou e seguimos até lá. — Brianna
está se movendo numa estrada. — Seu dedo desenhou a tela.
— É do lado oposto à antiga rodovia, a que foi interditada — falei.
— Mas não tem nada lá — Brandon pontuou e olhei para ele.
— Não, nada além do… — Meus olhos se arregalaram e os dele
seguiram a mesma linha.
Corri feito um louco até o molho de chaves. Uma estava faltando, uma
chave de John.
— Ela era com a chave do armário de John!
Benedete pareceu lacrimejar.
— Acho melhor ir pra lá agora, Aaron.

Meus olhos deslizavam meio hesitantes pela estrada deserta. A chuva já


havia cessado, mas a carta, no banco ao lado, voava pelo sob o sopro do
vento que entrava pelo pequeno vão da janela aberta.
A viatura era rápida, logo cheguei ao ponto que meu celular mostrava
como destino. Estacionei e desci.
Era um lugar escuro, como se fosse uma base militar. Com o papel
entre os dedos, semicerrei os olhos para continuar a leitura de onde parei.
Talvez achasse alguma coisa que me indicasse para onde ir, já que com
certeza, naquele lugar abandonado, a minha mãe nunca estaria.

“[...] É sobre sua mãe.


Quando eu era mais jovem, assistia a um programa de TV todos os
dias quando voltava da escola […]”.

Olhei para a porta, estava com algumas tábuas. Eu as tirei com


facilidade, estavam completamente apodrecidas. Meus olhos passaram por
uma placa torta e enferrujada, que advertia sobre um espaço restrito. Fitas
amarelas devastadas indicavam que aqui havia ocorrido uma ação
investigativa.
Saltei-as e entrei. O ambiente era escuro, envolvido por um odor
inigualável, então liguei a lanterna do celular, para ver nada além de paredes
e corredores extensos. Os ruídos dos morcegos eram agonizantes e um
gotejar distante reverberava por todo o ambiente. Cada passo que eu dava
ecoava também.
Comecei a tremer sentindo que quanto mais adentrava aquele lugar,
mais envolvida pela escuridão eu ficava, mas, ainda assim, continuei
caminhando e lendo.

“Descobrir que as leis não servem para muita coisa, na maioria das
vezes nem mesmo são seguidas, e que a justiça já tarda para falhar, foi como
um soco no estômago da criança”.

Adentrei uma área mais aberta e precisei iluminar cada cantinho antes
de pisar.
Era enorme, tinha uma parede repleta de armários. Do outro lado, uma
mesa grande e velha caía aos pedaços, vazia e sem cor. A paredes eram lisas,
sujas, mas sem detalhe algum. Parecia um antigo escritório, emoldurado em
algo mórbido e sinistro.
Os armários, no entanto, me chamaram mais a atenção e segui até lá.
Meus olhos captaram pequenas fechaduras em cada um deles. Abaixei um
pouco e averiguei seus buracos. Pareceu familiar.
Coloquei o celular entre os dentes para continuar tendo luz da lanterna
e peguei minha arma. Desfiz o laço que prendia a chave ali e a peguei nas
mãos. Cada armário tinha um símbolo, e a chave também tinha um.
Estrela de seis pontas.
Encontrei uma desenho igual, meio amassado, cravado no metal de um
deles, e meu coração saltitou.
— Seja lá o que John mantém aqui, meu pai também manteve, ou não
teria a posse de uma chave igual. — Minha voz ecoou pelo lugar, mesmo
saindo em um sussurro.
Diante da chave e da porta que tanto procurei, fechei os olhos. Não
acreditava que estava acontecendo, mas, sim, estava.

“Aquela criança que assistia a desenhos nunca encontraria um herói


de verdade, Brianna, e provou disso quando cresceu. Aquela criança fui eu,
quando acreditei que tudo que se intitulava bom era de fato bom”.

Girei a chave, meus dedos tremendo.

“ E vejo a criança também em você, por acreditar que ainda existe


bondade nesse mundo. Essa localização te levará ao “banco de arquivos”, é
um nome usado para esconder seu maior significado: “queima de arquivos”.
Esse, em especial era usado para pelo FBI, mas depois foi abandonado, e a
estrutura passou a ser posse da criminalidade, e seu pai sabia disso. Assim
como sabia que bater em uma mulher era uma abominável, tirar sua
dignidade era uma atrocidade e destruir a família de uma criança é o pior
que se pode fazer.
Da lei, este lugar passou a pertencer ao crime. De documentos que
precisavam ser queimados, as gavetas passaram a comportar corpos.
Cada um dos armários do lugar já guardou o final que ninguém queria
assumir ter sido responsável. A culpa que criminosos não querem carregar.
Provas para serem queimadas, enterradas e nunca mais tocadas.
Sua mãe esteve em um daqueles, e foi Abernathy quem a colou. Eu
sinto muito”.

Meu corpo inteiro se arrepiou. O papel caiu das minhas mãos e tudo
começou a girar. Puxei a porta e um saco plástico vazio caiu em meus pés. O
cheiro era insuportável. Me afastei tão rápido que bati na mesa e caí no chão
junto dela. Minha cabeça bateu forte contra a madeira.
O grito que dei soou como meu último suspiro de vida, da alma. Fez
uma manada de morcegos voarem sobre a minha cabeça. Comecei a perder ar
dos pulmões.
— A minha mãe não, por favor… — Os ossos sob a pele vibravam,
minha carne latejava, sabia que precisava sair dali, eu precisava respirar. Não
conseguia abrir a boca, estava sem voz, já via tudo embaralhando em minha
cabeça, principalmente, lembranças.
Quando eu tinha cinco anos, ela me deu um kit de papelaria, porque eu
disse que queria ser CEO como ela e ter meu próprio escritório em casa. Em
troca, pediu para que quando percebesse a voz do pai muito alta vindo do
quarto, fosse brincar de escritório o mais longe possível, porque uma boa
CEO precisava de silêncio para se concentrar.
Quando eu tinha cinco anos, ela disse que iria me ensinar a andar de
bicicleta, também me mostrou como usar as rodinhas para acertar a cabeça de
piratas que tentassem tocar em mim.
Aos meus cinco anos, ela colou estrelas que brilhavam no escuro
embaixo da minha cama, porque sabia que eu as adorava. Me fez prometer
que apagaria as luzes e as admiraria, caso ouvisse algum barulho estranho na
cozinha quando o pai chegava irritado.
Minha mãe disse que eu era forte e capitã do meu próprio navio, mas
foi ela que me protegeu de tudo que conseguiu, até onde conseguiu.
E então tudo se apagou.
Sem estrelas.
Sem galáxia.
Sem vida para ela ou para mim.
— Brianna! — Ouvi uma voz ao longe, alguém parecia destruir tudo
enquanto entrava ali, e um farol o acompanhava.
Era o Alien.
Senti que me agarrava e ergui os olhos.
— Me desculpa, Aaron.
— Não, não, não, não, não. — Segurou meu rosto, mas a fraqueza já
me dominava. — Olhe pra mim…
Alguns dias depois
Se existia alguém bom com planos, era meu pai. E não, eu não me
arrependia de dizer que, para acabar com a raça do delegado, me juntei a ele.
O silêncio se instalou na sala esfumaçada de um galpão no subsolo,
lugar designado por ele para determinadas atividades. O eco da reportagem,
que passava em uma tela ampla, trazia mais informações sobre o caso que
deixou a população estarrecida e entregava a falta de esperança.
Um avião com três tripulantes e um piloto estavam desaparecidos há
alguns dias.
Nele estavam o Governador de Nova Iorque, um delegado
recentemente nomeado no Brooklyn, e Don Salvatore, um empresário
italiano. As buscas já estavam sendo consideradas suspensas e não havia
indícios que indicassem algum tipo de crime acometendo as “vítimas”.
Meu pai interrompeu abruptamente a voz da repórter ao desligar a TV
com um gesto casual. Me virei para vê-lo como uma figura imponente no
assento atrás da mesa de mogno. Seus olhos, frios como o aço, encontraram
os meus.
— O avião cumprindo seu papel na peça enquanto o verdadeiro
espetáculo acontece nos bastidores. — Seu sorriso, uma expressão
cruelmente complacente, e a inclinação para trás na poltrona indicavam que
iria se levantar.
Fiz o mesmo, acompanhando-o pelo corredor extenso, como em todos
os outros dias, e tendo que ouvir, como sempre, detalhes sobre suas
ambições.
— Pense em Salvatore como um pino de boliche, faltam mais três —
falou, se referindo às outras famílias da aliança, duas que se uniram a
Salvatore e uma que se deixou de fora do impasse.
Bonanno almejava dar continuidade ao que começou, e já estava
tentando tomar decisões por mim quanto a isso.
— Ainda não entendo o porquê da conversa. — Olhei para ele. — Sabe
que não quero e não vou…
— Sabe de suas obrigações — me interrompeu —, mas não vou falar
sobre elas agora. — Riu, me observando. — Sempre achei que deveria ter
sido o primeiro, John…
— Não vai falar do meu irmão — avisei.
— Seu irmão não aceitou ser moldado, mas você estava aceitando.
— Fala das vezes que me fazia assistir às torturas? — grunhi. —
Aquilo era moldar?
— Aquilo se chamava aprendizagem. Com o tempo e com os estímulos
certos, eu o veria planando ao meu lado, inumano, inabalável. No entanto, o
estorvo Salvatore, ou o que ainda existe dele, fez questão de atrasar esse
processo.
— Esse processo nunca terá progresso — afirmei e passei por ele
quando vi seu sorriso surgindo.
Quando entramos no lugar, uma sala esverdeada com uma mesa repleta
de instrumentos para tortura, ele agarrou seu avental, a sensação que tive foi
de nostalgia. Era exatamente daquele jeito que ele punia quando estávamos
na Itália.
Me lembrava de quando John implorava para que não o colocasse na
maca dos que eram castigados.
De um lado, o Delegado Abernathy, com o corpo marcado por torturas
há semanas; do outro, Salvatore, ou o que sobrou dele. O governador,
poupado, em uma sala ao lado. Meu pai dizia que ele iria servir para alguma
coisa.
— Acho que alguém tirou mais um pedaço desse aqui. — Referiu-se a
Salvatore, que já não tinha boa parte da pele sobre os ossos, mas era mantido
vivo, para sentir até o último segundo sua pele sendo arrancada e a carne,
moída.
Abernathy tossiu, engasgando com o próprio sangue quando nos
percebeu ali.
— E eles chegaram — declarou, sem voz. — Vou ser agraciado com a
morte hoje?
— Se depender de mim, nunca. — Bonanno voltou a falar como o
CDC. — Mas não sou eu o seu carrasco.
— Vou acabar com isso — falei, meus dedos enrijecendo ao redor do
cabo de um machado, que puxei da mesa de ferramentas. Pude sentir a
intensidade do olhar de meu pai em mim.
— Mas já? — Riu. — Não se fazem mais açougueiros como antes…
— Só tô cansado de sumir todos os dias por duas horas e inventar
desculpas.
— Fala sobre Brianna Abernathy? — perguntou e fiquei em silêncio.
— Ela não sabe que o pai está pagando pelos pecados na Terra?
— Ela sabe, mas… — Engoli o grunhido.
— Você tem receio. — Tirou as luvas e se aproximou de mim. —
Conselho de pai: aproveite as férias e a leve para algum lugar.
— Acha mesmo que vou seguir seus conselhos? — Ergui as
sobrancelhas. — Não vou repetir o que fez com a minha genitora.
— Sua mãe foi a mulher a quem mais tive apreço em toda uma vida.
Uma pena que não teve equilíbrio mental suficiente para se manter em
minhas mãos. — Virou-se e andou até a mesa, mudando de assunto. —
Poderia estar matando dois hoje, Aaron. — Olhou para mim. — Se
conseguisse algo sobre Fillippo Salvatore.
— Não sei nada sobre o filhote de abutre, já falei.
— Ele será um problema no futuro. — A rigidez de como tirou a faca
de um faqueiro me atingiu como um aviso.
— Só se for pra você. Comigo, ele não tem vez — pontuei, ouvindo seu
riso e me virei para o porco. — Se arrepende do que fez a ela? — Meus
dentes cerraram. O homem estava pendurado, a pele das pernas esticando
como a de um animal abatido no gancho, ele soltou um sussurro que exalava
à carne crua.
— Não. E eu faria tudo de novo, seu verme… — Ergui a lâmina e
enfiei em seu pescoço, vendo-o se engasgar com o próprio sangue.
Quando a puxei de volta, o corte jorrou sobre minha roupa e braço.
Fiquei ali, assistindo à sua morte dolorosa e dedicando aquele momento à
memória do meu irmão, à raiva que sentia por ele e a vontade de destroçá-lo
por ter feito Brianna passar por tanto.
Um suspiro trêmulo me fez piscar os olhos inertes.
— Como entrou aqui? — Bonanno vociferou e me virei para ver
Brianna, com os olhos enormes em cima da cena. — Aaron, não.
Deixei a lâmina cair e a segui, sentindo o sangue nas mãos.
— Brianna! — Meu grito reverberou pelos corredores vazios. O
silêncio que me entregou era ensurdecedor, e a preocupação se enraizou ainda
mais em mim.
Tive medo, porra! Eu tive medo pra caralho de ela me odiar, mesmo
sabendo que fiz o certo, medo de não me querer por perto, de se lembrar que
também a machuquei.
Dobrando um corredor, vislumbrei seu vulto desaparecer à distância.
Seu rosto expressava algo indecifrável me fez cerrar os punhos. Ela tinha
testemunhado a brutalidade que infligi ao pai. Meu passo se acelerou, a
urgência se transformando em desespero.
— Aonde você vai? Aaron! — A voz do meu pai ecoou, misturando-se
ao som dos meus próprios passos. Parei por um momento, relutante em
responder, mas a verdade me puxava de volta.
— Vou cuidar da minha garota. — As palavras escaparam de meus
lábios, carregadas de uma determinação feroz. Não era apenas uma promessa;
era um compromisso de reparar o que estava quebrado.
Corri em sua direção, alcançando-a no momento que ela parou,
chorando.
— Ei… — Ousei erguer o queixo dela na minha direção. Seus olhos
encontraram os meus. Era uma confusão que eu não conseguia identificar.
— Aaron... — murmurou, sua voz trêmula.
— Sei que parece errado, mas eu tinha que proteger você, fazê-lo
pagar. — Minha explicação saiu apressada, como se eu pudesse justificar
todo aquele sangue. — Acabou, ratinha… acabou.
Ela me olhou por um momento, e então avançou para mim, me
envolveendo em um abraço apertado.
— Acabou…. — Sua voz era suave, mas firme.
— Vou fazer tudo que estiver ao meu alcance, e o que não estiver, para
consertar isso — murmurei as palavras com uma sinceridade desesperada,
enquanto ela permanecia enlaçada em meus braços. O silêncio pairou entre
nós, mas, nas entrelinhas daquele abraço, era como se um entendimento
mútuo estivesse se formando.
Naquele momento, desejei com todo o meu sofrido e desgraçado ser
que ela voltasse a sorrir de novo, que voltasse a sorrir para mim, e jurei que
faria acontecer, não importava quanto tempo levaria.
Alguns meses depois / primeiro dia de aula do novo semestre

Nossos olhos miravam o teto do avião, mas não um avião comum; ele era totalmente acolchoado,
desde o teto ao chão, onde estávamos deitados. Brianna segurava minha mão com força, eu sentia sua
respiração soprando suave ao meu lado.
— A estudante exemplar de medicina deveria estar na universidade agora — falei e virei o rosto
na direção dela, percebendo o cintilar dos olhos.
— Eu não vou a lugar algum, Aaron… — Seu sussurro contrastou com o riso fino e meu coração
bombeou mais forte.
Começamos a subir e a sensação de que o corpo pesava toneladas atingiu a nós dois ao mesmo
tempo. Não consegui mover um músculo.
— Parece que vou ser esmagado por mim mesmo — grunhi e ela sorriu.
— É normal em um voo parabólico. — Parecia estar adorando a sensação. — Respire devagar e
mantenha a calma.
— Mas eu tô calmo. — Tentei virar a cabeça para ela, mas só consegui fazer os olhos irem até lá.
— Então por que está apertando a minha mão? — Tiu.
— Não estou apertando a sua mão, espertinha. Só estou mais pesado que o normal.
— E eu estava zoando você! — Sua risada soou alta e com um impulso, o piloto inclinou a
aeronave e subimos um pouco mais rápido. Ela se calou e sua mão quase espremeu a minha.
— Quem está apertando a mão de quem agora? — perguntei e seus olhos se arregalaram.
— Aaron, meus pés! — Estavam subindo, devagar, flutuando. Era sinal de que alcançamos a
sensação de gravidade zero.
— Uooooou! — Segurei a mão dela com mais força quando a vi, literalmente, voar, e fui junto.
— Não vou atravessar paredes! — Riu, nervosa.
— E não vou te deixar nem por um minuto — respondi. — Não quero arriscar.
A sensação era como se não tivéssemos corpo, nada que pesasse. Era como se, de fato,
pudéssemos voar.
Segurei os braços dela e a mantive perto de mim. Nossos olhos se encontraram e passei a ponta
do nariz no dela.
— Gostou da surpresa, ratinha? — perguntei, um sorriso brincando nos lábios enquanto
observava a mistura de emoções em seu rosto.
— Isso é incrível, Aaron! — Os olhos brilharam para mim. Ali, eu soube que podia fazê-la feliz
de novo e que faria isso todos os dias da minha vida.
— Não é nada mal, não é? — sussurrei, olhando de relance para sua boca.
— Não, não é… — ela soprou de volta.
Unimos nossos corpos e descemos devagar sobre o acolchoado. Passamos a ciciar com os rostos
colados, acariciando um ao outro.
— Está gostando da nova experiência?
— Estou amando, mas não é como se fosse toda nova pra mim. — Acrescentou: — Eu já flutuava
todas as vezes que você me tocava, me beijava e… — Puxei-a para mim e passei os lábios pelos dela.
— O que sente agora?
— Sinto que vou explodir.
— Isso é bom.
— É, isso é muito bom. — Seus lábios roçaram nos meus e os fisguei. Ela gemeu quando a
empurrei contra a estrutura macia e lancei meu corpo por cima.
— Agora, faz sentido me chamar de Alien?
— Com certeza.
— Então me dá essa boquinha pra cá…

Já estava escurecendo quando nosso voo terminou.


— Calma… — Aaron correu para me amparar quando meu corpo balançou na porta da aeronave,
logo após o pouso. — Tá tontinha?
— Você não está? — A pergunta saiu em um suspiro.
— Tenho cara de que perco o equilíbrio? — Olhei para ele, séria. — Só por você, claro.
— Bobo! — Bati nele pouco antes de sentir que me tirou do chão. — Ficou maluco? Vamos cair!
— Eu dou conta, ratinha. — Ele caminhou até a parte de fora do aeroporto sob meu olhar
semicerrado. Ainda estávamos com as roupas especiais, o macacão dele só na metade do corpo, parecia
amar ficar sem nada na parte de cima, mostrando meus olhos tatuados ali, agora coloridos, retocados
com todos os atos que me tornaram sua.
Me apertei contra ele e chamei sua atenção.
— Temos que esperar, Alien, assinamos um termo, e ele diz que precisamos…
— Não precisamos de nada. — falou, procurando alguma coisa com os olhos atentos. — Nada
além de um carro.
— O quê? — Segurei forte nele quando vi que se aproximava de um automóvel com teto-solar.
— Não se preocupe, eu dirijo. - Me acomodou no banco e pulou no do motorista ao meu lado.
— Mas essa é a minha preocupação — falei, assistindo a ele repuxar alguns fios ali embaixo. —
E vai roubar o carro?
— Gostei da cor, combina com seus olhos. — O vão da minha boca se entreabriu e, olhando para
mim, ele tocou meu queixo com o polegar. — Mas é uma grande gostosa com essa boquinha… —
Virei o rosto para o lado.
— Você é impossível!
Quando o carro finalmente deu partida, um cara começou correr na nossa direção. Aaron girou o
volante com força e manobrou em um piscar de olhos.
— Meu carro! — o azarado berrou, mas já estávamos longe.
Senti o motor vibrando debaixo dos pés, e o vento se aproveitava da falta de um teto e brincava
com meus cabelos, coração acelerado. Me sentia viva.
Viva.
Segurei em Aaron, estava sem cinto. Percebendo isso, ele colocou um braço na minha cintura e se
fez de segurança para mim.
— Aonde estamos indo?
— Universidade. Tem uma festa esperando por nós naquele lugar.
— Quando organizou uma festa?
— Digamos que, no momento que olhei para você hoje pela manhã, debaixo dos meus lençóis,
pensei: por que não mostrar ao maior número de pessoas que ela é minha? — Seu pingente ainda estava
lá, balançando, refletindo o vermelho intenso.
Chegamos lá pouquíssimos minutos depois. Os pneus do carro rasgaram a entrada da
universidade e, depois de estacionado, Aaron me tirou de dentro pela cintura. Um dos universitários
entrou no veículo para abandoná-lo o mais longe possível, a mando dele, e seguimos para dentro.
O percurso depois dos portões, no entanto, foi algo novo para mim, porque nos levou até o
telhado de um dos pavilhões, por uma escada que ficava na lateral deles.
Agora, sentados ali, tínhamos a visão da festa e do céu, repleto de estrelas.
— Achei que iríamos para a festa — comentei.
— E nós vamos. — acomodou-se ao meu lado. — Só não agora. — Depois de uma pausa,
continuou: — Ansiosa para rever as amigas com as quais passa o dia inteiro grudada? — perguntou e
ergui as sobrancelhas.
— Meg e eu estamos pensando em alguns projetos, e a Mavila chegou há pouco tempo. Só
estamos colocando o papo em dia, ciumento.
— Só estão falando de mim, você quer dizer, e essa Mavi não vai com a minha cara.
— Ela soube o que fez comigo, dá um desconto.
— O que eu fiz? Te matei de tesão? — Olhei para ele com os olhos semicerrados. — Não venha
dizer que não gostava, ratinha. — Virei o rosto quente e comecei a mudar de assunto.
— A nova diretoria bem que poderia liberar a entrada de pessoas de fora da Libert para dormirem
aqui…
— Me deixe adivinha. — falou e eu já sabia em quem pensava. Ele tinha acertado.
— Mavi chegou faz pouco tempo, Alien, queria passar mais tempo com ela…
— MAIS? — Arregalou os olhos. Um ciumento nato.
Fiz beicinho e ele fingiu não ver.
— Por favor… — Trouxe seu rosto para mim e, ainda sério, me encarou.
— O que não faço por você, hein? — Meu sorriso surgiu e ele se aproximou um pouco mais.
— Tenho uma coisa pra te dar. — Tirou do bolso um papel dobrado e me entregou. Enquanto eu
o abria, começou a falar. — É a última página. — Quando disse isso, meu coração palpitou.
— Do diário? — Senti urgência em desdobrar mais rápido, e quando olhei para a folha, existia
apenas uma frase.
“E se, mesmo depois do fim, ainda existisse uma única estrela no céu, ele a alcançaria para
apagar?”.
Terminei de ler com lágrimas nos olhos.
— Ele… ele a matou.
— Meu pai matou minha mãe quando a deixou. — Riu sem muita graça. — Essa era a única
página que eu pretendia seguir à risca. O final. A coisa ruim e feia, mas não fiz. — Seus dedos traçaram
meu queixo. — Posso ter sido um filho da puta no início, e me lembrar disso vai me machucar até o fim
da minha vida, mas eu… — suspirou — nunca te destruiria. Faria o completo oposto. — Seu polegar
acariciou meu rosto. — Então vou dizer que te amo. — Senti minha respiração parar. — Que quero me
casar com você, ter filhos, uma garagem repleta de carros, uma casa de praia, e dois cachorros para
derrubar as crianças na areia enquanto eu e você rimos e corremos para os pegar no colo.
— Isso foi..
— Específico? Cafona?
— Perfeito…
— É, achei que iria gostar dessa versão — sussurrou.
— E qual é a outra versão? — Ele olhou nos meus olhos.
— A que sigo meu destino juramento, me torno um mafioso maluco apaixonado por uma única
mulher, te dou tudo que pedir e mato quem olhar para você. — A voz rouca reverberou por minha pele,
me causando arrepios.
— Vou parecer louca se disser que gostei mais dessa?
— Eu te amo, ratinha — soltou e, mais uma vez, pareceu ressoar de outro mundo, como um
sussurro dos céus. Algo impossível, mas real diante de mim naquele momento.
— Também te amo, Alien. — Nossos lábios se encontraram de novo e ele me puxou para seu
colo.
Tudo para recebermos um banho de mangueira vindo da festa.
— Mas que porra! — Aaron ameaçou pular dali mesmo e eu o segurei.
— Vão transar aí em cima? — Ryus gritou.
— Virou gato, Alien? — Foi a vez de Brandon.
— Vou te mostrar o que virei!
— E vou te matar se você cair aqui de cima e morrer. — Ele se virou para mim e beijei seus
lábios devagar.
— Calma, minha vida… — O riso surgiu devagar em seus lábios e meu coração acelerou feito
louco.
— O que foi?
— Você tem poder sobre mim. — Me jogou sobre as telhas. — Muito poder, ratinha.
A água já não incomodava mais e a palhaçada que os meninos faziam lá embaixo ficava cada vez
mais distante.
Era como se só existíssemos nós, naquele vasto universo.
Somente nós dois. Mesmo depois do fim.
O Alien e sua ratinha.
Fim
Agradeço de coração a todos que chegaram até aqui. Esse livro foi
muito importante para mim, e ter você o lendo é muito bom!
Deixo também meu obrigada a toda equipe que me ajudou nesse
processo, em especial Laila e Luna. Vocês foram salvadoras, não sei como
agradecer da maneira que merecem.
Agradeço a todos por fazerem parte de mais uma história. Que este
livro leve a cada leitor uma experiência tão rica quanto foi para mim escrevê-
lo.
E obrigada, Alien. Eu não sei como chegaria ao fim se não fosse por
você!

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