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Márcia Lima

1ª. Edição
2024
Copyright © Márcia Lima
Todos os direitos reservados.
Criado no Brasil.
Edição Digital: Criativa TI
Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,
personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte desta
obra, através de quaisquer meios – tangíveis ou intangíveis – sem o
consentimento escrito da autora.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°. 9.610/98 e
punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Aos corações que dançam sob a lua e às almas que anseiam pelos sonhos
que jamais se apagam.
Sumário
Sumário
Sinopse
Nota da Autora
Prólogo
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Seis
Capítulo Vinte e Sete
Capítulo Vinte e Oito
Capítulo Vinte e Nove
Capítulo Trinta
Capítulo Trinta e Um
Capítulo Trinta e Dois
Capítulo Trinta e Três
Capítulo Trinta e Quatro
Capítulo Trinta e Cinco
Capítulo Trinta e Seis
Capítulo Trinta e Sete
Capítulo Trinta e Oito
Capítulo Trinta e Nove
Capítulo Quarenta
Capítulo Quarenta e Um
Capítulo Quarenta e Dois
Capítulo Quarenta e Três
Capítulo Quarenta e Quatro
Capítulo Quarenta e Cinco
Capítulo Quarenta e Seis
Capítulo Quarenta e Sete
Capítulo Quarenta e Oito
Capítulo Quarenta e Nove
Capítulo Cinquenta
Capítulo Cinquenta e Um
Capítulo Cinquenta e Dois
Capítulo Cinquenta e Três
Capítulo Cinquenta e Quatro
Capítulo Cinquenta e Cinco
Capítulo Cinquenta e Seis
Capítulo Cinquenta e Sete
Capítulo Cinquenta e Oito
Epílogo
Conheça a Autora
Sinopse
Obs: Publicado anteriormente como Proteja-me por Márcia Lima e
Evy Maciel.

Ele não é o herói e está disposto a tudo para salvar a mulher que
ama!

A vida de Katarina Thorsson nunca mais será a mesma depois da


morte do pai. Ela precisará voltar para sua terra natal, no interior da Suécia
e arcar com as escolhas e erros do passado, incluindo rever o irmão de
criação nada sociável e terrivelmente sedutor.
Ture Svensson não é um herói, nem cavalheiro e muito menos
humano.
Debaixo da máscara de advogado da família mais abastada da
Escandinávia, o homem alto, imponente e desafiador esconde sua
verdadeira natureza. Uma criatura mítica, em forma de lobo, com quem
divide seu corpo e seus instintos.
O loiro acostumado a vencer nunca admitiu erros, jamais deixou
uma tarefa pela metade ou um rival de pé, mas agora precisa lutar contra
seu maior inimigo, o coração da fera que bate mais forte pela mulher com
quem foi criado como irmão.
Seu amor é proibido, Katarina pertence a outro.
A órfã corre perigo e para ser salva, segredos serão revelados, a
lealdade será colocada à prova e os uivos serão ouvidos por toda a terra dos
Vikings.

Você confiaria sua vida nas mãos de alguém que a abandonou? E


se descobrisse que ele a protegeu em silêncio durante toda a sua vida?
Nota da Autora
Esta é uma obra de ficção e, embora seu pano de fundo e cenário
sejam os países nórdicos do mundo real, há uma mistura entre o que é
verdadeiro e o que existe apenas no mundo dos lobos.
A intenção não é trazer uma história real e fidedigna com o
contexto histórico. Como especificado na ficha técnica, trata-se de uma
ficção, locais e nomes são coincidências, e trago elementos da realidade
para facilitar a imaginação do leitor.
Então, esta não é uma obra que poderá ser utilizada como
referência didática, ainda que faça alusão ao real. Escrevo uma história de
amor, sobre recomeços e mudanças de comportamento causados pela vida e
seu curso natural de amadurecimento
Abra seu coração e aproveite a viagem literária!
Prólogo
Katarina
Eu estava escondida em minha pequena cabana feita de galhos
secos e cobertores velhos, juntados por mim durante várias semanas.
Dentro do meu forte improvisado, havia biscoitos, uma garrafa de
suco de maçã e minha boneca Hildegard, que papai me ajudara a fazer
com a lã que sobrara da tosquia das ovelhas.
— Katarina? — a voz conhecida de um dos empregados do meu
pai chamou. — Katarina? — repetiu.
Eu não respondi, embora tivesse ouvido desde a primeira vez.
Queria acampar, como via na televisão, mesmo contra a vontade do meu
pai, e fora por isso que escolhi a dedo o dia em que ele iria até a cidade
comprar suprimentos, para fugir.
— Katarina! Katarina! — o tom parecia diferente, como se
perdesse a calma costumeira a cada vez que meu nome era dito.
A noite caía rápido no interior da Suécia, naquela época do ano, e
o vento soprava cada vez mais forte.
— É só a noite, Kat! Só a noite… — Controlei a respiração,
conversando comigo mesma.
Meus olhos miravam o buraco no teto do forte, de onde uma lua
incrivelmente grande, redonda e luminosa brilhava entre as copas dos
pinheiros altos.
— Katarina! — o homem chamou um pouco mais longe, perdido
na direção de onde eu estava.
De repente, o farfalhar de folhas secas me fez dar um pulo de
susto, meu corpo pequeno tremendo instantaneamente.
— Katarina! — o som da voz sumindo.
Engoli em seco e olhei ao redor. Tudo parecia estranhamente
assustador. Os sons da floresta não eram mais como eu me lembrava. O ar
parecia denso.
Levantei a mão e abri a boca para pedir socorro, queria ser
resgatada, mas não tive tempo.
Dentes afiados me abocanharam pelas costas, tão longos que
ultrapassaram o casaco e rasparam em minha pele, fazendo-me gritar.
Meu corpo foi arrastado floresta adentro com tanta violência que
fechei os olhos e me segurei em mim mesma.
Perdi o fôlego de tanto gritar, minha voz parecia cada vez mais
abafada pelo interior da mata fechada. Os uivos eram altos, estridentes,
sequenciais, como se uma alcateia conversasse ao meu redor.
Quando chegamos a uma clareira, fui arremessada em frente,
deslizando pela terra úmida e fria. O breu havia tomado conta de tudo ao
meu redor e eu só conseguia ouvir os rosnados, uma confusão de dentes e
patas, o hálito de sangue e carne crua sobre mim.
Segurei os joelhos, enfiando o nariz nas coxas, meu consciente
quase inconsciente clamava por ajuda, mas minhas esperanças se esvaíam
a cada uivo.
Foi quando desisti que ele apareceu. Mãos conhecidas, içando-me,
apertando meu corpo contra o seu na tentativa de proteção.
Abracei-o como se fosse uma tábua de salvação, esquecendo que
quem viera em meu socorro era quase tão pequeno quanto eu.
— Afastem-se — grunhiu com uma ferocidade que eu nunca tinha
visto em nossas brincadeiras. — Agora!
A faca de caça empunhada deixava claro que o garoto que
crescera comigo não estava brincando.
Levantei o rosto. Seu maxilar estava duro, contrito, apertando os
dentes como se tentasse segurar ou controlar algo dentro de si mesmo. Seu
corpo tremia, mas não parecia ser medo o que tomava suas veias.
O lobo maior, o que havia me arrastado até a clareira, deu alguns
passos à frente, os dentes à mostra. Parou tão perto que eu podia
novamente sentir o calor do seu hálito, um pedaço do meu casaco ainda
enroscado em sua boca.
“Vai ser um traidor novamente?” — ouvi no fundo dos meus
pensamentos e podia jurar que as palavras haviam saído do lobo, ainda
que o animal não pudesse falar.
— Vá embora! — o garoto repetiu. — Agora!
As palavras tropeçavam em sua boca, o som dos seus dentes
batendo um contra o outro.
“Ou o quê?” — o lobo provocou.
— Ou terá que me matar! — grunhiu. — Eu não vou permitir que a
machuque!
Os braços do garoto me colocaram para trás, assumindo meu
lugar diante do terrível animal. Seu peito estufou como se ele fosse mesmo
um guerreiro. Respiração entrecortada, um lamento escapando por entre
seus dentes como se algo lhe esmagasse de dentro para fora.
“Não seja tolo! É muito cedo!” — o lobo advertiu, mas o garoto
não parou.
Foi então que luzes clarearam a noite, redondas como faróis,
dispersando os lobos que formavam um semicírculo em volta de nós.
— Katarina! — a voz do meu pai soou como um bálsamo.
— Ture, vem! — Agarrei a mão do garoto que eu amava, tentando
arrastá-lo comigo para longe do animal, mas seus pés pareciam cravados
no chão. — Ture! — insisti fungando as lágrimas de desespero.
Tudo que aconteceu a seguir foi como um borrão. Por mais que
tente me lembrar, nada além de grunhidos, gritos, sons assustadores e uivos
se organizam em meus pensamentos.
Acordei em minha cama no dia seguinte e, quando perguntei o que
havia acontecido, meu pai me disse que escorreguei na encosta e me
desequilibrei, rolando pela floresta até perder a consciência. Na versão
dele dos fatos, Ture havia me encontrado e me resgatara para a clareira.
Por mais que eu quisesse discordar, não era capaz de juntar os
fragmentos do que tinha vivido, mesmo depois de anos.
Ture não voltou para casa por longos meses. Meu pai me contou
que ele havia sido aceito em uma escola longe de Uppsala e só voltaria
para as férias.
Perdi meu companheiro de aventuras, a pessoa que mais amei na
vida além do meu pai, e nunca entendi a razão.
Papai também mudou, afastando-me dele a cada dia, até
finalmente me mandar para longe, para estudar sozinha em outro país.
Daquela noite em diante, nada mais foi o mesmo em minha vida.
Nem em minha casa. O que quer que tenha realmente acontecido na
floresta naquela noite, tomou a vida que eu conhecia e, quando a devolveu,
não havia mais nada. Somente a solidão.
Capítulo Um
Ture
O som dos meus passos ecoava na grande sala vazia.
Parei no centro, olhos fechados, o pensamento tão longe que nem
parecia meu.
— Vem, Ture, eu me escondo e você procura! — uma voz infantil
chamou, acenando com a mão para mim.
No instante seguinte, o homem que havia se tornado meu pai
apareceu, atravessando o arco entalhado que dividia a cozinha da sala de
jantar. Limpou as mãos no avental preto, antes de ajeitar os óculos de
tartaruga sobre os olhos gentis.
— Ei, vocês dois! Agora não é hora de brincadeira! Ture, vá lá
para cima e tire essa terra toda. Veja, até seu cabelo está coberto de
sujeira.
— O Ture fareja como um cão! O Ture fareja como um cão! — A
menininha de longas tranças escuras dançava pelo tapete, provocando-me.
Tomei a boneca de sua mão e a segurei no alto, fazendo a menina
pular inutilmente, na esperança de alcançar o brinquedo.
— Não sou um cão, sou um lobo! — retruquei.

O ar deixou meus pulmões e abri os olhos, melancólico, varrendo o


meu campo de visão.
Deveria cumprir meu dever de rastreador e encontrar as provas de
que precisava para derrubar aquela merda toda que Gustaf havia criado para
justificar o assassinato do meu pai.
Dei mais alguns passos, parando junto à entrada do escritório. A
polícia humana havia acabado os trabalhos regulares e liberado o local,
graças à mentira de Gustaf.
— Com licença, senhor… — uma jovem de uniforme chamou.
Virei-me em sua direção e ela ocultou o olhar, como a maioria das
pessoas fazia. Quando se tem a fama que tenho, é comum que o medo seja o
primeiro sentimento despertado.
— Viemos fazer o serviço com… — Engasgou-se com as próprias
palavras. — A limpeza, senhor… Se não se importar…
Levantei o braço indicando o escritório.
As funcionárias que prestavam esse tipo de serviço eram muito
bem treinadas por Gunnar e eu preferia que tudo fosse limpo antes que
Katarina…
Meus pensamentos fugiram do controle mais uma vez, perdidos
entre o passado de uma garotinha sorridente e cheia de sardas e uma jovem
de olhar triste e lembranças confusas que eu tinha que vigiar de longe,
como um bandido qualquer.
Mirei a poça de sangue seco mais uma vez.
Vou fazê-lo pagar, pai! Juro que vou! Sua morte não passará
impune, nada mais passará.
Cerrei o punho e bati no peito, como o guerreiro que era.
Conforme os encarregados da limpeza entraram, eu saí, descendo
os poucos degraus da entrada. Parei olhando para cima, encarando o céu
ainda limpo do fim do outono. O jardim era uma confusão de folhas secas e
galhos. Tudo ali parecia muito distante do zelo com que Yrian cuidava da
fazenda.
Estava distraído em meus devaneios, mas não o suficiente para
deixar que a aproximação passasse despercebida.
Aren parou a alguns passos de mim.
— Tem certeza de que vai aguentar? — sua voz era tranquila, mas
a nota de preocupação perdida lá no fundo do timbre centrado ficou
evidente, ao menos para mim.
Enchi os pulmões de ar antes de responder e soltei devagar.
Precisava de muita concentração para ter a mesma estabilidade que ele
encontrava tão facilmente.
— Duvida da minha capacidade? — provoquei.
Estava reativo demais, ainda tentava absorver o turbilhão dentro de
mim. Quando o silêncio perdurou, voltei o rosto na direção dele.
Aren estava lá, esperando que eu mesmo respondesse meu
questionamento idiota. Rosto sério, mãos no bolso do longo casaco escuro.
A cada dia, os olhos dele se pareciam mais com os do pai.
— Quero que me prometa uma coisa, Ture…
— É claro, meu senhor — concordei.
— Se estiver difícil demais… Se achar que…
— Meus caprichos não são maiores que o bem do nosso povo… —
desviei.
Aren esboçou um sorriso.
— Chama um laço tão forte de capricho? — inquiriu.
— Não há laço que não possa ser desfeito — devolvi.
— Está enganado e sabe disso muito bem…
Baixei os olhos para o chão. Tinha ciência do tamanho do meu
fardo, mas não desistiria de carregá-lo, ainda que custasse um preço alto.
— Posso suportar um casamento sem amor… — continuou e suas
palavras eram como facas afiadas em meu peito. — Posso até me empenhar
para que ela me ame… Um dia, talvez…
Engoli em seco.
— E você, Ture… Pode mesmo suportar vê-la ao meu lado?
Cerrei os punhos, maxilar trincado e respiração acelerada, que fui
acalmando devagar.
— Jurei lealdade ao senhor, meu rei, até minha vida se extinguir,
seja pelas mãos do Pai de todos[1], ou de um guerreiro melhor do que eu.
Aren riu alto.
— Sabe que não há ninguém melhor do que você…
Pensei, por um segundo, no quanto tudo aquilo era difícil para ele
também. Em todo o sofrimento que acatar aquela decisão antiga lhe causava
e em como suas mãos estavam atadas.
— Menos com um arco na mão! — Sorri de canto, exaltando sua
maestria no esporte.
— É… — Meu amigo balançou a cabeça, o orgulho estampado em
seu rosto.
— E nadando! — continuei. — Você sabe que eu odeio me
molhar!
— Isso também! — Deu de ombros rindo.
Aren deu um tapinha em minhas costas, indicando o local em que o
carro estava estacionado.
Nenhum de nós disse mais nada, mas a cumplicidade que tínhamos
desde meninos era palpável.
O motorista deu a partida e seguimos direto para Estocolmo.
Mais tarde naquele mesmo dia, quando entrei sozinho naquele
avião, com destino a Berlim, as palavras de Aren ainda permeavam meus
pensamentos.
“Pode mesmo suportar vê-la ao meu lado?”
Capítulo Dois
Katarina
Apoiei as costas contra a parede de um casarão antigo, os pés na
calçada, batendo as pontas dos meus All Stars nas pedrinhas. O sorvete em
minha mão parecia feito de cera de vela, sem gosto algum, pingando entre
minhas pernas sem que eu tivesse vontade de comer.
Bati a parte de trás da cabeça contra a parede, encarando o céu
acima de mim.
Morto… — Engoli em seco o bolo de sentimentos e sensações que
aquela revelação causava em mim desde que eu recebera a ligação. Meu
pai, morto.
Saquei o celular do bolso e encarei a tela. A ligação durara
exatamente trinta segundos. Meio minuto foi o que ele julgou necessário
para contar a mim que nossa vida havia mudado para sempre.
Aliás, a minha! Porque a dele já seguira outro caminho, anos atrás,
quando decidiu ir embora de vez e me riscar da sua vida.
Enchi os pulmões de ar. Havia um peso sobre meus ombros que eu
nunca sentira antes. Sempre achei que era sozinha, mas nada se comparava
ao que eu sentia naquele momento, sabendo que meu pai havia me deixado
para sempre.
Fechei os olhos e soltei um longo suspiro. Mal conseguia definir se
o que sentia era mais tristeza ou raiva.
Tantos anos! Tantos anos e ele não me permitiu mais do que
algumas horas em sua presença. Sempre com pressa, sempre ocupado. Eu
nem me lembrava mais de como era minha casa, não voltava para lá desde
que deixara o ensino doméstico e ingressara em uma escola regular.
Minha vida fora essa, de internato em internato, sempre sozinha,
sem ninguém além de mim e minhas lembranças.
Mirei adiante, a bela rua na parte mais industrial de Berlim.
Eu raramente saía do dormitório. Tinha completado dezoito anos
havia menos de uma semana e, antes da maioridade, não era permitido
deixar o campus desacompanhada.
Para ser sincera, mesmo depois do meu aniversário, precisei
escapar por um deslize de segurança para deixar o território da Humboldt
University. Nunca entendi tanta rigidez comigo, tudo o que recebi como
resposta foi que minha família fazia questão de manter minha segurança,
principalmente depois que minha melhor amiga foi encontrada morta
poucos meses atrás.
Soltei o ar que nem percebi que prendia. Lembrar do que
acontecera a Hilde ainda me machucava.
Se eu tivesse chegado mais cedo… Feito o caminho mais curto…
Se…
A primeira lágrima rolou e eu chupei para dentro, contendo o
choro. Estava cansada de sofrer, de chorar e não poder mudar nada.
Sozinha… Eu não tenho mais ninguém.
Levantei-me de onde estava, batendo a mão na saia para tirar a
sujeira da rua, e livrei-me do sorvete na primeira lixeira que encontrei.
Era fim de outono. As árvores estavam perdendo as poucas folhas
marrom-amareladas da estação e o vento já não era morno e suave como
alguns meses atrás. Tudo parecia especialmente sombrio e triste naquela
tarde.
Olhei mais uma vez o telefone, antes de guardá-lo no bolso. Não
havia nenhuma mensagem e eu sequer podia retornar para dizer que não
queria ir ao funeral.
Não vou vê-lo assim! — pensei, negando com a cabeça, como se
quisesse convencer a mim mesma.
Não era a imagem que eu queria do meu pai. Nem a memória que
pretendia guardar. Depois de tantos anos, ele havia se tornado um estranho
e eu odiava funerais.
Caminhei pelas ruas sem um rumo traçado, só não queria voltar
para o dormitório.
Pouco a pouco, a noite foi caindo, mas eu só percebi quando um
vento gelado bateu direto em meu rosto, arrepiando minha pele e soltando
meu cabelo do coque improvisado que eu havia feito.
Esfreguei os braços. Fazia tempo que não sentia aquele misto de
frio e medo que acelera o coração.
Para com isso, Katarina, é só um vento! — reclamei comigo
mesma. Isso que dá não botar o pé para fora do campus. Sem muros,
Katarina, você está livre, aprenda a ser livre!
— Ei! — ouvi bem ao longe.
Meu coração parou na garganta e instintivamente procurei pela voz
no meio da rua escura.
— Katarina? — a voz repetiu.
Olhei entre as árvores, procurando mais uma vez.
— Vem! — havia uma ordem estranha no som, um tom que
arrepiou todos os pelos do meu corpo.
Travei no chão. O cabelo louro-escuro quase se confundia com as
folhas e ele teria passado despercebido, não fosse a quantidade reduzida
delas nas copas das árvores. Alguns segundos depois, a figura saiu das
sombras, revelando quem era.
Ian Hanssen, o desgraçado que ajudara a acabar com a vida de
Hilde.
Alto e forte, ele caminhou em frente, parando perto do meio-fio.
Eu não tinha gostado dele desde o primeiro dia no secundário,
quando o idiota armou para mim no laboratório e me fez perder um suéter
novinho.
Naquele mesmo dia, tínhamos levantado uma bandeira de guerra
um contra o outro e tudo só piorou depois que eu o vi pulando a janela do
dormitório direto para a mata dos fundos, poucos minutos depois que Hilde
foi encontrada morta.
O mais estranho é que nas últimas semanas, apesar de eu não ter
demonstrado nenhum interesse, Ian resolveu aparecer em cada canto em
que eu estava.
— Faltam dez minutos para o toque de recolher, Hanssen! — Ergui
uma sobrancelha provocativa. — Se eu fosse você, me apressava… Seu
dormitório fica bem longe daqui!
— Vamos Kat, vem! — insistiu, estendendo a mão. — Meu carro
está aqui perto e…
— Vai à merda, Ian! Eu acabei de perder o meu… — Engoli as
palavras, baixando os olhos para o chão.
— Eu se… — Parou no meio da frase.
— Sabe? Como sabe? — Franzi o cenho, o coração acelerado de
um jeito ruim. — Eu não contei para…
Apressei o passo sem olhar para trás. Como ele sabia? Como sabia
que meu pai havia morrido se eu recebera a notícia poucas horas atrás?
Desgraçado! Está me espionando? Quem diabos é esse alemão
metido?
Foi quando ouvi os passos de Ian Hanssen se aproximarem que me
desesperei, correndo feito uma maluca, rezando para encontrar alguém e
pedir socorro.
— Para, Katarina! Para! Eu quero ajudar, eu preciso… Você tem
que me ouvir! Eles… Eles estão…
Corri mais, virando esquinas e tentando me camuflar, mas tinha
dado o azar de escolher uma zona industrial completamente vazia naquela
hora da noite.
De repente, os passos se afastaram. Agradeci por poder apoiar a
mão na parede e tomar um pouco de fôlego, ou não aguentaria dar mais um
passo. Para o meu azar, a tranquilidade durou apenas alguns segundos e
logo as luzes redondas de uns faróis vieram na minha direção em alta
velocidade.
— Mas que porra! — xinguei, apressando o passo até estar
correndo novamente.
Aproveitei um canteiro que dividia as duas pistas e atravessei. Ian
buzinava sem parar, ultrapassando os carros de um jeito muito imprudente.
Um ônibus parou no ponto e eu nem me dei ao trabalho de olhar
para onde ele ia, apenas entrei, passando pela catraca e me escondendo no
fundo.
Anda, vai! — reclamei, diante da baixa velocidade.
— Katarina, desce! Desce daí logo! — a voz de Ian era estridente e
irritada, só aumentava meu medo de ter que encará-lo.
O esportivo azul seguiu ao lado do ônibus buzinando e fazendo
barulho. Eu podia sentir meu rosto queimar de raiva e um pouco de
desespero. Minhas pernas tremiam, meu corpo todo em frangalhos.
Quando passamos por um túnel somente para ônibus, agradeci
mentalmente a chance e desci no primeiro ponto que passou.
Caminhei a passos largos, me disfarçando no meio da multidão.
Estava no Centro, onde havia muitas pessoas, lojas, bares, seria bem mais
fácil me esconder ali.
Andei por um quarteirão, olhando de um lado para o outro, como
se estivesse em fuga. Estava, de fato.
Alisei os cabelos desgrenhados pelo vento para trás, ainda tentava
entender por que minha vida tinha virado de ponta-cabeça de uma hora para
a outra.
Eu mal pude assimilar a morte de Hilde e meu pai faz uma besteira
como essa! Por quê? Por que ele tinha tirado a própria vida? Por que
diabos tinha desistido de tudo? De mim? E, como se não bastasse, o idiota
do meu colega de faculdade resolve deixar de ser só um babaca mimado e
se tornar um perseguidor?
Porra, Kat, bem que dizem que a vida muda quando a gente vira
adulto!
Peguei o celular no bolso só para conferir — de novo — que não
havia mensagem alguma, nem uma maneira sequer de pedir a ajuda dele, já
que a ligação fora feita de um número restrito.
Droga! Droga! Droga! Tinha que dar um telefonema? — xinguei
mentalmente. Eu queria que você tivesse vindo me buscar. Que estivesse ao
meu lado, enterrando NOSSO pai! Que me apertasse em seus braços
novamente, que…
Funguei, afastando as lembranças.
Ele não quis, Katarina! Nunca quis, realmente. Nunca a viu como
mais do que a garotinha sardenta que corria descalça pelo quintal! Nem
mesmo quando…
Limpei o rosto com as costas das mãos. Não queria de volta a
lembrança mais triste de todas, quando Ture deixou claro que não sentia por
mim o mesmo que eu sempre senti por ele.
Olhei para um lado e depois para o outro, antes de atravessar
novamente. Tinha saído da multidão sem perceber, e foi então que vi os
faróis do esportivo novamente.
Mas que droga! Resolveu me farejar feito um cão, Hanssen? —
xinguei em silêncio.
Aproveitei uma porta aberta e entrei antes que ele pudesse me ver,
só me dando conta do tipo de lugar que era tarde demais.
Lá dentro, pessoas se acotovelavam para chegarem próximas a um
palco pequeno onde luzes e fumaça saíam de uma máquina velha. A garota
cantava como um animal agonizante em uma linguagem que nem de longe
parecia alemão, mas pelo menos, no meio daquele monte de gente, eu
estava segura.
Tentei me afastar da multidão e fazer uma varredura do lugar,
quando alguém se aproximou rápido demais.
— O que uma garota como você faz num lugar como este? — o
homem falou perto da minha orelha. — Não achei que fosse tão fácil
encontrar uma princesa por aqui.
— Péssima cantada, babaca! — Tentei empurrá-lo, mas ele
segurou meu pulso, torcendo de um jeito dolorido.
— Conheço alguém que vai adorar saber o paradeiro da
princesinha!
Separei os lábios para gritar, mas não consegui. Um pedaço de
tecido embebido em algo que parecia formol tapou minha boca e nariz. Por
mais que eu lutasse, sentia minhas forças se esvaindo mais e mais.
— Katarina! — a voz de Ian Hanssen sobrepôs a música e ele
venceu o espaço entre nós tão rápido que eu mal percebi.
O homem que me segurava foi atirado ao chão e Ian caiu sobre ele
rosnando.
Eu tentava manter a consciência no meio dos gritos e mesas sendo
empurradas. Copos e garrafas se tornaram armas, e a multidão, que antes se
acotovelava pela música, de repente parecia um bando de animais urrando e
se batendo.
— Vá embora! — Ian gritou. — Pega o meu carro e some daqui
ligue para…
Uma porrada bem no rosto do garoto o fez cuspir sangue na cara
do homem em sua frente.
Entrei em pânico, não conseguia me mexer, nunca tinha passado
por nada parecido com aquilo.
— Kat, vai! — insistiu antes do próximo soco.
Dei alguns passos, mais cambaleante do que pretendia, o
pensamento oscilando entre ajudar Ian e seguir sua ordem. Pisquei algumas
vezes, quando atingi o corredor que levava aos banheiros. Estava tão zonza
que não percebi o homem atrás de mim até que ele passou o braço pela
minha cintura e me puxou com força de encontro ao seu peito.
Chutei o ar, esbravejei, gritei, mas o som de dentro era tão alto que
ninguém veio em meu socorro e a única coisa que eu pude fazer além de
tentar desesperadamente morder o braço dele, foi me deixar arrastar pelo
corredor em direção à porta dos fundos.
— Ei, docinho, não seja idiota! Acha que eu vou deixá-la escapar?
O preço pela sua cabeça é bem alto… — Subiu a mão, apertando meus
seios. — Mas é claro que a gente pode se divertir um pouquinho antes…
Engoli o choro, eu me recusava a deixar que as lágrimas caíssem,
mesmo quando meu rosto foi comprimido contra a parede suja e mofada. O
desgraçado se esfregou em mim e eu apertei os olhos, não queria ver.
Foi então que uma voz se sobrepôs ao barulho da briga no bar.
Grave e potente, com aquela nota de ordem que eu conhecia bem.
— A garota pediu que você a solte!
Capítulo Três
Katarina
Cada pelo do meu corpo se arrepiou com o som daquela voz.
Eu não conseguia vê-lo, mas tudo em mim podia sentir sua
presença, aquela ansiedade pela antecipação. Memórias se revirando em
uma velocidade surreal sem que eu pudesse controlar.
A fazenda em que cresci, a mata ao redor dela. O uivo dos lobos, o
medo que eu sentia. As mãos segurando as minhas, primeiro infantis,
depois adolescentes. Os olhos, a maneira como parecia ver dentro de mim.
A mania que tinha de pegar minha boneca e segurar no alto, onde eu não
conseguia pegar.
— Vou repetir… — o estrondo que a voz dele causava dentro de
mim afastou as lembranças. — Solte-a e talvez eu não o rasgue em muitos
pedaços.
O silêncio tomou conta por alguns segundos e depois as mãos que
me seguravam foram afrouxando até que o baque surdo ecoou.
Demorei a me virar, pela visão periférica podia ver a poça escura
aumentando.
Quando tomei coragem, engoli em seco, girando o corpo devagar.
O homem caído no chão estava embebido em seu próprio sangue. A
garganta não era mais que um buraco aberto, vertendo sem parar, enquanto
ele mexia a boca sem que som algum saísse. Olhos vítreos ainda me
encaravam quando elevei o olhar na direção do meu salvador.
— Você o matou — constatei tão baixo que achei que Ture não
tivesse escutado.
O garoto que crescera comigo limpou a faca de caça no dedo
indicador.
— Preciso que me acompanhe. — Virou as costas sem nem ao
menos um cumprimento. Sem sequer perguntar se eu estava bem.
Levei um pequeno instante para conseguir focalizar seu rosto. As
sobrancelhas estavam baixas, o que transformava seus olhos em uma linha
cor de esmeralda. Eu não sabia em que momento seus olhos haviam
passado de incrivelmente profundos e envolventes para gélidos e
assustadores. Na verdade, por mais que eu soubesse quem ele era, tinha
deixado de reconhecê-lo havia muito tempo.
— Ture… — minha voz era um misto de afirmação e
incredulidade.
Seus olhos voltaram ao que eram por uma fração de segundos e
logo retomaram a frieza de agora, mãos cerradas em punho, girando a
cabeça para trás, foi só então que eu vi Ian se aproximando. Cambaleante,
ele se escorou na parede. A jaqueta da faculdade rasgada e suja de sangue, o
rosto inchado e machucado.
— Ture… — constatou. — Eu não… Eu só… Eu queria ajudar!
Eu achei que…
O homem vestindo roupas pretas levantou a mão, dedo em riste,
calando a voz do meu colega de classe.
— Você colocou Katarina em risco — afirmou como uma
sentença, fazendo meu coração se acelerar. — Vou lhe dar um voto de
confiança por Magnus, mas lembre-se de ficar fora do meu caminho. —
Baixou um pouco a cabeça, encarando Ian mais de perto. — Posso não ser
tão condescendente da próxima vez.
A luz baixa não me permitia ver completamente, mas o brilho de
suor na testa do garoto deixava claro o quanto a presença do meu irmão de
criação não passava despercebida.
Não sei quanto tempo Ian levou para sumir, já que meus olhos
ainda encaravam Ture, debaixo do pequeno feixe de luz que vinha do
banheiro.
Havia tantos sentimentos confusos pairando em torno de mim que
até esqueci o formol. Só percebi que ainda estava zonza, quando tentei me
mover e quase caí.
Ture levantou a mão por instinto, mas parou, fechando os dedos
em punho, antes de oferecê-la a mim.
— Vamos sair logo daqui.
Abri a boca para responder, mas ele já estava alguns passos à
frente. Ali, de costas no corredor escuro, sua figura parecia ainda mais
assustadora.
Só quando já estava quase na saída dos fundos, ele percebeu que eu
não o havia acompanhado.
— Consegue andar? — perguntou sem nem uma sombra de
sorriso, nenhuma nota de carinho na voz.
Meneei a cabeça, dando o primeiro passo, a mão ainda apoiada na
parede. Não sei se foi o formol, o tempo de estômago vazio ou uma mistura
de tudo que havia acontecido naquele maldito dia, mas minha vista
escureceu e eu tive certeza de que ia encontrar o chão.
Para a minha surpresa, Ture venceu o espaço entre nós e me
segurou nos braços. Meu corpo parecia ainda menor apertado contra o dele,
meu rosto em seu peito, aquele perfume que eu conhecia tão bem invadindo
minhas narinas, tomando conta de mim.
Pensei em um milhão de coisas para dizer, mas tive medo, então
me calei.
Ture caminhou comigo em seus braços pelo corredor escuro e
abriu a porta dos fundos com um pontapé tão forte que o segurança do outro
lado foi atirado ao chão.
Fui colocada no banco da frente de um Esportivo preto e a porta foi
fechada. Logo depois, Ture assumiu o volante.
Ajeitei-me no banco de couro e corri as mãos pelos cabelos, na
tentativa de parecer menos deplorável.
Seus olhos estavam focados na estrada em uma velocidade tão alta
que eu me perguntava se ele conhecia limite de velocidade.
— Para onde vamos?
— Enterrar Yrian.
Engoli em seco.
— Eu disse que não queria ir… — minha voz soava bem mais
insegura do que eu gostaria.
— Não é uma opção. Seu lugar é lá, junto do seu povo!
Abri a boca para retrucar, mas conhecia aquele cabeça-dura bem
demais para saber que aquilo não era uma negociação. Além do mais, agora
que ele estava comigo, eu precisava confessar que queria mesmo dar um
último adeus ao meu pai.
— Preciso passar no dormitório, pelo menos… Minhas coisas…
— Não, não precisa! — soltou incisivo.
— Ture, minhas coisas… — insisti. — Minha vida…
Os olhos verde-esmeralda que eu tanto amava voltaram-se para
mim naquela linha fina que me fazia perder o fôlego.
— Sua vida começa agora, Katarina!
Tudo dentro de mim estremeceu, como se aquela fosse, de fato,
uma sentença irrevogável. Engoli em seco, os olhos fixos no homem ao
meu lado.
Quando foi que Ture ficou tão forte?
Ele sempre foi alto, muito mais que qualquer garoto da sua idade,
mas os anos em que não nos vimos lhe conferira músculos perfeitos e um
porte altivo que eu não conhecia. O cabelo louro era raspado dos lados com
a franja propositalmente despenteada, sobrancelhas grossas. Sua pele ainda
era bronzeada, mas a barba por fazer criava um caminho dourado até o
pescoço.
Os olhos ainda eram de um verde tão intenso que pareciam brilhar
no escuro do carro. A camiseta preta estava apertada demais sobre os
músculos do braço marcado por tatuagens rúnicas. Cerrei os dentes e
desviei os olhos para a estrada
Em que momento meu irmão de criação se transformou tanto?
— Vamos para o apartamento do meu pai? — perguntei por que
estava incomodada com o silêncio. — Onde será o enterro? Eu preciso…
Ture nem sequer me olhou. Sua concentração continuava na
estrada, enquanto as árvores passavam mais e mais rápido.
— Vamos para o aeroporto… De lá pegaremos um voo para a
Suécia. Estocolmo, mais precisamente, de onde seguiremos para Uppsala.
— A fazenda… — constatei sentindo meu coração se acelerar. —
Ture, eu não…
— Como eu disse, Katarina… — Voltou o rosto para o meu. —
Sua vida… Sua verdadeira vida começa agora. Há muita coisa que você
precisa entender e…
Toquei a mão que estava sobre seu joelho com a minha em uma
súplica silenciosa.
— Você vai cuidar de…
— Sua segurança! — cortou taxativo, afastando-se do meu toque.
— Minha função, princesa…, é cuidar da sua segurança.
Capítulo Quatro
Ture
Fixei os olhos na estrada e enfiei o pé no acelerador, na esperança
idiota de que a velocidade me ajudasse a calar os pensamentos que ecoavam
dentro de mim. Dela, não meus.
“Tonta, Katarina! Você é uma tonta! Não acredito que esperava
mais que isso! Achou mesmo que ele iria chegar e te abraçar? Ele nem
perguntou como você estava?” — Suspirou tão fundo que meu peito doeu.
Levei a mão até ela por instinto, mas parei a meio palmo, antes de
tocá-la. Se ela soubesse… Se tivesse a mínima noção…
O ódio ainda tomava minhas veias desde o instante em que vi as
garras do desgraçado sobre ela, a fera uivando lá no fundo do meu peito,
buscando seu lugar na superfície.
Minha Katarina! Minha!
Enchi os pulmões de ar e apertei o couro do volante tão firme que
os nós dos meus dedos ficaram brancos.
Não, Ture… Ela nunca será sua.
Minhas mãos tremeram. Tão forte, tão fundo, meus músculos
doendo, retesados. Meu corpo em plena combustão, enquanto eu tentava em
vão conter a transformação.
Pisei no freio assim que atingi a pista. Katarina se desequilibrou
para a frente e eu a segurei no impulso, meu braço ao redor do corpo dela, o
calor da sua pele fazia a minha queimar.
Abri a porta e desci o mais rápido que consegui.
— Estamos à disposição, senhor. — Um dos seguranças se
aproximou.
— A senhorita! Embarque a senhorita! — as palavras saindo como
um rosnado.
Segui em frente, passos largos me levando longe o suficiente para
que pudesse recobrar o controle do meu corpo. Tudo dentro de mim fervia,
até que não consegui mais controlar.
Cerrei as mãos em punho, caindo de joelhos, não comandava mais
o meu corpo.
O grito irrompeu do fundo da minha garganta, meio homem, meio
fera, meu peito estourando de dentro para fora.
Não podia deixar que o animal tomasse conta, que vencesse a
batalha. Não tinha o direito de me descontrolar, arriscar Katarina.
Katarina…
Busquei nela o controle de que precisava. Seu riso, os dedos
pequenos resvalando em meu nariz, minha orelha.
— Acorda, dorminhoco! — O hálito fresco em minhas bochechas,
tão perto, tão doce.
Aquelas eram as melhores lembranças que eu guardava, de um
tempo em que eu podia tê-la por perto. Um tempo em que meus instintos
bastavam para mantê-la segura, protegida, feliz.
Pouco a pouco, meu corpo se acalmou e a fera dentro de mim
adormeceu novamente.
Contei as respirações. Uma… Duas… Três…
Cada vez mais lentas, mais controladas, até que pude me levantar.
As palmas limpando a poeira da calça preta, antes de alisar os cabelos para
trás.
Quando me aproximei do avião novamente, tinha voltado ao que
deveria ser. A porra de um soldado frio, com um propósito nobre a cumprir.
Subi as escadas e dei a ordem para que a tripulação iniciasse o
processo de decolagem.
Aproveitei para enviar uma mensagem a Aren.
“Estou com ela. Tudo certo.”
Não esperei pela resposta, guardei o telefone e continuei passando
pelas poltronas até me aproximar de onde Katarina estava.
— Quando vai me contar o que está acontecendo, hum? — o tom
irritado era melhor que a tristeza de antes. — Acha mesmo que eu vou
seguir você por aí feito um cachorrinho? Como quando éramos crianças?
Sentei-me na poltrona do outro lado do corredor e cruzei os braços
na frente do corpo. Ainda não estava em condição de discutir sem me
descontrolar.
— O que dá a você o direito de pensar que pode mandar em mim?
Você nem mesmo… Olha para você, Ture! Não sobrou nada do garoto que
eu conheci!
Katarina levantou-se e parou bem em minha frente, quase entre
minhas pernas. Pouco espaço, muito pouco espaço entre nós e aquele fogo
desgraçado arranhando minha garganta novamente.
— Essas roupas… Essas… — A mão segurou minha camiseta, os
dedos resvalando minha pele, não resisti.
Levantei-me de uma vez, carregando o corpo dela com o meu,
prensando-a na poltrona da frente, ciente do quanto aquela proximidade me
afetava. Cada músculo do meu corpo acordado novamente.
— Não há nada de errado comigo! — rosnei baixo, a voz saindo
entre dentes. — Eu sou exatamente quem deveria ser! Já você…
Katarina engoliu em seco, os lábios entreabertos, como se
precisasse de mais oxigênio do que tinha, os olhos… Aqueles malditos
olhos azuis intensos focados nos meus.
Soltei o ar de uma vez, soprando em seu rosto, aproveitando aquela
proximidade pela última vez e depois virei as costas, tão rápido que ela se
apoiou no encosto de cabeça.
— Você deveria se lavar e vestir algo menos vulgar… Metade da
sua bunda está exposta… Deveria…
— Vai se foder, Ture! — gritou.
— E deveria melhorar seus modos também…
Não a encarei, mas podia sentir tudo que ela sentia. Cada gota de
sentimento correndo em suas veias. Raiva, medo, vergonha, tristeza. Baixei
a cabeça por um segundo, absorvendo o que não podia controlar.
Aren está certo, é uma porra de laço forte demais! Mas eu vou
conseguir. Vou rasgá-lo, arrebentá-lo nem que custe minha sanidade.
Katarina nunca saberá. Eu a deixarei livre para amar seu prometido antes
que a transformação aconteça. Antes que ela perceba…
Limpei a garganta, afastando os pensamentos. Preferia lidar com os
dela, eram menos dolorosos.
— Há um banheiro lá nos fundos… — Apontei. — Nele você
encontrará roupas adequadas e tudo mais para que possa se lavar. Teremos
um dia cheio, você precisa estar preparada.
— Para quê? — A mão que tocou minhas costas era suave. —
Conte-me o que está acontecendo, Ture. Diga-me! — exigiu.
Eu entendia bem toda aquela agitação e inconstância, sua
transformação se aproximava, a fera dentro dela começava a acordar.
Dei um passo em frente, cortando o contato, e virei-me devagar.
— Você saberá de tudo na hora certa, Katarina. Primeiro precisa se
aquecer e se alimentar. Sua saúde deve ser prioridade.
Ela abriu a boca para reclamar, mas desistiu. Eu também fiquei em
silêncio. Tinha medo de que, se falasse demais, o que eu tentava esconder
ficasse evidente. Katarina não era idiota, embora não soubesse de toda a
verdade, ela me conhecia bem demais, mais que qualquer um.
— Senhor… — um dos seguranças chamou.
Passei por ela como se não existisse nada além do corredor vazio e
segui direto para a cabine do piloto.
Só perguntei o que havia acontecido, quando a porta se fechou
atrás de mim.
— Há um problema no aeroporto regular. Um dos homens em solo
avisou sobre atividades incomuns nas redondezas.
Tamborilei os dedos no metal da parede. Eles tinham descoberto
Katarina, era óbvio que viriam atrás dela. Depois de Hilde… — Suspirei.
— Vamos mudar o trajeto.
— Durante o voo? — o piloto questionou. — Sr. Svensson, eu
não…
O reflexo do meu rosto no vidro da aeronave foi o suficiente para
que ele pigarreasse e reformulasse a frase.
— Preciso ao menos avisar a torre.
— Não, não precisa — avisei. — O Sr. Fairhair cuidará de
qualquer problema que aconteça após nossa aterrissagem.
Era uma ordem, e o homem, apesar de humano, havia
compreendido que contestar um de nós era como uma condenação.
Deixei a cabine para encontrar as poltronas vazias.
Ao menos Katarina havia me obedecido.
Capítulo Cinco
Katarina
Fiquei parada ali vendo-o se afastar no corredor.
Ainda tentava entender tudo que havia acontecido em tão pouco
tempo, sentia como se um tornado tivesse me arrastado para dentro e eu só
girasse e girasse, sem rumo algum.
Depois que Ture sumiu dentro da cabine do piloto, eu soltei o ar
dos pulmões e aceitei mais uma parte do destino que eu nem entendia ainda.
Caminhei para os fundos da aeronave e entrei no banheiro.
Eu tinha feito poucos voos em minha vida, conhecido poucos
lugares, provado poucas comidas. Encarei meu rosto no grande espelho,
pensando no que havia acontecido com Ture, de onde diabos havia saído
tanto dinheiro.
Livrei-me das roupas sujas, o pensamento ainda se esforçando para
formar as conexões que eu não tinha.
Papai sempre foi um homem educado. Para ser sincera, seus modos
e elegância destoavam muito da modéstia com a qual vivíamos naquela
fazenda. O lugar era lindo, mas não havia luxo de nenhuma espécie. Papai
se comportava como um bom homem do campo, ajudando aqui e ali quando
os vizinhos precisavam ou alguém chegava a nossa casa buscando por
ajuda.
Eu nunca entendi o que havia feito um médico tão jovem
abandonar a carreira e se enfiar em um fim de mundo como aquele em que
morávamos, mas sempre achei que a morte da minha mãe fosse a culpada.
Meu pai nunca superou o fim trágico da mulher que ele amava.
Liguei o chuveiro e fechei os olhos, sentindo a água morna lavar
meu corpo e cabelos, escorrendo devagar. Esfreguei os olhos, que já
estavam borrados de rímel e delineador, e escovei os dentes
cuidadosamente.
Vesti um jeans largo demais e uma camiseta branca, em que
precisei dar um nozinho para que não servisse de vestido. Não pude deixar
de sorrir assim que mirei meu rosto no espelho.
Ele definitivamente não sabe comprar roupas femininas!
Peguei meu par de tênis velhos e surrados, calçando-os. Depois
penteei os cabelos e prendi em uma trança de mechas azuis que já estavam
no meio do comprimento.
No verão passado, Hilde havia insistido em fazer algo diferente em
meus cabelos, então deixei que ela descolorisse e pintasse de azul. Era
minha última lembrança dela, mas agora, mirando meu rosto triste no
espelho, parecia bobo demais.
— Senhorita? — a voz grave de um homem chamou da porta. —
Deseja algo para comer?
Abri a porta devagar.
— Não estou com…
— Ela deseja um filé bem guarnecido. E suco de laranja — Ture
interrompeu se aproximando por trás do comissário.
— Imediatamente, senhor. — O homem baixou a cabeça sem nem
questionar.
Eu também não estava com vontade de discutir, não havia comido
nada desde a manhã e uma refeição parecia mesmo uma boa ideia. Joguei
meu corpo na poltrona, na parte de trás do avião, e fiquei observando o
homem à minha frente. Um misto de sentimentos vindo à tona. Bons, ruins,
impróprios, todos de uma só vez.
Não demorou muito para que meu jantar fosse servido e, assim que
a bandeja foi destampada, comi em silêncio, concentrando-me apenas no
bife enorme em minha frente e na linha de sangue que se formava a cada
golpe da faca.
Só percebi o quanto estava mesmo faminta quando a comida
acabou e o comissário se aproximou.
— Posso servir a sobremesa, senhorita?
— Uhum! — concordei rápido demais, ainda com a boca cheia de
bife.
Segundos depois, uma taça de sorvete foi colocada em minha
frente e eu deixei um suspiro escapar.
Levei a primeira colherada à boca e fechei os olhos, sentindo o
sabor de fruta fresca e creme tomar minha língua. Tinha gosto de infância e
de memórias boas. Era um daqueles sabores que fazem um filme passar em
nossa cabeça.
— O sorvete está bom?
Abri os olhos assustada, puxando a poltrona de volta à posição.
— Uhum… — respondi com a boca cheia, sem encará-lo.
— Pedi que seguissem a receita de Yrian…
Mirei-o assim que escutei o nome do meu pai. Os olhos de Ture
pareciam mais claros e leves, seu semblante mais amistoso, sem a carga que
havia antes.
Sorri, mas logo desviei. Meu estômago fazendo um bolo e minha
pele se aquecendo.
Ture também não me encarou, os olhos verdes perdidos em algum
lugar da noite lá fora.
— Katarina, eu não quero brigar com você — começou como se
fosse um pedido de desculpas, daquele jeito tão dele de tentar consertar as
coisas.
— Nem eu… — confessei deixando o ar sair junto da última
palavra. — Quer dizer, faz tanto tempo que não nos vemos e agora… —
Engoli em seco, meus olhos marejando, então funguei, na tentativa de
manter o controle. — Agora que ele se foi… eu… — Parei no meio da frase
sem saber como continuar sem parecer idiota e carente. — Eu só tenho
você… — Engasguei-me com o fim da frase.
Era bobo e infantil, mas era verdade. Eu não tinha mãe, não tinha
muitos amigos, Hilde havia morrido e agora meu pai, também. Não sobrara
nada… Ninguém…
Ture inspirou o ar profundamente, fazendo seu peito parecer ainda
maior. Os olhos fixos nos meus de um jeito quase desconcertante e muito,
muito íntimo.
— Eu sempre estarei aqui para você, Katarina.
Havia tanta verdade naquelas palavras. Tanto sentimento, que eu
não resisti. Joguei-me em cima dele, aconchegando a cabeça em seu peito.
As lágrimas descendo mais e mais rápido. De repente, eu não queria mais
sentir raiva ou ser forte. Não queria fingir que nada estava acontecendo.
Queria chorar e me sentir amada.
Ture me amparou, apertando meu corpo pequeno contra o seu,
encostando o queixo no alto da minha cabeça. Suas mãos deslizando em
minhas costas. Ele era forte e quente e seu cheiro era tão bom, tão
conhecido. Levantei a cabeça, tocando a boca na pele do queixo dele.
— Promete?
Ture engoliu em seco e fechou os olhos por um instante, as mãos
cerradas em punho, como se precisasse se concentrar em algo que não fosse
eu, mas não me importei, nem me afastei. Precisava dele como precisava de
ar para respirar.
Minha tristeza se dissipava como nuvem no céu depois da chuva.
Meu corpo sentia o dele de um jeito tão intenso, tão profundo. E eu queria
tocá-lo por mais tempo.
Havia uma urgência incontrolável em sentir seu toque, seu gosto.
Uma fome que eu não conseguia aplacar. Engoli em seco tentando refrear o
que queria, mas não resisti. Meus lábios se separaram e eu tateei a pele dele
com a ponta da língua, sem saber qual seria sua reação.
Foi então que uma explosão tomou conta de mim, como se eu
tivesse tocado um fio desencapado descalça. Havia uma força intensa
fluindo dele para mim, um canal ininterrupto de sensações, meu coração
acelerado, os músculos tão tensos que chegavam a doer.
Ture fechou os olhos, seu peito subindo e descendo rápido, na
mesma batida que o meu, os lábios separados. Eu podia ouvir seu coração
batendo no eco do meu. Podia jurar que ele me chamava, que seu corpo me
chamava, seu sangue, o calor dele.
Eu queria mais. Queria ir além, ousei, mas antes que atingisse meu
objetivo ele se virou de lado tão rápido que precisei me apoiar no encosto
do banco para não cair.
— Você precisa descansar, teve um dia cheio.
Levei um segundo para voltar ao controle do meu corpo e, mesmo
depois de vários minutos, não entendi o que havia acontecido, que diabos
eu tinha sentido, como podia ter me conectado tanto com alguém.
Em algum momento dormi e o sonho parecia tão real que era como
se eu realmente vivesse nele.
Eu estava em um vilarejo, na porta de uma cabana com paredes de
pedra. Meus pés descalços tocavam a grama molhada no chão. Um jovem
cavalgava em direção a casa.
Eu queria vê-lo, meu coração estava acelerado, as pernas
trêmulas, mas não conseguia. Seu rosto estava disforme, encoberto por
uma névoa densa. Eu não podia ver, mas podia sentir perfeitamente. Ture.
Era Ture no cavalo. Ele desceu da montaria e se aproximou, puxando-me
para si. Fechei os olhos assim que seus lábios tocaram os meus. Era um
beijo faminto, ansioso, profundo. Eu sentia como se ele pudesse me
consumir inteira com sua boca, e eu queria isso. Queria aquele homem
como nunca havia desejado alguém. Seu corpo pressionando o meu contra
a parede, seus músculos encaixados nos meus.
— Eu sempre estarei aqui para você… — o homem do sonho
repetiu, mas era a voz de Ture que eu ouvia ressoando dentro de mim.
Ele me carregou para dentro, seu corpo colado ao meu sem se
afastar um milímetro sequer.
O interior da cabana era pequeno e simples, mas era tão perfeito
que meu coração estava repleto de felicidade.
— E eu sempre serei sua… Ah, Tu…
— Disse alguma coisa?
Abri os olhos rápido demais, forçando meu corpo a se levantar.
Nada. Ele não me obedecia. Eu podia sentir cada músculo em protesto, tudo
em mim tremia.
— Katarina… — Ture venceu o espaço entre nós. — Sente-se
mal?
O sonho ainda estava vivo demais, a sensação da boca dele em
minha pele, o gosto do beijo. Separei os lábios, mas não consegui falar. De
repente, Ture limpou a garganta e eu podia jurar que tinha reprimido um
riso.
— Você estava com uma cara estranha enquanto dormia. Achei que
estivesse sufocando, ou se afogando, sei lá! — Deu de ombros.
Ódio fervilhou dentro de mim. Aquela sensação de rejeição que ele
adorava esfregar em minha cara tomando conta, mas engoli em seco sem
mover um músculo. Quando se afastou, levantei-me do meu assento e corri
até o banheiro.
— Droga, Katarina, tinha que ser tão óbvia? Quando você vai
tomar vergonha na sua cara e parar de correr atrás dele como um
cachorrinho perdido?
Enchi os pulmões de ar, mirando meu rosto no espelho.
Capítulo Seis
Ture
Apertei o couro do banco segurando meus instintos.
A porra da conexão estava quase me matando e, se não o fizesse,
as lembranças antigas iriam!
Engoli em seco e minha boca tinha o gosto dela. Meu corpo todo
rígido, ofegante, pronto para ela de um jeito que eu mal conseguia pensar.
Só me virei em sua direção quando ouvi a porta do banheiro se
trancar.
Isso, garota, fique longe de mim. Faça isso, ou estaremos fodidos
os dois!
— Senhor? — um dos seguranças chamou. — O piloto recebeu
permissão para pousar em uma pista desativada ao norte do aeroporto.
Nossos homens já varreram o perímetro e está tudo pronto. Descemos em
quinze minutos.
Meneei a cabeça em concordância. Era melhor que a chegada de
Katarina não levantasse rumores. Ela tinha que parecer bem e segura
quando fosse revelada, cabia a mim cuidar disso.
Pelo tempo que restou de voo, a garota não deixou o banheiro. Era
mais esperta do que eu pensava, talvez fosse mais inteligente do que eu.
Katarina só voltou ao seu lugar quando o aviso de afivelar os
cintos acendeu e, mesmo assim, nenhuma palavra foi dita, até que
chegamos a solo sueco.
Dois passos depois, um dos homens se aproximou e estendeu a
chave do esportivo em minha direção.
— Tem certeza de que prefere ir sozinho, senhor? Se quiser…
Aproveitei que Katarina estava a alguma distância para explicar.
— Mantenham uma distância segura, mas fiquem ao alcance de um
chamado. Não quero alertar sobre a chegada da princesa.
O homem meneou a cabeça e seguiu em frente, sumindo no meio
da mata. Eu conduzi minha acompanhante até o carro escuro estacionado, já
com as portas abertas. Assim que ela se sentou, eu ocupei meu lugar atrás
do volante.
— Tem um vampiro de um livro que também é fascinado por
Volvo! — Levantou uma sobrancelha para mim.
Reprimi o riso mordendo o lábio e acelerei, deixando a pista de
pouso para trás.
— Vampiros não existem! — Enfiei o pé mais fundo, os pinheiros
passando mais e mais rápido.
Katarina riu e eu precisava confessar que ficava bem mais centrado
quando ela sorria do que quando chorava, desde, é claro, que a distância
entre nós fosse suficiente para manter a conexão desfeita.
Era quase hora do almoço, quando avistei ao longe uma lanchonete
e achei que seria uma boa fazer uma pequena parada estratégica.
Encostei o carro e abri a porta.
— Espere aí dentro, vou pegar algo para comer — avisei.
Katarina não protestou e eu sabia bem a razão. Minha presença
forçava ainda mais sua transformação e exigia de seu corpo. Não era algo
de que eu me orgulhava, mas já tinha passado da hora de Katarina se tornar
o que realmente era.
Yrian havia acertado ao mantê-la a salvo, longe da maldade que
permeava sua existência; mas tinha errado ao tentar manter sua essência
adormecida. Por sorte, esse era um problema que logo estaria resolvido.
Voltei para o carro com dois sanduíches e duas cervejas.
Entreguei a ela, mas dei a partida. Era melhor que comêssemos em
um lugar mais escondido. Longe da estrada principal.
Enquanto eu procurava a saída secundária em baixa velocidade,
Katarina mirou as garrafinhas de bebida e riu.
— Vai mesmo me deixar beber? — questionou fazendo piada.
— Você completou dezoito… — Parei depois de esconder o carro
atrás da vegetação. — Além disso, tem bebido sem minha permissão já há
algum tempo! — Afilei os olhos e a encarei.
A garota riu alto.
— Não me diga que estava me espionando esse tempo todo! —
brincou, rindo mais alto.
Fingi que não passava de uma piada, mas a verdade é que não
houve um único momento em que minha atenção não estivesse nela.
Mesmo quando eu precisava me ausentar, mas esse era um segredo meu.
Katarina jamais descobriria que eu a tinha protegido por todos esses anos.
Abri a porta e desci, mas Katarina demorou a fazer o mesmo e eu
levei alguns segundos para entender a razão.
Dei a volta e peguei a comida, deixando sobre o capô. Peguei-a nos
braços, lutando contra as malditas sensações que ela despertava em mim, e
a apoiei ao lado do sanduíche.
— Melhora com o tempo… — soltei sem pensar muito e a
curiosidade em seu rosto mostrou a merda que fiz. — As dores…
— Como sabe? — questionou de pronto.
— Só… sei…
Esperei que ela fosse mais a fundo, que me interrogasse, mas
Katarina ficou em silêncio por alguns segundos, mirando a paisagem a
nossa frente. Depois girou a tampa da cerveja e entregou uma a mim.
— Ao passado? — Soltou o ar dos pulmões, o rosto triste demais
para tão pouca idade.
— E a como ele foi bom… — completei, mas não consegui sorrir.
Dei um gole, os olhos fixos nas folhas boiando no pequeno lago à
nossa frente. Havia tanto a falar, tanto a confessar que eu nem tinha ideia de
por onde ir, então só deixei que um pouco da minha essência se mostrasse.
— Ele foi muito bom para mim. Fez do garoto solitário tudo que
eu sou… — confessei. — Seu pai…
— Nosso… — interrompeu. — Sei que ele não era seu pai, Ture,
mas amava você como a um filho… Ele… sempre teve muito orgulho de
você.
Engoli em seco, sentindo o peito doer. Minha dor, a dor dela,
éramos o espelho um do outro, mesmo àquela distância. Minha única cota
de paz era saber que Katarina não sentia o mesmo que eu. Aquele era um
laço de uma ponta só, ao menos por enquanto.
Uma lágrima rolou em seu rosto bonito, os olhos assumindo um
tom de azul tão perfeito e transparente que parecia transbordar. Minha mão
coçava de vontade de tocá-la, meu instinto urrava por protegê-la e tudo que
eu podia fazer era me controlar e rezar para que aqueles poucos centímetros
entre meu corpo e o seu fossem suficientes para me manter sob controle.
Mais uma lágrima.
— Ele fez um bom trabalho conosco, veja só… — Sorriu, voltando
o rosto para o meu.
— Ainda não tenho certeza… — usei o deboche como arma. — Eu
só a encontrei há algumas horas e já perdi a conta de quantas vezes cogitei
sufocá-la! — Dei de ombros. — Ou tapar sua boca com fita… Talvez deixá-
la por aí, no meio da floresta…
— Ture! — reclamou, mas reclamou rindo, e eu soube que tinha
feito a escolha certa. — Eu nem tenho um capuz vermelho… Menos ainda
uma vovó! — entrou na piada, ajeitando as pernas.
Foi então que de repente meu coração deu um salto, a fera subindo
à superfície, não pude freá-la.
Virei-me de uma vez, as mãos apoiadas de cada lado dela, meu
corpo entre suas pernas.
— Quer que eu cante “Quem tem medo do lobo mau”? —
provoquei, minha razão tinha ido havia muito.
— Não… — ela respondeu com os olhos fixos nos meus.
— Por que, Katarina? Acaso não tem mais medo?
— Não… — Deu um impulso à frente, o corpo muito, muito perto
do meu. — Com você aqui, eu não tenho medo de nada.
Engoli o desejo de puxá-la para mim, de sentir seu gosto, seu
toque. Soquei o capô do esportivo para aplacar minha fera, meus dedos se
afundando na lataria.
Katarina levou um susto tão grande que deixou a garrafa cair, os
cacos espalhados sobre minhas botas.
— Vamos! — chamei. — É hora de ir. Você termina dentro do
carro.
Ela deu a volta em silêncio e eu senti meu coração murchar um
pouco. Não gostava de ver minha garota tão vulnerável daquele jeito,
preferia a sua petulância, lidava melhor com ela reativa do que derrotada.
Segui pela estrada, meu sanduíche ainda inteiro no console.
Pouco mais à frente, já perto do nosso destino, avistei um mirante.
— Preciso esticar as pernas — avisei. — Traga a comida, vamos
terminar com isso logo. Não quero ninguém desmaiando de fome por aí.
Era minha tentativa parca de fazer as pazes. Queria que ela
entendesse meus motivos, mesmo que eu não pudesse falar.
Sentei-me em um tronco caído, Katarina caminhou um pouco mais
à frente, escorando o corpo em uma árvore, os dedos acariciando pequenas
flores amarelas de um arbusto.
— Você acha mesmo que ele se matou? — soltou depois de
algumas mordidas. — Quer dizer, ele nunca foi do tipo que foge dos
problemas… — Soltou o ar dos pulmões.
Pensei em muitas maneiras de desviar o assunto, mas não era o que
eu queria. Independentemente de laços, Katarina e eu tínhamos Yrian em
comum. Eu não podia permitir que a memória dele fosse maculada.
— Não. Não acho… — confessei. — Só que… — Respirei fundo,
precisava escolher as palavras. — Por enquanto, Katarina, não podemos ter
uma opinião… Existem muitas coisas sobre sua natureza e sua vida que
você desconhece. Seu pai achou que a proteger significava lhe esconder a
verdade e eu aceitei, mas agora não pode mais ser assim. — Estendi a mão
e segurei as dela. — Eu preciso que seja forte, liten[2]… Preciso que não me
afronte, que faça o que eu disser… Prometa-me! — pedi.
A garota que tinha meu coração em suas mãos cravou os olhos nos
meus de um jeito tão intenso e tão leal, que eu podia jurar que sentia o
mesmo que eu.
— Prometo… — soltou em um sussurro, que reverberou dentro de
mim.
Engoli em seco, esforçando-me para manter a calma.
— Tudo será dito na hora certa, você entende? — continuei.
Katarina aquiesceu.
— Confia em mim?
Esperei pela resposta com o coração em soluços. A resposta tinha
muito mais peso do que ela podia imaginar.
— Os homens do Norte protegem suas mulheres? — Sorriu na
tentativa de fazer graça com o bordão que conhecíamos tão bem.
Girei a mão e entrelacei nossos dedos, a energia dela fluindo para
mim, as almas se conectando, meu lobo se tranquilizando com aquele
contato.
— Eu protejo você, Katarina! — sussurrei e ela sorriu. — Sempre!
Katarina engasgou e tossiu, perdendo-se naquele emaranhado de
sensações e então foi minha vez de rir, para tentar diminuir o peso.
Quando entramos no carro novamente, tudo que consegui pensar
foi que meus momentos com ela tinham chegado ao fim e logo eu a
entregaria nos braços de outro.
Capítulo Sete
Katarina

Chegamos ao pequeno vilarejo cerca de uma hora depois de


passarmos pelos arredores de Uppsala.
Era meio da tarde e o sol do outono salpicava luz na água do rio,
enquanto Ture guiava o barco em direção à fazenda do meu pai.
— Por que não vamos pela ponte? Seria mais rápido… —
constatei.
— Não quero que saibam que você está lá.
— Por quê? — perguntei franzindo o cenho, não conseguia
entender. — Para mim, parece perfeitamente natural uma filha ir ao funeral
do pai…
— Como eu disse mais cedo, Katarina, seu pai tomou uma decisão
errada. Ele escondeu você do mundo e o mundo de você. Poucas pessoas
em nosso… — Desviou o olhar, como se pensasse nas palavras com
cuidado. — Poucos sabem que você está viva, então…
— Tudo bem… — Toquei sua mão. — Vou apenas… confiar em
você…
Ture soltou um suspiro longo, mas não disse nada. Eu também
fiquei em silêncio, enquanto atravessávamos o largo rio em direção à
margem oposta.
Depois de poucos minutos, atracamos na pequena praia atrás do
celeiro e Ture desceu, dando a mão para me ajudar. Seguimos em direção à
cabana de caça, passando pela vegetação mais alta.
Assim que avistei a pequena construção de madeira, as memórias
voltaram com força. Ture e eu costumávamos brincar por ali, quando não
era temporada de caça nem lua cheia. Meu pai fazia questão de manter o
lugar todo muito bem-cuidado, então ver o mato alto daquele jeito fez meu
coração se entristecer.
— Vou mandar limpar… — Ture soltou de repente, como se
pudesse ler meus pensamentos, mas pigarreou logo em seguida, deixando o
assunto morrer.
Continuei até a entrada e então parei.
— O chuveiro está funcionando e tem água quente, pode se lavar,
se quiser. Sobre a cama você vai encontrar roupas apropriadas para o
funeral.
Abri a porta em seguida, mas só percebi que ele não havia me
acompanhado quando já estava dentro do lugar.
— Você não vem? — Recuei, de repente não queria entrar.
— Vou me lavar no lago. — Sorriu de canto. — Prometo que estou
a um grito de distância!
Acabei rindo, mesmo que o sorriso tenha morrido assim que mirei
a cabana vazia. Tudo aquilo me lembrava meu pai, a vida com ele, o tempo
em que eu era feliz e despreocupada. Quando tudo que eu queria era correr
por aí e colher amoras com Ture.
Parei junto à porta do banheiro, correndo a mão pela madeira por
um segundo, e finalmente entrei.
A água estava morna e confortável, então o banho veio de bom
grado e meus músculos doloridos agradeceram. Lavei os cabelos e os
sequei o melhor que pude, enrolando a toalha no corpo, antes de abrir a
porta.
— Oh! — travei no mesmo instante.
Ture estava lá, de costas para mim, fechando a calça social preta.
As costas largas e musculosas estavam à mostra e a pele dourada de sol
exibia várias tatuagens, quase por toda a extensão do seu tronco, em
desenhos rúnicos.
Só percebi que tinha parado de respirar quando o ar me faltou.
— Desculpe — ele pediu virando-se de frente para mim.
Apoiei-me no banheiro, minha boca semiaberta, sem conseguir
fechar, os olhos perdidos no corpo dele.
Ture deu mais alguns passos, seguindo em direção a mim. Havia
algo nos olhos dele, um desejo voraz que eu não conseguia entender, mas
que sentia ressoar dentro de mim.
Um passarinho enxerido pousou na janela e quebrou nossa
conexão, então ele deslizou a mão pelo cabelo desarrumado, alinhando-o
com os dedos.
— Achei que demoraria mais no banho, por isso… — Girou as
mãos no ar. — Foi uma ideia estúpida.
Meus olhos percorrendo a extensão de seu peito, da cintura até os
ombros. A pele nua parecia colada ao corpo, nem um grama de gordura
entre eles, apenas músculos perfeitos, tingidos de preto com antigos
símbolos de Odin.
— Belas tatuagens — constatei.
Ture não respondeu, apenas meneou a cabeça e jogou a camisa nos
ombros, pegando a gravata e o blazer.
— Troque-se e saia quando terminar — pediu. — Eu a espero do
lado de fora.
O vestido preto caiu como luva em mim, cobrindo meu corpo até
os joelhos. Era bonito e elegante de um jeito clássico. Teria sido minha peça
preferida, não fosse o escolhido para o funeral do meu pai.
Subi a meia fina da mesma cor pelas pernas e calcei os sapatos de
salto alto. Prendi o cabelo em um coque, fazendo o possível para esconder
as pontas azuis que pareciam não se encaixar ali.
Olhei meu reflexo no espelho e pensei em quantas vezes meu pai
tinha me dito que um dia eu seria bonita como a minha mãe. Eu nunca
soube se era mesmo verdade, já que não guardava lembrança alguma dela.
Peguei os óculos e os coloquei sobre os olhos, antes de sair.
Ture estava de costas, o terno escuro evidenciando a dureza de sua
postura, até que ele se virou.
— Pronta? — perguntou sério.
Fiz que sim com a cabeça, embora não tivesse certeza.
Ele pegou alguns comprimidos no bolso e me entregou.
— Beba.
— Achei que não quisesse mais que eu tomasse os…
— São analgésicos… Sei que sente dor e quero que esteja firme
quando passar por aquela porta. Seja forte, Katarina… — pediu. — Você
consegue?
Fiz que sim novamente, ainda sem muita certeza, mas engoli os
comprimidos.
— É muito importante que faça o que eu disser, entende? —
continuou e eu assenti. — Não sei em quem posso confiar, então não há
garantias do quanto estou expondo você, por isso…
— Vou fazer o que pedir, juro por nosso pai, Ture — confirmei,
tocando minha mão sobre a dele.
Continuei encarando seus olhos, embora um arrepio frio
percorresse minha espinha.
— Eu estarei com você. — Parou por um instante. — Atrás de
você… — corrigiu. — Irei escoltá-la até o seu pai e permanecerei assim.
Seja gentil com as pessoas e, não importa quais dúvidas tenha, permaneça
em silêncio. Eu ou Aren falaremos por você.
— Quem é Aren? — Franzi o cenho.
— Por enquanto basta saber que eu confio nele. Se eu não puder
estar com você, deixe que ele a proteja.
— Mas eu não quero um estranho comigo! — protestei. — Quero
você! Você comigo! Por que não…
Interrompi a frase, segurando o choro iminente. Queria o ombro
dele, que me abraçasse, que pudéssemos dizer o quanto papai foi bom e
honrado e o quanto o amávamos. Não um estranho ao meu lado.
Ture segurou minhas mãos entre as dele. Seus olhos eram tristes e
gentis.
— Acredite, liten, isso era tudo que eu gostaria de fazer.
O apelido que ele usava comigo quando éramos crianças fez meu
coração se apertar.
— Tudo que desejo é protegê-la, Katarina, mas, para que eu possa
continuar por perto, você precisa… Eu preciso… Preciso que faça
exatamente como eu disser.
Mirei-o por alguns segundos e então baixei os óculos para secar o
rosto.
— Eu sempre estarei aqui para você… — Baixou o rosto até a
altura do meu. Era como se me visse por dentro. — Mesmo que não possa
me ver.
Reprimi o desejo de abraçá-lo como gostaria e enchi os pulmões de
ar. Não queria que Ture sofresse, nem pretendia ser um fardo para ele.
— Agora precisamos ir… — avisou e eu aquiesci.
Caminhamos até a casa grande com ele logo atrás de mim, de um
jeito que eu ainda podia vê-lo pelo canto dos olhos. Meu coração acelerado,
a boca seca.
Havia tantos rostos desconhecidos e nenhum de que eu me
lembrasse. Papai não recebia muitas visitas, estávamos sempre sozinhos.
Quando vi o rosto de Helga, nossa governanta, diminuí, quase parando os
passos.
— Continue — meu irmão instruiu tão baixo que eu nem tive
certeza se realmente ouvira, mas obedeci assim mesmo.
A mulher também não veio ao meu encontro, embora seus olhos
fossem gentis para os meus e uma pequena lágrima escorresse em sua face.
Tudo que ganhei dela foi uma pequena reverência, como de todos os
presentes. Enquanto passávamos entre as pessoas na sala da minha antiga
casa, todos se curvavam e cochichavam, fazendo meu coração se acelerar
mais.
Ouvi o nome de minha mãe algumas vezes, mas não pude
identificar de onde vinha. A postura rígida de Ture me dizia que eu deveria
permanecer como estava, olhando adiante.
Parei um pouco à frente do caixão e achei que minhas pernas não
sustentariam o peso do corpo. Soltei o ar devagar, tentando acalmar a
sensação de desmaio iminente, e foi então que pude sentir uma mão forte,
decidida, bem no meio das minhas costas, ajudando-me a manter a postura.
Por um momento, pensei ser a de Ture, mas não era.
Capítulo Oito
Katarina
— Sinto que tenha voltado para casa em um momento tão difícil,
Katarina…
Virei o rosto para encarar o homem ao meu lado. Era alto como
Ture, um pouco mais esguio e muito, muito elegante. Seus cabelos eram da
cor dos meus, lisos e bem cortados, franja longa, arrumada de um jeito
displicente que emoldurava seu rosto.
Os olhos tinham um tom de azul profundo, tão intensos que
pareciam sugar tudo para dentro deles. A barba bem-feita conferia um ar
forte e viril a sua beleza digna de um quadro.
O homem sorriu e eu pisquei algumas vezes.
— Desculpe minha indiscrição… — seu sueco era polido e
clássico, como tudo nele. — Sou Aren.
Não consegui sorrir e ele pareceu entender.
— Quer que eu a acompanhe até mais perto?
A voz do estranho era suave, carinhosa e gentil, mas mantinha a
firmeza e a autoridade de alguém que sabe muito bem a posição que ocupa
no mundo.
Meus olhos ainda procuraram os de Ture, mas, quando ele desviou,
assenti para o estranho.
Aren me ofereceu o braço, conduzindo-me até o caixão.
Meu pai estava lá, seus lindos olhos cerrados para sempre. Ture
não tinha me dito como ele morrera, mas seu corpo estava intacto. Os
cabelos castanhos bem penteados, a barba aparada com maestria.
Papai sempre fora um homem bonito, não estava diferente em sua
despedida. Parecia até sereno, como quem encara o destino de peito aberto.
Senti a primeira gota pingar no tecido fino e transparente que
cobria seu corpo, mas eu não podia parar, havia segurado o sofrimento por
tempo demais, tudo que eu queria era chorar.
Esqueci onde estava, não via mais ninguém além do homem que
me deu a vida, que me criou, amou e me ensinou a ser quem eu era. O braço
firme de Aren continuou em minhas costas, vez ou outra acariciando meus
ombros e nuca de um jeito carinhoso.
Quando o choro cessou e eu levei a mão ao rosto, Aren me
ofereceu seu lenço, os dedos suaves em minha pele.
— Não posso dizer a você que a dor passará, Katarina, minha
querida…
Havia um sofrimento contido ali nas palavras dele. Um que não se
referia apenas ao meu pai ou a acompanhar alguém em um funeral. O
sofrimento dele que transbordava ali, ao meu lado.
— Ainda sinto falta dos meus… — continuou. — Há momentos
em que a vontade de os abraçar mais uma vez parece sufocar… — Encheu
os pulmões de ar antes de continuar. — O tempo torna a tristeza em
lembranças boas, a saudade se aplaca o suficiente para seguirmos em
frente… Fica menos doloroso… — Sorriu.
Meu coração doía e tudo que eu queria eram os braços de outra
pessoa ao redor de mim, ainda assim lembrei-me do que ele mesmo havia
me dito.
“Se eu não puder, deixe que Aren a proteja.”
Então deixei a cabeça pender no braço de Aren, e ele me acolheu,
aconchegando-me em seu peito. Minhas lágrimas molhando o tecido suave
da sua camisa branca.
Aren tinha um perfume suave e reconfortante, cheirava a chuva e
manhãs de outono. Um misto de pinho e madeira molhada. Eu sentia como
se o conhecesse havia muito tempo, embora seu rosto não me fosse familiar.
Fiquei ali com ele, apoiando-me em seu peito, o pensamento longe
demais, em outro tempo. Meu corpo pedia por Ture, mas ele nem sequer
manteve os olhos nos meus.
— Não chore mais… — Aren ajeitou uma mecha de cabelo solta
em meu coque. — Um dia você o encontrará em Valhala, ao lado do Pai de
todos.
Sorri em meio às lágrimas.
— Meu pai acreditava mesmo nisso — concordei.
— Seu pai era um bom homem… E partilho dos mesmos
pensamentos que você.
Não sei por quanto tempo permaneci ali, já que meu acompanhante
não fez menção nenhuma de me soltar ou de aumentar o espaço entre nós,
nem eu. Um tempo depois, abri os olhos na esperança vazia de encontrar
um cenário diferente. Tudo estava como antes. Exceto por Ture. Seus olhos
eram novamente uma linha esmeralda, seus punhos cerrados.
Aren se afastou o suficiente para se virar em direção ao homem
atrás de nós.
— Ture… — chamou sem se distanciar de mim. — Sei que Yrian
se responsabilizou por sua criação após a morte de Karin…
— Exatamente, meu senhor — concordou com um menear de
cabeça.
— Sei também que ele o tratava como a um filho. — Um suspiro
foi a resposta, os olhos brilhando de tristeza, sem derrubar nenhuma
lágrima.
— Tenha seu momento com ele…
Aren deu um passo ao lado, afastando-se de mim o suficiente para
permitir a aproximação de Ture.
— Saiam! — Um pequeno gesto de mão foi o suficiente para que
todos na sala se movessem, em seguida tocou meu queixo, deslizando pela
linha do maxilar. — Tenho certeza de que a princesa apreciaria um
momento a sós com o pai… Helga! — ele chamou a governanta. — Fique e
cuide de Katarina. Sei que serviu à família por toda a sua vida, a princesa
precisa se sentir amparada por rostos conhecidos.
Contive a curiosidade sobre esse papo de princesa, mas lembrei-me
da conversa com Ture. Eu não deveria perguntar nada ali. Além disso, um
momento com a minha família fazia qualquer curiosidade boba se desfazer
em segundos.
Assim que terminou a frase, Aren nos deixou e fechou a porta atrás
de si. Ficamos ali, Ture, Helga e eu, à beira do caixão do meu pai.
Chorando silenciosamente.
— Não acredito que o Sr. Thorsson tenha feito algo assim, Ture!
Não acredito! — protestou a governanta.
Ture a abraçou, seu grande corpo debruçado sobre a mulher que o
havia criado, como quando ele era menino e tinha medo de tempestades.
Encarar aquela cena só me fez chorar ainda mais.
— Vou descobrir quem fez isso, Helga, juro que vou! Não vou
permitir que manchem a memória do meu pai desse jeito! Vou descobrir
quem o matou e vou descobrir quem a matou também. Juro por Odin!
Ela? Quem era ela? Minha mãe? — Franzi o cenho sem pensar,
mas logo deixei as dúvidas se perderem na seriedade daquele momento.
Acariciei seus cabelos por cima do tecido fino e transparente que
cobria o caixão. Tão sedoso e macio. Sua pele estava tão fria.
— Ele sempre foi quente… — constatei para mim mesma. — É
estranho tocá-lo assim.
No mesmo instante, o corpo forte de Ture se encaixou por trás do
meu, suas mãos segurando-me pelos ombros. Deitei a cabeça em seu peito,
tocando a boca em seu pescoço.
— Ele era quente como você é… — constatei.
— Ainda é, liten. Não está mais nesse corpo, apenas isso… Nosso
pai está em Valhala, à mesa com Odin.
Uma lágrima quente escorreu da pele de Ture e repousou no meu
lábio. Não pude deixar de senti-la sobre a língua, salgada e forte, tinha
gosto de floresta e inverno. Forte, como ele.
— Você não devia fazer isso, princesa — Ture disse com a voz
mais rouca que de costume, os olhos cerrados.
Não resisti e acabei perguntando.
— Que história é essa de princesa, afinal? Porque eu
definitivamente não sou filha de nenhum rei! Ou sou?
— Não, mas esse não é um bom momento para falarmos disso,
Katarina. Só espere até que… — Soltou um longo suspiro.
— Até que chegue a hora?
Ture aquiesceu e seu semblante parecia tão triste, que não fui capaz
de discutir.
Depois de alguns segundos, Helga nos deixou.
As cortinas estavam cerradas. A luz do dia tinha quase se esvaído e
as velas de dentro da sala mantinham aquele clima triste e bucólico. Ture
beijou minha testa, demorando-se mais tempo do que o necessário com a
boca em minha pele.
Sobre o aparador, havia uma foto da minha mãe ainda muito
jovem, imagino que antes de se casar. Fixei os olhos nela por algum tempo,
o pensamento longe.
— Karin era uma mulher maravilhosa, Katarina. Como você será
um dia. Nosso pai… nunca deixou de esperar por ela um único dia… Ao
menos agora… — Suspirou. — Ele me disse uma vez que faria tudo de
novo apenas por mais um dia com ela, mas disse também que se pudesse
voltar no tempo não a teria deixado fazer o que ela fez… — Mais um
suspiro. — Acho que hoje entendo o que Yrian quis dizer.
Sua mão deslizou na pele do meu rosto e nossos lábios se tocaram
levemente. Ture não me beijou, mas meu coração parecia querer sair pela
boca. Em vez disso, continuou.
— É por isso que eu vou garantir que você tome a decisão certa.
Que faça o que tem que fazer.
Helga abriu a porta e ele me soltou como se meu corpo pegasse
fogo.
— O príncipe disse que é hora de ir…
Ture aquiesceu e no instante seguinte a sala estava cheia de
homens vestindo ternos escuros, então não pude conter as lágrimas. Nem
sequer conseguia pensar na ideia de que não o veria mais.
Ainda tentava conter as lágrimas, quando uma voz ecoou atrás de
mim.
— Sua mãe ficaria orgulhosa da linda mulher que você se tornou,
Princesa Katarina.
Eu não reconheci a voz, mas podia notar uma acidez comedida em
seu tom. Virei-me para ver um homem alto e forte. Cabelos grisalhos, barba
aparada de um jeito clássico e olhos azuis como os meus.
— Sou seu tio Gustaf, mas é claro que você não sabia disso… —
constatou.
Os olhos passaram do meu rosto direto para as mechas azuis, já
soltas do coque.
— Tanto tempo longe da sua verdadeira família… — Sorriu sem
humor algum, varrendo minha figura cuidadosamente. — Bom que isso…
— levantou o dedo em riste — irá mudar…
— Katarina não conhece nenhum de nós, meu tio, mas estou certo
de que terá muito prazer em mudar isso — a voz de Aren interrompeu e ele
parou bem ao meu lado, a mão protetora em meu ombro novamente. — Em
um momento mais oportuno, obviamente.
O homem bonito que me apoiara permaneceu ao meu lado,
enquanto a tampa de madeira era fechada. Ture não deixou o caixão nem
um segundo, permanecendo ao lado do meu pai, nosso pai, como havia sido
por toda a sua vida.
Caminhamos em direção à entrada da frente, onde alguns
automóveis pretos esperavam com as portas abertas. Eu vi o caixão ser
colocado dentro de um carro funerário, levemente consciente do que
acontecia à minha volta. Ture veio até nós e parou ao meu lado. Gustaf se
aproximou.
— Você… — Apontou para Ture com desdém. — Cuide para que
o príncipe e a princesa cheguem em segurança. — Deu-nos as costas como
se ficar ali lhe causasse algum mal.
Ture meneou a cabeça em concordância.
— Sim, senhor.
A porta traseira de um sedã executivo foi aberta e Aren me
conduziu até a entrada.
— Meu senhor… — Ture fez uma reverência.
Franzi o cenho sem entender o que tornava Ture e eu tão diferentes
ali, naquele momento. Tudo parecia tão esquisito e fora de lugar que eu não
conseguia entender.
— Katarina, minha querida, entre… — Aren pediu, segurando
minha mão. — Vamos levá-lo para descansar ao lado de Karin.
Voltei o rosto para Ture, um pedido silencioso por respostas.
— Tenha a bondade, princesa — foi tudo que ele disse, indicando o
banco de couro.
Entrei contrariada. Pensamentos e dúvidas, misturados à tristeza do
funeral, passavam em minha mente segundo após segundo, enquanto eu
tentava não perceber o desconforto de Ture no banco do motorista.
Chegamos a um cemitério pequeno.
Era bonito e mais parecia um jardim com pequenas lápides. No
centro, havia um mausoléu grande, de pedra branca, todo adornado por
símbolos e flores.
Na porta de entrada, duas estátuas de lobos sentados guardavam a
porta, as cabeças mirando o alto, como se uivassem para o céu; no topo do
telhado, a deusa Freya segurava a lua cheia nas mãos.
Aren me conduziu até o mausoléu.
— Isso é um despautério, Aren! — a voz de Gustaf disparou atrás
de nós, Aren não se virou nem parou. — Este lugar foi construído para
abrigar os reis e rainhas e sua linhagem!
— Errado! Este mausoléu foi construído por meu pai, para abrigar
o corpo de sua irmã caçula, meu tio — a voz era tranquila e empostada com
aquela segurança que ele tinha. — Sei que meu pai gostaria de dar a Karin o
privilégio de ter Yrian ao lado dela pela eternidade, já que em vida nenhum
de vocês a apoiou.
Eu podia ver o ódio inflamado nas órbitas de Gustaf e confesso
que, não fosse a revelação de que minha mãe pertencia àquela família, e
provavelmente era daí que vinha toda essa história de princesa, eu teria
gostado de ver aquele tipo contrariado.
— Você não pode coroar a afronta de Karin dessa maneira, meu
jovem! — grunhiu Gustaf.
Aren virou-se, os olhos focados nos do tio, o maxilar cerrado em
uma postura totalmente agressiva, intimidadora e poderosa. Punhos
cerrados, como se a qualquer momento ele pudesse atacar. Aquele Aren em
nada se parecia com o homem gentil que havia me amparado mais cedo.
— Posso! — afirmou. — Porque sou o futuro rei.
Engoli em seco e respirei bem devagar.
Futuro rei? Como futuro rei? Eu conhecia bem a família real da
Suécia e Aren não era um deles!
Gustaf, assim como eu, desviou os olhos e seguiu seu caminho.
— Perdoe-me por isso, Katarina. — Tocou meu ombro com
gentileza. — Ele não tinha o direito de desrespeitá-la dessa maneira
— Tudo bem…
No mausoléu entramos apenas Aren, Ture e eu, além dos homens
que conduziram o caixão para o andar de baixo por escadas estreitas de
mármore branco. Uma placa havia sido arrancada do chão e deixava um
buraco à mostra. Na placa ao lado, havia uma inscrição em símbolos que eu
não conseguia ler, e abaixo, o nome “Princesa Ana Karin, filha de Odin”.
Mamãe…
Engoli em seco e senti os braços de Aren em volta de mim.
— Agora eles descansarão juntos, pela eternidade. Como deve ser
quando dois espíritos irmãos se encontram.
Encarei os olhos verdes de Ture, recostada sobre o terno de corte
perfeito de Aren. Parecia tão certo o que ele dissera, que deixou meu
coração em paz, apesar da tristeza.
Meu pai estava onde deveria estar. Tudo parecia certo, exceto por
mim, não era no ombro de Aren que eu queria estar.
Como deve ser quando espíritos irmãos se encontram.
Eu não sabia exatamente do que ele falava, mas, em todos os
momentos da minha vida em que eu enxergava meu reflexo nos olhos de
alguém, era em verde-esmeralda que eu me via.
Capítulo Nove
Ture
Mantive os olhos no mármore branco que revestia a parede da
cripta. Punhos cerrados, na tentativa de manter a fera enjaulada nas minhas
profundezas. Se desviasse o olhar um milímetro, perderia o controle.
A mão dele deslizava nas costas delicadas dela, traçando um
caminho que fazia meu sangue ferver de raiva. Katarina estava confusa. Eu
podia sentir cada uma das suas dúvidas, medo e ansiedade brigando pelo
controle dentro dela.
Aren a puxou para si, mantendo-a dentro do seu abraço, protegida
e segura… Dele, não minha.
Engoli a vontade de urrar, o coração acelerando mais e mais rápido
até que não consegui me manter parado. Dois passos atrás, dois passos para
longe, de volta pela escada, subindo os degraus um a um, sentindo a
conexão com ela me puxar de volta, brigando contra.
Assim que respirei o ar do lado de fora novamente, enchi os
pulmões. Precisava aplacar a animosidade, controlar meus instintos, sabia
que tudo aquilo era apenas o começo, que logo Katarina se renderia. Era tão
jovem, fora criada longe de nós, sua fera estava adormecida, domada. Para
ela, não seria difícil sufocar o laço, já para mim…
— Achei que ficaria ao lado do seu senhor… — a voz de Gustaf se
aproximou, arrancando-me dos meus devaneios.
Pela primeira vez, agradeci sua implicância. Ao menos brigar com
ele tiraria o foco do que eu realmente queria.
— Não há perigos dentro da cripta — limitei-me a dizer, embora
soubesse que o assunto não terminaria ali.
— Nunca se sabe…
O homem andou em volta de mim como um lobo à espreita, queria
me desconcentrar. Mal sabia ele que eu já estava perdido.
— O perigo ultimamente vem de onde menos se espera… —
continuou.
Cravei meus olhos nos dele, acompanhando-o sem mover um
músculo.
— Exato! — concordei. — Às vezes menosprezamos o inimigo,
em outras o superestimamos… — provoquei. — A maioria mostra os
dentes por medo, mas não aguentaria uma disputa.
Gustaf sustentou meu olhar por alguns segundos e depois riu,
daquele jeito debochado e arrogante que costumava fazer.
— Entendo por que meu sobrinho insiste tanto em tê-lo ao seu
lado, Ture… O senso de humor! — Balançou o dedo em riste e tudo que eu
queria era quebrá-lo com um toque apenas. — Você tem um ótimo senso de
humor!
Quando Gustaf tocou meu ombro, girei a cabeça e mirei sua mão.
Não havia sombra alguma de sorriso em meu rosto, minha concentração era
a da fera em caçada.
Ainda estávamos naquela disputa idiota, quando ouvi o som da
base de mármore sendo arrastada e desci de volta os poucos degraus,
ocupando novamente minha posição atrás do meu futuro rei e da mulher
que eu amava.
— Agora eles descansarão juntos, pela eternidade. Como deve ser
quando dois espíritos irmãos se encontram.
As palavras de Aren foram seguidas de um abraço, que doeu em
meu peito como se ele me apunhalasse bem no coração. Os olhos dela
voltaram-se para os meus, enquanto os braços dele a amparavam.
Desviei, não conseguia olhar.
— O carro os aguarda, meu senhor — avisei, já me preparando
para voltar à superfície novamente.
Subi na frente e esperei por eles perto da escada.
Katarina foi a segunda a subir. No último degrau, seu pé falseou e
eu estendi o braço como um idiota, para ajudar a mulher de outro.
— Aqui, Katarina, segure-se em meu braço — Aren ofereceu.
Baixei os olhos para a grama bem-cuidada no chão. A voz dele era
gentil, mas eu sentia como se cacos de vidro fossem arremessados em meus
olhos a cada carinho que dispensava a ela.
— Você precisa descansar… — ele continuou. — Imagino que não
tenha tido tempo, desde a notícia… O que acha de irmos?
Katarina aquiesceu em silêncio, os olhos claros procurando pelos
meus. Eu não sabia mensurar o que me machucava mais, vê-la nos braços
de outro, ou saber que era por mim que ela procurava; estava em um
impasse tão profundo que só queria que tudo aquilo terminasse logo.
Abri a porta e esperei que os dois ocupassem seus lugares no banco
de couro do sedã.
— Para onde, meu senhor? — perguntei com medo de ouvir a
resposta.
Aren mirou meus olhos pelo retrovisor. Havia um entendimento
ali, um que só melhores amigos entendiam. Nenhum de nós tinha culpa do
destino desgraçado que tínhamos a cumprir.
— Imagino que Katarina prefira passar a noite em sua própria casa,
não é, minha querida?
Esperei ansioso que ela respondesse. Desejava sua anuência com
toda a minha vontade.
— Por favor — pediu e eu soltei um suspiro de alívio.
Dirigi tentando manter o foco nos barulhos que vinham da floresta
ao nosso redor. Não queria me concentrar em Katarina, saber que sua
respiração estava tranquila ao lado de outro homem era quase uma agonia.
Assim que estacionei, ouvi o burburinho de pessoas no jardim. A
maioria, curiosos que nem se lembravam mais de Yrian e Karin, só queriam
um pouco de assunto para as rodas de conversa no dia seguinte. Havia até
alguns humanos entre eles.
Pelas janelas abertas, vi a sala remexida e bagunçada. Katarina
parou ao meu lado, distanciando-se do primo, e a tristeza dela bateu em
cheio no meu peito. Lembranças antigas de nossa vida naquele lugar
ganhando seus pensamentos, os meus.
— Odeio vê-los aqui! Odeio todos eles! — resmungou tão baixo
que eu não tive certeza de que tinha mesmo dito algo ou se eu apenas a
sentira falar.
Dei um passo mais para perto, meu braço roçando no dela, a
sensação da conexão acalmando minha fera.
— Odeio também! — concordei esboçando um sorriso tão discreto
que mal podia ser percebido, exceto por ela.
A boca bonita de Katarina se curvou levemente.
— Hipócritas! — continuou baixinho.
— Folgados! — devolvi.
— Estão pisando nas flores…
— E estragando o gramado.
Ela sorriu um pouco mais, mas o sorriso logo murchou.
— Quero ir para o meu quarto — soltou no meio de um suspiro.
Afastei-me alguns passos, até que estivesse perto de Aren o
suficiente para falar-lhe.
Meu amigo despediu-se do casal com quem conversava e anuiu
para mim.
Caminhei dois passos atrás dele, vendo-o chegar em Katarina mais
uma vez. Sua mão procurou pela dela e seus dedos foram entrelaçados.
— Senhores… — chamou a atenção. — Gostaríamos de agradecer
a presença de todos neste dia tão triste para nosso povo, mas Yrian foi
honrado e justo por toda a sua vida, sei que está feliz em Valhala, ao lado do
nosso Pai neste momento, comemorando e bebendo do melhor vinho…
Infelizmente, para nós que ficamos, a vida continua e a Princesa Katarina
precisa se recuperar de sua perda. — O braço circundou os ombros
delicados da garota. — Em um momento oportuno, convidaremos a todos
para nossa casa e então poderemos festejar a volta dela.
Ajudei a dispersar a multidão e, poucos minutos depois, todos
estavam fora. Meu coração se acalmou, até que me virei de frente para a
casa novamente e os vi, lado a lado, perto do alpendre.
Se eu pudesse voltar no tempo, Ture, jamais teria permitido que
Karin tomasse a decisão errada.
As palavras de Yrian arranharam dentro de mim. Era verdade,
sempre fora. Ele era o destino dela, Aren e Katarina tinham uma bela vida
pela frente, um futuro muito melhor do que ela teria ao lado de um cão
sarnento como eu.
O que eu podia oferecer a ela? Que vida teríamos se rompêssemos
com o nosso povo e fugíssemos da Suécia?
Não havia maneira de mantê-la segura longe da corte, menos ainda
ao lado de alguém como eu, que só perambula pela Terra porque pôde
contar com a benevolência de uma princesa.
Engoli o orgulho, sufoquei minha fera e caminhei até onde os dois
estavam.
— Se não precisarem mais de mim, eu…
— Katarina precisa… — Aren esboçou um sorriso. — Tenho
certeza de que ficará muito mais confortável se souber que você estará com
ela esta noite.
— Achei que o senhor… — Franzi o cenho sem entender.
Aren espalmou meu ombro.
— Tenho assuntos importantes a… resolver… — limitou-se a
dizer, depois de encarar a lua nova no céu. — Cuide de tudo por aqui,
amanhã acertaremos melhor as coisas.
Encarei-o por um segundo. Havia muito mais naquele gesto do que
apenas um homem ocupado.
Aren queria dar espaço. Sabia bem o quanto fora difícil para mim
lidar com tudo que vivemos naquele dia, ele tinha suas próprias feridas para
curar também. Além disso, eu nem me lembrava quando tinha sido a última
vez que ele passara uma noite de lua sozinho.
Antes de sair, voltou os olhos para Katarina e estendeu as mãos em
busca das dela. Um beijo suave sobre o dorso delicado, perto dos dedos, foi
sua despedida.
— Desejar boa-noite a você seria insensível demais, mas espero
que ao menos consiga descansar, minha querida. Amanhã estarei de volta e
vamos conversar um pouco. Não vou bombardeá-la com informações na
noite em que se despediu do seu pai.
Katarina aquiesceu, os olhos brilhavam pelas lágrimas, os cílios
longos ainda úmidos.
— Quer que eu o leve? — perguntei. — Posso deixar Helga…
— Não há necessidade! — Meu amigo sorriu. — Posso dirigir meu
próprio carro até minha casa — brincou.
Tirei as chaves do bolso do terno e coloquei sobre a mão estendida
dele. Assim que os faróis do sedã se afastaram, senti os braços de Katarina
ao redor da minha cintura.
Baixei os olhos para as mãos pequenas em volta de mim, a
respiração quente dela contra minhas costas, e fechei os olhos, absorvendo
aquela sensação tão perfeita de tê-la comigo sem precisar fingir.
— Quero ir para o meu quarto, Ture… Vem comigo? — pediu.
Capítulo Dez
Katarina
Inspirei o perfume dele para dentro de mim como se estivesse
havia muito sem respirar. Estar ali, finalmente sozinha com ele, depois de
tantas horas, era como se um peso fosse tirado de cima dos meus ombros.
Meu coração ainda doía, magoado e machucado. A sensação de ver
meu pai naquele caixão era recente demais, mas, ao menos naquele
momento, eu estava exatamente onde deveria estar.
Ture não se afastou do meu toque, meus dedos sentindo sua barriga
ir e vir a cada tomada de ar, até que ele se virou lentamente.
— Vem comigo? — insisti, precisava de uma resposta.
Seus dedos fortes entrelaçaram os meus e ele me conduziu para
dentro da casa onde todas as nossas lembranças boas estavam.
Subimos as escadas juntos e em silêncio. Nenhuma palavra parecia
suficiente para dimensionar o tamanho dos sentimentos que existiam ali.
Quando chegamos à última porta do corredor, Ture a abriu,
revelando meu quarto, exatamente como eu me lembrava dele.
Havia alguns ursos sobre a cama forrada com o edredom de flores
vermelhas. A manta de lã que Helga tecera para mim, sobre ele. Minhas
bonecas de porcelana permaneciam na prateleira, sobre a penteadeira.
Inspirei com cuidado, querendo que o aroma não se esgotasse
rápido. Engoli o bolo que se formou em minha garganta, junto com algumas
lágrimas que insistiam em descer.
— Há algumas roupas… — a voz de Ture cortou o silêncio. — No
closet… Helga trará comida e alguns analgésicos… Sua cabeça…
Como ele sempre sabia? Talvez porque te conheça há tanto
tempo…
Assenti, meus olhos procurando pelos dele, que insistiam em
sumir.
Dei alguns passos e estendi a mão, esperando que ele aceitasse
meu toque.
— Eu preciso ir… — Afastou-se. — Preciso descobrir umas coisas
e…
Falava como se quisesse justificar o fato de me deixar sozinha
— Tem coisas que eu preciso…
— Você já disse isso — interrompi.
— O que houve com Yrian, eu preciso investigar… Conversar com
umas pessoas e…
Soltei o ar dos pulmões.
— Tudo bem, Ture! — desisti. — Eu não tenho mais oito anos,
vou ficar bem sozinha.
Quando minha mão caiu ao lado do corpo novamente, ele soltou
uma lufada de ar.
— Às vezes, eu gostaria que você tivesse… — confessou. — As
coisas eram bem mais simples naquela época.
Não respondi. Ele parecia falar mais consigo mesmo do que
qualquer outra coisa. Virei-me para a janela e observei o brilho da lua
clareando as águas do Mar do Norte, bem ao fundo, onde o rio encontrava
as águas salgadas e gélidas. Queria tornar as coisas mais simples para ele,
deixar que se afastasse sem pesar. Os passos se afastaram e eu ouvi a porta
se abrir.
— Você se saiu muito bem hoje, Katarina…
Engoli em seco, ainda sem dizer nada.
Não queria que ele se fosse, tinha medo de ficar sozinha ali e
sucumbir à tristeza que ia tomando conta de mim, mas não iria confessar
isso a ele. Não depois de tudo. Não era eu quem tinha que mendigar afeto,
eu jamais o abandonei.
— Não seria apropriado… — ele continuou, como se precisasse se
explicar. — Alguém… Alguém poderia entrar. Você sabe, não seria nada…
— Se é só isso…
Não queria explicações. Não quando podia sentir que ele desejava
o mesmo que eu. Mal terminei a frase, a porta se fechou.
Fiquei onde estava, os ouvidos concentrados, esperando-o se
afastar pelo corredor, nenhuma tábua rangeu.
Depois de alguns segundos, segui em direção à porta, a palma
sobre a madeira. Eu o podia sentir do outro lado, parado, esperando pelo
mesmo que eu, mas não o chamei de novo e ele não entrou.
Só depois de muito tempo, ele se foi e eu debrucei na janela,
liberando meus olhos para chorar. Não demorou e eu o vi atravessar o
canteiro de rosas do jardim, em direção à cabana. Sua silhueta escura
cortando o brilho da lua em passos largos.
Ture parou e olhou em direção à minha janela. Eu me abaixei o
mais rápido que pude, mas tenho certeza de que não foi o suficiente. Sentia-
me triste, rejeitada e boba.
Entrei, mas não fechei a janela. Uma parte de mim se sentia mais
protegida olhando a luz da cabana acesa.
Tomei um banho e vesti uma camiseta azul-marinho comprida, que
mais servia de vestido. Helga deixara uma bandeja com chá e alguns
biscoitos, além de uma sopa perfumada e quentinha. Havia três
comprimidos em um copo, deduzi que eram os analgésicos e os engoli de
uma vez, fazendo descer com o chá.
Tinha tomado a sopa e estava no segundo biscoito quando entendi
que, apesar de toda a tristeza, eu tinha sono. Deitei e puxei as cobertas para
cima de mim. A última coisa de que me lembro é de não ver mais luzes na
cabana acesas.
Eu mal havia fechado os olhos quando ouvi passos lá embaixo e o
baque de algo de vidro se chocando contra o chão. Levantei-me assustada e
atordoada pelo cansaço, enfiei-me dentro de um short e saí devagar pelo
corredor.
— Helga? — chamei, mas não obtive resposta.
Continuei pelo corredor, minhas pernas fracas, a visão embaçada.
Eu tentava coordenar os pensamentos, mas o medo havia me congelado,
como naquela noite.
Cheguei ao topo da escada e parei, os dedos tremendo no corrimão.
Havia uma silhueta grande na poltrona do meu pai, obviamente não era ele.
— Aren? — chamei, mesmo sabendo que o dono da silhueta era
menor que ele.
— Katarina, minha doce sobrinha… Assustei você?
Reconheci a voz assim que ouvi. Gustaf!
— Não foi minha intenção, princesa, mas estou velho… — Havia
uma nota de deboche na voz. — Não sou mais tão bom em caçadas como
antes, precisei voltar mais cedo.
Continuei descendo as escadas, degrau por degrau, tentando focar
o rosto do homem, até que Gustaf acendeu a luz da mesinha e eu levei um
susto tão grande que caí sentada no degrau.
O terno que usara mais cedo no enterro estava sujo e esfarrapado,
completamente destruído, sua boca tingida de vermelho e todos os meus
sinais de alerta soando como sirenes.
Meu coração disparou e apressei-me em chegar mais perto, ajudá-
lo talvez, até que vi o pequeno animal em seu colo e o rastro de sangue no
piso da sala.
Travei onde estava, meus olhos perdidos na garganta cortada do
coelho inerte.
Capítulo Onze
Ture
Voltei pelo caminho da floresta assim que consegui deixar a casa
principal.
Meus olhos buscando o céu claro de luar, o chamado da deusa
aflorando meus instintos e mantendo o lobo à espreita. Não era fácil negar
um desejo visceral como o que sentíamos em noites como aquela, mas eu
estava disposto a isso, por ela.
Enchi o peito de ar e soltei de uma vez, precisava tirar o cheiro de
Katarina das narinas, a sensação da pele quente contra meu corpo, me
acalmar.
Tinha permanecido ali, parado do outro lado da porta, por mais
tempo do que deveria, o que não era nada inteligente, menos ainda quando
não estava em controle completo de mim mesmo.
Se Katarina tivesse me chamado uma vez mais, se tivesse insistido,
então estaríamos fodidos os dois, porque eu só iria parar quando estivesse
tão fundo dentro dela que não haveria como saber onde um terminava para
que o outro começasse.
Abri a porta da cabana com um pontapé certeiro, estalando meu
pescoço e sentindo os músculos doerem de um jeito desconfortável. Meu
peito subindo e descendo, os olhos buscando a garota na janela por mais
alguns segundos.
Se não tivesse aprendido desde cedo a domar minha fera, teria
pulado direto naquele parapeito e feito uma besteira.
Joguei a cabeça para trás, podia sentir a água do chuveiro sobre o
corpo dela, o perfume do sabonete. Suas mãos ensaboando o próprio corpo
eram como uma tortura silenciosa dentro de mim.
Porra, Katarina, tome logo esse banho! — pedi.
Não demorou muito e tudo se acalmou de repente, como se ela
tivesse desistido de pensar em mim, distanciando a conexão e fazendo-me
ainda mais ansioso.
Eu estava no limiar da desgraça, sabia que não podia tê-la, mas vê-
la longe doía ainda mais.
Livrei-me do terno e liguei o chuveiro, sem esperar que a calefação
fizesse seu trabalho. Meu corpo queimava e o mínimo que eu precisava para
aplacar a fera era um pouco de água fria.
Quando saí do chuveiro, vesti uma calça de elástico e deixei meu
peito nu. Um pouco de ar frio completaria o que a água não foi capaz de
resfriar.
Acendi o fogo e enchi a chaleira com um pouco de água. Não
estava com fome, mas precisava colocar algo no estômago, já que a última
refeição decente que eu havia feito fora na noite anterior à morte de Yrian.
Enquanto esperava pelo apito, encarei a janela dela, luzes
apagadas, tudo silencioso.
Ah, liten, se as coisas fossem diferentes… Se ao menos aquela
magrela folgada ainda estivesse aqui… Sei que ele compraria todas as
brigas por ela… E então você… — Soltei o ar sentindo os pulmões doerem,
sofrer pelo que estava feito era burrice.
— O tempo não volta, Ture! — soltei em voz alta, precisava
convencer a mim mesmo.
Depois de esperar mais do que julgava possível, sem dar nenhuma
espiada na janela novamente, abri o armário em busca de uma lata de sopa.
Era o melhor que ia conseguir naquela maldita noite fria.
Abri a embalagem e a deixei sobre a bancada de madeira.
Precisava de um pouco de álcool nublando meus sentidos. Peguei a garrafa
de vodca e enchi um dos copos, mas, antes que o levasse à boca, ouvi
barulhos na mata ao redor.
Deixei a bebida e fechei os olhos por um segundo, concentrando-
me para ouvir melhor. Saí em busca do rastro, mas, antes que a clareira
ficasse para trás, vi um dos homens de Aren saindo do meio das árvores.
Cruzei os braços na frente do peito nu e esperei, até que o garoto
estivesse perto o suficiente. Antes de se aproximar demais, ele tirou um
pedaço de papel de dentro do bolso da jaqueta e mostrou.
— Eu estava no banho e, quando saí, havia um bilhete do príncipe
sobre minha cama — explicou.
Estendi a mão, cenho franzido, assimilando o que me fora dito.
— Aren saiu para caçar… — constatei o que ele certamente
também sabia.
— Por isso achei estranho e vim falar com você… Parece mesmo a
letra dele e o papel é oficial, como o do escritório do príncipe, então…
“Venha até a clareira perto do rio, é sobre a morte dela.”
Afilei os olhos.
A morte dela…
Eu sabia bem a quem ele se referia e, se tinha descoberto algo
sobre o filho da puta que tivera a coragem de mexer com ela, então eu
queria essa informação.
— Sei que está encarregado da princesa, Ture, se preferir, eu
mesmo…
Mirei a janela de Katarina mais uma vez. A casa parecia silenciosa
e não se ouvia mais nada ali. A garota provavelmente tinha dormido, já que
sua respiração era tranquila.
Se eu fosse rápido o bastante, voltaria bem antes do amanhecer e
com um rumo certo para procurar mais pistas.
— Eu vou! — avisei. — Só… fique pelo perímetro, para garantir
que não teremos curiosos rodeando a princesa.
— É claro, senhor, não se preocupe! — Bateu o punho cerrado
sobre o coração, como fazíamos a alguém de mais alta patente.
Apressei o passo em direção à floresta e, assim que atingi as
árvores, deixei que a fera tomasse o controle; ela era mais rápida, mais
forte, e seus instintos, mais apurados que os meus.
O lobo castanho irrompeu sedento de dentro de mim, as grandes
patas batendo no chão úmido da floresta cada vez mais rápido, abrindo
caminho pelo meio das árvores.
A clareira onde costumávamos nos reunir ficava a quase uma hora
de onde eu estava, mas eu sabia que poderia contar com a habilidade da fera
para me levar ao lugar em pouco tempo.
Parei quando vi o espaço vazio, farejando e buscando por meu
amigo, mas não encontrei. Levantei a cabeça e uivei, chamando por ele,
mas, de todos que me responderam, nenhum era o príncipe.
Foi só depois de tentar novamente que a ficha caiu.
Uma emboscada…
Senti o sangue do lobo gelar debaixo do grosso pelo que o cobria.
Eu havia sido pego e Katarina… estava sozinha!
Capítulo Doze
Katarina
Gustaf demorou alguns segundos para perceber, mas, quando o fez,
riu como se fosse realmente algo engraçado.
— Decidi terminar a refeição em casa, não achei que se importaria,
afinal… somos o que somos, não é mesmo?
Foquei a cena toda, angústia se revolvendo dentro de mim,
revirando meu estômago sem que eu conseguisse decidir se era melhor
correr ou ficar.
— Quer um drinque, Katarina? — Gustaf se levantou, segurando o
coelho pelos pés e o arrastando pela sala, enquanto mais sangue manchava
o chão da minha casa. — Você já tem idade para beber, não é mesmo?
Dezoito anos… Uma bela fase da vida… O alvorecer da sua essência…
Engoli em seco a náusea.
Gustaf serviu-se de uma dose de vodca no pequeno bar, depois
segurou a cabeça do coelho e apertou seu pescoço, deixando o sangue tingir
o líquido. Senti meu estômago revirar ainda mais quando ele estendeu a
bebida carmim em minha direção.
— Ande, experimente! É minha especialidade… Eu chamo de…
Vomitei no chão de madeira, curvando o corpo e segurando a
barriga. Gustaf riu.
— Então é verdade! — constatou. — Você desconhece mesmo sua
origem! — Bateu as palmas animado. — Quem diria que Yrian e aquele
menino que insiste em andar atrás de Aren como um cão deixariam um
presente desses para mim! Estou honrado em ser a pessoa que revelará a
verdade a você!
Caí de joelhos, minha cabeça girava, as mãos apoiadas no piso de
madeira. Gustaf se levantou, deixando o coelho e o copo no bar. Retirou um
lenço do bolso de dentro do blazer, limpando a boca e as mãos.
— Ora, que indelicadeza a minha! Não tenha medo, Katarina… —
Estendeu a mão para me ajudar a levantar. — Eu realmente não imaginei
que a assustaria tanto. Saí para caçar com Aren e… — Parou a frase e
recolheu a mão, quando eu não a aceitei. — Seu pai foi um tolo! —
esbravejou.
Eu me forcei a levantar, limpando o suor do rosto com as mãos.
— Somos guerreiros de Odin, Katarina! — gritou. — Isto… —
Apontou para si mesmo. — É o que fazemos! Nós caçamos! Matamos e
comemos, somos Ulfhednars!
Então minha mente clareou, e me lembrei de um livro da biblioteca
do meu pai. Um livro que Ture amava ler. Um de lendas antigas.
Guerreiros de Odin, era esse o título! Bravos guerreiros, agraciados
com o poder de se tornarem lobos. Ulfhednars, os homens lobo. Homens
lobo… Lobisomens! — Engoli em seco. Minhas lembranças de infância…
— Vejo que clareei alguma lembrança sua… Isso me acalma,
Katarina… Saber quem é você é o primeiro passo para ocupar a Coroa, que
é o seu destino.
— São lendas… — soltei entredentes.
Tentei parecer firme, não ia permitir que ele me intimidasse mais.
— Histórias bobas que se contam ao redor de fogueiras! —
continuei. —Lobisomens não existem, Gustaf, isso é loucura!
— Tremores… — Levantou a mão e contou no dedo. — Falência
muscular… Dores intensas… Formigamentos… Sensibilidade excessiva…
Arregalei os olhos. Como ele sabe? Como todos parecem saber
mais do que eu?
— Ultimamente você percebe que seus sentidos estão mais
aguçados, e o frio não a afeta como antes… — Riu. — Sente-se mais
irritadiça e tem sonhos que parecem vir de outras vidas.
Engoli em seco e ele percebeu, já que riu mais, divertindo-se com
o meu desespero.
— Não se preocupe, querida, sua transformação está próxima!
Tudo isso não é nada além do seu corpo se adequando a sua nova condição,
a fera… — Girou a mão no ar. — Seus instintos estão aflorados.
O homem caminhou até o bar novamente e virou o copo de bebida
ensanguentada para dentro de uma vez.
— Espero que goste do que irá descobrir… Não é fácil ignorar um
espírito imortal. — Riu alto. — Eu lhe desejo boa sorte, sinceramente! —
Limpou as mãos no terno rasgado. — Bem, acho que terminamos por hoje,
querida sobrinha, você deveria descansar e não se esqueça de trancar bem a
porta… Não é uma noite das melhores para que mocinhas indefesas fiquem
sozinhas.
Demorei algum tempo para conseguir mover os pés.
Homem-lobo… Homem-lobo… — minha cabeça não parava de
repetir.
De repente, tudo fazia sentido, os últimos acontecimentos.
As estátuas de lobo no cemitério, o olhar ameaçador de Aren. A
postura rígida, os punhos cerrados. Ele era um homem-lobo. Era a isso que
ele se referia quando dizia "nosso povo".
Eu não estava doente. Por isso Ture dizia com tanta convicção que
não havia nada de errado comigo! Não era uma doença, era uma mudança!
Eu estava me tornando uma maldita aberração! E meu pai sabia, Ture
sabia… Todos, menos eu!
Repassei os últimos dias, estranhos, confusos, mas agora faziam
sentido.
Não vou machucar você, já disse que só quero conversar! Você vai
ver que temos muito mais em comum do que imagina — as palavras de Ian
ecoaram dentro de mim.
Será que ele? — Esfreguei o rosto, sentia como se tudo estivesse
ruindo ao meu redor. Ele queria me contar! Por alguma razão tinha
descoberto o que eu era e pretendia me contar! — Franzi o cenho. Eu
estava cercada de lobos.
A sala girava ao redor de mim.
Todos sabiam! Todos eles! Respirei fundo e limpei as lágrimas nas
costas das mãos, respirando devagar, acalmando os pensamentos.
Lentamente, fui recuperando o controle. Meu corpo ficando mais firme.
Caminhei para fora o mais rápido que minhas pernas permitiram,
em direção à cabana. Empurrei a porta de uma vez. Para minha sorte, estava
destrancada.
— Ture! — chamei — Responda, seu covarde! — insisti. — Você
foi a porra de um mentiroso minha vida toda, seu desgraçado! Por que
escondeu de mim? Por que não me contou que eu sou a porcaria de um
monstro?
Eu estava tomada pela raiva, pela traição. Queria socá-lo e queria
abraçá-lo em iguais proporções. Sentia-me perdida, desamparada, queria
que ele me dissesse que tudo não passava de loucura e que nada disso era
possível.
Procurei por ele em todo o espaço, mas não o encontrei, a cabana
estava vazia.
Encostei-me na parede e tentei me acalmar, até que o apito da
chaleira me assustou. Só então reparei que Ture havia deixado a cabana
com pressa, muita pressa. O fogo ainda estava ligado, a TV também, e
havia um copo com alguma coisa transparente na mesa. A camisa e o blazer
sobre a cama, os sapatos aos pés.
Desliguei o fogo da chaleira e cheirei o conteúdo do copo. O aroma
era de álcool, vodca, se eu tivesse que apostar.
Vi as chaves do esportivo penduradas na parede e tudo que
consegui pensar foi que eu queria sumir. Ir para longe, Estocolmo talvez.
Qualquer lugar em que eu estivesse livre de todas as maluquices que Gustaf
havia contado.
Virei a bebida de uma só vez, sentindo a garganta queimar, e
peguei as chaves.
O motor rugiu rápido, em resposta ao meu pé no acelerador, ao
menos com velocidade eu não teria que me preocupar.
Atravessei a ponte em alguns instantes. A estrada estava vazia e o
tanque, cheio, então calculei mentalmente quanto tempo demoraria até
chegar à cidade; de lá pegaria um avião direto para Estocolmo. Saí da
principal e peguei a estrada que Ture havia usado para me levar até a
fazenda.
Os pinheiros passavam rápido, como borrões em minha visão. Eu
tentava me concentrar no caminho o máximo que podia, sentindo o carro
derrapar mais em cada curva da estrada. Meu pé soltava inutilmente o
acelerador, mas eu sentia como se fosse o piloto automático no controle, e
não eu.
A luz da lua ficava mais fraca a cada piscar de olhos, os faróis
pareciam não clarear o suficiente. De repente eu não sabia mais onde
estava, não me lembrava daquele caminho. Tentava entender o que tinha
saído errado, em que curva eu me perdera, até os faróis clarearem dois
grandes olhos na estrada de terra à minha frente. Pisei no freio inutilmente,
mas, quando vi que ia atingir o animal, virei o volante com força e então
tudo se transformou em um grande borrão.
Bati em algo e capotei, girando mais de uma vez, o teto batendo
contra o chão. Minhas costas prensadas nos cacos de vidro, meu sangue
escorrendo.
Minha última lembrança foi de tentar respirar, comprimida entre o
banco e o airbag do esportivo, olhos pesados, a boca aberta inutilmente
pedindo socorro, sem que voz alguma saísse. Então algo fungou em meus
cabelos, farejando no meio do metal retorcido.
— Está feito — ouvi ao longe.
E então não havia nada além do vazio. Apaguei.
Capítulo Treze
Katarina
Eu deveria estar morta. Queria, inclusive, mas não estava. A
ardência que eu sentia ao respirar deixava isso bem claro.
Fiquei pensando quanto tempo levaria até que acontecesse, no
quanto doeria e em tudo que eu teria que aguentar, até que o fim chegasse.
Minha consciência fraca não conseguia comandar o corpo e eu me
sentia um amontoado de sangue e pele partida, pesado demais para sair do
lugar.
Tentei encher os pulmões de ar, mas a dor me fez tossir e o
espasmo doía como se minhas entranhas se abrissem. De repente, senti meu
corpo ser içado, como se algo o movesse, mas não tive força para recusar.
Tentei focar os olhos, mesmo na escuridão, piscando inutilmente.
Queria falar, entender o que estava acontecendo, mas minha boca, mesmo
aberta, não emitia som algum.
— Shhhh! — uma voz que parecia vinda de outro mundo, gutural e
animalesca, ressoou como se estivesse dentro de mim. — Fique calada.
Meu coração batia forte, acelerado demais para se acalmar. Engoli
a saliva na tentativa de falar, mas tinha gosto de sangue velho e me fez
tossir de novo.
— Vou arrancar a pele de quem fez isso, liten, juro que vou! E com
os meus próprios dentes.
Liten… O apelido fez meu peito se aquecer e acalmar de um jeito
bom.
— A-água — enfim balbuciei.
Minha boca estava cortada e o gosto de sangue era incômodo.
Havia algo em meus olhos que me impedia de abri-los completamente. Meu
corpo todo doía, cada pequeno pedaço dele, desde os cabelos até a ponta
dos dedos.
Senti a mão quente me aconchegar e afundei o rosto em seu peito.
— Logo chegaremos a um lugar seguro.
Engoli a saliva uma vez mais, limpando um pouco a boca. A dor
intensa que eu sentia ao menos deixava claro que não havia danos
irreversíveis em meu corpo.
Ture correu comigo em seus braços pelo meio da floresta e eu me
concentrei na lua clara e brilhante. Homens-lobo… De repente não parecia
mais tão estranho.
— Desculpe pelo carro — soltei devagar.
Ele riu, seu abdômen nu tremendo com a força da risada.
— Está mesmo preocupada com o carro? — perguntou.
— Você sempre me disse para não mexer nas suas coisas…
Sua mão deslizou em meu rosto, retirando uma mecha de cabelo
grudado. O toque quente e suave, tão agradável, tão profundo e cheio de
carinho.
Abri os olhos o suficiente para ver seu meio sorriso brilhando no
rosto bonito.
— Eu nem gostava dele tanto assim… — Pulou alto por um riacho,
caindo em pé na outra margem. — Agora tenho uma boa desculpa para
comprar outro!
Tentei rir, mas doía muito, então fechei os olhos e deixei a cabeça
pender em seu peito, enquanto ele nos carregava pela floresta. De repente,
senti como se saísse do meu corpo. Minha consciência voava acima das
copas das árvores. Lá embaixo, um lobo corria.
Eu acompanhava seus movimentos, sentia o que ele sentia. Cada
folha que resvalava em seu pelo tocava minha pele, as folhas secas
estalando sob os meus pés. Era tão boa a sensação de liberdade que eu não
queria parar, e o lobo também não.
Atravessamos um rio raso e largo, a água gelada escorrendo em
minha pele. E então ele chegou. Sua presença comigo, lá em cima nas
árvores; enquanto o lobo cor de areia corria acompanhando o outro lá
embaixo. Suas mãos entrelaçadas às minhas. Seu corpo tão perto. Eu não
queria acordar.
O lobo claro parou, erguendo o focinho para inspirar o ar a sua
volta. Seus olhos apreensivos. O estrondo ecoou em meio às árvores. Seu
pelo se tingiu de vermelho, os olhos brilhantes perdendo o foco, sua
presença comigo ficando distante. Fraca. Despertei assustada.
— Ei, tenha calma… — a voz suave de Ture pediu, segurando
meus ombros. — Foi um sonho, liten, apenas um sonho.
Meus olhos não estavam mais grudados de sangue, embora piscar
ainda fosse difícil. Olhei ao redor, constatando que estava em uma cama.
Não era a minha casa, nem a cabana do meu pai. Tudo parecia velho e
abandonado. As paredes cheias de poeira e teias de aranha. Minha cabeça
doía. Meu corpo reclamando do movimento brusco, mas meus olhos
focaram os dele, baixando para sua mão que segurava a minha.
— Tente ficar calma… Ainda não sei se você fraturou algo, não se
mexa demais — pediu e logo me ofereceu um copo. — Aqui… Você
precisa beber.
Levei o copo à boca com toda a sede que sentia, mas, assim que
engoli o líquido, senti o estômago protestar e a náusea veio com tanta força
que mal tive tempo de virar o rosto e arquear o corpo.
Vomitei no chão. Uma, duas vezes, e quase uma terceira.
— Isso não é… Não é água! — reclamei.
— Não, não é! — concordou. — Você precisava vomitar.
Franzi o cenho sem entender.
— O que você bebeu na cabana, Katarina, estava envenenado.
Meu coração acelerou.
— Alguém pretendia me dopar e levar para a floresta,
provavelmente para ter acesso fácil a você e…
— Alguém queria me matar? — interrompi.
— Sequestrar, provavelmente… — Ture soltou o ar dos pulmões
devagar. — A parte da morte era para mim.
Parei de respirar por alguns segundos, a cabeça girando, a visão
turva.
— Vai demorar um pouco até que o veneno todo saia do seu
sistema, por isso estamos aqui… Até que… Até que eu entenda ao menos
um pouco o que aconteceu, não confio em ninguém.
— Onde estamos? — perguntei.
— Em uma cabana de apoio. É um perímetro seguro e tem material
de emergência, mas não se preocupe, ficaremos apenas alguns dias por aqui.
Corri os olhos por ele.
A calça em farrapos, o peito nu exibindo as tatuagens todo
arranhado e manchado de sangue. Os braços e mãos não estavam em
melhor estado. Havia um corte grande no lado esquerdo do seu corpo e eu
estendi a mão para tocar, o dedo deslizando em sua pele.
— Eu queria fazer uma piada, mas não consigo pensar em nada
engraçado para dizer… — confessei e sorri.
A boca bonita de Ture se curvou também, de canto, daquele jeito
tão dele.
— Parece que eu briguei com um gato? — perguntou afilando um
dos olhos e fazendo-me rir mais.
— Está mais para um tigre! — Tentei dar de ombros, mas meu
corpo protestou.
Ture rasgou um pedaço do lençol puído e amarrou um torniquete
acima do cotovelo, enquanto segurava uma seringa entre os dentes.
— Sei que vai parecer estranho, mas eu preciso… Preciso mesmo
fazer isso… — Enfiou a agulha em sua própria pele, até que a seringa
começou a se encher de sangue. — Preciso injetar meu sangue em você…
— soltou de uma vez, sem me encarar. — Vai ajudar na sua recuperação
e… Eu sou forte, Katarina… Sei que isso vai parecer maluquice, mas…
— Você é um homem-lobo… — constatei. — É isso? É por isso
que seu sangue vai me recuperar?
Minha cabeça fazia ligações à medida que voltava ao controle. O
sonho, as sensações, algumas lembranças.
Ture suspirou fundo.
— Quem disse isso?
Não havia negativa em sua pergunta, apenas curiosidade, então eu
tive minhas dúvidas sanadas.
— Gustaf.
Ture franziu o cenho, parecia confuso.
— Quando?
Pisquei algumas vezes, a claridade do dia nascendo que entrava
pela janela incomodava meus olhos.
— Um pouco antes do acidente… — Arrastei meu corpo para
cima, o suficiente para ficar meio sentada na cama, depois alisei os cabelos
para trás.
Tudo que havia acontecido na noite anterior parecia um borrão. Eu
me lembrava de flashes, tentava criar as conexões novamente.
— Eu tomei… Tomei os comprimidos que Helga deixou no meu
quarto e me deitei. — Desviei os olhos para a caixa de primeiros socorros
aos meus pés, enquanto Ture terminava de encher a seringa. — Acordei
com barulhos lá embaixo e encontrei Gustaf.
A memória do coelho morto voltou como um golpe em meu peito.
Ture afastou a seringa do braço e bateu o dedo para retirar o ar.
— Não foi Helga quem lhe mandou os comprimidos… — contou.
— Seus olhos eram de novo aquela linha fina de quando ele ficava irritado.
— Helga está morta.
— Hã? — soltei sem entender, sentindo minha costela esquerda
reclamar.
— Eu recebi uma mensagem de Aren… Achei que fosse dele, ao
menos… Burro! — Socou a mesinha ao meu lado, fazendo-me tremer de
susto. — Procurei por ele na floresta, mas, quando constatei que tinha sido
enganado, tudo já estava feito.
Arregalei os olhos, a atenção focada nele.
— A bebida…
— Era para mim. Alguém de dentro.
— Os freios do carro…
— Quem fez isso queria ter certeza de que eu seria pego como
homem ou como lobo. Certificou-se de garantir minha morte, mas…
— Eu bebi…
— E por sorte foi apenas uma dose… Se não… — Suspirou. — O
guarda de Aren e o garoto que me mandou o recado morreram também.
Travei por um segundo.
— Acha que Gustaf…
Ture se levantou rápido, mexendo na caixa de emergência
novamente.
— Gustaf é covarde demais para um plano tão bem montado, mas
não vou descartar nada por enquanto…
— Aren não…
Ture negou com a cabeça.
— Ele não tem motivos para querê-la morta… Ou a mim…
Sua mão foi estendida em minha direção e eu estiquei o braço para
que Ture fizesse o acesso. Não demorou muito e o conteúdo da seringa, o
sangue dele, corresse em minhas veias.
Eu podia sentir a força dele se espalhando, minha pele se
aquecendo por onde o sangue fluía. Depois de alguns segundos, eu mal
podia manter os olhos abertos. Não sei se por força do veneno ou se do
antídoto, mas eu adormeci. Sem sonhos, dessa vez.
Capítulo Quatorze
Ture
Katarina adormeceu e eu aproveitei para chegar mais perto, sem
que ela tivesse uma ideia errada do que estava acontecendo.
Na noite anterior, quando cheguei à casa de Yrian e a encontrei
vazia, tudo que conseguia pensar era que perderia minha liten e nem teria a
chance de dizer a ela o quanto a amava.
Ah, Katarina, se eu pudesse… — Levei a mão até o seu rosto, mas
parei antes de tocar sua pele.
O corpo dela estava tão cansado que nem mesmo minha presença
foi capaz de aflorar suas lembranças, eu tinha que agradecer por isso.
Meu telefone vibrou sobre a mesinha e eu me levantei rápido para
atender, não queria despertá-la.
— Diga que descobriu alguma coisa ou vou começar a desconfiar
de todos vocês… — soltei entredentes, mais arrogante do que deveria com
os meus soldados.
— Gente de fora, senhor — o homem do outro lado da linha
contou. — Passaram pelo bar por volta das dez da noite. Ninguém percebeu
nada de diferente, não eram como nós, ao menos… não todos eles.
— Metidos com humanos… — constatei.
— Usando mão de obra barata e descartável… — o soldado
concluiu o que eu tinha deixado de fora da minha frase. — Será um
problema, senhor… Sabemos como isso termina.
— Temos que ter cuidado ao investigar. Se forem os mesmos que
cuidaram de Yrian…
— Creio que não… Ou o grupo é maior do que imaginamos…
Quando aconteceu a morte do Sr. Thorsson, gente como nós foi vista
perambulando pela área.
Deslizei as mãos pelos cabelos.
— Não fosse pelo bane-lobo, eu diria que era serviço de humanos
mesmo, mas até onde sei, esse não é um conhecimento deles.
— Talvez…
Soltei o ar dos pulmões, não queria pensar na possibilidade que se
formou diante de mim. Sempre fugi daquele confronto, desde a floresta,
tantos anos antes.
— Se achar melhor, senhor, eu posso varrer o perímetro
novamente. O bar…
Mirei Katarina dormindo uma vez mais. Não queria deixá-la, mas
havia algumas coisas naquela história toda que só eu poderia investigar.
Quanto menos gente soubesse, mais seguro o nosso povo estaria.
— Eu vou, Rag — afirmei. — Reúna dois homens de confiança e
venha para a área da cabana. Vocês irão cuidar da segurança da princesa, eu
preciso de suprimentos, aproveito e corro um pouco por aí.
— É claro.
Ragaal era um dos homens de confiança de Aren e fazíamos
questão de manter a identidade em segredo. Não queríamos que ele
levantasse suspeitas.
Enquanto esperava pelo soldado, aproveitei e liguei para Aren. Ele
não demorou a atender.
— Como ela está?
Pensei por um segundo antes de responder. Sabia que tinha
falhado, mesmo que não fosse por desleixo, fora imprudente. A primeira
regra em uma guerra é não deixar o posto ao qual se foi designado.
— Vai se recuperar.
— Quero vê-la — anunciou e não havia nota alguma de pedido em
suas palavras.
Meus dedos se fecharam, a mão cerrada em punho
involuntariamente, mas eu não podia discutir uma ordem do meu futuro rei.
— É claro… Peço apenas que espere até que eu tenha certeza de
que o lugar é seguro.
— Se tem dúvidas, permita-me levar Katarina comigo para…
— Não! — respondi rápido demais.
Aren ficou em silêncio por alguns segundos e eu cheguei a pensar
se deveria dizer algo ou não, até que sua voz se fez ouvir novamente.
— Espero notícias então… Só não se esqueça que Katarina… é
minha responsabilidade.
— Jamais, meu senhor.
Desliguei o telefone quando Rag apareceu por entre os arbustos.
— Não vou demorar — avisei a ele.
— Ficarei bem aqui pelo tempo que precisar. — Baixou a cabeça
em cumprimento.
Quando peguei a estrada e pude aumentar a velocidade, as palavras
de Aren passavam por mim mais rápidas do que as árvores.
Minha responsabilidade.
Capítulo Quinze
Katarina
Acordei com Ture abrindo a porta. O dia já estava completamente
claro. Ele entrou e colocou as sacolas sobre a mesa.
— Sente-se melhor? — perguntou.
Fiz uma pequena checagem. As dores estavam mais fracas, eu já
podia movimentar os braços e levantar o corpo, embora ainda me sentisse
tonta. Respirar já não doía tanto e a sensibilidade em meus olhos tinha
melhorado.
— Uhum…
Ture encheu uma caneca com algo que estava sobre o fogão a
lenha e entregou a mim.
— Beba tudo, vai ajudar na sua recuperação.
— Não é aquela coisa viscosa que me fez vomitar, certo?
O riso curvou seus lábios.
— Leite com chocolate! — explicou. — E uma dose do elixir do
seu pai contra acônito.
Soltei um suspiro sem querer.
— Ele…
— Era um lobo também… — confessou. — E sua mãe… A minha,
meu pai… Somos todos da mesma espécie, Katarina… Não somos
aberrações, apenas… diferentes… — Sorriu um pouco mais. — Até o idiota
do Hanssen, o seu amiguinho kamikaze…
Dei o primeiro gole reprimindo o riso. Era doce e morno,
realmente bom.
— Você é bom com chocolate quente! — constatei fazendo graça.
Ture curvou o corpo para cima do meu em uma fração de
segundos, a boca resvalando na concha da minha orelha.
— Sou bom com coisas que você nem faz ideia, princesa.
Afundei o rosto no copo, de repente tudo que eu conseguia pensar
era em Ture sem roupa, sobre mim, e aquela sensação quente que ele
despertava em mim sempre que se aproximava.
Para a minha sorte, ele se afastou, disfarçando o riso, como se
soubesse exatamente em que eu pensava.
— Beba tudo, Katarina. Precisamos que você se recupere logo…
Apesar de seguro, não posso mantê-la aqui por muito tempo, não é
apropriado e…
— Podemos procurar um lugar, um apartamento com segurança,
Estocolmo é uma cidade maior e…
Ture negou com a cabeça sem me encarar.
— Não será possível…
Engoli o que restou do chocolate quente e de repente ele não estava
mais tão bom como antes.
— Consegue levantar?
Fiz que sim com a cabeça e forcei o corpo para cima, tateando a
parede com a mão.
Ture abriu a porta do banheiro, colocando uma toalha e algumas
roupas sobre a pia.
— Pode se lavar sem pressa, eu estarei aqui fora.
Fechei a porta e tirei os restos ensanguentados das minhas roupas.
Liguei o chuveiro e esperei, encarando meu rosto no espelho. Eu estava
péssima.
Havia um hematoma na minha bochecha que descia até o pescoço,
meu lábio inferior estava cortado e pequenos cortes do estilhaçamento da
janela marcavam toda a extensão do meu rosto até abaixo do pescoço.
Virei de lado. Minhas costas pareciam ter sido raspadas pelo chão
da floresta. Ainda podiam-se ver terra, pequenos cacos e sangue em toda a
extensão. Tentei passar a mão sobre o ferimento maior, mas o banheiro
começou a escurecer e eu me senti zonza. As pernas fracas. Achei que ia
cair, mas acabei nos braços de Ture.
— Katarina! — Batia em minha bochecha com as costas da mão.
— Katarina!
— Ei! — protestei assim que voltei a mim. — Quer piorar o que já
não está bom? Eu só perdi os sentidos, não preciso perder os dentes
também.
Era uma piada boba, mas Ture não riu, nem eu.
Meu corpo estava apoiado contra o dele, no chão. Minha pele
tocando a malha da camiseta. Sentindo o movimento de respiração. Rápido,
forte. Só então eu me dei conta de que estava nua.
Tentei me levantar, mas ele não me soltou, os olhos verdes fixos
nos meus.
— Estou bem… Só preciso… Eu odeio sangue! — confessei.
Ture se levantou e me puxou junto com ele. Suas mãos fixas na
minha cintura, os olhos tentando ignorar meu corpo exposto.
— Posso ajudá-la… Se quiser…
Não respondi, mas também não recusei. Ele me levou até o
chuveiro, colocando debaixo do fluxo de água morna. Apoiei as mãos na
parede, de costas para ele. Ture retirou meu cabelo para o lado, o corpo
perigosamente perto do meu.
Suas mãos começaram a deslizar em minha pele, limpando a
sujeira e retirando os pequenos pedaços de vidro um a um, bem devagar.
Eu deveria ter sentido dor. Ou algum tipo de desconforto, mas não
senti. Tudo que eu conseguia pensar era que ele estava ali, as mãos sobre
mim, o corpo tão perto do meu que me arrancou um gemido baixo por entre
os dentes cerrados.
— Machuco você? — perguntou sem se afastar.
Inclinei a cabeça para trás, o suficiente para encaixar em seu
ombro, aproximei a boca de sua orelha.
— Você nunca me machucaria… Lembra?
Sua mão deslizou em minha barriga, aproximando meu corpo do
seu, minhas costas resvalando na camiseta molhada, os lábios dele tateando
minha orelha, meu pescoço.
— Esse é um jogo perigoso, Katarina… — o tom era baixo, grave,
como o ronronar de um gato. — Eu não cacei ontem… Não acalmei minha
fera… E isso significa que ela tem mais controle sobre mim do que
deveria…
Não fui capaz de responder, sensações intensas demais percorriam
meu corpo como se eu segurasse um fio desencapado.
Ture também não disse mais nada, apenas esticou os braços em
direção aos meus, entrelaçando nossos dedos e apoiando na parede a nossa
frente. Sua boca beijando meu pescoço, tateando minha pele com a língua.
Gemi novamente, meu corpo todo formigando, se aquecendo.
Apertei as coxas para aplacar a necessidade que sentia dele, enquanto sua
boca continuava o caminho pelas minhas costas, tateando os machucados
com a língua, retirando os pedaços de vidro com a boca e cuspindo de lado.
Perto da curva dos meus quadris, ele parou, afastando-se de mim tão rápido
que precisei piscar algumas vezes para assimilar.
— Não acho que tenha sobrado nenhum caco, princesa. — Lavou a
boca na pia como se nada de mais tivesse acontecido.
— Ture… — chamei sem entender.
Ele passou a mão molhada pelos cabelos e depois pelo rosto,
despreocupado.
— Não se empolgue demais, Princesa Katarina, era necessário para
que o processo de cura…
— Vai se foder, seu desgraçado! — xinguei.
Assim que a porta se fechou, eu escorei a mão na parede e tentei
acalmar a raiva que borbulhava dentro de mim.
Filho da puta! Ture se tornou um belo filho da puta! Como ele…
Como pôde?
Um misto de vergonha e raiva mortal fazia meu corpo todo tremer.
Demorei mais do que gostaria debaixo da água, mas tratei de me
vestir o mais rápido possível.
Enfiei-me dentro do jeans claro e deslizei o moletom pelos braços.
Sentei-me na beirada do vaso sanitário para calçar os tênis. Não ia dar
bobeira e acabar zonza de novo.
Penteei os cabelos e os prendi em um rabo de cavalo. Quando saí
do quarto, vi Ture de costas, mexendo no armário vazio.
— Preciso ir à cidade… Acha que…
Mirei-o por alguns instantes, enchendo os pulmões de ar. Estava
começando a perder a paciência com esse jogo idiota que Ture fazia. Ora o
cara mais incrível do mundo, segundos depois um babaca que eu queria
socar.
Ainda tentava me recuperar da rejeição, quando três batidas
compassadas à porta de madeira fizeram Ture passar por mim como um
foguete.
— Entre no banheiro e tranque a porta — grunhiu entredentes.
Obedeci. Podia estar com raiva, mas não havia ninguém no mundo
em quem eu confiasse mais.
— Meu senhor… — sua voz era comedida. — Não o esperava
aqui… Ao menos não tão rápido… Os riscos…
— Sei bem dos riscos aos quais me exponho — a voz de Aren
tinha aquela nota de poder natural. — E você me conhece bem o suficiente
para saber que não costumo me esconder… Ainda mais se alguém atenta
contra a vida da minha… De Katarina. Aliás… Onde ela está?
Ture demorou um segundo para responder. Meu coração batendo
forte.
— Venha, Katarina — chamou.
Saí do banheiro como uma criança que fizera bobagem. Era
estranho estar no meio dos dois e eu me sentia intimidada sempre que
aquela situação acontecia.
Aren e Ture eram fortes e muito maiores do que eu. Havia ainda
aquela tensão esquisita entre nós três, uma que talvez só existisse em minha
cabeça, mas eu nunca sabia se deveria dizer algo ou apenas baixar os olhos
e esperar que um deles me dissesse o que fazer.
Enrolei uma mecha de cabelo entre os dedos, vendo Aren se
aproximar.
— Sinto muito por tudo que aconteceu… — Soltou um suspiro
profundo. — Mais ainda pela maneira como Gustaf…
Seu rosto era uma máscara de pesar, os olhos azuis pareciam
distantes e tristes.
Forcei-me a sorrir. Não queria deixá-lo preocupado.
— Tudo bem…
Evitei qualquer comentário complementar. Tudo aquilo parecia
sério demais e eu entendia tão pouco, não queria dizer a coisa errada e foder
com tudo.
Aren estendeu a mão e capturou a minha, acariciando suavemente,
os olhos ainda fixos nos meus.
— Katarina está quase recuperada, meu senhor, não se preocupe…
— a voz de Ture interrompeu. — Os conhecimentos de Yrian… Eu… —
enrolou-se nas próprias explicações.
Aren soltou minhas mãos e caminhou em direção a Ture. Seus
olhos profundos encarando os dele, sua mão repousando suavemente em
seu ombro.
— Sei que fez o necessário… Devo-lhe…
— Não me deve nada… — cortou o amigo, parecia desconfortável.
— É um prazer servir minha raça e meu futuro rei. — Curvou-se em uma
reverência.
Aren deu alguns passos pelo lugar, antes de ajeitar o terno bem-
cortado e voltar-se para Ture novamente.
— Mentira! — afirmou e, por um segundo, meu coração se
acelerou ainda mais. A tensão aumentou. — Você odeia tudo isso quase
tanto quanto eu!
Ture acabou sorrindo de canto.
— Ainda assim, é uma honra servir e proteger meu amigo.
— Nisso eu acredito! — Aren sorriu de volta.
Tentei abrir a torneira para pegar um pouco de água, mas acabei
molhando a roupa toda com o jato forte.
Ture venceu o espaço em passadas longas, fechou um pouco a
torneira e encheu a caneca, oferecendo-a a mim sem muita gentileza.
— Não seja tão duro com ela, Ture — Aren pediu. — Nós dois
crescemos sabendo exatamente o que éramos, Katarina não fazia ideia. E
não podemos dizer que sua incursão ao mundo dos lobos tenha acontecido
de maneira tranquila.
Forcei-me a esquecer as cenas que passaram pelos meus
pensamentos.
— Obrigada por compreender. — Sorri. — Prometo que vou me
esforçar mais.
Ganhei um abraço. As mãos de Aren em minhas costas.
— Vou resolver umas coisas!
Ture foi tão rápido que, quando me desvencilhei do abraço, ele já
estava na porta, com as chaves na mão.
— Espero que… Espero que tenham cuidado, os dois!
Aren passou o braço ao redor de mim.
— Cuido de Katarina até que você volte.
Ture já estava de costas para nós, mesmo assim vacilou por um
segundo antes de sumir no meio da floresta.
Capítulo Dezesseis
Ture
Apressei o passo como se fosse o lobo correndo, e não eu, direto
até a moto.
Subi e virei a chave, dando a partida e ganhando velocidade.
Tem certeza de que aguenta vê-la em meus braços?
Engoli a pergunta de Aren como se fossem cacos maiores e mais
pontiagudos do que os que eu tinha retirado das costas de Katarina.
A sensação do corpo nu dela contra mim, as curvas, a pele.
Lembrar o gemido que ela soltou fez meu corpo todo enrijecer de um jeito
tão intenso que até a velocidade diminuiu.
Lidar com o meu desejo era difícil, com o dela então arrancava
toda a sanidade que eu tinha. Não havia maneira fácil de ignorar o laço,
nem de esquecer o quanto era bom tê-la comigo.
Porra, Katarina, como você pode não perceber o quanto me afeta?
Eu não conseguia vê-la com outro. Não queria, nem sabia como
lidar com o fato de que a mulher que deveria ser minha, na verdade,
pertencia a outro, mas não havia como sair daquela merda de situação.
Não era direito meu colocar o futuro do meu povo em jogo, não
depois de tudo que aquele desgraçado que me deu a vida havia feito.
Acelerei mais a cada reta, a fera urrando para sair, meus dedos tão
apertados contra o manete que chegavam a doer.
Parei assim que avistei uma pequena loja de conveniência no
terreno do posto de gasolina. Estava muito, muito longe da cabana, mas
ainda assim podia sentir a conexão me puxando de volta.
Desci, o peito indo e vindo rápido, respiração descompassada.
Tinha que tomar uma dose de algo bem forte, precisava aplacar a
necessidade de protegê-la que me sufocava.
Seja mais paciente com ela… Chutei um tronco que havia no
caminho.
Quem ele pensa que é para dizer como eu devo tratá-la? Quem
ele… A porra do noivo, Ture! O homem que irá possuí-la por toda uma
existência! E você vai ficar ali, sempre dois passos atrás, esperando por
uma migalha de amor com a qual nem poderia contar. Sua senhora! Ela
será sua senhora, a mulher a quem você deverá todo o respeito e
submissão. Sua protegida.
Engoli o gosto amargo de bile que subiu pelo meu esôfago e cerrei
os punhos.
— Ei, babaca… — alguém chamou em inglês. — Sua moto está no
cami…
Venci o espaço entre nós e o segurei pela gola da camisa,
arrancando seu corpo pelo vidro aberto da janela.
Joguei o desgraçado no chão com tanta força que ele demorou a se
levantar.
— Ei! Eu não…
Preparei o punho, só queria um saco de pancadas para soltar a ira, a
fera precisava disso, eu também, mas, antes que acertasse o rosto do
homem, parei.
— Suma antes que eu mude de ideia! — o aviso foi taxativo.
O filho da puta não pensou duas vezes, entrando no carro e
seguindo para longe tão rápido quanto o motor aguentou.
Desviei da loja e segui um pouco à frente, onde uma mesa grande e
alguns bancos de madeira ficavam.
Sentei-me no tampo e cobri o rosto com as mãos. Precisava me
controlar, ou acabaria como o desgraçado do meu genitor, entregue à fúria,
dominado pelo lobo.
Lembra-se do Homem-Aranha? — a voz de Yrian se fez tão real
em meus pensamentos que eu quase acreditei que ele falava mesmo
comigo. Com grandes poderes, Ture, vêm grandes responsabilidades… Ser
superior é saber quando parar, quem proteger. Não há honra em vencer
alguém que é mais fraco.
Controlei a respiração até que me senti capaz de abrir os olhos
novamente.
Não era um monstro, nem pretendia me tornar.
Levantei-me de onde estava e subi direto na moto. Podia comprar
comida em outro lugar, mas precisava de um tempo longe de tudo aquilo.
Dirigi até o cemitério e parei ao lado da cripta. O lugar estava
fechado, eu não tinha como entrar, mas mesmo ali, sentado na grama,
encarando as flores que ela tanto amava, eu me senti em paz.
— Acho que vou precisar de uma ajudinha, princesa… Sua filha…
— Sorri. — Ela se parece tanto com você, Karin… — Soltei uma lufada de
ar. — Se você soubesse de tudo que ia acontecer, aposto que teria me
deixado lá! — Sorri novamente, mas o riso morreu logo.
Ana Karin tinha sido a primeira pessoa a realmente se preocupar
comigo. Fora dela que recebi o amor que uma mãe deveria ter me dado. Eu
não podia falhar com Katarina, não tinha o direito de escolher o caminho
mais fácil, quando a mulher que me tomou sob sua responsabilidade tinha
entregado tanto por amor.
Senti a primeira lágrima cair, mas a limpei rápido. Não ia
sucumbir, ia aguentar, suportar como um ulfhednar[3], como um guerreiro de
Odin.
— Juro que não vou falhar com você, princesa… Eu prometo, vou
cumprir! — Mais um suspiro. — Só me ajude… Baixei o olhar. — Tente
enfiar um pouco de juízo na cabeça de Katarina, ok? Já é difícil demais
lidar com tudo isso, fica pior quando ela… — Girei a mão no ar, a sensação
do corpo dela contra o meu voltou toda de uma vez.
Levantei de onde estava, limpando a calça com as mãos.
— Mas que droga, Ture! — repreendi a mim mesmo. — Nem o
túmulo da sua princesa você respeita mais?
Subi de novo na moto e dei a partida.
Ia ter que dar um jeito de manter a cabeça no lugar ou acabaria
machucando as duas pessoas mais importantes para mim.
Capítulo Dezessete
Katarina
Assim que ficamos sozinhos, Aren estendeu o braço em minha
direção.
— Sente-se um pouco, Katarina… Os ferimentos ainda…
Antes que eu pudesse recusar o apoio, senti uma onda de tontura e
pisquei, levando a mão à testa. Quando dei por mim, já estava nos braços
dele.
Aren me carregou até a cama e colocou sobre o lençol com
cuidado.
— Aqui… Recoste-se para ficar mais confortável. — Sorriu, a mão
deslizando em meu rosto com tanta suavidade que aqueceu meu coração. —
Sei que é corajosa, mas deve ser prudente também. — Soltou um suspiro
profundo. — Não podemos… Eu não posso perder mais ninguém.
Era profundo, cheio de sentimentos e provavelmente tinha muito
mais a ver com o passado dele do que comigo, mas, de qualquer maneira,
vê-lo vulnerável daquele jeito era dolorido.
Fiz o melhor que pude para parecer recuperada.
— Sou dura na queda! — brinquei. — Sangue ru… — Parei a
frase no meio assim que me dei conta de que éramos da mesma família.
Aren riu alto.
— Desculpe! — pedi.
O riso durou mais alguns segundos e depois deu lugar a um sorriso
doce.
— Você é exatamente como sua mãe, sabia?
— Você a conheceu? — Encarei-o curiosa.
Aren meneou a cabeça em afirmação, antes de continuar.
— Lembro-me pouco dela… Eu era muito pequeno quando Karin
morreu, mas as lembranças que tenho ainda me fazem sentir saudades.
— Meu pai não falava muito dela… — confessei.
— Seu pai a amou muito… Karin e Yrian eram destinados um ao
outro e quando… — Mais um suspiro que vinha de outro lugar, outra
história. — Quando se perde alguém assim, Katarina, é difícil seguir em
frente… Acho… Na verdade não acho, tenho certeza… — Sorriu. — Seu
pai só seguiu neste mundo porque tinha você.
Engoli o bolo de sentimentos que se formou dentro de mim. Os
olhos marejando, os dedos de Aren secando as pequenas gotas que insistiam
em descer pelo meu rosto.
— Sua mãe era intensa… Feliz… Uma apaixonada pela vida! —
Sorriu novamente. — Cantarolava pela casa e descia os degraus de dois em
dois. Nunca a vi reclamar de algo ou de alguém. Todos queriam servi-la. —
Suspirou. — Karin era muito admirada.
Os olhos dele se perderam dos meus, os traços tranquilos dando
lugar a uma fúria que eu só tinha visto no cemitério, quando sua autoridade
foi questionada por Gustaf. Maxilar contrito, meu primo esperou por alguns
segundos, como se buscasse a calma novamente.
— Triste ver que essas mesmas pessoas que a amavam viraram as
costas a ela quando a princesa perfeita decidiu quebrar o protocolo.
Somos… Nosso povo… — Esboçou um sorriso que não era muito feliz. —
É difícil de lidar… Muitas regras, entende?
— Você não me parece difícil de lidar! — confessei.
Era uma frase boba, mas eu queria que ele voltasse à leveza de
antes, sentia uma necessidade de cuidar de Aren, como se realmente
tivéssemos um laço de sangue. Como se o destino não nos tivesse mantido
separados por tantos anos.
— Não queira me ver discutindo nas reuniões do conselho! —
Piscou e eu acabei sorrindo.
— O peso da Coroa exige sacrifícios! — brinquei.
Aren riu, mas o riso durou menos do que eu gostaria.
— Você nem faz ideia do quanto!
Baixei o rosto, não sabia o que falar, então Aren levantou-se,
ajeitando o terno e deslizando as mãos pelos cabelos.
— Nem só de sacrifícios vive a Coroa, minha querida, acredite! —
Deu de ombros fazendo graça. — Comandar tem seus compensativos!
Ele deu alguns passos em direção à janela e eu fiquei observando
sua figura elegante caminhar até a pia.
Meu primo encheu um copo com água e virou-se em minha
direção. Seus cabelos brilhavam em vários tons de castanho, desde o mais
claro até o completamente escuro, com a luz que vinha da janela. Os olhos
pareciam feitos de cristal. Um cristal tão azul que me lembrava do oceano.
Aren havia retirado o blazer e eu podia ver que a camisa descia
perfeitamente reta até a calça. Seu abdome era liso e plano, bem como seu
peito, suavemente marcado por músculos. Os punhos da camisa branca
haviam sido levantados até a metade do antebraço. Linhas de tinta desciam
desde a manga da camisa, em direção aos pulsos.
Era curioso ver que ele tinha tatuagens, já que eu o imaginava
como um exemplo de tudo a ser seguido. Sempre tão polido, elegante e
perfeitamente comportado.
— São marcas de batalha…
Só quando sua voz cortou o silêncio, eu me dei conta de que estava
olhando demais.
Senti as bochechas corarem, então desviei.
Aren sorriu, mostrando uma fileira de dentes perfeitos.
— Achou que eu não fazia o tipo guerreiro tatuado? E que isso era
uma particularidade do Ture?
Mais calor se dissipou em meu rosto e meu primo riu mais.
— Tudo bem, Katarina! É natural que você tenha curiosidades…
Por… nossa raça, quero dizer.
Mantive o silêncio, sentia-me confortável com ele, sem toda aquela
tensão que Ture sempre colocava entre nós.
Aren caminhou até mim com aquela aura de poder que existia ao
redor dele, tão dominante quanto um príncipe deveria ser. E tudo que
consegui foi observar.
Ele se sentou ao meu lado na cama, os olhos perdidos na floresta
pela janela.
— Houve um tempo em que eu não queria ser rei… Tive minha
fase rebelde também, Katarina. Acho que… Acho que todos temos! —
Sorriu.
Pensei no quanto minha vida tinha sido vazia, em tudo que havia
perdido, sempre trancada naquele internato. Havia perdido muito, tanto que
talvez nem conseguisse recuperar.
— Ainda bem que voltei a mim com tempo de te conhecer… — Os
dedos longos roçaram minha pele, bem na linha do maxilar. — Sei que
ainda não entende bem o nosso mundo, mas juro por Odin que estou aqui
para guiá-la…
Meu coração acelerou de um jeito forte, o toque dele irradiando
calor em minha pele, o corpo próximo do meu.
— Não somos monstros, Katarina…
— Nunca achei que fossem. — Pisquei. — Que fôssemos! —
corrigi.
Aren sorriu, aproximando-se mais, o indicador subindo pela minha
fronte, o tronco se curvando para mim.
Travei. Não estava com medo, muito pelo contrário, mas, a cada
centímetro que ele vencia, a voz de Ture falava dentro de mim.
Os lábios bonitos dele se separaram e eu pisquei em antecipação, a
mão espalmada no colchão, pronta para me afastar, até que ele soprou e eu
fechei os olhos de susto, fazendo-o rir.
— Desculpe a aproximação inesperada… Havia um… Aqui! —
Esticou a mão e pegou algo em meu cabelo. — Um fiapo.
Acabei rindo, de nervoso, obviamente. Se já me sentia boba antes,
agora mais ainda.
Aren percebeu meu desconforto e segurou meu queixo com as
mãos, os olhos azuis límpidos e profundos focados.
— Achou que eu iria beijá-la?
Engoli em seco sem conseguir responder.
— Quando isso acontecer, Katarina… Será com o seu
consentimento! Não tenha medo de mim, nunca.
Mais um sorriso e então sua boca tocou minha pele, na bochecha,
embora perigosamente perto dos lábios.
Para a minha surpresa, a porta se abriu antes que o beijo terminasse
e Ture passou por ela sorrateiro como um gato e perigoso como um jaguar.
Seus olhos eram a fina linha cor de esmeralda de quando algo o
estava aborrecendo. Ele não olhou em minha direção. Virou-se de volta para
a porta e acendeu um cigarro.
Capítulo Dezoito
Ture
— Perdão, meu príncipe. Não tive intenção de atrapalhar. Posso
dar uma volta, se for de seu agrado.
Permaneci de costas ou seria impossível esconder os olhos da fera
sob os meus, os dedos em garras, o ódio fervilhando tão intensamente que
eu mal podia manter a razão no controle.
As batidas descompassadas do coração dela ecoavam em minha
cabeça. Emoção. Ela sentia… Sentia algo quando ele a tocava, havia…
Cerrei os dentes, controlando o desastre iminente. Mal tinha me
recuperado e já estava no limite de novo.
— Não se preocupe… — a voz do desgraçado era tranquila. —
Não há nada para ser interrompido. Eu já estava de saída, tenho
compromissos em casa.
Dei mais um trago no cigarro, talvez a nicotina me acalmasse.
Ainda estava de costas, mas minha atenção estava completamente naquela
cabana. Aren vestiu o blazer e pegou os óculos escuros.
— Nos vemos em breve, Katarina.
Algo fez o coração dela acelerar de novo.
— Não deixe que Ture lhe aborreça enquanto eu estiver fora… —
Sorriu. — Ele costuma ser bem rabugento quando se sente contrariado.
Katarina não se moveu, estava insegura, sem saber como agir.
Havia um pouco de vergonha e raiva.
Ele não quer você — o pensamento dela rasgou meu peito de
dentro para fora.
Aren passou por mim e eu curvei o corpo. Era mais deboche do
que reverência e meu amigo sabia muito bem, mas não disse nada.
Quando parou em frente ao carro, depois de ter a porta aberta pelo
motorista, voltou os olhos para mim.
Eu sabia que estava errado, mas não conseguia controlar e a última
coisa que precisava era de uma lição de moral. Fechei a porta antes que o
carro dele arrancasse para longe da floresta.
Ouvi a torneira do banheiro ser ligada e Katarina controlar a
respiração, enquanto a água fria batia em sua pele. Apoiei o corpo contra o
parapeito da janela e levei o cigarro à boca novamente.
Ela deixou o banheiro sem me olhar e seguiu direto até a pia da
cozinha, onde serviu-se de um copo com água. Fiquei imóvel, esperando
que Katarina começasse a discussão que eu tanto queria, a fera urrando,
raivosa, buscando o controle.
— Você não vai dizer nada? — finalmente falou. — Vamos! Estou
esperando a censura.
Continuei em silêncio, dando uma longa tragada no cigarro e
soltando a fumaça bem devagar.
— Você é adulta. Não sou dono da sua vida.
Usei todo o controle que havia aprendido em combate para manter
qualquer sentimento longe da minha voz.
Katarina buscou de todas as maneiras encontrar algo dentro de
mim em que pudesse se segurar, mas eu não mostrei nada, nem mesmo
desaprovação. Tinha que ensinar a ela, por mais doloroso que fosse.
— Você não se importa? — perguntou irritada. — Viu um homem
na cama comigo, me beijando, e não se importa.
Trinquei os dentes e cerrei os punhos até doerem. A possibilidade
de que Aren a tivesse tocado além do que eu vi, que tivesse tomado meu
lugar junto ao corpo dela, era como engolir lava incandescente.
Mantive-me onde estava até que consegui medir as palavras.
— Você é adulta.
— Sei disso! — replicou. — Sei que posso fazer o que quiser… —
ia contando nos dedos. — Que você não manda em mim! Que não é o dono
da minha vida!
Ia falando e se aproximando demais, num jogo perigoso que eu não
tinha certeza se estava em condições de jogar. Desencostei de onde estava e
aumentei o espaço entre nós.
— Então acabamos por aqui!
Levei a mão à porta e coloquei o primeiro pé no degrau que levava
para fora, quando senti a mão dela contendo-me pelos ombros.
Não pude mais controlar a fera, girei o corpo tão rápido que só dei
por mim quando a prensei contra a parede, tão forte que podia sentir cada
centímetro dela colado a mim.
— Nunca mais faça isso, Katarina… Não me toque quando eu
estiver no limite ou não vou responder por mim.
Ela sustentou meu olhar e por alguns segundos tive certeza de que
viu o lobo lá dentro, os olhos dele buscando por ela, a fome que ele sentia, a
necessidade de possuí-la.
— Gostou? — provoquei, mas ela não respondeu, os olhos ainda
perdidos nos meus. — Foi divertido com Aren? Usou seus joguinhos?
Eu precisava que ela me odiasse, mas não conseguia evitar a
vontade que me consumia. Aproximei o nariz da sua pele, farejando o
mínimo traço dele na mulher que eu queria para mim.
Katarina tentou me afastar. Quanto mais lutava contra mim, mais
forte eu a prendia, até que ela desistiu e foi sua desistência que me devolveu
o controle.
Já não era mais contra o lobo que ela lutava, eram os meus olhos
que via.
Seus lábios roçaram os meus, o hálito dela, apenas dela, intocado,
como sempre fora. Engoli em seco o desejo de violar sua inocência, torná-la
minha como ela já era dentro de mim.
— Ture, eu… — Movia os lábios mesmo que nenhuma palavra
saísse deles, apenas para escovar os meus.
Desci a boca em direção a sua mandíbula, farejando o sangue
quente no pescoço, sentindo a pele dela se arrepiar. A maldita conexão
estava tão forte que eu podia sentir o perfume da excitação dela aumentar,
meu pau, tão duro que era quase doloroso.
Afundei a coxa entre as suas pernas, queria fazê-la sentir mais.
Uma mão em sua garganta, mantendo-a presa, a outra deslizando em seu
abdome, apertando forte a lateral do quadril.
Katarina fechou os olhos, tremendo em antecipação, assim que
meus dentes arranharam a pele fina do seu pescoço, bem devagar, até a
orelha.
— Você gostou de se esfregar no príncipe? — provoquei. —
Consegue esquecer o que sente agora quando está com ele?
Os lábios dela se separaram, não era em Aren que pensava e eu
sabia muito bem.
— Não — grunhiu.
O corpo todo entregue a mim, ansioso pelo que eu faria a seguir,
então a soltei, de uma vez, seus joelhos batendo contra a madeira tão
bruscamente que senti a dor em mim.
Travei os dedos, segurando o desejo de ajudá-la, de correr até ela e
dizer que era tudo mentira e que eu não suportava vê-la nos braços de outro,
mas de que adiantaria se aumentássemos nosso sofrimento?
Quanto antes Katarina quisesse distância de mim, melhor para ela.
— É uma pena, princesa — segui com a máscara de sarcasmo que
havia enfiado no rosto. — Você deveria gostar… — joguei.
Quando ela levantou o rosto molhado de lágrimas para mim, havia
mais raiva e desgosto estampados ali. Katarina limpou os olhos com as
costas das mãos e ajeitou o corpo, ainda sem se levantar.
— Já que ele é o único a quem você irá beijar!
Acendi mais um cigarro, o olhar dela queimando-me pelas costas.
— Você não sabia? — Esbocei um sorriso que doeu como o
inferno. — Então o príncipe deixou de fora a parte mais importante… Você,
Katarina, é a princesa… Não seja ingênua. Pense! — Bati com o indicador
na fronte provocando-a ainda mais.
Ela piscou, as conexões se formando dentro da sua cabeça e
apertando meu peito. Quando finalmente compreendeu, sua boca se curvou
em desgosto, ultraje, mais raiva.
— Você sabia o tempo todo… — soltou baixo, não era uma
pergunta.
— Sei de muitas coisas… — Dei mais um trago.
— Por que não me contou?
— Não era problema meu!
A força da fera dela tomou o que lhe fora negado todos esses anos
e Katarina veio para cima de mim como quem enxerga em vermelho-
sangue. Chutou, socou e eu apenas a contive.
Talvez fosse a última coisa que eu teria dela. Mesmo a fúria era
melhor que nada.
— Seu covarde! — chorou. — Você escondeu de mim! Fez com
que eu confiasse nele! Acreditei que ele se importava comigo! Você não foi
me resgatar, foi me capturar! É isso? É assim que as coisas acontecem nessa
droga de mundo? Você prometeu me proteger! Você jurou para o meu pai!
Covarde! Covarde!
Travei suas mãos com as minhas.
— Nunca mais repita isso! — exigi. — Seu pai está morto,
princesinha! Morto! Entendeu?
A velocidade das lágrimas aumentou, eu precisei baixar os olhos e
tomar fôlego antes de continuar.
— Não vou permitir o mesmo destino a você, Katarina… Jamais.
Mesmo que… Mesmo que você me odeie!
Soltei-a de uma vez e joguei o cigarro, ainda aceso, dentro da pia.
Estava no limiar do controle, não ia aguentar por muito tempo, precisava
correr, para longe, sumir.
Assim que me afastei o suficiente, deixei que a fera ganhasse o
controle e o lobo assumiu meu corpo, passos largos de um animal enjaulado
por muito tempo. Era a única maneira de não sucumbir ao que eu realmente
queria e eu rezei à deusa para que conseguisse.
Capítulo Dezenove
Katarina
Ture saiu pela porta e eu demorei alguns segundos para tomar
coragem e fazer o mesmo.
Aquela briga idiota tinha sido o mais perto dos verdadeiros
sentimentos dele que eu chegara, não ia desistir, não podia. Tinha entregado
meu coração a ele muito tempo atrás, não havia volta para nós.
— Ture! — gritei. — Ture, seu… Seu… Volte aqui agora!
Entrei para a floresta, retirando alguns galhos baixos da minha
frente. Chorando e soluçando.
Já não tinha mais ideia da direção que ele seguira.
Nunca fui boa em localização, nem sabia mais como voltar à
cabana, não que pretendesse, de qualquer maneira.
Queria correr, chorar. Talvez assim eu finalmente conseguisse
resolver tudo que girava ao meu redor como um tornado furioso.
Apressei as pernas, quanto mais eu corria, menos sabia onde Ture
estava ou eu mesma.
Passei por pinheiros altos, sem olhar bem onde estava. A floresta ia
ficando cada vez mais escura e então eu tropecei, só não caí no abismo a
minha frente porque mãos firmes me puxaram de volta.
Ture me comprimiu contra o tronco de uma árvore. Estava suado e
suas mãos, sujas de terra. Os nós dos dedos sangravam.
— Ficou maluca? — perguntou entredentes. — Eu disse para você
não deixar a cabana!
— Isso não importa mais!
Sua respiração aumentou. Os olhos verdes escurecidos e sombrios
encarando os meus de uma forma tão intensa que me fazia perder o ar.
— Como não? — exigiu.
— Você não se importa… Você mesmo disse isso… — deixei
escapar sentindo o peso das minhas palavras.
E foi então que Ture me beijou.
Seus lábios comprimindo os meus tão forte que quase podiam me
machucar. Sua língua na minha, faminta, tomando posse. O corpo se
encaixando no meu. Seus gemidos me excitando mais e mais até que eu
mesma estava gemendo.
Ture ergueu minha blusa e a tirou por meus braços num
movimento certeiro. Sua boca beijou minha clavícula e com um dos joelhos
ele separou minhas pernas, encaixando-se entre elas.
Eu podia sentir sua ereção pulsando, urgente, como meu corpo
também estava. Sua pele contra a minha era como fogo, queimando e nos
consumindo.
Não, eu não podia ser a noiva de Aren!
Não havia possibilidade de que eu sentisse aquilo com outra
pessoa, que esquecesse como era quando Ture estava comigo, não havia
volta. Eu e ele, a conexão que tínhamos era única, ditando o ritmo do meu
corpo no seu.
— Minha… — Ture soltou junto a minha pele, arrepiando todo o
caminho que sua boca percorria.
— Sim… — confessei. E não havia mais verdade em nenhuma
palavra que eu dissesse.
— Nós não deveríamos… — Ture ponderou sem se afastar um
milímetro sequer.
Aquiesci, mas também não me afastei. Não queria.
— Sabe que eu não vou parar, não é? — sua voz embargada de
desejo.
Eu quis dizer que sabia. Formulei a frase toda em minha cabeça,
mas, quando sua língua tocou a linha da minha clavícula e subiu através do
meu maxilar, todas as palavras se transformaram em pequenos gemidos. Eu
não queria que parasse e ele sabia disso.
Ture soltou o botão da minha calça e baixou o zíper. Ondas de
calor se dissipando ao redor de mim, arrepiando minha pele. Apoiou a mão
contra a casca da árvore e começou a me beijar, primeiro sugando meu
lábio inferior e depois mordendo.
Sua boca desceu pelo meu pescoço novamente, e baixou até o
sutiã, beijando meus seios por cima do tecido. Sua respiração quente sobre
a minha pele. Fechei os olhos enquanto ele descia, até meu abdome,
arranhando minha pele com a barba. Sua língua brincando perto do meu
umbigo.
As mãos grandes baixaram minha calça e eu terminei de tirá-la.
Ture acomodou minha perna sobre o ombro. Seus joelhos apoiados contra o
chão da floresta, a boca beijando a parte interna da minha coxa, seguindo
mais para cima, meu coração acelerando, a respiração descompassada,
minha e dele.
— Hum… — gemi, enterrando as unhas na pele do seu ombro.
Ture mordeu minha carne sensível ali perto da virilha, sua língua
tateando, chupando minha pele, enquanto os dentes apertavam mais forte.
Gemi mais alto, arqueando o corpo para a frente.
E foi então que o inesperado aconteceu.
O zunido cortou a floresta rápido demais e eu senti o corpo de Ture
pender para a frente, caindo sobre o meu sem que ele tivesse controle.
Tentei segurá-lo em vão, muito maior e mais forte do que eu, seu
peso me levou com ele e foi isso que me salvou do tiro que veio a seguir.
— Ture! — gritei, junto ao seu ouvido, mas ele seguia inerte. —
Ture… — choraminguei.
Meus olhos buscavam a origem dos disparos, mas tudo que eu
conseguia ver eram lascas de árvores e barulho de pássaros.
Fiquei em silêncio, na esperança de que o autor pensasse que tinha
completado sua missão e se afastasse. O desespero fazia meu corpo tremer,
as lágrimas rolando sem cessar.
Mantive o rosto sobre o peito dele, o som fraco do seu coração
batendo era o que segurava um pouco de razão em mim.
Concentra, Katarina, concentra! — forcei os pensamentos. Você é
a porra de um lobo, afinal, ouça!
Forcei-me a prestar atenção aos sons da floresta ao meu redor, até
ter a certeza de que não havia mais ninguém por perto, só então levantei o
corpo.
Ture respirava com dificuldade, as pálpebras tremendo, os lábios
separados. Havia uma marca ensanguentada abaixo do seu ombro, perto
demais do que poderia ter sido um tiro fatal. Outra de raspão perto do
quadril e mais uma no quadril.
— Ka-Katarina… — balbuciou.
— Shhh… Ture, não se preocupe, eu vou dar um jeito, vou nos
tirar daqui, eu juro.
— Aren…
O nome saiu como uma súplica e eu entendi de imediato. No
instante seguinte, o delírio e a inconsciência tomaram conta dele
novamente.
Meu coração deu um salto, aquele medo paralisante tentando me
travar, mas eu não podia permitir. Era a primeira vez que Ture dependia de
mim, depois de ter me salvado mais do que eu podia me lembrar.
Vasculhei os bolsos dele em busca do celular, rezando para que não
tivesse ficado na cabana.
— Achei! — gritei para nada além de mim.
Não havia nome algum registrado. Apenas siglas e símbolos que eu
não conhecia. Praguejei mentalmente por meu pai ter me deixado fora de
toda esta parte nada convencional que envolvia minha família.
Tudo que pude fazer foi apertar o botão de ligação e rezar para o
último número ser o de quem eu precisava.
— Pode falar… — a voz de Aren fez um turbilhão de sentimentos
me golpear forte.
Apertei os olhos para impedir as lágrimas de saírem e engoli o bolo
de saliva que se formou em minha garganta.
— Um atentado… Na floresta… Ture…
— Fique onde está, eu a encontro em breve.
A linha ficou muda. E eu permaneci ali, alguns segundos com o
telefone nas mãos, olhando o corpo de Ture inerte à minha frente e
pensando em como eu havia sido idiota em desobedecer, minha raiva
poderia custar a vida dele.
Eu me vesti e prendi os cabelos bagunçados de volta no elástico.
Ajeitei as roupas de Ture também. Muito além de qualquer coisa que
tivesse acontecido ali, eu sabia bem que ele iria preferir contar a Aren do
jeito certo. Termos sido pegos em uma emboscada no meio da floresta já era
ruim o suficiente, o motivo não precisava ser revelado daquele jeito.
Sentei-me ao lado de Ture, meus dedos deslizando em sua pele
quente, acariciando seu rosto; enquanto observava, sua respiração apertava
de um jeito estranho.
— Você não pode morrer! Ouviu? — reclamei, mas estava mais
para uma súplica. — Não posso encarar isso tudo sozinha… Eu não consigo
sem você!
— Ele não vai, Katarina — a voz de Aren se aproximou até que ele
saiu detrás de um arbusto. — Não vamos permitir! Eu não vou! — a voz
empostada, cheia de poder.
O príncipe elegante que eu começava a conhecer ajoelhou-se no
chão sujo da floresta sem nem pensar. A mão espalmou a testa do amigo,
conferindo a temperatura, e depois analisou os ferimentos. Havia pouco
sangue, mas os locais das lesões eram todos perigosos.
Quando terminou o exame rápido, Aren voltou os cristalinos olhos
azuis para mim.
— Ele ficará bem… — Esboçou um sorriso condescendente.
Sorri de volta. Não estava feliz, mas me sentia bem mais segura
com ele ali ao meu lado. A presença de Aren era confortável e segura,
constante, e eu precisava disso mais que qualquer coisa nesse momento.
— Irmão? — voltou sua atenção para Ture, que tentava balbuciar
algo, estava em um dos segundos de lucidez. — Irá doer um pouco, mas
preciso tirá-lo daqui. Logo irá anoitecer e nós sabemos o que significa.
Ture meneou a cabeça em concordância, um pequeno aceno, quase
imperceptível.
Aren levantou o corpo grande de Ture como se ele não pesasse
nada e manteve seu braço ao redor do tronco do amigo, apoiando-o, caso
Ture desmaiasse.
— Vamos tentar caminhar, ok? A cabana não está distante, o carro
está lá.
Ture não ofereceu resistência, passos trôpegos apoiados por Aren.
Só quando eles passaram por mim foi que pude ver o tanto de sangue nas
costas de Ture.
Caminhamos em direção à cabana e, a cada passo, Ture ia ficando
mais forte, segurando o próprio corpo com mais firmeza. Quando pudemos,
enfim, avistar a construção de madeira, Aren parou.
— Lobos estiveram aqui! — constatou.
Ture inspirou o ar, elevando um pouco o nariz.
— Já se foram… — complementou.
— Saíram há alguns minutos. Provavelmente os mesmos que
atiraram em você — Aren constatou.
Olhei ao redor, a tarde caindo e a luz do dia indo embora. O
desespero apertou meu peito e se estampou em meus olhos.
— Eu vou na frente! — Aren propôs. — Você fica aqui, ainda não
está recuperado e Katarina… Pode se apoiar nela?
— Não posso permitir que se exponha, meu senhor — Ture
retrucou.
— Não pedi sua permissão, meu amigo… Perguntei apenas se
pode se apoiar em Katarina, ou se precisa que eu o ajude a se sentar.
O tom de voz ainda era baixo e controlado, não era a força do som
que intimidava, era o poder que emanava dele, a autoridade. Seu rosto tinha
a mesma serenidade de sempre.
Ture não disse mais nada, embora eu pudesse sentir sua
desaprovação.
Dei um passo para o lado, aproximando-me o suficiente para que
ele pudesse se apoiar em mim, abraçando-o pelo tronco. Aren sumiu entre
as árvores.
Eu não conseguia mais vê-lo, mas no caminho algumas folhas se
movimentaram, aqui e ali, de vez em quando.
— Katarina… — Ture chamou depois de um tempo, quando já
estávamos sozinhos. — Preciso… Preciso que me perdoe.
Seus olhos eram profundos e eu podia ver resquícios de culpa e dor
pairando em seu olhar.
— Você tem razão… — continuou. — Prometi ao seu pai que a
protegeria e quase… Quase falhei por ser incapaz de dominar meus desejos.
Eu não queria ouvir, ainda que fosse verdade. Eu sabia que era.
Ture sempre fora regrado, controlado, eu era o motivo do seu descontrole,
da sua ruína.
— Você pode me perdoar, minha senhora?
— Não sou sua senhora! — as palavras arranhando minha
garganta, lutando contra a vontade de chorar.
— Será! — Um suspiro longo deixou sua boca. — E eu prometo
me esforçar mais para não me esquecer disso.
Capítulo Vinte
Katarina
Lágrimas voltaram a se formar em minha garganta e eu as engoli o
mais rápido que pude.
— Não, Ture… Não agora — pedi.
Ele me encarou por alguns segundos. Os olhos cheios de
sentimentos.
— Tudo bem — concordou.
Na direção da cabana, a silhueta de Aren começou a tomar forma.
Ele estava sem camisa e sem sapatos. O peito marcado por alguns
arranhões, o cabelo despenteado de um jeito nada convencional para ele, as
mãos sujas de terra.
— Está seguro! — confirmou. — Mas não restou muito da cabana.
Caminhamos para dentro, para encontrar um monte de escombros
revirados e coisas quebradas. Ture se apoiou contra a pia, enquanto fazia
uma varredura visual do cômodo.
— Precisamos sair daqui — concluiu. — Ir longe… O mais rápido
que pudermos. Talvez se…
— Machucado como está não acho que…
— Eu consigo! — retrucou novamente. — Posso levar Katarina
para as montanhas. Bjorn…
Quando tentou desencostar de onde estava, fez uma careta de dor.
— Irmão… — Os olhos de Aren se focaram no amigo. — Sabe
que confio minha vida a você, mas agora é hora de pensar no melhor para
Katarina… — enfatizou. — E para você… Nosso amigo urso tem seus
próprios problemas para resolver, não seria justo colocá-lo na mira dos
nossos.
Ture ponderou com um suspiro profundo. Eu sabia bem o quanto
lhe custava não estar no controle, mas Aren tinha razão.
— E o que sugere, meu senhor?
— Que me permita fazer meu papel de rei e proteger meu povo.
Assim pago parte de minha dívida com você, salvando-o desta vez.
Ture sorriu.
— Já disse que não me deve nada, irmão, sou eu quem lhe deve.
Você e Karin foram os únicos — seus olhos baixaram para o chão —, os
únicos que confiaram em mim.
Tentei em vão entender a situação. Ture e eu tínhamos uma
história. Lembranças e um passado em comum, mas ele e Aren também
tinham e eu não fazia parte disso.
Aren nos conduziu até o carro dele, parado pouco antes, na estrada
de terra que dava acesso à cabana.
— Precisamos arrancar a bala… — Aren falou com Ture assim
que ganhamos velocidade. — A sorte é que ter tirado seu sangue para dar a
Katarina o deixou mais fraco, ou não conseguiríamos chegar ao hospital a
tempo.
Ture fez uma careta de dor.
— O desgraçado sabia bem que munição usar… Sinto a prata
queimar minhas entranhas.
Mantive os olhos nas árvores passando cada vez mais rápidas pela
janela, até que Aren tirou algo do bolso.
— Encontrei a alguns metros da cabana. Tem uma foto de
Katarina.
— Meu celular! — falei assim que reconheci.
Pisquei algumas vezes, tentando entender quando havia perdido o
telefone. Na última vez que o vi, ele estava em meu quarto, na casa da
fazenda.
— Quem quer que seja, teve acesso a Katarina mais de uma vez —
Ture constatou.
— Isso é preocupante — Aren concordou.
Ture começou a vasculhar o aparelho, até que uma mensagem nova
apareceu na tela.
— Ian Hanssen — constatou.
Ture e Aren se entreolharam.
— Garoto idiota! Vai acabar sem o fígado, bem no meio da
floresta.
— De onde Katarina conhece Hanssen? — Aren franziu o cenho.
— Da Humboldt. — explicou. — Encontrei o fedelho metido em
uma briga no fundo de uma boate em Berlin, quando trouxe Katarina para
casa.
— Você não me contou… — não era uma pergunta, mas havia uma
nota de desaprovação em seu tom.
— Não era importante, meu senhor. Hanssen não é uma ameaça…
Acho que queria contar a Katarina sobre quem somos.
— E por que ele continua insistindo? Sabe que Katarina está
conosco agora. — Um suspiro fundo deixou o peito do príncipe. — Uma
emboscada?
— Talvez… — Ture continuou. — O ministro tem seus motivos
para querer Katarina morta e o fim da sua linhagem, mas Magnus nunca
permitiria…
— O garoto já tem idade suficiente para decidir o próprio
caminho… — Aren soltou.
— Viverá pouco, se decidir errado.
— Ei!
Saí em defesa. Podia não gostar do garoto, mas ele não tinha feito
nada de tão errado assim. Ou tinha?
— Confia nele, Katarina? — Aren perguntou.
— Não! — confessei. — Mas ele é um babaca declarado, do tipo
mimado e convencido, não é um assassino! — Soltei o ar dos pulmões.
Nunca acreditei realmente que ele tivesse feito algo com Hilde,
mas as coisas andavam tão confusas ultimamente que eu não queria ser
crédula demais.
— Dê para mim? — pedi com a palma estendida. — Eu destravo.
Peguei o celular das mãos de Ture, vasculhando o aparelho atrás de
algo que pudesse salvar ou condenar o idiota engomadinho.
Havia uma quantidade considerável de ligações do Hanssen e
algumas da universidade. Parei por um segundo, pensando em como minha
vida havia mudado em menos de uma semana.
Eu nem sequer consegui encerrar minha matrícula ou desocupar o
quarto. De repente, meu peito apertou de um jeito desconfortável.
Pelo retrovisor, vi o rosto de Ture me encarando, como se ele
soubesse tudo que eu sentia naquele momento.
Abri a mensagem não lida de Ian.
“Quer fazer o favor de me dizer o que quer? Estou ficando
preocupado com vc, Thorsson!”
— O que diz? — Ture perguntou.
— Ele está preocupado comigo. Vem falando disso desde… Desde
aquele dia estranho em que você me rap… Levou — consertei. — É como
eu disse, Ian é um idiota, mas é do tipo inofensivo. Não consigo vê-lo
revirando uma cabana no meio da floresta, nem alvejando alguém. É só
que…
Minha visão ficou turva com as lágrimas que insistiam em descer,
mas, de repente, algo na tela chamou minha atenção.
— Espere! Alguém mandou uma mensagem para Ian como se
fosse eu! — constatei olhando o histórico. — Preciso falar com você!
Temos assuntos inacabados, certo? — Franzi o cenho sem entender.
A mensagem havia sido disparada pouco depois que Ture e eu
deixamos a cabana. Havia uma resposta de Ian alguns segundos mais tarde.
— Diga onde posso encontrá-la. E, sério, desculpe por tudo! Eu
sou um idiota, não queria assustá-la — li em voz alta de novo.
Ture estendeu a mão e eu lhe dei o telefone.
— Se Katarina estiver certa… — pontuou —, ele está correndo
perigo, já que o assassino o envolveu em tudo isso… Ou… — Fez uma
pausa, que acelerou meu coração. — Ele mesmo pode ter enviado a
mensagem na tentativa de nos confundir e aí…
Engoli em seco o medo que me dominou, mas, antes que eu
pudesse dizer qualquer coisa, Aren sacou o próprio telefone e levou até a
orelha.
— Preciso de dois homens às portas da mansão imediatamente! —
ordenou. — O general precisa ser socorrido e quero a princesa a salvo.
A fúria em sua voz era quase palpável.
A velocidade aumentou assim que o telefone foi deixado no
console e, poucos minutos mais tarde, chegamos a um grande portão
pintado de branco.
Símbolos rúnicos, esculpidos em metal, adornavam o centro da
grade, tudo parecia elegante e suntuoso. O portão se abriu e o Mercedes
parou. Dois homens imensos e carrancudos, como os que haviam me
escoltado para o avião naquele dia, abriram a porta e retiraram Ture,
colocando-o em outro veículo. Meu coração disparou ainda mais.
— Eu quero ir! — soltei assustada, tentando descer também. —
Preciso ir ao hospital com ele! Não posso… — comecei e então reformulei
rapidamente. — Não podemos deixá-lo sozinho!
Quando eu desci, Aren não me conteve, abriu a porta calmamente e
dirigiu-se até onde eu estava lutando para entrar no carro com Ture. Sua
mão repousou suavemente sobre meu ombro.
— Não vamos deixá-lo, Katarina… Vamos apenas nos organizar…
— Suspirou. — Mostrar a quem quer que seja que não pode nos atingir,
entende? Não vamos permitir que nos desestabilizem.
Não havia uma única célula estabilizada dentro de mim. Meu corpo
tremia, ansioso e desesperado, mas Aren tinha razão. Eu não entendia muito
de política ou de como as coisas deveriam ser quando se é rei de algo, tudo
que queria era a garantia de que Ture estaria seguro e, por ele, eu toparia o
que fosse necessário.
Aren beijou minha testa, antes de se afastar para falar com um dos
seguranças. Outro dos homens vestidos de preto se aproximou, curvando-se
em uma reverência.
— Qualquer um de nós teria prazer em dar a vida pelo general,
minha princesa, não se preocupe.
Os olhos se mantiveram baixos, como se me olhar diretamente
fosse um erro. Eu não o conhecia. Jamais tinha visto seu rosto e não era
exatamente um do tipo doce e amigável, mas existia tanta verdade em seus
olhos que eu não pude discutir. Baixei a guarda e ele se afastou,
contornando o carro.
Ture fez sinal com a mão para que eu me aproximasse.
— Vou ficar bem, liten… — Esboçou um meio sorriso. — Juro que
vou!
Lágrimas começaram a descer e aquela sensação ruim em mim foi
se tornando mais forte. Era como se, no momento em que eu o deixasse,
fosse perdê-lo para sempre.
Detive os olhos nos dele por mais tempo do que pude contar. Cenas
da floresta passando por mim em um turbilhão, confundindo-se com o
sonho da noite anterior. O pelo claro do lobo se tingindo de sangue. A pele
de Ture marcada de vermelho. Os olhos do lobo perdendo o foco, os do
homem que eu amava, também.
Ture estendeu a mão e eu a cobri com a minha, entrelaçando
nossos dedos. Seus olhos ainda detidos nos meus.
— Eu sempre vou cuidar de você, Katarina… Sempre! —
sussurrou quase sem som.
Soltei um suspiro longo, mas não disse nada. Tinha medo de ser
traída pelos meus sentimentos e desabar.
Como se pudesse entender o que eu sentia, Ture me puxou mais
para perto.
— Sempre, Katarina… Sempre vou amar você!
Capítulo Vinte e Um
Katarina

Permaneci ali, parada, enquanto o carro atravessava o portão em


direção à cidade. Tinha a sensação de que, se eu me mexesse, as palavras de
Ture se dissipariam como nuvem em volta de mim.
Sempre, Katarina. Sempre vou amar você.
Eu não queria acordar.
— Vamos entrar, Katarina? — a voz suave e comedida de Aren me
trouxe de volta à realidade.
Assenti, ainda que não fosse sincero, e entramos no carro
novamente.
O sedã continuou subindo pelo caminho de pinheiros, contornou a
rotatória do jardim e parou em frente à bela casa.
A construção era elegante e suntuosa. Fazia com que tudo que eu
conhecera antes parecesse pequenas cabanas de caça. Abri a porta e desci,
tentando não parecer tão afetada com a beleza do lugar e bem mais forte do
que me sentia.
— Fica linda no inverno… — Meu primo parou ao meu lado,
como se tentasse não perceber o turbilhão que havia dentro de mim — É
lindo como se confunde com a neve.
Soltei um suspiro. Gostava dele. De como sempre tentava me
deixar melhor do que eu me sentia, do tanto que se preocupava, mesmo que
eu não fizesse muito para merecer.
Eu o conhecia havia tão pouco tempo e já o admirava tanto. Podia
entender a relutância de Ture em desafiá-lo de qualquer maneira que fosse.
Entrei na dele e dei um meio sorriso provocador.
— Não sei se neva o suficiente para confundir algo tão…
— Grande? Exagerado? Meio cafona… — brincou e eu acabei
rindo mais.
— Eu ia dizer absurdamente lindo e pomposo.
— Pomposo… — repetiu. — É exatamente o que eu acho! E que
fique registrado, princesa… — Sorriu de canto. — Você deveria, pelo
menos uma vez, permitir que eu seja cavalheiro e lhe abra a porta.
Soltei um suspiro.
Eu não era do tipo que esperava as portas se abrirem para mim e
não estava acostumada com isso. Havia passado boa parte da vida me
virando sozinha; ainda que meu pai tivesse cuidado das obrigações
financeiras, carinho e cuidado foram coisas que aprendi a não ter a minha
disposição.
— Desculpe… Não é como se as portas se abrissem para mim o
tempo todo…
Eu não queria parecer tão magoada como soei, então tentei sorrir
para fingir que era engraçado.
— Então vamos mudar isso… — A mão forte dele tocou a ponta
do meu ombro, conduzindo-me pelo caminho.
Subimos pela escadaria de pedras, até a porta que estava aberta. Lá
dentro, cortinas finas e transparentes serpenteavam através das grandes
janelas. A sala era toda decorada em tons de branco e madeira. Era tudo
muito sucinto e elegante. Eu não conseguia deixar de olhar.
— Não me diga que esperava algo como um trono de ossos no
meio da sala, Katarina! — Aren disse fazendo piada.
Corri os olhos pelo lugar. Não esperava nada tão delicado e claro,
ainda mais depois do episódio de Gustaf com o pobre coelho.
— Desejo que se sinta em casa… Sei que…
Aren parou a frase no meio e sorriu. Um sorriso preocupado
demais que me fazia crer que, apesar da vontade de dar leveza a minha
chegada, sua preocupação estava no mesmo lugar que a minha.
— Ele vai ficar bem… — soltou de repente. — Juro que vai.
Abri a boca para responder, mas não consegui.
— Ture é… É como um irmão para mim, Katarina… Se houvesse
a menor… — Baixou os olhos para o chão. — Se houvesse a menor
possibilidade de esquecer tudo isso e deixar que…
Foi minha vez de suspirar.
— Sei disso… — Toquei seu antebraço. — Ture sabe também…
— Espero que sim! — Sorriu. Aquela tristeza perdida no olhar.
A mão grande dele foi estendida em minha direção e eu a segurei.
Aren entrelaçou os dedos nos meus e me conduziu para cima. Paramos no
último cômodo do corredor.
Esperei até que ele abrisse a porta e então vi um quarto de garota.
Dei alguns passos para dentro do lugar e parei. O ar cheirava a
lavanda fresca, tudo estava em perfeita ordem.
Era como se o quarto tivesse parado no tempo. Encarei uma
fotografia sobre a mesa de cabeceira. Eram três jovens adolescentes. Dois
homens e uma garota. Os olhos deles eram inconfundíveis, azuis e límpidos
como de Aren, como os meus.
A garota usava um vestido rosa-claro, quase no tom de sua pele, e
tinha os braços, dos dois homens ao seu lado, ao redor dos ombros.
— Imaginei que gostaria de se hospedar aqui — a voz grave e
profunda de Aren quebrou o silêncio. — Estar entre as coisas dela.
Passos firmes o levaram até o porta-retratos e Aren o tomou na
mão.
— Sua mãe era linda, Katarina… — Suspirou, correndo os dedos
sobre a imagem. — Você me lembra muito ela.
Um sentimento intenso tomou conta de mim. Tão forte e
descontrolado que precisei engolir as lágrimas que se formaram em minha
garganta.
Minha mãe… Minha mãe mesmo. Esteve neste quarto em algum
momento. Dormiu naquela cama, andou por este piso.
— Este! — O homem ao meu lado apontou o jovem mais baixo. —
É Gustaf. Ele é o primogênito e este… — Correu os dedos pelo mais alto,
uma nota de tristeza em seus olhos bonitos. — Era o meu pai.
Aren suspirou, provavelmente engolindo as próprias lágrimas. Seus
dedos demoraram tempo demais sobre o rosto do garoto alto.
— Ele se chamava Erik… — Mais um suspiro. — O piano, lá
embaixo, era dele.
Deixei a cabeça pender contra o seu braço. Podia imaginar o que
ele sentia, era como eu me sentia também.
— E esta, como você já sabe… — Sorriu, mas não era de
felicidade. — é Karin. Sua mãe. Vê o sorriso dela? — perguntou.
Minha boca se curvou sem que eu pudesse impedir e Aren levantou
meu queixo com a ponta dos dedos, em direção ao seu rosto.
— É bom ver o sorriso dela por aqui novamente.
Senti uma lágrima escorrer bem devagar pelo canto do olho
esquerdo.
— Não vou permitir que ninguém a machuque… — anunciou com
tanta certeza que meu coração deu um salto. — Eu era muito jovem, não
pude proteger Karin, mas posso proteger você!
Não fui capaz de responder, ainda tentava processar tudo que havia
acontecido em tão pouco tempo em minha vida.
Aren passou os braços ao redor de mim e beijou o topo da minha
cabeça, aninhando-me em seu peito. Eu podia sentir seu coração batendo
compassado e forte.
— Preciso deixá-la por um tempo… — Afastou-se e segurou
minhas mãos, mirando meus olhos. — Preciso ir ao hospital… Resolver as
coisas por lá e…
— Quero ir! — soltei mais ansiosa do que deveria.
— Abafar o caso… — continuou. — É por isso que não posso
levá-la.
Quebrei-me em milhões de pedaços. Não era a resposta que eu
queria.
— Lembra-se do que eu lhe disse? — perguntou, mas não esperou
por uma resposta. — Temos que parecer fortes e inabaláveis. Sei que as
coisas… — Desviou o olhar. — Não posso permitir que minha noiva seja
vista visitando meu homem de confiança no hospital.
Engoli em seco.
— Também não gosto que as coisas sejam assim, mas por ora…
Por ora Gustaf tem razão. O mais importante é a segurança da Coroa. Eu
mesmo cuido de Ture, não se preocupe com ele. Juro que o trago de volta
para casa o mais breve possível.
Não havia como discordar, mas, ainda assim, um suspiro deixou
meu peito.
— Promete? — perguntei.
Aren sorriu, depois cerrou a mão em punho e bateu sobre o peito.
— Juro a você, minha querida.
Aren sustentou meu olhar por mais tempo do que era necessário,
até que eu comecei a ficar sem graça.
— Katarina… — meu nome pausado em sua boca. — Quero que
saiba que eu entendo tudo que está passando em sua cabeça e muito mais
que nem você entende, acredite. — Um suspiro triste encheu seu peito. —
Sei que o que sente não é fácil de ignorar e nem será, em momento algum,
mas quero… — Mais uma pausa. — Quero que me dê a chance de explicar
a você toda a verdade… Ser sincero como nunca fui e talvez… Talvez haja
algo para nós dois… Eu só preciso… Só quero que me dê isso! A chance de
sermos apenas nós dois em um pequeno momento.
Engoli em seco, não sabia como responder.
Ele caminhou pelo quarto, abriu a gaveta da penteadeira e me
entregou um caderninho com capa de couro.
— Para passar o tempo. — Sorriu. — Sei que encontrará muitas
respostas aqui. — Deslizou a mão sobre a capa de couro e depois deu mais
um beijo em minha testa. — Ture logo estará em casa e você poderá vê-lo.
Não costumo quebrar juramentos!
Sorri, sentindo o coração bater forte no peito.
Capítulo Vinte e Dois
Ture
— Diga que já encontrou o desgraçado e vai me poupar de caçar
esta noite! — pedi assim que Aren passou pela porta.
Meu braço estava sobre o apoio, enquanto a enfermeira retirava a
porra da bala que insistia em não sair fácil da minha cintura.
— Pensei ter ouvido que não era trabalho do príncipe fazer justiça
com as próprias mãos.
— Hum… — grunhi quando a dor ficou forte demais. — Péssima
hora para começar a me obedecer… — soltei sarcástico, apontando para o
braço machucado.
Meu amigo riu, ajeitando-se na poltrona e deslizando as mãos
pelos cabelos.
— Três… — continuou. — Foi o que consegui pegar… — avisou.
— Meu pai costumava dizer que era sempre bom deixar que um dos
coelhos voltasse à toca… Assim ele avisava aos outros e o problema se
resolvia sozinho.
— Cruel como um verdadeiro rei! — Ergui a sobrancelha.
— Estou me esforçando! — Deu de ombros. — Tenho um trono a
assumir e uma…
A palavra morreu em sua boca e eu engoli em seco.
— Dê aqui! — Puxei o bisturi e enfiei no que restava do buraco do
tiro.
Apertei os olhos e retirei a bala de uma vez. Era melhor sentir a dor
da minha carne rasgando do que do maldito laço apertando.
Aren se levantou de onde estava na poltrona e caminhou até a
janela, mirando os jornalistas lá embaixo.
— Abutres desgraçados! — xingou.
Eu não precisei concordar, nenhum de nós estava realmente
preocupado com as notícias.
— Levei Katarina para casa… — ele soltou depois de alguns
segundos em silêncio.
Agradeci à enfermeira com um aceno de cabeça e o garoto que
viera com Aren abriu a porta para que ela saísse.
— Melhor.
Concordei para deixá-lo tranquilo, odiava a ideia de que ela
estivesse naquele lugar.
— Ture…
— Entendo… — cortei.
— Eu nem disse nada! — reclamou.
— Ainda que não concorde, eu entendo… — repeti. — Você não
tem obrigação de me explicar nada.
— Sei que não tenho obrigação, faço porque quero e porque o
considero como um irmão.
Enchi os pulmões de ar sentindo a dor amortecer meus
pensamentos.
— Eu lhe perguntei se você aguentaria… Você me garantiu que
sim…
Baixei os olhos para o chão. Estava em dívida com ele, nem podia
retrucar.
— Não vou ignorar o que houve na floresta, Ture…
Eu já não sabia se era do atentado que ele falava ou se de algo
além. Aren não era idiota e meu cheiro estava em Katarina toda, não dava
para negar o que tínhamos feito, ainda que não tivéssemos chegado até o
fim.
Imoral, desonrado, uma porcaria de amigo e péssimo comandante.
Eu tinha caído no primeiro tropeço, nem havia maneira de justificar.
— Por enquanto… — Continuou. — Vamos encontrar o
desgraçado que orquestrou tudo isso… Depois… — Os dedos
tamborilavam a madeira do aparador. — Eu vou me esforçar para ter o
amor de Katarina, Ture… Não quero condená-la a um casamento triste e
solitário… Sei que não é o que você deseja também.
Engoli o que havia de saliva em minha boca, mas senti como se
cacos de vidro descessem pela minha garganta.
— Farei tudo que estiver ao meu alcance para que a vida dela seja
longa e feliz… A sua também.
Aren aquiesceu.
— Então vamos voltar para casa.
Capítulo Vinte e Três
Katarina
Depois de algum tempo lá fora, admirando o pôr do sol na floresta,
resolvi voltar para dentro.
O lugar era grande. Carpete claro e fofo, não achei justo usar meus
tênis nele, então tirei os sapatos.
Havia uma sacada com portas duplas de correr que davam para um
bosque. A vista era deslumbrante, ainda melhor quando o sol não era mais
que uma linha laranja no horizonte. Inspirei o ar com cuidado.
Será que aquele perfume era o cheiro da minha mãe? Que ela
usava alguma colônia de lavanda ou esse era apenas um produto qualquer
de limpeza?
Eu não sabia! Não sabia nada sobre ela.
Sentei-me na cama e abri a capa de couro.
Dentro dela, em vez de um caderno, havia um monte de folhas
soltas e de diferentes tipos. Anotações e bilhetes, todos presos dentro do
que deveria ter sido a capa de um caderno. As folhas estavam amassadas,
algumas borradas e não havia ordem alguma. Peguei uma página qualquer.

“25 de novembro.
Hoje eu o vi pela primeira vez. Foi tão engraçado olhar aqueles
olhos que me perseguiram tantas vezes em meus sonhos. Aconteceu
exatamente como Ava dissera. Eu apenas olhei em seus olhos e soube que
não poderia amar mais ninguém no mundo além dele.”

O restante estava rasgado. Peguei o próximo. Era um bilhete em


uma caligrafia conhecida.

“Queria poder dizer que não desejo vê-la. Falar que espero que
você siga em frente e que se mude para Oslo. Queria poder convencê-la de
tudo isso porque sei que não poderei convencer a mim mesmo. Desejo ser
forte o suficiente para deixá-la ir, princesa… Você não deveria me amar.
Não pode querer isso, merece muito mais… De todas as incertezas que
tenho, uma verdade é absoluta… Sempre vou amar você… Sempre estarei
aqui.
Amor, Y.”

Senti as lágrimas começarem a descer devagar. O “Y” em questão


era meu pai, Yrian Thorsson, e aquele era um bilhete de amor. Engoli em
seco, como se eu ouvisse Ture repetindo o que dissera antes de partir.
A lembrança seguinte era uma foto. Dois garotinhos com
uniformes escolares. Eu os reconheci assim que olhei, mesmo assim virei a
fotografia.

“Primeiro dia na escola nova. Aren 8, Ture 7.”


Encarei a fotografia por um longo tempo, observando o sorriso
genuíno deles. Aren com o braço ao redor do pescoço de Ture. Seu sorriso
meigo estava lá, desde sempre. Já Ture, tinha os braços cruzados sobre o
peito, como se reprovasse algo. O uniforme, pensei, e sorri em seguida.
Então era isso. Eles se conheciam desde muito antes de eu nascer.
Por isso Aren o chamava de irmão. Fragmentos se unindo em minha mente
devagar.
A próxima página estava borrada. Eu mal conseguia ler.

“15 de abril.
Quem será que está aqui dentro? Eu me pergunto isso o tempo
todo. Tento conversar com ele e espero feito boba que ele me responda. Ou
será ela? Não sei dizer e a dúvida está me consumindo. Eu queria que ele
tivesse os olhos do pai, que tivesse tudo do pai. Assim eu poderia carregar
um pedacinho dele comigo para sempre.
Juro que tento me policiar, fingir que nada está acontecendo, mas
sei que tudo isso durará apenas até que meus irmãos estejam de volta. Eles
irão perceber.”

Tive que reler a página algumas vezes. Meus olhos estavam


nublados de lágrimas, provavelmente como os dela, quando escreveu.
Pensar na minha mãe grávida, na vontade de saber quem eu era, de
me conhecer, era um tipo de dor que mesclava felicidade e raiva. Eu queria
tanto vê-la, ainda que por alguns segundos. Só… ter uma lembrança de
verdade dela.
Deixei o caderno sobre o colo e chorei, tapando o rosto com as
mãos. Nem sabia mais se queria continuar vendo as respostas, estava tão
triste e dolorida que mal conseguia pensar.
Depois do que pareceu uma eternidade, enchi os pulmões de ar e
busquei forças para continuar. Tinha sido vencida pela curiosidade, afinal
era minha história, a verdadeira, não uma para me deixar fora do caminho.
“28 de abril.
Estive no túmulo do meu pai esta tarde. Sentei-me ao lado da
lápide e conversei com ele. Eu não queria desapontá-lo. Esperava ser o que
ele e meus irmãos queriam que eu fosse, mas não pude.
Não estou arrependida, apenas assustada. Não posso contar com
ninguém. Nem sei o que fazer e temo o que acontecerá comigo quando
Gustaf souber. Ele é tão amargo e triste. Não tenho medo de que me
castigue, mas temo que faça algo ao homem que amo. Será que Yrian já
sentiu o bebê? Será que ele quer ser pai? Eu espero que sim.”

Eu nunca soube que minha mãe havia engravidado antes de se


casar. Bem, ele nem havia me contado que eles eram seres não humanos,
então sinceridade nunca fora o forte dele.

“03 de junho.
Aren apareceu em meu quarto hoje durante a madrugada. Disse-
me que teve um sonho ruim, que não queria me perder e que iria me
proteger. Eu sorri. Ele é um menininho especial. Vejo tanto do papai nele.
Aren será um grande rei um dia. Queria estar perto para ver.”

Suspirei, o rosto de um Aren que minha mãe não chegou a


conhecer se fazendo em minhas memórias. Ela tinha razão, ele seria mesmo
um grande rei.

“27 de junho.
Ava mandou soltar a cintura das minhas saias… Sei que ela sabe o
que está acontecendo, mesmo que não tenha me perguntado nada. Ela é
uma boa mulher, mas não poderá me ajudar quando eu tiver que encarar
meus irmãos.”
“29 de junho.
Ture dormiu em minha cama esta noite. Trovejava muito e ele tem
medo de tempestades. Aninhei seu corpinho junto ao meu. Ele tremia tanto
que me fez chorar. Fiquei pensando naquele garotinho sozinho na floresta.
Pensei no meu bebê e no que poderia lhe acontecer. Quando toquei a mão
em minha barriga, o bebê se mexeu e Ture sentiu.
Ele é tão esperto. Logo perguntou se eu tinha um bebê ali dentro.
Não consegui responder e então eu chorei mais. Ture me abraçou e disse
que cuidaria dele para mim. Eu tenho muita sorte. Tenho dois protetores
mirins. Pena que Erik não pense como eles.”
As lágrimas desciam tão rápidas, que precisei parar a leitura. As
gotas começavam a manchar os velhos papéis e eu os queria inteiros.
Ture… Um nome curioso para alguém que tem medo de tempestades.
Suspirei. Queria saber como ele estava, se estava seguro e bem. Queria estar
ao lado dele.

“03 de julho.
Sonhei com uma garotinha. Estou tão feliz. Acho que tenho uma
menininha aqui dentro. Minha pequena florzinha! Ela não se parecia com
Yrian como eu queria, mas tinha os meus olhos. Vou poder enchê-la de
fitas. Queria poder contar a alguém.”

Chorei mais. Meu nariz escorria e eu sentia a garganta seca. Era tão
bom e tão ruim estar dentro dos pensamentos da minha mãe. Ela parecia tão
jovem e tão cheia de sonhos, pensar em como as coisas haviam terminado
para ela era triste e revoltante.
Fechei o caderno e tentei me focar em outra coisa. Peguei o
controle da televisão e comecei a passar os canais. Era um filme de faroeste,
então deixei nele, já que meus pensamentos estavam longe. De repente, o
plantão de jornalismo invadiu a tela e, assim que vi do que se tratava, quase
caí da cama.
— Senhor, senhor! Uma declaração — uma jovem repórter pedia.
— Por favor, senhor, apenas explique o que aconteceu!
— A única coisa que pretendo declarar é que não vou permitir que
minha família seja colocada em risco! O Sr. Svensson se feriu hoje na
tentativa de proteger minha noiva e isso não será tolerado! Medidas serão
tomadas!
Aren estava lá, em frente a uma escadaria que, imagino, era do
hospital. Vestia um terno escuro e tinha o paletó coberto pelo que parecia
ser a pele de um lobo. Marrom-escuro, quase cor de café. Seu cabelo estava
perfeitamente penteado e sua postura era irrepreensível, com Ture bem ao
seu lado. Roupas elegantes, também cobertas pela pele de lobo, as garras
pendendo em seu peito, o braço em uma tipoia.
Os olhos do homem que eu amava estavam focados em algum
lugar distante. Seus dentes cerrados. Não parecia vulnerável como alguém
que acaba de sofrer um atentado, parecia letal. Ambos flanqueados por
quatro homens de ternos pretos, reconheci o que havia falado comigo mais
cedo.
A porta do sedã preto foi aberta e os dois entraram, o carro
arrancou em seguida e o corte foi feito para um jornalista de cabelos
grisalhos.
— O chefe da Cúpula Escandinava já cobrou medidas do governo
e em breve retornaremos com mais notícias sobre o atentado sofrido pela
família Fairhair.
Fiquei encarando a tela, mesmo depois que eles se foram.
Lembrando o quanto pareciam ferozes e obstinados. A cada passo que eu
dava para dentro desse mundo, eu me sentia mais seduzida.
Desliguei a televisão e andei pelo quarto. Ele estava voltando! Eu
iria vê-lo e depois de tudo… Enchi os pulmões de ar, estava ansiosa,
nervosa. Feliz em saber que Ture se recuperara de pronto, com medo de
como as coisas seriam dali em diante.
Depois de andar pelo carpete macio até meus pés reclamarem,
sentei-me na cama novamente e abri o caderno.
Eu estava ansiosa e confusa e não tinha ideia de como iria me
comportar quando encontrasse Ture de novo. Quanto mais eu lia as cartas
da minha mãe, mais confusa ficava. Não queria magoar Aren, nem podia
negar o que sentia por Ture. Estava fodida e na merda. Não tinha ideia de
como iria sair.
De repente, algumas perguntas pairaram sobre mim.
Se Gustaf era o primogênito, por que o pai de Aren havia se
tornado rei? Quem era Ava? Onde estavam os pais de Ture?
Eu não sabia onde encontrar as respostas. Sentia como se estivesse
montando um quebra-cabeça de um milhão de peças e todas estivessem
voando pelo quarto.
Capítulo Vinte e Quatro
Katarina

Adormeci com o caderno aberto sobre o colo e despertei em


sobressalto pelo som de vozes lá embaixo. As folhas antigas espalhadas
sobre mim e a cama.
Só depois de pisar no segundo degrau da escada e perceber que
havia muito mais gente na sala do que eu imaginava, eu me arrependi de ter
descido como estava, sem nem uma conferida no espelho.
— Senhores… — Aren se levantou da poltrona em que estava e
caminhou até mim. — Esta é Katarina, minha princesa.
Segurei a mão que me fora oferecida, embora meus olhos
estivessem do outro lado da sala, parados no olhar de Ture.
Ele não falou comigo, nem veio me abraçar ou me deu um sorriso
sequer. Tinha assumido de novo aquela máscara sem sentimentos, mas eu
podia entender, então desviei.
Não podia negar que algo dentro de mim se quebrava em milhares
de cacos a cada vez que ele agia com indiferença, mas eu já estava
começando a compreender as razões.
Apertei a mão em volta dos dedos de Aren.
— Desculpe — pedi sem jeito, ajeitando uma mecha de cabelo
atrás da orelha. — Não imaginei que tínhamos visitas.
Aren correu os olhos sobre mim por um instante.
Eu ainda usava a mesma roupa da manhã, aquela suja de terra e
folhas, com respingos do sangue de Ture. Soltei um suspiro de vergonha e
culpa, mas ganhei um sorriso genuíno e cheio de entendimento em resposta.
Minha mão foi levada até seus lábios, ganhei um beijo casto e
discreto.
— Você está linda — soltou tão baixo que tenho certeza de que
ninguém ouviu.
Acabei sorrindo de verdade, desviando os olhos dos dele, porque
me sentia estranha sempre que Aren me tocava na frente de Ture. Aquela
sensação de que as coisas não estavam como deveriam estar.
— Eu prometi a você que traria Ture para casa… — Caminhou
comigo alguns passos, até que eu estivesse em frente ao homem que fazia
meu coração descompassar. — Como disse, princesa, sempre cumpro
minhas promessas!
Fiquei parada ali sentindo meu peito gritar por tudo que eu não
podia fazer. Era como se Ture me atraísse para si, um ímã sobre o qual eu
não tinha controle algum.
Ficamos em silêncio, um milhão de pensamentos passando por nós.
— Nosso general precisa descansar… — a voz de Aren cortou o
silêncio. — Vou dar a Katarina a nobre missão de acompanhar Ture até o
quarto e obrigá-lo a ficar quieto por algumas horas… — brincou.
Sorri, mas meu sorriso era tenso e sem jeito, cenas de Ture sobre
mim na floresta, o que teríamos feito se os tiros não tivessem atrapalhado.
Eu podia jurar que o calor ruborizava minhas bochechas.
— Estarei no gabinete. — Aren beijou minha testa. — Se precisar
de algo, basta… — Girou a mão no ar, dando a frase por encerrada.
Não demorou para que os homens que estavam na sala
acompanhassem meu primo até o escritório. Ficamos na grande sala apenas
Ture e eu.
— Então… — Sorri. — Você está bem? Consegue andar?
Confesso que não tenho ideia de onde fica o seu quarto, você…
Ture se levantou de uma vez. Postura imponente e elegante no
terno cinza. Os olhos estreitos focados nos meus. Eu mal podia respirar.
— Venha… Vou mostrar o caminho.
Ture seguiu pelo andar de baixo. Passamos pela sala, continuamos
em frente, desviando por um corredor pequeno até o que parecia ser um
jardim de inverno, com teto de vidro. Parei e esperei, enquanto ele abria a
porta e sinalizava para que eu entrasse.
O quarto não era pequeno, mas estava longe de ser grande como o
que eu ocupava. O chão de madeira clara era coberto por um tapete felpudo
cinza, aos pés da cama de solteiro, com edredom da mesma cor. Cortinas
claras e finas desciam até o chão tapando a luz que, certamente, entrava ao
amanhecer.
Ture ficou em silêncio enquanto eu fazia a varredura do quarto.
Havia um pouco dele em cada pequeno detalhe. Parei na pequena estatueta
de lobo que tínhamos entalhado, juntos, quando ainda éramos crianças.
Soltei um suspiro, memórias revirando meus pensamentos.
— Obrigado por me acompanhar, princesa… — a voz grave dele
quebrou o silêncio entre nós. — Se não se importa…, eu posso tomar conta
de mim mesmo.
Havia uma rispidez que não se encaixava na maneira como ele me
olhava. Era como se estivesse em guerra, sempre que ficávamos juntos.
Como se travasse uma batalha interna.
Mesmo que entendesse os motivos, senti o rosto esquentar de
raiva.
— Não — provoquei. — Aren me deu você como missão e eu
também não sou do tipo que desiste.
— Quando decidiu ser do tipo obediente? — devolveu, mas não se
afastou um milímetro sequer.
— Costumo ser… Quando me tratam com educação e gentileza,
sabe?
Ture cerrou o maxilar, tentava lidar com o fecho da pele de lobo
sem sucesso, já que o braço estava imobilizado.
Deu mais um passo e desabotoei a pele, tirando e colocando sobre
a cama.
— Você é muito teimoso! — afirmei. — Eu só… — Mostrei as
palmas em rendição, estava triste, preocupada e irritada. — Só queria saber
se você está melhor… Eu apenas… Eu…
As lágrimas desciam uma após a outra, sem que eu pudesse evitar,
e iam roubando as palavras de mim.
Ture soltou o ar dos pulmões de uma vez e então me puxou para si.
A mão boa esfregando minhas costas, meu rosto em seu peito. Fechei os
olhos inspirando o aroma de seu corpo, sentindo o movimento de sua
respiração.
— Garota boba! — xingou, mas não havia resquício algum de
raiva em sua voz. — Eu avisei que não quebro fácil! Seus lábios se
demoraram em minha testa, como se ele não quisesse se afastar. —
Ajudaria se você não me pusesse louco! — reclamou rindo.
Acabei rindo também.
Ture demorou mais alguns segundos para se afastar e, quando o
fez, soltou o botão do paletó.
— Já que você não vai mesmo embora, poderia me ajudar com
isto! — pediu erguendo a sobrancelha.
Respirei fundo tentando me manter calma o suficiente para que ele
não percebesse o quanto mexia comigo tocá-lo.
Desci a primeira peça por seus ombros. Tão fortes, tão marcados.
Vez ou outra, uma careta de dor franzia seu rosto bonito.
Afrouxei o nó da gravata. Seus olhos fixos nos meus, a respiração
entrecortada. Soltei os botões da camisa branca, um a um, meus dedos
deslizando em sua pele pela beirada do tecido, o calor contra eles.
— Precisa tirar a tipoia primeiro… — indicou.
Assenti, soltando o fecho, e então Ture se sentou na cama, para que
eu alcançasse seus ombros e puxasse a camisa por eles. Meus dedos
tocaram o curativo na parte de trás.
— Dói? — perguntei tocando a bandagem.
Podia sentir o hálito quente dele em minha barriga, revolvendo
algo dentro de mim, aquela urgência que eu sentia com ele borbulhando,
vindo à borda.
— Muito… — soltou de repente, mas o jeito como me olhava
deixava claro que não era do ferimento que falava.
Sentei-me por trás dele na cama, analisando o machucado, tateando
suas cicatrizes com a ponta dos dedos. Correndo pelas tatuagens. Ture
engoliu um suspiro.
— Não acha que eu já fui suficientemente torturado por um dia? —
Coçou a cabeça, deslizando a mão pela lateral raspada. — Precisa mesmo
continuar com isso?
Eu não queria parar nem ficar longe dele, e sua postura me dizia
que Ture não tinha intenção de se afastar também.
Toda essa história de me casar com Aren ainda não fazia sentido se
era Ture que eu amava. Por que não com ele? Se era a um homem-lobo que
eu tinha que me unir, então por que não Ture?
A cada segundo em que estávamos próximos, tudo que sentia era
que não havia felicidade sem ele. Jamais haveria.
— Quer mesmo que eu vá? Que pare? — perguntei aproximando
meu corpo do seu. — Se disser que é o que você quer… Não Aren, não o
povo, você, Ture! — exigi. — Se disse que quer que eu vá, então juro por…
Por quem quer que você acredite, que eu vou! — sussurrei em seu ouvido.
Capítulo Vinte e Cinco
Ture
Suas mãos circundaram minhas costelas, tocando os músculos em
meu peito. Meu corpo colado ao dela.
Eu queria ignorar tudo que Katarina sentia, pensar com a razão,
mandá-la embora, mas havia constatado o inevitável… Não havia maneira
de controlar o que eu sentia por ela!
— Mas que… Porra, Katarina! — xinguei. — Eu deveria dizer que
quero! Suspirei soltando o ar em um gemido longo, a pele dela se
arrepiando junto com a minha. — Essa maldita conexão… — Deitei a
cabeça para trás, inspirando o perfume em seu pescoço, os bicos dos seios
dela se arrepiando, roçando minhas costas nuas, a excitação dela
aumentando. — Não consigo mentir… Não com você assim, tão pronta
para mim… — confessei.
Engoli em seco o que minhas palavras fizeram com o corpo dela,
aquecendo e atiçando tudo.
Katarina desceu a mão por meu abdômen, tateando o cós da calça.
Abrindo a fivela do cinto. Não me contive. Seu corpo estava apertado
contra o meu. Meus olhos fechados, sua boca beijando meu rosto e pescoço,
meus dentes passeando em sua pele.
— Quer que eu mostre o quanto você mexe comigo, Katarina? —
perguntei.
Tudo que ela fez foi mover a cabeça, mas eu fiquei ainda mais
duro, meu pau pulsando em antecipação.
Minha mão segurou a sua, deslizando-a por dentro da calça, minha
respiração se acelerando, descompassando, a dela também.
Katarina parou sob o elástico da cueca, insegura, mas depois
continuou. Separei um pouco mais as pernas, sentindo seus dedos tatearem
minha ereção. Queria tanto aquilo que mal podia conter o desejo que sentia,
a fera urrando dentro de mim, pronta para ser liberta, para tomar posse da
mulher que era minha! Escolhida e enviada pelos deuses. Minha… De
ninguém mais!
Os dedos dela circundaram meu comprimento e eu gemi, ecoando
o gemido dela, entrando na mais perfeita sincronia.
— Gosta de me tocar? — perguntei com a voz rouca de desejo.
Ela aquiesceu.
— Quero aprender mais… Você me ensina? — pediu baixando o
tecido fino e roçando os dedos na minha glande, tateando a extensão da
ereção, sentindo a pele quente e sensível ao toque dela.
— Você já sabe… — Mordi sua pele abaixo do maxilar, quase no
pescoço. — Você sente o que eu quero, o que penso… Assim como eu sinto
você. Feche os olhos, liten… Deixe o seu instinto fluir…
Eu estava perdido, não conseguia voltar atrás. Tentava buscar
aquela fagulha de lucidez, mas não encontrava, eu só queria me afundar em
Katarina cada vez mais.
Ela fez o que eu pedi e foi como se não houvesse uma trinca sequer
entre o que era eu e o que era ela. Como se meu corpo reagisse a cada
respiração e o sangue fluísse direto entre nós dois.
— Você nem faz ideia de como eu gostaria de jogá-la na minha
cama e arrancar as suas roupas peça por peça, bem lentamente.
As palavras arrepiavam minha pele e a dela na mesma proporção.
— Nem imagina como eu gostaria de morder cada parte de você…
— continuei.
E foi então que as palavras de Aren reverberaram em meus
pensamentos. A ideia de vê-lo com ela, o toque dele na pele dela, o beijo
em seus dedos, os dedos que deveriam ser meus, o corpo que eu deveria
possuir, o amor dela, tudo era meu. Cada centímetro de Katarina pertencia a
mim, não a ele, a mim!
Virei o corpo em sua direção, segurando-a pela cintura e puxando
para meu colo.
— Não sabe o tanto que desejo separar suas pernas e me encaixar
bem aqui… — Apertei os dedos, circundando sua coxa, a lateral da mão
resvalando bem ali, onde seu corpo pedia o meu, sentindo o calor e a
umidade aumentarem.
Katarina se esfregou involuntariamente contra minha mão,
aumentando o contato, o perfume da sua excitação tornava tudo mais
intenso, como uma droga.
Soltei um gemido fundo e Katarina também. Mesmo por cima do
tecido, eu podia sentir o quanto minha carícia a instigava e como seu corpo
todo respondia.
Minha respiração ofegante, a visão distorcida. Eu estava perdido
nela, nas sensações dela, no que viria a seguir.
— Ah, como eu queria estar dentro de você, Katarina, movendo
meu corpo sobre o seu, sentindo você gemer em meu ouvido, beijando sua
pele…
E foi ali, perdido dentro dela, que eu me encontrei. Foi nos
pensamentos dela que encontrei a razão. Katarina jamais me diria não.
Jamais negaria a mim o que quer que fosse. Eu estava repetindo o padrão,
condenando quem eu amava ao inferno.
Respirei fundo.
— Eu daria minha vida por isso, sabia? — sussurrei. — Mas não
posso! — Enchi os pulmões de ar e então consegui calar a fera e parei. —
Eu não posso, Katarina! Não posso porque amo você! — elevei o tom mais
do que deveria. — Porque faria qualquer coisa por você, princesa… —
Segurei seu rosto entre as mãos. Uma lágrima descendo, escorrendo em
meu rosto sem que eu pudesse evitar. — Amo você, liten… Tão… Tão
forte… Que vou morrer, mas vou ver você exatamente onde deveria estar!
— Ture, não…
— Shhhhh… — Travei, mantendo o foco no lugar de onde vinha o
barulho, mas não fui rápido o suficiente.
Antes que estivéssemos recompostos, a porta se abriu e o
desgraçado do Gustaf passou por ela.
Gelei de imediato, como uma criança pega bem no meio da
bagunça.
— Katarina, minha querida sobrinha… — falava com ela, mas
seus olhos estavam presos em mim. — Eu tinha certeza de que a
encontraria por aqui, afinal… — soltou devagar, analisando todo o quarto.
— Eu soube que o jovem Ture a tinha salvado hoje na floresta… Estive
preocupado com sua segurança, princesa! — a última palavra dita com
desdém, como se soubesse exatamente o que estava acontecendo.
Raiva borbulhou dentro de mim, a fera arranhando meu peito. Um
misto de raiva de Gustaf por ter atrapalhado um dos poucos momentos com
ela que eram apenas meus, e raiva de mim, por tê-la colocado naquela
situação tão ridícula.
Levantei-me rápido e abotoei a calça.
— A princesa já estava de saída, meu senhor… — Curvei o corpo
em uma reverência que não era sincera. — Aren… Ele pediu a Katarina que
me ajud…
— Meu sobrinho precisa rever melhor suas escolhas… — soltou
entredentes. — Pedirei a um dos homens que venha ajudá-lo com suas…
roupas… — soltou com desgosto. — Não acho prudente que Katarina o
faça.
— É claro! — concordei. Nem havia como dizer o contrário.
Gustaf estendeu a mão para a garota. Ela a segurou, ainda que sua
vontade fosse outra e isso estivesse bem claro em nossa conexão.
— Veja como suas mãos são delicadas, querida! — Tocou-a com
gentileza. — Ora, princesa, você deveria ocupar-se do piano! Ou do jardim!
Não precisa ficar por aí ajudando os soldados de seu noivo! Não fica bem,
minha cara Katarina.
Raiva borbulhou dentro dela e eu tentei acalmá-la.
— Venha, sobrinha… — Conduziu-a para a porta. — Quero ter
uma palavrinha com você!
Esperei até que os dois passassem pela porta e então joguei o corpo
contra a cama. Ainda não sabia se Gustaf tinha sido nosso algoz ou se nosso
salvador.
Capítulo Vinte e Seis
Katarina
Deixei o quarto, mas meus pensamentos permaneceram em Ture.
Eu queria voltar para lá correndo e lhe dizer que eu sabia bem qual era o
meu lugar, e era ao seu lado. Que nada me faria pensar diferente, que eu iria
enfrentar qualquer coisa por ele.
— Passei em seu quarto para conversarmos e não a encontrei… —
a voz do meu tio recém-descoberto contendo o alvoroço da minha cabeça.
— Gostaria que jantasse conosco… Em família… Achei de bom-tom avisar
para que você pudesse se vestir adequadamente.
Acompanhei Gustaf de volta e, assim que entramos, esperei que
falasse algo sobre Ture ou o que eu tinha certeza que ele havia percebido
sobre nós, mas apenas sentou-se sobre o edredom macio.
— Sente-se aqui… — pediu e eu obedeci. — Penso que
começamos errado… — Soltou um longo suspiro. — Podemos começar de
novo? — perguntou com a sombra de um sorriso pairando no rosto.
Aquiesci e Gustaf estendeu a mão em cumprimento.
— Sou Gustaf Augustus Fairhair… O primogênito do rei, já tive
minha glória, esses tempos são outros! — Alargou o sorriso.
Eu tinha péssimas lembranças dele. Primeiro no cemitério, depois
com o coelho morto. Não era como se eu quisesse passar horas trocando
confidências com meu tio excêntrico no quarto de minha mãe, mas, por
outro lado, ele dera o primeiro passo.
Se queria mesmo uma segunda chance para, talvez, mudar minha
opinião a seu respeito, então eu devia isso a ele, pela minha mãe e por Aren
também.
— Sou Katarina Thorsson… — Sorri sem jeito. — Acho que nem
sei o que é glória! — Deu de ombros ainda rindo.
Seus braços me puxaram para si carinhosamente. Foi um abraço
diferente, cheio de uma promessa que ainda não fora cumprida, como se
realmente esperássemos que tudo aquilo desse certo.
Depois de alguns segundos, Gustaf correu os olhos pelo caderno
sobre a cama, juntando as folhas espalhadas e as organizando.
— Vejo que Aren deu o diário a você… — Pensou por um
segundo, ainda arrumando as folhas soltas. — O que sobrou dele, na
verdade… — Suspirou. — Sabe quem o destruiu?
Fiz que não com a cabeça.
— Eu! — Mais um suspiro, seus olhos azuis eram tristes e
distantes, como se estivessem em outro tempo. — Encontrei o diário dela
alguns dias depois de sua morte…
Gustaf olhava para a janela, mirando a paisagem lá fora. Falava
comigo, mas era para dentro de si mesmo que confessava.
— Quando Karin nasceu… — continuou. — Erik e eu a
chamávamos de [4]docka… — Sorriu. — Ela era nossa bonequinha e nós
dois a protegemos de qualquer perigo que aparecesse. Nem mesmo um
arranhão permitíamos que ela sofresse. Nós a ensinamos a caçar, a atirar
flechas e tocar piano… — Mais um suspiro. — Eu a amava tanto… — Seus
olhos se encheram, mas nenhuma lágrima rolou. — Não queria perdê-la…
Mesmo assim, ela se foi.
Não fui tão forte quanto Gustaf, não pude conter o meu choro. A
garganta se fechando, o coração apertado.
— Quando encontrei o diário, não resisti e acabei lendo —
continuou. — Karin não estava mais aqui, não havia mais razão para manter
sua privacidade e, sabe o que me levou a destruí-lo, Katarina? —
perguntou, mas não esperou a resposta. — Eu não suportei! Ler o
sofrimento dela aqui, nessas páginas… — Apontou. — Não suportei a dor
pela qual minha irmãzinha docka passou.
Seus olhos estavam ainda mais azuis, tão marejados que a primeira
lágrima rolou. Sua mão repousando sobre a minha.
— Não quero o mesmo destino para você… Como eu disse antes,
sei que começamos errado e imagino que suas opiniões sobre mim não
sejam as melhores, então, quero que me perdoe por nosso último encontro.
Eu não quis assustá-la, só… Nunca concordei com o que seu pai decidiu,
quero que você saiba exatamente quem é!
Encarei-o por alguns segundos. Havia muita tristeza e
arrependimento ali, talvez fosse disso que se tratava toda a arrogância e
acidez dele. Talvez fosse como Ture e lidasse com o sentimento afastando
as pessoas.
— Espero que entenda que somos lobos, Katarina… — continuou
provando meu ponto. — Caçadores… Predadores… Sei que não consegue
pensar nisso ainda, mas chegará o momento em que precisará caçar.
Deixei-me levar pelos pensamentos, o pobre coelho ensanguentado
em sua mão, mas, assim como eu lidava com Ture, decidi encará-lo de
frente.
— Quando for necessário… — concordei e Gustaf sorriu.
— Sei que Aren a ajudará com isso… — continuou. — Meu
sobrinho é um bom menino, Katarina… — Sorriu. — Na verdade, um bom
homem… — corrigiu. — Aren não é mais um menino, embora eu
preferisse que ele ainda fosse. Que vocês dois fossem. — Suspirou. —
Sabe, Katarina… — Estreitou os olhos. — Não sou muito bom com
problemas amorosos. Lido melhor com brinquedos quebrados e joelhos
ralados!
Eu quase podia acreditar em Gustaf, queria de fato. Estava mesmo
sozinha, ter uma família era algo bom. Seu semblante era sereno, sua voz,
calma e bem empostada. Ele quase parecia bom. Gentil.
— Quero que me procure se tiver algum problema, minha
sobrinha. Sei que será minha rainha, mas imagino que seu velho tio ainda
tenha truques na manga para ensiná-la… — Deslizou a mão em meu
ombro. Sabe, Katarina — ele me disse —, Odin não me deu o privilégio de
ter filhos. Quando Eric foi assassinado, eu não sabia o que fazer com Aren.
Descobri nele o maior presente que recebi das mãos de Odin.
Gustaf soltou o ar dos pulmões com toda a força.
— Ture não é uma boa escolha, Katarina…
Gelei. O medo de que Gustaf falasse mais do que eu queria ouvir
tomando conta de mim.
— E não digo isso porque você pertence à família real, minha
sobrinha… Se fosse outro homem, Katarina… Se você estivesse
apaixonada pelo garoto, o filho do ministro, eu até poderia reconsiderar,
mas não um Svensson… — Um pigarrear cheio de dor cortou sua frase. —
Seu amado pertence a uma família de traidores… Rebeldes sem nenhum
escrúpulo.
Travei onde estava. Então Ture tinha uma família!
— Aren contou a você o que houve com Erik e Ava?
Meu rosto surpreso me denunciou.
— Erik era meu irmão… — Levantou-se e pegou a mesma
fotografia que meu primo havia me mostrado quando cheguei àquele
quarto. — Ava era sua esposa… A mãe de Aren — continuou. — E quem
os matou, Katarina, foi o pai de Ture. Ele traiu a Coroa, matou o rei e a
rainha… Ele destruiu nossa família.
Meu estômago se revirou e o chão ao meu redor pareceu revirar-se
junto.
— Não é nem de longe uma história que eu queria contar a você,
minha querida, mas é uma verdade que nenhum de nós tinha o direito de
esconder.
Gustaf se levantou e colocou o porta-retrato de volta no aparador.
Os dedos demorando-se nas pessoas daquela foto.
Por um segundo, eu me senti como ele. Era estranho ser a única
sobrevivente, não ter mais uma família, nem pais nem irmãos…
— Não que pense que eu culpo o garoto ou a menina pelo que
houve… — cortou o silêncio do quarto. — Mas nosso povo nunca vai
esquecer o que houve, Ture jamais será visto com bons olhos e se você o
desposar…
O fim da frase ficou implícito, empunhado para dentro do meu
peito como uma navalha.
Então ele tinha uma família! Uma irmã? O que havia acontecido
com todos?
Gustaf me tirou dos pensamentos.
— Eu já fui jovem como você, Katarina, como Aren. Não me
orgulho das decisões que tomei na vida, mas aprendi muito com elas… É
por isso que às vezes sou tão… insistente… — Girou os dedos no ar. —
Tudo o que desejo é não ver meus sobrinhos enveredados por caminhos
tortuosos como o meu.
Algo no jeito como ele limpava a garganta e olhava para o detalhe
da rosa no teto me fazia crer que era algo constrangedor. Eu estava quase
tão sem jeito quanto ele, não sabia se deveria encorajá-lo a contar mais ou
evitar que tudo se tornasse ainda mais estranho e pessoal.
Um som estranho tirou Gustaf de onde estava e o levou direto até a
sacada.
— Ele foi meu melhor projeto… — declarou apontando para a
escuridão, sem que eu pudesse ver do que falava. — Quando olho para ele,
mesmo quando discordamos de algo, eu vejo que fiz um bom trabalho.
Levantei-me e caminhei até ele, parando ao seu lado no balcão. Só
então vi Aren lá embaixo, atirando flechas com um arco. Sua figura se
confundindo na luz fraca dos spots entre os arbustos do jardim.
— Pode imaginar um garoto tão jovem simplesmente perdoando o
filho de quem lhe tirou sua família?
Senti um aperto no peito.
Aquela sombra de tristeza que sempre havia no rosto de Aren fazia
tanto sentido agora que chegava a doer, principalmente quando eu pensava
nele e em Ture juntos, no quanto pareciam unidos, irmãos.
Deixei um suspiro escapar no lugar da resposta, os olhos ainda na
sombra do homem no jardim.
— Na manhã do enterro de Erik, Aren desceu as escadas para o
jardim… — Gustaf continuou. — Meu sobrinho sempre gostou de se
esconder entre os arbustos… Foi lá que encontrou Ture, sozinho e
chorando. Aren só o abraçou e disse que nada importava, porque eles eram
irmãos… Foi por isso que… Eu… — Soltou um suspiro, cortando o
restante da frase.
Gustaf ainda encarava o escuro do jardim.
— Sua mãe escreveu esta história no diário… Sei que me acha um
monstro, Katarina, mas eu não sou tão ruim quanto pensa…
— Não penso… — Esbocei um sorriso. — Ao menos… Ao menos
a partir de agora!
As mãos fortes de Gustaf acariciaram minhas costas com
suavidade e carinho.
— As pessoas cometem o erro de pensar que a euforia e loucura da
paixão são suficientes para se ter um futuro feliz, Katarina… Nem sempre
esse sentimento é bom… Às vezes só… Só nos machuca.
Aren puxou mais a corda do arco para trás novamente, o zunido da
flecha cortando o silêncio da noite.
— Vou descer e ver como estão as coisas para o jantar… Como
bem sabe, não temos uma dama nesta casa… — Sorriu. — Espero que em
breve tenhamos!
Ganhei um beijo na testa e ele se foi.
Pelos segundos que passaram, observei Aren disparar as flechas a
esmo, sem saber o que ele pretendia acertar dentro da escuridão.
Gustaf tinha razão sobre as qualidades do sobrinho e eu podia
afirmar isso mesmo o conhecendo havia tão pouco tempo. Sabia que era
honesto e justo, muito gentil e que sua autoridade nunca era forçada. Aren
parecia ganhar o respeito e a admiração de todos a sua volta, como eu
imaginava que um rei deveria ser.
Foquei os olhos na figura lá embaixo, jovem demais para tantas
responsabilidades e, mesmo assim, Aren parecia suportar, sempre.
Capítulo Vinte e Sete
Katarina
O vento frio da noite gelou minha pele assim que pisei no jardim.
As folhas das árvores dançavam no vento, terminando em um tapete macio
no chão.
Aren virou-se em minha direção assim que a primeira folha se
partiu sob meus pés.
— Princesa… — Fez uma reverência delicada. — Não achei que
apreciasse passeios noturnos… Eu a incomodei com o barulho das flechas?
Em todas as vezes que eu o tinha visto, Aren estava absolutamente
composto. Cabelos bem penteados, barba feita, terno ajustado com
perfeição, mas naquele momento era diferente.
Seu cabelo estava despenteado pelo vento, o rosto brilhando de
suor. Ele usava um jeans claro e uma camiseta branca justa. O tecido se
apertava contra os braços quando ele flexionava a corda do arco para trás.
Não existia peso algum em seus olhos. Meu primo parecia mais jovem,
menos formal, mais humano e real.
Caminhei em sua direção.
— Achei que um pouco de ar me faria bem… — Esbocei um
sorriso, os olhos mirando o arco bonito e trabalhado em suas mãos.
— Já usou um desses antes? — perguntou.
Observei a arma em sua mão. Eu nunca havia pensado muito em
arcos e flechas na minha vida moderna em Berlin, mas, observando o
quanto ele parecia certo na mão de Aren, pensei que não poderia existir
arma mais elegante para que ele empunhasse.
— Nunca! — Sorri um pouco mais. — Confesso que fiquei
curiosa… Não é muito comum… É difícil? — questionei. — Porque você
faz parecer bem fácil.
Aren sorriu. Um sorriso largo e jovem, que elevou suas bochechas
em covinhas e mostrou seus dentes brancos perfeitos.
— Acredite… Não foi sempre fácil para mim! — Deu um passo
mais para perto. — Meu pai me infernizou até que…
De repente seu sorriso murchou e eu me senti tão culpada por tudo
que nem pude sustentar seu olhar.
— Venha! — chamou. — Não é o tamanho certo para você, mas
acho que podemos tentar.
Aren pegou uma das flechas na bolsa do chão e acomodou-se atrás
de mim. Seu corpo posicionado tão perto que eu sentia sua respiração
contra as costas. Seu rosto encaixado no meu pescoço.
— Entenda… Não é sobre força, Katarina… — a voz tão perto do
meu ouvido que seu hálito quente arrepiou minha pele. — É sobre objetivos
e concentração.
Tentei me manter imóvel, mas era bem difícil ignorar sua presença
ali tão perto.
Ele puxou meu braço para trás, tensionando a corda do arco,
ajeitando meus movimentos.
— Respire devagar… Concentre-se… O arco faz parte de você.
Sinta seu corpo…
Aren segurava meu braço com uma mão, a outra estava presa em
minha cintura, sua postura mantendo a minha, a respiração compassada me
acalmando.
— O arco é você… — sussurrou. — A flecha, sua determinação…
Atinja o objetivo, Katarina!
Suas palavras ecoando dentro de mim, aumentando minha
determinação, minha vontade. Seu corpo se moldando ao meu.
— Solte a corda — soltou quase sem som.
Fiz o que pedia e a flecha ricocheteou no ar, atingindo o chão. Aren
riu, afastando-se um pouco de mim.
— Desculpe! — pediu ainda rindo. — Eu não… Não queria…
— Ok! Atirar flechas não é um dom de família! — Mostrei as
palmas em rendição.
Aren riu mais alto, apertando os olhos azuis, mas depois limpou a
garganta e se concentrou.
— Meu arco é muito grande… — explicou. — Não é sua culpa.
Arcos são feitos sob medida para o corpo de seu dono.
Ele se aproximou novamente e segurou o objeto em uma das mãos.
Seus olhos quentes me encarando sem culpa alguma fizeram com que eu
desviasse os meus.
— Um arco é como um amante, minha princesa… Ele deve se
encaixar ao seu corpo.
Senti meu rosto corar, mas não me afastei. Aren segurou a arma
novamente, posicionando-se atrás de mim como antes, mas dessa vez não
me deixou puxar sozinha, conduziu meu braço, como se fosse dele.
— Atirar uma flecha é como tomar uma decisão, Katarina… Você
precisa saber a direção que quer atingir. Não pode se focar nas distrações a
sua volta. — Seus olhos estavam fixos em algum lugar a sua frente. — Não
depende de mais ninguém… O arco é você!
Soltou a corda e a flecha zuniu na escuridão. Eu não a vi, mas ouvi
o som de algo batendo em madeira.
Fiquei pensando se ele não se perguntava o que havia atingido, ou
pior, quem!
— Você deveria mirar em algo da próxima vez! — Dei de ombros
fazendo piada.
Aren deixou o arco no chão e estendeu a mão para mim.
— E o que a faz pensar que eu não mirei?
Havia um sorriso zombeteiro em seus lábios. Um que me fazia
querer conhecê-lo melhor, que me fazia crer que existia muito mais sobre
Aren a ser descoberto.
Aceitei a mão oferecida, caminhando com ele por alguns minutos
através da escuridão da floresta ao redor do gramado. Aren guiando meus
passos.
Chegamos a uma pequena clareira entre várias árvores, havia um
alvo pregado em uma delas e, assim que o olhei, estremeci. Todas as flechas
estavam dentro do círculo menor, bem ao centro do alvo.
— Eu nunca, Katarina! — Sorriu de canto daquele jeito que fazia.
—Posso fingir atirar no alvo errado, mas eu sempre atinjo o que desejo.
Por alguma razão, seu tom deixou claro que ele não falava
exatamente de alvos e flechas, estava mais para objetivos e decisões.
Mirei as flechas juntas mais uma vez. Só queria ter a sua
determinação!
— Você está com sono? — Aren interrompeu meus pensamentos.
Neguei com a cabeça.
— O que acha de trocarmos o jantar formal de Gustaf por algo
mais… — Girou os dedos no ar. — Inconsequente?… — Sorriu.
— Acho que ele vai ficar bem pu… — Parei o palavrão no meio e
limpei a garganta. — Bem incomodado… — consertei.
Aren riu alto.
— Acho que puto se encaixaria melhor! — brincou. — Não se
preocupe, eu assumo tudo e digo que a culpa foi minha!
— Bem… — Dei de ombros. — Você é o futuro rei!
Aren segurou minha mão e entrelaçou nossos dedos, fazendo meu
peito se apertar. Era estranho saber que aquilo era o certo. Era onde eu
deveria estar, quando meu coração se apertava e chamava por outro homem.
Forcei um sorriso e tentei não deixar meu primo perceber o que se
passava em minha cabeça. Eu havia prometido a ele, afinal tinha que
começar a arcar com as minhas responsabilidades.
No fim das contas, talvez Gustaf não estivesse tão errado assim.
Por mais que eu desejasse ter Ture comigo para sempre e que fosse
assim que meu coração batesse mais forte, ficar com ele parecia uma
realidade distante demais.
Talvez se eu tentasse… Só talvez… — Engoli em seco. — Pudesse
descobrir algo a que me apegar em Aren. Algum sentimento que com o
tempo pudesse se transformar em amor. Eu não o odiava, afinal. Nem
mesmo podia dizer que não gostava dele ou que não me sentia atraída por
ele.
É possível, não é? Amar outra pessoa? Descobrir outro
sentimento?
Segurei meus medos dentro do peito, as inseguranças e a tristeza
que me invadia, fiz o melhor que pude para sorrir.
Pensei que voltaríamos para a mansão e imaginei que daríamos um
passeio em um dos carros de luxo estacionados em frente à casa. Um jantar
romântico à luz de velas, em algum lugar com champanhe e rosas, era bem
o que combinava com Aren, mas me enganei.
Meu acompanhante continuou caminhando por entre as árvores até
que chegamos a um bosque.
— Um rei deve estar ao lado do povo, Katarina… — Diminuiu os
passos, mais lentos e tranquilos. — É no que eu acredito. Quero caminhar
com o povo, saber do que precisa, o que deseja. Quero protegê-los, não me
esconder atrás de minha coroa.
Não pude deixar de sorrir, pensava como ele.
Paramos em frente a um rio.
— Está com fome? — perguntou agachado na margem, mexendo
na água e a deixando escorrer entre os dedos.
Eu estava, mas fiquei pensando em por que ele havia me levado até
ali para então voltarmos para o jantar. Antes que pudesse responder, Aren
continuou.
— O que acha de peixe assado? — Sorriu. — Sou bom com
fogueiras e com peixes. Nota máxima em escotismo! — brincou.
— Adoro peixe! Concordei. Bem melhor que coelho, aliás.
O príncipe riu.
— Você me espera aqui? — perguntou.
Aquiesci, já sentada no chão com as pernas cruzadas.
Aren levantou-se, de costas para mim, e segurou a beirada da
camiseta com as mãos, puxando-a pelo pescoço. O tecido caiu no chão. Ele
esticou os braços para cima, segurando as mãos juntas, como se estivesse se
espreguiçando ou alongando.
Mantive os olhos nele, estava curiosa.
Suas costas eram largas e musculosas. Havia desenhos tatuados
desde os ombros até a cintura, perdidos no cós do jeans. A luz da lua
deixava evidente o contraste entre a tinta escura e sua pele clara.
Quando ele começou a descer a calça, desviei o rosto, sentindo as
bochechas corarem.
Aren mergulhou tão rápido que quando voltei a olhar só o vi
caindo na água, o jeans deixado ao lado da camiseta.
Esperei que subisse para respirar, mas ele não o fez pelo que
pareceu uma eternidade. Eu já me preparava para encontrar o caminho de
volta e gritar que o príncipe havia se afogado quando ele apareceu na
superfície escura do riacho, seu cabelo grudado no rosto. A boca virada em
um sorriso sedutor.
— Eu disse que era bom com peixes! — Deu mais alguns passos
em minha direção, ostentando um animal na mão.
Pisquei algumas vezes, não queria olhar demais, mas precisava
confessar que a visão dele quase sem roupa, caminhando sob a luz da lua,
era absolutamente perfeita.
Aren colocou o peixe ainda se debatendo sobre a camiseta e
segurou as pontas, fazendo uma sacola. Vestiu o jeans e deslizou as mãos
pelos cabelos, fazendo pequenas linhas de água fria escorrer por sua nuca e
costas.
Quando chegou até mim, juntou alguns gravetos e folhas, pegando
um maço de cigarros de dentro do bolso da calça. Retirou o isqueiro da
abertura, colocou um cigarro na boca. Acendeu o amontoado de folhas
cuidadosamente e depois o cigarro.
— Você fuma? — perguntou.
— Não, mas acho que é um bom momento para experimentar! —
brinquei, estava nervosa e me sentia meio boba e estabanada.
Aren pegou o próprio cigarro e entregou a mim.
Colocá-lo na boca fez meu coração se acelerar de um jeito
diferente.
— Puxe devagar, trave na garganta e solte depois. Cuidado para…
Engasguei e tossi, fazendo-o parar a frase no meio.
— É um hábito idiota! — frisou, pegando o cigarro de volta e
dando um trago longo. Soltou a fumaça para cima. — Mas estou feliz que
tenha provado comigo… Vamos… Vamos acumular algumas memórias…
— Sorriu. — O que acha?
— Já tentei acertar uma flecha… Fumei um cigarro… — ia
falando e contando nos dedos. — Acho que é uma noite bem cheia de
memórias! — Dei de ombros.
Aren sorriu e começou a trabalhar a ponta de um graveto com o
canivete, fazendo um espeto. Era tão simples estar com ele, sorrir. Tentei
afastar as lembranças de Ture para o mais distante que pude. Eu queria dar
essa chance, talvez fosse mesmo o certo a fazer.
O que eu entendia da vida? Tinha acabado de completar dezoito e
mal conhecia o mundo a minha volta. E se Gustaf estivesse certo e o amor
fosse supervalorizado? E se a convivência me mostrasse em Aren um
companheiro melhor, alguém com quem eu não vivesse no limite todos os
dias. Alguém que não passasse cada segundo tentando me afastar.
Capítulo Vinte e Oito
Katarina
Encarei a lua lá em cima no céu. Os olhos verdes de Ture
insistindo em permanecer ali, olhando para dentro de mim como se fossem
faróis.
Não vai ser fácil, Katarina!
Aren arrumou nosso jantar sobre o fogo em silêncio. Ficou ali,
olhando a chama crepitar enquanto soltava baforadas de fumaça para a lua.
— Não pense que eu não sei, Katarina — soltou ainda encarando o
céu.
Senti um arrepio passar pelo meu corpo, sabia exatamente o que
ele queria dizer. Aren não era bobo, nem inocente. Tinha aprendido a ser
polido e educado, mas ainda era um homem muito sagaz e inteligente.
— Não se preocupe em me magoar… — Sorriu de leve. — Não
estou apaixonado por você.
Engoli em seco, agradecendo a luz fraca da lua por não permitir
que ele visse a cor do meu rosto.
Mesmo assim, meu primo riu.
— Você gostaria que eu estivesse? — soltou fazendo-me corar
ainda mais.
Abri a boca para responder, mas não conseguia formular nenhuma
frase. Por fim, desisti.
— Não sei o que responder… — confessei sincera.
— A verdade… — devolveu. — Exatamente como você está
fazendo… Se… mantivermos a verdade entre nós, Katarina, já teremos
mais do que muitos casais!
Mexi em uma pedrinha no chão. De repente o clima estava
estranho, cheio de palavras não ditas e suposições.
Os dedos longos e quentes dele seguraram meu queixo e ele o
elevou até a altura do seu rosto.
— Não estou dizendo que eu não poderia me apaixonar por você
um dia, minha linda princesa… — Sorriu. — Apenas que, neste momento,
não a amo! Mesmo que… — Separou os lábios, o hálito quente batendo em
meu rosto, o perfume dele se espalhando ao redor de mim. — Você seja
absolutamente linda e isso seja impossível de ignorar…
Ondas de calor subindo pela minha face e meu coração acelerado
num nível perigoso.
— Sei o que há entre você e Ture… — continuou e eu me soltei do
seu toque. — Vi como ele ficou quando soube que teria que trazê-la para
mim… Vejo como olha para ele, Katarina, sei o que sente, já senti isso
também…
— Você não… Você nunca… Vo… — gaguejei e não sabia como
continuar.
— Eu nunca disse que não sabia… Disse apenas que, por ora, não
era importante para mim. Você se lembra disso?
Assenti.
— Quero propor um acordo a você, minha querida noiva… —
Sorriu. —Deixe-me mostrar a você toda a situação antes que tome sua
decisão… Porque uma vez tomada, Katarina… — Suspirou. — É como
uma flecha disparada. Não há como voltar sem que muito sangue seja
derramado… Sei que você não deseja isso, assim como eu.
Aren suspirou.
— Ture… É como um irmão para mim, Katarina… Se existisse
alguma maneira, por menor que fosse, de tirá-lo desta situação, tenha a
certeza de que eu faria!
Baixei o olhar.
— Temos um acordo? — Estendeu a mão em minha direção.
Eu a segurei.
— Sim.
Aren virou os peixes de lado, deixando que dourassem por igual. O
cheiro era bom.
— Você leu o diário de Karin? — perguntou como se não fosse
nada de mais.
— Comecei…
— Imagino que tenha dúvidas… — Sorriu. — Vamos lá, estou
aqui para responder a elas e juro pela minha coroa que serei sincero,
mesmo… Mesmo que você não goste das respostas.
Pensei por um instante, feliz de ter aceitado dar um passeio com
ele.
— Por que minha mãe tinha tanto medo de contar sobre o meu pai?
— Porque se unir a Yrian significava abdicar de todo o resto…
Karin tinha uma escolha: a vida que tinha, a família que a amava e tudo que
conhecia, ou seu pai. Penso que o fato de você estar dentro dela a fez tomar
a decisão mais rapidamente.
Baixei a cabeça por um instante, pensando sobre minha mãe e suas
escolhas. Gustaf havia dito que ela sofrera muito.
— Por quê? Quer dizer, o que tinha de errado com meu pai?
Aren continuou.
— Eu venho de uma linhagem pura, Katarina, a mesma de Karin…
Nós somos descendentes originais dos primeiros guerreiros de Odin que
pisaram sobre a terra. Por isso a Coroa é nossa por direito e por ordem.
Nosso sangue não deve ser misturado! O que significa que Karin não
poderia nunca ter se apaixonado por um plebeu.
Eu sentia uma pontinha de raiva por Aren falar do meu pai assim,
mas não podia dizer que ele estava errado.
— Não pense que eu concordo! — confessou como se interpretasse
meus pensamentos. — Tive meus problemas para compreender tudo isso e
nem posso dizer que o fiz completamente, mas o fato é que as coisas são o
que são… — Suspirou. — Tem mais um detalhe, Katarina… Nós temos
uma fraqueza… Temos nossa alma ligada a outra. Você deve ter sentido
isso, imagino.
Eu sentia… A cada vez que Ture me beijava, sempre que sua pele
tocava a minha. A cada lembrança e sonho em que eram seus olhos que eu
encontrava em outros rostos, mas não disse isso a Aren. Ele provavelmente
sabia disso melhor do que eu.
— Ture sente… Sabia? Cada pensamento seu, cada desejo ou
vontade por menor que seja, ele sabe! O corpo dele entende, lê o seu como
se fossem parte de uma mesma alma.
Engoli a saliva com tanta força que pareciam cacos de vidro
escorregando garganta adentro.
— Ele não… Ele não me quer… — confessei.
Achei que seria melhor abrir o jogo logo de uma vez. Não queria
mais fingir.
Aren sorriu.
— Está errada! Ele apenas a protege… É diferente, Katarina. Ele a
protege dele mesmo e… de você!
Eu queria chorar. De fato, sentia pequenas gotinhas se formando
nos olhos. Era estranho falar disso com Aren, mas ao mesmo tempo era
reconfortante demais falar com alguém que não me fazia sentir boba e
infantil.
— Ture acompanhou todo o sofrimento de Karin — a voz grave de
Aren continuou. — Ele a viu chorar… Sofrer… Definhar… Justo ela, que o
havia acolhido tão bem… Ele a viu ter sonhos, planos… Depois a viu
morrer, Katarina. Ture viu o amor destruir sua mãe.
Engoli em seco, lembrando-me das palavras de meu pai, repetidas
através da voz de Ture.
Ela teria uma vida longa e feliz longe de mim.
— Como ela morreu? — perguntei limpando algumas lágrimas do
rosto.
— Ficou fraca. Já ouviu falar que as pessoas morrem de amor? —
Suspirou, um sorriso triste brotou em seu rosto bonito. — É verdade… Elas
morrem! Não de amor — justificou —, mas morrem de tuberculose, ou são
assassinadas enquanto dormem! — Alisou os cabelos para trás. — O amor
destrói as pessoas… Destruiu todos que Ture amava.
De repente toda a luta de Ture por me manter longe começava a
fazer sentido. Medo! Ele tinha medo de que o mesmo acontecesse comigo!
Queria me proteger de ter o mesmo destino de minha mãe.
— Gustaf contou algo além do que você leu no caderno que te dei?
— Aren perguntou.
— Não muito…
— Não quero que pense que eu não o amo… — Meu primo sorriu.
— Gustaf foi como um pai para mim… — Desviou o olhar. — Nosso tio
tem seus próprios fantasmas, Katarina. Não é fácil para ele, e imagino que
tenha deixado a parte difícil fora da conversa que tiveram no quarto, hoje
mais cedo.
— Você nos viu… — não foi uma pergunta.
— Somos caçadores, Katarina, é importante saber o que acontece a
nossa volta… Sempre! — frisou.
Aren deu um último trago no cigarro e o apagou.
— Gustaf contou a você que o pai de Ture foi o responsável pela
morte dos meus pais, não é mesmo? Deve ter enfatizado bastante o quanto
Ture é errado para você por causa de todo esse passado…
Fiz que sim com a cabeça.
Meu primo pegou um dos espetos e o entregou a mim.
— Não foi por causa de meus pais que Gustaf passou a odiar a
família Svensson, tudo aconteceu antes… — revelou.
Capítulo Vinte e Nove
Ture
Eu estava me recuperando.
Deveria ter ficado naquela porra de quarto, mas o perfume dela
espalhado por lá estava me tirando do sério.
Ela está certa, Ture, seu imbecil!
Como eu poderia culpá-la por ter decidido sair com ele? Como
impedir o inevitável?
Eu estava no lugar errado, eu! E teria que lidar com as
consequências.
Atrapalhei-me com a camiseta e acabei rasgando o tecido;
enquanto me livrava dele, entrava debaixo do chuveiro frio. Não tinha
muita esperança de que a água pudesse me fazer recuar no que tomava
meus instintos, mas tinha um pouco de fé nos deuses de que pelo menos iria
acalmar a fera que uivava dentro de mim.
Estava me virando para vestir o jeans, quando a porta se abriu e
Gunnar passou por ela.
— Senhor… — Curvou-se de leve. — Vim oferecer ajuda… O
jantar será servido em breve, imaginei que precisasse.
Meneei a cabeça em concordância.
Depois de tudo que rodeava meu passado, chegar aonde cheguei
era a maior conquista de um homem. Ser respeitado pelo que eu era,
independentemente do sangue que corria em minhas veias, era meu maior
orgulho.
Mérito meu, por benevolência de Aren, obviamente. Ele sempre
me ofereceu o melhor que pôde, que a Coroa lhe permitia. Estudei em boas
escolas, formei-me com louvor, aprendi as artes da guerra com os melhores
professores, me destaquei.
Qualquer mulher do mundo, Ture… Você pode ter qualquer outra,
não ela!
— Não pretendo jantar, mas vou usar um dos carros. O meu foi
destruído, como você bem sabe — avisei.
O soldado não questionou, conhecia a hierarquia e sabia que
minhas ordens não deveriam ser questionadas.
Deixei que ele me ajudasse a terminar de me vestir e então saí do
quarto a passos largos, parando apenas para pegar as chaves do esportivo
preto estacionado junto ao gramado.
Assim que pisei no jardim, farejei o cheiro dele e precisei travar os
dedos em punho para conter a raiva que borbulhava em minhas veias. Meus
instintos tão aflorados, a fera arranhando seu caminho para fora.
Entrei no carro.
— Quer que eu dirija? — o garoto perguntou.
— Acha que eu não consigo? — provoquei, sustentando seu olhar.
Gunnar apenas se afastou, cabeça baixa, sabia bem o que eu
tentava conter.
Girei a chave e acelerei no instante em que o carro deu a partida, os
pneus derrapando no gramado molhado de orvalho, fumaça saindo das
rodas.
Não tinha um destino em mente, só precisava me manter longe.
A parte racional que existia dentro de mim sabia bem o quanto
aquilo precisava acontecer, era justo. Tinha sido um acordo honesto, eu não
queria descumprir, mas o lobo não concordava. Tudo que ele conseguia
pensar era que tínhamos que reivindicar nossa fêmea, marcá-la, torná-la
nossa sem que ninguém pudesse questionar.
Parei apenas quando cheguei ao bar.
O lugar estava lotado. Era noite de festival e os universitários
adoravam vir para Uppsala por causa das lendas, nossas lendas, que
ninguém sabia que eram reais.
— Um uísque duplo! — pedi ao homem atrás do balcão.
Assim que a bebida foi colocada em minha frente, virei de uma
vez.
— Mais um! — Bati com o copo vazio sobre o balcão de madeira.
Virei novamente.
Na terceira vez, nem precisei pedir, meu copo foi preenchido de
imediato.
— Dia ruim? — perguntou secando um dos copos.
As pessoas da cidade sabiam pouco sobre nós. Limitavam-se a
pensar que éramos milionários excêntricos em busca de sair dos holofotes,
mas nosso rosto era conhecido.
E, assim que minha presença foi notada, os burburinhos por conta
dos últimos acontecimentos começaram.
Cocei a barba, sentindo a irritação aumentar. Os idiotas nem
faziam ideia de que eu conseguia ouvi-los mesmo àquela distância?
— Isto aqui está uma merda hoje! — o barman confessou,
provavelmente analisando minha expressão.
— Ultimamente todos os lugares estão! — concordei e ele riu.
— Mais uma? — perguntou já erguendo a garrafa. — Você ainda
tem um longo caminho de volta…
Estreitei os olhos. Ia dizer que ele não tinha nada com isso, mas
Aren estava certo, eu precisava começar a conviver melhor com as pessoas.
— O banheiro… — Estendi a mão pedindo a chave.
O homem virou de lado, pegou o chaveiro de barco e entregou para
mim.
Eu mal havia levantado, quando a fera dentro de mim sentiu a
aproximação da fêmea antes que minha razão comandasse. Tentei sair de
perto, mas a mão dela repousou sobre meu ombro machucado, fazendo-me
voltar à banqueta.
— Eu estudo enfermagem, sabia? — Sorriu sedutora, deixando
claro do que precisava.
Corri os olhos sobre a garota. Devia ter a idade de Katarina, alguns
anos a mais, talvez. Cabelos loiros longos e olhos azuis avermelhados pelo
excesso de fumo e bebida.
— Se precisar de uma ajudinha… — Passou a língua pelos lábios.
Levantei-me de uma vez, evidenciando meu tamanho em frente a
ela.
— Eu preciso mijar… Quer segurar para mim? — soltei
debochado.
— Grosso! — reclamou.
Tirei algumas notas de dentro do bolso e coloquei sobre o balcão
ao lado das chaves.
Mijar no mato ao menos ia me poupar algum trabalho.
Capítulo Trinta
Katarina
Franzi o cenho sem entender.
— Você não se perguntou por que meu pai se tornou rei sendo o
filho do meio? — Aren continuou.
Eu havia pensado, mas achei que confessar era desnecessário, já
que meu primo ia continuar de qualquer jeito.
— Gustaf não se casou… Ele sempre foi tímido e era muito
diferente do meu pai. Meu pai era gentil, desenvolto, chamava todo o brilho
para si, e Karin, bem, Karin era absolutamente linda e inteligente. Gustaf
era só Gustaf, o primogênito.
— Foi exatamente assim que ele se apresentou a mim! — Sorri,
mas não era um sorriso feliz.
— Ele sempre foi o tipo que se fecha na biblioteca e lê horas a fio.
Um dia, conheceu uma jovem mulher… Gustaf nunca mais foi o mesmo.
Ele podia ter protagonizado a maior mudança que o amor pode produzir em
uma pessoa, não fosse por uma razão – a jovem era casada. Seu marido era
o braço-direito do nosso avô. O fato é que Gustaf e Hebe tiveram um caso,
mais que isso, eles viveram um amor absoluto, em completo silêncio.
Ninguém nunca desconfiou, nem mesmo Hagnar, o marido.
Meus pensamentos voavam ao redor de mim. Era estranho pensar
em Tio Gustaf perdendo a cabeça por amor.
— Um dia, Gustaf apenas abdicou. — Aren soltou um suspiro
triste. — Disse que não poderia ser rei, que não estava preparado e que meu
pai era muito mais qualificado para isso. Nosso tio apenas entregou a Coroa
e se foi. Hoje, sabemos que ele, na verdade, esperava que Hebe o
encontrasse e que fugissem juntos, mas ela nunca apareceu. Decidiu pela
família, não foi capaz de abandonar o marido e Gustaf pagou o preço
sozinho, exilado na Alemanha até a morte de meu pai. Voltou para enterrar
o irmão.
Baixei o rosto para o chão escuro e úmido da floresta. De repente,
nem o sabor do peixe era mais tão agradável e tudo fazia tanto sentido para
mim que chegava a doer.
Aren encheu os pulmões de ar e soltou bem devagar.
— O que Gustaf não sabia era que Hagnar estava tramando depor
nossa família do trono com os rebeldes fazia muito tempo. O amor do
herdeiro pela esposa do inimigo deu apenas a coragem que faltava ao
traidor. Meus pais foram mortos enquanto dormiam, sem nenhuma chance
de se defenderem, por uma causa que nem era deles… — Mais um suspiro
pesado, carregado de sentimentos. — Ele nem queria ser rei! — confessou.
Levei a mão até o braço de Aren, acariciando a pele já seca,
sentindo o calor, demonstrando em carícias o que eu não conseguia dizer
em palavras.
O príncipe continuou.
— Hagnar foi morto pela guarda. Sten, o primogênito dos
Svenssons, fugiu com os renegados, levando a irmã caçula com ele, mas o
filho do meio foi deixado para trás. Sozinho, no meio de um monte de
pessoas que agora o consideravam inimigo.
Meu coração se apertou e só então eu percebi os olhos marejados
de Aren.
— Imagino que Gustaf nunca tenha contado a você que foi ele
quem salvou Ture… — Um meio sorriso triste curvou seus lábios bonitos.
Neguei com a cabeça, confirmando as suspeitas dele.
— Ele nunca contou a ninguém… — Mais um meio sorriso. —
Fez parecer que foi obra de Karin, mas, no fim das contas, não foi capaz de
abandonar o filho da mulher que ele amava.
Pensei no quanto meu tio havia sofrido. A vida tinha sido muito
injusta com ele, mas, em vez de retribuir, Gustaf tinha feito o correto,
mesmo à custa de si mesmo.
— Entende agora por que eu não consigo ter raiva dele? — Aren
perguntou. — Sei que é rabugento e tem uma maneira muito peculiar de
resolver as coisas, mas Gustaf tem um coração muito nobre.
Aquiesci.
— Entende também por que é tão difícil que nosso povo aceite o
que há entre você e Ture?
Mais uma anuência.
— Não podemos nem mesmo deixar que as pessoas saibam,
Katarina… É importante que… Que tudo que eu lhe contei fique apenas
aqui.
Baixei o rosto, concordando mais uma vez.
— Sabe, Katarina… — Seus dedos capturaram os meus em um
carinho gentil. — Eu quase cometi o mesmo erro… — confessou. —
Diferente de como foi com Gustaf, o destino não me permitiu errar.
— Você é sempre tão…
— Não sou! — interrompeu. — Sou impulsivo e inconsequente.
Descuidado demais… — Encheu os pulmões de ar. — Só não deixei a
Coroa porque ela foi tirada de mim, Katarina…
Aren atirou uma pedrinha sobre a superfície escura do riacho. Ela
bateu na água e quicou mais algumas vezes.
— Assassinada.
Ele ficou ali, parado, olhando para o nada enquanto meu coração
murchava. Não resisti, girei o corpo e o abracei apertado, puxando o rosto
dele para o meu ombro.
Aren tinha sido tão bom comigo em todos os momentos, oferecera
o apoio de que eu precisava no enterro do meu pai, cuidara de tudo sem
nunca questionar atitude alguma minha, nada do que eu fizesse seria
suficiente para retribuir.
A respiração dele ficando mais acelerada, mais descompassada. E
então eu senti a primeira lágrima escorrer pela gola da minha blusa. Aren
me apertou tão forte que eu não pude deixar de sentir a sua dor. De chorar
com ele.
Eu o julgara feliz e realizado na vida boa que levava, nunca tinha
realmente olhado para dentro do homem incrível que meu primo era.
— Sinto muito… — deixei escapar, os dedos acariciando seu
cabelo macio.
Não seria difícil amar Aren. Passar uma vida toda com ele…
Deixei que o ar invadisse meus pulmões devagar, inflando e
preenchendo, depois soltei. Não ia esquecer Ture, jamais, mas talvez aquele
fosse um preço que tínhamos que pagar. Um que todos pagavam.
A dor latejou no fundo do meu peito, como se algo ou alguém, bem
lá dentro, arranhasse meu coração por dentro.
Não será fácil também, Katarina…
— Acho que babei em você! — O riso bobo de Aren trouxe-me de
volta.
— Ah, tudo bem! — Sorri de volta. — Não é sempre que tenho
uma blusa babada por alguém da realeza! — brinquei e ele riu mais alto.
— Venha… — Levantou-se e estendeu a mão para mim. — Está
muito tarde… Vou levá-la para casa.
Segurei em sua mão e Aren me pegou em um abraço apertado.
Terno e carinhoso, muito gentil.
— Obrigado — sussurrou ao meu ouvido. — Por… me ouvir…
Dar a chance de…
Abracei-o novamente.
— Estou feliz por termos vindo até aqui, Aren… Eu…
Pegando-me de surpresa, ele liberou uma das mãos e segurou meu
queixo, elevando até o seu rosto.
Eu soube o que ia acontecer, quis. Permiti.
Aren aproximou os lábios dos meus bem devagar. O polegar
acariciando minha bochecha, seu perfume me invadindo, minha mão
espalmada em seu peito, sua boca a milímetros.
Antes que me beijasse, um barulho nos arbustos roubou nossa
atenção e então um esquilo saiu correndo, passando por nós e se perdendo
na floresta.
Meu primo ficou imóvel, concentrado em algo que eu não
conseguia ver, depois sorriu.
Não era um riso feliz ou animado, estava mais para compreensivo.
Beijou minha bochecha e passou o braço ao redor de mim.
— Acho melhor irmos para casa! — ponderou e eu concordei.
Capítulo Trinta e Um
Katarina
Chegamos ao jardim da mansão com os primeiros raios da manhã.
Apesar de toda a tristeza dos acontecimentos de que tomei ciência,
tinha que confessar que a conversa com Aren havia me deixado mais leve.
Ao menos agora eu entendia as razões, talvez até pudesse
concordar com elas algum dia.
Tinha conhecido uma parte importante da minha vida e da vida das
pessoas que eu amava; descoberto mais sobre o homem que estava
prometido a mim.
Eu ainda precisava de um tempo. Não podia esquecer tudo que
vivera por dezoito anos e simplesmente encontrar outra Katarina no fundo,
escondida, mas não ia lutar contra o que nem conhecia. Ia me permitir
entender antes de tomar uma decisão.
Aren caminhou ao meu lado até a sala e depois ganhei um beijo na
testa.
— Prometa que vai descansar o suficiente, Katarina. — Segurou
minhas mãos. — A transformação pode ser muito dolorosa e exigir muito
do seu corpo. Não quero que esteja fraca quando acontecer…
— Quando… Quando vai? Quero dizer, essa coisa toda… Quando
saberei que está chegando?
Aren sorriu.
— Quando você permitir que sua loba desperte! Não há momento
certo, acontece quando tem que acontecer.
Aquiesci sem entender muito.
Assim que entrei em meu quarto, dei uma olhada no espelho,
constatando que não havia maneira de ficar sem um banho.
Estava suja, descabelada e com olheiras tão grandes que me faziam
parecer um panda, além de alguns pequenos hematomas pelos braços e
pescoço.
Livrei-me das roupas sujas e as deixei no cesto do banheiro,
encarando minha figura.
Sangue forte! — Sorri vendo o quanto já havia me curado do
acidente. Nem dor sentia mais. Sangue de um inimigo… — Suspirei. Nunca
vou conseguir ver você assim.
Tonta! — Sorri mirando meus olhos no espelho. Você deveria
esquecê-lo! Não ficar pensando nele a cada segundo!
Liguei o chuveiro e deixei que a água morna enchesse o banheiro
de vapor, só depois entrei.
Lavei os cabelos com cuidado, tirando o que restava de sangue
seco, e fiz uma boa faxina no corpo, incluindo as unhas cheias de terra.
Saí do chuveiro cantando minha versão de No One, da Alicia Keys,
da qual, obviamente, eu não lembrava toda a letra e incluía uns gemidos no
meio.
Estava dançando desajeitada, com a toalha enrolada na cabeça,
usando apenas lingerie. Assim que passei pela porta, gelei, travando no
lugar no mesmo instante.
Abri a boca, mas nenhuma palavra saiu.
Ture estava sentado na cama, recostado sobre a cabeceira, as
pernas esticadas. A cama sumia debaixo dele, dado seu tamanho. Calça
larga, daquelas de fazer exercício, e uma camiseta regata deixava as
tatuagens à mostra.
— Achei que ensinassem inglês naquele internato… — soltou
casualmente, girando uma chave nos dedos.
Estreitei os olhos irritada, mas estava feliz em ver o velho Ture de
volta.
— Não sei por que está criticando… — debochei usando o melhor
sotaque britânico que eu conseguia. — Meu inglês é perfeito!
— Alicia Keys é americana, sabichona, não inglesa! — debochou.
Segurei o riso e limpei a garganta. Não ia deixar que ele ganhasse.
— Tempo livre? — brinquei. — Achei que fosse um homem muito
ocupado…
Os olhos dele queimavam em meu corpo e o meu parecia derreter,
mas mantive a encenação de quem não se importava.
— Eu soube que deu uma volta ontem… — soltou de repente,
enquanto eu escolhia algo no armário para vestir.
— Pois é… A noite estava bonita…
Enfiei-me no short de malha do pijama e virei-me para ele.
— Você deveria se vestir de uma vez… — reclamou, mas não
parecia realmente bravo. — Vai acabar pegando um resfriado.
— E você… — Deslizei a camiseta pelos braços. — Deveria estar
de repouso.
— Tecnicamente… — Ajeitou-se no colchão. — Estou deitado em
uma cama. — Deu de ombros.
Não resisti e acabei rindo.
— Vamos… Diga logo o que quer… — Mostrei as palmas em
rendição. — Estou acabada, preciso dormir.
— Está se negando a dividir a cama comigo? — Cravou os olhos
nos meus. — Já fizemos isso muitas vezes… Quando éramos crianças.
Encarei o homem que eu amava ali, ao alcance das minhas mãos, e
pensei no quanto era fácil esquecer todo o resto e só deixar que acontecesse.
Estar com Ture era tão bom e tão natural que beirava a perfeição, mas eu
não podia ignorar tudo que ouvira.
— Não somos mais… — soltei mais triste do que gostaria.
Ture estendeu a mão.
— Eu queria que fôssemos… — confessou.
— Eu também… — deixei sair entredentes.
— Acho que você ainda cabe aqui… — Bateu no colchão de
flores, bem no espaço entre suas pernas.
Meu coração disparou como se eu tivesse corrido a meia maratona
de Londres em um pé só.
Os olhos dele estavam em mim de um jeito que não pude resistir.
Caminhei devagar, sentia como se fosse acordar a qualquer momento de um
sonho bom que não seria vivido jamais.
Acomodei-me ali, no espaço que ele deixara para mim, e seus
braços fortes me apertaram contra o seu peito.
— Achei que não quisesse que fôssemos pegos juntos…
— Não quando estou com a chave reserva bem aqui! — Sorriu de
canto, mostrando o chaveiro que carregava. — Ninguém vai entrar
Katarina… Nem ninguém precisa saber… Eu só… — Suspirou. — Só
quero ficar um tempo com você, ok? Juro que…
Recostei sobre seu peito, encaixando meu corpo no dele.
Ture não disse nada por algum tempo, mas tudo parecia
exatamente onde deveria estar. Eu podia jurar que meu coração e o dele
batiam sincronizados, como se fossem realmente um.
Seus dedos acariciaram meus cabelos, suavemente, fazendo-me
fechar os olhos.
— Está com sono? — sussurrou em meu ouvido, mas não esperou
por uma resposta. — Você pode dormir se quiser.
Não havia possiblidade alguma de que eu conseguisse dormir com
ele ali, junto de mim. Neguei com a cabeça.
Ture suspirou profundamente no meu ouvido, arrepiando todo o
lado direito do meu corpo.
— Posso te pedir uma coisa? — arrisquei.
— Depois de destruir o meu carro? — debochou e eu acabei rindo,
mas acertei um tapa em seu ombro, já sem a tipoia.
— Bobo! Eu disse que vou pagar! — reclamei.
— O que quer, liten? Vamos… Estou condescendente hoje!
— Me beija!
A sobrancelha grossa dele se arqueou.
— Katarina eu… — Tentou se mexer, mas eu o contive.
— Só me beija… — expliquei. — Não quero nada além disso,
nenhum tipo de promessa, Ture… Eu só… Depois de ontem, eu… —
Suspirei. — Só quero saber como é te beijar por vontade própria, sabe?
Todas as vezes que você me beijou era porque estava com raiva ou porque
queria me provar que eu estava errada em alguma coisa, desta quero que me
beije, e só isso.
Ture sorriu com o canto da boca. Seus olhos absurdamente lindos
focalizando os meus, as mãos segurando os meus joelhos sobre sua perna.
— Sabe que será difícil deixar para lá depois, não sabe? Se Aren…
Aquiesci.
— Quero mesmo assim… Sentir como é…
Senti uma mão na lateral do meu rosto, descendo suavemente. Ture
afastou meu cabelo e o colocou atrás da orelha, segurando meu queixo com
a ponta dos dedos.
— Só sentir como é? — repetiu.
Anuí.
Sua boca se aproximou da minha, seus lábios roçaram nos meus
bem devagar. Uma das mãos escorregou até as minhas costas e me
aproximou mais, colando meu corpo ao dele.
Eu podia sentir ondas de eletricidade entre nós. Sua língua passeou
por dentro da minha boca enquanto seus dentes mordiscavam meu lábio,
desesperadamente lento. Tentei aumentar o ritmo, queria mais. Não
conseguia ser torturada daquele jeito, mas Ture não permitiu, sua intenção
era me torturar, parecia se divertir com o meu desejo.
Ele continuou beijando meu rosto, descendo a língua até meu
maxilar e mordendo a minha pele.
— Hum… — gemi sem conseguir evitar.
— Gemidos não estavam no acordo, princesa… — sussurrou
contra o meu ouvido.
Eu sentia como se meu corpo tivesse vontade própria e eu não
estivesse mais no comando. E como se Ture tocasse a minha alma.
Sua língua tateou a pele da minha orelha devagar e então ele
apertou os dentes em volta do lóbulo. Gemi mais forte dessa vez e Ture
agarrou meu quadril, puxando ao encontro do seu. Seu corpo firme,
pulsando contra mim.
Foi então que eu tive certeza de que, por mais que ele estivesse em
silêncio, sentia o mesmo.
Virei o corpo e passei uma perna para cada lado da sua cintura,
encaixando sobre o quadril dele. Ture me segurou no lugar, forçando sua
pelve contra mim. Eu podia sentir o calor da pele dele pelos tecidos finos
que nos separavam.
Seus olhos se fecharam por um segundo e, quando se abriram, não
eram mais os de Ture. Havia algo de feral, animalesco, lupino, perdido ali
naquele verde-esmeralda. Achei que sentiria medo, mas, no instante
seguinte, era como se eu o conhecesse daquele jeito também.
— Katarina… Desse jeito, eu não…
Forcei seu corpo contra a cama, mãos espalmadas em seu peito. Eu
não queria mais parar, não conseguia. Algo dentro de mim ansiava por ele,
esperava por aquele momento como esperava pela luz do dia.
Sua respiração foi ficando mais forte. Eu queria que Ture perdesse
a calma, que se entregasse. Sua mão desceu até a minha coxa e subiu entre
minhas pernas. Eu podia sentir o calor do toque dele onde meu corpo estava
mais quente, queria que ele me tocasse.
— Ahhh — gemi novamente, em seu ouvido dessa vez.
Ture deixou o dedo escorregar pela beirada da calcinha, por dentro,
perto da minha pele mais sensível. Segurei seu rosto com a mão e o beijei
mais forte, enfiando a língua em sua boca e deixando que ele a sugasse com
mais força. Eu podia sentir seu corpo latejando contra o meu, uma fera
insana tomando conta de mim. E então meu corpo foi girado, minhas costas
bateram contra o colchão ainda quente.
— Sentiu? — perguntou de costas, coçando a nuca raspada. —
Agora já sabe como seria se…
Fiquei em silêncio, sentia meu corpo todo tremer e suar, era como
se eu não estivesse no controle.
Ture virou-se para mim depois de alguns segundos.
— Entende por que isso não pode acontecer? — perguntou. — Não
dá para ser só um beijo, Katarina! Só sentir… Eu e você, nós…
— Somos almas irmãs… — completei.
O homem em minha frente pareceu atordoado, como se não
contasse com aquela resposta.
— Então Aren…
— Foi sincero comigo.
Ture engoliu em seco.
— Devo supor que você queria beijar para fazer um comparativo?
— soltou sarcástico, enchendo o copo com água fresca da moringa e
virando na boca de uma vez.
— Talvez! — Dei de ombros, mas quando ele me olhou a mentira
que eu havia contado escorreu por entre meus dedos.
Ture venceu o espaço entre nós e me tomou nos braços. Não era
mais sexual, mas a posse estava explícita na maneira como me segurou.
— Sei que não o beijou… — soltou de repente.
Segurei seu rosto com as mãos, mirando seus olhos. Olhos que
eram dele novamente.
— Eu não consegui permitir… — confessou.
— O esquilo… — Sorri.
Ture deu de ombros e acabou rindo também.
Afundei o rosto em seu pescoço, sentindo seu perfume.
— Sinto muito por tudo isso… Se eu pudesse escolher…
— Ia decidir por outra pessoa? Uma com quem pudesse viver esse
amor? — perguntei sem ter certeza de que queria a resposta.
— Nunca.
Os dedos quentes acariciaram meu rosto, descendo pela linha da
mandíbula.
— Não há possibilidade de que eu queira outra pessoa, Katarina,
nem mesmo… Nem mesmo se minha vida depen…
— Shhhh… — Tapei sua boca com os dedos e ele os beijou. —
Posso pedir outra coisa?
Ture coçou a cabeça.
— Pelo amor da deusa, garota, você não vai sossegar enquanto não
me destruir? — brincou, estava sorrindo enquanto xingava.
— Só fica comigo… — pedi. — Nem precisa ser na mesma
cama… — ofereci.
— Aí não teria graça! — devolveu e foi minha vez de sorrir.
— Acho que a cama é grande o suficiente!
Aninhei-me no peito dele, sentindo seu coração bater, e deixei que
os pensamentos se perdessem no cansaço que eu sentia.
Não, não ia ser fácil esquecer! Ignorar o que eu sentia por ele.
Talvez um dia conseguíssemos lidar com tudo aquilo, mas até que
acontecesse… Provavelmente muitas feridas se formariam.
Decidi que ao menos naquele dia não. Naquele eu só queria Ture
comigo, sem pensar que havia um mundo lá fora bem mais cruel do que eu
imaginava.
Capítulo Trinta e Dois
Katarina
Algumas semanas se passaram e as coisas aos poucos foram se
ajeitando.
Gustaf e eu fizemos as pazes e acabei descobrindo mais razões
para amá-lo do que para odiá-lo.
Os dias ficavam cada vez mais curtos e, nas tardes em que o clima
nos permitia, Aren me chamava para caminhar. Seguíamos pelos arredores
da floresta, pouco a pouco fomos nos aproximando, e nossa amizade, se
fortalecendo.
Não posso dizer que deixei de pensar em Ture, ou que o que eu
sentia por ele diminuíra de qualquer maneira, mas o problema com os
rebeldes, ou a desculpa do problema, o manteve longe de mim.
Acordei sem saber bem que horas eram. Tinha voltado para casa
depois de mais um treino exaustivo de arco e flecha e, pela pouca luz que o
dia nos dava, meu relógio biológico ainda tentava se ajustar. Afundei a
cabeça no travesseiro, absorvendo o cheirinho de lavanda e sentindo a
maciez do enxoval. Tinha dormido tão bem que estava com preguiça de me
levantar.
Estendi a mão e peguei meu telefone, para conferir o horário. Já
passava das duas da tarde e eu não havia comido muito na noite anterior,
meu estômago reclamou.
Estiquei os braços para cima, me espreguiçando, e decidi procurar
algo para comer.
Como a casa estava em silêncio, imaginei que ficara sozinha por
alguma razão e desci usando meu pijama curto, os cabelos meio presos num
coque mal feito com um elástico que encontrei. A cada novo dia, meu corpo
sentia menos o clima frio. Era como se minha pele fosse feita de brasa.
Saltei os degraus cantarolando um pouco enquanto me dirigia para
a cozinha. Abri a geladeira e fiquei ali, abaixada procurando por algo que
não precisasse de cozimento, enquanto cantarolava o refrão de Wide Awake,
da Katy Perry.
— Então é isso… — uma voz masculina grave e profunda cortou o
silêncio. — Todos os homens que eu conheço estão caídos por essa
bundinha sem graça?
Fechei no impulso, raiva e susto se misturando dentro de mim.
— Desculpe… — Ergui uma sobrancelha encarando o filho da
puta em minha frente.
Ele parecia ter a idade de Ture. Talvez um pouco mais velho. Era
alto e elegante como Aren, embora um pouco mais forte. Tinha uma
expressão carrancuda e curiosa. Os cabelos cuidadosamente arrepiados e
desalinhados, a barba aparada com maestria.
Seus olhos eram de um verde tão escuro que quase pareciam cinza.
Usava um terno claro bem ajustado.
Sua boca se curvou em um meio sorriso desafiador assim que
percebeu minha curiosidade sobre ele.
— Eu conheço você? — disparei na defensiva.
A mão grande foi estendida para mim.
— Sou Magnus Louis Hanssen II — soltou em sueco, mas havia
um sotaque ali que não me era estranho.
Hanssen! Mas que diabos ele…
— E você, provavelmente, é a Princesa Katarina Fairhair… —
interrompeu meus pensamentos.
— Thorsson! — reclamei. — Sou Katarina Thorsson…
— Por pouco tempo, pelo que sei! — devolveu com aquele mesmo
sorriso que fazia a raiva subir pelo meu rosto.
Abri a boca para mandá-lo à merda, como costumava fazer com o
outro Hanssen que tivera o desprazer de conhecer, quando a porta se abriu e
Ture passou por ela.
Eu queria ter ignorado a presença dele, mas meu coração estúpido
deu um salto no peito e acelerou como uma britadeira descontrolada.
Meus olhos se fixaram na figura caminhando preguiçosamente
para dentro da cozinha. Os cabelos tinham sido recém-cortados,
evidenciando as laterais raspadas como um viking. Os olhos pareciam ainda
mais verdes e brilhantes.
Engoli a saliva que se formou em minha boca e Ture sorriu,
parando bem perto de nós.
— Não se preocupe com Magnus. — Deu um tapa nas costas do
homem. — Ele é como os cães alemães… Rosna muito mais do que morde!
— provocou.
O sorriso de Magnus era desafiador e sarcástico.
— É bom que pense assim, princesinha… — Levantou uma
sobrancelha para Ture e depois voltou a atenção para mim novamente. —
Como eu dizia antes da interrupção do renegado aqui…, sou Magnus, irmão
do Ian, seu colega na Humboldt.
O bom e velho senso de humor idiota dos Hanssens! Só podia
mesmo ser irmão.
Magnus e Ture se abraçaram com tapinhas nas costas e eu fiquei
assimilando a novidade de que alguém chato e ranzinza como Ture
realmente tinha amigos. Próximos, ao que parecia!
Poucos segundos depois, um Ian despreocupado passou pela porta,
pegou uma das maçãs no cesto e limpou com a manga do casaco da
universidade, antes de morder.
— Finalmente vai parar de fugir de mim? — perguntou com um
tom irônico implícito ali. — Agora que sabe quem eu…
— Não sei… — Dei de ombros. — Ainda não gosto de você e não
somos amigos!
Magnus riu.
— Gosto dela! — Apontou o indicador para Ture fazendo graça.
— É espirituosa… — Ture concordou.
— Ei! — reclamei.
Ture ignorou meu protesto e pegou outra maçã, entregando a mim.
Levei à boca para a primeira dentada, ainda sem entender que diabos os
Hanssens faziam na casa de Aren. Minha casa…
— Achei que você ia morrer, sua maluca! — meu colega de
faculdade continuou. — Se ao menos o grandão tivesse deixado claro que a
estava protegendo…
Franzi o cenho, mas foi Ture quem respondeu.
— E desde quando tenho que me reportar a você, pirralho?
— Eu estava preocupado com ela! Desde tudo que aconteceu com
Hi… — travou no meio, diante dos olhos acusadores de Ture.
Magnus permaneceu encostado no balcão, os braços
preguiçosamente cruzados sobre o peito.
— Você bem que podia ter me dado uma carona! — o garoto
continuou reclamando, com Ture dessa vez. Ganhou um levantar de
sobrancelhas sem nenhum humor. — Sabia que eu quase fui pego por
aquele Mutta?

— Mutta? — Franzi o cenho.


— O desgraçado no bar, lá em Berlim — Ture explicou. — O que
tentou… — Parou a frase no meio. — Era um muttaneet.[5]
Eu entendia menos a cada nova informação.
— Um transformado — Magnus continuou. — Humanos comuns,
transformados em algo entre nós e eles.
Dei uma mordida na minha maçã.
— Então todos aqui somos… — Girei os dedos no meio do círculo
que formávamos.
— Lobos? — Magnus completou minha frase. — Sim, princesa,
todos so…
O barulho de um vidro estilhaçando fez com que todos, exceto eu,
desaparecessem mais rápido do que consegui engolir a fruta mastigada em
minha boca. Corri atrás.
Eles subiram as escadas e entraram no último quarto do corredor
oposto ao meu. Aren estava sentado sobre a cama, ainda de pijama, e havia
uma linha vermelha, fina e brilhante marcada em seu ombro.
Sangue! — levei alguns segundos para constatar.
A janela fora estilhaçada e havia uma flecha presa à parede com
um bilhete. Ture o pegou e leu. Passando a todos. Eu não consegui ler, mas,
a julgar pelos olhos dos outros, não era de felicitações.
Por fim, Magnus me entregou o bilhete.
Eram símbolos confusos para mim, os mesmos que eu tinha visto
no telefone de Ture. Fiquei encarando o bilhete enquanto Aren limpava o
ferimento com uma toalha.
— Deixa, que eu leio, vai! — Ian pegou o papel das minhas mãos
com pouca vontade. — Vida longa ao rei e sua rainha vadia! Poder ao povo!
— Deu de ombros, deixando sobre a cômoda. — Pela parte do vadia…
Acho que eles não conhecem você! — debochou, mas ninguém riu.
Senti o corpo tenso. Era uma ameaça! Direta e crua, a Aren e a
mim. O príncipe caminhou mais para perto e segurou minhas mãos.
— Não quero que se preocupe, Katarina. — Acariciou minhas
mãos com os polegares. — Vamos pegar esse imbecil, juro que vamos! E
vou fazê-lo se arrepender de ter ofendido você!
— Não podemos continuar aqui… — Ture constatou. — Eu o
alertei… — dirigiu-se a Aren. — Avisei que a casa estava cercada de
rebeldes. Que os vi na floresta e depois… Depois da volta de Katarina as
coisas só estão piorando… Eles estão nos cercando, irmão… Precisamos…
— E acha que fugir de cabana em cabana por todo o nosso
território é a solução adequada? Como pensa que um rei vai manter sua
honra fugindo de perseguidores?
— Morrendo, meu senhor, o senhor não prova nada… E
Katarina…
Aren abriu a boca para rebater, mas a porta se abriu e Gustaf
passou por ela, correndo direto para Aren, os olhos fixos no ferimento em
seu ombro.
— Eu sabia! — esbravejou. — Sabia que não havia terminado!
Tinha certeza de que esses selvagens não iriam parar! Não agora que
estamos perto de garantir a linhagem!
Depois de ler o bilhete, ele o amassou cheio de raiva, a mão tão
cerrada que os nós dos dedos ficaram brancos.
— Não vou permitir! — soltou entredentes. — A história não vai
se repetir!
— Se acalme, meu tio! — Aren pediu. — Foi apenas de raspão, eu
não era um alvo, eles queriam apenas assustar.
— E conseguiram! — Ian se intrometeu e ganhou um olhar de
repreensão do irmão.
— Preciso levar você e Katarina para um lugar seguro… — Gustaf
continuou. — Não posso permitir que corram perigo… Talvez possamos…
— Bjorn… — Ture soltou.
Era a segunda vez que eu ouvia o nome daquele homem, mas ainda
não tinha ideia de quem se tratava.
— Não vamos envolver o urso nisso! — Gustaf disparou. — Antes
precisamos saber se os berserkers[6] não estão metidos com a revolução. O
rei ganharia muito dominando nosso povo.
Pelo olhar de Ture, nada além de raiva e ultraje passou.
— Bjorn é um amigo de confiança… — Aren soltou. — Ele jamais
faria isso.
— Também aposto na inocência do urso. Bjorn jamais… — o
alemão parou a frase no meio, batendo o indicador sobre os lábios. — Sei
que não estou em meu direito de opinar, mas talvez… minha casa seja uma
opção melhor que as cabanas.
Capítulo Trinta e Três
Ture
Ponderei por alguns segundos a proposta de Magnus.
Não era de todo ruim deixar a Suécia, eu sabia melhor que todos o
quanto os desgraçados da rebelião gostavam daquele chão, ao menos… Ao
menos a cúpula mais fechada não nos seguiria se saíssemos do nosso
território.
— Os atentados à família real aconteceram todos nos arredores de
Estocolmo… — Magnus continuou. — Berlim… Meu pai… — enrolou-se
nas palavras e eu sabia bem a razão — é um desgraçado filho da puta, mas
tem mantido as coisas controladas por lá.
— Parece uma ideia interessante! — Gustaf concordou. —
Poderíamos tratar disso como uma visita oficial. Não seria incomum que o
príncipe viajasse para a casa de um aliado…
— Desde que Ture nos acompanhe… — Aren interrompeu e
ganhou um levantar de sobrancelhas do tio.
— O ministro tem seus próprios…
— É minha decisão final… — Aren insistiu. — Ao menos, se algo
acontecer comigo, Katarina…
— Nada irá acontecer… — interpus, encerrando o assunto.
— Estamos resolvidos então… — Gustaf continuou. — Tenho
certeza de que meu amigo ficaria feliz em hospedá-los com ele.
— Não penso em levá-los para o meu pai… — foi a vez de
Magnus desafiar. — Não confio nele. Vamos apenas fingir e seguir com o
plano bem longe do ministro.
Gustaf pigarreou e tossiu, mas não discordou. Seus olhos azuis
fuzilavam a mim e Magnus. Katarina parecia especialmente interessada em
tudo aquilo.
Aren caminhou até Katarina e segurou sua mão.
— O que acha, minha querida? Concorda?
Engoli a raiva que começava a borbulhar dentro de mim. Não
podia demonstrar o que sentia, não depois de todo o esforço e sofrimento
para me manter longe dela.
Quando os olhos de Katarina se desviaram do noivo direto para os
meus, ouvi seu pedido silencioso de ajuda. Estava perdida, minha garota, a
mulher que eu amava, minha companheira de alma, pedindo socorro a mim,
e eu sendo obrigado a negar.
Pigarreei e caminhei até a janela, acendendo um cigarro. De onde
estava, podia vê-la sem que estivesse no radar de todos.
Eu sei lá se concordo! — a garota pensou. Nem sei o que está
acontecendo! Sinto-me como uma idiota sendo levada de lugar em lugar.
Não resisti.
— Deveria dividir a história com a princesa, meu senhor, antes de
esperar sua anuência.
O sorriso que dançou no rosto dela valeu todo o risco que corri me
metendo onde não me cabia.
— Tem razão… — Aren concordou. — Desde a morte de Hagnar.
— Os olhos dele fugiram dos meus, sabia bem o quanto eu odiava tudo
aquilo. A maldita história e vê-lo com Katarina. — Existem rumores de que
rebeldes ainda se planejem para derrubar nossa família.
Katarina franziu o cenho.
— Mas por quê? — ela perguntou sem entender. — Você… Você
me parece um rei tão bom! Por que alguém iria querer depor você?
— Não é uma revolta contra mim, Katarina — Aren continuou. —
É sobre o modo como vivemos… Os rebeldes não concordam que fiquemos
à sombra, que não tenhamos tomado o reino da Suécia de volta. Eles acham
que somos uma raça dominante e não aceitam conviver em acordo.
— Tipo guerra… Guerra? — Afilou os olhos, o coração mais
acelerado.
Segurei a vontade de abraçá-la. De dizer que nunca iria permitir
que algo acontecesse com ela, que sempre estaria perto o suficiente para
salvá-la. Calei meus sentimentos e a fera dentro de mim não gostou nem um
pouco.
Aren aquiesceu e então continuou.
— Nos primórdios, quando o povo Viking dominava esta parte do
mundo, nós éramos uma ameaça. Temidos, reverenciados, cultuados como
deuses… Os rebeldes…
— Querem esse tempo de volta! — a garota continuou e ganhou a
anuência de Aren. — Isso é horrível! — reclamou. Eu me mexi, mudando o
corpo. Estava desconfortável, sabia bem o que todos pensavam e nem podia
dizer que estavam errados. Era minha família, o sangue que eu carregava, o
culpado por tudo aquilo.
Puxei um trago longo e soltei a fumaça para cima.
— Bem… — Magnus continuou. — Como você deve imaginar, os
rebeldes usam humanos transformados como soldados rasos. Eles não são
uma ameaça para nós, propriamente dita, uma vez que somos mais fortes do
que eles e muito mais controlados, mas representam um problema para
nosso anonimato. Não foi fácil convencer os humanos de que poderíamos
conviver em ordem sem que uma guerra contra nós fosse declarada. —
Suspirou. — Algumas guerras na história, mascaradas como conflitos
políticos, na verdade eram guerras contra nós… Nosso povo.
Mesmo sem encará-la, eu soube que ela me olhava. Sua dor pela
minha história apertava meu peito, pesava sobre meus ombros.
Quanto mais eu pensava, mais tinha certeza de que Katarina
realmente merecia um futuro melhor do que eu podia dar.
— Eles são espertos! — Magnus ganhou a atenção de Katarina.
— Mais do que deveriam… — Gustaf concordou. — Instalam-se
dentro de nossos círculos. — Os olhos cravados em Magnus. — E nos
apunhalam pelas costas!
Eu não podia discordar, sabia bem que tínhamos um traidor entre
nós. Tinha inclusive suspeitas em relação ao tio do príncipe e ao pai de
Magnus, mas, enquanto minhas suspeitas fossem apenas isso, eu as
guardaria para mim.
Dei um último trago e joguei a ponta pela janela.
— Seu pai… — Caminhei até perto de Katarina. — Estava
trabalhando em um soro capaz de reverter à situação dos muttaneet… Ele,
como eu… — voltei os olhos para Gustaf —, acreditava que poderia salvá-
los.
— Discordo! — Magnus se interpôs. — São uma aberração… Não
que o problema seja meu… — Deu de ombros.
— Então Katarina… — Aren insistiu. — Você será a rainha deste
povo, não é justo que seja arrastada contra a sua vontade. Você sempre terá
direito de voto em sua corte.
O sorriso que ela ofereceu ao príncipe me fez cerrar as mãos em
punho novamente.
— Se todos acham que é o melhor caminho…, eu concordo.
— Ótimo! — Magnus interrompeu impaciente. — Saímos em uma
hora!
Capítulo Trinta e Quatro
Katarina
Descemos em uma pista pequena e entramos em um furgão preto
off-road. Eu não reconhecia o lugar, não se parecia com Berlim, ao menos
não a parte da cidade em que ficava a Humboldt.
Algum tempo depois, o carro passou por grandes portões duplos de
ferro fundido.
— Que lugar é este? — perguntei para Ian no banco traseiro ao
meu lado.
— A casa do meu irmão… — explicou. — Já faz um tempo que
Magnus não mora com o meu pai.
Paramos em frente ao jardim da entrada, de onde dava para ver a
grande piscina e um pouco do interior moderno, graças às grandes aberturas
de vidro. A fumaça que saía da água me dizia que era uma piscina aquecida.
— Espero que todos vocês sintam-se à vontade — Magnus
começou. — É sempre um prazer receber meus amigos!
— Os quartos já estão prontos, Sr. Hanssen — uma mulher de
meia-idade e bem baixinha falou para Magnus. — Quer que eu os
acompanhe?
— Não será necessário, Dora, eu mesmo posso fazê-lo. — Sorriu
de canto. — Você preparou o jantar conforme eu pedi?
— Certamente, senhor, servirei assim que os convidados deixarem
as malas nos quartos.
Magnus segurou suas mãos enrugadas e pequenas entre as dele,
carinhosamente.
— Basta o que já fez! Eu mesmo cuido de servi-los. Vá para sua
casa e descanse!
Ergui a sobrancelha sem conseguir impedir o deslize. Estava
abismada que o filho da puta arrogante que eu havia conhecido soubesse ser
gentil com alguém!
Tomei um banho rápido e desci as escadas usando jeans e camiseta
preta. Ainda não tivera a chance de escolher minhas próprias roupas, estava
com as que Ture havia comprado. Os cabelos presos num rabo de cavalo
alto.
Magnus parecia ler algo muito interessante em seu tablet, então
achei que passaria ilesa por ele.
— Seu senso de moda me deprime, pequena abelha! — soltou
assim, de repente.
Franzi o cenho e apontei meu peito.
— Falou comigo?
— E seus modos também! — continuou.
Quase grunhi como um cão raivoso. Ou um lobo!
— Achei que apenas minha bunda o deprimia! — provoquei.
O alemão deixou o tablet sobre os joelhos e riu.
— No dia em que a bunda de uma mulher, por pior que esta seja!
— frisou —, deprimir Magnus Hanssen, enterrem-no! Ele já estará morto!
— brincou como se fosse um anúncio oficial.
Abri a boca e levantei o indicador em riste, pronta para retrucar,
quando um braço forte passou ao redor dos meus ombros.
— Faça como eu, Katarina… — Aren beijou minha fronte. — E
escolha suas batalhas! — Ergueu uma sobrancelha provocante para o
amigo. — Magnus é um idiota!
Sorri com desdém para Magnus e beijei a bochecha de Aren.
— Sim, meu príncipe.
Eu estava no meio do meu filé com batatas coradas quando a
garota irrompeu porta adentro choramingando como se algo terrível tivesse
acontecido.
— Magnus, você precisa resolver isso já! — protestou. — Eu pedi
da cor dos meus olhos! Veja. — Balançou um colar absolutamente lindo nas
mãos. —Meus olhos não são desta cor!
Mirei a joia nas mãos dela, depois seu rosto. Eram iguais para
mim!
— Como vou ao baile agora? — continuou o protesto.
Soltei o garfo e mantive a atenção na figura em minha frente.
Vestido vermelho justo e bem-cortado, que abraçava suas curvas
delicadamente. Seus cabelos eram dourados e caíam em ondas ao redor dos
ombros. Os olhos eram verdes, não como os de Ture, um pouco mais
escuros e acinzentados. As feições, delicadamente realçadas pela
maquiagem.
Magnus se levantou e segurou os ombros da garota.
— Prometo que resolverei, minha querida… Embora eu ache
difícil que alguém consiga reproduzir seus lindos olhos em algo sem vida
como uma joia!
Tentei meu melhor para segurar a careta que tive vontade de fazer.
A garota sorriu. Um sorriso iluminado que o fez sorrir também.
— Você é o melhor! — Beijou a bochecha do nosso anfitrião.
Então… O Hanssen pior tinha uma namorada… E era gentil com
ela… Caramba!
— Sente-se e jante conosco, Greta… — Aren convidou,
levantando-se para puxar a cadeira para a garota.
Um sorriso que eu não via muito curvou os lábios bonitos de Ture.
— Você está linda, Greta! — comentou todo animado.
Greta… Então o nome dela era esse! Bem esnobe, igualzinho a
ela!
A garota beijou o rosto de Aren suavemente e, quando chegou até
Ture, deu-lhe um abraço apertado.
Eu estava irritada e sem jeito.
— Você parece maior a cada dia, careca! — brincou esfregando a
mão na lateral do cabelo de Ture. — Está mesmo parecendo o deus do
trovão!
— Esse é Thor! — não pude evitar. — Não Ture… Ture é…
Magnus riu e Ian curvou o corpo para falar ao meu ouvido.
— Não se preocupe com ela! É irritante e folgada, mas tem seu
lado bom!
Afilei os olhos.
— Duvido muito… — praguejei baixinho. — Estranho que seu
irmão não se incomode de ver a namorada dele se atirando sobre todos os
presentes…
Ian riu.
— Não! — soltou no meio da gargalhada — Greta não é namorada
de Magnus! É nossa irmã!
Antes que nossa conversa continuasse, Aren veio até mim de braço
dado com a garota. Soltou sua mão e estendeu para me levantar. Beijou
minha testa e deixou o braço ao redor de mim.
— Esta é Katarina, Greta…
Um sorriso alcançou os lábios bonitos da garota e ela estendeu a
mão em cumprimento, mas Aren continuou.
— Minha noiva.
Eu podia jurar que o sorriso de Greta tremeu, mesmo com ela se
esforçando para mantê-lo.
— É um prazer conhecê-la, princesa. Nem imagina como é bom
ver uma garota nesta casa que não deseja a cama de Magnus!
Era engraçado, mas pareceu sincero. Acabei segurando o riso.
— Pode ficar tranquila! — Movi as palmas. — Desse mal eu não
sofro!
Aren riu contra o topo da minha cabeça.
— Se eu fosse a noiva do príncipe… — um suspiro deixou seu
peito —, também dispensaria meu irmão! — Deu de ombros e se afastou
tão rápido que eu só percebi quando ela já estava do outro lado.
Tentei devolver um sorriso genuíno, mas meus olhos passaram
pelos de Ture e tudo que eu consegui foi suspirar, como Greta.
Nós nos acomodamos novamente ao redor da mesa e eu fiquei
observando Greta se debruçar sobre Ture por todo o jantar, mastigando a
carne e pensando em como seria cravar os dentes nela e cuspir fora um naco
de pele.
Eu precisava aprender a controlar o maldito lobo dentro de mim, se
havia a mínima chance de ter que conviver com Greta.
— Preciso ir — ela disse depois de algumas garfadas. — Tenho
que voltar para casa, papai vai ter um treco se souber que eu dirigi até aqui
apenas para reclamar das esmeraldas!
Magnus riu.
— O que seria uma excelente…
— Magnus! — a garota reclamou, mas havia um sorriso em seu
rosto.
— Você pode dormir aqui se quiser, Greta. Não gosto que dirija tão
tarde, sabe disso.
— Sua companhia é sempre agradável… — Aren completou.
Ture deu a última garfada no bife.
— Seu irmão tem razão… As noites andam perigosas
ultimamente…
— Sou uma criatura feroz! — Greta piscou. — Mas você pode vir
comigo se quiser, careca, aceito companhia! — brincou.
— Aren e eu decidimos caçar amanhã. Se você ficar, poderá ir
conosco! — Ture ofereceu e eu senti o sangue fervilhar em minhas veias.
Podia jurar que o idiota riu, mas escondeu com uma tosse.
Os olhos do projeto de Barbie se acenderam.
— É um caso a pensar!
— Ei! — Magnus protestou. — Eu a convidei para caçar comigo e
você recusou!
— Você é meu irmão! Nunca me deixa pegar os grandes! — Deu
de ombros. — Além disso, Aren prometeu me ensinar a usar um arco e, se
eu não ficar no pé dele, provavelmente vai declinar! — Ergueu a
sobrancelha perfeita.
Meu noivo riu.
— Temos alguns assuntos para tratar com Magnus, mas, se você
ficar, após o almoço eu a levo para atirar flechas e à noite podemos sair para
caçar, prometo!
De repente, senti como se não pertencesse àquele lugar. Eu nem era
um maldito lobo ainda. Tudo que eu queria era voltar no tempo, alguns
meses antes, quando tudo que eu tinha para me preocupar eram as notas da
faculdade e uma possível festa no campus para ir.
Mirei a grande abertura de vidro ao meu lado, de onde as luzes
dentro da piscina tremeluziam no escuro da noite, abafando as conversas
que não me incluíam, deixando um suspiro escapar.
— Cansada? — a voz de Ture tão perto me fez dar um pulo de
susto e ele riu.
— Quer dar uma volta? — ofereceu estendendo a mão.
Havia tanto ali, naquele simples pedido, que senti meus olhos se
encherem de lágrimas.
Aceitei a mão que ele me oferecia e saímos para o grande jardim
que circundava a casa de Magnus.
— Entende agora por que eu sempre fui contra a decisão do seu pai
de mantê-la longe do seu mundo?
Aquiesci triste.
— Sei que não é fácil de compreender, Katarina… Às vezes nem
para nós, que conhecemos tudo… Ninguém aqui espera que entenda sem
questionar, nem pensa que você é menos importante por não ser um lobo
ainda…
Senti a primeira lágrima escorrer e Ture parou. Suas mãos estavam
quentes quando ele segurou as minhas.
— Tudo que eu mais queria, Katarina, era ser capaz de proteger
você de tudo isso!
Esqueci de todos os protocolos, de qualquer razão que tivesse para
me manter longe dele e o puxei para mim, ficando na ponta dos pés para
aconchegar o rosto na curva do seu pescoço.
— Não sei se consigo…
— Você é forte… Mais do que eu…
— Não é verdade…
— Estou a um passo de enfiá-la no primeiro carro que eu achar e
sumir no mundo para nunca mais voltar… — confessou.
Acabei rindo, mesmo que ainda chorasse.
— Não, não está! — devolvi.
— Quer apostar? — provocou com aqueles olhos afilados que eu
amava tanto.
Encarei-o por mais tempo do que deveria, até que seu rosto ficasse
ainda mais cravado em minha memória, que cada traço, por menor que
fosse, estivesse desenhado em mim. Depois soltei o ar dos pulmões.
— Não podemos…
Ture meneou a cabeça de leve, concordando comigo.
— É um preço que não posso deixar que pague…
— Viu? Você não estava a um passo da loucura! — Bati com o
ombro no dele, na tentativa de melhorar o clima.
Quando tentei me afastar, Ture me puxou para si novamente. Mais
apertado, como se quisesse nos fundir.
— Espero que você tenha razão, liten… Que eu seja mesmo uma
fortaleza… É o que peço todos os dias à deusa.
Capítulo Trinta e Cinco
Katarina
Tentei dormir, mas fritei na cama muito mais tempo do que
deveria.
Do pouco de sono que consegui ter, pesadelos com flechas, lobos,
dentes e uivos tomaram a maior parte.
Ainda nem havia amanhecido completamente, quando desisti e saí
do quarto.
Desci as escadas da entrada e me sentei no último degrau. Tudo
estava escuro, exceto pelas luzes direcionadas à piscina. Ouvi o som de um
mergulho e vi a água se agitar lentamente de uma extremidade a outra.
Magnus saiu pelo lado oposto ao que mergulhou. Chacoalhou a
cabeça, espirrando a água do cabelo, e limpou o rosto com as mãos.
Caminhou até mim devagar.
Observei a figura se aproximando. Ele tinha os braços marcados
pelos mesmos símbolos que Aren e Ture, embora em menor quantidade,
mas o que mais chamava atenção era uma cruz pequena sobre o peito, do
lado direito. Não percebi que o encarava até que ele se manifestou.
— O que foi, pequena abelha, nunca viu um homem tão sexy
seminu? Quer me incluir no seu pequeno círculo de fãs?
Engoli a provocação em seco, não merecia.
— Então… — Sentou-se ao meu lado. — Quais são as novidades?
Quem está na frente no páreo?
Afilei os olhos.
— Por que você me odeia? — rebati.
O alemão soltou uma gargalhada baixa.
— Eu não odeio você, pequena abelha… — soltou girando a ponta
do dedão na água, produzindo um círculo. — Não tenho muito tempo livre
para odiar pessoas novas, minha vida já é bem movimentada só com os
ódios antigos!
Encolheu o pé de volta e cruzou os braços atrás da cabeça
relaxadamente. Seus olhos perdidos na escuridão além das luzes da piscina.
Encarei a cruz em seu peito e não resisti à provocação.
— Achei que vocês fossem devotados a Odin — critiquei.
— E somos.
Magnus respondia apenas ao que eu perguntava. Eu não conseguia
arrancar nada dele, mas estávamos só nós dois na casa, decidi insistir.
— Isso me parece uma cruz cristã — constatei.
— Porque é exatamente o que ela é.
Ele me irritava, mas me deixava curiosa. Eu podia lidar com a
raiva, mas a curiosidade me derrubava.
— Não entendo a relação… — soltei tentando não dar muita
importância.
Magnus suspirou como se o peso do mundo estivesse sobre seus
ombros.
— Porque se interessa pela minha vida, pequena abelha?
— Katarina! — reclamei. — Meu nome é Katarina, e não pequena
abelha.
— Eu sei o seu nome, princesinha… — respondeu virando os
olhos para mim.
— Então por que diabos não me chama por ele? — soltei
entredentes.
— Porque pequena abelha combina mais! — Esticou a mão para
pegar o maço de cigarro sobre a mesinha e acendeu um. — Uma abelhinha
voando em círculos por aí sem saber onde pousar… Você voa sem rumo e
cada dia que passa está mais longe do seu destino.
Soltei uma lufada de ar. Concordava com ele, mas não era algo
bom de ouvir.
— Estou tentando fazer a coisa certa… — defendi-me.
— Não! — Levantou o dedo em riste. — Está tentando fazer a
mais cômoda!
Abri a boca para retrucar, mas, assim que repassei tudo que havia
acontecido desde que meu pai morreu, desisti. Os olhos mirando a água
morna da piscina.
— Você é uma covarde, princesinha, e não pode negar isso! —
Magnus deu um trago longo e soltou a fumaça para cima. — Karin
enfrentou o mundo pelo que acreditava… Aren também… Até o imbecil do
seu tio lutou contra o destino pela mulher que amava… Vejo que você não
herdou o sangue nobre, apesar desse par de olhos azuis.
O peso que existia nas costas de Magnus, de repente, passou para
as minhas. Até respirar era difícil.
— Nenhum deles teve um final feliz… — soltei mais para me
convencer do que defender.
— E, como covarde que é, você usa o fracasso dos outros para
justificar a sua covardia.
— E o que quer que eu faça, hum? Que me jogue em cima do
Ture? Acha que eu não tentei? Estou tentando desde antes de saber que
tenho essa maldita posição! — confessei. — Ele não me quer… — Pisquei,
tentando afastar as lágrimas mesmo que uma delas já tivesse caído. — Eu
sinto como se estivesse magoando-o a cada vez que digo o que sinto.
Achei que Magnus fosse me dar uma solução. Eu queria que ele
me desse, mas, em vez disso, mudou o assunto.
— Sabe, pequena abelha… — Suspirou. — Eu não tive o que pode
se chamar de “infância feliz”. Não tive um pai que me amava como o seu,
nem uma família que me acolheu. Eu não tive amor, carinho, cuidados e,
principalmente, ninguém aparando as minhas merdas por aí, mas aqueles
dois caras que você está magoando são o que eu considero família.
Entende?
Era uma pergunta retórica, do tipo para a qual não se espera uma
resposta. Continuei de cabeça baixa, encarando os LEDs acesos no fundo da
piscina.
— O que me deixa triste, princesinha… É que você vai quebrar um
dos dois e eu vou ter um trabalhão para colar os cacos que irão sobrar…
Engoli o bolo que se formou na minha garganta me recusando a
chorar perto dele. Magnus estendeu a mão e segurou-me pelo queixo,
levando meus olhos até os seus.
— Não odeio você, garota… Sei o quanto pode ser difícil ter o
poder de decidir… É o que vai te tornar verdadeiramente uma princesa,
Katarina Fairhair… Tomar a decisão certa e assumir as consequências… é
muito mais sobre quem você é do que sobre ter uma coroa em sua cabeça!
Encarei-o por alguns segundos e então eu chorei. Pura e
simplesmente, como se nada mais fosse capaz de segurar as comportas que
eu vinha erguendo em volta de mim.
Magnus me puxou para si, um abraço gentil, confortador.
— Isso, Katarina, assume o que sente! — soltou, acariciando
minhas costas.
— Eu sou uma imbecil egoísta! — constatei.
O som da risada dele cortou o silêncio.
— Olha, pequena abelha, eu discordo de você! — Afastou-se um
pouco para me olhar. — Você é covarde… Imatura e…
— Ei! — reclamei, mas comecei a rir. — Você tem um jeito
estranho de consolar!
— E quem disse que estou consolando? — Curvou a boca em um
meio sorriso. — Estou aqui para dizer as verdades que aqueles dois filhotes
de poodle escondem de você! — Deu de ombros. — Não vejo ninguém
aqui que precise de afago na cabeça, Katarina… Você precisa aprender a se
tornar uma rainha!
Encarei-o por mais alguns segundos e depois sorri.
— Obrigada.
— Sempre um prazer fazer vossa alteza repensar suas verdades! —
Girou as mãos em uma reverência exagerada, só para fazer graça.
Abracei-o novamente e, quando levei a mão a suas costas, senti a
pele diferente, marcada por cicatrizes grossas. Magnus me afastou,
percebendo minha estranheza.
— Como eu te disse, minha infância não foi um conto de fadas,
Katarina… — Sorriu, mas dessa vez não havia humor nem sarcasmo.
Encarei seus olhos e pude ver uma das partes de Magnus se
mostrando através dos abismos verde-escuros dele.
Havia um sentimento ali que eu conhecia bem. Uma tristeza antiga,
aquela que vem junto com algo que não podemos mudar. Era um sofrido
contido, passado, mas não esquecido.
Depois de alguns segundos, ele virou as costas e eu pude ver as
marcas. Eram linhas, grossas e altas, partindo do centro para as laterais do
seu corpo, desencontradas. Desde os ombros, até a cintura. Tateei com a
ponta dos dedos.
— Gosta de cicatrizes? — jogou em tom de piada, mas o suspiro
que veio a seguir não tinha nada de engraçado. — Dizem que é sexy!
Levei a mão para tocar, mas parei antes que atingisse sua pele.
— Ah, não, não se preocupe! Não dói mais… Na verdade… eu não
sinto nada aí. Pode até me morder se quiser e nem tesão eu vou sentir! —
Deu de ombros.
Eu não queria encarar demais as marcas, mas não podia deixar de
me sentir curiosa com elas. Magnus percebeu meu embaraço e explicou.
— Meu pai, o senhor primeiro-ministro… — Mais um cigarro
aceso e fumaça soprada para cima. — Digamos que ele tem… problemas
em controlar o temperamento.
Eu queria abraçá-lo. Algo no jeito como seus olhos me encararam
o deixou tão vulnerável que me senti ainda mais triste, desta vez, por ele.
Assim que percebeu o deslize, sua máscara de controle voltou ao rosto,
impassível e meio debochado, como ele costumava ser.
— Seus irmãos…
— Não! Ian e Greta não! Eu não permiti!
Sua fúria repentina me fez ver que não era um assunto tão
esquecido assim. Magnus voltou os olhos para o jardim escuro novamente.
— A primeira vez que ele bateu na minha mãe, eu entrei na
frente… — continuou. — Eu tinha oito anos e ele me chicoteou no peito.
Meus olhos procuraram a marca e não encontraram. Magnus
segurou meu dedo e o correu sobre uma linha fina de um lado a outro do
seu tórax. E depois sobre o nariz. Havia uma elevação em um dos lados.
— Ganhei este soco porque caí de bicicleta…
Tateou meu dedo sobre seu lábio inferior e eu senti mais uma
diferença na pele, mais grossa e mais dura.
— Este tapa eu ganhei por derrubar Greta da cama.
Não percebi que estava chorando até que ele limpou minha
bochecha com as costas da mão.
— Ah, não chora, pequena abelha! Eu tenho problemas com
mulheres chorando! — brincou. — Se não se controlar, vou guardar a
melhor parte da saga para outro dia!
Sorri porque não queria deixá-lo triste, mas ainda sentia meus
olhos queimarem.
— Alguém sabe? — perguntei.
— Algumas pessoas…
— Ture e Aren — constatei e Magnus apenas assentiu.
Não resisti e o abracei. Magnus se soltou.
— Ei, pequena abelha, já está se jogando sobre mim? As garotas
costumam esperar até a parte triste…
Apesar da piada, eu sabia que ele não havia contado isso a
ninguém mais.
— Quando fiz dezesseis anos ganhei um carro. Um esportivo azul-
marinho. Pensei que as coisas finalmente entrariam nos eixos e decidi fazer
uma viagem. Eu estava num chalé com uma garota quando ele me ligou.
Disse que minha mãe havia morrido. Foi quando eu descobri a verdadeira
fúria de um lobo. Acabei com o carro, mas cheguei em casa mais rápido do
que ele pôde resolver a merda que havia feito.
Eu escutava atônita. Não conseguia tirar os olhos dele.
— Entrei em casa para encontrá-lo com o chicote nas mãos…
Minha mãe estava deitada sobre a cama. Havia sangue pelos lençóis, seus
olhos estavam abertos me encarando. Corri até ela desesperado, implorando
para que acordasse, que pudesse se levantar, e ele começou a golpear as
minhas costas. Disse que a culpa era minha, que eu não estava lá e que ele
havia se descontrolado. Disse que eu era forte, e ela, fraca, que por isso
quem deveria ter sido castigado no lugar dela era eu. Eu não me protegi.
Não me mexi. Eu não conseguia tirar os olhos dela. Ele me bateu até que eu
apaguei.
As lágrimas voltaram a cair e eu não conseguia segurá-las mais.
Pensei em como meu pai era carinhoso comigo e com Ture, e no quanto eu
o amava.
— Acordei numa cama de hospital, pequena abelha, sem sentir as
costas. Meu pai estava ao meu lado, como se nada tivesse acontecido.
Fingiu que minha casa fora atacada por rebeldes, e minha mãe, morta por
eles… Justificou meus ferimentos como se eu tivesse tentado protegê-la.
Não discordei. Foi o combinado para que ele me desse a tutela dos meus
irmãos.
— Eles não sabem… — Engoli em seco.
— Nem saberão!
Magnus suspirou profundamente.
— No dia em que enterrei minha mãe, eu senti que estava sozinho.
Segurei na mão de Greta e peguei Ian no colo. Eu não tinha ideia do que ia
fazer para impedir que eles sofressem o que eu havia sofrido. Quando saí do
cemitério, encontrei Ture e Aren encostados no meu carro. Foi quando eu
soube que daríamos um jeito e que eu não estava sozinho.
Ele segurou meu rosto entre as mãos.
— Entende por que não quero vê-los sofrer?
Assenti.
— Não seja covarde, pequena abelha. — Suspirou. — Eu fui…
Deveria tê-lo denunciado e não o fiz. Não cometa o mesmo erro. Lute pelo
que você deseja… Pelo que acha certo de verdade! Coroa alguma vale sua
felicidade. Agora, se me der licença… — Levantou-se e esticou o corpo,
espreguiçando como se nada daquela conversa fosse profundo. — Segredo
nosso! — advertiu apagando o cigarro e atirando a ponta longe.
Assenti.
— Ah! — chamou antes de se afastar demais. — A cruz… —
Apontou o próprio peito. — Minha mãe era cristã… e humana…
Engasguei e tossi sem querer e ele riu.
— Pois é, pequena abelha! Quem diria que eu, um cara tão sexy e
bonitão, era um mestiço!
Capítulo Trinta e Seis
Katarina
Depois da conversa com Magnus, voltei para o quarto e tomei um
banho. Gostava de pensar enquanto a água caía sobre mim.
Greta havia me emprestado um pijama curto de seda para que eu
pudesse tirar as roupas que usava, mas eu não tinha nada para vestir.
Pensei em procurar por ela e ver se conseguia mais alguma peça
emprestada, mas estava com sede e já havia bebido toda a garrafa de água
do meu quarto.
Desci os degraus devagar, evitando fazer barulho, já que as luzes
do andar de baixo tinham ficado acesas até bem tarde e eu não queria
incomodar.
Antes que atingisse o piso da sala, dei de frente com uma Greta
cheia de energia, suada com roupas justas de academia.
— Bom dia, princesa! — Sorriu. — O dia está ótimo para uma
caminhada matinal. Se quiser, posso te acompanhar…
Desci os olhos pela garota suada e com a pele vermelha, Greta
sorriu de novo.
— Ah, tudo bem… Eu gosto de me exercitar! — explicou.
Eu estava pronta para perguntar se ela sempre tão perfeita assim,
quando Ture passou pela porta. Usava uma calça de elástico e a camiseta
estava jogada sobre o ombro forte. Suado como Greta, vermelho também.
Senti aquela pontadinha de ciúmes, mas limpei a garganta e desviei
o olhar. Podia jurar que Ture rira ao passar por mim e meneou a cabeça em
cumprimento.
— Amanhã juro que pego você, seu arrogante de merda! — Greta
xingou rindo, atirando a toalha de mão que carregava nas costas dele.
Depois voltou-se para mim.
— Quer me esperar para o café? — perguntou. — Juro que tomo
banho e me troco em dez minutos! Aliás, venha comigo! — Segurou minha
mão antes que eu pudesse recusar. — Vamos escolher algo para você vestir.
Eu tenho muitas roupas que ainda nem usei. Sei que uma prin… — as
palavras de Greta morreram em sua boca assim que demos de frente com
Aren.
De repente, o vermelho em suas bochechas ficou mais pronunciado
e ela desviou os olhos. Afilei os meus sem entender.
— Princesa… — Aren sorriu para mim, estendendo os braços. —
Dormiu bem? Espero que toda essa correria não tenha levado seu sono
como fez com o meu! — Ganhei um beijo no topo da cabeça.
O desconforto de Greta ficava mais evidente a cada segundo que
ela ficava entre nós dois.
— Bem, eu… Vou adiantando as coisas, Katarina, quando…
Bem…
A garota saiu tão rápido que não havia maneira de não perceber o
inevitável; mesmo assim, ou meu primo não percebeu, ou fingiu muito bem.
— Tudo bem se conversarmos um pouco depois do café? —
perguntou.
Aquiesci e Aren continuou seu caminho para o andar de baixo.
Eu segui em frente, terminando os degraus que faltavam, e, antes
de chegar à porta de Greta, passei por uma entreaberta.
Ouvi o chuveiro ligado e senti o perfume dele. O coração acelerado
de um jeito tão forte que juro que apertei os dedos, no esforço de impedir a
mim mesma de entrar.
Quanto mais o tempo passava, mais difícil era passar
desapercebida por Ture.
Segui a passos largos e, quando bati à porta no final do corredor,
ouvi a voz da garota.
— Entra, Katarina! Deixei algumas coisas sobre a cama, pode
experimentar e escolher o que gosta.
Passei pela porta e a fechei atrás de mim. Ainda podia sentir Ture
debaixo do chuveiro, as mãos dele sobre o próprio corpo, a água morna.
Droga, Katarina! Droga! Que diabos você está fazendo?
Sentei-me na cama, correndo os dedos pelas roupas espalhadas
sobre o lençol. Nada se parecia comigo.
Eu estava tão perdida. Sentia como se fosse falhar com qualquer
coisa que fizesse. Nunca tinha feito o tipo covarde, que foge da briga e
desiste antes mesmo de tentar, mas, desde que tudo acontecera, era como se
eu não me reconhecesse mais.
Ainda me sentia como a garota sem amigos que saía mais cedo do
refeitório para ler escondida no solário do último andar da universidade. A
mesma que gostava de camisetas com desenhos engraçados e jeans largos
desgastados.
Como vou ser princesa de algo? De alguém? Como vou aprender
tanta coisa em tão pouco tempo?
Seja forte, Katarina! Tome a decisão correta! Decida pelo bem
maior! Você consegue…
Apertei forte os olhos, queria conter o que sentia, ser como eles
esperavam, mas no fundo… Bem lá no fundo, mesmo, do meu peito, eu só
queria minha vida de volta. Ser a Katarina que eu conhecia. Usar minhas
roupas sem graça, comer cheeseburguer e sorvete, não ter o peso de um
povo nos meus ombros.
— Não acho que esse seja o seu tom, mas se realmente gostou…
Só então percebi Greta no quarto.
Fiz o possível para limpar meus olhos sem que ela percebesse, mas
duvido que tenha tido sucesso. Mesmo assim, quando voltei o rosto para o
dela, Greta sorriu daquele jeito que fazia, como se nada mais no mundo
existisse.
Eu ainda tentava entender se ela era mesmo tão aérea ao mundo
como deixava transparecer, ou se aquilo tudo era um espetáculo encenado
por alguma razão, quando ela pegou o vestido que eu tocava sem nem
perceber e o levantou pelo cabide.
— Acho sério demais para uma garota tão jovem! — Deu de
ombros. — Mesmo que essa garota esteja para se tornar rainha do que quer
que seja!
Encarei o espelho, onde ela mostrava a roupa na frente do seu
próprio corpo.
— Vê? Eu sou mais alta e ele fica comprido e largo… Tem um quê
de responsabilidade que não acho… Não acho que se encaixe! Essa
responsabilidade toda vai acabar engolindo você, Katarina!
Eu já não sabia mais se ela realmente falava do vestido ou se tinha
entendido mais do que eu contara. Talvez Magnus estivesse errado e Greta
já soubesse de tudo que ele lutava para esconder.
Soltei um suspiro sem perceber e quando o fiz já era tarde.
Greta voltou para perto da cama, remexendo os pacotes e caixa,
tirando tudo dos saquinhos em que estavam e aumentando a bagunça.
— Este! — Segurou um vestido mais curto e de um verde alegre e
chamativo. — Este aqui vai ressaltar os seus lindos olhos! — Sorriu um
pouco mais. — Quer experimentar?
Eu ainda me sentia meio embargada, a voz querendo falhar antes
mesmo de sair. Neguei com a cabeça.
— Deve servir… — soltei sem muito humor.
— Será mesmo? — A mão delicada dela tocou meu antebraço. —
Às vezes a gente insiste em vestir trajes que não nos servem, Katarina…
Eles apertam… Sufocam… A gente nem consegue sorrir direito, nem
caminha com a mesma felicidade que deveria, sabe?
Os olhos verdes dela se fixaram nos meus e eu tive certeza de que
não era apenas de vestidos que falávamos.
Greta correu os dedos pelo decote de um vestido vermelho sexy e
elegante.
— Desculpe parecer meio boba… — Sorriu de novo, mas já não
era com tanto humor. Um suspiro completou sua pausa. — Eu imagino o
quanto as coisas estão difíceis para você…
Senti os olhos se encherem. Não queria chorar na frente dela, nem
éramos íntimas, mas naquele momento, no meio de todo aquele turbilhão
que eu vivia, Greta parecia o mais perto de uma amiga que eu poderia ter.
Enchi os pulmões de ar. Tudo que conseguia pensar era no quanto
eu tinha sorte e que não deveria estar ali, sentindo pena de mim mesma e
revirando sentimentos. Aren era um homem incrível e eu tinha a sorte de tê-
lo em minha vida, e Ture… — Engoli em seco. — Ture nunca foi realmente
meu. Não era uma opção.
— Sabe o que eu mais gosto de fazer na vida? — a voz da garota
chamou minha atenção para o mundo real novamente. — Jogar xadrez! —
Bateu na cama efusiva como sempre era. — Acredita nisso? — Arregalou
aquelas duas pedras verdes brilhantes que tinha nos olhos. — Você me
imagina jogando xadrez? Em uma competição nacional? Cercada de
senhores engravatados e de cachimbos?
Acabei rindo e era de verdade.
— Não!
Greta jogou o corpo para trás, apoiando as costas na cabeceira
estofada.
— Pois é… Acabei vestindo esta roupa aqui… — Apontou para si
mesma. — Às vezes quero tirá-la e nem posso… — Desviou o olhar.
— Sempre é tempo de mudar… — soltei mais como um apoio.
— Acredita mesmo nisso? — devolveu.
Sorri mais uma vez, soltando o ar dos pulmões, e neguei com a
cabeça.
— Quando eu estava na faculdade… Cursava ciências políticas e
era representante do grupo de xadrez…
O olhar dela se perdeu na janela, de onde se podia ver um céu
limpo, com belas e macias nuvens brancas. Eu tinha a sensação de que
Greta olhava para lá mas via outra coisa.
— Cuidado para não assumir um papel que não é realmente seu,
Katarina… Às vezes é difícil tirar a máscara, depois que todos a assumem
como verdadeira. — Mais um suspiro. — E, sabe de uma coisa? — Bateu a
palma em minha coxa. — Você só tem uma vida, Katarina… É seu direito
vivê-la!
— Não é tão fácil assim… — confessei.
— Nem tão difícil! — Greta sorriu. — Eu ainda sinto falta de jogar
xadrez! E dos debates acalorados! Só não sinto dos óculos de aro redondo e
das pontas duplas nos cabelos! — brincou.
Acabei rindo, mesmo que o assunto fosse mais sério do que
parecia.
— Às vezes fico pensando em como seria se não tivesse deixado
tudo para trás…
Baixei os olhos para os pés descalços.
Havia tanta verdade naquelas palavras simples. Eu não esperava
que fosse Greta a me compreender, mas estava começando a gostar da
garota, mesmo que não tivéssemos nada em comum. Talvez tenham,
Katarina… Você é que não percebeu!
Capítulo Trinta e Sete
Katarina
— Bem, mas é isso! — greta mudou o foco de repente e lançou um
daqueles sorrisos perfeitos de Barbie que ela tinha. — Vamos escolher as
roupas, porque imagino que seu dia seja cheio, não? Princesas devem ter
muitos afazeres! — brincou.
Levei um segundo para acompanhar a troca de humor dela, ainda
não a conhecia o suficiente para saber o que a levara a desistir de ser a
Greta dos debates e jogos de xadrez. Talvez no fim das contas, de perto,
bem de perto, ninguém fosse realmente o que queria ser.
Vale o preço?
Essa era a pergunta que eu ainda não sabia como responder.
Eu tinha acabado de me enfiar em um vestido cor-de-rosa de saia
evasê e laço nos ombros, quando batidas suaves à porta cortaram a
explicação de Greta sobre como aquele modelo realçava minhas curvas
quase inexistentes.
— Meninas? — a voz de Aren fez a garota travar no chão por um
instante. — Posso entrar?
— Claro! — respondeu assim que se recuperou.
Minha estilista pessoal abriu a porta e sinalizou para que o príncipe
entrasse. Os olhos dele se focaram nos meus atrás do reflexo no espelho. E
Aren sorriu.
— Você está absolutamente linda, Katarina… — Estendeu a mão
para que eu a segurasse e beijou meus dedos carinhosamente. — Se não
estivéssemos na iminência de uma guerra, eu a levaria para almoçar em um
restaurante bem movimentado, apenas para exibi-la!
Sorri sem jeito, ajeitando uma mecha de cabelo. Aren tinha um
jeito intenso e elegante de flertar que era só dele.
Só depois de alguns segundos, vi Greta fazendo uma pilha de
roupas, peça após peça.
— Greta escolheu… — comentei. — Ela tem um ótimo gosto e
sabe…
Aren caminhou até ela.
— Obrigada por cuidar bem de Katarina! Eu sabia que você era a
garota certa para a tarefa! — Um carinho quase infantil e um beijo na
bochecha encerraram a aproximação.
Se não tivéssemos conversado poucos segundos atrás, talvez o
murchar no rosto dela não tivessem ficado tão evidentes para mim.
— Venha, Katarina, quero passar um tempo com a minha bela
noiva! — brincou.
Eu sorri, Greta também, mas nenhuma de nós estava confortável.
Fiquei pensando se Aren realmente não percebia o interesse dela por ele ou
se meu primo também representava bem o seu papel.
No meio de todo aquele mundo em que ninguém podia ser o que
realmente queria, eu já não sabia mais o que fazer, nem o que pensar.
Aren me deu o braço e eu o segurei.
Achei que, por ora, talvez fosse melhor só aceitar o que me era
oferecido.
— Está com fome? — perguntou.
— Não muito… — Sorri. — Ainda nem consegui digerir o filé de
ontem!
Aren riu, mas o riso terminou em um suspiro.
— Acho que também estou tentando digerir tudo que houve
ontem…
Seguimos pelo corredor e ele abriu a porta de um dos quartos.
Assim que entramos, meu primo fechou a porta.
— Tudo bem se conversarmos aqui? — perguntou.
Aquiesci.
— Katarina, eu prometi a você que a deixaria a par de tudo que
está acontecendo…
Sentei-me ao seu lado na beirada da cama.
— Isso… Esse… Desde a morte do seu pai…, Ture e eu estamos
investigando os rebeldes, mas descobri alguns detalhes, Katarina… que
ainda não quero dividir com ele… São detalhes que envolvem… Envolvem
Ture muito mais do que…
Remexi o corpo desconfortável, não estava gostando do rumo da
conversa.
Aren sorriu.
— Não! Não desse jeito… — explicou. — Eu confio em meu
general mais do que em qualquer pessoa. Ture não tem ligação com a
revolta, ao menos não… conscientemente. — A mão dele repousou sobre
minha coxa. — Sei que é injusto pedir a você que confie cegamente em
alguém que acabou de conhecer, mas eu preciso que faça isso…
Os olhos dele focaram-se nos meus, enquanto sua mão segurava a
minha. Havia tanta verdade naqueles olhos, tanto reconhecimento. Podia
fazer pouco tempo desde que nos encontramos, mas eu confiava em Aren.
Não tinha uma vírgula de razão para sentir diferente.
— Lembra-se do que contei sobre Sten? Que ele era o mais velho e
que fugiu com os rebeldes? — Aquiesci. — Naquela tarde, depois do
ataque na floresta, eu saí à caça… Encontrei um mutta e consegui arrancar
dele algumas informações…
— Conte-me… — pedi, segurando mais firme as mãos dele.
— Por enquanto, o que posso dizer é que Ture… Você, Katarina…
Vocês dois correm perigo.
Engoli em seco o medo que se formou, travando minha garganta.
Aquele gelo esquisito descendo pelas costas.
Aren retirou uma caixinha de veludo preto de dentro do bolso e a
abriu. Dentro havia um anel. Era muito bonito e delicado, com diamantes
em volta de uma bela pedra azul como os nossos olhos.
— Este era o anel de noivado da minha mãe… — explicou. —
Coloquei um rastreador nele… Quero que você o use… — Segurou minha
mão e deslizou a joia pelo meu dedo.
Mirei-o por alguns segundos. Tinha servido perfeitamente.
— Ninguém vai desconfiar, já que você e eu… — não completou a
frase. — Katarina, sei que lhe dei um tempo para pensar e não estou
voltando atrás com isso… Para ser sincero, nem sei mais o que… — Correu
os dedos pelos cabelos, parecia tão confuso quanto eu. — Só quero que use
o anel mesmo que aqui dentro dos muros desta casa… Se eu estiver certo,
temo que… O cerco está se fechando e… — Mais um suspiro.
Puxei-o para mim, abraçando apertado. Vê-lo tão preocupado me
deixava triste, ainda mais por saber que ele carregava aquele fardo sozinho,
para não deixar que pesasse sobre o passado de Ture também.
Acariciei suas costas, o rosto enfiado em seu pescoço. Aren me
manteve ali, no aconchego dos seus braços por mais alguns segundos.
— Não vou deixar que ninguém os machuque, Katarina… Nem
que para isso…
— Shhhh… — pedi tocando sua boca com o dedo.
— Vamos conseguir… Sem que mais ninguém… — não consegui
terminar a frase, mas Aren assentiu.
Só quando me puxou para os seus braços novamente foi que eu vi
Ture no andar de baixo, parado no meio do jardim. Os olhos perdidos na
janela.
Ele ainda me encarou por alguns segundos, depois virou as costas e
seguiu a passos largos, subiu em uma moto e acelerou, seguindo em direção
à saída.
Capítulo Trinta e Oito
Ture
Assim que a Ducati passou pelos portões, eu pude voltar a respirar.
Achei que conseguisse, que fosse suficientemente forte… Eu
deveria! Queria a felicidade dos dois mais do que qualquer coisa. Sabia
exatamente o quanto já haviam sofrido, era justo que os poupasse de mais
sofrimento.
Eu queria não sentir as coisas que passavam pela minha cabeça.
Acelerei a moto até que as árvores se tornassem um borrão escuro ao redor
do meu caminho. Desviei do primeiro carro, derrapando pelo acostamento,
e fechei os olhos por um instante.
Se eu morresse, ela poderia ter uma vida ao lado dele… Aren
poderia fazê-la feliz, tinha mais prática nisso do que eu. Eu nunca fui bom
em amar as pessoas…
Os olhos de Katarina estavam na minha mente, o cheiro dela, em
volta de mim, apertando meu coração, fazendo-me ver o quanto eu era ruim
e errado para ela. Meu peito doendo pela lembrança do anel reluzindo em
seu dedo.
É isso, Ture! O certo! Ela é a noiva dele, você foi apenas o
entregador…
Segurei a derrapada, voltando ao controle da moto.
Eu quis morrer, deveria, mas não pude. Não era capaz de deixá-la e
partir, precisava cumprir minha promessa. A promessa que tinha feito a ela
em todas as vidas que passamos juntos.
Não sou um traidor! — meus pensamentos repetiam
silenciosamente. Não sou como meu pai! Não abandono as pessoas que
amo! Mesmo… Mesmo que isso custe mais do que eu tenha para oferecer.
Parei a moto no caminho de pinheiros e desci. Precisava clarear a
cabeça, voltar ao controle. Não havia nada de errado, era mesmo ao lado
dele que Katarina precisava ficar. Eu nem podia julgá-la, Aren merecia seu
carinho muito mais do que eu. Fora sempre tão bom e justo com ela. Com
todos…
Como eu podia odiar alguém como ele? Como não odiar? Engoli
em seco.
Cocei os cabelos, esfregando a lateral raspada. Precisava correr
pela floresta, caçar. Tinha que dar vazão ao lobo, ser o que eu era de
melhor… Ele! Sempre fui melhor lobo do que homem.
Tirei a roupa e deixei os pensamentos vagarem, os olhos perdidos
no céu estrelado. Respirando mais forte, mais forte. Deixando a fera tomar
o controle, chegar à superfície.
Estava tão concentrado na transformação que, quando senti a
aproximação, a garota já estava bem perto.
— Pelo amor de Deus, careca, veste essa roupa que eu não quero
ver o seu bumbum peludo!
Respirei fundo controlando a transformação e ri.
— Só vê estrelas quem olha para o céu, Greta!
Ela riu de volta, atirando a calça nas minhas costas e tapando os
olhos enquanto eu me virava.
— Nem se atreva, Ture! — reclamou. — Quer me matar de susto?
Pelo amor de Deus, cobre isso!
Fechei a calça e me sentei no chão, encostado no pinheiro. Meus
olhos perdidos. Suspirei fundo.
— Se veio aqui me dizer que eu preciso ser forte e voltar, perdeu
viagem… Já cheguei a essa conclusão sozinho… — desabafei. — Só
preciso…
— De um tempo? — interrompeu e eu aquiesci.
A garota sentou-se ao meu lado, pegando uma pequena pedrinha e
atirando bem longe.
— Você lembra quando eu fui atingida por aquele ouriço?
Assenti sorrindo. Como podia me esquecer?
— Eu avisei para não cheirar o buraco na amendoeira, mas você
foi lá e fez o contrário! — Dei de ombros.
A garota riu mais.
— Lembra do que você me disse? — perguntou.
Assenti novamente, as palavras perfeitamente claras na minha
mente.
— Você estava com medo. Estava chorando como um bebê e tinha
uma meleca estranha saindo do seu nariz… — provoquei só porque era
divertido.
Greta fez cara de indignada e socou meu ombro. Rimos os dois.
— Você me disse que eu não poderia fingir que os espinhos não
estavam lá… — Remexeu a terra do chão com os sapatos claros. — Que eu
teria que tirá-los rápido, ou eles deixariam marcas para sempre.
Desviei o rosto para o horizonte, não queria que ela percebesse que
eu havia entendido onde ela pretendia chegar.
— Você precisa tirar os seus espinhos, Ture… — A mão repousou
em minha coxa. — Não dá mais para fingir que eles não estão lá…
Soltei o ar dos pulmões com cuidado.
— Não posso… — confessei.
— Pode!
— Alguns já deixaram marcas… — insisti.
— Está sendo covarde… — continuou. — E esse não é você!
— O que quer que eu faça? Que a tome para mim? Acha mesmo
que pode me dizer isso depois, depois de…
O riso dela foi sem humor.
— Nem se atreva a terminar! — Levantou o dedo em riste. — Você
sabe muito bem que eu fiz a minha escolha…
— Não a vejo na vida dos sonhos… Você nem ao menos teve
coragem de voltar à faculdade! — critiquei por impulso de proteção.
Não queria magoá-la. Greta e eu éramos mais parecidos do que eu
gostaria. Não desejava aquele fim triste para ninguém.
Um suspiro profundo dela fez meu peito doer mais.
— Não jogue esse fardo sobre Katarina, Ture… A garota está se
quebrando a cada dia… Não consegue perceber?
Fechei os olhos, a nuca batendo contra a casca da árvore.
— Ele precisa de um herdeiro de sangue puro…
— Já passou da hora dessa bobagem cair por terra… Primeiro sua
mãe, depois Karin, Hilde e quem será a próxima, Ture? Katarina?
Cerrei as mãos em punho, a fera, ainda acordada, deixava clara sua
raiva.
— Não somos cavalos de raça! Nem eles merecem um destino tão
cruel…
— Acha que eu não queria mudar as coisas? Que não lutaria por
ela se houvesse uma maneira?
— Aren não a ama… Sei que ele vai se esforçar para ser um
marido perfeito, mas amor, Ture, nunca vai existir… Você acha que os está
salvando, mas só o que vejo é a condenação de um futuro vivido por um
ideal que nem deveria existir…
— Ele colocou o anel de Ava no dedo dela… — confessei. — Você
deve imaginar o que isso significa.
Mesmo sem poder ouvir os pensamentos de Greta, senti sua dor.
— Está decidido… Por isso… Por isso preciso de um tempo… —
Esfreguei o rosto entre as mãos. — Preciso enfiar essa verdade aqui dentro!
— Cerrei o punho e bati tão forte no peito que senti o ar faltar.
— Katarina ama você!
— Mas ela não deveria… — retruquei fingindo que isso não me
afetava.
— E você a ama! — Sorriu, ignorando o que eu havia dito.
— E eu não deveria também… — Levantei-me de uma vez e
estendi a mão para ajudá-la.
— Não faça isso… Não desista… Não como eu desisti…
— Vou condená-la e roubar dele a última chance de ser feliz?
Greta baixou o rosto no mesmo instante e só então eu me dei conta
da merda que havia falado. A garota ficou em silêncio, respiração contida,
como se calculasse a maneira certa de continuar. Eu não sabia o que dizer
também, era péssimo em resolver conflitos, muito pior do que ela.
— Acha mesmo que ela é a única chance que ele tem de ser feliz?
Segurei o soco no peito sem reclamar da dor, eu merecia.
— Acho que estamos os dois fodidos! — Sorri. — E que a vida é
uma merda!
Greta riu também e seus braços rodearam minha cintura, a cabeça
pendendo em meu peito.
Eu ainda me lembrava da garotinha assustada que tinha se
achegado a mim por tantas noites maldormidas. Lembrava-me de como fora
difícil, quando a mãe dela morreu, de tudo que já teve que enfrentar e
pensei no quanto merecia ser feliz.
— Ele é um idiota! — Beijei o topo da sua cabeça.
— E cego! — Deu de ombros. — Ainda pensa que eu tenho dez
anos! — reclamou.
Acabei rindo.
— Como você veio até aqui? — Passei o braço ao redor dos
ombros dela, seguindo para fora da floresta. — Quer uma carona para casa?
Eu estou disponível! — Sorri.
Depois de alguns passos, Greta indicou o conversível branco
parado perto da moto.
— Vou ter que declinar, careca… — Ergueu a sobrancelha. — Não
quero estragar meu vestido e você tem compromisso!
— Tenho?
— Uhum… Se for esperto, é claro! — Beijou meu rosto e deu
alguns passos na direção do carro. — Sabe, Ture… — Parou assim que
abriu a porta. — Estou pensando em voltar para a universidade… — Sorriu.
— Dizem que nunca é tarde! — Dei de ombros.
— Para algumas coisas, não… Já outras… — Piscou.
Capítulo Trinta e Nove
Ture
Depois que a garota se foi, eu me sentei na moto, mas não dei a
partida. Estava perdido, ou talvez tivesse me encontrado… Não queria
admitir que era mais fraco do que pensava que fosse.
Tinha tanto medo de ser como meu pai, que quase caí na mesma
armadilha. Tinha menosprezado a natureza do homem e do lobo, ninguém
sai ileso de amar, ainda mais um amor como o nosso.
Fechei os olhos, o rosto coberto pelas mãos, o corpo curvado sobre
o tanque da Ducati, os pensamentos perdidos em Karin.
Sabe o que eu acho, Ture… — a voz doce de Karin se fez em
minha memória, como se eu a ouvisse novamente. Acho que você vai ser o
guardião dela!
Engoli a emoção como quem bebe um copo de água depois de dias
no deserto.
— Eu tentei, princesa… Tentei fazer o que achava certo… —
Enchi os pulmões de ar. — Eu me esforcei tanto… — Soquei o tanque,
deixando uma marca sobre o metal. — Quase morri… Quase a matei… Eu
não sei como… Não sei como ser correto! — confessei. — Não sei como
cumprir meu dever com ela, com ele, sem destruir tudo no processo… Eu
não aguento, Karin… Sou mais fraco do que você pensava!
Enquanto falava, algumas lágrimas insistiam em rolar, as lágrimas
que eu não consegui sufocar, que foram mais fortes do que a dureza da
armadura que eu vestia.
De repente, sem nenhuma razão, uma borboleta pequenina voou
até o guidão, mas, em vez de pousar sobre ele, encontrou lugar em minhas
mãos suadas, as pequenas asas brancas abrindo e fechando com tanta
suavidade que me peguei olhando fixamente para ela.
O sorriso nasceu da paz que meu coração encontrou, bem lá no
fundo do peito, era como se eu ouvisse a voz dela, a mulher que me
protegeu quando ninguém mais quis. A primeira a não desistir de mim.
Por alguns segundos, deixei de pensar em honra e em qualquer
coisa que me mantivesse no caminho que os outros esperavam de mim,
pensei apenas no que seria melhor para nós três.
Aren não a amava. Era um homem incrível e poderia fazê-la feliz,
se quisesse, mas ele não a amava. Katarina tampouco iria se entregar a ele
como a mim, e eu… Eu acabaria caminhando por aí como um corpo sem
vida, uma casca oca, morta por dentro e sem razão para continuar. Talvez
acabasse como meu pai, louco e perdido na floresta, sem nunca mais
encontrar o homem justo que um dia existiu dentro dele.
— Agora vejo o quanto você foi corajosa… — Estiquei a mão,
observando a borboleta. — Todos a chamaram de covarde, mas você e
Yrian enfrentaram o mundo… Sei que estão à mesa de Valhala, comendo e
bebendo com os grandes guerreiros que já se foram… Sei que seu irmão
está aí com você, orgulhoso da sua força, Karin… Obrigado por me
emprestar um pouco dela.
Assim que terminei a frase, o pequeno inseto levantou voo,
procurando outro lugar para pousar, e eu liguei a moto. Sabia exatamente
aonde tinha que ir.
Não tenho ideia de que velocidade atingi, tinha deixado a fera no
controle, precisava dela para farejar onde Aren estava, já que ele havia
saído para caçar.
Assim que encontrei seu rastro, parei a moto e desci, fechando os
olhos e inspirando o ar ao meu redor, tomando a direção que precisava.
Embrenhei-me na mata por algum tempo, até que o vi sobre o
mirante de uma montanha, os olhos encarando um grande rio lá embaixo.
Aren gostava das águas, desde pequeno, sempre que queria pensar
era perto delas que encontrava a tranquilidade que buscava.
— Você demorou… — soltou antes que eu o chamasse.
— Eu estava buscando as palavras certas para pedir perdão… —
confessei. — Sou mais fraco do que pensei…
Baixei a cabeça em uma reverência silenciosa, ainda que ele
estivesse de costas.
Meu amigo virou-se no mesmo instante. O rosto tranquilo, sereno,
os olhos límpidos e completamente compassivos, cheios da mesma amizade
que sempre vi ali, mesmo quando eu era o inimigo.
— Estou aqui para confessar minha traição, meu senhor… Não sou
capaz de fugir do que sinto…
— Traição? — Franziu o cenho. — Você não me traiu…
— Mas vou! E, antes que o faça, já estou me entregando… Não
consigo mais negar o vínculo… A conexão…
Um sorriso discreto, quase imperceptível, brotou em seu rosto.
— Você nunca conseguiu, Ture… Enganou e traiu apenas a si
mesmo, não a mim… Fico feliz em vê-lo confessar, mas não serei seu
algoz… Você mesmo já o é!
Engoli em seco.
— Vou tomá-la para mim… — confessei.
— Ela já é sua! Sempre foi…
— O trono… As coisas…
— O trono não vai a lugar nenhum! — proferiu com a voz tão
firme que nem eu questionei. — Eu sou o rei, Ture, não vou deixar de ser se
não me casar com Katarina e, sabe por que tenho tanta certeza disso? —
Aproximou-se enquanto falava, até estar de frente para mim.
Mantive a atenção nele, esperando pela resposta.
— Por que tenho você e ela ao meu lado… — Suas mãos
seguraram-me pelos ombros. — Vamos proteger nosso povo juntos… Você
e Katarina são minha família e não há nada que não façamos um pelo outro!
— Sem um herdeiro…
— Se eu não encontrar uma parceira a quem ame, então terei muito
orgulho em passar a coroa para o seu filho!
Engoli o bolo de sentimentos que se formou dentro de mim.
— Um mundo governado pelo sangue justo e honrado dos Fairhair
e pela impetuosidade dos Svenssons… — sorriu — certamente é um mundo
que fará minha alma descansar tranquila em Valhala.
Abracei-o apertado, o peito explodindo de sentimentos, o coração
batendo tão intenso que mal pude conter a fera dentro de mim.
— Agora vá! — Afastou-se o suficiente para me encarar de novo.
— A princesa espera por você.
Sorri.
— Ande logo! Antes que a garota definhe de tanto chorar! —
brincou. — Aproveite que estão todos fora e resolva isso de uma vez!
Corri de volta até a moto e acelerei em direção à casa de Magnus.
Assim que estacionei, procurei pelo rastro dela. Queria tanto
abraçá-la. Confessar o que sentia, sem ter que fingir ou esconder, ser apenas
eu!
Fechei os olhos, deixei que o instinto me levasse até ela, meu
corpo todo desperto, buscando a conexão.
Senti uma lágrima escorrer pela minha pele, mas era no rosto dela,
nos olhos dela que os sentimentos pesavam.
Katarina mirou o anel em seu dedo, o brilho da pedra azul
refletindo seus lindos olhos nos meus pensamentos.
Ela chamava por mim, ainda que não entendesse, que nem
soubesse, chamava por mim.
Enchi os pulmões de ar, lembrando as palavras de Greta. Talvez
fosse mesmo verdade, e condená-la a uma vida vazia fosse ainda mais triste
do que roubá-la do seu destino.
Não, Ture, destino não, dever! O destino dela é você…
Dei mais alguns passos, parando junto aos degraus da entrada.
Estou aqui, liten… Você consegue me ouvir? Diga que sim e eu
juro pela deusa que vou tomá-la para mim.
Rezei para que ela respondesse, era o último sinal que eu precisava
para entregar o controle.
Não demorou mais que alguns segundos e Katarina apareceu no
balcão do segundo andar, olhou direto para mim e não pude segurar o
sorriso que curvou meus lábios. Os dela espelharam meu gesto e um suspiro
deixou seu peito.
Quebrei a última barreira e avancei para dentro como se minha
vida dependesse disso. Dependia, de fato.
Abri a porta de uma vez e venci o espaço que nos separava.
— Ture, eu… O anel…
Nem tentei ouvir os pensamentos dela, anel algum era mais forte
que o laço que tínhamos.
— Diga que eu não estraguei tudo, Katarina… — pedi.
Mais lágrimas rolaram pelo rosto delicado dela, mas de repente
minha garota sorriu.
— Não há maneira alguma de que você estrague as coisas, Ture…
Eu sempre…
A fera dentro de mim se levantou, buscando seu espaço. Meu
corpo reconhecia o dela, minha alma clamava por ser completa novamente.
Corri os dedos pelo braço nu de Katarina, sentindo a pele se
arrepiar ao meu toque. O coração dela batendo no mesmo ritmo que o meu.
Se fechasse os olhos, cada uma das vidas que vivemos passaria
diante de mim.
Katarina elevou o corpo, ficando na ponta dos pés, os lábios
tocando os meus suavemente, esperando que eu não a afastasse.
Rocei minha boca na dela.
— Sabe mesmo o que isso significa, Katarina?
Ela aquiesceu.
— Diga… — pedi.
— Amo você, Ture… Amo como sei que nunca vou amar outra
pessoa, como nunca amei. Não há outra resposta, é como se você fizesse
parte de mim.
— Porque faço, Katarina… Sempre fiz.
Capítulo Quarenta
Katarina
Mirei os olhos de Ture.
Ainda custava a crer que ele estava mesmo ali, ao alcance das
minhas mãos, sem máscara ou armadura, apenas ali, diante de mim.
Ture sorriu.
— Sem máscaras, liten… Apenas eu! — repetiu como se pudesse
me ouvir.
— E sinto o que você sente também… — Suspirou. — Dê a sua
mão… — pediu estendendo a dele. — Sempre que me chama, meu peito
reverbera sua voz, ouve como se você falasse aqui dentro. Sente seu
desespero, sua dor, ri com o seu riso… Nós dois, Katarina, somos um…
— Ture eu não posso… Não consigo… — soltei no meio das
lágrimas.
Não queria mais fingir que tudo bem. Estava cansada de tentar ser
forte, não queria pensar no que estava em jogo, no que os outros esperavam,
só queria os braços dele em volta de mim.
Não precisei pedir, Ture me puxou para si, tão perto e tão intenso,
que as lágrimas começaram a descer.
— Juro que pensei em muitas maneiras de tornar tudo perfeito,
Katarina… Você merece…
Baixei a alça do vestido sem que meus olhos deixassem os dele.
Havia um pedido e uma anuência contidos ali que eu tinha certeza de que
Ture sentiria.
Eu quero ser sua… — deixei o pensamento sair. Já sou, na
verdade… Só preciso que tome posse!
Ture piscou e no instante seguinte eram os olhos do lobo que eu
via, olhos de quem me conhecia havia mais tempo do que uma mera
existência, os olhos da alma.
Não ofereci resistência quando seu corpo forte tomou o meu nos
braços e prensou contra a parede.
— Hum… — o gemido deixou minha boca, assim que senti seus
dentes em meu pescoço.
Seu toque era como um fio desencapado, enviando ondas elétricas
por toda a minha pele. Eu não tinha ideia de como seria realmente fazer
amor, mas aquela pequena amostra do que viria a seguir fez meu coração se
acelerar em antecipação.
Ture puxou o zíper do meu vestido com tanta pressa que o tecido
se rasgou. O dia podia estar frio lá fora, mas nem o vento da janela aberta
foi capaz de diminuir o fogo que me consumia de dentro para fora.
Meu corpo pedia, implorava por ele, por mais um toque, mais um
beijo.
— Quero tanto você que tenho medo de te machucar… —
confessou com a voz rouca de desejo, fazendo meu interior pulsar.
— Não vai… — tropecei nas palavras, mais um gemido insistindo
em sair.
Ele me colocou sobre a cama e tirou a camiseta. Meus dedos
ansiosos buscaram pelo zíper do jeans que Ture usava, mas eu mal
conseguia coordenar os gestos.
Livrou-se da calça e ficou de joelhos na cama, uma perna de cada
lado de mim, os olhos focados nos meus de um jeito que fazia tudo em mim
derreter.
— Sabe o que vou fazer agora? — perguntou e tudo que eu
consegui foi negar com a cabeça.
Sua boca baixou até minha barriga, enviando ondas elétricas por
onde passava, e mordiscou minha pele, descendo mais.
— Vou ensiná-la a fazer amor, Katarina… Quero que experimente
tudo… Que conheça seu corpo e o meu…
Beijou abaixo do meu umbigo, de um lado a outro do meu quadril,
seus dedos circundando o ponto de encontro das minhas coxas, causando
pequenas ondas de excitação.
— Ture… — soltei baixinho.
— Isso, liten, é o meu nome que você geme quando sente prazer. É
a mim que chama… Que pertence… Só a mim!
— Ah… — gemi de novo, apertando os dedos contra o lençol.
Ture aproximou o rosto do meu, a boca a centímetros da minha.
— Quer que eu pare? — sussurrou.
— Não — soltei entredentes. — Quero mais…
Sua boca desceu pelo meu corpo mordiscando e beijando,
acendendo algo dentro de mim que eu mal podia controlar.
Quando atingiu meu baixo-ventre, afastei um pouco mais as
pernas, elevando os joelhos por instinto.
— Hum… — o gemido saiu mais alto do que eu pretendia, quando
os lábios dele tocaram a pele sensível entre minhas pernas.
Eu sabia como acontecia, não era tão boba assim, mas nada do que
vi ou ouvi havia me preparado para a explosão de sensações que a língua
dele estimulando aquele ponto sensível me fazia ter.
— Ah, Ture… — Agarrei a borda da cama, arqueando o corpo. Era
como se não fosse eu.
Fechei os olhos e, de repente, era como se meu corpo todo
flutuasse, como se eu estivesse perdida no infinito e só existíssemos eu e
ele.
— Quero que esteja pronta para mim, Katarina, que seu corpo
esteja pronto. Não vou te machucar, mas, quando a fera se soltar da última
amarra, ela não será tão paciente quanto eu.
Era tudo novo para mim, cada sensação e desejo que latejava em
meu corpo, mas não havia vergonha ou medo algum. Lá no fundo do meu
peito, eu sentia como se estivéssemos nos reconhecendo. Como se estar
com ele, pertencer a ele, fosse tão natural quanto respirar.
De repente, a cena da cabana voltou aos meus pensamentos, o rosto
do homem tomando forma, já não era mais um estranho para mim.
Junto dela, outras cenas começaram a passar.
— Nossas vidas… — Ture parou por um segundo. — É o que você
vê.
Joguei a cabeça para trás, o prazer tomando conta do meu corpo,
aquecendo e esfriando, arrepiando minha pele, levando o ar dos meus
pulmões.
Entreguei-me a ele mais uma vez, deixando que tivesse tudo de
mim.
No instante seguinte, Ture cobriu meu corpo com o seu.
— Prova… — soltou antes de me beijar.
Sua língua espalhando meu gosto em minha boca, seu tamanho se
encaixando ao meu até que ele estivesse pronto para estar dentro de mim
novamente.
— Tudo o que vivemos… — Deu um impulso, tomando o espaço.
— Fica gravado na nossa essência… Quando estamos juntos de novo, você
pode ver…
Apertei-o forte, separando as pernas para acomodar melhor seu
tamanho.
— Ahhh, Katarina… — soltou meu nome em um suspiro. — Senti
saudades do seu corpo… Tanto que não pude aguentar… Estou aqui de
novo, meu amor… Sou seu!
— Eu te amo… — sussurrei contra os seus lábios. — Te amo para
sempre.
— Eu também, minha princesa… Eu também.
Seu corpo se encaixou mais sobre o meu, abrindo espaço, causando
ardência, mas eu não queria parar. Queria ir além, me acabar nele.
Eu podia sentir o lobo forçando, tomando o controle e Ture o
segurando, mantendo a fera sob controle por medo de me machucar.
— Não se contenha… — pedi. — Eu quero você inteiro… Todo
você…
Fechei os olhos e rocei a coxa na lateral do seu quadril, chamando
por mais, pedindo, e então ele se soltou, deixou que o desejo o dominasse,
encontrou o ritmo que realmente queria, mais forte, mais fundo, me
marcando como sua, unindo os fragmentos da nossa alma.
Minhas unhas arranharam a pele das suas costas, puxando seu
corpo contra o meu, mais intenso, mais profundo. Sua respiração oscilando,
pesada e quente sobre mim, meus gemidos ecoando acima do crepitar da
lareira, até que eu senti seu corpo tenso, trêmulo e suado, o meu igual. Era
como se espelhássemos um ao outro, até no prazer.
— Hum… — Fechei os olhos e o corpo dele repousou sobre o
meu.
Ture suspirou profundamente, inspirando o ar em meu pescoço, e
relaxou. Sorri, deixando uma pequena lágrima escapar, escorrendo em
minha bochecha. Ele a tocou com a língua, sentindo o gosto, beijando a
pele do meu rosto, seu riso provocando arrepios em mim.
— Eu nunca mais vou deixá-la ir! — soltou como se fosse uma
sentença. — Nunca mais… — repetiu.
— Isso é ótimo, porque eu não pretendo ir a lugar algum sem você!
Aconcheguei-me no peito dele, o corpo encaixado e o coração em
paz, batendo em sincronia com o do meu parceiro.
Lá fora, o fim de tarde já dava lugar ao escurecer e não havia para
mim perfeição maior do que aquela. Fechei os olhos e acariciei a tatuagem
de Ture com a ponta dos dedos.
Eu nunca havia pensado muito em amor e eternidade nesses meus
dezoito anos, mas naquele momento, sentindo a respiração do homem que
eu amava contra mim, meu corpo cansado e dolorido de ser dele, eu soube o
que era amar; ainda que por uma eternidade mortal, desejei que aquele
momento não acabasse.
Capítulo Quarenta e Um
Katarina
Acordei no meio da noite, com a sensação ruim de ser observada.
Pisquei. Eu olhava para o quarto, mas era a floresta que via.
Levei um segundo para entender que a cena não se passava diante
dos meus olhos, mas dos de Ture.
Pisquei mais uma vez. Os olhos do lobo miravam os meus.
Respirar doía, como se eu o conhecesse. O lobo rosnou.
— Ture! — voltei a mim.
Desci as escadas correndo, tentando me guiar pela visão turva que
tinha diante dos olhos, metade da minha consciência buscando o caminho
na casa de Magnus, que a outra metade via pelos olhos de Ture.
Passei pela cozinha e, assim que vi a porta dos fundos aberta para a
mata, diminuí o passo. Não queria fazer barulho, tinha medo de cometer
algum erro.
O animal deu um passo, dentes à mostra, os olhos fixos nos meus.
Eram como os que haviam me assombrado por todos esses anos. Frios e
cruéis na pouca luminosidade do amanhecer na floresta.
Meu coração se acelerou, os músculos travaram no exato lugar em
que estavam, como se eu ainda fosse aquela menina assustada na floresta.
Minhas memórias se mesclando entre o passado e o futuro.
Foi nesse momento que vi Ture, de costas, encarando a escuridão.
Postura rígida, punhos tão cerrados que os nós dos dedos estavam brancos.
Vá embora! — ouvi dentro de mim. Katarina, vá!
Eu não fui.
Não ia abandoná-lo, queria ajudar, protegê-lo como ele havia feito
comigo tantas vezes; algo dentro de mim arranhava e rosnava, eu não
conseguia controlar.
Agora Katarina! — a voz dele insistiu.
Pisei no gramado e, assim que o lobo me viu, mostrou os dentes
em um rosnado mais feroz. A atenção dele estava em mim, não mais em
Ture, e meu coração se acelerou.
— Não! — Ture gritou, estendendo a mão em direção à fera.
O lobo pulou, mas foi jogado de lado, seu corpo grande rolando
pela grama. Quando se levantou, parecia o próprio demônio.
Ture me colocou atrás dele, uma muralha em minha frente, seu
tamanho protegendo meu corpo pequeno, mantendo-me atrás o suficiente
para que a criatura não conseguisse se aproximar. O olhar do homem que eu
amava não era mais humano, embora o corpo permanecesse sem se
transformar.
Senti meu sangue gelar nas veias, minhas mãos segurando sua
cintura.
O peito dele subia e descia em um ritmo diferente, como se
tentasse controlar algo dentro dele. Eu podia sentir a fera ali, debaixo da sua
pele, buscando seu lugar na superfície.
— Ela não vai! — ele disse de repente, a voz não se parecia mais
com a dele. — Não vou permitir que a toque, sabe disso… — as palavras
saindo entredentes. — Não importa o quanto me custe acabar com a sua
maldita vida, você sabe que eu faria! Sabe que por ela…
A criatura não respondia, nem um passo sequer ou um rosnado,
mas eu podia sentir que havia uma comunicação ali, perdida entre os dois.
Algo que apenas eles entendiam.
De repente, Ture fungou e uma lágrima solitária correu pelo seu
rosto. Foi só então que notei o quanto aquele encontro mexia com ele
também.
Concentrei a atenção no lobo, ele parecia menor do que na última
vez que o vi, embora os olhos fossem os mesmos. Mais uma lágrima
escapou dos olhos de Ture e eu a senti nos meus.
— Como você pôde? — soltou com tanto pesar que doeu em mim.
— Como pôde deixar que as coisas terminassem assim? Como pôde
enganar todos nós?
O lobo baixou os olhos, como se as palavras de Ture lhe doessem
também. Eu tentava entender quem era, sentia como se algo de familiar
naqueles olhos me chamassem. O lobo desviou, fitando a noite lá fora.
— Como pôde enganá-lo? E a mim…
Suas palavras estavam carregadas de um sofrimento tão genuíno e
profundo que eu não pude aguentar. Saltei em sua frente, meus punhos
cerrados, a raiva latente em meus olhos. O lobo rosnou, mostrando os
dentes em desaprovação mais uma vez.
Katarina… — um pedido silencioso por obediência.
Senti o comando no fundo do peito. Uma sensação que jamais
sentira, algo que eu não tinha como negar. Travei no chão, baixando o rosto.
Ture encarou o lobo por alguns minutos, que pareceram eternos
para mim. Eu nem conseguia me mexer, sentia como se meu corpo
esperasse a ordem de alguém.
— Katarina, vai agora! — ordenou encarando os olhos do lobo. —
E você não vai impedir.
As palavras dele ressoavam dentro de mim e, ao que percebi na
expressão feral do animal, exerciam o mesmo poder sobre ele.
No mesmo instante, o lobo me deu passagem.
— Vá! — ordenou para mim.
Existia uma urgência estranha e amarga em sua voz. Eu queria
protestar, mas não havia chance alguma.
Dei dois passos e ouvi o estrondo. Quando me virei para trás, Ture
estava de joelhos, cabeça baixa e mãos em garras.
— Agora, Katarina! — gritou, a voz gutural como de uma fera.
Corri de volta para dentro. O medo comandando meus passos,
deixando os rosnados e uivos para trás.
A casa estava vazia.
— Aren! — gritei. — Magnus! — Ninguém respondeu.
Corri em direção à porta da frente, nem mesmo um empregado,
não havia pessoa alguma que pudesse me ajudar.
Subi até o quarto e peguei o telefone.
— Atende, por favor, atende! — implorei na terceira tentativa em
que a ligação caiu na caixa postal.
Quando desisti, peguei um molho de chaves e desci as escadas
correndo. Estava quase no carro, quando os portões se abriram e o
conversível de Magnus passou em alta velocidade.
— O que houve? — Aren gritou assim que saiu.
— Ture! — gritei quando o vi. — Um lobo… O Ture, Aren, ele
rosnou e me mandou ir e…
Meu primo abriu os braços e me acolheu, acalmando meu
desespero. Chorei até que meu corpo doeu. Eu estava cansada, tremendo,
nauseada. Não sabia nem ao menos explicar tudo que acontecia comigo.
— Conte o que houve… Ele não… Não nos deixou saber… — o
príncipe confessou.
Eu não conseguia parar de chorar, até que tive um estalo.
— Não deixou? Como não deixou?
— Quando se é um lobo, a matilha toda sente o mesmo.
— Se um chora, os outros sentem… — Greta completou, passando
um copo de água para as minhas mãos.
— Ture camuflou o instinto, saiu do radar… — Magnus parou ao
lado da irmã. — Isso é preocupante…
— Você sentiu algo? — Aren segurou minha mão. — Pela
conexão…
Minhas mãos ainda tremiam, a sensação de dor no peito de Ture, a
maneira como falava com o lobo.
— Era como… — Franzi o cenho, nem sabia bem como explicar.
— Como se ele conhecesse… Como se conhecesse o lobo…
Aren soltou o ar dos pulmões.
— Acha que foi ele? — Magnus perguntou.
— É provável…
— Mas por que o careca não nos deixou ver? — Greta insistiu. —
Todos aqui conhecemos aquele filho da… — Parou a frase no meio quando
percebeu que eu tentava entender o que nenhum deles havia contado.
— Não importa! — Aren bateu contra a lataria do carro, deixando
uma marca afundada. — Vou encontrá-lo!
— Vamos! — Magnus interpôs.
— Não! Eu preciso que cuide de Katarina e a leve de volta para
Estocolmo. Por mais que…
— Eu vou com vocês! — soltei interrompendo.
— Não, não vai — Aren negou taxativo. — Você fica e se protege.
— Não posso deixar que Ture…
— Nenhum de nós irá abandoná-lo… — As mãos fortes do meu
primo tocaram meus ombros. — Não voltaremos sem ele. Um lobo jamais
abandona sua matilha, Katarina… Ture faz parte de todos nós, mas para
sermos mais fortes… Para que eu seja forte… Preciso que você fique
segura.
— Vou acionar a guarda alemã… — Magnus avisou. — Greta
pode ficar até que…
— Nem pensar! — a garota reclamou. — Eu não vou abandonar
vocês dois! A casa é segura, Katarina…
— Sem guarda… — Ian deu um passo à frente.
Postura altiva e serena como eu nunca tinha visto. Havia algo novo
em seu olhar, um Ian que eu ainda não conhecia.
— Eu fico e levo Katarina até o aeroporto. Sei que sou o mais
jovem, mas conheço esta cidade como a palma da minha mão, posso
conduzir a princesa em segurança… Se Ture foi levado de dentro desta
casa, então não estamos seguros aqui… Nenhum de nós, meu senhor. —
Curvou o corpo de leve em direção a Aren.
O príncipe encheu os pulmões de ar e soltou devagar.
— Não está errado, Hanssen, mas…
— Eu consigo! — meu colega de faculdade insistiu. — Juro
protegê-la com a minha vida — ressaltou.
— Entende o quanto isso é vital?
— Nosso futuro depende disso, sei bem.
A mão firme do príncipe repousou sobre o ombro de Ian.
— Então, a partir de agora, a princesa é sua protegida, Ian
Hanssen. Até que Ture esteja de volta, a vida dela é sua responsabilidade.
Ian meneou a cabeça aceitando o posto e Aren voltou os olhos para
os meus.
— Sei que está nervosa e entendo o quanto isso dói… — Segurou
minhas mãos nas dele. — Juro por Freya que levarei Ture de volta para
você, Katarina, e que estarei ao seu lado para vê-la feliz… — Acariciou
meu rosto. — Não vou permitir que sofra o que eu sofri. Juro…
— Você sabe… — havia uma confissão naquela pequena palavra e
Aren compreendeu.
— Se esta é a sua felicidade, minha querida, então será a minha
também. — Beijou meu rosto. — Agora preciso que confie em mim e em
Ian… Volto com Ture o mais rápido que puder!
Anuí e os três se afastaram a passos largos.
— Tenha cuidado… — pedi. — Por favor.
Capítulo Quarenta e Dois
Ture
Acordei em um lugar que não conhecia. Minha pele cheirava a
erva-de-lobo e meus sentidos estavam anestesiados. Eu mal conseguia
manter as pálpebras abertas e a náusea me impedia de respirar o suficiente
para não sentir tontura.
— Devia me matar de uma vez e mandar entregar o corpo… —
soltei tão baixo que, por um segundo, achei que não era ouvido. — Sabe
que ele virá ao meu encontro.
— Acha mesmo que ele virá? — Cravou os olhos claros nos meus.
— Depois de tudo que houve entre você e a princesa? Pensa mesmo que é
menos traidor do que eu?
Ri sem humor. O estômago doendo pelo efeito do veneno e meu
corpo todo pesado, cansado, insistindo em desabar.
— Sabe o que nos difere? — perguntei usando o último fio de
consciência que me restava. — Eu errei por amor… Você… — Soltei um
suspiro. — Nem sei por que errou! Você tinha tudo, e mesmo assim…
— Você não sabe nada de mim! — reclamou.
Não pude contestar, não conhecia mais a pessoa a minha frente.
Minha cabeça girou, o pensamento perdendo o foco. Tudo que eu
conseguia pensar era em Katarina. Rezava para que meu artifício de
esconder o rastro tivesse funcionado, para que ela não fosse impulsiva o
suficiente e que ao menos encontrasse Aren antes de tentar me encontrar.
A risada ecoou.
— Engraçado vê-lo assim, tão apaixonado… Achei que esse dia
nunca chegaria. Que você… Que levaria a sério sua promessa…
Passos longos trouxeram seu olhar para perto do meu e eu encarei
alguém que eu já não tinha ideia de quem era.
— Como consegue conviver com a dor que causou? Não a sente?
Aqui dentro! — Apontei seu peito.
O rosto desviou-se do meu, havia tantos sentimentos perdidos em
seu semblante que, por um segundo, achei que talvez conseguisse mostrar o
erro, ensinar a retroceder, mas, quando voltou a me encarar, percebi que o
carinho que eu vira naqueles olhos em outros tempos havia sido quebrado,
rachado como um pedaço de madeira por um machado, a linha que separava
o antigo do novo era funda demais para que eu pudesse unir as duas partes.
— O que pretende? — deixei escapar com o pouco de consciência
que ainda tinha, meu corpo perdendo a força, entregando-se ao veneno.
— Sabe bem o que ele pretende…
— Não ele… — insisti. — Você! Quero saber o que você
pretende…
A boca se abriu e os olhos me encararam, mas nenhuma palavra
saiu.
Estiquei a mão o quanto pude, meus dedos resvalando no antebraço
cruzado em frente ao seu peito.
— Ainda há tempo… Você pode… Pode pedir perdão e ele…
A última coisa que vi foi a negativa em seu rosto e então sucumbi.
Capítulo Quarenta e Três
Katarina
Assim que ficamos sozinhos, voltei o rosto para Ian.
— Venha… — Indicou o caminho da entrada. — Vista algo mais
quente e confortável, nunca se sabe o que pode…
— Desde quando você deixou de ser o babaca metido da Humboldt
e se tornou soldado do príncipe? — Franzi o cenho.
Ian não tinha mais muito do garoto que eu conhecia. O rosto havia
envelhecido uns bons anos em poucos meses, a barba clara estava por fazer
e eu podia jurar que ele ganhara uma porção de músculos do dia para a
noite. Parecia bem maior do que eu me lembrava.
O risinho metido de canto ganhou seu rosto, mostrando que nem
tudo havia mudado.
— Desde que me transformei em um lobo e aprendi a caçar!
Mas… — Levantou o dedo em riste. — Não sou soldado de ninguém!
Estou apenas mostrando meu valor diante do meu futuro rei.
Abri a boca, mas desisti de perguntar.
— Há duas noites… — ele respondeu mesmo assim. — E, já que
estou conseguindo entender você, imagino que sua transformação também
não vá demorar… Agora vamos, você precisa de roupas mais quentes, há
previsão de neve para a região e nunca se sabe…
Engoli em seco, uma pontinha de medo doendo no fundo do meu
peito.
Resolvi que seguir Ian era a melhor opção que eu tinha, já que, de
todos ali, eu era a peça fraca, a única que nem sabia se cuidar por conta
própria.
Ian entrou em um dos quartos e eu segui até o meu. Troquei a
camiseta de Ture e o short de elástico que usava por uma calça impermeável
e suéter de lã. Depois peguei um casaco grosso, calcei meias e botas
também.
Quando desci as escadas, meu guardião estava no andar de baixo,
arrumado e esperando por mim.
— Pronta? — perguntou e eu aquiesci.
Sentei no banco do carona e passei o cinto de segurança pensando
que, se alguém me contasse que eu estaria no banco do carro com minha
vida dependendo de Ian Hanssen dois meses atrás, eu iria rir e socar a cara
da pessoa.
O riso dele me irritou.
— Quer parar?
— Desculpe, ainda não consigo controlar muito bem…
— Idiota! — xinguei.
Ele riu de novo e seguimos para fora dos portões.
— Achei que só os parceiros se comunicassem.
— A comunicação que temos com um parceiro é diferente —
limitou-se a dizer, girando o volante para o lado contrário do que achei que
tomaríamos.
Apontei o dedo para a estrada sem entender.
— Sei que não confia em mim, mas meus instintos… — Fechou os
olhos por um segundo e soltou o ar dos pulmões. — Algo nisso tudo não
me cheira bem, Katarina…
— Tem alguma informação que... — perguntei preocupada.
— Não exatamente… — Girou o volante tão rápido na esquina que
precisei me segurar, mesmo de cinto.
— Ei! — reclamei.
Ian riu.
— Eu estava errada! Você continua idiota, só está mais forte e mais
peludo! Agora ande, me leve logo para o aeroporto como prometeu a Aren.
— Eu vou! Mas não pelo caminho que ele espera. — Entrou no
meio da floresta, por uma estrada secundária de terra.
Senti um aperto no peito, um medo estranho ganhando espaço.
— Hanssen, não seja idiota… Essa não é a hora de…
— Trair a Coroa? — soltou com os olhos fixos na estrada. —
Enganar o príncipe? — Acelerou ainda mais. — Entregar você aos
rebeldes?
Travei no lugar, o coração acelerado, a cabeça pensando em como
fugir no meio daquela floresta.
— Não seja idiota, Katarina! Eu não sou o vilão, pelo amor da
deusa! Sempre disse isso a você, garota! Ainda não entendeu? — Desviou o
rosto para o meu por um segundo. — Só estou garantindo que não há uma
emboscada para você… Não é difícil pensar que a primeira decisão de Aren
seria mandá-la de volta para a Suécia.
Cruzei os braços na frente do corpo. Estava cansada de viver na
corda bamba, sempre correndo risco, perdendo as pessoas que eu amava, já
não aguentava mais tudo aquilo. Eu só queria Ture de volta.
Deixei um suspiro escapar.
— Vê se não chora, princesa! Odeio ver garotas chorando!
— Seu irmão me disse isso… — confessei.
— É o fraco dos Hanssens! — Sorriu de novo, mas logo ficou
sério. — Não se preocupe tanto, ok? Eles são bons nisso — soltou em um
tom confortador. — Quer dizer, Aren é um grande estrategista e… Bem,
Magnus é muito bom em lutar… Até a baixinha… As pessoas não dão
muito por ela, mas Greta é uma excelente rastreadora… A melhor que
conheço!
Sorri, mesmo triste como estava.
— Obrigada. — Suspirei.
— Sempre um prazer acalmar a minha futura… — Parou a frase
no meio. — Vai mesmo renunciar à Coroa e se unir àquele psicopata?
— Ian! — xinguei.
— O amor deve ser mesmo uma merda! — confessou.
Rimos os dois.
— Sinto falta dele… — confessei depois que o riso morreu.
— Logo ele estará de… — Parou a frase e o carro, tão rápido que
eu quase bati a cabeça no vidro. — Shhhh! — pediu.
Ficamos parados ali por alguns segundos. Ian não se mexeu, nem
eu o fiz. Não tinha ideia do que estava acontecendo, mas aquele medo de
antes voltou com força total.
Desça devagar e se esconda no meio daquele arbusto… — falou
sem emitir som. Cuidado com as folhas, é erva-de-lobo, mas vai servir para
mascarar seu cheiro. Rebeldes estiveram por aqui!
Encarei os olhos dele por um segundo e confiei. Não tinha mais
ninguém por mim ali.
Fiz o possível para ser silenciosa e, por mais que procurasse Ian
com o olhar, não o encontrei.
Esperei e esperei. O dia cinzento já estava claro e nada de ele
voltar. Foi então que ouvi o mato farfalhar.
— Ei!
Dei um salto tão grande de susto que caí para trás e só então vi Ian.
A roupa suja de terra e folhas. Havia um corte em seu lábio e
alguns arranhões no rosto.
Arregalei os olhos.
— Estou bem, não se preocupe.
— Você lutou com…
— Um mutta — explicou. — Eles são menores e mais fracos, não
era um grande risco. — Estendeu a mão para que eu me levantasse. — A
questão mais importante, Katarina, é que eu estava certo…
Franzi o cenho sem entender.
— Você não era o alvo, princesinha… Ture era!
Arregalei os olhos e depois abri a boca para retrucar, mas me
lembrei do lobo e do que eu tinha percebido. Ture conhecia o lobo,
conversava com ele. O animal não atacou Ture, nem ele o fez. Não era um
confronto, era…
— Um sequestro.
— Pare já com isso, Hanssen.
— Ah, não, eu não estava ouvindo você… Só deduzi.
— Mas se sua teoria… Então… — Afilei os olhos, não conseguia
encontrar a ligação.
— Minha teoria é de que quem sequestrou Ture não pretende matá-
lo, mas mantê-lo em segurança…
Fixei a atenção nele, a cabeça girando as peças como engrenagens.
— Já você, eles querem morta mesmo… — Deu de ombros. —
Prova disso é o avião ali… — Apontou para o meio das árvores e eu dei
alguns passos até enxergar o que parecia uma pista vazia.
— Qual? — perguntei sem entender.
— Nenhum! — Sorriu. — A ordem de Aren não foi seguida, o que
significa que há um traidor entre os que ele confia ou… Confiava… —
soltou no ar, mas não explicou. — Era uma emboscada, como eu
suspeitei… — continuou. — E quem sequestrou Ture fez isso para impedir
que fosse ele a levar você para aquela pista vazia ali! — Apontou mais uma
vez.
Engoli em seco e o gosto era muito, muito ruim.
— O que vamos fazer agora? Aren e os outros… Todos…
— Correm perigo! — concluiu. — E seu Ture também… —
completou. — Quando Sten descobrir, não vai admitir a traição.
Meu peito subia e descia tão rápido que o ar me faltou.
— Estamos em plena guerra, princesa e, pelo que parece, o novato
é que tinha razão! — Deu de ombros. — Agora vamos dar um jeito de
resolver essa merda toda… — Estendeu a mão. — Sei que me odeia,
Katarina, mas agora preciso que confie em mim!
Capítulo Quarenta e Quatro
Katarina
Voltamos para o carro e fiquei em silêncio, tentando absorver tudo
que tinha acontecido.
— Droga! — xingou depois de tentar ligar para alguém várias
vezes.
— Seu pai? — perguntei.
— Magnus… E Aren… Até Greta! Já tentei avisar a todos eles,
ninguém me atende! Eu não ligaria para o meu pai…
Baixei os olhos com medo de falar demais.
— Eu já sei de tudo, Katarina… Só finjo não saber para não
desagradar o meu irmão, mas sei que meu pai é um filho da puta e não
confio nele. Lembra? — perguntou. — Eu tentei te contar! Falei que meu
pai…
Lembrei-me da nossa conversa, no dia da morte do meu pai.
— Desculpe, eu não fui muito claro. Devia ter jogado a real de
uma vez, mas me enrolei… — ia falando enquanto dirigia em alta
velocidade por um caminho que eu não tinha ideia de aonde iria nos levar.
— Eu estou batendo nessa tecla com Magnus desde a morte da Hilde.
Voltei o rosto para o dele, sem entender.
— Não me diga que ela…
— Sim. Era um lobo e sua guardiã.
Desviei o olhar.
— Ah, não, pare de se culpar! Hilde não era tão boazinha quanto
você…
— Não se atreva a falar dela, seu…
— Até pouco mais de um mês, você nem sabia que era uma
criatura não humana e agora quer mesmo brigar comigo para defender a
amiga que escondeu tudo isso de você?
— Meu pai não queria…
— Ah, Katarina, pare de ser tão compreensiva e comece a ser
esperta.
Cerrei os dentes com raiva.
— Você pode me morder se quiser, mas vai me ajudar a provar a
verdade! — debochou e eu franzi o cenho.
— Achei que sua missão era me levar em segurança para a Suécia.
— E vou! Mas antes vamos salvar seu romeu e provar que eu
sempre estive certo!
Cruzei os braços na frente do corpo. Não havia muito que pudesse
fazer.
Eu nem sabia mais em quem confiar ou que verdade era real em
minha vida. Tudo que podia fazer era torcer para Ian Hanssen ter mesmo
toda a razão que pensava que tinha e conseguirmos ao menos salvar Ture,
antes que o tal Sten pegasse os outros.
Dirigimos até que a tarde caiu e um pouco mais.
Quando já não restava quase nada de claridade, Ian parou o carro,
escondido da visão da estrada. Abriu o porta-luvas e pegou duas pistolas.
— Sabe atirar? — perguntou.
— Nem flechas! Quanto mais munição de verdade! — confessei.
— Então você vai ter que aprender, Katarina! — Abriu minha
palma e colocou a arma nela, depois de conferir o pente. — Sei que é a
princesa e tem uma legião de fiéis escudeiros, mas aqui vamos ser parceiros
e talvez eu precise de ajuda!
— O que pretende?
— Seguir o rastro do desgraçado que traiu o mestre dele! — Riu de
canto. — Você atira assim… — Arrumou minha mão na posição, o dedo
sobre o meu, mostrando onde apertar. — Puxa aqui e atira de novo, caso
precise… Mire no meio do corpo.
— Achei que deveria mirar a cabeça…
— Se você acertar em algum ponto, já estaremos no lucro! Ao
menos vamos atrasar o filho da puta.
Encarei a arma em minha mão.
— Você é esperta! Sei que consegue! — Sorriu. — Ture precisa de
você. Os outros vão demorar muito a descobrir o verdadeiro plano.
Enchi os pulmões de ar e soltei devagar.
— Ok! Prometo fazer o melhor que puder!
— Esse é o espírito!
Partimos para dentro da floresta escura, caminhando pelo meio das
árvores.
— Tem certeza de que, ao menos você, sabe usar essa arma, não é?
— perguntei preocupada.
Meu senso de direção era péssimo e eu não tinha ideia de onde
estava.
— Vou desconsiderar a pergunta… — reclamou.
Andamos mais um pouco. Ian vasculhando, cheirando como um
cão farejador, e a floresta ficando cada vez mais fechada.
Algumas horas e alguns quilômetros mais tarde, Ian parou na
entrada de uma caverna. A noite estava muito fria e a garoa fina que caía
dava sinais de que a neve não demoraria a começar.
— Vamos acampar por aqui — explicou. — Com esse tempo, não
é prudente continuar, vamos acabar exaustos e perdidos em algum lugar
debaixo de alguns palmos de neve.
Concordei com um aceno de cabeça.
Não tinha muita experiência com acampamentos, os únicos que
havia feito eram no verão e com a supervisão do internato.
Ian encontrou um espaço para escorar o corpo, junto a uma fenda
na rocha sólida, o que ajudava a nos proteger do vento frio que vinha de
fora, mas nos fazia ficar mais perto do que eu me sentia confortável em
estar.
— Vem! — Abriu o braço, oferecendo-me o corpo para que eu me
aquecesse.
Encarei-o por alguns instantes.
— Sou eu, ou o morcego pendurado ali…
Quando apontou para o canto escuro da caverna, eu dei um grito e
Ian caiu na risada.
— Pela deusa, garota… Você ainda não entendeu que é um animal
feroz?
Pensei em xingar e reclamar, mas o que eu podia fazer? O garoto
era meio tonto e cheio de graça, mas era minha melhor opção para sair de
tudo aquilo viva e com Ture ao meu lado.
Suspirei e me deitei ao lado dele. Estava tão frio que eu não
conseguia parar de tremer. Depois de alguns segundos em silêncio, Ian tirou
a blusa e jogou em cima de mim.
— Pode ficar, eu já não sinto mais tanto frio quanto antes.
Não recusei, estava com frio, cansada, e meu coração, um trapo.
Tudo que conseguia pensar era em Ture preso em algum lugar naquela
merda de nevasca.
— Vai dar tudo certo… — meu companheiro falou tão baixo que
eu não soube se era realmente para mim ou fruto dos meus pensamentos.
Em algum momento, dormi, mas não foi uma noite agradável. Por
mais que meus olhos insistissem em se fechar pelo cansaço, minha mente
brigava para continuar desperta, porque eu sabia que em algum lugar Ture
precisava de mim.
Acordei na manhã seguinte com o rosto enterrado dentro do casaco
de Ian. Minhas botas cobertas de neve.
Dei uma olhada em volta, constatando que estava sozinha. Senti
um arrepio de medo me percorrer. Não tinha ideia de que horas eram,
embora parecesse bem cedo. O céu estava azul e limpo, então devia ser
manhã, já que escurecia cada vez mais cedo, dada a proximidade do
inverno.
Tentei levantar e descobri que dormir no chão não tinha nada de
divertido. Minhas costas doíam e o estômago roncava. Eu mal tinha comido
no dia anterior.
— Bom dia, alteza — ouvi a voz antes de ver a silhueta alta saindo
do meio dos arbustos.
Ian estava sem camisa e com o jeans sujo de barro e folhas, sobre
os ombros, um pedaço de carne que eu não ousei perguntar a quem
pertenceu.
— Gosta de steak tartar? — brincou. — Não sei se vamos
conseguir lenha seca depois dessa nevasca.
Minha cara deve ter me denunciado, porque o idiota riu.
— É brincadeira, Katarina! Eu hein, que péssimo senso de humor!
— Não é isso — continuei —, eu nunca realmente agradeci. Você
tem se mostrado um grande amigo e eu nem agradeci.
Capítulo Quarenta e Cinco
Ture
Não sei por quanto tempo dormi, mas acordei com a garota
ajoelhada ao meu lado.
— Anda, Ture, beba! — ordenava com a voz irritada. — Você é
mais forte do que essa porcaria.
Tentei controlar os músculos, sentia como se meu corpo fosse um
saco de areia molhada, pesado demais para que eu o sustentasse.
— Que po… — Engoli o líquido amargo. — Que porra é essa que
você me deu?
— Um elixir… — explicou usando um pedaço de tecido para secar
o que eu não conseguia engolir. — É mais forte que aquele que Yrian
usava, já deveria ter feito…
— Para quê? — interpelei. — Para que quer me salvar? Seria mais
fácil terminar o que começou, não acha?
Pela fresta da janela, vi mais um dia clarear. O pensamento não
saía dela, minha Katarina. Onde estava? Será que Aren tinha sido esperto o
suficiente para entender o que estava acontecendo? Será que estava vivo?
Usei toda a força que havia dentro de mim para ajeitar o corpo,
mantendo-o apoiado contra a pilastra.
Minhas mãos estavam amarradas para cima, penduradas em uma
das vigas de sustentação como um pedaço de carne no matadouro.
— Aqui… Beba mais um pouco… Vai ajudar.
Não separei os lábios.
— Ture, não seja teimoso, por amor de Freya, me deixe… Só me
deixe…
— Vai me salvar? — perguntei. — Acha que conseguirei viver se
aquele desgraçado fizer algo com Katarina?
A garota se levantou nervosa, ajeitando uma mecha de cabelo atrás
da orelha, os olhos perdidos em algum ponto da parede empoeirada, como
se escolhesse as palavras.
— Ele não vai…
Fixei os olhos nela.
— Ele não vai matar Katarina, ele precisa dela.
Senti meu sangue ferver, a fera urrando, meus dedos cerrados em
punho.
— Não faça isso! Não me obrigue a…
A porta se abriu interrompendo a frase e um homem apareceu. Eu
não o conhecia, mas, a julgar pela expressão no rosto da garota, podia jurar
que ela, sim.
— Harald, eu só…
— Então era isso que pretendia o tempo todo… Trair Sten e salvar
esse bastardo!
Aproveitei que meu estado não era dos melhores e me fingi de
desmaiado, talvez pudesse usar a surpresa a meu favor e dar o fora daquele
buraco.
— Sabe que o chefe vai ficar louco quando souber o que a
protegida dele anda aprontando por aí…
— Se você não… — A garota tocou os braços do homem a sua
frente. Estavam a poucos passos de mim. — Se guardar esse segredo,
apenas até que… Até que Ture esteja bem… Sten poderia… Ele não…
— Aí vai depender do que eu vou conseguir em troca, gracinha…
Sabe muito bem que eu sou louco por você desde sempre…
A raiva que já latejava em minhas veias aumentou.
O homem a segurou pelos braços, levando-a mais para perto. Eu
podia sentir seu nojo e desgosto, mas ela não lutou contra. Em vez disso,
deu alguns passos mais para perto de mim, conduzindo-o com ela sem que
ele percebesse.
— Juro que vou recompensá-lo… — Sorriu, a boca acariciando o
rosto do homem. — Só preciso que tenha um pouco de paciência, sabe que
eu…
O tal Harald tentou beijá-la, mas ela desviou.
— O que foi? Vai se fazer de santa agora? Só porque eu não tenho
sangue nobre?
A mão grande dele segurou-a pelos cabelos e ele forçou o beijo
que ela havia recusado. Quando a garota tentou se desvencilhar, o sujeito a
jogou no chão com força e ela bateu a cabeça contra o piso, perdendo a
consciência.
Tentei me transmutar, mas não conseguia. Por mais que a fera
lutasse, o veneno era forte demais para que encontrasse seu caminho para
fora, então aproveitei a distração do desgraçado e mandei um chute forte em
seus joelhos, fazendo-o cair no chão antes que pudesse se aproximar da
garota.
— Ah, seu desgraçado! Você acordou!
Diferente de mim, o homem se levantou em um estalar de dedos.
Meu estado de torpor não me permitiu nem mesmo esquivar o corpo do
chute que levei na boca.
A vantagem é que dor também não senti.
— Deixei-o… Deixe… — A garota tentou se mover.
Harald virou-se de lado e chutou sua barriga, depois a minha,
repetidas vezes. Quando a sola da bota bateu em meu rosto novamente,
cuspi sangue no chão, parte dele escorrendo pelo meu lábio cortado e
sujando a camiseta, mas consegui acertar um chute em seu peito, ele
cambaleou para trás e foi o suficiente para que a garota conseguisse a
distração de que precisava. O golpe da faca foi certeiro e o sangue desceu
pela garganta do desgraçado, enquanto sua boca tentava cuspir as palavras.
— Solte-me… — pedi de novo, a voz mais suave desta vez. —
Não sou seu inimigo, sabe disso… Sabe que eu posso protegê-la… Solte-
me… Katarina está em perigo, Aren…
Ela negou com a cabeça. Os olhos perdidos nos meus.
Não sei em que ponto a garota doce e divertida que eu vi crescer se
transformou naquela que eu não reconhecia, mas jurei pela deusa que, se eu
tivesse oportunidade, faria de tudo para devolver a ela o sorriso.
Capítulo Quarenta e Seis
Katarina
Quando terminamos nossa refeição, a luz do dia já havia diminuído
consideravelmente.
Deixei os ossos no canto e limpei a boca com as costas das mãos.
— Tem um riacho a alguns metros, se quiser se lavar… —
ofereceu abocanhando um pedaço malpassado de carne.
Levantei e caminhei na direção, agachando perto da água e lavando
o rosto. Por sorte, ainda não estava completamente congelado e a água fria
ajudou a me manter desperta.
Voltei para perto dele e me sentei, encarando o garoto a minha
frente.
Soltei um suspiro involuntário e profundo, pensando em quantas
coisas eu não havia dito a quem eu amava. Nem a Aren, ou meu pai… A
saudade de Ture bateu forte, como se eu pudesse sentir o pedaço faltando
em minha alma. Pensei no quanto ele devia ter sofrido todo esse tempo, se
já sentia esse vínculo. O quanto sofreu para ser justo, leal… O quanto
abdicou de si mesmo por mim.
Suspirei mais uma vez.
— Obrigada… — falei para Ian.
— Foi só um veado, não se anime muito…
— Não é isso, eu só… Você nem… Nem tinha que se meter em
tudo isso… Obrigada.
— Ihhhh… Não vai começar a ficar sentimental agora, não é? —
Ergueu uma sobrancelha. — Grite comigo, me chute, morda meu braço,
mas não fique toda chorona, ok?
Acabei rindo.
— Não tem como ser sentimental perto de você, garoto! Você é
totalmente insensível!
— Gosto assim! — Sorriu de canto com o pedaço de carne ainda
entre os dentes.
Depois de limpar nossos rastros, continuamos o caminho pela
floresta. Ian rastreando o cheiro de Ture e eu rastreando Ian para não o
perder de vista.
— Estranho. — Ian parou de repente. — Estou tentando entender
desde que partimos. Existe um cheiro conhecido misturado ao de Ture, mas
eu não consigo saber de quem.
Cheirou um abeto e eu tentei fazer o mesmo.
— Não sinto nada! — exclamei.
Ian riu.
— Espere até ser um lobo e nunca mais irá conseguir comer
burritos!
— Isso seria uma pena!
— Nem fale! Eu amo burritos!
Quando já quase não havia luz, encontramos uma estrada. Ian
parou, como se analisasse o espaço. Depois se abaixou perto de algumas
marcas de pneus.
— Magnus esteve por aqui! — Voltou os olhos para mim. — Eles
seguiram pela estrada, mas sem um carro…
Soltei o ar dos pulmões.
— Acho que temos um problema então… — Sentei-me em uma
pedra. — Porque não acho que…
— Shhhhhh! — Silenciou-me com o dedo em riste. — Vem vindo
alguém! — cochichou. — Vamos, finja que está perdida… Peça ajuda, que
eu vou me esconder.
Abri a boca para protestar, mas nem tive tempo e logo a
caminhonete se aproximou.
Fiz sinal com a mão, como tinha aprendido com Hilde nas vezes
que matamos aula para passear pela cidade.
Hilde…
A lembrança dela e de como as coisas haviam acontecido fez meu
coração se apertar.
Parece que todo mundo que se aproxima de você morre,
Katarina…
Para a minha felicidade, minha tática deu certo e a caminhonete
parou, um pouco à frente. Apressei o passo e me aproximei, procurando Ian
pela escuridão.
— Ei, linda! — um homem de cabeça raspada e mão tatuada
acenou. —Lugar estranho para estar perdida…
— Gostosa desse jeito vai acabar arrumando confusão! — O
carona riu fazendo graça.
Senti uma pontinha de medo e muita raiva de Ian por não ter
aparecido ainda, mas, antes que precisasse bolar um plano, a voz dele se
sobressaiu no meio das piadinhas.
— E quem disse que a moça não está procurando confusão?
O garoto caminhou com a pistola empunhada de um jeito
ameaçador, meio virada de lado, direto no rosto do motorista.
— Deixe o carro ligado e desça… — ordenou com a voz
empostada, aquela urgência que não permite questionamentos. — Fique
com o telefone para pedir ajuda. Vou devolver o carro assim que terminar o
que preciso fazer.
Adrenalina pulsou em minhas veias, as mãos se mexendo
inquietas. Minha boca estava seca de nervoso.
Os dois homens se entreolharam por um segundo, mas nenhum
deles questionou.
Quando entramos no carro e Ian acelerou, olhei a cara de tonto dos
dois, ainda tentando entender que trem os havia atropelado.
— Mas que porra, Hanssen! — xinguei. — Desde quando você
rouba carros?
— Desde quando a vida do meu irmão está em risco! — Fixou os
olhos na estrada, daquele jeito que todos eles faziam, como se não fossem
mais apenas humanos.
Continuamos na estrada por mais algum tempo. Ian parava de vez
em quando e procurava rastros pelo caminho. A paisagem começava a
mudar à medida que nos embrenhávamos mais para dentro do continente.
Tudo parecia deserto e coberto pela neve da noite anterior. Em um ponto
menos denso, Ian entrou com a caminhonete pelo mato e parou, desligando
os faróis.
— Daqui seguimos a pé — avisou.
Desci do carro e esfreguei as mãos, soprando ar quente nelas.
Caminhamos para dentro da floresta novamente, andando até que
minhas pernas começaram a reclamar.
— Será que não podemos…
— Shhhhh! — pediu novamente.
Encarei-o por alguns segundos, não conseguia ver mais que alguns
centímetros a minha frente, dado o escuro, mas ele parecia saber
exatamente onde estava.
Depois de alguns passos comedidos e certeiros, Ian atravessou um
grande e denso arbusto, então saímos perto de um pequeno riacho.
O dedo dele continuava sobre o lábio, então eu não perguntei nada,
esperei até que apontou a direção e, quando fixei os olhos no céu, vi a linha
de fumaça subindo em direção às nuvens.
— Eles estão lá? — perguntei aproximando-me dele o suficiente
para que minha voz não fosse mais que um sussurro.
Acompanhei o sentido contrário da fumaça com o olhar, não
conseguia ver mais do que as copas das árvores, mas podia jurar que Ian via
mais do que eu.
— Vamos chegar mais perto, mas você precisa ser cuidadosa… —
avisou. — Olhe onde pisa e se mantenha contra o vento.
Aquiesci.
Seguimos cuidadosamente o caminho. Ele na frente, eu o seguindo
como uma escoteira em treinamento.
A cada novo passo que dávamos, o som ia aumentando, até que se
tornou vozes.
— Não seja injusto comigo, Ture! — uma voz feminina ecoou
acima do barulho dos insetos.
Meu coração deu um salto tão grande no peito que precisei escorar
em uma árvore para não cair.
— Você não entende! Nunca entenderá!
— O que eu não entendo é como você pode ser capaz de se prestar
a isso! — a voz dele era sofrida, dolorida. Não era apenas sofrimento,
parecia cansada.
Vivo, Katarina, ele está vivo! É só o que importa, todo o resto pode
ser resolvido depois… Ture está vivo!
— Acha que foi fácil para mim? — a garota esbravejou de volta, a
voz gutural como a de um lobo. — Acha que eu não me machuquei
também? Que eu não o amava?
Engoli o desespero em seco, incapaz de me mover. O mundo
desmoronando ao meu redor.
Eu conheço essa voz… conheço! Mas de onde?
Pisquei e tentei entender, mas era como se houvesse uma lacuna
em minhas lembranças. Minha cabeça começou a doer.
— Você não é capaz de amar… — a voz de Ture continuou a
discussão. — Nunca amou ninguém… Nem mereceu o amor que teve!
— Acha mesmo que eu não sei amar? — a garota inquiriu.
Quem é? Por que não consigo me lembrar? Maldito remédio que
tomei por tanto tempo!
— Pois saiba que tudo que eu fiz foi por amor, seu estúpido! Amor
a você!
Senti como se meu coração fosse uma bolinha de vidro, daquelas
de Natal, e alguém estivesse pisando nele com força.
Por amor? Quem amava Ture a ponto de sequestrá-lo e mantê-lo
no meio do nada? De quem era aquela voz?
A cabana ficou silenciosa numa fração de segundos. Olhei para
Ian, que me encarava com olhos preocupados. Não tivemos chance de
reagir.
— Veja se não é o caçulinha do bando… — a voz feminina se
aproximou e meu coração deu um salto. — Você teria sido tão mais esperto
se ouvisse meus conselhos… — debochou e algo estalou em minha cabeça.
Lembranças? — Pisquei mais algumas vezes.
Percebi a mudança na respiração de Ian. As mãos fechadas em
punho, o suor escorrendo de seu cabelo. Lembrei-me de como Ture ficou,
de Aren quando nos salvou do atentado da floresta e tudo foi ficando claro.
— Seria ainda menos inteligente da sua parte se transformar… —
Alguns galhos farfalharam e a risada ecoou.
Ela? Não, não pode ser! Ela não pode… Ela… — Meu corpo
começou a tremer, o coração batendo tão rápido que eu mal conseguia me
manter em pé. Ela está morta! Eu vi!
Senti as primeiras lágrimas rolando uma após a outra,
transformando-se em uma barragem aberta em meus olhos. Os pensamentos
se confundindo dentro do meu coração.
Ian estava à minha frente. Seu corpo forte pronto para atacar, os
punhos cerrados, olhar focado. Ele era meu guardião, de fato e por
merecimento, não era como ela…
Será que… Ela ama Ture? Como o conhece? Uma loba, Katarina,
talvez os dois… E se Ture…
Engoli em seco o bolo de sentimentos que se formou.
Capítulo Quarenta e Sete
Katarina
Foi então que a silhueta se aproximou e o rosto dela entrou em
foco.
Tantas lembranças passaram por mim em uma fração de segundos
que o choro não cessava nem que eu me esforçasse para isso.
Eu tinha confiado nela! Tinha dividido meus sentimentos, minhas
dores.
— Katarina… — ela deixou escapar.
A voz já não era como a de um animal, se parecia bem mais com a
da garota com quem dividi o quarto por tanto tempo.
Seus cabelos loiros estavam mais curtos, o corpo, mais magro e
musculoso. Não tinha mais a doçura no olhar, nem o sorriso divertido nos
lábios bonitos, mas, lá no fundo dos olhos, eu ainda podia ver resquícios da
amiga que eu tanto amei.
— Hilde… — Suspirei.
Ela deu alguns passos, desviando-se de Ian para se aproximar.
Abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu, até que uma lágrima solitária
rolou.
Traidora! — minha cabeça gritava. Fique longe! — mas havia uma
parte dentro do meu coração que ainda não conseguia esquecer o que
tínhamos vivido de bom.
Travei no chão enquanto ela dava passos comedidos para perto.
— Eu nunca quis… — Soltou uma lufada de ar, os braços caindo
em rendição ao lado do corpo. — Nunca quis machucar você, eu… — As
palavras morrendo em sua boca antes de sair, arranhando meu coração. —
Eu não queria…
— Queria, sim! — Ian interrompeu, protegendo-me com seu
corpo. — E eu sempre soube, Hilde… Sempre soube que havia algo
escondido ali na sua fachada! Eu avisei! Avisei a todos, mas ninguém…
— Cala a boca, Hanssen! — xingou. — Você nem deveria estar
aqui! Aliás, vocês dois não deveriam! — a voz assumiu o tom ousado
novamente, aquele que me deixou em dúvida sobre sua identidade.
Não era mais a amiga em que eu confiei.
Por um segundo, lembrei-me da minha mãe e de como ela havia
sido forte e corajosa. Minha mãe foi traída pelos que mais amava e, apesar
disso, tinha lutado até o fim.
Respirei fundo. Apertei os olhos para que as lágrimas ficassem
contidas e recuperei a postura. Peito aberto, passei na frente de Ian.
As palavras de Aren reverberando dentro de mim.
Eu sou o futuro rei! Eu decido!
Eu era a princesa, não abaixaria a cabeça, não assumiria aquela
fragilidade, eu aguentaria o que fosse, ninguém mais iria me intimidar.
Encarei a garota à minha frente mais uma vez, os olhos varrendo a
figura que eu não reconhecia mais. Hilde, minha amiga, a quem eu contava
segredos e com quem dividia os fones de ouvido, havia permanecido
naquela cova, em seu caixão fechado. Quem estava em minha frente era
outra pessoa, embora usasse o corpo dela.
Estufei o peito, não ia me diminuir.
— Vamos! — ordenou indicando a entrada sem manter contato
visual. — E nem pense em ser idiota, Hanssen… Ou eu juro pela deusa que
arranco sua cabeça! Não se esqueça de quem me treinou…
Ian olhou para mim. Seu rosto era uma máscara de incertezas e
medo. Eu sabia que ele estava preocupado por ter me colocado em perigo,
mas eu não estava interessada em nada além da verdade sobre Ture e Hilde.
Se eu tivesse que morrer, então queria morrer ciente de todas as
mentiras da minha vida.
Segurei o braço de Ian, precisava me apoiar em algo, porque não
sabia como reagir ao encontrar Ture novamente.
Caminhamos com Hilde logo atrás, vigiando nossos movimentos.
Enquanto minha cabeça doía tentando montar o quebra-cabeça de
lembranças sem nexo que iam aparecendo diante de mim.
Quando a porta se abriu, meu coração se apertou. Ture estava
algemado a uma das colunas de sustentação do chalé. Usando uma calça
jeans surrada e uma jaqueta grossa, aberta na frente. Havia um hematoma
no osso da face, abaixo do olho esquerdo. Seu lábio estava partido no
centro, como se tivesse sido torturado.
Corri para ele sem pensar em nada mais. Era como se meu corpo
tivesse vida própria, como se não fosse mais eu no controle, e sim o animal
dentro de mim.
Eu podia sentir o lobo fungar, urrar e arranhar. Doía… Doía como
o inferno, mas bem menos do que ver o homem que eu amava ali,
machucado e preso como um animal qualquer.
Sentei-me no chão ao seu lado, meus dedos correndo pelos
machucados do seu rosto.
— Katarina… — meu nome saía como música de seus lábios. —
Eu te disse para não…
— Como, Ture? Como não vir atrás de você! Como deixar para lá?
Um suspiro deixou seu peito e eu não resisti, esfregando meu nariz
no dele, sentindo sua respiração, o toque do seu lábio.
— Garota idiota! — xingou, mas havia tanto sentimento em seu
olhar que eu quis chorar. — Agora estamos fodidos os dois!
Tateei o corte de seu lábio com a língua, sentindo o gosto metálico
do seu sangue. Ture apertou o contato, segurando meu lábio inferior entre
seus dentes.
Depois de um segundo, ele se afastou.
— E você, garoto… — Voltou o rosto para Ian. — Achei que
tivesse sido claro quando lhe disse que sumiria com seu cadáver se o visse
metido com Katarina de novo… — Demorou um segundo para que seu
olhar se suavizasse. — Obrigado por mantê-la em segurança… — Suspirou.
— Se tivesse… Se tivesse acatado a ordem de Aren, então a uma hora
dessas…
Ian baixou o olhar, mas meneou a cabeça em agradecimento.
De repente, Hilde parou. E os dois lobos perto de mim fizeram o
mesmo. Cenho franzido como se ouvissem algo além de mim.
— Seus idiotas! — a garota praguejou. — Ele está vindo! Está
vindo! Eu sabia que não deveria ter salvado você! — Apontou para Ture.
Hilde cerrou os olhos verdes numa linha cor de esmeralda,
exatamente como Ture fazia quando estava com raiva. Depois se virou para
mim.
— Ai, garota, como você é estúpida! Será que era muito difícil
entender que eu não estava atacando ninguém naquele dia? — reclamou. —
Porra, acha mesmo que se eu quisesse… Eu o estava salvando! Salvando!
Não aguentei.
— Estúpida, eu? — gritei. — Ao menos não finjo minha morte
para as pessoas que amo! Eu não forjo acidentes! Não abandono quem
confia em mim! Posso ser imatura e inconsequente, mas não dou as costas
aos meus! — Bati no chão antes de me levantar.
Algo em meu discurso atingiu Hilde bem no coração. Seus olhos
passaram de melancólicos a algo pior no mesmo instante.
— Eu não vou me explicar para vocês… — Virou o rosto para a
janela. — Nós precisamos fugir! Ou ele…
— Solte-me e eu ajudo… — Ture propôs.
Hilde parecia oscilar entre confiar nele e seguir com o plano
inicial.
— Vamos lillasyster[7]… — Ture insistiu.
Hilde continuou imóvel.
— Agora! — ordenou com a voz grave, intensa, daquele jeito que
fazia tudo dentro de mim obedecer.
Os olhos dela se acenderam de um jeito estranho, como se fosse a
primeira vez que o ouvisse falar daquele jeito.
— Solte-me agora, Hilde! Cansei dos seus joguinhos! Você sabe
que eu vou me soltar — ameaçou. — Sabe que eu vou caçar você… —
Afilou os olhos. — E quando eu encontrar…
— Vai me matar? — ela incitou. — Acha que me importo com
isso? Que sobrou algo de que eu me orgulhe aqui? — Apontou para o
próprio peito. — Você me faria um favor!
Um uivo irrompeu o silêncio que se seguiu.
— Oh! — o desespero dela aumentou. — Ele está vindo! Vamos
todos morrer!
Ture suspirou profundamente, levantando-se do chão como dava, e
encarou a garota. Seus olhos calmos e focados nos dela.
— Escute… — a voz era suave. — Não sei por que se meteu
nessa, mas agora não importa. Eu estou aqui! Quero ajudar… Eu preciso…
— Havia um apelo carinhoso em suas palavras. — Solte as algemas…
Agora!
A garota pensou por alguns segundos, seus olhos perdidos nos de
Ture.
Depois do que pareceu tempo demais, caminhou até ele, retirando
a chave de um cordão no pescoço, e soltou as algemas. Ture liberou os
braços, deixando-os cair ao lado do corpo. Hilde permaneceu a sua frente,
os olhos tristes esperando alguma demonstração de afeto.
— Eu queria poder perdoá-la… — cuspiu as palavras como se
fossem abelhas. — Juro que queria dizer que entendo e ser sincero, mas eu
não posso!
Hilde baixou os olhos para o chão.
— Fiz tudo isso por você… — as palavras escapando por entre os
dentes cerrados, como se segurasse o choro. — Eu o traí por você! Eu não
podia… Não podia correr o risco de perder você!
— Você traiu e enganou por poder garota! Não diga que foi por
medo de me perder… Você poderia ter me contado tudo! Podia vir até mim
e contar o que Sten pretendia… Eu teria ouvido. Aren teria ouvido.
Hilde suspirou. Uma lágrima brilhando em sua pele clara cheia de
sardas.
— Eu não podia te contar… — as palavras tropeçaram sofridas
para fora dela. — Não queria ser responsável por quebrar você ainda mais,
meu irmão.
Ture mirou o forro de madeira destruído. Não queria chorar.
— Nada poderia me quebrar mais do que ver minha irmãzinha
dentro daquele caixão, Hilde… Nem amparar a dor do meu melhor amigo
por estar enterrando a mulher que amava.
Minha cabeça parou por um segundo. Irmão? Como irmão? Quem
é a mulher que Aren amava?
Corri os olhos de Hilde para Ture algumas vezes. Mesmo cabelo
claro, mesmos olhos verde-esmeralda, a mesma maneira de cerrar os olhos,
o jeito impulsivo de resolver as coisas… Hilde, minha amiga, era a irmã
perdida de Ture!
Capítulo Quarenta e Oito
Katarina
Eu ainda tentava processar o que acontecia, quando outro uivo
irrompeu o silêncio da cabana, o som bem perto. Todos os olhares se
voltaram para a porta.
Eu podia ver o nervosismo nos olhos da garota que um dia chamei
de amiga aumentar. Sua expressão era tensa, os punhos cerrados. Ture e Ian
estavam em posição de ataque, concentrados. Os nós dos dedos
esbranquiçados e eu ali, parada como uma boba, sem saber o que fazer para
não atrapalhar.
— Atrás de mim, Katarina! — meu companheiro soltou
entredentes.
Obedeci no mesmo instante, só queria garantir que todos saíssem
de lá vivos.
Os passos foram se tornando cada vez mais audíveis, até que
pararam.
— Não ataquem! — a voz conhecida ecoou do lado de fora. —
Vou abrir a porta.
Ninguém atacou. Estávamos chocados demais para nos movermos.
De repente, a porta se abriu em um baque surdo.
Eu não tinha ideia de quem empunhava a arma, mas conhecia
muito bem o homem para quem ela estava apontada, Magnus!
Meu amigo estava imobilizado, a mão do loiro alto e forte o
prendendo pelo pescoço, a arma em sua têmpora. Seus olhos perdidos nos
de Ian. Um apelo silencioso para que tivesse calma.
— Quanto tempo, irmãozinho! — a voz do homem desconhecido
era dura, fria, cruel, mas havia uma nota de sarcasmo ali, perdida nos
sentimentos que ele fazia questão de esconder. — Seus olhos estavam
focados nos de Ture. Achei que não teria o prazer de vê-lo novamente…
Não vivo, pelo menos! — Riu de canto.
Os olhos, verdes como os de Ture, passaram por todos nós e
pararam na garota. Eu a vi mudar os pés nervosa, ansiosa, o peito subindo e
descendo numa velocidade desesperadora.
— Nós… — Girou o dedo entre os dois. — Acertamos as contas
mais tarde!
— Sten, eu não… — tentou justificar.
— Shhhh! — pediu sem paciência. — Depois, Hilde! Depois!
Sten… Eu tinha ouvido aquele nome, sabia quem era antes de
conhecê-lo, o irmão mais velho.
O homem em nossa frente tinha uns anos a mais, mas não muitos.
Era alto e forte e tinha um olhar que fazia meu sangue gelar nas veias. A cor
dos olhos era do mesmo verde-esmeralda de Ture e Hilde e seu cabelo era
de um louro pálido, caía liso, despenteado sobre os olhos.
Sten deu mais um sorriso sarcástico, assim que percebeu meu
interesse.
— Veja se não é a doce princesinha perdida… — Aproximou-se
alguns passos. — Interessante encontrá-la por aqui!
Sten caminhou até mim e parou a uma pequena distância. Ture
apertando os punhos cerrados, sem se mexer. Seus olhos correndo de Sten
para Magnus. Ian respirando mais forte, ofegando.
— Não seja mais idiota que seu irmão mais velho, alemão! — Sten
soltou como se tivesse olhos nas costas. — Enquanto você se embebedava
em festinhas com seus amigos humanos, eu aprendia a lutar pelos da minha
raça.
Mirei os olhos de Ian com um pedido silencioso por calma. Um
passo em falso e um de nós acabaria com uma bala na cabeça ou os dentes
de Sten no pescoço.
— Corajosa como o pai! — O homem em minha frente sorriu
sarcástico. — Acredita que nem mesmo enquanto eu apertava o cordão em
volta do seu pescoço ele perdeu a coragem?
Senti meu estômago se revirar e a cabana girava com ele. Toquei
minha mão livre sobre o braço de Ture. Ele estava gelado, e não era de frio.
— Venha, princesinha… — Sten ordenou.
Não me movi, não dava. Tudo que eu conseguia pensar era no
rosto do meu pai. Os olhos fechados para sempre naquele caixão, o sorriso
que eu jamais veria.
Apertei os olhos para conter as lágrimas. Eu não queria que Sten
me visse fraca.
— Katarina não sairá daqui! — Ture soltou baixo, grave, mas o
som da sua voz ecoou.
Sten franziu o cenho e sorriu, encarando o irmão com os olhos
semicerrados.
— Escolha interessante de palavras, irmão… — o tom era ácido.
—Vejamos como posso persuadi-lo… — Tamborilou o dedo sobre a barba
por fazer. — Roleta-russa! O que acha?
Afastou-se de nós, ainda imobilizando Magnus pelo pescoço, e
apontou a arma para Ian.
— Eu adoro esse jogo!
— Sten, não… — Hilde interveio. — Matar o garoto só aumenta
nossos problemas… Se quiser, eu…
O som do gatilho fez todos travarem.
— Câmara vazia! — Levantou a arma fazendo graça.
Quando voltou os olhos para Hilde, eles não eram mais que uma
linha cor de esmeralda.
— Achei que tivesse sido claro quanto a você se metendo onde não
é chamada lillasyster! — praguejou.
Um segundo depois, já havia assumido a máscara de sarcasmo
novamente.
— O que me diz, irmão? Quer jogar comigo, ou vai me entregar a
sua princesinha? — soltou encarando Ture.
— Katarina não sairá daqui! — a ferocidade em sua voz aumentou.
— Talvez o anime um pouco, se eu o colocar no jogo, Ture! —
Engatilhou, apontando a arma.
Observei a pistola, meu corpo se retesando em antecipação, o
sangue gelando minhas veias. Minhas mãos cerradas.
— Então, irmão, o que vai ser? Eu devo te dar a vez da princesa?
Devo avisar que suas chances de morte aumentarão em cinquenta por cento!
— Atire! — Ture soltou entredentes, empurrando meu corpo na
direção de Ian. — Essa é a única maneira de tirar Katarina de mim!
Sten apertou o gatilho e eu abafei um grito contra o antebraço.
— Oh… Câmara vazia de novo!
Minhas pernas pareciam feitas de gelatina. Eu sentia meu corpo
todo formigar de desespero e, quanto mais a tensão aumentava, mais o
desgraçado parecia se divertir.
— Vejam como o amor é uma coisa estúpida… — Sten anunciou.
— Os dois imbecis, dispostos a darem suas vidas pela do outro… Seria
comovente, se não fosse estúpido! Sabem… As pessoas fazem coisas
estúpidas por amor… — Continuou andando em volta de nós, arma em
punho, fazendo graça. Elas mentem… Traem… Abandonam as outras…
Não medem as consequências!
Havia uma tristeza palpável nas palavras de Sten. Fiquei pensando
quem o havia magoado tanto para torná-lo esse maldito bastardo de merda.
— Você está errado! — Ture o peitou. — Diz isso porque nunca
foi capaz de amar ninguém! Você é um bastardo de…
Dei um salto de susto quando Sten apertou o cano da pistola na
testa de Ture.
— Parece que o amor também nos deixa mais corajosos
lillebror[8]… Sua sorte é que eu estou justo hoje… — Riu.
Sten girou e apontou a arma para sua própria cabeça. Rezei para
que fosse a câmara certa.
— Para não dizerem que eu trapaceio nos jogos… — Apertou o
gatilho mirando os olhos do irmão. — Outra vazia! Parece que estamos
todos com sorte! — Riu novamente. — Já são quatro em seis! O que
significa, alemão… — Voltou-se para Magnus. — Que você tem cinquenta
por cento de chances de viver!
Magnus não demonstrou medo, mal se moveu. Seu corpo grande
permaneceu sereno, os braços relaxados, os olhos estavam em Ian. Sua
expressão pesarosa por imaginar o desespero do irmão.
— Se bem que… — Sten continuou. — Para alguém como você,
viver não deve ser assim tão importante… Diga, alemão. — Puxou o
gatilho, apontando para a cabeça de Magnus. — Como é sobreviver com a
culpa de ter sido responsável pela morte da própria mãe?
Os olhos de Magnus continuaram impassíveis, encarando Sten
corajosamente.
— Nos conte como é ser um maldito mestiço mutilado? O dinheiro
do seu pai é suficiente para comprar algumas putas? Ou mais alguma parte
sua não funciona direito? Eu soube por fonte segura que você costuma
afogar as mágoas entre as coxas de humanas! Diga-me, Magnus Hanssen…
Você é capaz de entretê-las? Vergonhoso até para um mestiço! Nosso
sangue nobre misturado ao desses insignificantes sacos de ossos!
Eu queria voar na garganta de Sten e abrir sua jugular com os
dentes. Podia sentir a fera dentro de mim se movendo, forçando sua saída.
Sentia meu corpo estranho, pesado, minha respiração acelerada.
Como ele pode ser tão cruel?
Magnus era meu amigo! Um homem maravilhoso e leal, ele não
merecia. De qualquer maneira, o irmão de Ian não parecia se abalar com os
comentários.
— Está preocupado com o lugar em que afogo minhas mágoas,
Sten? Ou só está se candidatando?
Sten chutou as pernas de Magnus e se curvou. A joelhada acertou o
nariz do alemão no mesmo instante e o sangue jorrou, criando uma pequena
poça no chão.
— Vamos ver se tem mais sorte na roleta do que na vida,
mestiço…
O grito de Hilde irrompeu o silêncio.
— Não!
Antes que Sten puxasse o gatilho, ela estava na frente de Magnus,
colocada entre ele e a arma. Corri para Ture, apertando o rosto contra seu
peito, não queria ver. Outro baque, a última câmara vazia.
Os olhos de Sten estavam apertados em uma linha cor de
esmeralda, apontados para Hilde como duas adagas afiadas. Ela parecia
nervosa e desconcertada, era como se só tivesse percebido o que fizera
quando foi repreendida. Magnus manteve os olhos baixos no chão, as mãos
limpando o sangue do nariz.
— Ansiosa por sua vez, lillasyster? — o desgraçado a desafiou. —
Creio que suas chances são bem grandes, irmãzinha.
Minha amiga morta, ou ao menos foi o que pensei por tantos
meses, deu um passo para longe de Magnus, seu rosto contraído de
vergonha, o olhar pesaroso e triste.
Eu podia ver o tecido da blusa subindo e descendo rápido em seu
peito. Ela estava nervosa, mas não ia fugir nem implorar. Estava disposta a
apenas aceitar seu destino.
Encarei a garota à minha frente. Cenas passando por mim como
um filme. Nós duas no café da universidade, Hilde jogando charme para o
atendente enquanto eu roubava um cookie com gotas de chocolate. Nós
duas tomando sol no gramado ao redor da quadra, ela rindo de mim porque
eu não sabia nadar. Eu a ajudando com o teste de biologia.
Senti o coração apertar. Deveria ter raiva dela, mas não conseguia.
Aquela garota fora minha amiga por tanto tempo, minha única amiga.
Eu não podia deixar que ele a matasse apenas para se divertir. Não
sabia o que havia levado Hilde a mentir e enganar, mas entendia o que havia
acontecido realmente, não podia virar as costas para ela.
Sten tinha razão, meu pai era um homem corajoso. Ele havia me
ensinado a proteger os que eu amava.
Numa fração de segundos eu me soltei de Ture e corri em direção a
Sten.
— Eu estou aqui! — falei de frente para ele. — Era isso que você
queria? Minha cabeça numa bandeja? Pois seja homem o suficiente para
cortá-la você mesmo!
Sten riu, passando o braço em volta de mim e aproximando o rosto
do meu. Cheirou meus cabelos e beijou minha têmpora com suavidade. Os
dedos ásperos eram firmes contra meu casaco, apertando meu corpo como
quem tem certeza do que pode fazer e como se comportar.
— Doce princesinha… — O polegar desceu pelo meu rosto. —
Sabe que assim de perto até consigo entender o fascínio do meu irmão por
você?!
Segurei seu olhar, ainda que sentisse meu corpo todo tremer. Tinha
medo do que Ture faria se percebesse o menor sinal de hesitação em mim,
então evitei seu olhar também.
Sten manteve a arma em uma das mãos, enquanto a outra
escorregava pela minha pele.
— Tentador… — continuou. — Mas, dadas as circunstâncias, creio
que você tenha mais valor viva do que morta… Você entende, não é? Um
guerreiro com o seu sangue pode ser muito útil para que eu reivindique o
trono… — Sorriu. — Bem que dizem que as mulheres ficam mais valentes
quando estão carregando uma cria!
Arregalei os olhos sem entender, o coração martelando as
têmporas.
— Oh! — o desgraçado começou a rir mais.
— Parece que fui o portador da boa-nova! — Deu um soco no ar
fazendo graça.
Todos os olhares se voltaram para mim. Eu podia ver o desespero
estampado no rosto de Ture, espelhando os nossos amigos.
Dois dias… Não faz mais que isso que Ture e eu… Não! É
impossível…
— Parabéns, princesa… — Bateu palmas, a arma entre elas. —
Você vai ser mãe de um bastardinho rejeitado! — Riu de novo. — Isso é
muito divertido… Eu até entendo que ela não soubesse, mas você, irmão…
Como não percebeu que havia uma cria sua dentro dela?
Era como se uma vida toda passasse diante dos olhos de Ture. Ele
franziu o cenho por fim.
— O veneno, seu desgraçado! O veneno que você deu a Hilde para
me dopar!
— Tem razão… Falha minha! — Sten espalmou o próprio peito. —
Mas o fato é que, agora que sabemos que existe um bastardo aqui dentro,
Katarina querida, não posso matá-la… — Acariciou minha barriga e eu me
encolhi por impulso. — Ao menos não até que essa pequena criatura possa
viver sem o seu corpo como abrigo.
— Seu desgraça…
Ture levantou-se em um estalo, mas antes que se aproximasse Sten
engatilhou a pistola e apertou contra minha testa.
— Ah-ah-ah! — repreendeu. — Se comporte bonitinho ou eu vou
ter que deixar o filhotinho aqui órfão de pai antes do que pretendia…
Engoli em seco o medo e o desespero que senti. Havia tanta coisa
confusa. Grávida? Não, eu não posso estar grávida! Quer dizer, posso, mas
não… Dois dias? Não, Katarina!
Sten passou o braço em torno dos meus ombros novamente e me
arrastou até perto da porta.
— Agora, se nos dão licença, a princesa e eu temos uma festa
interessante para ir! Uma que, se tudo der certo, vai mudar muitos rumos e
resolver muitas intrigas… — Riu. — Sempre bom, não é? Lavar a roupa
suja da família? Pois bem… Meus homens irão acompanhá-los até minha
casa, são todos meus convidados, mas prefiro garantir a segurança do meu
sobrinho… Sei que compreendem!
Antes de sair para a noite escura sob o domínio do inimigo, mirei o
rosto do homem que eu amava uma última vez. Sentia como se tudo dentro
de mim se quebrasse em pequenos pedaços.
“Eu vou encontrar você, liten...” — ouvi no fundo da minha
consciência, nem sabia se era real ou se fruto do meu próprio desejo. “Vou
salvá-la e ao nosso filho!”
Capítulo Quarenta e Nove
Ture
Um filho… Meu filho dentro dela…
Pisquei algumas vezes tentando assimilar.
Maldito veneno, que não me deixou sentir a presença do bebê!
Alisei os cabelos para trás, esfregando a nuca raspada.
Um bebê… Havia mesmo um pedaço meu dentro dela, crescendo
na barriga de Katarina, unindo definitivamente nosso destino, fortificando
nosso laço.
Senti meu peito se apertar, a respiração se acelerando. Precisava ir,
salvá-la, protegê-la. Não ia permitir que passasse nem mais um segundo nas
mãos daquele psicopata do meu irmão. Cerrei as mãos em punho, não podia
sequer encarar minha irmã sem sentir raiva.
Como ela pôde? Como pude me enganar tanto?
— Tenha calma, Ture. — Magnus se aproximou. — Vamos dar um
jeito, vamos…
Antes que conseguíssemos pensar no que fazer, a porta se abriu e
dois homens passaram para dentro dela. Do lado de fora, os uivos deixavam
claro que fugir não era uma opção.
Magnus, Ian e eu fomos amarrados e amordaçados com pedaços de
pano embebidos naquele mesmo veneno que Hilde usara para me manter
letárgico.
Os rebeldes guiaram a todos nós para fora da cabana e seguimos
pela floresta, até uma estrada secundária, perdida no meio do mato. Havia
uma van preta estacionada com os faróis acesos e Magnus foi o primeiro a
ser empurrado para dentro do veículo. Ian e eu tivemos um destino
parecido. Antes que a porta se fechasse, dois lobos, ainda transformados,
ocuparam o espaço junto conosco.
Eu sabia muito bem o que Sten pretendia com isso, queria limitar
nossa comunicação, já que transformados eles conseguiriam nos ouvir
melhor.
Para a minha sorte e azar dele, Yrian havia ensinado a mim um
dialeto antigo, um que os rebeldes não conheciam, mas Magnus, sim.
“Onde está Aren e Greta? Por que se separaram?” — perguntei na
linguagem ancestral, sem que som algum deixasse minha boca, usando
apenas nossa ligação de matilha.
“Seguiram para o norte.”
“E você, por que não foi com eles?”
“Eu sabia que o garoto ia aprontar alguma. Você se lembra do que
eu disse quando soubemos do acidente…”
Soltei um suspiro.
“Devíamos ter confiado nele.”
“Não, companheiro. Nenhum de nós tinha como saber que Hilde
faria o que fez. Não é hora de pensar nisso… O que temos que fazer é
garantir que Katarina sairá de lá com vida e os outros também.”
“Sinto cheiro de ursos…” — comentei.
“Mandei um recado para Bjorn, pouco antes de ser pego…
Estamos quase na divisa do território.”
Meu amigo suspirou profundamente, antes de continuar.
“Ture, tem mais uma coisa…”
“Diga.”
“Meu pai… Ele… Tenho fortes razões para crer que está metido
com os rebeldes…” — Desviou os olhos dos meus. “Estou dizendo isso
apenas porque… se chegar o momento… Não quero que pense duas vezes!
Aquele desgraçado já manchou demais o nome de Odin com sua vida.”
Um dos lobos rosnou, incomodado com a nossa conversa, então eu
apenas aquiesci.
Sabia melhor que ninguém o peso que era ser o filho de um traidor,
sentia muito por Magnus, mas a gente não escolhe de onde vem.
Fechei os olhos e pedi à deusa que ao menos eu tivesse a chance de
ser para o meu filho um pai melhor do que o meu foi.
Ainda estava concentrado em minha prece, quando batemos em
algo com tanta força que o furgão virou de lado, a lataria raspando na pista.
“A cavalaria chegou!” — ouvi de Magnus assim que o carro se
chocou contra o que parecia ser uma árvore.
Garras negras rasgaram a lataria da porta como se fosse feita de
papel e o urso a arrancou, arremessando para longe.
O rugido alto ecoou acima dos sons da floresta e até os lobos que
nos acompanhavam mantiveram distância. Dentes à mostra, sem atacar.
Eu me esforcei para levantar, tinha dado um jeito no ombro, mas
não ia desistir sem lutar.
O urso esticou a pata e rasgou a corda que segurava minhas mãos.
Enquanto eu soltava a boca da mordaça envenenada, Magnus se colocou em
pé também.
Forcei a transformação, mas não consegui. Meu amigo fracassou
também. Quando encarei os olhos do urso, neguei com a cabeça, então meu
amigo esticou o corpo e pegou um dos lobos pela cauda, levantando no ar e
arremessando longe; o rosnado se transformou em grito de dor assim que
ele atingiu o tronco de uma árvore.
O outro lobo pulou em direção às costas do urso, mas, antes que o
atingisse, o som de um disparo se fez ouvir e a fera caiu no chão,
transformando-se em homem de novo, a poça de sangue aumentando ao seu
redor.
— Bjorn… — Minha irmã soltou baixo, envergonhada.
O urso encarou-a por um segundo, depois baixou a cabeça e deixou
que a transformação se revertesse, voltando à forma de homem que tinha.
O rei berserker fizera parte da nossa vida desde que éramos
crianças. Era amigo da família de Aren e vivíamos em harmonia desde
muito tempo, quando os deuses andavam na Terra e a maldição dos
muttaneet não nos assombrava.
— Já faz tempo, pequena! — Bjorn sorriu, a mão grande tocando o
rosto de Hilde carinhosamente. — Parece que a morte não a segurou por
muito tempo.
Uma lágrima escorreu por seu rosto.
— Eu sinto muito… — Hilde desviou o olhar.
— Ainda bem que está viva… Significa que ainda há tempo de
sentir muito! — Nosso amigo sustentou seu rosto. — E de se redimir
também.
Não demorou para que um uivo fosse ouvido ao longe.
— Precisamos ir! — Bjorn frisou. — Não vai demorar até que os
traidores cheguem.
Hilde voltou o rosto para mim, como se esperasse por algum sinal.
Enchi os pulmões de ar e soltei em uma lufada.
— Se for conosco, sabe que fará uma escolha… — Toquei seu
ombro com a mão. — É a última que terá a oportunidade de fazer,
lillasyster, então é melhor que pense muito bem.
A garota sustentou meu olhar, lembranças antigas passando de seus
pensamentos para os meus.
— Vou com você… — anunciou.
— Somos o elo mais fraco… — esclareci.
— Então eu vou morrer ao lado de quem merece.
Capítulo Cinquenta
Katarina
— Tudo isso por uma coroa? — perguntei assim que o SUV em
que estávamos ganhou velocidade.
— Tudo isso pelo direito de ser quem eu sou, garota idiota!
Voltou os olhos verdes para mim. Aquele olhar sem resquício
algum de amor focado no meu.
Senti o estômago embrulhar de novo, assim que me lembrei do que
ele havia feito com o meu pai.
Desgraçado, filho de uma cadela, como pôde matar alguém tão
bom quanto o meu pai? Como teve coragem?
Sten riu e eu me lembrei de que talvez ele também conseguisse
ouvir o que eu pensava.
— Não se preocupe, eu não quero! Nem tenho interesse no que se
passa aí dentro! — Deu de ombros. — Você não vai viver por tanto tempo
assim para que eu me importe.
Baixei os olhos para a barriga instintivamente, mas tentei disfarçar.
— É impossível! — soltei de repente, não queria fraquejar.
A sobrancelha loira dele se ergueu em uma curva presunçosa.
— Sinto o cheiro dele em você, princesinha… E posso… — Girou
o indicador em torno do meu ventre sem me tocar. — Posso sentir a
coisinha aí dentro se mexendo.
Senti uma lágrima escorrer.
— Não vai me comover… — deixou escapar, cruzando os braços
na frente do corpo.
— Por quê? — perguntei depois de alguns segundos de silêncio.
— Porque eu não aguento mais ver a minha raça se curvando para
um monte de idiotas com um poder parco e mentiroso nas mãos. Porque
quero ter o direito de ser quem eu sou e não ter mais que fingir empatia por
seres inferiores.
— Você é um idiota!
Deixei escapar sem querer, mas, quando me dei conta, já era tarde
demais. Os dedos de Sten estavam em meu pescoço, apertando tão forte que
era difícil respirar.
— Não pense nem um segundo que eu tenho alguma inclinação a
protegê-la ou que me importo com o que você carrega aí dentro…
Tentei engolir a saliva, mas acabei me engasgando e tossindo, nem
assim ele me soltou.
— Eu poupei você naquele dia, lá na floresta, princesa, porque o
idiota do meu irmão entrou na frente…
As palavras dele faziam a cena toda se formar de novo em meus
pensamentos.
— Quis dar uma chance a Ture… Ele era valente e talvez, com o
tempo, eu pudesse lhe mostrar a verdade sobre nossa família, mas agora que
sei que ele também tem esse sangue de merda nas veias eu não pensaria um
segundo em rasgar sua garganta e jogá-la para fora deste carro.
Os dedos afrouxaram o aperto e eu esfreguei o pescoço dolorido,
tossindo e pigarreando. Sentia os pulmões queimarem.
Andamos mais um pouco e então paramos em frente a um
helicóptero que já nos esperava pronto para levantar voo.
Não falei mais nada. Estava tão nervosa e preocupada que mal
conseguia formar um pensamento coerente.
Sten não pretendia matar Ture, nem nossos amigos. Eu havia
percebido isso na conversa que ele teve com um dos seus homens, enquanto
ainda caminhávamos pelo meio da floresta, mas o que ele pretendia então?
O que queria dizer com “esse sangue de merda”?
Levantamos voo e seguimos pelo mar. No céu, a aurora boreal
brilhava colorida e absolutamente linda. De repente, pensei em minha mãe e
em tudo que ela tinha sofrido para que eu pudesse nascer.
Senti as lágrimas descerem uma a uma e não fiz questão de
segurar.
Mamãe, me ajude a fazer a coisa certa… — pedi, a mão
repousando sobre a barriga, o pensamento perdido em Ture. Eu vou ter um
bebê, mãe, um bebezinho dele. — Engoli em seco a força do sentimento que
me dominou. — Tem um pedacinho dele crescendo aqui, mamãe… Ajude-
me…
Evitei os olhos de Sten pelo tempo de voo que nos restou e esperei
até que a porta do helicóptero fosse aberta novamente, para então descer.
— Hora de dormir, princesinha! — foi a última coisa que ouvi,
pouco antes de apagar.
Quando comecei a voltar a mim, percebi algo pesado em meu colo.
— Tenha cuidado, Katarina… Não queremos que nada de ruim
aconteça ao seu filhote! — a voz de Sten fez meu sangue gelar nas veias.
Busquei meus sentidos devagar até que consegui abrir os olhos.
Mirei o colo em seguida. Havia uma caixa de explosivos enorme sobre
minhas pernas. Tentei mexer o corpo, podia sentir o efeito do veneno
cedendo, talvez ainda fosse por causa do remédio que meu pai me dava,
mas achei mais seguro fingir.
Minhas mãos estavam algemadas e eu me mantive na posição,
piscando devagar como se me sentisse letárgica, os olhos perdidos pelo
grande salão.
Sten conversava com um homem cujo rosto eu nunca tinha visto e
havia quatro lobos em volta dele. A julgar pelo tamanho, imaginei que eram
muttaneets.
— Por que estamos aqui? — perguntei com a voz embargada,
fingindo torpor.
Sten cochichou algo com o homem e caminhou para perto de mim.
— Justo… — Sorriu. — Vamos lá, vou inteirar vossa alteza do que
está acontecendo… Esta… — Abriu os braços, girando ao redor. — É
minha casa! Estamos aqui porque já passou da hora de revelar todas as
verdades escondidas… — Sentou-se na poltrona de couro ao meu lado e
curvou-se em minha direção, como se fosse me contar um segredo. — E
porque vou economizar munição! Você sabe, material bélico anda pela hora
da morte! — Riu.
Abri a boca para xingar, quando, pela minha visão periférica, vi a
sombra de um cabelo loiro passando pela janela.
Senti o coração apertar. Não tinha visto a quem pertencia, mas o
medo me dominou antes que a figura aparecesse na outra janela.
Para o meu desespero, Sten viu o mesmo que eu.
— Eu não tentaria ser herói, se estivesse no lugar de vocês… —
soltou levantando-se de onde estava. — Heróis não vivem o suficiente para
desfrutar a vida… Veja o caso do pobre Rei Erik.
Foi então que Aren e Greta apareceram em meu campo de visão,
flanqueados por imensos lobos.
Sten riu daquele jeito cheio de escárnio que fazia, e eu senti o
nervosismo de Aren crescer perigosamente.
— Uma pena o que houve com o rei morto e sua bela Ava!
Meu primo venceu o espaço tão rápido que foi como um borrão,
mas, antes que alcançasse o traidor, Sten estalou a língua em negativa.
— Cuidado, príncipe… Cuidado… — pediu, apontando em minha
direção. — Vê esta coisinha em minha mão? — chacoalhou uma caixinha
preta. — É um controle remoto… Posso explodir a doce Katarina em alguns
pedaços daqui mesmo de onde estou! — Andou alguns passos em volta de
Aren. — Aliás, eu soube que você e meu irmão estão em um impasse!
Talvez, se tivermos duas Katarinas, vocês consigam ser amiguinhos
novamente! — Riu. — Se bem que… com o filhote a caminho, sinto que…
Aren congelou.
— Oooooooh, mais um que não sabia! Eu estou começando a
gostar de ser o portador de notícias tão felizes para a família Fairhair!
Greta mirou os olhos nos meus. Havia tanta tristeza ali que nem se
parecia mais com a garota que eu conheci. Era como se Sten roubasse a
esperança de todos que cruzavam seu caminho.
Soltei um suspiro, não havia muito que eu pudesse fazer.
Estávamos os três ali, presos no jogo esperando a próxima jogada.
Os lobos se transformaram em homens novamente e desarmaram
Aren e Greta. Eu queria ajudar, mas não pude me mexer.
Meu coração doía por Aren, por como ele reagiria quando a porta
se abrisse e Hilde passasse por ela.
Aren havia passado maus bocados por causa da mulher que amava.
Tinha sofrido e cogitado abandonar a Coroa, trair seu povo, apenas para
ficar com uma mulher que nunca o amara de verdade. Uma que o enganou e
fingiu a própria morte só para poder traí-lo novamente.
Eu entendia pouco de laço e de como as coisas aconteciam quando
se rompia um, mas podia imaginar o quanto seria doloroso para ele ver sua
parceira mais uma vez.
— Veja que reunião interessante! — Sten trouxe-me de volta. — Já
tenho duas das três partes infectadas da minha raça!
O desgraçado caminhou em volta de Aren, ódio cru em seus olhos.
— Mais um principezinho enganado pelas coxas de uma mulher!
— Riu. — Será que sua família não se cansa de ser enganada pela minha?
Quando vão entender nossa superioridade?
— Amar não nos torna fracos, traidor… — Os olhos azuis de Aren
pareciam escuros e ameaçadores. — Faz de nós mais fortes! Nós lutamos
por quem amamos.
Tudo que eu queria era abraçá-lo. Dizer que ele tinha razão e que,
não importava o que eu tivesse que fazer, eu me vingaria de Sten.
— Sabe, mestiça… — o traidor ignorou Aren por pura pirraça. —
Concentrou a atenção em Greta, segurando o queixo dela na mão grande,
fazendo-a parecer ainda menor diante dele, como uma menina indefesa. —
Eu não costumo macular o meu pau, mas por você… — Sorriu. — Estou
pensando em abrir uma exceção!
A mão livre escorregou pelo quadril de Greta, fazendo a curva da
bunda e puxando-a para ele. Segurou e virou o rosto dela para si na
tentativa de beijá-la.
Nem um segundo se passou e ele se afastou como se tivesse sido
queimado. Sua boca sangrava e Greta cuspiu sangue de volta no rosto dele.
— Se voltar a me tocar, seu bastardo de merda, juro que arranco
seus olhos com os dentes e cuspo lá embaixo no Mar do Norte!
Sten virou um tapa em seu rosto. A mão espalmada cobrindo toda a
face de Greta. Ela se desequilibrou com o golpe e caiu, mas, antes que
atingisse o chão, Aren a segurou.
As mãos gentis do príncipe tocaram a vermelhidão no rosto de
Greta, descendo até a linha escarlate que manchava sua boca, dos lábios ao
queixo.
— Meu pai sempre me disse que uma maçã não cai longe da
árvore, traidor desgraçado! Você é um maldito covarde como o seu pai…
Da próxima…
Um urro de dor interrompeu a fala de Aren e ele caiu de joelhos,
ainda com Greta nos braços.
— Acertei sua lesão? Por Odin! Sinto muito! Espero que ainda
consiga usar seu brinquedinho depois disso…
Aren endireitou o corpo, a respiração entrecortada, suor escorrendo
de sua testa. Os olhos verdes de Greta arregalados para ele, enquanto ela
sustentava seu peso, abraçando-o pela cintura.
— Pode ter certeza, Sten, seu filho da puta, que eu ainda vou caçá-
lo como ao animal miserável que é!
— Vou esperar ansioso! Mas avise com antecedência… Minha
vida depois de rei vai ser um pouco corrida! — debochou.
Foi no instante seguinte que eu vi mais pessoas passando pelas
janelas de vidro jateado e senti meu coração apertar.
Tudo que consegui foi trocar um olhar com Greta, um que esperava
que ela tivesse entendido.
Capítulo Cinquenta e Um
Ture
Hilde seguiu na frente, desde que descemos do barco.
Como imaginávamos, Sten montara seu quartel-general na ilha
particular do ministro. Estavam mesmo juntos, unidos naquele objetivo
hediondo que tinham como justo.
Minhas mãos foram amarradas, assim como as de Magnus e Ian.
Bjorn seguiu com dois de seus homens pelo caminho contrário, na tentativa
de surpreender os rebeldes, caso fosse necessário.
— Venha… — Hilde tentou ajudar Magnus, mas ele não aceitou.
Afilei os olhos, focado na cena que acontecia alguns passos a
minha frente.
Como nunca percebi o interesse dela? Era tão óbvio, agora que as
máscaras haviam caído!
Soltei o ar dos pulmões de uma vez. Era triste e eu entendia bem
daquele tipo de tristeza. Quebrar um laço, refazê-lo… Não era nada
simples. Ao menos Aren e Hilde não tinham selado a parceria.
Subimos a montanha pela pequena trilha que minha irmã indicou.
Precisávamos agir como se ela ainda estivesse no comando.
— Vamos entrar pela porta da frente — explicou. — Vocês dois
precisam parecer afetados pelo veneno.
Magnus e eu concordamos. Não era difícil, principalmente para
mim, já que aquela maldita erva-de-lobo ainda estava espalhada pelo meu
corpo.
Quando passamos pelas grandes aberturas de vidro jateado, vi
Katarina e meu coração deu um salto, a fera dentro de mim acordou no
mesmo instante.
Travei os dentes, mantendo o controle sobre o lobo, não podia
colocar tudo a perder.
Hilde atravessou a entrada, os mutta de Sten rosnando para ela;
Magnus e eu caminhando alguns passos atrás.
Assim que passei pelas portas duplas, meus olhos se concentraram
em Katarina. Minha Katarina, sentada naquela poltrona, o rosto assustado,
vermelho de medo e raiva. O explosivo em seu colo, tão perto do meu filho
que precisei de todo o treinamento e autocontrole que tinha para não deixar
o lobo irromper para fora de mim.
Do outro lado, meu melhor amigo, aquele que eu considerava
como irmão, tinha o desespero estampado no rosto. Os olhos fixos na
mulher que jurara ter enterrado, pela qual havia sofrido e quase se
quebrado. A mulher que agora ele teria que ver como traidora.
— Cumpri minha tarefa… — Hilde falou sem desviar os olhos do
homem a sua frente. Passos seguros, como se tudo que encenava fosse
mesmo verdade. — Agora cumpra sua parte! Você já tem o que quer, só…
deixe-nos ir!
Sten soltou uma gargalhada sarcástica, seus olhos como adagas
para a irmã caçula.
— Acha mesmo que me convence? — Venceu o espaço entre eles
em poucos passos e parou bem em frente à garota, usando seu tamanho para
intimidá-la ainda mais. — Achou mesmo que eu não ia saber do atentado?
Que não estava preparado para ser traído por você, lillasyster?
— Não importa… — jogou. — Você prometeu libertar a mim e
Ture… Posso te dar a localização do urso, se quiser, mas vou sair daqui
com o meu irmão! Você não precisa de nós, já tem a Coroa toda em suas
mãos!
Franzi o cenho sem entender se aquilo era uma encenação para nós
ou para Sten. Eu já não reconhecia Hilde, como confiar em alguém que trai
o maior laço que um lobo pode ter?
— A garota tem razão, Svensson… — Alguém se aproximou pelo
corredor. Eu ainda não podia vê-lo, mas conhecia muito bem a voz. —
Liberte meus filhos também… Eles não fazem parte de nenhum acordo que
eu tenha feito com você.
O primeiro-ministro saiu das sombras. Terno bem-cortado e andar
seguro, como sempre. Fazia tempo que eu não tinha o desprazer de vê-lo,
mas ele ainda despertava o pior de mim.
Magnus soltou um suspiro que oscilava entre o pesar e o alívio.
Sempre soube quem era o pai, não tinha sido enganado por ele, mas o
garoto, Ian, parecia confuso e assustado.
Observei o homem caminhar despreocupadamente até Sten e
repousar a mão em seu ombro.
— O helicóptero já está pronto, deixe-me levá-los…
Foi quando o velho Hans estendeu a mão para Greta que eu vi
Magnus sair do personagem. Não havia mais maneira de contê-lo ou
impedir que ele tomasse as dores dos irmãos.
— Nenhum dos dois irá com você! — Colocou-se entre o pai e a
irmã.
— Não seja idiota, garoto! — Hans xingou. — Agora não é hora…
— Nenhum de nós, pai… — Ian concordou.
— Não vamos a lugar algum com você… — Greta completou.
— Perderam o juízo, os três! — o alemão xingou! — Andem!
Vamos sair daqui de uma vez! — Gesticulou irritado. — Sten, chame seus
homens, eu vou tirar meus filhos daqui nem que seja à força! — exigiu.
— Tudo em seu tempo, meu caro primeiro-ministro… — Meu
irmão riu de canto, daquele jeito debochado que deixa claras suas
verdadeiras intenções. — Todos terão o que merecem… A seu tempo, não
há por que apressar as coisas!
— Seu desgraçado, você jurou! Jurou no túmulo da mamãe! —
Hilde foi para cima, tentando golpear Sten. — Jurou que me deixaria livre!
Que não machucaria Ture!
Meus olhos estavam na cena, mas minha atenção, em Katarina,
traçando um caminho para chegar até ela e poder salvá-la.
Mirei Aren, buscava nele o estrategista que sempre foi, contava
com isso e meu amigo não me decepcionou. O menear de cabeça foi o
suficiente para eu entender que, quando fosse a hora, ele faria tudo que
estivesse ao seu alcance para tirar Katarina daquele lugar.
“Onde está o urso?” — Aren me perguntou sem emitir som.
“Preparando uma surpresa, espero.”
Sten segurou o rosto de Hilde, os dedos pressionando sua pele de
um jeito agressivo.
— Acha que eu me importo com as promessas que fiz sobre o
túmulo de uma traidora? Que eu me importo com esse bastardo fraco a
quem você chama de irmão?
Estreitei os olhos. Punhos cerrados e o coração martelando, a
atenção toda em Sten. Até as garras da fera, que me dilaceravam por dentro,
pararam para escutar.
— Pelo menos uma vez na vida, Sten… — Passos se aproximaram.
— Olhe a sua volta e perceba o quão estúpida sua atitude é! Quer mesmo
machucar a única pessoa que ainda sente algum apreço por você?
Meus olhos acompanharam os passos até que a figura surgiu das
sombras do corredor. Gustaf caminhou pela sala como se Sten não fosse
mais que um menino mimado.
— Chegou quem faltava! — Meu irmão soltou Hilde com tanta
força que ela despencou no chão.
Eu não conseguia me mexer, sentia como se fosse eu a carregar o
explosivo, não podia crer que Gustaf fazia parte da revolta. Não ele, não
depois de tudo.
— O traidor em pessoa! — Sten abriu os braços, zombando do
monarca. — Agora sim, estamos completos!
— Por que me chamou aqui? — Gustaf disparou, os olhos azuis
oscilando entre os dois sobrinhos. — Acha que vai nos matar? A todos? E
tomar o poder à revelia desta maneira? Pensa que será apoiado por alguém
além dos seus lacaios?
— Não duvide da minha inteligência, Gustaf… Meu plano é muito
superior… — Caminhou até Katarina e escorregou o dedo pelo rosto dela,
fazendo meu sangue ferver. — Vou manter esta aqui viva… Talvez eu até a
tome como esposa… Uma pena que ela certamente morrerá no parto! Triste
fim, querida, mas necessário! — Beijou o topo da cabeça de Katarina. —
Pense… Um herdeiro puro! E eu, obviamente, como seu tutor!
Gustaf franziu o cenho.
— Mais um que não sabia do filhote… — meu irmão ironizou.
A sagacidade de Gustaf demorou um segundo para fazer a ligação.
— Não acho que o conselho apoiará um herdeiro com o sangue dos
traidores… — O monarca tirou a mão do bolso e alisou os cabelos para trás.
— Não apoiaram naquela época nem farão agora, depois da bobagem que
você pretende fazer…
— Aí é que você se engana, Sr. Fairhair… Não há sangue traidor
nesse filhote, ele é um Fairhair!
Travei, Gustaf parecia tão atônito quanto eu.
Sten começou a rir.
— Você não sabia? Mesmo? — provocou. — Meu Deus, o que há
de errado com essa família? Onde estão seus instintos?
O dedo de Gustaf ainda estava em riste, tentando absorver o que
tinha ouvido.
— Pois é, Sr. Fairhair… O filho do traidor a quem você rechaçou a
vida toda, na verdade, é seu filhote!
Senti meu corpo todo tremer, o estômago se revirar, mal conseguia
me manter em pé.
— Está mentindo… — Gustaf soltou. — Leah nunca esconderia
algo assim… Ela…
— Tentou avisá-lo! — Meu irmão riu. — Aqui! — Tirou um
pedaço de papel velho de dentro do bolso. — Uma linda carta de amor…
Escrita para confessar um filho bastardo e obviamente interceptada por meu
pai!
Senti meu sangue ferver e venci o espaço entre mim e Sten em um
segundo. Estiquei a mão para segurá-lo, mas um dos lobos pulou em meu
peito e me jogou para trás.
Eu estava tão anestesiado pelo ódio que nem senti a mordida, só
percebi que estava machucado quando vi o sangue escorrendo em meu
peito.
Sten balançou um controle na mão.
— Eu manteria a calma se fosse você… Vou perder minha chance
de ser coroado, mas você vai perder a parceira e seu filhote! — Sorriu
malicioso.
— Você não vai escapar daqui, Sten! — Gustaf soltou entredentes.
—Cada pedaço desta ilha está cercado por um exército de lobos e ursos…
Homens sinceros que dariam a vida com prazer por minha família. Nenhum
deles foi coagido ou enganado. Diferente dos seus!
Os olhos de Sten pararam por um segundo. Provavelmente não
contava com uma união entre lobos e ursos.
Aproveitei o que tinha e, mesmo machucado, libertei minha fera,
saltando para cima do meu irmão. Para o meu desespero, ele foi mais rápido
e pulou, voando para cima de Katarina como se pudesse parar o tempo.
Ela tentou se esquivar e se desequilibrou. Vi a janela se estilhaçar,
Katarina cair no vazio e então a explosão.
O lobo uivou, enquanto dentro de mim eu gritava de desespero
genuíno. Pulei também, se ela ia morrer, nossa história acabava ali.
Capítulo Cinquenta e Dois
Katarina
Senti o impacto, mas não tive tempo para dor, meu corpo foi
arremessado para o lado e eu bati as costas contra o vidro, caindo no vazio.
Antes que a escuridão tomasse conta de mim, vi Ture se jogando
da janela. Estiquei o braço, queria alcançá-lo, mas não consegui.
Um grito emergiu da minha garganta como se eu não a controlasse
e o mundo parou por alguns instantes.
Ture! — tentei gritar, mas a voz não saía Ture! — insisti.
Minha garganta queimava, os ossos estalavam, o peito parecia
arrebentar de dentro para fora. Tentei respirar, não conseguia. Apertei os
olhos, os nervos se retesando, ia morrer. Estava morrendo. Busquei pelo
olhar dele, mas tudo que vi foi a escuridão.
Apertei as pálpebras, esperando o impacto, mas ele demorou. Meu
corpo parecia suspenso no ar. Cenas passando rápido em minha mente. Os
olhos de Ture me buscando em diversas situações, em diversas vidas. O
sangue no pelo do lobo cor de areia. O cheiro de seu suor misturado ao meu
enquanto fazíamos amor. Seus gemidos em meu ouvido e então o choro de
um bebê. Meu bebê, embalado em meus braços, sua pele macia, os olhos
cor de esmeralda.
Desculpe, bebê… — pedi e então apaguei.
Um segundo depois, senti o impacto da água e foi então que
percebi que não era mais eu. O lobo havia se libertado. Rasgado seu
caminho para fora de mim como se eu não fosse mais a responsável por
meu corpo. Não havia mais algemas, ou dor, meu corpo estava livre.
A água gelada bateu em seu pelo preparado para a neve. Eu não
sentia frio.
O lobo nadou com maestria, afundando o nariz dentro da água
escura do Báltico e movendo as patas como se tivesse nascido submerso.
Ture! — meu instinto chamava sem que eu pudesse controlar. Ture!
Eu não via nada, mas o lobo sentia. Seus movimentos eram certos,
astutos, como os de um guerreiro pronto para a batalha. A consciência ainda
era minha, os pensamentos, também, como se dividíssemos o mesmo
espaço, a mesma alma.
Afundamos mais uma vez, nadando em meio aos destroços,
pedaços de alvenaria que ainda afundavam, e então o vi. Ou melhor, não vi,
mas senti.
O lobo esticou o focinho, ganhando velocidade, aumentando o
impulso e então paramos.
Seu corpo estava inerte, afundando lentamente, mas o lobo não
desistiu. Prendeu a mandíbula ao pulso do homem que eu amava e o puxou.
Ture era grande e pesado, mas o lobo era mais forte, mais ágil.
O animal arrastou o corpo até a praia, puxando-o cuidadosamente.
Eu podia sentir o gosto do seu sangue em minha língua, quente e doce,
escorrendo das perfurações dos dentes afiados.
Quando seu rosto estava na areia, o lobo me deixou voltar,
devolveu-me o controle do meu corpo, lentamente voltei a ser eu.
— Ture! — Bati em seu rosto. — Ture!
Ele não se moveu.
— Ture, não! Você não pode! — Minhas lágrimas desciam sem
cessar, uma depois da outra. — Não pode! Você não pode!
Não percebi que estava nua até que senti o casaco sobre as costas.
Levantei o olhar para encontrar Aren bem ao meu lado.
— Ele não pode morrer! — choraminguei em desespero. — Não
pode! Não assim!
Meu primo me puxou para perto de si, fechando o zíper do casaco.
Pediu espaço com gentileza e carinho, então se abaixou ao lado de Ture.
— Vamos, irmão! — chamou.
Suas mãos estavam sobre o peito de Ture, forçando em ritmo certo,
a boca, soprando ar para os pulmões do amigo.
Greta correu até mim. Seus braços me envolvendo, o rosto ainda
machucado, os olhos vermelhos de tanto chorar.
Os segundos pareceram horas, até que ele tossiu.
Senti uma fagulha de luz se acender dentro de mim.
Mais uma tosse e água saindo da boca do meu parceiro.
Aren o levantou com cuidado e Ture bateu no próprio peito, como
se quisesse tirar o que havia lá dentro. Tossiu mais algumas vezes, até
vomitar o que restava de água salgada.
Só então eu percebi o quanto havia se machucado. A pele dourada
estava escura e queimada em mais de um ponto, estilhaços de vidro ainda
faziam seu peito e braços sangrarem, o rosto arranhado e machucado
também.
— Gosto de olhos azuis, mas se não se importa… Já sou
comprometido! — brincou tocando a mão machucada sobre o braço de
Aren.
O príncipe riu.
— Bom vê-lo de volta! — Sorriu.
— É bom estar de volta! — Ture repetiu.
Eu sentia como se meu coração fosse explodir de tanta felicidade.
Não podia conter a alegria. Corri até Ture, jogando meu corpo em sua
direção, meus lábios esmagados nos dele, seus olhos esmeralda encarando
os meus.
— Tenha calma, princesa… — protestou sem se esquivar. —
Assim vai me afogar novamente.
Quando tentei me afastar, ele me segurou junto ao corpo, fazendo
uma careta de dor.
Sorri junto aos seus lábios.
Ture esticou o braço e encarou a marca dos dentes do lobo ali, em
volta do seu pulso.
— Parece que alguém me mordeu. — Sorriu.
— Você é pesado, sabia? — brinquei.
Ture estreitou os olhos para mim.
— Sua loba não reclamou!
Sorri.
— Ela é bem forte!
Seus braços me prenderam com carinho e ele beijou minha orelha.
— Bem-vinda à matilha, liten… Agora você é uma de nós!
Sorri e Greta fez o mesmo.
Aren estendeu a mão para que Ture se levantasse e os dois
trocaram um olhar cúmplice. Nenhum deles mencionou o que havia
acontecido lá em cima, mas eu podia notar o assunto pairando sobre todos
nós.
Alguns segundos depois, um homem que eu não conhecia se
aproximou.
— Sten… — foi tudo que Aren disse, Ture também manteve a
atenção no estranho.
O homem negou com a cabeça.
— Escapou, infelizmente — foi tudo que disse.
— Graças a deusa que você está bem, Bjorn… Tive medo de
que… — Balançou a cabeça em negativa. — Pegaremos o desgraçado em
outro momento.
O tal Bjorn assentiu.
— Gustaf já havia falado comigo… — confessou. — Tinha
desconfianças sobre a conduta do primeiro-ministro, mas não queria
levantar alardes… Eram amigos, afinal de contas.
Não sei se mais alguém percebeu o desconforto de Ture ao ouvir o
nome de Gustaf, mas eu sim. Fiquei em silêncio, ia falar com ele quando
estivéssemos sozinhos, depois que se recuperasse.
— Vamos para casa… — Aren sugeriu. — A floresta aqui é difícil
de vasculhar e você precisa descansar, companheiro… Vou mandar
prepararem o qua…
— Não vou voltar, irmão… Não para aquela casa.
Capítulo Cinquenta e Três
Ture
Havia tanto peso em minhas palavras que tive medo de qual seria a
reação de Aren. Eu não queria magoá-lo, mas não pretendia enganá-lo
também. Não depois de tudo.
— Justo… — Meu amigo esboçou um sorriso triste. — Mas ainda
não pretendo dispensar meu general, então… fique por perto.
Aquiesci, passando o braço ao redor de Katarina e caminhando
com dificuldade para perto de onde outros soldados estavam. Aren, Greta e
Bjorn seguiram conosco.
— Limpamos o perímetro, meu senhor… — Um deles curvou-se
em reverência a Aren.
O helicóptero já está vindo para cá.
— Leve a princesa e a Srta. Hanssen… — Fez uma pausa e
deslizou a mão pelo cabelo claro de Greta, descendo até o rosto e
acariciando delicadamente. — Para onde quer ir? Sei que Magnus adoraria
que ficasse com ele, mas ofereço também a minha casa…
Greta deixou um suspiro escapar. Havia tanto sentimento perdido
ali no fundo daqueles olhos verdes que eu me perguntei se Aren realmente
não via, ou se fingia não ver.
— Agradeço o convite, meu senhor… Preciso apoiar meus
irmãos… Entendo que meu pai… — Desviou o olhar. — Ele merece uma
punição adequada, então… — Mais um suspiro. — Sei que será justo como
sempre foi.
Aren beijou sua bochecha.
— Prometo não a decepcionar. Agora vão… Vou pedir ao piloto
que as deixe na casa de Magnus. O lugar está seguro e não vamos demorar
a nos encontrar novamente.
As duas aquiesceram e Katarina deu-lhe um abraço apertado.
Ganhou um sorriso triste e um beijo na testa de volta.
— Obrigada… — foi tudo que ela conseguiu dizer.
Aren sorriu.
— Não há o que agradecer… Aprendi com alguém especial que os
homens do norte protegem suas mulheres…
Engoli o bolo de sentimentos que a menção à fala de Yrian causou.
Tinha enfim descoberto seu algoz e nem pude me vingar como gostaria,
como meu pai merecia.
Um dia, pai… Um dia vou fazê-lo pagar por tudo que ele causou…
Juro pela deusa! — Suspirei.
A voz do meu melhor amigo cortou o silêncio dos meus
pensamentos.
— Cuide desse cabeça-dura e do bebezinho que carrega,
Katarina… — A mão suave desceu pelo braço da prima e repousou sobre
seu ventre. — Espero ser tão bom e justo quanto os que vieram antes de
mim para estar ao lado de você e Ture, ensinando ao pequeno os
verdadeiros valores de um guerreiro.
— Sei que será… — Minha companheira beijou seu rosto.
— Agora vá… Descanse e se cuide. Logo estaremos juntos
novamente.
— Prometa que vai se cuidar também, Aren… — pediu. — E que
não vai…
Fingir que é forte demais… As palavras morreram em seus
pensamentos, mas eu as ouvi através da conexão e podia jurar que Aren
também.
— Não vou.
Katarina veio até mim e beijei suavemente sua têmpora,
despedindo-me e deixando que as duas seguissem o caminho em direção à
clareira, escoltadas pelos melhores homens de Aren.
Ficamos parados ali, depois de nos despedirmos de Bjorn,
enquanto esperávamos que o helicóptero levantasse voo. Quando o vento
diminuiu, o príncipe voltou os olhos para mim.
— Bem, é hora de limpar a bagunça…
Havia a sombra de um sorriso triste em seu rosto e eu sabia bem a
razão. Alguns laços não eram fáceis de romper.
Curvei-me em reverência ao meu futuro rei, mas também ao meu
melhor amigo. Um que eu tinha prazer em honrar e servir.
— É sempre uma honra estar ao seu lado em mais uma batalha,
meu senhor!
Subimos o caminho íngreme.
Eu podia sentir meu corpo se curando a cada passo. Ao menos o
veneno já havia me deixado e eu não teria que ir para o hospital novamente.
Para alguém como nós, quanto menos exposição, menor o risco de que
fôssemos reconhecidos.
Pouco antes de chegarmos à entrada, Aren parou.
— Tem certeza de que quer mesmo estar ao meu lado agora? —
reforçou, nós dois sabíamos bem do que se tratava.
— Sei que será justo e eu o apoiaria, mesmo que não fosse… —
confessei. — Você é minha família, Aren Fairhair… Sempre foi, sempre
será.
A mão dele segurou meu antebraço.
— Até o último suspiro — confirmou.
Passamos para dentro da sala parcialmente destruída.
Hilde estava no canto, ao lado do corpo ensanguentado do
primeiro-ministro e cercada pelos soldados do rei. Gustaf, de cabeça baixa,
sem conseguir me encarar.
— Meu senhor… — Gustaf curvou o corpo em direção ao
sobrinho. — Faça cumprir sua justiça e todos acataremos.
Magnus e Ian tinham os olhos no cadáver do pai, sem desviar um
milímetro sequer. Corpo endurecido, maxilar contrito, pensamento tão
distante que era como se visse a cena de outro lugar.
Mantive a postura, ombros retos, braços cruzados na frente do
peito e olhos afilados. Não fingiria entender, ou que tinha intenção de
ajudar o desgraçado.
— Não posso dizer que sinto muito… — Aren começou. — Ou
desejar que esteja à mesa do pai de todos esperando por nós. Sabemos bem
que não há lugar em Valhala para traidores. A existência dele termina como
começou… Um pobre diabo orgulhoso demais para carregar a dádiva de ser
um guerreiro de Odin.
Um suspiro profundo deixou o peito do garoto, afinal era o pai dele
que estava lá, inerte naquele chão sujo, embebido no próprio sangue.
— Magnus assumirá o lugar dos Hanssens no conselho… — o
príncipe continuou.
E foi só quando deu alguns passos para o lado que vi a faca
ensanguentada nas mãos do alemão. Ninguém podia culpá-lo por ter feito o
que sua alma pedia desde tudo que vivenciou, mas podia ver o peso que
estava em suas costas. Justiça nem sempre é fácil de ser feita.
Baixei a cabeça e fiz uma prece à deusa, para que meu amigo
tivesse a paz que merecia, agora que vingara a mãe.
Minha irmã continuava lá, corajosa e destemida, como tinha sido a
vida inteira. Ainda me doía pensar no que ela havia se transformado, mas,
no fim das contas, uma coisa era certa, cada um é responsável por seu
próprio destino e ninguém pode salvar o outro das suas escolhas.
Aren parou ao seu lado e estendeu a mão, oferecendo ajuda para
que ela se levantasse. Um pequeno gesto, honrado como o meu senhor era,
não ia julgar uma pessoa ajoelhada.
— Você sabe que cometeu alta traição contra seu príncipe e contra
seu povo… — a voz era dura, sem sentimentos. — Também sabe qual é a
punição para tal crime…
A garota assentiu novamente, lágrimas descendo mais e mais
rápido, seus cabelos claros escondendo o rosto. Hilde mirava o chão sem
conseguir encarar o parceiro.
— Como seu príncipe, Hilde Svensson, eu a condeno à morte.
Você não é digna de carregar a dádiva de ser uma ulfhednar…
Engoli os sentimentos que corriam pelas minhas veias e silenciei o
rosnado da fera dentro de mim. Por mais que eu quisesse protegê-la, era
hora de deixar que arcasse com as consequências.
Diferente de tudo que esperei, Aren cortou a corda que a mantinha
presa, liberando suas mãos.
— Como homem… Confesso que não sou capaz de tirar sua vida,
nem covarde a ponto de pedir que outro o faça… No entanto, Hilde… Sua
permanência entre os nossos acaba aqui… Não há mais lugar para você
junto do nosso povo, nem em nosso território… Vá para sempre e nunca
mais volte…
A dor dela me atingiu mais forte que um golpe de faca. Ser
deixado para trás, abandonado pela matilha, era uma condenação pior do
que morrer com honra.
— Aren, por tudo… — minha irmã implorou.
— Meses atrás eu enterrei a mulher que amava e é exatamente
assim que ela vai continuar, morta, dentro daquele caixão… E saiba que, se
algum dia seu caminho cruzar o meu, não haverá misericórdia… Eu não
perdoo traidores.
Hilde engoliu em seco, nenhum protesto deixou sua boca.
— Vou lhe dar uma chance para que se despeça do seu irmão…
O príncipe seguiu a passos largos em direção à saída e parou
quando atingiu o marco quase destruído.
— Meu tio… — chamou sem olhar para trás.
Fiquei parado onde estava, os olhos baixos, enquanto todos saíam e
ficávamos apenas Hilde e eu.
— Ture… — ela deixou escapar, mas não continuou.
— Você ouviu o príncipe… Não há mais lugar entre nós para
você… Não é mais uma de nós!
Engoli o sofrimento que aquelas palavras me causavam, mas não
podia agir diferente. Não era como se trair fosse sua única opção, aquela
tinha sido uma escolha. Hilde poderia ter pedido ajuda, confessado, até
mesmo desaparecido no mundo, mas ela escolheu o lado errado da guerra,
tinha que pagar.
A garota que eu vi crescer limpou os olhos com as costas da mão.
Suas lágrimas pareciam não cessar.
Quando teve certeza de que não teria nada de mim, a mão pequena,
trêmula e reticente, tocou meu antebraço ainda cruzado sobre o peito, e foi
como se esmagasse meu coração. Tudo que eu mais queria era apertar
minha irmãzinha junto de mim e protegê-la do mundo, mas eu não a
ajudaria se fizesse isso.
Talvez, se a deusa permitisse a ela mais tempo nesta terra, um dia
Hilde pudesse voltar a se sentar conosco, beber e comer ao lado dos nossos,
mas esse tempo não era agora.
— Você será um ótimo pai… — Os dedos acariciaram minha pele.
— Katarina tem muita sorte!
Esboçou um sorriso e desapareceu na névoa fria da ilha.
Levei mais alguns segundos para encontrar a força que precisava
para sair daquele maldito lugar e encarar Aren mais uma vez. Não queria
que meu sofrimento fosse um peso em seus ombros.
Quando cheguei até onde o helicóptero havia pousado novamente,
eu o vi do lado de fora, mãos cruzadas atrás do corpo, encarando o mar
bater nas pedras lá embaixo.
Parei ao seu lado.
— Obrigado por poupá-la… Ela não merecia…
Meu amigo encheu os pulmões de ar e soltou devagar.
— O laço se rompeu…
Foi só então que percebi o tremor em suas mãos, como o que eu
tinha visto em Hilde.
— É a pior dor que já senti… — Mais um suspiro.
— Está livre… — continuei. — A deusa foi justa.
Aren voltou-se para mim.
— Ela sempre é… — Sorriu de leve, como se segurasse a dor de
uma ferida aberta. — Agora vamos… Sua companheira precisa de você.
Capítulo Cinquenta e Quatro
Katarina
— Pelo amor da deusa, Katarina, se continuar andando de um lado
para o outro assim, vai fazer um buraco no chão!
Eu escutava a voz de Greta, mas era como se viesse de outra
realidade, longe demais para ganhar minha atenção.
Tudo que eu conseguia pensar era em Ture. Por mais que soubesse
que ele estava bem, seguro, enquanto não o tivesse ao meu lado, longe de
tudo aquilo, eu não estaria tranquila.
— Tome… — Greta se aproximou. — Beba um pouco… Dizem
que ajuda!
Virei o corpo apenas o suficiente para ver a caneca de porcelana
cor-de-rosa na mão dela.
Ergui uma sobrancelha sem entender.
— O quê? — A garota sorriu. — Os humanos acreditam que dá
certo! Se dá certo para eles, quem sabe! — Deu de ombros.
Encarei o leite quente na caneca e soltei o ar dos pulmões junto de
um sorriso fraco.
— Não custa tentar, não é?
— Esse é o espírito! — Socou o ar de brincadeira.
Greta passou o braço ao redor do meu corpo e me conduziu até o
grande sofá macio de couro preto. Dei um gole na bebida, mas minha
atenção continuava ali, fixa no gramado onde o helicóptero havia pousado,
esperando que ele fizesse seu caminho de volta novamente.
Depois de alguns segundos, a garota jogou o corpo para trás, a mão
sobre a testa, alisando o cabelo, os olhos fechados.
— Tenho medo de que ele não se recupere… — soltou tão baixo
que eu quase não escutei.
Não era de Ture que falava e eu sabia bem.
— Ele é mais forte do que pensa — tentei acalmá-la.
— Não é, não… — Greta rebateu. — Ele se faz de forte, mas no
fundo está tão trincado que talvez se parta em um milhão de pedaços.
— Então cabe a você não permitir que isso aconteça.
Mais um suspiro.
— Por que acha que eu consigo, Katarina? Sou fraca… — Riu sem
humor. — Uma mestiça sem valor, ainda mais agora, depois da traição do
meu pai.
Havia uma nota de tristeza ali. Pesar cru, denso, algo se partira
dentro dela também.
— Se as coisas não foram fáceis para Ture, que vem de uma
linhagem nobre, imagine para mim, Katarina, que não sou mais do que um
mau passo do meu pai.
— Não é verdade! — eu a defendi. — Você é forte e corajosa. —
Sorri. — É uma mulher incrível, Greta, uma loba incrível… É uma
verdadeira guerreira de Odin! — Acariciei seu rosto com a palma.
Não era mentira. Eu realmente via em minha amiga tudo aquilo.
Acreditava nela, em seu potencial.
Se existia alguém no mundo bom o suficiente para curar o coração
machucado de Aren, essa pessoa era Greta Hanssen.
— Você é mesmo uma princesa, sabia? — A loira sorriu. — É
como se… Como se sempre soubesse o que dizer… Obrigada por isso,
Katarina!
Ainda estávamos nos abraçando, quando o som do helicóptero foi
ficando mais alto, até que o vimos descer.
Corri para o jardim o mais rápido que pude e, sem pensar, me
lancei nos braços de Ture.
— Ei, liten, assim vamos cair os dois! — brincou. — Não se
esqueça de que estou ferido e você agora é tão forte quanto eu.
Ture reclamou, mas não se afastou, ao contrário, seu braço se
manteve firme ao redor de mim, até que todos estivessem fora do
helicóptero.
De onde eu estava, vi os olhos de Greta se encherem de lágrimas
assim que Magnus se aproximou. Estava escrito em seu semblante o triste
fim do primeiro-ministro.
O primogênito abriu os braços e a embalou com carinho.
— Vamos dar uma despedida respeitosa para ele, apesar de tudo…
— prometeu.
O caçula tinha os olhos baixos, tristes, não era fácil perder alguém,
mesmo que esse alguém tivesse cometido muitos erros.
Meus olhos encontraram os de Aren e, por alguns segundos, eu vi
toda a tristeza que ele carregava e tentava esconder. Meu primo desviou,
limpando a garganta e mantendo a postura altiva do líder que era.
— Bem, meus irmãos… Eu me despeço daqui… Volto com
Katarina para casa. — Ture estendeu a mão em cumprimento para Magnus.
O alemão o abraçou, dando alguns tapinhas em seu ombro.
— Sabe que, se precisar de algo, basta chamar. Eu estarei sempre a
postos para servir aos irmãos. — Meneou a cabeça.
— Digo o mesmo. Conte comigo… Conosco! — Ture beijou
minha fronte. — Para o que precisar.
— Sempre! — concordei.
— Não se preocupe com as questões legais… Meus advogados
cuidarão de tudo para que não haja ponta alguma solta — Aren o acalmou.
— Quanto ao funeral… Estarei presente por…
— Vou entender se não quiser, irmão… — Magnus explicou.
— Eu quero! Meus amigos perderam o pai, estarei lá como sempre
estive, ao seu lado e dos seus irmãos.
Um sorriso fraco brilhou no rosto de Greta.
— Obrigada por isso, meu príncipe.
Depois da despedida, voltamos para o helicóptero, Aren, Ture e eu,
ao lado de Tio Gustaf. No tempo que durou nosso voo, nenhuma palavra foi
dita, mas aquele não era um silêncio constrangedor, era dolorido, triste. Um
daqueles em que a gente não sabe mesmo o que dizer.
Descemos no grande gramado da casa de Aren.
— Sinto muito que tenha passado por tudo isso, minha querida…
— Tio Gustaf segurou minhas mãos junto às dele. — Ao menos… Ao
menos sua transformação aconteceu… — Suspirou. — Agora é uma de nós,
Katarina… Realmente.
Abracei-o apertado. Sentia um pouco da dor dele também. Tio
Gustaf e Ture mal haviam trocado um olhar sequer.
Assim que nos afastamos, Aren se aproximou e eu não resisti,
abraçando-o ainda mais apertado.
— Desejo que as coisas sejam mais leves para você agora, minha
prima… Sinto como… Como se tivéssemos entrado em sua vida apenas
para virá-la de cabeça para baixo… — confessou.
Neguei com a cabeça, esboçando um sorriso fraco.
— Não… Muito pelo contrário! Eu fico feliz por estar com vocês
em um momento tão delicado… São minha família.
Ganhei mais um abraço e, antes de me afastar, sussurrei em seu
ouvido.
— Não carregue esse fardo sozinho… — pedi. — Se estiver
pesado demais, Aren… Divida comigo, com Ture… Sabe que faz parte da
nossa vida e que nós o amamos muito.
O príncipe sorriu.
— Prometo não ser forte demais.
Aren estendeu a mão para Ture.
— Obrigado, irmão, por tudo… Espero que… Espero que fique
por perto…
— Eu estarei ao alcance… — Ture sorriu. — Posso levar um dos
carros? — perguntou e Aren assentiu.
— Acho um disparate os dois saírem assim, no meio da noite e
sem rumo! A casa é grande…
Era o jeito Gustaf de pedir que ficássemos e soou quase carinhoso,
vindo dele, mas eu concordava com Ture, queria seguir meu caminho ao
lado dele sem todo aquele peso de ser a princesa.
— Agradeço o convite, meu senhor, mas…
Quando Ture tentou se curvar, Gustaf o impediu com um gesto de
mão.
— Você não… Não precisa mais…
— Se me derem licença… — meu companheiro fugiu da conversa,
tomando o rumo contrário, na direção de onde um SUV estava estacionado.
Pegou a chave e abriu a porta do carona, para que eu entrasse.
Antes que tomasse seu lugar atrás do volante, Gustaf o parou.
— Aqui… Leve com você… — Entregou o papel velho dobrado.
— Sei que tem poucas lembranças da sua mãe… Talvez… essa seja a mais
importante de todas.
Ture guardou o papel e meneou a cabeça em concordância. Entrou
no carro, enfiando o pé no acelerador sem dizer uma palavra.
Pela nossa conexão, eu podia sentir a confusão em sua cabeça. A
dor o pinicava por dentro, como pequenos cacos de vidro. Hilde, Sten,
lembranças perdidas do passado com os pais, Tio Gustaf, Minha mãe.
Toquei sua mão, queria encontrar um jeito de acalmá-lo, mas a
cada segundo sua respiração acelerava mais.
De repente, ele tirou o carro da estrada tão rápido que pensei que
íamos bater nas árvores. Parou, o motor ainda ligado, a cabeça lançada
contra o volante.
— Pode… Pode dirigir? — pediu. — Meu braço está me matando.
Soltei o cinto e desci o mais rápido que pude, meu corpo se
apertando contra o dele em um abraço que ia até a alma.
— Vai passar, amor… Vai passar…
Tentei pensar em coisas boas, lembranças agradáveis, para que os
sentimentos que o atingissem pela conexão fossem suaves.
— Papai costumava dizer que não há noite que dure para sempre…
— Beijei seu rosto. — Em nossa terra, o inverno é escuro, Ture, mas a
primavera não tarda… Sei que está doendo, amor, mas vai passar…
Um suspiro deixou seu peito e foi tão intenso que eu me peguei
suspirando também.
— Seu pai era…
— Nosso pai! — corrigi. — Ele era seu pai também, Ture…
— Nosso pai… — Sorriu. — Ele era um homem muito crédulo…
— Mais um suspiro. — O mundo anda carente disso… Esperança…
Foi minha vez de sorrir.
Peguei a mão grande dele e levei até minha barriga.
— Nossa esperança não pode acabar, Ture… Não agora que temos
um presente tão incrível a caminho! — Sorri mais uma vez. — Você o
sente?
A mão quente dele acariciou minha barriga.
— Sim… É um menino… — Sorriu mais largo. — E é muito
curioso!
Lágrimas começaram a descer em meu rosto, misturadas ao sorriso
que eu não conseguia esconder.
— Então vamos seguir em frente por ele… Nosso menino… —
Beijei seu rosto e ocupei o lugar atrás do volante. — Já sabe para onde
vamos?
Ture sentou-se ao meu lado e passou o cinto.
— Vamos para a fazenda! — Sorriu. — Não há lugar melhor no
mundo para uma criança crescer!
Concordei com a cabeça. Era mesmo verdade. Aquele pedaço de
chão era precioso.
Capítulo Cinquenta e Cinco
Katarina
No dia seguinte, acordei na cama do meu pai.
Tinha dormido tão profundo, que levei um segundo para entender
que realmente estava ali, na minha casa, ouvindo a lareira crepitar e vendo a
neve cair pela grande janela de vidro.
A cama dele ainda era macia como eu me lembrava. O quarto tinha
a decoração azul de que ele tanto gostava.
É, pai, finalmente estou em casa… — Suspirei. Meu coração
sempre esteve aqui!
Ture não estava na cama, mas o cheiro de café fresco me guiou ao
seu encontro assim que cheguei perto das escadas.
— Pegue um casaco… — avisou do andar de baixo. — A neve
molhou nossa lenha, vou ter que sair e buscar mais.
Eu não sentia mais frio como antes, mas achei melhor obedecer.
Não queria ficar doente, ainda mais com meu bebezinho dentro de mim.
Também não sinto frio, mor[9]…
Ouvi no fundo da minha consciência e franzi o cenho, tentando
entender se eu realmente tinha escutado ou se era fruto da minha
imaginação.
Sorri, encarando minha barriga, e a acariciei delicadamente.
Voltei para o quarto e peguei o roupão felpudo que meu pai
costumava usar, enrolando a faixa em volta de mim. Quando cheguei ao
ponto da sala em que tinha a visão da cozinha, parei, os olhos perdidos no
homem atrás do balcão.
— Se continuar me olhando deste jeito, vou desistir de preparar as
panquecas e comer você!
— Ture! — reclamei. — O bebê escuta, sabia?
Meu parceiro reprimiu um sorriso.
— Ele só sente o que sentimos, amor, não ouve o que dizemos…
— explicou.
— Sei lá! Vai que esse bebezinho aqui é diferente? — Sentei-me
na bancada da pia perto de onde ele estava e o puxei para mim.
— Último aviso, caso queira se alimentar antes…
Segurei seu rosto e o beijei, separando seus lábios com a língua,
pedindo passagem. Eu tinha fome dele, do seu corpo, gosto, do que Ture me
fazia sentir.
Seu corpo se encaixou entre minhas pernas e, com uma destreza
nada humana, minha calcinha foi para o chão.
— Vai queimar as panquecas… — brinquei, enlaçando sua cintura
com as pernas.
— Fodam-se elas!
No instante seguinte, Ture estava dentro de mim, seu corpo unido
ao meu, a respiração aumentando em meu ouvido, contra minha boca,
aquele ir e vir que me tirava o ar.
— Ah, Katarina… — Segurou meu rosto entre os dedos, apertando
meu queixo com a pressão certa, intenso como ele era. — Você ainda vai
me enlouquecer!
Quando me encarou, seus olhos não eram mais apenas seus,
dividiam espaço com a fera, minha fera, minha alma gêmea.
— Hum… — gemi abafado, contra seu ombro, mordendo a carne
macia até sentir o seu gosto em minha língua.
Quando me entreguei ao êxtase, senti Ture fazer o mesmo. As
mãos grandes espalmadas na pedra da bancada, como se precisasse de apoio
para não cair.
— Amo você, liten… — Beijou meu pescoço, descendo pela
clavícula e arrepiando minha pele. — Amo tanto que chega a doer…
Eu entendia. Sentia o mesmo, queria sempre mais, como se estar
com ele fosse a única maneira de ser completa.
Ficamos abraçados ali, até que o cheiro de queimado começou a
tomar conta da cozinha.
— Porra! — xingou. — Esqueci o fogo ligado!
Comecei a rir.
— Se eu fosse você, não riria… Vamos ter que comer biscoito de
aveia… Ou sopa enlatada… — Deu de ombros.
— Ou meu companheiro tão incrível e valente pode conseguir algo
melhor na floresta!
Ture riu alto.
— Vai mesmo me fazer sair debaixo de neve?
— Você é um lobo, oras! — brinquei.
Pelo que restou da manhã, ficamos debaixo das cobertas.
Aren havia decretado três dias de luto para o nosso povo, em nome
das mortes causadas pelo atentado.
Para o mundo normal, tudo não passou de mais um crime sem
explicação, jogado na conta da violência.
Eu queria falar com ele, saber como estava, mas concordei com
Ture em dar um tempo para que meu primo assimilasse tudo que tinha
vivido. Ele merecia isso.
Já estava tudo escuro, mesmo que o relógio ainda marcasse duas da
tarde, e tínhamos acabado de revirar toda a despensa do meu pai, quando
Ture me chamou no quarto.
— Vista algo quente! — pediu. — Quero lhe mostrar um lugar.
Olhei pela janela e para ele de volta.
— O que foi? — defendeu-se — Você é um lobo agora!
Troquei as roupas que usava por uma calça térmica justa e suéter
de lã com um casaco comprido e grosso por cima. Ture enfiou uma touca de
lã em minha cabeça e passou o braço em volta de mim, guiando-me para
dentro da floresta.
— Tem certeza de que sabe o caminho? — perguntei depois de
andar por um tempo razoável e ganhei um olhar de soslaio como resposta.
— Ok, não está mais aqui quem perguntou!
Conforme nos embrenhávamos na floresta, a neve cessou e o clima
foi ficando mais agradável.
Eu não estava cansada, mas me sentia mais ansiosa a cada passo.
— Não vai mesmo me dizer nada? — Ergui uma sobrancelha. —
Eu ainda não sou muito boa nesse negócio de ler pensamentos e tal… Você
bem que podia…
— Aqui… — cortou minha reclamação e apontou uma clareira,
depois de alguns abetos.
Ture entrelaçou os dedos nos meus e me guiou por uma pequena
passagem no meio do mato fechado.
Era uma clareira em formato oval. O chão era de pedrinhas
pequenas e redondas, como seixos de rio, e havia uma grande formação
rochosa bem no meio. Em um dos lados, o que apontava direto para o
desfiladeiro, havia um símbolo rúnico gravado.
Parei ali, encarando a grande pedra, de cenho franzido. Não
conhecia bem o que significava.
— É o símbolo do amor… — Ture explicou. — Do destino… E da
união. Nossos antepassados acreditam que este é um lugar sagrado, onde se
pode jurar amor eterno diante da deusa.
Estendi a mão e segurei a dele sorrindo, fazendo graça.
— E você vai jurar que me ama aqui? Isso pode ser muito sério, Sr.
Svensson…
Ture riu, mas o rosto parecia nervoso, ansioso.
— Foi aqui, durante uma festa a Freya, que sua mãe conheceu seu
pai… — Engoliu em seco. — Foi este lugar que minha mãe marcou no
bilhete… — Suspirou. — Para contar a Gustaf sobre mim…
Engoli em seco, os dedos correndo pela superfície irregular. Havia
muitos símbolos e nomes gravados ali, flores antigas, deixadas em buquês,
presentes de todos os tipos. Havia até uma pequena manta de bebê, enrolada
e presa com uma fita cor-de-rosa.
— Amo você! — soltei de repente, sem pensar muito.
Ture riu mais alto.
— Quer ficar calada e me deixar ser romântico ao menos uma vez,
princesa?
Limpei a garganta e me concentrei nele. As mãos tremendo
nervosas, segurando tudo que eu queria dizer no pensamento.
Ture riu novamente e eu tinha certeza de que conseguia ler meus
pensamentos.
Ele se ajoelhou diante de mim e tirou do bolso um anel dourado
com uma pedra verde, lapidada em formato de gota.
Tapei a boca com as mãos, lágrimas descendo dos meus olhos.
— Este anel pertenceu a sua mãe… — começou. — É uma
esmeralda, a pedra do coração, da esperança, da renovação… E é com ele
que eu desejo formalizar meu amor e minha devoção a você, Princesa
Katarina Fairhair… Naquele dia em que eu tomei seu corpo, nossas almas
imortais se uniram novamente, tornando-se completas… Hoje, aqui neste
lugar tão sagrado e cheio de tradição, eu peço a você que seja minha esposa,
diante de Freya e segundo a lei do mundo em que vivemos… Diga,
Katarina! Diga que me aceita como seu…
Tudo que consegui foi aquiescer, a visão nublada e o peito
transbordando de amor.
Ture deslizou o anel pelo meu dedo e beijou minha barriga, antes
de se levantar. Depois me abraçou.
Seus lábios procuraram pelos meus, cheios de paixão e ternura, sua
mão segurou a minha e ele me girou no ar, me fazendo rir.
— Minha linda princesa, minha valquíria… — Sorriu. — Eu
jamais seria capaz de viver longe de você, Katarina… Nem um dia
sequer…
— Prometa que nunca mais vai me deixar… — pedi.
Ture sorriu.
— Eu nunca deixei, liten… Esses anos todos, contra tudo que eu
acreditava, estive lá, ao seu lado. Mesmo quando você não viu, eu estive.
A noite estava serena, o clima, frio mas quase sem vento. Quando
olhei para o céu, vi as luzes e sorri. As cores eram incríveis, verdes, roxas,
azuis. Era como se os deuses estivessem abençoando o nosso amor, como se
os espíritos da natureza celebrassem o nosso noivado e o universo inteiro
conspirasse a nosso favor.
Abracei Ture e suspirei.
— É lindo, não?
Aquiesci, sem palavras diante daquela beleza. Eu só conseguia
olhar para ele, para o céu, e sorrir. Ture também sorriu, como há muito eu
não via, e me apertou contra seu peito.
— Sabe o que dizem sobre a aurora? — perguntou baixinho, junto
ao meu ouvido. — Que é um sinal de sorte, um presente dos céus, a
promessa da deusa. Este é o início da nossa felicidade, Katarina, da história
que vamos construir nesta vida, e um dia ela estará em nossas lembranças,
como os sonhos que você teve.
Beijei seu rosto, afundando o nariz em sua pele e sentindo o
perfume que eu conhecia tão bem.
Agradeci aos deuses, aos espíritos dos que vieram antes de nós, por
me permitirem ter Ture em minha vida.
Havíamos lutado tanto por aquele momento que merecíamos a
felicidade que ele nos dava.
Corri a mão pela barriga ainda plana, onde um pedacinho dele
crescia.
— Amo você, Katarina… — falou antes de mim.
Suspirei, aconchegando-me nele mais um pouco.
— Também amo você, Ture.
Capítulo Cinquenta e Seis
Ture
Meu peito latejava e não era de dor, muito pelo contrário.
Eu estava com ela. Seu rosto repousando sobre meu coração, os
cabelos espalhados em volta de mim.
Fechei os olhos e inspirei o ar em volta dos fios escuros e sedosos,
deixando seu perfume me preencher.
Minha Katarina… — meu pensamento repetia. Minha, para
sempre.
— Hum… — a garota ressonou contra mim.
Beijei o topo da sua cabeça.
— Ainda é cedo, liten — sussurrei. — Volte a dormir.
Estávamos na sala da fazenda, deitados sobre o tapete felpudo,
cobertos com a manta que Helga havia tecido para nós quando éramos
crianças. A lareira ainda ardia, mais meu peito ardia mais, o coração
inflamado de felicidade. Os corpos se tocando.
Katarina se mexeu, virando-se e encaixando-se sobre mim.
— Quero você — sussurrou.
— Seu pedido é uma ordem, minha princesa!
Sorri de canto, segurando seu quadril com as mãos, pressionando-a
contra meu corpo desperto.
A garota encaixou-se mais, guiando-me para dentro dela, gemendo
enquanto seu corpo era preenchido pelo meu.
— Hum… Ture…
Apertou os joelhos contra mim, aprofundando o contato, gemidos
escapando dos meus lábios e dos dela, seu quadril movendo-se sobre mim
com maestria.
— Tenho até medo de perguntar onde foi que você aprendeu tudo
isso! — brinquei.
— Eu leio muito! — Esticou o corpo, a mão espalmada em meu
peito.
— Posso imaginar que tipo de livros anda circulando pela
Humboldt. — provoquei.
Katarina riu e eu precisei me controlar para não me acabar em
êxtase.
— Pelo amor de Deus, Ture! Pare de conversar comigo e faça seu
trabalho! — reclamou mordendo o lábio.
Fixei meus olhos nos dela, segurando a lateral do seu corpo com a
mão livre, em movimentos ritmados. Minha boca sugando a sua, minha
língua buscando a dela, meus dentes sentindo o gosto dos lábios mais doces
que já beijei, arrancando suspiros e gemidos da sua boca, da minha.
— Ah, Ture… — ofegou de olhos fechados. — Posso passar o
resto da vida fazendo isto.
— Shhhhh! — protestei aumentando o ritmo. — Pare de falar
comigo e me deixe fazer o meu trabalho!
Ela riu mais alto, mas o riso morreu logo, dando lugar aos gemidos
e à entrega. Katarina soltou um suspiro profundo, o corpo anestesiado de
prazer, tombando sobre o meu.
Estávamos suados e ofegantes, relaxados um sobre o outro, minha
boca brincando na curva de sua clavícula. Eu não tinha pressa alguma de
sair daquele lugar, só queria que a vida demorasse, que o tempo pudesse
parar.
Deslizei a mão pela barriga ainda plana, onde nosso filho crescia.
Faltavam ainda muitas luas para que nosso filho nascesse, mas eu
mal podia esperar para conhecer o pequeno curioso que falava tanto comigo
em meus pensamentos.
— Eu comeria uma vaca inteira agora… — a garota soltou de
repente.
— Com ou sem os chifres? — provoquei de brincadeira, gostava
de implicar com ela.
Katarina afilou os olhos encarando-me, rosto sério, quase raivoso.
Eu queria beijá-la e começar tudo de novo, mas tudo que consegui foi rir.
— Este é um daqueles momentos em que você diz para a sua
companheira, a que carrega o seu filho no ventre… — especificou. — Que
poderia ir até o deserto de gelo se fosse preciso, só para lhe trazer o que ela
deseja.
— Não acho que haja vacas no deserto de gelo… — continuei.
Ela se levantou irritada, levando a manta consigo e me deixando nu
no tapete.
— Tinha esquecido como você consegue ser irritante quando quer!
— Tentou seguir em direção à cozinha, mas eu a impedi.
Puxei-a para mim, suas costas colidindo com o meu peito e minha
mão acariciando sua barriga.
— Se quiser, eu saio para procurar uma vaca ou o que você desejar,
liten, mas acho que neste estado… — Forcei meu corpo novamente pronto
contra o dela. — Eu chamaria um pouco de atenção.
Katarina me abraçou, deixando a manta cair.
— Acho que o café da manhã vai ter que esperar…
— Justo!
Puxei seu corpo para o meu e a virei de frente, deslizando as mãos
em suas costas, descendo pela curva arredondada do quadril e suspendendo-
a até minha cintura. Katarina entrelaçou as pernas em volta de mim.
— O que acha de subirmos e então tomamos um banho tranquilo,
depois podemos sair para caçar…
— Vai me deixar mesmo caçar? — Arregalou os olhos animada.
O inverno seguia escuro e frio na floresta ao redor da fazenda, mas
eu não tinha do que reclamar. Sempre preferi o frio ao calor, e a fera dentro
de mim não queria mais ficar presa. Era hora de voltar a viver.
— Vou! — anunciei já subindo os primeiros degraus. — Desde que
prometa não se atirar em nenhum rio, córrego, lago ou coisa do tipo! Sabe
que odeio me molhar!
A garota riu alto, beijando meu rosto e minha boca.
— Não sei que fascínio é esse que os Fairhair têm por água! —
continuei.
— Não esqueça que você tem sangue Fairhair correndo aí nas suas
veias!
Tentei não parecer afetado. Não queria estragar nosso momento,
mas aquele ainda era um assunto delicado demais.
Gustaf também não tinha me procurado desde aquele dia. Era
difícil para nós dois e não tínhamos razão para apressar as coisas.
Entrei no banheiro com Katarina em meus braços e a coloquei no
chão logo que a água esquentou.
— Amo você, sabia? — sussurrou contra a minha pele. — Amo
estar nesta casa com você, cercada das nossas melhores lembranças… Amo
saber que nossa família vai começar aqui! Que seremos felizes neste chão.
Apertei-a contra mim, ensaboando seu corpo e beijando seu
pescoço.
— Não consigo pensar em um lugar melhor para ter você para
mim, princesa… — Sorri, arrepiando sua pele.
— Vai me chamar de princesa para sempre? — perguntou curiosa.
— É exatamente o que você é!
Ela riu mais, até que o riso perdeu força.
— Acha que ele está bem? — perguntou sem precisar explicar, eu
sabia bem a quem ela se referia.
— Acho que está tirando um tempo para si mesmo… Aren merece
isso, precisa…
— Espero vê-lo em breve…
— Não acho que ele vá ficar longe de tudo isso muito tempo…
Você sabe como nosso príncipe é!
Sorri e ela sorriu também.
Depois que terminamos o banho, deixei Katarina na cama e
caminhei até o closet.
— Panquecas! — escutei-a pedir. — Com gotas de chocolate
amargo e… Fava de baunilha!
Comecei a rir. Não tinha ideia de como fazer panquecas, ainda
mais com tantas especificações.
— Achei que quisesse caçar...
— E suco de laranja! — continuou ignorando o que eu disse. —
Coado! Tenho medo de engolir alguma semente… Papai dizia que, se
engolíssemos, nasceria um pé de laranja dentro da nossa barriga e já tenho
outra coisinha crescendo aqui dentro! — brincou.
Acabei rindo, mas não pude deixar de pensar em nosso pai, o pai
que eu realmente conhecia, que havia me ensinado a ser o homem que eu
era.
— Amor, o máximo que consigo para você é um filé malpassado e
café puro. Sou um lobo, lembra-se?
Ela arremessou uma almofada em mim, mas estava rindo também.
— Precisamos contratar alguém urgente!
— Vou ver o que consigo, prometo!
Estava terminando de me vestir, quando senti a aproximação de
alguém. Não demorou muito para que o carro parasse no gramado.
Inspirei o ar com cuidado, nem precisei de muito para saber de
quem se tratava.
Soltei o ar dos pulmões. Talvez tivesse mesmo chegado a hora.
— Ture… — Katarina soltou devagar.
Havia um pedido ali, perdido no meu nome, no tom de voz suave
que ela usara.
Eu entendi sem que nada mais precisasse ser dito e apenas
aquiesci.
Vesti a camiseta e desci as escadas.
— Sou eu… — a voz conhecida se antecipou —, mas é claro que
você já sabe… Sempre teve ótimos instintos…
Soltei uma lufada de ar, ombros retos, embora houvesse mais peso
sobre eles do que de costume. Parei junto ao marco da porta, encarando o
homem do outro lado do balcão que separava a sala de jantar da cozinha.
Gustaf não me olhou. Sua atenção estava nas travessas e potes que
tirava de dentro de uma caixa.
Dois pratos haviam sido arrumados na mesa e sobre a toalha de
linho havia uma jarra com suco de laranja além de um bule com fumaça
saindo de seu bico.
Detive os olhos no vaso de cristal, onde um ramo de madressilvas
fora colocado.
— Karin amava o perfume das madressilvas… — Seu olhar ainda
estava longe do meu, mirando o arranjo. — Sua… Sua mãe também —
confessou. — Penso que Katarina também apreciará um perfume tão
delicado…
Soltei o ar dos pulmões devagar. Ainda me custava a pensar em
tudo que nossa história guardava e não sentir aquele aperto ruim no peito.
Eu não odiava Gustaf, muito pelo contrário. Já havia descoberto
que fora ele a me salvar, sabia também que ele amara minha mãe muito
mais do que o desgraçado com quem ela vivia, mas não conseguia pensar
nele como pai.
— Imagino que seja estranho para você também… — soltou como
se pudesse ler meus pensamentos… Talvez até pudesse mesmo.
Engoli o bolo de sentimentos.
— Vim aqui para dizer a você, Ture, que entendo que não me
queira por perto… Que vou esperar o tempo que você precisar e que… —
Foi a vez dele de engolir em seco. — Eu nem sei o que quero que você
saiba… Meu… Meu…
— Tudo bem para mim se continuarmos como sempre! — soltei
antes que se engasgasse com as palavras.
Gustaf finalmente me olhou. Seus olhos azuis parados nos meus,
como se ele buscasse algo ou se reconhecesse alguém diferente ali.
— Quando você nasceu, sua mãe ficou tão feliz… — Sorriu, o
rosto cada vez mais afogueado de emoção. — Se aquela carta… Se ao
menos… Ture, eu nunca…
De repente, lembrei-me de Aren, do quanto eu o respeitava e de
como ele era grato a Gustaf por tudo. Pensei que alguém que ganha a
admiração de um homem justo como meu amigo não pode ser de todo ruim.
Desde que deixamos aquela ilha, eu tinha acordado no meio de
muitas noites e perdido o sono pensando no que faria se estivesse no lugar
de Gustaf… Para ser sincero, ele era até melhor do que eu. Não sei se eu
teria coragem de proteger o filho do homem que machucou Katarina… Se
eu teria tanta hombridade a ponto de escolher ser bom, quando qualquer um
entenderia minha vingança.
Gustaf não era mau… Era fruto de um destino cruel, injusto.
— A casa está muito bonita… — Sorriu. — Yrian gostaria de
saber que vocês dois… — Parou a frase no meio. — Espero que um dia…
— Pretzels! — fugi do assunto. — Katarina vai gostar!
Gustaf sorriu.
— Tem rugbrod[10] com queijo de cabra também! — Destampou
outra tigela. — E os pãezinhos…
A alça da forma ficou presa na faca, quando Gustaf puxou e eu não
pensei, só usei o instinto para pular na frente e o tirar do caminho. O objeto
caiu de ponta no chão, fincado na madeira.
Quando me dei conta, estava com a mão em volta do antebraço do
monarca. Gustaf não tentou se soltar, nem me afastou. Era a primeira vez
que eu o tocava, mesmo que sem querer.
— Filho, me perdoe… — falou de uma vez.
Soltei-o como se o contato me queimasse e levantei o rosto para as
tábuas do forro, segurando os sentimentos que a palavra revirava dentro de
mim.
— Eu não… Ture, eu não fazia ideia! Até cheguei a pensar, mas …
Filho, eu…
— Tudo bem…
Meu peito subia e descia tão rápido que eu mal conseguia respirar.
Baixei o rosto apenas o suficiente para olhar pela janela, e foi então que vi o
velho balanço de madeira.
Eu me lembrava perfeitamente de quando Yrian o construiu e de
como eu tinha me divertido naquele brinquedo.
Logo meu filho nasceria e talvez eu também cometesse algum erro,
não era perfeito, afinal. Enchi os pulmões de ar e soltei devagar, voltando os
olhos para Gustaf.
— Eu acho que… — Esfreguei as mãos nos cabelos. — Acho que
precisamos de um pouco de tempo… Só… Só isso…
O homem em minha frente esboçou um sorriso sincero.
— Você sempre foi sensato…
— Achei que eu era impulsivo, arrogante e um perigo para mim
mesmo! — Dei de ombros fazendo piada, tinha escutado aquela reclamação
desde que era menino.
Gustaf riu mais alto.
— Isso também! Mas quem sou eu para exigir perfeição! — Soltou
um suspiro. — Só quero… Quero que seja feliz… Que esteja ao lado do seu
primo e que proteja Katarina como já sei que fará… — A mão repousou
sobre meu braço nu, era estranho sentir seu toque, uma conexão que eu
nunca sentira com ninguém, como se a mesma vida fluísse entre nós. — O
tempo é um fiel conselheiro, Ture… E eu estarei por perto, zelando por
você…
— Como sempre fez… — deixei escapar.
Gustaf sorriu.
— Não havia maneira de odiar algo que veio dela, Ture… Agora…
Agora acho que entendo por que eu nunca consegui odiá-lo.
Meus olhos se perderam nos dele mais uma vez. Havia muito a
confessar. Palavras que nenhum de nós iria dizer, mas que compreendíamos
no silêncio um do outro.
— Bem… Deixe um beijo para minha doce Katarina e espero que
apreciem o café… Já pedi a Herta que consiga uma governanta para
vocês…
Bateu de leve na mesa e tomou o rumo da saída, passando por
mim. Deixei que seguisse até perto da grande sala.
— Gustaf? — chamei. — Obrigado.
Não era apenas pela refeição, mas por toda uma vida.
O monarca esboçou um sorriso de quem havia entendido tudo que
eu não disse.
— Nos vemos em breve, meu filho!
Fiquei parado ali, vendo-o se afastar. Gustaf não olhou para trás
nem uma vez.
Depois de alguns segundos, caminhei até o escritório e me sentei
na cadeira que um dia pertenceu a Yrian, os pensamentos voando longe,
perdidos em algumas lembranças que eu insistia em apagar.
Abri a gaveta e peguei a carta da minha mãe. Se fechasse os olhos,
eu ainda me lembrava dela como se a visse em minha frente.
Corri os dedos pela escrita delicada, primorosa.
“Ele é seu, meu amor!” — li em pensamento uma vez mais.
Será que um dia vamos mesmo conseguir, mãe? Será que
poderemos recuperar esse tempo?
Eu não sabia, mas lá dentro do meu peito havia uma pequena parte
que torcia para que fosse verdade.
Capítulo Cinquenta e Sete
Katarina
Algumas semanas mais tarde eu estava no meu antigo quarto,
pensando em tudo que tinha vivido naquele espaço. Lá era o meu lar, minha
casa. Minhas memórias estavam lá. Todos os sonhos que um dia ousei
sonhar, fantasiar.
Sentei-me na minha penteadeira, rodeada de ursos e bonecas,
minha cama ainda tinha o edredom de flores vermelhas, e a manta que
Helga havia tecido ainda estava aos pés da cama.
Suspirei profundamente pensando nos dois, ainda sentia a falta
dela e mais ainda do meu pai.
— Ei, garota! — a voz animada irrompeu porta adentro, no melhor
estilo Greta Hanssen de ser. — Ufa! Pelo menos aceitou minha escolha de
lingerie! — brincou olhando a renda por baixo do roupão. — Mas ainda
acho que você deveria ter ido comigo escolher… Nunca se sabe o que pode
chamar nossa atenção em uma loja como aquela e…
Pisquei, impossibilitada de acompanhar o ritmo frenético com que
minha nova melhor amiga costumava resolver as coisas.
— O careca está quase morrendo de desespero lá embaixo! Se você
se atrasar, juro por Freya que ele se afoga no lago!
Acabei rindo alto.
— Ture? No lago? — debochei. — Acho bem difícil!
A garota apoiou o quadril na penteadeira.
— Ou ele pode subir até aqui e te carregar lá para baixo usando só
esse roupão! — Ergueu uma sobrancelha.
— Aí eu acredito! — Ri, mas logo o sorriso morreu. — Pode me
ajudar? — pedi encarando os grampos e maquiagens sobre a penteadeira.
— Não sou muito boa com essas coisas! — confessei.
Os olhos verdes de Greta brilharam com a carta-branca para me
transformar no tipo de princesa que ela julgava correto.
Não demorou muito e ela já estava com o secador em uma das
mãos, a escova na outra cantarolando e arrumando meu cabelo.
Quando terminou, eu tinha uma bela e perfeita trança de lado,
estilo viking, caindo sobre o ombro direito.
— Era disso que você precisava? — Ian passou pela porta sem
bater.
— Ei, garoto metido! — esbravejei. — Sabe que ainda não somos
amigos, não é?
O alemão riu e eu não podia negar que ele ficava muito bonito
quando sorria daquele jeito. Ian havia mudado, como eu e todos nós.
Aquele tinha sido um inverno complicado e muito transformador.
— Saia já daqui, garoto folgado! — Greta concordou, pegando o
cesto de palha das mãos do irmão e o empurrando para fora.
O cheiro inundou o quarto antes que eu visse as flores.
— Por que você quer madressilvas? — perguntei depois de
estarmos sozinhas.
— Minha mãe dizia que madressilvas afastam os maus espíritos…
— Sorriu, pegando a coroa delicada de flores e colocando em minha
cabeça. — E vamos combinar que proteção nunca é demais! — Piscou.
Arrematou tudo amarrando um lencinho fino e branco na ponta da
trança.
— E o lenço? — perguntei sem entender, embora gostasse do
visual.
Greta sorriu.
— Você vai querer guardá-lo! Acredite.
Acreditei. Eu não entendia quase nada dos casamentos do nosso
povo, sabia só o que tinha conversado com Ture.
Sorri olhando o pedaço branco de tecido em meu cabelo castanho.
Sempre quis um casamento simples e cheio de significados. No
fundo, sempre fui muito romântica.
Greta fez uma maquiagem discreta, ressaltando meus traços,
depois abriu a capa escura que cobria o traje.
Meu vestido havia sido um presente de Magnus. O tecido era
marfim bem claro e transparente. Rebordado com arabescos brilhantes do
mesmo tom do tecido. Tinha a gola bem ajustada no pescoço e mangas
curtas que cobriam meus ombros. A saia descia em camadas finas que
serpenteavam em volta de mim e acomodavam minha barriga já quase
perceptível.
Calcei as sandálias e Greta fechou o último botão nas minhas
costas, virando-me de frente para o espelho. Suas mãos sobre meus ombros.
Seu vestido azul contrastando com o meu.
— Você está linda! — Sorriu.
Suspirei profundamente, pela primeira vez me dando conta do que
isso significava para Greta. Ela nunca havia me falado nada sobre seus
sentimentos por Aren. Talvez por me respeitar como noiva dele, ou porque
ele mesmo ignorava o que ela sentia, não importava.
Greta era minha amiga e eu estava feliz que minha felicidade
completasse a dela. Segurei-a em um abraço apertado.
— Obrigada por tudo… — Sorri sentindo os olhos marejarem.
Alguém chamando lá fora evitou que a comporta em meus olhos
fosse aberta.
— Posso ter um momento com a princesa? — a voz de Aren se fez
ouvir ainda do outro lado do corredor.
Senti a emoção balançar tudo dentro de mim.
— Todos que quiser! — Suspirei.
Aren segurou minhas mãos e me olhou com intensidade. Havia
tanto carinho no fundo daqueles olhos azuis que não fui capaz de segurar a
lágrima, que desceu.
— Você está absolutamente maravilhosa, minha querida
Katarina… — Sorriu. — Como eu sempre soube que estaria neste dia.
Sorri como uma boba, limpando as lágrimas com as costas das
mãos.
— Você também está muito bonito, meu príncipe… — Fiz uma
pequena reverência.
Aren beijou minha mão, levantando-me de volta.
— Dizem que é necessário que você tenha algo novo, algo azul e
algo emprestado. Correto? — Voltou-se para Greta, que sorria como uma
boba apaixonada.
— U-hum! — a garota respondeu. — Branco ela já tem!
Corei pensando na lingerie que Greta havia me feito vestir.
— Imaginei… — Aren sorriu de canto, mirando os olhos verdes da
garota. — Por isso trouxe algo azul… É uma joia muito importante para
mim, Katarina, meu pai deu a minha mãe quando eu nasci.
Encarei a linda e delicada joia em sua mão e estendi o pulso para
que ele a prendesse. Era primorosa, coberta de pedras azuis, tão claras e
brilhantes como os olhos de Aren.
— São águas-marinhas… — explicou notando minha curiosidade.
— Eram as preferidas da minha mãe. Ela dizia que tinham a cor dos olhos
do meu pai…
Toquei o dedo sobre as pedras devagar.
— Eles foram muito felizes enquanto viveram, Katarina… Espero
que você e Ture também sejam… Que você tenha o carinho e a gentileza
que minha mãe teve por nosso povo, que apoie Ture como ela apoiou meu
pai. Que o compreenda e o proteja.
Puxei-o para mim, descansando o rosto sobre a pele de lobo que
circundava seu ombro.
— Juro que farei o melhor por ele… Por nós…
Aren beijou minha testa e depois estendeu o braço para mim.
— Me dá a honra de entregá-la ao homem que você ama, minha
princesa?
— Não posso pensar em mais ninguém que eu deseje para um
momento tão especial.
Caminhamos em direção ao jardim. Era uma bela tarde entre o fim
do inverno e o começo da primavera, nos arredores de Uppsala. O chão
estava coberto por uma camada fina de neve branca e quase transparente. O
rio largo da fazenda parecia um espelho atrás de onde estávamos.
Havia um sol fraco e amarelado no céu, e as árvores, ainda
cinzentas, começavam a ganhar pequenos brotos, os galhos serpenteando
em direção ao céu. Entendi na mesma hora a razão de Magnus escolher um
vestido marfim. Ele queria que eu me destacasse no meio do branco gélido
da nossa terra.
Minha mão estava enroscada sobre o braço de Aren, trêmula e
vacilante, meus olhos parados no arco de flores brancas como a neve, o
coração acelerando a cada passo, junto ao som das batidas de Ture.
Amo você… Eu disse pela nossa conexão e o bebê pequenino em
minha barriga deu um salto, como se concordasse.
Ture encheu os pulmões de ar, os olhos mirando o céu por um
instante, como se tentasse se acalmar.
Amo você, minha princesa, companheira e amada para sempre…
Sorri, encarando a figura naquele altar. A postura firme de sempre,
o terno cinza bem-cortado descendo elegante em seu corpo. A pele do lobo
sobre os ombros, as mãos dadas à frente do corpo, os olhos perdidos nos
meus.
Pensei em tudo que tínhamos passado até ali. Tudo que havia
vivido e sofrido, em cada momento com ele, desde sempre.
Imagens de um Ture garoto correndo em direção ao lago e se
atirando nele, meu pai sentado na varanda, nos observando enquanto a noite
caía.
Não existia maneira alguma de eu estar mais feliz. Havia nascido
para Ture, existia para ele e ele existia para mim. Violinos tocavam uma
doce melodia antiga, enquanto eu seguia em direção ao meu destino.
Caminhei, passo após passo, em direção ao único caminho que
sempre existiu para mim. A minha volta, as pessoas que eu tinha como
parte da minha família sorriam. Ian, Magnus, Greta e até o tal urso, que
tanto nos ajudara a manter a paz em nossas terras.
Ture sorriu assim que paramos à sua frente e Aren beijou minha
testa, entregando minha mão nas mãos do meu companheiro de alma.
— Conserve esse brilho nos olhos dela pela eternidade,
companheiro, e ganhará seu lugar em Valhala.
— Por todos os dias, vida após vida, meu senhor…
Capítulo Cinquenta e Oito
Katarina
Havia um altar e Gustaf estava lá. Seu terno escuro coberto por um
manto de pele claro. Os olhos azuis límpidos mirando a espada sobre a
mesa alta.
— É uma honra poder realizar o Kostr[11] para meu filho e minha
sobrinha.
Ture apertou minha mão na sua, seu peito subindo e descendo mais
rápido que o normal, levando o meu a acelerar também.
Enquanto Gustaf falava sobre o amor que unia duas pessoas e as
levava até ali, minha mente vagava em lembranças recentes e antigas,
sentindo o ar frio sobre minha pele, que agora não reclamava mais do clima.
Ele caminhou até debaixo das flores penduradas no arco de galhos
retorcidos e pegou a espada desembainhando-a. A lâmina parecia brilhar
ainda mais, refletindo os poucos raios de sol.
— Você, guerreiro de Odin… — Meu tio parou em frente ao filho.
— Filho de… — Um suspiro. — Filho de Gustaf… — Lágrimas descendo
dos olhos azuis dele. — Neto de Lars, da linhagem de Sigmund, oferece sua
vida à donzela?
— Eu, Ture, guerreiro de Odin… — Um segundo de silêncio, os
olhos perdidos em Tio Gustaf. — Filho de Gustaf, neto de Lars, da
linhagem de Sigmund, ofereço minha carne à Gram, em honra de Katarina,
filha de Yrian, neta de Abelardo, da linhagem de Siegfried.
Ture retirou a pele de lobo dos ombros e entregou a Aren; em
seguida, o blazer, e abriu a camisa branca, expondo o torso nu. Havia um
desenho recém-tatuado sobre seu peito, no lado esquerdo. Sorri quando li a
palavra “Katarina” ainda vermelha e inchada sobre sua pele.
Gustaf deitou a espada sobre o ombro direito e depois sobre o
esquerdo de Ture, repetindo palavras em um dialeto que eu não conhecia.
Em seguida, passou a lâmina sobre o peito dele, abaixo da tatuagem com
meu nome.
Sangue escorria em sua pele, enquanto o monarca marcava um
desenho que eu conhecia bem. Era o símbolo de Freya. Deusa da noite e da
paixão, rainha das Valquírias. Era ela a deusa mais importante para os
vikings, responsável pela prosperidade e fertilidade e, em tempos antigos, a
protetora das uniões.
O sangue de Ture tingiu a neve de vermelho vivo.
— Que a deusa aceite seu sacrifício e os conserve na prosperidade
e fertilidade do amor que sentem um pelo outro, guerreiro… — Ergueu a
espada, mirando o céu e soltando um grito forte e animalesco, que foi
copiado por todos.
Nossos amigos aplaudiram e assoviaram, animados pela nossa
felicidade.
— Eu ofereço meu sangue a você, Katarina… — Ture falou de
joelhos. — A partir de agora, minha vida é sua vida, meu caminho, seu
caminho.
Gustaf olhou para mim.
— Você aceita o sacrifício, Princesa Katarina? — perguntou.
Busquei os olhos de Greta, sem saber o que eu deveria fazer, e ela
gesticulou para o lenço em meu cabelo.
— Limpe o peito de seu marido e guarde o símbolo do amor dele
por você junto ao seu coração — meu tio explicou.
Peguei o lenço e passei sobre a pele recém-marcada de Ture.
Lágrimas descendo de seus olhos e dos meus. Limpei a linha de sangue
sobre sua barriga, até o cós da calça. Depois dobrei o tecido branco
manchado de sangue cuidadosamente e o beijei.
Ture soltou três botões do meu vestido e guardou o lenço sobre
meu coração, fechando-os em seguida. Suas mãos tocaram meu rosto e ele
sussurrou em meu ouvido.
— Minha Katarina… Agora, minha de verdade!
Não resisti, puxando-o para mim e beijando. Palavra alguma seria
capaz de explicar o que eu sentia, então deixei que ele sentisse. O
bebezinho dentro de mim deu um salto e Ture sorriu, cobrindo minha
barriga com a mão espalmada.
— Amo você também, pequeno guerreiro!
Todos riram e mais lágrimas desceram.
Quando eu ia fechar os botões da camisa de Ture, Greta me
interrompeu.
— Ah, não, Katarina, espera! — Mostrou a palma como pedido de
socorro. — Eu estou aqui, esperando por um casamento há anos! E você
quer fechar a camisa do careca?
Franzi o cenho sem entender nada.
— Meu sangue foi dedicado a Freya… — Ture explicou baixinho.
— A tradição diz que, se uma donzela sujar os lábios no sangue de Freya,
qualquer um que seja beijado por ela encontrará o amor eterno.
— Posso? — a garota pediu mirando meu rosto.
— Quem sou eu para negar amor aos meus amigos! — Dei de
ombros sorrindo.
Greta levou o indicador até a marca no peito de Ture e sujou o
dedo com o sangue, depois passou em seus lábios.
— Vamos lá, eu te ajudo a desencalhar, irmãozinho! — brincou
tocando de leve os lábios nos de Magnus.
Ele aceitou, mas não sem perder a piada.
— Quem disse que eu estou procurando amor eterno, irmã? Prefiro
os de fim de semana! — debochou.
— Agora você, pirralho! — Estendeu a mão na direção de Ian.
— Credo! Eu não vou beijar você, Greta, que nojo!
— Azar o seu então! Vai morrer sem amor! — a loira praguejou.
Começamos a rir e, antes que a piada perdesse a graça, Aren se
aproximou da amiga.
— Sabe que o sangue de Freya não pode ser desperdiçado, não
sabe? — perguntou com segurança na voz e Greta apenas aquiesceu.
— Então me permita…
Aren a segurou junto de si e ela o encarou por alguns instantes,
seus olhos perdidos na imensidão azul dos olhos do homem que tinha tanto
do seu coração, suas mãos deslizando no cabelo macio dele.
O príncipe pressionou a boca na dela sem pressa, as mãos em volta
de sua cintura, mantendo Greta junto dele. Sua língua tateou o contorno dos
lábios de Greta, limpando o que havia sobrado de sangue ali. Por fim, antes
de soltá-la, deu um beijo em sua testa.
— Acho que essa história não termina por aí… — sussurrei junto
ao ouvido de Ture.
— Você acha? — Ele levantou a sobrancelha. — Eu tenho certeza!
Passos se aproximaram de nós até que a mão de Magnus repousou
sobre meu ombro.
— Eu sabia que o vestido seria perfeito…
Abracei-o carinhosamente.
— Obrigada! Você acertou!
— Viu, pequena abelha? Você só precisava de um empurrãozinho!
Sorri, beijando seu rosto.
— Faz tempo que você não me chama de pequena abelha!
— É que agora a abelhinha em questão encontrou sua própria
colmeia… Já não está mais por aí sem rumo. — Piscou.
Bjorn, o amigo de Ture, se aproximou também. Eu ainda não o
tinha visto de terno. Ele parecia muito elegante e refinado em seu traje
cinza-chumbo. Não havia pele em seu ombro, já que Bjorn não era um de
nós, mas havia um broche em seu peito, provavelmente de platina, com o
formato da pata de um urso.
— Princesa… Quero que conheça minha filha… Esta é Suri.
A garota sorriu, dando um passo à frente. Era jovem, ainda
adolescente. Seus olhos eram castanhos, com um leve esverdeado. Os
cabelos escuros e lisos, caindo pesados sobre os ombros. Seus traços eram
finos e delicados. A pele, suave e bronzeada.
— É uma honra conhecê-la, Princesa Katarina, sou a Princesa Suri.
— Bjorn é rei dos Berserker… — Ture explicou.
— É uma honra conhecê-la, Suri. — Abracei-a carinhosamente.
— Parabéns pelo casamento. Desejo que sejam muito felizes.
— Meu povo e o seu têm seguido como irmãos desde os tempos
antigos, princesa — Bjorn me abraçou também. — É uma honra fazer parte
deste dia especial.
Seguimos para a grande mesa de almoço que havia sido montada
no jardim da minha casa, onde uma bela refeição estava pronta para ser
servida.
E assim, sem muito luxo ou excessos, Ture e eu juramos nosso
amor diante dos deuses e de todos que nos amavam.
Conversamos, rimos e bebemos como pedia o sangue viking que
corria em nossas veias, até que o dia começou a perder força. Ainda não
tínhamos tantas horas de luz.
Bjorn já havia nos deixado e Gustaf, também, quando Aren parou
ao meu lado junto à varanda. Uma caneca de hidromel em sua mão, os
olhos mirando o lago ao fundo.
Deitei a cabeça em seu braço e fiquei em silêncio ali por alguns
minutos. Aren acariciou meu cabelo devagar, sem dizer nenhuma palavra
também.
Permanecemos assim por um longo tempo, até que eu cortei o
silêncio.
— A dor vai passar… — soltei no meio de um suspiro, sem voltar
os olhos para o dele.
— Espero que sim… — Encheu os pulmões de ar e soltou devagar.
— Mas, para garantir, eu vou matá-lo, Katarina. Vou persegui-lo e matá-lo.
Meu primo não precisou dizer o nome para que eu soubesse a
quem se referia. Sten! O demônio que rondava nossos piores pesadelos.
Meu sangue congelava nas veias apenas por pensar nele. Sten
havia matado meu pai e Helga, fazendo todos que eu amava sofrerem. Eu o
queria morto assim como Aren, mas não queria que meu primo passasse a
vida caçando um desgraçado como ele, queria que fosse feliz. Tanto quanto
eu era.
Cobri sua mão com a minha.
— Você não deveria ter isso como meta… Há muito mais do que
vingança para você.
Aren suspirou.
— Não há nada mais para mim, Katarina… — confessou em mais
um suspiro. — Tudo que houve um dia se perdeu há muito tempo.
— Não é verdade! — a voz de Ture interrompeu nossa conversa.
— E eu não vou permitir que perca sua vida em busca dessa vingança, meu
irmão.
— Essa escolha não é sua! — Aren soltou amargo. — Ou pretende
impedir seu futuro rei?
— Jamais faria algo assim… Respeito você como homem, irmão e
líder… É por isso que digo que nosso povo precisa de você aqui, na Suécia,
cuidando dos nossos interesses.
A mão de Ture repousou sobre o ombro de Aren.
— Como seu amigo, eu digo que você merece mais do que uma
vida vazia em busca de vingança… Como seu irmão, compreendo e peço
que me dê um tempo. Dê-me o primeiro ano do meu filho… Deixe-me estar
ao lado de Katarina nesse período mais difícil. Até lá, ela terá mais
confiança em quem é para que possa ficar sozinha. Quando esse tempo
passar, antes da cerimônia de coroação, se ainda quiser caçar Sten, eu irei
com você e faremos isso como sempre fizemos tudo, juntos.
— Não posso permitir que se coloque em…
— Essa sim, não é uma escolha sua!
Os lábios de Aren se curvaram em um sorriso fraco.
— Juntos! — Ture soltou. — Sempre…
— Sempre! — Aren concordou.
Eu não queria nenhum dos dois caçando ninguém pelo meio do
mato, mas sabia que, pelo menos, juntos eles eram mais fortes que Sten.
Abracei os dois, um com cada braço e os juntei. Nosso acordo estava
selado.
Aren se foi assim que terminamos nossa conversa. Eu sabia que ele
respeitaria o acordo. O príncipe não era do tipo que empenhava a palavra
em vão.
No fundo eu esperava que, com algum tempo, talvez em uma bela
praia da Espanha ou um passeio pela Costa Amalfitana, meu primo
desistisse de se enfiar na imensidão gelada do Norte, atrás de alguém que
não valia a pena.
Quando todos se foram, inclusive os empregados, ficamos apenas
nós, Ture e eu, sentados naquela varanda que guardava tantas lembranças.
— Vem? — Meu marido estendeu a mão para mim.
Eu a segurei com um sorriso nos lábios, nem precisava saber o
destino, já que o acompanharia para qualquer que fosse o lugar.
Caminhamos abraçados até o final do píer, onde meu pai
costumava ancorar o barco dele. Dançamos ao som da noite, com a luz
fraca da aurora boreal sobre a cabeça. Meus pés descalços sobre os seus
sapatos, suas mãos fortes amparando minhas costas, a neve caindo como
uma chuva de pétalas brancas sobre nós.
Fechei os olhos, enquanto meu marido beijava meu pescoço sobre
o tecido fino do vestido, minha língua traçando um caminho pelo contorno
de sua barba por fazer.
— Fico pensando o que Yrian e Karin diriam disso tudo… — Ture
sorriu.
— Ele correria atrás de você com a faca de caça por ter
engravidado a filhinha dele! — brinquei.
Ture riu alto.
— Mentira! — Suspirei. — Acho que os dois devem estar muito
felizes lá em cima, olhando por nós… Ele sempre me disse que você
cuidaria de mim quando fosse necessário, você honrou o pedido dele, Ture.
— Sorri. — Já minha mãe…
— Agora Karin… — ele continuou. — Acho que já imaginava…
E acho que ficaria muito feliz em saber que conseguimos, enfim, estar aqui.
Ela sempre acreditou no amor verdadeiro.
Beijei sua boca com todo meu amor. Minha língua na sua, tocando,
sentindo. Seus dentes arranhando meus lábios, suas mãos pressionando meu
corpo contra o seu, reagindo tenso ao meu toque.
— Acho que você deveria começar a cuidar de mim agora! — pedi
brincando. — Já que me ofereceu sua vida, posso pensar em pelo menos
uma dúzia de coisas para fazer com ela neste momento.
Meu marido riu.
— Tudo o que minha senhora desejar! — Baixou o corpo em
reverência.
Ture me carregou em seus braços para dentro da casa e empurrou a
porta com o pé. A sala estava vazia e a luz vinha das velas acesas ao redor
do cômodo todo e da lareira, que ardia esquentando suavemente o ambiente.
O tapete felpudo marrom estava estendido em frente a ela.
Aquele era nosso lugar preferido da casa, desde muito antes de um
de nós entender o que era aquele amor que sentíamos um pelo outro. Era ali
que nosso amor havia começado e ali que passávamos os melhores
momentos da nossa vida.
— Quero você aqui… — sussurrei ao seu ouvido.
— Desse jeito vou mandar tirar a cama e colocar um tapete no
lugar! — brincou.
— Eu não me importaria! — Dei de ombros. — Lobos não
dormem em camas! — brinquei.
Ture me colocou no chão, tirou o casaco dos meus ombros e me
virou de costas para ele. Seus dedos soltando lentamente os botões do meu
vestido, sua boca traçando uma linha de mordidas nas minhas costas.
— Naquele dia na cabana, quando tirei os cacos de vidro das suas
costas — sussurrou contra minha pele. — Eu quase enlouqueci —
confessou.
Sorri, reprimindo o gemido.
— Eu também.
— Você nem faz ideia de como eu desejei você naquele dia, de
como quis tocar o seu corpo, sentir sua pele na minha. De como eu quis
saborear a sua boca.
Gemi enquanto o vestido caía no chão. Ture me puxou contra si,
sua mão sobre a minha barriga, sentindo nosso filho, a boca em minha
orelha.
— Você não faz ideia de como desejei fazer amor com você todos
esses anos, Katarina, de quantas vezes fiquei parado em frente ao seu
dormitório, olhando você se despir pela janela e imaginando como seria
quando eu tivesse seu corpo sob o toque das minhas mãos.
— Quer dizer que você me espionava, então? — perguntei sorrindo
contra sua boca.
— O tempo todo! — confessou. — Eu nunca deixei você… Jurei
protegê-la e assim o fiz.
Virei-me de frente para ele. Abrindo os botões da sua camisa.
Tocando a pele machucada da marca que dizia que agora Ture me pertencia.
Minha boca procurando a sua.
— Agora eu estou aqui, Ture, sob o toque das suas mãos. Sou sua!
Somente sua…
Ture soltou o cinto e deixou a calça deslizar para baixo. Tracei a
beirada da cueca boxer com a ponta dos meus dedos.
— Minha Katarina… — repetiu. — Para sempre.

Fim
Epílogo
Ture
Um ano e meio depois…

Era o começo de mais uma primavera e o gelo começava a derreter


devagar, criando pequenos vales esverdeados e piscinas para os pássaros.
Abri os olhos e estiquei o corpo, tinha caçado a noite toda e acabei
dormindo mais do que pretendia.
O quarto estava vazio, e a casa, tão silenciosa que me perguntei se
Katarina e meu filho estavam no andar de baixo.
— Liten? — chamei sem sucesso. Não ouvia os pensamentos dela
pela conexão.
Levantei-me da cama e enfiei-me dentro do jeans, o peito ainda nu,
marcado pelos arranhões do maldito espinheiro em que me enfiei.
Desci as escadas esperando encontrar minha esposa no andar de
baixo.
— Katarina? — insisti, atravessando a sala em direção à cozinha.
E foi só quando me aproximei do gramado nos fundos da casa que
ouvi a risada dela, misturada aos gritinhos de Ivar e aos uivos e rosnados de
um grande lobo marrom-escuro como café.
Parei junto ao balcão, ainda escondido da visão deles, e fiquei
observando.
— Pega ele, Ivar, pega! — Katarina gritava enquanto um bebezão
meio cambaleante tentava correr atrás do lobo que tinha umas três vezes o
tamanho dele. — Isso, filho! Caça ele!
O bebê ria tão alto que era impossível não rir junto com ele.
Quem diria, mãe… Quem diria que um dia esses dois estariam
assim, brincando no meio do gramado em uma manhã qualquer…
O tempo havia passado e curado algumas feridas; mesmo que as
cicatrizes ainda estivessem lá, não doíam mais como antes.
Eu precisava confessar que Gustaf estava se saindo muito bem no
papel de avô, tanto que meu filho tinha verdadeira adoração por ele.
Certa vez, ouvi alguém dizer que, se você quisesse agradar uma
mãe, bastava que tivesse amor por seu filho. Ver o monarca emproado, com
quem eu tinha dividido boa parte da minha vida, ali, rolando na grama em
sua forma de besta e brincando com meu filho, deixava bem claro o quanto
isso era verdade.
Enchi uma xícara com café e dei mais alguns passos, parei bem
atrás de Katarina e ela encostou o corpo em minhas pernas.
— Dormiu bem? — perguntou sorrindo. — Achei que acordaria
mais tarde…
Continuei encarando-a sem dizer nada.
— Deixei um pouco da pomada do meu pai sobre a cômoda…
Você deveria passar nesses machucados aí antes que inflame… Ah, Ture, e
se puder dar uma passada no mercado… Ei! — Começou a rir. — O que
foi? Tem algo nos meus dentes? — Abriu a boca e começou a limpar.
Não consegui segurar o riso por mais tempo.
— Você está linda, amor! — confessei. — Só estava admirando a
companheira incrível que tenho ao meu lado.
Katarina se levantou e me abraçou, depois ficou na ponta dos pés
para me beijar.
No momento em que terminamos o beijo, Gustaf e Ivar haviam
saído e, quando voltaram, o monarca já estava em forma de homem
novamente. Terno bem-cortado e meu filho pendurado em seus braços,
dando pequenos tapinhas em seu peito e balbuciando animado.
Nem precisava ouvir seus pensamentos para saber o quanto ele
estava feliz nos braços do avô.
— Ei, pequeno viking, é hora de comer sua fruta! — Katarina
estendeu os braços para o filho.
— Pa-pa! — o garotinho sorriu em minha direção.
— Ok, não vou culpar você! Também não consigo resistir a esse
careca bonitão! — A garota beijou meu rosto, passando o bebê para os
meus braços. — Aproveito que vocês estão em um tempo de garotos e vou
me arrumar! Greta vai passar aqui mais tarde e vamos às compras.
Ganhei mais um beijo e, assim que ela seguiu em direção ao andar
de cima, coloquei Ivar em sua cadeira alta de alimentação. Dei a volta no
balcão, a fim de escolher uma fruta para ele.
— Mais um pouco e estaremos no verão…
Gustaf encarava a grande janela da cozinha, os olhos perdidos na
paisagem que começava a mudar lá fora.
Eu sabia bem o que ele queria dizer, faltava pouco para que Aren
fosse coroado, menos ainda para findar o prazo que eu havia pedido a ele.
— Teve alguma notícia? — perguntei nas entrelinhas, Gustaf sabia
bem sobre o que eu falava.
O homem encheu os pulmões de ar e soltou devagar, negando com
a cabeça.
— Mas recebi notícias sobre uma loba solitária nas florestas ao sul
da Itália…
Deixei um suspiro escapar.
— Não vou culpá-lo por protegê-la, Ture… Eu mesmo faria isso,
se não soubesse que você cuidaria tão bem dela.
Baixei os olhos, descascando a banana e entregando nas mãozinhas
de Ivar.
— Sua mãe amava muito os três… — Um sorriso saudoso e triste
ganhou seu rosto. — Eu não seria capaz de machucá-los, ainda mais a
garota. Sei que não é má, só… se perdeu no caminho.
— Acha que algum dia ele conseguirá perdoá-la? — perguntei
sentindo o peso das palavras. Não era fácil esquecer um sofrimento daquele
tamanho.
— Não sei… Meu sobrinho tem carregado muita amargura dentro
dele. Sei que tenta esconder, mas não de mim… — Ei! — Começou a rir e
correu até o bebê. — Se continuar amassando sua banana deste jeito, não
sobrará nada para comer!
Acabei rindo também, nem havia percebido a bagunça que meu
filho fazia.
Por um segundo, esqueci tudo de ruim que eu vivera, as palavras
duras, a distância imposta, e me concentrei apenas no homem que eu via
diante de mim.
— Ele tem os seus olhos! — Sorri meio sem jeito, mirando meu
filho e depois o homem que tinha me dado a vida.
Gustaf sorriu.
— Genes fortes! — Deu de ombros. — Não sei como você…
Engoli o bolo de sentimentos.
— Ao menos me lembro dela, quando olho para você, Ture…
Soltou um suspiro que eu acabei espelhando, mas logo recuperei a
postura e limpei a garganta.
— Amanhã vou sair para caçar novamente… — comecei como se
não fosse nada de mais. — Preciso treinar os recém-transformados… Aren
disse que se juntará a nós, você sabe, os garotos ficam eufóricos na primeira
caçada, então toda ajuda é bem-vinda…
— Sei bem! — Gustaf coçou a cabeça rindo.
— Gostaria de vir conosco, pai?
A palavra arranhou minha garganta, saiu falhada, em um tom
diferente, como se não fluísse com naturalidade, mas o sentimento que
deixou dentro de mim era quente e confortável.
O homem que eu conhecia tão bem desviou os olhos do bebê e se
concentrou em mim. Cenho franzido, como se tentasse entender se tinha
mesmo ouvido certo. Depois um sorriso de canto curvou seus lábios e ele
pigarreou para controlar.
— Claro! — concordou. — Ando mesmo precisando de
companhia.
Virei as costas e sorri.
Talvez fosse daquele jeito simples e corriqueiro que nossas
diferenças seriam vencidas. Sem grandes alardes ou festas, apenas a vida
real acontecendo entre duas pessoas que foram privadas de viver um
sentimento tão forte e especial quanto aquele.
Peguei uma fraldinha bordada e limpei o rosto do meu filho.
Gustaf sorriu.
— É um desordeiro nato! — brincou. — Puxou ao pai!
Ergui uma sobrancelha acusatória.
— Acho que puxou ao avô também!
O bebê protestou, batendo as mãos na bandeja de madeira e
cuspindo banana para todo lado. Gustaf riu alto e eu fiz o mesmo.
É, mãe… Parece que o tempo cura mesmo a maioria das feridas.
Conheça a Autora
Márcia Lima é paulista do Vale do Paraíba e graduada em
Arquitetura e Urbanismo.
Em 2014 resolveu compartilhar capítulos do seu primeiro livro na
Web, obtendo grande sucesso e atraindo muitos leitores, levando assim ao
surgimento de seu primeiro livro, Tão Perto.
Desde então os títulos só aumentaram, sempre com alto teor de
romance e sensualidade. Considerada autora best-seller da Amazon, seus
livros sempre figuram entre os mais vendidos.

Site: https://autoramarcialima.com/
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[1]
Maneira de se referir a Odin.
[2]
Pequena em sueco.
[3]
Lenda viking dos homens-lobo de Odin.
[4]
Boneca em sueco.
[5]
Transformado. Um humano normal, que, quando mordido por um Ulfednar, se transforma em
lobisomem, mas sem controle sobre sua fera.
[6]
Lenda viking dos homens-urso de Odin.
[7]
Irmã mais nova em sueco.
[8]
Irmão mais novo em sueco.
[9]
Mãe em sueco.
[10]
Pão integral de origem dinamarquesa.
[11]
Cerimônia de casamento baseada na cultura e crença viking.

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