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Copyright © 2019 de LETTI

OLIVER
Entre Perdas e Ganhos (Série Entre Amores:
Família Volkiov, Livro I)
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.
Edição Digital | Criado no Brasil.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança


com nomes, datas e acontecimentos reais é mera
coincidência. Este livro ou qualquer parte dele não
pode ser reproduzido ou usado de forma alguma
sem autorização expressa, por escrito, da autora,
exceto pelo uso de citações breves em resenhas ou
avaliações críticas.
Capa: Letti Oliver
Revisão: Victoria Gomes
Diagramação: Letti Oliver

A violação dos direitos autorais é crime


estabelecido pela lei n° 9.610/98 e punido pelo
artigo 184 do código penal.
Para todos aqueles que acreditaram em mim
quando eu mesma não acreditava…
…e aos que não acreditaram também.
De uma forma ou de outra,
ambos me deram forças para
continuar tentando
CAPÍTULO 01
CAPÍTULO 02
CAPÍTULO 03
CAPÍTULO 04
CAPÍTULO 05
CAPÍTULO 06
CAPÍTULO 07
CAPÍTULO 08
CAPÍTULO 09
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
EPÍLOGO
CAPÍTULO 01
O Universo Nunca Esquece

CINCO ANOS JÁ haviam se passado desde o


acidente. Tempo demais esperando que algum
milagre divino se apiedasse da minha alma
destroçada, ou que as lembranças daquele tempo
fossem arrancadas do meu coração com a ponta
afiada de uma lâmina. Assim eu teria paz e deixaria
de transformar tudo ao meu redor em cinzas.
Acabar com a minha vida foi a primeira
ideia que permeou meus pensamentos depois do
fatídico dia. Junto com a vontade de não existir
mais, contudo, vinham sempre as memórias vagas
do sorriso dela, os olhos brilhantes como duas
amêndoas, sempre grandes demais no rosto
pequeno e delicado. Hoje em dia é difícil
consolidar uma imagem perfeita, mas a sensação
continua aqui. A vergonha de imaginar o que ela
pensaria da minha fraqueza é a única coisa que me
impede de cometer uma loucura.
De qualquer forma, aquela filosofia barata
sobre o universo conspirar a favor do ser humano
nunca se provou tão inverídica. O universo nunca
esquece aqueles que merecem o seu rancor. Depois
do que aconteceu, afastei-me de tudo e todos,
trabalhei dia e noite sem parar, me afundei nas
noites badaladas de Nova Iorque, só para tentar
esquecer. Como fui idiota. É impossível, no fundo
sempre soube, mas gozava dos esforços vãos. Só se
vive um amor como aquele uma vez na vida, e ele
marca a gente como brasa na carne.
Agora, após tantos anos de isolamento,
estou de volta.
Sair do Sheremetyevo não demora mais do
que trinta minutos. Um tempo bom, considerando o
fluxo de pessoas que usufruem diariamente dos
serviços oferecidos no maior aeroporto de Moscou
— além de curiosos que visitam a estrutura pelo
simples prazer de apreciar as características
modernas e angulosas que tornam o edifício único.
Na área externa, encaro por um momento o
céu da Rússia, inspiro o ar do meu país e quase
sinto algum prazer por retornar às origens. Quase.
Se as circunstâncias fossem outras, se o mundo não
fosse tão cruel, eu poderia ter sido feliz aqui, ao
lado da mulher mais preciosa que já pisou sobre o
planeta.
Caminho para um táxi qualquer. Não avisei
que chegaria hoje para ninguém, caso contrário
viriam todos ao meu encontro. A última coisa que
desejo por enquanto é lidar com meus irmãos todos
de uma só vez e ainda escutar os lamentos da
minha mãe sobre como sou um péssimo filho.
Indico o caminho para o motorista. É um
pouco estranho voltar a conversar utilizando minha
língua nativa. Na sucursal de Nova Iorque, lidava
somente com investidores americanos, não havia
sentido me comunicar em russo. Fora que, na maior
parte do tempo, simplesmente ficava sozinho no
escritório sem falar com ninguém.
Alguns dos arranha-céus das Sete Irmãs de
Stálin me acompanham com seus olhos de vidro e
torres pontiagudas, principalmente quando nos
aproximamos do Kotelnicheskaya — talvez o meu
preferido, um símbolo visual que reafirma o sangue
a correr pelas minhas veias — totalmente banhado
com as cores quentes que definem os padrões
climáticos nessa época do ano. No auge do verão, a
quantidade de pessoas que se arriscam a expor um
pouco de pele supera qualquer outra estação.
O percurso até a empresa matriz da família
Volkiov é longo, marcado por edifícios elevados e
monumentos históricos. Calculando os minutos,
resta muito tempo até alcançarmos a sede, o
período perfeito para refletir sobre o que farei em
seguida. Vladimir não tem o direito de prosseguir
com essa insanidade, o acordo chegou ao fim junto
com a morte da minha noiva.
Não pretendíamos nos casar por causa dos
interesses financeiros de ambas as famílias.
Crescemos juntos, como crianças normais
descobrindo o mundo aos poucos. É verdade que
nossos pais incentivaram a relação, mas essa era a
menor das minhas preocupações naquele tempo.
Enquanto estivéssemos juntos, poderiam fazer o
que bem entendessem com os efeitos colaterais da
união. O casamento entre os dois herdeiros das
famílias mais poderosas da Rússia podia acontecer,
pois nossa felicidade contagiava, era plena.
Mas ela se foi. Eu estou aqui.
E, aparentemente, os interesses familiares
também sobreviveram.
O carro para na frente da empresa. Pago
uma quantia bem maior para o taxista, sem querer
perder mais dos meus escassos minutos. O plano é
conversar com Vladimir, resolver esse problema e
voltar para as terras americanas no último voo da
noite.
O centro da capital continua o caos de
turistas escandalosos mesclado com a frigidez dos
semblantes russos. Nossa história é marcada pelo
sofrimento, escrita com o sangue de inocentes,
assim como o mundo de maneira geral. Somos
despojos inconsistentes, tiramos fotos na frente de
esculturas e prédios antigos enquanto cultivamos o
ódio dentro de nós.
Embora muitos detalhes inéditos me saltem
aos olhos, não me dedico em analisar o frontispício
da empresa e as modificações simplórias investidas
durante a minha ausência. Subo a escadaria a
passos rápidos. As pessoas me olham com alguma
curiosidade, uma reação que julgo adequada
considerando que a maioria dos funcionários
antigos não trabalha mais aqui ou foi remanejada.
Quase ninguém me reconhece.
Não dura muito, é claro, pois passo direto
sem me anunciar na recepção e sigo até o elevador
presidencial. Quando as portas estão quase se
fechando, o burburinho já é tão grande que
Vladimir saberá da minha presença antes que eu
alcance o último andar.
Minha preocupação real, contudo, é o que
farei com toda essa vontade de socar alguma coisa.
Tenho me controlado desde quando embarquei no
avião, mas agora a história é outra.
A porcaria é muito diferente.
Como previsto, meu irmão mais velho
aparece diante de mim quando o elevador apita no
ponto mais alto do prédio. A diferença de idade
entre nós é de apenas dois anos, mas ele ainda é
mais forte e alto do que eu. O herdeiro primogênito
da família Volkiov tem o mesmo cabelo escuro de
Nicolai, nosso falecido pai, mas todo resto é um
conjunto organizado das características da nossa
mãe — os olhos azuis, a maxila quadrada e as
sobrancelhas desafiadoras, isso sem falar no
temperamento do cão.
Encaramos um ao outro, reconhecendo aos
poucos as mudanças que a distância impediu que
acompanhássemos gradualmente um no outro. Dou
um passo em sua direção, incerto sobre como
proceder. Ele tem sido o chefe da família por muito
tempo, presidente da empresa e responsável pelos
bens que meu pai costumava nominar como nosso
império.
Vladimir é o primeiro a tomar iniciativa.
Abraça-me em silêncio, eu retribuo, a saudade
enfim sendo saciada. A falta da minha família foi o
mais difícil de suportar, mas o tempo é um velho
preguiçoso que esconde todas as feridas debaixo de
um tapete puído.
— Eu imaginei que viria — diz enquanto
nos soltamos.
Sem nada a acrescentar, me direciono para a
cadeira de clientes na frente da mesa. Uma placa
dourada com o nome do presidente Vladimir N.
Volkiov brilha em cima de alguns papéis. A sala
ocupa todo o último andar, é fechada e
claustrofóbica. As janelas estão trancadas e longas
cortinas azuis escondem a vista da capital. É muito
diferente de quando meu pai comandava os
negócios. Nicolai sempre foi muito alegre, cheio de
vida e expansivo, enquanto Vladimir carrega seus
próprios demônios e segredos a sete chaves.
Um copo com cheiro de bebida forte é
depositado na minha frente, logo depois meu irmão
também senta, servindo-se com uma garrafa de
vodca.
— Mamãe sabe que chegou? — questiona,
depositando a garrafa sobre a mesa, depois bebe um
pouco do líquido transparente e ácido.
— Não, e não quero que saiba. Já comprei
passagem para voltar ainda hoje.
— Bem, não devia ter vindo. — Seu tom
formal e incisivo revira alguma anomalia
emocional dentro de mim.
— E o que você esperava que eu
fizesse, Vlad? — pergunto com a voz calma,
mesmo que a raiva consuma cada centímetro do
meu corpo. — Como pensou que eu reagiria após
uma notícia daquelas?
— É uma questão profissional, Ivan —
responde com a mesma tranquilidade velada. — A
família de Petrova veio diretamente a mim, mas
isso envolve toda a nossa família. Chamei Roman e
Andrei para discutirmos a proposta que nos
fizeram.
Petrova.
Maldita gota d'água. Em um piscar de
olhos, o copo que ele segura se espatifa no outro
lado da sala. Agarro Vladimir pelo colarinho da
camisa, mas ele ostenta uma força física superior.
Caímos os dois em um amontoado de palavrões e
socos, como adolescentes que não controlam os
impulsos.
— Proposta? — retruco. A palavra é quase
tóxica na minha boca. — Querem sacrificar a vida
de um de vocês em troca do quê? Dinheiro?
Tento ficar de pé, mas meu irmão é mais
rápido e puxa minha perna, fazendo com que
minhas costelas batam na lateral da cadeira; a dor
me deixa impotente por um instante. Aproveitando
a oportunidade, Vladimir sobe em mim e acerta um
golpe de punho fechado muito bem dado na lateral
do meu rosto e uma dormência imediatamente se
estende desde a orelha até a ponta do queixo. Não é
o suficiente para deixar um hematoma, mas nem
por isso deixa de doer.
— Não é só por dinheiro! — grita. — Você
não tem ideia do que aconteceu nos últimos anos,
do inferno que tivemos que viver depois do
acidente! — Ele me chacoalha, irado. Ainda assim,
tem tudo sob controle. Meu irmão não move um
dedo sem a certeza de resultados positivos, o
problema é que não resta nada de benéfico em
mim. — Você foi embora e deixou todos os cacos
para eu colar, e é isso que estou fazendo.
Bem, irmãozinho, falta uma peça, e odeio serviços
feitos pela metade.
O peso de Vladimir se levantando me deixa
inseguro. Ele cambaleia de volta para a cadeira,
sem nenhum arranhão, nenhum fio de cabelo fora
do lugar, e engole toda a bebida do meu copo de
uma vez. Maldito.
Devido à nula coragem para levantar,
apenas escondo o rosto com o braço e continuo ali
como um covarde. São palavras verdadeiras e a
verdade muitas vezes não simpatiza com os
homens. Eu fugi e deixei a merda para ele limpar.
Tanto tempo sem escutar o nome de Petrova, já não
lembrava como a dor podia lacerar.
— O senhor Mikhail Ihascov veio com a
esposa há dois dias. Se não aceitarmos eles vão se
unir com outra empresa. Caso aconteça algo desse
tipo, nossas ações vão despencar no mesmo dia. —
Uma pausa, ouço o som da borda de vidro da
garrafa encostando no copo. — O mais sensato é
que eu aceite. Bem, nossos pais também se casaram
por interesse, e não precisa ser definitivo, apenas
tempo o suficiente para garantirmos a estabilidade
dos investidores. No máximo um ano, não será
preciso nem dividir a mesma casa. Aparecer em
alguns eventos vai ser suficiente.
— Você disse que não era pelo dinheiro —
murmuro ceticamente.
— E não é.
Com dificuldade, arrasto-me de volta até a
cadeira. Pego a garrafa de aspecto caro em cima da
mesa e admiro o design elaborado e retorcido,
depois bebo ali mesmo. O líquido queima a minha
garganta, o gosto faz os pensamentos voltarem para
o lugar.
— Tenho a impressão de que não pretende
me contar o verdadeiro motivo — constato, puxo o
nó da minha gravata e desabotoo o primeiro botão
da camisa.
— Você não quer que a Lara faça parte da
nossa família — acusa, cruzando um caminho
perigoso de palavras. — Atravessou o oceano para
impedir que um de nós aceite se casar com ela,
mesmo um casamento de fachada.
— Ela matou a minha mulher. — Espalmo a
mesa, enraivecido pela cegueira da presidência que
desvirtuou Vladimir. — Por culpa dela Petrova está
morta.
— Eu entendo o seu ponto, Ivan, mas não
posso concordar com ele. Lara era irmã de Petrova.
Você, mais do que ninguém, sabe como aquelas
duas se amavam. — Ele suspira e esfrega as
têmporas com o dedo. — É por isso que você não
entenderia todos os motivos que me fizeram aceitar
a proposta. O que está em jogo agora é qual irmão
vai se casar com ela. Exceto por Andrei, somos
todos solteiros, ricos, sem compromissos em vista e
nenhum plano de casar tão cedo. Qualquer um pode
aceitar e eu estou disposto a fazer isso.
Se não fosse por Lara, o amor da minha
vida ainda estaria aqui e disso eles estão cientes.
Bastava que ela tivesse me escutado naquele dia e
as coisas seriam diferentes hoje. Mas não. Lara
sempre foi uma menina teimosa, do tipo que batia o
pé para conseguir seus objetivos. Petrova, com o
coração mole, costumava fazer as vontades da irmã
caçula, enquanto eu apenas admirava as duas por
conseguirem amar uma à outra mesmo com
personalidades tão diferentes.
Lara sempre foi tempestade, gargalhada e
agitação. Mas Petrova não, ela era garoa, sorriso
manso e calmaria.
Nunca vou permitir que algum dos meus
irmãos se case com aquela menina.
Nunca.
— Quando foi que voltamos no tempo?
Achei que casamentos arranjados tivessem ficado
no século passado — desdenho, meus argumentos
se esgotando devagar.
— Nós dois sabemos que isso não é
verdade. Herdeiros ao redor do mundo se unem em
matrimônio o tempo todo. Algumas vezes não é
intencional, de vez em quando as pessoas
conseguem a proeza de unir o útil ao agradável e
encontrar o amor; mas outras vezes, não. Desde que
os envolvidos concordem, não vejo problema. E,
como já falei, é um acordo de fachada, não um
casamento de verdade.
Fico pensando se Vladimir escuta as
próprias palavras, se é capaz de passar por cima da
hipocrisia e aceitar o quanto esse posicionamento é
soberbo e hipócrita. Meu irmão se transformou em
um homem ambicioso, sua vida é o trabalho. Temo
que nunca conheça a verdadeira felicidade, mas
rogo também para que jamais descubra como dói
quando ela é arrancada de nós.
— O que nossos irmãos acham disso? Já
contou para eles?
— Roman ainda não sabe da proposta, ele
está cuidando de alguns assuntos na sucursal da
Itália. Tivemos problemas com alguns investidores
e foi preciso que um de nós resolvesse a questão
pessoalmente. Nós conversamos superficialmente e
ele disse que chegaria ainda hoje. Adiantei o
assunto sobre Mikhail ter uma proposta para
unificação das empresas, claro, mas não entrei em
detalhes. Andrei estava comigo no dia em que
vieram aqui. No começo ficou um pouco
perturbado, você sabe como ele e Lara eram
amigos.
Uma coisa que eu não posso negar é como
aquela garota sempre esteve ligada à minha família.
Houve um tempo em que ela costumava
acompanhar Petrova toda vez que íamos a algum
evento. Lara gostava de se cercar com pessoas e
cativá-las com a sua falação desenfreada. Petrova,
preocupada o tempo todo, não sabia como agir,
especialmente quando a irmã mais nova decidia se
aventurar por baladas e festas.
Muitas vezes eu tive que ir atrás dela para
garantir que não fizesse nenhuma besteira, e já
quebrei alguns dentes também. Bastava Petrova me
olhar com aquele rosto cheio de expectativa que eu
me derretia como qualquer homem apaixonado,
realizando cada um dos seus benditos desejos.
Andrei e Lara têm a mesma idade e se
tornaram amigos quando crianças, com o tempo
qualquer um podia confundi-los como irmãos.
Duvido muito que o caçula se voluntarie para esse
casamento. Não sei como ficou a relação deles
depois de tudo o que aconteceu.
Eu não sei de muitas coisas pelo visto.
— Não concordo com isso — determino. —
É impossível para mim.
— Eu falei para Mikhail que íamos pensar
no assunto, mas ele tem pressa. No último ano a
empresa dele cresceu muito, o homem está
apostando tudo o que pode. Nós sabemos que o
plano dele sempre foi utilizar Petrova para
aumentar o próprio negócio, a única diferença era
que vocês deram sorte de se apaixonarem um pelo
outro.
— Não quero falar sobre Petrova. Não
compare o meu noivado com esse circo. — Minha
voz ecoa de forma distante, mas percebo que o ódio
se evidencia em cada palavra.
— Certo — Vladimir suspira. — Ivan,
marquei de me reunir daqui a dois dias com
Mikhail. Tenho certeza que Andrei e Roman irão
comigo, mas gostaria que fosse também. Ainda não
falei com Lara sobre isso, aliás, eu a vi poucas
vezes desde que você foi embora.
Antes que eu tenha tempo para negar,
contudo, o elevador começa a apitar, indicando
alguém a caminho. Olho para Vladimir em busca
de uma explicação, mas ele parece tão perdido
quanto eu. Meu irmão encara o relógio e depois
fica de pé, arrumando os botões do paletó. Em
seguida, nossa mãe irrompe sala adentro, como um
furacão de joias e saltos altos.
Era só o que me faltava.
— Nove meses! — grita seu discurso
corriqueiro com o dedo apontado na minha direção.
— Nove meses eu carreguei você dentro da minha
barriga. Somando os meus quatro filhos, são trinta
e seis meses parecendo uma melancia enorme, com
dores nas costas, vômito, estrias e muita fome.
Tudo isso para quê? Para morrer sozinha naquela
mansão. Ninguém se importa comigo. Vocês vêm e
vão de um país ao outro, não se preocupam em
telefonar, em enviar uma mensagem de texto.
Nada! Roman não me liga desde quando foi para a
Itália, e isso já faz dois meses! Mas você, Ivan,
cinco anos! Cinco anos que não vejo o meu filho.
Agora está de volta e nem se deu ao trabalho de
avisar sobre a sua vinda?
— Mãe… — Tento dizer, mas Vladimir faz
um sinal negativo pelas costas de Tatiana. De fato,
o melhor é deixá-la descarregar toda a raiva ou
correrei o risco de sofrer uma agressão com suas
unhas de leoa.
— Mas com o Roman eu me entendo,
aquele marginal descarado! Daqui a pouco o
motorista vai trazê-lo. Vocês sabiam que o ingrato
andou brigando na Itália? Aquele idiota ainda vai
parar em um hospital algum dia e ficaremos
sabendo só quando a conta do funeral chegar.
Ela anda de um lado para o outro, os colares
no pescoço tilintam cada vez que muda a direção.
Atrás dela, Vladimir não parece nada contente com
a notícia. É bem provável que Roman tenha trocado
socos com algum investidor ou cliente, é a cara
dele fazer esse tipo de coisa. Mas, para minha sorte,
a fúria de dona Tatiana foi diluída entre os dois
filhos graças à imprudência de Roman, e agora ela
não sabe qual de nós merece mais xingamentos.
— Ivan, como pôde fazer isso com sua
própria mãe? — Os olhos azuis brilham atrás de
uma película de lágrimas, ela passa as mãos sobre
os cabelos vermelhos.
Nossa mãe não é ruiva de verdade, as fotos
de casamento escondidas em um cômodo antigo na
mansão registraram um castanho claro muito
parecido com o meu, mas vejo que ela continua
com o hábito de mudar a aparência de mês em mês.
— Minha viagem não foi programada, mãe
— digo com cautela. — Eu já ia passar na mansão
— minto. Vladimir esconde um sorriso cúmplice
com a mão.
Tatiana se endireita, limpando os olhos para
não borrar a maquiagem. Mesmo que a idade a
esteja assaltando aos poucos, ainda é uma mulher
bela. Sua vaidade e comportamento tempestuoso
não impactam o caráter digno e o coração
benevolente. Assisto enquanto vira seu olhar para
meu irmão por um segundo e, quando volta para
mim, já exibe um sorriso brilhante e emocionado.
Com os braços abertos, me chama para um abraço.
— Senti tanto a sua falta, meu filho, todos
os dias — sussurra no meu ouvido assim que nos
envolvemos.
— Bem, acho que vou encerrar o dia por
hoje na empresa e vamos todos para a mansão, o
que acham? — propõe meu irmão, já dando a volta
na mesa para recolher papéis e anotações para
trabalhar em casa. Ele nunca para.
Parece que meu plano de voltar para Nova
Iorque não vai se concretizar. Eu já devia ter
previsto que eles arrumariam alguma coisa para me
prender aqui. Desço com a minha mãe e Vladimir.
O prédio é um dos mais altos do centro de Moscou
e quando chegamos ao movimento das ruas é que
me dou conta de como a cidade está diferente da
última vez que estive aqui. Há muitos comércios
novos e prédios que se perdem de vista.
Não demora mais que um minuto até que
uma limusine estacione diante de nós, esse é o
preço a se pagar quando uma mulher como Tatiana
Volkiova é a sua mãe. Ela gosta das extravagâncias
da vida, de usufruir dos bens materiais e do
conforto que o dinheiro proporciona.
Durante o caminho, ela vai fofocando sobre
amigos e parentes, sem nunca me dar a chance de
interromper ou opinar. Acho muito bom, pois assim
não preciso confessar como tenho vivido
pateticamente nos últimos anos. Do seu longo
monólogo, vou fazendo uma lista mental das
informações mais importantes. Aparentemente, ela
não anda nada feliz com o filho mais novo, que
arrumou uma namorada cujos atrativos não
parecem agradá-la. Andrei sempre foi um
cavalheiro, o homem perfeito e charmoso que
conquista qualquer mulher — agora que é um
homem feito, nada mais natural do que aproveitar a
vida.
Quando chegamos à mansão, minha cabeça
dói tanto que eu só quero me esconder em um
quarto escuro. Como é possível que uma pessoa
consiga falar tanto em menos de uma hora? Está aí
uma coisa da qual havia me esquecido.
— Ivan, por que você não vai descansar um
pouco? Parece que Roman foi para um hotel e só
vem amanhã — diz Vladimir com os olhos
pregados no celular.
No mesmo instante minha mãe se
transforma de volta para o modo assassino e
arranca o aparelho das mãos dele para conferir do
que se trata. Tenho certeza de que foi preciso
desembolsar uma boa quantia em dinheiro para o
motorista se desviar do destino. Mas não vou
desperdiçar a chance de fugir, agradeço meu irmão
rapidamente e subo as escadas correndo, sem
nenhuma bagagem.
Não trouxe nada além de um celular e a
roupa do corpo, convicto de que minha estadia seria
breve e imperceptível. Meu quarto continua no
mesmo lugar, está limpo como se uma promessa de
estar sempre pronto para mim pairasse no ar.
Vasculho os armários e gavetas, reencontrando as
mesmas roupas que abandonei cinco anos antes.
Sigo direto para o chuveiro, tudo o que eu preciso é
de água quente e uma hora de sono. Não preguei os
olhos desde que Vladimir me enviou uma
mensagem explicando a proposta de unificar nossa
empresa com a de Mikhail Ihascov — meu antigo
sogro — por meio do matrimônio com a herdeira
mais nova.
Lara.
Só o nome faz meu estômago revirar.
Lembrar daquela noite ainda causa muita agitação
no meu peito. Pensei que havia superado o rancor,
mas meu coração ainda bate forte de raiva ao
recordar que tudo poderia ter sido evitado se não
fosse pelos caprichos de Lara Ihascova.
Saio do banho e me jogo na cama ainda de
toalha. Quero saber quais são os seus planos, por
que concordou com essa imbecilidade. Ambição?
Será possível que sempre foi sua intenção desde o
princípio? Eu preciso descobrir.
O cansaço vai chegando devagar. O dia
marcado para o encontro com Mikhail se aproxima,
preciso entender essa história direito. Os
verdadeiros motivos por trás desse malabarismo
comercial. Antes de me entregar ao sono, envio
uma mensagem de texto para Vladimir, dizendo
que eu irei ao encontro, sim.
Eu preciso ir, é o que Petrova gostaria que
eu fizesse se ainda estivesse aqui. É o que ela me
pediria para fazer.
CAPÍTULO 02
A Primeira Rachadura

A EXPRESSÃO NOS rostos dos monitores quando


cruzo os portões do orfanato é a mesma de sempre.
Nenhum funcionário aprova minhas visitas,
mas não vou desistir só por causa de algumas
caretas. A promessa foi definitiva, faça chuva ou
faça sol, virei visitar Iago todos os dias. Não
importa que o mundo esteja desabando, ele é a
única luz que ainda brilha para iluminar o meu
coração.
Enquanto atravesso os corredores coloridos
e decorados com balões, desenhos e personagens
confeccionados com cartolina e isopor, crianças me
cumprimentam ou interceptam o meu caminho para
pedir alguma coisa. Um brinquedo novo, uma
roupa ou alguma refeição diferente no decorrer da
semana.
Antes — quando Petrova ainda estava viva
—, era ela a responsável por selecionar as
instituições que precisavam de apoio. Ajudar os
menos favorecidos com ações beneficentes é algo
que influencia a popularização e boa imagem da
empresa. No entanto, minha irmã nunca foi muito
de se envolver emocionalmente, averiguar as
condições reais dos lugares que recebiam o apoio
do nosso projeto. O projeto de Mikhail, corrijo em
pensamentos.
Assumi o compromisso de prosseguir com
as doações poucas semanas após o acidente.
Realizei um levantamento dos lugares que
mereciam nossa atenção e reformulei as políticas de
investimento. Esse orfanato era muito diferente há
dois anos, quando entrou para o catálogo de
instituições em busca de ajuda.
Para qualquer outra herdeira, cuidar de um
departamento tão pouco influente seria considerado
um insulto, mas pareceu uma ocupação aceitável
quando minha única vontade era desaparecer e
nunca mais precisar colocar os pés dentro daqueles
escritórios.
No pátio, avisto Iago antes de qualquer
coisa. O grande jardim cultivado abaixo do teto
aberto balança atrás dele no ritmo de uma brisa
suave e a claridade ilumina o topo da sua cabeça,
como se ele todo fosse uma fonte infinita de brilho
intenso.
Cento e sete mil, sussurro no lugar mais
profundo da minha mente.
Faz dois anos que essa criança me salvou da
escuridão total, a única vez que voltei a acreditar no
amor como um sentimento real. Todos os dias a
angústia de imaginar que algum casal sorridente
pode solicitar sua adoção me parte ao meio, como
se um machado afiado me acompanhasse onde quer
que me esconda. Não chega a ser egoísmo desejar
que ninguém venha, mas uma esperança de que o
futuro me presenteie com a possibilidade de
transformar meu menino em meu filho perante a lei
— no meu coração, não existe nomenclatura
melhor.
É meu maior desejo, meu único sonho, mas
só poderá ser concretizado quando eu pagar por
todos os pecados que cometi e voltar a ser dona da
minha própria vida. Porém, até esse dia, não terei
poder para impedir caso alguma família decida
adotar Iago antes de mim. Não tenho esse direito,
mesmo que me leve o resto da alma.
Paro no meio do caminho e limpo algumas
lágrimas, sempre choro quando penso na
possibilidade de ficar sem ele.
Na primeira e única vez que apresentei a
ideia aos meus pais, fiquei uma semana inteira sem
visitar o orfanato. Foi a pior semana da minha vida,
pior até do que quando perdi minha irmã mais
velha naquele acidente horrendo de carro. Iago
ficou tão deprimido que eu jurei a ele que viria
sempre, sem falhar nenhum dia, até quando ele
ganhasse uma nova família.
Desconfio que tenha suspeitado dos meus
machucados, pois sempre que apareço com algum
pequeno hematoma ele questiona como ocorreu,
embora a resposta seja sempre a mesma. Uma
queda, uma distração, qualquer outra mentira.
Meu menino é esperto, entende que nossa
relação é especial. O amor que nutrimos um pelo
outro é forte, sólido. Iago sente, assim como eu, e
se esbalda nesse sentimento. Mas são seus olhos
que revelam um medo contido e interpretado há
muito, o mesmo que me dilacera — de que ele não
me pertence e talvez possa nunca pertencer.
Dói como o inferno.
— Lara! — grita com sua voz fina de oito
anos, já correndo na minha direção.
Eu o abraço, tocando a ponta do meu nariz
no dele. Arrumo os cabelos loiros que estão
bagunçados em todas as direções, como flechas
douradas, e deposito um beijo em sua testa.
— Cheguei — digo abobalhada. Seu sorriso
me tira de sintonia, faz a escuridão desaparecer. —
O que estava fazendo sozinho?
— Eu fiquei de castigo — confessa
envergonhado. — Briguei com o Marko outra vez.
Pego sua mãozinha e caminhamos juntos
até um banco. O barulho de crianças brincando e
correndo é reconfortante e assisto, com o coração
apertado, todas aquelas pequenas criaturas cujos
futuros são incertos.
Ladeados por pequenas flores silvestres,
que crescem sem organização dentro das cercas
feitas com ferro retorcido, parecemos ainda mais
com uma família de verdade. Com a mãe que leva o
filho para passear em uma manhã sem
compromissos. Mas os olhares, aqueles malditos
olhares de monitoras nos vigiando como urubus em
cima da carne podre, destroem qualquer expectativa
de ao menos sonhar.
— Me conta essa história direito, que tal?
— A culpa é dele, foi ele que começou. —
Toda vez é a mesma história, mas conheço o
temperamento de Iago. Ele não deixa nada que o
incomode passar em branco.
— Você não tem nenhuma culpa, nadinha?
— insisto.
— Tá, só um pouquinho assim. — Ele faz
um movimento com o dedo, indicando uma
quantidade que para ele é muito pequena no espaço
restante. — Mas ele ficou brigando com as crianças
pequenas, eu falei pra não fazer aquilo e ele não me
obedeceu.
— Aí você brigou com ele — ajudo.
O pequeno ao meu lado confirma com a
cabeça, muito decepcionado consigo mesmo. As
crianças menores têm apenas um ano a menos que
ele, mas isso faz com que se ache muito mais velho
e responsável. Admiro seu instinto de proteção,
mas não quero que se torne uma criança agressiva e
revoltada com o mundo.
— Não pode bater nas outras crianças só
porque não concordam com você, tem que chamar
um adulto para resolver o problema. — Aguço a
voz para que soe severa, mas seu semblante já
demonstra tanto arrependimento que minhas
últimas palavras saem quase carinhosas.
— Mas ele empurrou uma menininha —
insiste, os lábios comprimidos em uma espécie de
conflito. — A gente não pode bater nas meninas.
Eu sei que não pode bater em ninguém, mas nas
meninas principalmente, porque a gente é menino.
Quase o abraço por defender um
posicionamento tão nobre. Sei como é ter a mão
pesada de um homem contra mim, forte, cruel e
dolorosa. Subjugando-me, menosprezando…
controlando. Um homem que deveria me proteger
do mundo, mas que nunca sequer tentou.
Fui abandonada depois do acidente que
matou Petrova, eles me culpam. Nunca desejei que
minha irmã morresse, se eu soubesse que o carro ia
se encontrar com uma tempestade no meio do
caminho, jamais teria mandado que fosse embora
no meio da noite. Apesar de tudo, de como
acabamos naquela situação, eu poderia perdoar,
entender.
Mas nós brigamos, eles ouviram a nossa
discussão, as coisas que eu lhe disse no momento
da raiva. Palavras que me assombram até hoje.
Fantasmas etéreos que sorriem com dentes afiados,
lembrando como destruí minha única chance.
No fundo também me sinto culpada.
Talvez eu seja culpada. Se não tivesse
acreditado, confiado…
Então talvez…
Talvez…
— Você está certo — concluo balançando a
cabeça, lançando os murmúrios para longe —, mas
bater em Marko não vai resolver o assunto. O que
acha de conversar com ele depois, ensinar que não
pode bater nas meninas? Marko ainda é uma
criança, ele pode aprender bem rápido, ainda mais
com um amigo como você.
Confirmando com a cabeça, ele abre o
maior dos sorrisos. Acaricio seu rosto, os olhos
esverdeados com o tom das folhas no início do
outono, as sobrancelhas quase transparentes em
contraste com a pele pálida, os fios macios como
ouro líquido acima da nuca.
O tempo passa muito depressa quando estou
com Iago. Nós brincamos um pouco, eu o ajudo a
fazer o dever da escola. Sou a única pessoa que
pode andar livremente pelo orfanato mesmo sem
ser uma funcionária. Esse é o poder do dinheiro —
apesar de detestar a herança dos Ihascov, é um
privilégio poder encontrar meu menino sempre que
me der vontade.
Confiro o relógio, os ponteiros zombam do
meu desapontamento, gritam que a hora de partir se
aproxima.
— Iago, hoje eu vou ter que ir embora mais
cedo, tudo bem? — O semblante dele muda um
pouco, esmorece. — Tenho um jantar muito
importante daqui a pouco. Se tudo der certo, talvez
em breve a gente possa se ver mais.
Não quero encher a cabeça dele com
promessas vazias, mas se as coisas fluírem como o
previsto no encontro com o presidente Volkiov,
talvez eu consiga adotar Iago depois da separação.
Volkiov.
Só pensar nesse sobrenome faz meu
estômago revirar, o gosto ferroso estagnado na
garganta.
Despedimo-nos longamente, com muitos
abraços e beijos. Prometo voltar no dia seguinte
mais cedo para compensar o tempo perdido, e isso
o faz ficar quase satisfeito. Do lado de fora do
orfanato, observo enquanto volta correndo para
dentro, certamente para conversar com Marko o
quanto antes.
Dou as instruções para que o motorista siga
o caminho mais longo de volta à mansão. Há muito
deixei de reparar na beleza da cidade, nos motivos
que levam tantas pessoas ao redor do mundo a
planejarem férias anuais para a capital da Rússia. É
sempre mais do mesmo, incessante e deprimente.
Construções e mais construções estagnadas no
tempo com memórias violentas de pessoas que já
partiram.
Fecho os olhos pelo restante do caminho.
Hoje se concretiza o acordo que fiz com
Mikhail. Meu pai nunca me perdoou pela morte de
Petrova, me culpou e puniu mais do que qualquer
um poderia imaginar. Minha mãe não sabe metade
das coisas que aquele homem foi capaz de fazer, de
tudo o que me fez sofrer. Mesmo assim, algumas
vezes no meio da noite, quando meu sono foge para
qualquer lugar mais seguro, pergunto-me se é
possível uma mãe ser assim tão cega. Se seus
escudos de depressão e tristeza são para se proteger
do mundo ou apenas para me manter presa do lado
de fora. Sozinha.
Não procuro por ninguém quando chego em
casa. Subo a escadaria ornada com grandes jarros
de mármore branco, entro sem me anunciar e vou
direto para o meu quarto começar os preparativos
para o jantar.
Tenho que estar impecável se quero que o
meu plano dê certo. Hoje é o dia em que serei
vendida como uma mercadoria qualquer da
empresa Ihascov e não posso sequer me dar o luxo
de negar. Preciso desse acordo. Humilhação é um
pagamento barato perto do que tenho oferecido de
mim nos últimos cinco anos.
Realizo todos os procedimentos de beleza,
com cuidado e dedicação. Escolho o meu melhor
vestido, um longo e prateado e coberto com
centenas de pequenos cristais que ganhei de
aniversário de algum sócio da empresa e nunca tive
a chance de usar. Mikhail detesta que eu os
acompanhe nos eventos da alta sociedade de
Moscou e agradeço por isso.
Deixo os cabelos soltos, pois não tenho
coordenação suficiente para elaborar um penteado
sozinha. Além do mais, não desejo que o decote nas
costas passe uma mensagem equivocada do meu
posicionamento — aceitar o casamento não
significa aceitar todo o resto que se espera de um
matrimônio — e o cabelo ajuda a disfarçar minha
aflição com a roupa.
Será possível que o presidente realmente
aceite essa oferta? Vladimir sempre foi como um
irmão mais velho, do tipo sombrio que vigia os
menores de longe. Talvez Roman? Com seu
temperamento explosivo seria mais fácil atear fogo
no restaurante.
Andrei… Não, ele nunca compactuaria com
isso.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
Saudade, sufocante e caótica. Eu os amava como
uma segunda família.
Quando o nome dele ecoa das profundezas,
fico de pé. Dou uma boa olhada no espelho e meu
coração se comprime ao tamanho de uma noz. Era
para ser Petrova. Minha irmã quem deveria se
casar com um Volkiov, era o seu destino, não o
meu.
Nossas famílias sempre foram próximas,
mas Petrova conquistou todos eles com seu jeito
doce de ser. Ela e Ivan eram perfeitos juntos, e me
sentia um monstro toda vez que meu coração batia
mais forte quando estava perto. Meus sentimentos
por Ivan foram crescendo aos poucos, quando ele
me dava a atenção que ninguém mais queria dar,
quando seus olhos cruzavam os meus cheios de
advertência camuflada. Quando ele me protegia.
Era por Petrova que ele fazia tudo aquilo,
mas não diminuía os efeitos dentro de mim.
O reflexo no espelho força um sorriso assim
que tento obter o controle. É tarde, não vou permitir
que uma fagulha do passado me atrapalhe quando
já cheguei tão longe.
Esse é um pecado que vou levar comigo
para o túmulo. Ivan me odeia tanto que foi embora
para o outro lado do mundo e nunca mais voltou.
Assim como todos os outros, ele também me culpa
e não tenho forças para devolver o mesmo rancor
para o único homem que eu já amei.
Agora a minha prioridade é me livrar de
Mikhail e a sua loucura. Preciso dar a ele o que
deseja e só assim poderei me desprender do seu
domínio. Não posso arriscar perder Iago e a minha
única chance de ter um pouco de independência e
felicidade. Aceito me casar com um homem que
não me ama, qualquer um. Se o senhor Volkiov não
aceitar a proposta, há outras empresas em Moscou
sedentas por uma unificação com a segunda maior
conta bancária do país.
Eu posso. Eu consigo.
— Lara, vamos, querida — chama minha
mãe do outro lado da porta, a sombra dos seus pés
dançando na soleira. Agora não é hora de pensar,
apenas agir.
Visto um casaco felpudo por cima do
vestido, pego minha bolsa de mão, inspiro
profundamente em busca de coragem e saio do
quarto.
Alexandra deixou de se cuidar por causa da
saúde mental instável. Seu corpo magro e ossudo
revela uma mulher debilitada e frágil demais para
cuidar de si mesma. O cabelo quase branco não
condiz com a idade, mas a quantidade de remédios
que ela consome todos os dias vem cobrando o
preço. Minha mãe se esforça para sorrir e as rugas
se evidenciam no canto dos olhos quando me
abraça.
— Está linda, querida.
Querida, outra vez. Ela nunca mais me
chamou de filha.
— Obrigada, mãe.
Minha família, quase estranhos. Vamos de
mãos dadas até o primeiro andar, onde meu pai nos
aguarda com impaciência. Um copo grotesco de
vodca se agita enquanto ele anda sem parar com um
telefone celular seguro no ouvido. Um arrepio
desliza pela minha coluna, achei que ele não fosse
beber hoje.
Pai, um dia vou me acostumar a não
relacionar essa palavra com esse homem. Um dia.
Quando nos vê, ele se despede depressa e me
encara com um semblante acusador.
— Estava conversando com Dimitrio
Livannov, preparando o terreno para o caso de
alguma coisa dar errado com os Volkiov.
Meu primeiro impulso é responder que
Dimitrio é um porco nojento que não consegue
dormir com uma mesma mulher em dias seguidos.
É o que eu falaria há cinco anos. Ao invés disso,
aceno com a cabeça e espero.
Essa é a minha vida agora. Acenar e
esperar.
— Não vá estragar as coisas — diz por fim,
virando líquido todo de uma vez, fazendo respingar
em sua barba espessa.
Minha mãe continua sorrindo quando
saímos da grande mansão e entramos no carro,
como se fingir alegria pudesse apagar os nossos
problemas familiares. Mikhail chamou o motorista
para nos levar, o que me deixa mais tranquila, pois
com certeza ele não pretende parar apenas naquele
copo.
Durante o caminho ninguém fala nada.
Mikhail prossegue com os seus telefonemas,
empenhado em conseguir um bom negócio. É um
homem inteligente, veio ganhando muito dinheiro
nos últimos anos e hoje a sua fortuna quase
equipara com a da família Volkiov.
Odeio o dinheiro do meu pai, é a minha
prisão. Com essa riqueza Mikhail tem o poder de
controlar a minha vida. Nunca pude terminar a
minha faculdade, nem voltar para o meu antigo
apartamento. Todas as vezes que tentei arrumar um
emprego, ele conseguia subornar os chefes para
orquestrarem a minha demissão. Sem as condições
adequadas de estabilidade financeira, eu jamais
conseguiria adotar Iago. Além disso, basta um bater
de palmas e Mikhail poderia levá-lo para longe.
Não posso arriscar.
O carro estaciona na frente de um luxuoso
restaurante. O brilho do sol ainda luta contra a noite
que vai chegando devagar, deixando o céu com um
belo tom arroxeado. Passamos pelo jardim que
enfeita a fronte do lugar, transformando a
atmosfera em um verdadeiro conto de fadas. Há
flores de todas as cores e formatos ao redor de uma
fonte feita com mármore, esculpida com dois anjos
prateados e dançantes no topo.
Meus pais seguem na frente de braços dados
e vou acompanhando os dois um pouco mais atrás.
À medida que nos aproximamos da entrada, meu
coração começa a dar indícios de arrependimento.
O que Vladimir pensou quando recebeu a proposta?
Deve me achar uma mulher vulgar e mesquinha por
concordar com algo assim. É o irmão mais velho, o
presidente! Aquele que as pessoas temem.
E Andrei?
Meu Andrei.
Tornamo-nos melhores amigos ainda na
infância. Nossos pais tentaram nos aproximar
romanticamente, mas a gente não era assim.
Éramos amigos, irmãos, confidentes. É o único que
conhece a maior parte da história, mas eu nunca
tive coragem para lhe contar sobre os sentimentos
que eu nutria por Ivan. Foi ele quem me ajudou na
primeira vez que meu pai surtou, às vésperas do
luto, quando a notícia chegou.
Com o tempo, foi ficando doloroso estar
perto dele, fazia-me pensar nas coisas que eu perdi,
nos erros que cometi. Vergonha e medo de que um
dia ele descobrisse a história toda. Que fosse me
visitar e encontrasse a cena deplorável de um pai
descontrolado e embriagado descontando o ódio na
própria filha. Afastamo-nos, mas eu ainda guardo
as lembranças da nossa amizade com carinho no
meu coração.
Antes de entrar no restaurante, rogo
silenciosamente para que ele não esteja presente.
Por favor, por favor.
Um maître nos recebe com galanteios e
sorrisos. Todos os funcionários exibem feições
radiantes. Não é todo dia que se recebe as duas
famílias mais ricas da Rússia para um jantar. Uma
mulher surge, uniformizada com um conjunto de
blazer e saia pretos, e recolhe nossos casacos.
Nos meus ouvidos há um silvo alto e
penetrante, como o grito de uma pessoa segundos
antes da morte. Bocas de movimentam com
cumprimentos mudos, a camada cristalina que
recobre meus olhos transforma o ambiente em um
borrão de mesas rústicas e lustres com cem
lâmpadas cada.
Somos guiados até o último andar, onde
ficam as decorações mais luxuosas e os garçons
mais atenciosos. De novo, cores, sorrisos, mãos e
agradecimentos.
Um protocolo de etiqueta é a única coisa
que me impede de travar.
A primeira pessoa que avisto por trás do
desespero é justamente Andrei. Droga.
Imediatamente meu corpo enrijece de vergonha.
Andrei me reconhece de longe, seus olhos
castanhos claros parecem duas esferas de citrino —
mas escurecem como uma pedra de opala negra ao
pousarem sobre mim — e o cabelo batido contrasta
com os cachos escuros e compridos que exibia no
antes. Ao seu lado está Roman, o irmão
encrenqueiro. De todos os quatro, Roman é o mais
despreocupado e o único que jamais me dirigiu um
olhar de acusação. Do lado direito, um hematoma
denuncia que andou brigando com alguém
recentemente.
Ao chegarmos à mesa, eles ficam de pé.
Reprimo a vontade de cobrir os braços, de
demonstrar o mínimo de desconforto. Não posso
agir dessa maneira, eu entendia a dimensão dessa
proposta quando aceitei, agora preciso ir até o fim.
— Boa noite, senhores Volkiov — minha
mãe cumprimenta, o sorriso nunca abandonando
seus olhos, e ganha abraços dos dois.
— Lara — Andrei me estende os braços
com a emoção de uma vida, quase deprimente.
Retribuo seu abraço meio desengonçada. — Faz
bastante tempo.
— Sim, faz bastante tempo — repito. — É
bom te ver de novo, mesmo nessa situação.
Ele balança a cabeça como se isso não fosse
importante. Meu pai se aproxima para um abraço,
mas Andrei apenas estende a mão. Mikhail fica um
pouco constrangido, titubeia antes de aceitar a
formalidade, e depois retorna para perto de Roman,
que conversa animadamente com a minha mãe.
— Tem certeza de que quer fazer isso? —
Andrei sussurra. Lamento não saber quando se
tornou um homem tão bonito e responsável.
— Sim, a decisão foi minha. —
Tranquilizo-o. — É como tem que ser, preciso lidar
com as minhas responsabilidades com a empresa.
Ele me olha sem conferir a menor
credibilidade, muito desconfiado e um pouco
decepcionado. É o olhar de quem não encontra
mais nenhuma das características antigas que tanto
me definiam. Desvio o rosto, pois não consigo
suportar a sensação. Puxo uma cadeira e me
acomodo ao lado da minha mãe. É assim que tem
de ser.
Tudo mudou, eu estou diferente, deixei as
coisas para trás, incluindo sonhos de criança, e me
transformei em um nome, um rosto bonito e
educado que minha família pode exibir no lugar da
filha perfeita.
Uma substituta para Petrova, é nisso que
Mikhail me transformou.
Roman acena com um sorriso galante,
alheio a questões importantes. Minha mãe não tem
a delicadeza de disfarçar a curiosidade, e encara o
homem por mais tempo que o aceitável,
especulando com o olhar sobre seus machucados.
Inicia-se uma conversação estável sobre negócios,
não presto atenção. Minha mente viaja para uma
dimensão paralela, imaginando como seria se
Petrova ainda estivesse viva. Hoje ela seria esposa
de Ivan, eu teria suprimido meus sentimentos por
ele como fiz a vida toda e talvez já tivesse
esbarrado em um amor verdadeiro por aí.
Mas não. Ela morreu, eu estou aqui. Como
encontrar um novo amor sendo que resta tão pouco
para mim mesma?
— Eles já devem estar chegando. — A voz
de Roman me puxa de volta à realidade. —
Aconteceu um pequeno incidente com alguns
possíveis investidores italianos, cuja culpa pode ou
não ser minha, e meu irmão está tentando resolver.
Mal os reconheço.
Houve um tempo em que ninguém
conseguia nos separar. Juntas, nossas famílias
estampavam as capas das melhores revistas e
jornais do país. Eu os entendia com a palma da
mão, mas nessa noite se parecem com conhecidos
distantes. Não são mais os meninos com quem
cresci, se tornaram homens de negócios. Mesmo
Roman, com as tatuagens despontando nas bordas
da camisa amassada, tem um novo jeito de
comprimir o maxilar, de elevar ou diminuir o
volume da voz quando quer ser ouvido.
— Sem problemas, é um preço justo a se
pagar pela presidência — responde meu pai, todo
cheio de si.
— Poderíamos pedir um vinho enquanto
aguardamos, ou até alguma coisa para comer —
sugere Roman, já com a mão estendida para o
garçom.
— Melhor esperarmos nossos irmãos,
acabaram de enviar uma mensagem dizendo que
estão perto — Andrei responde, os dedos a digitar
alguma coisa no celular.
Como se um balão fosse estourado, minha
consciência desperta em um alerta. Arranca e
estilhaça meu peito em muitos fragmentos. Ele
disse irmãos, no plural. As palmas das minhas
mãos começam a suar de nervoso. Não pode ser,
não depois de tanto tempo, não agora quando
finalmente dei os primeiros passos para me livrar
do passado.
Alguém diz alguma coisa, mas a voz se
assemelha com um sussurro distante. Estou tensa
demais para participar eloquentemente de qualquer
conversa.
Necessito de ar para me recompor. Meu
corpo é uma mistura desordenada de emoções,
mole e vultuosa. Não contava que Ivan viesse
também, ele esteve isolado em Nova Iorque todos
esses anos, por que voltaria justo agora?
Ivan.
— Com licença — murmuro já me
levantando e ignorando a boca escancarada de
Mikhail para protestar.
Uma parte racional da minha cabeça
sussurra que devo manter a calma. É um exagero
reagir de tal forma, mas o medo é um sentimento
que amplifica todas as emoções. É isso, medo de
Ivan, medo de que seu olhar de ódio me empurre de
volta para o abismo, medo de que meu coração
traia as paredes que eu construí ao redor de mim
para impedir que a dor ficasse exposta. Que a ferida
continuasse sangrando.
Ando depressa sobre os saltos altos, as
mãos trêmulas e a visão vertiginosa. Algum
funcionário me intercepta e pergunta se estou bem,
mas eu o dispenso com um educado aceno de mão.
Não estou bem, mas ficarei. Tenho que
ficar.
Encontro a fonte do lado de fora do
restaurante e deixo que os respingos de água
salpiquem o meu rosto.
— Vai dar tudo certo. — Preciso continuar
repetindo essas palavras como um mantra. As
mesmas que Petrova me disse antes de pegar o
carro e correr descontroladamente pela madrugada
daquele dia.
Uma brisa suave faz meus cabelos
dançarem para trás. Acompanho o movimento para
impedir que minha imagem fique ainda mais
desconcertante do que já está. Então eu o vejo.
Minha armadura oscila com o impacto da primeira
rachadura.
Ivan me encara com olhos escuros, ainda
que eu me lembre como eles brilham com vários
vincos amarelos e cinzentos quando os raios solares
alcançam o ponto mais alto do céu. Seus contornos
estão iluminados pelas luzes que brilham atrás dele
nos postes decorados do restaurante. As mãos se
escondem dentro do bolso da calça social, mas é
impossível negar a sua tensão.
É exatamente o que eu temia. Se não tomar
cuidado, os estilhaços que lutei tanto para colar
podem começar a ruir, e duvido que terei forças
para juntar tudo outra vez.
O abismo me chama, eu recuo.
CAPÍTULO 03
Quem é Você de Verdade

O CÉU GOSTA de pregar peças de mau gosto na


gente, é a única explicação. Estou preso em um
minuto que parece eterno, vislumbrando a
personificação de um sonho. A mulher vai
descendo as escadas sem perceber a minha
presença; usa um longo vestido cravejado com
pedras cintilantes, e eu tenho certeza, por um breve
momento, de que é Petrova.
Meu coração bate audivelmente contra a
caixa torácica, mas a minha mente age de forma
rápida, elucidando a visão e trazendo lentamente o
reconhecimento de que não é ela.
Nunca poderia ser.
Não é ela.
Uma brisa suave faz seus cabelos dançarem
para trás e a mulher finalmente percebe a minha
presença. Seus olhos lucilam com um acúmulo
repentino de lágrimas, mas ela tenta disfarçar
abaixando o rosto e virando outra vez, de costas. Os
cabelos longos tocam o corte do vestido e deslizam
pelas costas nuas, exatamente iguais aos de
Petrova. Provavelmente foi isso que me fez
confundir.
Obrigo minhas pernas a se moverem um
pouco, caminhando com cautela na direção dela,
como um animal selvagem se aproximando da
presa. Tenho curiosidade, quero ver mais do seu
rosto. Entender que tipo de pessoa é essa que
conseguiu reviver lembranças há muito abrandadas
pelo tempo.
— Desculpe — ela murmura, girando sobre
os saltos para me encarar.
A voz, os traços finos, o nariz delicado no
meio do rosto anguloso, tudo me faz reconhecê-la
imediatamente. Há cinco anos ela usava o cabelo
bem curto, repicado na altura das orelhas. Todo o
sangue do meu corpo começa a circular mais
depressa, desenfreado e destrutivo.
Por que decidiu ficar parecida com Petrova
agora? É irritante, inaceitável.
Algo na minha feição deve ter entregado a
ira crescente, pois Lara recua e coloca uma
distância considerável entre nós.
— Não sabia que você vinha — diz como
um ratinho assustado.
— E deixar que algum dos meus irmãos se
casasse com você? — desdenho. Não posso
controlar minhas palavras e nem a educação. Estou
aqui com o único objetivo de acabar com essa
palhaçada.
Espero por uma resposta afiada que não
chega. Lara era o tipo de pessoa que não aceitava
um desaforo, que não se calava quando o assunto
envolvia as próprias vontades e sonhos, que não
recusava um desafio.
Ela era o desafio e gostava de ser. Mas a
resposta não vem, apenas um sorriso constrangido.
— Desculpe — repete com o rosto corado.
Suas mãos contorcem na frente do corpo,
deixando-me confuso. Minhas lembranças de sua
personalidade não fazem jus à mulher que está na
minha frente agora. Aos dezenove anos, Lara já era
uma jovem bonita, espevitada, com o cabelinho
desordenado e o pescoço longo sempre em
evidência. Mas essa pessoa é diferente, as curvas
do corpo estão mais definidas, seu semblante é
menos confiante, como se alguma coisa estivesse
faltando.
Ela parece com Petrova… como odeio isso.
— Como se você se importasse de verdade.
— Forço toda a repulsa para fora. — Não precisa
desse teatro — incito, canalizando muito veneno
em cada palavra.
Vamos lá, me mostre quem você é de
verdade. Quero desafiá-la a me enfrentar, que se
sinta confrontada. Tudo em seu jeitinho
amedrontado desperta a vontade de fazê-la sofrer
tudo o que ela me fez sofrer no passado.
Para minha decepção, porém, outra vez
Lara sorri. Faz uma reverência qualquer, puxa as
barras do vestido e praticamente corre para dentro
do restaurante. Que inferno!
Passos ecoam atrás de mim e viro para
encontrar Vladimir trajado com um impecável
terno cinzento. Um minuto antes e ele teria flagrado
meu encontro acidental com Lara. Seu semblante
não é dos melhores enquanto conversa com alguém
pelo celular em italiano. Parece que os problemas
na sucursal da terra do vinho são mais complexos
que o previsto.
— Aconteceu alguma coisa? — Puxo
assunto quando ele se despede da pessoa do outro
lado da linha. Mantenho alguma cautela para
sondar se testemunhou meu encontro imprevisto
com Lara, mas os olhos fixos no aparelho
demonstram que esteve ocupado demais para
perceber a movimentação.
— Fiquei a tarde inteira conversando com a
empresa italiana para resolver a confusão que o
idiota do Roman arrumou por lá.
— É tão grave assim? — Iniciamos a
caminhada na direção da escadaria e depois pelo
restaurante adentro. Tento manter um ritmo lento
para não darmos de cara com Lara no meio do
trajeto. — Quem são os investidores, afinal?
— Os gêmeos Giamatteo — explica. — São
muito influentes na Itália para uma empresa em
ascensão. Ainda não temos sociedade com
nenhuma rede de hotéis em Roma. O objetivo era
construir primeiro um hotel cinco estrelas na capital
em parceria com uma empresa local de renome,
para depois investirmos em nossa própria rede pelo
país. Mas Roman conseguiu arrumar briga com
Donatelo Giamatteo por uma confusão qualquer de
bar. Nossa sorte é que a irmã dele estava em uma
conferência na Turquia, dizem que ela é uma pedra
de gelo, impossível de lidar.
Resgato os nomes no fundo da minha
mente, determinado a não me abalar só por causa
de um encontro acidental.
— Elisabeta Giamatteo? O lobo em pele de
cordeiro. Ouvi rumores em Nova Iorque de que
Donatelo e a irmã tinham desmembrado a empresa
— comento. — Mas agora o único que pode
confirmar a história é Roman.
Subimos dois lances de escadas, Vladimir
segue na frente cumprimentando algumas pessoas
— funcionários, amigos e clientes. Nossos
principais investimentos envolvem hotéis,
restaurantes e shoppings, fora o mercado de ações.
O sobrenome Volkiov estampa cardápios em cima
das mesas,
Ao chegarmos, Lara ainda está de pé. Deve
ter passado no banheiro para se recompor. Os
cabelos, agora presos com um grampo, formam um
coque charmoso no alto da cabeça, exibindo uma
visão provocadora do ponto mais baixo de suas
costas à extensão do pescoço.
Andrei se ergue da mesa aos nos
aproximarmos, assim como Mikhail e a esposa.
Lara estende a mão primeiro para Vladimir e meu
irmão a puxa para um abraço, pousando a mão na
pele exposta. Não parece correto, mas no final das
contas é isso mesmo que viemos resolver. Pode ser
que algum deles passe por cima da minha opinião e
aceite o acordo.
Prefiro acreditar que não vai acontecer, mas
farei tudo ao meu alcance para impedir a união de
qualquer um deles com minha antiga cunhada.
Em momento nenhum Lara encara outra vez
diretamente meus olhos e o pouco humor que ainda
restava vai se esvaindo com a vontade irracional de
provocá-la. Lara não é a irmã boazinha e doce, vê-
la enganar a todos com essa fachada de moça
educada me deixa à flor da pele. Odeio de todas as
formas, odeio que Petrova tenha morrido pelos
caprichos dela, odeio que tenha sido uma menina
imprevisível e alegre no passado, sempre
prendendo a minha atenção, enquanto minha noiva
passava seus dias se preparando para encarar o
futuro como líder do nome Ihascov.
Odeio, sobretudo, que não se apresente à
essa reunião como a pessoa de quem eu me
recordo, pois esse sorriso manso me faz compará-la
o tempo todo com a irmã.
— Muito obrigada por aceitarem nos
encontrar — diz Mikhail, sentando-se. Faço um
sinal para o garçom e peço um vinho forte. Meus
irmãos deixaram os pedidos prontos junto com a
reserva, então apenas autorizo que sirvam a
refeição. — Hoje mesmo estive em contato com
Dimitrio Livannov, ele tem muito interesse na
parceria, embora eu tenha deixado subentendido os
termos da unificação, claro. Estava apenas
checando as possibilidades.
— Não precisa nos pressionar com esse tipo
de argumento Mikhail — Andrei zomba um pouco
irritado. Se há uma pessoa no mundo tão repulsivo
a qualquer um de nós, esse homem é Dimitrio.
Não acredito que estejam cogitando
realmente um acordo com aquele verme.
— Longe de mim — Mikhail se defende,
rindo com uma taça de vinho na mão. — Apenas
comentando.
Começo a bebericar a minha própria bebida.
A conversa toma outros rumos, falamos sobre a
economia ao redor do mundo, investimentos ao
longo do ano e até mesmo sobre futebol e outros
esportes. De vez em quando a mãe de Lara sorri,
faz um comentário ou outro, mas na minha opinião
ela parece exausta, adoentada talvez.
Lara se mantém no mais absoluto silêncio,
embora eu esteja ciente de todos os seus
movimentos. A forma como seu pai vai
consumindo álcool sem parar e começa a dar
indícios de embriaguez claramente a deixa
desconfortável. Mesmo assim, ela continua
sorrindo e acenando.
Como isso me irrita, céus!
— O que achou do vinho, Lara? —
pergunto, só para medir suas reações. — Não
tomou nem um pouco.
As vozes vão se extinguindo e sinto os
olhares de todos pousados sobre mim. Eles sabem
como me sinto em relação a ela, mas minha raiva
por Lara não chega a ser uma ira mortal, apenas um
ressentimento, uma decepção tão profunda que me
faz querer enxergar o seu pior lado.
— Lara é uma mulher muito tradicional. —
A resposta vem envenenada com a voz de Mikhail,
como se aquilo fizesse algum sentido.
Nós crescemos todos juntos, conhecemos a
verdadeira personalidade de cada um, e eu me
recuso a acreditar que essa é a mesma Lara que
brigou com Petrova no dia do acidente, que gritava
no fundo do telefone palavras cruéis enquanto
minha noiva clamava pela minha ajuda.
Você tem que vir logo, foram suas últimas
palavras antes de a linha ficar muda.
— Acho que você está confundindo sua
filha com outra pessoa — Andrei brinca, depois
vira para Lara ao dizer: — Você lembra daquela
vez no Belivery? A gente arrumou a maior
confusão com um pessoal barra pesada porque você
ganhou em um jogo de mesa de um cara.
— Não acredito que você ainda lembra
disso! — ela exclama. Pela primeira vez, vislumbro
aquela Lara, o rosto levemente corado. — Você
ficou achando que ele me deixou ganhar porque
tinha segundas intenções.
— Mas tinha mesmo! — meu irmão mais
novo exclama. Vejo que os dois ainda se dão muito
bem. — Se o Ivan não chegasse eu nem sei o que a
gente teria feito.
Outra vez o silêncio, todos cautelosos. Bebo
um gole de vinho e pouso os olhos sobre Lara. Ela
não devolve a minha atenção e se esforça para
evitar qualquer contato visual comigo. Lembro do
dia que estavam falando. Petrova estava
preocupada com a irmã, que tinha saído para curtir
a noite em uma região consideravelmente perigosa
junto com Andrei, que na época era apenas um
menino irresponsável. Ofereci para procurar por
eles e descobri em mim um instinto protetor fora do
comum.
Nunca senti ciúmes de Petrova — ela era
uma mulher muito recatada, caseira, não
frequentava esse tipo de ambiente. Mas Lara me
deixou perturbado quando cheguei e encontrei
todos aqueles marginais babando ao seu redor.
Sentia por ela um ciúme fraternal.
— Bem — Mikhail toma a palavra, sua fala
soa um pouco arrastada —, agora minha filha é
uma mulher responsável.
— Tenho certeza que sim — garante
Vladimir, o tom da voz e sua postura refletem a
intenção de entrar na pauta que interessa. — Caso
contrário, não aceitaríamos negociar a proposta.
— Claro, claro. Vamos aos negócios então.
Sobre os termos… — Mikhail começa, mas
Vladimir interfere.
— Gostaria que Lara apresentasse os
termos.
Já desconfiava que meu irmão fosse fazer
isso. Vladimir jamais cogitaria qualquer tipo de
negociação se não fosse consentida pela mulher
envolvida. Já houveram escândalos no mundo
empresarial envolvendo matrimônios forçados e
nem eu e nem os meus irmãos aceitaríamos uma
união assim.
Lara tem o semblante de alguém que deseja
estar em qualquer outro lugar. Busca a aprovação
do pai, que concorda com a cabeça mesmo não
parecendo nada feliz com a situação.
— Certo — murmura. — O que a empresa
Ihascov deseja…
— Pare — ordeno, ela sobressalta. — Já
começou o discurso errado. Meu irmão quer ouvir
você. O que você deseja.
— Eu… — Ela demora alguns segundos
para se recompor, a mente viaja para longe
enquanto vai formulando uma resposta pessoal. —
Eu acredito que um matrimônio comercial seria
muito lucrativo para as duas empresas. Não posso
controlar o pensamento de vocês, mas desejo que
não encarem essa negociação como uma venda.
Não estou me oferecendo em troca de um
casamento. Não haveria comunhão de bens e
nossas empresas não se vinculariam uma à outra
em nenhuma instância. O matrimônio seria como
um chamariz.
— Interessante. — Roman toma a palavra,
estreitando os olhos para Lara. Seus hematomas
devem estar realmente doendo, pois geralmente é o
mais falante e indiscreto de todos. — Nossas
empresas não são concorrentes, já que não lidamos
com a mesma matéria-prima. Nós investimos em
construções, e vocês em exportação de produtos.
Mas a clientela no exterior sempre busca
credibilidade, e associar os dois maiores
sobrenomes da Rússia dentro de uma mesma linha
familiar eleva bastante o panorama de pesquisa
comercial. Quem encontrar um, encontra o outro.
— Poderíamos firmar sociedade em alguns
mercados que envolvessem ambas empresas, como
uma via de mão dupla — Andrei complementa.
Espera…
Eles estão realmente cogitando os pontos
positivos? Não pode ser. Viro-me para Vladimir,
perplexo, esperando por um comentário negativo,
mas ele reflete seriamente enquanto escuta os
outros.
— O importante é que a união tenha
visibilidade — Lara continua para o meu
desespero. — Imprensa pesada. No início, teríamos
que comparecer a muitos eventos, talvez até
morarmos juntos para evitar um flagra dos
paparazzi. Mas depois seguimos com nossas vidas
normalmente e, assim que tivermos colhido os
frutos financeiros, é só assinarmos os papéis do
divórcio.
No fundo da minha mente um resquício de
sanidade alerta que existe coerência na negociação,
mas minha parte irracional não quer aceitar de
forma alguma. Eu esperava chegar aqui e encontrar
uma menina cheia de si e arrogante, mas Lara tem
sido educada e profissional. Está se escondendo,
caralho.
Levanto bruscamente, irritado demais para
controlar meus impulsos ou ser educado. A mesa
agita com o impacto da minha raiva. Dou a volta na
mesa e seguro Lara pelo braço e, mesmo
corrompido pelo ódio, firmo meus dedos com
cuidado suficiente para não a ferir. Eu jamais faria
isso, fosse com ela ou qualquer outra mulher.
Mesmo assim, o rosto de Lara assume uma palidez
incomum, como se estivesse com medo de mim, e
imediatamente recobro o controle e abrando meu
semblante.
— Quero falar com você — explico o mais
calmamente possível.
— Ivan, você não pode fazer isso — Andrei
interfere, mas eu o calo com apenas um olhar.
Meus irmãos sabem quando se colocar na minha
frente e quando me deixar agir, e precisam da
minha opinião agora que estou de volta.
— Tudo bem. — Lara sorri.
Caminhamos até outra área do restaurante,
um pouco mais reservada e com paredes para nos
dar privacidade. Não admito que se comporte
assim, sorrindo como se a vida fosse um maldito
mar de rosas. Quando entramos, fecho a porta atrás
de nós e ela se desvencilha das minhas mãos.
— Por que está fazendo isso? — pergunto
cheio de rancor.
— Desculpe, Ivan. Eu não sabia que estava
de volta.
— Pare de pedir desculpas, isso me irrita!
— retruco um pouco descontrolado.
A sala privativa é pequena e pouco
iluminada, com uma mesa ornamentada em tons de
dourado e vermelho no centro. Duas cadeiras
estofadas se dispõem estrategicamente próximas de
uma janela que alcança o chão. Um lugar perfeito
para qualquer casal apaixonado agora transformado
em um container para nossas desavenças.
As minhas desavenças.
— Você vê o que está fazendo? Quer roubar
o lugar de Petrova? — acuso.
— Não! — ela sussurra cheia de pavor, os
olhos cobertos por lágrimas. Isso mesmo, quero vê-
la perder o controle. — Não tem relação nenhuma
com a minha irmã.
— Você nunca vai conseguir ser como ela,
Lara. — Continuo. — Eu conheço você de verdade.
Não pode ser apenas um bom negócio. Qual é o seu
plano?
Vou me aproximando devagar e, a cada
passo que ela recua, eu avanço mais depressa.
Todos os meus sentidos ficam mais intensos e
nossas discórdias pairam no ar como o próprio
oxigênio.
— Você quer se transformar nela? Eu posso
ajudar com isso. — Lanço um olhar lascivo para o
corpo dela, apenas com a intenção de magoá-la. —
O que mais você pretende? Escolher um dos meus
irmãos? Se casar com ele? Quem sabe dar um golpe
do baú?
Não tenho tempo para ver ela se
movimentar, mas no segundo seguinte às minhas
palavras sinto sua mão alcançar meu rosto. O som
do tapa ecoa no ambiente, calando nós dois.
Quando se dá conta do que fez, Lara começa a
tremer.
Levo minha própria mão ao rosto, buscando
por um ardor inexistente. Seu golpe é suave como
uma agressão feita com a pena de um pássaro.
— Isso foi um erro — murmura, as
pálpebras longas e castanhas tremulando. —
Desculpe, Ivan. Não tive a intenção. Não, não. Isso
não podia ter acontecido.
Ela caminha de um lado para o outro, como
uma criança perdida. Talvez eu tenha passado dos
limites. Penso em Petrova, em como ela reprovaria
minha atitude com a jovem Lara. Essa menina já
me tirava do sério no passado, depois do que
aconteceu eu simplesmente a coloquei no mais
baixo patamar das minhas prioridades.
Assim que para de andar, ela me olha com
as órbitas suplicantes.
— Você vai acabar com a sociedade? —
sussurra, dando-se conta de que eu jamais
permitiria isso. Por isso eu voltei. — Você vai, não
vai?
— Sim.
Uma lágrima solitária escapa de seu olho
esquerdo e desliza ao longo do rosto. Ela acreditava
de verdade que esse negócio seria concretizado.
Sinto alívio por ter feito com que saísse do
controle, mas não era essa a reação que eu
esperava. Com a mão, Lara arruma os cabelos que
se soltaram por causa da agitação e respira fundo.
— Certo. Obrigada, senhor Volkiov. É
melhor eu informar o meu pai.
Talvez tenha sido a forma como suas
palavras saíram embargadas, ou alguma
intervenção celestial, mas seguro outra vez o seu
braço, impedindo-a de sair.
Que merda eu estou fazendo?
— Não — determino, vários
questionamentos se sobrepõem na minha cabeça.
Droga, droga! — O que vai fazer agora?
— O que? Eu… eu não sei. Por que se
importa?
— Não me importo!
— Então me deixe ir — ela implora.
— Me responda, o que vai acontecer agora?
— insisto. — Você não é assim.
— Você não sabe nada sobre mim, Ivan.
Nunca soube! — Lara puxa o braço e me enfrenta.
Sua postura arde de raiva. Essa é a
verdadeira Lara, era isso o que eu ansiava. Toda a
pose de boa moça vai embora, seu pescoço vai
adquirindo um tom de vermelho enquanto ela se
desmancha.
— Eu sei o suficiente. — Continuo,
alimentado pela faísca ardente no volume da sua
voz. — Você não se importa com ninguém, apenas
com si mesma. Petrova não merecia uma irmã
como você!
— Sim! — exaspera. — Isso tudo é por
causa dela, não é mesmo? Eu sei que você me
culpa, Ivan. Não posso mudar o passado, não posso
trazê-la de volta. Mas não sou esse monstro que
você criou na cabeça. É uma pena que a sociedade
com a sua família não tenha dado certo, mas não
me insulte com esse tipo de insinuação. Você não
sabe das minhas motivações, não sabe o que esse
casamento representa para mim.
— Eu não sei mesmo! — Lanço um meio
grunhido. — Eu já sabia que não se dava ao valor,
mas se vender superou todas as expectativas.
É a gota de água para Lara. Primeiro vem o
choque, depois ela entreabre os lábios, formulando
palavras para rebater minha difamação. Dessa vez
eu capto quando ergue a mão e vem na minha
direção, pronta para outro ataque. Mas eu sou mais
rápido, seguro seu pulso com uma mão e envolvo
sua cintura com a outra, até estar prensado contra
ela na parede. Lara tenta lutar, ainda cheia de ira.
— Me solta, seu cretino.
Sorrio, aí está ela.
— Vejam só, toda a pose a compostura de
repente foram embora.
— Isso é culpa sua! — Suas palavras
escapam dos lábios de forma ácida.
Assim, tão perto, a consciência de que não é
mais uma menina é ainda mais forte. O corpo dela
tem curvas que antes não tinham se manifestado, e
todas as minhas dúvidas sobre como estava
parecida com Petrova evaporam. Lara é
tempestade, como eu sempre afirmei, e agora eu
escuto os trovões se aproximando.
— O que vai fazer agora que acabei com
seus planos? — provoco, falando baixo perto do
seu ouvido. Meu corpo reconhece como ela se
arrepia. Alguém precisa me parar. Sei que
amedrontar uma mulher não é uma atitude digna,
mas simplesmente não consigo evitar. — Como vai
convencer meus irmãos quando eu der minha
palavra final? Você sabe que eles vão me ouvir.
— O negócio está acabado, Ivan. — Lara
relaxa nos meus braços, desistindo de lutar, como
se só agora percebesse a verdade iminente. — Vou
conversar com Mikhail e iremos negociar com
Dimitrio.
Afasto-me, um pouco arrependido. Simples
assim, ela apenas vai passar a proposta adiante.
Consegui acabar com o acordo e tirar Lara do sério.
Consegui ver sua verdadeira personalidade, a
mesma que no passado me fascinava. Consegui, e
mesmo assim não sinto o sabor da vitória.
Como um tolo, aguardo enquanto ela se
arruma para sair. Lara abre a porta e caminha na
minha frente. Ninguém poderia suspeitar do embate
que tivemos lá dentro, a forma como eu a segurei
nos braços e coagi, pois voltou a assumir a pose de
mulher fina e educada. Está até sorrindo.
Puta merda, ela está sorrindo logo após
explicar que vai se casar com um babaca.
Minha mente vai captando e
compreendendo melhor nossa conversa. Avisto a
mesa em que meus irmãos dão risada junto com
Mikhail. Menos Andrei, que parece não suportar o
homem — gostaria de entender o motivo por trás
dessa repulsa. Eles não reagirão muito bem quando
anunciarmos que desfiz o acordo.
Mas Mikhail tem um segundo plano na
manga.
Dimitrio Livannov será o futuro marido de
Lara Ihascova. Esse cara é um crápula que mal
consegue esconder os negócios ilícitos que
encoberta com a empresa de produtos alimentícios.
No passado, eu costumava proteger Lara e arrumar
briga com qualquer idiota que tentasse avançar o
sinal com ela. Petrova achava graça do meu
exagero, e agora estou empurrando-a para a toca do
lobo mau.
— Eu e Ivan conversamos. — Lara começa
a dizer. — E achamos melhor…
— Aceitar o acordo — interfiro, meus
sentimentos de raiva se misturam com as emoções
do passado. Não posso fazer isso. Não posso fazer
isso com meus irmãos ou com a irmã de Petrova.
Eu sou o único empecilho para que todos tenham
aquilo que desejam. — Mas com uma condição.
Nós dois nos casaremos.
Eu disse que faria qualquer coisa. Qualquer
maldita coisa. Mesmo assim… que merda eu estou
dizendo?
CAPÍTULO 04
Calcanhar de Aquiles

QUANDO O BRAÇO de Ivan contorna meu corpo,


a sensação que vai se alojando na minha mente é da
mais pura e sólida surpresa. Ainda não consigo
formular palavras concisas, não depois de tudo o
que ele disse e fez na outra sala. Ivan me odeia e eu
me odeio mais ainda por não ser capaz de odiá-lo
com a mesma proporção, por ser fraca e ter perdido
o controle sobre mim mesma com meia dúzia de
suas provocações maldosas.
Meus pais e os irmãos Volkiov nos encaram
como se tentáculos tivessem nascido acima de
nossas cabeças, perplexos demais para acreditar no
que ele disse. Não os culpo! Nem eu acredito nas
palavras que acabo de escutar.
Ao meu lado, Ivan permanece incólume e
inabalável como uma divindade. Sorrindo, ele me
puxa para mais perto, tencionando os dedos na
minha cintura como se quisesse atribuir mais
veracidade à própria afirmação.
Ivan me provocou durante toda a noite,
puxando assunto de vez em quando só para calcular
minhas reações. Tentei me manter firme, dentro do
papel de boa filha e única herdeira do nome
Ihascov. Um nome que eu abomino mais do que
qualquer coisa. Tinha esperanças de que algum dos
três irmãos restantes aceitasse o acordo, não o
próprio Ivan. Depois de ele despejar todo seu
veneno sobre mim, eu já estava me preparando
psicologicamente para encarar Dimitrio e seu
sorriso repulsivo.
Para o bem ou para o mal, me casar
continua sendo o único caminho possível para eu
conseguir adotar meu menino sem a interferência
de Mikhail.
Mas Ivan, como sempre, parece
determinado a se envolver no meio dos meus
planos. Fazia muitos anos que eu não perdia o
controle, que não colocava tudo a perder. Preciso
tomar cuidado, pois Ivan é o meu calcanhar de
Aquiles. Minha ruína.
Tento me afastar da maneira mais educada
possível. O cheiro do seu perfume cítrico e
caramelado parece ter se impregnado dentro da
minha alma, tão inebriante quanto era no passado.
Ivan, por outro lado, não se move um centímetro e
mantém os braços ao meu redor.
Quero gritar que não, não me casarei com
ele nem em mil anos, especialmente depois de tudo
o que me disse, do insulto ao sugerir que estou me
vendendo para aplicar um golpe do baú qualquer.
Herdeiras inteligentes e trabalhadoras se casam o
tempo todo para angariar os negócios das famílias,
é uma estratégia que só acontece nos bastidores do
mundo financeiro, mas que não deixa de ser
autêntico quando o casal está ciente dos benefícios.
Não é muito diferente do que ele e minha irmã
teriam feito se não existisse amor entre eles.
Hipócrita babaca!
Ivan e Petrova ficaram tempo demais presos
dentro do próprio conto de fadas, ele
provavelmente se esqueceu como a realidade é
pragmática.
— Acho que não entendemos muito bem —
Andrei diz, é o primeiro a se recuperar do susto e
eu o admiro mil vezes mais. — Você disse que vai
se casar com ela? Você? Casar? Com a Lara? Você,
Ivan Volkiov?
O tom incrédulo do irmão mais novo deixa
Ivan sutilmente tenso. Não tenho ideia do que se
passa na cabeça desse homem, pois até um minuto
atrás ele foi bastante definitivo ao negar o acordo.
Tenho medo de abrir a boca e dizer alguma coisa
passível de má interpretação, de despertar a fúria de
Mikhail, ainda mais depois das tantas taças de
vinho que ele consumiu.
— Nós conversamos. — Continua Ivan com
seu discurso mentiroso. — Eu sou a pessoa ideal
para esse papel.
— Você nem mora aqui, Ivan. — Roman o
lembra, sem paciência. Ele é esse tipo de pessoa
que se estressa rapidamente.
— Não pretendia voltar no primeiro voo de
ontem? — Vladimir completa, a sobrancelha
arqueada acima dos olhos azuis.
Já suspeitava de que o retorno dele à Rússia
tivesse relação com esse acordo, mas ainda não
compreendo como chegamos nessa situação. Olho
de esguelha para meus pais e minha mãe sorri como
se estivéssemos anunciando um verdadeiro
noivado. O rosto de Mikhail é uma máscara sem
expressões, impossível de decifrar.
— Vladimir é o líder da empresa — Ivan
começa a explicar — expor uma relação agora vai
gerar suspeitas. Não queremos enganar apenas a
clientela, mas também a concorrência e possíveis
sócios, pelo que pude entender. Roman, como bem
sabemos, tem uma vida noturna incontrolável, não
vai passar a menor credibilidade. E Andrei é o
advogado chefe da empresa, o herdeiro mais novo,
menos envolvido com as finanças e mais com
processos, a imagem dele é sua maior arma. Já eu,
bem, sou o segundo filho, estabeleci uma
popularidade considerável no exterior e já tenho
uma relação com a mídia desde o acidente. As
revistas de fofoca adoram falar sobre a minha vida
afetiva.
— Eu não sei. — Vladimir balança a
cabeça, relutante. Concordo com Ivan na maior
parte dos pontos profissionais, mas ele tem esse
costume de se dar muito valor, como se fosse o
próprio centro do universo. — Não sei se você
conseguiria manter isso, Ivan. Acho que todos aqui
somos adultos o suficiente para reconhecer que
você e Lara carregam muitos problemas.
— Sim, é verdade. Por isso mesmo que
preciso fazer isso. É um bom negócio sei que não
vai desistir disso, Vladimir. Você é um irmão
incrível e o melhor presidente, mas eu sei que no
tocante à empresa nada nem ninguém é capaz de te
parar. Estamos pisando em ovos aqui por minha
causa. O tempo todo vocês temeram que eu fizesse
uma cena, e eu preciso lidar com os problemas que
causei a todos. Não vou voltar para Nova Iorque.
— Dimitri… — Começo a dizer sobre a
ideia inicial de passar a proposta à próxima
empresa, mas Ivan se vira para mim com um
semblante assustador, os olhos arregalados e as íris
contraídas.
— Não — diz apenas, sem deixar arestas
para contestação.
A força dos dedos de Ivan na minha cintura
se intensifica, como se isso o irritasse ainda mais.
Quando as indiretas de Mikhail sobre uma
unificação tiveram início, comecei a me preparar
para um casamento sem amor. No dia em que a
ideia se consolidou e realmente aceitei meu destino,
encarei como minha única oportunidade para
conseguir entrar com o pedido de adoção algum
dia. Mas nem em minhas mais longínquas
suposições eu imaginaria que Ivan seria um
voluntário. Que o único homem no mundo que tem
motivos para me odiar de verdade carregaria meu
futuro nas mãos mesmo sem saber.
— Eu não vejo nenhum problema, se essa
for uma exigência — Mikhail se pronuncia com a
voz enrolada. — Acho que, vendo por esse lado, é
um bom acordo. Ivan esteve fora por muito tempo,
seu retorno por si já vai chamar atenção da
imprensa. Anunciar um noivado então, imaginem
só a proporção de uma estratégia assim!
Ivan balança a cabeça para cima e para
baixo. Impulsionando o corpo, ele me guia de volta
à minha cadeira, e tem a delicadeza de sentar ao
meu lado. Não consigo entender a confusão de
sentimentos que batalham dentro da minha mente.
De certa forma, é um alívio não passar a proposta a
Dimitrio, ele tem uma péssima reputação; por outro
lado, no entanto, não consigo imaginar como uma
união com Ivan poderia dar certo.
— Ivan, você sabe que eu jamais aceitaria
um acordo como esse sem o consentimento dos
meus três irmãos. — Vladimir captura a atenção de
todos outra vez. — Foi por isso que te enviei aquela
mensagem. Eu mesmo pretendia aceitar o
casamento caso estivesse tudo bem para você. O
que estou tentando dizer é que não precisa fazer
isso. Eu sou o presidente.
— Não pode fazer isso, Vladimir, já fez
sacrifícios demais pela empresa, precisa dividir
essas responsabilidades conosco — responde.
É isso o que eu sou para ele, um sacrifício.
Um fardo que alguém precisa lidar. Gostaria de
saber em que momento da minha vida as coisas
começaram a dar tão errado. Sempre imaginei que a
morte de Petrova simbolizasse o início da minha
ruína, mas agora, pensando bem, talvez eu estivesse
fadada ao fracasso desde o dia em que minha
família se tornou amiga dos Volkiov. Desde o dia
em que o meu coração de adolescente — muito
tempo antes de Ivan começar a namorar minha irmã
— bateu fora do ritmo por esse homem que agora
pretende casar comigo.
— Pensando profissionalmente. — Roman
toma a palavra depois que terminamos de nos
acomodar outra vez. — O principal objetivo da
nossa empresa, no momento, é expandir os
negócios no exterior. Principalmente na Itália,
Estados Unidos, Grécia e Brasil. Começamos pelos
Estados Unidos, e a estadia do meu irmão nos
últimos cinco anos foi muito importante. Um
casamento agora vai ser destaque nas Américas.
Até onde eu sei, Mikhail, vocês têm negócios com
o Brasil e com a Grécia.
— Exatamente, nossa empresa será sua
porta de entrada. Estou ciente dos negócios de que
executam ao redor do mundo, mas tenho interesse
especialmente na exportação de produtos para o
Japão e Alemanha. Garanti que Lara tivesse uma
boa posição na empresa justamente para aumentar a
reputação dela na mídia.
Garantiu que eu ficasse presa bem debaixo
dos seus olhos, isso sim. Minha única função
envolve selecionar benfeitores para contribuir com
donativos para instituições carentes da região.
Nobre, porém sem mérito profissional. Minha
língua formiga com a vontade de expelir um
insulto. O garfo que eu seguro começa a tremer na
minha mão, desisto de comer. Ninguém pode
perceber como estou nervosa.
— Lara — Ivan chama, cativando toda a
minha atenção como sempre acontece quando
escuto a sua voz. — O que você acha?
— Desculpe, eu estava no mundo da lua —
respondo. Andrei solta uma risadinha com a minha
resposta. Droga de Ivan que me tira a concentração!
— Quer dizer… pode repetir?
— Perguntei se você concorda com o
casamento.
— Sim! Com certeza. — A aceitação sai tão
fácil que fico impressionada com minha
passividade.
— Precisamos pensar em estratégias. —
Ivan continua, de alguma forma é como se
conversasse apenas comigo. — Como acabei de
chegar, será melhor aparecermos em algumas festas
antes de tornarmos o noivado público.
— Na próxima semana teremos o jantar
beneficente da nossa empresa para o hospital. E
vinte dias depois teremos a festa de aniversário de
casamento dos pais de Svetlana — sugere Andrei.
A última coisa que eu desejo na vida é
participar da festa de Svetlana, especialmente
depois do escândalo que ela fez no velório da
minha irmã. As duas costumavam ser muito amigas
e, apesar de eu não ter podido comparecer à
cerimônia de despedida, muitas pessoas
comentaram sobre a forma como ela chorava
enquanto todos tentavam prosseguir com o enterro
tradicional — com música, muita bebida e
intermináveis discursos sobre como Petrova era
perfeita.
— Ótimo então — pronuncia Ivan,
parecendo bem satisfeito.
O tempo vai passando muito lentamente. Os
irmãos Volkiov insistem em repassar todas as
etapas da sociedade. A proposta, em termos
concretos, é basicamente um acordo entre duas
empresas, o casamento funciona apenas como
estopim, uma forma de mostrar às pessoas que essa
união é duradoura e confiável.
Ao meu lado, Ivan faz um bom trabalho me
ignorando. Anseio por respostas, explicações sobre
o que motivou essa decisão. Seu braço descansa nas
costas da minha cadeira, como se estivéssemos
juntos de verdade. De longe, qualquer pessoa
poderia supor que somos íntimos.
Depois que todos os termos são definidos e
a sobremesa é servida, nos preparamos para ir
embora. Acontece uma longa sessão de abraços,
apertos de mão e agradecimentos. Nessa altura da
noite, Mikhail merecia uma medalha por ainda
estar de pé. Mesmo com o vinho mais caro e fino
do restaurante ele conseguiu se embebedar.
Começamos a caminhar para fora do
restaurante, eu me sinto esgotada física e
psicologicamente. Entorpecida. Mesmo ciente das
minhas escolhas, é estranho perceber que as coisas
estão realmente acontecendo. Que meus planos
começaram a se concretizar.
Sinto um braço no meu cotovelo, quando
me viro com medo de ser Ivan ou meu pai, capturo
o confortável olhar de Andrei. Desaceleramos os
passos até que os outros do grupo alcancem uma
distância segura, pois temo que suas palavras
alcancem ouvidos que não foram feitos para ignorar
segredos.
— Eu sei que não somos mais tão
próximos, mas queria ter certeza que você está bem
com isso.
Meu amigo, é isso o que ele sempre foi. Um
irmão amado que aprendi a distanciar para a
própria segurança. Eu me corroía em vergonha e
medo, mas senti saudade da sua companhia todos
os dias.
— Obrigada por se preocupar, mas está
tudo bem. De verdade.
— Isso é surreal. De alguma forma, um
pouco triste. Ivan não é uma pessoa fácil, tenho
medo que se torne desagradável. — Ele balança a
cabeça, os olhos castanhos vários tons mais claros
que os de Ivan, e dependendo da variação da luz,
podem ser confundidos com verdes. — Você nunca
me disse quem fez aquilo com você. Não merece
ser destratada, Lara, ninguém merece.
— Ivan nunca faria nada comigo. Nada
como aquilo.
Falar sobre aquela noite, quando Andrei foi
o único a me ajudar, quando ele foi o único a ver
como eu estava de verdade, é doloroso demais.
Achei que tinha superado, mas não cheguei nem
perto.
— Lara, você nunca me contou quem foi.
— Suas palavras são súplicas, cada sílaba um
pedido por misericórdia. Paramos de andar
praticamente na entrada do restaurante, bem no alto
das escadas. Ao longe, as vozes dos meus pais e
dos outros irmãos indicam que ainda estão
conversando e não podem nos ouvir.
— Isso ficou no passado, Andrei. Somos
outras pessoas, outra vida. Vamos apenas esquecer,
certo?
Contrariado, ele parece lutar consigo
mesmo. Fiz o pior pedido que uma amiga poderia
fazer no pior momento de nossas vidas. Obriguei
Andrei prometer que guardaria segredo, e ele
manteve sua palavra por todos esses anos. Não sou
capaz de calcular o quanto deve ter sido doloroso
para uma pessoa tão bondosa, e esse foi um dos
principais motivos pelos quais me afastei da sua
amizade. Ainda agora, reduzidos a singelos
conhecidos que nutrem algum carinho um pelo
outro, posso ver que ele nunca esqueceu.
— Só queria ter certeza. Você merece ser
feliz.
— Eu serei, algum dia, eu serei Andrei. —
Sorrio, o primeiro sorriso sincero que manifesto na
noite. — Obrigada por se preocupar.
— Está tudo bem por aqui? — Ivan sobe os
degraus com uma expressão galante. — Não está
tentando roubar minha noiva, espero.
— Não seja ridículo. — Andrei não parece
disposto a entrar na brincadeira fico desconfortável
entre os dois. — É melhor levar à sério, Ivan. Isso
aqui não é mais sobre você e a sua depressão
estúpida.
Sem esperar uma resposta, meu amigo vai
embora em direção ao próprio carro. Ivan observa o
irmão se afastar com um ar de surpresa. É normal
ele se surpreender. Até onde sei, faz muito tempo
que não via como todos cresceram e
amadureceram. Quando foi embora para os Estados
Unidos, Andrei tinha a minha idade, mas agora é
um homem.
— Sobre o que conversaram? — questiona.
— Não preciso responder a isso, Ivan. Você
não está me comprando, não vai mandar em mim.
— Não, não estou comprando você. — Ivan
fecha os olhos, inspira profundamente e volta a me
analisar com as órbitas castanhas. — Eu não devia
ter dito aquilo, foi um insulto ridículo e machista
sugerir algo do tipo. Não sou esse tipo de pessoa. É
só que, eu não sei, você me tira do sério. Olhar para
você, lembrar o que você é capaz de fazer. Tudo
isso me descontrola! — Há repulsa, um pouco de
decepção e, alguma coisa que não consigo
identificar. Medo ou raiva, talvez ambos.
— Então por que mudou de ideia? Por que
propôs esse casamento mesmo depois de eu aceitar
desfazer o acordo? — Luto para controlar minha
fala, mas sei que estou perdendo o controle outra
vez.
— Eu não sei! — sussurra de volta,
aproximando-se de mim. — Só conseguia pensar
que um deles ia acabar aceitando, principalmente
Vladimir, que é o mais ambicioso. Não queria um
deles casado com alguém como você.
As palavras não deveriam me ferir tanto —
estou acostumada com todo tipo de agressão —
mas quando elas vêm de pessoas que amamos,
parece mil vezes pior. Abro a boca para despejar
uma quantia generosa de palavras de baixo calão,
mas Ivan me abraça antes que eu tenha tempo de
selecionar os piores insultos.
— O que você está fazendo? Você é
louco! — Tento me desvencilhar, empurro seu
peito, mas minha força não surte qualquer efeito.
— Tem um fotógrafo dentro do restaurante
— murmura no meu ouvido, o hálito morno tateia
meu lóbulo. — Está de olho na gente. Me abrace.
Essa é a minha vida, a minha condenação.
Foi isso que eu aceitei. Enquanto subo meus braços
para envolver o homem que eu mais amei na vida,
o homem que mais me odeia, imagino o rostinho de
Iago.
É por ele, repito no meu pensamento, é por
Iago.
— Quanto tempo tenho que ficar assim? —
Apesar do questionamento, minha única vontade é
correr para longe, me esconder da subordinação
constrangedora.
— Ele quer uma foto melhor, eu acho.
Meu coração quase para dentro do peito
quando Ivan se afasta o suficiente para aproximar o
rosto do meu. Nós dois prendemos a respiração,
suas mãos deslizam pelas minhas costas e pousam
muito perto do contorno dos meus quadris. Mesmo
com o rosto tão perto, Ivan tem o cuidado de não
permitir que nossos lábios se toquem. Nossos
corpos e nossos pensamentos estão em sintonia,
mas os lábios são como extremidades de uma
mesma moeda, lados opostos que nunca poderão se
encontrar.
— Desse jeito vai parecer que estamos nos
beijando — murmura, seu hálito de vinho tinto
ecoando como um convite. Quantas noites eu o
imaginei assim, a proximidade que desejei em
silêncio? — Não pensou que eu fosse te beijar de
verdade, não é?
— Você é um cretino — disparo, sem me
mover. Mas minha ira é como carvão para suas
brasas, é tudo o que ele deseja de mim, que eu
mostre minha suposta verdadeira personalidade,
que o enfrente como no passado. Ele me puxa para
mais perto, encaixando nossos corpos e movendo a
cabeça perto do meu rosto para ilustrar os
movimentos de um beijo. — Eu não sei o que
pretende com isso, Ivan. Mas esse matrimônio é
muito importante para mim.
É difícil manter o raciocínio. Não se
passaram nem dois minutos dessa tentação, mas a
sensação é de que um ano inteiro está transcorrendo
ao nosso redor.
Preciso ser forte.
Mas sua boca próxima da minha, os lábios
entreabertos por causa do sorriso egocêntrico,
magnetizando meus pensamentos — eu descreveria
como desconcertante.
— Você pensou, não pensou? — insiste.
— Não preciso responder a isso — repito a
resposta de instantes atrás.
— Você pensou — constata. — Eu nunca
beijaria você.
Assim, com a mesma velocidade, ele me
solta e desce as escadas. Inspiro e expiro, repetindo
o processo em busca de calma. Luto contra o
ímpeto desejo de perfurar suas costas com o olhar.
Para manter a compostura e alimentar o fotografo à
espreita, peço meu casaco a um funcionário
uniformizado desço ao encontro de Ivan.
— Por quê? — questiono.
Eu preciso saber se ele pretende se vingar
de mim. Tenho que me preparar para o que está por
vir.
— Não preciso responder a isso — zomba e
se afasta para o carro onde Vladimir o aguarda.
É nesse momento que outra fresta da minha
armadura se rompe. Quanto tempo até eu estar
quebrada mais uma vez?
A buzina do carro me tira do estupor e eu
praticamente corro. A última coisa que eu quero é
terminar a noite com gritarias e objetos sendo
estilhaçados contra a parede da mansão. Quando
me acomodo ao lado da minha mãe, Mikhail tem
um semblante satisfeito. Deve ter visto nossa cena e
acreditado que o beijo aconteceu de verdade. Todos
eles viram, e não posso me dar ao luxo de negar.
— Você é pior do que eu imaginava —
acusa. — Logo o noivo da minha filha.
Não respondo. É a melhor decisão, talvez
isso o impeça de surtar. Mikhail ainda carrega uma
taça vazia na mão e minha mãe ativou o modo
inexistente, em que ela apenas está no lugar sem
prestar atenção a nada nem ninguém. Para minha
sorte, Mikhail sorri sozinho o caminho todo,
provavelmente satisfeito que seus planos estejam
dando certo.
Meu telefone apita com uma mensagem.
É Ivan! Como? Vladimir deve ter passado
meu contato, deduzo. Leio com um pouco de medo,
mas se trata de um aviso para eu me preparar. Em
uma semana iremos ao jantar beneficente juntos.
Agora que começou, não tenho como voltar
atrás.
CAPÍTULO 05
Cacos de Vidro

SE UM MÉDICO abrisse minha cabeça nesse exato


momento, a única coisa que iria encontrar seria um
amontoado estranho e fedorento de merda.
Minha vida se enquadrava dentro de uma
definição ordinária antes, mas agora só consigo
visualizar um futuro nebuloso cheio de
experiências inesperadas.
Por que me deixei levar por sentimentos que
deveriam continuar enterrados no fundo das várias
camadas que compõem a minha alma?
Pensar demais, esse é o meu defeito.
Quando comecei a imaginar Lara em um jantar
exatamente igual ao nosso junto com Dimitrio e seu
caráter degenerado, não pensei em impedir meus
impulsos — os mesmos de anos atrás, quando
Petrova insistia em proteger a caçula indefesa. Não
pude sequer idealizar um cenário em que meus
irmãos ficariam satisfeitos com o fim do acordo,
pois Vladimir continua empenhado em aumentar os
lucros da empresa.
É verdade que nenhum dos meus irmãos me
enfrentaria caso eu impedisse o casamento, mas os
olhares deles seriam condenadores em algum
momento. Todas essas questões ultrapassaram os
limites da minha cabeça com uma velocidade
incalculável e o resultado foi a minha total
mudança de planos.
Vou me casar com a responsável pela morte
da minha falecida noiva.
Eu sou mesmo um cretino filho da mãe.
Acerto outra sequência de socos no saco de
areia. Meu corpo sente necessidade de queimar
energia, de eliminar toda a angústia acumulada nos
últimos sete dias, quando simulei um beijo entre
mim e Lara na entrada do restaurante. A foto saiu
em todos os veículos de comunicação. Aquele
fotógrafo deve ter ganhado uma pequena fortuna,
mesmo que o rosto de Lara não tenha ficado
visível.
Não posso negar que a imagem ficou
incrível, pois a iluminação do ambiente destacou
suas costas nuas, evidenciando minhas mãos em
seu corpo. Para qualquer pessoa com o dom da
visão, parecerá um beijo autêntico entre duas
pessoas apaixonadas.
Daqui a poucos minutos tenho que me
arrumar para o jantar beneficente no salão da
empresa. Vladimir foi na frente para terminar os
preparativos, mas continuo confuso demais para
fazer qualquer coisa.
Enquanto definimos quem será o novo
diretor da filial em Nova Iorque, continuo com a
administração à distância. Não preciso assumir um
novo ordenado de obrigações na empresa matriz e
por isso meus dias têm sido longos e opressores.
Tempo livre não faz bem para a cabeça,
definitivamente não para a minha cabeça; a
academia da mansão vem recebendo minhas visitas
com cada vez mais frequência.
O celular dentro do bolso na minha
bermuda de malhação começa a apitar, indicando
que meu tempo para desanuviar a mente se esgotou.
Três horas de exercícios físicos e em cada segundo
tudo o que fiz foi me martirizar por causa daquela
menina.
Mulher. Agora Lara é uma mulher.
Meu punho alcança o alvo uma última vez.
Cada centímetro do meu corpo está brilhando com
uma camada abundante de suor. Tenho que tomar
banho, mas reluto por mais algum tempo, incapaz
de decidir se estou pronto para seguir adiante com
essa farsa. Eu dei o primeiro passo, eu tomei a
decisão. Não tenho nenhum direito de agir como
um covarde agora.
Pego o celular e me sento sobre um dos
aparelhos de musculação. Abro em um dos vários
jornais que publicou nossa fotografia. Quando
avistei Lara pela primeira vez, fiquei perdido em
comparações. Mas, mesmo de costas, sei que é Lara
em meus braços, pois as lembranças entre mim e
Petrova foram sendo apagadas pelo tempo pouco a
pouco e agora só consigo evocar alguma
recordação do passado quando manipulo as velhas
fotografias de nós dois que jazem no fundo do meu
armário de roupas.
Com um suspiro, rendo-me à dura realidade
e me preparo para enfrentar a noite. Saio da
academia com uma toalha pendurada nos ombros e
corro em direção à entrada da mansão. É o imóvel
mais luxuoso da cidade, um casarão histórico que
conserva todos os detalhes do século passado. O
jardim se propaga por vários metros, ostentando
todo o tipo de flor, arbustos e árvores, sem
mencionar as peças de mármore e ferro retorcido
que complementam a decoração externa.
Agora que a noite vai ganhando espaço no
céu, as luzes acesas dos postes rústicos produzem
uma atmosfera romântica.
Abro a porta muito devagar, com a intenção
de passar despercebido. Desde que descobriu meu
retorno definitivo para a Rússia, minha mãe se
tornou ainda mais paranoica, como se eu fosse
mudar de ideia a qualquer momento e fugir para
longe exatamente igual da última vez.
No entanto, assim que solto a maçaneta com
a maior cautela possível, escuto o estalo
característico dos saltos de Tatiana sobre o piso de
porcelanato. As joias tilintando em sincronia com
seus movimentos fazem lembrar a melodia de uma
orquestra muito ruim.
É a minha mãe, eu a amo assim.
— Está de volta? — pergunta como se eu
tivesse ido para muito longe.
— Sim, mãe. Preciso me arrumar para o
jantar.
Mamãe estreita os olhos e sustenta o meu
olhar, como um urubu que aguarda a próxima
refeição se entregar para a morte. Sua nova
distração é tentar descobrir quem era a mulher da
fotografia a qualquer custo. Decidimos não contar
nada sobre o acordo, ela jamais entenderia. E ainda
não sei como confessar que tenho planos de casar
com a irmã da minha ex-noiva morta. É bizarro
demais, mesmo para a mulher mais bizarra do país.
— Vai sozinho? — investiga com o
indicador batendo sobre o lábio pintado de
vermelho. Essa mulher é a própria personificação
de Sherlock Holmes!
— Na verdade, não. Vou levar uma pessoa.
— Coloco mais lenha na fogueira só para assistir
seu rosto se iluminar.
— Quem é ela, Ivan?
— Vai saber hoje, mãe. Só tenha cuidado
para estar sentada quando a notícia chegar.
Pronto, é o suficiente para alimentar a
curiosidade dela e garantir uma tortura auditiva
durante minhas três próximas encarnações.
Enquanto subo as escadas, ela me segue com a voz
exasperada.
— Eu a conheço? De onde ela é? Veio com
você dos Estados Unidos? Vocês estão namorando?
Ivan!
— Sim. Daqui mesmo. Não. Ainda não. —
Abro a porta do meu quarto e viro para garantir que
ela não me siga. — Mãe, você precisa parar com
isso.
Fecho a porta e tranco com a chave em
busca do mínimo de privacidade. Tenho medo que
ela decida invadir o banheiro da suíte para ameaçar
me afogar na banheira caso não revele a identidade
da mulher. Ainda a escuto murmurar qualquer coisa
sobre querer um neto o mais breve possível antes
de finalmente se afastar.
Foi difícil me acostumar outra vez com meu
próprio quarto, mas tudo continua igual. A mesma
cama, as mesmas paredes em tons escuros, as
mesmas cortinas monótonas. Tomo um longo
banho quente que ajuda a acalmar meu corpo e
depois pego um terno no armário do quarto. Esse é
o meu conceito de arrumação. Banho, roupa, fim.
Deixo o cabelo úmido, não tenho paciência para
essas convenções sociais.
Para minha sorte, consigo chegar ao carro
antes que Tatiana me alcance. É um dos vários
automóveis da família, preto e chamativo. Roman é
o único fascinado nas novidades tecnológicas do
mercado automotivo, dirigir carros potentes é seu
passatempo preferido. Hoje eu e Lara precisamos
ser o centro das atenções, por isso dispensei a
limusine e o motorista. A mídia adora um casal
rebelde.
À medida que me aproximo da propriedade
da família Ihascov, que fica muito próxima à nossa,
todas as inquietações se transmutam como criaturas
vivas. Quantas vezes percorri esse mesmo caminho
para visitar Petrova? Quantas vezes desviamos
desse mesmo caminho para fugir do mundo,
encontrar um tempo só para nós dois?
Piso no freio bem na frente do casarão em
que Lara vive com os pais. Tenho uma noção
distante do barulho que ecoa dos pneus quando
entram em atrito contra o asfalto. O sentimento de
traição dentro do meu peito é sufocante. Sou um
homem instável, foi nisso que me transformei. Uma
montanha russa de humores.
Uma batida no vidro me puxa de volta à
estabilidade. Respiro profundamente para recobrar
a compostura. Devo parecer um louco com o carro
parado bem no meio da rua, sorte que o movimento
nos bairros nobres é quase inexistente.
Aciono o botão e a janela abaixa, revelando
o rosto de Lara. O olhar preocupado e maduro faz
tudo dentro de mim revirar outra vez.
Abro a porta, fazendo com que ela se afaste
às pressas. Do lado de fora, capturo a visão
completa do seu corpo. Ela usa um vestido
deslumbrante, deve conter milhares de pequenos
detalhes que a minha visão masculina não
caracteriza como prioridade. Gostaria de entender o
que ela tem com decotes nas costas, pois esse
também exibe toda a extensão da sua coluna
vertebral.
E o pescoço, aquele maldito pescoço fino e
lânguido, é como um estopim para reativar a
vontade anormal de ver seu rosto irritado. De fazê-
la assumir a verdadeira personalidade, de ouvir
como é o som da sua voz quando ela grita de raiva.
O cabelo está preso com uma espécie de rede, sem
nenhum fio fora do lugar, atribuindo ainda mais
protagonismo às linhas em sua clavícula.
— Tudo bem? — indaga, a voz delicada
como algodão.
— Por que não estaria? — devolvo
rudemente.
Nunca prometi que seria agradável cem por
cento do nosso tempo juntos. Nem conseguiria, não
controlo meu humor, não mais. Sobretudo não com
ela.
Lara sorri como se fosse a própria rainha da
Inglaterra, a representação viva da nobreza e boa
educação.
— Desculpe, não foi minha intenção
intrometer na sua vida — corrige com a voz doce.
— Não precisa fingir na minha frente.
Estamos só nós dois aqui!
— É melhor irmos — desconversa,
deslizando em direção ao carro.
Volto para dentro do veículo quase
arrependido com o teatro que nos propusemos a
encenar. O cheiro de seu perfume preenche o ar e
impregna na minha consciência como um alerta.
Estou na beira de um abismo, apoiado na ponta dos
pés; uma simples brisa tem capacidade para me
derrubar.
Fazemos todo o caminho em silêncio, cada
um preso com seus próprios demônios. O meu tem
nome e sobrenome, usa vestidos inquietantes,
perfumes com notas de madeira e está bem ao meu
lado. Lara se remexe no banco, evitando contato
visual. Não é a primeira vez que dividimos espaço
em um carro. Já dei carona para ela muitas vezes,
quando eu dormia com Petrova e precisava sair
pela manhã. No começo, as caronas eram para a
escola; no final, para a faculdade.
— Chegamos — aviso sem motivo. — É
isso mesmo que você quer?
— Sim — determina sem pensar duas
vezes. Gostaria de acreditar nela, que não está
fazendo isso por dinheiro, mas é Lara, qual outro
motivo poderia ser?
— Seus pais vieram?
— Mikhail achou melhor não. Assim não
alimentamos suspeitas.
— Certo.
Manobro o carro rumo ao estacionamento
privativo. Há muitos fotógrafos curiosos rondando
o prédio, então abro as janelas para garantir algum
material a esses trabalhadores, já que não podem
entrar na área exclusiva. Quando estaciono, Lara
abre a porta e desce sem esperar por uma iniciativa
da minha parte. São nesses pequenos detalhes que
reconheço a antiga Lara, alguém que jamais
dependeria de qualquer homem para nada.
Estou me rendendo à insanidade, cada vez
mais desejoso de entender suas intenções. Por que
mudou tanto? Seria possível que sempre almejou o
lugar da irmã? Que Lara sempre foi uma pessoa
capaz de planejar tudo isso só para ser a única filha
e herdeira? Que esse casamento ainda faz parte de
um plano doentio para se tornar tudo aquilo que
Petrova poderia ter sido?
Não, não acredito em nenhuma dessas
possibilidades. O único louco nesse momento sou
eu, que não consegue parar de pensar. É simples.
Casar. Dar aos meus irmãos e à empresa os lucros
que o matrimônio tem a oferecer. Não pensar.
Divorciar. Continuar não pensando.
Ela me aguarda de costas. Os saltos fazem
com que pareça um pouco mais alta; mesmo assim
precisa erguer a cabeça para encontrar meus olhos.
A música do salão chega até nós como uma
promessa sussurrada, muito baixa. Estendo o braço,
mas ela o encara como se fosse um monstro com
muitos dentes.
— Se vamos fazer isso, temos que fingir
bem — incentivo sem demonstrar carinho algum.
Suas mãos se entrelaçam a mim ao aceitar
meu apoio e sinto seus dedos magros segurarem
com firmeza o tecido do terno. Caminhamos assim,
perto demais e, ao mesmo tempo, tão distantes
quanto planetas em galáxias diferentes.
Alcançamos o elevador e, depois de vários
segundos constrangedores, as portas se abrem em
um novo cenário.
Pessoas com roupas elegantes caminham de
um lado para o outro com taças de vinho ou
champanhe nas mãos. Alguns olhares curiosos se
voltam em nossa direção e sinto o corpo de Lara
ficar tenso. Está aí, outro pequeno detalhe. Lara
nunca foi a filha sociável. A princesinha que ia a
festas e sorria para todo mundo era Petrova.
Em algum momento, não importa quando
ou como, vou descobrir a verdade.
— Achei que haveria repórteres — Lara
comenta baixinho, os lábios entreabertos em um
sorriso congelado para pessoas que nos
cumprimentam enquanto procuramos por meus
irmãos.
— Alguns poucos profissionais serão
permitidos apenas depois das doações oficiais —
explico.
Paramos em alguns grupos de conversa e
apresento Lara como minha acompanhante. Muitos
a reconhecem como herdeira da família Ihascov,
mas outros apenas mostram verdadeiro interesse no
nosso relacionamento quando cito o sobrenome
dela. Cada vez que os minutos se estendem, mais
desconforto Lara transparece sentir.
Inconscientemente, segura-se cada vez mais forte
em mim e sempre aguarda que eu seja o primeiro a
falar com os convidados, como se estivesse com
medo de ser responsável por qualquer desastre.
Encontramos Vladimir junto com Andrei
em um canto perto da orquestra. Particularmente,
detesto esses padrões de festa em que todos os
detalhes precisam envolver um exibicionismo
monetário exorbitante. Os dois estão em uma
conversa calorosa com duas mulheres e um rapaz.
Quando percebem nossa aproximação, meu irmão
mais velho faz um movimento amplo com as mãos
na nossa direção.
— Finalmente chegaram, achei que
tivessem desistido.
— Um pequeno atraso — informo, mais
relaxado. Minha família sempre foi meu alicerce e,
mesmo durante o tempo em que estive fora, meus
sentimentos por eles foram as únicas coisas que
mantiveram minha cabeça no lugar.
— A festa está linda — Lara diz,
cumprimentando-os com abraços. Já estive em
muitos lugares e conheci costumes diversificados,
mas aqui no nosso país as pessoas não têm o hábito
de se tocarem o tempo todo. No entanto, essa
mulher esteve na nossa família desde sempre, por
isso a liberdade afetiva. — Muito prazer — diz aos
três desconhecidos.
— Esses são Isabela, Lucas e Camilla da
família Guardalupe, eles vivem na Espanha. São
associados, estávamos justamente comentando
sobre a foto de vocês dois no jornal.
— Preciso confessar que sua namorada é
ainda mais bonita de frente — Lucas comenta,
arrancando risadinhas dos outros. É um rapaz mais
jovem do que eu, talvez com a mesma idade que
Andrei. Tem a pele negra, um cavanhaque escuro
bem desenhado na linha do maxilar e um sorriso
cafajeste que só quem já usou sabe reconhecer.
Meu primeiro impulso é corrigir,
explicando que não somos namorados. Mas, logo
em seguida, lembro que sob a luz de qualquer
perspectiva é isso que seremos diante da sociedade.
Um casal de namorados prestes a anunciar o
noivado.
— Obrigado. — Apresso-me em dizer. —
Essa é Lara Ihascova.
— Ihascova? Filha de Mikhail Ihascov? —
O rosto do sujeito se ilumina. — Sou um grande
admirador do trabalho do seu pai! Então é você
quem vai assumir os negócios dele?
O sorriso de Lara vacila, é muito rápido,
mas me intriga. Ela se recosta em mim e apoia a
mão no meu braço outra vez, enchendo minha
cabeça com perguntas e neuras.
— Ainda é cedo para pensar nisso, Mikhail
tem planos de viver por muitos anos — responde já
com o sorriso revigorado.
— E você formou em qual área? — indaga
uma das duas moças, Isabela ou Camilla, não
reparei quem é quem.
— Comecei uma faculdade em
administração há alguns anos, mas não pude
concluir meus estudos na área. Hoje em dia, apenas
trabalho na empresa fazendo alguns pequenos
serviços menos importantes. Nada tão magnífico
quanto o que Mikhail faz.
— Preciso de uma bebida. — Andrei se
afasta com o semblante irritado. Não conversamos
desde o último jantar, meu irmão enxerga a
situação sob uma interpretação diferente dos outros.
Vladimir e Roman se baseiam no âmbito
profissional, mas Andrei parece ter outra opinião.
Preciso me acertar com ele.
— Mesmo assim, é incrível. Geralmente
moças bonitas como você preferem usufruir da boa
vida com o dinheiro dos pais.
É a segunda vez que Lucas elogia a sua
aparência, mas agora observo as reações dela. Tão
perto de mim, capto um leve rubor na região do seu
pescoço e basta isso para ressuscitar o meu mau
humor. Não fiquei surpreso com a informação de
que desistiu da faculdade, inclusive já esperava.
Lara não dá valor às oportunidades que tem. Ela faz
tudo errado, sempre fez e vai continuar fazendo, a
diferença é que agora sou o único que percebe essa
verdade por trás da máscara sorridente que exibe
sem restrições.
— A festa está linda, Vladimir — Lara
comenta, visivelmente incomodada com o assunto
anterior.
— Sim! Tivemos muito cuidado no
planejamento para garantir que os lucros obtidos
com as doações ultrapassem os gastos com a festa,
caso contrário não haveria sentido oferecer tudo
isso.
— Vocês ajudam muitas instituições? De
quais tipo? — O tom de sua voz denuncia uma
singela euforia.
— Hoje em dia ajudamos principalmente
hospitais e fazemos campanhas ao longo do ano
para arrecadação de comida. Não adianta a gente
doar um monte de dinheiro se não contribuirmos
para conscientização da população sobre a
importância de ajudar o próximo — explica
Vladimir, muito orgulhoso de si.
— Algum orfanato? — Lara pergunta.
— Não, nenhum. — Meu irmão pega uma
taça de cima da bandeja que um garçom carrega e
toma um gole enquanto pensa. — Na verdade, faz
muitos anos que não incluímos novos destinatários
na nossa lista de instituições carentes. Eu me
lembro que muitos orfanatos da cidade já recebiam
ajuda de outras empresas, por isso nosso foco ficou
com os hospitais.
Lara fica em silêncio depois disso, um
pouco cabisbaixa. A capacidade que tenho para
interpretar suas reações é impressionante, embora a
maioria não combine com a imagem que meu
cérebro guardava dela. Continuamos a conversa por
mais algum tempo, desfilamos um pouco,
respondemos perguntas. Todos querem saber se
Lara é a mulher misteriosa da foto.
Como já era previsto, arrecadamos um
pequeno tesouro em doações — o que deixa todos
muito felizes. Quando a imprensa é autorizada a
entrar, puxo Lara para perto. Não posso negar que
ela se comporta como uma dama, recebe elogios
com humildade e sorri de maneira agradável
sempre que alguém lhe dirige a palavra.
Mas não sinto alegria ao lado dela, por mais
perfeita que seja sua postura. É como se uma parte
que nos fazia pertencer à mesma família tivesse
morrido e apodrecido junto com Petrova. Mesmo
assim, nossos convidados a amam, conversam e
parabenizam pelo sucesso e crescimento financeiro
que Mikhail tem conquistado.
Ela não agradece, se por prepotência ou
desinteresse não consigo definir.
Estamos sempre em contato físico, seja com
os braços entrelaçados ou as mãos dadas. Algumas
vezes pouso a palma da mão na pele das suas
costas, revivendo a mesma sensação de turbulência
do dia em que nossa foto foi tirada. Sinto-me na
droga de um limite, incerto sobre o futuro ou se
terei capacidade para seguir com isso. Irritado com
aquele pescoço e com a cabeça estourando cheia de
perguntas que se multiplicam.
Isso pode dar certo?
Eu a olho e vejo um buraco negro, uma
estrela que utilizou todo o seu brilho e se
transformou em um vazio que consome tudo ao
redor.
Por que as estrelas têm que morrer?
— O que é isso? — Lucas aparece ao lado
de Lara e, quando olho a que se refere, vejo sua
mão erguer a parte de trás do cotovelo dela.
Aquele rubor rosado volta a preencher seu
pescoço e uso meu braço para puxá-la na minha
direção. Quando ia curtir a noite em bares e boates,
Lara e Andrei me garantiam que não deixavam os
caras tocarem nela tão despreocupadamente assim,
agora tenho minhas dúvidas. Eu mesmo olho no
braço dela e encontro os restos de um pequeno
hematoma, uma manchinha cinzenta prestes a
desaparecer.
Lugar estranho para um machucado.
— Eu caí — ela explica com a voz alterada,
puxando o braço de forma rude. É a primeira vez na
noite toda que se irrita e perde a pose.
— Caiu? — Lucas gargalha. — Querida,
isso não parece um machucado acidental, se é que
me entende. Vocês têm mais é que se divertir.
Início de relacionamento é sempre caliente.
Em palavras menos sutis, ele está sugerindo
que Lara se machucou durante o sexo. Por um
segundo, pondero a possibilidade, afinal não temos
uma relação verdadeira e fechamos o acordo há
somente uma semana. Entretanto, toda a cor de
Lara se esvai à medida que sua cabeça trabalha e
capta a mensagem. É como assistir um filme em
câmera lenta, os olhos dela se arregalam e lucilam
diante da compreensão, a outra mão percorre um
caminho vagaroso até alcançar a mancha. Depois
disso, começa a piscar para afastar uma camada de
lágrimas que intensificam as nuances marrons de
suas íris.
Mas o que…
— Quero ir embora — sussurra para si
mesma.
— Foi brincadeira — Lucas tenta se
aproximar, mas eu entro na frente. Vai ser péssimo
se essa cena se arrastar, temos muitos fotógrafos
aqui dentro agora.
Ainda um pouco fora de órbita, Lara se vira
de uma vez; sua intenção de correr na direção da
saída fica evidente, mas uma senhora pequena e um
pouco corcunda aparece bloqueando a passagem.
Os cabelos grisalhos e o sorriso amistoso fazem-na
parecer aquelas velhinhas de livros infantis que
sempre têm todos os tipos de doces e guloseimas
em casa.
— Lara, querida! — exclama a idosa.
Se antes achei estranha a reação de Lara,
agora ela parece prestes a desmaiar. Recua dois
passos e acaba encostando o corpo contra o meu.
Lucas se afasta devagar, visivelmente constrangido.
Não acho que tenha feito por mal, é somente um
rapaz expansivo demais.
— Dona Tânia! — diz Lara no meio de um
riso um pouco assustador. — Não sabia que viria.
— Minha irmã trabalha no hospital, vim de
companhia. — Tânia olha na minha direção com
alguma expectativa, mas Lara não me apresenta.
Se estou começando a ficar
irritado? Definitivamente sim!
— Sou Ivan Volkiov. — Estendo a mão
para a senhora enquanto envolvo a cintura de Lara
com a outra. — Muito prazer.
Tânia sorri, cumprimenta-me e volta a
atenção para Lara mais uma vez.
— Não vi você no orfanato hoje —
comenta.
— Fui um pouco mais cedo por causa da
festa — Lara explica, balançando a perna. Vai
acabar tendo um colapso nervoso.
— E como estava o Iago? Ontem encontrei
com ele. Me disse que estava morrendo de
saudades de você.
— Tânia, desculpe, já estávamos de saída.
Sem esperar outra palavra, Lara segura
minha mão e me puxa para ir embora. Ignora pelo
menos três fotógrafos que tentam pedir uma boa
foto do novo casal.
Então há um cara, no final das contas. Não
posso casar com alguém que vai para a cama com
outros homens, esse tipo de rumor destruiria nossa
imagem como casal e meu esforço para tentar
conviver se tornaria sem sentido.
— Lara, que merda toda é essa? Qual o
problema?
— Só preciso ir embora.
Praticamente corremos para o elevador e,
com as portas fechadas, descemos vários andares
até o estacionamento. Algumas luzes já estão
apagadas e apenas nosso carro e o de Vladimir
continuam nas vagas privadas.
Os saltos de Lara atacam o chão e o barulho
constante de seus passos ecoa no silêncio da noite.
Antes de alcançar o carro ela se abaixa e arranca as
sandálias, descontrolada. Já chega dessa loucura!
Não posso negar que desejei a noite toda por uma
atitude que representasse quem ela realmente é, que
abandoasse a postura e encantasse as pessoas mais
com suas brincadeiras e menos com essa
passividade irritante.
— Que droga foi aquela na festa, Lara?
Você quer estragar tudo?
Sem os saltos, quando fica de pé, quase
enxergo Lara dentro daquela armadura. A pequena
menina geniosa. Sua respiração agitada começa a
regularizar outra vez, as mãos seguram o vestido
franzido para não arrastar no chão.
— A culpa é sua! — acusa, cheia de raiva.
— Você vai estragar tudo. Tudo! Estava certo, mas
você tinha que voltar, e agora eu posso perder tudo!
— Do que você está falando?
Ergo o braço para segurar o rosto dela e
pedir que se acalme com foco, mas Lara recua
como se um choque de dor ultrapassasse a tênue
linha da sua imaginação. Encolhe o corpo e fecha
os olhos, como se tentasse se proteger de mim,
como se eu fosse…
— Meu Deus! Você achou que eu fosse
bater em você? — O silêncio que ela me oferece é
doloroso. Lara está quebrada, somos malditos cacos
de vidro que ferem ao primeiro toque. — Vamos
embora.
Abro a porta do carro e dou partida. Todo o
meu corpo treme de frustração. É como uma
chaleira sobre a chama ardente, gritando para avisar
o limite. Ao meu lado, Lara está atônita, duas
linhas nas bochechas indicam a passagem de
lágrimas silenciosas.
— Você tem medo de mim? — Apesar do
furacão no meu peito, consigo falar com calma.
Lara balança a cabeça negativamente, mas não me
convence. — Achou mesmo que eu fosse bater em
você?
— Desculpe, não quis te ofender. Foi só
uma reação.
Não é o suficiente para mim. Tenho certeza
de que pensou que eu faria aquilo e não suporto
essa sensação.
Inferno!
Eu não sou esse tipo de aberração.
Giro o volante e estaciono no acostamento.
Os carros que passam por nós iluminam todo o
interior do carro, alguns motoristas buzinam com
raiva. Tenho que escolher as palavras corretas.
— Você tem todos os motivos para ter
medo de mim. — Começo. — Quando Petrova
morreu, não escondi que te culpava. Ainda hoje,
quando olho nos seus olhos, fico pensando naquela
noite. Você sabe disso. Ódio, foi essa palavra que
usei. Mas eu jamais encostaria um dedo em você,
Lara. Nunca. Sempre fiz de tudo por sua irmã e por
você também.
— Ivan — interrompe, pousando a mão
sobre as minhas. — Eu sei. Eu sei. Foi um impulso,
eu confio em você. O problema é comigo, não com
você. Esquece isso.
— Não quero que pense que aceitei esse
noivado para me vingar. Nós temos nossos
problemas, não era justo colocar meus irmãos em
uma situação desconfortável. Foi por isso que
aceitei.
— Eu já imaginava — confessa, sorrindo
timidamente e voltando para a posição normal, com
as costas apoiadas no banco. — No final das contas
foi a melhor decisão.
Os faróis de um carro qualquer nos
iluminam e no rosto de Lara eu capto toda a
sinceridade. No meio do ódio, da raiva e do
ressentimento, há uma sensação que pulsa como
uma onda sonora, impossível de ver. É a negação,
uma vontade de voltar no passado só para evitar o
nascimento de todos esses sentimentos ruins.
Eu só queria não pensar demais, não
demorar tanto para tomar decisões depois agir
como um descontrolado impulsivo.
— Eu estive pensando — digo, pois é só o
que tenho feito. Pensar e tomar decisões como a
que pretendo explicar agora. — Se vamos fazer isso
dar certo, quero propor uma coisa.
CAPÍTULO 06
Fantasmas e Despedidas Ruins

VAMOS DAR UMA trégua.


Reviro na cama sem parar, incapaz de
afastar a oferta de Ivan. Que homem louco, em um
segundo diz que me odeia e no instante seguinte
oferece uma proposta de paz. Outra parte da minha
armadura se rompeu naquele momento, quando me
olhou nos olhos e garantiu que jamais me
machucaria.
Sempre soube que Ivan era esse tipo de
pessoa. Um homem de verdade, honrado no que diz
respeito às suas atitudes. Quando recuei, foi
involuntário, meu corpo agiu sozinho, como um
sistema de defesa que se desenvolveu naturalmente
depois de tantas experiências ruins.
Ivan me deixou no limite a noite toda e, por
isso, quando Lucas percebeu o hematoma, perdi o
controle. Imediatamente imaginei um cenário em
que as pessoas descobririam a verdade, como se
todos os meus conflitos familiares estivessem
expostos. Não é uma marca chamativa, embora a
maquiagem não tenha sido o suficiente para
esconder — a nova justificativa favorita de Mikhail
para suas sucessivas crises violentas é a suposta
pressão gerada pelo acordo com a família Volkiov.
Na maioria das vezes, consigo fugir. Hoje
em dia já não o enfrento mais. Nos tempos que se
seguiram após Petrova ser enterrada, afundei até o
canto mais obscuro da minha alma. Eu desisti.
Naquela época, eu e Mikhail brigávamos todos os
dias. Ele tinha medo que eu fosse a público, que
revelasse para o mundo a verdade sobre a nossa
família. Mas fui fraca, tive medo e, de certo modo,
tentei me apegar à esperança de que os tempos bons
retornariam.
Foi Iago quem me puxou de volta, com sua
esperança infantil e amor incondicional. É por Iago
que sigo firme. É por ele que resisto aos dias de
humilhação e dor na casa de Mikhail. Esse homem
que se apresenta como meu pai é um monstro, o ser
humano mais desprezível que caminha sobre a
terra. Estou presa e o dinheiro é seu maior poder.
O casamento com Ivan é o primeiro passo
para a minha salvação. Mesmo sem saber, ele será
um herói torto e confuso.
Oferecer-me uma trégua era a única coisa
que eu precisava, uma garantia de que nem tudo
está perdido. Só não posso deixar que ele descubra
sobre Iago, não quero arriscar. Se Mikhail ficar
sabendo sobre minhas intenções, pode mandar
fechar o orfanato. Ou pior, pode levar Iago para o
outro lado do mundo.
Quando a diretora do orfanato apareceu na
minha frente, eu queria sair correndo. Desaparecer.
Meu peito se encheu com um desespero tão grande
que eu poderia morrer naquele segundo; pude sentir
meu espírito se desprendendo do corpo,
agonizando. O olhar de Ivan sobre mim, acusador,
julgador, cheio de perguntas, foi demais para
suportar. Todo aquele choque de emoções resultou
na forma como eu reagi à aproximação dele. A
forma como meu corpo se contraiu sob o prenúncio
do seu toque.
No fim das contas, mesmo com o ódio que
sente por mim, Ivan decidiu me propor uma trégua.
De acordo com ele, tentaremos conviver da melhor
maneira possível, talvez assim esse matrimônio
funcione sem que nenhum dos dois precise sofrer
tanto. Ele prometeu tentar, eu prometi o mesmo.
Mesmo assim, quase não dormi depois da
noite de ontem, quando me deixou em casa e nos
olhamos longamente sem saber como concluir a
noite. No fim, apenas sorri e guardei em silêncio o
turbilhão de pensamentos e sensações que me
assolavam. Agora, o dia já está amanhecendo e eu
mal consegui fechar os olhos. Ivan sacudiu o meu
mundo outra vez.
Esse vai ser um longo dia.
O despertador toca ao lado da minha cama.
Sexta-feira é sempre um dia agitado na empresa.
Sou proibida de exercer qualquer função
presidencial, mesmo que todos me tratem como
uma superiora. A verdade é que Mikhail adora falar
para todo mundo que tem uma herdeira bonita e
capaz, mas essa pessoa que ele descreve com tanto
orgulho já morreu. Sou apenas uma sombra, um
personagem que precisa desfilar pelos corredores
do palácio para que todos saibam que existe.
Acho que Mikhail não quer que a
concorrência saiba que ele não tem uma sucessora
do próprio sangue. Isso, na visão dele, seria como
revelar uma fraqueza para os inimigos, por isso me
mantém aferrolhada nessa vida amarga.
Não gosto de encontrar com meus pais pela
manhã, então me arrumo depressa. Nunca me
alimento nessa casa, basta ser obrigada a viver
aqui. Assim que visto um conjunto de terno branco,
prendo os cabelos no alto da cabeça e saio sem me
despedir de ninguém. Antigamente eu costumava
usar um corte bem curto, muito mais prático.
Porém, depois que eu precisei assumir o posto de
filha única, decidi mudar a aparência na tentativa
de amenizar as assombrações do passado.
Assim que me vê, o motorista desencosta do
carro e abre a porta. Não tenho escolha, é uma
exigência do presidente que eu chegue na empresa
com a condução da família. O percurso é longo, o
prédio principal fica em uma área privilegiada no
centro da cidade, assim como todas as grandes
investidoras do mundo. Já acostumado com a
minha rotina, o motorista estaciona em uma
pequena cafeteria perto do trabalho.
Dema tem a minha idade e vive com o
dinheiro do próprio negócio. É uma grande amiga
por quem tenho completa admiração. Ao entrar, sou
recebida pelo tilintar do aconchegante sininho de
recepção e um sorriso caloroso.
— Você está em todos os sites de fofoca! —
exclama do outro lado do balcão, arrancando
risadas de alguns clientes que aparentam conhecer
seu temperamento espontâneo.
— Não devia ficar lendo esse tipo de coisa
— respondo enquanto sento no banco alto que fica
perto da vitrine de doces e pães.
— Bem, sou uma mulher de vinte e cinco
anos com alma de oitenta. Assistir televisão e ler as
colunas de fofoca são as maiores aventuras que
acontecem no meu dia. E você está desviando do
assunto. Ivan Volkiov! Meu Deus!
— Não, está mais para demônio — comento
distraidamente.
Dema não sabe praticamente nada sobre
mim ou o relacionamento com a minha família,
então não calculo as coisas que falo ou a maneira
como me comporto. Aqui no café sou apenas uma
cliente matutina regular que estabeleceu uma
amizade com a dona. Mas nunca a convidei para
uma visita ou um jantar, nem uma festa sequer.
Tenho medo… e vergonha.
— Vocês estão namorando? — questiona
enquanto prepara meu café de sempre.
— Não — respondo, mas logo me lembro
sobre o acordo e corrijo: — Sim. Quer dizer, talvez.
É complicado.
— Não, sim, talvez ou é complicado?
Decide mulher! — Ela ri. — Eu li que ele já foi seu
cunhado, é verdade?
Tinha me esquecido desse detalhe. Devem
estar falando todo tipo de coisas horrendas sobre
mim, não quero nem pensar. Nunca mencionei
minha irmã para Dema, mas não encontro nenhum
vestígio de julgamento em suas palavras, só uma
curiosidade pura de amiga.
— Sim, há muito tempo. Minha irmã
morreu em um acidente há cinco anos — explico,
mesmo sabendo que ela deve ter descoberto esses
detalhes nas notícias que leu na internet. — Ivan e
eu passamos por momentos difíceis, estamos nos
acertando. Como eu disse, é complicado.
Alguns clientes chegam e o sino da entrada
volta a soar. Dema vai até eles e eu aproveito para
beber um pouco de café e apreciar um belo medovik
que irradia o odor adocicado do mel. Só preciso
disso para sobreviver até o horário do almoço.
Após arrumar os pedidos, ela retorna até mim.
— Sinto muito pela sua irmã, ela parecia
uma pessoa especial.
— Ela foi — respondo, esquivando do
assunto.
— Mas vamos falar sobre o que realmente
interessa, você e o empresário. Quem diria! Acho
que nunca vi você com ninguém.
— Eu não estou com ele. Pelo menos não
ainda. — Enrolo-me ao dizer; isso só aumenta a
curiosidade dela. — A gente não está em
relacionamento nenhum por enquanto.
— Bem, eu queria estar em um não
relacionamento com um homem lindo e podre de
rico. — Minha amiga suspira.
— Você não tinha um encontro ou alguma
coisa do tipo amanhã? Acho que um não
relacionamento define muito bem sua vida amorosa
— provoco, pois nas últimas duas semanas tudo o
que ela fez foi falar na minha cabeça sobre isso.
E eu preciso mudar de assunto.
— Bem, eu acho que vou cancelar.
— Por quê? Aconteceu alguma coisa?
Achei que ele fosse especial. — Beberico mais um
pouco da minha xícara, a fumaça rodopia entre nós.
— O problema não é ele, Lara. Aleksander
é o sonho de qualquer mulher. Ele entrou na fila na
da perfeição duas vezes antes de nascer, igualzinho
esse seu Ivan.
— Então por que cancelaria? Achei que
estivesse empolgada.
— Olha para mim, Lara. O que você vê?
Passo os olhos em Dema, procurando
alguma pista. É uma mulher linda, delicada. As
maçãs do rosto delineiam seus contornos naturais e
os olhos escuros contrastam com a coloração loura
dos cabelos. Além disso, é sempre cheia de energia
e contagia as pessoas com seu riso fácil.
— Uma mulher maravilhosa? — arrisco.
Realmente não sei o como definir melhor.
— Uma cozinheira, Lara! — Bufa com o
semblante triste. — E balconista. Pobretona. É isso
que eu sou. Ontem ele me enviou um convite com o
endereço do lugar que pretendia me levar. Um
almoço no clube mais caro da cidade. Um clube,
não tenho nem ideia do que as pessoas fazem em
clubes.
— Nada demais, na verdade. Comem,
bebem, jogam — comento.
— Às vezes eu esqueço que você é podre de
rica — Dema responde, apoiada sobre os braços em
cima do balcão. Sua respiração embaça o vidro e
contribui para tornar toda a situação ainda mais
trágica.
— Acho que devia ir, ele parece
interessado. É só um clube, não uma maratona
olímpica. Mas não sou a melhor pessoa para dar
conselhos.
Dema concorda com a cabeça e se entrega
ao silêncio, pensativa demais para conversar. De
repente, ela se ergue com os olhos iluminados,
rodeada com uma epifania visível.
— Você vai comigo! — ela meio diz, meio
comemora, achando-se muito gênia.
Engasgo com o café e queimo a ponta dos
dedos. O que foi que ela disse? Só pode ser
brincadeira.
— Nem pensar — determino. Tenho muitos
problemas para resolver, não é hora de ocupar meu
final de semana com passeios ou qualquer tipo de
planos que não envolvam chocolate, cobertor e
filmes dos anos oitenta.
— Lara — choraminga, saindo de seu posto
como atendente e vindo na minha direção. — Seria
perfeito, você entende tudo sobre gente rica.
Você é rica! Eu não ficaria sozinha e você ainda me
ajudaria com dicas para não passar vergonha.
— Você não precisa disso, Aleksander sabe
quem você é. Veio aqui durante dois meses todos
os dias só para ver você antes de criar coragem e te
convidar.
— E vai se arrepender assim que eu abrir a
boca na frente dos amigos dele — implora.
— Se ele fizer isso significa que não vale a
pena.
— Nós duas nunca saímos juntas. — Muda
de tática, apelando para nossa amizade. — Já te
convidei muitas vezes, mas você sempre recusa.
— Só não é um momento muito bom —
explico sem querer desistir. Sou uma péssima
amiga e me sinto uma traidora por não ajudar.
— Tudo bem, você tem razão. Quer saber?
É melhor eu cancelar. Não nasci para esse tipo de
lugar e tenho medo do que as pessoas vão pensar.
No fundo, meu inconsciente sabe que ela
está fazendo drama para me convencer. Mesmo
assim, começo a me apiedar. Nunca tive sorte no
amor, sempre fui uma catástrofe de emoções e não
posso deixar de torcer pela felicidade dos outros.
Torcia até pelo amor da minha irmã quando o meu
próprio era engolido pelo mundo, como posso não
torcer por Dema agora?
— Tudo bem. — Rendo-me à contragosto.
Ela nem se dá ao trabalho de fingir surpresa, abre
um sorriso imediato.
— Isso! Você é incrível. — Dema me
abraça, toda exagerada.
— Mas não vou ficar o tempo todo —
aviso, rindo da felicidade em demasia que faz dela
uma pessoa tão especial. — Só o suficiente para
você se habituar. Depois vou embora.
Por mais algum tempo, nós ficamos
conversando sobre as expectativas para o dia
seguinte. Escuto todas as inseguranças de Dema
com um sorriso no rosto, a história dela é muito
bonita. Um homem que se empenha todos os dias
para visitar um modesto café no centro de Moscou
só para trocar alguns galanteios com a bela
proprietária só pode ser um homem apaixonado.
Quando chega a hora de ir trabalhar,
despeço-me de Dema e garanto umas mil vezes que
não mudarei de ideia, depois sigo para o edifício
cujo letreiro na entrada estampa o meu sobrenome.
As pessoas me cumprimentam de todos os
lados assim que ultrapasso a entrada, paparicando a
filha do chefe exatamente como faziam com
Petrova antes de mim. Mantenho meu sorriso
congelado, o mesmo que exibo nos últimos cinco
anos.
Minha sala fica no andar executivo, um
abaixo da presidência. É um cômodo bonito de um
jeito simples. Quando aceitei meu destino e entendi
que era inútil tentar fugir, comecei a arrumar o
escritório para alcançar o mínimo de conforto. Há
um pouco da minha personalidade em cada móvel e
ornamentos, desde o sofá azul até os
quadros Kandinsky pendurados na parede principal.
Tento me concentrar no trabalho, tarefa
difícil. A conversa com Dema foi divertida, mas só
afastou Ivan dos meus pensamentos durante um
curto espaço de tempo.
Quase não tenho nada para fazer, apenas
repasso alguns e-mails e telefonemas. Praticamente
uma secretária de segunda instância. Nesse meio
tempo, revivo a noite anterior cena por cena.
Teremos que aparecer em público mais
vezes, mas não combinamos nada do tipo a não ser
a festa de Svetlana na semana que vem. Só de
lembrar meu estômago revira, com certeza não vai
ser uma experiência agradável. Pergunto-me o que
Ivan acha dela, que tipo de impressão ele tinha da
melhor amiga da minha irmã.
Minha irmã.
É como se Petrova ainda estivesse aqui, um
fantasma mudo que ressurge sempre que meus
pensamentos se concentram no homem que mais a
amou nesse mundo. Uma maldição que eu sequer
tenho o direito de odiar. Só queria ter coragem para
enfrentar essa presença constante, de pegar o
telefone e contar tudo para o mundo. De confessar
meus pecados para Ivan e finalmente descobrir
como ele reagiria à verdade.
Mas não posso trair Petrova, não assim.
Perto do horário do almoço, quando
finalmente posso ir embora, Mikhail irrompe pela
porta sem se anunciar, como já é costume. Havia
esquecido completamente dele, devia ter previsto
que me procuraria em busca de detalhes sobre
ontem.
— Espertinha, saiu bem cedo — ironiza
fechando a porta atrás de si. Não acredito que teria
coragem para fazer qualquer coisa contra mim
dentro da empresa, mas fico temerosa do mesmo
jeito.
— Tinha algumas coisas para resolver —
comento calmamente, com esse homem preciso de
cautela.
— Mentirosa, foi naquele café de quinta
outra vez.
— Quer conversar sobre ontem? — Vou
direto ao ponto, direcionando a atenção dele para o
que realmente lhe interessa.
— Quero ter certeza de que não arruinou
tudo, você é uma máquina de destruição. — Finjo
que não ouvi seu insulto e começo a recolher papéis
aleatórios em cima da mesa, formulando uma
resposta que seja do seu agrado.
— Tudo correu bem, tiramos muitas fotos e
nos apresentamos a muitas pessoas. Ainda não
anunciamos um relacionamento. Rápido assim seria
suspeito demais.
— E quando vão se ver de novo? — indaga
mais satisfeito.
— Semana que vem, eu acho.
Mikhail fica me olhando incessantemente,
como se quisesse desvendar algum mistério ou ler
os meus pensamentos em busca da verdade. Ele
sempre supõe que estou mentindo, não importa o
assunto.
— Estarei de olho em você, Lara.
Com isso, vai embora. Algumas vezes
suspeito que seu passatempo favorito seja me
atormentar. Ele tem esse hábito de aparecer de
repente para me ameaçar ou evocar a morte da
minha irmã só para me punir e humilhar.
Junto o restante das minhas coisas e saio às
pressas rumo ao elevador. Quase opto pelas
escadas, mas a quantidade de andares só adiaria
minha saída.
É isso, não adianta que a chama da
esperança se acenda dentro de mim. Mesmo que
Ivan me perdoe, nunca poderemos ser mais do que
estranhos educados um para o outro. Somos
assombrados por fantasmas demais, os vivos e os
mortos.
Assim que alcanço as ruas movimentadas, a
angústia vai evaporando aos poucos. No fim das
contas, vai ser bom sair com Dema amanhã, distrair
a mente, conversar e ficar longe da mansão
Ihascov. Almoçar fora com uma amiga… Não me
lembro quando foi a última vez que eu quis fazer
isso.
Estico o braço para chamar um táxi, passo o
endereço do orfanato onde vou almoçar com Iago e,
assim que me acomodo no assento traseiro, deito a
cabeça no encosto do banco. Talvez eu devesse
chamar Ivan para ir ao clube, seria uma boa
oportunidade para disseminar os rumores do nosso
relacionamento, mas não tenho toda essa coragem.
Temos um acordo de paz, nada mais do que isso.
Ainda existem limites, ainda existe o ódio, a culpa
e as perdas.
Ligo o celular e entro na lista de contatos,
parando no nome de Ivan. Encaro a tela, desejando
que a realidade fosse outra, que o passado pudesse
ser mudado. Por causa da concentração, assusto-me
quando o aparelho começa a tocar na minha mão. O
telefone escorrega entre os meus dedos e fico com
vergonha do motorista que me olha pelo retrovisor
com um sorriso divertido.
Leio o nome no visor.
Meus Deus, será que eu liguei para ele sem
querer?
— Alô — atendo mecanicamente.
— Lara. — A voz de Ivan soa do outro lado
da linha. — Tudo bem?
— Sim — respondo meio incomodada. É
uma conversa muito esquisita, como se fôssemos
completos desconhecidos. — Algum problema?
— Não, na verdade… Bem, um velho amigo
ficou sabendo que voltei para casa e me convidou
para um almoço amanhã. Fiquei pensando, nós
precisamos sair juntos, por causa do acordo, seria
uma boa oportunidade.
Esse acordo de unificação das empresas é
mais um espectro entre nós, não posso encher
minha cabeça com fantasias de algo que nunca vai
acontecer. Meu foco é o futuro, meu futuro com
Iago e livre de Mikhail. Tenho que me concentrar
nisso.
Não em fantasmas.
— Desculpe, tenho um compromisso
amanhã — respondo, embora ele não tenha me
convidado de verdade, apenas jogado a
possibilidade. Também não deixaria Dema sozinha
depois de todas as promessas. — Combinei de
almoçar com uma amiga, desculpe mesmo.
— Claro, sem problemas, eu entendo. Não
era nada importante, ele vai pedir uma moça em
namoro e está convocando uma pequena plateia.
Não teríamos muito destaque, de qualquer forma.
— Desculpe — repito.
Depois disso, ele desliga. Sem despedidas,
sem votos de até breve. Apenas desliga e me deixa
sozinha com a confusão. Uma confusão que não me
ajuda, que me expõe como uma donzela no meio do
campo de batalha. Se eu não desejo perder,
precisarei me apegar à armadura que construí ao
meu redor pedaço por pedaço, lágrima por lágrima.
É tudo o que me resta para lutar.
Eu e Ivan não somos mais do que acordos,
fantasmas e despedidas ruins.
CAPÍTULO 07
Dúvidas Traiçoeiras

POR LONGOS MINUTOS, encaro a tela do


celular. Não acredito que realmente liguei para
Lara e ainda fiz um convite para que almoçasse
comigo. Não acredito que ela recusou sem pensar
duas vezes. Achei que minha ideia de propor uma
trégua encerraria com o clima constrangedor, mas
parece que só piorei a situação.
Jogo o aparelho em cima do sofá, meu
humor não está dos melhores. Dormir uma boa
noite de sono completa é uma experiência que já
não faz mais parte da minha realidade, mas a última
noite em particular foi diferente. Antes, era a
tristeza constante e o medo invisível do passado
que me faziam perambular pela madrugada,
imaginando a vida que eu poderia ter tido ou
relembrando o dia em que Petrova se foi. Dessa
vez, porém, todas as vezes que tentei fechar os
olhos, o rosto amedrontado de Lara diante de mim
revirava emoções inomináveis e enchia minha
cabeça com suposições descabidas.
Nunca dei motivos para que temesse uma
agressão, dei? Não, fui invasivo e agi como um
idiota, mas nunca expressei falsos indícios de que a
machucaria. Agredir uma mulher é abominável, um
crime do pior tipo. Talvez por pensar assim que a
reação de Lara tenha mexido tanto comigo.
Preciso parar de pensar nisso ou terei um
colapso. Céus!
Termino de arrumar os papéis de
contratação do novo dirigente para a sucursal de
Nova Iorque. Agora que decidi não retornar por
tempo indeterminado, voltarei a administrar
assuntos do executivo financeiro ao lado de
Vladimir. Não preciso mais ocupar meu tempo
livre com academia e reflexões infrutíferas.
Roman administra a implementação dos
nossos projetos, garantindo que as obras e
empreendimentos continuem funcionando. De nós
quatro, é o único que não escolheu sua formação
com base nas expectativas empresariais que
acompanham nosso sobrenome; Roman é um
espírito livre que prefere lidar com pessoas reais,
planejar um projeto do zero e assistir quando ele se
ergue, tijolo por tijolo.
Mas o verdadeiro segredo por trás do nosso
sucesso é Andrei, o escudo da família. Vladimir
pode ser o responsável por nos manter no topo, mas
é o jovem advogado que impede nossos muros de
serem bombardeados. Todo o setor judicial se
encontra sob sua supervisão e não sei como
conseguiríamos dar andamento aos negócios sem
ele.
Passa das duas horas da tarde quando
finalmente concluo os últimos preparativos. O
trabalho é pesado, temos a responsabilidade de
garantir qualidade de vida a todos os nossos
funcionários, formação adequada e salário justo.
Não é qualquer pessoa que pode substituir um
Volkiov dentro da nossa própria empresa.
Levanto da grande cadeira executiva e
suspiro, cansado demais para procurar mais serviço
incompleto. Minha cabeça lateja, protestando
contra a sobrecarga, então atravesso toda a sala e
abro a porta para ir embora.
O andar executivo possui apenas quatro
salas, uma para cada irmão, mas Vladimir fica o
tempo todo no andar presidencial, cuidando dos
assuntos mais complexos ou coordenando reunião
atrás de reunião.
Antes de alcançar o elevador, no entanto,
vejo Andrei sentado atrás de sua grande mesa em
seu próprio escritório. Não trocamos nenhuma
palavra desde o ocorrido no restaurante e me sinto
no dever de conversar com ele. Quando me vê
entrar, assume um semblante sério e cruza os
braços. Meu irmão mais novo agora é um homem,
preciso me lembrar disso o tempo todo.
Espero que me convide para sentar, mas
esse convite nunca chega, então decido criar
coragem e esclarecer as coisas antes que esse
equívoco interfira na nossa relação.
— Precisamos conversar — digo.
Aproximando-me mais um pouco, aguardo um
pronunciamento dele.
— Sim, precisamos. Senta logo, a gente fica
meio ridículo agindo dessa forma.
Sorrio, meu irmão não tem meias palavras.
Sempre diz tudo o que pensa, munido do mais
absoluto senso de ética. Não esperava menos do
nosso advogado. Rapidamente, acomodo-me de
frente para ele com os braços apoiados sobre a
mesa de vidro.
Enquanto meu escritório tende para uma
decoração rústica, Andrei prefere a iluminação
translúcida do vidro mesclado com os tons brancos
dos outros móveis. Tudo nele é transparente.
Tudo… menos quando o assunto é Lara e eu nunca
entendi por quê.
— Desculpe. — Começo, assumindo meus
erros. — Pode parecer que não estou levando essa
história de matrimônio com a seriedade que
deveria, mas sei que não é brincadeira. Não é sobre
mim ou por causa do passado.
— Você é o seu passado, Ivan. — Titubeia,
seus ombros balançam com a exasperação. — Me
desculpa, mas nos últimos cinco anos você pediu
para que respeitássemos a sua dor, que ficássemos
longe. E agora você volta e quer se casar com Lara?
Depois de tudo?
— É uma coisa que eu devo a vocês, ou eu
deveria ter deixado um dos meus três irmãos se
casar com ela? O que isso faria com a nossa
família? Eu tenho coisas para resolver, assuntos
inacabados, e Lara é uma dessas coisas. Já
prejudiquei vocês demais. No fundo, acho que
aceitei esse acordo para descobrir se sou o cretino
que pareço ser.
— Eu não acredito nisso — confessa
calmamente, o olhar cauteloso parece me analisar.
— Você se lembra do que disse no dia em que foi
embora? Pois eu me lembro muito bem! Disse que
nunca perdoaria Lara.
— E não perdoei — confesso, esgotado
demais para rodear com palavras. — Mas o
problema é que não quero perdoar. Quando eu olho
para ela sinto uma raiva de tudo. Do mundo. E, ao
mesmo tempo, é como se eu quisesse sentir isso.
Como se eu não pudesse perdoar, porque sem esse
rancor não vai sobrar mais nada.
— Ivan, escuta bem o que eu vou dizer. Não
pretendo impedir, não tenho esse poder e nem esse
direito. Se a Lara aceitou isso, quem sou eu para
fazer qualquer coisa? Você é meu irmão, mas ela
não merece se machucar, não depois de tudo o que
já passou.
— O que você quer dizer com isso? —
questiono. Parece evidente que meu irmão sabe de
alguma coisa, algo que eu nem desconfio.
Andrei reluta por algum tempo e balança a
perna debaixo da mesa, uma mania que aparece
sempre quando ele fica nervoso ou apreensivo. É
como se lutasse uma guerra interna, todo esse
suspense me deixa com medo. No fim, abaixa a
cabeça.
— Só tente não ser um cretino o tempo
todo. Eu entendo como deve ser difícil, mas você
não estava lá naquela noite, foi uma confusão. É
muito fácil culpar apenas uma pessoa quando a
gente não conhece a história toda.
— Andrei — interrompo. — Não importa o
que digam, no dia em que minha noiva morreu ela
me pediu para ligar no celular da Lara. Disse que as
duas estavam brigando e que vocês estavam no
andar de baixo. Eu liguei, pedi para ela que se
acalmasse, implorei e chorei enquanto estava preso
no meio da estrada. Eu me lembro dos soluços das
duas, do desespero que me consumiu quando a
bateria acabou e a notícia chegou poucas horas
depois. Lara não me deu ouvidos, ela só queria a
irmã longe. Se não fosse por isso…
— As duas brigaram sim, nós ouvimos uma
parte — Andrei confessa. Já tivemos essa conversa
uma vez, quando me contaram os detalhes que eu
não sabia, mas naquela época eu estava cego de
raiva, não queria pensar em mais nada a não ser na
minha dor. — Mas nunca descobrimos o motivo,
sempre pensei que você soubesse.
Nego com a cabeça. Eu jamais soube o que
causou a briga entre elas, sempre supus que fosse
mais uma das intermináveis rebeldias de Lara, uma
discussão fútil. Mas será mesmo? Vale a pena
revirar esse passado? Será que eu quero isso?
— O que você sabe, Andrei? — interrogo,
percebendo que preciso da história toda, como se
essa fosse uma necessidade despertada dentro de
mim após um longo período de dormência. — Por
que essa história agora? Você tem alguma coisa
para me contar?
— Porque você vai se casar com a minha
melhor amiga, Ivan. Como eu disse, tente não se
colocar no centro do mundo o tempo todo. — Ele
balança a cabeça, os punhos se fecham e ele
suspira, quando volta a falar, sua voz é quase um
sussurro: — Naquela madrugada…
Duas batidas na porta interrompem o
diálogo. Olhamos juntos na direção da entrada e
Roman nos sorri com sua constante
despreocupação.
— As donzelas fizeram as pazes? — brinca,
encostado no batente da porta e uma jaqueta de
couro pendurada no ombro.
— Já fez as pazes com o investidor italiano?
— Andrei rebate, sempre certeiro.
Seja lá o que pretendia dizer, vai ficar para
outro momento. Não deve ser nada tão grave ou
revelador, ou Andrei teria me contado antes. Talvez
seja melhor não reabrir feridas cujas cicatrizes
ainda são frágeis.
— Não exatamente. — Roman revira os
olhos, mas seus punhos se fecham e a rebeldia não
passa despercebida. — Donatelo é um sujeito
interessante, mas o problema não é bem ele e sim a
irmã gêmea. Aparentemente, ela me odeia. Como
pode isso? A mulher nunca viu a minha cara!
— A sua cara cheia de machucados por
causa dos socos que você trocou com o irmão dela,
você quer dizer? — Entro na conversa, deixando de
lado o assunto pesado sobre a madrugada de cinco
anos.
Um passo por vez.
— Detalhes — Roman resmunga. — A
propósito, vocês já viram ela alguma vez? Porque a
mulher não faz o tipo social, ainda não descobri
nenhuma fotografia dos dois juntos. De qualquer
forma, estive investigando sobre a família deles e
talvez não seja um bom negócio apostarmos em um
investimento agora. Os pais deixaram muitas
dívidas, há rumores de que estejam falindo.
— Falindo? — Andrei fica surpreso, assim
como eu. — Antes de Donatelo assumir a
presidência eram a empresa de hotelaria que mais
crescia na Itália.
— Vocês podem até não acreditar em mim,
mas ele mereceu os socos que dei nele. O cara é um
idiota. Já a irmã, eu não sei. Parece muito
inteligente e determinada, tem uma fama sólida
sobre suas capacidades, mas para mim soa como
um disfarce. O lobo na pele do cordeiro talvez não
passe de um cordeiro na pele do lobo.
— Então desistimos dos Giamatteo? —
pergunto para Andrei, ele entende mais sobre os
riscos contratuais.
— Sim, vamos esperar, é muito arriscado.
— Meu irmão mais novo reflete um pouco. Olha
para mim e diz: — Daqui vinte dias o contrato de
unificação ficará pronto e teremos acesso aos
investidores de Mikhail. Acho que ele mantém
negócios com uma vinícola importante da Itália,
talvez possamos tentar uma proposta.
Concordo com a cabeça, um pouco
incomodado. Agora que começamos a fazer planos
com esse matrimônio me sinto desconfortável, com
um pouco de raiva, como se uma parte de mim não
quisesse mais ninguém envolvido. É bizarro e
assustador.
Ficamos conversando sobre assuntos da
empresa; uma reunião surge nesse meio tempo e
me arrependo de não ter ido embora quando tive a
chance. Já começa a anoitecer quando, enfim, saio
do prédio.
A vontade de ir para casa é nula. Tatiana vai
me metralhar com perguntas sobre Lara e eu,
principalmente depois de todas as nossas fotos e
teorias sobre o relacionamento que foram
publicadas nos jornais de distribuição online. Já
ignorei três de suas ligações. Com certeza ela está
uma fera.
Dispenso o motorista e chamo um táxi,
assim minha mãe não descobre meu paradeiro. É
mais cômodo pagar por um quarto e comprar uma
roupa qualquer para o compromisso de amanhã e
depois voltar para casa preparado para a chuva de
perguntas.
Outra vez, assim que deito a cabeça no
travesseiro, minha mente é inundada por
lembranças de Lara. No dia em que liguei para ela
pedindo que se acalmasse, naquela noite em que
tudo mudou para sempre, experimentei o maior dos
medos. Quase não me lembro da conversa com
Petrova, mas Lara estava fora de si no outro lado da
linha. Chorava e brigava, queria a irmã longe.
Queria todos longe.
A questão é, por que ela estava assim?
Preciso descobrir. Eu não devia ter fugido,
sofrido sozinho por tanto tempo. Ao lado da minha
família as coisas parecem se esclarecer, meus
sentimentos vão se acalmando aos poucos. Por
tantos anos achei que só havia lugar para o ódio e o
ressentimento.
Mas agora… Eu não sei.
É isso que vou fazer: descobrir a história
completa. Não tenho como saber quais resultados
alcançarei, pode ser que no fim nada mude, pode
ser que meu amargor aumente ainda mais. Mesmo
assim, os riscos não são nada se comparados ao
desconforto no meio do peito. Uma sensação
claustrofóbica de que a resposta está perto e que
não vou gostar nem um pouco quando a encontrar.
Assim que abro os olhos pela manhã, o sol
já brilha alto no céu. Não sei por quanto tempo
Lara rondou meus pensamentos antes de me
entregar ao sono, mas esteve presente em meus
sonhos. Sonhos em que ela fugia para longe, com
medo e sozinha. Sonhos ruins.
Depois de tomar café, desço até o saguão
para me informar sobre alguma loja de roupas nas
redondezas. Por sorte, em frente ao hotel encontro
uma variedade infinita de comércios. Meu celular
vibra com mais uma ligação de Tatiana. Ela vai me
matar, tenho certeza. Talvez fosse melhor eu me
mudar para o quarto do hotel para sempre.
A hora de partir chega depressa. O clube
que Aleksander me convidou para almoçar é o mais
caro da cidade, porém o ambiente despojado e o
objetivo da socialização permitem um estilo mais
casual. Bermuda jeans, camisa de botão, óculos
escuros. Ótimo. Ligo para o motorista trazer o
carro, mas dispenso seus serviços. Assim que ele
chega, entrego uma quantia em dinheiro para voltar
de táxi, sem maiores explicações. Não conheço a
maioria dos funcionários da mansão, mas minha
mãe sabe o nome de cada um. Obviamente, são
seus espiões.
No horário combinado, dirijo até o clube. É
um belo lugar, a renda deve ser muito boa. Minha
mente executiva faz planos sobre pesquisar a
respeito do mercado de lazer. Conversarei com
Vladimir a respeito depois.
Entrego um convite na entrada e dois
funcionários sorridentes me guiam por entre os
ambientes, até uma área reservada ao redor da
piscina. Muitas pessoas se espalham por cadeiras e
poltronas, com drinques requintados nas mãos.
Mulheres bonitas com vestidos esvoaçantes andam
de um lado para o outro e algumas me direcionam
olhares inflamados e provocantes.
— Ivan! — Aleksander se aproxima de mim
ostentando uma alegria de dar inveja. A gente se
conhece desde a faculdade e ele continua
despreocupado como sempre. — Finalmente.
— Aleksander, meu amigo — cumprimento
com um abraço. — Obrigado pelo convite.
— Se não te convidasse você nunca viria
me ver — dramatiza. — Vem, vamos pegar uma
bebida para você. Tenho que te apresentar minha
futura namorada.
— Vai fazer um pedido? Sabe que ela pode
não aceitar — zombo, mas duvido que qualquer
mulher não aceitaria. Além de ser uma ótima
pessoa, ele ainda trabalha na empresa do pai e faz
alguns serviços extras como modelo fotográfico.
— Se ela disser não, então vou pedir outra
vez e outra, até aceitar. É para isso que o homem
foi criado, meu amigo! Para rastejarmos por nossas
mulheres.
Vamos abrindo caminho no meio das
pessoas. Realmente, ele convocou uma plateia.
Cumprimento velhos conhecidos, parceiros de
negócios, todos muito interessados no meu retorno.
Aleksander, com seu cabelo louro escuro, caminha
como uma divindade no Olimpo.
— Ali está ela. — Meu amigo aponta.
Vejo uma moça pequena, delicada como
porcelana. Tem o cabelo brilhante na luz do dia e
sorri parecendo muito constrangida enquanto
conversa com duas pessoas, um homem e uma
mulher. Não reconheço os dois pois estão ocultados
por uma pilastra.
— Parece uma ótima pessoa — digo com
sinceridade; não pela aparência, mas ela tem um
semblante honesto, jovial e humilde.
— Vou apresentar vocês.
Damos a volta para chegar até o pequeno
grupo. Primeiro avisto o homem que conversa
animadamente com as duas, sua mão está apoiada
no ombro da outra mulher e ele exibe um sorriso
babão, típico de garotos que não podem ver um
corpo bonito que vão logo investindo.
Mas a mulher ao lado dele, com aquelas
costas nuas e aquele pescoço todo chamativo…
Mas que caralho!
Outro vestido com um recorte enorme na
parte de trás, a única diferença é que esse é mais
austero, leve e florido. Muito mais provocante e
perturbador. Era só o que me faltava.
A pretendente de Aleksander é a primeira a
nos ver e, pelo modo como arregala os olhos, sabe
quem eu sou e da minha ligação com Lara. Isso
está ficando cada vez mais interessante, penso.
Minha vontade é arrancar a mão do sujeito e jogar
dentro de uma jaula lotada com leões famintos,
especialmente quando começa a deslizar perto do
pescoço dela.
Talvez seja o tal de Iago. Se os dois tiverem
alguma relação, serei obrigado a desistir do
casamento.
— Dema, querida, quero que conheça um
amigo.
Os três se viram e eu fico com os olhos
fixos em Lara, quero captar suas reações. A região
da sua clavícula começa a adquirir aquele tom
rosado, o rosto cheio de espanto. Ela entreabre os
lábios, a voz perdida.
— Lara, meu bem — falo sem conseguir me
conter. Temos um acordo, em breve vamos assinar
um contrato, o mínimo que devemos um ao outro é
respeito.
— Ivan. — Sua voz é de espanto e alívio,
tudo ao mesmo tempo. Ela se recupera bem rápido
do susto e eu fico intrigado. — Querido.
Somos péssimos atores, isso é bem
evidente. Mas sinto um alívio quando ela se afasta
do homem e vem na minha direção. Seus braços
envolvem o meu pescoço e ela inclina na ponta dos
pés para me beijar o rosto, demorando-se no
contato dos seus lábios com a minha pele acima do
maxilar.
— Tudo bem por aqui? — Olho em seus
olhos, procurando uma explicação para aquela cena
esquisita.
— Claro, estava falando agora mesmo sobre
você. Esse é Serguei, um cliente de Mikhail, e essa
é Dema, uma amiga muito especial — explica, mas
eu não tenho a menor vontade de conversar com
ele. — Esse é Ivan Volkiov, meu namorado.
Oi?
Lara continua abraça a mim, sorridente. Eu
me limito a lançar um olhar desafiador para
Serguei, mas o homem já está murcho como uma
flor no inverno. Se ele tinha planos de conquistar
Lara, eles acabaram de escorrer entre os dedos.
— E esse sou eu, Aleksander — diz meu
amigo em tom de brincadeira.
— Bom, vou deixar os casais conversarem
em paz. — Serguei retira uma azeitona fincada no
palito de dentro da taça e bebe o restante do
conteúdo. Lara faz uma expressão de nojo ao meu
lado.
— Até que enfim — Dema exclama quando
ele já se afastou o suficiente para não sermos
ouvidos. Aleksander a abraça pelos ombros. — Que
cara insuportável, eu já estava pronta para fingir um
desmaio!
Dema pode até parecer calma e delicada,
mas sua voz é tempestuosa e sincera. Vejo o
carinho que tem por Lara, pois, quando fala, tem os
olhos pousados especialmente na mulher envolvida
pelos meus braços.
— Expliquei cem vezes que sou
comprometida, mas ele não queria acreditar. Como
soube que eu estava aqui? — Lara olha para mim.
Tão perto assim, olhando-me de baixo, longe da
família e de curiosos, ela parece outra pessoa.
Se parece com ela mesma.
— Não sabia — confesso. — Aleksander
me convidou para almoçar.
— Então foi por isso que me ligou? — A
gargalhada das duas me faz relaxar um pouco.
— Me convidou para um almoço que eu já estava
convidada e eu neguei por ter sido convidada para o
mesmo almoço.
Confuso, essa é a palavra. Sinto-me confuso
e perdido. Das outras vezes, eu ficava provocando
Lara para fazê-la perder o controle, como se
pudesse revelar sua personalidade real. Mas isso
aqui é diferente, desperta em mim o desejo de
descobrir ainda mais a verdade, e começo a duvidar
das certezas que cultivaram o ódio dentro de mim
por tanto tempo.
— Coincidência — comento. Ao longe,
Serguei nos observa ao lado de duas mulheres.
Encontrou novos alvos, mas continua com os olhos
em nós. — Por que não cortou as investidas dele se
estava tão incomodada?
— É cliente de Mikhail, eu disse —
responde distraidamente como se fizesse todo
sentindo.
Ela sequer desconfia como isso só me
inunda com mais dúvidas, e as dúvidas são
traiçoeiras, podem nos levar direto para um beco
sem saída.
CAPÍTULO 08
Nunca Baixe a Guarda

IVAN NÃO FAZ menção de me soltar, então eu


continuo com o braço entrelaçado ao redor dele,
como uma adolescente que não consegue ficar
longe do primeiro amor. Meu sistema nervoso
quase entrou em colapso quando ele surgiu diante
de mim com seus óculos escuros e maxilar rígido.
Já estava prestes a perder o resto da minha
paciência com Serguei e não seria nada agradável
desrespeitar um cliente de Mikhail, por mais que
todos os limites tivessem sido ultrapassados. Nem
quando apelei para meu falso relacionamento e
informei que era comprometida o descarado
desistiu.
Por um segundo, temi que Ivan me
desmentisse e dissesse na frente de todos que não
somos namorados. Usar essa informação munida de
uma meia-verdade absurda foi um risco. Para
minha sorte, no final das contas ele nem pestanejou
ao concordar com a história.
— Ele continua olhando para nós — Ivan
murmura, parecendo muito contrariado.
— Daqui a pouco ele desencana —
comento, mas no fundo também não me agrada
essa observação constante.
Muitas pessoas conhecem Mikhail, por isso
eu preciso estar sempre alerta, calculando minhas
ações em todos os lugares. Hoje o único incômodo
é Serguei e eu não acho que seu interesse esteja
relacionado com meu pai e seus planos doentios de
me manter em suas mãos. Não consigo entender
por qual motivo esse homem decidiu impregnar em
mim.
Apesar do inconveniente, contudo, meu
corpo parece mais leve como não acontecia há
meses. Talvez seja um efeito da companhia de
Dema ou o ambiente descontraído. Não tenho
recordação exata de quando foi a última vez que
aceitei sair para me distrair por conta própria, sem
obrigações e julgamentos. Não vou permitir que um
insignificante homem indecoroso como Serguei
afete a minha tarde.
— Então, vocês estão namorando — Dema
diz para Ivan, capturando nossa atenção. Não é uma
pergunta, mas uma afirmação. Ela é sempre assim,
expansiva e falante. Falante demais.
O olhar perverso que direciona para
mim quase me leva a repensar sobre a nossa
amizade. Mesmo sabendo que eu tentei persuadir
Serguei com a farsa do compromisso, ela não
deixaria passar o fato de Ivan ter aderido à
desculpa.
— Algo do tipo — responde ele, esquivo.
— E vocês?
Comemoro internamente, quero ver se livrar
dessa agora. Pela primeira vez na vida, vejo Dema
sem palavras, o rosto pálido subitamente ganhando
tons de rosa. Aleksander só teve olhos para ela
desde que chegamos, mas não deu indícios de
querer investir em algo mais sólido.
Ela olha para mim em busca de ajuda,
afinal, foi para isso que eu vim. Mas acaba não
sendo necessário.
— Algo do tipo — devolve Aleksander
sorrindo, livrando minha amiga do
constrangimento. — Daqui a pouco vamos servir o
almoço, vou deixar vocês se acomodarem. Dema,
pode me fazer companhia? Preciso cumprimentar
algumas pessoas.
— Não acho isso uma boa ideia não —
responde horrorizada, mas o homem apenas solta
uma gargalhada e a puxa pela mão.
— São pessoas, querida — ele diz enquanto
se afastam. — Seres humanos normais como nós.
Não precisa fazer essa cara de quem vai ser atirada
aos leões.
— Pois o sentimento é exatamente esse.
Aleksander, eu tenho a impressão de que vou
vomitar a qualquer momento.
Eles desaparecem no meio de um grupo
acalorado e de repente me torno muito mais
consciente da presença de Ivan, dos músculos
firmes sob a ponta dos meus dedos e o leve roçar
dos seus pelos na extensão do meu braço.
— Ele pretende pedir ela em namoro —
conta. O calor do corpo definido perto do meu
irradia como um vulcão ativo, ou talvez seja apenas
uma reação natural ao toque da sua mão no centro
das minhas costas.
— Jura? — Fico emocionada por Dema e
surpresa por Ivan me confidenciar esse segredo,
mesmo sendo algo assim básico. — Acho que ela
vai entrar em choque — acrescento —,
principalmente se ele disser na frente de todas essas
pessoas.
— É exatamente isso o que pretende, essas
pessoas serão a plateia do pedido.
Dema vai ter uma pequena parada cardíaca,
com certeza. O capricho de Aleksander é bonito e
especial. Ele nunca teve pressa, começou
conquistando-a aos poucos, fazendo-se presente na
pequena cafeteria. No começo ela sequer sabia
sobre a vastidão do dinheiro dele.
— Fico feliz por ela. Aceitei participar do
almoço para ajudar a se adaptar e, no fim, ela me
abandonou na primeira oportunidade.
— Vamos para outro lugar — Ivan pede,
outra vez parecendo irritado. Nunca sei como
consegue mudar de humor tão rápido. — Esse cara
está me tirando do sério.
Olhando ao redor, encontro Serguei em
outro ponto do clube, o pescoço esticado para nos
enxergar. É um sujeito bem-apessoado, de boa
família. Lembro de já ter me deparado com alguns
relatórios sobre os investimentos compartilhados
que mantém com Mikhail no ramo de importações
vindas do Brasil. Mas há qualquer coisa estranha
em seu comportamento.
Aquela mão possessiva de Ivan que repousa
na minha pele exposta também começa a me guiar
entre convidados e mesas. Seus dedos pressionam a
minha pele de maneiras diferentes dependendo da
direção que deseja seguir. Olho para cima a fim de
perceber suas feições, mas ele parece distante,
pensativo demais com a boca contraída em uma
linha muito fina.
Queria ter o poder de ouvir seus
pensamentos, descobrir se todo o ódio que diz
nutrir por mim continua intacto ou se cresce a cada
dia como uma erva daninha.
Finalmente, encontramos uma pequena
mesa alta em um canto mais reservado, com três
cadeiras ao seu redor. Sentamos um ao lado do
outro e o pouco espaço garante que a proximidade
se prolongue.
É perigoso, como se um alarme soasse
dentro de mim. Ele está fazendo outra vez a mesma
coisa que fez no passado. Foi assim que meus
sentimentos tiveram início — ele me deu atenção
quando mais ninguém queria dar. Sorria para mim
com sinceridade quando ninguém na minha família
se importava se meu coração pulsava de alegria ou
de tristeza.
Algumas vezes, pego-me pensando se
Petrova conseguia reconhecer o que ela mesma
sentia ou se só escolheu ignorar a verdade por trás
do meu sofrimento. É possível nos abstermos da
empatia a ponto de perdermos a capacidade de nos
afetar pela emoção dos outros?
— Está tudo bem? — A voz de Ivan afasta
todos os pensamentos de dúvida. — Nós estamos
bem?
— Sim, por que a pergunta?
Ivan faz sinal para um garçom que passa
apressado com vários drinques equilibrados sobre
uma bandeja prateada, pega um copo para si e outro
para mim. Quase nego a gentileza, mas dessa vez é
diferente. Comecei a evitar bebidas alcoólicas
depois de ver o que elas faziam com Mikhail, tinha
medo de beber na presença dele e depois não ter
condições físicas para me defender. Ainda tenho
medo do que ele pode tentar.
Mas somos eu e Ivan dessa vez e ele já
provou seu caráter. Hoje eu posso relaxar, uma taça
não vai me fazer mal.
— Não sei — diz após uma longa pausa. —
Isso tudo é muito esquisito. Não pensei que fosse
ser tão fácil manter minha palavra sobre a trégua —
responde, sincero.
— Temos muito pela frente ainda, Ivan —
reflito em voz alta.
Uma verdade incontestável é que
precisamos falar sobre nosso acordo matrimonial e
a escolha que ele fez. Compartilhar meus
pensamentos é algo que desaprendi e por isso não
cheguei a expressar minha opinião sobre ele ter
mudado de ideia, mas o momento parece
conveniente, especialmente agora que está se
esforçando para ser sincero também.
— Fico aliviada que tenha sido você —
confesso. A verdade me preenche como ar dentro
de um balão.
Bebericando a bebida rosácea, Ivan coloca
os óculos sobre a cabeça, revelando seus olhos de
um raro castanho claro que me faz lembrar da cor
que o céu adquire ao entardecer. Cruza os braços e
me olha longamente. Seus pensamentos quase
pairam no meio de nós, é como se eu pudesse
escutar as engrenagens do seu cérebro trabalhando.
Assustador demais, instaura a impressão de que
pretende desvendar o interior da minha mente.
— Continue — pede com a voz mais baixa,
calma como nunca antes.
— Pode parecer loucura — prossigo com
uma fagulha de coragem. — Mas nós dois já somos
conturbados desde sempre. Não importa quanto
tempo a gente arraste essa união, não vejo como
pode piorar, sabe? Se fosse um dos seus irmãos, ou
mesmo Dimitrio Livannov, eu teria que aprender
como conviver com quem quer que fosse. Seria
constrangedor e pioraria com o tempo.
— Está querendo dizer que somos tão ruins
um para o outro que não faz diferença? — Uma
risada ligeira procede suas palavras.
— Não é bem isso — corrijo, achando
graça. — Quero dizer que já temos isso em comum,
mesmo não sendo algo bom, já temos uma
relação nossa. Eu teria que construir do nada se
fosse com outro.
O conteúdo de seu copo vai embora em um
gole. Ivan balança a cabeça para afastar um
pensamento qualquer que prefere manter em
segredo.
— Sabe de uma coisa? — Torcendo o nariz,
Ivan respira fundo e apoia o queixo sobre as mãos
fechadas. — Não quero mais falar sobre isso,
vamos mudar de assunto. Serei eu, não precisamos
conversar sobre outro. Outros, ou seja lá quem.
Nem tento entender!
Esse homem é a personificação da
inconstância. Desde seu retorno, tenho
experimentado todos os seus humores; primeiro os
piores e agora os mais confusos. O tempo todo
espero que me humilhe ou compare com Petrova,
mas parece realmente se esforçar para essa parceria
funcionar.
Conversamos então sobre coisas aleatórias,
negócios e investimentos. Ivan pergunta a respeito
da empresa, especialmente sobre o mercado
italiano. Eu respondo o que sei, mas nada muito
satisfatório. Aos poucos o diálogo vai se tornando
mais fluido, embora ele ainda desvie o olhar ou
pareça não prestar atenção algumas vezes.
Só encerramos os assuntos quando
Aleksander surge em cima de um palco
improvisado segurando um microfone na mão. Não
acredito que vai mesmo fazer isso. Começo a rir
antes mesmo do discurso começar.
— Acho que perdi uma pessoa importante
no meio de tanta gente, será que alguém viu? É
pequena, loirinha, fala mais que tia velha em noite
de Natal.
— Deve ter fugido de você, é claro! — grita
alguém no meio da plateia, arrancando risadas da
multidão.
— Isso seria improvável — responde ele no
microfone, passando os dedos sobre a barba rala.
— Não é? Quero dizer, eu só estava brincando, mas
realmente não a estou vendo em lugar nenhum.
Dema, minha querida, se estiver pensando em
fugir, eu juro que…
— Não pode ver uma vergonha que já me
faz passar — diz Dema o mais alto que sua voz
melódica permite.
Todos os espectadores riem mais um pouco,
incluindo eu e Ivan. As pessoas começam a olhar e
murmurar entre si, algumas mais desordeiras
aplaudem. Dema vai se aproximando devagar,
branca como se tivesse visto um fantasma.
— Eu sentiria pena se não a conhecesse,
aquela ali é veneno puro — digo para Ivan, que
arqueia a sobrancelha parecendo se divertir.
— Eu vou contar uma história — prossegue
Aleksander, anda de um lado para o outro como se
palestrasse sobre um assunto complicado. — Sobre
como nos conhecemos.
— Você não é nem louco! — Dema
protesta, sua pele adquire algumas nuances de
verde.
— Vou preservar alguns detalhes, para a
felicidade geral da nação — explica, deixando
implícita a informação de que aprontaram algo
íntimo nesse suposto primeiro encontro. — Eu
tinha levado um pé na bunda…
— Muito merecido — Dema interrompe
com um sorriso perverso. Tenho certeza que os
lábios dela se movimentam em um pedido
silencioso para que ele pare com o espetáculo.
— Tudo bem — concorda, revirando os
olhos —, eu tinha levado um merecido pé na bunda
e me vi sozinho no meio da rua.
— De ressaca e sem dinheiro — completa
minha amiga. Ela não vale nada, mas continua
maravilhosa.
— Quer contar a história, querida? —
Aleksander pergunta, inclinando-se com o
microfone estendido, mas Dema recusa, sorrindo, e
senta em uma cadeira diante do palco. — Eu estava
a caminho da empresa para buscar meus
documentos e conseguir algum dinheiro para ir ao
banco. Mas, no meio do trajeto, de repente, me
deparei com um pequeno estabelecimento no centro
de Moscou. Um pontinho cor-de-rosa no meio de
todos aqueles monstros de pedra. E, por um motivo
inexplicável, senti que precisava entrar ali, ver o
que havia lá dentro. Foi surreal.
— Era a ressaca — brinca um jovem com o
copo estendido para o alto.
— Talvez — pondera Aleksander. Seus
olhos nunca deixam de procurar por Dema
enquanto ele fala. — Mas eu entrei assim mesmo. E
me lembro de ouvir o som de um sino quando abri
a porta, me lembro de ser arrebatado pelo cheio do
açúcar, das massas assando naquela cozinha
apertada nos fundos da loja. E você estava lá,
parada, linda, com uma mancha de farinha na
bochecha. Lembra qual foi a primeira coisa que
você disse quando me viu entrar, Dema querida?
— Eu disse "se veio me roubar, saiba que
não tenho dinheiro".
Outra onda de gargalhadas ressoa pelo
clube. Não consigo desviar o olhar desse
compartilhamento público de amor.
— Sim, você disse isso. Lembra o que eu
respondi?
— Que tinha acabado de ser assaltado. —
Dema começa a entender onde ele pretende chegar
com o longo discurso, coloca a mão sobre o
coração.
— Exato, Dema. Eu havia sido assaltado
por você, que roubou meu coração com um único
olhar e nunca mais devolveu. Tenho uma coisa para
te falar. — Aleksander desce do palco, estica a mão
livre e ergue Dema delicadamente. — Desde a
primeira vez, eu soube que chegaríamos nesse dia.
Muita gente não acredita em amor à primeira vista,
destino e essas coisas. Nem eu sabia que acreditava
até conhecer você. Então, por favor, namore
comigo, me deixe ser o homem da sua vida, porque
na minha não existe espaço para mais ninguém.
Minha amiga balança a cabeça em negação,
arrancando mais gargalhadas do público. O próprio
Aleksander oferece o microfone para ela enquanto
mantém um sorriso genuíno no rosto. Mesmo
paralisada de vergonha, Dema movimenta as mãos
e alcança o objeto. Assim que respira fundo
algumas vezes, leva-o perto dos lábios e começa a
falar:
— Se fizer alguma coisa desse tipo mais
uma vez, eu mato você. — Emocionada, brava e
feliz, tudo misturado, ela parece completa.
Aleksander salta para perto dela e ficamos
na expectativa de um beijo, mas ele ergue o
microfone entre os dois, os lábios um do outro
muito próximos.
— Nem quando for o pedido de casamento?
Agora sim ela fica pálida, quase
transparente, os lábios se escancaram de surpresa.
Acho que nem se dá conta quando responde:
— Vai ficar sozinho no altar!
Ao invés de se indignar, Aleksander beija
Dema, inclinando o corpo dela como um príncipe
faria com uma princesa na cena final de um filme
romântico. Os cabelos dela balançam no ar,
dourados como se tivessem sido confeccionados
em um tear com fios de ouro.
É uma cena de completude, que mostra
como o amor pode funcionar mesmo para aqueles
que não estão à procura de um sentimento confuso.
Não lembro de ter me sentido tão bem,
como se alguma coisa que faltava dentro de mim
estivesse voltando para o lugar. Escutar a risada de
Ivan, depois de tudo o que passamos, faz aquela
esperança por dias melhores parecer uma
possibilidade.
— Você está diferente hoje — Ivan me
analisa. — Verdadeira.
Meus olhos são capturados pelo olhar dele,
duas esferas que fazem lembrar planetas distantes e
realidades desconhecidas. Os óculos pousados no
alto da cabeça só ajudam a deixar sua aparência
mais bonita, sua sensualidade transbordante.
Quem estou querendo enganar? Ivan mexe
comigo hoje com a mesma intensidade que no
passado. Por mais que machuque, negar esse
sentimento continua sendo mais doloroso do que o
sentir em cada pedaço do meu corpo.
— Lara, o que aconteceu com você? —
questiona enquanto estica a mão para me tocar no
rosto.
Imediatamente minha armadura se rompe
por inteiro. Estou quebrada outra vez, exposta e
fraca. Ivan sabe que tem algo errado, dei espaço
para suspeitas. Aqueles sentimentos que lutei para
trancafiar dançam, livres, diante de mim.
Pisco para afastar as lágrimas e fico de pé.
Não posso confessar para ele, o medo e a vergonha
são opressores e destrutíveis. Meu plano é a única
coisa que resta e precisa funcionar. Ivan nunca vai
me amar, um sentimento tão profundo como o ódio
não tem poder para se transformar em algo bom e
puro. Ele mesmo disse que jamais sequer me
beijaria.
Nós somos o tipo de pessoas que precisam
de uma maldita trégua para conseguir conversar
com alguma civilidade, quem dirá manter um
relacionamento verdadeiro.
Não posso me entregar.
Não vou.
— Desculpe, preciso ir à toalete.
Ignoro quando ele abre a boca para me
impedir e praticamente corro na direção do
banheiro feminino. Esbarro em algumas mulheres
na entrada, mas do lado de dentro fico sozinha.
Jogo água gelada no rosto e encaro minha imagem
refletida no espelho. Mesmo com cabelos longos,
prefiro manter um penteado compacto, por isso o
coque constante. Sinto-me mais eu dessa forma e
menos uma substituta da filha pródiga.
Ivan quer saber sobre a noite em que
Petrova morreu. Depois de toda a terra que joguei
sobre as velhas feridas, foi em vão. Por que ele
quer revirar essa terra batida? Por que forçar uma
conversa que não vai mudar o nosso presente?
Eu vou fugir.
Não por fraqueza ou por não estar
completamente preparada para esse assunto; no
momento, qualquer aposta pode colocar tudo a
perder. Iago — que visitei pela manhã — é como a
minha kriptonita, e essa fraqueza está nas mãos de
Mikhail.
Saio do banheiro mais recomposta e sigo de
volta para a mesa, decidida a me despedir de Ivan e
dizer que não posso conversar sobre aquela noite,
que esse é um limite impossível.
Ao retornar, no entanto, descubro que Ivan
não está mais sozinho à minha espera. Na mesa
junto com ele está Serguei, conversando com os
braços em movimento como se explicasse uma
equação. Um arrepio percorre meu corpo — medo
do que possam estar falando. Caminho devagar até
os dois, nenhum me nota e aos poucos a conversa
vai se tornando nítida aos meus ouvidos.
— Só estou perguntando se vocês aceitaram
o acordo de Mikhail Ihascov, não é nada demais. —
Escuto Serguei dizer. — Ele me fez a mesma
proposta um tempo atrás, caso sua família não
aceitasse. Sabe como é, a fila anda. Se não forem
aceitar, eu quero ela.
Fico nauseada, estão falando sobre mim.
Aquele monstro pelo visto não se satisfez em me
oferecer apenas para os Volkiov e Dimitrio,
espalhou para outras pessoas também.
Apoio na parede, o mundo está desabando.
— O que você quer dizer com isso? — Ivan
rebate, cheio de frieza.
— Você sabe, um bom negócio é aquele em
que as empresas lucram e a gente ainda consegue
uma mulher bonita. — O tom que Serguei utiliza é
cheio de malícia, ao mesmo tempo em que
comporta-se como se fosse íntimo de Ivan na
tentativa de conquistar sua confiança.
— Lara. — Ivan me vê antes que eu possa
fugir. — É verdade?
Minha garganta se fecha. Como eu vou
responder sem acabar com o pouco de dignidade
que resta?
— Eu não sei sobre isso — sussurro
envergonhada, outra vez meu pai conseguiu me
rebaixar. — É possível.
CAPÍTULO 09
Não é Sobre Dinheiro

MESMO COM MINHAS diversas tentativas, Lara


continua reclusa demais. Talvez ela confiasse um
pouco mais em mim se eu não tivesse agido de
maneira tão impassível. Mas não, mais uma vez eu
deixei o ódio me dominar e atingir as pessoas que
me cercam.
Tem alguma coisa nessa história que
ninguém sabe e eu preciso começar a fazer
perguntas, investigar e revirar o passado. Dentro de
mim existe uma angústia, um desespero vibrante
que alerta sobre os buracos envolvendo aquela
noite há cinco anos, que me faz duvidar se todo
esse sentimento negativo foi sempre raiva, se não
era uma necessidade camuflada de confrontar Lara.
Inconscientemente, talvez eu sempre tenha
desejado ouvir a verdade dos lábios dela.
Bebo mais um pouco do drinque de frutas
cítricas, o sabor ajuda a me concentrar. Lara quase
não tocou no dela, apenas o suficiente para
experimentar, e agora o copo repousa sobre a mesa
como um lembrete de seu desespero. A forma como
saiu correndo com a desculpa de precisar ir à
toalete foi semelhante a um soco no meu ego.
É pertinente tentar consertar aquilo que
quebrei com tanto empenho? Eu fui o primeiro a
lhe dar motivos para não confiar em mim, o
primeiro a apontar o dedo e virar as costas sem
olhar para trás.
Pensando no passado, tudo é uma bagunça
de lembranças e sentimentos desordenados.
Lembro da conversa que tive com Lara ao telefone,
do pavor que preencheu minha alma quando as
duas começaram a me ligar ao mesmo tempo.
De um lado, Lara era um misto de
descontrole e soluços, ordenava que Petrova fosse
embora. Do outro lado, Petrova me implorava
desesperadamente para chegar até lá depressa, que
eu tentasse conversar com Lara para convencê-la a
se acalmar. No meio daquela bagunça, Andrei
ligava sem parar, assim como Roman e Svetlana,
que já tinham chegado na chácara de Mikhail para
aproveitarmos as férias daquele ano.
Eu e Vladimir tentamos chegar a tempo,
mas não foi o suficiente. A mesma tempestade que
levou Petrova nos impediu de seguir viagem.
Ficamos hospedados na beira da estrada e, quando
meu telefone tocou pela última vez, o mundo se
desfez em catástrofes. Petrova estava morta, seu
carro havia colidido com outro no meio daquela
madrugada chuvosa, e tudo se transformou em
tristeza e lamentação.
Pedi para Lara inúmeras vezes que se
acalmasse. Avisei que era perigoso para Petrova
dirigir na chuva, mas ela não me deu ouvidos. Não
se importou.
Faz tanto tempo…
Até quatro dias atrás, quando reencontrei
Lara, não pensava nesses detalhes. Agora, no
entanto, a dúvida sobre o que originou aquela briga
não sai da minha cabeça.
As comemorações ao meu redor parecem
fazer parte de um mundo paralelo em que eu e Lara
podemos conviver. Ergo os olhos a sua procura,
afinal ela não pode fugir para sempre desse assunto,
mas percebo a aproximação de Serguei, todo
risonho e com o caminhar malandro.
Imediatamente meu corpo fica tenso. Lara
não percebeu ou não quis mencionar, mas ele
esteve nos observando o tempo todo. Sem pedir
permissão, senta-se junto a mim.
— Queria conversar com você a sós, estive
esperando uma oportunidade — explica com um
tom cúmplice, como se fosse meu amigo. — Você
já assinou o contrato?
Encaro o sujeito por um longo momento,
registro na parte ruim do meu cérebro que
definitivamente não gosto dele. Decido que o
odeio, muito. Mas não é isso que me preocupa. Até
onde sei, esse acordo deveria ser sigiloso,
especialmente a parte sobre o casamento falso.
— Não entendi muito bem do que você está
falando — digo com cautela. Não tenho certeza a
qual tipo de informação ele teve acesso, preciso ser
cuidadoso.
— Só estou perguntando se vocês aceitaram
o acordo de Mikhail Ihascov, não é nada demais —
explica. — Ele me fez a mesma proposta um tempo
atrás, caso sua família não aceitasse. Sabe como é,
a fila anda. Se não forem aceitar, eu quero ela.
Ela.
Está se referindo à Lara como se fosse um
brinde, a parte lucrativa de um acordo qualquer.
Não se preocupou em esconder a fonte do seu
interesse, aposto que está pouco se lixando para os
negócios. Mas não posso deixar de ficar
decepcionado com ela por aceitar que esse tipo de
assunto se espalhe.
— O que você quer dizer com isso? —
rebato sem esconder minha raiva.
— Você sabe, um bom negócio é aquele em
que as empresas lucram e a gente ainda consegue
uma mulher gostosa.
É o limite para mim.
Minha vontade é socar a cara desse infeliz,
falar umas verdades para Lara e o pai dela e
desfazer esse acordo. Quando estou pronto para
levantar, percebo o vulto dela perto de nós, o rosto
lívido denuncia que escutou a conversa. Outra vez
acontece aquele redemoinho de emoções dentro de
mim.
— Lara — chamo, a raiva se contorcendo
como um ninho de cobras. — É verdade?
— Eu… não sei sobre isso. — A voz dela é
menos do que um sussurro. — É possível.
— Eu garanto! — Serguei fala, animado
demais agora que Lara chegou. — Ele inclusive me
explicou as vantagens e desvantagens. Está certo
que não foi uma conversa oficial, a gente estava no
clube perto da minha empresa. Aquele Mikhail bem
que gosta de uma bebida forte, mas a proposta
ficou em aberto.
— Talvez você tenha se enganado, Serguei.
— Lara tenta consertar a situação, está de volta
com a falsa bondade, o teatro. Mas há um tom de
desespero em suas palavras. — Meu pai costuma
falar demais quando está bebendo.
— Não! Eu tenho certeza, ele disse com
clareza que um casamento daria credibilidade
natural aos negócios. Esse tipo de coisa atrai
investidor. Hoje em dia contratos podem ser
quebrados o tempo todo, mas é só colocar um casal
apaixonado que as coisas mudam de cenário.
Basta.
— Ainda não entendi uma coisa —
interrompo enquanto ainda sou capaz de controlar
meus impulsos. Se fosse Roman no meu lugar, ele
já teria acabado com a festa e esse sujeito estaria a
caminho de um hospital. — Se você mesmo
compreende como um acordo desse tipo é
vantajoso, o que te faz pensar que eu não teria
aceitado? Não devia ter perdido seu tempo se a
resposta é tão óbvia.
Fico de pé e encaro Serguei de cima; é só
um rato com o qual não tenho pretensão de me
preocupar. Meu problema aqui é outro. Mesmo
assim, quando volto a falar enquanto o homem
busca uma resposta plausível, minha voz é cortante
como uma bala de revólver.
— Andrei Volkiov é o advogado da minha
família, o melhor da Rússia, e meu irmão. Se uma
conversa como a que tivemos agora voltar a se
repetir ou se eu descobrir que você está espalhando
esse rumor por aí, espere por uma intervenção
judicial. — Após uma pausa dramática para
memorizar seu espanto, acrescento: — Lembrando
que meu irmão nunca perdeu uma causa sequer.
— Eu não quis ofender — exclama
horrorizado. — Eu só pensei que…
— Não me interessa o que pensou ou
deixou de pensar. Seja lá o que for, pensou errado.
Caso algum dia torne a encontrar com Lara, esteja
ela sozinha ou acompanhada, não fale com ela, não
a cumprimente ou olhe na sua direção.
Tiro os óculos da cabeça e penduro na gola
da camisa. Eu queria enterrar esse cara e nunca
mais lembrar que um dia essa conversa existiu.
Estou me sentido uma peça de xadrez, uma torre
perdida no meio do tabuleiro. Enganado e traído.
Lara tem os olhos brilhantes e
avermelhados, claramente lutando contra lágrimas.
Faço um sinal para que me acompanhe e ela vem
caminhando atrás de mim enquanto sigo na direção
da saída. Não nos despedimos de ninguém, quero
entender o que está havendo.
Do lado de fora, desativo o alarme do carro
estacionado no outro lado da rua, e só paro de andar
quando chegamos perto do veículo.
— Que merda você e o seu pai estão
pensando? — confronto Lara.
— Eu não sabia! — responde, um pouco
chocada, mas não vou cair nessa outra vez.
— Eu tentei, te tratei bem o tempo todo.
Achei que podia confiar em você. Mas no fim
descubro que Mikhail fez essa oferta nojenta para
outras pessoas! Vocês mentiram para nós. — Ando
de um lado para o outro, não consigo ficar parado,
minha cabeça parece um trem desgovernado.
Para minha surpresa, Lara começa a rir. Não
um riso de alegria ou deboche, mas de amargor.
Recosta na lataria do carro e cobre o rosto enquanto
as gargalhadas vão se transformando em soluços.
Eu espero, imóvel. Brigo com a vontade repentina
de confortar sua tristeza.
— Você não acredita mesmo em mim, não
é? — Sua voz soa nasalada por efeito do choro e da
risada. — Sempre espera o pior.
— O que eu deveria fazer? — Gesticulo
com os braços abertos. — Acreditar que Mikhail
faria uma proposta delicada como essa para
qualquer um sem o seu consentimento? — Controlo
o volume da minha voz para não chamar atenção
das pessoas que entram e saem do clube.
Uma vez ouvi uma lição popular que ditava
sobre o silêncio, de que ele, em sua solidão, tem
muito mais o que dizer do que frases elaboradas.
Lara ergue o rosto manchado com suas lágrimas e
não diz uma palavra sequer, apenas me olha. Olha e
olha.
Ele fez, penso.
O mesmo Mikhail Ihascov que me recebeu
em sua casa tantas vezes durante comemorações de
Natal e Ano Novo, o mesmo que fez planos junto
comigo e Petrova sobre o casamento ideal; é difícil
acreditar que aquele homem agora usa a imagem da
filha mais nova para suprir uma necessidade
financeira.
Nunca é tarde para nos surpreendermos com
as pessoas. Merda!
Devagar, meu coração vai voltando ao
normal, a respiração desacelera aos poucos. Eu fiz
outra vez, afastei Lara. Por tanto tempo considerei
suas atitudes egocêntricas e mesquinhas, mas eu
sou pior. Como posso querer que confie em mim
quando eu mesmo não confio nela?
— É melhor eu ir embora — diz olhando
para os lados. Quer fugir de mim, mudar de
assunto. — Vou lá dentro pedir um táxi, não trouxe
meu celular.
— Por que ele faria isso, Lara? — Entro na
frente dela, pousando a mão no antebraço. —
Mikhail colocou tudo a perder. Vou conversar com
meus irmãos. Não se trata apenas de nós dois.
— Agora você acredita em mim? —
desdenha. Seus olhos dançam com fogo e fúria; ela
puxa o braço e me enfrenta.
Não é hora para mergulhar em sentimentos
e detalhes, mas a imagem da sua raiva me
transborda em sentimentos confusos. É bom e
incitante, instiga e enche de medo. Gostaria que ela
fosse sempre assim. Que não abaixasse a cabeça
nunca. Lara combina com a petulância, ela combina
com a força.
— Você não pode me culpar — justifico. —
Ouviu o que ele disse, eu não sabia que seu pai
tinha se transformado nesse tipo de executivo.
— Você não sabe de muitas coisas, Ivan! —
Lara grita. Um segurança nos observa de longe e
faço sinal com o dedo indicador de que está tudo
bem.
— Então me conta — murmuro mais perto
dela.
— Sabe por que eu não conto, Ivan? Você
nunca acreditaria em mim. Não acreditou antes, não
acreditou agora e não vai acreditar nunca. Eu estou
sozinha.
Lara funga, balança a cabeça e passa a mão
no rosto. Nem parece que nossa tarde estava
fluindo muito bem até minutos atrás. Toda vez que
estamos juntos surge alguma coisa para reabrir as
feridas e ressuscitar nossos pecados. A gente se
mutila, mas Lara parece a única a sangrar todas as
vezes.
— Desculpe. — É tudo o que tenho para
dizer.
— Não precisa. Não se force. — Os carros
passam de um lado para o outro e a música
continua animada dentro do clube. — Preciso saber
o que pretende fazer agora.
— Como assim?
— Vai falar com Mikhail? Quer cancelar
tudo? Eu preciso saber.
Estagno com a resposta ideal no meio da
garganta. É aquele impulso protetor que me
impediu de recusar o acordo da primeira vez no
restaurante, especialmente agora que eu sei sobre
Mikhail ter negociado com outras pessoas.
Não quero desistir — e não vou. Mas
também não posso esquecer.
— Vou conversar com meus irmãos,
Vladimir ainda deve estar na empresa. Vamos falar
com seu pai, entender quem mais está envolvido
e…
— Vai fazer isso hoje? — interrompe. —
Vão falar com Mikhail hoje? — Eu poderia jurar
ter ouvido uma nota de ansiedade em seu timbre.
— Sim — garanto, achando muito estranha
sua preocupação com o pai. — Hoje, por quê?
Ela nega com a cabeça tristemente.
— Já vou indo — diz apenas, a voz ainda
rouca pelo choro.
— Eu posso te levar para casa — ofereço,
uma pontada atingindo meu peito.
— Casa? — Sorri, ainda mais derrotada que
antes. — É melhor eu não ir para casa hoje.
Sem dizer mais nada, Lara volta a caminhar
até o clube.
Ela simplesmente vai.
E eu simplesmente fico.
A vida tem essa mania de nos mandar para
caminhos diferentes.
Espero até que seu corpo pequeno
desapareça da minha vista e entro no carro. Sinto
vontade de chorar, de desaparecer. Meu peito arde
de dor e arrependimento e tristeza e revolta. Uma
bagunça. Estou revoltado com o mundo, comigo
mesmo, com Lara e Petrova, com meus irmãos.
Sinto raiva de sentir raiva o tempo todo, de ser
impulsionado a não acreditar em Lara quando o
desejo mais atrativo é ouvir seu lado, superar e
seguir em frente.
Mas sei o que preciso fazer no momento:
começar a entender essa teia de aranha. E o
primeiro a me dar respostas será Vladimir.
Ligo o carro e faço todo o caminho até a
empresa com facilidade, o movimento do trânsito é
bem inferior nos finais de semana. Meu irmão não
deveria trabalhar hoje, mas é um viciado que não
consegue viver de outra forma.
Paro na entrada do estacionamento
exclusivo e desço ali mesmo. Um funcionário corre
até mim, um pouco surpreso, mas apenas jogo a
chave e grito instruções sobre guardar o carro na
vaga correta. Não quero perder tempo, já fiz isso
demais.
Atravesso direto a área da recepção até o
elevador. Os números dos andares passam devagar
e vou ficando aflito, talvez meu irmão saiba de
alguma coisa, talvez prefira interromper o
matrimônio.
Toda essa incerteza me corrói.
— O que aconteceu? — pergunta
imediatamente quando as portas se abrem,
percebendo minha apreensão.
O presidente desencosta da cadeira, solta
alguns papéis sobre a mesa e espera eu me
aproximar. Diferente dos dias habituais, as cortinas
estão escancaradas e a iluminação vespertina colore
o escritório com uma cama de amarelo brilhante.
— Você disse que não era sobre dinheiro —
falo cheio de ansiedade. Sento-me na cadeira em
frente à mesa. — No primeiro dia, quando cheguei
de viagem, você me disse que não se tratava apenas
de dinheiro, esse casamento, esse acordo.
Vladimir respira fundo, pensativo. Abre
uma gaveta e retira um envelope amassado de
dentro. Encara aquele invólucro e depois olha para
mim. Conheço meu irmão, sei pela forma como
contrai o maxilar que não vai ser uma conversa
agradável.
— Não é sobre dinheiro — repete sem se
prolongar.
— Você precisa me contar. — Bato com a
palma da mão sobre a mesa. — Isso está ficando
ridículo! Todo esse suspense, qual o motivo disso?
— Eu vou contar, Ivan, fica calmo. O que
aconteceu para você decidir voltar nesse assunto?
— Vladimir é o maldito tipo de pessoa que precisa
ser convencida. Como presidente já se acostumou
com a quantidade de pessoas que imploram.
Eu implorarei se chegar a tanto, não me
importo com porra nenhuma.
— Encontrei um cara hoje. — Começo, mas
nenhum esforço esconde a ansiedade. — Um
empresário ou qualquer porcaria. Não importa o
que ele faz, não sei e nem tive interesse em saber.
Mas o sujeito me abordou, perguntando se
tínhamos aceitado a proposta da empresa Ihascov,
falando que tinha interesse caso não quiséssemos.
Parece que Mikhail fez a oferta para mais pessoas,
não sei quantas.
— Foi o que eu imaginei. — Meu irmão
não esboça nenhuma surpresa. Passa os dedos sobre
os olhos e remexe no conteúdo do envelope. Várias
folhas se agitam em suas mãos, ele seleciona
algumas e me estende três. — Faz pouco tempo que
descobrimos. Foi Andrei, na verdade.
Pego os documentos e começo a ler. São
contratos com pedidos de demissão, todos
assinados por Mikhail. Um mais revoltante que o
outro, firmados em datas diferentes,
empreendimentos diferentes. Ele pagou uma
pequena fortuna para cada uma dessas pessoas
demitirem Lara dos cargos que ela chegou a
exercer nas respectivas empresas.
— Não entendo, por que ele faria isso?
— Tem mais. — Vladimir me estende mais
duas folhas; são dados bancários da universidade
local. — Ele parou de pagar a universidade dela.
Por um tempo Lara continuou estudando, mas
quando descobriu a dívida já era tarde. Hoje em dia
esse é o valor final do débito.
— Como você descobriu isso?
— Andrei, como eu disse. Lara chegou a
trabalhar para um dos nossos sócios. Uma coisa
levou à outra, já que o pai dela interferiu, até que
descobrimos. Não foi muito difícil para ele levantar
esses documentos. São cópias, como pode ver.
Já tinha percebido, os originais devem estar
com os verdadeiros envolvidos. É revoltante o que
o ser humano é capaz de fazer por dinheiro. Sinto-
me sujo por ter pensado que ela abandonou a
faculdade por capricho. Sou o pior de todos, só
julguei e desconfiei de Lara. Não ofereci o
benefício da dúvida.
— Você tinha que ter me contado isso
antes! — reclamo, absorvendo os absurdos contidos
em cada linha.
— Ivan, você jamais teria acreditado —
pondera.
— É isso o que todos pensam de mim
agora? Que não confio em ninguém?! — grito,
jogando as folhas em cima da mesa. Estou
revoltado, mas não com o meu irmão. Comigo.
— Além do mais — continua, ignora meu
descontrole —, não temos nada contra ele, pelo
menos nenhuma prova original. A gente está no
escuro aqui. Chegamos a cogitar que Lara estivesse
envolvida em algum esquema de estelionato, mas já
descartamos a possibilidade. Não encontramos
nada incriminatório contra nenhum dos dois.
— Mas mesmo assim aceitaram negociar
com ele?
— Sempre fomos próximos deles, Ivan, são
amigos da nossa família há anos. Você pode não
gostar da Lara, mas ia se casar com a irmã dela!
Não é sobre dinheiro, foi isso o que eu quis dizer. É
sobre amizade, sobre fazer o que é certo, mesmo
que para isso precisemos percorrer caminhos
errados.
Petrova. Não pensei nela antes de vir para
cá, só queria entender o que estava acontecendo. A
única que perambulava por meus pensamentos era
Lara. Mas agora compreendo por qual motivo
Andrei parece não gostar de Mikhail,
provavelmente era isso o que pretendia me contar
ontem antes de Roman nos interromper.
— E o que pretende fazer? — Volto para a
cadeira. — Não podemos arriscar.
— Temos que conversar com Mikhail, ele
precisa, pelo menos, parar de fazer a mesma oferta
para tantas pessoas. Mas para isso você tem que
decidir se vai continuar com os planos, Ivan. Pode
não ser sobre dinheiro, mas o nome da empresa está
envolvido. No fim das contas, não deixa de ser um
bom negócio.
— Eu vou! — digo com convicção. Nem
consigo pensar na possibilidade de ela se casar com
outro qualquer, ainda mais com tantos interessados
e essa confusão sendo tecida pela mente
irreconhecível de Mikhail.
Vladimir acena, sua mão volta a se
precipitar para dentro do envelope. Ele retira uma
última folha, parece mais velha do que a outra — o
papel amassado indica que já foi manipulado
muitas vezes por mais de uma pessoa e o amarelado
é um efeito colateral do tempo.
— Já que estamos colocando todas as
verdades a limpo, tem mais uma coisa que preciso
mostrar.
Algo na forma como desvia o olhar, como o
papel se agitando fosse o único som que paira no
ambiente, me faz pensar duas vezes antes de esticar
minha mão. Este é o momento que fez Vladimir
hesitar desde o começo.
A primeira coisa que noto é a assinatura de
Petrova no final na folha, cheia de floreios e curvas.
Reconheço cada contorno, cada letra delicada.
Quase posso imaginar seus dedos ágeis deslizando
com a caneta sobre a folha.
Diferente dos outros, esse é verdadeiro,
assinado do próprio punho da minha falecida noiva,
com data de cinco anos atrás, precisamente um mês
antes do acidente. Logo ao lado do nome dela,
estão as assinaturas de Mikhail Ihascov e Dimitrio
Livannov.
No topo da página, escrito em letras
grandes, eu leio:
— Contrato de unificação das empresas.
CAPÍTULO 10
Ameaça Camuflada

TRINTA E NOVE ligações não atendidas. Meu


celular vibra dentro da bolsa com mais um
telefonema de Mikhail. Não tive coragem de voltar
para casa, pois já sabia o que me aguardava depois
que Ivan e os irmãos fossem tirar satisfações com
ele. Dormi em um hotel humilde, a única
alternativa para evitar um confronto desnecessário
e doloroso.
Dema também me ligou algumas vezes e só
desistiu quando jurei que estava tudo bem. No
momento em que fui me despedir, ela
imediatamente percebeu que alguma coisa estava
errada. Para fugir dos seus questionamentos, fiz
aquilo que faço de melhor: sorri e acenei.
Duas horas depois do embate com Ivan no
clube, comecei a receber mensagens, ligações e e-
mails do meu suposto pai. Já era de se esperar que,
após ser contatado pelos senhores Volkiov, seu
próximo movimento fosse me procurar em busca de
explicações. A essa altura, talvez já tenham
cancelado o acordo. Não sei. Mas quase um dia
inteiro se passou e ele ainda não desistiu.
O táxi estaciona na porta do orfanato. Não
posso fugir de Mikhail por muito mais tempo. Só
preciso ver Iago antes de enfrentar a realidade. As
crianças que me reconhecem correm para me
receber; algumas acenam de longe mesmo,
entretidas em suas próprias brincadeiras. Apenas
me identifico para a secretária de plantão, uma
jovem simpática que parece se importar muito
pouco com o trabalho burocrático — um evento
fortuito para mim, que não me encontro com a
disposição de sempre para conversas
desnecessárias.
Meu mundo está se fechando outra vez,
devagar as possibilidades esvaem e meus sonhos
ficam distantes.
Domingo é dia de visitas, muitos pais e
mães em potencial perambulam entre as crianças,
alguns emocionados, outros confusos. Geralmente
as crianças pequenas ficam muito animadas, pois
não entendem a agitação. Mas as crianças maiores,
como Iago, já sabem que cada visitação pode ser
definitiva.
Haverá o dia em que um casal caminhará
por esses mesmos corredores e levará Iago antes de
mim. Quando isso acontecer, eu perderei tudo.
Cumprimento algumas funcionárias, elas
têm o olhar um pouco apreensivo, hesitam quando
pergunto por Iago. Alguma coisa estranha está
acontecendo, penso com o peito começando a doer.
Apresso meus passos para o quarto de jogos e
brincadeiras, onde ele deve estar de acordo com as
instruções.
Assim que alcanço a porta e olho para o
lado de dentro, minha cabeça gira e tudo ao meu
redor escurece. É ele, sentado ao lado do meu
menino, sorrindo e brincando. Mikhail é um sujeito
grande, tem uma saúde impecável, e parece muito
mais jovem do que se espera de alguém na idade
dele. Com seu terno escuro e a barba cheia, é uma
peça completamente fora de contexto no meio das
cores alegres que enfeitam o cômodo.
Nem mesmo a morte me causaria tanta dor
e desespero.
Iago sorri para ele, mostrando um brinquedo
qualquer. Os dois conversam e trocam brincadeiras
um com o outro. O menino não se dá conta do que
está acontecendo, da forma como a simples
presença de Mikhail simboliza uma ameaça
camuflada.
Preciso sobreviver ao afogamento iminente
no meio do meu oceano de temores. Respirar
debaixo do medo. Preciso ser forte. Não posso
deixar transparecer todo o pavor que me corrói de
dentro para fora. Não posso dar mais munição para
a máquina de destruição que é a mente doentia
desse homem.
Respiro fundo, arrumo o vestido e sorrio.
Eu sorrio.
A mágica sempre acontece entre mim e
Iago, como se ele pudesse sentir a minha presença.
Primeiro, ergue a cabeça dourada, percorre os olhos
na direção da porta e, depois, abre um sorriso
paradisíaco quando vê a minha aproximação.
Não me deixo vacilar diante do olhar
avermelhado de Mikhail ou quando esboça um
sorriso debochado de quem se acha superior e
triunfante. Abaixo para abraçar Iago e, quando
aqueles braços pequenos me envolvem, todo o
mundo parece um lugar mais feliz e iluminado.
— Sentiu saudades de mim? — ele pergunta
cheio de certezas, ciente e orgulhoso de que minha
saudade aumenta a cada segundo que estamos
longe um do outro. Faz bem a ele quando confirmo
meus sentimentos, uma espécie de antídoto contra a
insegurança.
— Muita! Achei que não fosse sobreviver
tamanha saudade que senti! — respondo. Encosto
meu nariz no dele, é nosso jeito único de
demonstrar carinho. — Não vai me apresentar seu
amigo novo?
Iago arregala os pequenos olhos verdes, as
sobrancelhas erguidas são meros resquícios de fios
louros. Sua animação parte meu coração, rasgando-
o em duas metades castigadas. Estou presa em uma
jaula e trouxe Iago junto comigo — dois ratinhos
cativos em uma armadilha mortal.
— Olha o que esse moço me deu! —
exclama, apontando na direção de um carrinho
moderno com controle remoto.
Eu poderia vomitar. Ao invés disso, digo:
— Que lindo, você agradeceu o presente?
— Sim! — Mikhail diz em seu lugar. —
Muitas vezes, Iago é um menino muito inteligente.
Calma, preciso ficar calma.
— Sou mesmo, já aprendi até a dirigir,
olha! — Iago começa a ligar o brinquedo,
comovido demais para notar minha tensão.
— Cuidado para não atropelar as pessoas —
brinco com ele.
— Não machuca nada! É só de brinquedo,
Lara. — Iago olha para mim como se eu fosse um
pouco burra. Ele não é muito bom na interpretação
de figuras de linguagem.
O carrinho dá uma volta na sala, desvia das
outras crianças e depois volta até nós. Eu me sento
em uma cadeira perto de Mikhail, mas não tenho
coragem para sustentar seu olhar, seria arriscado
demais na frente de Iago. Meu corpo parece
antecipar o perigo, calculando nossa distância, o
tempo que levaria para suas mãos alcançarem meu
braço, os objetos mais perigosos e pontiagudos ao
nosso redor.
— Iago, por que não conta para Lara sobre
aquela nossa conversa? — Mikhail sugere,
maculando o nome da minha criança.
— Lara! — exclama Iago como se alguém
tivesse apertado um botão, restaurando uma
lembrança muito interessante. — Sabe de uma
coisa? Eu quero muito conhecer o Japão! Tem um
monte de coisas legais, muitos jogos e um monte de
lugar divertido para visitar!
Não.
Não, isso não pode estar acontecendo. A
raiva e o ódio começam a se acumular dentro de
mim, a força que preciso fazer para não chorar é
grande demais, desestabiliza-me completamente.
— O mundo é muito grande Iago — diz
Mikhail sugestivamente. Cada entonação de sua
voz esconde as intenções de me ameaçar. — Você
iria adorar conhecer o Japão, talvez até moraria lá
para sempre. Mas tem outros lugares legais no
mundo. Estados Unidos, Brasil, França!
— Iago — chamo. Isso tem que parar. —
Sabe de uma coisa? Preciso de um favor. Será que
você pode me esperar lá no quarto? Eu preciso
muito conversar com esse moço.
— Conversa de adulto? — Seu semblante
entristece.
— Sim, mas é bem rapidinho. Daqui a
pouco encontro com você, pode ser?
— Poder até pode, mas eu não queria não.
— Sincero, como sempre.
Bagunço seus cabelos mais um pouco, eles
nunca param arrumados de qualquer forma. Beijo
sua testa, sentindo um aroma que me faz lembrar
morangos vermelhos e maduros no fim da estação.
Entrego o brinquedo para que parta mais depressa.
Ele corre na direção da saída, a bermuda preta cria
uma linha de contraste definitiva abaixo dos seus
joelhos magros e a camisa amarela com estampas
de diferentes espécies de dinossauros parece
espalhafatosa demais. No arco da porta, ele
interrompe sua retirada, despedindo-se ao balançar
a mão, e desaparece corredor afora.
Toda minha compostura vai embora,
deixando claro o que não via antes: a única coisa
que me mantinha controlada era aquela criança. O
falso sorriso em meu rosto se desfaz e minhas mãos
tremem com a vontade de proteger Iago desse
monstro.
— Cuidado — adverte, farejando meu ódio
como um cão do inferno. — É melhor sentar ao
meu lado como uma boa menina, nós temos muito
o que conversar.
— Não tenho nada para conversar com você
— retruco com os dentes trincados e minhas mãos
fechadas em punho. — O que está fazendo aqui? O
que você quer com Iago?
— Nada, não quero nada com ele. —
Mikhail enfia um dedo na gola da gravata vermelha
e puxa o tecido afrouxando o nó. — Você não
atendeu nenhuma das minhas ligações, sabia que
em algum momento teria que ver o menino, só
decidi esperar acontecer.
— Não acredito em você — sussurro
chegando mais perto dele. Faço um esforço terrível
para não gritar, é assim que as desgraças têm início.
— Você não me deu outra escolha, Lara.
Não fiquei nada feliz com o que você fez. Cheguei
a desconfiar que aquele papel poderia estar com
você, mas andava cooperando tão bem que
descartei minhas suspeitas.
— Papel? — Balanço a cabeça, confusa. —
Do que você está falando?
— Não se faça de idiota comigo! —
Mikhail perde o controle, seu rosto enrubesce com
toda a raiva nociva acumulada desde o dia anterior.
— Estava com você, eu tenho certeza! Entregou o
documento para eles.
Ele levanta com um movimento
desengonçado, bufando e praguejando. As poucas
crianças na sala não percebem nosso confronto.
Errei ao supor que sua ira tinha relação com o fato
de Ivan ter descoberto sobre a oferta que ele fez
para outros empresários, parece estar se referindo a
outra coisa. Uma coisa que eu não tenho
conhecimento.
— Não estou entendendo — explico
devagar, pesando as palavras em busca de
preservação pessoal.
— O contrato entre Petrova e Dimitrio
Livannov! Faz anos que eu procuro a cópia de
Petrova e estava com você o tempo todo, sua
espertinha.
Do que diabos ele está falando?
No fundo da minha cabeça, uma dor
gradativa se inicia. À medida que as palavras
dançam e ecoam, qualquer possibilidade de
compreensão se torna mais distante. Petrova e
Dimitrio? O mesmo crápula que aparece nas mídias
rodeado por mulheres e vive envolvido em
polêmicas ilícitas? O mesmo que recebeu a oferta
para se casar comigo caso os Volkiov recusassem?
— Mikhail — balbucio —, não sei de
documento nenhum, pelo amor de Deus, estamos
em um orfanato! Agora não é hora para isso.
Minhas palavras não surtem efeito. Ele
agarra meu braço e os dedos ásperos pressionam
com força, enterrando-se na pele. Dói, aquela dor
com a qual já estou acostumada. Uma coisa que
Mikhail nunca teve foi criatividade, seus gatilhos
para o meu medo se transformaram em reproduções
premeditáveis — nem por isso menos apavorantes.
— Vou mandar o menino para o Brasil —
ameaça —, o que acha? Ou, quem sabe, para algum
país menor, menos conhecido. Você nunca
encontraria o pirralho novamente.
As lágrimas transbordam como uma
cachoeira de mágoas. A vida me moldou para
suportar, para ser firme. Muralhas podem ser
derrubadas, porém, enquanto os tijolos se
mantiverem firmes uns sobre os outros, ainda
haverá esperança; eu sou a minha própria muralha,
e Iago é meu conjunto de tijolos. Ameaçar Iago é
como sentenciar a minha destruição.
Mikhail sabe como me atingir quando os
danos físicos não são suficientes.
Alguma coisa chama a atenção das crianças
em outra sala e elas se levantam e saem correndo
para o cômodo ao lado, deixando-nos sozinhos. É
melhor assim, mesmo sendo pequenas, não posso
arriscar que um rumor se espalhe.
— Por que eu esconderia um contrato
qualquer entre Petrova e Dimitrio? — indago
calmamente. — Eu nunca me envolvi nos negócios
da sua empresa.
— Continua não cooperando. — Solto um
gemido quando ele gira os dedos na pele do meu
braço. — Você sabia que Petrova tinha desistido do
casamento com Ivan, que ela queria se casar com
Dimitrio e que eu aceitei.
— O quê? Não! Do que você está falando?
— Puxo o braço, mas ele é forte demais e faz outro
movimento doloroso. Se eu forçar demais, o
estrago será pior, então desisto de lutar. — Não, eu
nunca soube nada a respeito disso. Petrova amava
Ivan, sempre amou! Por que ela faria isso?
— Petrova tinha o coração mole — declara
impaciente. — Minha filha era um anjo. Ela mesma
quem pediu para cancelar o acordo, disse que não
tinha coragem. Continuava sendo um bom negócio
e eu podia aceitar uma nova proposta se era o que
faria minha filha feliz.
Não…
Minha irmã era esse tipo de pessoa que
pensava nos outros, se preocupava com os
sentimentos da humanidade. Ela amava Ivan.
Amava!
— Por que ela se casaria com Dimitrio? —
pergunto ainda descrente.
— Foi escolha dela, mas isso você já sabia!
— Eu não sabia! Ela nunca me contou, não
sei de contrato nenhum — persisto.
A pressão em meu braço diminui até ele
finalmente soltar. Os lábios de Mikhail tremem,
está transtornado. Se não estivéssemos em um
ambiente público, minhas chances de defesa
estariam seriamente comprometidas. Esfrego a
região dolorida, o tom vermelho escuro denuncia
um novo hematoma pela manhã.
— Vladimir Volkiov ligou ontem — rosna,
exibindo os dentes como um animal. — Falou
qualquer coisa a respeito de estar receoso com o
acordo, já que eu fiz propostas para mais
empresários. Já entrei em contato com Serguei,
aquele bastardo viciado em jogos. Eu tinha que
garantir o meu, o que ele esperava? — Fico em
silêncio enquanto ele resmunga mais para si do que
para mim, não é do feitio de Mikhail compartilhar
seus planos. — Depois veio com essa história de ter
o contrato entre Petrova e Dimitrio. Como está
assinado, eles querem saber se ainda possui algum
valor. Um contrato de cinco anos que estava
desaparecido! — debocha. — É claro que não tem
valor algum.
Então é verdade, existe mesmo um
documento, uma história perdida no tempo, nas
entrelinhas da morte de Petrova.
— Como eu disse, não sabia que a minha
irmã pretendia se casar com outro. Acho que ainda
não acredito.
— E eu não acredito em você. —
Apontando o dedo indicador na altura do meu
nariz, ele grunhe: — Se eu descobrir que teve
alguma coisa a ver com esse documento chegando
nas mãos dos Volkiov, não vai ter tempo nem para
se despedir do pestinha, entendeu?
Fixo meus olhos nos dele quando balanço a
cabeça para cima e para baixo, confirmando que,
sim, eu entendi. Um dia isso vai mudar, um dia não
precisarei me render à subjugação. Odeio a pessoa
que me tornei, odeio a submissão imposta por
eventos que fogem do meu controle. Não tenho
ninguém e por minha culpa a única pessoa que
desejo ao meu lado pode ser enviada para longe.
Suprimi meus sentimentos por Ivan no
passado, pois não tinha coragem de ferir a minha
irmã que todos idolatravam — os dois se amavam e
eu seria a rainha malvada que cobiça o príncipe da
mocinha indefesa. No entanto, analisando a
situação agora, parece que talvez ela já não o
amasse mais. Talvez nunca tenha amado de
verdade. Esse sentimento não acaba da noite para o
dia.
Não é justo que ela tenha se desfeito do
amor por Ivan com tanta facilidade enquanto eu o
tenho amado por dias e noites há anos!
— Não vai ser preciso — respondo
vagamente, somente porque Mikhail é o tipo de
homem que necessita de garantias. Ele gosta da
atenção.
É o fim do espetáculo. Assisto enquanto ele
arruma o nó da gravata, apresentável como se nosso
conflito nunca tivesse acontecido. Mikhail passa
por mim com passos firmes, fungando e
reclamando. Só quando sai da sala e desaparece do
meu campo de visão, volto a respirar e desabo em
cima da cadeira com os cotovelos apoiados nos
joelhos e as mãos na testa. Posso escutar meu
coração, o sangue correndo pelas veias
desordenadamente.
Não faz sentido!
Petrova amava Ivan com todas as suas
forças, essa sempre foi uma certeza na minha vida.
Foram feitos um para o outro, esse amor era maior
e mais importante do que o meu. Amor, ele é
mesmo assim tão frágil? Não consigo entender
como minha irmã pôde concordar com isso. Ela
teria coragem de abandonar Ivan por um homem
como Dimitrio?
Pensando bem, Dimitrio nem sempre foi um
homem desprezível. Ele costumava ter uma
reputação razoável, não se envolvia em polêmicas,
embora o temperamento cafajeste tenha sempre
acompanhado sua carreira. Não faz muitos anos
desde que se entregou aos vícios noturnos e
começou a construir uma reputação preocupante.
Eu calcularia, talvez, cerca de cinco anos.
— Vamos fazer uma promessa — disse
Petrova há muito, muito tempo. — Devemos apoiar
uma à outra sempre, nos erros e nos acertos.
Juramos fidelidade eterna, juramos que
nada jamais destruiria nosso amor de irmãs, mas eu
me lembro de ter suspeitado da sua súbita
necessidade de apoio. Se for mesmo verdade o que
Mikhail disse, talvez ela estivesse se referindo a
esse acordo quando me sugeriu essa promessa.
Talvez ela soubesse que as pessoas a condenariam
por trocar o noivo por outro homem.
Mesmo assim, eu aceitei. Fiz a minha
promessa.
Petrova também, mas não cumpriu com a
parte dela na única vez que pedi ajuda.
De qualquer forma, o passado não existe
para ser lamentado, mas sim para não repetirmos os
mesmos erros. Não posso me entregar até colocar
os olhos sobre esse documento. Até estar de frente
com Dimitrio e ouvir da sua boca que minha irmã
queria se casar com ele.
Um casal com duas crianças entra na sala e
me olham preocupados, só então percebo que estou
chorando. As lágrimas geladas deslizam pelos meus
olhos como gotas de chuva na janela.
Levanto depressa, limpando o rosto. Abro o
corriqueiro sorriso para esconder meus temores e
sigo direto para o quarto em que Iago me aguarda.
No meio do caminho, faço pequenos esforços para
não evidenciar os momentos desagradáveis.
Meu menino está brincando com um grupo
de crianças, exibindo o carro cheio de mecanismos
tecnológicos. Apesar da minha repulsa diante do
brinquedo, não posso deixar que os estilhaços da
minha vida continuem caindo em cima dele.
Fico por ali, conversando de vez em
quando, mas minha cabeça está longe demais,
confusa com dúvidas e inseguranças. Tenho certeza
de que Mikhail ainda não acabou e sua partida
serviu apenas para adiar um encontro ainda mais
danoso. Quanto antes começar, mais rápido vai
acabar, esse é o meu lema mais melancólico.
Iago está tão feliz que nem reluta quando
me despeço mais cedo que o combinado. No fim
das contas isso é o mais importante, que ele
continue sorrindo.
Na frente do orfanato, uma limusine preta
está estacionada à minha espera. Mikhail garantiu
meu retorno. Enquanto o motorista abre a porta
para mim, um segurança se comunica com alguém
pelo celular. Não tenho como escapar dessa vez,
mas também não tinha essa pretensão. Entro no
carro sem cumprimentar os funcionários e fixo
meus olhos na estrada.
No percurso, passamos sobre a Ponte
Pitoresca, flanqueada pelas águas do Rio Moscou,
brilhantes e aprazíveis aos olhos. O grande arco
vermelho sobe sobre o carro e tão logo fica para
trás, esquecido junto com vegetação baixa e verde à
margem do rio.
Seguimos direto para a mansão como se eu
estivesse presa em um filme romântico da década
passada, mas no meu roteiro só há espaço para o
terror e o drama. Uma tensão paira na propriedade,
um espírito agourento e lamurioso que ouve as
calamidades que acontecem dentro da casa.
Enquanto subo os degraus da bela escadaria
vitoriana, ouço os gritos e o barulho de vidro se
estilhaçando. Faz muito tempo que esses barulhos
deixaram de me amedrontar. Enquanto eu não
puder me livrar dessa realidade, aceito-a com a
dignidade que me resta.
O cenário quando atravesso as portas
ornamentadas do saguão principal é devastador.
Fragmentos de vidraçarias e porcelanas se
espalham pelo chão, os móveis estão revirados e
uma mesa de centro jaz, quase irreconhecível.
Minha mãe chora copiosamente no alto da escada,
assistindo a fúria de Mikhail. Uma garrafa de
whisky se agita de um lado para o outro enquanto
ele chuta um armário cheio de pratarias.
— Chegou quem estava faltando — grita
Mikhail sem cessar o ataque ao móvel. Os objetos
de prata e vidro tilintam e ecoam através das
paredes como um cântico lúgubre. — Achou que
podia fugir outra vez?
— Não — respondo com o máximo de
calma. Minha melhor estratégia é não alimentar seu
descontrole.
— Sabe o que é melhor nessa história toda?
— Ele ingere um gole da bebida, seu rosto
vermelho indica o quão fora de si já está. Deve ter
começado a beber no caminho e não parado mais.
— Você é igualzinha à sua mãe ali, uma vadia.
— Vou para o meu quarto. — Tento
caminhar na direção do andar superior e minha mãe
aproveita para se retirar. Ela sempre me abandona
quando tem a oportunidade. Agora que cheguei,
não precisa mais se preocupar, pode ficar dopada
com remédios e dormir até o dia seguinte.
Não a culpo, por vezes desejei fazer o
mesmo.
Uma cadeira se espatifa contra o corrimão
da escada, poucos centímetros distante do meu
corpo. Grito com o susto e paro de andar.
— Seu quarto? Você não tem nada aqui!
Respiro fundo e prendo a respiração quando
ele vem na minha direção. Já não usa mais o terno
caro, apenas uma camisa branca desabotoada e a
calça social. Ergo o braço para aguentar o baque e
proteger meu rosto, mas ele me segura pelos
cabelos e puxa até que eu seja obrigada a curvar
para trás e cair sobre os joelhos.
— Você acha que aqueles Volkiov se
preocupam com você? — sibila com sua ironia
bêbada. — Ivan sente nojo de você! Pensa que eu
não estou sabendo? Amanhã, quando desistirem do
acordo por causa daquele maldito documento, vou
fechar um negócio melhor com Dimitrio. Ele está
disposto a pagar o preço.
— Está me machucando — reclamo
pateticamente. Suas palavras me ferem mais do que
a agressão.
— Não devia ter enviado aquele documento
para eles! — grita perto do meu rosto, o hálito de
álcool me causa náuseas.
Não aguento.
— Já disse que não sei nada sobre isso! —
grito de volta, cansada dessa humilhação. Ele ergue
a mão com uma velocidade monstruosa. Antes de
descer, uso o primeiro argumento que me vem à
mente: — Tenho que ir na reunião! Não lembra? Se
me machucar, vai ser pior para você. Alguém pode
desconfiar.
Sua mão ainda abana o ar no alto. Fecha os
dedos e ensaia um ataque com o punho fechado,
mas desiste.
A imagem é a única coisa que importa, foi
para proteger a própria reputação que ele aceitou
criar a filha de outro. Uma bastarda que foi gerada
do adultério. Aceitar a imagem de homem traído
era inconcebível para Mikhail, preferiu aprisionar e
atormentar a esposa psicologicamente e me
amaldiçoar com o próprio sobrenome.
Mikhail me joga para o lado, proferindo
alguns palavrões. Chuta objetos destruídos pelo
caminho. Consegui convencê-lo dessa vez.
Houveram situações anteriores em que não tive
tanta sorte.
Muitas vezes pensei em procurar a
imprensa, destruir Mikhail e seu mundo de fantasia.
Mas isso foi antes de Iago, antes da oportunidade
de conseguir minha liberdade.
Passado é passado, escolhas ruins são
escolhas ruins, não adianta lamentar pelo que não
pode ser mudado.
Sem perder tempo, fico de pé e corro até o
meu quarto. A porta trancada não é garantia de
nada, mas até o dia seguinte não acho que corro um
perigo real. Passo a chave na fechadura e giro duas
vezes antes de seguir direto para o chuveiro.
Minhas ações acontecem como se eu as
assistisse de longe, lentas e confusas. Registro a
água quente caindo nas minhas costas, o
relaxamento que percorre meu corpo, afastando os
pensamentos. Na verdade, mal sou capaz de refletir
ou entender qualquer coisa.
De volta ao quarto, deito só de toalha sobre
a cama, cansada. Esgotada. Sinto-me quebrada por
dentro. As cortinas balançam na frente da janela
aberta, translúcidas e suaves na dança com o vento.
Um belo quarto para se viver de mentiras.
Minha vida é uma mentira.
Um nascimento de mentira, um pai de
mentira. Um sobrenome que não me pertence. Uma
irmã que me virou as coisas, que tinha todas as
oportunidades que me foram negadas e que, mesmo
assim, não cumpriu uma única promessa.
E o amor, esse amor perigoso e que nunca
foi meu, que me machucou desde o começo e,
apesar de tudo, continua tão forte como nunca.
Ivan foi o primeiro a se preocupar comigo, a
me notar. Nossos olhos se encontravam como se
algum magnetismo nos atraísse. Sua atenção e
proteção despertaram esse sentimento. A carência
confundiu meu coração. Mas não posso rastejar
para sempre — não posso rastejar por Ivan. Ele não
confia em mim, nunca quis confiar.
Nunca me deu uma chance de redenção.
Mesmo assim, enquanto o sono me
consome e os estrondos no andar de baixo se
transformam em sonidos distantes, fico pensando
como vai ser doloroso para ele quando descobrir
que Petrova talvez não o amasse de verdade.
Que o amor dele talvez fosse uma mentira
também.
Eu deveria ficar feliz com a perspective de
vê-lo provando do próprio veneno. Eu deveria
mesmo ficar feliz. Mas olho para dentro do meu
coração e não encontro nada. Nem prazer, nem
alegria, nada. Porque, se for mesmo verdade, talvez
isso o leve ainda mais para a escuridão.
A mesma em que estou presa agora.
CAPÍTULO 11
Sentimentos Inomináveis

LEIO E RELEIO o documento pousado diante de


mim. Já perdi a conta de quantas vezes repeti esse
mesmo processo. A sala de reuniões se encontra
vazia, cheguei bem antes que o horário combinado,
pois precisava de um tempo sozinho.
Meu celular vibra sobre a mesa, o som do
aparelho se debatendo contra a madeira indica outra
tentativa da minha mãe para me contatar. Não tive
coragem de falar com ela ainda — com certeza
dona Tatiana vai querer respostas que eu não tenho
no momento.
Falta pouco para que os outros cheguem,
não sei como vou me controlar. Está muito claro
para mim, não preciso recorrer à uma negação
humilhante. Petrova pretendia se casar com outro,
unir a empresa de seu pai com um sobrenome que
não me pertence, isso é um fato.
Tentei chorar, mas as lágrimas não vieram.
Dentro de mim há apenas um vazio doloroso. É
como se aquilo que estava consumindo a minha
carne tivesse finalmente desaparecido e só restasse
um buraco disforme e doentio no lugar.
Fecho os olhos e tento me recordar do
sorriso dela, sempre calmo e tímido, mas não
consigo materializar a lembrança na minha mente.
Continuo tentando e tentando, até que uma imagem
começa a surgir, mas não é Petrova. São olhos
profundos em um rosto sensível, molhados por
causa do choro.
É o olhar de Lara.
Isso mexe comigo mais do que o papel na
minha frente, é muito mais penoso. Além de não
perceber seu sofrimento, eu o intensifiquei. O ódio
que alimentei como uma praga dentro de mim
consumiu toda a minha percepção de mundo.
Fiquei fechado para as possibilidades que a vida
tinha a oferecer. Agora não resta mais nada.
Gostaria que Petrova estivesse aqui. Nós
nunca brigamos, não sei como era o tom da sua voz
quando se exaltava ou quais tons tingiam suas
bochechas nos momentos de raiva. Nosso
relacionamento era brando, cheio de diálogos
sagazes e noites banhadas com música clássica.
Tenho certeza que, mesmo diante de uma traição,
eu não seria capaz de brigar com ela. Não de
verdade, não de uma maneira cruel.
Não existia ciúmes, não brigávamos, não
provocávamos um ao outro. Nós apenas existíamos.
Eu a contemplava e quando a perdi as alterações
emocionais me atingiram em cheio, simplesmente
porque minha balança estava quebrada. Era isso o
que Petrova fazia comigo: estabilizava e guiava.
As assinaturas no documento zombam dos
meus demônios. Petrova tinha decidido se casar
com outro homem e não encontro nenhum
sentimento repulsivo com relação a isso. Mas assim
que penso na forma como ela morreu, naquele
momento exato em que a última ligação trouxe a
notícia de que Petrova havia se envolvido em um
acidente após ser despejada pela irmã, meu coração
se aperta, sangra e chora.
Vladimir abre a porta e seus olhos claros
espelham surpresa, a postura determinada me
lembra como eu o admiro por continuar de pé
mesmo depois de tudo o que já enfrentou. De como
tirou a nossa família do fundo do poço e, sozinho,
reergueu a empresa em pouco mais de um ano após
a morte do nosso pai.
Enquanto eu estava fugindo dos meus
problemas particulares, Vladimir permaneceu com
a cabeça erguida à frente dos negócios como tem
feito desde quando assumiu a presidência. É meu
irmão mais velho e eu o amo demais. Mesmo
agora, enquanto sou um resquício apagado do
homem que já fui um dia, é ele quem me inspira e
dá forças.
— Chegou cedo, Ivan. Dormiu um pouco?
— pergunta.
— Dormi como uma pedra, na verdade. —
Balanço a cabeça, achando surreal demais. — É
estranho, sabe? Eu devia estar com raiva, triste, não
sei. Eu devia estar sentindo alguma coisa, não?
— Nunca passei por nada parecido com a
sua história, não tenho como opinar. — Vladimir
caminha até a extremidade principal da mesa e
posiciona-se no assento reservado para o
presidente. — Talvez o tempo tenha curado suas
feridas e você não se deu conta ainda.
— Não acho que seja o caso, é mais
complicado do que isso. Guardei por tantos anos
ressentimentos pela morte dela, pela forma
repentina como aconteceu. Mas descobrir sobre
essa traição simplesmente não muda nada. Por
quê?
— Desculpe, irmão — diz, cruzando os
braços sobre a mesa. O cabelo preto e ligeiramente
lustroso está penteado para trás, seus olhos azuis
parecem um pouco menos brilhantes do que o
habitual. — Sou o pior conselheiro amoroso do
mundo. Não entendo nada sobre amor. O último
relacionamento sério que eu tive durou cerca de…
Bem, nunca tive um, na verdade.
— Os Volkiov não têm sorte para o amor —
brinco, embora tenha lá suas verdades.
— Maldição de dona Tatiana — Roman diz,
aparecendo de repente. Não se deu ao trabalho de
vestir um terno, apenas camisa social sem gravata,
os dois primeiros botões desabotoados deixam
aparecer o início tatuagem que esconde por baixo.
— Nossa mãe é uma bruxa, eu sempre soube. É por
isso que deseja tanto que a gente se case com
alguém, ela já sabe que somos amaldiçoados e que
vamos sofrer bastante por amor.
— Você tem consciência de que está
insinuando que nossa própria mãe deseja que a
gente sofra? — pergunta Vladimir enquanto
organiza seus materiais sobre a mesa.
— Claro! — Parando atrás da minha
cadeira, Roman apoia-se no encosto acolchoado. —
Ela quer mesmo, já que ficou grávida a maior parte
da vida e todo aquele discurso sobre sermos filhos
ingratos que vocês já conhecem. É por isso que
nunca vamos ter relacionamentos sérios e
duradouros.
— Eu tenho um relacionamento sério. —
Andrei entra na sala de reuniões com várias pastas,
blocos e documentos; é o único preparado
judicialmente para a reunião.
— Tatiana odeia sua namorada, Andrei.
Não vai dar certo. — Roman segue para a própria
cadeira e senta diante de mim, retira uma caneta do
bolso e começa a bater na mesa em uma espécie de
manifestação nervosa. Ele detesta esse tipo de
programa burocrático. — Qual é mesmo o nome
dela?
— Evgenia. — Quem responde é Vladimir.
— A única bruxa aqui é você, Roman. Pare de
jogar praga no namoro do nosso irmão. Talvez dê
certo.
— Todos estão de prova que ele
disse talvez. Nem o presidente acredita que o seu
namoro tenha futuro, Andrei. — Roman é
imparável. — Desista.
Confiro o relógio somente para confirmar
minhas suspeitas: eles chegaram muito tempo antes
do horário marcado, até mesmo Roman, que odeia
participar de reuniões.
Durante o tempo que morei sozinho em
Nova Iorque, poucas coisas fizeram mais falta do
que a amizade e companheirismo entre meus
irmãos, a certeza de sempre estarmos presentes
quando o outro precisa de apoio. Dizem que os
russos são frios, que não demonstramos muito dos
nossos sentimentos, mas a verdade é que somos
certeiros e fiéis aos laços familiares e às pessoas
que nos importam.
— Chega de se torturar com isso. — Andrei
estica a mão por cima do meu ombro; não espera
minha aquiescência e recolhe o contrato. —
Dimitrio Livannov confirmou que viria? — indaga,
passando os olhos sobre o papel.
— Sim — responde Vladimir com a atenção
voltada ao Volkiov mais jovem. — Devem chegar a
qualquer momento.
— Como você conseguiu isso? — questiona
com sua postura de advogado, seus olhos
averiguando cada linha dos termos. — Acho que
nunca perguntei.
— Svetlana — explica meu irmão mais
velho. — Aparentemente estava com ela desde o
acidente. Disse que manteve alguns pertences de
Petrova arquivados, não entendi qual foi o
envolvimento dela na elaboração desse contrato
para que tivesse acesso ao documento original.
Quando nos encontramos, apenas entregou o
envelope e pediu para avisar a você que sentia
muito.
— As duas eram muito amigas — reflito —,
embora eu me recorde qualquer coisa sobre terem
se afastado por conflitos de personalidade. Petrova
era muito reservada, enquanto Svetlana…
— Era o cão! — Roman lembra.
— Isso não importa, de qualquer forma —
Andrei pondera, sentando-se ao lado de Roman. Ele
franze as sobrancelhas, coloca a folha em cima da
mesa junto com seus pertences e me encara com
feições confusas. — Você parece muito bem.
— Me sinto bem — confesso outra vez,
dando de ombros. — Não sei como explicar.
— Já procurou um psicólogo, Ivan? Você
precisa de um — Roman ironiza.
— Você também precisa de um — devolvo.
— Quantos anos eles têm? — Andrei
pergunta para Vladimir. Meu irmão mais velho faz
uma careta que não condiz com o teor do nosso
encontro. — Não temos muito tempo antes que eles
cheguem, vamos ao que realmente importa.
Precisamos falar sobre Lara.
Instantaneamente, meu peito se enche de
aflição e angústia. Escutar seu nome desencadeia
aquela sensação de instabilidade, como se eu me
tornasse um redemoinha de confusão e raiva e dor.
Ela não sai mais dos meus pensamentos. Pergunto-
me se algum dia chegou a sair.
— Como assim? — questiono.
Olho de um para outro. Abandonaram a
postura de irmãos e amigos. São homens de
negócios agora, sérios e perfeitos em tudo o que
fazem e investem. Mas estão hesitantes, temerosos.
— Estamos suspeitando que talvez… —
Vladimir faz uma pausa e inspira antes de
continuar. — Talvez Lara esteja sendo coagida. —
Uma pontada aguda ultrapassa meu crânio como a
perfuração de uma faca com lâmina dupla. — Ou,
na pior das hipóteses, que compactue com algum
esquema ilícito protagonizado pelo pai dela. Mas
eu apostaria na primeira opção.
— Como chegaram a essa conclusão?
— Controle, eu preciso me controlar. — Ela
repetiu inúmeras vezes que aceitava as condições
do matrimônio, que não se importava.
— Eu mostrei o acervo que Andrei
levantou, todas as dívidas, as demissões. Isso é
muito estranho.
Aquela raiva insana vai se contorcendo no
meu peito, o único sentimento que sou capaz de
reconhecer quase imediatamente. Não me faz bem
pensar em Lara como esse tipo de pessoa que se
deixa levar por coisas tão soberbas e humilhantes.
Esse é o ponto. Lara é como um desafio que
não consigo desvendar, ela sempre me intrigou com
seu temperamento decidido, afrontoso. O que me
perturba sobre o acidente não é apenas o quanto eu
a culpo, mas como eu gostaria de não culpar.
Essa contradição me desespera. No fundo,
meu desejo era que ela negasse minhas acusações.
É por isso que sou sempre impelido a desestabilizá-
la — se ela mostrar o seu pior, então minha repulsa
será sempre justificável.
Não me orgulho nem um pouco disso.
— Você acha que ela está sendo
chantageada? — Roman se informa, já com os
olhos estreitados. Ele tem a fama de perder o
controle mais rápido; eu o invejo nesse momento.
— Andrei, como abordamos esse assunto
com o pai dela? — Vladimir indaga.
— Não abordamos — diz o caçula
pacientemente. — Essa é uma acusação séria
demais, sem a colaboração da Lara seria arriscado.
Se ela negar, não teremos nada. No mínimo
seremos processados.
Acerto um soco sobre a mesa, a necessidade
de descontar em alguma coisa se sobressaindo ao
profissionalismo. Como eu fui tão cego?
— Vocês precisavam ter me falado isso
antes!
— E o que você teria feito, Ivan? — Meu
irmão mais novo é direto, encara-me de igual para
igual. — Você foi o primeiro julgar o envolvimento
dela com a morte de Petrova, não se lembra disso?
De dizer que a odiava?
— Talvez eu não tivesse sido tão idiota —
resmungo. — Talvez ela confiasse em nós se eu
fosse melhor.
— E no que você acredita agora? Por acaso
sua opinião mudou magicamente? — Andrei
desdenha, seus olhos castanhos claros me
fulminando. — Você não a culpa mais, não sente
ódio por ela?
— Eu não sei o que sinto! — Minhas
palavras soam como grunhidos. — Revolta,
raiva. Eu não sei!
— Então é melhor descobrir ou ela nunca
vai confiar em nenhum de nós, especialmente em
você.
Confirmo com a cabeça. Andrei é como
aquela voz na consciência que nos avisa sobre
todas as escolhas corretas, mas que ignoramos na
maioria das vezes. Uma reunião que era para ser
sobre Petrova acabou se transformando em um
debate sobre Lara e os sentimentos confusos que
tenho por ela.
O barulho de passos chama a nossa atenção.
Estão chegando e ficamos os quatro de pé.
Vladimir ergue o rosto e se transforma no
presidente Volkiov, o homem mais rico e convicto
do país; poderoso é o termo que ele gosta de usar.
A porta se abre. Primeiro entra um Mikhail
sorridente, um pouco desarrumado com a barba
emaranhada. Atrás dele vem Lara, e basta um olhar
para que meus pensamentos se retorçam dentro da
cabeça. As dúvidas junto com o ódio, a revolta com
a esperança. Ela parece cansada, abre um sorriso
mínimo de quem não queria estar aqui. Nenhum de
nós queria.
Sou tomado por uma vontade repentina
de tocar a pele das suas costas, uma região que
tanto tenho explorado em nossos últimos encontros.
Seus cabelos caem sobre os ombros, escondendo
pelo pescoço esguio que costuma minar a minha
concentração.
— Boa tarde! Desculpem a demora —
Mikhail fala alto, um pouco exagerado. Agora que
conheço um pouco do seu caráter, tenho vontade de
jogar tudo para o alto e interrogar os dois sobre
nossas suspeitas. — Dimitrio deve estar a caminho.
— Querem saber de uma coisa? — Roman
desvia da mão que Mikhail estende para
cumprimentá-lo e balança a caneta na mão. —
Acabei de perceber que não vou conseguir
participar disso. É melhor eu ir embora.
Lara outra vez olha para mim, como se eu
pudesse explicar o que está acontecendo. Sorrio
para tranquilizar o clima, ao mesmo tempo em que
me encho de orgulho. Roman conhece a própria
personalidade, sabe que vai acabar agredindo
alguém e prefere se retirar para garantir que nada
saia do controle, incluindo ele próprio.
O que Roman não sabe é que não vai fazer
diferença. Eu estou no limite de um abismo,
sedento por um pouco de pandemônio.
Roman não espera permissão, sai da sala e
bate a porta no processo. Estamos no único cômodo
presente no andar presidencial que divide espaço
com o escritório de Vladimir, embora façam parte
do mesmo ambiente. Atrás do presidente, as
cortinas abertas expõem a capital, um enorme
formigueiro de seres humanos rodeados por cores e
vivacidade.
Meu pai tinha o costume de passar horas
observando essas janelas, dizendo que a gente
precisa olhar para a vida dos outros de vez em
quando para termos certeza de que a nossa continua
sendo real, já que os problemas não são seletivos.
Andrei deposita o contrato no centro da
mesa enquanto Vladimir deixa a sua posição para
apertar a mão de Mikhail que continua estendida e
humilhada.
— Roman tem assuntos para resolver, não
se incomodem — mente.
Nesse instante, a porta volta a se abrir.
Dimitrio Livannov não é muitos anos mais
velho do que Vladimir, mas a vida boêmia vem
cobrando seu preço. O rosto manchado pelos vícios
lhe atribui um aspecto desgastado, porém, de
acordo com os boatos, ele não deixou de ser
cobiçado pela população feminina — o dinheiro e
os investimentos estéticos são suficientes para
manter uma aparência popular o bastante.
Ele coça a barba rala, oferece um
cumprimento mudo ao meu irmão e acredito que
seja o máximo de respeito que conseguirá
demonstrar. À princípio, não me incomoda sua
presença ou o fato de que ia se casar com Petrova
pelas minhas costas. Não me incomoda quando
inicia uma averiguação de rosto em rosto,
ignorando-me de propósito.
Mas quando ele direciona toda sua atenção
para Lara, com um semblante de escárnio,
imediatamente levanto, coloco-me entre os dois e
retribuo a repulsa.
— Senhor Livannov — digo, procurando
nele o que a minha mulher encontrou que pudesse
valer sua pureza.
— Ivan — diz ele, desfazendo-se das
formalidades.
É apenas isso, um confronto silencioso, não
nos tocamos, não sorrimos. Mikhail se aproxima e
Dimitrio é forçado a desistir do nosso embate
visual primeiro. Meu sogro — ex-sogro, atual
sogro, não tenho certeza — abre os braços e puxa
Dimitrio como se fossem grandes amigos. Não me
lembro de já tê-los visto juntos antes.
Voltamos para os nossos lugares. Toco o
cotovelo de Lara e indico para ficar do meu lado na
disposição das cadeiras. Alguma coisa em Dimitrio,
na forma como fecha os punhos e vela os
movimentos dela me faz ficar alerta.
— Boa tarde aos senhores, obrigado por
atenderem ao nosso pedido. — Vladimir é o único
de pé; precisa cumprir com as formalidades. —
Entendo como o assunto é delicado, mas espero que
todos os envolvidos estejam dispostos a contribuir
para os esclarecimentos dos fatos. Andrei, por
favor, poderia explicar a precedência do
documento?
— Chegou até nós um contrato de
unificação assinado por Petrova Ihascova, Mikhail
Ihascov e Dimitrio Livannov. É o mesmo acordo
proposto à nossa empresa, porém datado de cinco
anos atrás. Queremos averiguar a validade desse
documento.
— Você sabia disso? — pergunto
diretamente para Lara, preciso da sua confirmação.
— Vai acreditar se eu disser que não? —
Gosto da resposta, que me devolva o
questionamento com sua própria pergunta afiada.
— Sim — garanto.
— Esse contrato não tem mais validade
nenhuma — Dimitrio interpela. Contorce os dedos
sem deixar de encarar Lara, sobretudo ao dizer: —
Petrova morreu.
— Mikhail, nossa preocupação é com o
acordo atual — explica Vladimir, sentando-se. —
Estamos firmando um contrato exatamente igual a
esse com a sua empresa. Há cinco anos, se não
fosse aquele trágico acidente, acreditávamos que
você tinha um compromisso conosco. Petrova e
Ivan estavam noivos. Esse contrato é uma traição.
— Petrova não amava você. — Dimitrio se
recosta na cadeira, tem um sorriso de lamentação.
— Mas ela tinha um coração bom demais para
admitir.
— Vocês dois tinham um caso? —
pergunto, precisando saber a história completa.
O ambiente se torna denso, como se o ar ao
nosso redor pudesse medir a tensão. Os olhos de
Dimitrio me fazem lembrar da coloração do lodo
acumulado sobre um túmulo e talvez seja essa a cor
que recobre a sepultura de Petrova nos dias atuais.
Nunca voltei a visitar sua cripta.
— Você acha que ela faria isso? — Ele
fecha as mãos em punhos. — Se sim, então não a
amava de verdade.
Procuro a raiva por seu ultraje, mas não
encontro nada, então digo:
— Quer que eu acredite nisso? Que ela
tinha escolhido você e, mesmo assim, nunca
fizeram nada?
— Fizemos muitas coisas — explica
asperamente. — Meu erro foi ser paciente demais.
Ela queria terminar tudo com você primeiro, que
era muito importante mesmo não te amando mais.
Bem, ela nunca se entregou para mim, se é isso o
que quer saber. Não por falta de tentativas da
minha parte, claro.
Já imaginava. Petrova era boa, eu conhecia
muito da sua ética, seu caráter. Foi o coração
bondoso que me conquistou antes de todas as suas
outras qualidades. Ainda assim, não consigo
acreditar que os dois simplesmente… se amavam.
— Vocês iam se casar — constato. —
Estava forçando Petrova?
Dimitrio fica de pé em um salto, bate com
as palmas da mão na mesa, o rosto vermelho e
trêmulo me fulmina.
— Eu a amava! Muito mais do que qualquer
um aqui! — grita. — Ela era tudo para mim, você
não a merecia! Petrova me amava. Queria se casar
comigo, ser minha de verdade.
Descontrolado e instável, Dimitrio é como o
meu reflexo no espelho. Era isso o que eu via todas
as manhãs, um homem perdido e amargurado. Sinto
um pouco de pena, empatia. Petrova nos destruiu.
— O contrato não tem validade — Mikhail
garante, retira um lenço do bolso e limpa o suor da
testa. — Mas eu entendo se quiserem cancelar o
acordo.
— Não vamos cancelar acordo
nenhum, merda! — grito. Lara se encolhe ao meu
lado. Ela não deveria estar aqui escutando enquanto
outras pessoas decidem seu futuro.
Um riso de menosprezo corta a sala de
reuniões.
— Está louco para se casar com a assassina
— diz Dimitrio.
Um segundo.
Esse é o tempo que demoro para chegar até
ele. Alguém grita, mãos tentam me segurar. Um
soco e Dimitrio recua segurando o queixo, rindo
histericamente ao perder o equilíbrio.
— Chega! Isso é uma reunião! — Vladimir
exige, mas transparece a mesma raiva que arde em
mim.
— Admita que pensou o mesmo que eu,
Ivan. — Os olhos de Dimitrio se enchem de
lágrimas. Caído no chão, ele encosta na parede e
aponta com o dedo indicador para Lara. — Nunca
pensou que deveria ter sido ela naquele carro?
Hesito. Já pensei?
Não tenho certeza, talvez?
Não, acho que não.
Procuro por Lara no meio do meu
afogamento de terror. O rosto outra vez manchado
com lágrimas; estou cansado de assistir sua dor, de
contribuir com tanto sofrimento.
Eu a culpei, descontei minhas angústias
nela. Mas nunca desejei que fosse ela naquele
acidente.
Nunca.
— Não — respondo diretamente para Lara.
Ela precisa acreditar em mim dessa vez. — Não.
— Isso não está funcionando. — Andrei
toma o controle da situação e começa a ditar
algumas ordens. Ele não oferece nenhuma empatia
por Dimitrio e tenho certeza de que sua vontade era
fazer ainda pior do que eu. — Mikhail, o acordo
será mantido, mas não pode continuar fazendo a
mesma proposta para mais investidores. É arriscado
para nós.
— Isso foi antes de vocês aceitarem. —
Mikhail tenta se justificar, mas meu irmão já
desviou para o próximo alvo.
— Dimitrio, sua colaboração foi…
esclarecedora.
— Para o inferno com isso — desdenha.
Insiste em vigiar Lara com seu olhar acusador,
mantém os olhos fixos nela enquanto levanta com
alguma dificuldade e vai em direção à saída. — Eu
só queria conhecer pessoalmente o homem que foi
meu rival um dia, mas vejo que foi uma perda de
tempo. Vocês desperdiçaram a vida dela.
— Está testando sua sorte — ameaço.
— Lara — ele chama. Odeio o nome dela
saindo da boca desse cretino, odeio que me desafie.
Odeio que ela lhe dê atenção. — Nos vemos.
Avanço outra vez, mas Lara entra na frente
para me impedir, toca meu braço e captura meus
pensamentos.
— Não vale a pena — sussurra. — Deixe-o
ir.
— Se ele tentar falar com você… — As
possibilidades flutuam.
— Acho que isso é tudo, então? — Mikhail
parece satisfeito, não se envergonha do que fez, só
quer acabar com isso logo.
Petrova admirava seu pai e eu acabei me
apegando à certeza de que, se uma mulher como ela
tinha apreço por ele, aquilo só poderia significar
que era tão íntegro quanto a filha. Mas ao olhar
para ele, vejo que há muito a ser desvendado sobre
sua personalidade.
Não importa o que aconteça, vou descobrir
as intenções desse homem. Seja lá o que estiver
planejando, vou conquistar a confiança de Lara
outra vez e descobrir. Não importa quanto tempo
demore.
— Semana que vem enviarei nosso próprio
contrato — Andrei recolhe suas coisas e não dá
mais nenhuma atenção para Mikhail. — Lara —
chama —, gostaria de conversar com você, é
importante.
Lara busca a permissão do pai. O homem
concorda, nem um pouco satisfeito.
Isso nem deveria ser chamado de reunião,
durou apenas alguns minutos.
— Vou esperar no carro — comunica à
contragosto.
— Na verdade, tenho planos de sairmos
hoje — informo a Mikhail.
É uma mentira, apenas quero ter mais
tempo com ela. Também não é um pedido, eu vou
levar Lara comigo e não preciso que esse mentiroso
aprove. Ele afirma com a cabeça, fica um pouco
constrangido e acaba saindo sem se despedir
formalmente. Lara se afasta sem me olhar,
acompanhando Andrei porta afora.
Jogo-me na cadeira ao lado de Vladimir.
Minha cabeça dói.
— Você vai ficar bem — diz meu irmão em
uma tentativa de conforto.
— Eu sou ele — murmuro. Quero que
alguém entenda o que originou minha
agressividade. — Sou como Dimitrio. A forma
como ele olhou para Lara, como acusou e julgou.
Eu fiz exatamente o mesmo. Estou me sentindo um
monstro.
— Monstro? Não, Ivan, isso com certeza
você não é. Quer dizer, você julgou Lara, deduziu
que a culpa era dela. Mas aquele olhar, não. Você
nunca olhou para ela daquela forma, e
definitivamente não olhou hoje.
Com essa última declaração, Vladimir me
deixa sozinho, entregue a sentimentos que não
consigo nomear. Eu deveria sentir raiva de Petrova,
de Dimitrio, do universo e das constelações nas
quais nosso destino foi traçado.
Eu deveria.
Mas o único sentimento que me inflama é
esse que arde toda vez que penso nela.
Em Lara.
CAPÍTULO 12
A Gente Nunca Sabe

NUNCA SENTI TANTO medo na minha vida. A


forma como Dimitrio me olhou e o desprezo
canalizado em suas palavras consolidaram dentro
de mim um temor desconhecido até então.
O medo é um sentimento traiçoeiro, a gente
nunca sabe que sente até estarmos diante da
experiência mais assustadora das nossas vidas. Eu
achava que Mikhail era perigoso, mas Dimitrio
ativa meus instintos de proteção.
Sair daquela sala é exatamente o que eu
precisava. Caminho até o elevador em silêncio,
Andrei também não diz nada. Descemos apenas um
andar, os corredores me são familiares e revivem
lembranças da infância, de uma época em que rir
era muito mais fácil.
Andrei abre uma porta que tem o seu nome
estampado ao lado, entalhado com letras douradas
em uma placa de vidro. Tudo no interior da sala
revela um pouco da pessoa que ele se tornou. O
branco predomina no ambiente, proporcionando um
sentimento de paz, como se um pedaço do céu o
acompanhasse.
Ele indica uma das poltronas de canto. A
gente apenas senta ali, encarando o silêncio e
deixando todos os pensamentos ruins se esvaírem
aos poucos. Andrei respeita meu momento, não faz
perguntas. Já imaginava que ele planejava apenas
me dar um pouco de espaço para respirar.
— Você lembra quando a gente se escondeu
no almoxarifado? — ele pergunta, ocasionando um
sorriso imediato no meu rosto.
— Seu pai ficou desesperado. — Vasculho
as lembranças; meu amigo é especial, faz meu
coração se aquecer. — Mandou trancarem todas as
portas, teve que pagar hora extra para todos os
funcionários que não puderam sair.
— Meu pai sempre foi exagerado com a
nossa proteção. Vladimir também ficou
transtornado.
— Roman queria bater em você! Mas a sua
mãe apareceu e colocou todos nós de castigo,
incluindo o seu pai.
— Faz tanto tempo. — Andrei apoia os
cotovelos sobre seus joelhos e balança a cabeça,
inundado com memórias daquele tempo distante. É
emocionante e triste, minha vida foi sempre uma
dualidade. — Está melhor?
Nego. Não me sinto melhor do que estava
antes de vir para cá, nem melhor do que ontem ou
do que qualquer dia posterior ao acidente que tirou
minha irmã de todos nós. Aquele homem a amava
de uma forma completamente diferente, a saudade
que sente dela estava exalando de um canto
obscuro da sua alma durante a reunião.
Foi uma experiência diferente conhecer
Dimitrio no meio dessa situação. O amor nem
sempre é uma força motriz imaculável, ele destrói e
corrompe. Não tenho certeza se admiro esse
sentimento, se desejo cultivá-lo dentro de mim.
Talvez, algum dia, o amor escondido no meu
coração se transforme em um flagelo ainda maior.
Quando esse dia chegar, no que eu vou me
transformar?
— Estamos aqui, Lara. Todos nós, como
antigamente. — Andrei se esforça para mostrar seu
apoio, provar que posso confiar nele. — Conte
comigo para se esconder sempre quando precisar.
— Vou me lembrar disso — respondo com
sinceridade.
Desconfio de que Andrei tenha as suas
suspeitas sobre o que aconteceu naquele dia, mas
sua fidelidade à promessa que me fez de manter
tudo em segredo impede que compartilhe com outra
pessoa. Mas o ser humano tem os seus limites,
algum dia ele pode atingir o dele e eu preciso estar
preparada.
O elevador denuncia a chegada de alguém,
mas já sei quem é mesmo antes de poder vê-lo.
Ivan aparece e os olhos se encontram com os meus
fazendo perguntas mudas cujas respostas eu
conheço. Depois, ele volta sua atenção para o irmão
mais novo e entra na sala conosco.
— Obrigado, Andrei — diz. — Você
sempre sabe a coisa certa a ser feita.
— Ninguém sabe qual é a escolha certa até
termos acertado de verdade. A gente precisa errar
para poder acertar.
— Estou cansado de errar — Ivan confessa,
mas não é para o irmão que dedica essas palavras.
Ivan parece estar lidando melhor do que eu
imaginei com a situação. Petrova, a mulher que ele
sempre amou e defendeu, tinha sentimentos
profundos por outro homem. Eu supus que isso o
destruiria, que tornaria toda a dor ainda pior, mas
não.
Não acredito que seja sua verdadeira reação,
talvez esteja escondendo a dor da mesma forma
como escondo a minha.
— Isso é muito bom. — Andrei se ergue,
aperta carinhosamente o ombro de Ivan e caminha
para a grande cadeira de trabalho. — Vou trabalhar
no contrato, achei melhor sermos nós a redigi-lo,
então podem ir fazer o que quer que tenham
planejado, ou não tenham planejado.
Despedimo-nos; é um alívio indescritível
não precisar retornar para casa no mesmo carro que
Mikhail. Ivan me conduz através de andares e
corredores sem fim até chegarmos ao
estacionamento onde discutimos no dia do jantar
beneficente. Parece ter sido há mil anos, mas foram
apenas alguns dias.
Ivan faz todo o percurso sem conversar
comigo, mas sua postura está diferente.
Constrangido, eu diria. A forma como me defendeu
das palavras cruéis de Dimitrio e se colocou entre
nós me alimenta com esperanças cegas.
Entramos no carro e logo ganhamos as ruas
de Moscou. Ivan conduz o veículo sem se importar
em dizer nosso destino. Mil perguntas serpenteiam
meus pensamentos. Algo mudou entre nós, uma
frágil barreira foi rompida e isso me deixa
desconcertada.
— Obrigada por me defender — murmuro
enquanto o cenário da área central da cidade vai
ficando para trás.
— Ainda não estou controlado suficiente
para falar sobre aquilo. — Os dedos de Ivan se
apertam no volante, a borracha emite um ruído
esganiçado como um ranger de dente. — Só de
pensar nisso fico com vontade de voltar lá e socar a
cara dele outra vez.
Gostaria de entender Ivan, mas é difícil
demais. Tem algumas vezes em que preciso me
lembrar sobre o ódio que sempre alegou sentir por
mim. Quando ele diz coisas como essa, fica difícil
controlar meu coração estúpido, que bate forte por
esse homem mesmo com as tantas desventuras que
nos assolam.
— Eu acredito em você — confesso. Ele
merece saber. — Quando disse que nunca desejou
que fosse eu no lugar da minha irmã.
— Lara, eu fiz e falei coisas que você não
merecia ouvir. Não vou dizer que está tudo bem,
que consegui superar o passado, mas isso nunca
passou pela minha cabeça.
Mas já passou pela minha, penso, sem
coragem para falar em voz alta. Eu trocaria de lugar
com Petrova se isso pudesse trazê-la de volta.
Apesar dos seus erros, ela precisou se moldar às
expectativas da sua realidade como filha mais
velha. Mesmo às custas de trair a minha confiança,
ela lutou por aquilo que acreditava.
Do lado de fora, a paisagem vai ganhando
tons de verde. Na última vez que deixei a cidade foi
para visitar o túmulo da minha irmã. Não pude
assistir ao seu enterro, mas fiz minha própria
despedida silenciosa durante muitas noites
silenciosas.
Uma sensação desconfortável perpassa a
postura de Ivan, como se ele não estivesse
realmente no controle das próprias ações. Por fora
ele parece bem, acredito que não tenha percebido
como toda essa história de traição o abalou. Apesar
de não entender a instabilidade de suas emoções,
conheço quando essas alterações de humor e
pensamentos entram em conflito dentro dele.
Tudo isso me machuca. Se Petrova não
tivesse morrido, os dois teriam uma vida estável,
mas agora Ivan é apenas essa montanha-russa
descarrilhada, não consegue dar nome ao que sente
ou perceber o que esses sentimentos representam.
Ele está triste e ainda não se deu conta, age
como se tudo estivesse bem.
— Para onde estamos indo? — pergunto
com cuidado.
— Longe — responde, sorrindo de uma
maneira engraçada.
— Você não faz ideia de onde está indo —
deduzo.
— Longe — insiste.
— Ivan!
— Não, não sei para onde ir! Quero apenas
dirigir e esperar a minha cabeça esfriar.
Viajamos por cerca de meia hora até
finalmente Ivan desacelerar no meio da estrada. Ele
entra com o carro em um descampado lateral, onde
um restaurante praticamente vazio na beira da
estrada exibe uma placa com todo tipo de refeição
escrita.
— Não tenho ideia do que eu estou fazendo
— explica, confuso consigo mesmo. Tem o olhar
distante e vazio, como se não estivesse falando para
mim.
— Foi o que eu disse! Olha, vamos comer,
conversar e voltar. — Toco seu braço, uma atitude
sem intenção alguma, apenas meu corpo agindo por
conta própria.
Os olhos de Ivan se enchem de lágrimas e
elas transbordam enquanto olha para a minha mão.
Ele cruza os braços sobre o volante, esconde a
cabeça e deixa o choro predominar, pairando como
um cântico funesto.
— Não tenho ideia do que eu estou
fazendo — repete entre um soluço e outro.
Meu rosto também fica molhado. Não é
somente a minha armadura que se partiu; Ivan
esteve se protegendo com suas próprias defesas e
agora tudo está ruindo. Nós estamos despedaçados,
perdemos as coisas boas e não ganhamos nada para
suportar os danos.
— Não chora — peço, mesmo que não
consiga controlar minhas próprias lágrimas.
— Todo esse tempo eu me tranquei dentro
de uma bolha de rancor e lamentação, e ela nem me
amava! — Ele atinge um soco no painel, dispara a
buzina, fica mais nervoso. Retira o cinto de
segurança, se atrapalha e xinga enquanto luta para
sair do carro.
Parece uma espécie de crise nervosa. É
como se só agora estivesse se dando conta das
coisas. Faço o mesmo, dou a volta e me encosto ao
seu lado na lataria do automóvel de luxo que não
combina com o ermo da estrada.
— É normal se sentir traído, mas já faz
muito tempo, Ivan. — Continuo, confortando seu
sofrimento.
Ele ergue a cabeça, olha-me como se
tentasse decifrar um enigma. Movimenta a mão,
toca meu rosto com calma, ficando de frente para
mim. Enxergo a tristeza que se esconde dentro dele,
é como uma criatura maligna que precisa mais do
que o tempo para ser destruída.
— Não é isso, Lara — diz com a voz rouca
pelo choro ainda presente. — Eu estou me sentindo
como o próprio demônio.
— Do que você está falando, Ivan? —
sussurro, estarrecida com sua mão na minha pele.
Ivan levanta a cabeça, encara o céu limpo e
azul que se estende acima de nós. Reflete por
longos segundos, até dizer com a voz segredada:
— Quando eu ouvi Dimitrio te acusando
por causa da morte da sua irmã, pude ouvir minha
própria voz dizendo aquelas mesmas palavras. Eu
sou como ele.
Afasto a vontade de aumentar a distância
entre nós, mesmo não enxergando qualquer cenário
no qual essa conversa se torne favorável aos meus
interesses ou aos meus sentimentos.
— Não posso te confortar quanto a isso,
Ivan. — As palavras flutuam para longe de mim,
tirânicas e nada confortáveis. Mas é exatamente
isso o que ele precisa, o único caminho para a
superação. — Mas você não é como ele,
Dimitrio…
— Não fala o nome dele — interrompe, os
lábios trêmulos.
Por mais doloroso que seja para mim
assistir seu eterno sofrimento por causa da minha
irmã mais velha, não consigo me afastar, não tenho
força de vontade e amor próprio suficientes para
virar as costas, por mais que ele me tenha feito
sofrer por tanto tempo.
Por mais que isso me queime, consuma e
destrua.
— Aquele homem não é como você.
— Depois de tudo o que eu disse, das coisas
que fiz, você ainda me ajuda. — Ele recua para o
lado, encosta as costas no capô do carro e inclina a
cabeça para trás. Dentro do restaurante, apenas uma
garçonete com cabelos ralos assiste à nossa cena,
mascando um chiclete despreocupadamente. —
Não tenho ideia do que estou fazendo — diz pela
terceira vez.
— A gente nunca sabe Ivan, eu também não
sei.
— Seu pai está te obrigando? — questiona
de repente; a pergunta me assusta e fragiliza. Não
esperava a mudança repentina de assunto.
— Como assim? — Faço-me de
desentendida para ganhar tempo. Que tipo de
situação bizarra é essa em que ele me confronta no
meio de lugar nenhum?
Ivan limpa as lágrimas remanescentes com
o dorso da mão. Aproxima-se de mim, tem uma
fúria secreta lutando com todas as emoções ao
mesmo tempo. Tento me afastar, seu olhar
perscrutador parece atravessar as camadas do meu
corpo, enxergar a minha alma.
— Ele está forçando você com esse
contrato, Lara?
Desvio o rosto, tento me afastar, pois tenho
medo que minhas reações denunciem a verdade.
Ivan impede minha passagem, coloca o próprio
corpo na frente do meu caminho. Segura meu braço
com uma delicadeza que impressiona, não estou
acostumada com o toque calmo na mão de um
homem.
Aquele arrepio dos seus dedos roçando um
lugar sensível do meu cotovelo dura pouco. Ivan
alcança o lugar exato em que, outrora, Mikhail
lesionou com sua brutalidade; gemo com
sobressalto da dor.
É instantâneo, Ivan se assusta e me liberta.
A camisa de mangas compridas esconde as marcas,
mas quando eu encaro seus olhos sei imediatamente
que ele percebeu. Ivan puxa meu braço e ergue o
tecido devagar. Eu poderia recusar, impedir, mas
isso só aumentaria suas desconfianças.
O hematoma aparece, uma marca com
vários tons diferentes de marrom, vermelho, roxo e
verde. Ivan é como um livro detalhado, suas
expressões entregam cada reação como se fossem
palavras escapando das páginas: confusão, dúvida,
compreensão e raiva, exatamente nessa ordem.
— Quem fez isso? — Não olha para mim,
continua fulminando a mancha.
— Ninguém, Ivan. É só um machucado —
minto, como já menti outras vezes. Sei lidar com
essa parte, quando alguém desconfia e me
questiona. — Eu sou muito desastrada.
— Merda nenhuma. Quem fez isso, Lara?
— insiste, o tom que utiliza é cortante.
Estamos muito perto, seus olhos continuam
vermelhos em decorrência de todas as emoções
recém-vividas. Esse é o pior momento possível
para essa conversa. Ivan não pode descobrir. Já está
desconfiado de Mikhail, com ódio do mundo,
descontrolado e despedaçado. Não posso me
transformar em mais um gatilho de suas emoções.
— Ivan, você está sendo exagerado. Precisa
se acalmar, não está pensando direito.
Mas ele não desiste, sequer parece me
ouvir. Usa os braços para rodear o meu corpo, quer
ter o controle da situação. A última vez que
estivemos assim tão próximos foi quando fingiu
que ia me beijar. Minha respiração se confunde
com o ritmo da respiração dele, nossos corpos,
próximos demais, poderiam se tocar com apenas
um singelo movimento. Ivan inclina o rosto para
frente, encosta a própria testa na minha com os
olhos fechados.
— O que está acontecendo com você, Lara?
— murmura. — Não mente para mim. Eu sei que
tem alguma coisa errada com o seu pai, ele não
parece mais o mesmo Mikhail que eu conhecia. Sei
que essa marca não foi causada por uma queda, sei
que você nunca aceitaria um acordo matrimonial
para privilegiar a empresa. Você não é assim, o que
está acontecendo? Você está me deixando louco.
— Não, Ivan. Petrova deixou você assim,
não eu!
— Isso não tem nada a ver com ela — diz,
abrindo os olhos. À luz do dia, suas íris castanhas
cintilam em vários tons mais claros, com pigmentos
dourados e brilhantes.
— Você está me confundindo, Ivan —
sussurro, desesperada. Seus lábios poderiam
capturar os meus se a situação fosse diferente, se
nossa vida fosse outra.
— Você também — sussurra de volta. —
Eu vou descobrir, Lara. Vou conquistar a sua
confiança de volta.
Não tenho resposta para sua afirmação.
Tudo o que eu queria era ter Ivan ao meu lado,
contar para ele todos os meus segredos, deixar que
cuidasse de mim como fez diversas vezes. Ele
acredita que sabe de alguma coisa, mas não
consegue perceber algo tão óbvio como a origem
do meu sofrimento.
Ele ainda não é capaz de supor que Mikhail
faria um machucado tão horrendo e miserável como
esse em mim, pois ainda associa a imagem dele ao
pai que era para Petrova. Caso contrário, seria
muito fácil decifrar a verdade.
Permanecemos na mesma posição por
menos tempo do que eu gostaria. Ivan se distancia,
libertando-me do cativeiro de braços e emoções.
Puxo a manga da camisa outra vez, como se
esconder as provas da agressão pudesse tornar tudo
menos real.
— Só me responde uma única coisa e eu
prometo não perguntar mais nada por enquanto. —
Não confirmo nem nego seu pedido, prefiro esperar
e deixar que o silêncio decida por mim. — Se eu e
meus irmãos tivéssemos cancelado o acordo hoje,
você se casaria mesmo com algum outro
investidor? Você aceitaria unificar sua empresa
com Dimitrio?
Essa é uma questão certeira, é a forma que
ele encontrou para ter certeza de que estou séria
sobre essa decisão. Mas não tenho como negar, se
algum dia em um futuro próximo Ivan e seus
irmãos decidirem que o investimento não vale a
pena, eu aceitarei me casar, mesmo que seja com
Dimitrio.
Eu preciso. Dependo do nome de Mikhail,
do seu dinheiro. Não é sobre mim, mas sobre Iago.
— Sim — respondo.
Um sorriso risca o rosto de Ivan, como se
eu lhe tivesse entregado um segredo importante.
Não sei como vai ser minha vida daqui para frente,
mas preciso ter cuidado; tenho que manter o foco
nos meus objetivos ou tudo terá sido em vão.
Ivan vai até a janela, debruça o corpo para
dentro do carro, retira a chave da ignição e começa
a subir um estreito caminho de cimento até o
estabelecimento humilde. A mulher na porta corre
para dentro, fingindo que não estava vendo nada.
Esse homem ainda vai me destruir e, ainda
assim, começo a andar atrás dele, um nó se
formando na minha garganta. No meio do trajeto,
ele para e olha para trás.
É lindo, o homem mais bonito que eu
conheci, o único que marcou o meu coração. Há
uma aura misteriosa que o envolve, um conjunto de
poderes vibrantes que exala da ponta do seu pé até
o alto da cabeça com cabelos castanhos claros.
— Isso não vai acontecer — determina. —
Nosso acordo vai ser mantido.
Ah, sim, definitivamente eu não o entendo,
mas nunca me senti tão acolhida ao seu lado como
no dia de hoje.
CAPÍTULO 13
Caçador de Tempestades

ENQUANTO LARA BEBE tranquilamente seu


segundo copo de kvass — tivemos sorte de
encontrar um lugar na beira da estrada
especializado no preparo artesanal da bebia nessa
época do alto verão —, pergunto-me se ela
desconfia dos pensamentos perigosos que
reverberam na minha cabeça como ecos perdidos
no interior de uma caverna assombrada.
Quebrado e perdido, é assim que me sinto.
No segundo exato em que ela me tocou com
carinho, toda a injustiça que lhe ofereci por todos
esses anos se transformou em um arrependimento
amargo. Era mais fácil culpar alguém do que
aceitar a verdade da perda. Ainda não descobri
todos os fatos da noite em que Petrova morreu, mas
não posso mais culpar Lara sem provas e certezas.
Depois de comer alguns petiscos no
pequeno estabelecimento na beira da estrada,
decidimos retornar, mas a verdade é que não quero
me despedir de Lara agora e ainda não encontrei
nenhuma desculpa para mantê-la perto de mim.
Mantenho uma velocidade mediana, atrasando o
máximo possível nossa volta.
Observar Lara é como assistir um furacão se
formando. O tipo de catástrofe natural que exibe
uma beleza cativante e destrutível ao mesmo
tempo. Da mesma forma como os caçadores de
tempestades se fascinam com o perigo, estou
fascinado por ela.
Meus olhos são capturados por seus
movimentos. Todas as vezes que percebo a forma
como demonstra dificuldade para erguer o braço,
sou tomado por uma raiva quase sólida. São marcas
de dedos, o grande punho de um homem. Algum
marginal teve a audácia de flagelar seu corpo e a
simples tentativa de imaginar essa cena faz toda a
minha existência ter ânsia de vingança.
Dessa vez não vou permitir que o tempo me
domine e consuma minha determinação como na
última vez. Não quero mais me arrastar e lamentar,
especialmente agora que entendo a realidade do
relacionamento que venerei durante a maior parte
da minha vida. Preciso agir, apoderar-me da
situação e conquistar a confiança de Lara
novamente.
Nesse dia, saberei quem foi o resto de lixo
humano que se atreveu a encostar o dedo imundo
nela.
Guio o carro para um trajeto mais longo.
Lara nem se dá conta que estamos demorando mais
tempo que o normal ou talvez também não tenha
pressa para voltar. Mikhail parece ter um tipo
estranho de relação desconfortável com ela.
De todas as coisas que conversamos, a que
mais me perturba é sua confirmação de que se
casaria com Dimitrio mesmo depois de tudo o que
ele disse na reunião. Não é como se ela estivesse
sendo apenas obrigada a fazer parte desse acordo, é
como se quisesse, como se precisasse.
Não vou permitir que Dimitrio ou qualquer
outro empresário tenha chances de ser persuadido
por essa unificação. A empresa de Lara será
unificada comercialmente com os negócios que
minha família administra e isso não vai mudar.
Em cima do painel, meu celular começa a
vibrar pela milésima vez. É como se uma luz
salvadora brilhasse no final de um túnel. Essa é a
desculpa que estive procurando, nunca fui tão grato
pela insistência da minha mãe como agora.
— Você pode atender e colocar no viva-
voz, por favor? — peço.
Lara olha para mim parecendo indecisa.
Depois da nossa discussão, conversamos sobre
coisas aleatórias e o clima ficou um pouco
esquisito. Se dependesse apenas de mim, teria
insistindo na conversa sobre quem fez aquilo e sua
decisão de se casar em benefício da empresa. Mas
não é mais sobre mim, preciso manter o controle ou
corro o risco de afastá-la ainda mais.
Ela estica a mão e segura o aparelho; o
nome da minha mãe brilha na tela sem parar e faço
um sinal afirmativo para que atenda. Assim que
aciona o botão da chamada, a voz de Tatiana no
outro lado é cortante como uma flecha.
— Ivan! Se eu descobrir que você foi
embora outra vez, juro pela alma do seu pai que
vou encontrar você até no inferno e te arrastar de
volta! — Junto com suas palavras gritadas, ela
ensaia um choro falso. — Você não voltou para
casa. Eu esperei e esperei, tentei ligar para você,
mas não se deu ao trabalho de atender sua própria
mãe.
— Mãe, estou indo para casa. Lara está
comigo — aviso um pouco constrangido. Lara
cobre os lábios para rir sem ser ouvida. —
Chegamos em dez minutos.
— Eu vi as fotos de vocês na internet. Só
assim eu tenho notícias dos meus filhos
desnaturados! É capaz de algum de vocês se casar,
ter filhos e netos e só depois eu ser
comunicada. Você tem que voltar para casa, pare
de me ignorar…
Encerro a chamada antes que ela comece
seu discurso de sempre, isso sim seria
constrangedor. A presença de Lara vai amenizar o
impacto do sermão, minha mãe sempre gostou dela,
mais do que qualquer uma de nossas amigas.
— Sua mãe é incrível — Lara diz com um
sorriso nostálgico.
— Ela é louca, mas tem um bom coração.
— Eu a admiro muito. Sei que ela sempre
trabalhou na empresa de vocês ao lado do seu pai,
me lembro de como estava sempre envolvida em
alguma negociação importante. É forte,
batalhadora.
— Não inventa de falar isso na frente dela,
é bem possível que ela faça a gente se casar em Las
Vegas agora mesmo.
Sorrimos juntos, Lara fica ainda mais bonita
quando demonstra felicidade. Cada centímetro do
seu corpo é singular, um conjunto de características
harmônicas que faz dela uma criatura única.
Mesmo com os cabelos longos, ainda sou capaz de
enxergar aqueles contornos frágeis que delineiam o
seu pescoço atrás da cascata de fios marrons.
— Então ela continua com a missão de
casar vocês quatro?
— Esse é o principal objetivo da vida dela.
— Sorrio enquanto manobro o carro para a última
curva antes do condomínio.
— Ela sabe sobre o acordo? — Lara
pergunta. Eu preferia que utilizasse outro termo,
sinto-me um aproveitador quando coloca as cosas
sob essa perspectiva.
— Não contamos nada para dona Tatiana —
explico. — Para qualquer efeito, estamos
namorando.
— Ela me odeia? — murmura, a face
adquirindo um tom claro de pêssego.
— Não! Claro que não, por que odiaria?
— Você não precisa disfarçar, Ivan. Prefiro
que me diga a verdade. Tatiana amava muito a
minha irmã, se ela tem algum ressentimento sobre
isso, preciso saber.
Em outras palavras, Lara quer ter certeza se
minha mãe também a culpa pela morte de Petrova.
Nunca parei para pensar a respeito, não sei qual a
opinião dela sobre essa história. Nunca tocou no
assunto, também nunca conversei com ela a
respeito. Só agora vejo como isso é estranho, já que
Tatiana não deixa nada que a incomode passar.
— Minha mãe adora você — respondo com
firmeza para que ela não capte minha insegurança.
Isso parece bastar, Lara não faz mais
perguntas e termina de beber o suco que trouxemos
conosco. Pouco depois, já estamos na frente da
mansão.
Não sei qual foi a última vez que Lara
esteve na casa da minha família, provavelmente
no antes. Nas nossas vidas vai sempre existir um
antes e um depois, marcados no dia em que Petrova
faleceu, sozinha no meio daquela tempestade.
Lara olha para cima e forma uma sombra
sobre os olhos com a palma da mão. Uma rajada de
vento abraça seu pequeno corpo e faz os cabelos
dançarem para trás, exatamente como no primeiro
dia que a vi depois que voltei de Nova Iorque. Mas
algo mudou, eu enxergo essa Lara de verdade.
Antes, estive procurando pela pessoa mesquinha e
egoísta que criei na minha cabeça para suportar a
dor, mas agora eu vejo a mulher despedaçada e
solitária que estava escondida atrás de todos
aqueles sorrisos forçados.
— Senti saudades daqui. — Pela primeira
vez, as lágrimas que se acumulam em seus olhos
não são de tristeza. — Sou muito boba, me
desculpe. Fiquei emocionada, lembrei da primeira
vez que viemos, de quando nós éramos apenas
crianças.
— Você e Andrei formavam uma bela dupla
de encrenqueiros — comento, envolvido pelas
emoções do passado.
— Andrei é muito especial — diz sorrindo.
— Você gosta dele? — As palavras fogem
dos meus pensamentos antes que eu consiga filtrar.
— Muito — confessa com os olhos
brilhantes. É um choque de emoções antagônicas.
Não sei dizer o que essa informação causa dentro
de mim, não é nada bom; mas quando vou encerrar
o assunto para não perder todo o humor, ela
completa exasperada: — Você quis dizer gostar
amorosamente? Não! Nossa, não. Andrei é como
um irmão, amigo, nunca pensei nele de outra
forma.
— Isso é bom. — Estou sendo ridículo,
estranho e inconsistente. Talvez eu precise mesmo
de ajuda profissional.
Estendo a mão para pegar a sua e ela aceita
sem pestanejar. Algo definitivamente mudou.
Subimos juntos os degraus da entrada, como um
casal retornando para casa depois de um dia
exaustivo de serviço. Com a roupa de executiva,
Lara parece correta, como uma peça de quebra-
cabeças quando encontra o encaixe certo. É
enervante pensar que foi impedida de conquistar o
mundo por motivos que desconheço.
Tudo nela me irrita, mas de um jeito
diferente. Não se caracteriza mesmo como ódio,
mas ainda não tenho certeza do que se trata essa
confusão. O problema foi eu ter percebido isso
tarde demais, depois de já ter feito tanto mal.
Como já era de se esperar, o saguão de
entrada está organizado impecavelmente com
vários aperitivos e refrescos. Dona Tatiana não
perde tempo quando o assunto envolve receber
visitas. Minha mãe está sentada em uma poltrona
branca com as pernas cruzadas como se aquilo
fizesse parte da sua rotina diária. É cada vergonha
que ela me faz passar.
— Lara, querida! — diz muito surpresa.
Não menciono que Lara estava ouvindo nossa
conversa, vou deixar que continue fingindo não
saber sobre nossa chegada. — Estava esperando
uma visita sua há anos!
— Boa tarde, Tatiana, obrigada por me
receber. — Lara é esperta, não se refere à minha
mãe como uma senhora. Gosto da sua perspicácia,
de saber exatamente como cativar as pessoas, mas
também me preocupa.
Minha mãe olha para mim com um
deslumbramento assustador. Quase leio as
palavras casamento e filhos dentro dos seus olhos.
Suas joias brilham ao refletir a iluminação dos
lustres e tilintam enquanto ela abraça Lara cheia de
satisfação.
— Você é um amor, querida. Senti saudades
de você.
As duas se sentam e eu faço o mesmo.
Parece que minha mãe decidiu apenas me ignorar
ao invés de brigar comigo pelos vários dias de
ausência.
— A gente queria ter vindo antes, desculpe
ter prendido Ivan por todos esses dias — Lara diz
com um sorriso acolhedor. Ela escutou os gritos da
minha mãe pelo celular e agora está tentando salvar
minha pele.
— Você a obrigou a dizer isso, Ivan? —
minha mãe questiona com olhos estreitos.
— Claro que não, mãe. Eu e Lara
precisávamos de um pouco de privacidade. —
Bem, a vida é feita de oportunidades, se Lara
decidiu me ajudar a persuadir minha mãe, tenho
mais é que aproveitar. — Desculpe não ter vindo
antes.
Tatiana se convence, oferece-me um sorriso
e curva o corpo sobre a mesa de centro para beijar
meu rosto. O humor dela muda com a velocidade
da luz e nem posso criticar. Herdei a mesma
peculiaridade dela, com duas vezes menos
autocontrole.
As duas conversam sobre todo o tipo de
coisas; Tatiana pergunta a respeito da família de
Lara, mas ela procura se esquivar do assunto, não
dá nenhum detalhe e minha mãe também não
insiste.
Ouço com uma atenção mais especial
quando Tatiana menciona qualquer coisa sobre ter
feito uma visita recente ao hospital, mas me
tranquilizo ao entender que se tratou apenas de
alguns procedimentos de rotina. Quando começo a
pensar que talvez esse encontro não se transforme
em uma catástrofe total, resgata o tópico do nosso
relacionamento.
— Devo dizer que estou muito feliz por
vocês — comenta com Lara, toda sorridente. —
Deviam ter me contado antes.
— Foi um começo complicado — explico.
Não é uma mentira completa. — Eu fui muito
idiota com ela, mas vou me redimir. Acho que vale
a pena.
Não disfarço o sorriso quando Lara começa
a enrolar o cabelo para disfarçar o rubor. Captou a
mensagem implícita na minha declaração. Isso é
ainda melhor do que desencadear sua raiva, eu a
afeto e me vejo ansioso por mais reações assim.
— Eu só criei filhos idiotas — lamenta
minha mãe com os olhos fechados como se isso
causasse dor no seu coração. Talvez tenha sido uma
má ideia trazer Lara. — Faça ele rastejar, querida.
É isso que eu desejo para os quatro, mulheres que
mostrem como o universo não gira ao redor deles.
Pego uma xícara de café, não vou me
intrometer. Minha mãe adora acentuar nossos
defeitos. Talvez Roman tenha razão, é como se o
nosso sofrimento amoroso lhe desse algum prazer
sobrenatural.
— É por isso que eu sempre torci por você.
— Mamãe continua, para meu desespero. — Sua
irmã era um amor, mas muito sem gracinha. Não
me dou com gente que acha o mundo lindo o tempo
todo.
Está decretado, foi uma péssima ideia
virmos aqui. Alguém precisa parar a minha mãe,
ela nunca pensa antes de falar. Ao meu lado, Lara
parece distante, mantém um bolinho intocado na
mão.
— Achei que vocês duas se davam bem —
diz após alguns segundos, querendo mais das
confissões de Tatiana.
— A gente se dava muito bem, sua irmã era
uma mulher especial, bondosa, carinhosa. Mas
certinha demais, tanto que nunca percebeu como
Ivan olhava para você.
Queimo a língua com o café quente. De
qual dimensão minha mãe tirou isso agora? Essa
velha é uma bruxa mesmo, Roman esteve certo o
tempo todo!
— O que você quer dizer com isso, Tatiana?
— Lara insiste com uma voz inocente. É uma atriz
ardilosa, quase me esqueci disso.
— Amo todos os meus filhos, mas Ivan é o
mais lento de todos. Sempre ficou de quatro por
você, mas nunca quis largar o osso. — Tatiana
abaixa o volume da voz. — O olhinho do menino
chegava a brilhar de luxúria quando você chegava.
— Mãe! — interfiro. Isso está saindo de
controle. — Já chega, temos que ir embora.
— Não precisa ficar com vergonha, Ivan.
Eu sou sua mãe, já vi você pelado.
Só piora.
— Mãe!
— Lara é adulta, estão namorando, estou
apenas comentando que sempre percebi a ligação
de vocês. O que aconteceu no passado foi horrível,
mas eu tenho certeza de que vocês terminariam
juntos mesmo que sua irmã ainda estivesse viva.
— Vamos. — Fico de pé, arrependido e
envergonhado. O bom humor foi para o espaço.
— Sua mãe está apenas sendo simpática,
Ivan, não precisa ficar nervoso.
— Deixa ele, Lara — desdenha minha mãe,
acenando a mão cheia de anéis na minha direção.
— Isso se chama negação. Achei que ele tinha
superado, mas prefere continuar sofrendo.
— Sempre fui fiel à Petrova — rebato os
insultos da minha mãe. Existe limite para tudo,
inclusive para sugerir que alguma vez olhei para
Lara com olhos de atração.
— Fidelidade e amor são coisas diferentes,
meu filho. — Tatiana alisa as próprias roupas
impecáveis, como se uma sujeira invisível tivesse
impregnado ali. — A gente escolhe ser fiel, mas
não escolhemos a quem amar profundamente. Você
ficou tanto tempo se dedicando e se esforçando
para viver aquele relacionamento costumeiro que
perdeu a capacidade de entender o próprio coração.
— Isso é psicologia barata — desdenho,
mesmo que seja um injusto. Ela não tem o direito
de ferir a memória de Petrova assim.
— Isso é psicologia de mãe. — A palavra
final é sempre de Tatiana, não sou louco para
comprar uma discussão com ela.
Respiro fundo, engulo toda a vontade de
contestar seu ponto e sigo para a saída. Lara sempre
mexeu comigo, não posso negar, mas era diferente.
Nunca teve relação com paixão ou desejo. Era só…
Preocupação? Familiaridade? Que merda.
Ainda escuto as duas se despedindo antes de
bater a porta atrás de mim. Gostaria que essa
relação fosse menos complicada, que não
existissem tantas pessoas para interferir.
Atravesso um pequeno caminho de pedras,
cerceado por flores e arbustos. O carro está parado
na sombra de uma árvore de jardim, ao lado do
labirinto de arbustos. Os dois anjos de mármore que
guardam me acompanham com seus olhos leitosos.
Meu cérebro não consegue parar de fazer
conexões, de buscar lembranças que neguem tudo o
que Tatiana tentou relatar.
Quando abro a porta, Lara vem chegando
devagar. Encontro dentro de mim aquele
nervosismo, aquela raiva que sempre aparece
quando somos confrontados sobre o que existe
entre nós
— Não precisava ir embora — ela diz
bruscamente. Pelo visto não fui o único a ficar
nervoso.
— Minha mãe está perdendo o juízo — falo
com raiva.
— Você não podia fingir? — Seu tom é
mais alto que o meu. — Não precisa ficar tão
repulsivo toda vez que alguém sugerir que existe
alguma atração entre a gente. Eu já sei que não
sente e nunca sentiu nada por mim!
Fingir? Então é isso o que ela pensa, que
basta fingir o tempo todo e as coisas ficarão bem
eventualmente? Não ficou nem um pouco afetada
pelas revelações da minha mãe? Sou o único
abalado com a possibilidade de ter alguma vez
olhado para ela com desejos lascivos?
— Você não precisava ter estendido a
conversa!
— Qual é o seu problema? — grita. — Não
entendo você, nunca sei o que está pensando ou
sentindo. Não decide se está com raiva, se está
feliz, se vai chorar ou vai surtar e sair correndo!
Suas bochechas ficam vermelhas pelo
esforço para brigar comigo. Ela retira uma presilha
do blazer e prende os cabelos, desabotoa o primeiro
botão da roupa, acalorada. Aquele pescoço
aprisiona o meu olhar, me enerva, corrompendo
minha atenção.
É um pescoço lindo.
Maldição, talvez minha mãe esteja certa.
— Você deixou bem claro da última vez
que jamais me beijaria, foi mais do que suficiente
para provar que sua mãe está errada. Eu sei! —
conclui sem olhar nos meus olhos e segue para o
carro. — Mas não pode me humilhar sempre que
tocarem no nome dela. O que aconteceu lá dentro?
— Você aconteceu comigo! — Não grito,
não posso assustá-la e nem desejo isso. Mas preciso
transformar em palavras toda a angústia que ela
desperta em mim. — Sempre quando você está
envolvida, eu perco o controle, fico cego, burro!
Ando de um lado para o outro. Esse dia não
tem fim, é como se todos os meus dilemas
estivessem sendo testados. Como eu poderia
descobrir o que eu sinto? Como ter certeza?
Eu disse aquele dia que jamais beijaria seus
lábios, mas se eles fossem meus para tocar, será
que meu corpo se sentiria satisfeito? Será que eu
teria forças para me afastar? Talvez essa descoberta
seja definitiva, a única que preciso para seguir em
frente.
Não penso, exilo as advertências silenciosas
do meu subconsciente cético. Eu decidi agir,
enfrentar e descobrir. Quase fugi outra vez, quase
coloquei tudo a perder.
— Lara — chamo. Ela para com a mão
apoiada na porta do carro, o olhar desafiador. —
Você está certa, não sei controlar ou entender o que
eu sinto, mas quero descobrir.
Ando até ela, que percebe tarde demais
minhas intenções. Eu disse que nunca faria, mas
estava mentindo para ela, estava mentindo para
mim.
CAPÍTULO 14
Instintos, Emoções e Harmonia

IVAN CAMINHA DEVAGAR na minha direção.


Em outro tempo, minha primeira reação seria
recuar, mas não me intimido. Quero ajudar, estar ao
seu lado agora que conheço sua falta de
estabilidade. No final das contas, sempre foi isso
que eu desejei em silêncio e nunca quis admitir por
medo do sofrimento: poder transmitir para Ivan a
mesma força e apoio que ele demonstrava por mim
antes de tudo mudar.
Um homem não se torna ruim somente por
possuir pedaços demais para serem colados.
Seu olhar transmite um furor desigual,
inédito entre nós, o castanho claro tremeluz diante
da claridade solar e atinge uma tonalidade dourada.
Não importa o que ele pretende dizer, decidi há
muito tempo que posso confiar em Ivan, que posso
compartilhar sua alegria e tristeza sem temer mal
algum.
Mas a proximidade começa a se estreitar
mais e mais, meu corpo captura a sensação gelada
do carro nas costas e o dorso de Ivan se une ao
meu. Não me lembro de alguma vez termos ficado
tão próximos, sem farsas ou ameaças. Somos
apenas nós, cheios de intenções mudas e íntimas.
Mantenho meus olhos fixos nos dele,
embora seja muito difícil manter a concentração.
Tocamo-nos em todos os pontos críticos, pernas,
braços, meus seios de encontro ao seu peito largo.
Todos os meus sentidos amplificam, tanto
pela expectativa de um desejo suprimido, quanto
pelo reconhecimento do seu corpo masculino. Eu
costumava ser essa mulher que não recusaria a
oportunidade de me perder nos desejos mais
primitivos, que conseguia descobrir todas as
artimanhas certas em busca do meu próprio prazer.
Eu costumava ser… Mas hoje em dia quase
não consigo controlar as manifestações
involuntárias do meu subconsciente. Faz muito
tempo desde quando me permiti experimentar os
prazeres que um homem tem a oferecer e um
simples contato como esse faz minha respiração se
tornar instável.
Ivan planeja me tirar do sério, desestruturar
meus pensamentos e destruir de uma vez por todos
com a minha muralha. Não vou me dobrar, não
tenho ilusões de que detenha meus lábios com os
dele. Eu o desejo com a mesma intensidade de
cinco anos atrás, quando sofria sozinha e sonhava
com uma realidade alternativa na qual ele se
apaixonava por mim. Escolhia-me para amar.
— Ivan — sussurro. Minha voz soa fraca,
fragmentada pela falta de ar. — Você precisa se
controlar.
Ele encara meus lábios, desliza a mão sobre
um dos meus braços e sobe até o pescoço.
Mesmo que isso me machuque, mesmo que
eu chore todas as noites depois de hoje, nunca terei
coragem para recusar suas carícias. Quero
memorizar esses raros momentos na minha alma
para quando tudo acabar.
É um misto de emoções que me faz sofrer
por antecipação. Parte de mim lembra como suas
palavras doeram no meu coração, quando olhou nos
meus olhos e disse que nunca me beijaria. Mas a
outra parte, a parte burra e ingênua, deseja que isso
aconteça, espera gananciosamente.
Com a outra mão, Ivan acaricia a extensão
da minha coluna até a parte mais alta do meu
pescoço. O cabelo, outrora penteado, desponta em
direções distintas, um retrato do dia turbulento.
— Diz outra vez o meu nome — murmura
perto do meu ouvido. Com essas pequenas
experiências, aproximo-me cada vez mais para a
beira do abismo. Ao perceber minha incerteza, ele
insiste: — Por favor, juro que será só dessa vez.
— Ivan — repito por instinto. É como um
apelo, uma lamentação, uma prece.
Esse homem está mais corrompido do que
eu poderia supor. É como uma obra de arte arrasada
pelo tempo, que precisa de calma e paciência para
alcançar um restauro próximo da perfeição. Posso
lhe oferecer isso, pois é tudo o que eu desejei que
fizessem por mim. É por isso que não luto contra
ele, que não me afasto.
Se meus planos derem errado no final, ao
menos um de nós pode se salvar.
Abandonando meu ouvido, Ivan se afasta
para olhar nos meus olhos. Uma lágrima solitária
deixou um caminho molhado no lado direito do seu
rosto, os olhos vermelhos denunciam sua vontade
de chorar outra vez. É triste e bonito, emocionante
e depressivo. Somos dicotômicos, conceitos
abstratos que se contrariam, mas ainda
inevitavelmente unidos por uma lógica coerente.
Algo mudou entre nós, uma coisa que não
sei identificar ou nomear. Não percebi quando
aconteceu, mas mudamos. Eu mudei e ele também.
— Vou beijar você — avisa. Tudo na forma
como me sustenta com o próprio corpo, como me
toca e me observa, confere credibilidade às suas
intenções.
— Mas você disse que nunca…
— Não importa o que eu disse — corta. O
olhar não acompanha sua fala, como se o primeiro
fosse instinto e o segundo raciocínio. — Metade
das coisas que digo merecem ser ignoradas. Eu sou
um idiota que sempre diz coisas idiotas. Eu vou
beijar você — repete.
Apesar de ser uma afirmação, ele parece
aguardar que eu autorize sua intenção. Quer que eu
assine minha própria sentença. Pela primeira vez é
sobre nós, sobre como nos afetamos mutualmente,
sobre desejos escondidos no passado que se
perpetuam nos dias de hoje. Não existem
fantasmas, acordos e contratos. Somos apenas nós
em um mundo vazio.
Eu aceito.
Fecho meus olhos segundos antes da sua
boca alcançar a minha, transformo-me em todo o
tipo de sensações cujos nomes se perderam em
algum lugar da minha consciência. Não lembro de
uma experiência tão plena, tão completa.
Entrego-me aos seus desejos, nesse minuto
não importa a minha dignidade ou a sensatez. Sinto
nossa conexão, a forma como ele não se esforça
para fazer a coisa certa. Somos instintos, emoções e
harmonia. Coloco meus braços ao redor da cabeça
dele, que rodeia minha cintura e consegue ficar
ainda mais perto.
Não é um beijo calmo ou carinhoso, é
extremo e profundo. Sinto que buscamos respostas
um no outro, palavras que não podem ser
verbalizadas, explicações que precisam ser
sentidas.
Cento e sete mil.
Eu o amo, é uma certeza inegável. Iludi-me
por acreditar que podia lutar contra isso, é forte
demais. Vou me machucar, sangrar e me arrepender
como na última vez, mas vai ter valido a pena só
por esse momento.
— Lara. — Sua voz ecoa no meio de um
beijo e outro, acertando-me no meio do peito. É a
primeira vez que me chama com essa entonação,
como se precisasse de mim da mesma forma que o
ser humano precisa do oxigênio para respirar.
Aos poucos, o sabor se transforma, vai se
tornando cada vez mais salgado. Estamos
chorando, sorrindo e nos beijando, porque com a
gente é assim, uma mistura adoidada e sem
controle. Tudo e nada ao mesmo tempo.
Ivan gira o meu corpo sem encerrar o
contato das nossas bocas, senta no banco do
passageiro e me puxa para junto dele. Posiciono-me
de lado, com as pernas para fora e as mãos
indecisas entre seu corpo e a maciez dos seus
cabelos.
Antes de qualquer coisa, é libertador. Não
nego ou impeço nenhum toque, sua mão explora
minhas pernas, o lado de dentro da minha blusa,
tateia a pele nua das minhas costas. Mas ele não
tenta avançar, não muda a estratégia. Satisfazemo-
nos com beijos, afagos e novidades permissíveis
aos limites implícitos que existem entre nós dois: a
minha insegurança e a sua confusão.
Toda uma vida transcorre até que eu abra os
olhos novamente. É a mesma sensação de acordar
no meio de um sonho bom. A claridade me faz
piscar, mas a primeira coisa que vejo é a expressão
carinhosa de Ivan. Não há arrependimentos, ele
sorri com sinceridade, tocando meu rosto.
— O que foi que eu fiz? — diz um pouco
rouco. — Como você ainda suporta ficar ao meu
lado?
— Não está arrependido? — pergunto para
ter certeza de que não estou me enganando com
julgamentos fantasiosos, essa questão é tudo o que
me importa.
— Do beijo? Não. — Ele balança a cabeça,
sorrindo com os olhos. — De todo o resto, sim.
— Encontrou o que procurava?
— Não — explica com um resquício de
tristeza. — Estou ainda mais confuso. Mas uma
coisa posso garantir, não quero mais fazer você
sofrer.
— Ivan, quero que saiba que foi especial
para mim — confesso, talvez não tenha outra
oportunidade para ser sincera. — Foi bom, mas
espero que não me julgue por causa disso.
— Eu fiz tudo errado, mas vou tentar fazer
o certo daqui para frente. Não tenho nenhuma
moral para julgar você. Nunca tive. — Ivan me
abraça, encostando o ouvido em cima do meu
coração. — Não é como se eu estivesse curado de
alguma doença, Lara. O beijo foi esclarecedor de
muitas formas, mas preciso de ajuda.
Concordo com a cabeça, compartilho dessa
opinião. Não existe apoio, amor, beijo ou família
que tenha o dom milagroso da cura para dilemas
psicológicos. Estarei ao lado dele, mas é só com o
próprio esforço e iniciativa que vai conseguir
mudar essa personalidade irregular.
— Como vai ser daqui para frente? —
questiono com um pouco de medo.
— Eu não sei, vamos ter que descobrir. —
Ele fecha os olhos. — Seu coração está batendo
muito depressa, para de pensar demais.
De quem será a culpa?
Não muito longe de nós, a grande mansão
nos observa com janelas infinitas. Alguém pode ter
nos visto, algumas cortinas se agitam e me fazem
desconfiar de curiosos, funcionários, amigos, os
irmãos de Ivan…
— Será que a sua mãe viu a gente?
— Espero que sim.
— Ivan! — protesto, mas acho muito
provável que a desinibição de Tatiana ultrapasse
qualquer regra de etiqueta. — Eu vou morrer de
vergonha.
— Ela deve estar decepcionada por termos
parado — brinca.
Ainda bem que ele não pode ver meu rosto,
a continuação desse beijo envolveria muito mais do
que determinação e desejos, é compromisso carnal
e mental. Tento não me agarrar cegamente à
esperança, mas depois de hoje vai ser dez vezes
mais difícil.
Cem vezes!
Cento e sete mil vezes.
— Obrigado, Lara. — Ivan me aperta uma
última vez.
Levanto para que ele possa pular rumo ao
banco do motorista. O clima não fica estranho nem
constrangedor, Ivan se torna consciente de mim,
busca o meu olhar. Seja lá o que passeia por seus
pensamentos, faz bem para o seu humor.
Assim que nos acomodamos, ele liga o
carro e partimos para longe da mansão. O céu
começa a adquirir uma coloração alaranjada, o sol
vai descendo no horizonte.
Pode ter sido um dia cheio de surpresas,
emoções e o início de algo, porém, por mais que eu
queira continuar ao seu lado, ainda preciso visitar
Iago.
Gostaria que Ivan pudesse conhecê-lo em
algum momento. Não hoje, obviamente — já
vivemos emoções demais. Quero aproveitar meu
menino, terminar esse dia com chave de ouro.
— Será que pode me levar até aquele
orfanato perto do centro? — peço. Não tem
problema ele saber que eu visito a fundação, faz
parte do meu trabalho.
— Claro.
Não demora tanto quanto eu gostaria, logo
ele estaciona na frente do prédio. Olhamo-nos e
fico sem saber como agir. Ele jurou que seria
apenas uma vez, mas também disse para ignorar as
coisas que fala.
— Você vem muito aqui? — pergunta para
o meu alívio, não estou pronta para me despedir
ainda.
— A empresa de Mikhail ajuda muitas
instituições como essa, costumo visitar para
averiguar os investimentos das doações. Acabei me
acostumando com as crianças — conto os motivos
quase completos, não preciso mentir.
— Tem muitos amigos aqui?
— Os funcionários não gostam muito de
mim, para falar a verdade. Acham que não faz bem
para… as crianças, sabe? Elas podem se apegar,
mesmo assim não consigo deixar de vir.
— Entendo. — Ele balança a cabeça,
satisfeito. Tem sempre algum dilema na mente,
pensamentos que não consigo entender ou deduzir.
— Eu quero pedir uma coisa, mas não quero que
interprete errado.
— Pode dizer — incentivo.
— Já conversamos sobre isso uma vez, no
começo daquele acordo. Mas agora é diferente,
então preciso ter certeza. Eu disse que não sei como
vai ser, não sabemos definir o que é isso que
acabamos de fazer. Mas se existir outro, alguém,
quero que me conte.
Era só o que me faltava. Se ele soubesse
que nunca existiu outro além dele talvez acabasse
rindo da própria pergunta.
— Não tem, Ivan — garanto.
Não me dou o direito de perguntar a mesma
coisa por medo da resposta. Sua outra está morta e
nem por isso se tornou um empecilho menor.
Ele sorri, respira fundo. Não insiste, não
duvida e nem questiona. A confiança vai ser uma
construção diária, também não confio cegamente
nele, caso contrário contaria toda a verdade.
Mas podemos escolher confiar; é um bom
começo.
— Quero te beijar de novo. — Ele apoia o
cotovelo de lado, retirando o cinto de segurança. —
Mas não tenho nenhuma desculpa dessa vez.
Diferente do primeiro beijo, ele não espera
que eu aceite. Debruça-se sobre mim, apoderando-
se dos meus lábios e se saciando do desejo. Nunca
imaginei que um dia com tanto potencial para dar
errado poderia terminar da melhor maneira
possível.
— Obrigado por hoje — diz cheio de
sinceridade quando termina de me beijar. — Não
estou falando só do beijo.
— Obrigada pelo beijo — digo, brincando.
— Mas eu tenho mesmo que ir.
Ivan solta o meu cinto, abre a porta e rouba
um último beijo, rápido, mas tão cheio de
significados quanto os outros — o leve roçar de
lábios e causaria guerras em tempos medievais.
Saio um pouco atordoada e aceno para ele.
— Amanhã vou procurar um psicólogo —
informa, decidido. Outra característica sua que me
lembra dos motivos que me fizeram apaixonar: a
partir do momento que toma uma decisão, ele não
tem medo de se jogar do precipício quantas vezes
forem necessárias.
Fico orgulhosa da sua coragem, de querer
finalmente escalar para fora do poço escuro onde
esteve escondido depois que minha irmã morreu —
tenho me recusado a fazer o mesmo, mas talvez,
talvez valha a pena tentar de verdade.
— Se quiser, posso ir com você — ofereço.
— Não, isso é algo que eu preciso fazer
sozinho, mas obrigado. — Ele liga o carro. — Até
mais, Lara.
Sorrimos, Ivan vai embora e assisto o
automóvel se distanciar. Foi tudo real, dessa vez
não sonhei. Ele realmente me beijou, eu o beijei de
volta.
Mas, o melhor de tudo, é que ainda não me
sinto despedaçada.
Não, pela primeira vez desde as lembranças
mais longínquas, sinto-me inteira.
CAPÍTULO 15
Educadamente

DE TODAS AS pessoas que trabalham aqui no


orfanato, a diretora Tânia é a mais legal. O único
problema é quando tenta fazer cara de brava,
porque ela simplesmente não consegue. Acho que é
por causa da idade, o cabelo dela é bem branquinho
e o jeito que ela fala é calmo demais.
Dona Tânia não é do tipo que grita nem
nada do assim e quase nunca coloca a gente de
castigo. Ainda bem, não gosto de gritos e nem de
castigo. O problema é que todas as vezes que
alguém desobedece alguma regra importante, as
monitoras levam essa pessoa pra sala da diretora.
E, se tem uma coisa que a diretora gosta de fazer,
essa coisa é conversar. Ela fala, fala, fala, fala sem
parar.
Algumas crianças que chegam no orfanato
já grandinhas dizem que ela se parece com uma
avó. Como eu nunca tive uma, não sei bem como
deve ser. Mas se todas as avós forem assim, não
tenho certeza se ia gostar de ter uma.
Quando bato na porta da diretoria, ela me
recebe com um sorriso todo arreganhado. Não
gosto muito quando dá risada sem parar, teve uma
vez que a dentadura caiu e foi bem esquisito. Como
já esperava, dona Tânia até tenta me olhar com
alguma braveza, mas no final das contas acaba
sorrindo.
Sorriso é bom.
Melhor para mim!
— Iago, meu querido, estava esperando por
você — ela cumprimenta. Faz um carinho na minha
cabeça e tenta arrumar o meu cabelo, mas não
adianta não.
Fico quieto, é melhor assim. Sento na
cadeira que fica em frente à mesa dela, faço uma
cara de coitado. Sempre funciona — menos com a
Lara, que sempre sabe tudo o que eu penso, como
se tivesse um superpoder igual ao do professor
Xavier, então nem tento enganar ela. Além disso,
não gosto de decepcionar a Lara.
— Não quer conversar? — pergunta. Eu
bem queria responder que não quero, mas só
balanço os ombros mesmo. — É a terceira vez que
arruma briga na escola, Iago, suas professoras estão
preocupadas.
— Mas eu não briguei com ninguém — me
defendo. Eu é que não vou ser injustiçado. — Foi
uma discussão só.
— E não vai me contar o motivo dessa
discussão? — insiste. Os óculos dela vão parar na
ponta do nariz, é bem engraçado, mas não vou rir
agora.
— Tinha algumas crianças querendo pegar
o lanche de um menino lá na hora da refeição, eu
fui pedir educadamente que eles não fizessem
aquilo. Se chama bullying.
— Educadamente, Iago? Para cima de
mim?
— Talvez não com tanta educação assim, só
um pouquinho.
— A gente já conversou sobre isso, querido.
Se continuar desse jeito nunca conseguiremos
arrumar um pai e uma mãe para você.
— Eu não quero mesmo — minto. — Vou
ficar aqui até os dezoito anos e depois vou construir
um prédio.
— E o que você vai fazer com um prédio,
menino?
— Eu sei lá o que as pessoas fazem dentro
do prédio, eu só quero fazer ele mesmo. Vou
vender e depois vou fazer outro prédio.
Dona Tânia balança a cabeça, faz uma
carinha um pouco triste. Eu tenho dó dela, não
queria causar tantos problemas. Mas se eu não fizer
isso, alguém pode decidir me adotar e eu não quero
me separar da Lara nunca.
— Eu sei como é difícil para você, Iago.
Teve uma vida difícil, está aqui há muito tempo.
Mas precisa se comportar bem, as monitoras estão
loucas da vida com você.
— Eu não gosto delas também — explico.
Já falei um monte de vezes que elas ficam me
olhando e que fazem careta quando a Lara vem me
visitar, mas ninguém acredita em mim.
Ela suspira, balançando a cabeça. Dona
Tânia gosta muito de suspirar.
— Vai ter que ficar na disciplina outra vez.
Ainda bem! Melhor na salinha da disciplina
do que aqui na diretoria, lá eu não saio com as
orelhas doendo. Coitada da diretora, eu gosto muito
dela, mas já escutei a história da vida dela de trás
para frente. Sei o nome até do Alfredo, que era o
cachorro da vizinha que ela tinha quando morava
no sul do país a mil anos atrás.
— Tudo bem. — Ensaio uma cara de
arrependido. Não é que eu goste de arrumar
confusão com as outras crianças, mas não fico feliz
quando vejo as pessoas fazendo maldade.
— E pense bastante no que tem feito, Iago.
Aceno com a cabeça, até que não foi tão
ruim. Me levanto e saio da sala, depois sigo para a
disciplina. A Lara vai ficar triste se ficar sabendo,
mas eu já percebi que a diretora nunca conta as
coisas para ela, eu que acabo contando.
Quando entro na sala colorida com cartazes
enfeitados com palavras bonitas pintadas — amor,
amizade, respeito —, uma monitora está cochilando
na cadeira, o ronco se parece com um motor de
carro bem estragado. Tem só mais uma criança na
sala, uma menina sentada lá no fundo, com um
capuz na cabeça.
É claro que eu me sento do lado dela. Não
vou mentir, gosto de conversar também e acho
melhor ainda quando é gente que eu não conheço.
— Oi — digo, chamando sua atenção.
— Oi — responde, sem os dois dentes da
frente. Ainda bem que os meus já caíram e
nasceram de novo faz tempo.
A menina me encara e puxa o capuz da
blusa de frio para trás. O cabelo dela é diferente,
um pouco laranja, acho que isso não é muito
normal, sei lá se isso pega.
— Você tá com catapora? — Fico um
pouco longe, ela tem um monte de pintinhas no
corpo. Não é feio, mas nunca conheci uma pessoa
com isso.
— Você é burro? São sardas, tipo pintas —
explica como se fosse óbvio. Seus olhos verdes me
encaram como se eu fosse meio idiota.
— Nunca vi ninguém com isso não —
explico. — Só achei diferente, desculpa.
Ela faz uma careta, vira o rosto pro lado.
Mas eu não vou desistir por causa disso. Tem só
seis carteiras na sela, então eu sento de frente para
ela. De perto assim, percebo que ela se parece com
uma fada do bosque. Acho que vi uma em um livro
na biblioteca da escola.
— Vai ficar me olhando agora? — pergunta
bem brava. Ela sabe fazer cara de brava.
— Eu gostei, é só que não tinha visto
mesmo — explico mais uma vez. — Você é nova
aqui?
— Nesse orfanato, sim — ela conta. — Mas
não vou ficar muito tempo, uma tia minha está
tentando comprar meu anjo da guarda com o juiz.
Ela já deve estar quase chegando, mas aquela
diretora bruxa me mandou ficar aqui só porque eu
queria brincar no jardim e não no pátio com as
outras meninas.
Acho que ela quis dizer que a tia está
tentando adotar ela, mas como eu não brigo com
meninas, vou ficar quieto no meu canto.
— Acho que você não devia chamar a dona
Tânia de bruxa — comento. Se no primeiro dia ela
já conseguiu ficar na salinha da disciplina, imagino
que não goste muito de seguir as regras. — Eu me
chamo Iago, e você?
— Tasha.
Nunca conheci ninguém com um nome
assim.
— Vocês dois, aqui é para ficar em silêncio
— briga a mulher que estava dormindo até pouco
tempo.
E lá se foi a alegria.
Viro pra frente e deito com os braços
cruzados em cima da mesa. Não puxo mais assunto
com Tasha, já alcancei meu limite de advertências.
Espero que seja o suficiente para desinteressar
alguns desses adultos que aparecem de vez em
quando para escolher os filhos.
Antes, eu acreditava que a Lara queria me
adotar. Ela é sempre tão amorosa comigo que eu
queria poder cuidar dela um pouco também. De vez
em quando, eu percebo alguns machucados no
corpo dela, nos braços principalmente. Mas eu
lembro de uma semana quando ela ficou vários dias
sem aparecer e, quando voltou, estava fraca e
dolorida.
Tem muita criança que chega aqui e conta
sobre as coisas que aconteciam nas casas em que
viviam. Já ouvi sobre mulheres que apanham dos
maridos em casa, ou dos namorados. Eu acho que é
isso o que acontece com ela.
Mas não posso me intrometer em assunto de
adulto.
Tem vezes que eu quase chamo ela de mãe,
mas me seguro bem na hora. Mesmo assim, é um
pouco triste. É por isso que eu decidi morar aqui
para sempre, assim a gente pode continuar se vendo
todos os dias.
Depois de algum tempo, a assistente social
aparece na porta, é uma mulher bem vestida que
sempre conversa com as crianças que estão perto de
ir embora ou que precisam mudar de orfanato. Ela
faz um sinal para Tasha e a menina vai embora
primeiro do que eu. Nem se despede, desesperada
pra sair daqui.
O orfanato não é ruim, só um pouco
deprimente. Comparado com outras crianças, a
minha vida antes de vir para cá até que não era tão
ruim como a diretora Tânia faz parecer. Não
lembro da minha mãe, mas meu pai era motorista.
Hoje em dia, eu só sei disso porque os
adultos conversam com a gente nas sessões com a
psicóloga. Acham que alguns casos podem ser
traumáticos — eu nunca descobri o que isso
significa.
Dizem que a minha mãe morreu de doença
quando eu ainda era um bebezinho, mas qual era o
nome da doença eu não tenho certeza. Já o meu pai,
foi em um acidente de carro enquanto voltava para
casa. Contaram algumas vezes que eu estava com a
babá quando os policiais chegaram, mas eu só tinha
três anos na época e não lembro daquele dia.
Sei que estava chovendo muito e ele acabou
batendo em outro carro. Desde então, eu vivo aqui.
Já fiz muitos amigos que foram indo embora aos
poucos; gosto de conhecer pessoas, fazer amizades.
Com os olhos fechados, aproveito para
cochilar, assim o tempo passa mais rápido. Acordo
com um afago na cabeça. Tem sempre alguém
tentando colocar o meu cabelo no lugar. A mulher
que ronca já foi embora e outra monitora libera
minha saída.
Nem perguntei pra Tasha quanto tempo ela
vai ficar aqui no orfanato, mas agora não dá mais
tempo. Preciso esperar a Lara no portão. Corro no
meio das crianças, talvez ela já tenha chegado, está
quase na hora.
Mas, quando alcanço o pátio externo, vejo
ela dentro do carro com um homem.
Os dois estão sorrindo um para o outro, não
consigo escutar a conversa, estão longe demais.
Talvez seja o marido malvado, mas ela parece tão
feliz que eu duvido um pouco.
Ele vira o corpo, fica de costas para mim e
eu não consigo entender o que está acontecendo lá
dentro. O homem volta para o lugar depois de abrir
a porta. Lara sai do carro, conversa mais um pouco.
Credo, hoje ela está parecendo a diretora,
fica falando sem parar. Devia entrar logo para me
ver, mas continua um tempão olhando o carro
desaparecer. Eu sempre me emociono quando vejo
ela. Sempre desejo que mude de ideia e decida me
adotar de verdade. Já sei que me ama, porque eu
amo ela também. Mas tem umas coisas que eu não
entendo ainda.
Sinto que a Lara não pode ser minha mãe
agora, mas que um dia pode dar certo. É por isso
que eu espero.
Finalmente, depois de um tempão, ela me
vê e corre — toda atrapalhada, coitadinha — na
minha direção. Tenho muita dó das meninas que
ficam usando esses sapatos altos, se eu fosse
menina ia querer andar só de chinelo mesmo.
— Desculpe a demora, meu amor. — Ela se
abaixa para me abraçar, um pouco chorosa. Acho
que a Lara é chorona demais, mas não falo nada
pra não deixar ela magoada. — Tudo bem por
aqui?
Lá vem ela com essas perguntas difíceis.
Meu plano era ficar bem quietinho e torcer pra a
diretora não resolver dar uma de fofoqueira, mas
agora não posso mentir.
— Tive uma pequena discussão educada na
escola e levei uma pequena advertência, fiquei um
pequeno tempo na sala da disciplina. — O melhor é
falar tudo de uma vez.
— De novo, Iago? — Lá vêm seus olhos
preocupados, daqui a pouco me enche de sermão.
— Já conversamos sobre isso, não quero que fique
brigando com as outras crianças.
Conto a história completa enquanto a gente
vai atravessando o pátio até um banco de pedra.
Faço cara de coitado outra vez. Não é possível que
ninguém entenda como eu fui o herói da situação.
— Não adianta fazer essa cara, Iago. Não
quero que brigue outra vez. Precisa chamar um
adulto.
— Não vou mais brigar — prometo.
E não vou mesmo. Já conquistei minhas
advertências, nenhum casal vai querer um menino
brigão. Lara me faz jurar mais umas dez vezes que
vou me comportar daqui para frente.
Conto pra ela outras coisas sobre meu dia,
coisas boas dessa vez porque preciso de um pouco
de crédito. Explico que tirei a melhor nota da turma
em todas as matérias, ganhei um prêmio como
melhor orador e que fiquei em último lugar na
corrida entre as classes da minha idade. Estava com
muita preguiça pra correr aquela distância toda.
— Quem era aquele moço no carro? —
pergunto quando não parece mais brava. — Seu
marido? Namorado? Amante?
— Amante? De onde você tira essas coisas,
menino? Ivan é meu, bem… Um amigo. Algum dia
vou trazê-lo aqui para conhecer você, o que acha?
Faço que sim com a cabeça. Vou perguntar
educadamente pra esse Ivan se é ele que machuca a
Lara. Sou muito bom em ensinar as pessoas a fazer
a coisa certa. Outro dia convenci um amigo meu, o
Marko, a pedir desculpas para todas as meninas
pequenas com quem ele já tinha brigado.
— Vamos entrar? Hoje eu tive um dia
muito agitado. Vamos ficar no seu quarto um
pouco, quando escurecer eu coloco você na cama.
— Você sabe que eu não sou neném, né? —
Ela nunca desiste de me tratar que nem criancinha.
— Já sei subir na cama sozinho.
— Iago, hoje eu vou ensinar uma coisa
chamada figura de linguagem.
CAPÍTULO 16
Raiva

QUANDO CHEGO NA sala do psicólogo, tenho a


impressão de estar entrando em um daqueles filmes
de terror bem ruins dos anos oitenta. Há relógios e
engenhocas se mexendo, apitando e borbulhando
nas prateleiras das estantes. Cortinas escuras
escondem o sol do verão, que luta bravamente
contra as temperaturas oscilantes que caracterizam
a estação do lado de fora.
Um cheiro forte de mofo, bebida barata e
fumaça de incenso invade meus pulmões junto com
um desconforto claustrofóbico. Corro os olhos até a
mesa principal com a estranha impressão de que
um assassino em série pode aparecer a qualquer
momento com uma foice na mão.
É claro que eu não poderia esperar um
especialista com aparência menos duvidosa, já que
foi a minha mãe quem o indicou tão avidamente.
Aparentemente, meu pai foi seu paciente
esporádico, coisa que eu nem desconfiava.
Agora que já estou aqui, melhor não voltar
atrás — embora continue me perguntando se não
existe alguma instituição responsável por averiguar
clínicas de psicologia com irregularidades na
estrutura.
Um senhor me encara com os óculos
perdidos na ponta do nariz. Duas lentes garrafais
distorcem as linhas do seu rosto e poucos fios
brancos irrompem nas laterais da sua cabeça calva.
A mão treme compulsivamente enquanto ele
arruma os óculos para enxergar melhor.
— Posso ajudar? — questiona com a voz
rouquenha.
Quando anunciei para a minha família que
pretendia frequentar um profissional para descobrir
qual o problema comigo, eles me deram todo o
apoio possível, especialmente Vladimir. Não posso
decepcioná-los agora e fugir correndo por causa do
meu orgulho ferido.
— Tenho uma consulta marcada — explico
um pouco receoso. A secretária na recepção
anunciou minha chegada antes de eu entrar, tenho
certeza. — Sou Ivan Volkiov.
— Outro Volkiov, não me dou com essa
raça. Sua mãe já morreu? Aquela bruxa velha. —
Ele vai resmungando consigo mesmo enquanto
levanta com dificuldade, confirmando a fama de
dona Tatiana.
Acho que ele deve ser quase um centenário.
— Minha mãe passa bem — digo por
educação. Desconfio que se tratava de uma
pergunta retórica.
— Claro que sim, vaso ruim não quebra
não! — Dou uma risada nervos. Não sei onde
estava com a cabeça quando aceitei que Tatiana
indicasse um médico de confiança. — Pode sentar
aqui.
Caminho até um grande sofá de couro
vermelho, desconfortável e quente. Não há nenhum
travesseiro ou almofada, então apoio minha cabeça
em um encosto puído. Ele arrasta um banco de
madeira para perto de mim, arranca uma folha de
um caderno aleatório e começa a escrever qualquer
coisa.
Não encontrei muitas referências sobre seu
trabalho na internet, apenas que se aposentou há
alguns anos. Os poucos clientes divulgados pela
imprensa foram empresários, o que justifica tanto
sigilo a respeito dos seus métodos, mas não me
deixa nem um pouco convencido.
É mais conhecido pelo patronímico,
Yurievich, e não como Bóris, por causa do pai ter
sido um político importante na instauração do novo
regime nas décadas passadas.
Na dúvida sobre como devo me referir a ele
— pelo nome, sobrenome ou apenas doutor —,
opto por permanecer em silêncio e evitar as
formalidades.
— Me diga o seu nome completo.
— Ivan Nicolaievitch Volkiov.
— E qual é o seu problema, Ivan? — Pelo
visto, ele não se importa com as formalidades e já
utiliza logo meu primeiro nome.
— Como sabe que eu tenho um problema?
— desvio.
— Todo mundo que me procura tem algum
problema, acha que as pessoas vêm ao psicólogo
por diversão?
— Eu tenho um problema — explico. Essa
é a consulta mais esquisita da minha vida. — Mas
esperava que você me dissesse qual é.
Mais uma vez, Bóris balança a cabeça e
marca um monte de coisas naquela folha amassada,
o papel emite um ruído aflitivo por causa da sua
tremedeira.
— Eles acham que eu tenho bola de cristal
— resmunga, inconsciente do volume da própria
voz. — Vamos fazer o seguinte, comente um pouco
sobre você, sua vida. Passado, presente, futuro.
Você escolhe. Apenas fale sobre o primeiro tema
que lhe vier na cabeça.
Respiro fundo, escolhendo um bom tópico
como se isso fosse me classificar em algum tipo de
teste. Mas meu cérebro está inundado com apenas
uma coisa. Uma pessoa, na verdade: Lara.
— Beijei a irmã da minha noiva — conto.
As palavras soam vívidas, tornando tudo real. — É
a primeira vez que digo isso em voz alta.
— E como está se sentindo? Feliz?
Arrependido? Com medo da sua mulher descobrir?
— Não, não. Minha noiva, ex-noiva na
verdade, faleceu há cinco anos. Não tenho medo, só
uma raiva constante. Eu a sinto o tempo todo, me
descontrola. Sempre acabo explodindo, dizendo
coisas que machucam as pessoas. Algumas vezes a
raiva é tão grande que ofusca os outros
sentimentos, nunca entendo quando estou triste ou
alegre.
Olho de esguelha para Yurievich, que luta
com a caneta na mão contra a folha apoiada sobre a
perna direita. É bem mais fácil falar sobre isso com
um desconhecido, uma pessoa que vai te ouvir sem
ser influenciado pela própria experiência.
— A moça que você beijou, qual é mesmo o
nome dela? Acho que você não mencionou.
— Ihascova… Lara Ihascova.
— Certo. O que você sente quando pensa
nessa moça?
— Raiva — explico, pois é isso que Lara
desperta em mim. — Ela me desestabiliza, sinto
que perco o controle quando estou perto dela.
— E por que se preocupa em perder o
controle?
— Não é isso o que está pensando —
defendo-me.
— E o que você acha que eu estou
pensando, Ivan?
— Que sou um controlador, não é esse o
problema. Não tem a ver com orgulho, era diferente
com a irmã dela.
— Você costuma comparar as duas? O que
pensa da sua ex-noiva?
— Vai ficar fazendo perguntas o tempo
todo? — Sento no sofá, de frente para ele. Essa
conversa não me agrada.
— Raiva — pontua. — Vamos focar nisso.
De onde vem essa raiva?
— Eu não sei — confesso com as mãos a
tatear os botões do paletó, é um inferno de calor
aqui dentro.
— Você disse que a sua noiva faleceu,
como era a relação de vocês?
— Petrova era incrível. — Sorrio, lembrar
dela faz minha respiração se acalmar. — Nos
conhecemos desde a infância, começamos a
namorar muito cedo. Ficamos noivos quando ela
fez dezoito anos.
— Petrova, esse era o nome dela?
— Sim.
— Defina Petrova com apenas uma palavra.
— Isso é impossível. Petrova era tudo para
mim. Segurança, calmaria, paz. Tudo.
— E a raiva? — pergunta. Fico um pouco
perdido.
— O que tem a raiva? — indago de volta.
Essa palavra fica fora de contexto quando associada
com Petrova.
— Você disse que sente raiva o tempo todo,
com Petrova era diferente?
— Claro! Era impossível ficar com raiva
dela. Petrova tinha alguma coisa de bom dentro
dela que cativava as pessoas.
— A raiva começou quando ela morreu —
cogita baixinho. — Quer falar sobre isso?
Se quero falar sobre o dia em que a minha
vida se transformou em um mar obscuro de
sucessões ruins? Claro que não! Mas foi para isso
que eu vim, para me livrar desses demônios,
confessar meus piores pensamentos, aqueles que
nunca contei para ninguém por medo de me
acharem um monstro.
— Aconteceu há cinco anos. — Começo, os
olhos fixos em uma garrafa vazia no canto da sala,
esquecida e suja. — A gente tinha se organizado
para tirar férias em uma casa de veraneio que
pertence à família dela. Um grupo grande de
familiares e amigos. Meus irmãos, Lara, Petrova e
uma amiga das duas. Uma parte foi primeiro, eu e
meu irmão mais velho íamos só no dia seguinte por
causa da empresa.
— Foi nessa noite que ela morreu?
— Sim, acidente de carro. Eu ainda não
entendo o que aconteceu. Estavam Petrova, Andrei,
Roman e Svetlana na casa. Lara chegou tarde da
noite, estavam todos no primeiro andar quando a
porta da entrada bateu e ela subiu correndo para um
dos quartos. Petrova foi atrás dela e as duas
começaram a brigar.
Minha voz embarga, outra vez relembrando
vagamente quando me contaram esses detalhes no
hospital, enquanto as enfermeiras corriam de um
lado para o outro sem me dar nenhuma explicação.
Mesmo já sabendo que ela tinha partido, eu tinha
esperanças de que algum funcionário de repente me
dissesse que era tudo um terrível engano.
— Você sabe me dizer sobre o que
brigaram?
— Não — lamento, mas pretendo descobrir
em breve. — Petrova foi a primeira a me ligar,
disse que eu precisava ligar para a irmã dela, pedir
para ela ficar calma. Lara estava descontrolada,
gritava sem parar que não queria conversar com a
irmã, que a queria longe. Mandou Petrova ir
embora, disse que a odiava.
— O relacionamento das duas era ruim?
— Pelo contrário — digo. — Elas eram
muito unidas. Isso eu não consigo entender, como
puderam chegar a esse ponto. Liguei para Lara, ela
chorava sem parar no outro lado da linha. Não dizia
coisa com coisa. Foi horrível, fiquei transtornado.
— Vamos falar sobre Lara. Defina-a em
uma palavra.
— Olha, não é por nada não, mas também é
impossível. A Lara é como uma tempestade,
agitada, desafiadora, ela me desequilibra. Quando
estamos juntos sinto uma…
— Raiva?
— Sim, raiva. — Passo os dedos sobre os
olhos. Não sabia que em apenas uma consulta todos
esses relatos seriam expostos.
— Se não fosse por ela, Petrova não teria
saído com o carro no meio da madrugada. Estava
chovendo e ventando, ela colidiu com outro veículo
que vinha no sentido contrário. O motorista do
outro carro também morreu.
Na época, não me preocupei em saber mais
a respeito da outra vítima. Acho que era um homem
de meia-idade, mas é tudo o que sei. Pensando
agora, foi um pouco insensível não prestar as
condolências à outra família, mas acho que não vi
nenhum parente dele no hospital.
— Então, Lara é culpada? — Esse velho só
sabe fazer perguntas que me irritam e cujas
respostas não tenho clareza.
— Por muito tempo, eu a culpei, sim. Mas
agora, não sei. Não tenho certeza se fui justo.
Descobri algumas coisas que estão derrubando
meus conceitos. Petrova pretendia terminar nosso
noivado, se casar com outro. Lara não tem uma
relação muito saudável com a família dela. Ainda
estou digerindo tudo isso.
— Vamos focar na raiva — insiste.
— Você quer saber se a raiva que sinto é
por causa do acidente? Por culpar a irmã dela? —
Ele não responde, já percebi que recebe dinheiro
apenas para fazer perguntas. — É diferente, depois
que perdi Petrova é como se tudo ao meu redor
fosse raiva e ódio. Mas quando penso em Lara,
quando lembro da voz dela aos prantos, querendo
todos longe, me pedindo para não ir, eu… sinto
mais raiva. Tentei chegar a tempo, mas fomos
impedidos pela tempestade.
— Você foi por quem? De onde vem sua
raiva, Ivan? — pergunta pela milésima vez.
Fico em silêncio, incapaz de responder duas
perguntas simples. Minha raiva vem de todos os
lugares, de cada poro da minha pele, de cada
lembrança ruim. Minha raiva sou eu mesmo, ela
apenas existe. Não faço ideia de como apontar um
único lugar que a origine. Agora, por quem tentei
chegar a tempo?
A tempo de salvar Petrova, quando nem
imaginava que ela estava viajando para a morte
certa? Não, não foi por isso que eu entrei naquele
carro e tentei chegar o mais rápido possível até a
casa de férias.
— Eu apenas não sei. — Suspiro
pateticamente.
— O que sentiu quando descobriu que
Petrova queria se casar com outro?
— A princípio, nada — desabafo; logo o
homem manda alguém me internar. — É como eu
disse, nunca consegui sentir raiva de Petrova.
Quando fiquei sabendo, não consegui sentir nada,
como se aquilo não fosse o suficiente para mudar a
minha opinião. Petrova era boa, o que é um erro
perto de todas as coisas boas que ela fez na minha
vida?
— Mas…?
— Mas depois me encontrei com Lara e
toda a raiva veio de uma vez. Raiva por ter agido
como um idiota com ela por tantos anos, só para
descobrir que eu seria abandonado se Petrova não
tivesse morrido. Raiva porque o amante dela é um
bastado criminoso.
Um bastando criminoso que olhou para
Lara com intenções perigosas, completo na mente.
Seja lá o que esse tipo de sessão psicológica
objetive, não está dando certo. Só me sinto pior,
mais descontrolado.
— Por hoje já é o suficiente — diz Bóris.
Os olhos perscrutam a folha castigada. — Você foi
muito bem.
— É só isso? — pergunto. Isso é
charlatanismo.
— O que você esperava, menino? — Bóris
se ergue e volta devagar para a própria cadeira
estofada, as costas curvadas refletem a idade
avançada. — Uma consulta com cartas de tarô e
uma bola de cristal? A promessa de trazer de volta
o amor perdido em quinze dias? Eu sou um
psicólogo, meu trabalho é ajudar você a entender
sobre si mesmo.
— Qual é o problema comigo? — Levanto-
me e caminho até perto da mesa. Ele falou tanto
sobre raiva que é isso mesmo o que estou sentindo
nesse momento.
— Você sofreu um trauma sentimental
muito grande, Ivan, é por isso que tem dificuldades
em interpretar e controlar os próprios sentimentos.
Para descobrir o que tanto te aflige e faz perder o
controle, precisa antes descobrir o que origina a sua
raiva.
— E como eu faço isso?
— Pense. Volte quando tiver descoberto.
— Isso só pode ser brincadeira — reclamo,
chocado.
— Esses Volkiov só me dão dor de cabeça
— conversa sozinho de novo, depois me olha com
semblante enfadonho. — Você tem muitas dúvidas
não solucionadas sobre o dia do trauma. Tente
preencher essas lacunas, tente entender o que Lara
representa para você.
— Ela me desequilibra — digo exasperado.
Será que ele ouviu alguma coisa do que eu falei?
— Desequilibra? Não, Ivan, perto dela que
você consegue sentir as coisas de verdade.
É como se uma porta trancada se abrisse na
minha mente, preenchendo meu crânio vazio e
escuro com uma iluminação esclarecedora. Recuo
dois passos e tenho um lampejo do sorriso
zombeteiro de Bóris Yurievich. Perto de Lara eu
não perco o controle, apenas volto a sentir tudo ao
mesmo tempo.
Eu deixo de suprimir, de premeditar, de
raciocinar, e passo a sentir.
— Obrigado — suspiro, envergonhado
pelas coisas que pensei sobre a qualidade do seu
trabalho.
— Volte quando tiver mais respostas. —
Ele me dispensa e vou em direção à saída, mas
ainda o escuto dizer baixinho: — Ou não volte se
não quiser, melhor para mim.
Sair do pequeno consultório é como
atravessar um portal para outra dimensão. As ruas
continuam movimentadas e me sinto vivo. Foi
assustadoramente bom conversar com um
profissional, por mais adversas que sejam as suas
técnicas.
Com certeza vou precisar de mais sessões,
ainda não me sinto livre. A raiva continua aqui, o
ressentimento. Lara continua sendo uma incógnita,
especialmente agora que eu compreendo como ela
me expõe.
Volto para casa e ignoro a vontade de parar
em frente à mansão Ihascov no meio do caminho.
Faz dez dias que não vejo Lara. Combinamos de ir
na festa dos pais de Svetlana no próximo final de
semana, mas ainda não confirmei se está disposta
depois de tudo o que fizemos.
Depois daquele beijo.
Pensei que fosse me arrepender, que seria
ruim, ou que, ao menos, não ansiaria por mais. Mas
assim que fui embora, sozinho naquele carro, me vi
assombrado pela vontade quase desumana de dar a
volta e envolver Lara nos meus braços outra vez.
De sentir o sabor dos seus lábios e escutar sua voz
embriagada de prazer murmurando o meu nome.
Foi ali que eu soube o quanto precisava de
ajuda, que decidi mudar de verdade e dar outra
chance para a minha vida. Não sei como será daqui
em diante, mas não quero mais fazê-la chorar. Esse
direito não me pertence e não deve pertencer a
ninguém.
Escuto a voz da minha mãe vinda da
cozinha, cantando uma velha canção que ela revive
de vez em quando. Eu podia aproveitar para me
esconder no quarto, mas sinto um pouco de pena. É
a música do casamento dela com meu pai.
Somos realmente ingratos, como sempre
diz.
Além do mais, preciso tirar uma dúvida.
Na cozinha, várias panelas e ingredientes
estão espalhados sobre a bancada. Carnes de todos
os tipos, massas, legumes e frutas dividem espaço
com latas de doce. Tatiana está lendo o rótulo de
uma lata de milho em conserva, enquanto segura
uma faca de dois metros na outra mão. Roman,
sentado na mesa convencional, come
tranquilamente algumas frutas enquanto examina o
celular.
— Eu já posso ligar para o corpo de
bombeiros? — brinco, mas o risco de a minha mãe
colocar fogo na casa é realmente grande. — O que
você está fazendo, mãe?
— Regime — ela responde sem me olhar.
Olho para meu irmão em busca de
respostas.
— Não me pergunta, ainda não entendi —
diz ele.
— Mãe, eu não sei se você sabe, mas a ideia
do regime é comer coisas saudáveis e não tudo o
que você tiver em casa.
— Ontem eu fui na academia. — Começa a
explicar. Ela revira produtos, coloca alguns em
vasilhas, outros em panelas. Alguma coisa borbulha
em cima do fogão e tenho medo de me aproximar.
— A amiga de uma prima da nossa vizinha
comentou sobre uma dieta, a ideia era boa. Hoje eu
acordei, fiz uma caminhada. Comi uma fruta no
café da manhã, um filé de peixe no almoço. Outra
fruta no café da tarde. Deitei, dormi. Acordei com a
vontade de assassinar uma pessoa. Regime não é de
Deus não, estou com tanta fome que comeria o seu
braço agora mesmo.
Roman começa a rir e eu acabo
acompanhando, mas dona Tatiana leva suas
convicções a sério.
— Por que não pede a uma cozinheira para
preparar alguma coisa? — pergunto.
— Ela decidiu dar o dia de folga para todos
os funcionários — meu irmão responde. — É por
isso que vou dormir fora, não esperem por mim.
— Vai dormir com alguém? — Tatiana
corre para perto de Roman, os olhos brilhantes de
expectativa. — Eu a conheço?
— Provavelmente sim, e vai ser alguém que
nem eu conheço ainda, mãe. Se chama sexo casual.
Nem sei como teve coragem de ensinar a gente a
usar camisinha — Roman levanta, atordoado com
as investidas.
— Todo mundo tem algum arrependimento
na vida. Andrei vai trazer a namorada na semana
que vem para um almoço — mamãe lamenta.
Ainda nem conheço a moça e já sei que ninguém
aprova o relacionamento do irmão mais novo. —
Ela não quer ter filhos.
— Boa sorte — Roman diz baixinho
quando passa por mim, esse traidor.
— Acho que vou contratar umas
empregadas novas — conta ela, retornando ao
preparo da sua refeição mirabolante. — Jovens e
bonitas. Quem sabe alguma delas não decide dar o
golpe da barriga em pelo menos um de vocês?
— Você não está falando sério. — Continuo
de pé, assistindo-a caminhar de um lado para o
outro. Ela me lança um sorriso.
— Não estou, mas não importaria se
acontecesse. — Sorri mais amplamente, balança a
cabeça e me olha com a feição preocupada. —
Como foi a consulta?
— Bóris é… — Não encontro o termo
adequado.
— Um amor — completa por mim.
— Essa não é bem a palavra que eu usaria,
mãe. — Rimos juntos. — Queria perguntar uma
coisa.
— Você quer saber por que eu disse aquelas
coisas para Lara no outro dia? — adianta minha
questão. Acho que as mães têm esse dom de ler os
pensamentos dos filhos. Ou a minha que é
realmente de outro planeta.
— Eu olhava para ela de outra forma? —
pergunto com mais precisão.
— Ivan, meu amor, alguma vez eu já estive
errada sobre qualquer coisa? Sei que tenho esse
meu jeito de ser, mas nunca inventaria uma coisa
dessas. Se eu disse isso é porque quero o seu bem.
Jamais entendi por qual motivo insistia tanto
naquele relacionamento quando já tinha
sentimentos por outra pessoa.
— Como eu nunca percebi? Ainda não
acredito.
— Você não quer acreditar. Só não demora
demais para mudar de opinião.
Confirmo com a cabeça, olho o relógio no
pulso. Daqui a pouco começa a escurecer, queria
ligar para Lara, conversar sobre hoje, assistir suas
mil expressões e destruir suas defesas como tenho
feito aos poucos.
Eu deveria ligar.
— Onde estão meus outros irmãos?
— Andrei vai dormir fora, com a
namorada. — Ela faz outra careta. — Vladimir está
na empresa, deve chegar mais tarde.
— Estava pensando — digo com cuidado
— em chamar Lara para vir hoje.
É imediato, minha mãe desliga o fogo,
começa a recolher sua bagunça.
— Vamos pedir alguma coisa para comer,
do que será que ela gosta? Culinária italiana,
japonesa, quem sabe um restaurante tradicional?
— Não sei, mãe. Vou ligar para ela e
perguntar. Não vai ficar criando expectativa, por
favor, e tente não a assustar que nem da última vez.
— Quem saiu correndo foi você, queria
mesmo era ficar beijando debaixo da árvore.
Sabia que ela tinha visto.
Finjo que não ouvi nada e volto pelo
corredor, subo as escadas contente por Tatiana não
ter feito mais perguntas sobre a consulta, apesar de
tudo, respeitando meu espaço.
Deixo o celular em cima da cama e sigo
para o banheiro. Vai ser bom me aproximar de
Lara, continuo com o objetivo de me redimir e
cativar a confiança que destruí. Houve uma época
em que ela sempre me procurava quando precisava
de ajuda, era para mim que ela ligava quando
ficava até tarde em alguma festa e não queria voltar
sozinha. Sinto falta disso.
Quando começo a tirar a roupa para entrar
no banho, escuto o aparelho tocar no outro cômodo,
mas decido ignorar por enquanto. Realmente
preciso esfriar a cabeça antes de ligar para ela. A
água gelada me ajuda a relaxar diante de tudo. Tive
medo de não conseguir, de perder a cabeça e
desistir da consulta.
Demoro um longo tempo até estar pronto e,
quando volto para o quarto, o aparelho continua
vibrando e tocando uma música irritante. Assim
que me aproximo para atender, ele para e anuncia
seis ligações não atendidas de Lara.
É como um dejavú, sinto o pânico me
dominar. Escuto sua voz chorosa e descontrolada
gritando que não me queria ao seu lado, que era
para todos nós nos afastarmos para sempre.
Todos eles me ligaram quando a briga das
duas começou, mas foi por Lara que eu tentei
chegar o mais rápido possível. Prefiro não pensar
no que isso significa sobre mim, sobre o meu
caráter.
Disco o número, ela só me atende na
terceira chamada.
— Ivan — sussurra. Escuto vozes do outro
lado, o som de uma música clássica. — Tentei te
ligar um monte de vezes!
— Eu estava no banho — explico, minha
voz inconstante com o desespero se desfazendo. —
Aconteceu alguma coisa?
— Será que você pode vir me buscar?
— Na verdade eu pretendia chamar você
para vir aqui em casa, minha mãe quer pedir
alguma coisa para o jantar.
— Pode vir agora?
— Está acontecendo alguma coisa?
— Não, não. Bem, meu pai acabou de
chegar, parece que ele teve a brilhante ideia de
jantar com alguns amigos e não estou com vontade
de ficar aqui. Mas não tenho nenhuma desculpa
para fugir, a não ser que você me ajude.
— Está pedindo minha ajuda? — Sorrio
com uma pontada de orgulho, isso é um bom sinal.
— Você vem ou não? — Alguém diz
qualquer coisa para ela, que responde sem eu
conseguir entender. — Tenho que ir, não demora.
Ela quer que eu vá, penso, acalmando-me
do medo remanescente, não é como da outra vez,
ela quer que eu vá.
E eu vou, rápido e imensamente ansioso.
Esperançoso como não me sentia desde…
Desde…
Nunca, eu nunca me senti assim.
É a primeira vez.
CAPÍTULO 17
Tela Vazia

DESLIGO O TELEFONE antes de voltar para a


sala de jantar. Mikhail resolveu convidar meia
dúzia de amigos para uma pequena socialização,
não existe divertimento que aprecie tanto quanto
exibir a imensidão da própria fortuna e sua família
perfeita. Nesse tipo de evento, inevitavelmente me
transformo em uma espécie de troféu a ser
envaidecido, que só existe para receber elogios e
desfilar com um sorriso de ouro.
Bastou escutar o som da primeira garrafa de
vinho sendo aberta para me desesperar. Durante
muito tempo, quando o medo me dominava, eu
apenas suportava com a cabeça baixa, mas a vida
da gente ganha uma nova perspectiva quando temos
alguém do nosso lado. É como se lutar e vencer não
fosse mais uma possibilidade distante.
Ivan não simboliza mais a minha fraqueza,
agora encontro uma esperança há muito perdida
quando penso nele, no nosso beijo e na promessa
que fez de reconquistar a minha confiança. Se meus
sonhos mais secretos se transformaram em
realidade, então tudo é possível.
É por isso que não relutei ao discar seu
número e pedir que viesse me buscar.
Minha mãe conversa com três mulheres
distribuídas em poltronas ao redor da mesa de
centro, todas mais velhas do que eu. Aleksandra
conseguiu disfarçar as olheiras que já fazem parte
da sua aparência debilitada, mas o corpo cada vez
mais magro atrai olhares preocupados.
Sigo em outra direção, torcendo para
ninguém me interceptar. Sinto os olhos de Mikhail
queimando cada movimento meu enquanto conta
piadas de mal gosto a um grupo de cinco homens
vestidos com ternos de risca e sapatos de lustrosos.
Fico perto da mesa de Zakuski, fingindo um
interesse muito grande na organização dos pratos e
na aparência dos blini com caviar de salmão e na
mistura colorida de ovos, presunto e pepinos da
salada Olivier.
Espero que Ivan não demore, calculo que
consiga chegar em menos de vinte minutos se fizer
um pouco de esforço. Não quero estar aqui quando
a noite findar e o álcool assumir o controle das
ações de Mikhail.
O som de um automóvel do lado de fora me
faz ficar eufórica. Não posso transparecer que
aguardo a chegada de alguém ou seria evidente que
orquestrei uma fuga. Pensar que verei Ivan
novamente revive toda a expectativa que se
apoderou de mim antes dos nossos lábios se
tocarem pela primeira vez.
Mikhail faz questão de levantar para receber
o visitante, talvez esteja esperando por mais
amigos. Ele desaparece pelo corredor, rumo ao
salão de entrada. Começa a conversar com outra
pessoa e a voz me é familiar, mas não se trata de
Ivan.
Passo as mãos sobre o vestido de verão.
Apesar do clima frio ser constante no país, em
algumas épocas no ano a gente consegue manter
um vestuário mais tropical. Gosto da liberdade que
o calor oferece, de usar roupas leves e observar
como o rosto das pessoas fica corado com pouco
esforço.
As vozes no outro cômodo vão se tornando
mais nítidas à medida que retornam e reconheço
frases soltas de agradecimentos sendo proferidas
por Mikhail, que é o primeiro a surgir no meu
campo de visão. Ao seu lado, em seguida,
reconheço o presidente Livannov.
Dimitrio Livannov.
Não me deixo intimidar com o olhar afiado
que os dois me oferecem e nem saio do meu lugar
para prestar cumprimentos. Dimitrio expôs minha
fragilidade apenas uma vez, não vou permitir que
repita o feito.
Aceito seguir estritamente aquilo que
Mikhail exige de mim, nem mais, nem menos. Uma
educação quase principesca e um sorriso constante,
sorrir, sorrir e sorrir. É isso o que Dimitrio recebe
quando vem na minha direção, ignorando os
demais visitantes, sozinho e com intenções
explicitas de me acuar.
— Lara Ihascova — diz com um timbre
afetado. — Outra vez nos encontramos.
— Dimitrio. — Limito-me a dizer sem
olhar diretamente em seus olhos. Mikhail ergue
uma taça no ar e me encara de forma hostil. Um
aviso mudo, uma ameaça velada para me
comportar.
— Não tivemos a chance de conversar a
sós, aquela reunião escapou um pouco do controle.
— Dimitrio pega da mesa uma fruta em conserva e
serve uma dose de vodca em um dos vários copos
de cristal alinhados sobre a mesa.
— Não precisamos conversar, deixou claro
seus pensamentos sobre mim. — Utilizo um tom
brando, calmo.
Tento fazer relações com a mente e
entender por que os dois se aproximaram ao ponto
de Mikhail convidá-lo. Meu pseudopai pode ser a
escória da sociedade, o próprio camarada do diabo,
mas sabe como cuidar bem dos negócios e não
move um único dedo se não tiver certeza dos
lucros.
O que Dimitrio tem a oferecer? O que ele
procura?
— Você se parece um pouco com ela — diz
—, acho que é por causa disso aqui. — Ele pega
uma mecha do meu cabelo, deslizando os dedos na
extensão dos fios. — Mas quando Petrova me
contava sobre a querida irmã, não era assim que eu
imaginava você.
— Desculpe, senhor Livannov, prefiro não
conversar sobre Petrova com você.
Ivan, onde está você?
— Seu pai me ligou. Fiquei muito surpreso,
faz muitos anos que tento me aproximar de Mikhail
Ihascov, o grande investidor que alcançou os
números da família Volkiov. Mas achei que depois
daquela reunião ele não fosse mais querer negociar
comigo, afinal de contas os pais não querem ter os
próprios filhos sendo chamados de assassinos.
Parece que existem alguns problemas nesse paraíso.
— Tenho que ir, com licença.
— Não se atreva a sair agora — grunhe —
ou seu pai vai presenciar uma cena muito
desagradável. — Seus dentes rangem entre uma
palavra e outra. — Acha que eu não percebi como
ele tem você na palma da mão? Depois de tudo o
que Mikhail me ofereceu, fico admirado que não
tenha vendido você ao primeiro charlatão em troca
de uma garrafa de vodca.
Estaco no lugar.
Eu deveria saber que alguma coisa
apareceria para atrapalhar meus planos, minar
minha felicidade. Mas Dimitrio não é o primeiro
que exige de mim um comportamento premeditado.
No jogo das palavras e da atuação, eu sou como
uma velha profissional.
— O que você quer? — Vou direto ao
ponto.
— Sabe, não sou idiota como aquele Ivan
ou os irmãos dele. Eu sei juntar dois mais dois, faz
muito tempo que seu pai está revelando um vício
enrustido e logo essa bomba vai explodir.
Merda, merda, merda.
— Ainda não entendi onde pretende chegar.
— Eu estou enfrentando um dilema. Não
sou um homem mau, entende? — explica
friamente, nem ao menos transparece ficar
incomodado por utilizar expressões tão vis. — Mas
você sempre foi como um personagem fictício para
mim, uma vilã de história em quadrinhos. Desde o
dia em que coloquei os olhos em você pela primeira
vez, isso mudou, se transformou em uma pessoa de
carne e osso, real o suficiente para ser odiada.
— Não precisa ser assim — murmuro,
controlando para não me alterar. Já suspeito onde
ele pretende chegar.
— Depois que fui embora naquele dia, só
conseguia pensar no quanto era injusto ela ter sido
tirada de mim. Você tirou toda a minha felicidade,
então fiquei pensando e pensando, e resolvi que
deveria tirar a sua felicidade também.
Dimitrio segura mais uma vez meu cabelo,
arruma as mechas em cima dos meus ombros.
Mikhail esteve alimentando um monstro e não
percebeu que ele poderia engolir a ambos. Seus
olhos devem ter ostentado um verde vibrante no
passado, mas agora me analisam com um tom
opaco semelhante ao das folhas nas árvores quando
o inverno se aproxima.
— Quero te oferecer uma coisa.
— Não quero nada de você — desdenho.
— Conheço a família Volkiov. — Continua
como se não tivesse me ouvido. — Escondem
segredos, cada um mais problemático que o outro.
Você acha que está protegida com Ivan, mas no
momento que mais precisar de ajuda, ele vai virar
as costas para você. Nesse dia, vou estar esperando
de braços abertos.
— Você está errado.
Ivan não me abandonaria… não é?
Dimitrio se aproxima um pouco mais, ouço
as risadas esganiçadas das senhoras excêntricas no
outro lado da sala. Devem estar falando sobre nós.
— Eu estou errado? Você acredita nele? —
Dimitrio ergue meu rosto com os dedos. — Então
por que ele ainda não sabe que o papai gosta de
espancar a filha querida quando está caindo de
bêbado?
Recuo, desfazendo seu toque, assustada e
descrente. Não é possível que ele — logo ele! —
descobriu. Tomei cuidado para que ninguém
percebesse. Nunca reclamei, nunca dei indícios da
minha dor, nunca!
— Não sei do que está falando — suspiro,
mas sou traída pela minha voz trêmula.
— Você deve estar se perguntando como eu
descobri isso — resmunga com um sorriso canalha
estampado no rosto. — Ficaria surpresa com uma
ou duas coisas que andei descobrindo sobre vocês,
sobre Mikhail, a empresa… Guarde as minhas
palavras, Lara. Não sou seu inimigo. Posso dar tudo
o que deseja, você só precisa pedir. Tudo o que
peço em troca é a sua felicidade. Justo, você não
acha?
— Você só pode estar louco se acha que eu
pediria ajuda para você.
— Não tenho como te obrigar, essa é a
verdade, mas estou cansado de andar em círculos.
Como pode ver, eu e Mikhail nos tornamos grandes
amigos, então é questão de tempo até que você me
dê exatamente o que eu preciso.
Nego com a cabeça, surpresa demais para
responder à altura. Mikhail atrai pessoas ruins,
estou cercada com esse tipo de gente. Esse homem
diz que daria qualquer coisa em troca da minha
felicidade, sendo que eu nem me lembro como é ter
algo desse tipo.
Ele quer tirar algo que não possuo.
Essa é a diferença entre Dimitrio e Ivan, os
dois amaram a mesma mulher, se encantaram e
foram atraídos pela sua bondade. Mas enquanto
Ivan preferiu se afastar para não ferir as pessoas ao
seu redor, Dimitrio continua afundando e puxando
inocentes consigo.
Acha que me destruindo vai conseguir se
livrar da própria dor. Um homem que tem tudo,
menos aquilo que mais deseja, é tão perigoso
quanto a pessoa que nunca desejou uma coisa
sequer na vida — o primeiro luta com mais força,
corrompe com mais vontade e não coloca limites na
busca por aquilo que almeja para si; enquanto o
segundo simplesmente não se importa com os
danos causados.
Dimitrio é do primeiro tipo.
Mikhail do segundo.
Uma comoção tem início. Ivan chegou em
algum momento enquanto eu conversava com
Dimitrio e agora cumprimenta meu pai e minha
mãe. Ele não se deu ao trabalho de colocar uma
roupa adequada, usa bermuda jeans e uma camisa
polo, listrada com as cores azul e preta. Nossos
olhos se encontram e sou preenchida com uma
vontade inexplicável de me agarrar a ele e nunca
mais soltar.
— Parece que seu príncipe encantado
chegou — cochicha Dimitrio com os lábios
erroneamente próximos. — Não esquece o que eu
disse, Lara. Posso oferecer o que você quiser.
Deixo Dimitrio e sua proposta doentia para
trás, ele não me impede dessa vez. Escuto meu
coração batendo em um ponto específico do
ouvido, zonza pela conversa recém encerrada,
aturdida pela expressão intensa no rosto de Ivan.
Ele não completa o caminho até mim,
aguarda ao lado de Mikhail e exprime um sorriso
enquanto me aproximo. Por um segundo, receio
que me julgue e tire conclusões precipitadas por
estar conversando com Dimitrio, mas esse medo
vai embora assim que passa os braços pela minha
cintura.
— Vim buscar você — anuncia como se
tivéssemos combinado alguma coisa; pelo menos
captou a mensagem implícita para manter a
discrição sobre sua vinda.
Antes de responder, fecho os olhos e
retribuo seu toque, envolvo-me em seu corpo e
registro como a sensação é reconfortante. É isso o
que eu quero para mim, um futuro no qual eu não
precise sentir medo nem estar à espera de um novo
pesar que me assole.
— Ivan disse que queria fazer uma surpresa
— diz Mikhail, nem um pouco contente e com um
tom desconfiado.
— Espero que não seja um problema —
falo para o meu pai com um tom inocente. Ele
planejou me humilhar trazendo Dimitrio aqui e
agora sou eu quem vai deixá-lo em uma posição
constrangedora.
— Claro que não. — Mikhail ergue a taça
mais uma vez, fazendo-me lembrar que voltarei
para casa.
Sem perder mais tempo, guio Ivan até a
saída, desesperada para deixar esse ambiente. Ele
não diz nada enquanto abro a porta que nos leva à
frente da mansão. Talvez tenha ficado nervoso ou
decepcionado, talvez acredite que eu estava com
Dimitrio por vontade própria.
— Está tudo bem? — pergunto receosa.
Paramos no meio do caminho, consigo ver
que seu carro está estacionado na rua, em frente ao
portão. Ivan não responde, desnuda meu corpo com
os olhos, acaricia meu rosto com a palma da mão.
De repente, sinto seus dedos pressionarem a minha
cintura, empurrando-me para trás até estarmos
colados contra o muro que circunda os limites da
propriedade.
Rápido, intenso e descontrolado. Não
poderia esperar menos de Ivan.
Seus lábios assaltam os meus, desejosos,
famintos. A sensação é ainda mais inexplicável,
tudo em mim anseia por mais, como se a minha
vida dependesse de pertencer a ele.
O desejo que exala do meu corpo não é
recente; são anos de contenção, de vontades e
fantasias suprimidas. Quando me toca com luxúria,
ofereço o controle total sobre mim, desarmo as
minhas defesas e esqueço que existe um mundo em
que os problemas são reais.
Ele consegue pressionar o corpo contra o
meu e explorar minha pele sem interromper o
contato das nossas bocas. Com os saltos, fico um
pouco mais alta, mas ainda me sinto diminuta nessa
posição, uma cativa dentro dos seus braços.
— Ivan — sussurro em uma reação
involuntária.
— Senti falta disso — comenta baixinho
sem nunca me soltar. Está ofegante, sedento.
— Eu também — confesso.
Uma eternidade não seria suficiente para me
cansar dele. Um dia, quando dermos nomes
verdadeiros a esses sentimentos, vou revelar tudo
para Ivan e tenho certeza de que ele não vai me
abandonar. Dimitrio estava errado.
— Queria ter beijado você no meio
daquelas pessoas, quase fiquei louco quando vi
Dimitrio conversando com você.
Cada frase representa um novo beijo.
Queremos tudo ao mesmo tempo: explorar o corpo
um do outro, nos beijarmos e conversar. Queremos
sentir a completude novamente.
— Eu não sabia que ele vinha — informo
enquanto Ivan desce os lábios carinhosamente pelo
meu pescoço, explorando a região sem nenhuma
pressa. Faz minha vista perder o foco e quase deixo
meu celular cair no chão pela fraqueza que me
causa nos membros.
— Eu sei — responde. — Não precisa se
explicar, Lara. Foi para mim que você ligou, foi na
minha direção que você seguiu assim que me viu
chegar. Eu disse, não vou ser mais um idiota.
Eu vou contar, essa é uma certeza muito
clara agora.
Assim que o contrato estiver assinado,
quando Mikhail tiver suas garantias, vou dividir
minhas dores com Ivan. Vou deixar que me ajude
como sempre fez no passado. Até lá, só preciso me
fartar dessa paixão que cresce dentro de mim e se
conecta com a alegria e a esperança e a liberdade.
— Vamos embora antes que isso saia do
controle — diz e, apesar das palavras, ele não toma
a iniciativa de se afastar.
Bem no fundo da minha consciência, o
pensamento de que os seguranças nos assistem e
que várias das nossas câmeras de segurança
registram o momento não são suficientes para que
eu concorde com qualquer interrupção que envolva
minha boca se distanciando da boca dele.
Só depois de muitas carícias, beijos e
suspiros, Ivan se distancia e segura a minha mão.
Ele está diferente, mais leve. Os cabelos ficam mais
escuros à luz da lua, mas não menos atraentes.
Deve ser a aparência da noite quando se esconde
atrás das montanhas do horizonte.
Ele é lindo.
— Vamos — diz descontraído, como se
qualquer coisa que tenha visto dentro da minha
casa não tivesse importância. — Vou te contar
sobre a consulta mais esquisita da minha vida, com
um psicólogo aposentado há mil anos, e sobre a
tentativa fracassada da minha mãe de fazer uma
dieta. E você precisa escolher se prefere comida
japonesa ou italiana, mas tenha em mente que
minha mãe vai escolher italiana de qualquer forma.

NÃO SOCAR DIMITRIO foi a decisão mais difícil


que já tomei na minha vida. Na próxima consulta
com Bóris, teremos mais motivos para conversar
sobre coisas que originam a minha raiva.
Deixei subentendido na reunião que não
queria aquele marginal perto de Lara, e mesmo,
assim precisei assistir de longe enquanto os dois
conversavam. Subestimei Mikhail achando que
daria algum valor às minhas palavras.
Tenho que desvendar como Mikhail detém
controle sobre Lara, não pode ser apenas fidelidade
familiar, nego-me a acreditar nisso. Tem alguma
coisa acontecendo que ela se recusa a me contar.
Mas são tantas dúvidas que não consigo formular
uma teoria consistente e isso me dilacera por
dentro, pois a minha vontade real era obrigar que
confessasse tudo, que aceitasse a minha ajuda e me
deixasse salvá-la dessa prisão de aparências.
Contudo, se eu fizer algo assim, posso
perder Lara para sempre e não estou disposto a
perder algo que demorei tanto tempo para perceber
o quanto preciso.
Durante todo o caminho até a minha casa,
consigo disfarçar bem o nervosismo. Conto para ela
sobre a consulta com Bóris, a excentricidade dos
seus métodos, mas oculto detalhes sobre os
assuntos que discutimos. Conversamos sobre minha
mãe também e Lara se diverte com os feitos de
dona Tatiana na cozinha.
Fingir que não me importo com seja lá o
que ela estava discutindo com Dimitrio vai se
tornando mais fácil à medida que nos aproximamos
do nosso destino.
Aciono o portão eletrônico e entro com o
carro no extenso terreno que circunda nossa
mansão. Como minha mãe liberou os funcionários,
nenhum segurança aparece para nos receber. Sigo
dirigindo até a garagem, onde os carros de Roman
ficam guardados a maior parte do tempo.
— São todos da sua família? — Lara
questiona, o semblante iluminado diante dos
automóveis assim que descemos.
— A maioria é do meu irmão — explico,
pensando no quanto ela parece sensual com essa
roupa fina e suave no meio da garagem escura.
— Qual dos três? — indaga. — Não, me
deixa adivinhar: Roman?
— Óbvio, essa coleção é o maior orgulho
dele. — Sorrio e movimento a cabeça insinuando
que se aproxime. Quero entrar em casa com ela ao
meu lado.
— Ele usa todos? — pergunta, caminhando
com os olhos fixos nas cores brilhantes e formatos
dinâmicos dos conversíveis.
— Não, um ou outro. Na maior parte do
tempo ficam guardados.
— Que desperdício — murmura. Estica a
mão e entrelaça na minha, preservando o interesse
fixo no cenário tecnológico ao nosso redor.
Acho que não tem consciência do que está
fazendo comigo, de como me preenche com sua
presença utilizando de gestos tão simples e
inocentes. Quando estamos sozinhos, consigo
enxergar a menina curiosa que foi um dia, a mesma
que roubava tanto a minha atenção.
As palavras de Tatiana soam extremamente
coerentes agora.
Mesmo quando Petrova estava viva,
camuflei esse interesse em prol de um senso ético,
afinal, era a irmã mais nova da minha noiva. Esse
interesse gatuno que ainda não tenho certeza de
como nomear foi suprimido por tempo demais e
agora batalha para me consumir.
Não vou mais lutar contra isso,
principalmente depois de tantas revelações, de ter
causado tanto sofrimento. Eu estou vivo.
Vivo de verdade.
E quero continuar vivendo.
— Pensando em alguma coisa importante?
— A voz de Lara me transporta de volta para o
presente, os sons dos nossos passos reverberam
através da escada que desponta no andar principal.
— Está com uma ruga no meio da testa.
— Na vida, em como tudo mudou. Em
como eu gosto — digo sinceramente, quero que ela
saiba.
— Ivan — diz baixinho. O tom soa como
um pedido, minha mente sedenta transforma todas
as suas ações em desejos que precisam ser saciados.
Toda vez que meu nome escapa dos seus lábios,
sou inundado com a vontade de ouvi-la suspirando.
— Obrigada por me buscar.
— Sempre que precisar, pode me ligar que
vou correndo. — Abandonamos a escada estreita
do térreo e chegamos na cozinha. Por algum
milagre, não sobrou nenhum indício de que minha
mãe tentou assassinar a gastronomia nesse mesmo
ambiente pouco tempo atrás. — Vamos pedir
alguma coisa para comer, Tatiana deve estar no
saguão. Quer beber alguma coisa?
— Não, está tudo bem. Vamos
cumprimentá-la primeiro.
Guio Lara por entre cômodos distintos, a
mansão é enorme, repleta de corredores
ornamentados e janelas duplas. Quando chegamos
na sala principal, encontro Vladimir e Tatiana à
meio caminho da saída. Minha mãe arregala os
olhos ao nos ver, acerta um tapa no braço do meu
irmão, depois se recompõe e sorri como se nada
tivesse acontecido.
— Lara, querida, ainda bem que chegaram a
tempo de um abraço. Infelizmente não vou poder
ficar. Tenho um… compromisso. Vladimir tem um
compromisso também. Nós dois temos
compromissos.
Escondo o rosto entre as mãos. As duas se
cumprimentam e Lara segura o riso. Vladimir
permanece entediado perto da porta, esfregando o
local agredido como se Tatiana tivesse alguma
força excepcional.
— Sutiliza é seu nome do meio, mãe — ele
diz, tão envergonhado quanto eu. — Vamos logo,
meu compromisso é muito, muito importante.
— Achei que iam jantar com a gente —
Lara sugere. Seu pescoço começa a ficar vermelho,
entendendo as intenções da minha mãe tarde
demais.
— Como eu queria que sim — finge
Tatiana com seu teatro barato. — Mas esse
compromisso, sabe como é! Compromissos fora de
hora.
— Só vamos embora logo, mãe! Está
piorando a situação — Vladimir implora um pouco
irritado.
— Compromisso! — repete minha mãe pela
milésima vez, como se a repetição validasse sua
mentira.
Realizamos uma sequência veloz de
cumprimentos e despedidas. Não fico ressentido
com meu irmão, ele claramente foi obrigado a sair
da própria casa para Tatiana colocar em prática seu
plano mirabolante — e um tanto evidente — de nos
deixar sozinhos.
Um minuto depois, ficamos apenas eu e
Lara sem saber muito bem como agir.
— Sua mãe é um pouco… — Ela busca
palavras.
— Louca — sugiro.
— Diferente — conclui.
— Ou seja, louca.
Rimos juntos, tornando o clima menos
constrangedor. Lara arruma o vestido, senta em um
dos sofás e se curva para retirar as sandálias de
salto. Outra vez os detalhes me atingem,
sussurrando como essa cena me parece correta.
Como me emociona a liberdade que ela sente nessa
casa. Crescemos aqui, brincamos juntos em cada
um desses corredores.
— Comida italiana ou japonesa?
— Você escolhe — responde, colocando os
pés descalços sobre o estafado. Pousa a cabeça no
encosto do sofá e fecha os olhos.
É a imagem mais linda que já vi, os lábios
entreabertos enquanto todo o seu corpo relaxa.
Porém, subitamente, abre outra vez os olhos e
levanta, assustada, como se algum pensamento
ruim perturbasse a sua mente.
— Desculpa! Não acredito na minha falta
de educação. Não sei o que me deu. — Um pouco
atrapalhada, ela se segura no meu braço para calçar
os sapatos outra vez.
— Calma, está tudo bem. — Retiro as
sandálias da sua mão e ergo seu rosto para encarar
o meu. Deslizo os dedos por cada umas das suas
clavículas, massageando a região do pescoço. Não
resisto a esse pescoço, preciso tocar essa parte do
seu corpo sempre quando a oportunidade surge. —
Pode ficar à vontade, não tem ninguém olhando.
— Você está olhando — sussurra, distraída
com minhas carícias.
— Estou olhando e gostando muito do que
estou vendo.
Lara fecha os olhos, inclina a cabeça, um
convite explicito para saciarmos nossos desejos. O
beijo é diferente de qualquer outro, muito mais
íntimo e verdadeiro. Admiro como se entrega para
mim, como o medo e a tristeza abandonam seu
corpo ao mesmo tempo que exploro seus lábios.
O mundo começa a fazer sentido na minha
cabeça. Eu a desejo. Sempre desejei, mas me
recusei tanto a assumir — por vergonha e respeito
ao meu relacionamento anterior — que fiquei cego
e burro.
Exploro suas curvas com a pontas dos
dedos, memorizando cada traço com a mesma
dedicação que um pintor antes de mergulhar em
uma tela vazia. Lara é a minha tela vazia, um
quadro solitário que merece as cores da vida. Que
merece se pintar de alegria e sentimentos bons.
— Sua mãe é ótima — brinca um pouco
inebriada, o sorriso preguiçoso. — Planejou tudo
certinho.
Eu poderia esclarecer que os planos de
Tatiana envolviam muito mais do que beijos e
afagos, mas escolho não estragar o momento. Por
mais tentador que me pareça, não vou exigir mais
do que ela pode me oferecer. Já me considero um
filho da puta sortudo por ter a chance de consertar
os meus erros.
— O que você prefere comer? — Sento-me
no sofá, puxando-a comigo. Minha mão se move
por conta própria, volta a tatear sua nuca, captando
as oscilações nervosas que se manifestam em forma
de suspiros.
— Se me beijar de novo a gente nunca vai
descobrir.
— Vou tentar me segurar por uns dez
segundos. Você podia escolher depressa.
Não espero mais do que dois dos segundos
prometidos, tão logo nos entrelaçamos em abraços
e beijos. É mágico, como se cada toque fosse
inédito, tão melhor como na primeira vez. Entre um
suspiro e outros, ela deixa escapar o meu nome,
sem perceber as reações que causa no meu corpo,
na minha mente e no meu coração.
Não sabemos dar nome ao que estamos
construindo ainda, mas, seja lá o que for, é especial.
Faz o tempo perder a importância, sempre curto
demais, insuficiente para tudo o que podemos
planejar.
— Posso me acostumar com isso — diz
Lara minutos após nos fartarmos um do outro.
— Ficar sem comer para sempre?
— Não, isso. Você, assim atencioso. Tenho
medo de como vai ser quando acabar.
Uma punhalada no coração seria menos
dolorosa.
— O que te faz pensar que vai acabar? —
Viro para o lado, puxando suas pernas sobre as
minhas. Tenho que ser cuidadoso com as palavras,
aproveitar esses raros momentos em que ela se
expõe.
— Porque é assim que as coisas são, elas
acabam. Mas eu decidi viver isso ao máximo, Ivan.
Não sei lutar contra você.
— Não precisa mais lutar contra mim, não
mais.
Lara pousa a mão no meu rosto, estuda
meus traços. Desliza os dedos em cima da minha
boca, gerando todo o tipo de intenção maliciosa
dentro de mim. Penso na vida que perdi, nas
oportunidades de ser feliz que exilei no passado.
— Você ainda a ama? — rumoreja.
Petrova.
É nosso fantasma, nosso pecado. Petrova
tem aparecido cada vez menos nos meus
pensamentos, mas meu coração ainda lamenta a sua
perda. Ninguém se recupera do ódio e da tristeza
tão fácil.
Mas, amor? Eu ainda a amo com toda a
minha existência? Já a amei assim algum dia
sequer? Quem ama de verdade consegue
desenvolver sentimentos por outra pessoa?
Não, tenho certeza que não.
— É diferente — digo a verdade. — Ela
não está mais aqui.
— Mas você ainda a ama, sente falta? Se
não tivesse descoberto sobre ela e Dimitrio, teria
me beijado?
— Não te beijei por causa deles — digo,
esquivando-me da pergunta. — Você ainda a ama?
— Sim — Lara responde, pegando-me de
surpresa. — Nunca deixei de amar a minha irmã.
Forcei a crença na minha cabeça de que
Lara não tinha nenhum sentimento pela irmã mais
velha. Isso me ajudou a suportar a raiva, o rancor.
Repeti tanto essa hipótese na minha cabeça que
quase esqueci como as duas se davam bem. A briga
na noite do acidente foi a primeira que chegou ao
meu conhecimento.
— Um dia você vai me contar? — Ouço-me
dizer, contrariando todos os planos. São meias
palavras, mas Lara capta o assunto com sua
perspicácia.
— Sim. — Ela sorri um sorriso sem alegria.
Fazemos carinho um no outro, fechamos os olhos
de vez em quando, só para escutar o silêncio até
algum dos dois voltar a falar: — Vou contar, só
preciso de mais um tempo.
— Vai me contar tudo? — Posso estar indo
longe, invadindo seu espaço, mas continuar
adiando esse assunto seria danoso demais,
sobretudo por ter certeza de que alguém a
machucou.
— Sim — responde decididamente. Sinto o
alívio correr solto na minha corrente sanguínea, não
contava com sua confiança repentina. — Logo você
vai saber de tudo. Muito em breve, depois pode
decidir o que fazer. Se vamos continuar com o
acordo.
— Não é mais sobre o acordo, Lara.
— Nunca foi para mim — revela, os olhos
repletos de lágrimas de repente.
Eu a envolvo em meus braços. Não mereço
a sua confiança, não a conquistei por mérito. Lara
sempre confiou em mim, nunca deixou esse
sentimento morrer. O único insensível nessa
história fui eu, que não fui capaz de perceber uma
coisa tão simples.
Pensei que Lara não confiava mais em mim,
mas ela só precisava que eu desse espaço para essa
confiança. Lara merece certezas. Ela precisa. E eu
preciso também, tanto das certezas que prometeu
me dar em breve como das minhas próprias; e a
primeira delas, tão óbvia, ecoa como a confissão de
um crime, áspera e cruel:
— Eu não amo mais a Petrova — murmuro
com a boca encostada nos seus cabelos.
Eu não a amo mais, repito em meus
pensamentos. Não a amo, e talvez nunca tenha
amado.
Eu não a amo mais.
Reconhecer torna real e Lara emudece sem
manifestar como minhas palavras refletem em seus
pensamentos. No meio da minha libertação, não
deixo de pensar nas provocações de Bóris.
Se eu não amo mais Petrova, de onde vem a
minha raiva?
CAPÍTULO 18
Mais Rápido Vai Acabar

CERTA VEZ, ENCONTREI em um pequeno


anúncio de jornal, desses minimalistas que ficam
escondidos no rodapé das páginas e que quase
ninguém lê, uma frase motivacional vinculada a um
projeto de ajuda anônima.
Era uma frase dessas ditas por pensadores
da antiguidade, sentenças populares e inspiradoras
que atravessaram séculos de existência para
incentivar o ser humano. Não me lembro com
certeza as palavras exatas, mas, de acordo com o
sábio, a felicidade seria um problema individual
que dispensa conselhos, porque a gente
experimenta as sensações e os efeitos da vida de
uma maneira muito particular.
Resumidamente, a propaganda sugeria que
cada pessoa tem o dever de procurar a própria
felicidade.
Não sei dizer o quanto da minha versão
mais jovem acreditou na sugestão, mas tudo o que
tenho vivido nos últimos dias parece reafirmar que
posso alcançar a felicidade que tanto almejo. Que
posso escolher aquilo que me faz bem e que,
mesmo no meio de todas as adversidades, a
esperança ainda pode renascer.
Ivan entra na cozinha com uma caixa
redonda e o cheiro da pizza domina meu olfato.
Resolvemos bem o dilema do jantar escolhendo
uma refeição casual, sem rótulos sociais ou
imposições de etiqueta.
Estamos conhecendo um ao outro sem as
máscaras da discórdia. Abandonamos os grilhões
que nos prendiam ao passado. Não somos mais os
mesmos de cinco anos atrás, mas também não
precisamos ser. Não queremos.
— Esse sorriso é por causa da pizza ou por
mim? — ele brinca, cheio de graça e provocação.
— Na ordem natural da vida, pizza ganha
de homem. Mas homem segurando uma pizza
ganha de quase qualquer coisa. Menos de chocolate
quente no inverno.
— Que específico! Eu posso ter umas ideias
— provoca com seu sorriso sedutor.
Faço minha melhor expressão de inocência.
Tenho um palpite sobre a quais ideias ele se refere.
Mas meu corpo, como sempre, me trai, ruboriza na
região do pescoço e denuncia os caminhos lascivos
que a minha mente percorre.
Ivan é um homem bonito, mas a sua beleza
vai muito além dos cabelos castanhos muito claros
e dos olhos que pendem para o dourado, ou mesmo
seu perfeito sorriso simétrico. Está, sobretudo, no
charme, no tom imperioso da sua voz quando
pronuncia o meu nome e no olhar investigativo que
me desvenda.
Ele deposita a caixa na minha frente,
começa a procurar pratos e talheres nas gavetas e
armários. É evidente que não conhece a cozinha da
própria casa, mas não o julgo por causa disso. Faz
pouco tempo que retornou e muita coisa deve estar
diferente.
— Quando a gente se casar, vamos nos
mudar para um apartamento com dois armários e
duas gavetas — reclama consigo mesmo.
Ah…
Ivan é esse tipo de pessoa que não entende o
que sente e não filtra as palavras quando quer expor
seus pensamentos. É intenso e verdadeiro, mesmo
seus erros são consequências da personalidade
obstinada.
O que me preocupa é a forma como tudo o
que ele faz e fala me atinge. Já decidi não lutar
mais contra isso, mas ainda receio as surpresas que
o futuro incerto reserva.
Vamos nos casar. Isso torna toda essa
relação mais complicada. Não somos namorados ou
qualquer coisa parecida, não temos uma história de
amor, com beijos na praia durante o pôr do sol.
Mesmo assim, em breve vou receber o seu
sobrenome.
— Vamos nos casar — digo em voz alta
para ver como soa. Ivan interrompe sua busca para
sorrir para mim. — Vamos nos casar mesmo —
repito.
— Não vai me dizer que só percebeu isso
agora. — Ele arqueia as sobrancelhas.
— Não. — Abaixo os olhos, apertando as
mãos uma na outra. — É só que, bem, a forma
como você falou foi diferente. Sabe que a gente não
precisa dividir a mesma casa, certo?
— Tudo é diferente agora, Lara. — Ivan
desiste dos utensílios, abre a tampa da caixa e leva
sua mão ao meu rosto para induzir minha atenção.
— Não sei mentir. Sou confuso e complicado, mas
não consigo olhar para você e fingir que não sei
como está infeliz naquela casa. Vamos nos casar
por causa da empresa, é verdade, mas quero
aproveitar essa chance para te ajudar e me redimir
um pouco. Sei que Mikhail é seu pai, estou
tentando não me esquecer como costumava ser um
bom sogro.
— Mas?
— Mas eu fiquei sabendo que ele interferiu
na sua carreira, que continua aproximando você e
Dimitrio contra a minha vontade. Depois que a
gente se casar, quero que saia daquela casa. Mas
isso vai depender do que você quer.
— Como você sabe que…
— Não importa como descobri, não vou
falar nada por enquanto. Andrei disse que a gente
não pode arriscar um processo e já sei que você não
vai confessar nada agora. Não estou te
pressionando, só comentando que eu sei. Você quer
ou não quer sair da casa do seu pai?
— Eu quero! — confirmo rápido. — Quero
morar com você depois do casamento.
— Perfeito — completa com um timbre
decidido, aliviado, até.
Só mais alguns dias e poderei confessar
tudo. Depois que o contrato de unificação estiver
pronto, poderemos marcar a data do casamento.
Ivan não é apenas minha salvação, é minha
libertação.
Começamos a comer a pizza com as mãos,
mas não aguento mais do que dois pedaços, é o
meu limite. Ivan brinca o tempo todo, conta-me
coisas sobre sua vida nas Américas, os estranhos
costumes dos nova-iorquinos e uma ideia recente
de investir em um clube familiar diurno.
Confiro de vez em quando o celular
pousado sobre a bancada, com medo de receber
uma ligação de Mikhail, mas isso não acontece e eu
só posso agradecer.
Um assunto leva a outro, conversamos
sobre Dema e o pedido de namoro no outro dia.
Faço uma nota mental de que preciso fazer uma
visita para ela no café, colocar os assuntos em dia.
Estou em falta e ela deve estar preocupada.
Quando enfim nos levantamos da bancada,
já passa da meia-noite. Não nos beijamos mais
nenhuma vez e mesmo assim foi um contato
especial. A cena de uma realidade paralela se
produz nos confins da minha mente: eu, Ivan e Iago
dividindo uma refeição como essa em uma noite de
muita preguiça e risadas. Ainda não posso sonhar
tão longe, exigir tanto quando o universo tem sido
tão generoso.
— Quero te apresentar uma pessoa — digo
com um pouco de receio.
Ivan se ergue, pensativo; seu rosto é um
enigma. Leva a caixa com dois pedaços de pizza
remanescentes para a geladeira, nem um pouco
elegante.
— Um amigo? — questiona.
— Sim, um amigo muito importante para
mim. Não precisa, se não quiser.
— Quando? — Vejo seu esforço para não
me inundar com questionamentos, mas por sorte se
satisfaz com uma única pergunta. Pretendo revelar
a verdade e a história de Iago apenas depois que
tiverem se conhecido.
— Daqui a dez dias. — Até lá, Mikhail já
terá o seu contrato e a data do casamento será uma
certeza.
— Certo.
Voltamos para a sala e nenhum outro
diálogo é necessário. A gente se envolve em
carícias e beijos que oscilam entre a intensidade e a
leveza, entre o desejo e a expectativa.
Mas sei que essa noite tem data de validade.
— Preciso voltar para casa — reclamo
quando passa muito do horário que Mikhail julgaria
adequado.
— Pode ficar se quiser — sugere.
É tentador, tudo o que eu mais desejo.
Poderia me mudar imediatamente, tamanha vontade
de continuar feliz como agora. Mas não quero que
Mikhail suspeite das minhas intenções, que
desconfie dos meus planos para me livrar dele.
— Preciso — repito.
Ivan fica de pé, erguendo-me junto com ele.
Voltamos pela porta da cozinha que leva até a
garagem. Já no carro de Ivan, assim que saímos
olho para trás e lamento abandonar o céu para
voltar ao inferno.
O percurso entre as duas mansões é curto e
Ivan estaciona na frente da entrada.
— É melhor você não entrar com o carro, já
devem estar todos dormindo — digo, pensando no
meu próprio bem.
— Não é perigoso?
— Tem câmeras e seguranças, Ivan. — Rio,
o perigo vive dentro de casa, não fora dela.
— Nesse final de semana vamos à festa dos
pais de Svetlana, vai ser bom para a imprensa.
Tudo bem?
Quase me esqueci disso. Não é a melhor das
ideias, mas compreendo a importância de enaltecer
a nossa relação diante da sociedade. Ainda estamos
vinculados ao acordo e temos um compromisso
com as empresas das nossas famílias.
— Tudo bem por mim.
— Vou te enviar uma mensagem para
combinarmos direito.
Beijamo-nos rapidamente, um contato
procedido por sorrisos de ambas as partes.
Ivan só vai embora depois que eu entro, sem
ter ideia de que, mesmo após sua partida, continuo
imóvel com as mãos apoiadas sobre o peito. Cogito
a possibilidade de fugir, adiar um confronto e
amenizar os impactos que o descontrole daquele
homem acarretam. Mas não posso arriscar ou os
últimos anos de sacrifícios consecutivos não terão
nenhuma validade. Não suportei dias seguidos de
humilhação para perder tudo no final.
Estou perto de poder adotar Iago e deixar
essa casa — mais do que um dia pude imaginar,
mais do que sequer acreditei.
Obrigo meus pés a se moverem
silenciosamente pelo jardim, o farfalhar das folhas
nas árvores e arbustos de flores fazem meu coração
saltar. Não é uma fronte tão glamorosa e bem
cuidada como a da mansão Volkiov, mas reconheço
o charme das orquídeas brancas e a promessa de
cores no gradil enfadonho das tulipas. O que
absorve a beleza desse lugar são os seus habitantes.
A casa está silenciosa e escura quando entro
e passo na frente do salão de visitas, que ainda
mantém indícios da confraternização. Taças de
vinho descansam vazias em cima da mesa central e
copos de vodca e mais taças brilham sobre outros
móveis com a reflexo da luz da lua que entra pelas
janelas.
Desabotoo as sandálias e carrego-as na mão,
pisando devagar para não chamar atenção. O
caminho entre a entrada e o meu quarto nunca
pareceu tão longo. As sombras nos corredores
zombam do meu medo, relembrando cada momento
de sofrimento que já vivenciei aqui dentro.
Subo os degraus da escada pé ante pé,
pedindo em pensamentos que essa noite chegue ao
fim, que o meu temor se mostre desnecessário
quando o sol raiar pela manhã.
Só mais um pouco…
Não me deparo com Mikhail e nem escuto
indícios da sua embriaguez. Consigo chegar até
meu quarto sem nenhuma surpresa ruim. Encosto a
porta e giro a chave duas vezes, aliviada e
agradecida. Decido não tomar outro banho para não
fazer barulho e troco o vestido por um conjunto de
pijama colorido. Deito na cama, repassando os
eventos das últimas horas.
Tenho medo de dormir e descobrir que tudo
não passou de um sonho bom. Toco meus lábios.
Foi real, não tem como sentir tantas emoções juntas
e não ser de verdade.
Meus olhos ficam pesados com o passar dos
minutos, pisco cada vez mais longamente,
capturando o breu das pálpebras fechadas. Entre
um fechar de olhos e outro, enxergo os números no
relógio digital do outro lado do quarto, sobre minha
mesa de trabalho. Uma e quinze da madrugada.
Pisco outra vez, três e quarenta e cinco.
Três e quarenta e seis.
Um estrondo, o som de uma porta batendo.
Três e quarenta e nove.
Um sonho ruim, um objeto de vidro se
estilhaça ao longe. Vislumbro os números a
iluminarem o quarto em tons diferentes de
vermelho.
Quatro horas.
— Lara! — O grito me desperta do sono
leve. A porta agita e range com os golpes
sequenciados que a atingem. — Abre essa maldita
porta! Eu sei que está aí dentro.
Sento na cama, encolhida e com
medo. Ivan, posso ligar para ele e acabar com isso.
Não preciso esperar, ele disse que viria sempre que
eu precisasse. Confio nele, enganei-me fingindo
que não confiava, que tinha condições de aguentar
isso depois de estar em seus braços.
— Está tramando contra mim, sua coisinha
asquerosa! — Mais socos, a fala enrolada me causa
náuseas. — Saiu correndo como uma cadela no cio.
Tremendo, fico de pé e começo a procurar
meu celular. Giro pelo quarto a tempo de lembrar o
segundo fatídico em que coloquei o aparelho em
cima do balcão na cozinha da casa de Ivan.
Estou perdida.
Não.
Não pode ser.
Respiro fundo, piscando para afastar as
lágrimas. Já passei por isso, sei como vai ser. É a
última vez, posso fazer isso, posso suportar. É a
última vez, tem que ser.
— Vai embora! — grito de volta, as
palavras esganiçadas fazem jus ao meu pavor.
— Maldita! — berra. Outro golpe na porta.
Vai acabar arrombando como da última vez.
A voz mansa da minha mãe surge no
corredor, baixa e submissa. Tenta pedir que se
acalme e eu me ressinto. Ela só tenta intervir
quando sabe que o marido atingiu o limite tênue da
agressividade. É a terceira vez que ela faz isso.
A primeira, foi na noite do acidente.
A segunda, quando contei das minhas
intenções sobre a adoção de Iago.
E agora, pela terceira vez, só serve para que
meu medo se intensifique.
No fundo, não é por mim que ela tenta, ou
me defenderia todas as vezes. É por ele, por essa
vida de mentiras e fotografias em família, por si
mesma. Os dois conversam, ele grita adjetivos
chulos sobre ela. Revive sua traição, a filha
bastarda que assumiu. Isso é suficiente para fazer
Aleksandra desistir.
Quanto mais rápido ele tiver o que deseja,
mais rápido vai acabar. Mikhail não vai desistir até
descontar sua raiva, até transformar essa dor que
me consome em um sofrimento físico.
Abro a porta do quarto, saio para o
corredor. Ele está parado a menos que dez passos
de mim, o corpo cambaleante tem dificuldade para
se manter ereto. Estreita os olhos.
— Filha — murmura carinhosamente. —
Petrova, senti tanto a sua falta.
Prendo a respiração, ele está fora de si.
Aproxima-se devagar e me envolve em seus braços
bêbados. O cheiro do álcool exala da sua pele,
deixa-me perturbada e amedrontada.
Quanto antes começar, mais rápido vai
acabar.
— Não sou Petrova, Mikhail. — Empurro
devagar o seu corpo.
Mikhail olha para baixo, todas as rugas na
sua testa espelham uma confusão enraivecida. Não
entende o que está acontecendo, como não sou sua
primogênita.
Com a grande mão, ele movimenta meus
cabelos com carinho, retira do caminho os fios
longos que escondem meu rosto. De repente, com a
mesma mão, segura meu pescoço e me lança contra
a parede, roubando minha respiração.
Quanto antes começar, mais rápido vai
acabar.
— Está tentando me enganar? — grita, os
olhos vermelhos e o corpo em espasmos. — Acha
que pode ser como ela?
Continua me enforcando. Não luto, não
tento me libertar. É inútil, só preciso suportar mais
uma vez. Fecho os olhos e imagino a cena que me
encantou mais cedo.
Estou com Iago em uma cozinha pequena,
os dois em bancos altos atrás da bancada, Ivan
chega cheio de sorrisos com duas caixas de pizza. É
preciso duas, pois os dois comem muito.
Sinto meu corpo ser lançado no chão,
minhas vias aéreas ardem e eu tusso enquanto volto
a respirar. Mikhail entra no meu quarto, revira
coisas. Não consigo levantar, tento me arrastar para
longe, mas ele retorna rápido demais.
— Não vai conseguir me enganar mais —
diz para si.
Vejo o brilho de um objeto afiado. Grito
com desespero, o temor de toda uma vida. Mas ele
cai sobre um joelho, desajeitado. Envolve meu
pescoço outra vez, ergue minha cabeça e a golpeia
contra o chão.
Tudo fica escuro, tenho vislumbres de suas
ações. Sinto quando começa a puxar meus cabelos
e identifico os ruídos de uma tesoura. Os fios caem
no meu rosto enquanto ele continua me humilhando
com palavras e chacoalhadas.
Não sei calcular o tempo transcorrido, mas
Mikhail fica satisfeito somente quando finaliza seu
ataque aos meus cabelos. Continuo encolhida,
esperando por mais uma agressão, mas ele recua,
bêbado demais, e se arrasta rumo às escadas, em
silêncio.
Quanto antes começar, mais rápido vai
acabar.
CAPÍTULO 19
Luz na Escuridão

— NÃO VAMOS ASSINAR o contrato até eu


descobrir o que está acontecendo. Há dias que não
consigo falar com ela!
Vladimir me observa de sua cadeira
presidencial na sala de reuniões. Às sete da manhã.
A luz solar que atravessa as paredes de vidro reflete
os últimos resquícios da névoa noturna, deixando
todo o ambiente com um tom de dourado
translúcido.
Meu irmão mais velho merece ocupar essa
posição, mesmo que nós quatro tenhamos direitos
iguais aos negócios da família. Quando nosso pai
morreu, Vladimir não precisava tomar posse de
todas as responsabilidades. Como fiquei
responsável pelo setor financeiro, descobri muito
tempo depois as manobras financeiras que precisou
fazer para não sucumbirmos à falência.
Ele nunca confessou, Roman e Andrei nem
desconfiam, e por fim escolhi respeitar seu segredo.
Sozinho, Vladimir reergueu o capital
econômico da empresa e reorganizou os
investimentos. Ninguém nunca soube como o nome
Volkiov esteve perto da extinção.
— Sete dias não é tanto tempo assim —
responde com uma calma profissional. — A gente
não pode cancelar a assinatura do contrato um dia
antes da data combinada, Ivan.
— Tem alguma coisa errada, eu sinto isso.
— Se me der um único motivo plausível,
cancelo a assinatura no mesmo instante. Achei que
as coisas estavam indo bem entre vocês.
— Já tentou ir na mansão? — Roman
pergunta com os braços cruzados em cima da mesa
e um curativo barato destacado na sobrancelha
direita.
— Eu não sei o que pode ter acontecido.
Desde quando ela jantou lá em casa, não consigo
mais entrar em contato. Fui até a mansão da família
dela no dia seguinte para entregar o celular que
esqueceu em cima do balcão da cozinha e não me
deixaram entrar. Disseram que ela já tinha saído
para o trabalho.
— Conta a história completa, Ivan. Ainda
não é suficiente, Mikhail pode desistir do acordo se
a gente adiar por mais tempo.
— Liguei na empresa e ela não tinha ido
trabalhar. Não foi nenhum dia depois daquela noite.
Já liguei no celular dela, mas ninguém atende, ou a
chamada é cancelada. Os seguranças não me
recebem, dizem que ela não está em casa, que está
doente, que foi viajar. Já perdi a conta de quantas
desculpas escutei.
— Já parou para pensar que talvez ela não
queira ver você? — sugere o presidente. Vladimir
não é sutil, não escolhe palavras macias. Essas
características foram todas herdadas de Tatiana.
— Isso está fora de cogitação — respondo
contrariado. — Você não entende.
— Eu entendo muito bem, Ivan. Não estou
dizendo que essa situação não é suspeita. Mas o
meu compromisso é com a empresa. Não posso
simplesmente adiar o acordo sem um motivo
sólido. Além disso, Lara vai precisar assinar o
contrato. Seja lá o que estiver acontecendo,
veremos amanhã.
Passo a mão sobre a cabeça, o desespero faz
a instabilidade emocional ficar quase insuportável.
Bóris se recusa a me atender enquanto eu não
encontrar a resposta para o seu maldito
questionamento, Vladimir insiste em seguir com a
assinatura do contrato e Lara continua inalcançável.
Não posso aceitar que ela tenha
simplesmente decidido me ignorar da noite para o
dia, ainda mais depois de tudo o que passamos, de
todas as confissões, dos beijos e dos planos. Sinto-
me sufocado dentro de mim mesmo, preso nessa
armadura de carne e osso inútil.
A saudade não é um sentimento bom, ela
destrói a gente de dentro para fora, consome nosso
bom senso.
— Onde está Andrei? — pergunto. Talvez
ao menos ele fique do meu lado.
— Não vem para a empresa hoje, está
revisando os papéis. Mas, se ele estivesse aqui, iria
concordar comigo — diz Vladimir, prevendo o
rumo dos meus pensamentos.
No fundo, compreendo como meu pedido
não é profissional. Queria mais tempo para
descobrir o que pode ter acontecido, se alguma
coisa mudou.
A angústia tem roubado minhas noites
tranquilas de sono e talvez seja mesmo um exagero
da minha parte.
São sete dias, não cinco anos. Muitas coisas
podem ter acontecido nesse meio tempo. O
problema é a lembrança daquele hematoma no
braço dela, a marca de uma mão exata, com todos
os cinco dedos. Cada dia a menos ao lado de Lara,
é um dia a mais sem a chance de descobrir quem
fez aquilo.
Olho para meus dois irmãos, ambos
assistem o meu conflito interno. Roman é uma
versão seis anos mais jovem de Vladimir, exceto
pelo cabelo alguns tons mais claros, os olhos
pendendo para o verde e as pequenas cicatrizes que
foram sendo amenizadas pelo tempo. São meus
alicerces, os motivos pelo quais continuo
respirando depois do que aconteceu. Posso confiar
neles, preciso.
— Encontrei uma marca no braço dela —
conto cheio de rancor. Transformar essa lembrança
em palavras faz minha boca queimar de desprezo.
— Um hematoma, como se alguém tivesse…
apertado, torcido, não sei. Alguém fez aquilo.
— Um namorado? — A voz de Vladimir se
altera, toda a postura esvai.
— Ela disse que não. Prometeu me contar
depois da assinatura do contrato. Mas isso faz uma
semana, não tenho como ter certeza já que ela não
retorna as minhas ligações e nem me recebe na casa
dela.
— Você encontrou a merda de um roxo no
braço dela e ainda não descobriu quem foi o
defunto que fez isso? — Roman me interroga cheio
de descrença. Seus nervos estão sempre na beira do
precipício, muito mais agressivos que os meus.
Algumas vezes eu só queria jogar tudo para
o alto e não pensar tanto nas consequências,
exatamente como ele faz.
— Acha que eu não quero descobrir? Que
não estou com vontade de encontrar o covarde? —
rebato um pouco ofendido. Tudo o que eu mais
queria era dar um rosto ao homem que tocou nela.
— Não é tão simples, Roman — Vladimir
intervém. — Lara esteve sozinha por muito tempo.
Se existe um homem, independente de qual é a
relação dos dois, e se ele já fez isso antes, ela não
iria mesmo confessar tão facilmente. Basta olhar as
estatísticas de agressão contra a mulher, em escala
global; o número daquelas que procuram ajuda são
ínfimos.
Pode ter acontecido antes.
Não tinha pensado sobre isso, que talvez ela
tenha sido agredida outras vezes enquanto eu me
lamentava do outro lado do mundo. Que pode ter
sido agredida nos dias em que eu mesmo insistia
em permanecer no escuro sem oferecer o devido
valor ao seu sorriso, à sua existência.
— Essa é a diferença entre mim e vocês três
— Roman desdenha, olhando-me com seu
costumeiro semblante desafiador. — Não consigo
viver como o herói, ser o cara bonzinho que espera
o momento certo. Você demorou cinco anos para
descobrir que gostava dela de verdade, vai esperar
mais cinco para assumir?
— Não vou esperar mais nada — explico
com mais sensatez. Se eu entrar na conversa dele
vamos acabar brigando e não é isso o que
queremos. — Mas não tinha como obrigá-la a me
contar. Tudo o que eu sei é que queria me
apresentar um amigo. Eu estou de mãos atadas
enquanto isso.
— Não estou te julgando. — Roman vai
falando enquanto defende sua perspectiva. —
Nunca me apeguei a mulher nenhuma por causa
disso. Não sei diferenciar o que é certo para o
mundo do que é certo para mim. No seu lugar, já
teria feito uma besteira.
— É tudo o que eu mais quero fazer —
desabafo, se ele soubesse como meus pensamentos
têm vagado por caminhos sombrios, teria outra
opinião sobre minhas escolhas. — Mas a Lara
merece mais de mim, não um salvador, não um
vingador. Ela precisa de um companheiro, de saber
que não precisa mais enfrentar tudo sozinha. Até
pouco tempo eu era só um idiota que insistia em
colocar nela uma culpa que não cabia.
Roman abre um sorriso orgulhoso e balança
a cabeça de forma positiva, aprovando minhas
palavras.
— É por isso que os mocinhos ficam com a
garota no final — ele brinca. — Estou acostumado
a ser o vilão. Gosto mais da parte que envolve
salvar e vingar.
— Você não é um vilão — digo em
seguida, acompanhando sua tentativa de tornar o
clima mais ameno, mas Roman apenas desvia o
olhar para Vladimir, sem aceitar minha afirmação.
— Ivan, você sabe que pode sempre contar
com a gente. Depois de tudo o que contou, só posso
reafirmar que adiar a assinatura do contrato não é
uma boa ideia — Vladimir acrescenta, retornando
para o assunto principal. — Amanhã Mikhail tem
que trazer a filha para assinar o contrato. É a sua
melhor chance.
Ele está certo, eu sei que sim.
— Tudo bem — suspiro —, só não aguento
mais tanta angústia, principalmente agora que eu
quero que isso dê certo.
— É bom ver você tão decidido. —
Vladimir sorri para mim. Procura o olhar de Roman
e seu rosto assume a feição de irmão mais velho. —
E você precisa segurar a onda amanhã, não tenho
condições para lidar com dois descontrolados ao
mesmo tempo.
— Não conte com a minha presença —
Roman informa com o bom humor contido. — Me
liguem se alguma coisa acontecer, vou aproveitar
para visitar aquele terreno no subúrbio.
— Para o clube? — Vladimir se interessa.
— Sim, andei estudando o terreno, é muito
bom. Apenas uma residência habitada. Dois ou três
comércios. O restante são lotes. Vou fazer uma
visita preliminar para os moradores da casa, estudar
o interesse na venda.
Os dois começam a conversar sobre o clube
que será construído ainda esse ano. Quando
apresentei a ideia, eles começaram os
planejamentos e em menos de três dias já tínhamos
um projeto pronto.
Não tenho cabeça para entrar na discussão.
Vou concordando e registrando apenas algumas
passagens da conversa. Meus pensamentos voam
para longe, se fixam nas lembranças dos poucos
momentos bons que experimentei ao lado de Lara.
No gemido de prazer com os contornos do meu
nome que ela deixa escapar toda vez que nos
beijamos. Na sensação de completude que me
preencheu quando fizemos planos sinceros de
morarmos juntos.
Essa distância me corrói, seu silêncio me
consome e o vazio me deixa fraco.
— Ivan? Ouviu o que eu disse? — Vladimir
me chama, claramente pela segunda ou terceira
vez; nego seu questionamento. — Lembra quando
eu disse que tínhamos algumas suspeitas sobre os
negócios de Mikhail e que por isso Andrei
conseguiu descobrir aquelas coisas sobre Lara? —
Confirmo. — Bem, todo mundo sabe que a
empresa de Mikhail cresceu muito, por isso
aceitamos a unificação temporária. Pensei em fazer
sociedade com ele na construção do clube, então
decidi fazer uma pesquisa financeira sobre os
investimentos dele nos últimos anos e descobri uma
coisa estranha.
— Como assim?
— Não houveram investimentos que
justifiquem tanto acúmulo de capital. Não que
exista alguma inconsistência fiscal, tudo o que
encontrei está de acordo com a lei. Mas nós, que
estamos acostumados com o mundo dos negócios,
sabemos perceber quando algum número não
condiz com expectativas reais.
— Você acha que ele está envolvido com
fraude?
Cada vez mais assumo a necessidade de
tirar Lara daquela casa.
— Não acho que seja o caso, parece mais
com investimento clandestino.
— E mesmo assim você não pensou em
cancelar o acordo? — Fico surpreso, Vladimir não
é o tipo de homem que se arrisca assim.
— É apenas uma hipótese. Além do mais,
você não aceitaria.
De fato, nada vai me fazer desistir de Lara.
Sobretudo sabendo que Dimitrio não pensaria duas
vezes antes de assumir o meu lugar.
— Ele começou a injetar muito dinheiro em
doações — Roman murmura folheando um bloco
de anotações. — Orfanatos.
— Doações não geram renda — Vladimir
observa.
— Mesmo assim é estranho. É o triplo do
que a nossa empresa reserva para esse fim — diz
Roman.
— Lara já mencionou alguma coisa sobre
isso? — Vladimir me pergunta.
— Não, mas eu posso tentar descobrir.
— Faça isso. — Ele olha no relógio de
pulso, faz uma careta e suspira. — Preciso ir, tenho
uma teleconferência daqui meia hora. Temos mais
alguma coisa para resolver?
Lembro de uma questão que tenho adiado
por muitos dias. Na verdade, não queria lidar com
mais de um conflito ao mesmo tempo, mas posso
aproveitar a oportunidade para me livrar de um
peso.
Se existe alguém nesse mundo que pode ter
feito as escolhas certas no meu lugar, esse alguém é
Vladimir. Ele acerta nos lugares em que nós
falhamos.
— Queria perguntar mais uma coisa. —
Não existe maneira amena de abordar o assunto,
escolho ser direto. — É sobre o acidente. Outro dia
me lembrei que houve outra vítima, um homem. Na
época não pensei em prestar condolências, mas eu
estava fora de mim.
— Eu me lembro, o que tem ele?
— Por acaso você se lembra o nome do
homem que morreu, procurou saber da família
dele?
— Você não sabe? — Vladimir fica
surpreso. Procura ajuda nos olhos de Roman, que
também transparece um incômodo suspeito. —
Pensando bem, eu nunca tive a chance de contar.
— Contar o quê?
— O homem no outro carro era Lev
Turturov, lembra dele?
— O nome parece familiar. — Coço os
olhos, procuro nos confins da minha mente uma
associação com alguém, mas nada me ocorre.
— Ele foi motorista particular das filhas de
Mikhail quando éramos menores. Acho que você
tinha uns oito anos na época. Como você estava de
luto e a família de Petrova também, tomei a
liberdade de prestar os pêsames aos parentes dele
em nome de todos, foi quando descobri.
Coincidência triste.
Sim, recordo do homem, era um sujeito
amável, encarregado do transporte exclusivo de
Lara e Petrova. Estava sempre levando as duas de
um lado para o outro, esperava a tarde toda na porta
da escola. Tenho poucas impressões das causas da
demissão, pois a gente não se intrometia ainda nos
assuntos dos adultos, quanto mais nos de outra
família.
— Eu não tinha ideia — lamento. — Quem
amparou a família com os gastos do enterro?
— Ninguém, na verdade. A esposa já tinha
falecido há algum tempo, ele não tinha família, só
um enteado de três anos, filho da mulher em outro
relacionamento, mas acho que os dois criavam
como se fosse dele.
— E o que aconteceu com o menino?
— Foi para um orfanato pelo que fiquei
sabendo. Não tinha nenhum parente vivo, ninguém
reivindicou a guarda dele.
Um menino de três anos, praticamente um
bebê. É surreal pensar que um ser tão pequeno, tão
indefeso, perdeu tanto em apenas uma noite. Eu era
um homem adulto, com uma família inteira para me
apoiar. Isolei-me por completa imaturidade,
ingratidão. Mas essa criança nem teve a chance de
ser amada.
— Você sabe para qual orfanato ele foi
enviado?
— Não acompanhei o caso tão de perto
assim. Logo você foi embora, tive que me
preocupar com nossos negócios. Desculpe.
— Isso não é difícil de descobrir, o próprio
hospital pode fornecer a informação, acho —
Roman sugere. — Se isso for importante para você,
é o que eu faria no seu lugar.
— Pode conseguir isso? — peço. — Acho
que preciso, é o mínimo. Talvez eu precise
consertar alguns erros, matar os fantasmas que me
assombraram por tanto tempo.
— Claro, assim que eu tiver alguma
informação, envio uma mensagem.
— Obrigado.
Despeço-me dos meus irmãos e volto para
minha própria sala. O resto da manhã passa
depressa, agora que vamos investir em um novo
edifício, o trabalho ficou ainda mais intenso.
Decidimos construir um clube familiar em uma
zona considerada financeiramente desprivilegiada.
Assim garantimos qualidade de vida e de lazer a
preços acessíveis, além de geração de empregos.
Mas nem isso é suficiente para me distrair.
Arrisco mais duas ligações para Lara, mas a
chamada se estende até findar automaticamente. No
número residencial, uma funcionária com voz
jovial e trêmula inventa que ela teve que resolver
assuntos pessoais fora da cidade.
No meio da tarde, recebo um e-mail de
Roman. Apenas o nome de um orfanato com o
endereço na linha inferior. Preparo-me para sair
quando recebo mais uma mensagem dele. Leio em
voz alta enquanto sigo para o elevador.
— O nome dele é Iago.
Iago!
Não pode ser um simples acaso. As coisas
começam a fazer sentido na minha cabeça. Durante
o jantar na empresa, quando ouvi o nome pela
primeira vez, a senhora que interceptou Lara
mencionou um orfanato.
Era esse orfanato. Esse Iago. Uma criança,
um menino.
Sorrio comigo mesmo, chego o mais rápido
possível até o carro e tão logo invado as ruas da
cidade. É o mesmo orfanato em que deixei Lara
uma vez, o lugar fica perto do centro, é um prédio
bonito e bem conservado. Não tenho ideia do que
pretendo fazer, do que posso fazer, mas sinto que
preciso disso. Minha alma precisa entender que a
dor nascida daquele acidente não é uma
exclusividade minha.
Outras pessoas sofreram tanto quanto eu.
Lara e sua família. Meus irmãos e Tatiana. Iago.
Até Dimitrio, com todo o seu mau caráter, tem
sofrido amargamente.
Estaciono na frente da instituição, desço do
carro e observo do lado de fora algumas crianças
brincando de roda no pátio externo. Elas cantam
uma cantiga repleta de rimas infantis, gargalham e
continuam a rodar.
Acumulo um pouco de coragem antes de
entrar, seguindo plaquinhas coloridas até a
recepção. Uma secretária jovem e sorridente me
atende, um chapéu cor-de-rosa balançando no alto
da cabeça.
— Posso ajudar? O horário de visitação já
acabou.
Não pensei nos detalhes, apenas entrei no
carro e dirigi. Existem burocracias a serem
seguidas nesse tipo de lugar. Ninguém vai permitir
que um desconhecido chegue perto de uma criança
sem intenções legais de adoção.
— Meu nome é Ivan Volkiov, gostaria de
conversar com a direção a respeito de donativos.
— Só um momento, por favor. — A menina
se levanta, muito satisfeita com as minhas
intenções. Não precisa ser uma mentira, realmente
posso contribuir financeiramente. Ela desaparece
por uma porta dupla enfeitada com borboletas e
volta minutos depois. — Pode entrar, a diretora vai
recebê-lo.
Agradeço um pouco eufórico e entro na sala
da direção. Reconheço a pequena senhora com
quem Lara conversou da outra vez. Uma idosa de
estatura baixa, os cabelos brancos e um sorriso
acolhedor.
— Que prazer em vê-lo, senhor Volkiov! —
Ela estica a mão enrugada, nos cumprimentamos e
ela indica a cadeira.
— Por favor, me chame de Ivan apenas. —
Sento de frente para ela, desesperado por uma
mentira convincente. — Obrigado por me receber.
Estou aqui em nome da… minha empresa. Estamos
avaliando algumas instituições para entrar no nosso
catálogo de doações.
É imediato, seu sorriso se ilumina. Logo
começo a me sentir um monstro por enganar uma
senhora tão simpática. Depois vou ter que avisar
meus irmãos, mas conheço cada um e sei que não
vão se opor. Apresento meus documentos, uma lista
dos hospitais e casas de acolhimento que ajudamos
— baixado às pressas através do aplicativo oficial
da empresa.
Depois de longos quarenta minutos de
conversa, descubro que a diretora lembra em muito
a minha mãe. Os assuntos parecem intermináveis,
conta-me toda a história do orfanato desde sua
fundação, lista os nomes de outros doadores —
inclusive Mikhail Ihascov e Dimitrio Livannov.
— Gostaria de dar uma olhada no prédio, se
não for um problema — arrisco após ter certeza de
que todos os assuntos chegaram ao fim.
— Claro, vou pedir para alguém
acompanhar você.
Respiro aliviado, no fim tudo deu certo.
Outra moça me recebe, usa um uniforme com
estampa de passarinhos na frente. Vai me
apresentando os ambientes, é um prédio grande,
bem equipado e com muitos quartos. Se a situação
fosse outra, não seria cotado como instituição em
potencial para o recebimento de apoio.
Assim que chegamos no pátio principal,
arrisco fazer uma pergunta menos discreta,
aproveitando não haver nenhum superior por perto.
— Por acaso você conhece algum menino
chamado Iago Turturov? Deve ter por volta de oito
anos.
A moça pensa um pouco e olha ao redor,
procurando alguém. Estica o pescoço e estreita os
olhos ao encontrar o alvo da sua busca.
— Ali — diz ela, apontando com o dedo
indicador. — Perto do jardim com a menina ruiva.
É o único Iago com oito anos, depois tem mais dois
no berçário e um na ala dos adolescentes.
Prendo a respiração para conter minhas
emoções. Ninguém pode perceber que tenho mais
interesses nesse lugar. É difícil ver as
características do menino de tão longe, mas seu
cabelo é de um loiro tão branco que faz lembrar do
sol no verão.
— Tudo bem se eu ficar por aqui um
pouco? Quero avaliar como as crianças convivem.
— Claro, volto em dez minutos. Pode ficar
à vontade.
Vou andando devagar na direção de Iago. O
pátio tem um formato oval, com uma pequena área
cheia de areia, alguns brinquedos de recreação e o
jardim. É ali que ele está sentado, conversando
animadamente com a menina de cabelos cheios e
vermelhos ao seu lado.
Ele sorri o tempo todo, gesticula com as
mãos. Parecem estar imersos em um tipo de
discussão infantil. É lindo e puro, diferente de tudo
o que eu poderia ter previsto. Cheguei pensando em
encontrar uma criança triste e calejada com as
infelicidades da vida.
Mas não.
Iago é um ponto de luz, suas gargalhadas se
perpetuam pelo ar. Um menino que teve as
oportunidades roubadas e que mesmo assim parece
mil vezes mais forte do que eu. Mil vezes mais
feliz.
Admiro seu rosto pálido de olhos claros, um
pequeno com trejeitos inteligentes. Consigo
entender tanto sobre ele com apenas um rápido
olhar.
Quero saber mais, escutar mais, conhecer
mais.
Aproximo dos dois, eles não me percebem.
Mantenho uma distância confortável. Só quando a
coragem e o deslumbramento parecem suficientes,
tomo coragem para conversar com ele, mas sou
impedido por um toque no celular. As crianças me
olham cheias de curiosidade.
Afasto-me rapidamente, não querendo
chamar atenção das monitoras.
— Alô — atendo sem ter visto o nome no
visor.
— Ivan, você estava certo — diz Vladimir.
— Deve ter alguma coisa errada. Mikhail acabou
de ligar, pediu para adiarmos a assinatura do
contrato para daqui quatro dias.
CAPÍTULO 20
Fim de Uma Promessa

A VOZ DE Vladimir continua ecoando no outro


lado da linha, insistente e preocupada, mas eu só
escuto as engrenagens da minha cabeça se
movimentando, tiquetaqueando como os ponteiros
de um relógio. Desligo o celular sem me despedir.
Tento lembrar onde estou e porque há tantas
crianças ao meu redor.
Eu poderia esperar uma eternidade para
assinar esse maldito contrato se Lara estivesse ao
meu lado, se eu soubesse o que está acontecendo.
Mas quatro dias da mais profunda escuridão é
tempo demais.
— O senhor está bem? — pergunta uma voz
de criança ao meu lado, estridente e um pouco
geniosa.
Olho ao redor, preciso organizar meus
pensamentos e impulsos. Orfanato, sim. Continuo
parado no meio do pátio principal do orfanato em
que Iago vive. Uma menina de cabelos ruivos,
muito encaracolados e volumosos, me encara com
o pescoço virado para trás na tentativa de estudar
meu rosto.
É uma criatura fascinante com seus olhos
verdes, grandes no rosto agudo e pintalgado.
Imediatamente meu coração se acalma, como se
uma magia branca envolvesse seu pequeno corpo.
— Sim — respondo com um sorriso. —
Estava só pensando em como resolver um
problema.
Tenho que solucionar essa questão
primeiro, uma coisa de cada vez. Eu tentei agir
pelos meios éticos e corretos, mas nem sempre a
resolução dos nossos dilemas habita no controle
absoluto. Não vou esperar mais quatro dias para ver
Lara, não posso.
— E por que você tem que pensar isso? Não
é mais fácil resolver o problema e pronto? Estranho
isso, não entendo não. — Tenho que rir diante do
temperamento da menina. Ela se atrapalha com o
cabelo emaranhado que esparrama e esconde seu
campo de visão. — Eu penso só no meu anjo da
guarda mesmo, que é muito difícil de comprar.
— Vem logo, Tasha!
Iago se mantém afastado, o semblante sério
denunciando alguma insatisfação. Tem qualquer
coisa na forma como me examina com os olhos
semicerrados e o queixo erguido que me faz sentir
orgulho mesmo sem entender os motivos que
justificam sua cautela.
— Aquele é o Iago — Tasha explica,
ignorando descaradamente o chamado. Revira os
olhos com uma sutileza que não combina com sua
personalidade. — Não liga, os meninos são meio
bobos.
Com quatro passos, aproximo-me de Iago; o
menino não se move. Faz uma careta para a amiga,
que continua sorrindo como um espírito livre
enquanto vai para perto dele também. O jardim é
bonito, separado por flores de cores distintas. Nesse
cenário, eles se parecem com dois seres místicos da
natureza.
— Tudo bem, Iago? — Agacho na frente
dele, mas recebo um cruzar de braços enraivecidos
como resposta. — Algum problema? Não gostou de
mim?
— Eu sei bem quem você é — acusa cheio
de desdém.
— Acho que estou em desvantagem então,
pois acabei de conhecer você. — Tento parecer
carismático, quero sua aprovação, que sorria para
mim. É provável que esteja me confundindo com
alguém. — Como sabe quem eu sou?
— Você é o Ivan — pronuncia meu nome
como se eu fosse o próprio monstro do armário.
Tenho certeza de que não revelei meu nome
para ninguém além da diretora e da funcionária na
recepção. O fato de Iago saber quem sou é algo
para o qual não estava preparado.
Há cinco anos, ele perdeu o pai no mesmo
acidente que levou minha noiva. É como se o
destino nos ligasse, como se nossa história
estivesse sendo tecida há muito mais tempo do que
o presente momento.
— Certo, você me pegou agora. Como sabe
quem eu sou?
— Você tem que parar de fazer essas coisas
que você faz, é errado — diz Iago um pouco
enrubescido. Como qualquer criança de oito anos,
suas sentenças não são muito coerentes, tenho que
ter paciência até que alcance um diálogo
esclarecido.
— E o que eu fiz de errado?
— Não posso falar na frente da Tasha, ela é
menina — explica, mas ganha uma cotovelada da
pequena ao seu lado.
— Eu tenho orelha que nem os meninos
mesmo Iago, não tá vendo não? É para ouvir que
serve. Fala logo! — reclama Tasha com a nuvem
de fogo balançando ao redor da cabeça.
Os dois sustentam o olhar contestante um
do outro, mas a menina não se acovarda, não
desiste. Nunca interagi com muitas crianças, é
encantador conhecer esse mundo de expressões e
gestos que só eles dominam, e acabo pego pelo
pensamento de que seria interessante ter um pouco
disso para mim, dessa inocência espontânea.
Claro que vou precisar conferir para ter
certeza se este é mesmo Iago Turturov, embora
duvide provar o contrário. Mas agora, escutar a voz
dessa criança, conhecer suas particularidades,
parece mais importante do que qualquer incerteza.
Além disso, tem o diferencial de Lara já ter
vindo aqui antes, de estar associada com uma
criança chamada Iago nesse mesmo orfanato. Não
tem como ser uma simples coincidência.
— Tudo bem. — Iago se entrega. Avança
um passo na minha direção, prestes a abordar um
assunto aparentemente sério. — Não pode bater nas
meninas.
Processo suas palavras, mas não fazem o
menor sentido. Seus olhos claros entregam um
temor escondido atrás de toda a confiança e
determinação. Tasha recua, entendendo antes que
eu o assunto invocado por Iago.
— Eu nem sei o que dizer. — É difícil
conversar com crianças, elas têm esse costume de
problematizar temas que não deviam compor a
realidade delas. — Eu concordo com você, não é
certo bater nas meninas.
— Mas por que fez isso com a Lara então?
Deveria existir um limite de emoções que
um ser humano é capaz de sentir em um único
segundo. Outra vez, meu cérebro volta a se
movimentar e elaborar conexões. Sinto como se eu
estivesse na frente de um enorme quebra-cabeça,
em busca de peças perdidas no tempo.
Então minhas suspeitas estavam corretas.
Esse é realmente o Iago, um menino de oito anos
que despertou meu ciúme por Lara antes mesmo de
eu entender que tipo de sentimento era esse. Não dá
para ficar mais patético.
— Eu nunca fiz isso com a Lara, por que eu
faria isso? — respondo suavemente, curioso por
mais dessa conversa.
— Você é o namorado dela — explica um
pouco incerto, desvia o olhar para pensar melhor.
— Achei que era você.
— Iago — chamo sua atenção. — Preciso
que explique essa história direito, pode ser?
Alguém machucou a Lara alguma vez? Já viu isso
acontecer?
— Nunca vi. — Nega com a cabeça, é
apenas um menino assustado que luta bravamente
para ser forte. — Mas eu já vi os machucados. No
braço, no rosto de vez em quando. Não foi você
mesmo?
— Não, gosto muito dela, quero ajudar. —
Ao mesmo tempo que desejo investigar mais, sei
que não tenho o direito de impor essa conversa a
duas crianças que nem deveriam conhecer esse tipo
de situação. — Vamos fazer o seguinte, eu prometo
ajudar a Lara se você prometer não se preocupar
mais com isso, tudo bem?
— Vai salvar ela? — questiona com os
olhos iluminados, cheios de esperança. Ainda não
conheço a relação dos dois, mas o amor que sente
por Lara é tão puro e transparente que gera um
anseio no meu peito.
— Vou.
— Promete?
— Prometo sim, Iago.
Abandonando a postura de defensor, Iago se
despede de todas as máscaras de coragem e envolve
meu pescoço. Seu corpo de criança é magro, sinto
todos os ossinhos das costelas quando devolvo o
abraço. Um ser humano tão pequeno e indefeso
precisa ser protegido, amado e cuidado. É injusto e
cruel que tenha vivido sem uma família por todos
esses anos.
— Obrigado — sussurra no meu ouvido.
Eu vejo acontecer, me atinge sem a chance
de contestação. Uma coisa de cada vez, repito em
pensamentos, vou corrigir todos os meus erros.
Nosso abraço é longo, Iago relaxa no meio
do processo. Quando nos separamos, já ostenta um
sorriso cheio de luz. Eu poderia ficar aqui o dia
todo, mas preciso encontrar Lara, não vou desistir
enquanto não olhar nos olhos dela.
— Tenho que ir agora — digo.
— Vai resolver o seu problema? — Tasha
se intromete. — Já pensou bastante?
— Chega de pensar — comunico. Faço um
carinho no rosto dos dois e fico de pé; não queria
me despedir tão depressa. Quando dirigi até esse
orfanato, não tinha ideia do que estava procurando,
mas encontrei mesmo assim.
— Você vai voltar? — Iago pergunta e
passa a mão no cabelo loiro, bagunçando os fios
ainda mais.
— Amanhã — decido sem pestanejar.
Quero conversar mais com ele, por mais tempo e
sobre mais coisas aleatórias. — Vou voltar.
Deixo as crianças e volto pelo corredor à
procura da mulher que estava me acompanhando,
mas não a encontro. Algumas monitoras me
cumprimentam cheias de interesse. Parecem
profissionais amáveis, muito determinadas e
atenciosas; ao menos tenho a garantia de que Iago
não foi maltratado enquanto esteve aqui.
Pensar nessa possibilidade revive em mim
os temores por Lara. Independentemente do quão
esperto e atento Iago pareça ser, uma marca de
agressão é difícil de ser reconhecida, ainda mais se
tratando de uma criança.
Já aconteceu antes, Vladimir estava certo.
Ao chegar no meu carro — depois de deixar
promessas de instaurar um processo para
acrescentar a instituição no nosso catálogo com a
funcionária sorridente da recepção —, sento no
banco do motorista e repasso as minhas
possibilidades.
Já tentei ir até a mansão dos Ihascov, mas
insistem em me dispensar. Na empresa, Mikhail
nunca me recebe, como se suas reuniões fossem
intermináveis.
Todas as outras ideias envolvem práticas
ilícitas. Invadir e brigar são verbos recorrentes nos
planos que surgem e se multiplicam na minha
cabeça. Chega de pensar. Se minhas únicas
oportunidades de reencontrar Lara envolvem a
violação de leis, só existe uma pessoa capaz de me
instruir.
Andrei.
Meu irmão vai saber o que posso fazer.
Disco seu número e coloco no alto-falante. Dou
partida no carro e dirijo devagar, ainda sem rumo.
Depois da terceira tentativa, ele finalmente atende.
— Onde você está? — diz preocupado.
— Eu ia fazer a mesma pergunta. Preciso
falar com você, é importante.
— Vem para casa, tenho que falar com
você também. — Sem pensar duas vezes, jogo o
aparelho sobre o banco do passageiro e guio de
volta para o meu lar.
O fim da tarde lava os resquícios de
amarelo do céu e a treva noturna se apodera da
paisagem, garantindo seu protagonismo com
estrelas brilhantes. Entro com o carro através dos
portões da mansão, mas a pressa me impede de
seguir até a garagem. Abandono o veículo na frente
da casa, com as portas abertas e a chave na ignição.
Andrei abre a porta da entrada para me
receber, tão ansioso quanto eu. A luz do salão da
entrada ilumina seus contornos enquanto subo os
degraus, mas seu olhar temeroso é evidente mesmo
na penumbra.
— Roman me contou sobre a conversa que
tiveram hoje cedo — diz enquanto me acompanha
para dentro. — Sobre Lara.
— Eu preciso que me diga o que fazer,
Andrei. Eu vou invadir a mansão, vasculhar cada
canto daquela casa até encontrar ela.
— Vai ser preso.
— Não importa! — digo enfaticamente,
ainda no controle das minhas ações. — Tentei do
jeito certo. Esperei, insisti. Liguei, procurei. Não
adiantou. Alguém a machucou, Andrei. Se você
tivesse visto o que eu vi… — Não consigo expor
em palavras as características daquele hematoma.
Sento em uma das poltronas caras de dona Tatiana
e respiro fundo.
— Eu já vi — diz meu irmão com firmeza.
Seus olhos se fecham e ele batalha consigo mesmo.
— O que isso quer dizer?
— Eu preciso que fique calmo.
Fico de pé outra vez, meus membros
começam a tremer. Quero muito machucar alguém,
destruir alguma coisa. É uma raiva sem limites que
preenche toda a minha existência. Uma raiva
profunda que me define e esteve sob controle por
todos esses anos.
— Não me pede para ficar calmo! Que
merda você sabe, Andrei?
— Não sabia que continuava acontecendo,
quando Roman contou eu fiquei sem chão. — Meu
irmão abre os olhos cheios de lágrimas, parece o
menino que costumava ser, quando seus cabelos
ainda se agitavam em formatos de caracóis e o
rosto era marcado pela barba rala. — Se eu
soubesse não teria escondido por tanto tempo.
— O que você sabe? — imploro, segurando
os dois lados do seu casaco aberto.
Andrei me empurra, balança a cabeça. Anda
até o outro lado da sala e continua em silêncio. De
nós quatro, é o único capaz de refletir, de escolher
as palavras e a hora certa para falar. Sento-me pela
segunda vez e coloco o antebraço sobre os olhos.
Não vou gostar dessa conversa. Não vou
gostar nem um pouco.
— Há cinco anos, eu fiz uma promessa —
conta. Sua voz soa alta, indicando que retornou
para perto de mim. Escuto o som do seu corpo se
acomodando no sofá ao lado. — Lara me fez
prometer.
— Na noite do acidente — afirmo,
antecipando o impacto.
— Eu fiquei para trás. Todos os outros
saíram correndo quando ligaram do hospital, mas
eu fiquei.
— Acho que me lembro disso — resmungo
ainda com os olhos ocultos.
— Você conhece a história. Lara chegou
depois de nós, nem sabíamos que ela chegaria
naquela noite. A gente escutou quando a porta
bateu e o barulho dos passos dela subindo a escada.
Depois Petrova foi até o segundo andar, as duas
brigaram…
— Já sei tudo isso — interfiro, desesperado
para chegar ao assunto principal.
— Eu fiquei para trás, porque sabia que
Lara ainda estava sozinha lá no quarto. Quando a
casa ficou vazia, o silêncio não foi suficiente para
esconder o choro dela.
As palavras de Andrei vão me
despedaçando. Consigo imaginar cada cena, cada
detalhe. O som dos seus lamentos ecoando dentro
da casa solitária. Seu corpo encolhido em um canto
do quarto.
— Subi a escada. Até hoje não entendo o
medo que senti enquanto fazia isso. Era como se a
minha alma pressentisse que alguma coisa ruim
tinha acontecido.
— Ela estava machucada — arrisco outra
vez.
— Não, Ivan. Ela tinha sido espancada.
Coração, consigo escutar o meu coração
batendo. Retiro o braço dos olhos e minhas
pálpebras se movimentam, capturando toda a luz do
cômodo. Nunca imaginei que a raiva pudesse
atingir um patamar tão perigoso. Um ódio sólido
que me rasga de dentro para fora.
— Onde? — Obrigo as palavras a saírem de
dentro de mim, mas não posso olhar para o meu
irmão agora.
— Ivan…
— Onde!? — grito.
— No corpo todo. O rosto, os lábios. Os
braços dela estavam arranhados. O pescoço…
Ah, a dor…
Começo a chorar, diante de mim a cena se
materializa. É por isso que não foi ao enterro, que
eu não a vi nos dias de luto. Lara viajou todo o
caminho da cidade até a casa de férias sozinha,
machucada. Foi culpada por mim e por todos pela
morte de Petrova.
Ela sofreu, continua sofrendo.
— Por que não me contou? — pergunto
ainda chorando. Sou culpado por isso, aumentei a
sua dor de uma forma imperdoável.
— Eu quis contar. Ameacei chamar a
polícia, mas você não estava lá. Ela estava
destruída, desesperada, me implorou para não fazer
isso. Cada tentativa que fazia para buscar justiça,
era como se triplicasse a dor dela. Foi doloroso
para mim. Lara não queria, tive que respeitar. Você
sabe como as leis no nosso país são brandas com
esses casos. — Andrei se entrega às lágrimas,
imagino que tenha feito isso vezes demais ao longo
desses cinco anos. — Depois, você foi embora e ela
se distanciou.
A camada de lágrima nos meus olhos
distorce a imagem de Andrei. Meu irmão não é
mais o menino de antes. Eles eram como os dois
lados de uma mesma moeda, inseparáveis. Andrei
foi leal, essa promessa levou uma parte dele que
nunca mais vai ser restaurada.
— O que ela contou? — pergunto. Preciso
que toda a verdade seja exposta.
— Nada, não sei por que as duas brigaram,
nem o nome confesso da pessoa que fez aquilo.
Lara só chorava, fiz de tudo para amenizar a dor.
Ajudei-a a tomar banho, fiz alguns curativos.
— Obrigado. — No meio de tantas
revelações ruins, ainda me conforta que Andrei
tenha estado ao seu lado. O medo da próxima
pergunta faz as palavras se prenderem na garganta
antes de serem expelidas. — Ela foi…
— Não! — responde depressa. — Eu não
suportaria deixar algo assim impune. Já foi difícil o
suficiente manter isso só para mim.
Confirmo com a cabeça. Recosto no sofá e
coloco as peças no grande mapa de conexões que
vai se tornando mais evidente a cada nova
revelação. Lara foi agredida na noite do acidente.
Petrova sabia, ela viu e mesmo assim não
confidenciou isso para ninguém. Não procurou
ajuda, não fez nada. Que porra aconteceu naquela
noite?
— Preciso de um nome — afirmo mais para
mim do que para Andrei.
— Mikhail não está na cidade — meu irmão
comenta.
As engrenagens rodam mais rápido,
iluminam a minha mente. Um nome, um homem.
Um pai.
— Mikhail — repito.
— Só pode ter sido ele.
— Mikhail. — Fico de pé e giro sobre meus
próprios pés, preciso chegar na mansão. Tenho que
alcançar aquele homem, tirar Lara de suas garras.
Lara.
— Ivan! — Andrei entra na minha frente,
mas eu enxergo tudo vermelho. — Ele não está na
cidade. Só volta daqui quatro dias.
— É muito tempo para ele continuar vivo!
— Tento me esquivar, mas ele segura meus
ombros.
— Você tem que se controlar! A Lara
precisa de você!
— Falou com ela?
— Sim, por telefone. Eu precisava contar
para ela que não podia mais guardar esse segredo.
Ela está bem, pediu para você não perder o
controle. Para ter paciência. Disse para esperar a
assinatura do contrato.
Fecho os olhos e inspiro. Expiro e inspiro,
repetidas vezes. Não vou conseguir olhar nos olhos
de Mikhail sem arrebentar a cara dele. Sem garantir
que seu destino seja um forno de cremação.
Andrei me abraça, conforta todos os
demônios que brigam dentro de mim.
— Não posso esperar quatro dias Andrei —
lamento.
— Você tem que convencê-la a denunciar.
Tem que descobrir o motivo por nunca ter feito
isso. Tem mais nessa história que a gente não sabe,
Ivan. Se Mikhail souber que a gente sabe, vai fazer
de tudo para se defender. Nós temos o elemento
surpresa, não desperdice isso.
Odeio que esteja certo.
Odeio que eu precise esperar, quando o meu
único anseio é apaziguar essa raiva. Bóris vai ficar
orgulhoso quando souber.
A raiva dentro de mim. Essa raiva que agora
identifico, que encaro como uma deformidade viva.
O que eu sentia — e ainda sinto — por Lara
nunca foi raiva. A raiva é de mim mesmo por nunca
ter corrido atrás do que eu realmente queria.
Mantive o relacionamento com Petrova porque era
mais fácil, cômodo tanto para mim quanto para
aqueles que nos cercavam. Culpei Lara pela morte
da irmã, atribuí a raiva a esse evento para camuflar
meu próprio sentimento de culpa por ter entrado no
carro naquela noite por ela.
Por Lara.
A raiva é minha e unicamente minha, por
ter suprimido e ignorado a única mulher que
despertou em mim todos os sentimentos bons.
CAPÍTULO 21
Tríade do Poder

OS PRINCIPAIS INGREDIENTES para alcançar a


perfeição absoluta em qualquer instância da vida é
o planejamento. Organização, tempo e dinheiro, a
tríade do poder. Depois de tanto investimento,
finalmente estou começando a colher os frutos do
meu trabalho.
O som dos meus sapatos ecoa pelo longo
corredor do hospital, perpetua-se através do
ambiente insalubre junto com os passos da
enfermeira que me acompanha. No ar, paira o odor
inconfundível de eucalipto e lavanda, as paredes
nos observam com uma branquidão opressora.
— Como ela está? — pergunto a
contragosto. Não queria lidar com isso em um
momento tão crucial. Adiar a assinatura do contrato
não estava nos meus planos.
— Nenhuma alteração, senhor Ihascov —
explica, guiando-me por outra sequência de portas
até finalmente alcançarmos o quarto certo. —
Tivemos que aplicar um sedativo, talvez ela esteja
um pouco instável ainda.
— Tentou fugir outra vez? — Controlo o
tom da minha voz, mas não escondo meu
desagrado. Odeio quando tentam se opor às minhas
vontades.
— Encontramos ela se arrastando pelo chão,
queria alcançar a janela. — A enfermeira retira um
molho de chaves do jaleco, elas tilintam na sua mão
quando seleciona uma e introduz na fechadura da
porta à nossa frente. — Vou deixar vocês a sós,
qualquer coisa é só acionar a campainha.
Agradeço a mulher e entro no quarto,
encostando a porta atrás de mim. As cortinas
fechadas atrapalham que minha visão interprete
previamente o cenário; puxo-as para o lado e a luz
da tarde preenche e ilumina cada pequeno detalhe,
desde a televisão na parede principal até a cama
elétrica.
Aproximo-me devagar, preparando um
discurso sobre prioridades. Lara tem se comportado
muito bem desde meu último episódio, mas as
marcas em seu pescoço ficaram evidentes demais.
Por sete dias, consegui mantê-la longe daquele
desequilibrado, mas não tinha planos de adiar por
mais tempo a assinatura do contrato. Preciso
daquele documento, preciso de uma garantia.
Firmar um acordo com a família mais
renomada e bem vista do país é a melhor
camuflagem que eu poderia almejar. Ninguém vai
desconfiar de um empresário de meia-idade,
especialmente um parente dos ícones éticos do
mundo financeiro.
Observo a cama de hospital, o ódio que
sinto por Lara é meu companheiro constante. Ela
me tirou Petrova, minha querida filha, perfeita em
tudo o que fazia. Eu a esculpi com minhas próprias
mãos, uma herdeira sem precedentes. Esse
momento é o mais difícil para mim, quando me
lembro que tudo aconteceu por causa dela.
Vejo suas pálpebras tremerem segundos
antes de acordar. Os olhos sonolentos condenam o
excesso de medicação. Não me reconhece a
princípio, o semblante converge com um estado de
confusão.
— Filha — chamo sua atenção. — Petrova.
Como acontece todas as vezes, seus olhos
se enchem de lágrimas. Lara destruiu o amor que a
minha filha nutria por mim, deixou apenas uma
carcaça debilitada no lugar. Tento tocar-lhe o rosto,
mas seu corpo convulsiona para conseguir o
máximo de distância possível.
Não insisto, não por esse ser humano que se
tornou. Puxo um banco e me sento perto da beirada
da cama. De costas para mim, seus cabelos
preenchem o travesseiro e se esparramam para
todos os lados.
— Precisa se comportar melhor, não posso
sair correndo toda vez que você entra em crise.
Recebo seu silêncio como resposta. Depois
do acidente, descobri que minha única filha
legítima ficaria com sequelas pelo resto da vida.
Uma sucessora condenada a passar seus dias
olhando para a concorrência do patamar baixo de
uma cadeira de rodas.
Uma perspectiva com a qual eu não
conseguiria lidar.
Gastei grande parte do meu tempo e
dinheiro na educação de Petrova para que pudesse
assumir o meu cargo na empresa quando a hora
certa chegasse — já que não fui agraciado com um
herdeiro homem. Investi nos melhores cursos,
paguei os melhores professores. Era o meu troféu,
um diamante lapidado minuciosamente para
encantar, atuar, investir, negociar, sorrir e reinar.
O único arrependimento que carrego até
hoje é de não ter me desfeito da bastarda no
instante em que nasceu. Se não fosse por ela e a sua
rebeldia nojenta, minha joia nunca teria se
estilhaçado.
Minha esposa, Aleksandra, nunca foi uma
mulher psicologicamente estável, mas nem em
minhas desconfianças mais longínquas eu poderia
suspeitar que me trairia com o motorista! No dia
em que anunciou a gravidez, soube imediatamente
que aquela criança não carregava o meu sangue.
No auge dos meus planos, eu não podia
arriscar um escândalo. Divórcio, traição, filhos fora
do casamento, tudo isso é munição na boca dos
repórteres. Criei a menina como se fosse minha, o
pai verdadeiro nunca soube que a criança que ele
carregava para cima e para baixo no banco de trás
do carro era sua filha.
Quando chegou o momento certo, e mais
nenhuma suspeita poderia ser cogitada, demiti o
homem e seguimos com nossa vida de família feliz.
— Vá embora — sussurra com alguma
dificuldade, em parte por causa dos remédios, mas
sua doce voz nunca mais foi a mesma. Os médicos
chegaram a suspeitar de uma possível mudez
traumática, mas as palavras vieram com o tempo,
mesmo que débeis.
— Tentou fugir outra vez, Petrova. Já
conversamos sobre isso. Você não pode sair, está
doente.
— Eu não estou doente. — Ela vira na
minha direção. Tenta erguer o corpo com os
cotovelos apoiados no colchão, mas uma vertigem
a leva de volta para a cama. — Eu não aguento
mais, pai, por favor.
— Está doente sim — explico com calma.
Ela não entende. — Não pode andar, mal consegue
falar sem parecer uma retardada. Estou no meio de
um negócio importante, você está atrapalhando os
meus planos.
— Odeio você — lamenta. Já estou
acostumado com sua repulsa.
— Um dia vai me agradecer, meu anjo.
Logo aquela sua irmã postiça vai assinar o contrato
de unificação das empresas, garantindo o
matrimônio com a família Volkiov.
— Lara e Ivan? — questiona, os olhos
arregalados e brilhantes. A sombra de uma
felicidade rodeia seu semblante enfermo.
— Sim.
Petrova sorri, fecha os olhos e me isola do
seu mundo imaginário. Não foi fácil tomar a
decisão de orquestrar a sua morte depois que o
acidente aconteceu. Sou o pai dela, ninguém
poderia contestar um óbito alegado por mim no
centro de toda a minha suposta dor. Não existe
nada que um pouco de dinheiro em algumas
dezenas de bolsos não resolva.
Foi uma jogada perfeita. Minha empresa em
ascensão, todos os veículos de comunicação
anunciando meu sobrenome por causa da tragédia,
enquanto eu seguia com meus planos em sigilo.
Minha reputação é minha melhor defesa.
Um pai de família, homem de negócios, futuro
sogro de Ivan Volkiov. Um colaborador assíduo de
orfanatos e salvador de crianças indefesas. É
impossível alguém descobrir meu verdadeiro
investimento.
No fim das contas, mesmo que descubram,
eu jamais serei acusado.
— Tenho uma reunião amanhã com um
novo casal — conto aleatoriamente, Petrova é
minha melhor ouvinte. — Querem adotar uma
menina.
— Você é um monstro — diz sem abrir os
olhos. Seu timbre vacila e corrompe as palavras,
mas consigo entender. — Um dia vai voltar para o
inferno.
— Adoção clandestina não é um crime
assim tão grave. Eu ajudo pais e mães a
conseguirem aquilo que as leis de seus países
negaram. Filhos saudáveis e sorridentes.
— Você vende crianças para pessoas
desajuizadas que não passaram nos exames de
adoção. — Petrova tosse e vira mais uma vez de
costas para mim. — Um dia vai parar atrás das
grades.
— Para isso eu tenho a sua irmã. Você já
sabe disso, é ela quem administra o setor de
donativos. Se um dia descobrirem, o que eu acho
muito difícil, a culpa vai recair sobre ela.
— Vá embora — pede com a voz
embargada. As mulheres são seres sensíveis
demais, tiram a minha pouca paciência.
— Tem que prometer não tentar nada
estúpido outra vez. Somos quase a maior conta
bancária da Rússia, logo vamos superar nossos
únicos concorrentes. — Não adianta, Petrova é um
caso perdido. Ainda é difícil aceitar que a minha
menina obediente e calma morreu naquele acidente
de carro há cinco anos. — Vou ter que mandar
aumentarem a dose dos seus remédios.
Levanto e me curvo sobre a cama para
beijar sua cabeça. Admiro um pouco a beleza
preservada do seu rosto. Mesmo doente e magra,
ainda se parece com um anjo. Ando até a porta do
quarto e paro com a mão na maçaneta, esperando
pela mesma pergunta que me faz toda vez que
venho.
— Como está Dimitrio? — Sua voz soa
abafada pela dificuldade de dicção e o braço a
esconder o rosto.
— Conversei com ele outro dia. Ainda não
confio nele o suficiente para contar sobre você.
Desculpe, meu bem.
— Eu preferia ter morrido naquele acidente
— confessa, como já fez dezenas de vezes. Sinto-
me preso em um ciclo sem fim, com uma filha
bastarda e a outra imprestável.
— Você morreu, meu bem. Você morreu —
respondo baixinho antes de sair.
Preciso de uma bebida. Muitas delas. O
álcool é meu refúgio, a única coisa capaz de
apaziguar essa ansiedade, esse sentimento instável
e perturbador que me impulsiona a parecer um
imbecil.
Desde quando me casei, sempre soube onde
queria chegar: ser maior do que todos os outros,
saber que as pessoas se curvam diante de mim. Já
passei por todas as humilhações, todo o tipo de
golpe. Já perdi muito dinheiro. Tive que ver Nicolai
Volkiov e seu irmão se erguerem enquanto eu
continuava no mesmo lugar.
Mas o mundo dá muitas voltas. Hoje, estou
prestes a superar todos os obstáculos. Sacrifiquei
minha filha e minha própria família em busca do
poder absoluto. Abriguei uma criança ilegítima
debaixo do meu teto, por mais repulsivo que fosse
escutar aquela vozinha me chamando de pai e não
identificar nenhum dos meus traços em seu rosto.
— Aumente os sedativos — digo para a
enfermeira que me espera do lado de fora. Entrego
uma quantia em dinheiro, uma pequena garantia. —
Sabe como é, ela continua delirando. Acha que tem
uma irmã, que eu sou um criminoso. Está
completamente fora de si.
A maior vantagem de fazer negócios
clandestinos é adquirir um vínculo eterno de
fidelidade e débito com magnatas ao redor do
mundo. Um médico solteiro, condenado a um
câncer terminal, adquiriu meus serviços há muito
tempo, quando eu estava apenas começando no
ramo. Quando descobri que minha filha perfeita
estava acabada, ele me ajudou a encontrar essa
clínica no norte do país, longe o bastante para não
ser encontrada.
Desde então, essa é a minha vida. O pai que
perdeu sua filha amada em um acidente de carro,
mas que continua lutando bravamente contra as
dores da perda. É isso o que os jornais e revistas
adoram estampar nas minhas entrevistas.
Sigo direto para o hotel onde ficarei
hospedado pelos próximos quatro dias. No fim das
contas, foi bom ter dado uma lição em Lara antes
de viajar, assim garanto que mantenha a boca
fechada enquanto estou fora da cidade. Ela não vai
se arriscar sabendo que posso despachar o pirralho
com um simples estalar de dedos.
Não desconfia da capacidade real que eu
tenho de sumir com o menino. Nunca vou permitir
que meu nome seja manchado por mais uma
aberração.
No quarto, minhas coisas estão espalhadas
pelos cômodos, algumas fotografias que eu estava
analisando antes de sair continuam no mesmo
lugar, sobre a mesa no centro da sala. São fotos de
crianças, cada uma com as características listadas
no verso.
Amanhã tenho um encontro com um casal
distinto que vive no México. Talvez tenha sido
melhor assim, o adiamento do contrato me permitiu
consolidar essa viagem sem interferências ou
preocupações. Esclareci as coisas com Petrova, vou
executar uma nova transação e retorno a tempo da
reunião com os Volkiov.
Tomo banho, peço alguma coisa para
comer. Começo a trabalhar, averiguando as
especificações solicitadas pelo casal. Nomeei meus
clientes clandestino dentro de um projeto chamado
Anjos da Guarda, pois assim consigo justificar a
injeção de dinheiro na empresa e garantir o
anonimato deles. Em geral, são pessoas de bem.
Prefiro não me envolver com tráfico de órgãos ou
prostituição, embora já tenha acontecido uma vez
ou duas.
Esse casal em específico foi reprovado nos
exames de adoção por causa da mãe, diagnosticada
com esquizofrenia. É cada coisa que me aparece, as
pessoas não sabem o que fazer com o próprio
dinheiro e seguem em busca daquilo que não
podem ter.
Abro duas garrafas de uísque de uma vez;
visitar Petrova é uma tarefa que faço de tudo para
evitar. Desgastante demais, pois revive a vontade
de voltar no tempo e impedir o nascimento daquele
projeto de adultério.
Maldita garota esperta. Ela pensa que me
engana, mas sei que conquistou a atenção de Ivan
Volkiov. Ele nasceu para ser um tolo apaixonado,
mas tem sido realmente útil. Embora eu tenha
negociado com outros empresários, tenho
preferência pelos Volkiov e a reputação impecável
que os precede.
Claro que, com o menino, vou manter Lara
sempre por perto. Conheço os objetivos por trás de
toda a sua submissão. Acredita que vai conseguir
acesso àquela criança quando estiver casada.
Assim que o casamento acontecer, ela
jamais descobrirá em que momento ele foi levado.
Minha melhor diversão é ver aquele
rostinho aos prantos. Destruir sua vida miserável
aos poucos. Ela não tem forças para lutar contra
mim e nunca vai encontrar alguém capaz de lutar
por ela.
Planejamento, tempo e dinheiro. Essa é a
tríade do poder.
CAPÍTULO 22
Uma Palavra, Três Letras

O REFLEXO NO espelho denuncia muito mais do


que a agressão que sofri, mais do que as marcas
negras no meu pescoço ou os cabelos esfiapados e
irregulares. É possível perceber toda a dor e a
tristeza que me acompanham, o sofrimento que se
arrasta ao meu lado desde que me entendo por
gente, como um parasita que foi crescendo até se
tornar parte de quem eu sou.
Quando criança, não percebia a vida com a
mesma perspicácia de hoje, não me incomodava
com o fato de não ganhar tantos presentes no Natal
ou sempre receber castigos mais severos que minha
irmã por motivos insignificantes.
Petrova começou a notar primeiro do que eu
a diferença na forma como nossos pais nos
tratavam. Era mais velha, muito mais responsável e
madura. Foi ela quem tomou a iniciativa de exigir
uma relação familiar mais saudável, de me incluir
nos planejamentos das férias da escola e de me
acobertar toda vez que eu cometia alguma
desobediência.
Por mais espertas que fôssemos, no entanto,
naquela época não chegamos a desconfiar que eu
poderia não ser filha legítima de Mikhail, muito
menos que o motorista gentil que sempre nos
comprava sorvete depois da escola era na verdade
meu pai biológico.
Coloco um lenço azul ao redor do pescoço.
Se Mikhail não tivesse perdido o controle, hoje
seria o dia da assinatura do contrato e eu estaria
livre dessa casa doentia. Depois daquela noite,
ele me proibiu de encontrar com Ivan até que todas
as evidências do seu crime tivessem desaparecido
por completo.
Os três primeiros dias foram difíceis, pois
eu ouvia os funcionários comentando sobre a
insistência de Ivan, as ligações intermináveis e suas
visitas fora de hora. Tudo só piorou quando recebi
meu celular de volta para resolver alguns assuntos
da empresa. Meu suposto noivo se mostrou
incansável, insistente e determinado, como eu já
sabia que seria.
Relacionar-me com Ivan e demonstrar meus
sentimentos mais profundos foi como acender um
pavio. Agora, o fogo segue devagar o caminho da
pólvora e, em algum momento, a bomba de
mentiras e segredos vai explodir.
Confiro uma última vez a minha aparência,
mas não existe milagre que esconda o aspecto
depressivo da minha desnutrição. Uma parte de
mim reconhece que preciso ser mais forte,
alimentar-me melhor, mas a outra parte tem exigido
menos esforços, aquela parte que está cansada de
perder batalhas e prefere chorar na solidão do
próprio quarto.
A camisa de botões em conjunto com o
lenço me faz parecer uma aeromoça que passou as
últimas vinte e quatro horas dentro de um voo sem
escalas, mas não pretendo demorar no orfanato.
Apesar de tudo, consegui manter minha promessa
de visitar Iago mesmo que por breves minutos a
cada dia.
Quando alcanço o salão de entrada, minha
mãe está sentada com os olhos fixos em um ponto
invisível do chão. Não trocamos mais do que
cordialidades vazias desde o incidente com a
tesoura e a cada dia me preocupo mais. Por trás de
toda a mágoa por sua omissão, entendo que a
depressão está consumindo sua mente aos poucos.
Em algum momento, a armadura dela
também vai se quebrar e talvez não reste mais
ninguém para juntar os cacos.
— Vai sair? — questiona com a voz baixa,
os olhos continuam vidrados.
— Sim — respondo sem cessar meu trajeto
até a saída.
— Ivan passou a noite no portão, foi
embora há pouco.
Paro no lugar e olho para ela, esperando por
qualquer outra informação, mas Aleksandra
balança a cabeça e levanta, subindo os degraus da
escada murmurando sozinha palavras ininteligíveis.
Tem usado a mesma camisola desde que Mikhail
viajou no dia anterior. Ela precisa de um médico,
mas seu marido nunca vai permitir.
Não me anuncio no portão. A melhor
estratégia para evitar o motorista que Mikhail paga
para ficar de olho em mim é caminhar até um ponto
de táxi. Os seguranças me cumprimentam, alguns
demonstram uma condolência profissional, mas não
se dão ao trabalho de relatar a pernoite de Ivan.
É a segunda vez que ele faz isso, dorme
dentro do carro estacionado na frente da mansão.
Quando Andrei contar o segredo que manteve
consigo desde a noite do acidente, talvez Ivan
desista de mim. Talvez ele finalmente entenda que
não vale a pena ficar ao meu lado, que a menina
forte e espirituosa que eu costumava ser se afogou
em dores e desilusão.
Na metade do caminho, resolvo andar até o
centro da cidade e seguir rumo ao orfanato.
Observo as ruas e as pessoas, escuto o barulho dos
carros, o som natural dos pássaros cantando. Existe
uma vida acontecendo ao meu redor, o mundo não
para de girar só porque a gente não consegue seguir
em frente.
Ao chegar no orfanato, já me sinto mais
leve, pronta para encontrar com Iago e seu sorriso
carinhoso. A secretária na entrada ergue uma
sobrancelha sinuosa ao me ver, corre para o
telefone sem nem mesmo disfarçar. Gostaria de
saber se existe uma única pessoa nessa instituição
que não viva dentro do bolso dele.
Encontro Iago no jardim, tem sido seu lugar
preferido desde a chegada de Tasha. Não entendo
muito sobre processos de adoção, mas o caso dessa
menininha parece complicado. Ainda não consegui
entender, pois ela sempre associa sua tia com a
compra de um anjo da guarda, mas os dois ficaram
tão unidos que sofro antecipadamente que serão
separados em algum momento próximo.
Na outra noite sonhei que levava os dois
comigo.
Um sonho tolo, sequer consigo manter Iago
em segurança.
— Olá, querido — chamo Iago. Ele se
levanta com as mãos sujas de terra, tem uma coroa
de flores no alto da cabeça feita com margaridas e
violetas. — Você está lindo.
— Foi a Tasha que fez — explica com uma
careta, claramente contrariado.
— Então ela é realmente uma fada? —
brinco com os dois. Iago tem dito muito que a
amiga se parece com uma fada da floresta que ele
viu em um livro de fantasia.
— Posso fazer uma para você também, Lara
— oferece sorridente, os cabelos ainda mais
desgrenhados que os de Iago. É uma criança muito
inteligente para a idade que tem, precoce e madura.
— O Iago não queria, falou assim que era coisa de
menininha.
— Dedo-duro! — acusa Iago indignado, o
rosto vermelho de vergonha.
— Grande coisa — Tasha debocha
sabiamente. Acho graça da sua personalidade
irônica.
— Quero uma também, querida — interfiro
antes que a discussão se torne séria.
Iago senta do meu lado no banco enquanto
Tasha caminha entre as flores para escolher
algumas para mim. Abraço seus ombros e ele
relaxa ao sentir meu toque de carinho.
— Vai ficar só um pouquinho de nada outra
vez? — pergunta tristemente.
— Sim, meu amor. Não vou ficar muito
tempo, mas não podia ficar sem ver você.
— Você prometeu me ver todos os dias —
lembra.
— Sim, mesmo que seja um pouquinho de
nada. — Sorrio para acalmar sua insegurança,
encosto a ponta do nariz no nariz dele, beijo seu
rosto. — Alguma novidade para me contar?
— Eu recebi duas visitas, mas a diretora me
pediu para não contar nada para você. Mas se você
quiser, eu conto. A dona Tânia gosta muito, muito
de mandar a gente não contar as coisas, ela também
mandou a Tasha não ficar falando da tia dela.
Eu não quero ouvir, penso.
Viro o rosto para afastar as lágrimas. Por
mais que eu almeje a adoção de Iago, a diretora
sabe que não tenho intenções de adotá-lo no
momento ou já teria entrado com um pedido. Ela
não pode impedir que outras pessoas se interessem
por ele ou que a nossa relação interfira nesses
processos.
Mesmo assim, é doloroso.
Iago muda de assunto — talvez por notar
minha reação — e me conta sobre os colegas na
escola e as brincadeiras protagonizadas com Tasha
na hora do intervalo. Só consigo repetir na minha
cabeça que meu tempo está se esgotando, o fogo
cada vez mais veloz na direção da explosão, tenho
que estar com Iago em meus braços para protegê-lo
dos estilhaços.
Nosso tempo é dividido entre conversar e
brincar. Iago insiste que Tasha não precisa de um
anjo da guarda, os dois não sabem se implicam um
com o outro ou se brincam sem parar. Depois de
meia hora, estou com tantas flores na cabeça que o
jardim vai precisar de um novo plantio.
— Você precisa ir em outro cabelereiro,
viu? — Tasha diz. — Esse que você foi errou tudo.
Toco seu rosto pintado, agradecendo por
existir tanta inocência em um ser tão puro. Esse é o
único lugar no mundo capaz de afastar todos os
demônios e me fazer sorrir mesmo diante dos meus
maiores medos.
— Não liga pra ela não, mãe. Seu
cabelo tá bom assim.
Os olhos verdes de Tasha se arregalam,
estagnam junto com os meus. Eu ouvi, tenho
certeza que ouvi. Iago continua falando qualquer
coisa sobre o cabelo da diretora, mas na minha
cabeça eu só escuto sua voz repetindo a mesma
palavra sem parar.
Uma palavra.
Três letras.
Mãe.
Ele me chamou de mãe e nem se deu conta.
Tasha segura minha mão, oferece-me um
aperto acolhedor. Balança a pequena cabeça de
cachos vermelhos e alaranjados, essa menina é
realmente uma fada do bem. Nesse segundo, tenho
certeza de que entendeu a gravidade do momento.
— Iago, vem me ajudar a pegar mais flores,
quero fazer uma pra mim também. — Ela fica de
pé, estende a mão para Iago. Estou sendo salva por
uma criança de sete anos.
— Você disse que não queria! — ele
reclama. — Quero ficar aqui com a Lara.
— Ela está certa, Iago. Vai brincar, eu já
tenho que ir embora. — Seguro minhas emoções na
garganta, não posso chorar na frente dele. Fico de
pé, abraços os dois um pouco atrapalhada. — Não
façam muita bagunça.
Saio quase correndo, passo pela portaria
sem enxergar mais ninguém. No portão, meu corpo
inteiro começa a tremer. Coloco a mão sobre o
peito para ter certeza de que meu coração continua
batendo.
Se o destino realmente existe, eu e Iago
estávamos destinados um ao outro. Meu pai
biológico era padrasto dele, em uma realidade
impossível, poderíamos ter sido irmãos. Eu teria
cuidado dele após a morte de sua mãe e nós
seríamos felizes.
Olho para o céu, desejando chorar, mas as
lágrimas não vêm. Acho que esgotei todo o meu
estoque de tristeza.
Nauseada pela emoção, demoro para
perceber o celular tocando na minha bolsa. Pego o
aparelho e encaro o nome de Ivan. Ele não desistiu
de mim. Gostaria de saber se já conversou com
Andrei, se está bravo com o adiamento da
assinatura do contrato, quais pensamentos têm
ocupado sua cabeça.
Aperto o botão de encerrar a chamada e
fecho os olhos.
— Então você não queria mesmo atender as
minhas ligações.
— Ivan. — Minha voz ecoa estrangulada,
surpresa não chega nem perto de definir a sensação
que se acomoda na minha mente.
Ao meu lado, Ivan desencosta do próprio
carro com o celular na mão. Joga o aparelho pela
janela sobre o banco do passageiro e coloca as duas
mãos dentro dos bolsos da calça branca. Levo a
mão até o pescoço, um reflexo instintivo para
verificar se o lenço continua no mesmo lugar.
— Lara — cumprimenta distante. O rosto
cansado e as olheiras escuras validam a noite
passada na frente da minha casa.
— O que você está fazendo aqui? —
questiono desesperada. Não quero que me veja
assim, tão fraca e instável.
Ele olha para o orfanato, pensa
intensamente e faz um movimento negativo com a
cabeça. Tenta se aproximar, mas eu recuo, com
medo que perceba meus ferimentos.
— Está me evitando — constata inclinando
a cabeça. — Por que está me evitando?
— Não é isso, eu… — Não sei o que dizer,
como me explicar. Parece que um buraco se abriu
entre nós. — Me desculpe, não posso falar com
você agora.
Tento passar por ele, mas Ivan se coloca na
minha frente, segura meus ombros e ergue meu
rosto com um toque delicado no queixo. Encosta os
lábios na minha testa e fica nessa posição sem dizer
nada.
Absorvo seu cheiro de café e hortelã,
escondo o rosto entre seus braços pronta para cair
em prantos. Ele não está irritado comigo, não
desistiu.
— Não faz esse tipo de coisa comigo, Lara
— pede, procurando meu olhar com suas íris
escurecidas. — Não se afasta de mim assim. Já
assinei aquela porcaria de contrato. Já assinei!
— Mas precisava da presença de Mikhail —
interponho confusa. — Era uma das cláusulas que
assinássemos na presença de todos os envolvidos.
— Andrei reformulou o contrato — explica
franzindo o cenho enquanto segura duas pontas dos
meus cabelos. — Um advogado presenciou a
assinatura. Já enviei para a sua empresa, é só vocês
assinarem com uma testemunha que vai nos
representar e pronto.
— Mikhail concordou com isso? — retiro
suas mãos de mim, olho para os lados, com medo
de estarmos sendo observados. — Ele não vai
gostar nada disso.
O rosto da Ivan se altera, seus olhos me
desvendam e sustentam os meus olhos. Vejo a sutil
alteração em seu humor, o maxilar cerrado e os
punhos fechados.
— E o que ele vai fazer? — Ivan me
desafia, o tom que utiliza leva as chamas para mais
perto da explosão.
— Você sabe — sussurro horrorizada, outra
vez à beira do precipício. — Andrei já contou.
— Que você foi espancada no dia do
acidente? Sim, ele me contou. — Ele comprime os
lábios, afasta as mãos do meu corpo e leva até a
própria cabeça. — Eu fui tão cego, tão imbecil.
Não faz sentido. Minha respiração se
desestabiliza, preciso me apoiar em alguma coisa.
Atento, Ivan segura meu braço, junta as
sobrancelhas outra vez ao rodear meu pulso, mas
não comenta nada sobre minha perda de peso.
Foram poucos dias, mas a diferença é muito óbvia
para não ser percebida.
Ele abre a porta para que eu me sente no
banco e, ao me acomodar, levanto as mãos para
cobrir o rosto, envergonhada e infeliz. Não faz
sentido, simplesmente não faz.
— Vou levar você para a minha casa — diz
colocando o cinto de segurança ao meu redor.
Abaixo a cabeça, mas não tenho mais os
cabelos longos para me proteger de seu campo de
visão. Ele sabe que Andrei ajudou a esconder meus
machucados, que Petrova sabia o que tinha
acontecido e mesmo assim não disse nada para
ninguém.
Mantive esse segredo por tantos anos e
agora, de uma hora para outra, não tenho mais que
fazer isso. Eu me protegi sozinha dia após dia, não
consigo compreender a extensão dessas revelações.
— Não posso ir para a sua casa — digo
enquanto ele liga o carro. Está tudo saindo do
controle, estou perdendo minhas chances outra vez.
— Me leva para a mansão.
— Você não vai voltar mais para aquela
casa, Lara. — O carro começa a se movimentar,
minhas mãos gelam com o pânico crescente. —
Você não sabe o tipo de coisa que passou pela
minha cabeça! Eu pensei que estava presa, que
tinha sido espancada outra vez! Eu pensei que
estivesse morta! Por que estava me evitando?
— Não posso explicar agora. — As
palavras tremulam no ar, não consigo me libertar
desse medo. — Ivan — imploro, seu nome sai na
forma de uma súplica.
Só mais quatro dias, era tudo o que eu
precisava. Ivan acelera o carro, cruza as ruas de
forma imprudente. É como estar no final do túnel
vendo a luz do dia se apagar pouco a pouco.
— Não precisa explicar nada agora, já sei o
suficiente — diz em uma tentativa falha de me
acalmar.
— O que você sabe? — murmuro encolhida
no banco. Ivan solta um riso arrastado.
— Para começar? Que não posso ver o seu
pai na minha frente.
Ele sabe, Ivan realmente sabe de tudo.
Começo a hiperventilar, tateio debilmente o cinto
para respirar melhor, mas o desespero impede
minhas tentativas. O carro gira para o acostamento
e Ivan me liberta, movimentando o banco para trás
e puxando o meu corpo para si.
— Calma, fica calma. — Ele puxa meu
cabelo para trás, sopra o meu rosto. O ar do carro se
torna mais gelado. Ligou o ar condicionado em
algum momento. — Respira junto comigo.
Coloco as duas pernas em cima do banco e
fecho os olhos. Ivan aproxima seu rosto do meu,
nossos lábios se tocam muito levemente. Ele
inspira e expira devagar, passa a mão nas minhas
costas.
Meu corpo entra em sintonia com o dele e a
minha respiração se torna cada vez mais estável. É
tudo muito rápido, muito intenso. Desabo do
desespero completo para a proteção das suas
palavras.
— Desculpa — peço baixinho. Toda vez
que movimento a boca sinto seus lábios nos meus.
— Fecha os olhos — ele pede. Deita a
minha cabeça sobre suas pernas, metade do meu
corpo se comprimindo sobre o banco do passageiro.
— Me escuta, pode ser? Não precisa falar nada
agora, só me escuta.
— Tudo bem.
— Você não vai voltar para a mansão, sinto
muito. Não consigo. Passei a noite toda na frente da
sua casa pensando mil e uma maneiras diferentes
de entrar. Depois que Andrei me contou aquilo,
depois que eu entendi como fui cego e burro por
todo esse tempo, só conseguia imaginar você
naquela casa, sozinha, desprotegida. — Uma
lágrima de Ivan cai sobre meu rosto, ele limpa com
o dedo enquanto me acaricia. — Eu estava pronto
para viajar atrás daquele crápula, era a única opção.
Mas encontrei você. Nem acreditei quando te vi.
— Você não pode…
— Me deixa terminar. — Ele me cala com o
dedo indicador. Mantenho os olhos fechados,
encarando o escuro das minhas pálpebras. — Eu
demorei mais de cinco anos para entender que
preciso de você. Não vou correr o risco de te
perder, de não estar por perto quando… nem
consigo dizer! Eu morri um pouco nesses dias,
Lara. Não me pede para te deixar outra vez, isso
não vai acontecer.
— Tenho medo — confesso. — Tenho
tanto medo, Ivan.
— Por que se afastou, Lara? Eu disse que
podia confiar em mim.
Ele tem que saber.
Abro meus olhos, quero captar sua reação.
Quero ter certeza de que sua determinação não é
passageira. Mesmo sem eu perceber, aquela faísca
alcançou a bomba, meu mundo explodiu no
instante em que Ivan me beijou pela primeira vez.
Toco o lenço no meu pescoço; ele franze o cenho e
assiste enquanto puxo o tecido azul.
Nunca parei para idealizar esse momento,
quando eu, por minha própria vontade, decidisse
revelar minhas fraquezas para alguém. Se tivesse
feito, seria algo muito mais trágico, talvez em uma
aspiração de rebeldia para um policial qualquer que
pouco faria para me ajudar.
Isso acontece tanto, o tempo todo somos
deixadas para trás pela roda que gira o mundo. Mas
é Ivan quem gira o meu mundo e está na hora de eu
me deixar levar.
Agora mesmo, nesse acostamento no meio
da rua, mostro para Ivan as evidências da
brutalidade de Mikhail.
Agora mesmo, nesse acostamento no meio
da rua, vejo nos olhos do homem que eu amo que
não preciso mais ser forte sozinha. Que ele vai ser
forte por mim.
Agora mesmo, nesse mesmo acostamento
no meio da rua, eu o amo mil vezes mais.
CAPÍTULO 23
Vulcão Adormecido

OS DEDOS DE Ivan percorrem toda a extensão do


meu pescoço. Seus olhos são como duas bolas de
cristal, brilhantes e cheios de mistérios, fazem
promessas mudas de ódio, vingança e justiça.
— Para onde ele viajou? — questiona
vagamente, olhando-me sem parecer enxergar de
verdade. — Onde eu posso encontrá-lo agora?
— Eu não sei — respondo com um pouco
de medo dos caminhos transcorridos por seus
pensamentos.
Ivan se remexe sobre mim, acaricia cada
detalhe do meu rosto. É a segunda vez que
resolvemos questões inacabadas dentro de um carro
no meio de uma rua qualquer.
Acho que estamos destinados à imprevisão,
ou o destino possui um humor sádico.
— Quando isso aconteceu? Quando ele…
— Ivan faz uma pausa, fecha os olhos e leva as
mãos à cabeça. — E ainda acha que vou deixar
você voltar depois disso? Meus Deus, Lara!
Sento outra vez, voltando para o banco do
passageiro. Agora é ele que precisa de espaço para
resgatar o controle. Do lado de fora, alguns poucos
carros passam por nós, os sons da cidade se tornam
mais vívidos e escuto gargalhadas ao longe,
conversações de pessoas que passam pelo carro
rumo a destinos desconhecidos.
Encosto a cabeça na janela, minha
respiração embaça o vidro. Agora que eu contei,
preciso ser forte para continuar.
— Na noite em que nos encontramos pela
última vez — confesso. — Ele estava bêbado, me
confundiu com a minha irmã. Acho que por isso
ficou mais agressivo que o normal.
— Normal? — Ivan repete descrente. — E
existe uma escala de normalidade para uma coisa
dessas? Eu não devia ter levado você para casa. Foi
por isso que me ligou naquele dia, não foi? Você já
sabia que ele ia fazer algo assim, por isso não quis
ficar na festa. — Deixo que o silêncio confirme por
mim. — Seu cabelo…
— Ele disse que o cabelo me fazia ficar
parecida com ela.
Capturo o movimento do braço de Ivan
antes de ele acertar o volante do carro, disparando o
som agudo da buzina com o soco. Abre os
primeiros botões da camisa, vivendo uma luta de
moral que só ele pode batalhar. Admiro seu
esforço, a consideração em buscar a sensatez por
minha causa.
— Fica aqui — diz, abrindo a porta. Faço
menção de sair junto com ele, mas sua voz repete o
pedido de forma incontestável. — Fica no carro,
por favor.
Concordo com a cabeça, o ambiente se
transmuta em mais um lugar solitário na minha
infinita lista de experiências ruins. Ivan segue
alguns metros à frente, senta na calçada, com os pés
sobre a rua de pedras hexagonais. Digita na tela do
celular, depois leva o aparelho até o ouvido e
começa a conversar com alguém.
Faço uma pequena prece, desejando não me
arrepender dessa escolha. Tenho que esclarecer
tudo para que Ivan entenda como as coisas
chegaram nesse ponto.
Temo por Iago, meu filho. É isso o que ele
é, não importa todo o esforço que fiz tentando me
preparar caso alguém desejasse a sua adoção. Iago
me chamou de mãe pela primeira vez e não vou
sobreviver se acontecer algo com meu menino, se
for levado para longe.
Eu amo Ivan com a mesma intensidade que
amei desde a primeira vez que sorriu para mim. Ele
é a minha esperança, meu tiro no escuro, mas Iago
é a minha força, meu futuro. Até que eu tenha meu
filho nos braços, Mikhail ainda é o dono da minha
sorte.
Por cerca de quinze minutos, Ivan
permanece ao telefone, ligando para pessoas
diferentes. Tenho que confiar nele, acreditar que
posso ser feliz ao seu lado. É o homem com quem
quero construir uma vida.
Coloco o lenço outra vez ao redor do
pescoço quando vejo seu retorno. Oferece-me um
sorriso triste enquanto coloca o cinto de segurança.
— Um funcionário vai até a sua casa buscar
alguns pertences — diz mais estável. — Andrei
conversou com a sua mãe, pediu para ela separar
algumas coisas. Se faltar algo, a gente compra
depois.
— Não é tão simples assim, Ivan — digo,
mas ele não me dá ouvidos e continua falando.
— Minha mãe vai preparar um quarto para
você. Precisa descansar hoje. Tentei descobrir onde
seu pai está, mas ninguém na empresa Ihascov
soube me dizer.
— Não pode fazer nada contra ele agora,
Ivan. — Seguro no braço dele.
— Você é a minha prioridade agora, meu
bem. Vamos para a minha casa, vou cuidar de você.
Não precisa contar tudo hoje, está fraca, cansada.
Temos tempo para isso. Mas antes, tenho que fazer
uma pergunta.
— Posso contar tudo hoje — afirmo no
auge da coragem, sinto como se pudesse fazer
qualquer coisa com ele ao meu lado.
— Eu sei que sim. — Ivan sorri e segura o
volante com as duas mãos, as articulações em seus
dedos ficam brancas com a pressão. — O problema
é que eu preciso ficar ao seu lado hoje, tenho que
tornar os próximos dias os melhores da sua vida,
pois é isso o que você merece. Não sei o que vai
acontecer quando me contar tudo, mas tenho
certeza que não vou me orgulhar das minhas ações.
— Não quero que faça alguma besteira —
peço.
— Um médico vai consultar você na
mansão para ver se está tudo bem — desconversa.
— Amanhã, Tatiana vai fazer um jantar, será bom
para se distrair e aliviar a cabeça, assim pode
descansar durante o dia.
— Você disse que tinha uma pergunta para
fazer — insisto.
— Certo, certo. — Ele liga o carro, adiando
por mais alguns minutos a questão, e guia o veículo
rumo à região mais abastada da cidade. — Meus
irmãos sabem — conta, deixando-me apreensiva.
— Já estavam desconfiados desde que Svetlana
entregou aquele contrato entre Petrova e Dimitrio.
Minha surpresa é tanta que perco a
capacidade de dialogar. Svetlana não é o tipo de
pessoa que ajuda os outros sem esperar alguma
coisa em troca. Acabamos não comparecendo à
festa de seus pais e fico pensando se seria mesmo
coincidência ter convidado os Volkiov logo após
surgir com uma prova como aquela contra a
integridade da minha irmã.
No entanto, tenho preocupações mais
importantes do que a melhor amiga de Petrova.
— Não vou conseguir encarar nenhum deles
— digo com a cabeça baixa.
— Meus irmãos gostam e se preocupam
com você tanto quanto gostavam de Petrova. Você
sempre fez parte da família, eles querem ajudar.
Mas pediram para eu perguntar…
— Pergunta logo, Ivan, está me deixando
nervosa!
— Queria beijar você agora — brinca. O
carro ultrapassa os limites da propriedade através
do grande portão ornamentado. Está tentando tornar
o clima mais leve. — Eles sabem, eu sei. A gente
não pode te obrigar a fazer uma denúncia, embora
seja exatamente essa a minha vontade. Mas é
inevitável que ele pague pelo que fez a você em
algum momento próximo, isso ninguém pode me
impedir de conquistar.
— Você não entende, não se trata apenas de
mim.
— Eu não entendo mesmo, mas vou
entender. Tudo bem não dizer nada agora. Você
não sabe como eu quero entrar em um carro e viajar
por cada cidade desse país até encontrar esse
cretino.
— Faça a pergunta, Ivan.
— O contrato está assinado — continua
com uma calma irritante. — Mas até que Mikhail
retorne, ele ainda pode ser suspenso. A verdade é
que nenhum dos meus irmãos vai conseguir manter
negócios com ele agora que conhecemos seu
verdadeiro caráter.
— Não podem cancelar — interrompo com
os olhos marejados. Tudo isso vai levar meu
menino para longe.
— É isso que eu queria perguntar. Para ter
você ao meu lado, precisarei manter esse acordo até
o fim?
Uma pergunta precisa para uma resposta
covarde.
— Eu não sei qual é o fim — confesso com
sinceridade. Ele só vai entender quando conhecer
Iago. — Mas preciso que mantenha o contrato por
mais tempo.
— Tudo bem — diz. Inspira
profundamente, como se buscasse a sabedoria
interior. — Eu posso fazer isso.
De todas as qualidades de Ivan, sua
sinceridade é a que mais admiro. Não tem medo de
sentir, de se entregar àquilo que acredita. Se fosse
qualquer outra pessoa em seu lugar, não respeitaria
o meu espaço, as minhas decisões. Ele sabe esperar
o momento certo e reconhecer a vulnerabilidade
das próprias emoções.
Finalmente, deixamos o carro em uma das
ruelas do jardim. Ivan dá a volta para me
acompanhar, envolve a minha cintura e mantém
uma mão a acariciar incessantemente meu braço.
Preciso disso, sair daquele mausoléu, afastar
os medos e as preocupações, mesmo que dure
apenas três dias. Para quem viveu a vida inteira
presa por correntes invisíveis de ameaças e
agressões, três dias de calma ao lado do homem
que conquistou o meu coração se parece com uma
promessa da eternidade.
Fico aliviada ao constatar que o salão de
entrada está vazio. Os móveis se distribuem pelo
cômodo de forma aconchegante, muito diferente de
quando estou na casa de Mikhail.
— Relaxa — Ivan sussurra no meu ouvido.
— Vai dar tudo certo.
Giro para ficar de frente para ele. É o
homem mais lindo do mundo, tudo nele me faz
lembrar o calor do sol, a possibilidade de viver
intensamente, sem receio de ser feliz. Nós dois
estivemos presos em nossas armaduras de
ressentimentos, mas é Ivan que está libertando a
ambos.
— Promete que não vai desistir de mim, não
importa o que aconteça?
Como resposta, Ivan me puxa na sua
direção, consome o meu corpo com o seu, conecta-
nos de uma forma indescritível. O cabelo castanho
claro convida as minhas mãos e tateio cada fio
bagunçado; sua boca anseia pela minha e retribuo
com o mesmo desejo.
— Senti saudades — resmungo sem me
desvencilhar.
— Agora sim, esse assunto é bem melhor.
Esqueço-me de tudo, o mundo desaparece
como sempre acontece quando me entrego aos
desejos mais profundos de nossos corações.
Memorizo seu sabor, o calor que engloba e protege
esse amor que só faz crescer dentro de mim.
Ivan me aperta, puxa meu tronco para mais
perto e pousa suas mãos de cada lado dos meus
quadris, encaixando nossos corpos como se
formassem um par de engrenagens gêmeas em uma
mesma máquina a vapor.
— Já almoçou? — pergunta de repente. Não
consigo me recuperar tão rápido assim de um beijo
desses. — Aposto que não. Tem almoçado nos
últimos dias, pelo menos? Não, não responde!
— Tem almoço na cozinha — Tatiana
cantarola, parada no arco do corredor principal.
Meu corpo começa a formigar de vergonha.
— Estava nos espionando, mãe? — Ivan se
solta de mim, puxando-me pela mão.
— Com certeza! — cantarola sem rodeios.
Puxa o filho pela gola e deposita um beijo em sua
bochecha, deixando uma marca vermelha no lugar.
— Minha primeira nora, como eu poderia não
admirar?
— Eu não sei se a senhora lembra, mas o
Andrei tem uma namorada também.
Ela desdenha com a mão, revira os olhos
como se esse detalhe não fosse importante.
Também não corrijo o fato de Ivan já ter tido uma
noiva antes de mim, outra nora já ocupou o meu
posto, mesmo que Tatiana não queira reconhecer.
— Minha querida, pode descansar no
quarto. Não precisa se preocupar com nada —
Tatiana me abraça, mas nada em sua postura ou no
olhar indicam que sabe toda a história. — Vladimir
me explicou que estava com alguns problemas em
casa, precisa descansar. Está com uma carinha
abatida. Podem subir para o quarto, vou mandar
alguém levar a comida.
Não sei como Tatiana consegue estar
sempre impecável. Ela cruza os braços, tamborila
as unhas compridas nos antebraços, analisando nós
dois com um sorriso triunfante no rosto. O cabelo
se desfaz em cachos rubros até os ombros, fazendo-
me lembrar de Tasha e seus trejeitos pomposos.
— Qual quarto você mandou prepararem?
— Ivan vai me conduzindo até as escadas.
— O seu, é claro — responde antes de nos
dar as costas e fugir de volta pelo corredor.
Paramos no meio do caminho, meu olhar se
encontra com o dele e eu simplesmente sei que
meus pensamentos impróprios estão estampados no
meu rosto. Hoje, quando acordei, não esperava que
minha vida daria esse giro de cento e oitenta graus.
Ivan é um circuito elétrico que faz tudo mudar de
forma inesperada.
— Posso arrumar outro quarto se preferir —
diz carinhosamente, mas seus olhos contemplam a
minha boca enquanto pressiona a curva da minha
cintura com uma das mãos livres. — Mas eu
adoraria dormir com você.
— Eu também — admito, mas tão logo
corrijo a ambiguidade da frase. — Não dormir, de
dormir daquele jeito, sabe? Só dormir, dormir
mesmo. Não que eu não queria dormir daquele
jeito, eu quero, em algum momento. Mas hoje eu
quero dormir, de dormir. — Cubro o rosto,
escondendo meu embaraço. — Só me diz que
entendeu o que eu quis dizer.
— Dormir daquele jeito? Não entendi, o
que seria exatamente? — provoca. Vamos subindo
os degraus e eu rio do meu desconcerto.
O quarto de Ivan fica no mesmo lugar que
costumava ficar quando namorava com a minha
irmã. O aposento é simples, organizado, o cheiro
dele se espalha pelo ar e eu me sinto acolhida.
Talvez os dois já tenham dormido juntos
nessa mesma cama, outras mulheres vieram antes
de mim também…
— Se quiser, podemos ficar em outro quarto
— sugere preocupado, aparentemente nossos
pensamentos seguiram a mesma linha de raciocínio.
— Se for estranho.
— O problema não é esse. Não me
incomoda de verdade, sei que já teve outras
mulheres antes de mim, assim como eu já estive no
quarto de outros homens antes. Mas eu não tinha
parado para pensar nisso até agora. Desde que me
beijou, parece que sempre existiu só você na minha
vida.
— Vamos focar nisso — completa com uma
careta, as sobrancelhas juntas no meio da testa. Ele
começa a procurar coisas nas gavetas. — Nada de
outros quartos, outros homens. Não acredito que
usou o plural — resmunga sozinho, pega
travesseiros no armário, joga uma troca de roupas
em cima da cama. — É melhor você descansar.
Tenho que resolver algumas coisas agora. Prometi
visitar um amigo, mas não vou demorar. Você pode
tomar um banho se quiser, tem toalhas limpas. O
almoço deve estar quase chegando, depois pode
dormir um pouco. Quando acordar, já vou ter
voltado.
— Eu estou me sentindo bem, Ivan. Não
estou doente — reclamo.
— Não, mas precisa dormir. Dormir de
dormir, não dormir daquele jeito. Só não percebeu
ainda porque não relaxou de verdade. — Ele vem
até mim e beija a minha cabeça. — Você vai ver
quando fechar os olhos.
— Promete que não demora? Eu tenho
certeza que não vou dormir e não quero ficar
sozinha na sua casa.
— Prometo.
Despedimo-nos com outro beijo cheio de
promessas, selando a certeza de que,
eventualmente, na hora certa, vai acontecer. Espero
que estejamos livres de todos os fantasmas para
colocar na minha lista de momentos perfeitos.
Não queria que ele fosse, mas também não
tenho coragem para pedir claramente a sua
permanência.
Desde o dia em que Mikhail se enraiveceu,
não voltei mais para a empresa. Não sei o que fazer
com a minha vida daqui para frente. Tudo o que eu
aprendi durante meus anos de trabalho foi gerenciar
o setor de donativos e ainda assim não pude
implementar nenhum novo projeto. Mikhail fundou
um sistema beneficente de colaboração coletiva,
assim os seus clientes podem contribuir
anonimamente. Mas Ivan tem um cargo de
responsabilidade, compromissos que não podem ser
adiados por minha causa.
Depois que ele vai embora, faço exatamente
o que sugeriu. Tomo banho, almoço e me deito para
descansar. Tenho certeza que não vou dormir. A
luz do sol que entra no quarto pelas frestas da
cortina cria formas tremeluzentes nas paredes.
Meus olhos se fecham devagar com o movimento
das sombras e, quando tornam a se abrir, o sol já
desapareceu.
Eu realmente dormi.
Procuro por algum indício do retorno de
Ivan, mas não o encontro em nenhum canto do
quarto, nem no banheiro. Abro a porta para o
corredor e escuto vozes vindas do andar de baixo.
Passo a mão no lenço que deixei em cima de uma
cadeira e coloco no pescoço. Sem sapatos, cruzo o
corredor e espio sobre o corrimão da escada.
Estão todos reunidos no primeiro andar,
conversando e bebendo. Se fosse na casa de
Mikhail, eu voltaria correndo e me trancaria no
quarto, mas aqui eu posso simplesmente descer, me
juntar a eles e abraçar o homem que amo.
Inicio a minha descida, degrau após degrau.
O primeiro a erguer o rosto e notar a minha
aproximação é Andrei, que abre a boca um tanto
surpreso.
— Até que enfim! — Sorri endiabrado.
Conheço seus encantos, esse sorriso é o mesmo que
ele utilizava quando pretendia aprontar alguma
coisa.
Os outros três acompanham o olhar do
irmão caçula. Ivan, com uma taça de vinho a
caminho dos lábios, sobressalta-se para correr na
minha direção. Roman começa a rir e Vladimir tem
a dignidade de fingir que nada de estranho está
acontecendo.
— Lara, tudo bem? — Coloca-se na minha
frente, tentando organizar meus cabelos. Olho para
o meu corpo e não vejo nada de errado para tanto
alarde. Estou apenas usando as roupas de Ivan.
Ah!
Droga.
— Tarde demais para voltar correndo para o
quarto?
— Sim — Ivan responde sorrindo e beija a
minha boca. — Se eu não soubesse, diria que andou
dormindo daquele jeito.
— Ivan! — contesto, ainda mais
envergonhada.
— Vem, daqui a pouco a gente vai jantar.
Você dormiu o dia todo.
Realmente, sinto-me descansada. Depois de
tudo que Mikhail fez comigo, passei a dormir
apenas algumas horas durante o dia enquanto ele
estava na empresa. Tinha medo de acordar outra
vez desprevenida no meio da noite.
— Lara, está linda! — Roman se diverte e
Ivan joga um camarão nele.
Andrei me cumprimenta com a taça erguida
de outro sofá. Pelo modo como me olha,
compreendo o nível da sua preocupação. Todos
exibem um olhar acolhedor, mas são educados o
suficiente para não tocar no assunto.
São inacreditáveis, respeitosos e me fazem
sentir em casa.
Tatiana chega com duas bandejas de
aperitivos; usa um robe luxuoso de cetim azul
marinho e duas pedras azuis pendem de suas
orelhas. Mesmo para dormir, ela não abandona a
elegância. Perto dela, pareço com uma mendiga.
— Lara, meu anjo. Como você está? —
Seus olhos brilham quando percebe como estou
vestida, o sorriso se amplia.
— Muito bem, obrigada, Tatiana. — Ela
coloca uma das bandejas perto de nós, a outra
deposita ao lado de Vladimir.
— O que está acontecendo, perdi alguma
coisa? — Andrei pergunta com um sorriso
contemplativo desenhado no rosto, estranhando a
atitude da mãe.
— Ela quer me convencer a contratar novas
funcionárias — Vladimir explica com a atenção
voltada para o computador à sua frente.
— Qual o problema nisso?
— Casamento — esclarece o presidente.
— Vladimir passa metade do dia enfiado na
empresa e a outra metade no escritório privado,
nesse ritmo nunca vai encontrar uma mulher.
Então, a única solução é criar oportunidades.
Começo a rir da cara horrorizada de Andrei
e Roman. Ivan me acompanha, explicando os
planos de sua mãe de arrumar uma mulher que
chame a atenção de algum de seus filhos solteiros.
Estranhamente, ela inclui Andrei nessa lista.
Os irmãos começam a conversar sobre
negócios, investimentos. Tatiana fica
particularmente empolgada quando Andrei
menciona a ideia de admitirem uma secretária
presidencial agora que estão investindo em outro
empreendimento.
O assunto me interessa, gosto do mundo
administrativo, dos números e da competição
financeira. Mas não me intrometo. Encolho os
joelhos ao lado de Ivan, aproveitando o momento
como ele me pediu para fazer.
Minha mãe deve estar apavorada uma hora
dessas, mas minha antiga versão rebelde me
convence a pensar apenas em mim pelo menos
dessa vez. Só por essa noite.
Os assuntos mudam com muita velocidade,
em um momento conversam sobre o clube que
pretendem fundar em uma zona carente do
subúrbio, noutro já conversam sobre a falência
inevitável de investidores italianos com quem
pretendiam negociar.
— No fim das contas deveriam me
agradecer por ter brigado com ele na Itália, se
tivéssemos fechado negócio seria pior — Roman se
vangloria.
— Afinal de contas, por que vocês
brigaram? Nunca entendi essa história — Ivan
questiona.
Roman hesita, come qualquer coisa e
começa a explicar:
— Ele foi um escroto desde o começo da
reunião, contestou todas as minhas ofertas. Acho
que era alguma coisa pessoal. Eu expliquei isso
para o presidente, mas ele não acreditou em mim.
— O presidente tem razão — Vladimir
comenta sobre o próprio ponto de vista. Mesmo
trabalhando sem parar, ainda consegue participar da
conversa.
Eles prosseguem com o diálogo saudável,
sempre com muito humor. Tatiana se intromete de
vez em quando, mas eu acho que gosta mesmo é de
estar presente enquanto seus filhos se reúnem e se
divertem. O assunto só se dispersa quando o celular
de Roman começa a tocar e ele se retira para
atender.
— Quer beber alguma coisa? — Ivan sugere
no meu ouvido. Já não usa mais a roupa de antes,
está apenas com uma bermuda e camisa de algodão,
preparado para dormir.
Dormir ao meu lado.
— Água, preciso de água! — Levanto
depressa, antes que ele leia os meus pensamentos
outra vez. — Pode deixar que eu pego.
Conhecendo o caminho, praticamente corro.
Entro na cozinha para separar os copos, distraída
com a movimentação prazerosa de me sentir parte
dessa família, de me deixar acolher por pessoas tão
sinceras e honestas.
O tecido ao redor do meu pescoço se desfaz
e meu coração acelera. Viro o corpo e encontro
Roman com as costas apoiadas na parede ao lado
da entrada, ele rodopia meu lenço entre os dedos.
— O que está fazendo? — Tento esconder
as marcas com a mão.
— Não precisa esconder, só queria ver com
os meus próprios olhos — responde com sua voz de
predador. Não gosto da sua postura. — Agora
entendo por que meu irmão está tão louco da vida.
— Por favor, Roman, devolve meu lenço —
peço um pouco desesperada. Não quero que
ninguém me veja assim, especialmente a mãe deles.
— Eu sempre achei que Ivan fosse o mais
parecido comigo, mas tenho que confessar, estou
surpreso com o controle dele. — Roman sorri de
um jeito triste, retira um cigarro da jaqueta e coloca
entre os lábios. Joga o tecido para o alto, na minha
direção, e agarro com pressa no meio do ar. — Não
exige tanto dele, meu irmão é como um vulcão
adormecido. Está se controlando por sua causa, mas
quando entrar em erupção, o estrago vai ser pior.
CAPÍTULO 24
Nadando Contra a Correnteza

EU GOSTARIA DE entender o que há de tão


excitante em roupas masculinas no corpo de uma
mulher que desperta nos homens esse instinto
primitivo de posse. A gente está enfrentando um
monte de merda com o desgraçado do pai dela e
mesmo assim não consigo afastar meus
pensamentos carnais.
Talvez tenha relação com o fato de não ser
uma mulher qualquer com uma roupa masculina
qualquer. É Lara e ela está vestida com
as minhas roupas. Essa criatura ainda vai me
arrastar para um sanatório e eu me entregarei
sorrindo como o louco que me tornei.
— É melhor você limpar essa baba da sua
cara, Ivan — Roman provoca, jogando um papel
toalha amassado para mim.
— Cala a boca — reclamo, mesmo sabendo
que devo estar agindo como um adolescente
apaixonado, daqueles que não conseguem tirar os
olhos do primeiro amor.
Estamos apenas eu e meus irmãos no salão,
cada um com um computador na frente do corpo e
uma taça de vinho à disposição. Lara e minha mãe
se retiraram antes de nós, para o meu alívio. Com
sorte, aquele filhote de tentação já vai estar no
sétimo sono quando eu subir para o quarto.
— Já tenho uma grande parte do inquérito
montado contra o Mikhail — Andrei diz com os
dedos a digitar qualquer coisa no teclado. — Mas
ainda precisamos da denúncia. Andamos
investigando seus negócios, o maldito é esperto,
mas Roman encontrou alguns furos.
— É, sou bom em sentir o cheiro de merda
a quilômetros. — Roman bebe um pouco da sua
bebida. — E aquele esquema nos orfanatos cheira a
muita merda. Das grandes!
Remexo-me desconfortavelmente no sofá, a
palavra orfanatos me faz lembrar de Iago e Tasha.
Passei parte da tarde conversando com os dois e
isso tudo tem despertado em mim a vontade de ver
o sorriso de ambos todos os dias, acariciar aqueles
rostinhos e assistir como se implicam e se gostam
ao mesmo tempo.
Eu e Petrova nunca conversamos sobre
filhos, não sei dizer se era algo que almejava. Mas
ficou claro para mim que a relação de Lara com
Iago é muito mais maternal do que qualquer outra
coisa.
E, se a quero para sempre, esse assunto é
algo que precisaremos discutir em breve.
A verdade, porém, é que tomei uma decisão
no instante em que avistei Lara na frente daquele
orfanato, quando a trouxe comigo sem pensar duas
vezes. Agora que comecei a correr atrás dos meus
pontos finais, quero que a minha vida se resolva o
mais rápido possível.
Assim que ela tiver se recuperado do
choque emocional causado por Mikhail, todos
saberão que pretendo me tornar pai em breve e que
Lara vai se casar comigo mesmo sem aquela
palhaçada de contrato.
Loucura, sim. Mas se o mundo não
pertencer aos loucos, estaremos sempre condenados
às correntes da sanidade.
Precisarei da ajuda de Andrei para lidar com
o processo de adoção e para entender as
providências a serem conduzidas. Iago é uma
certeza em minha vida, mas Tasha ainda é uma
possibilidade cheia de obstáculos. Existe um
processo de adoção em andamento pela guarda
daquela criatura de cabelos vermelhos e eu preciso
ter cuidado para não criar esperanças demais. Não
posso machucar nenhum dos dois, por mais que a
queira na minha família.
Há pouco mais de um mês, eu ainda era um
homem condenado em Nova Iorque. Esse foi o
tempo que Lara precisou para mudar
completamente a minha cabeça e as minhas
expectativas de vida.
Esse sou eu lutando para reaver o tempo
perdido.
Não se trata de impulsividade, mas de
certezas. Essa coisa de pensar e esperar demais não
funcionou, agora minha melhor alternativa é me
apropriar de todos os problemas e solucionar cada
um deles.
Chega de pensar nas consequências.
— O que vocês já descobriram sobre isso?
— pergunto, voltando ao assunto.
— Primeiro, Mikhail é
inteligente pra caralho. — Roman, sentado no chão
com os joelhos erguidos, encosta a cabeça no
assento do sofá para me observar. — No dia em
que a gente conversou sobre o quanto seu
crescimento econômico era estranho, tentei
encontrar alguma sujeira, um número fora do lugar,
um cliente insatisfeito. Mas não tinha nada. Mesmo
assim, aquele valor absurdo destinado à caridade
não me descia pela garganta.
— Não é a empresa de Mikhail que injeta
dinheiro nos orfanatos. — Vladimir toma a palavra,
olhando-me nos olhos com as mãos entrelaçadas na
frente do rosto. Mesmo em uma discussão informal
como essa, ele oferece sua melhor postura
profissional. — Existe um projeto na empresa de
doação compartilhada, clientes anônimos. De forma
resumida, os clientes da empresa podem optar que
uma parte dos seus investimentos seja destinado ao
projeto. Mas como tudo ocorre em estado de sigilo,
não temos como ter certeza da origem desse
dinheiro.
— Em outras palavras, é um projeto que
gera lucros e movimentação de capital — constato.
— Isso já é o suficiente para entrar com o
pedido de investigação do inquérito, mas não para
por aí. O dinheiro realmente passa pelos orfanatos
— Andrei explica, balançando com a cabeça de
forma negativa. — Isso pode envolver mais do que
lavagem de dinheiro.
— Como o quê?
— Tráfico de crianças, de órgãos, adoção
clandestina, prostituição; existem mais
possibilidades envolvendo o mercado negro do que
vocês imaginam — explica nosso irmão advogado
com um timbre natural. Embora seu trabalho se
concentre quase exclusivamente nos casos da
empresa, Andrei costuma aceitar processos
particulares. Está acostumado com todos os tipos
de atrocidades que o ser humano é capaz de fazer.
— É como Roman disse, isso tudo cheira a merda.
Nada disso me surpreende. Mikhail já
atingiu um patamar de monstruosidade tão grande
por espancar a própria filha que meu único desejo é
seu desaparecimento absoluto.
— Como a denúncia de agressão se
encaixaria nesse contexto? — Roman indaga
Andrei; uma questão pertinente.
— É um pequeno agravante na sua lista
criminal, além de ser importante para Lara. Ela
precisa compreender que a justiça é uma saída, uma
opção muito mais libertadora do que aguentar
sozinha.
— Ela não está mais sozinha — murmuro
um pouco aliviado. É tão bom saber que ela está
segura no andar de cima, a tão poucos metros de
distância. — Ela ainda não está preparada, não quer
fazer nada contra o pai. Está machucada, cansada,
magra, quero que descanse amanhã. Quero dar ao
menos um dia para se recuperar. Depois, ela
prometeu me contar tudo.
— E você? — Vladimir diz de repente,
servindo-se com mais vinho.
— O que tem eu?
— Como você está, Ivan? Pode até enganar
a mamãe e Lara, mas não a gente. Só não fez nada
ainda porque Mikhail não está na cidade, como vai
ser quando souber a história completa? Quando ele
voltar? Está preparado para isso?
Abaixo a cabeça, repensando a contenção
dos meus sentimentos. Lara é a minha prioridade,
ela merece ser o centro do meu mundo, deveria ter
sido desde o princípio. Tal como a raiva que sinto
por aquele marginal, a raiva que sinto de mim
mesmo também já chegou em um limite,
transbordou e agora inunda tudo ao meu redor.
Quando Lara confessar todas as suas dores,
serei quebrado de mil formas diferentes. Seu
sofrimento vai se transformar no meu próprio e
nunca mais serei o mesmo. Mesmo assim, por mais
que me destrua, continuarei ao lado dela para que,
juntos, possamos construir algo muito mais bonito
com todos os cacos que nos compõem.
— Eu o quero morto — admito, as palavras
formando uma parede maligna na minha garganta.
— Você sabe que não pode fazer isso — diz
a voz da razão do meu irmão mais novo.
— Não estou dizendo que vou matar
Mikhail — explico, impressionado com meu
próprio controle. — Não sou um
criminoso desgraçado como ele. — Balanço a
cabeça, rindo o riso dos condenados. — Mas em
algum momento vou arrebentar a cara dele. Pode
não ser hoje ou amanhã. Pode não ser daqui uma
semana. Mas em algum momento, isso vai
acontecer. Vocês não podem tentar me impedir —
advirto, encarando todos os três.
— Impedir? — Roman ri cheio de deboche.
— Eu quero mais é ajudar a encher aquele velho de
porrada.
— Não vamos impedir você, Ivan. —
Vladimir fica de pé e começa a recolher suas
coisas. Tenho certeza de que pretende continuar
trabalhando no quarto, sem tanto falatório.
— Antes que eu me esqueça, Vlad —
chama Roman, levantando-se também. Os dois são
mesmo parecidos fisicamente, com o tom dos
cabelos escuros quase iguais e olhos claros, mas, no
campo da personalidade, podem ser considerados o
completo oposto um do outro. — Visitei a casa da
família que mora no terreno onde vamos construir o
clube. Um casal, o cara é barra pesada, sabe como
é, aquela região tem um índice de criminalidade um
pouco elevado.
— E o que eles disseram?
— Bem, consegui descobrir que a casa na
verdade pertence à uma irmã dele que não mora em
Moscou. Ela empresta a casa para os dois viverem.
Disseram que vão entrar em contato com a menina,
mas duvido muito. Não pareceram interessados em
colaborar.
— Amanhã tentamos descobrir a identidade
da proprietária, já tivemos muita emoção para um
dia só.
Vladimir sobe as escadas rumo ao seu
próprio quarto, Andrei aproveita a deixa para se
retirar também, com a desculpa de que precisa se
preparar para o dia de amanhã. Sua famosa
namorada vem jantar em casa e finalmente vou
entender o que de tão ruim Tatiana vê na mulher.
Ou não, é difícil compreender o raciocínio
da minha mãe.
Sobramos eu e Roman, mas enquanto meu
destino é uma longa noite de tortura na mesma
cama com a mulher mais desejável da terra — sem
poder avançar mais do que meu senso de ética
permite —, sua jaqueta de couro e o cheiro de
perfume forte indicam que ele ainda tem intenções
de dormir daquele jeito.
— Se precisar de mim, é só chamar —
oferece com um olhar distante, consumido por suas
tendências ferozes. Seu material de trabalho fica
desorganizado sobre a mesa de centro, junto com
nossas taças vazias. Duvido que tenha intenção de
arrumar. — Aquela merda no pescoço dela é
pesada, tenho orgulho de você, da forma como está
lidando com tudo. No seu lugar, eu já teria perdido
o controle. Se precisar de alguém que perca o
controle…
— Não vou deixar que outro faça o que eu
tenho vontade de fazer com minhas próprias mãos.
Mas obrigado, Roman.
Roman concorda, sorrindo, tem uma
pequena cicatriz visível no lábio superior que torna
seu conjunto de expressões sempre intimidante.
Retira a chave de um carro do bolso da calça e vai
girando o objeto no dedo enquanto segue na
direção da saída. Mas um detalhe que
passou quase despercebido apita no fundo da minha
mente.
— E quando foi que você viu o pescoço
dela? — Meu irmão tem a cara de pau de me
conceder um riso sacana antes de sair às pressas,
deixando-me chocado no meio da sala. — Filho
da…
Só queria me provocar, o maldito.
E conseguiu, óbvio!
Também não coleto meus objetos, amanhã
tenho que estar cedo na empresa, pois quero visitar
Iago na parte da tarde. De todas as péssimas
experiências conscientes que eu tive na vida, entrar
naquele quarto e controlar esse desejo primitivo vai
entrar para a lista das dez piores.
Mas é como dizem, se a gente quer chegar
até a nascente, precisa nadar contra a correnteza.
Merda, nunca gostei de provérbios, que alguém lá
em cima me ajude!
Abro a porta do quarto devagar, espiando
através da fresta crescente. Um amontoado de
cobertores e travesseiros indica que Lara se
entregou ao sono mais uma vez. Nunca devemos
subestimar esse filhote de tentação.
Não sei se fico feliz ou triste ou ambos.
Ambos, com certeza ambos.
Ela é tão resistente que nem percebe como o
próprio esgotamento atingiu limites nada saudáveis.
Paro ao lado da cama, admirando seu rosto
dormente, os lábios entreabertos e os olhos
fechados como um anjo, sem nenhuma expressão
da angústia que a rondava o tempo todo como um
espirito agourento.
Não usa o lenço no pescoço e consigo
perceber com mais clareza como os contornos
daquela marca desenham a forma de uma mão.
Puxo a poltrona para mais perto dela e me sento,
meu cérebro se preenche com todas as decisões a
serem concretizadas e isso rouba a minha vontade
de dormir.
Ela disse que aconteceu na noite em que nos
encontramos pela última vez, no dia em que
dividimos uma pizza como um casal feliz e normal.
Já se foram dias, e mesmo assim o hematoma
continua visível. Meu peito estagna com o ar dentro
do pulmão, comprometendo minha respiração ao
imaginar como ela deve ter ficado nos primeiros
dias.
E pensar que já passou por isso outras
vezes. Que já foi pior.
Talvez não tenha sido uma boa ideia pedir
aos meus irmãos para não interferirem, vai ser
preciso que algum deles esteja ao meu lado para
impedir uma tragédia quando eu tiver Mikhail nas
minhas mãos. Só assim serei capaz de não matar
aquele verme.
Por hora, o importante é saber que Lara não
corre mais perigos, embora não possa dizer o
mesmo de mim. A noite vai ser longa.
Muito.
E, realmente, é. Boa parte da madrugada se
vai entre pensamentos ruins, bons e degenerados. A
única solução que encontro é continuar na poltrona
mesmo, até que o cansaço vence e eu me entrego a
sonhos ainda mais caóticos.

SAIO DO BANHO enrolada na toalha, vasculho


minhas malas em busca de uma roupa decente e
casual, mas fica difícil parecer despojada com um
lenço vermelho amarrado no pescoço. Acabo
escolhendo mais um dos meus intermináveis
vestidos com decote nas costas. Gosto da
sensualidade, da ausência de vulgaridade que uma
roupa dessa oferece.
Meu dia foi, no mínimo, insano e tedioso. O
médico me visitou no meio da tarde, fez exames de
rotina, analisou meu pescoço e constatou uma
possível anemia. Não questionou a origem dos
meus ferimentos — Ivan ou seus irmãos devem ter
preparado a consulta e o teor geral das minhas
condições reais —, mas me entregou uma lista com
orientações nutricionais no final, junto com uma
centena de exames laboratoriais.
Depois que Ivan saiu pela manhã, aproveitei
para visitar Iago no orfanato. Ele anda um pouco
arisco, inventou que precisa melhorar no basquete e
Tasha adquiriu um humor irritadiço por achar o
esporte sem graça demais.
Descobri que os Volkiov não passam o dia
em casa. Tatiana desapareceu antes do café da
manhã com a desculpa de que precisava de uma
massagem relaxante para, nas palavras dela,
“suportar as horas de desespero e ruína durante o
jantar com a convidada de Andrei”.
Ivan dormiu na poltrona ao meu lado,
acordei no meio da noite por causa de um pesadelo
e quase desmaiei de susto. Gostaria de ter dormido
em seus braços, mesmo que ainda não me sinta
pronta para um passo maior. Ivan já tem a minha
alma, assim que possuir meu corpo então eu não
terei mais nada. Não tenho certeza se posso lidar
com isso, ou se ele deseja uma responsabilidade tão
grande.
Ao mesmo tempo que preciso dessa
segurança, do companheirismo íntimo, receio que
seu comprometimento finde assim que souber toda
a verdade. Amanhã é o dia escolhido para
conversarmos de uma vez por todas e eu ainda me
sinto insegura.
Por outro lado, talvez eu não tenha outra
chance.
Estou terminando de arrumar o cabelo
quando Ivan invade o quarto, já produzido com
uma camisa preta e bermuda de linho. Esse homem
é lindo demais, mesmo com a testa franzida e uma
irritação evidente.
— Quando estiver melhor, nunca mais vai
colocar nada nesse pescoço maravilhoso. Nem
lenço, cachecol, colar, absolutamente nada. — Ele
vem até mim, apoia o queixo no meu ombro,
abraça-me pela cintura e admira a imagem de nós
dois refletida no espelho. — Acabei de descobrir
que a minha teoria estava certa.
— Qual teoria? — Sorrio.
— De que você só tem vestidos assim.
— Está implicando com as minhas roupas?
— Meu sorriso se amplia.
— Não tenho nada contra as suas roupas,
jamais! São as suas roupas que têm alguma coisa
contra mim. Insistem em me provocar.
Não resisto e acabo gargalhando. Ivan me
acompanha e beija a lateral do meu rosto, todo o
meu corpo reage ao contato dos seus lábios com a
minha pele. De alguma forma, ele percebe a reação
involuntária, seu semblante se eleva à uma
satisfação ordinária.
Toca a base das minhas costas com um
dedo, desliza por toda a extensão da coluna,
posiciona-se atrás de mim, sem nunca desfazer o
contato do nosso olhar através do espelho.
— Não importa a roupa que estiver usando,
vai estar sempre linda — sussurra no meu ouvido.
Seria interessante não existir roupa
nenhuma, penso, inebriada com suas carícias. Esse
homem ainda vai me matar, olha o rumo dos meus
pensamentos! Abro os olhos, surpresa comigo
mesma por toda essa entrega. Meu rosto se
preenche com a cor do constrangimento e Ivan sorri
perversamente.
— Ficou vermelha, estava pensando no
quê?
— Ivan — digo seu nome como uma boba,
sem condições para formular uma resposta que me
salve da confissão.
Girando meu corpo, ele se apropria dos
meus lábios e me enclausura entre os braços.
Deslizo as mãos sobre a sua pele e memorizo cada
uma das suas reações, a forma como seu corpo
arrepia quando nos encaixamos em todos os lugares
corretos.
— Senti sua falta — murmura na minha
boca.
— Por que não dormiu comigo? —
resmungo de volta, arrancando dele um suspiro
profundo.
— Não faz essas perguntas com duplo
sentido numa hora dessas — pede sorrindo.
— Dormir de dormir, Ivan! — corrijo, ainda
mais encabulada.
Sou uma contradição ambulante, ao mesmo
tempo em que o desejo, tenho medo de pertencer a
ele. Um resquício daquela insegurança continua
lutando dentro de mim. Medo da felicidade que
nunca conheci.
Mas ele não responde, segue firme com o
objetivo de me enlouquecer. Mesmo com todas as
questões não resolvidas, isso que temos é minha
sustentação, a única aposta que eu tive coragem de
fazer na minha vida e, obviamente, em que confio
com todo o coração.
Alguém bate à porta. Uma, duas, três vezes.
Ivan até tenta ignorar, mas a pessoa do outro lado é
insistente. Quem cede primeiro sou eu, receosa de
que nos vejam assim, devorando um ao outro.
Ivan revira os olhos e sai pisando forte,
como se pudesse exterminar a pessoa do outro lado.
Assim que abre, vejo minha sogra com a mão
estendida a caminho de outra batida.
Seus grandes olhos azuis revezam entre
mim e Ivan, coloca a mão sobre a boca como se
tirasse uma conclusão precipitada do que
estávamos fazendo. Ela estica a mão, segura na
maçaneta e tenta fechar a porta outra vez, mas seu
filho não permite.
— O que você queria, mãe? — pergunta
ironicamente.
— Não importa, finjam que nunca passei
por aqui. — Ela força a porta outra vez, mas Ivan
não precisa de muito esforço para mantê-la no
lugar. — Achei que Lara estivesse sozinha.
— Já estamos descendo — informo.
— Não precisam descer, meu anjo, apenas
continuem o que estavam fazendo. — A porta
balança com a luta dela.
— Não estávamos fazendo nada, mãe. A
gente já vai descer.
— Bobagem! — insiste, fuzilando o filho
com os olhos.
— Isso é ridículo! — diz Ivan, mais
relaxado com as loucuras de sua mãe. Ela tenta
fechar a porta com mais empenho, faz uma careta
por fim e desiste.
Tatiana se recompõe, joga os cabelos
vermelhos para trás e passa a mão sobre seu blazer
preto com abotoaduras douradas.
— A convidada já chegou. — Outra careta.
— Não pode fazer cara feia toda vez que
menciona a namorada do Andrei — comenta Ivan
exasperado. — Ela tem um nome.
— Isso! — Tatiana exclama, como se
lembrasse de algo importante. — Ela realmente
deve ter um nome, mas estou esperando que Andrei
deixe escapar em algum momento. Não consigo
guardar na cabeça.
Descemos as escadas rindo de dona Tatiana.
Nunca admirei tanto uma mulher como eu a
admiro. Não tem medo de se expressar, de dizer o
que pensa e de lutar por aquilo que acredita —
mesmo que isso signifique querer casar os filhos
com todas as mulheres do mundo. Esse é o tipo de
pessoa com quem eu gostaria que Iago convivesse,
aprendesse e se inspirasse.
À medida que nos aproximamos, as vozes
no andar inferior se tornam evidentes. Passamos
pelo salão de entrada, rumo ao corredor, depois nos
dirigimos para a sala de jantar, onde todos nos
aguardam, inclusive Evgenia — a namorada de
Andrei, de acordo com Ivan.
Tento encontrar algum potencial defeito na
personalidade de Evgenia, mas não identifico nada
a princípio. Os dois formam um casal simpático e
Andrei sorri para ela de um jeito carinhoso. Calculo
que tenha aproximadamente a nossa idade, jovem e
sorridente, com belos traços asiáticos: olhos
gatunos, lábios finos e a pele branca como
porcelana. Seus cabelos estão soltos, escorrem
sobre o corpo até a base da cintura, negros e
impossivelmente lisos, sem nenhum adorno ou
indício de cabeleireiro recente.
Tatiana ergue a sobrancelha, não disfarça o
desgosto nem o sorriso falso. Ivan passa por nós
para cumprimentar o irmão, eu fico um pouco para
trás junto com a minha… bem, nossa sogra.
— Dei um prazo para ela — Tatiana diz
baixinho, apenas eu consigo escutar, mas não tenho
certeza se está realmente falando comigo ou
consigo mesma.
— Como assim? — resmungo de volta,
envergonhada por estarmos paradas na entrada da
sala de jantar.
— Andrei é meu único filho que sempre
sonhou em construir uma família, e arrumou uma
mulher que não quer ter filhos. — Isso a incomoda
de verdade, mas eu não acho que seria motivo o
suficiente para desencadear seu ódio sobre alguém.
Não, esse olhar é de desprezo, do tipo mais
repulsivo. Seja qual for o pecado cometido por
Evgenia, Tatiana não está disposta a perdoar.
Quando estou prestes a investigar a respeito,
ela se recupera do transe. Exibe um sorriso teatral
— e menos assustador — e vai abraçar sua outra
nora.
Acho que todos temos nossos segredos, mas
em algum momento eles sempre aparecem para nos
aterrorizar. Mas eu não posso me preocupar com o
segredo dos outros sendo que, amanhã, pretendo
me livrar de todos os meus.
Sorrio também e me junto ao grupo, mesmo
ciente de que esse jantar será um desastre.
CAPÍTULO 25
Segredos e Assombrações

PELA SEGUNDA NOITE consecutiva, espero


Lara subir para o quarto primeiro do que eu. O
jantar com a namorada de Andrei foi um fracasso
completo, o que resultou em um término precoce
do evento. Antes eu achava que Tatiana
simplesmente não gostava dela, mas hoje percebi
que existe mais nessa história do que nós sabemos.
Evgenia é completamente diferente das
minhas expectativas, uma menina educada,
simpática e parece gostar do meu irmão de verdade.
Compreendo que a minha mãe deseja que
formemos nossas próprias famílias, com filhos aos
montes e um jardim bonito, mas nada justifica
tamanha hostilidade.
Andrei ficou tão desconfortável e magoado
que levou a namorada embora antes da sobremesa,
sussurrando que teria uma conversa séria com
nossa mãe em breve.
Bem, está para nascer um ser humano capaz
de bater de frente com Tatiana, mas a gente pode
até tentar de vez em quando.
Boa sorte para ele!
Paro na frente do quarto e executo o mesmo
procedimento de ontem, começo a abrir a porta
devagar, mas, para minha surpresa, Lara está
sentada na poltrona em que dormi. Os olhos
sorriem com carinho e ela recolhe as pernas,
abraçando os joelhos com os pés apoiados no
assento.
É claro que eu não teria a mesma sorte por
duas noites seguidas. Consegui me safar uma vez,
mas agora ela vai querer explicações e terei que
escolher as palavras com cuidado.
— Ainda acordada? — digo para preencher
o silêncio constrangedor.
— Queria conversar com você um pouco.
Lara já está vestida com roupas de dormir.
Agora que suas malas chegaram, decidiu desfilar
para cima e para baixo com essas peças que não
contribuem em nada para que certas partes do meu
corpo se mantenham adormecidas. É um filhote de
tentação, como eu já tinha previsto, do tipo que não
entende quase nada sobre os limites de um homem.
E está acordada! Não acredito que ainda
está acordada.
— Claro, sem problemas. — Minha voz soa
esganiçada. Acho que voltei vinte anos no tempo,
daqui a pouco aparecem espinhas na minha cara. —
Vou me trocar e já volto.
No banheiro, substituo as roupas casuais por
um conjunto velho qualquer e realizo os
preparativos para dormir o mais lentamente
possível. Encaro o homem no outro lado do
espelho. Em Nova Iorque, eu precisava lidar com
esse mesmo reflexo todas as manhãs e odiava como
tudo nele era ódio e tristeza. Agora consigo
enxergar somente meu reflexo, sem o peso do
passado, sem a carga emocional negativa.
Quando retorno, Lara continua no mesmo
lugar. Sento-me ao seu lado, na beirada do colchão
e sorrio para incentivar o diálogo.
— Amanhã vou contar toda a história da
minha vida — diz com a cabeça apoiada nos
joelhos.
— Se não fosse tão importante, não faria
você passar por isso. Mas eu preciso entender tudo
para saber como agir daqui para frente.
— Quero levar você a um lugar, se não tiver
problema. Quero estar nesse lugar na hora que
souber a verdade.
— Eu quero estar onde você estiver.
Lara liberta um riso pacato, suas íris
cintilam com um acúmulo repentino de lágrimas;
um choro de felicidade e, principalmente, de
esperança. Contrariando todas as probabilidades,
ela escolheu compartilhar seus segredos mais
profundos comigo. Isso é muito mais do que
confiança ou companheirismo. Ela me escolheu.
— Você não quis se deitar ao meu lado —
afirma como uma diabinha inocente, se é que isso é
possível. — Ontem, me deitei primeiro porque
achei que não estava com sono depois de ter
dormido a tarde inteira. Tinha planos de esperar
você para conversarmos, mas acabei adormecendo
outra vez.
— Você precisava desse descanso — digo
solenemente.
— Mas acordei de noite assustada com um
sonho e você não estava do meu lado.
— Estava te observando — explico. —
Pensando, lamentando, planejando, fiz tudo isso
enquanto assistia você dormir.
Não é de todo uma mentira descarada, mas
não faria nenhum bem mencionar o medo e a
irritação que se apoderaram de mim por causa da
marca em seu pescoço.
— Dorme comigo — pede baixinho.
Puta merda.
— Vou dormir com você, meu bem —
concordo, ignorando completamente sua tendência
para proferir frases com duplo sentido.
— Não estou falando de dormir, dormir. —
Ela levanta, para diante de mim e segura o meu
rosto, curvando-se para me beijar. O nervosismo a
deixa ofegante e eu só penso em pular todas as
etapas, esquecer todo o resto e unir nossos corpos
no patamar mais íntimo de uma relação.
Filhote de tentação nível máximo!
Coloco as mãos nas laterais da sua cintura e
puxo aquele corpo delgado para mais perto,
registrando as linhas que delimitam cada pequena
curva. Somos transformados no cúmulo das
contradições, a rapidez em sintonia com a lentidão,
o pecado sorrindo para a inocência, o fogo perdido
no gelo.
Lara é minha tempestade, meu furacão
particular. Sinto como se uma trovoada me rasgasse
o corpo quando deslizo os dedos para dentro das
bordas do seu short de algodão e um gemido viaja
da sua boca para a minha.
Jamais imaginaria que esse sentimento
ainda pudesse crescer, mas eu o sinto mil vezes
mais forte. Aproveito um pouco mais o momento,
saboreando os lábios que oferece com imensa
brandura. Mais um pouco, só mais um pouquinho, e
sairemos do controle.
Lamentando por dentro, faço um
movimento circular e acomodo Lara sobre a cama.
Com as maçãs do rosto enrubescidas, ela quase
consegue corromper meu bom senso. Enxergo o
que está tentando fazer e, apesar de desejá-la com a
força de cada componente cósmico que compõe o
meu espírito, reconheço que ainda não está
preparada. Preciso fazer o oposto do que meu corpo
anseia.
— Não é melhor irmos com calma? — digo
depois do terceiro ou quarto beijo, é difícil contar
quando não existem intervalos. — Você merece
mais do que um quarto sem graça e a minha família
inteira atrás dessas paredes.
— Não precisa ser especial — teima. —
Não é a minha primeira vez, você sabe.
Céus.
— Sim, Lara. Eu sei. Infelizmente eu sei.
Deus sabe como eu preferia não saber. Mas eu sei.
— Atropelo as palavras, desarmado com sua
insistência e com esse lembrete afiado. — Só
porque não é sua primeira vez, não significa que
não precisa ser especial. Quero que seja sempre
especial com você.
— Tenho medo de não acontecer —
confessa com os olhos fechados. Suas mãos
agarram a minha camisa, confirmando minha
interpretação.
— Está com medo que eu desista de nós
amanhã? — Faço um carinho em seu rosto, ela
confirma com a cabeça. — Isso não vai acontecer.
Olha, eu quero você, muito! Mas também quero
que não se arrependa, que não se entregue por
medo ou insegurança. Não vou desistir, Lara.
— Promete? — pergunta.
— Prometo. — Beijo sua testa, quase
arrependido da minha decisão de adiar o inevitável.
— Vamos só dormir, então — conclui, não
escondendo o alívio.
Dormir é uma palavra que não me
representa no momento. Lara se acomoda em meus
braços, inconsciente do esforço necessário para eu
manter a palavra. Pela segunda noite seguida,
entrego-me ao sono só quando o sol começa a dar
indícios no horizonte.
Algumas vezes, ser honrado não soa muito
como uma qualidade.
Quando acordo, estico o braço para o lado
em busca do calor reconfortante do corpo de Lara,
mas tateio o espaço vazio do colchão. Abro os
olhos à sua procura. Vasculho cada canto do
quarto, percebendo os detalhes que indicam sua
permanência na casa, desde as malas perto da porta
até os produtos de beleza sobre minha escrivaninha
particular de trabalho.
Do banheiro, exalam resquícios de vapor
aromático — sais de banho com shampoo de flores
—, evidenciando sua presença recente. Deve ter
despertado há pouco tempo e descido antes de mim.
Aparentemente, os últimos dias exauriram
as minhas energias também, não me lembro quando
foi a última vez que dormi por tanto tempo sem
acordar. Ter Lara em segurança após todo flagelo
psicológico incutiu sobre meu corpo um repouso
profundo e ameno que foi intensificado por sua
companhia.
Sem perder tempo, corro para o banheiro e
começo a me preparar física e mentalmente para o
dia de hoje. Tenho que ser forte por nós dois, pois
Lara vai remexer em uma ferida que nunca
cicatrizou devidamente, em segredos sôfregos que
suportou sozinha e que agora tendem a despedaçar
meu coração em escalas menores.
Com a pressa comprimindo todos os
pedaços da minha mente, visto uma camisa branca
qualquer; meus cabelos molhados deixam marcas
úmidas no tecido, mas nada disso importa.
O calor do verão logo vai nos abandonar,
marcando para sempre essa estação como a melhor
e a pior da minha vida.
A casa está silenciosa; passo na frente do
quarto de Andrei, mas a porta fechada me impede
de saber se voltou para casa depois da noite
frustrante. Aguço os ouvidos quando chego ao
salão, capturo ruídos e murmúrios vindos da
cozinha. À medida que me aproximo através do
corredor principal, identifico a voz de Roman em
uma conversa divertida com Lara. Diminuo a
velocidade a fim de entreouvir qual o assunto
gerador de tanta risada.
— E o que você fez depois? — Lara
gargalha no meio da pergunta.
— Eu refleti. Bem, eu refleti por dois
segundos. Cheguei à conclusão de que valia a pena
cair na porrada com um sujeito três vezes mais alto
do que eu e cinco vezes mais forte.
— Por causa de uma aposta! — pontua
indignada, sem cessar seu riso.
— Uma aposta que eu tinha ganhado. —
Meu irmão se defende com um tom ofendido.
— Desculpe ficar rindo — diz Lara, escuto
meu irmão gemer. — Conseguiu acertar o oponente
alguma vez?
— É claro que sim! — Outra gemida. —
Isso dói — reclama.
— Para de ficar gemendo!
Mas o que…
Avanço para dentro da cozinha,
incomodado com o rumo daquela conversa. Roman
está sentado em uma cadeira de metal, usa a mesma
roupa da noite anterior, seu rosto se encontra
erroneamente apoiado entre uma das mãos de Lara
enquanto ela faz um curativo em seu supercílio
machucado.
Não gosto da cena, definitivamente me irrita
ver os dois assim tão próximos. Roman tem essa
mania enervante de ser expansivo em demasia e
Lara simplesmente não enxerga maldade em quase
ninguém. Claro que meu irmão trairia a minha
confiança, mas isso não me impede de sentir
ciúmes.
— O que você está fazendo? — questiono
Roman diretamente.
— Sua namorada está me torturando —
explica cheio de humor.
— Eu estou te ajudando — interfere minha
doce e ingênua namorada. Olha para mim com um
sorriso engraçado, os cabelos curtos me provocam
e irritam ao mesmo tempo. — Seu irmão apanhou
feio.
— E vai apanhar outra vez se não levantar
agora mesmo. Vá procurar uma noiva para você e
deixe a minha em paz.
A expressão de Roman se altera, o
semblante humorado dá lugar à um sorriso de
deboche e ele passa a língua sobre o lábio ferido.
Algumas vezes eu esqueço que seu passatempo
preferido é tirar a paz das pessoas e provar que todo
mundo tem um lado podre.
Roman gosta do caos.
— Muito obrigado, Lara, querida — diz
com o olhar fixo no meu. Fica de pé e segura a mão
dela com a intenção de depositar um beijo. Dou um
passo para mais perto, o sorriso dele se expande. —
Não sabia que meu irmão era tão possessivo,
infelizmente terei que dispensar seus serviços.
Roman se desvencilha de Lara, recolhe os
curativos sobre a bancada e segura a risada ao
passar por mim para sair da cozinha. Só quando
está suficientemente distante, volto minha atenção
para a mulher mais perfeita do mundo.
A mulher mais perfeita do mundo. Eu já
disse isso sobre Petrova algumas vezes, mas soa
como um ultraje agora que tenho Lara ao meu lado.
— A gente não estava fazendo nada de
errado — explica com as mãos na cintura, o rosto
corado de vergonha. Mais contraditória impossível;
precisa reunir toda essa coragem para se impor e
mesmo assim se sente constrangida. — Eu ofereci
ajuda.
— Roman está acostumado a cuidar dos
próprios ferimentos. Ele só queria me provocar. —
Lara vem até mim, inclina na ponta dos pés em
busca de um beijo que eu prontamente ofereço
antes de dizer: — Confio no meu irmão, mas não
confio em mim vendo outro homem assim tão perto
do que é meu.
— Isso soou um pouco brega — resmunga
com uma careta que deixa o conjunto da obra ainda
mais bonito.
— Brega, possessivo, exagerado, pode
chamar do que quiser. — Aproximo-me do seu
ouvido e sussurro: — Mas continua sendo verdade.
— Sim. — Suspira sem nem perceber, os
olhos fechados e o corpo totalmente entregue.
Contemplo o belo rosto cheio de desejo.
Admiro o nariz anguloso, o queixo delicado, a
sombra dos cílios longos no limiar entre a pálpebra
inferior e as maçãs do rosto. Seus lábios
entreabertos fazem todos os meus instintos mais
rústicos digladiarem dentro do peito.
— Eu vou beijar você — comunico,
lembrando a primeira vez que executei essa
sentença.
Não existe recusa entre nós, é perfeito e
correto. O beijo de Lara faz crescer dentro de mim
uma saudade poética. Sacio-me da sua existência e,
em igual medida, lamento por todos os anos em que
estivemos longe um do outro. Lara é para mim o
que a primavera representa para as borboletas, sem
ela minha vida tem menos valor, uma paleta
limitada de cores frias e esforços vãos.
— Temos que ir — digo depois de uma
eternidade, nunca vou me cansar disso.
— Está tudo pronto — informa,
recuperando-se devagar, anestesiada com o prazer.
Respirando fundo, Lara se afasta e corre até
um armário suspenso. Abre uma das portas e se
estica com o braço no alto, puxa uma pequena cesta
e depois me olha cheia de orgulho.
— O que é isso?
— Vinho e duas taças.
— Vamos comemorar alguma coisa?
— Não, vamos beber.
Ela quer dizer que vamos precisar de álcool
para suportar. Recolho a cesta de suas mãos, beijo
mais uma vez a sua boca. Queria poder ficar, queria
que fosse diferente, queria voltar para o quarto com
ela nos meus braços. Queria o mundo.
— Já pegou a chave? — Descemos a escada
que conduz até a garagem pelo anexo da cozinha;
Lara segue na frente e me mostra o molho. —
Então, vamos.
Acomodo-me no banco do passageiro,
estico a mão e seguro seus dedos junto aos meus.
Ela precisa entender que a minha força é toda para
ela, que meus sentimentos estão em sintonia com os
dela e que, não importa o que aconteça hoje,
continuarei ao seu lado.
Lara dirige o veículo em silêncio. Cada vez
que nos distanciamos mais da grande área central
da cidade, percebo sua postura esmorecer. Mesmo
diante do medo, continua com a atenção fixa nas
ruas e o punho fechado com força no volante.
Vinte minutos depois, entendo nosso
destino. Meu estômago se contrai com a
expectativa. Ainda não tinha visitado o túmulo de
Petrova desde que voltei para a Rússia.
Lara escolheu se confessar diante da
sepultura da irmã.
Ela entra com o carro no cemitério e lápides
com estátuas de feições congeladas nos recebem
repletas de melancolia, como se previssem a
chegada de outro fantasma, o mesmo que viemos
enterrar.
As árvores se misturam com os túmulos e
pássaros de temporada sobrevoam no céu, viajando
entre os galhos e as folhagens vivas típicas da
estação calorenta.
Estacionando o carro perto de um mausoléu
castigado pelo tempo, Lara sai do carro primeiro do
que eu. Começa a caminhar na frente, abraçada ao
próprio corpo. O vento faz seus cabelos se agitarem
sem harmonia e o vestido primaveril e longo torna
a composição do cenário semelhante ao de uma arte
neoclássica.
Quando Lara se torna um ponto distante, eu
saio do carro e percorro o mesmo trajeto, sem
pressa alguma. Já caminhei sobre essa rua de
pedras. Mikhail não permitiu a cremação, ele queria
um enterro completo com direito à mais bela lápide
do país.
Hoje em dia o túmulo de Petrova se
transformou em um pequeno jazigo deprimente, a
tinta outrora azul se reduziu a um cinza morboso e
os vasos de flores choram cheios de terra infértil.
— Ela iria odiar — diz Lara ao notar minha
aproximação. Está ajoelhada na frente da foto de
sua irmã. — Não combina nada com ela.
Sento ao seu lado, de costas para o túmulo,
em silêncio. Abro a garrafa de vinho e decidido que
as taças são desnecessárias. Talvez a gente precise
de mesmo é de mais álcool.
— Algumas vezes, fico pensando se ela
sofreu. — Lara acaricia a imagem da irmã. — Se
foi rápido ou se ela ainda ficou consciente durante
algum tempo. Me pergunto se sentiu medo quando
percebeu que era o fim.
— Os médicos disseram que ela morreu na
hora com o impacto — comento. Levo a garrafa à
boca e engulo uma quantidade exorbitante do
líquido escarlate, entregando para Lara em seguida.
— Eu não sou filha de Mikhail — diz. Meu
mundo sai do lugar, acho que bebi o vinho rápido
demais. — Sou uma filha adulterina, Ivan.
Apoio os braços sobre os joelhos e abaixo a
cabeça, encarando um ponto qualquer do chão.
Com minha visão periférica, noto o movimento da
garrafa enquanto Lara também bebe. Ela se remexe
até ficar de costas para a fotografia de Petrova,
assim como eu.
Ofereço a mão e tão logo estamos unidos
por esse gesto familiar.
— Minha mãe se envolveu com o motorista
da família, um homem jovem e bonito, trabalhador
e honesto. Pouco antes de Petrova completar cinco
anos, Aleksandra anunciou a gravidez, mas Mikhail
já sabia que aquela criança não era dele. No
começo, eu não entendia, mas o amava mesmo
assim. Mesmo com os castigos e a falta de carinho,
eu ainda o amava como qualquer criança ama o seu
pai.
— Se ele sabia que você não era filha dele,
por que decidiu assumir?
— Você é o empresário aqui, vai saber
responder.
— Prestígio social — respondo meu próprio
questionamento. — Ele queria abafar um
escândalo.
— Mikhail nem sempre foi violento, antes
ele simplesmente ignorava a minha existência ou
me repreendia com palavras e humilhações.
Descobri que não era uma filha legítima no meu
aniversário de quinze anos.
— Sua irmã me disse que você tinha ido
viajar para comemorar.
— Ela não sabia de nada, ninguém sabia.
Mikhail disse isso para justificar o meu
desaparecimento. Fugi naquela noite para a casa de
uma amiga da escola e voltei três dias depois.
Quando cheguei, ele ameaçou me mandar para um
colégio interno.
— Ele… bateu em você?
— Ah, sim, nessa época ele já me batia.
Mas não era tão violento. Um tapa, uma
chacoalhada. Piorou com o passar dos anos,
principalmente quando eu resolvi me rebelar.
É pesado, muito mais do que eu esperava.
Lara sofreu violência física e psicológica desde
quando era uma criança. Foi coagida a manter esse
segredo doentio sob ameaças e agressões
constantes. Minha falha com ela parece maior sob a
lente da verdade.
— Eu mentia bem — explica, entendendo o
rumo dos meus pensamentos. — Não precisa se
culpar por nunca ter percebido. Eu era jovem,
estava com o coração partido e tinha medo. Muito
medo.
— Por que o seu coração estava partido? —
indago, mesmo que a resposta esteja alojada no
meu coração.
— Eu te amei, Ivan — conta, virando o
rosto para creditar suas palavras. — Eu te amava
mais do que qualquer pessoa. — Os olhos dela se
enchem de lágrimas, a ponta do nariz é preenchida
com uma coloração rosada pelo esforço de conter o
choro. — No começo, era uma admiração infantil.
Acho que você era como um herói, que sempre
aparecia para me livrar dos problemas. Com o
tempo, foi se transformando em amor.
— Mas eu comecei a namorar com a sua
irmã — assinalo o óbvio.
— Toda vez que a gente se encontrava, meu
coração batia tão depressa que eu tinha medo de
que fosse possível escutar. Não queria que ninguém
descobrisse, principalmente meu pai.
Pai, aquele desgraçado não é e nunca foi
um pai para Lara. Ele apagou seu brilho, ofuscou a
alegria que ela espalhava aos ventos na juventude.
— Nessa época eu já me sentia injustiçada.
— Continua. — Você e Petrova tinham começado a
namorar e meus pais me isolavam de todos os
eventos — Lara pausa, beberica a garrafa de vinho
e entrega para mim. — Eu fiz o que qualquer
adolescente faria no meu lugar. Comecei a sair,
beber, me envolvi com alguns homens.
— Eu me lembro dessa época. — Foi por
causa dessa fase que eu construí na minha cabeça
uma visão deturpada de Lara e da sua essência.
Ofereço a garrafa outra vez, mas ela fica
rodopiando o dedo na borda, seus pensamentos
podem estar em qualquer lugar. Estamos nos
aproximando da noite em que tudo mudou, não
quero acreditar que essa história ainda pode piorar,
mas temo não ser possível.
— Você e Petrova ficaram noivos — expõe
com a voz trêmula. — Eu tinha finalmente saído de
casa, morava no meu próprio apartamento e
consegui um emprego decente. Estava começando a
faculdade, fazendo novos amigos, logo conheceria
um homem interessante e esqueceria aquele amor
não correspondido.
Recolho a garrafa e bebo mais, merda de
vida injusta.
— O que aconteceu na noite do acidente,
meu bem? — pressiono. Um pouco mais e corro o
risco de abandonar Lara nesse cemitério para
desmembrar Mikhail até o último fio de cabelo.
— Você já ouviu aquela famosa frase de
que nada é tão ruim que não possa ficar pior?
Bem, se a lei de Murphy pudesse ser representada
por um único dia, seria o dia do acidente. —
Mesmo com o humor negro, Lara não recua. —
Tudo aconteceu ao mesmo tempo.
Inspiro profundamente, arrasto-me para o
lado e abraço Lara pelos ombros. É o meu
momento de ser destruído, de manter a cabeça
erguida mesmo com a multiplicação dos meus
arrependimentos. Antes, achei que passaria a vida
me redimindo por todos os erros injustos, agora sei
que nunca serei digno do seu perdão.
Não é mais sobre transformar sua vida para
melhor, é sobre assumir que Lara é a minha vida
agora.
— Ela me traiu. — Soluça. — Minha irmã
me traiu, Ivan, mas eu nunca quis que ela morresse!
— Calma, está tudo bem. — Aperto-a
contra mim, como se assim o sofrimento se
tornasse todo meu. Se fantasmas existem, espero
que Petrova possa ouvir as palavras da irmã que
tanto a amava.
Nossa Petrova, nosso começo e fim.
— Eu comecei a investigar sobre quem era
o meu verdadeiro pai. Tinha decidido me desligar
completamente de Mikhail e entrar com um pedido
de anulação da paternidade. Fiz tudo em segredo,
sentia medo da reação dele quando descobrisse.
— O motorista?
— Sim, consegui entrar em contato e
marcar um encontro por telefone. Foi a primeira,
única e última vez que escutei a voz do meu pai
biológico. Ele nunca soube que eu era sua filha,
minha mãe nunca assumiu. Quando eu contei, ele
ficou eufórico. Foi estranho, constrangedor. Eu não
conhecia esse tipo de relação, não de verdade.
— Sua mãe…
— Ela está doente desde que me entendo
por gente. Não sei quando a depressão começou,
mas depois que a Petrova faleceu ela simplesmente
desistiu. Mikhail nunca encostou um dedo nela,
mas se alimentou de todas as possibilidades que
tinha de recuperação.
— Entendo.
— Naquele dia, estavam todos empolgados
com a viagem, mas a minha cabeça estava repleta
de esperança. Eu queria me encontrar com ele, mas
aquele maldito medo ainda falava alto demais. Foi
então que eu decidi contar tudo à Petrova.
— Não — sussurro. A voz de Lara se repete
na minha mente como um mantra acusador. Ela me
traiu, ela me traiu, ela me traiu. — Petrova contou
tudo para Mikhail.
Acontece, Lara começa a chorar. É tão
doloroso, tão injusto e revoltante que a morte
sentiria inveja da nossa dor. Ela me abraça, a
garrafa cai no cimento rachado, esparramando o
restante do vinho vermelho como uma poça de
sangue.
— Ela entrou em pânico quando contei a
verdade. Não queria acreditar que Mikhail não era
o meu pai. — Lara olha para trás e coloca a mão
outra vez sobre o retrato sorridente da irmã. —
Hoje eu a entendo, sabe? Petrova nunca teve a
chance de ser livre, não de verdade. Enquanto a
minha vida era uma incerteza, um livro em branco,
as páginas da vida dela já estavam escritas muito
antes de ela nascer.
— Mesmo assim, Petrova não tinha o
direito…
— É por isso que eu fiquei surpresa quando
soube que ela pretendia se casar com outro homem.
Mesmo odiando Dimitrio, talvez tenha sido a única
escolha que ela fez por conta própria. Todo o resto,
desde suas ações, a forma como falava, as escolas
que frequentava, suas amizades, brincadeiras,
exatamente tudo o que minha irmã fazia estava
sempre sob o olhar atento de alguém.
— Inclusive nosso noivado —
complemento com um amargor na garganta.
— Ela amava você. Talvez não o suficiente
— Lara sorri tristemente. — Não tanto quanto eu.
O silêncio recai sobre nós, até os pássaros
foram embora e as árvores emudeceram o farfalhar
de suas folhagens. O mundo parece se martirizar
com essa história. Lara volta para os meus braços,
fecha os olhos antes de prosseguir:
— Nós duas começamos a brigar na cidade.
Eu queria a ajuda dela para encontrar com meu pai,
mas minha irmã se recusou a colaborar, foi embora
e contou tudo para Mikhail, depois entrou no carro
junto com Andrei e os outros e foi para a casa de
férias.
— Por que não foi junto?
— Não consegui escapar a tempo. —
Prendo a respiração. Se existe algo maior do que o
ódio, é isso o que me descreve agora. — Mikhail
apareceu no meu apartamento, estava
descontrolado, completamente fora de si. Não
tentou conversar, nem me levar de volta. Ele
apenas me bateu, bateu e bateu, como nunca antes.
Eu me lembro vagamente da minha mãe aparecer
por lá, da insegurança dela. Acho que tentou
impedir. Descobri que ela só faz isso quando sabe
que vai ser realmente ruim.
— Lara — digo seu nome como uma
oração.
— Depois que ele foi embora, eu estava tão
machucada que não sabia o que fazer. — Ela funga
e treme com a cabeça sobre o meu coração. —
Então eu procurei a única pessoa que poderia me
ajudar. Meu pai, meu verdadeiro pai. Tentei ligar,
mas como ele não atendia, então enviei uma
mensagem e contei o que tinha acontecido. Pedi
que me encontrasse e passei o endereço da casa de
férias, bem longe da cidade para não sermos pegos
por Mikhail.
— Isso tudo é tão insano!
— Foi por isso que nós brigamos. Petrova
não imaginava que Mikhail fosse fazer aquilo, mas
eu não queria mais saber de suas desculpas. Eu
estava tão desesperada, tão louca, que só a queria
longe de mim.
— Foi por isso que ela me ligou! Meu Deus,
ela queria que eu ajudasse você.
— Mandei que fosse embora, mas eu acho
que Petrova entrou naquele carro para buscar ajuda.
Justiça talvez, qualquer coisa. Não sei, acho que
nunca saberemos.
— Depois veio o acidente — ajudo; mesmo
que minhas sentenças pareçam óbvias, entendo
como é difícil para ela se movimentar entre as
lembranças.
— Eu não sabia que ele tinha lido a
mensagem. — Chora, deixando-me confuso. — Se
eu não tivesse enviado aquela mensagem, os dois
nunca teriam sofrido aquele acidente.
— O que você quer dizer, Lara?
— Meu pai leu a mensagem, ele estava indo
me encontrar mesmo com o temporal. Ele foi a
outra vítima do acidente, Ivan.
O motorista!
É demais, fico de pé e ando de um lado para
o outro. Que merda de destino é esse que causa
tantos males a uma única pessoa do universo?
Sinto-me revoltado, despedaçado, quero matar
Mikhail, quero-o morto e esquecido pela
humanidade.
Eu devia ter juntado as peças há muito
tempo. O motorista no outro carro ela Lev
Turturov, o padrasto de Iago. Lara e Iago seriam
quase irmãos se ele não tivesse morrido. Por causa
daquele demônio, eles tiveram suas vidas
destruídas.
— Você não tem culpa! Por que aguentou
tudo isso sozinha? — grito, mas ela se contrai e eu
me recrimino. — Me desculpa, mas é tudo tão
injusto.
— Ele me ameaçou. — Lara também se
levanta, ficando diante de mim com o rosto
marcado por lágrimas. Não aguento mais vê-la
chorar. — Outro dia eu disse que queria te
apresentar uma pessoa. Meu pai tinha um enteado
que foi parar em um orfanato. Ele é tudo o que me
resta, Ivan. Tentei adotá-lo, mas Mikhail me
impediu.
Lara se curva sobre o próprio corpo como
se esse fosse o único tópico que lhe inflige uma dor
física. O mundo ganha novos tons diante dos meus
olhos.
— O que ele fez, Lara? Tem que me dizer.
— Amparo sua queda, segurando-a pelos braços.
— Mikhail consegue tudo o que quer com o
dinheiro que tem, você não entende! Ele pode tirá-
lo de mim, é por isso que você não pode enfrentá-
lo. Por favor, Ivan.
— Lara! — chamo, forçando sua cabeça a
olhar fixamente nos meus olhos. — Lara, escuta.
Mikhail pode ter dinheiro, mas eu tenho muito
mais. Se ele acha que é poderoso só por causa
disso, então quem precisa ter medo a partir de
agora, é ele.
Espero até Lara resolver se concorda com
minhas palavras, se entendeu pelo menos. O líquido
vermelho criou um caminho até Petrova ao escorrer
pelas frestas do chão. Ela foi importante e sempre
vai ser um pequeno pedaço do meu coração. Mas
existem tantas possibilidades, tanta… vida.
— Nós temos que ir embora, já acabou. —
Mesmo com a respiração frenética, finalmente Lara
aquiesce. — Acabou — repito, beijando sua testa.
Quero encontrar Iago, cobrar certezas sobre
a sua segurança. O filho de Lara, que foi ameaçado
por Mikhail. Minha Lara, a mulher que eu amo e
que foi agredida da pior forma por esse mesmo
homem.
Não, não posso deixar isso continuar
impune.
— Acabou — diz ela parecendo perdida, a
voz se recuperando do choro. — Para onde nós
vamos?
— Vamos visitar Iago — decido.
— O quê? Como sabe que ele se chama
Iago?
— Bem, eu deveria saber o nome do meu
próprio filho.
CAPÍTULO 26
Rainha

QUATRO FILHOS INGRATOS. Ao todo, trinta e


seis meses de gestação, isso são quase mil e oitenta
dias. Mais de vinte e cinco mil horas! E nenhum
deles tem a decência de tomar o café da manhã
junto com a própria mãe. Depois eu resolvo dar
uma de louca e eles ficam me chamando de bruxa
pelas costas.
Eu devia vender essa mesa, definitivamente
é um pensamento que me agrada. Não adianta ter
uma mesa com espaço para trinta pessoas se todos
os dias tenho que fazer o desjejum sozinha. Eu
devia vender essa casa também, queria ver a cara
dos quatro quando não tivessem mais uma mansão
para voltar.
Vladimir só sabe trabalhar! Se a empresa
tivesse uma vagina, eu já seria avó de cinquenta
crianças. Ele desperdiça a própria vida sentado
naquela cadeira e cada dia que passa eu temo mais
por sua saúde. Desde a morte de Nicolai, assisti
meu primogênito se transformar, de um menino
cheio de sonhos e planos para um homem frio e
cobiçoso.
Roman se acha o garanhão responsável que
dorme com uma mulher por noite e não presta para
arrumar um filho nem por acidente! O cretino tem
mais disposição para brigar na rua como um
delinquente do que para formar a própria família.
Aquele lá é ruim como o demônio e quase sinto
alguma pena da mulher que cair em seus encantos.
Quase!
Andrei, meu doce caçula, tem o dedo podre
como o inferno! Nunca pensei que um ser tão
repugnante pudesse existir, mas aquela mulher que
arrumou é tóxica. Meu filho pode até ter acreditado
naquela mentira, mas de cobra venenosa eu
entendo. Meu coração de mãe sangra por
antecipação, pois no dia em que toda a verdade vier
à tona, Andrei vai perder uma parte da própria alma
pela segunda vez.
E tem o Ivan…
O mais lento, o mais ingrato e o mais difícil
de prever. Não é centrado como Vladimir, nem
temperamental como Roman ou ético como Andrei.
Ivan sempre teve essa personalidade inconstante e
imprevisível, especialmente quando coloca alguma
coisa na cabeça.
Teimou por mais de dez anos que amava
Petrova, quando na verdade seu coração batia mais
forte por outra mulher. De fato, era difícil encontrar
alguém que não gostasse dela, a menina tinha um
coração puro e um jeito doce, mas no fundo eu a
achava tediosa, mecânica e sempre ligada no modo
automático.
Uma eternidade depois, ele parece estar
superando o passado. Um dos meus filhos tem
finalmente a chance de ser feliz, construir uma
família de verdade, mas por alguma intervenção
maligna os dois ainda não avançaram o sinal. E
olha que eu tenho escutado atrás das paredes todos
os dias para ter certeza se consumaram o ato, e
nada!
Termino de tomar o meu café e vou direto
para a área externa. Pego minha bolsa no meio do
caminho, preciso fazer umas compras depois de me
banhar um pouco com o calor do sol matutino. O
jardim é o meu lugar favorito da mansão desde
quando Nicolai me trouxe aqui pela primeira vez,
antes de tudo dar errado.
— Precisamos conversar com você — diz a
voz de Ivan de repente, quase arrancando meu
coração pela boca com o susto.
— Vai conversar com o meu fantasma se
aparecer assim outra vez! — reclamo, fazendo-o rir
junto com Lara que o acompanha.
Esses dois andam muito suspeitos nos
últimos dias. Depois daquele jantar perturbador
com a cobra venenosa que Andrei insiste em
chamar de namorada, Ivan e Lara saíram de manhã
e só voltaram quando o sol já tinha desaparecido.
Apesar da curiosidade crescente, não quis invadir a
privacidade deles, já que Lara estava com os olhos
inchados de quem havia chorado uma vida inteira
em poucas horas.
Depois, começaram com essa mania de
desaparecer antes de todos acordarem e só voltar
horas mais tarde, cheios de sussurros e
confidências.
— Algum problema? — indago
casualmente. Lara solta um risinho cúmplice.
— Não exatamente, mas prefiro que a
senhora se sente.
Reviro os olhos, paciência não é o meu
forte. Ainda bem que estamos perto do pergolado e
logo já nos acomodamos no meio de almofadas e
flores.
— Então? — incentivo, cruzando as pernas.
O conjunto de calça social e blazer brancos não é
confortável o suficiente para eu colocar os pés em
cima da poltrona.
Lara abaixa a cabeça, essa menina carrega
um fardo pesado. Desde que chegou nessa casa,
tem se soltado devagar, mas me corrói por dentro
não conhecer o coração das pessoas. Alguns me
tomam por invasiva, eu me tomo por amorosa.
Tudo bem, talvez invasiva e amorosa.
Então Ivan começa a falar, um discurso
cheio de tristeza, amargor e desventuras. É sobre
Lara e seus traumas do passado, mas é também
sobre todos nós e a forma como falhamos com uma
pessoa tão injustiçada.
São segredos dolorosos e Ivan explica como
tomou conhecimento há poucos dias. Lara chora
em algumas partes, especialmente quando ele
revela as cruéis e sucessivas tragédias ocorridas na
noite do acidente.
Listo mentalmente alguns momentos, a fim
de construir uma cronologia fácil de memorizar.
Lara não é filha biológica de Mikhail, tem sofrido
uma violência física e psicológica por parte desse
covarde e perdeu as duas pessoas mais importantes
de sua vida em uma única noite. Eles também
relatam sobre o acordo que pretendiam selar com a
empresa de Mikhail e só não faço um escândalo
porque, sem isso, eles nunca teriam se
reencontrado.
— Você é a primeira pessoa a quem
contamos isso, mãe.
Levanto e caminho até os dois, estendo a
mão para Lara e ela fica de pé diante de mim.
Seguros seus ombros para que escute cada uma das
minhas palavras.
— Você é forte — digo com convicção; seu
choro cessa no mesmo instante. — Você é muito
forte, Lara. Não vou te dar um abraço, nem dizer
que sinto muito. Sua história é muito triste, mas ela
ainda não acabou. Seja muito bem-vinda à minha
família, me sinto honrada por ter uma mulher tão
forte como nora.
— Obrigada. — Sorri, balançando a cabeça.
— Muito obrigada.
— Mãe — Ivan chama; esse menino não se
cansa de sorrir. — Tem mais uma coisa.
— Você esperou eu fazer o meu discurso
motivacional para jogar outra bomba e estragar o
clima bom?
— Não — diz Lara, contente apesar das
revelações. — Dessa vez é uma coisa boa.
— Iago, o enteado do pai biológico da Lara,
nós vamos adotá-lo.
Coloco a mão sobre o peito, meu coração
não está batendo. Tenho certeza de que estou
morrendo. Vou cair dura, morta e fria no chão antes
de conhecer o meu neto. Ivan corre para me segurar
e coloco a mão em seu rosto.
Ele me lembra Nicolai, não tanto quando
Vladimir, mas esse temperamento, a determinação
e, principalmente, a impulsividade.
— Pelo menos vou morrer feliz — sussurro,
mas o ingrato começa a rir da minha morte
precoce, acomodando-me no sofá de madeira.
— Vaso ruim não quebra assim fácil, mãe.
— Eu tenho um neto! — grito, de pé outra
vez. Inferno, eu tenho um neto, não preciso ficar
sentada nunca mais. — Eu tenho um neto — repito
para ter certeza.
— Sim, e eu tenho um filho. — Ele abraça
sua amada com tanto carinho que me emociona. —
Nós temos um filho — corrige, beijando seus
lábios.
— Onde está meu neto? Por que não o
trouxe com vocês?
— Iago ainda está no orfanato, não
podemos tirá-lo de lá sem uma liberação do juiz.
— Arrume um juiz! — digo exasperada. Eu
disse que era lerdo o menino. — Só eu conheço uns
quarenta juízes, você e seus irmãos conhecem mais
cem. Se for por falta de juiz, eu mesma viro uma e
assino essa liberação.
— Já entrei com um pedido provisório,
mãe. Logo ele vai estar em casa.
— Vou nesse orfanato, me passe o
endereço.
— Iago ainda não sabe de nada — teima,
esquivando-se da minha determinação. — A gente
não quer que ele fique ansioso, não sabemos quanto
tempo vai demorar.
— Não vou suportar — lamento com a mão
na testa; um dia esses meus filhos ainda me fazem
ter um colapso nervoso.
— Mikhail ameaçou mandar Iago para
longe, Tatiana — Lara diz em um surto de
coragem. — Faz mais de três anos que venho
velando a segurança dele. É por isso que aceitei
tanto tempo de humilhação, por causa do meu filho.
Alguma coisa no meu olhar assassino deve
ter deixado Ivan em alerta, pois ele vem para mais
perto de mim. É só um olhar assassino, todos na
minha família o usam de vez em quando.
— Eu sei o que está pensando, mãe. Se
ainda não invadi aquela empresa e acabei com a
vida daquele desgraçado, é por causa de Iago. Se eu
me encontrar com Mikhail agora, não vou
conseguir me controlar. Não quero colocar tudo a
perder, estamos perto de conseguir algo grande
para incriminá-lo.
— Meu filho. — Seguro seu rosto e faço
um carinho em seus cabelos claros. Ivan não
conhece nada sobre si mesmo. — Você nunca vai
conseguir se controlar. Não importa quanto tempo
espere, sempre que tiver esse homem nas mãos,
você vai perder o controle.
— Tenho que pensar no Iago.
— Eu sei que sim — garanto. — Conheço
você, cada inconsistência do seu coração. E sei que,
nesse momento, você não quer ter uma conversa
civilizada e esclarecedora com Mikhail. Estou
muito orgulhosa, Ivan. Você sabe o que precisa
fazer, tem um irmão advogado caso precise de
apoio.
— Sim — Ivan sorri, me abraça e pede
baixinho no meu ouvido: — Não faça nada
perigoso. — Depois, me solta e vai para perto de
sua mulher.
— Meu nome é Tatiana Pavlovna Volkiova
e eu não admito que ninguém ameace um neto meu.
— Ivan não para de sorrir um segundo. — Quero
essa criança aqui o mais rápido possível, Ivan. Está
me ouvindo? Gaste o dinheiro que for, cobre os
favores necessários. Você tem a droga do
sobrenome mais importante do país, use-o!
— Mãe, queremos adotar Iago da forma
mais limpa possível. Tudo dentro das leis, não
podemos arriscar que alguma coisa dê errado.
— Eu sou realmente uma ótima mãe, olha
que filho mais honroso que saiu de dentro de mim
— brinco com Lara, que não consegue parar de
chorar. Dou um leve tapinha orgulhoso no rosto de
Ivan antes de pegar minha bolsa. — Não aprendeu
comigo, é claro.
Dou as costas e sigo em direção ao carro
que sempre fica à minha disposição durante o dia.
Passo o endereço da empresa Ihascov ao motorista
e dou ordens explicitas para acelerar o mais rápido
possível. No meio do caminho, paramos em uma
loja de conveniência e saio de lá com duas sacolas
cheias; não é educado visitar as pessoas sem levar
ao menos um presente.
Quando chegamos, nem espero o homem
estacionar o veículo; saio e sigo para dentro do
prédio.
Na recepção, uma secretária muito bonita e
sorridente me recebe. É uma menina jovem, a pele
negra como uma turmalina schorlita contrasta com
o tom monocromático do uniforme. Provavelmente
esse é o seu primeiro emprego, considerando a
pouca idade.
— Posso ajudar? — pergunta com
profissionalismo, seu sorriso se alargando.
— Você é solteira? — Não era nada disso
que eu pretendia perguntar, mas a gente não pode
desperdiçar as oportunidades da vida.
— Não — responde lentamente com as
sobrancelhas arqueadas. — Sou noiva.
Eu não dou sorte mesmo…
— Mas que pena! Como vai o seu
relacionamento, querida? Tudo bem? Não pretende
se separar, dar um tempo quem sabe?
— Desculpe, senhora. Precisa de ajuda com
algum assunto que envolva a empresa Ihascov? —
esquiva nervosamente.
— Tudo bem — desisto. Um dia ainda vou
ser presa por assédio, alguém precisa me parar. Se
depender de mim, a coisa só tende a piorar. — Vim
falar com o presidente Mikhail Ihascov.
— A senhora tem horário marcado? — Ela
começa a digitar no computador.
— Não, mas vou falar com ele mesmo
assim — insisto com classe, devolvendo seu sorriso
profissional.
— O senhor Ihascov está no meio de uma
reunião, não pode ser interrompido no momento.
— Não, acho que não me entendeu. Não
estou dizendo que preciso falar com ele, nem que
eu gostaria de falar com ele, nem que eu sonho em
falar com ele. Eu disse que vou falar com ele, nesse
exato momento. Só me diga como chegar até a sala
de reuniões.
— Não posso fazer isso, sinto muito. Se
quiser posso marcar um horário.
Que os deuses da paciência me iluminem.
— Quero marcar um horário. Agora é um
bom horário. Você vai ligar para seu chefe e dizer
que a viúva de Nicolai Volkiov precisa falar com
ele. — Reflito um pouco, preciso ser mais
convincente. — Diga que serei breve, desde que me
atenda nos próximos dois minutos.
Bingo!
Usar o sobrenome do meu falecido esposo é
sempre a melhor estratégia. Não existe uma porta
que continue fechada depois dessas palavras
mágicas. Um minuto depois, a recepcionista me
indica o número do andar e o caminho até a sala.
Claro que a peste está me esperando do lado
de fora, todo descontente em seu terno de risca e a
barba cheia. Faz menção de abrir a boca, mas passo
por ele e escancaro a porta da sala de reuniões. Tem
pelo menos dez empresários aqui, olho para aquele
que ocupa a cadeira no lado direito do presidente.
— Qual é o seu nome, meu anjo? —
questiono a um homem de olhos verdes e
semblante desgastado. Parece-me familiar, mas o
ódio só permite que eu reconheça um rosto na sala.
— Dimitrio — diz ele. — Dimitrio
Livannov.
— Livannov. — Testo o sobrenome para
reviver alguma lembrança, é apenas um empresário
com a reputação manchada. — Sua reunião acabou,
pode nos dar licença. O mesmo vale para todos os
outros.
— O que está acontecendo aqui, Mikhail?
— Dimitrio direciona um olhar irritadiço para o
velho beberrão atrás de mim.
— Você tem duas opções. — Continuo
tagarelando. As garrafas tilintam dentro da sacola e
começam a despertar o interesse de alguns homens.
— A primeira, encerrar essa reunião e me receber
em particular agora mesmo; ou então, eu posso
começar a falar na frente de todos esses senhores
sobre o tipo de pessoa que você é. Já adianto, pode
me acusar por calúnia e difamação o quanto quiser,
não tenho medo da prisão, você tem?
Mikhail começa a suar como um porco a
caminho do matadouro.
— Senhores, como veem, preciso resolver
essa questão urgente — resmunga com o rosto
inchado de vergonha. Retira um lenço do paletó e
enxuga a testa.
Devagar, os homens começam a se levantar.
Cumprimentam Mikhail com apertos de mãos e
sorrisos complacentes. Quando passam por mim,
limitam-se a fazer uma reverência respeitosa ou
acenar com a cabeça sem manter contato visual.
Devem achar que eu sou a medusa.
O último a abandonar sua cadeira é
Dimitrio. Ele reluta um pouco, sussurra qualquer
coisa para o presidente e depois se retira sem me
olhar. Mikhail se transforma imediatamente, fecha
o semblante e não esconde o desgosto com a minha
abordagem.
— Não precisava agir dessa forma —
reclama com um tom autoritário.
— E vampiros brilhantes poderiam existir
de verdade, pena que a gente não pode ter tudo o
que quer nessa vida! — desdenho, cruzando seu
caminho até a ponta da mesa. — Minha conversa
será rápida, não quero respirar o ar do mesmo
ambiente que você.
Coloco as sacolas em cima da mesa e
minhas mãos agradecem — na hora que a ideia
surgiu não pensei no peso das garrafas. Começo a
retirar uma por uma, as marcas mais fortes de
vodca e uísques do mundo.
— O que é isso? — interroga com cuidado,
mantendo uma distância segura de mim.
— É o seguinte — começo —, fiquei
sabendo recentemente que meus filhos estavam
negociando com você, mas o acordo foi desfeito.
— Minha vontade de jogar todas as verdades na
cara dele é grande, mas vou respeitar o pedido do
meu filho.
— Sim. — Mikhail limpa a garganta,
arruma a gravata no pescoço. — Estou tentando
contatar minha filha, quero que ela volte para casa.
— Isso não vai acontecer. — Gargalho,
como pode ser tão insensível e cego? — Estou aqui
para dizer algumas coisas e você vai me escutar
com atenção.
— Não estou feliz com a conduta dos seus
filhos, achei que fossem mais profissionais —
dispara com os dentes cerrados, dando indícios de
sua índole deturpada. — Se o contrato não é mais
válido, então quero que a minha filha volte para
casa. Vamos seguir com a proposta adiante, tenho
outros clientes interessados.
— Lara vai se casar com o meu filho —
informo. A surpresa faz seu rosto fechado vacilar.
Inclino-me sobre a mesa. — Guarde bem o que eu
vou dizer, pois estou oferecendo uma oportunidade
para não piorar a sua situação.
— O que isso quer dizer? — vocifera.
— Eu vim até aqui porque Ivan é um
homem um pouco… inconstante, eu diria. Logo sua
empresa vai começar a ruir e você vai entender o
que estou falando. Ele pretende ter essa mesma
conversa com você em breve, porém, conhecendo o
meu filho como conheço, duvido que ele se lembre
de falar qualquer coisa antes recorrer à violência.
— Ele não ousaria — grunhe, socando a
mesa. Pobrezinho, pensa que pode me coagir.
— Não? — debocho. — Então vamos pagar
para ver.
— Saia da minha empresa — ordena com o
dedo estendido em direção à saída.
— Não sem antes esclarecer algumas
coisas. — Fico ereta, abotoo o blazer e volto a
falar: — Primeiro, quero informar que Iago, o
menino que você tem ameaçado há anos, em breve
será Iago Ivanovich Volkiov, meu neto.
— Aquela bastarda. — Ele soca a mesa
novamente, uma garrafa cai para o lado e seus
olhos queimam. — Vocês não sabem com quem
estão lidando.
— Não, Mikhail. Você é que não sabe com
quem está lidando. Assim que eu sair por essas
portas, vou me certificar de que meu neto tenha
vigilância noite e dia dentro daquele orfanato. Você
pode tentar atingi-lo o quanto quiser, não vai
conseguir. Vamos finalmente descobrir quem
possui as folhas de cheque com mais dígitos.
— O que você pretende com isso?
— A segunda coisa que tenho a dizer —
prossigo sem dar atenção ao seu desespero
crescente. — Dos meus quatro filhos, você resolveu
se envolver com aquele que não vai medir esforços
para ver você rastejando pelo resto da sua vida
imunda. E isso vai durar anos, pois Ivan é muito,
muito, muito paciente. Quando ele coloca uma
coisa na cabeça, não existe bênção divina capaz de
mudar sua opinião. Você, Mikhail, vai rastejar por
anos.
— Então, é isso o que você tem para me
oferecer. Ameaças vazias?
— Não são ameaças, meu querido. São
avisos. Estou aqui porque eu sei que meu filho não
vai conversar com você com tanta eloquência e
porque você não seria louco de tentar qualquer
coisa contra mim dentro de sua própria empresa. Eu
sei como você não é chegado em um escândalo.
— Bom — diz mais controlado, o choque
inicial se esvaindo. — Não tenho medo, vocês não
têm nada.
Desdenho da sua coragem com a mão.
— Por último, quero deixar essas garrafas
de presente. — Aponto para o conjunto sobre a
mesa, jogo o cabelo para trás e começo a sair da
sala, mas paro no meio do caminho e completo: —
Seria um grande feito se você bebesse todas na
próxima hora e morresse com um coma alcoólico
ou qualquer coisa do tipo. Seu alcoolismo não
justifica a sua falta de caráter. Então, não perco as
esperanças.
A última coisa que vejo antes de ir embora,
é um homem tão irado como o deus do submundo.
Não existe nada mais autodestrutivo do que um
homem amedrontado.
E eu adoro amedrontar aqueles que
ameaçam a minha família.
CAPÍTULO 27
Semente da Discórdia

OLHO PARA O homem adormecido ao meu lado,


pensando em como são impressionantes as voltas
que o mundo dá. Depois que Ivan decidiu invadir a
minha vida, não me atrevo a negar todas as
transformações tão bem-vindas e sucessivas.
Uma semana inteira se passou desde o dia
da confissão, e a partir daquele momento meus
olhos não foram mais preenchidos com lágrimas de
tristeza. Ivan me agrada o tempo todo, zela a minha
felicidade e enche meus dias de alegria.
Quero dizer a ele que desejo dar o próximo
passo, que estou pronta. Mas, algumas vezes, temo
que seu arrependimento ou remorsos sejam a força
motriz de tamanha dedicação — considerando
nosso passado complexo.
Coragem, mulher, penso, eu preciso dizer a
ele.
Levanto com cuidado para não interromper
seu sono profundo, assim evitamos o
constrangimento matutino — e recorrente — sobre
quem vai ser o primeiro a utilizar o banheiro.
Apesar do pouco espaço no guarda-roupas de Ivan,
conseguimos reorganizar os compartimentos para
que eu pudesse colocar meus pertences.
Ivan vive dizendo que é uma medida
provisória, mas gosto de classificar esses pequenos
esforços como conquistas na nossa relação.
Mas a conquista que eu quero mesmo é
outra.
Água gelada, é disso o que preciso.
Escolho um conjunto de blazer e calça de
risca azul marinho, entro no banheiro e fecho a
porta com cuidado. Retiro toda a minha roupa e
admiro meu corpo no espelho, um hábito que
adquiri depois que as últimas marcas de Mikhail
desapareceram do meu pescoço.
Não existe nada que denuncie as noites sem
dormir, as agressões ou humilhações. Todas as
minhas feridas estão cicatrizando devagar,
inclusive aquelas que sempre foram invisíveis aos
olhos. Quando a alma da gente é maculada pelo
ódio de pessoas cruéis, não basta sermos pacientes
ou fortes, precisamos aceitar que toda ajuda é uma
chance de recuperação.
Meus cabelos continuam curtos, mas deixei
para trás os fios irregulares que sussurravam
lembranças ruins, e substituí por um corte moderno
que combina com essa nova fase da minha vida: as
pontas frontais fazem um desenho perfeito junto
com a linha do meu maxilar até o queixo, de forma
que minha nuca se mantém exposta na parte de trás.
Assim que termino de me arrumar e volto
para o quarto, encontro Ivan deitado com os braços
cruzados atrás da cabeça, seus olhos sonolentos
vasculham a minha roupa e seu sorriso orgulhoso
faz o meu dia finalmente começar.
— Você sabe que o encontro com o
advogado está marcado para daqui duas horas, não
sabe? — pergunta com a voz rouca, um efeito
colateral do despertar recente.
A forma como a boca dele se movimenta
para falar comigo, sua leveza após uma noite de
sono aconchegante, tudo isso deixa o meu
raciocínio lento demais. Comparado aos irmãos, as
características físicas de Ivan coincidem pouco com
o padrão familiar; o tom ensolarado dos seus olhos,
combinado com cada contorno agudo, validam a
singularidade desse homem.
— Quero passar na cafeteria — explico
após muito admirar o ponto tentador em que seus
músculos flexionam para sustentar a cabeça. Assim
fica difícil, querido. — Não vejo Dema há tanto
tempo que ela começou a enviar ameaças no meu
celular.
— Devia convidá-la para jantar aqui —
sugere. Retira os lençóis e sai da cama, munido de
apenas uma bermuda e a glória da sua existência.
Isso é tortura das mais cruéis, estou
pagando meus pecados.
Diga a ele, sussurra a vozinha maléfica da
minha consciência.
Após o meu surto de coragem um dia antes
de visitarmos o túmulo da minha irmã, começamos
a investir em emoções e reações. Mesmo havendo
muita tensão sexual acumulada, nossas noites têm
sido tão maravilhosas — apaixonantes e
desbravadoras — que a necessidade do sexo
começou a soar como uma ambição coadjuvante e
nada imprescindível. Mas estamos chegando em
um limite, tanto eu quanto ele.
— Vou falar com ela — digo um milhão de
anos depois. Ivan solta uma risadinha enquanto
escolhe suas próprias roupas, o dorso
completamente exposto me deixa reflexiva sobre as
vantagens e desvantagens de tornar nossa primeira
vez uma memória especial.
Talvez se nós apenas…
Ele se aproxima, deposita um beijo na
minha testa e outro no meu pescoço. É o nosso
ritual diário, um costume com o qual estou
inclinada a me acostumar. Todo o meu corpo
reconhece o seu, clama por uma eternização da
sintonia que existe entre nós.
Somos o extremo oposto um do outro, os
dois lados de uma mesma moeda, a essencialidade
de um determina a intensidade do outro. Assim
como o sol e a lua eternizam mutualmente a própria
beleza no céu, eu e Ivan alcançamos o que existe de
melhor dentro de outro.
Cento e sete mil.
— Você fica linda de executiva, é injusto
estar tão cheirosa enquanto eu nem escovei os
dentes — divaga, acariciando meu rosto com o
polegar.
— E você fica lindo de qualquer jeito, isso
sim é uma injustiça com nós, mortais — digo
abobalhada.
— Já disse que amei o seu cabelo? —
questiona, dedilhando minha nuca e meu corpo
traidor responde com estímulos tão simples.
— Todos os dias — confirmo, embora
suspeite que sua aprovação tenha mais relação com
o meu pescoço exposto do que com meu novo
visual.
— Encontro com você na empresa? —
murmura, a ponta do seu nariz fazendo cócegas na
parte visível da minha clavícula.
— Sim — sussurro —, vou direto para lá
depois de conversar com a Dema.
— Quer uma carona?
— Bom, considerando que sou
desempregada e não tenho um carro, é uma ótima
ideia.
— Ainda bem que seu futuro marido é um
homem assalariado, então — brinca.
Ivan beija mais uma vez a minha testa e
entra no banheiro, deixando-me com a cabeça
girando. Apesar de termos cancelado o contrato,
não chegamos a renovar as propostas do nosso
relacionamento. Uma parte de mim vai estar
sempre à espera de um diálogo concreto, um pedido
verdadeiro, mas em momento algum Ivan se referiu
à nós dois de outra forma; na cabeça dele, somos
noivos e temos um filho, isso é tudo o que importa.
Longe de mim reclamar. Somos noivos e
temos um filho! Isso é mais, muito mais do que eu
esperava conquistar nessa vida. O homem que eu
sempre amei, o homem que carregou dentro de si
um sentimento tão negativo e repressivo sobre
mim, agora dorme ao meu lado e me conquista
todas as manhãs.
Pego a minha bolsa e saio do quarto,
seguindo direto para a sala de jantar, onde Tatiana
faz suas refeições. Lembrar do contrato tira o meu
apetite, mas não quero fazer desfeita com a minha
sogra.
Depois que Ivan ficou sabendo de toda a
verdade, enviou imediatamente um representante
para recolher a cópia assinada do contrato na
empresa de Mikhail e o acordo foi desfeito. O
medo que senti nos primeiros dias era como uma
companhia de carne e osso, contando os segundos
no meu ouvido com um riso de escárnio. Eu
escutava o medo, enxergava a fumaça fria da sua
respiração, sussurrando que Iago estava em perigo.
Foi essa família que me ensinou a confiar, a
acreditar que não devo ser um reflexo da
insegurança. A coragem é uma qualidade que,
quanto compartilhada, se transforma em vitória.
Como previsto, encontro Tatiana sentada à
mesa com uma xícara exalando vapor à sua frente.
Sorri com afeto, suas unhas longas e azuis
tamborilam a superfície de madeira enquanto ela
me convida com um aceno para lhe fazer
companhia.
— Como vai o meu neto? — É sua primeira
pergunta e ela ergue a sobrancelha cheia de
desgosto. Não vamos conseguir conter o encontro
dos dois por muito tempo, mas Iago ainda não sabe
que entramos com um pedido de adoção e qualquer
comportamento invasivo pode influenciar no
processo.
— Iago está bem — comento. Entristece-
me que ele ainda não possa receber todo esse amor.
— Um pouco abatido por causa da Tasha.
— A menina? — indaga com os olhos
lacrimejados, empurrando a xícara para longe e
suspira. — Ainda não acredito em tudo o que me
disseram.
— Foi um choque quando Ivan me contou
que queria saber mais sobre o caso dela. Tasha é
tão especial, Iago costuma dizer que ela é uma fada.
— Sorrio com a lembrança. — Eu acredito que as
coisas acontecem por um motivo, mesmo as coisas
ruins. A adoção dela já está sendo finalizada, Tasha
tem uma família. Mesmo sendo doloroso para nós,
me conforta que ela tenha uma tia que a ama.
— Não consigo aceitar que meu filho
cogitou a possibilidade de adotar essa menina, eu já
sinto como se ela fosse parte da minha família. —
Tatiana coloca os cotovelos sobre a mesa e
massageia as têmporas com os olhos fechados.
Por muito tempo, Iago foi o centro do meu
universo. Eu só acordava todas as manhãs por
causa dele, respirava porque meu filho existia nesse
mundo. Mas, agora, é diferente. Eu quero acordar,
não porque preciso estar ao lado dele, mas porque o
quero ao meu lado. Do mesmo modo como Ivan
entrou no meu sistema solar e bagunçou todos os
planetas, Tasha chegou e fez as estrelas brilharem
mais forte.
— Eu tenho um neto — Tatiana murmura.
— Você trouxe o meu primeiro neto e eu nunca
vou conseguir te agradecer o suficiente. Mas essa
menina vai ser para sempre um buraco negro nas
nossas vidas, uma história que nunca será
escrita. Isso é algo que eu nunca vou superar.
— Andrei fez tudo o que podia, mas está
além das nossas capacidades. No fim das contas,
ela nunca chegou a ser nossa de verdade.
Estico a mão e Tatiana segura com a sua,
ficamos em silêncio, cada uma perdida em suas
próprias metáforas sobre a vida. Na primeira vez
que eu e Ivan visitamos Iago juntos, chorei tanto
que metade do nosso encontro é um borrão de
lágrimas e soluços na minha cabeça. Naquele
mesmo dia, Ivan revelou sobre a possibilidade de
trazermos Tasha conosco. Contudo, nossas
expectativas foram frustradas, pois descobrimos
que ela voltará para sua própria família em breve.
— Só traga o meu neto para casa logo, não
aguento toda essa espera. Estou definhando a cada
dia que passa. Não consigo dormir, meu estômago
não aceita nenhum alimento, talvez os meus dias
estejam contados!
— Hoje vamos nos encontrar com o
advogado que Andrei indicou — esclareço para
acalmar seu sofrimento, mas nem isso é suficiente
para aplacar a ansiedade de Tatiana.
— Aquele especializado em casos de
adoção?
— Sim, temos que descobrir por que nosso
pedido provisório foi negado. Andrei é um ótimo
profissional, mas não possui muita experiência com
essa camada jurídica.
— Quero tanto conhecer meu neto — teima,
emburrada.
— Você pode visitar Iago no orfanato, não
tem problema algum.
— Minha querida, no dia em que eu colocar
meus olhos sobre Iago pela primeira vez, faço
questão que ele saiba que é o primeiro neto de
Tatiana Pavlovna Volkiova, não aceito menos do
que isso.
— Primeiro e único neto, mãe — Roman
entra no cômodo massageando as têmporas. Usa
roupas amassadas da noite anterior, os olhos
oscilam, fadigados, entre o dourado e o verde;
tenho a impressão de que ele nunca dorme em casa.
— A sua matemática está errada — insiste
Tatiana, estreita os olhos para o filho rebelde que se
joga na cadeira ao seu lado. — Quatro filhos, oito
netos, no mínimo!
— Nunca ouvi falar dessa regra, você
queria um neto e agora tem. Sonho realizado!
Aliás, não vejo a hora de conhecer meu sobrinho,
quando ele vem para casa? — Roman analisa as
várias opções de comida sobre a mesa, senta ao
lado da mãe e puxa um prato, servindo para si uma
fatia de Charlotka de maçã, cujo cheiro adocicado
preenche a sala junto com a noz moscada e a
canela.
— Ainda não temos certeza — explico,
mordiscando meu próprio desjejum. — Seu irmão
marcou com o novo advogado na empresa. Vou
encontrar com uma amiga agora e depois vamos
para a reunião.
— Amiga? — Tatiana se intromete, estica o
corpo e lança um olhar significativo para o filho. —
Solteira?
— Dema tem um namorado. — Rio.
— Precisa de mais amigas, Lara. Solteiras,
jovens, bonitas. Férteis, isso é muito importante!
— Mãe, você precisa de limites, sério.
Estou com uma ressaca infernal e tenho uma
reunião com Vladimir daqui duas horas, preciso de
um milagre para me recuperar. — Roman geme
esfregando o alto da cabeça, metade da torta já
esquecida no prato. — O presidente anda
insuportável por causa do clube, não conseguimos
localizar a proprietária do imóvel e o irmão dela se
recusa a contatá-la ou colaborar com a nossa
negociação. Só temos um nome e nada mais.
— E como ela se chama? — questiono.
— Serena Fajardo, de origem espanhola, eu
acho.
Ivan aparece no batente da porta, se apoia e
cruza os braços para nos observar. Aquela história
sobre ele ficar lindo de qualquer jeito, na verdade,
pode ser repensada, pois o conjunto de terno escuro
e gravata azul faz meu pescoço formigar.
— Vamos? — chama, movimentando a
cabeça para indicar o caminho até a saída.
— Ivan, você podia ir à reunião com
Vladimir no meu lugar! — Os olhos de Roman
brilham com a possibilidade, como se essa fosse a
solução de todos os seus problemas.
— Fora de cogitação — determina com uma
careta. Apesar de estarmos morando na mesma
casa, quase nunca vejo Vladimir, ele sempre chega
muito tarde e vai para a empresa primeiro que todo
mundo. — Ele está intragável por causa da
proprietária desaparecida, tenho meus próprios
problemas para resolver.
Minha sogra também levanta, exibindo um
vestido branco e justo que enaltece cada uma de
suas curvas. Interrompe a conversa infantil dos
filhos com um olhar afrontoso, Roman abaixa a
cabeça e deita sobre os antebraços, murmurando
reclamações ininteligíveis.
Despedimo-nos de todos, um processo
rápido apesar de Tatiana e seu drama sobre não
suportar a expectativa para conhecer Iago.
Durante o caminho, eu e Ivan conversamos
sobre tudo, com olhares e carícias que dizem mais
do que nossas palavras. Ele me deixa na frente do
café, o singelo estabelecimento cerceado pela
arquitetura secular, e se despede com muita
relutância.
Abro a porta rústica e a sineta anuncia a
minha chegada, mas Dema está tagarelando com
alguém pelo celular e não percebe. O tom da sua
voz e o rumo da conversa evidenciam certa
infelicidade com a discussão vigorosa.
— Eu digo e volto a repetir, não acredito
que fez isso sozinha — reclama com indignação,
movimentando os braços no ar como se quisesse
bater em alguém. — Ordinário, é isso o que ele é.
Um cretino sem alma, sem coração! — Ela pausa,
respira fundo. — Desculpe, mas nunca escondi o
que penso desse seu marido. Minha casa vai sempre
estar aberta, não se esqueça. Também amo você.
Assim que desliga o telefone, Dema estala a
língua e gira o corpo com as mãos apoiadas nos
quadris, notando, enfim, a minha presença. Não há
clientes dentro da loja, mas os transeuntes do lado
de fora devem ter ouvido seus gritos.
Ela desvia do balcão vem me abraçar,
uniformizada com seu tradicional avental florido e
o cabelo preso em uma touca de tela.
— Achei que nunca mais veria você outra
vez! — reclama. No quesito drama, Dema
consegue empatar com Tatiana. — Achei que tinha
me abandonado para sempre agora que tem o seu
próprio namorado. Eu tenho um namorado e nem
por isso desisti de você.
— Não abandonei você — garanto. —
Aconteceram muitas coisas. Estou morando na casa
do Ivan.
Outro grito, mais alto dessa vez.
— Você está grávida? — pergunta com os
olhos arregalados.
— O quê? Não, claro que não! De onde
você tira essas ideias?
— Eu estou! — responde com o rosto
chocado, como se estivesse dando a notícia para si
mesma.
Dessa vez sou eu a gritar.
— Você está grávida? — pergunto para ter
certeza, mas a minha voz se esvai em escalas
agudas.
— Louco, completamente louco. — Ela
começa a andar de um lado para o outro,
movimentando as mãos em sintonia com a voz
desenfreada. — É a primeira vez que digo isso em
voz alta. Eu não tinha ninguém para contar e então
você não me respondia, não atendia as minhas
ligações, e eu fiquei cada vez mais e mais
desesperada. Então parei de atender
Aleksander! Meu Deus, Lara, faz uma semana que
não converso com o meu namorado. E você —
acusa com o indicador apontado para o meu nariz
—, você não me atendia! Sua cretina. Agora ele me
odeia, vou ser mãe solteira, meu filho vai me odiar
e nós vamos morar na rua! Minha prima acabou de
ligar, o sonho dela é ser mãe, mas não importa
quantos tratamentos ela faça, os resultados são
sempre negativos. Ela queria desabafar, pois
pretende fazer inseminação em último caso, mas o
cretino do marido dela não se prestou para
acompanhá-la durante os exames. Enquanto ela
chorava do outro lado da linha eu só pensava em
como a vida é injusta! E eu estou grávida, Lara! O
que eu devo fazer agora?
— Calma, mulher! — Seguro seus ombros.
Dema me abraça outra vez, assustada e
descontrolada. — Aleksander não odeia você, ele
ao menos sabe que você está grávida? Quer dizer, é
impossível ter certeza disso, não é? Vocês estão
namorando há quanto tempo? Um mês?
— A gente já tinha ficado antes — confessa
com a cabeça apoiada no meu ombro. — Duas
vezes, é por isso que ele continuava vindo aqui.
Tentei me manter firme depois da segunda vez, não
queria que ele me visse como uma qualquer que
sempre abria as pernas assim que ele estralasse os
dedos. Já fiz todos os exames três vezes, todos
deram positivo. Estou grávida de nove semanas.
Grávida, essa palavra me assusta em uma
escala inimaginável. Dema sempre foi minha única
amiga, esteve ao meu lado nos dias ruins mesmo
sem ter conhecimento das coisas que aconteciam
comigo na casa de Mikhail. E agora ela precisa da
minha ajuda.
— O que Aleksander disse?
— Não tive coragem de contar —
resmunga. Afasto-me e puxo duas cadeiras para
nós; sento de frente para ela e seguro suas duas
mãos.
— Ele precisa saber, Dema, deve estar
desesperado, preocupado também.
— Ele vai me odiar, vai pensar que estou
atrás do dinheiro dele. — Dema puxa a touca da
cabeça, seus cabelos dourados banham os ombros e
tornam sua imagem ainda mais frágil.
— Não acredito que Aleksander seja esse
tipo de homem, mas é o pai desse bebê. Você deve
isso ao seu filho, ou filha. Nenhuma criança merece
crescer sem conhecer seu verdadeiro pai, isso é
triste e injusto.
— Estou com medo — choraminga.
— Pode sempre contar comigo, sempre.
Quer saber, me passe o seu telefone e eu vou ligar
para ele, o que acha?
— Você faria isso? Eu te chamei de cretina.
— Eu mereci — brinco sorrindo. Essa é a
mágica da coragem compartilhada que aprendi a
cultivar junto com a família Volkiov.
Dema me entrega seu telefone, as quarenta
e nove ligações não atendidas me fazem revirar os
olhos. Não tem como esse homem deixar minha
amiga em um momento tão memorável e feliz.
Aperto o botão para retornar a chamada, ele atende
no primeiro toque.
— Me desculpe — diz com a voz rouca do
outro lado da linha. — Eu juro que não sei o que eu
fiz, seja lá o que for, me desculpe, meu amor.
— Não é a Dema — digo sem graça, que
situação desconfortável. — Lara, lembra de mim?
— Lara? Sim, a namorada de Ivan Volkiov.
Por que está com o celular da Dema? Aconteceu
alguma coisa? Ela está bem? — Escuto barulho de
coisas caindo no chão e Aleksander pragueja. —
Me diz onde vocês estão, eu chego em dois
minutos!
— Não aconteceu nada, fica calmo.
Estamos no café, Dema pediu para eu te ligar. Ela
precisa conversar com você.
— Não, ela vai me largar! Não vamos ter
essa conversa. Diz para ela que eu me recuso!
— Pelo amor de Deus, vocês dois precisam
conversar mais, não podem sair supondo as coisas
assim. Você tem dois minutos, eu estou indo
embora! — Desligo o telefone e Dema começa a
gargalhar. — Ele está vindo, fica calma e explica
tudo. Conte a verdade sobre os seus sentimentos.
Nada de atropelar as palavras e nem desviar o foco
da conversa.
— Senti tanto a sua falta.
— Também senti, muito. Quero que você vá
me visitar, também tenho algumas coisas para te
contar. Mas você precisa pensar na sua família
agora.
— É só me mandar o dia e o horário.
Depois de outra sucessão de abraços e
despedidas, ganho as ruas do distrito central outra
vez. Moscou é uma cidade turística, sempre
movimentada e imperiosa. Os prédios e a
arquitetura são atrativos célebres da cidade e eu
nunca me canso da nossa história e o que ela
representa.
Mesmo faltando mais de meia hora para o
início da reunião, eu me encaminho devagar para a
empresa. O edifício da família de Ivan é um dos
mais chamativos e modernos, o logotipo estampado
em toda a fronte do prédio promove um contraste
bem-vindo aos clientes.
Paro na entrada e admiro a escadaria, gosto
do ambiente empresarial, do barulho das máquinas
de impressão e do cheiro dos papéis. De todas as
coisas que Mikhail me tirou, minha função na
empresa é a única que sinto falta.
A possibilidade de que ele esteja por trás
das complicações na adoção de Iago é uma teoria
constante e essa reunião é a nossa esperança de
controlar a situação. Com a custódia provisória,
garantimos a segurança de Iago e o seu futuro ao
nosso lado.
Entro no saguão principal, pessoas com
roupas formais caminham de um lado para o outro.
Já estive aqui muitas vezes, conheço cada degrau e
cada saída de incêndio. Vasculho a recepção ao
fundo para me anunciar, mas uma pessoa me chama
a atenção.
A princípio fico incerta, mas Svetlana é
uma mulher icônica. Ela se curva sobre a bancada,
conversa com a recepcionista. Continua exatamente
como eu me lembrava, com seu corpo esbelto,
sorriso afiado e cabelos escuros e cacheados.
Equilibra-se sobre saltos finos e pretos que
combinam com a saia lápis vermelha.
É a última pessoa que eu gostaria de
encontrar casualmente. Como ainda tenho alguns
minutos livres, decido dar a volta e esperar, assim
evitamos o confronto desnecessário. Porém, antes
que eu possa fugir, percebo a aproximação de Ivan
indo ao seu encontro.
Os dois se abraçam e meu coração
comprime. É ciúme, eu reconheço esse sentimento
e odeio me sentir assim depois de tantos anos.
Antes, por causa de Petrova, eu chorava e me
julgava, mas nunca precisei me preocupar com
outras mulheres.
Odeio que esteja tão lindo justo hoje, que
ela se apoie em seu braço enquanto caminham até o
elevador, que pressione as unhas compridas em seu
antebraço.
Mas odeio, sobretudo, como fica evidente
que Ivan esteve à sua espera.
CAPÍTULO 28
Casal de Pôr do Sol

— CINCO ANOS, COMO o tempo passa rápido —


Svetlana diz dentro do elevador. Nossos braços
continuam entrelaçados e não consigo me
desvencilhar sem dar início a um clima
desagradável.
— Fiquei surpreso quando Andrei me falou
que você tinha se especializado em casos familiares
— comento. — Espero que consiga nos ajudar.
— Já trabalhei com casos mais
complicados, vamos contornar essa situação —
garante, dando palmadinhas no meu ombro com a
mão livre.
— Andrei explicou todos os detalhes? — O
elevador continua subindo.
— Sim, me contou tudo. Eu fiquei muito
abalada no começo, como ninguém percebeu? Me
sinto tão culpada, disse coisas horríveis sobre Lara
e me arrependo profundamente.
— Todos nós falhamos, não se martirize
demais — consolo, mesmo que eu repita essa
mesma pergunta todos os dias. Como ninguém
percebeu? Como ninguém percebeu? Como eu não
percebi? — Obrigado por aceitar nos encontrar
mais cedo, meu irmão precisa de ajuda com todas
as etapas do processo.
— Estou aqui para ajudar, Ivan. Sempre.
Queria ter conversado com você durante o
aniversário dos meus pais a respeito daquele
documento que entreguei ao seu irmão. Como você
reagiu à notícia? Quero dizer, até Petrova tinha seus
segredos, eu nunca desconfiei.
Dou de ombros, não me sinto à vontade
para falar sobre um assunto tão íntimo. O elevador
abre no andar da presidência, Vladimir fez questão
que usássemos a sala de reuniões. O escritório do
meu irmão está escuro quando chegamos, as
cortinas outra vez ocultam a belíssima paisagem.
Se eu fechasse os meus olhos, conseguiria
apontar em qual direção serpenteiam as águas do
rio Moskva, quais ruas guiam até a Catedral de
Cristo Salvador, quase em frente ao museu
Pushkin, e a trilha entre duas edificações próximas
que encurtam o tempo de caminhada entre a
empresa e o Kremlin.
Entramos na sala de reuniões e meus irmãos
já ocupam seus respectivos lugares, mas se
levantam para nos cumprimentar.
Andrei é muito bom no que faz, mas o caso
de Mikhail se mostrou mais imundo do que a gente
imaginava. É uma teia de aranha gigante, em que
tudo se conecta ao mesmo tempo. Não temos
provas para incriminar o sujeito, mas existe um
esquema de doação anônima que produz capital e
isso é suficiente para darem início a uma
investigação.
O problema é que Roman descobriu que o
nome por trás do projeto não pertence à Mikhail.
Quem assinava os cheques, quem aprovava os
clientes e redistribuía os valores era Lara Ihascova.
Minha Lara. Se prosseguirmos com a denúncia, ela
corre o risco de ser sugada para dentro de um
buraco negro do qual pode nunca mais conseguir
escapar.
Assim que nos acomodamos, Svetlana abre
a bolsa e retira um bloco de papéis e um caderno
para anotações. Só hoje fiquei sabendo que era ela
a advogada que Andrei havia mencionado.
Para obtermos sucesso na adoção de Iago,
precisamos tirar Mikhail de circulação. O maldito
tem muita influência e nada me convence contra a
suspeita de que, por causa dele, nosso pedido de
guarda provisória foi suspenso.
Eu tenho tentado entrar em contato com
clientes e sócios de Mikhail. Minha maior
especialidade é manipulação e desdobramentos
financeiros, então, enquanto não posso descontar a
minha raiva para quebrar a cara do desgraçado,
estou tentando minar o seu precioso ouro.
Permiti que meu irmão compartilhasse toda
a verdade com Svetlana, desde as agressões
sofridas por Lara até as ameaças contra Iago, assim
poderemos trabalhar como uma equipe.
— Eu queria entender por que Lara não
pode estar presente — Roman indaga, é o único
sem roupas de trabalho. Seus cabelos já alcançam
as orelhas e os fios despenteados me recordam de
Iago, mesmo que as cores sejam diferentes.
— É melhor que ela não saiba nada caso
essa bomba estoure antes da hora — Andrei
responde. Ele anda abatido desde o jantar e não
dorme mais em casa, seus velhos cachos começam
a reaparecer e o desleixo é um indicativo da
infelicidade.
Nossa mãe está a ponto de entrar em
colapso, claro.
— Como assim? Não é melhor que ela
esteja preparada? — indago, aquela raiva de mim e
do mundo grita no meu ouvido. Prometi nunca mais
machucar Lara ou permitir que outro o faça, mesmo
que eu me torne um escudo que recebe todos os
impactos. Mesmo que eu sofra no lugar dela.
— Não exatamente, a ignorância é a melhor
defesa no momento. Pelo menos até que a gente
entenda como provar que é Mikhail a mente por
trás do esquema. Além do mais, ainda não sabemos
como essas doações são convertidas em lucro. Não
é apenas um desvio, o dinheiro passa pelo sistema
de doação, a identidade do doador é preservada e o
valor praticamente triplica quando chega ao
destino. Essa movimentação é um mistério.
— E o que a gente faz? Espera? Não gosto
desse plano. — Roman retira a jaqueta de couro,
revelando uma camisa social amarrotada. — Eu sei
que você também não gosta — diz para mim. Nesse
ponto não posso negar, ele está cem por cento
correto.
— Não, nada disso. — Svetlana coloca a
mão no meu ombro, confortando o demônio
perturbado que vive em mim e só desperta quando
o assunto envolve Lara; é um conforto inútil. —
Estudei minuciosamente o caso, eu e seu irmão
conversamos muito até chegarmos à essa decisão.
Vamos fazer de tudo para desmascarar Mikhail,
contudo, se a gente descobriu as falcatruas dele, é
questão de tempo até que mais alguém descubra
também.
— Se outra pessoa ficar sabendo dessas
ações ilícitas, Lara corre o risco de ser acusada e
levar toda a culpa — diz meu irmão mais novo.
Ainda bem que não tomei café da manhã, meu
corpo inteiro ferve. — É por isso que não vamos
falar nada por enquanto. Garantimos a defesa
genuína de que foi enganada. Se ela ficar sabendo,
perdemos toda a estrutura emocional da descoberta.
— É uma prevenção. — Vladimir participa
da reunião ao mesmo tempo em que trabalha no
próprio computador; ele só sabe viver assim,
fazendo várias coisas ao mesmo tempo. — Certo?
Vocês estão dizendo que, caso alguém faça uma
denúncia antes que tenhamos todas as provas
necessárias, o melhor é que Lara não saiba no que
estava envolvida.
— Exato — confirma Svetlana. Acaricia
minhas costas e depois volta a mexer em suas
anotações. — O pedido de guarda provisória que
vocês submeteram estava perfeito, mas o fato de
não serem casados não colabora. Se Mikhail estiver
realmente envolvido nesse caso, o ideal é que você
não insira o nome dela no pedido.
— Adotar Iago sozinho? — pergunto
horrorizado, nem consigo imaginar essa
possibilidade.
— Provisoriamente apenas, Ivan.
— Não, isso eu não posso fazer — recuso.
Existe limite para tudo.
— Vamos esperar pela chegada dela —
Andrei sugere. — Você conhece aquela mulher, as
coisas que enfrentou para manter Iago em
segurança, acha mesmo que um simples papel vai
fazê-la recuar? Ela só não pode saber ainda sobre as
doações criminosas, mas entrar com uma acusação
de violência contra Mikhail vai dar credibilidade ao
caso como um todo. Svetlana está certa, eu devia
ter pensado nisso antes.
— Podem sempre contar comigo — afirma
ela com o tom da voz firme. A mão se estica sobre
a mesa, segura a minha e pressiona em sinal de
apoio.
Fico impressionado com o profissionalismo
de Svetlana.
— Nesse caso, obrigado, não sei o que faria
sem você — digo.
— Ivan — alerta Andrei, apreensivo. Faz
um sinal com a cabeça assim que atendo seu
chamado.
Olho na direção que meu irmão indica e
encontro Lara parada na entrada da sala de
reuniões. Não usa mais o blazer do conjunto social
e a camiseta branca modela suas curvas com uma
fidelidade perturbadora, deixando exposta a região
rosada do pescoço e me domina, captura, preenche.
Com Lara por perto, o mundo desaparece e eu me
reconheço como um apaixonado do século passado.
Liberto-me do toque de Svetlana para
levantar da cadeira, mas Lara ignora o gesto, passa
por mim, segue na direção de Andrei e senta ao seu
lado. Fico tonto, estagnado com o corpo em uma
posição constrangedora. Ela sorri para cada um,
cumprimenta meus irmãos e só depois me procura.
— Desculpem a demora, espero que não
estejam me esperando há muito tempo — diz um
pouco formal demais. Olho no relógio, mas Lara
está atrasada apenas cinco minutos.
— Acabamos de chegar — minto. É para o
seu próprio bem.
Ela estreita os olhos, encarando-me
intensamente como se pudesse enxergar um ponto
invisível dentro da minha alma. São dois globos
oculares de coloração marrom, mas qualquer
feiticeira teria inveja em comparação com suas
bolas de cristal baratas.
Ao lado de Vladimir, Roman coloca a mão
na boca para conter um riso. Alguma coisa
aconteceu entre o momento em que me despedi de
Lara na frente daquele café e agora, pois todo o seu
bom-humor matinal desapareceu.
— Oi, Lara! — exclama Svetlana. Seu
embaraço por não ter sido anunciada torna o clima
ainda mais esquisito.
— Podemos começar? — responde sem
entusiasmo, dispensando o cumprimento com um
revirar de olhos. As duas nunca foram íntimas, mas
Lara convivia com a melhor amiga de Petrova na
medida do possível, sem faltar com o respeito como
está fazendo agora. — Onde está o advogado?
— Bem aqui — responde Svetlana, que
apoia os cotovelos sobre a mesa e se inclina para
mais perto de mim. — Quando Andrei me contatou
sobre a adoção, quase não acreditei que estava
falando do mesmo Ivan que me lembrava. Acho
que nunca mencionou sobre ter filhos com Petrova.
— Você é a advogada? — questiona Lara, o
rosto em choque demonstra um desgosto
exagerado. — Não sabia que tinha se formado
nessa área.
— Poucas pessoas sabem, não se preocupe.
Sua irmã costumava dizer que eu sou uma caixinha
de surpresas — brinca.
— Realmente, uma caixinha de surpresas é
uma boa forma para descrever você. — A ironia de
Lara não passa despercebida. — Fiquei sabendo
que foi você quem encontrou o contrato com a
assinatura da minha irmã e Dimitrio. — Com os
olhos fechados, Lara comprime os lábios, luta com
algo que incomoda a sua mente. — Obrigada por
não entregar aquele documento para Mikhail. Por
qual motivo escolheu os Volkiov ao invés do meu
pai?
— Mikhail — corrijo. Toda vez que ela se
refere àquele monstro como pai faz meu estômago
embrulhar. Não é intencional, eu sei. Quando a
gente passa uma vida inteira repetindo a mesma
mentira, ela começa a fazer parte de quem somos,
mas Lara precisa superar o passado e se desligar
desse trauma. — Fica tranquila, Lara. Svetlana já
sabe de tudo. Andrei a chamou para ajudar com a
adoção de Iago, mas ela também tem experiência
com casos como o seu.
— Claro — ironiza. Tem alguma coisa
errada, seu comportamento hostil me deixa
desconfiado. — Estou muito mais tranquila agora,
obrigada por compartilhar meus segredos com
outra pessoa sem perguntar a minha opinião antes.
— O que está acontecendo? — pergunto
sem enrolação. — Isso é uma briga?
— Sim! — respondem meus irmãos, todos
de uma vez.
— Não — diz Lara, fazendo uma careta
para os três. — Vamos nos concentrar no que
realmente importa, por favor? Um resumo, eu
imploro.
— Por que não senta do meu lado? — peço.
Ela me fulmina com os olhos, cruza os braços sobre
os seios e ergue uma única sobrancelha.
— Qual a parte de vamos nos concentrar no
que realmente importa você não entendeu?
— Você me importa — justifico, muito
brega, mas alcanço o resultado esperado: ela fica
ainda mais irritada. Como é linda essa mulher
irritada, fazia tempo que não me dominava com sua
ira cativante.
Ela é maravilhosa.
— Isso é melhor do que filme de comédia
romântica — debocha Roman, mas não me afeta.
Não tenho mais medo ou vergonha de demonstrar
como me sinto na frente das pessoas, Lara merece a
minha transparência com relação ao sentimento que
nos conecta. — Vamos agilizar, esses dois
precisam lavar a roupa suja!
— Vou passar a versão resumida. — Andrei
ergue a mão como se estivéssemos na escola. — Eu
e Svetlana conversamos, o melhor a se fazer é
denunciar Mikhail por agressão. Temos o laudo do
médico que atendeu você no outro dia. A ideia é
enfraquecê-lo, pois, como sabem, nossas leis são
muito debilitadas nesse seguimento jurídico. Se
estiver subornando o juiz para atrapalhar a adoção,
isso vai fazê-lo recuar. Também cogitamos a
possibilidade de Ivan entrar com o pedido sozinho,
sem o seu nome. Achamos que assim chamaremos
menos atenção, já que não são casados.
Ela balança a cabeça, mas é visível o
incômodo.
— Se tivesse alguém para testemunhar
sobre as… agressões, seria ótimo — Svetlana
sugere.
— Temos nós — digo.
— Sim, mas vocês são próximos, têm
interesses que podem ser questionados. A mãe
também não serve. Talvez um amigo, parente
distante.
— Não tem ninguém — afirmo.
— Na verdade, existe uma pessoa —
confessa Lara. Abaixa a cabeça e contorce os dedos
em cima da mesa. — De alguma forma, Dimitrio
descobriu o que Mikhail fazia comigo.
— Mas que merda! — Fico de pé e me
curvo sobre a mesa com as mãos espalmadas na
madeira envernizada. — Nunca ouvi sobre isso.
— Eu nunca contei — justifica, encolhida
na cadeira. — Nem me lembrava, para ser sincera.
Descobri faz pouco tempo, naquela noite.
— Na sua casa? — investigo, minha voz
soando como uma navalha afiada. — Naquela
noite? Droga, Lara! O que ele disse?
Empurro a cadeira com o pé, ela desliza
pela sala e pousa quando atinge a parede. Eu
poderia destruir essa sala inteira agora e meu ódio
ainda não seria saciado.
— Nada demais, Ivan! Ele apenas disse que
sabia.
— Não foi só isso! — insisto. Se a raiva
dela é grande, então a minha não cabe no mesmo
universo. — Vamos, meu bem, conta tudo.
— Ivan, se controla — diz Vladimir. Viro-
me para rebater sua ordem, mas encontro o
presidente. Não meu irmão, não um amigo, mas o
líder dessa empresa.
Caminho até a outra ponta da mesa, sento
na extremidade mais distante e passo as mãos na
cabeça desesperadamente. Controle? Essa merda é
uma babaquice. Minha lista de caras a serem
socadas só aumenta.
— Voltando. — Svetlana pigarreia,
remexendo-se desconfortavelmente. — Isso pode
ser bom, se você conseguisse convencê-lo a nos
ajudar…
— Nem fodendo! — Levanto outra vez.
Querem testar a minha paciência, só pode. Ando
até Svetlana, ela recua um pouco com a cabeça e
me encara com olhos minuciosos. Fico bem perto
para que entenda. — Ela não vai se encontrar com
ele, muito menos para pedir ajuda!
— Isso não é você que decide. — Lara
também levanta, tem o rosto lívido como se o nível
do seu descontrole tivesse alcançado o meu.
Que descontrole deslumbrante, como eu
posso brigar com uma criatura tão atraente? Quer
me desafiar, provar que me tem em suas mãos. E
está conseguindo! Ao invés de rebater suas palavras
insanas, só consigo admirar as clavículas subindo e
descendo por causa da respiração irregular.
Ah, acho que me perdi um pouco. Foco.
— Não confio nele e, principalmente, não
confio nele perto de você. Me enfurece.
— Você é tão hipócrita — murmura com os
dentes trincados. — Quer saber? Também não
confio em certas pessoas perto de você e nem por
isso estou enfurecida.
— Na verdade, está sim — diz Roman. Nós
dois olhamos para ele ao mesmo tempo. — Só
comentando, podem continuar, finjam que não
estamos aqui.
— Quer saber? — diz ela. — É melhor a
gente encerrar essa reunião. Façam o que tiver que
ser feito, só quero meu filho em segurança. Podem
dar andamento à denúncia por agressão e ao pedido
de guarda provisório no nome do Ivan. Não importa
que meu nome não esteja no pedido. Um papel é só
um papel, uma assinatura é só uma assinatura, mas
o meu amor por aquela criança é tudo.
Dito isso, Lara pega a sua bolsa em cima da
mesa e sai como um furacão porta afora, deixando
quatro pessoas atônitas para trás.
— É bom ter a velha Lara de volta —
Andrei comenta com o mesmo sorriso bobo que eu.
— Vocês viram como ela fica maravilhosa
quando está com raiva? — pergunto, mas lembro
que os expectadores são, em maioria, do sexo
masculino. — Não respondam, estragaria a minha
felicidade.
— Não vai atrás dela? — Vladimir ri. —
Vocês dois são patéticos.
— Acho que não devia ir — aconselha
Svetlana enquanto recolhe seus objetos. — Se
quiser a gente pode sair para almoçar, ela precisa
de um tempo sozinha.
— Sozinha? Eu nunca mais vou deixar
aquela mulher sozinha. Essa palavra está banida do
meu vocabulário. Me desculpem, tenho que correr
atrás daquele filhote de tentação. Obrigado pela
atenção.
Sem mais delongas, corro para fora da sala
e encontro Lara com os pés inquietos na frente do
elevador que ainda não chegou. O destino está
conspirando ao nosso favor.
— Você é tão linda. — As palavras
simplesmente escapam. Estou nervoso e
apaixonado ao mesmo tempo, não sei lidar com
tantos sentimentos conflitantes. Quero brigar,
especular sobre Dimitrio, mas é tão difícil com ela
batendo os pezinhos no chão.
— Eu não acredito que está sorrindo em um
momento como esse.
O elevador apita, abre e nós dois entramos.
O que eu deveria priorizar? A paixão? A vontade
de mandar essa discussão para o espaço? Isso soa
realmente bem. Antes que eu decida, as portas se
abrem outra vez e estamos no primeiro andar.
— Não quero conversar com você agora,
Ivan. Me deixa sozinha! — diz. Afasta-se de mim e
sai do elevador, chamando atenção das pessoas no
saguão de entrada.
— Me explica o que está acontecendo! —
imploro. Seguro seu braço e ela emite um ruído de
frustração com a garganta.
— Não posso, estou com muita raiva e vou
acabar falando coisas que me arrependerei depois!
— Lara me empurra, ganha uma distância de
poucos metros e enfrenta meu olhar com o queixo
erguido.
É linda. Como eu gosto do seu descontrole,
instiga-me e revive sentimentos gananciosos que
clamam por mais da sua fúria. É diferente de
quando eu negava a química que nos une e me
enganava ao repetir que sua verdadeira
personalidade permanecia oculta; essa é a sua
essência, minha tempestade, são seus ventos que
determinam como o tempo no meu coração vai se
comportar diante das possibilidades infinitas que
cabem dentro das vinte e quatro horas diárias.
Lara é a minha inconstância constante, um
sólido que se desfaz desafiando todas as leis da
física. Somos impossíveis, como um gelo que
inflama, uma chama que resfria e um amor que
tortura, pois já não cabe mais dentro de mim.
Amor.
É isso mesmo, esse é o nome desse
sentimento.
Meu amor torturante, que nasceu das perdas
e me fez ganhar o mundo. Ela sabe? Ela sente? É
possível que as pessoas vejam o amor ao nosso
redor?
— Por que é tudo tão complexo entre a
gente? — pergunto com calma. Coloco as mãos no
bolso para que se acalme também.
— Não somos um casal de pôr do sol —
explica com os olhos marejados.
— O que isso deveria significar?
— Aqueles casais felizes, com uma linda
história de amor. Que se beijam na praia com o sol
desaparecendo ao fundo.
Seguro-me para não dar risada. Ela parece
verdadeiramente séria sobre isso.
— É isso o que você quer? A praia? O pôr
do sol? O beijo? Eu posso te dar tudo isso.
— Nós não somos assim — reluta, menos
agressiva.
— Somos o que a gente quiser ser, Lara.
Dane-se a cautela, caminho até ela e
envolvo o seu corpo entre meus braços. O olhar
chocado que me lança um segundo antes de nossos
lábios se unirem só serve para incitar ainda mais a
minha determinação. Temos uma plateia, olhos
curiosos de pessoas que trabalham para mim.
Funcionários, clientes… não importa.
Eu prometi nunca mais fazê-la chorar.
Prometi nunca mais deixar que fique sozinha e
prometi, sobretudo, preencher seus dias com
alegria.
— O que mais você quer? — Afasto nossos
lábios sem permitir que fuja. — Praia, pôr do sol,
beijos. Pode pedir, o que mais tem nessas histórias
de amor tão perfeitas?
— Uma casa na praia — diz sorrindo.
Qualquer sombra da braveza anterior desapareceu.
— Com móveis simples. Um quarto com a vista
para o mar.
Ela quer me deixar louco, depois vem
cobrar autocontrole.
— O que mais? — Encosto a boca na dela,
selando de vez a paz.
— Você, eu quero você, Ivan.
Ela me quer.
Seja lá o que tiver gerado a sua raiva, pode
ficar para depois. O que importa agora é atender ao
pedido mais importante que Lara já me fez. Um
pedido por segurança, por certeza.
Um pedido por pedidos meus.
CAPÍTULO 29
Cento e Sete Mil

CENTO E SETE mil, esse número não sai da


minha cabeça.
Enquanto os homens da minha vida
disputam uma partida de basquete, na qual ambos
demonstram pouquíssima habilidade e nula
paciência, aproveito para visitar a sala da direção.
Vamos ficar um dia fora. Vai ser a primeira vez em
muitos anos que eu e Iago ficaremos longe um do
outro por mais de vinte e quatro horas.
Depois da nossa cena de ciúmes na
recepção da empresa, Ivan começou a planejar uma
pequena viagem para a casa de praia da sua família,
que fica no cenário paradisíaco de Tuapse. No
início, não levei muito à sério, pois na minha
cabeça cheia de suposições precipitadas, suas
promessas tinham relação com a culpa por ter
deixado Svetlana tocar seu corpo com tanta
facilidade.
Porém, assim como tudo em Ivan é intenso
e descontrolado, sua inocência também não seria
justificável se não estivesse sustentada por uma
quantia irregular de lerdeza. Meu amor nem mesmo
se deu conta de como aquela mulher segurava sua
mão com malícia quando cheguei.
Ivan conseguiu contornar a situação com
suas palavras dóceis e o sorriso sedutor. Ele diz as
coisas certas nos momentos corretos, encaixa a
sensualidade junto com uma delicadeza
hipnotizante.
Esse homem me desarma com a mesma
maestria utilizada na destruição da antiga armadura
invisível que nos afastava, pois não existe defesa
mais resistente do que a muralha dos seus braços
quando estão ao meu redor e o calor ofensivo dos
seus lábios ao encontrarem com os meus.
Paro diante da diretoria e escuto a voz da
senhora Tânia ecoando no lado de dentro,
estridente e exagerada. A mulher é uma idosa, o
estereótipo perfeito da matriarca adorável que
aperta as bochechas dos netos durante o Natal e
alimenta os cachorros por baixo da mesa.
Agora que não tenho mais vínculos diretos
com a empresa de Mikhail e seu projeto de doação
compartilhada, será questão de tempo até que os
gestores comecem a questionar as minhas
visitações. Essa perspectiva não me aterroriza, no
entanto, pois tenho Ivan e sua família ao meu lado.
Mesmo assim, somos agora um casal como
outro qualquer, com intenções claras de adotar uma
criança. O acervo financeiro de Ivan nos permite ter
acesso à algumas regalias, mas esse orfanato esteve
por muitos anos no bolso de Mikhail e não sabemos
quem é confiável ou não.
— É muito arriscado. — Ouço a voz da
diretora, que conversa com alguém pelo telefone.
— Ela já saiu dos registros, está rápido demais.
Tudo bem, mande a mesma representante de
sempre.
O telefone faz um barulho seco ao atingir a
plataforma sobre a mesa. Bato antes de receber seu
convite para entrar.
— Lara, não sabia que ainda estavam aqui
— comenta com o humor revigorado.
— Ivan e Iago estão brincando na quadra de
basquete, precisava conversar com a senhora.
— Sobre o pedido? Já conversei com todos
os senhores Volkiov, eles têm sido muito generosos
conosco.
Os irmãos de Ivan vieram ao orfanato em
intervalos variados, cada um com uma intenção
diferente. Respeitaram o nosso pedido, nenhum
deles forçou contato com Iago, mas isso não os
impediu de assessorar o sobrinho. Tatiana não se
aproximou, convicta de que só pretende conhecer o
neto quando ele estiver livre desses muros.
Segundo ela, os seguranças posicionados em pontos
estratégicos ao redor do edifício são seus olhos e
ouvidos.
— Na verdade, nosso pedido foi suspenso
— lamento. — Nossos advogados estão
trabalhando no caso, estou segura de que tudo vai
se resolver com o tempo.
— Então, no que eu posso ajudar?
— Tenho vindo aqui todos os dias, como
sabe. Amanhã eu e Ivan teremos um compromisso,
não poderemos vir. Já conversamos com Iago, ele
ficou um pouco relutante no começo, mas depois
entendeu. Quando voltarmos, pretendo contar sobre
nossas intenções. Temos preservado Iago, com
medo de criar expectativas, mas essa insegurança
não faz bem a nenhum de nós.
— É o protocolo correto não dar
esperanças, algumas vezes a decepção é tão grande
que as crianças ficam traumatizadas. Você conhece
as histórias, está aqui há mais tempo do que muitas
das minhas funcionárias.
— Sim, e eu concordo. Mas dessa vez é
diferente, Iago vai ganhar uma família. Já ganhou,
para ser sincera. Quero contar a ele, quero que as
pessoas saibam.
Oculto minhas verdadeiras intenções.
Mikhail já sabe que Iago será meu filho em breve, o
primeiro herdeiro da única família que sempre o
venceu em capital financeiro, mas continua em
silêncio.
Por que ele continua em silêncio?
Viver sob o mesmo teto que aquele monstro
me garantia a vantagem da antecipação. A gente se
via todos os dias, eu conhecia a rotina, suas
intenções. Esse silêncio tem me aterrorizado, como
se estivesse nos rondando sem nunca revelar a
própria posição, esperando o momento certo para
atacar.
Tanto tempo de tortura me ensinou uma
lição importante. Mikhail não gosta de ser
enfrentado, quanto maior for a provocação, mais
rápido ele vai revelar seus planos. Iago era sua
carta na manga contra mim, sua moeda de troca, e
agora que não resta nada, que armas vai usar contra
mim?
— Bom, fiquei sabendo que já entraram
com outro pedido. Não vejo motivos para impedir
vocês — define, cruzando as mãos enrugadas sobre
o balcão.
— Também quero perguntar outra coisa.
— Sim?
— Onde está Tasha? Não a encontramos em
lugar nenhum e Iago está tão abatido que não tive
coragem de perguntar.
— Ela foi visitar a tia — responde sem
prolongar o assunto, o sorriso congelado no rosto.
— Não posso revelar informações burocráticas das
crianças, sinto muito.
— Acabamos nos apegando, queria poder
conhecer a tia dela, tentar manter contato.
— Não vai ser possível, sinto muito. Preciso
pedir licença agora, tenho muito trabalho. Fique
tranquila que Iago estará em boas mãos amanhã.
A última coisa que precisamos agora é
desenvolver uma relação de inimizade com a
diretora ou qualquer pessoa responsável por
influenciar — mesmo que minimamente — na
adoção de Iago, mas essa é a primeira vez que vejo
dona Tânia vacilar em seu comportamento.
Levanto com os olhos cerrados, daria
qualquer coisa para ler seus pensamentos. Só posso
estar ficando paranoica, tudo me deixa inquieta e
desconfiada. Agradeço pela atenção e me despeço,
retornando para junto de Ivan e Iago, que
continuam na disputa sobre quem é o menos pior.
Na minha opinião, poderiam disputar quem é o
mais infantil também.
Ao invés de gritarem “cesta” quando
marcam pontos, eles correm pela quadra cantando
“gol” e não entendem as regras sobre os limites das
jogadas ou o tempo corrido.
Fico esquecida durante mais de meia hora,
só quando desistem da brincadeira e aceitam o
empate — ou a derrota equivalente — voltam para
perto, suados e ofegantes, risonhos e vermelhos.
Cento e sete mil.
— Lara! — Iago grita correndo ao meu
encontro. Nunca mais me chamou de mãe e toda
vez que diz o meu nome eu anseio que se confunda
só para sentir aquela emoção com o carinho que
merece.
Ele se joga em meus braços como se não
nos víssemos há décadas e encosta o nariz no meu.
— Você estava jogando muito bem! — digo
com ironia, mas Iago somente sorri, confuso com o
meu tom. Ele ainda não interpreta muito bem
figuras de linguagem, mesmo depois das muitas
explicações falhas.
— Achei que a gente não jogou nada bem
— esclarece e acaricia as minhas costas como se eu
é que precisasse de conforto. — Mas não fica triste
não, eu nem gosto muito de basquete.
— Na próxima vez a gente vai jogar
futebol. — Ivan se joga ao meu lado, a gravata
vermelha jaz no chão ao longe.
— Tem um moço que vem aqui, ele joga
basquete muito bem — Iago solta e Ivan fica tenso
ao meu lado.
— Relaxa — sussurro para que Iago não
escute. — É normal as crianças brincarem com os
adultos no dia da visitação.
Eu estou acostumada, mas Ivan ainda é
novo nessas experiências.
— Eu vou aprender a jogar basquete melhor
do que ele. — Ivan se rebela como se tivesse sete
anos.
— Ele é muito, muito bom! — Iago
continua com sua inocência.
— Eu vou ser melhor! — conclui, decidido.
Continuamos por mais algum tempo na
quadra, mas Iago não esconde seu
descontentamento com minha falta no dia seguinte.
Ele fica triste, mas não me pede em nenhum
momento para desistir da viagem. Meu consolo é
ter certeza de que Tasha volta hoje da visita à casa
da tia, caso contrário não teria coragem de ficar um
dia inteiro longe sabendo que meu filho está
sozinho.
Depois de muitas despedidas e lágrimas —
minhas, pois Ivan e Iago mantêm as aparências
como ninguém —, nós finalmente partimos. Ivan
reservou nossas passagens, chegaremos hoje e
voltamos depois de amanhã, cedo. Sob qualquer
olhar, somos um casal qualquer rumo ao
desconhecido.
Durante o voo, finjo não ver os olhares que
as aeromoças lançam para o meu namorado. Noivo,
ou seja lá o que a gente se tornou. A maioria das
mulheres deseja um relacionamento cheio de
eventos inesperados, mas eu e Ivan precisamos de
estabilidade, já somos descontrolados o suficiente.
Nosso destino é certeiro. Eu disse com
todas as letras, quero que aconteça, sempre quis.
Mas uma coisa é a gente saber o que pretende,
outra completamente diferente é adivinhar como
vai ser.
Evitamos o assunto, Iago é o principal tema
durante o voo. Fazemos planos sobre seu futuro,
sua educação. Ivan diz que ele o faz lembrar de
Roman, com tanta espontaneidade e o apreço pela
construção de edifícios. Essa iniciativa de buscar
referências que os conecte me emociona, mesmo
que não tenham convivido desde sempre.
Do aeroporto, Ivan aluga um carro para nos
levar até a casa na beira da praia.
Certo.
Não é bem uma casa na beira da praia. Eu
chamaria de casa no meio da praia. Bem no meio
da areia, um pequeno pedaço de terra reservado de
qualquer invasor. Uma praia particular, uma casa
de madeira rústica com dois andares e a imensidão
do oceano.
— Meu Deus, Ivan, essa casa é maravilhosa
— digo embasbacada. Estou acostumada com o
luxo, com o dinheiro, mas isso é diferente.
Todos os detalhes foram construídos para o
aconchego familiar, móveis de madeira em tons
que variam do avermelhado ao marrom escuro se
esparramam no primeiro andar. Poucas paredes
dividem os cômodos, mas a maior parte dos
ambientes é visível com apenas uma olhada.
Fazemos um tour e Ivan me presenteia com
memórias da infância. Ao que tudo indica, essa
casa era como um tesouro. Eles vinham uma vez
por ano quando seu pai era vivo, mas depois de seu
falecimento repentino — um enfarto que devastou
sua família alguns anos antes de Petrova —, a casa
permaneceu entregue ao abandono.
Ivan me deixa no quarto arrumando minha
pequena mala e aproveito para tomar banho. Não é
como se estivesse nervosa, já dormimos juntos,
dividimos uma cama e estamos certos da
necessidade crescente de nos pertencermos.
Depois de uma hora, desço a escadaria e o
procuro em cada canto da casa, mas o avisto por
uma das janelas. Saio até a varanda, Ivan está na
beira da água, apenas uma silhueta oculta pelas
sombras.
Dizem que a memória olfativa está
diretamente relacionada com as emoções, a gente
acaba memorizando alguns odores por causa de
situações especificas que vivenciamos. Eu não
gosto do cheiro da chuva, aquele perfume de terra
molhada que precede um temporal. Também não
suporto o miasma ardente do suor que o corpo
humano exala após uma noite de bebedeira.
Mas existem as boas fragrâncias, aquelas
que a gente relaciona com pessoas que se tornam
importantes para nós, que nos salvam. O cheiro do
mar poderia promover uma série de pensamentos
tristonhos. A água diante de nós é salgada assim
como as lágrimas, as duas vêm e vão com a mesma
frequência, em ondas às vezes calmas e belas,
outras firmes e fatais.
O futuro é incerto, mas enquanto eu viver,
para sempre o cheiro do mar vai reascender dentro
de mim a lembrança do homem que amo.
Saio da casa, meus pés se aconchegam na
areia e caminho devagar até Ivan. O verão na
Rússia não dura muito, os ventos invernais já nos
alcançaram e minha respiração se transforma em
uma nuvem de fumaça branca. Abraço o corpo,
meu vestido longo esvoaça e tudo acontece ao
mesmo tempo. É como naqueles filmes românticos,
do tipo que tem final feliz.
Como se percebesse a minha presença, Ivan
olha para trás e sorri. Sua barba cresceu um pouco,
preenchendo as maxilas com uma penugem
dourada, e os primeiros botões da sua camisa estão
abertos, revelando o prenúncio de uma obra
escultural.
Admirar e desejar o corpo de outra pessoa
ganha uma perspectiva singular quando estamos
lidando com o amor. A ganância se metamorfoseia,
recebendo tons de necessidade, pois a gente já não
é mais unidade, somos coletivo.
— Está pensativa — sussurra assim que me
abraça. — Arrependida?
— Jamais — tranquilizo. — Apenas
admirando você. Sou uma mulher de sorte, você
tem poucos defeitos.
— Poucos defeitos? — Ri e nos viramos
para apreciar o oceano. — E quais seriam,
exatamente?
— Deixa eu pensar. — Ele coloca o
indicador no queixo, ensaiando uma cena dramática
enquanto eu digo: — Você é um pouco lento,
desculpe concordar com a sua mãe nesse quesito,
talvez ingênuo, ainda não tenho certeza. Explosivo,
mas não tanto quanto seu irmão Roman. E lindo,
você é lindo demais.
— Achei que estava listando meus defeitos.
— E você acha que é fácil ter namorado
lindo? A aeromoça parou doze vezes do seu lado
para perguntar se você queria alguma coisa.
— Ela só estava fazendo o trabalho dela. —
Gargalha.
— Doze vezes, Ivan, em um voo de duas
horas? Ela perguntou se você queria jantar! Jantar,
Ivan, às duas horas da tarde.
Ele faz uma careta, mas não rebate meu
argumento. Ao invés disso, oferece exatamente
aquilo que vim buscar. Beija a minha boca com os
olhos abertos, a gente se assiste, se hipnotiza. É
mais íntimo do que um beijo comum. De perto
assim, consigo ver os pigmentos dourados dentro
das suas íris, o tracejado mais escuro da auréola, a
veneração da minha alma refletida em seus olhos.
Estamos nos beijando na praia, durante um
pôr do sol. Eu estava certa quando disse que não
éramos era esse tipo de casal, pois somos ainda
melhores. O nosso final feliz é vivido e sentido a
cada dia, ele se eterniza ao invés de findar.
O céu está vazio, imagino que todos os
anjos tenham descido à Terra para pintar com as
próprias mãos o crepúsculo vespertino mais
indescritível que os olhos humanos tiveram a honra
de contemplar. O mesmo sol que tantas vezes se
despediu de mim com promessas de noites
assombradas, agora entoa a melodia dos corações
arrebatados, comemorando a minha alegria ao lado
do breu noturno que se aproxima devagar.
É como uma metáfora caótica, uma
suposição transversal na qual Ivan e eu
representamos a luz solar e a treva da noite. Por
mais que a vida nos tenha concebido como
criaturas antagônicas, são nos momentos mais
fortuitos que a gente se transforma em pôr do sol.
Hoje, não vou apenas me entregar de corpo
e alma para o homem que amo, mas para mim
mesma. Pertencendo à Ivan, eu me reconheço, me
escolho e me completo. Eu me pertenço.
— Vamos voltar? — murmura sem se
desvencilhar, direto e decidido. Viemos com um
propósito, sem subjetivar as nossas intenções.
Decidimos viver esse momento de entrega,
sem esperar que a hora certa chegue até nós. Não
existem movimentos camuflados ou desejos
contidos, chega de palavras não ditas e emoções
reprimidas. Somos livres no dia de hoje, seremos
transparentes, completos.
— Sua vez de listar os meus defeitos —
digo enquanto voltamos de mãos dadas de volta
para a casa.
— Defeitos? Você não tem defeitos —
flerta. Eu o empurro pelo ombro e reviro os olhos.
— Tudo bem, defeitos! Deixa eu pensar. Você é
como um imã para catástrofes, convenhamos. Com
certeza foi uma megera na outra vida.
Não resisto e começo a rir. Essa família
Volkiov não tem filtro, todos puxaram à matriarca e
com Ivan não é diferente.
— Não vale, vamos, diga um defeito meu
que te incomoda. — Subimos a escadaria de
madeira, nossas sombras tremeluzem e se
engrandecem por efeito das lâmpadas externas.
Em um segundo, estamos cruzando a soleira
da porta, no instante seguinte, Ivan já me tem em
seus braços. Minhas costas batem na parede do lado
de dentro, não é delicado nem sutil.
Cento e sete mil.
A Terra gira ao redor do sol a uma
velocidade de cento e sete mil quilômetros por
hora, descobri isso em uma revista de curiosidades
durante a adolescência, quando Ivan começou a
despertar em mim desejos voluptuosos. Hoje, antes
de virmos, acordei com essa informação na cabeça.
A gente não percebe toda essa ligeireza,
seguimos com nossas rotinas sem notarmos o
trajeto veloz que o planeta enfrenta. Nunca estamos
no mesmo lugar, a vida não é estática.
Movimentamo-nos à cento e sete mil quilômetros
por hora, rápido demais para nos preocuparmos
com sofrimentos do passado.
Se o meu amor fosse um número, ele se
chamaria cento e sete mil.
— Você tem um defeito — ofega,
construindo uma linha invisível de beijos na
extensão do meu pescoço. — Me deixar louco!
Resmungo qualquer coisa. Sendo bem
honesta, apenas um resquício de consciência me
permite confirmar que a capacidade de falar me
abandonou. Ele nos pressiona, voraz, e meu corpo
reconhece cada centímetro do seu. Estamos
conectados, minhas pernas se entrelaçam ao redor
dele quando me ergue e o som dos seus passos
contam os segundos até que a gente alcance o
quarto.
Carinho, calma, fragilidade, isso não existe.
São cinco anos de indecisões, de uma espera
tortuosa. São cinco anos de olhares de rancor,
traumas a serem superados. Procuramos no corpo
um do outro por superação, o sonho mudo de que
essa experiência apague todo o resto. É o nosso
recomeço, um em que as coisas dão certo.
Não estamos nos despindo apenas de roupas
e objetos, o sólido e o subjetivo ultrapassam a tênue
linha da importância, se desfazem diante da
magnificência que são as nossas emoções. As mãos
de Ivan me vasculham com carinho, marcam o meu
corpo com promessas de desejos vindouros.
— Você é linda — diz com os olhos fixos
nos meus, acomodando ambos sobre a cama. Seu
corpo já atingiu um limite, é assim que Ivan prova
o seu caráter. Não precisa ser rápido, mas
verdadeiro. — Linda — repete perto do meu
ouvido. — Fecha os olhos.
— Quero ver você — reclamo no meio de
um suspiro.
— Fecha os olhos — sussurra outra vez,
deslizando a ponta dos dedos sobre as minhas
pálpebras.
A cama se movimenta e eu quase espio, mas
logo o colchão balança outra vez, anunciando seu
retorno. As palmas de Ivan seguram o meu pé
direito, estão geladas e escorregadias. Ivan começa
massageando os meus dedos, um aroma de cacau
preenche o ambiente e eu gemo a cada movimento
circular.
Não sei o que fazer, nem reconheço em
mim a mulher ousada que já arrisquei me
transformar um dia. Não sou inexperiente no sexo,
sou inexperiente em Ivan.
Devagar, ele me preenche com aquela
essência. A brisa noturna invade o quarto, nos
presenteia com a frigidez para balancear com a
ardência. Se nós somos inconstância e
irregularidades, agora alcançamos a estática da
perfeição.
Meu corpo se arrepia, mas Ivan não emite
ruído algum. Eu sinto o toque do seu olhar, mais
intenso do que suas mãos espalmadas na minha
pele. É injusto que seja o único a me tocar, mas
existe qualquer coisa de mágico em manter os
olhos fechados enquanto ele se satisfaz com a
minha entrega.
Seus dedos acariciam meus olhos para cima,
indicando que já posso abri-los outra vez. Eu
acreditava que me atentaria para os detalhes, como
a vivacidade da iluminação, a cor do céu na janela
do quarto, o lugar exato em que nossas roupas
estariam esparramadas no chão. Mas não, só existe
Ivan no meu mundo. Ivan acima de mim, com os
cotovelos apoiados, os olhos entregando seu desejo
por mim.
Sim, eu já vi esse olhar antes, quando eu
comemorava a atenção que ninguém mais oferecia
além dele.
Ivan já me desejava, mas éramos quebrados
demais para perceber.
Prendo a respiração quando ele se remexe,
sem desconectar o nosso olhar. Meu peito sobe e
desce com a expectativa, minhas pernas se
acomodam nos dois lados do seu corpo, esperando,
desejando, prevendo.
Mas, contrariando todos os planos, todas as
promessas de estabilidade, Ivan revira o meu
mundo mais uma vez.
— Eu te amo — confessa, invadindo o meu
corpo e o meu coração, para sempre.
Cento e sete mil, esse é o número do meu
amor.
CAPÍTULO 30
Daquele Jeito

— EU TAMBÉM AMO você — Lara diz, estática


e chocada abaixo de mim.
Não me movimento, mantenho o corpo
conectado com o dela. Lara não hesitou em
momento algum. Mesmo agora, com os olhos
lacrimejados pela profundidade dos sentimentos
que verbalizamos juntos, ela demonstra uma
confiança desconcertante.
A jovem mulher oprimida me concedeu
acesso absoluto ao seu corpo e coração. Logo eu, o
homem que praguejava sobre as injustiças do
universo, que nunca lhe ofereceu o benefício da
dúvida.
Eu não a mereço, mas isso não é suficiente
para me afastar. Agora que experimentei do fruto
proibido, quero me deliciar do seu sabor, da sua
companhia e, sobretudo, da esperança que me
preenche quando estou ao seu lado.
Com um único movimento de quadris, torno
nossa proximidade ainda mais estreita. Lara arfa, eu
acompanho. Conjugamos todos os verbos da paixão
no presente do indicativo. Arfarmos, tocamos,
beijamos e amamos.
— Não acredito que isso está acontecendo
— murmura e suas mãos acariciam as minhas
costas enquanto ela entra no ritmo da minha dança
corporal.
Mesmo à luz extinta do sol se pondo,
enxergo todo o rubor que ocupa a extensão do seu
colo, sobe através do pescoço até alcançar as maçãs
do rosto, enquanto me afundo em seu corpo,
entrando e saindo, hora rápido, hora devagar.
Não existem dúvidas quanto à essa decisão,
Lara me pediu, me desejou, eu nunca esperaria por
uma terceira investida. Mas por trás dessa menina
decidida, existe uma insegurança que precisa de
cautela e estabilidade.
Certezas, é isso o que estou oferecendo. A
certeza de que a amo.
Memorizo todos os milímetros da sua pele,
tateio a oleosidade dos cremes afrodisíacos e
deslizo as mãos, explorando a curva perfeita dos
seios e a inclinação vertical das suas pernas
dobradas para me receber. Meu lindo furacão.
— Filhote de tentação — provoco em seu
ouvido. Ela geme mais algo no momento em que
levanto suas pernas um pouco mais, tornando meu
caminho impossivelmente mais livre. — Não sabe
como era difícil estar ao seu lado sem saber a hora
certa de avançar.
— A hora certa veio e passou — suspira,
contorcendo-se com os olhos fechados.
— Eu te amo — repito para satisfação
própria. Pronunciar as palavras mágicas estimula
uma vontade absurda de eternizar o prazer, de
pertencimento mútuo. Não quero apenas marcar
Lara como minha mulher, mas ser também
marcado por ela. — Meu amor.
— Meu amor — devolve. Esconde os olhos
na curva do meu pescoço, os braços ao redor do
meu tronco e o quadril em sincronia constante.
Quero afastar os arrependimentos, o medo
que se aloja na minha alma quando penso que Lara
estaria condenada se eu estivesse recluso em meu
exílio. Tudo isso, esse corpo, essa paleta de cores
rubras pintadas em sua clavícula, a melodia
tentadora do seu prazer, poderia nunca ter me
pertencido.
Só esse simples pensamento me impulsiona
a intensificar a nossa experiência. Ultrapasso o
limite da calmaria, vamos do inverno ao verão em
um maldito piscar de olhos. Lara me surpreende
quando se liberta e destrói a minha sanidade com
palavras de incentivo.
Fico de pé, ergo Lara junto comigo, sem a
mínima intenção de interromper nossa união. O
som das ondas se quebrando na orla ao longe
reproduzem as batidas tresloucadas do meu
coração, espelham a insanidade se apoderando de
um contexto mais impactante e complexo, que
abrange a emoção em seu sentido mais literal.
Encosto Lara na parede para sustentar seu
corpo e evitar uma suspensão desnecessária do
ponto que nos une. Algumas pessoas não entendem
por que o amor inicia guerras e destrói pessoas,
mas eu faria qualquer coisa por essa mulher.
Qualquer coisa. O céu não é o limite, somente Lara
tem o poder de limitar essa paixão, mas o olhar
contemplativo que ela me oferece refuta todas as
hipóteses negativas.
Somos selvagens, braços e mãos que não
aquietam, grunhidos e gemidos que se propagam
dentro das quatro paredes do quarto. Somos
instáveis em todos os outros quesitos da existência
humana, menos no amor repentino que se fez
perceber como um terceiro elemento no meio de
nós dois.
Tanto quanto eu em minha volubilidade,
Lara não se caracteriza como objeto concreto. Ela é
mutável, é ar que se movimenta, que gira e
intensifica. Tímida e ousada, decidida e
dependente, entregue e insegura. Juntos, a gente se
equilibra como dois pesos equivalentes em uma
balança desregulada.
Beijamo-nos, sacio a fome gritante que
resseca meus lábios. Foi uma semana longa
enquanto planejava e sonhava com esse momento,
mas nenhum projeto se equipara com a experiência
real de possuir Lara na dimensão mais íntima de
um casal que se ama. Ela me pediu por certezas,
mesmo sem perceber. Clamou por entregas, por
pedidos que não posso fazer.
— Não vou te pedir em casamento —
murmurinho com o dorso comprimido na direção
dela. Uso as pernas para bloquear sua queda e com
uma das mãos imobilizo seu pescoço
carinhosamente. — Eu te amo demais —
impulsiono os quadris ainda mais, enterrando-me
no meio de suas pernas sem conseguir definir onde
meu corpo começa e onde o dela termina. —
Vamos nos casar, comprar uma casa. Você vai
assistir esse maldito pôr do sol todos os dias e vai
dormir ao meu lado todas as noites. Não vou te
pedir em casamento, Lara, porque eu te amo
demais para correr riscos. Você disse que me ama,
mas tem motivos para não me querer de verdade.
Sou um egoísta que não te merece e fez tudo
errado, mas que não vai sobreviver se você desistir
disso que estamos construindo.
— Eu nunca vou dizer não para você. —
Ivan me abraça, beija meu rosto, suada e com a
respiração ofegante. Estamos perto, muito perto do
prazer absoluto. — Eu te amo, Ivan, sempre amei,
sempre amei você demais.
— Diz de novo — peço, eletrizado com a
carga de suas palavras. — Diz que me ama.
— Eu te amo — repete, e continua a entoar
essas três palavras incessantemente enquanto nos
transformamos em respiração, atrito e prazer.
A gente se decora, eu a conduzo por um
caminho cheio de atenção e cuidados. Exploramos
as possibilidades do apogeu de emoções que
dilucida a vicissitude carnal e peculiar das nossas
alternâncias sentimentais.
No lado de fora, a lua e as estrelas são
ouvintes do deleite que gritamos quando o ápice é
atingido. Volto com Lara para a cama enquanto a
satisfação nos enfraquece e ela sorri com os olhos
fechados, o pescoço marcado com meus beijos e
afagos. Essa imagem vai se perpetuar na minha
mente, na minha alma. Quero uma coleção de
lembranças assim, cheias de amor e cumplicidade,
cheias de Lara e a sua perfeição descabida.
— Eu te amo — digo pela milésima vez.
— Eu te amo mais — resmunga com os
olhos semiabertos, cansados.
Com cautela, giro para o lado e me
acomodo para observar minha mulher. Minha
mulher, como isso é intenso, fodido. Lara se
encolhe, vira para me encarar, o sorriso infindável
no rosto. Acaricio suas curvas, o contorno dos
quadris, seus ombros angulosos, o maxilar
avermelhado. Se a vida da gente é marcada por
acontecimentos que nos definem, agora eu sou um
novo Ivan, um que não vai mais respirar se Lara
não estiver ao meu lado.
Com os olhos fixos um no outro, o sono e o
cansaço chegam devagar. Não falamos mais nada, a
comunicação física disse todas as palavras
necessárias. Mas eu não posso me entregar ainda, a
brisa gélida acaricia a minha pele, lembrando da
nossa nudez. Precisamos tomar banho, mas Lara já
se foi para o mundo da inconsciência.
Reúno o restante da disposição e levanto,
recolho nossas roupas e procuro por produtos de
higiene. Faço o possível para que a noite dela seja
tão agradável quanto nosso amor, o resto pode ficar
para amanhã.
Depois de voltar para a cama, adormeço
com a certeza de que o passado é insignificante
perto da magnitude do futuro ao lado da minha
família.
A luz solar me desperta, as cortinas abertas
flutuam com o frescor do oceano, mas Lara não
está ao meu lado. Seu perfume de jasmim e orvalho
denunciam um banho recente e eu capto seu canto
baixo vindo da cozinha no andar inferior. Louco
para me juntar a ela, corro com meus afazeres
matinais e visto apenas bermuda depois de uma
chuveirada.
Das escadas, enxergo seu corpo camuflado
por um vestido longo, os cabelos curtos fornecem a
visão mais tentadora da nuca mais tentadora que só
esse filhote de tentação possui. Ela remexe uma
panela, o cheiro entrega o preparo de um chocolate
quente. Aproximo-me devagar, cuidadoso para não
emitir algum ruído.
— Bom dia. — Abraço seu corpo por trás,
beijo o pescoço que me fascina e depois busco seus
lábios.
— Te amo — ela diz do nada, paralisando-
me de paixão logo cedo. — Queria ter certeza de
que ouviu.
— Te amo também, meu filhote de tentação
— brinco.
— Muito romântico — ironiza o apelido
carinhoso, mas seu tom não é reprovador, está se
divertindo. — Quero que saiba, Ivan, eu amei cada
segundo. Dormir com você foi especial.
— Dormir daquele jeito, você quer dizer?
— Sim. — Sorri. — Eu quero isso, você
como marido, uma casa só nossa.
— Iago — completo, nosso filho é a peça
mais importante.
Concordando, Lara se vira e volta para o
preparo do café da manhã. Eu ajudo a colocar a
mesa na varanda e me sento à sua espera. Nossos
desejos serão realizados, os planos e todo o resto.
Assim que voltarmos, Iago será informado
da adoção. Tento não a preocupar, mas os
imprevistos no processo de Iago não são mesmo
meros acasos do sistema jurídico. Mikhail é a única
justificativa para a suspensão do nosso pedido e
quanto antes ele for desmascarado, mais rápido
nosso menino estará em casa.
Não me agrada guardar esse segredo,
manter Lara no escuro enquanto a gente corre
desesperadamente contra o tempo para juntar
provas suficientes contra o demônio, mas se essa é
a única maneira de garantir a proteção dos dois, é
isso mesmo o que farei.
O problema é que meus irmãos não
entendem a extensão do meu ódio. Colocar Mikhail
atrás das grades não vai apaziguar meu desejo de
vingança. Eu quero que ele sofra, que rasteje para
sempre. Não por um dia, não por um soco ou dez,
quero que perca tudo o que mais importa para ele.
Sua fortuna, esse é seu ponto fraco.
Contatei a maior parte dos clientes de
Mikhail, reivindiquei favores, fechei negócios. Os
próximos dias serão decisivos, pois a empresa
Ihascov vai perder investidores, seus números vão
despencar e esse será apenas o começo.
Quero manter a adoção de Iago incólume,
mas nunca disse nada sobre preservar Mikhail. Era
questão de tempo, de atacar no momento certo.
Tatiana me ensinou a nunca abaixar a
cabeça. Não se trata de um sobrenome, eu e meus
irmãos continuaríamos a ser quem somos mesmo
sem as nomenclaturas que nos simbolizam. Se trata
de definir o nosso lugar no mundo e defender as
pessoas que amamos. E, nesse momento, minha
família é tudo o que importa.
Mikhail machucou e humilhou a mulher que
amo, a mulher que me presenteou com a melhor
noite da minha vida. Ameaçou meu filho, uma
criança que abriu o meu coração para as
possibilidades imediatas.
Ele vai rastejar.
— Chocolate quente! — Lara anuncia,
resgatando-me do abismo. Ela senta ao meu lado,
serve duas xícaras e encara o horizonte. — É tão
lindo aqui, eu e Petrova nunca conhecemos essa
casa.
É incrível como o nome de Petrova não me
afeta mais, não da mesma forma. É doloroso como
sempre foi, continua sendo um buraco repentino
nas nossas vidas, mas agora que eu conheço o amor
verdadeiro, é quase triste que tenhamos insistido
tanto naquele relacionamento.
Eu queria que ela tivesse tido a chance de
amar alguém como eu amo Lara e que recebesse o
amor que merecia de verdade.
— Nicolai costumava trazer a gente no
verão, por uma semana apenas. Era nosso momento
família, minha mãe adorava — conto.
— Ele era incrível. — Lara beberica sua
bebida, o vapor esvai na frente dos seus olhos. —
Sinto saudades, acho que nunca conversamos sobre
isso.
— Na verdade, a minha família não toca
nesse assunto. — Recosto-me na cadeira, cruzo os
braços. — Vladimir é muito sensível com a morte
do nosso pai, então aprendemos a ficar em silêncio.
— Deve ter sido doloroso para ele.
— Sim, foi difícil para todos nós. Minha
mãe, bem, você sabe como ela é. Se trancou no
quarto por um mês inteiro, não permitiu que
nenhum de nós visse suas lágrimas. Quando saiu,
disse que tinha quatro filhos para cuidar, sorriu e
nos abraçou. Mas Vladimir, não. Ele nunca mais foi
o mesmo.
— Sua família é maravilhosa, acho lindo
como se apoiam e se amam. Tenho certeza que, no
momento certo, ele vai se abrir.
— Eu fiquei fora por tanto tempo, tenho
tantos arrependimentos. Algumas vezes tenho
vontade de entender os três, mas sou tão confuso
quanto qualquer um deles.
— Andrei não parece tão confuso —
comenta aleatoriamente, ainda com a xícara quente
nas mãos.
— O caçula é mais sonhador, mas nos
últimos dias ele tem estado estranho. Acho que
minha mãe sabe de alguma coisa, é só um palpite.
Andrei é do tipo que não compartilha, ele quer
salvar todo mundo, mas não permite que a gente se
envolva na sua vida, na sua relação.
— Tem alguma coisa errada com a Evgenia,
Tatiana não seria tão repulsiva sem um motivo.
Mesmo não aprovando seu casamento com a minha
irmã, por exemplo, ela nunca se opôs.
Concordo com a cabeça, agradecendo Lara
por sua preocupação. Não somos apenas noivos,
companheiros, somos amigos. Conversar sobre
coisas que me afligem é muito fácil com ela, íntimo
de um jeito diferente.
Preciso visitar Bóris outra vez, esclarecer
como tudo mudou, como eu escolhi mudar. Aquele
velho — que está aposentado há tantos anos que
não caberiam nos dedos das mãos — possui
métodos arcaicos, mas que funcionam.
— E Roman? — diz, despertando um ciúme
singelo que eu logo suprimo. Esse babaca me
provoca e depois eu fico agindo como um
descontrolado ciumento possessivo.
— Roman sempre foi a ovelha negra. Fez as
próprias escolhas e correu atrás do que queria. Ele é
explosivo, causa confusão por onde passa, mas luta
bravamente por aquilo que acredita. Mas, de
verdade? Ele some quase todas as noites, a gente
não sabe para onde ele vai, com quem se relaciona.
Eu fui para Nova Iorque quando precisei fugir dos
problemas, então eu fico me perguntando, para
onde Roman foge e de quais problemas?
Nós dois olhamos para um pássaro que
sobrevoa a praia, suas asas estendidas formam uma
sombra na areia. Tantos problemas, tantas
reviravoltas, e a vida continua. Tenho que vencer
minhas batalhas antes de me preocupar com o
exército dos outros.
— Lara — chamo e ela sorri timidamente,
pousando a xícara na mesa. — Eu falei sério
quando disse que a gente vai se casar. Não importa
o que aconteça daqui para a frente, quero que
confie em mim.
— Eu confio, Ivan. — Lara estende a mão
sobre a mesa, entrelaçamos nossos dedos. Só quero
que essa maldita guerra acabe logo para que eu
possa desfrutar plenamente da minha família, sem
segredos, sem planos, sem inimigos à espreita. Sem
medo. — Eu confio — garante.
Beijo o dorso da sua mão, hoje é o nosso
dia. O começo de muitos que virão, mas o primeiro
que temos para sermos apenas um casal que se
ama, um casal de pôr do sol. Um casal que conjuga
o verbo amar no presente do indicativo.
CAPÍTULO 31
Anjo da Guarda

ENQUANTO TASHA ARRUMA suas malas em


cima da cama, sinto uma vontade bem grande de
chorar, mas seguro firme. Não porque sou
menino, apenas não quero que ela fique mais triste
ainda.
Se a Lara estivesse aqui, tenho certeza de
que choraria bastante, mas justo hoje ela resolveu
viajar com o Ivan. Eu não queria que eles fossem,
mas não sou o filho deles e não posso querer essas
coisas.
No dia que os dois chegaram aqui, juntos
pela primeira vez, eu fiquei tão surpreso e feliz ao
mesmo tempo que quase chamei a Lara de mãe de
novo. Tasha me contou o que eu tinha falado, foi
sem querer, mas agora tomo cuidado pra não
repetir.
Ela estava chorando tanto, mas dessa vez
não era de tristeza. Ainda tenho que agradecer ao
Ivan, ele prometeu que cuidaria dela e está
cumprindo com a palavra. Nunca mais encontrei
nenhum machucado no corpo da Lara, mas
continuo procurando pra ter certeza.
Acontece que me acostumei com o orfanato
e, de certa forma, passava os meus dias esperando
pelo momento em que Lara decidiria me adotar.
Depois de Tasha, isso mudou um pouco.
É bom brincar com ela, a gente se diverte.
Tasha é diferente das outras crianças, nos
entendemos e temos as mesmas ideias. Às vezes,
discutimos um pouco, mas só porque ela é teimosa
mesmo.
Agora, por causa desse anjo da guarda que a
tia dela comprou, Tasha não vai mais ficar comigo.
Eu não sei o que significa isso. No começo, pensei
que essa tia estava tentando conseguir sua adoção,
mas essa história de anjo da guarda realmente
existe.
Pelo que entendi, é um projeto esquisito e
chato, desses que os adultos inventam.
— Não vai ficar chorando, os meninos vão
implicar com você — diz Tasha do nada. Ela está
sempre pensando em alguma coisa e acaba
iniciando as conversas assim, no meio de um
raciocínio só dela.
— Não estou chorando — explico. Levanto
do chão e me sento ao lado dela na cama. — E eu
não ligo para o que os outros meninos pensam.
— Tá bom, vou fingir que acredito —
brinca, tirando o cabelo da frente do rosto. Todo
mundo diz que estou sempre descabelado, mas ela
ganha de mim nesse quesito com toda certeza. —
Não vai ficar brigando também.
— Não brigo com ninguém, eles é que
brigam comigo. Eu só converso — explico,
ninguém me entende, tenho que ficar repetindo
isso.
— Tenta se comportar para arrumar uns
pais legais, você sabe, caso as coisas não deem
certo com a Lara e o Ivan.
— E você está se despedindo agora por que
mesmo, hein? Para de me dar ordens — reclamo.
Que menina mais apressada, está louca para ir
embora e fica falando essas coisas sem sentido.
— Não estou me despedindo, são só
conselhos. Minha tia vem me buscar depois do
almoço e não quero esquecer de nada.
De volta à tarefa de arrumar seus pertences,
Tasha continua tagarelando sobre o que devo ou
não fazer com a minha vida. Quais roupas usar,
como me comportar à mesa, o que dizer para os
adultos nos dias de visitação.
Intrometida, de fada só tem a aparência
mesmo.
Depois de tudo arrumado, almoçamos no
refeitório e seguimos para o jardim, nosso lugar
preferido. Muitas funcionárias param Tasha no
meio do caminho para se despedirem. Nem parece
que daqui poucas horas ela vai embora para
sempre.
Talvez o problema seja comigo, estou
sempre ficando para trás.
— Ontem a minha tia disse que vou morar
no México — conta quando nos sentamos no banco
perto das margaridas. — Você sabe se é muito
longe?
— Nunca ouvi falar, acho que não fica em
Moscou. — Não me lembro deter aprendido
nenhum distrito com esse nome na escola, mas não
conheço a cidade inteira. — Depois vou perguntar
pra Lara, ela deve saber.
— Queria me despedir dela e do Ivan. —
Tasha olha para baixo, nossos pés balançam no ar.
— Eles são mesmo especiais.
— Sim — concordo, mas a tristeza é muito
grande. Se conversarmos demais, vou acabar
chorando.
— Não gosto desse negócio de anjo da
guarda mais — sussurra. Se ela chorar eu não sei o
que vou fazer. Tomara que não chore, tomara que
não chore. — Era interessante antes de vir para cá,
os anjos salvam a gente, não é? No outro orfanato,
eu ficava esperando por um pai e uma mãe que me
quisessem, pedia para os anjos me ajudarem. Mas,
dessa vez, eu preferia mesmo ficar aqui.
— Eu podia ser o seu anjo da guarda —
ofereço. Se ela pode ser uma fada eu posso muito
bem ser um anjo, não posso? — Se você ficasse
aqui, eu seria o seu anjo da guarda, Tasha!
— Você só tem oito anos — explica, toda
certinha, não sabe nem brincar. — Mas eu ia
gostar, você seria um anjo da guarda bem legal,
Iago.
Espera um minuto…
— Você estava em outro orfanato antes
desse? Você disse que tinha ficado em alguns
abrigos, mas achei que morava com seus pais ou
com a sua tia. — Estranho.
— Não, minha tia eu conheci faz pouco
tempo.
— Entendi, somos um pouco iguais então.
Não lembro do meu pai, ele morreu quando eu
tinha só três anos.
— Sabe, eu acho que você não vai continuar
aqui por muito tempo. — Tasha encosta no banco e
olha para o céu, seus olhos verdes parecem feitos
de vidro quando ela faz isso.
— Como assim?
— Eu acho que a Lara e o Ivan querem
adotar você.
— Às vezes eu acho isso também —
confesso, embora seja mais uma esperança do que
uma suspeita.
— E tem aquele outro moço que vem aqui,
qual que é mesmo o nome dele?
— Grande Jordan. — Não é o nome dele
de verdade, mas foi assim que ele se apresentou
desde a primeira vez, na quadra de basquete. — Por
causa do Michel Jordan, o melhor jogador de
basquete de todos os tempos.
— Ele parece legal — murmura.
Não tenho nada contra o Grande Jordan,
mas não me vejo como seu filho. Já vi ele chegar
na viatura da polícia duas vezes e ele sempre me
faz umas perguntas esquisitas.
A diretora Tânia fica falando na minha
cabeça que não devo comentar com a Lara sobre os
adultos que se interessam por mim. No dia que
conheci o Ivan, esse moço também apareceu por
aqui. Tentei contar pra a Lara que um moço tinha
vindo me visitar, mas ela não gosta mesmo quando
essas pessoas me procuram.
Agora ele vem jogar comigo quase todos os
dias. É divertido, diferente. Sempre conversamos
sobre adoção. Depois que eu contei sobre a Lara,
ele começou a se interessar muito por esse assunto.
Uma vez até me perguntou se ela já tinha falado
alguma coisa sobre oferecer a minha adoção para
alguém.
Sei lá, muito estranho, como se ele tivesse
umas ideias erradas. Esquisito demais.
A Tasha gosta dele, ela não costuma errar.
Tem um pressentimento bom para entender os
outros e sempre me diz que ele parece um homem
do bem.
É assim que ela classifica as pessoas. Entre
bons e maus. De acordo com ela, dona Tânia fica
no grupo dos malvados e, por causa disso, eu
comecei a ficar desconfiado. Talvez Tasha esteja
mais pra bruxa do que para fada.
— Se não for pra morar com a Lara, não
quero que ninguém me adote — concluo.
— Não dá para escolher essas coisas, Iago.
Você precisa pensar no seu futuro também.
— Quer parar de ser chata? Se eu quiser,
fico morando aqui para sempre!
Ah, não. Tasha começa a chorar. Não,
não. O que eu devo fazer?
Ela não faz um escândalo, só funga
baixinho e vai enxugar o rosto. Suas pintinhas
deixam a pele mais vermelha e eu simplesmente
queria sair correndo.
Vou chorar também!
— Eu não quero que você fique aqui
sozinho. Não queria deixar você para trás. —
Soluça, seu cabelo desgrenhado gruda nas
bochechas molhadas. — Você tem que arrumar
uma família boa, Iago, me promete que vai arrumar
uma família boa.
Tá, eu choro também. Mas é um chorinho
de nada. Só uma lágrima e aquele aperto ruim na
garganta. Minha melhor amiga vai embora, eu
posso chorar se eu quiser.
— Será que um dia a gente vai se ver de
novo? — pergunto, mas é uma dúvida interna. Ela
não responde.
— Tasha. — A assistente social aparece,
olha nós dois chorando e sorri. Os adultos têm essa
mania de sorrir mesmo quando o assunto é triste.
— Está na hora.
— Já vou, tia — Tasha diz, levantando do
banco.
— Tia? — pergunto. A mulher não me
ouve, vira de costas e sai andando para o corredor.
— A assistente social é a sua tia?
— Sim! — assegura firmemente. Não estou
entendendo nada. Eu conheço a assistente, temos
consulta com ela uma vez por mês.
— Ela era parente do seu pai ou da sua
mãe?
— De nenhum dos dois. — Ri, prende o
cabelo com um elástico.
— Então como ela é sua tia?
— Ela disse quando foi me buscar no outro
orfanato. Quando perguntei qual era o nome dela,
ela respondeu assim, pode me chamar de tia.
— Ela fala isso para todas as crianças! Ela
não é sua tia. — Queria chamar o Ivan, ele disse
que tem um irmão advogado, saberia explicar para
Tasha melhor do que eu. — A assistente social
adotou você? É isso?
— Não, Iago — responde sem paciência. —
Ela só arrumou meu anjo da guarda, vou morar no
México com novos pais.
— Tasha, eu acho isso muito suspeito —
sussurro. Tem umas pessoas nos olhando. Tem
sempre alguém de olho na gente. — Por que você
nunca me contou isso? A Lara disse que conversou
com a diretora, ela também falou que você tinha
uma tia. Não estou entendendo nada.
— Tenho que ir agora — diz apreensiva, se
agitando de um pé para o outro.
— Não queria que você fosse mais não.
— Não tem como a gente ter tudo o que
deseja, Iago. Se não, eu também ia querer ficar com
você. — Tasha me abraça, suas bochechas estão
geladas por causa das lágrimas.
— Eu posso ser o seu anjo da guarda! —
apelo. Queria meu pai e minha mãe aqui.
— Você pode ser, mesmo de longe. —
Tasha se alegra, segura minhas mãos e impõe a
ideia. — É isso, a partir de hoje você vai ser o meu
anjo, tá bom? Assim a gente vai continuar junto,
porque os anjos da guarda estão sempre com a
gente. É isso o que dizem!
— Tá bom! — concordo, eu gosto desse
plano.
— Você não pode nunca esquecer!
— Tá bom.
— Tem que dizer boa noite para mim
sempre que for dormir!
— Vou dizer!
— Tem que descobrir onde o México fica!
— Tá.
— E o mais importante! — Tasha dá dois
passos para trás, tem o semblante muito sério. —
Não pode ser anjo da guarda de mais ninguém,
entendeu? De ninguém!
— Não vou! — Presto continência, seguro o
choro outra vez.
Quando gira sobre o corpo e fica de costas,
vejo seu cabelo meio vermelho e meio laranja e me
lembro da primeira vez que a gente se encontrou,
como achei estranho. Mas agora é até bonito. Ela
parece mesmo uma fada, especialmente assim,
voando para longe.
Fico parado no meio do jardim. Tasha foi
embora de verdade, estou sozinho outra vez. Não
tem graça brincar sozinho e as outras crianças já
estão ocupadas em suas próprias brincadeiras.
Continuo parado, pensando, triste demais.
Além disso, não quero brincar com
ninguém. Dou a volta no canteiro de margaridas e
sento em cima de uma pedra que fica no meio das
violetas. Chato, tudo parece chato demais e só faz
quinze minutos que ela partiu.
O que eu vou fazer sem ela? E se a Lara
nunca me adotar?
Posso chorar o tanto que eu quiser que
ninguém vai ver mesmo. Coloco a cabeça em cima
do joelho e, quando a primeira lágrima cai, escuto
alguém se aproximando.
— Está chorando por que, Pequeno Russel?
— É Grande Jordan, está vestido com terno como
sempre, as mãos no bolso da calça. Juntos, somos
Grande Jordan e Pequeno Russel, os dois melhores
jogadores de basquete que já existiram.
Mas todo mundo sabe que sou péssimo, só
ele que joga bem de verdade.
— Não estou chorando não, só pensando —
minto. Não tenho nada contra menino chorar, sério!
Só não gosto que os outros me vejam assim.
— Posso ajudar com seus pensamentos, não
quer jogar?
— Hoje não, minha amiga Tasha acabou de
ir embora.
— Aquela ruiva?
— Sim.
— Tente pensar que ela está indo para uma
vida melhor, vocês ainda podem se encontrar de
novo algum dia. E, mesmo que não aconteça, pelo
menos você sabe que ela está bem.
Sentando-se perto de mim, ele apoia as
mãos para trás e inclina o corpo. Desde o começo
eu notei seu semblante cansado, os olhos verdes
dele parecem sempre tristes. Tem qualquer coisa
em Grande Jordan que me faz lembrar de Lara, ela
costumava suspirar desse jeito até pouco tempo.
Desde que começou a vir com Ivan, isso mudou.
— Eu não queria que ela fosse — desabafo.
É o único que pode me escutar no momento.
— Vou te contar uma história, pode ser?
Talvez ajude.
— Tudo bem.
— Há alguns anos, eu conheci uma mulher
maravilhosa. Era diferente de todas as outras,
bonita, alegre, divertida. Nos tornamos melhores
amigos, assim como você e Tasha. Mas nós dois
também fomos separados um do outro.
— Ela foi morar no México? — pergunto,
ele dá uma risadinha.
— Não, Iago. Ela morreu.
Fico em silêncio, que história mais triste,
não gostei nem um pouco. Ele está querendo dizer
que a Tasha vai morrer? Credo. Quero que a Lara
volte logo, vou dizer que não gostei de ficar sem
ela.
— Calma — diz, coloca os braços ao meu
redor. — Estou dizendo que, diferente da minha
amiga, sua Tasha está bem e isso é muito bom.
Aceno com a cabeça, até que é verdade.
Pelo modo que ele fala, acho que essa amiga não
era só amiga.
— Sinto muito pela sua amiga — sussurro.
— Eu também. Mas isso já faz muito
tempo. Você já ouviu aquela expressão de que o
tempo cura todas as feridas? Pois bem, isso não é
verdade. O tempo só ajuda a gente a se acostumar
com a dor.
— Desculpa, não entendo nada sobre isso.
A Lara sempre diz que eu não sei entender figura
de linguagem. Isso sobre o tempo é uma figura de
linguagem?
— Sim, uma metáfora. — Grande Jordan
sorri. Tasha estava certa, ele é legal, só um pouco
esquisito mesmo. — Quero dizer que ainda não
superei a perda, que ainda dói, pois eu sei que
nunca mais vamos nos ver. Ela meio que levou a
minha felicidade.
— Entendi. E como você vai fazer para
recuperar a sua felicidade?
— Eu tenho um plano. Existe uma pessoa
que anda fazendo umas coisas ruins. — Grande
Jordan fala baixo, olhando para os lados, mas as
funcionárias que estavam à espreita não estão à
vista. — Uma criminosa. Eu vou roubar a
felicidade dela, já estou fazendo isso mesmo sem
ela saber.
— Como um herói? — Empolgo-me, isso
sim é história! Tasha ia gostar de ouvir.
— Sim — responde — exatamente como
um herói.
CAPÍTULO 32
Confesse

NUNCA FUI UMA apreciadora das tragédias


shakespearianas, de encontrar beleza no sofrimento
ou inspiração na morte. Perder não tem um lado
bom, nem mesmo quando alcançamos a superação.
Desde que Tasha se foi, Iago perdeu um
pouco do brilho. Demorou duas semanas para que
voltasse a sorrir e outras três para construir uma
rotina solitária. O jardim se tornou um lugar
proibido, triste, como se ela fosse a única
responsável por conferir beleza autêntica à
paisagem.
Mas, o pior de tudo, é a insegurança. A cada
dia, Andrei e Svetlana nos contatam com mais
notícias negativas sobre o processo de adoção.
Sempre um novo empecilho, um novo problema,
novas tentativas que nos levam a lugar nenhum.
Meu menino está sofrendo e a incapacidade de
apartar sua dor me dilacera.
E tem Ivan.
Ivan.
Meu querido Ivan.
Descobri uma coisa nova sobre o homem
que amo, algo óbvio, mas preocupante. Perder
Petrova o destruiu de verdade, mas não apenas por
causa da fissura tenebrosa que a partida dela abriu
em seu coração.
Ivan não sabe lidar com a perda.
Quando Nicolai morreu, minha irmã se
empenhou muito para acalentar sua tristeza, foi
preciso paciência e perseverança de ambas as partes
enquanto eu me angustiava de longe, pois as
características ruins de Ivan ameaçaram consumir a
sua personalidade. Depois, Petrova se foi e Ivan
não teve forças suficientes para lutar. Ele fugiu, se
entregou para o lado sombrio, errou.
Estávamos chegando perto de superar tudo
aquilo, mas Tasha também partiu.
E Ivan realmente não sabe lidar com as
perdas.
Depois que voltamos do nosso dia especial
na casa de praia, fomos surpreendidos pela notícia
devastadora. Tasha foi levada, mas não para a casa
de uma tia — a suposta tia nunca existiu. A diretora
mentiu sobre isso, acobertou os devaneios de uma
criança cheia de criatividade, escondeu detalhes
sobre o processo de adoção quando foi questionada
por Ivan. Ele foi o primeiro a decidir que ela
poderia fazer parte da nossa família e por isso é o
que mais está sofrendo.
Ivan tomou para si todas as
responsabilidades: Lutar uma guerra cega contra
Mikhail, proteger-me de uma ameaça invisível,
conquistar a adoção do nosso filho, descobrir o
motivo pelo qual a fadinha foi levada para o
México, desvendar as mentiras que rondam a
adoção dela; é demais.
Até quando ele vai suportar?
Entro na empresa, as pessoas esticam os
pescoços e sussurram enquanto atravesso o saguão
sem me identificar. Não é mais necessário, meu
rosto está estampado na maioria das revistas e
jornais da última semana. Ivan assumiu nosso
noivado para a imprensa. Fez isso sem me
comunicar.
Jamais me oporia à essa decisão. Eu o amo,
desejo-o e necessito das certezas que me oferece
dia após dia. Mas Ivan se tornou impulsivo outra
vez e, tomado por um ódio irremediável, decidiu
que sua prioridade é me proteger.
Não consigo entender de onde vem tanto
medo, o que passa pela sua mente que não passa
pela minha? O que não estou enxergando? O que
não estou sabendo?
Subo pelo elevador presidencial, conferindo
minhas roupas no espelho. Passei a parte da manhã
com Iago, pois Ivan disse que trabalharia o dia
todo. Esse era o único horário que Vladimir tinha
disponível para me atender e preciso aproveitar
antes que a coragem me abandone.
Vestido preto com mangas longas, penso
sobre meu reflexo no espelho do elevador, nada
vulgar. Profissional, é assim que quero ser
reconhecida.
As portas se abrem no último andar, o
mesmo que comporta a sala de reuniões e o
escritório do presidente. É escuro, um pouco
sombrio e deprimente. Mesmo com as enormes
janelas e a extensa parede de vidro livres das
cortinas escuras.
Tem um cheio de lavanda, café e perfume
masculino no ambiente. Encontro Vladimir atrás de
sua mesa, escrevendo no computador e
conversando com alguém no telefone ao mesmo
tempo. Assim que me vê, despede-se da pessoa e
sorri.
— Está adiantada — diz levantando. Fecha
um botão do paletó e estende a mão para me
cumprimentar.
— Ansiedade — explico, insegura. Longe
dos irmãos, Vladimir exprime uma postura
diferente, introspectiva e, de alguma forma,
intimidante.
— Pode se sentar, Ivan já sabe que chegou?
— Na verdade, ele não sabe que estou aqui.
— Vladimir estreita os olhos azuis escuros, senta
de frente para mim e aguarda. — Não menti, avisei
que tinha uma entrevista de emprego, mas não disse
o nome da empresa. Claro que ele não ficou feliz,
brigamos e tudo mais, mas confessei o meu receio.
Com a influência no mercado administrativo, Ivan
tem a capacidade de facilitar a minha contratação
em qualquer lugar e quero conquistar um emprego
por mérito. Seu irmão me apoia sempre, mesmo
com o gênio difícil.
— Sou seu cunhado, o que te faz pensar que
eu mesmo não facilitaria a sua contratação?
— Você não é meu cunhado, aqui é o
presidente Vladimir Nicolaievitch Volkiov. Nunca
facilitou a vida profissional dos seus irmãos e não
vai facilitar a minha.
A sombra de um sorriso ecoa no rosto
fechado de Vladimir. Estive estudando as
possibilidades, tenho que seguir com a minha vida.
Agora que tenho um homem que apoia minhas
escolhas, nada melhor do que dar os primeiros
passos.
Ivan está lutando por nossa família, mas não
sei como é a batalha no campo de guerra. Preciso
começar a conquistar territórios por mim, só assim
vou me transformar em uma guerreira melhor.
Mikhail sugou minhas esperanças, meus
objetivos, detonou a autoestima que marcava a
minha personalidade. Ivan me devolveu a
capacidade de sonhar.
— Analisei seu currículo. — Ele abre uma
gaveta, retira três folhas e coloca sobre a mesa. —
Pouca experiência em setores importantes da
empresa Ihascov, nunca teve contato com o
financeiro nem com recursos pessoais. Não
participava de reuniões, não tem o nome envolvido
em investimentos milionários. — Suspira, aponta o
indicador na minha direção. — O que você tem a
oferecer para a minha empresa?
— Bem. — Respiro, o homem é um
destruidor de expectativas, mas recusei outras duas
entrevistas para estar aqui hoje. Enviei meus dados
sem pretensão, a resposta veio clara e técnica,
condizente com o líder da companhia mais
renomada da Rússia. Eu posso. — Você está certo,
não desempenhei um papel influente da empresa da
minha família. Como sabe, não era um emprego
formalizado, muitos dos serviços prestados eu não
tenho como comprovar.
— Então esses documentos não servem para
nada? Afinal, você não tem como provar qualquer
outra habilidade.
— Desculpe, mas documentos não
comprovam habilidades, a não ser a de assinar o
próprio nome. — Seu semblante contrai, nenhum
líder gosta de ser contrariado. — No setor em que
eu trabalhava, havia um projeto de doação
compartilhada. Eu era responsável por administrar
todas as transações, eleger e filtrar os agregados,
repassar os valores. Mesmo não gerando capital,
tenho experiência com os processos e com a rotina
administrativa.
O homem permanece em silêncio,
pensativo, analisando a minha postura. No dia em
que respondeu meu contato, quase desisti, insegura
sobre suas motivações. Mas essa família faz parte
da minha vida desde a infância, conheço o caráter
de cada um, as reações, o senso de ética.
Nada no mundo é mais importante para
Vladimir do que essa empresa.
— Você está movendo um processo judicial
contra o seu pai, por agressão. — Já esperava essa
menção. Vladimir prova que está disposto a me
tratar como qualquer outra pessoa. — Como você
vai separar a sua vida pessoal da profissional? Acha
que pode separar as duas esferas? Está preparada
para assumir uma responsabilidade tão importante?
Engulo em seco. Nem ao menos sei do que
se trata essa vaga tão importante a que se refere.
— Não, não pretendo separar as duas
esferas, isso é impossível. Enquanto estiver
trabalhando, vou pensar na minha família, no meu
filho, no homem que eu amo. Vou rir sozinha
quando lembrar de alguma coisa engraçada que
minha sogra tiver falado na noite anterior. Ficarei
angustiada quando meu melhor amigo chegar
embriagado no meio da noite, pois ele nunca foi de
fazer esse tipo de coisa. Vou enviar advertências
por mensagem para o irmão delinquente do meu
noivo durante o horário de almoço e ficarei
preocupada com um certo cunhado que trabalha
demais. Sou humana, mas competente.
— Com essa resposta você reduz em
cinquenta por cento as chances de ser admitida —
conclui, apoiando o queixo no punho.
Eu sei jogar esse jogo.
— Então eu me candidatei para a vaga
errada, achei que não contratavam pessoas
mentirosas.
— Audaciosa — rotula, testando-me.
Conheço homens de negócios e Mikhail nunca foi
burro. Cretino, crápula, covarde, o demônio
encarnado na terra, mas não burro. Sei como me
comportar nesse mundo, atuar é meu ponto forte.
— Obrigada — respondo cheia de inocência
camuflada.
— Não foi um elogio.
— Eu sei.
— Somos uma empresa séria, nossos
funcionários são selecionados minuciosamente, não
vai ser fácil. Você tem certeza de que consegue? —
O celular dele apita, seus olhos correm sobre o
aparelho e ele escreve qualquer coisa antes de
voltar a atenção para mim.
— Está me contratando? — pergunto
chocada. — Rápido assim? Me enganei com você,
está agindo sob influência do nosso parentesco.
— Não. — Vladimir sorri, ele deveria fazer
isso mais vezes. — Você estava certa quando disse
que eu não faria isso. Essa posição requer
fidelidade e esteve vaga por sete anos. Assistência
pessoal é um trabalho minucioso.
— Posso fazer isso — digo. — Assessorar
uma pessoa não é um desafio perto de tudo o que
consigo fazer.
— Uma pessoa, não. Quatro. Você vai ser a
assistente pessoal dos quatro líderes da empresa
Volkiov.
— Merda — sussurro. Ele ergue a
sobrancelha. — Quer dizer, claro. Eu consigo. —
Merda, merda, merda. — Você disse que essa vaga
está vazia há sete anos, quem ocupava antes disso?
— Tatiana Pavlovna Volkiova. Na época,
Andrei ainda não tinha ocupado seu lugar na
empresa, mas Nicolai ainda era vivo. Quatro
pessoas, da mesma forma — explica.
— Ela é mesmo incrível. — Sorrio.
— Sim. — Completa, orgulhoso. Perdeu a
postura profissional e mecânica. Lembra mais o
homem de família que divide a mesa de jantar
algumas vezes quando o trabalho abranda.
— Obrigada, Vladimir — digo
informalmente, emocionada e extremamente feliz
por ter algo com o que me ocupar. Um emprego no
qual poderei crescer. — Não vou decepcionar.
— É bom ter a velha Lara de volta — fala.
— Tenho escutado muito isso — brinco.
— Porque é verdade. — Ele recolhe os
papéis e guarda-os na gaveta. O maxilar quadrado
torna sua estrutura facial imensamente robusta, mas
com o sorriso ele me faz lembrar de um aristocrata
de olhos azuis muito charmoso. — Vou encaminhar
a sua contratação para o setor de recursos humanos.
Mas, antes de ir, queria conversar sobre outro
assunto.
— Claro — concordo desconfiada.
Vladimir não é muito de puxar conversa.
— Não tem relação com a empresa, quero
deixar bem claro. Mas você disse que trabalhava
em um projeto de doação coletivo. Foi você quem
fundou o sistema?
— Não — explico, estranhando seu
interesse. — Já existia, aos poucos Mikhail me
passou a responsabilidade. Antes minha irmã quem
administrava tudo.
— Entendo. — Balança a cabeça, como se
um enigma tivesse se desvendado. O celular dele
volta a vibrar. — Bom, acho que encerramos por
hoje. Tenho um compromisso importante agora,
fora da empresa. Antes que eu me esqueça, por
favor, não deixe de passar no escritório do meu
irmão. Acho que ele está a ponto de invadir essa
sala.
— Você contou! — acuso.
— Jamais, apenas aquele descontrolado que
não conhece limites de privacidade. Acha mesmo
que ele não ia investigar a precedência das
empresas que te contataram? Recebi cinco ameaças
dele só no período da manhã.
— Mas você não…
— Não, Lara. Acredite, não te contratei por
causa dele. Esse cargo, de alguma forma, precisa de
uma pessoa com um diferencial, algo que você
possui muito mais do que eu. Mais do que os meus
irmãos, na verdade.
— Feminilidade? — brinco.
— Humanidade.
Perco a conta de quantas vezes agradeço
meu cunhado. Pela primeira vez, vou trabalhar em
um lugar sem o medo de ser demitida por causa da
influência de Mikhail. Um emprego, essa é a minha
conquista. Quero me tornar alguém por quem meu
filho sinta orgulho, não somente uma mulher
maltratada e humilhada pela vida.
Tatiana uma vez olhou nos meus olhos e
disse que sou forte. Eu sou!
Utilizo o elevador para descer até o andar
dos irmãos — deve existir um nome formal para o
setor, mas só os quatro frequentam os escritórios do
penúltimo nível e nomeá-lo dessa forma parece
hilário. As portas começam a se abrir e Ivan está
parado diante de mim com os braços cruzados e
uma feição preocupada.
Meu noivo é bonito demais, como eu vou
trabalhar com esse homem me dando ordens e
sorrindo o tempo todo? Graças a Deus nenhuma
mulher parou nesse serviço.
— Você sabia — reclamo. Corro para os
seus braços, a gente não sabe brigar, mas isso não é
novidade.
— Desculpe, queria garantir a sua
segurança sem me intrometer. Como foi?
Contratada ou eu preciso ter uma conversa com o
meu irmão?
— Contratada! — comemoro. Passo os
braços por cima da sua cabeça, procuro seus lábios.
Nossa primeira vez na praia foi o princípio
de uma atração mais intensa do que antes. Não
ficamos nenhuma noite longe um do outro,
descobrimos as possibilidades de saciar nossos
desejos, de redescobrir um sexo muito mais bonito
e profundo. O simples contato da nossa pele, sua
mão percorrendo meu corpo, faz minha respiração
oscilar.
Esse homem é gostoso demais, o terno com
a gravata não ajuda muito na contenção da minha
mente criativa.
— Esse vestido está absurdamente
provocante — sussurra no meu ouvido. Não
reconheço se é um elogio ou uma reclamação,
sobretudo quando começa a deslizar a mão ao
longo da minha lombar.
— Contratada? — Roman surge, o sorriso
gatuno entrega sua interrupção proposital. Ivan se
desvencilha, segurando-me pela cintura.
— Sim! — informo. — Começo na
segunda, daqui quatro dias.
— Parabéns, cunhada, vai facilitar muito a
minha vida. Fica difícil trabalhar com tanto macho
ao redor, esse cheio de homem acaba com o meu
apetite sexual.
Está para nascer pessoa mais descarada do
que Roman.
— Espero que não esteja insinuando que o
cheiro da minha mulher contribui para o seu apetite
sexual — Ivan diz calmamente.
Roman abre a boca para responder, mas
volta a fechar, ergue o dedo e reflete. Nega com a
cabeça antes de se redimir:
— Retiro o que eu disse, vamos fingir que
nunca aconteceu. Soou bem errado dessa vez. Mas
só dessa vez, não fiquem empolgadinhos.
Eu rio da falta de limites dessa família. No
fundo, todos eles têm um pouco da ausência de tato
da mãe. Andrei também sai da sua toca para me
parabenizar. O cabelo voltou a se encher de cachos,
se parece mais com o menino vulnerável que me
arrastava para festas na adolescência.
Ciente da quantidade absurda de serviços
que precisam resolver, vou embora para me
organizar. Ivan nunca se despede de mim sem uma
lista extensa de recomendações, ele se preocupa
demais. Anda trabalhando até mais tarde, sempre se
esquiva dos meus questionamentos. Está
preocupado com a adoção, perturbado com seu
ódio crescente por Mikhail e culpado pela partida
de Tasha.
Mesmo assim, gostaria que me contasse
mais. Que compartilhasse o peso comigo ao invés
de agir como se alguém estivesse atrás de mim
vinte e quatro horas do dia.
Deixo o prédio e caminho pelo centro
movimentado, tenho que almoçar, o nervosismo me
impediu de consumir qualquer alimento. Dez
minutos depois, encontro um restaurante turístico.
Apesar de não ser do meu feitio comer em lugares
caros, não tenho muitas opções por perto que fujam
desse padrão.
Sento em uma mesa redonda, um garçom
anota meu pedido e traz um suco enquanto aguardo
o preparo. Observo as pessoas, turistas em sua
maioria. Conversam em línguas exóticas e tiram
fotografias dos pratos requintados para postar em
suas redes sociais. O rodízio de pessoas é constante
e me pego pensando que tipos de atrocidades cada
uma pode ter experimentado ao longo da vida.
Se, assim como eu, a mulher comendo
sozinha no balcão já precisou trancar a porta do
quarto antes de dormir com medo de acordar com
gritos e socos. Ou se o casal à minha direita
também passou anos de suas vidas amando um ao
outro em silêncio antes de finalmente se entregaram
ao amor.
A Terra está girando mesmo, sem descanso.
Mikhail também ganhou destaque no noticiário
local. Perdeu dois investidores, um na Itália e outro
no Brasil, os maiores. É assim que funciona o
mundo dos negócios, você precisa da aparência
para garantir que a massa fique do seu lado.
O valor comercial da empresa despencou,
ele deve estar incontrolável. Preocupo-me com a
minha mãe, nunca mais tivemos contato. Tento não
me responsabilizar, apagar da minha mente a culpa
por ter deixado ela sozinha com aquele homem,
mas não consigo. É minha mãe, e está sozinha.
Apesar de tudo, aprendi muito com essa
situação. Por anos, Mikhail tentou desbancar a
família Volkiov, se tornar o número um, e bastaram
dois contratos anulados para seu império ruir.
Com a ajuda de Andrei, denunciei aquele
homem que por anos chamei de pai. Não por mim,
na verdade. Nunca desejei vingança ou que essa
acusação me ajudasse a ficar livre de tudo o que ele
me fez sofrer. Eu só quero esquecer tudo o que
passou.
Contudo, a adoção de Iago depende da
minha contribuição.
É claro que Mikhail está por trás, não
enxergo nenhuma outra explicação. Dona Tânia
não apareceu no orfanato desde a adoção de Tasha,
então as descobertas têm nos alcançado de maneira
lenta.
Ainda há tantos problemas, tantos.
Sou tirada dos devaneios por um indivíduo
sentando ao meu lado. Prendo a respiração quando
vejo aqueles olhos verdes emoldurados por olheiras
profundas.
Medo, foi assim que descrevi a sensação da
primeira vez.
— Saia da minha mesa, Dimitrio — peço
com os dentes cerrados.
— Temos que conversar — diz.
A barba escura se distribui sem cuidado por
quase todo o seu rosto, o cabelo também cresceu.
— Eu mesma saio, nesse caso. — Levanto e
seus dedos envolvem meu pulso.
— Iago — diz, disparando um alarme no
meu coração. Uma simples palavra, um nome que
nos lábios errados se transforma em ameaça. Não,
isso não vai se repetir. — Serei breve.
Não me sento, continuo parada com os
olhos fixos nos dele. Já experimentei as sensações
mais terríveis, deixei que o flagelo atingisse meu
corpo e a minha alma, mas Mikhail nunca me
provocou esse sentimento.
Medo, medo no sentido mais bruto. Por
quê?
— O que você quer?
Ele me solta, retira um envelope amassado
de dentro do casaco e espalha o conteúdo na
superfície circular da mesa. Não presto atenção,
estou farta de tanto veneno.
— Quero te salvar.
— Não vou mais aturar seus jogos,
Dimitrio. Mikhail não tem mais poder sobre mim, e
muito menos você.
— Tem certeza disso? — desdenha,
dedilhando os papéis. — Sabe o que é isso?
Documentos que comprovam como seu noivo tem
agido pelas suas costas. Ou você acredita que
Mikhail seria tão imprudente a ponto de perder seus
melhores investidores? Ivan está por trás.
— Ótimo — digo, disfarçando a minha
surpresa. — Mesmo que seja verdade, isso só me
faria amá-lo ainda mais.
— Bom, nesse caso, você deveria saber que
em breve estará atrás das grades e que seu
grande amor será o responsável. Ivan está movendo
um processo de adoção sem você, isso não te deixa
chateada?
— Prisão? — Altero o volume da voz,
algumas pessoas nos olham com curiosidade. —
Você é louco. Não tem ideia do que está dizendo.
Sei muito bem que a adoção está no nome dele,
consenti com isso.
— Por livre e espontânea vontade —
confirma. — Ele está manipulando você, mas por
culpa dele e do advogado, seu nome chegou aos
ouvidos da polícia. É questão de tempo até que
descubram seus crimes.
Minha cabeça começa a girar, sinto que vou
cair a qualquer momento. O caminho até a saída é
curto e, mesmo assim, continuo com os pés fixos
no lugar, farta de fugir.
— Crimes? O criminoso aqui é você.
— É por isso que somos perfeitos juntos.
Por que não confessa o que fazia na empresa do seu
pai?
— Não tenho nada para confessar. — Meus
dentes rangem. — E Mikhail não é meu pai de
verdade.
— Confesse que você é a responsável pelo
projeto de doação compartilhada, o projeto Anjos
da Guarda da empresa Ihascov. Confesse! — grita,
bate a mão da mesa, levantando-se. Um cochicho
se espalha pelas mesas e muitas pessoas nos olham
com reprovação. — Ivan traiu você, quer te colocar
atrás das grades, ficar com o menino para ele. O
que você quer com aquela criança? Quer realmente
ser a mãe dele? Ao menos o ama de verdade? Diga,
quanto vale uma criança daquelas?
— Por que está fazendo isso comigo? —
sussurro. Arrumo a bolsa sobre o ombro para ir
embora.
— Lembra quando eu disse que roubaria a
sua felicidade? — questiona desesperado. Não
encontro a mesma determinação de quando me
acuou na casa de Mikhail. — É isso o que estou
fazendo. Se essas provas não são o suficiente para
te convencer, então você é mais idiota do que
imaginei. Eu posso salvar você.
— Ivan não agiria pelas minhas costas! —
protesto. Foi um erro dar ouvidos para esse homem.
— Ele já agiu, Lara querida. Eu avisei que
ele te deixaria no momento de maior precisão,
avisei que eu estaria esperando de braços abertos.
Bem, ele mentiu para você, escondeu a verdade,
tirou a sua chance de defesa. Eu estou aqui, ele não.
— É aí que você se engana — diz Ivan,
chegando atrás de nós com as mãos nos bolsos do
paletó preto, desabotoado e a camisa branca visível
por baixo.
— O que está fazendo aqui? — Dimitrio
retruca. O tom que utiliza soa grave e irritadiço.
— O que você acha? Vim buscar a minha
mulher.
CAPÍTULO 33
Um Erro

POR UM MÊS inteiro, minhas atenções estiveram


voltadas para a pessoa errada. A desconfiança de
que Mikhail era o responsável pelos infortúnios no
processo de Iago caíram por terra quando Tatiana
me confessou sobre a visita que havia feito a ele na
empresa.
Aquele homem não se arriscaria, afinal uma
ameaça da viúva de Nicolai Volkiov não deve ser
ignorada nem mesmo pelos grandes nomes do
mercado financeiro do país, e Mikhail sabe disso.
Planejávamos para Iago sobre a adoção,
mas tudo aconteceu ao mesmo tempo e acabamos
adiando mais uma vez. Tasha se foi, aquela
pequena miniatura de fada com alma de dragão.
Perder essa criança reviveu em mim a criatura
invisível do padecimento, todas as angústias,
dúvidas e mortificação intimidaram uma pequena
parte do meu coração.
É por Lara e Iago que mantenho o controle.
Com a ajuda de Andrei, o processo de Lara
contra o pai — é assim que a legislação reconhece
a relação dos dois — foi admitido. Embora o caso
não corra em sigilo, os veículos de comunicação
ainda não tomaram conhecimento, mas é questão
de tempo até que a verdade ganhe destaque na
mídia. O problema é que, junto com a denúncia,
meu irmão descobriu a existência de uma
investigação em andamento contra a empresa
Ihascov, uma ação que envolve Lara, exatamente
como havíamos previsto.
No meio dos contribuintes, encontramos o
nome de Dimitrio.
— Solte o braço dela, agora — ordeno,
medindo a ferocidade da voz.
— Você a seguiu? — questiona
pateticamente. Liberta Lara do seu toque e coloca a
mão livre no bolso.
— Sim — confesso sem delongas. Abro os
braços para que Lara venha até mim, mas ela não se
move. — Tenho feito isso desde que descobri
quem, na verdade, estava interferindo na adoção de
Iago.
— Então você descobriu. — Dimitrio sorri,
expondo o deboche em suas feições. — Ótimo,
pode se juntar a nós.
— Do que ele está falando, Ivan? — Lara
pergunta, olha de mim para Dimitrio, sem reação e
confusa.
— Vamos conversar em casa — digo para
ela, que ainda não veio para os meus braços. Sinto
como se meu coração fosse sair pela boca a
qualquer momento. — Eu vou explicar tudo.
— Sim, explica para ela que vocês não
conseguiram adotar o menino por causa dos crimes
que ela cometeu — provoca, descontrolado e
patético, sua aparência ainda mais deprimente.
Olho ao redor, estamos em um restaurante
perto da empresa. Se não tivesse contratado
seguranças para acompanharem os passos de Lara,
por sua própria segurança, eu jamais saberia sobre
o encontro dos dois.
Foi a coisa certa. Ela vai entender, precisa
entender. Eu não suportaria se…
— Você está equivocado, Dimitrio, estão
investigando a pessoa errada — explico, mas meus
olhos estão fixos em Lara e sua estática. Meu irmão
estava certo sobre garantir que o primeiro contato
de Lara com essa informação fosse inesperado, mas
dói como o inferno sua recusa.
— Alguém pode me explicar de quem estão
falando? — Lara finalmente se distancia da mesa,
caminha para longe de Dimitrio, mas tampouco se
aproxima de mim.
— Da polícia — digo. Olho ao redor
buscando por rostos que entreguem seus disfarces.
— Quantos deles estão aqui? Cinco? Dez? Ou você
tem agido sozinho esse tempo todo?
— Então você sabe mais do que eu
imaginava. Quem diria? O depressivo Ivan Volkiov
finalmente superou o passado e seguiu em frente. É
um insulto que tenha cogitado se casar com
Petrova, você mancha a memória dela!
— É isso o que você busca, Dimitrio?
Vingança? — Rio da decadência de suas ações. —
E você ousa dizer que eu mancho a memória de
Petrova? Olha para você, no que se
transformou. Você é uma mancha, escura e
sombria. O que Petrova pensaria se estivesse viva?
O semblante dele vacila, os lábios se
contraem. Algumas vezes somos pegos por esse
tipo de armadilha. A gente acredita que nossos
erros se justificam pela busca de um suposto ideal
correto, mas um erro continua sendo um erro
independente das motivações que nos guiam.
— Quero ir embora — Lara pede,
vasculhando o restaurante como se também
procurasse por algo. — Não tenho ideia do que está
acontecendo. — Ela volta sua atenção para
Dimitrio, analisa o homem por um instante
silencioso. — Você realmente amava minha irmã
— diz.
Ele recua como se tivesse sido golpeado.
— Petrova era tudo que importava e você a
tirou de mim — acusa. Dou um passo adiante,
disposto a iniciar um confronto físico, mas Lara
ergue a mão.
Seu olhar faz meus olhos marejarem. Há
decepção neles, mágoa também.
— Não vou me defender — diz com a voz
trêmula, olhando para o homem que diz ter amado
Petrova mais do que eu amei, e não duvido nem um
pouco. — Você está certo, Dimitrio, se não fosse
por minha causa ela nunca teria sofrido aquele
acidente. Pode me culpar o quanto quiser, eu
mesma faço isso todos os dias. Mas eu amava a
minha irmã, ela merecia ser feliz e posso ver que
você teria feito de tudo para garantir a felicidade
dela. Ivan me salvou das agressões de Mikhail e
você poderia ter salvado Petrova.
— Do que você está falando? — questiona.
Sua face esmorece com o sangue se esvaindo.
— Não, ele nunca encostou um único dedo
nela, se é o que está pensando. — Lara sorri, mas o
sorriso não alcança os olhos. Ela parece esgotada.
— Mas a vida da minha irmã era regrada. Cada
passo que ela dava precisava da aprovação daquele
homem. O documento que vocês assinaram deve
ter sido a primeira escolha que ela fez por conta
própria.
— Vamos, Lara — chamo outra vez,
ansioso para me justificar. Estico a mão e Lara fixa
seus olhos em meus dedos. — Vem, meu amor —
imploro. — Andrei está à nossa espera.
— Ela era tudo para mim — resmunga
Dimitrio novamente, sentando-se na cadeira alta.
— Antes de Ivan chegar, eu estava me
perguntando o que causa tanto medo quando olho
para você. — Continua minha mulher. Há uma
força crescente dentro dela, um brilho que retorna e
se expande. Lara não precisa ser defendida, mas
que eu confie nela, acredite que é capaz de lidar
com a verdade.
— Medo? — Dimitrio franze o cenho,
visualizando um ponto cego do chão. Deve estar
com escutas no corpo, isso me apavora e tranquiliza
ao mesmo tempo. Ainda bem que tenho meus
irmãos, só com a ajuda deles Lara vai ser capaz de
entender tudo. — Medo é um termo medíocre perto
do que você deveria sentir perto de mim.
— Mas agora eu enxergo a verdade — diz
ela sem se importar com a ameaça velada; eu
registro as palavras em seu lugar. — Não é de você
que eu tenho medo, não diretamente. Esse rancor
que está te destruindo de dentro para fora já esteve
dentro de mim, dentro de Ivan. Ele é destrutivo, faz
a gente querer coisas que causam sofrimento.
Tenho medo, sim, pois você é exatamente aquilo
que nós poderíamos ser nesse exato momento. E é
triste, Dimitrio, muito triste.
— Vamos — murmuro, arrastando meus
pés até ela devagar, aterrorizado com a
possibilidade de que recuse meu toque. — Eu vou
explicar tudo, meu amor. Você vai entender o que
está acontecendo, só vem comigo, por favor.
Uma parte de mim agradece quando ela
estende a mão e se aconchega em meu corpo. Lara
inspira profundamente, pressionando meus ombros
com as unhas, mas os braços trêmulos estrangulam
o meu coração. A lágrima solitária que mancha seu
rosto com uma trilha úmida faz a outra parte de
mim se perder em profunda tristeza.
É como se estivesse se quebrando outra vez.
Ela encosta a cabeça no meu peito, envolvo
seus ombros e seguimos para o carro estacionado
na frente do restaurante.
— Me perdoa — murmuro com a boca
encostada na lateral da sua cabeça.
— Sabe o que é pior nessa história toda? —
pergunta quando nos acomodamos no banco de
trás. — Eu amo você com tanta intensidade que não
consigo entender por que mentiu para mim. Não
consigo acreditar que teve coragem.
— Não foi isso — explico, chegando mais
perto dela enquanto o carro atravessa as ruas
centrais na maior velocidade possível. O motorista
da empresa já tem orientações sobre o nosso
destino. — Só queria manter você segura.
Lara vira o rosto para me encarar. Seus
cabelos curtos estão grudados na região em que
suas lágrimas descem e a ponta do nariz se encontra
vermelha, assim como os olhos.
— Confio em você. — Chora, fecha as duas
mãos sobre o coração e soluça, caindo em meus
braços. — Estou triste, confusa, irritada, surpresa…
— Funga. — Mesmo assim, acredito que vai me
explicar o que está acontecendo. Por favor, me diga
que devo confiar em você.
— Você deve confiar em mim — digo
aliviado e me enchendo desse sentimento que
conseguimos construir apesar das expectativas.
O amor dentro de mim não é linear, ele faz
curvas, se expande em várias direções como a teia
de uma aranha ou as bifurcações de um rio em
movimento. O amor que nutríamos ontem já não é
o mesmo hoje e essa metamorfose é evolutiva,
torna-se mais resistente com o tempo.
Já esperava que esse momento chegaria
cedo ou tarde. Esconder sobre a investigação foi a
parte mais difícil, e rogo para que Lara entenda.
— Eu vou ser presa?
— Não — respondo um tanto surpreso com
o questionamento repentino.
— É minha culpa que Iago ainda não seja
nosso? — Ela aperta o tecido da minha camisa.
— Em partes. — Não vai ser fácil. — Você
está envolvida em uma investigação contra a
empresa de Mikhail, por causa disso a tutela
provisória foi negada. Quando entrei com o pedido
no meu nome, a polícia interferiu, ciente da nossa
relação. Para evitar que conseguíssemos a guarda
dele, outra pessoa entrou com o pedido também.
— Dimitrio. — Suspira, fecha os olhos e
lamenta, amargurada. — Ele disse que roubaria a
minha felicidade. Todo esse tempo acreditei que
Mikhail estava por trás de tudo, como fui tão cega?
— Ele não vai roubar nada, meu amor.
Assim que chegarmos, meu irmão vai explicar
tudo. Andrei está à frente do caso.
— Confio em você — repete e o silêncio
que impera por todo o caminho até chegarmos em
casa me faz imaginar se essas palavras foram para
mim ou para convencer a si mesma.
Os portões já estão abertos quando o carro
se aproxima da mansão. Os veículos de Andrei e
Roman foram estacionados sem sincronia no meio
do jardim. Assim que o segurança particular que
contratei para seguir Lara me ligou, iniciamos uma
pequena operação para retardar a investigação de
Dimitrio. Eles ficaram tão desesperados quanto eu.
A falta de questionamentos me deixa
inseguro. Pergunto internamente quais pensamentos
estão ocupando a mente de Lara, se a sua confiança
tem um limite. Além disso, não escutei que tipo de
venenos Dimitrio estava destilando nos seus
ouvidos.
Na entrada da casa, encontramos minha mãe
parada no alto da escada com um vestido longo,
cheio de pérolas. A vestimenta não condiz com o
clima tenso nem com o sol marcante da tarde. Ela
cintila em vários pontos, como um contraditório
céu diurno recheado com estrelas. Tatiana é assim,
não importa o evento, está sempre preparada para
se destacar.
Desde que explicamos as complicações no
processo de Iago, seu humor alcançou escalas
impossíveis de conviver em harmonia.
— Vou ficar o suficiente para entender o
que está acontecendo com o meu neto — informa,
ácida e direta. Seus dedos dedilham o antebraço,
ela não se conforma. Nem posso julgá-la, pois
também não aceito que ele esteja sozinho naquele
lugar.
— Vamos entrar, nós vamos explicar tudo.
Meus dois irmãos nos recebem na sala
principal, mas preferimos conversar na biblioteca
da casa, longe do incômodo dos funcionários e
ouvidos alheios. O cômodo raramente é usado, mas
conserva a decoração rústica que meu pai venerava.
Andrei senta na poltrona perto da janela, um móvel
pesado bastante brega se comparado com o restante
da mobília, enquanto nós nos espalhamos sobre um
sofá e cadeiras com designer vintage.
Lara procura a minha mão, talvez o choque
do encontro com Dimitrio e as revelações rasas
ainda não tenham sido processadas na sua mente.
— Vamos logo com isso, esse suspense vai
me matar! — Tatiana reclama, a única de pé.
— Não tem como falar de uma maneira
fácil — diz Andrei, passando os dedos sobre os
olhos cansados. — Lara, você está sendo
investigada como líder de uma quadrilha de adoção
clandestina.
— Depois o indelicado sou eu — Roman
comenta. Não considera a gravidade da situação,
mas sua falta de tato suprime o silêncio.
— Descobrimos há algum tempo — digo.
Ela tenta soltar a minha mão, mas não permito. Isso
não vai nos afastar, não aceito. — Só escuta, por
favor.
— Não foi culpa dele, Lara. Eu sou o
advogado aqui, dei as orientações sobre como
proceder. Nos últimos trinta dias, fizemos todo o
tipo de investigação para entender o caso do meu
sobrinho, mas o problema era bem maior do que a
gente imaginava.
De todas as provas de amor que a minha
família já me deu, acolher Iago sem nem ao menos
conhecê-lo foi a maior delas. Andrei sempre foi o
mais sonhador de nós quatro, o único que almeja
uma grande família com muitos filhos, e agora,
enquanto toma a frente da situação com a voz firme
e uma calma compenetrada, concluo que será um
pai excepcional algum dia.
— Deixa eu explicar, vocês não têm
talento! — Roman pede a palavra. Minha mãe
quase comemora enquanto anda de um lado para o
outro. — Existe um projeto de doação coletiva na
empresa do filho da puta. As pessoas doam, o
dinheiro é repassado para instituições. Mas esse
dinheiro volta em forma de lucro, o que você
obviamente não sabia.
— Claro que não, não é assim que funciona.
Eu mesma repassava os valores, não existia lucro
nenhum — protesta, indignada, ingênua.
— Cunhadinha do meu coração, esse é o
problema. Você repassava os valores, sim. Seu
nome está em cada porcaria de documento
relacionado com esse esquema. Armaram para
você. Esse dinheiro, na verdade, vinha de
transações envolvendo adoção ilícita em orfanatos
pela cidade.
— Tráfico de crianças? — murmura Lara.
A palma da sua mão esfria, os lábios abrem e
fecham sem palavras. O pior ainda está por vir.
— Não temos acesso à essa informação
ainda, não sabemos o que acontece com elas —
exponho. Oculto intencionalmente as minhas
suspeitas, mas todo o tipo de coisa ruim pode estar
por trás do destino dessas crianças.
— É por isso que o pedido de guarda
provisória foi negado, seu nome está conectado
com a investigação — Roman toma a palavra outra
vez. Ser sucinto é sua melhor qualidade. — O
caçula descobriu tudo.
— Alguém pode chegar logo na parte em
que explicam por que caralhos Ivan não conseguiu
trazer meu neto para casa depois de fazerem o
pedido somente no nome dele?
— Isso não está funcionando — Andrei
reclama, ficando de pé. — Mikhail é um criminoso
que vende crianças, por isso a empresa dele cresceu
tanto nos últimos anos. Ele te usou, Lara, te
colocou à frente do projeto com a intenção de a
culpa recair sobre você. Por isso fazia questão de
atrapalhar todas as suas chances de permanecer em
outro emprego, um esquema desse porte chamaria
atenção em algum momento e Mikhail sabia disso.
Nós, que somos simples civis, conseguimos
perceber uma inconsistência financeira no projeto.
— A gente descobriu por acaso — diz
Roman. — Mas não foi difícil, acho que Mikhail
relaxou com o tempo de impunidade.
— Mas a gente não contava que a polícia já
estivesse ciente do caso. Pretendíamos coletar
provas contra ele, dar entrada em uma denúncia —
esclareço. Curvo o rosto para ver sua expressão,
pois ela permanece a cabeça baixa enquanto escuta.
— Quando entramos com o primeiro pedido, isso
chamou a atenção dos investigadores. Devem ter
suspeitado da adoção, imaginado que Iago talvez
estivesse em perigo.
— Logo em seguida, você fez a denúncia
contra Mikhail ao mesmo tempo que Ivan entrou
com outro pedido de adoção no nome dele. Era
questão de tempo até a polícia interferir. — Andrei
passa os dedos no emaranhado de cachos
bagunçados em sua cabeça e dobra as mangas da
camisa marrom na altura dos cotovelos. —
Dimitrio é um delator, ele está envolvido com as
investigações em troca de perdão judicial por causa
de alguns crimes financeiros que ele cometeu.
Como advogado, Lara, orientei Ivan e meus irmãos
a não contarem nada para você, pois a sua reação
no primeiro contato com o caso precisava ser
autêntica.
— Dimitrio vai conseguir tirar Iago de
mim? — Lara pergunta para o meu irmão, seus
olhos desaguando em lágrimas. O amor por nosso
filho é tão grande que ela não se importa com os
riscos que a perseguem, Iago é a prioridade.
— Nem por cima do meu cadáver! —
Tatiana esbraveja, o cabelo vermelho desprende do
penteado e cai em ondas sobre seus ombros. — Eu
criei quatro homens, não quatro tartarugas. Não
sabem nem usar o nome que o pai de vocês deixou
antes de morrer! Nem sempre a ética é o único
caminho. Se o seu inimigo está roubando no
carteado, vocês precisam aprender a roubar
também.
— Eu concordo — Roman ergue a mão e
minha mãe dá um tapa na sua cabeça.
— Nosso sobrenome é a nossa única carta,
mãe. Em caso de irmos à júri, a integridade dos
Volkiov vai ser necessária. Se entrarmos no jogo
deles, podemos perder tudo. Imagine o escândalo?
Imagine como seria se suspeitassem de nós? Afinal,
Lara e Ivan assumiram um noivado.
— Obrigado, Andrei — pronuncio; como
sempre o irmão mais novo é o único a ter alguma
sensatez na mente. Lara permanece atônita e
balança a cabeça minimamente como se
concordasse. — É por isso que não contamos nada,
entende? Coloquei um segurança para seguir você,
desculpe por isso. Era a única forma de sermos
informados assim que algum deles se aproximasse.
Foi assim que cheguei tão rápido ao restaurante.
— Vocês não podem deixar Iago naquele
orfanato.
Lara abraça o próprio corpo. Preocupo-me
com a sua saúde, talvez ela comece a hiperventilar
como da outra vez. Retiro seus cabelos do rosto e
afago as suas costas. Ela mantém a feição ilegível e
aos poucos minha tensão aumenta.
— Já cuidamos disso, Lara — digo para
acalmá-la. — Está tudo encaminhado. Meu nome
não está envolvido, não podem mais retardar o meu
pedido. Svetlana é uma advogada influente nesse
tipo de caso, já descobriu que o meu pedido tem
prioridade se comparado ao de Dimitrio. Vai dar
tudo certo — sussurro em seu ouvido.
Mas ela solta uma gargalhada de escárnio,
revira os olhos.
— Estou muito mais tranquila agora. Eu
acho que… não estou me sentido bem, preciso ver
o nosso filho. — Lara puxa o ar, coloca a mão
sobre o peito.
— Você não almoçou, está tensa, é melhor
se deitar — sugiro. — Agora que Dimitrio entrou
em contato, vamos entrar com outra acusação
contra Mikhail. Vamos transformar você em
testemunha ao invés de suspeita. Temos que
combater a investigação com outra investigação,
dessa vez com o culpado correto.
— Dimitrio tem certeza de que sou culpada
— lamenta. Abraço seu corpo sôfrego, odeio o
universo nesse momento por causar tanto
sofrimento à mulher que amo.
— Dimitrio está cego pelo ódio, ele não tem
nada além de especulações — clarifica Andrei. Ele
se abaixa na frente de Lara, segura o rosto dela e
sorri. Faz o que eu não tenho psicológico para
fazer: finge. — Vai dar tudo certo. Talvez você
receba uma intimação ainda hoje, mas temos tudo
preparado para te proteger. Você e Iago.
— Eu preciso de um momento — Lara
pede. Apoia a mão no meu ombro para ficar de pé,
olhando-nos longamente, um de cada vez. — Eu…
— O celular dela começa a tocar, interrompendo
sua fala. Ela enfia a mão na bolsa, apenas passa os
olhos sobre a tela antes de recusar a ligação. — Só
preciso de um momento, não estou mesmo me
sentindo bem. Preciso processar… tudo isso.
— Claro, meu anjo. Vá se deitar um pouco
— diz minha mãe. — Está pálida, vou mandar
prepararem uma sopa para você. Não se preocupe,
nem em mil anos um neto meu vai ser tirado de
nós.
— Promete, Tatiana? — indaga Lara. Ela
venera minha mãe, a força que move essa família.
— Promete que Iago vai fazer parte da sua família?
— Ele já faz! — As duas se abraçam, em
seguida meus irmãos fazem o mesmo. Levanto-me
para acompanhar Lara até o quarto, mas ela
impede, colocando a mão no meu peito.
— Me dê alguns minutos, Ivan. Preciso
pensar um pouco, processar tudo.
— Estamos bem? — pergunto,
amedrontado com a possibilidade de ela desistir
agora.
Lara abre a boca, transformando as palavras
em um sorriso. Seus olhos amendoados me
veneram, transmitindo e refletindo o amor que
sentimos. Ela é vários centímetros mais baixa, mas
com os saltos nem precisa se esticar para passar os
braços sobre meus ombros e selar nossos lábios em
um beijo cheio de emoções.
— Estamos ótimos — diz com a testa
apoiada na minha, os olhos fechados e o volume da
voz muito baixo. — Confio em você, confio
demais. Eu te amo.
— Daqui a pouco eu subo. — Beijo sua
testa, ela se vira e sai para o corredor.
Jogo-me no sofá assim que o som dos
passos dela desaparece. Porcaria de bola de neve
que só cresce, cada hora é um novo problema. O
último mês foi o melhor da minha vida, com Lara
ao meu lado e nossos planos sobre o futuro. Ela se
entregou para mim todas as noites depois da
viagem à praia, nos completamos, nos exploramos,
e nos conhecemos de formas diferentes.
Vamos sobreviver às turbulências, isso vai
passar.
— Onde está Vladimir? Por que não veio
com vocês? — nossa mãe interroga. Senta ao meu
lado e me puxa para um abraço acolhedor. Dois
segundos depois, levanta outra vez; com ela não
existe essa história de passar a mão na cabeça.
— Ele disse que ia até o orfanato. Vladimir
está coletando algumas evidências. Gravou a
entrevista de Lara, o relato dela sobre como acabou
envolvida com o tal projeto de doações — responde
Roman.
O telefone sobre a mesa da biblioteca
começa a tocar. É o aparelho residencial, que os
funcionários usam para se comunicar conosco. A
maioria dos cômodos tem um. Eu me levanto e
atendo.
— Sim?
— Senhor Volkiov, temos alguns policiais
no portão. Querem falar com a senhorita Ihascova.
Merda, merda!
— O que aconteceu? — Roman fica de pé,
alerta com a minha expressão de revolta. Já estão
agindo, maldito Dimitrio, maldito Mikhail!
— Policiais no portão, querem falar com a
Lara.
— Não podemos negar, Ivan. No máximo
vão colher o depoimento dela. — Andrei me
tranquiliza.
— Peça que esperem um momento — falo
para o segurança. — Já estamos a caminho.
— Eles querem saber onde está a senhorita
Ihascova — insiste o funcionário.
— Diga que estamos a caminho — repito
impacientemente.
— Mas senhor, a senhorita Ihascova saiu
há uns cinco minutos.
CAPÍTULO 34
Somos Imperfeitos

JÁ PERDI A conta de quantas vezes precisei agir


pelas costas da minha família, uma atitude da qual
não cultivo orgulho algum.
De forma geral, o ser humano é uma
criatura falha, corrompida pelo próprio paradoxo
existencial. Aquele que faz o bem para o próximo é
o mesmo que maquina a perversidade; somos
imperfeitos, nunca bons o suficiente, nunca ruins o
bastante.
Independente da porcentagem de bondade
ou maldade presente em cada pessoa, precisamos
arcar com as consequências das nossas ações, é isso
o que chamam pelo nome de justiça. As pessoas
dizem que sou honrado, mas existe honra em uma
mentira?
Na verdade, sim.
Um líder defende os seus protegidos, não se
importa com as armas que serão empunhadas
durante a batalha. Ele afunda com o navio, mas
nunca deixa a tripulação à deriva como Nicolai fez
conosco.
Coloco os óculos escuros antes de sair do
carro. Não é hora para pensar no meu pai e toda a
merda que decorre da sua morte, a maior
preocupação no momento é Ivan. Ele tenta se
convencer que tem tudo sob controle, mas a
verdade é que seu limite já foi ultrapassado. O
próximo movimento de Mikhail será decisivo para
o desenrolar das atitudes do meu irmão.
Amenizar o impacto, isso é tudo o que o
domínio presidencial me proporciona. O destino é a
gente que faz, não confio que o universo se
responsabilize pelo futuro de Iago.
Um dos seguranças particulares que Tatiana
contratou para vigiar o orfanato está posicionado
em uma janela no prédio frontal, outros se
distribuem entre comércios e transeuntes para não
chamarem tanta atenção.
Relatórios e mais relatórios são depositados
todos os dias na minha mesa e nenhum deles
percebeu as investidas de Dimitrio.
Ninguém notou e eu repugno um serviço
mal executado.
O orfanato ocupa quase todo o quarteirão,
os ornamentos modernos nos muros dividem
espaço com a arquitetura gasta. A gente se
acostuma com os detalhes opressores do nosso
passado, mas os turistas continuam a buscar por
inspiração, redenção e, principalmente, estímulo
pessoal, como se encontrar alento para o próprio
sofrimento no sofrimento do outro amenizasse as
feridas.
Atravesso os portões sem nenhum
problema, as funcionárias que acompanham as
crianças no pátio externo me examinam de longe,
mas não se aproximam ou questionam minha
entrada. O primeiro cômodo após o arco principal
no prédio me leva até uma recepção colorida e
decorada com balões, tudo muito alegre e lúdico.
Nesse cenário, eu me destaco, fora de
contexto com um terno escuro e o peso da minha
presença. De todas as qualidades, ser amável não é
uma característica que me representa.
— Em que posso ajudar? — diz a
recepcionista, sorrindo abobalhada. É uma moça
muito jovem com seus cabelos compridos e olhar
fadigado, masca despreocupada um chiclete.
— Vim buscar Iago Turturov — explico
sem enrolação. Coloco o documento assinado por
dois juízes sobre o balcão e a jovem inclina em
cima do papel. — Em breve Volkiov.
— Vladimir Volkiov? — Ela se agita, lendo
meu nome completo nos papéis. Tira os fios
rebeldes do cabelo da frente do rosto. — A diretora
está sabendo disso?
— Desculpe, não quero parecer rude —
minto, essa é exatamente a intenção —, mas qual a
sua função nesse estabelecimento? Acaso faz parte
das suas obrigações questionar as determinações
jurídicas dos processos de adoção? — desdenho da
sua completa indiscrição.
— Desculpe — enrubesce. — Mas a
diretora não está no momento. O senhor vai
precisar da assinatura dela para levar o menino.
Isso sequer passou por um exame assistencial?
— Isso já foi resolvido. Se olhar
atentamente vai notar que o juiz assinou a
autorização no lugar dela, assim que verificaram
sua ausência contínua nas últimas semanas. E um
dos meus funcionários viu a diretora entrando aqui
há menos de trinta minutos. Olha, não tenho
intenção de confrontar a farsa de vocês, só vou
levar o menino.
— Mas… — Começa, mas é cortada por
uma terceira pessoa, uma senhora sorridente com
ares de avó.
— Deixe que leve o menino — ordena.
Alarga o sorriso e exibe uma dentadura impecável.
— O senhor Volkiov e seus irmãos têm sido muito
generosos conosco, não precisamos nos ater às
burocracias.
— Muito pelo contrário — digo. Essa
conversa é perigosa, estou acostumado com o jogo
das palavras, o mau caráter camuflado em frases
elaboradas. — Estou me atentando às burocracias.
Não existe nada de irregular acontecendo aqui,
minha indicação para tutela do menino foi indicada
por um juiz dentro de um processo legítimo.
— O senhor sabe que seu irmão tem um
processo de adoção em andamento, não sabe? —
pergunta a idosa, presumo que seja a diretora
farsante.
— Sim, a tutela não anula o processo do
meu irmão — explico, paciente e devagar para que
entendam como consegui passar por seu sistema
corrupto. — A única diferença é que estavam todos
tão compenetrados nos movimentos dele que não
perceberam os meus, não puderam impedir que
alguém aprovasse, como fizeram com Ivan.
— Sou a diretora desse orfanato há mais de
dez anos, o senhor está me acusando de algo?
— Não citei nomes. — É tudo o que digo.
— Agora, se me dão licença, preciso buscar meu
tutelado, ou melhor, meu sobrinho.
— Você não tem como saber se Ivan
Volkiov vai realmente conseguir a adoção — diz a
diretora sem o semblante dócil do começo.
— Você não conhece o meu irmão. Por
estar sendo cuidadoso demais, as coisas estão se
movendo lentamente, mas quando ele toma uma
decisão não existe força na terra capaz de impedir.
Deveria me agradecer por levar Iago agora,
enquanto a bomba ainda não estourou.
Sem estender mais esse diálogo infrutífero,
tomo a iniciativa de entrar mais a fundo na
instituição. Com pouco esforço, alcanço outro
pátio, onde mais crianças de idades variadas
brincam; há um belo jardim ao fundo. Pergunto por
Iago à uma funcionária e o modo como arqueia as
sobrancelhas antes de responder comprova minhas
suspeitas.
Mikhail tem todas essas pessoas no bolso.
Na cabeça dos meus irmãos, estou apenas
recolhendo provas que colaborem para a inocência
de Lara, assim como fiz com a gravação da sua
entrevista de emprego. Mas a verdade é que
consegui a tutela provisória de Iago com a ajuda de
Svetlana. Não foi fácil, esse tipo de tutela se
enquadra em uma modalidade dativa, quando a
criança não possui parentes consanguíneos nem
testamentários.
Não suporto que minha família sofra e Iago
é filho de Ivan independente das suas origens. Meu
irmão quer que o processo de adoção fique livre de
contestações, mas nada impede que Iago aguarde os
desdobramentos do seu futuro ao lado da família
que o ama.
As pessoas costumam complicar, negar
outras possibilidades pelo simples fato de não
concordar com elas, mas na minha cabeça prefiro
enxergar o lado simplório de cada situação.
A moça me leva até os dormitórios, aponta
para uma das camas e vai embora às pressas.
Aproximo-me devagar, examinando sua aparência,
encaixando os testemunhos de Ivan com a
fragilidade do seu corpo magro. Vários cadernos se
espalham sobre a cama enquanto ele olha de um
para o outro com a feição contrariada, coça a
cabeça loira e resmunga para si uma reclamação
qualquer.
Acabo rindo, pois costumo fazer a mesma
coisa. Ele ergue a cabeça e me olha desconfiado; as
duas íris azul-esverdeadas percorrem meu trajeto
com esperteza e correm para a saída.
— Não precisa ter medo, vim levar você
para casa.
— Você é um agente secreto? — A linha de
raciocínio dele é interessante. Inclina o pescoço
para me encarar, esquecendo a lição que tanto lhe
afligia.
— Não exatamente. — Abaixo para ficar da
sua altura, retiro os óculos e coloco-o no alto da
cabeça. Iago cruza os braços e eleva o queixo, um
gesto que resgata lembranças da infância, de
quando Roman era somente um menino debochado
que vivia de castigo por arrumar confusão com as
crianças mais velhas. — Mas estou em uma missão
de regate — digo.
— Não sei não. — Continua com a sessão
de análise, os olhos estreitos se assemelham com a
expressão de Andrei quando estaca diante de um
caso complexo de resolver. — E quem é que você
quer resgatar com essa roupa? Acho que não dá
nem pra correr assim não.
Touché. Direto, sem filtro. Essa criança é
uma junção perfeita dos quatro Volkiov, impossível
não compreender como Ivan se vinculou tão rápido.
— James Bond também usava ternos, isso
nunca foi um problema — argumento.
— Mas ele não existe, é só televisão —
alega, depois me consola com palmadinhas no
ombro. Era apenas uma brincadeira, mas Iago
interpretou como uma conversa literal. — Tipo o
coelho da páscoa, sabe? Não existe de verdade. São
atores.
Um grupo de crianças passa correndo na
frente do quarto e Iago revira os olhos como se
reprovasse a agitação.
— Quantos anos você tem, Iago? Não devia
acreditar em coelhos da páscoa e Papai Noel?
— Eu tenho oito anos — diz parecendo
ofendido, coça o queixo. — Só as criancinhas
acreditam nessas coisas.
— E no que você acredita? — questiono,
fascinado com a maturidade do menino diante de
mim.
— Fadas — responde com o tom da voz
mais suave. Não esconde os sentimentos, não tem
medo de demonstrar o que pensa. — E você?
— Eu nunca fui muito de acreditar em
contos de fadas, finais felizes, hoje em dia só
acredito em mim mesmo.
— Finais felizes são legais, mas são ruins
também.
— Por que você acha isso?
— Por que é meio triste, a gente não tem
que ser feliz só no final, seria bem melhor ser feliz
no meio, você não acha?
— Sabe o que eu acho? — Acaricio o seu
rosto, o primeiro herdeiro da nossa família. — Que
o melhor é a gente ser feliz no começo e você vai
ser muito feliz a partir de hoje.
— Eu?
— Sim, Iago. Eu vim para levar você até os
seus pais.
— Eu não tenho pais — responde como se
me achasse um pouco idiota.
— A partir de hoje, você tem. Os nomes
deles são Lara e Ivan, o que acha disso?
Ele solta um gritinho agudo e inspira como
se tivesse levado um susto. Sem responder, os
olhos de Iago inundam com lágrimas mudas.
Talvez o correto seria dar essa notícia com mais
sutileza, mas agora é tarde demais. O que eu
deveria fazer? O que os pais fazem com as crianças
quando elas choram?
Ivan, você está me devendo para o resto da
vida!
— Não precisa chorar. — Toco seu ombro,
mas o fluxo de lágrimas só aumenta, ele tenta
limpar o rosto, prende os sons do choro na garganta
e então eu o puxo para perto.
— Vai mesmo me levar para eles? —
pergunta baixinho, a voz fina e embargada no meu
ouvido.
— Sim, Ivan é meu irmão.
— Então você vai ser o meu… tio?
— Eu sou o seu tio, Iago. É assim que deve
me chamar, pois estou levando você para nossa
família, certo? — Sorrio, mesmo chorando ele
continua a conversar.
— Eu tenho um tio que é agente secreto. —
Soluça, eu rio outra vez.
— Minha mãe vai adorar como a sua cabeça
funciona — murmuro. Fico de pé e ergo Iago junto
comigo. O menino, leve como uma pluma, funga
no meu pescoço.
Sou a pior opção para um momento como
esse, Andrei é o cara do sentimentalismo, não eu.
Consigo no máximo afagar as suas costas. O plano
era simplesmente entrar no orfanato, pegar a
criança e voltar para a casa.
Como eu acabei com um menino chorando
nos meus braços?
— Você vai mesmo me levar para a Lara?
Ela vai ser minha mãe de verdade? — insiste,
inseguro e perdido, erguendo o rosto para me
analisar.
— Sim, Iago. Pode acreditar em mim.
Vamos agora mesmo para casa, assim que você
parar de chorar. Assim que a sua adoção estiver
finalizada, vai ganhar o sobrenome deles.
— Já parei. — Ele prende a respiração,
fecha os olhos, mas a emoção traiçoeira faz seu
peito ter espasmos a cada soluço.
— Vamos. — Deito sua cabeça outra vez no
meu ombro e saio do quarto. Não falo com
ninguém, não requisito nenhum de seus pertences.
Em outro momento, podemos voltar aqui para que
se despeça dos amigos, recolha algum material
escolar, mas agora só precisamos que esteja em
segurança, todo o resto será comprado com o
tempo.
Na recepção, a mesma mulher de antes me
entrega um amontoado de folhas, orientações e
contatos. Assino outros tantos papéis, tudo isso
com Iago nos braços. Ele só me solta quando abro a
porta do carro, já do lado de fora.
— É verdade — sussurra com os olhos
arregalados e úmidos, o choro se foi.
— Vamos encontrar seus pais agora. —
Acomodo Iago no banco de trás, o sol reflete no seu
cabelo amarelo, intensificando a cor. Quando ligo o
carro, olho outra vez para o orfanato e vejo a
diretora parada no meio do pátio com os braços
cruzados.
Dessa forma, ela se parece com qualquer
coisa, menos com uma avó bondosa. É por isso que
nunca confio no julgamento da primeira impressão.
Então, vamos embora.
Agora, mesmo que algo saia do nosso
controle, temos a garantia de que ninguém vai
poder usar Iago contra nós. E Ivan não vai causar
mais problemas do que o esperado.
No caminho, Iago pergunta sobre cada
detalhe da cidade, desde os monumentos históricos
até as rotinas dos turistas. Parece que seu humor e
suas emoções oscilam tanto quanto o esperado de
qualquer Volkiov.
Quando nos aproximamos da mansão,
avisto uma viatura estacionada. Aperto o volante e
me controlo para que Iago não perceba o meu
nervosismo.
— A Lara e o Ivan moram nesse casão? —
Iago solta o cinto de segurança e encosta o rosto no
vidro da janela. Manobro o carro para dentro do
nosso terreno, não sem antes estudar os policiais.
Investigadores, dois conversam do lado de
fora e um está no banco do motorista falando com
alguém pelo celular. Agiram mais depressa do que
imaginava, devem ter trazido uma intimação para
Lara.
Droga!
Atravesso o jardim com o carro e estaciono
na frente da entrada, perto de duas árvores e a fonte
em forma de anjo. Os veículos dos meus irmãos se
distribuem em simetria pela rua, como se todos
tivessem chegado às pressas. Abro a porta a tempo
de ver uma pequena movimentação na escadaria.
Ivan desce os degraus com o celular no ouvido,
Roman surge atrás dele com uma chave nas mãos.
Ótimo, vai ser uma bagunça. Se ao menos
conseguissem conversar de forma civilizada…
— Onde você estava, Vladimir? — Roman
pergunta. Algo deu errado.
— Fui buscar uma pessoa, o que aconteceu?
Mas, antes que possam explicar, a outra
porta do carro abre e Iago surge com o sorriso
radiante e os olhos fixos em Ivan. Meu irmão deixa
o celular cair no chão, olha de mim para Iago,
descrente de que o filho esteja finalmente em casa.
— Ivan! — Iago corre, pula em seus braços,
aconchega-se em seu pescoço da mesma forma
como fez comigo, mas com os dois é natural,
correto.
— Iago?! Como? — Ivan me pergunta;
choque não é suficiente para descrevê-lo.
— Tutela dativa provisória — explico sem
me aprofundar nos detalhes, está bem óbvio que um
problema grande aconteceu nesse meio tempo. —
O que está acontecendo?
— É como se você fosse o pai do meu
filho? — Sorri, alheio ao resto do mundo. — Fico
feliz em dividir meu filho com você. Obrigado,
irmão.
— Ivan! — recrimino, mais autoritário e
firme.
— Eu sei o que você fez, Vladimir, e o
respeito muito por isso. — Ivan solta Iago no chão
e me abraça. — Agora ele não tem mais nada
contra nós. Iago está em segurança e eu não preciso
mais me segurar.
— Tente não passar dos limites —
aconselho retoricamente.
Roman se aproxima ao mesmo tempo que
nos afastamos, Ivan abaixa e segura o rosto de Iago
entre os dedos.
— Eu quero muito, muito, muito ficar com
você agora, mas lembra daquela promessa que eu te
fiz? — Iago acena com a cabeça, contraindo os
lábios.
— Sobre a Lara?
— Sim, eu prometi que cuidaria sempre
dela, lembra? Tenho que fazer isso agora, vou
buscá-la e então a gente vai ser uma família para
sempre, tudo bem? — Meu irmão abraça Iago, o
pobre menino não tem ideia do que está
acontecendo, só passa de mãos em mãos. A cabeça
deve estar uma bagunça.
Tatiana desce as escadas com o rosto lívido,
é a primeira vez que vejo minha mãe sem palavras.
Ela contempla o primeiro neto, venera-o em
segredo. Ivan dá um passo para trás e deixa que se
aproxime.
— Você é Iago, meu neto — diz como se
estivéssemos em uma cerimônia de coroação. —
Vai se chamar Iago Ivanovich Volkiov, o primeiro
herdeiro de Tatiana Pavlovna Volkiova! — Ela está
frenética, as mãos trêmulas. — Vamos, pode me
chamar de vovó.
— Não sei não — diz Iago duvidoso. Ivan e
Roman dão risada. — As avós não são bem assim.
— Assim? Assim como? — Tatiana nos
olha, esperando por uma resposta. Já prevejo
muitas confusões daqui em diante, talvez eu me
hospede em um hotel depois que encontrarmos
Lara.
— Não tem cabelo branco, nem tem cara de
quem cozinha também — responde Iago, segurando
a mão dela solenemente. — E você não tem cara de
quem sabe fazer bolo, não usa dentadura e nem
óculos na ponta do nariz.
— Mas isso não é uma avó, é uma múmia!
Eu sou uma avó, sua avó. Meu neto, é assim que as
coisas funcionam. — Minha mãe aponta para si
mesma e depois para ele, sem parar. — Sou a
melhor avó. Como eu amo essa palavra, acho que
vou tatuá-la, o que acham disso?
— Péssima ideia, mãe — corto, sei bem
como é capaz de se enfiar no primeiro estúdio que
encontrar.
— Quer saber de uma coisa? Bolo! Eu sei
fazer bolo — pestaneja.
— Não sabe não, mãe — Roman interfere,
alarmado.
Hotel, preciso encontrar um hotel e me
hospedar por uma noite. Não, uma noite é muito
pouco. Um mês? Um ano?
Eu deveria me mudar?
— Iago, pode entrar com a Tatiana —
ordeno. Minha família precisa de organização para
resolver as coisas, caso contrário toda situação se
transforma em diálogos eternos e planos nunca
concretizados. — Mãe, arrume tudo o que ele
precisar, temos coisas para resolver agora, preciso
voltar para a empresa. Iago, vá com Tatiana,
mesmo que ela não se pareça com uma avó de
verdade. E não coma nada do que ela cozinhar.
— Às vezes ela nem se parece com uma
mãe, eu entendo você, garoto. É normal, depois de
uns vinte anos a gente se acostuma — Roman
brinca, girando a chave na mão sem parar. Está
nervoso, preocupado.
Minha mãe nem se importa, seus olhos são
todos para Iago. Ela puxa ele para dentro da
mansão. A situação é péssima, o momento menos
oportuno possível. Em um cenário ideal, a gente se
reuniria ao redor de Iago e apresentaríamos cada
integrante da família para ele, mas isso ainda vai
acontecer.
— Agora, me contem!
— Lara fugiu, não sabemos onde ela foi! —
Ivan informa cheio de revolta; estava se segurando
por causa de Iago apenas. É como eu suspeitei, sua
voz, seu olhar, a postura incontrolável, ele chegou
no limite.
— Vamos atrás de Dimitrio, ele deve saber
de alguma coisa — Roman sugere, já correndo para
buscar o carro na garagem.
— Ivan — chamo. Em momentos de crise, a
sutileza só atrapalha. — Lara já suportou todo o
tipo de humilhação. Escolheu ficar ao seu lado
mesmo depois de ter se comportado como um
cretino, aguentou as agressões do suposto pai por
anos e anos. Se submeteu a um acordo empresarial
e matrimonial antes mesmo das garantias sobre
quem seria o seu pretendente. Pense, por que ela
agia sozinha antes e por que decidiu agir sozinha
agora? Ela tem você, tem a nós todos. Por quê?
Meu irmão permanece imóvel, os
pensamentos tresloucados são retratados em suas
órbitas trêmulas. A minha parte talvez não seja o
suficiente, amenizar o frenesi caótico que ameaça
dominar as decisões de Ivan é pouco perto do
acúmulo de ódio que se esconde dentro do seu
coração.
O amor imutável que une os dois suprimiu o
protagonismo malévolo do desejo de vingança e a
simples possibilidade de perder o equilíbrio
proporcionado pelo companheirismo desse
sentimento reviveu em Ivan aquela densidade
obscura de quando Petrova morreu, do dia em que
entrou em um avião e desapareceu por cinco anos.
— Ela nunca fez nada por si mesma —
sussurra. Ergue o rosto e nossos olhos se conectam.
— Tudo o que ela aguentou foi pensando em outra
pessoa. A única vez que tentou, Petrova quebrou
sua confiança. Ela aguentava pela irmã, pela mãe.
Depois, por Iago. Nunca por si mesma.
— Então, por quem ela fugiu? Iago está
aqui, se fosse apenas isso ela já teria voltado.
— Eu sei onde ela pode ter ido. — Não
explica, somente corre, jogando a chave para
Roman. Isso diz muito das suas pretensões, ele quer
estar disponível quando chegarem à seja qual for o
destino. Os dois entram no carro e, poucos
segundos depois, já desapareceram.
Continuo parado, sozinho, no meio do
jardim. É assim que eles fazem, reviram problemas
e mais problemas, deixam um rastro de
inconsequência, enquanto tento remediar os danos.
Todos nós temos um pouco de bondade e
maldade, o que muda é qual dos dois permitimos
que assuma o controle. Algumas vezes, na maioria
delas, a bondade basta. Mas aquela teoria de que o
bem sempre vence o mal é nada mais do que um
equívoco.
De vez em quando, a gente precisa
combater o mal com um mal maior ainda. E o Ivan
bonzinho não tem aquela expressão.
Somos imperfeitos, nunca bons o suficiente,
nunca ruins o bastante.
Por fim, entro em meu próprio carro para
voltar à empresa. O mundo não para só porque a
gente precisa salvar nossa família de vez em
quando. Seja lá o que os dois pretendem fazer,
minha ajuda não será mais necessária até que o
bom senso se perca de vez.
CAPÍTULO 35
Abraço Materno

EXISTE UM SONHO que a maioria das pessoas


têm, mas que pouquíssimos apreciam. É comum
que o despertar chegue acompanhado pelo temor
repentino de uma queda; a gente vai caindo e
caindo, o medo crescente com o impacto do chão
iminente. Mas a colisão nunca chega, acordamos
momentos antes e descobrimos que todo aquele
medo nunca foi necessário.
Redescobrir a capacidade de amar — e ser
amada — representou o meu próprio despertar, a
salvação no último segundo. Antes, minha vida era
um desmoronamento sem fim e meus dias iam e
vinham com a expectativa da colisão, quando meu
corpo alcançaria o fundo do poço para nunca mais
levantar.
A diferença entre o antes e o agora é que,
dessa vez, estou ciente da minha extinção. Preciso
garantir que ninguém me siga rumo ao precipício.
Depois de esperar por mais de meia hora na
frente da empresa, finalmente avisto Dimitrio
saindo de dentro de uma limusine. Ele conversa
distraidamente ao telefone, usando a mesma roupa
de mais cedo, quando despejou seu amargor sobre a
minha vida. A bola de basquete que carrega no
braço direito destoa do conjunto geral.
Assim que entro em seu campo de visão,
seus lábios vacilam e ele olha para os lados, como
se temesse ser visto por alguém.
— Que merda você está fazendo aqui? —
sibila. As veias no pescoço saltam e ele abre a porta
do veículo luxuoso outra vez.
— Preciso falar com você — digo,
aproximando-me cada vez mais.
— Ah, agora ela quer falar, merda! — Sem
cessar seu olhar investigativo um instante, Dimitrio
me segura pelo braço e nos guia para o interior do
carro.
Não recuso, meu objetivo aqui é único e
direto, só não compreendo a reação apreensiva. Do
lado de dentro, capturo um odor inconfundível de
tabaco e perfume masculino; combina com a
confusão que caracteriza Dimitrio.
— Agora eu sei a história completa —
explico, encolhida longe dele.
Não há nada de excepcional no interior do
carro, os mesmos assentos acolchoados, um
frigobar com bebidas geladas em um dos cantos e
um grande televisor nos fundos. Os olhos de
Dimitrio, sempre tingidos com a cor desbotada do
musgo que se acumula nas calçadas da rua durante
o período entre o fim do inverno e início da
primavera, cintilam vívidos e calorosos pela
primeira vez.
— Já conversamos tudo o que tínhamos
para conversar, não precisa mais falar comigo. —
Ele aperta um botão na porta, acionando um
mecanismo que nos isola do motorista.
— Você disse que podia me salvar, quero
saber o que significa.
— Não significa nada! Volte para a sua
casa, como pode ser tão idiota?
— Qual é o seu problema? — pergunto de
volta. Não era esse tipo de conversa que estava nos
meus planos. — Eu quero me entregar, quero
confessar os meus crimes.
— Puta que pariu — pragueja. Salta da sua
posição e vem para cima de mim, coloca a palma
da mão sobre os meus lábios, um dos joelhos
apoiado na fenda entre as minhas pernas. — Cala a
boca. Vai colocar tudo a perder — sussurra.
Empurro seu corpo, afasto-me até um
assento na frente, constrangida. Dimitrio se afasta
um pouco, volta a sentar e joga a cabeça para trás,
massageando as têmporas.
— Não entendo, era isso o que você queria,
uma confissão. Se eu me entregar, Ivan vai
conseguir adotar Iago.
— Tantos meses de trabalho e você vai
estragar tudo — diz. Apoia os cotovelos nos
joelhos e me estuda como se eu fosse um rato preso
em uma gaiola de vidro em um laboratório. —
Volte para a sua casa.
— Quero um nome, Dimitrio — insisto. —
Com quem eu devo falar para que encerrem essa
investigação? Para que o projeto de adoção
clandestina chegue ao fim e que Ivan possa
conseguir adotar nosso filho?
Dimitrio revira os olhos, pressiona outro
botão e o carro começa a se movimentar devagar.
Por impulso, tomei uma decisão da qual posso me
arrepender, mas se isso garantir que Iago faça parte
da família Volkiov, vai ter valido a pena.
E Ivan… ele vai entender. Quando tiver
nosso filho em seus braços, livre da angústia e do
medo, ele vai entender.
Só espero que me perdoe.
— Eu sempre soube o que Mikhail fazia
com você — diz de repente. Fico tensa, esse
assunto é meu ponto fraco. Não era isso o que eu
esperava que dissesse.
— Como…
— Sua irmã me ligou na noite do acidente,
enquanto estava na estrada. — Dimitrio se estica
para pegar a bola de basquete no chão da limusine,
rodopiando-a como um profissional. — Nunca
deixo de pensar que pode ser por isso que perdeu o
controle da direção. Eu escutei tudo, o barulho dos
dois carros se chocando me acorda todas as noites.
Ah, não…
— Eu não imaginava — balbucio. — Se
você sabia, então por que se juntou à Mikhail? Por
que me acusou? — Uma bolha se forma na minha
garganta.
— Preciso de perdão judicial — explica o
que Ivan e seus irmãos já haviam contado. —
Cometi muitos crimes financeiros antes de
conhecer a sua irmã. Quando o governo me
ofereceu um acordo para colaborar com
investigações a empresas de grande porte, aceitei
de imediato. Comecei investigando a sua irmã,
mas, como já deve imaginar, percebi rapidamente
que ela não tinha a menor ideia do que estava
acontecendo. Aquele contrato que assinamos era a
melhor forma de salvá-la do esquema tramado por
Mikhail. Ele era muito mais cuidadoso quando
Petrova estava viva, por isso não conseguimos
incriminá-lo na época. Acho que ele não tinha
intenção de colocar a culpa nela como tinha com
você.
— Era a filha dele — fundamento, um sabor
ácido preenche a minha língua.
— Então, Petrova morreu e meu principal
objetivo se tornou colocar você atrás das grades.
— E não quer isso mais?
— O acidente me deixou incapacitado de
seguir com as investigações por um tempo. Assim
que me recuperei o suficiente, voltei a me
aproximar de Mikhail para conquistar a confiança
dele e coletar o máximo de provas contra você.
Acreditávamos que o esquema era seu, não dele.
Consegui implantar escutas na empresa Ihascov, na
sua casa também. Até no carro de Mikhail. —
Dimitrio balança os ombros despreocupadamente, o
movimento mais espontâneo que já o vi fazendo. —
Contra provas, não há argumentos. Ele é culpado.
Processo a onda de informações. Faz muito
sentido tudo o que ele disse, mas ainda parece
absurdo demais. Estou perdendo um tempo
precioso com essa conversa.
— Dimitrio, se você sabia disso, por que me
acusou mais cedo? Por que me pressionou para
confessar e agora não aceita a minha confissão?
— Eu pressionei você por dois motivos. O
primeiro deles é que uma parte de mim vai sempre
procurar culpados pela morte de Petrova. É como
você disse, tem um vazio aqui dentro que nunca vai
embora. Eu culpo você, culpo a mim mesmo, culpo
Ivan e culpo até a sua irmã. Uma pequena parte de
mim ainda tinha esperanças de que você estivesse
envolvida com a adoção clandestina daquelas
crianças.
— Quantas foram? — pergunto com a voz
embargada. É devastador imaginar que meu nome
esteve relacionado com tanto sofrimento.
— É melhor você não saber disso.
Concordo, não faria bem algum. Isso
aumentaria a minha dor e não sei quanto de força
me resta para suportar.
— E qual o outro motivo? Você disse que
eram dois.
— O inquérito encerrava hoje, seu
testemunho informal de que desconhecia o
esquema vai ser uma grande prova ao seu favor.
Fizeram uma escolha sábia mantendo você no
escuro até hoje.
— Estava gravando tudo?
— Não esperávamos pela chegada do seu
noivo. — Dimitrio sorri e balança a cabeça
enquanto joga a bola de uma mão para outra. — O
que eu disse sobre ele não passava de um roteiro
para testar a sua reação.
— Nunca duvidaria de Ivan — digo, mais
para mim do que para o desenrolar do nosso
diálogo.
— Então, é isso. Vá para sua casa e não
volte a me procurar nunca mais. Se alguém nos
visse juntos, poderiam questionar meus
depoimentos e as provas que forneci a seu favor
para a investigação.
— Então não serei acusada?
— Você vai ser investigada e intimada, sim.
Porém, em algum momento talvez seu advogado
consiga converter o caso para que seja considerada
testemunha de acusação.
— Eu não quero causar problemas, não
queria envolver a família Volkiov nisso. E ainda
tem Iago, se não o adotarmos, pode ser que…
— Iago não está mais no orfanato —
interrompe, sua voz volta a ficar irritadiça. —
Vladimir Volkiov conseguiu a tutela do menino. É
questão de tempo até que a adoção se confirme,
principalmente agora que retirei o meu pedido.
Dimitrio me confunde. Não consigo ler suas
expressões, as linhas que dão personalidade ao
rosto severo. O tom de voz que utiliza demonstra os
resquícios da antipatia que sente em minha
presença, mas não passa despercebido aos meus
ouvidos sua escolha de palavras, a forma como
deixa explícito que nunca tentou me prejudicar por
meios dissimulados.
— Você disse que ia roubar a minha
felicidade — argumento. — Iago é a minha
felicidade.
O carro começa a perder velocidade,
Dimitrio olha para o lado de fora e se entrega a
pensamentos particulares. Não é difícil perceber o
que cativou minha irmã; sua falsa indiferença, esse
lado bom que tenta esconder, as coisas que faz em
busca daquilo que acredita ser o certo, são
qualidades que faltam a muitos.
— Descobri que não posso roubar uma
coisa que não sei como sentir mais. Hoje fui ao
orfanato, tenho feito isso quase todos os dias e,
quando não encontrei Iago, acho que fiquei um
pouco feliz por ele. — Dimitrio sorri, mas é apenas
uma sombra, ainda tem um longo caminho até que
supere a escuridão que habita em seu coração.
Ele abre a porta da limusine, estamos na
frente do condomínio onde ficam as mansões mais
imponentes da cidade.
— Obrigada — digo após descer do carro.
Faltam palavras para expor minha surpresa.
Eu planejava consertar os efeitos colaterais
dos meus erros, mas descobri que as pessoas são
como caixas fechadas; a gente nunca sabe o que se
esconde do lado de dentro até que alguém decida
expor de verdade.
— Me deixe em paz — resmunga, puxa a
porta e vai embora.
Um pouco extasiada, assisto o carro se
afastar. Ele planejou tudo desde o começo, desde
sua aproximação até as atitudes covardes, tudo para
conquistar a confiança de Mikhail.
Alívio, essa é a palavra. Iago está em casa,
junto com a família, e talvez a gente vença, as
chances são grandes.
Mas não foi apenas o meu plano estúpido
— agora posso afirmar com certeza — que me fez
sair às escondidas da casa de Ivan. Pode ser que
hoje seja a minha última chance para ajustar
problemas pendentes. Se acontecer de realmente
me levarem, é provável que eu não tenha outra
chance.
Ivan não concordaria se eu contasse.
Leio outra vez a mensagem que recebi mais
cedo e escolho o caminho que me leva para casa.
São poucas ruas até meu destino, o sol deixa minha
visão vertiginosa e o fato de não ter almoçado só
piora a situação.
Aperto o interfone da mansão para me
anunciar, mas nenhum funcionário vem ao meu
encontro. Por mais de cinco minutos, permaneço
parada na frente dos portões opressores e
nostálgicos que se retorcem em flores de ferro.
Em ocasiões normais, cinco ou seis
seguranças estariam à postos pela propriedade,
sempre com as feições fechadas que a profissão
exige. Mas não há ninguém, nem mesmo o
jardineiro ou o antigo motorista com quem eu
costumava ir para o trabalho.
Trabalho, não posso mais chamar dessa
forma, aquilo não passava de uma farsa para me
incriminar por delitos que eu jamais cometeria.
Envio uma mensagem para a minha mãe,
explicando que já cheguei. É questão de tempo até
que Ivan descubra que saí sem avisar, mas não
queria criar um alarde, principalmente depois de
causar tantos problemas para ele e sua família. Nem
em mil vidas serei capaz de retribuir toda a ajuda e
carinho que têm me oferecido, por não desistirem
de mim mesmo com o risco de se envolverem em
um escândalo.
Se eu perder, se meu destino for receber as
punições pelos crimes de outra pessoa, ao menos
farei o que estiver ao meu alcance para ajudar todos
os prejudicados por minha causa.
Iago.
Dimitrio.
Ivan.
E minha mãe também.
Na hora em que meu celular tocou enquanto
conversávamos sobre os eventos com Dimitrio e
Mikhail, eu soube imediatamente que alguma coisa
tinha acontecido. Minha mãe nunca me
liga. Nunca.
Recusei a ligação para ninguém perceber,
afinal esse é um problema só meu, que preciso
resolver antes que seja tarde. Ivan jamais permitiria
que eu voltasse, ainda mais depois das ameaças —
falsas — de Dimitrio. No entanto, diante das
últimas revelações, é uma questão de tempo até que
alguma coisa muito ruim aconteça com ela.
Talvez eu seja presa.
Talvez não.
Talvez minha mãe esteja mentindo.
Talvez não.
Talvez.
Talvez essa seja a última chance para ela.
Não posso ignorar um pedido de ajuda, o
primeiro que ela fez em anos de submissão.
Enquanto me usava como escudo, Aleksandra se
mantinha estável, mas sem a minha presença para
apartar o descontrole alcoólico de Mikhail, só
posso imaginar quais atrocidades andam
acontecendo dentro desses muros.
O ruído da trava de segurança se desfazendo
me convida para entrar. Pondero a insensatez, o
quanto é arriscado voltar para essa casa depois de
tudo, mas os horários de Mikhail são fixos, ele
nunca almoça em casa. Se eu for rápida, consigo
convencer minha mãe a deixar a mansão junto
comigo.
Praticamente corro pelo longo caminho que
ziguezagueia entre arbustos e flores, atrativos que
embelezam o jardim frontal, até alcançar a entrada
da mansão. É visível a diferença no tamanho da
grama e na escassez de folhas nas árvores; a
mansão tem sido negligenciada.
Fugir não é uma opção, o relógio é como
uma alma atormentada sussurrando os segundos no
meu ouvido. Comigo sempre foi assim, um dia é
suficiente para revirar a minha vida, para testar a
minha capacidade de continuar com a cabeça
erguida.
A diferença é que não estou mais presa
dentro de um sonho, não estou mais caindo e muito
menos desejando que acabe depressa. Se o mundo
prefere que os problemas me atinjam todos de uma
vez, então só me resta solucionar cada um deles em
igual medida.
Um já foi, resta o mais difícil.
— Mãe! — chamo ao entrar no salão
principal. Os móveis foram mudados de lugar,
alguns simplesmente desapareceram.
Ninguém responde, minha voz ecoa pelos
corredores melancólicos. O dinheiro pode pagar
pelas decorações mais caras e elaboradas, mas não
existe valor que compre a alegria. A casa lamenta
como se fosse um ser vivo, que chora e sangra com
as atrocidades que assiste acontecerem dentro de si.
— Lara? — Ela surge no alto da escada, sua
voz é um vestígio baixo e depressivo. As roupas
largas no corpo denunciam a magreza nociva, mas
meus olhos focam no hematoma protuberante em
seu rosto.
— Estou aqui — respondo. Ela estreita o
olhar, demora para me reconhecer. — O que
aconteceu?
Minha mãe desce os degraus com
dificuldade, as costas se curvando para amparar a
instabilidade física. Não vou ao seu encontro, não
tento ajudar e nem ofereço palavras de incentivo.
Vir aqui, ao menos tentar, é muito mais do que ela
merece; mesmo que esteja doente, isso nunca foi
suficiente para suprir sua ausência.
— Você veio. — Sorri com seus dentes
amarelos. Passa os dedos no topo da cabeça, como
se tentasse arrumar os cabelos descuidados. —
Senti tanto a sua falta, querida.
Fecho os olhos, pressionando as mãos com
as palmas fechadas.
Querida.
— Ele bateu em você — constato. Viro de
costas e começo a andar pela sala.
— Seu pai se meteu em alguns problemas
— explica, arrastando-se para uma poltrona nova.
— Ele não é meu pai — corrijo. Passo na
frente de um espelho que foi instalado na parede
onde costumavam ficar os armários com as
pratarias e percebo que continuo com a roupa que
escolhi para a entrevista de emprego. O vestido
preto se afunila até a base dos meus joelhos,
destacando a palidez da minha pele. — Por que me
chamou aqui? Estou no meio de uma grande
confusão, mãe, tudo por causa daquele homem
asqueroso.
— Você precisa voltar para casa — diz,
alheia a si mesma e com o olhar distante. — Seu
pai quer que volte para casa.
O que…
— Ele não é meu pai, nós duas sabemos
disso — repito. O caso dela só piorou, seus
movimentos são lentos e aéreos. — Você me
enviou uma mensagem dizendo que precisava de
ajuda, eu coloquei todos os meus problemas de lado
para estar aqui agora. Mãe, olhe para si mesma,
precisa ir embora dessa casa, precisa abandonar
Mikhail.
— Você não entende. Só precisa voltar para
casa e tudo volta ao normal.
Paro de andar, indignada com o seu nível de
debilidade mental. Sempre foi só isso? Demência?
Loucura? Eu consigo ajudar uma pessoa que sequer
compreende a profundidade da própria depressão?
— Eu vou chamar a polícia — decido. Giro
o corpo em busca do telefone residencial, mas o
objeto não se encontra mais sobre a mesa no canto
da sala. Retiro meu próprio celular da bolsa, no
entanto, antes que eu comece a pressionar os
botões, escuto a aproximação de um carro do lado
de fora. — O que você fez?
— Me desculpe — pede, começando a
chorar.
— O que você fez? — repito, correndo para
a janela.
— É tudo culpa do seu noivo — grita. Suas
mãos agarram as laterais da poltrona, o rosto
retorcido por causa do nervosismo e dos
machucados. — Seu pai me contou o que ele fez,
como está destruindo a nossa empresa, a nossa
família! Até os funcionários nos deixaram, foram
todos embora, um de cada vez.
Afasto a cortina a tempo de ver Mikhail
saindo de um carro conversível. A barba quase
esconde o rosto e o terno pende em seu ombro.
Como se pudesse sentir a minha presença, seus
olhos recaem direto sobre os meus e o sorriso que
exibe reflete um ódio inédito, insano.
— Você o chamou aqui — compreendo. Ela
esconde o rosto nas mãos. — Armou para mim!
— Eu precisava, nós podemos voltar a ser
como antes. Mikhail prometeu, nós seremos uma
família outra vez. Eu, você, seu pai e sua irmã.
— Petrova está morta! — grito,
inconformada. Essa família não tem salvação.
A porta se abre com um estrondo e Mikhail
irrompe em fúria e prazer. Vem para cima de mim,
mas eu esquivo para trás de um sofá; ficamos um
de cada lado. Não vou me render dessa vez, ele não
tem mais poder sobre mim.
— Sua vagabunda! Traidora bastarda. —
Ele chuta os poucos móveis que se distribuem no
centro da sala. Aleksandra corre para a escada e se
encolhe entre os degraus.
Não posso deixá-la para trás, mesmo que o
meu maior desejo seja esse.
— Mãe, vamos embora — chamo. Dou a
volta por trás da poltrona, tentando chegar mais
perto dela. Mikhail analisa cada movimento meu.
— Eu vou chamar a polícia — ameaço.
— Sua mãe não vai a lugar nenhum, ela fica
aqui, ao lado do marido!
— Você é um monstro! Olha o que fez com
ela. — Aponto para minha mãe, débil, subnutrida,
machucada na carne e na alma.
— Se você não tivesse fugido para abrir as
pernas antes da hora, isso nunca teria acontecido!
Ela fica e você vai ficar também. Vai abandonar
aquele moleque Volkiov que está armando para me
derrubar e vai se casar com algum empresário de
outro país.
— Isso nunca vai acontecer, você não tem
mais como me obrigar. — Enfrento seu olhar. É
arriscado provocá-lo enquanto está são, mas preciso
ganhar tempo.
— Você tem o meu nome, é a minha
maldita herdeira e vai fazer o que eu mandar. —
Ele agarra uma estatueta, joga na minha direção,
mas atinge a parede atrás de mim.
— Mãe, por favor — imploro. Se isso
continuar estaremos as duas em perigo.
— Não briguem, temos que arrumar essa
bagunça para quando a sua irmã voltar —
choraminga, agarrando o corrimão da escada com o
corpo em espasmos.
— Me deixe levá-la para uma clínica,
Mikhail. Olhe para ela, está alucinando! Você
perdeu.
— Ninguém. Sai. Dessa. Casa!
Gritando, ele volta a investir na minha
direção, o corpo troncudo vermelho de ódio e a
barba brilhante com o suor acumulado. Aleksandra
também emite um grito estridente e corre para a
saída. Ótimo!
Agarro um vaso de barro chileno, uma peça
que deve ter sido restaurada centenas de vezes por
causa de situações iguais a essa, e jogo em Mikhail
para retardar seu ataque. Corro para a porta
estilhaçada, mas paro no alto da escada ao escutar o
som inconfundível de um tiro.
Por reflexo, abaixo a cabeça e giro para trás,
a tempo de ver Mikhail com um revólver apontado
para o alto. Lentamente, ele desce a mão e aponta a
arma para mim. Aproxima-se devagar, sorrindo
com o sabor da vitória.
— Não faça isso, Mikhail. Vai ser pior para
você. — Minha visão embaça, o medo se mistura
com a falta de sustendo físico. Recuo um passo,
meus pés se equilibram na ponta do primeiro
degrau.
Atrás de mim, ouço o som dos pássaros
cantando e a fonte de água também emite um
baralho ameno, calmo, um conjunto harmônico que
não condiz com as batidas do meu coração.
— Você não me deixa outra escolha. — A
arma treme em suas mãos. — É o único modo,
entende? Por sua culpa, estou perdendo tudo, tudo!
— Eu só quero ajudar a minha mãe — falo
devagar. Ergo as mãos e respiro com calma.
Qualquer movimento pode ser crucial. — Não
precisa terminar assim.
— Estava tudo planejado — diz para si
mesmo, secando o suor da testa com o dorso da
mão. — Você só tinha que manter a porra da boca
fechada! Simples! Casar com o rapaz Volkiov,
podiam até criar o menino órfão depois. Mas não!
Você tinha que estragar tudo!
— Foi você quem estragou tudo, Mikhail!
— A menina seria minha última transação
— grita. Menina? — Depois que estivesse casada,
não haveria sentido continuar arriscando, meus
lucros com a união seriam suficientes.
— Do que você está falando?
— A menina ruiva. — Ele sobe a arma,
mirando na minha cabeça, e por um segundo minha
dor é tão grande que não me importaria se ele
puxasse o gatilho.
— Tasha, você a vendeu! — grito,
choro, dói tanto. Por que as pessoas que eu amo
precisam se machucar por causa desse homem?
— Eles vão descobrir — continua, alheio ao
meu desespero. — Sem você, eu mesmo precisei
assinar a papelada. Pensando bem, não será mais
necessária daqui em diante, é um desserviço
continuar viva.
— Você vai ser preso, seu precioso legado,
seu precioso império, tudo vai chegar ao fim se me
matar.
— É por isso que tenho a sua irmã. —
Gargalhada, movimentando a cabeça de um lado
para o outro, o rosto vermelho e lustroso.
— Mikhail, Petrova está morta. — Olho
sobre os ombros em busca de ajuda, mas o medo de
perder contato visual com o objeto mortal apontado
na minha direção faz meus olhos de moverem de
volta por reflexo.
— Petrova está viva em uma clínica. Você
quebrou a minha filha, mas uma filha defeituosa
ainda é melhor do que nada.
— O que…
Tudo acontece ao mesmo tempo. Um carro
familiar invade a propriedade, arrancando o portão
pesado da base. Os pneus ecoam, estridentes na rua
asfaltada do jardim. Mikhail grita junto comigo e a
arma em sua mão dispara na minha direção
enquanto braços ossudos e quentes envolvem o
meu corpo.
Não me lembro qual foi a última vez que
minha mãe me abraçou com carinho, não sabia que
podia ser tão aconchegante.
Nós duas caímos em um amontoado de
braços e estalos. Tenho a impressão de escutar a
voz de Ivan chamando meu nome antes de me
entregar para a escuridão.
CAPÍTULO 36
Em Erupção

EU GRITO POR ela, mas não é suficiente. Minha


voz, meus desejos, a oração silenciosa que vagueia
dentro de mim como um espírito agourento, nada
tem o poder de mudar a realidade concreta que se
desdobra ao nosso redor.
Meus ouvidos não capturam nenhum ruído,
tudo acontece em câmera lenta, exatamente como
nos filmes. Existe apenas um alarme. Alto, muito
alto. Os lábios de Roman se movimentam, mas as
palavras são mudas para mim.
Todo o resto é dor.
Dor.
E ódio.
Muito ódio.
O cenário se reveste com uma camada
translúcida de vermelho, o filtro das emoções
pestilentas. Ao redor de Lara e sua mãe, a
coloração já rubra do líquido crescente adquire uma
consistência espessa e lúgubre, prenúncios que
sussurram promessas funestas no meu ouvido.
Uma parte suprimida da minha consciência
se inquieta com a vontade de socorrer a minha
mulher, segurar seu corpo castigado nos braços e
garantir que o tempo não se torne meu inimigo pela
segunda vez. Mas a outra parte, a parte perversa,
sanguinolenta e impiedosa, é a única que controla
meu corpo e a minha alma no momento.
Subo os degraus. Nem mesmo lembro como
percorri o trajeto entre o carro que usamos para
arrombar o portão até a escadaria frontal da
mansão. Há respingos de sangue no piso branco,
pequenas gotas circulares precedidas por linhas
carmesins, quase uma obra de arte. Tudo fica
escuro. Por um segundo complacente, existe apenas
eu no meio de uma treva infinita.
Estou batendo em alguém.
Um soco, dez. Não tenho certeza. Meus
punhos vêm e vão como organismos independentes.
Outra vez, a adrenalina segmenta a minha
visão. Ele não estava armado? Merda, parece que
perdi completamente o juízo. Mas é tão bom, tão
aprazível. É como o primeiro fôlego após um longo
período embaixo da água, como acordar depois de
um sonho desagradável.
A barba de Mikhail reluz com o fluxo do
sangue que escorre da boca cada vez mais enquanto
minhas mãos golpeiam a maxila. Ele cai sobre os
joelhos, o corpo escorrega pela parede que
sustentou a primeira pancada.
Dou dois passos para trás e analiso a cena
de longe. Os sonidos retornam aos poucos, há
gritos e gemidos de sofreguidão misturados com
um barulho de água corrente.
O verme na minha frente tenta se levantar,
não bati forte o suficiente. Não bati o suficiente, na
verdade. Quantas vezes seus punhos envolveram o
pescoço frágil de Lara? Quantas vezes a sua
brutalidade marcou o corpo dela? Quantas vezes
marcou a alma?
Não, eu não bati o suficiente.
Utilizo o joelho para atingir seu rosto, ele
grita, tenta me segurar. Apoio minhas mãos na
parede e Mikhail se encolhe ao receber um chute,
seguido de outro e mais outro.
O medo do porvir ilimita a minha raiva.
Talvez aquele tiro tenha levado a mulher da minha
vida para sempre e eu me acovardo frente à
possibilidade de descobrir.
Droga, Lara! Por que veio sem mim? Por
que agiu com tanta incoerência? Por que fez o
contrário do que sempre me garantiu, sobre
confiar, sobre aceitar a minha ajuda?
Porra!
Meus pensamentos, medos, dúvidas, tudo se
transforma em munição para o descontrole. Eu
deveria matá-lo. Sim, posso fazer isso. Ele merece!
Lara pode estar morta agora e tal perspectiva faz
meu próprio coração ansiar por um descanso,
incapaz de bater com o mesmo vigor de antes.
Como se vive em um mundo no qual a
pessoa que você mais ama não existe?
Essa é a vida, uma eterna busca por aquilo
que a gente não possui. Quando alcançamos um
sonho, outro surge para ocupar o seu lugar. Quando
a felicidade se acomoda e baixamos a nossa guarda,
o golpe chega mais pesado e cruel. Em um dia
temos tudo, no outro, nada.
Um objeto de metal reflete a luz do sol e
chama a minha atenção. A arma que Mikhail
deixou cair brilha do lado direito, perto de um vaso
de plantas. Deve ter caído quando o ataquei no
meio do meu surto. Ela chama o meu nome,
sussurra, seduz.
Caminho até a arma, abaixo-me e estico a
mão. Sinto a temperatura gelada na pele, os
contornos maciços do cabo, a curva no gatilho.
— Você não tem coragem — gorgoleja
Mikhail. O desgraçado ainda consegue falar,
encosta na parede e fecha os olhos inchados. —
Sempre foi… covarde.
Estico o revólver com o cano apontado para
a cabeça dele, tentado a atirar. Decidido, inclusive.
Basta movimentar o dedo indicador e a pessoa
menos merecedora da vida será ceifada do mundo.
Um centímetro, só mais um pouco…
— Porra! Ivan, esse não é você! — Roman
grita no meu ouvido, segurando meus dois braços
por trás. Mantenho a arma presa entre os dedos. —
Solta essa porra!
— Eu vou acabar com ele! — Luto contra
seu cativeiro de músculos. Meu irmão é mais forte
do que qualquer um dos outros, ou mesmo nós três
juntos.
— Lara está bem! A ambulância está
chegando, ela está bem! — Roman não desiste,
repete e repete palavras que não fazem sentido.
Lara não está bem, nunca esteve de verdade.
O que eu esperava? Meia dúzia de palavras
bonitas e um pedido de desculpas não apagam o
passado, não curam feridas, não salvam pessoas.
Deixar assuntos pendentes foi um erro desde o
princípio. Eu a empurrei para o alto dessa escada.
Tentei protegê-la do sofrimento, apeguei-me à
sombra da sua força e não percebi como a soma de
tantos problemas poderia afetar o seu
discernimento entre o certo e o errado, entre o
perigo e a segurança.
— Você é um mentiroso maldito! — grito
para o meu irmão.
— Não estou mentindo dessa vez —
defende-se, contendo-me com mais dedicação. —
Ela não foi atingida! Ivan, você tem um filho agora.
Ele não vale a pena. Não vale!
Iago, meu filho, que me aguarda em casa.
Sim, por ele eu consigo sair do buraco sombrio que
me joguei ao ver Lara caindo após o disparo da
arma. Paro de lutar gradualmente, meus sentidos
voltam ao normal. Primeiro vem a ardência nos
ossos da mão junto com o tremor espasmódico da
adrenalina; depois, o odor ferroso e pungente do
sangue.
Roman me liberta e desliza a mão pelo meu
braço até alcançar a arma, retirando-a dos meus
dedos. O tempo que gasto para virar e olhar nos
olhos azuis esverdeados do meu irmão são
suficientes para entender sua verdadeira intenção.
O disparo se perpetua entre nós e a mão de
Roman permanece estendida na direção de Mikhail,
que grita segurando a perna.
— Ops — diz Roman sarcasticamente,
atuando uma feição de surpresa. Qualquer coisa na
forma como seus olhos arregalam de prazer me
deixa desconfortável. — Disparou sem querer.
— Você atirou nele!
— E você quase matou o cara de porrada.
— Roman revira os olhos, joga a arma sobre a terra
de um vaso de plantas, agora manchado de
vermelho. — Grande coisa.
— Me disse para não atirar e depois atirou
nele! — acuso, aumentando o timbre da voz para
ser escutado acima das pragas que Mikhail grita
para nós.
— E você tem uma criança para adotar. Que
inferno, Ivan, vai olhar a sua mulher. Se você atira
nesse canalha, nenhum juiz no mundo deixaria Iago
ser adotado com o seu nome. Além disso, você
nunca atirou em uma pessoa, não tem ideia de
como isso é fodido. — Ele toca meu ombro ao
passar por mim, evitando que o assunto se estenda.
Já tenho merda na cabeça suficiente por
hoje, meu irmão sabe o que faz.
O barulho de sirenes começa a reverberar
pelos céus, e tão logo duas ambulâncias e quatro
viaturas da polícia invadem a propriedade,
espalhando-se pelo gramado verde, atrás de árvores
e arbustos floridos.
Parado no alto da escada, eu vejo o corpo de
Lara encolhido no chão. Parece dormir sobre um
mar de tormentos escarlates. Irônico. Há quem diga
que o vermelho é a cor da paixão, mas para mim o
coração tem tons de laranja e amarelo, gradiente
como pôr do sol.
Minhas emoções oscilam entre o ódio por
não ter agido antes, o medo de ficar sozinho e a
esperança, pois é impossível aceitar ou até mesmo
esperar pelo pior.
Enquanto Roman conversa com um grupo
de policiais, a equipe de paramédicos se divide para
atender todos os pacientes, incluindo Mikhail —
cujos lamentos silenciaram, banidos pela
inconsciência.
Devagar, cheio de temor, chego mais perto
dos profissionais que acomodam Lara em uma
maca. O colar cervical torna a imagem pior do que
realmente é, ou do que eu desejo que seja.
— Tanto sangue — murmuro. Ela está
banhada, a maior parte das roupas formais que
escolheu com tanta dedicação para a entrevista de
emprego com Vladimir se perdeu.
— Não é dela — diz uma paramédica
sorridente. Sua agilidade é louvável. Circunda a
maca e faz sinal para o companheiro ajudar a
erguer Lara. — O sangue é da outra mulher.
Aceno com a cabeça, quase envergonhado
pelo meu alívio.
— O senhor precisa cuidar desses
ferimentos. — O outro paramédico indica a minha
mão, mas eu nego e escondo-a no bolso da calça.
A primeira ambulância vai embora depressa
levando Aleksandra enquanto quatro pessoas se
organizam para descer com Mikhail. Lara deve
estar mesmo bem, caso contrário não agiriam com
tanta paciência.
— Como ela está? Por que continua
desacordada?
— Parece uma concussão, precisamos de
exames para um diagnóstico conclusivo.
Saio do caminho assim que acomodam Lara
dentro da ambulância. É uma experiência tão
semelhante e ao mesmo tempo diferente de cinco
anos atrás, pois agora os acontecimentos se
desdobram dentro de mim e não apenas ao meu
redor.
Mesmo com o prognóstico positivo, o medo
ainda não se afasta. Estou deixando passar alguma
coisa, ainda não admito que esse dia tenha se
direcionado para caminhos tão inimagináveis. Ela
veio sem mim, por quê?
Logo esse lugar vai se encher de repórteres,
o melhor é sairmos enquanto há tempo. Meu irmão
continua discutindo com os policiais, e não é por
menos, afinal ele atirou em uma pessoa! Isso vai
dar uma merda colossal quando Andrei e Vladimir
tomarem conhecimento.
Sem contar com a minha mãe… Não dá
nem para imaginar como vai ser a reação dela
quando ficar sabendo.
Preparo-me para subir no veículo, mas um
terceiro paramédico aparece e impede, alegando
que preciso responder algumas perguntas para os
policiais. Coitado, ele realmente acredita que eu
vou deixar minha mulher sozinha depois de tudo o
que ela passou.
— Ela é minha noiva — explico, surpreso
com a minha paciência. Acho que esgotei todo o
meu estoque de raiva. — Preciso ficar com ela.
— Desculpe, senhor, temos que seguir com
o protocolo.
— À merda com o seu protocolo. — Não,
minha raiva ainda não acabou. — Vou ficar ao lado
da minha mulher.
Entro na ambulância sob protestos e
reclamações. Roman aparece na porta segurando o
celular, não está com a feição muito feliz.
— Acabei de explicar a situação para o
Andrei, ele ficou uma fera. — Compreensível,
quase matamos Mikhail e quem vai limpar a merda
toda vai ser nosso advogado. Ou seja, ele mesmo.
— Mas estamos liberados por enquanto.
— Vamos então — digo para os
paramédicos. Um deles puxa a porta e a ambulância
começa a correr pelas ruas da cidade, virando
esquinas e desviando de pedestres com destreza.
Seguro a mão de Lara, surpreendendo-me
ao sentir seus dedos entrelaçarem com os meus.
Procuro no seu rosto algum indício do recente
despertar e capturo um olhar cansado por trás da
máscara de respiração. Ela abre e fecha os olhos,
parecendo confusa.
— Você poderia nos dizer o seu nome? —
questiona a mulher, acende uma luz para examinar
as pupilas de Lara. — Sabe onde está?
Seguro mais firme sua mão, quero que sinta
a minha força, a minha presença. Quero que saiba
que estou aqui por ela, como prometi. Lara balança
a cabeça, aturdida em um estado de
semiconsciência. Movimenta os lábios, sussurra
uma palavra que não consigo entender por causa do
respirador.
Aproximo o ouvido, a paramédica puxa a
máscara por um momento e os olhos de Lara se
enchem de lágrimas.
— Petrova — repete. O nome da irmã é um
sopro, um sussurro melancólico.
Um sinal agudo começa a soar de um
aparelho, afasto-me enquanto recolocam a máscara
e gritam comandos um para o outro. Lara volta a
fechar os olhos e eles não se abrem outra vez.
— O que está acontecendo? — pergunto,
desesperado, perdido. Ninguém me responde,
iniciam procedimentos que envolvem contar seus
batimentos cardíacos, escutar o coração…
A ambulância para na frente do
International, a porta se abre outra vez e alguém
me puxa para fora. Há uma equipe com mais de dez
pessoas e alguém conversa comigo, mas meus
ouvidos não processam a informação, não
compreendo nada que não seja o barulho do meu
coração se partindo ao meio.
Eles empurram a maca de Lara em um
suporte com rodas, correm para dentro do hospital e
eu apenas vou acompanhando mecanicamente. Em
determinado momento, dois enfermeiros se
colocam na minha frente e os médicos desaparecem
com Lara pelos corredores alvos e remotos.
Alguém me encaminha para a sala de
espera. Roman chega minutos depois com roupas
limpas, entrega-me uma camisa e eu troco ali
mesmo sem me preocupar com onde ele arrumou
essas vestimentas. Fui atingido por um furacão, o
meu furacão particular. Quando essa mulher vai
parar de destruir o meu mundo e se assentar ao meu
lado de verdade?
O tempo passa entre um desespero e outro.
Dois enfermeiros chegam para cuidar da minha
mão mesmo contra a minha vontade. Só aceito
quando ameaçam chamar a segurança e falam
qualquer coisa sobre contaminar o ambiente.
Depois vem o silêncio, todos emudecem e ninguém
parece ter notícias de Lara.
Escutamos um amontoado de vozes, o salto
característico de dona Tatiana e sua voz estrondosa.
Um segundo depois, ela chega acompanhada de
Andrei. O cabelo vermelho se foi, em menos de
duas horas ela conseguiu rearranjar os fios e tingi-
los com uma coloração platinada muito elegante.
— O que aconteceu com o seu cabelo? —
Roman questiona. Andrei abafa uma risada com as
mãos e recebe o famoso olhar assassino da nossa
mãe. O caçula não consegue se manter enfurecido
por muito tempo.
— Avós têm o cabelo branco — explica
sem se abalar.
— Isso não é branco! — observa Roman,
arriscando a pele.
— É branco o suficiente para o meu neto,
cuide da sua vida. Já estou sabendo que atirou em
uma pessoa! — Tatiana ergue o rosto e cruza os
braços, fazendo com que as pulseiras tilintem como
sinos. — Acha mesmo que a cor do meu cabelo é
mais importante do que um filho meu atirando em
alguém?
— Eu posso explicar — Roman bufa,
coçando os cabelos. — Não era alguém, aquilo não
é um ser humano. Aliás, vou usar isso como defesa
no tribunal, o que acha, Andrei?
— Nada bom.
— Sim, sim — intervém Tatiana. — Quero
detalhes, deve ter sido emocionante. — Minha mãe
acaricia o rosto de Roman, gargalha como se
imaginasse o espetáculo. — Um tiro! Espera,
tribunal? Você vai ser preso?
— Vai responder na justiça, com certeza —
diz Andrei, apoia a mão no ombro da nossa mãe. O
assombro nos olhos dela é impagável. — Mas não
precisa ficar preocupada, ele não vai ser preso.
— Meu filho vai ser preso — lamenta,
fantasiando com a possibilidade de Roman ser
detido. Coloca a mão sobre o peito e segura-se a
Andrei para amparar seu falso desequilíbrio. — Um
filho tão bonito, que eu fiz com tanta dedicação.
Você sabe o que acontece com homens bonitos
assim na prisão?
— Não me faz imaginar isso, mãe —
Andrei reclama. — Acho que vou vomitar.
— Claro, não me importo se você decidir se
casar com outro homem — continua. Roman
arregala os olhos. — Mas aqui na Rússia é quase
impossível para um casal de homens conseguir
adotar uma criança, infelizmente. Vocês teriam que
se mudar para outro país, eu veria meu neto apenas
poucas vezes durante o ano.
— Vamos com calma — diz Roman,
segurando o rosto de Tatiana. — Para começo de
conversa, ninguém aqui vai ser preso. Ou seja,
ninguém vai comer o meu cu na prisão! Nem na
prisão e nem em nenhum outro lugar, eu gosto
demais de mulher para isso acontecer. Pelo amor
de Deus, mulher, você tem cada ideia!
— Ótimo, fico aliviada. Quero meus netos
todos perto de mim!
— Agora que já tem um neto, decidiu
começar a cobrar a gente no plural. — Vladimir
chega na sala de espera de mãos dadas com Iago.
Os dois se destoam. Meu irmão é sempre mais
contido, obscuro e misterioso, já meu filho é um
livro aberto, decidido, determinado e expansivo. —
Aliás, aqui está o seu neto, cuide dele, preciso
trabalhar. Não pode me jogar a responsabilidade
toda vez que decidir pintar o cabelo.
— Vai participar de outra missão secreta?
— Iago se empolga, segurando Vladimir com as
duas mãos. — Posso ir junto?
— A única missão secreta que vou
participar no momento envolve encontrar o
endereço de uma certa proprietária que vem
atrapalhando os meus negócios — reclama,
referindo-se à dona da casa no terreno em que
pretendemos construir nosso clube.
— Posso ir junto?
— Não — responde meu irmão, direto e
sem nenhum tato. — Você tem um pai agora, fique
com ele.
É automático, Iago vasculha o ambiente até
confirmar a minha presença e abre um sorriso sem
limitações. Qualquer outra criança ficaria
intimidada, com vergonha do novo ambiente, mas
com ele é diferente. Iago se entregou desde o
primeiro segundo, ele não perde tempo, é como um
pequeno coiote que se adapta a qualquer situação.
Um verdadeiro Volkiov, que persiste naquilo que
acredita, em tudo o que deseja.
— Nossa família é muito legal, Ivan! —
Iago corre para mim, curva o pescoço para trás
enquanto atropela as palavras. — Mas a Tatiana
acha que é uma avó — sussurra, embora eu tenha
certeza de que os outros nos escutam mesmo assim.
— E tenho um tio que é agente secreto!
— Nossa, então o Vladimir é um agente
secreto! — zombo. Forço a alegria para fora de
mim, Iago nunca entende mesmo algumas
brincadeiras.
— Eu sempre desconfiei — Roman entra na
conversa. — Essa coisa de aparecer de repente
nunca me convenceu.
— Lara está esperando um bebê? — Iago
solta como se a pergunta fizesse sentido no
contexto atual. Essa família é uma bagunça!
Minha mãe abre o maior sorriso do mundo,
sua cabeça faz um giro de quase trezentos e
sessenta graus, como a menina daquele filme de
terror famoso. Mesmo ciente da verdade, a ideia
parece agradar suas expectativas.
— Ela está? Posso comemorar meu segundo
neto? Isso é obra do destino, tão dramático!
Precisaram passar por tudo isso só para
descobrirem acidentalmente que esperam por um
bebê!
— Não há bebê nenhum, mãe — enfatizo,
mas no fundo da minha mente penso na
possibilidade. Seria dramático mesmo, mas também
perfeito. Tatiana está me contaminando.
— Com licença — diz um médico. —
Vocês estão acompanhando a senhoria Ihascova?
— Lara — corrijo. Esse sobrenome faz meu
sangue ferver. — É minha noiva, sim. Como ela
está?
— A paciente passa bem, está consciente e
deseja falar com o senhor Ivan Volkiov. Preciso
que alguém preencha os dados.
— Eu faço isso — oferece Andrei, sempre
eficiente. Já carrega uma pasta com todos os
documentos necessários.
— E como estão os outros pacientes? —
Vladimir pergunta, o único que consegue pensar no
cenário geral com sensatez.
— Infelizmente a outra paciente não resistiu
aos ferimentos e veio à óbito enquanto a
transportavam para cá. Ela perdeu muito sangue.
Ele continua falando e falando, artérias
perfuradas, traumatismo craniano. É assustador
lembrar daquela cena, pensar que Lara era o alvo,
que nesse momento eu poderia estar chorando a
morte dela. No último segundo, Aleksandra se
sacrificou e nós nunca saberemos o que de fato
motivou seu sacrifício.
— Lara já sabe? — pergunto. Iago me
abraça, sem entender a gravidade da conversa.
— Sim, como filha e única parente viva, foi
a primeira a ser comunicada. — Balanço a cabeça
para cima e para baixo. Só quero ver o seu rosto
desperto, acalmar a minha mente. Meu coração.
Minha alma. — Pode nos acompanhar.
Deixo Iago com minha mãe, aceno para
meus irmãos e acompanho o médico. Seguimos em
silêncio, ele respeita o meu momento. Subimos de
elevador, o cheiro de eucalipto e alvejante revive os
temores do passado, o desespero. Odeio esses
odores.
Vejo-me sozinho frente à uma porta branca.
Há um número sobre ela, abaixo de um pequeno
retângulo de vidro pelo qual enxergo Lara sentada
na cama. Entro sem bater, aliviado e descrente.
Ela está bem, repito na minha mente. Está
bem, está bem.
Eu estou bem.
— Ela não sobreviveu — diz, o olhar
perdido no lado de fora da janela. Sua voz espelha
um vazio fantasmagórico.
— Os médicos fizeram tudo o que podiam
— digo, desconfortável. Quero abraçar seu corpo,
beijar cada centímetro da sua pele, mas ela parece
distante, longe do meu alcance.
— Estou me sentindo péssima por não estar
triste. — Sua voz é um sussurro, um lamento. — É
errado? Isso me torna uma pessoa ruim? Não estar
triste com a notícia?
— A gente não controla esse tipo de coisa.
— Sento na beirada da cama e seguro uma de suas
mãos quentes, familiares. — Não controlamos as
emoções, elas simplesmente acontecem; são efeitos
colaterais das nossas experiências. Se a sua mãe
nunca te afetou o suficiente para sentir pela morte
dela, então a falha não pertence a você, mas a ela
mesma.
— Morta — murmura para si mesma.
— Por que fez isso, Lara? Sair escondida,
sozinha? Por que voltou para aquela casa?
Ela dá de ombros, os cabelos curtos
balançam suavemente. A roupa branca do hospital
transparece uma fragilidade sufocante, desperta
meu instinto de proteção. Desperta tudo em mim.
— Liberdade — responde. — Você me deu
isso, Ivan, liberdade para escolher. Acho que
independência também. É a primeira vez que eu
tenho a minha vida só para mim. Queria fazer algo
para consertar aquela situação, queria salvar nosso
filho e fazer pela minha mãe o que você e sua
família fizeram por mim.
— Não quero prender você, meu amor. Não
tenho esse direito — digo com cuidado. — A sua
vida é só sua, quero que você a viva, que faça suas
próprias escolhas. Mas quero que você viva. Se
colocar em perigo daquela forma, não consigo nem
explicar como me senti.
— Foi assim com ela?
— O quê?
— Petrova, foi assim com a minha irmã?
— Foi… diferente. Pior, claro… — Afinal,
Petrova já estava morta quando cheguei ao hospital.
— Mas diferente.
— Eu quero que chame Dimitrio aqui.
Oi?
— Dimitrio? Como chegamos nesse nome
de repente assim? E o que exatamente você quer
com ele?
— Eu me encontrei com ele mais cedo,
antes de ir atrás da minha mãe.
— Só piora — resmungo. Saio da cama e
me jogo sobre a poltrona. Não é sensato brigar
agora, mas a minha vontade é exatamente essa.
— Minha irmã está viva — diz. Deixa de
encarar a janela e me procura. Há tristeza em seu
semblante enfermo, um abismo sem fim em seus
olhos.
— O que você quer dizer com isso, Lara?
— indago calmamente. Talvez esteja delirando por
causa da pancada. — Petrova morreu em um
acidente, não se lembra?
— Eu me lembro. — Sorri. — Não perdi a
memória. Mikhail confessou antes de atirar, disse
no meio do seu acesso de loucura. Minha irmã está
viva, Ivan. Viva. A questão agora é saber o que
você vai fazer a respeito.
— Lara, isso é insano, não é possível.
— Não? — Lara deita no travesseiro, me
analisa, depois vira o rosto para a janela outra vez.
O silêncio confirma minha crença. — Chame
Dimitrio, ele vai acreditar.
CAPÍTULO 37
Segundas Chances

EXISTEM MUITOS TIPOS de sofrimento que o


ser humano é capaz de suportar, mas existe também
um número finito de vezes que a gente consegue
reviver uma mesma experiência ruim sem perder
uma parte importante da nossa humanidade.
Todos os noticiários na televisão estão
cobrindo o caso do tiroteio na casa da
multimilionária família Ihascov, exatamente como
fizeram há cinco anos após a morte de Petrova.
Aperto os botões do controle remoto
aleatoriamente, escuto apenas fragmentos análogos
de reportagens repetitivas.
— De acordo com testemunhas, a filha do
empresário Mikhail Ihascov chegou na residência
da família por volta das…
Troco o canal.
— …disparo realizado por Roman
Nicolaievitch Volkiov contra o presidente da
empresa Ihascov teria sido em legítima defesa…
Legítima defesa? Duvido! Conhecendo a
verdade sobre Roman, as coisas com as quais está
envolvido atualmente, é impossível isso ser
verdade. Passo para outro canal.
— …não resistiu e morreu…
Próximo.
— …exatamente cinco anos desde a morte
da primogênita, agora outra tragédia…
Próximo!
— Em nota, o hospital informou que,
apesar dos ferimentos, o então presidente da
empresa Ihascov não corre risco de vida. O que se
sabe até o momento é que a filha do senhor Ihascov
entrou com um processo contra o pai por maus
tratos, ameaças e agressão há pouco mais de um
mês, o que pode ter motivado a tentativa do
homicídio.
Urubus ao redor da carniça, querem
justificar o injustificável. É sempre assim, por isso
nosso país ganha tanto destaque ao redor do mundo
como um dos mais podres em termos de proteção
às mulheres.
São como ratos traiçoeiros cobiçando a
oportunidade ideal para invadir a privacidade dos
outros e expor aquilo que escondem de mais
infortuno.
Encho um copo de vodca, a melhor marca
do país. A garrafa deriva de um lote especial, raro e
refinado. Os russos são fundidos pela combinação
tácita entre o frio e o álcool; aquilo que não nos
mata, transforma-se em pedras de gelo.
Abaixo o volume da reportagem, os lábios
emudecidos da jornalista se movimentam, narrando
as mesmas informações que escutei tantas vezes
nos outros canais. Finalmente o cavaleiro
conseguiu salvar a princesa.
Blá, blá, blá, final feliz e tudo mais.
Sirvo mais um copo, o primeiro já se foi.
Desfaço o nó da gravata, caminho pela sala do
apartamento. O silêncio é meu principal
companheiro; ele não costuma dar bons conselhos e
nem colabora com a minha saúde mental.
Sobre a mesa de centro, meu celular acende
e vibra, o nome do investigador responsável pelo
caso das crianças extraviadas brilha na tela.
Faz exatamente seis anos desde que me
ofereceram a chance de ser contemplado com
perdão judicial por sonegar impostos e fraudar
números nas contas da minha empresa. Trabalhar
como colaborador da polícia em um caso que está
sendo acompanhado de perto pela Interpol nunca
esteve nos meus planos, mas foi por causa disso
que Petrova entrou na minha vida.
A ligação para e recomeça, assisto o
aparelho vibrar sobre o vidro da mesa, o som
lembra uma gargalhada sombria. Por causa dessa
merda toda, me envolvi com os piores tipos de
pessoas, sujei o meu nome em busca de redenção.
Toda história tem dois lados, algumas têm três,
quatro, dez.
A minha história tem tantos lados que eu
me perdi enquanto tentava compreender, e nunca
encontrei o caminho de volta.
Talvez eu não tenha mais volta.
Na oitava tentativa, ele desiste. Estão no
rastro da menina ruiva que foi enviada
clandestinamente para o México, mas meus
serviços chegaram ao fim agora que toda a verdade
sobre as ações ilícitas de Mikhail foi jogada no
ventilador.
Nossos olhos e ouvidos estavam focados em
Iago, porém o Pequeno Russel nunca esteve em
perigo real. Como Lara era nossa principal suspeita,
nada mais óbvio do que investigar a criança com a
qual ela mais tinha contato e demonstrava interesse.
Enquanto a gente se empenhava em manter
o menino em segurança para garantir um flagrante,
a pobre menina foi traficada bem debaixo dos
nossos narizes. As chances de encontramos seu
paradeiro são ínfimas, principalmente porque o
casal que comprou sua adoção costuma mudar de
país de tempos em tempos.
O celular volta a vibrar, dessa vez leio o
nome de Lara Ihascova no visor. Não tenho
coerência psicológica suficiente para discernir
meus sentimentos, aprendi a odiá-la e meu corpo
reage com os estímulos maldosos que cultivei.
— Eu avisei para não me procurar mais —
digo ao atender.
— É bom saber — responde a voz
masculina de Ivan do outro lado da linha. — Pensei
que eu tivesse sido claro sobre não chegar perto da
minha mulher, mas parece que se encontraram de
novo ontem.
— Foi ela quem me procurou — explico,
bebendo o restante da vodca. — Não posso fazer
nada se a sua mulher gosta tanto da minha
companhia.
— Sem gracinhas, Dimitrio — ameaça, o
efeito robótico do telefone não colabora e acabo
gargalhando. — Preciso conversar com você.
— Eu não posso dizer o mesmo, sua voz
não me agrada. Irritante, é essa a palavra.
— Lara está insistindo em falar com você
sobre Petrova, ela quer que você venha ao
hospital.
— Ela acabou de sofrer uma tentativa de
homicídio, não devia continuar revirando o
passado. — Principalmente o passado da irmã,
completo na mente. — Não tenho nada para falar
com ela, já disse tudo o que podia. O resto não
importa. Depois de tudo o que eu fiz e falei, ela
deveria manter distância. Por que insiste em me
contatar?
— Acha mesmo que se eu pudesse dizer
estaria ligando para você? Apenas venha logo,
vamos colocar um ponto final nessa história.
Depois pode ir para o inferno se quiser, não me
importo.
— Ivan Volkiov falando sobre inferno —
debocho. — Não era lá que você vivia até pouco
tempo?
A ligação fica muda, exceto pela respiração
baixa de Ivan. No lado de fora, o sol começa a
desaparecer, cobrindo a cidade com o véu da noite.
Passamos os segundos assim, pensando e remoendo
a repulsa mútua.
— Só venha depressa — diz por fim,
desligando em seguida.
Merda.
É pedir demais um pouco de paz para curtir
a minha liberdade? Mesmo que meu envolvimento
com quadrilhas organizadas e criminosos do pior
tipo não tenha sido intencional, aprendi a me
comportar como um cara mau.
Caras maus deveriam conseguir viver em
seus esconderijos secretos e solitários sem serem
incomodados, não?
O rosto de Iago aparece na minha mente.
Ele nunca consegue interpretar metáforas e
provavelmente responderia algo como: você está no
seu apartamento, aqui não é um esconderijo de
verdade.
Suspiro, colocando o copo vazio ao lado da
garrafa. A gravata volta para o seu lugar, assim
como o paletó. Pego a chave do carro jogada sobre
o sofá e sou capturado pelo retrato de Petrova
observando-me do alto da estante.
É uma daquelas fotografias de filmes
românticos, quando o mocinho pega a mocinha
desprevenida e consegue capturar todo o esplendor
da sua espontaneidade.
Naquele contexto, eu era apenas o vilão
tentando se aproximar para conseguir informações
confidenciais, não imaginava que se transformaria
em amor pouco tempo depois. Nossa história daria
um bom livro, o criminoso investigando a herdeira
de um império empresarial, noiva do príncipe
encantado. Sem a parte do acidente e toda a
tragédia posterior, claro.
— Feliz? Não bastava me abandonar,
deixou a irmã problemática e o ex neurótico para eu
lidar? — Enfrento pateticamente sua imagem.
Mas ela não responde, como sempre.
Aqueles que temem demônios escondidos
em lugares escuros não imaginam que os mais
perigosos habitam em sorrisos angelicais e
promessas quebradas.
Apago as luzes antes de sair, tranco a porta
e desço até o estacionamento do prédio. Por causa
dos longos anos de serviços prestados aos órgãos
públicos de segurança, recebi um conjunto variado
de automóveis para utilizar nas mais inusitadas
missões.
Tenho que me livrar de todos eles o mais
rápido possível. Cortar laços, escapar da rede.
Não quero essa vida dupla, as máscaras.
Quero apenas existir, viver meus dias como um
homem de coração partido normal, que coloca a
culpa em pessoas aleatórias sem orquestrar
maldades a elas e, principalmente, sem executar
essas maldades. Preciso comprar um carro com
meu próprio dinheiro.
Pego um táxi do lado de fora, passo o
endereço do hospital e o motorista dirige pelas ruas
centrais até atravessar o humilde distrito
de Begovoy, seguindo pela estreita Rozanova,
acompanhando a linha férrea e as árvores
desprovidas de folhagens por causa do fim do
verão. Não muito depois, já paramos na frente do
nosso destino.
Sem perder tempo, pago pela corrida e
deixo o carro, rumo à entrada do hospital. Anuncio
minha chegada na recepção e uma enfermeira
indica o número do quarto. Terceiro andar, ala
leste.
Subo pelas escadas, adiando o encontro.
Não imagino que tipo de coisa ela tenha a dizer
depois de tudo o que conversamos. Espero que não
queira detalhes, pois sou incapaz de reviver aquela
noite, o som do metal se contorcendo com o
impacto da batida, a frase interrompida de Petrova
narrando o arrependimento por ter traído a irmã.
— Ela nunca vai me perdoar, Dimitrio! —
disse entre soluços e lamúrias, o barulho das
trovoadas irrompia pelo telefone. — Não quer ficar
perto de mim, não sei o que fazer. Minha família é
uma fraude, você é…
Então o grito, a batida e o eterno vazio por
nunca descobrir o que ela pretendia dizer. Você é
minha esperança? Você é um babaca que vai viver
sozinho até os noventa anos?
Petrova nunca teve um senso de humor tão
apurado assim.
Encontro o quarto ao mesmo tempo em que
Ivan irrompe pela porta com o semblante irritadiço.
Assim que me vê, ele joga as mãos para o alto e sai
pisando forte pelo longo corredor.
Bato duas vezes, entro sem esperar resposta.
Lara está com os braços cruzados, o rosto
suavizando ao me reconhecer.
— Problemas no paraíso? — pergunto para
puxar assunto, a experiência é constrangedora.
Minhas cordas vocais não sabem conversar com ela
sem alcançar um tom rude.
— Ele queria me convencer a não receber
você — explica toda sincera.
— E mesmo assim preferiu ir contra a
vontade dele? — Coloco as mãos no bolso e
encosto na parede ao lado da porta.
— Não se trata de ir contra a vontade dele,
mas de ir a favor da minha própria.
— E qual seria essa vontade?
— Contar a verdade para você, algo que
ninguém acredita. — Lara vira o rosto para a
janela, sua palidez é quase translúcida junto com as
vestimentas brancas do hospital. — Você vai
acreditar.
— Do que está falando? — pergunto, não
vim aqui para enrolar.
— Sobre segundas chances — diz. Joga as
pernas pela lateral da cama e apoia as mãos no
colchão. — Sobre injustiças.
Impulsionando o corpo, ela fica de pé com
alguma dificuldade. A camisola de paciente balança
na altura dos joelhos e os pés descalços encolhem
com o contato frio do chão.
— Precisa ser mais clara — insisto.
— Serei muito clara, então escute com
atenção. — Lara desliza os dedos pelo cabelo curto,
acomoda os fios atrás da orelha e me encara com o
queixo erguido. — Antes de atirar, Mikhail fez uma
revelação. Ele disse que minha irmã está viva em
uma clínica. Viva.
— Disseram que você bateu com a cabeça
— explico devagar, ninguém me avisou que havia
sequelas. — Vou chamar um médico.
— Não! — grita, segurando o meu braço
com a cabeça abaixada. — Você tem que acreditar!
— Eu não tenho que fazer nada, nem por
você, nem por mim mesmo e muito menos por ela.
Petrova está morta. Não acredito que perdi o meu
tempo.
— Algumas vezes — murmura,
fortalecendo seu magro cativeiro de dedos e
súplicas. — Algumas vezes ele me chamava pelo
nome dela. Mikhail costumava nos confundir
quando estava bêbado demais. Era bom, isso o
impedia de me atacar. Minha Petrova, ele
dizia, minha filha está de volta, senti tanto a sua
falta.
— Lara, isso não quer dizer nada.
— Você tem que acreditar! — suplica.
— Eu não tenho! — grito, puxo o braço e
ela se desequilibra. Viro-me a tempo de impedir
que caia. Forço para que volte para a cama, mas
Lara aproveita para segurar as laterais dos meus
cotovelos. Teimosa dos infernos.
— Se você não acreditar, então ela vai estar
sozinha — choraminga, levantando o rosto, e seus
olhos inundam. Droga, não sei como lidar com
mulher chorando. — É muito triste não ter ninguém
que lute por nós quando não somos capazes de
fazer isso por nós mesmos.
— Você também não acredita — constato.
Curvo-me para sentar na poltrona de visitantes.
Demonstro que não pretendo fugir para que desista
de me prender. — Você não acredita porque é
impossível.
— Eu acredito — explica baixinho. Pausa e
recua, sentando-se na cama e colocando as mãos
sobre o colo. — Mas uma parte de mim não quer
acreditar. Uma parte egoísta que tem medo do
passado, de ser deixada para trás. O medo do amor
dos dois.
— Ele não amava sua irmã tanto quanto eu
— afirmo. Meu peito se inflama com o ciúme e o
instinto primitivo de monopólio.
— Você também tem medo! — provoca. —
Tem medo do amor deles, tem medo que um
milagre seja suficiente para sermos abandonados
outra vez.
— Não tenho porra nenhuma! — Levanto,
aproximando-me da pequena mulher quebrada e
enferma, que mesmo diante das adversidades ainda
tem forças para me enfrentar.
— Então acredite — suplica. — Por favor,
acredite. Acredite. Minha família é uma fraude,
você é tudo o que ela tem!
A voz de Petrova ecoa na minha
mente. Minha família é uma fraude, você é…
Você é…
Você é tudo o que eu tenho.
Acredite.
— Onde? Onde ele disse que ela está?
— Você acredita? — Lara sobressalta, mas
se recompõe quando eu contorço o rosto de
impaciência. — Ele não disse, não teve tempo.
Tudo aconteceu rápido demais, o tiro, a polícia.
— Mikhail é o único que sabe.
— Ele está no andar de baixo. Vai! — Ela
me empurra.
— Lara, eu… tudo o que eu disse, tudo o
que eu fiz — gaguejo, transtornado, a adrenalina
começa a correr pelas minhas veias.
— Só vai logo!
Não espero mais, corro para fora do quarto,
deixando a porta aberta. Uma enfermeira chama a
minha atenção por correr nos corredores do
hospital, mas cada vez que aumento a velocidade,
mais acredito que Petrova esteja viva.
Esbarro em alguém no meio do caminho,
pouco antes de chagar às escadas.
— Grande Jordan! — grita Iago de mãos
dadas com o pai, em quem esbarrei. Percebo que
ele está diferente, sem aquela camada de medo
sobre a face, sem a insegurança e a incerteza
quanto ao futuro. É uma criança iluminada, os
olhos claros oscilam entre o azul e o verde
dependendo da iluminação.
— Grande Jordan? — questiona Ivan, a
sobrancelha arqueada. — Grande Jordan, o
misterioso jogador de basquete? Você é o Grande
Jordan?
— Olá, Pequeno Russell! — cumprimento
Iago, ignorando Ivan e sua pergunta retórica de
propósito. — Vejo que conseguiu o que você
queria.
— Onde você vai correndo assim? Não
pode correr no hospital — diz o pequeno, sempre
indeciso entre o correto e a praticidade.
— Não vai me dizer que acreditou nela —
diz Ivan, cético.
— Petrova está viva — desafio, ele que não
se atreva a zombar dessa possibilidade.
— A sua amiga que morreu? — Iago se
intromete, esse menino tem uma memória
impressionante. — Ela está viva?
— Sim, a minha amiga está viva.
— Que bom. — Sorri. Não desvencilha de
Ivan, mas estica a outra mão para dar palmadinhas
no meu braço. — Agora pode pedir para ela
devolver a sua felicidade e deixar aquela criminosa
em paz. Não precisa roubar nada de ninguém.
— Que tipo de conversa você andou tendo
com o meu filho? — indaga Ivan, horrorizado. —
Ele em oito anos.
— Eu não sou um herói — explico, mesmo
que a mente complexa de Iago não compreenda a
colocação. Aponto para Ivan. — Mas esse cara é…
um pouco. Agora, me deixem em paz, essa alegria
familiar toda está me dando náuseas. Tenho um
encontro marcado para agora.
— Dimitrio — Ivan chama, olhando-me nos
olhos. — Boa sorte.
— Sorte? Isso não existe.
Volto a correr, deixo a família feliz para
trás. Eu deveria dizer a ele que precisa provar para
sua mulher que a volta de Petrova não representa
uma ameaça? Que os olhos dela demonstram
insegurança?
Não, não sou tão legal assim e Ivan não está
na minha lista de pessoas favoritas.
O quarto de Mikhail destoa em um
corredor, chamativo por causa dos policiais parados
na frente da porta. Abro a carteira e mostro o
distintivo para os dois, um último favor por meus
serviços. Sem contestar, liberam a passagem.
Tranco a porta atrás de mim ao passar.
Quase não reconheço o rosto deformado de Mikhail
no meio de tantos hematomas, tubos e fios. A perna
engessada pende sobre uma espécie de corda que se
liga ao teto. Pela primeira vez na vida, eu
agradeceria a Ivan Volkiov por ter deixado a pose
de bom moço de lado e dado a esse crápula o que
ele merecia.
Tiro o botão de emergências de perto da
cama, puxo o fio acoplado na parede e jogo o
aparelho do outro lado do quarto. Os olhos de
Mikhail abrem devagar, sonolentos e vermelhos.
Apanhou para caralho. Rasparam um pouco da
barba para dar pontos no lábio inferior, o homem
está uma bagunça.
— Onde ela está? — pergunto. O sangue
circula para longe da sua face, o desespero dele
entrega a verdade. O coração que eu nem sabia
ainda possuir despedaça. — Vou matar você.
Puxo o respirador por cima da sua cabeça,
ele geme com os movimentos bruscos. Vou matar
esse maldito como devia ter feito desde que a
investigação teve início.
— Socorro — geme com a voz rouca. Tenta
me impedir de prender seu pescoço.
— Seu verme maldito, esse tempo todo!
Petrova está viva, não está? Onde você a
escondeu? Por quê? — Um aparelho começa a
apitar. — Puta que pariu, não se atreva a morrer!
Você não merece morrer fácil assim.
— Trai… dor — balbucia.
— Então você já ficou sabendo? — Aperto
o antebraço em sua clavícula. — Sim, eu trabalho
com a polícia e é na prisão que você vai apodrecer.
Está falindo por ter se metido com os Volkiov? Foi
por isso que se desesperou? Pode ter certeza de que
vou tornar isso mil vezes pior. Onde ela está?
Não faz sentido, nós monitoramos todos os
investimentos, todas as transações financeiras de
Mikhail e nunca encontramos nada envolvendo
clínica alguma.
— Aleksandra — gorgoleja com a falta de
ar.
Dois pares de mãos me arrancam de cima
dele. Ainda tento voltar, acabar com o serviço, mas
os policiais alertam sobre a gravidade da situação.
Algumas enfermeiras aparecem e rodeiam a cama,
desesperando-se ao ver Mikhail perder a
consciência.
Que morra.
Enfio a mão no bolso e retiro o aparelho
celular de dentro. Busco pelo nome de Krigar, um
investigador habilidoso que veio do Brasil, sua
especialidade é levantar todo o tipo de informação
financeira das pessoas. Solicito que vasculhe as
economias de Aleksandra, especificamente suas
conexões com clínicas de internação nos últimos
cinco anos.
Chamo outro táxi no lado de fora, mas não
tenho para onde ir ainda. Dou instruções aleatórias
por cerca de meia hora, passo no meu apartamento
para pegar documentos e trocar o paletó quente por
uma camisa social.
Até que recebo uma mensagem.
Um endereço.
— Vamos para o aeroporto! — digo para o
taxista, adianto o dinheiro para ir mais depressa.
Ainda bem que bebi aqueles dois copos de
vodca antes de sair de casa. Petrova está
viva! Viva! De verdade, em algum lugar no meio de
uma pequena cidade ao norte do país. Quais são as
chances de isso não ser um sonho? Um pesadelo!
Sou um cretino sortudo. É sobre segundas
chances, foi o que Lara disse. Eu pensava que
segundas chances vinham apenas para pessoas
boas, mas parece que os canalhas ainda têm algum
acesso à felicidade.
Meu cérebro registra os eventos de maneira
mecanizada.
Aeroporto cheio.
Passagem.
Documentação.
Uma hora de espera.
Duas horas de voo.
Táxi.
Outro táxi.
Cidade vizinha.
Clínica pequena.
Acordo do estupor somente quando a
recepcionista pergunta se estou bem. Cruzei metade
do país e não tenho ideia de como explicar a
situação para a mulher. Começo fazendo o óbvio.
Mostro o distintivo. Abençoados sejam os
distintivos.
Petrova está viva, droga. Estou abençoando
a merda do distintivo. E minhas mãos estão
tremendo.
— Vim buscar Petrova Ihascova — digo
firme. De tentarem me impedir a coisa vai ficar
feia.
— Desculpe, não existe nenhuma Petrova
nessa clínica.
Não? Como assim?
— Você tem noção de que ocultar
informações da polícia e prejudicar uma
investigação em andamento é uma infração
gravíssima? — ameaço, é minha habilidade mais
prazerosa.
— Desculpe, senhor. Vou verificar
novamente. — A mulher dedilha o teclado do
computador, revira fichas e mais fichas. — A única
Ihascova que consta nos registros se chama
Aleksandra. No último quarto subindo o elevador,
basta ir até o final do corredor. Se preferir posso
chamar um enfermeiro.
Já estou na metade do caminho quando ela
tenta repetir a oferta. Aquela irmã azarada fica
enchendo a minha cabeça. Petrova viva, medo do
amor dos dois e coisa e tal.
Medo?
Eu quero que o medo se exploda.
Que o suposto amor dos dois se exploda.
Que o mundo se exploda.
Petrova está viva. Uma vez eu perdi um
amor que nunca foi meu para perder, agora posso
finalmente nomeá-lo como meu!
Paro na frente do quarto, o terceiro quarto
hospitalar que entro hoje, mas o único que desejo
entrar de verdade. E se ela não estiver aqui? E se
for tudo um grande e grotesco mal-entendido?
Foco, suspira minha consciência, você já
enfrentou traficantes, sequestradores, já desafiou a
morte.
Tento girar a maçaneta, mas me deparo com
uma fechadura trancada. Petrova está viva,
enclausurada neste hospital psiquiátrico por anos.
Presa em um quarto trancado.
A porra do quarto está trancado!
Esse é o máximo que consigo manter dentro
do papel de bom samaritano.
Chuto a porta uma vez, mas ela não cede.
Tento de novo e de novo, até que a tranca estoura e
a porta range para dentro. As cortinas estão
fechadas, a luz apagada. Alguns anjos se escondem
no escuro, é aqui que Petrova se esconde, encolhida
em cima de uma cadeira de rodas.
São muitas informações visuais distintas.
Várias questões com as quais eu deveria me
importar, como seu corpo subnutrido e quase
esquelético, a manta desbotada cobrindo suas
pernas. Mas nada disso ganha a minha
preocupação.
Não.
Os olhos arregalados, grandes como duas
pedras noturnas, denunciam os maus-tratos físicos e
psicológicos. Quebraram a sua alegria, suprimiram
a esperança. Somos quebrados, como cacos de
vidro estilhaçados pelo chão, afiados e perigosos
para nós mesmos. Autodestrutivos.
— Dimitrio. — Sua voz exala descrença, as
mãos agarram as laterais da cadeira.
— Você está viva — repito, ainda me
convencendo. — Viva.
— Como me achou? O que aconteceu?
— Puta merda, aquela sua irmã é uma
pedra irritante no sapato, estava certa. O tempo
todo ela estava certa.
— Dimitrio, o que está acontecendo?
Os cabelos de Petrova caem ao longo do seu
corpo, compridos e escuros. Mas atrás de toda a
magreza e do semblante confuso, encontro os
detalhes que tanto me fascinavam. Que me
fascinam.
Ela quer saber o que está acontecendo? Um
milagre, é isso o que está acontecendo. Inclino-me
sobre ela, ergo seu corpo com a mesma facilidade
que levanto Iago até a cesta de basquete. Ela coloca
os braços ao redor do meu pescoço, segura as
lágrimas com afinco.
— Acabou, você voltou para mim. Você
está viva. Eu quero tanto, tanto, tanto matar o seu
pai, mas estou tão feliz que não faria o trabalho
direito.
— Só me leva embora, por favor. Antes que
eu acorde, por favor.
Uno nossos lábios, assim, de repente. Se for
um sonho, seja lá qual dos dois acordar primeiro,
vai guardar para sempre o sabor do outro, da
sensação desse beijo que nunca concretizamos
antes por convicções morais.
É real, diz a voz de Lara Ihascova na minha
cabeça. Essa menina é um parasita que não me
deixa em paz. Agora foi promovida à voz da minha
consciência. Enquanto desejei roubar a felicidade
dela, Lara Ihascova devolveu a minha na primeira
oportunidade.
Acredite!
Sim, eu acredito.
Eu vejo.
E eu sinto.
Petrova está viva.
E eu também.
CAPÍTULO 38
O que Sobra no Lugar?

IVAN CAMINHA DE um lado para o outro


enquanto conversa com Dimitrio pelo telefone. Eu
assisto suas expressões com o coração apertado,
toda vez que fecha os olhos e balança a cabeça, a
gargalhada corrupta do medo ecoa no ambiente
silencioso da minha cabeça. Não quero perder a
chance de ser feliz.
Quando se perde um grande amor, o que
sobra no lugar? E quando se perde um grande amor
que nunca foi seu para perder, o que resta?
O que vai sobrar de mim se eu perder Ivan?
— Com quem ele está falando? — pergunta
Iago, resgatando-me dos pensamentos negativos. Se
parece com um príncipe perdido com os cabelos
despenteados e uma camisa regata. — E por que
parece tão preocupado?
Como resposta, acaricio os cabelos
dourados do meu pequeno anjo. Preciso explicar
toda a verdade para ele, esclarecer assuntos que
uma criança de oito anos sequer deveria conhecer.
O problema é escolher as palavras corretas, os
exemplos cabíveis, pois Iago só entende as coisas
no sentido literal.
Foram dias cansativos, não esperava receber
alta tão rápido do hospital, muito menos ter que
lidar com todos os tramites relacionados com o
enterro da minha mãe. O que deveria simbolizar a
despedida alegre dos funerais russos se transformou
em um caixão simplório assistido por menos de
vinte pessoas.
Além disso, a polícia quase não me deixou
respirar por dois dias inteiros. Coletaram o meu
depoimento cinco vezes utilizando estratégias
distintas aplicadas por profissionais diferentes. São
tantos crimes se entrelaçando nessa história que foi
difícil manter um discurso linear. Se não fosse a
intervenção de Andrei como advogado, os
investigadores teriam mantido o interrogatório por
ainda mais tempo.
E, enquanto o mundo ao meu redor se
desmorona, não consigo transformar meus
sentimentos em palavras para que alcancem Ivan.
Toda a família tem sido magnífica comigo,
sempre atenciosos e presentes. Mas a suposta
fragilidade que enxergam nos meus olhos tem outro
nome. E eu nem posso reclamar, não tenho
coragem e muito menos direito. Minha irmã está
viva, um milagre aconteceu e as minhas emoções
são meros detalhes.
A sala da magnânima mansão Volkiov não
exibe mais tanta elegância com seus tons
brancacentos e fantasmagóricos. Eles me repelem,
como se eu fosse um parasita indesejado que
mancha a pureza do espaço.
Ou talvez o problema seja minha mente
paranoica.
— Com quem ele está falando? — Vladimir
também pergunta para o meu espanto, nunca escuto
quando se aproxima.
Está vestido para o trabalho mesmo no
domingo, o terno preto e elegante realça seus olhos
azuis, mas confere — em igual medida — destaque
à personalidade impiedosa da presidência. É como
se ele nunca deixasse de ser o líder da empresa,
mesmo dentro da própria casa.
— Dimitrio — respondo, abanando a mão
como se isso não me afetasse. Iago, com a cabeça
apoiada nas minhas pernas, enruga as sobrancelhas
e volta a prestar atenção no pai.
— Quando eles chegam?
— Ainda não sabemos, os dois estão
conversando há mais de uma hora.
— Alguma novidade sobre Petrova?
— Além de ela estar viva? — brinco
amargamente. Iago se estica para escutar a voz de
Ivan melhor. — Desculpe, quis dizer que não, tudo
o que eu sei até agora é que ela estava em uma
clínica psiquiátrica.
— E como você está?
Como eu estou?
— Bem.
Meu cunhado acena com a cabeça, arruma a
gravata e apoia as mãos no encosto branco do sofá
de couro. Iago levanta, desliza sorrateiramente para
o lado e inclina a cabeça, observando o tio. É o
único a quem chama de tio, tão natural como se
sempre tivessem convivido. Em poucos dias, Iago
se apoderou desses corações da mesma forma como
fez comigo, sem ressalvas, sem constrangimentos.
— Ela mente muito mal — sussurra como
se eu não pudesse escutar.
— Já percebi isso — responde Vladimir,
observando o sobrinho com um orgulho expressivo.
Depois volta a falar comigo enquanto finjo que não
prestei atenção no diálogo. — Pronta para amanhã?
— Ela não vai — diz Ivan chamando nossa
atenção. Continua com o celular encostado no
rosto, mas conseguiu escutar a conversa. —
Vladimir, depois de tudo o que aconteceu, Lara
precisa descansar.
— Estou bem! — intervenho. Não quero
esse tipo de regalia logo na primeira semana de
trabalho, principalmente porque já adiamos uma
vez. — Estarei preparada, não se preocupe.
— Não estava preocupado, você vai se sair
bem — garante o chefe, lançando um olhar
desafiador para o irmão. Ivan faz um sinal com o
dedo indicador, enfatizando que a conversa ainda
não terminou, depois volta para a ligação com
Dimitrio.
— Tio, você vai trabalhar agora? — indaga
Iago.
— Sim.
— Posso ir junto? — pede esperançoso, já
levanta antes da resposta.
— Não — decide Vladimir sem hesitar. Ele
não se preocupa em amenizar as palavras para
conversar com Iago. — Hoje não vou para a
empresa e sim para o terreno na região periférica.
Preciso conversar com a proprietária daquele
imóvel e o único que sabe sobre o paradeiro dela
não quer colaborar. Vou tentar outra aproximação.
— Então não é uma missão secreta? Me
deixa ir mesmo assim, não me importo. — Iago
coça a cabeça sem acompanhar a explicação.
— Iago, já disse que não sou um agente
secreto. E você não pode ir porque aquela é uma
região perigosa, não podemos nos arriscar. A obra
já tem chamado muita atenção.
— Acho que ele precisa manter sigilo na
frente das pessoas — sussurra para mim, divagando
sobre a suposição impossível que seu cérebro
infantil formulou. Algum dia, quando estiver
disposto a interpretar relações e contextos sem se
apegar à restrição dos significados, vai perceber
que Vladimir é apenas um líder atarefado demais.
— Você ainda não tem nenhuma pista? —
Mudo o assunto para salvar meu cunhado do
constrangimento.
— Praticamente nada. Ela vive aqui em
Moscou, mas não tem endereço fixo e muda de
emprego constantemente. Acho mais fácil nos
encontrarmos ao acaso do que convencer o irmão
delinquente a me informar sua localização atual. —
Vladimir se endireita, suspira uma última vez ao
analisar Ivan, que continua concentrado na
conversação. Não há o que ser feito, exceto esperar.
— Bom, tenho que ir. Descanse por hoje e se
prepare para amanhã.
— Já disse que é melhor ela não ir. — Ivan
interrompe mais uma vez, seu tom já não é ameno.
A camisa desabotoada exibe os ossos da clavícula e
o contorno do peitoral malhado, mas o desleixo
reflete seu estado de espírito e a desordem
emocional.
Vladimir ignora a sentença e caminha para a
saída. Procuro o olhar de Ivan, mas assim que o
irmão mais velho desaparece, ele vira de costas e se
afasta. Desde que soube da notícia sobre Petrova
estar viva, ele não questionou mais os motivos que
me levaram ao fatídico desfecho na mansão de
Mikhail.
Não tocou no assunto e nem tentou explicar
os detalhes sobre a forma como perdeu o controle
de si mesmo.
No fim das contas, voltamos para casa
como se nada tivesse acontecido. Mas dentro de
mim alguma coisa mudou, algo que rouba o
oxigênio dos meus pulmões, diminui as batidas do
meu coração e faz meus sentidos perderem a
função.
— Tatiana! — grita Iago. Levanta e sai
correndo na direção da minha sogra. A cara de
decepção que ela faz chega a dar pena. Embora a
adaptação com a nova família tenha ocorrido
imediatamente, a mente pragmática de Iago o
impede de chamar a mulher de avó.
— Vovó Tatiana — corrige com um sorriso
afetado, seus cabelos platinados presos no alto da
cabeça em um coque impecável e juvenil.
Ela é maravilhosa, bonita e elegante. Não
entendo como nunca mais arrumou um
companheiro depois que Nicolai se foi. Não há
fotografias dos dois na mansão, nenhum quadro ou
lembrança que informe sobre terem sido casados
um dia.
— Foi o que eu disse! — diz ele. Abraça
suas pernas e sorri com olhos brilhantes,
desarmando Tatiana. — Meu tio acabou de sair e o
Ivan não sai do telefone — reclama. — E a
minha… a Lara parece um pouco doente.
— O que ela está sentindo? — Ivan afasta o
celular do ouvido pela milésima vez. Vem na nossa
direção com a feição preocupada e coloca a palma
da mão na minha testa. — Como você está?
Eu o amo demais. Deveria ser proibido
amar uma pessoa como amo Ivan. É forte e faz
parte de quem sou. Nunca descobri como amar
outra pessoa, nunca desejei me entregar para um
homem como acontece com Ivan, essa vontade
constante de tocar sua pele, sussurrar o seu nome e
permitir que me preencha com o seu prazer.
Ele quer saber como eu estou, mas…
Como eu estou?
— Bem! — repito. Iago nega com a cabeça
e cruza os braços.
— Tem certeza? — Ivan estreita o olhar,
acaricia meu rosto. Escuto chiados vindos do
celular, uma voz masculina exaltada. — Já estou
terminando.
— Não precisa se preocupar, vou até o
pergolado com a sua mãe.
— Daqui a pouco eu me junto a vocês —
promete. Passa o polegar sobre meus lábios e seu
olhar desfoca por um breve segundo.
— Está tudo bem? — questiono,
sinalizando o aparelho celular com a mão.
— Sim. Complicado, mas bem. Dimitrio é
um sujeito difícil de lidar, não aceita minha ajuda.
— Ajuda? — Estranho. Era para ser apenas
uma conversa para conseguir informações sobre a
minha irmã. — Em que você quer ajudar?
— A trazer Petrova para casa, claro. Se tudo
der certo, poderemos jantar com eles ainda hoje.
Houveram complicações por causa dos documentos
dela, mas já estamos resolvendo.
Hoje?
Minha irmã volta do mundo dos mortos
hoje. Isso é uma afirmação, não uma interrogação.
Ivan compactua com a ideia de jantarmos juntos,
como uma família perfeita e feliz que se reúne ao
redor da mesa para falar sobre planos futuros.
— Tudo bem. — Sorrio, encosto os lábios
nos dele, mas não fecho os olhos. Registro o
movimento das suas pálpebras para me beijar, a
linha assimétrica que delimita o contorno da barba
crescente. — Me encontra no jardim para contar
tudo.
— Mais dez minutos — pede sorrindo. Não
há mais nada quebrado dentro de Ivan.
Desvio da poltrona que Tatiana geralmente
usa para passar o tempo, seja lendo um romance de
época ou o jornal do dia. Todos os detalhes da
mansão reluzem com alguma característica da
proprietária, inclusive os móveis
Meu filho vai andando ao lado da avó na
frente; os dois debatem sobre o cardápio do
almoço, mas não consigo escutar a maior parte da
conversa. A vida não para, isso eu sempre soube,
mas nunca aconteceu de eu me sentir assim,
deslocada, fora do lugar e do tempo. É como
assistir um filme muito ruim, no qual as coisas não
fazem sentido e o final é uma grande incógnita.
— Como você está, cunhada querida? —
No jardim, Roman joga um cigarro consumido na
minha frente, levanta do banco que se esconde
entre arbustos desfloridos de rosas selvagens.
— Andou brigando outra vez? — Desvio da
pergunta. Todos decidiram me afrontar com a
mesma coisa hoje. Não encontro nenhum
machucado evidente no cunhado encrenqueiro, mas
as roupas desalinhadas e sujas com poeira de
estrada aguçam minha desconfiança. — Você sabe
que não pode se meter em confusão, está
enfrentando um processo.
— Enfrentando? Eu e o senhor
processo temos uma relação estável, não estamos
nos enfrentando — graceja, colocando uma das
pernas sobre o banco para amarrar as botas. Seus
braços expostos deixam a protuberância dos
músculos delineados com as tatuagens tribais em
ambos os lados. Diferente de Vladimir, Roman não
se dispõe a trabalhar nos dias de folga.
— Estou falando sério, Roman. Ainda não
acredito em tudo o que está passando por minha
culpa. — Cruzo os braços. Iago desapareceu no
jardim junto com Tatiana, mas ainda escuto as
vozes dos dois no meio das flores.
— Não sabia que a arma era sua — diz.
— O quê? Não era minha!
— Então, por acaso me obrigou a entrar no
carro junto com Ivan?
— Não, mas…
— Segurou a minha mão na hora de apertar
o gatilho?
— Roman…
— Nesse caso, por que a culpa seria sua? —
contesta, desafiando-me com o rosto enrijecido. Os
fios de cabelo desfiados caem por cima dos olhos,
escondem a coloração boreal das íris.
— Se eu não tivesse ido até lá sozinha, nada
daquilo teria acontecido.
— Se Mikhail não tivesse nascido, aí
sim nada daquilo teria acontecido. Sério, Lara,
outro dia estavam todos comemorando como
a velha Lara estava de volta. Mas essa Lara na
minha frente não tem nada de excepcional.
— Aquela Lara não existe mais.
— Não? — Gargalha, debochando da minha
resposta. Levanta, o cheiro de tabaco e vodca se
confunde com o odor cítrico da relva. — Ninguém
consegue fugir de si mesmo para sempre, foi isso
que aconteceu com Ivan.
— O que você sabe sobre fugir do passado?
— rebato. Piso no cigarro que jaz ainda aceso no
chão.
— Nada, querida, eu nunca tentei —
responde, egocêntrico como sempre, mas não
consigo me irritar com ele.
— Convencido — brinco, empurrando seu
ombro. Iago passa correndo ao longe com meia
coroa de flores em fase de confecção. Nego com a
cabeça. — Pelo menos tente não se encrencar ainda
mais com a justiça, tudo bem?
— Não posso prometer algo que não
pretendo cumprir.
Homens complicados esses senhores
Volkiov, um mais dificultoso que o outro. O jeito é
deixar que façam as próprias escolhas enquanto me
responsabilizo em silêncio por todos os problemas
que causei.
— É melhor eu ir, sua mãe e Iago precisam
da supervisão de um adulto. — Aponto na direção
que os dois seguiram, Roman ri baixinho.
— Não me respondeu antes, quando
perguntei como você está.
Como eu estou?
— Bem, eu estou bem, Roman.
Ele faz uma careta, revira os olhos vai
embora com as mãos dentro do bolso da bermuda
jeans. O sol tonaliza sua camisa branca com a
coloração amarela da manhã e o cabelo começa a
esconder o começo da nuca. É o tipo de homem que
conquista mulheres ingênuas e foge delas no dia
seguinte.
Como podem existir quatro irmãos tão
iguais em termos de criação e mesmo assim tão
diferentes em personalidade?
Ando lentamente sobre o caminho de pedras
que se estende como as teias de uma aranha por
todo o jardim, admiro as decorações externas, a
fonte visitada por pássaros pequenos e ágeis, os
postes de iluminação inspirados nos modelos
londrinos, as estátuas de criaturas místicas da
mitologia eslava.
Por causa do fim do verão, adicionaram
algumas mantas no pergolado. É ali, enrolados em
montes de tecido felpudo, que Tatiana e Iago estão
aconchegados. Não deixo que me vejam, o
momento é íntimo, de construção de laços que vão
durar a vida inteira.
Abraço meu próprio corpo e encosto em
uma árvore não muito distante dos dois. Se existe
uma coisa que aprendi com essa história toda foi a
nunca superestimar os sonhos. Quando eles se
realizam, pode ser que a gente não julgue os
resultados como suficientes.
Iago é meu filho, meu! De verdade. A
criança que me salvou da solidão vai receber todo o
amor que suprimi por anos. O homem que sempre
viveu em segredo no meu coração diz que me ama
todos dias, junto com o primeiro raiar do sol e
depois da última estrela apontar no céu noturno.
Mikhail vai responder por seus crimes,
aquele monstro não tem mais poder sobre mim.
Estou livre. Não! Eu sou livre!
Minha irmã está viva… Céus!
Ainda assim, mesmo com tantas
reviravoltas e sonhos concretizados, o vazio dentro
de mim voltou a se expandir como um balão de ar
inominável. Estou afogando.
Uma movimentação à direita captura minha
atenção. Andrei pula sobre o alambrado do jardim,
abaixa ao passar por uma fenda entre duas árvores.
Outra noite fora de casa, isso tem sido recorrente
com o caçula, mas ninguém ousa se intrometer.
— Espiando? — diz assim que enxerga
Tatiana e Iago. — O pior que pode acontecer é ela
cobrar bisnetos.
— Sua mãe é maravilhosa, eu não queria
atrapalhar o momento. — Andrei concorda, a risada
dos dois é contagiante. — Chegou agora? Estava
trabalhando? Ainda está com o terno de ontem,
dormiu na casa da sua namorada?
— Tantas perguntas! — reclama. —
Cheguei agora, ainda não dormi. Estava resolvendo
alguns problemas, pensando, não sei. Estava
apenas… existindo?
— Que deprimente.
— Vindo de alguém que sofreu uma
tentativa de homicídio; meu caso deve ser mesmo
ruim.
— Essas olheiras e esse seu cabelo
entregam.
— Qual o problema com o meu cabelo? —
Ele emaranha os dedos em seus caracóis castanhos
escuros, logo vai ter a mesma aparência de anos
atrás, quando conquistava as meninas com sua cara
de inocente.
— Nada, eu gosto dos cachos. Só estou
brincando. Gosto dos cachos!
— E você, como está?
Outra vez.
Como eu estou?
— Bem.
— Alguma novidade? Sua irmã?
— Ivan está conversando com Dimitrio,
parece que devem chegar hoje.
— E você está pronta para dar esse passo?
— Franze o cenho, olha para cima e suas íris
adquirem uma coloração mais clara, caramelada. —
Depois de tudo, ninguém vai julgar se não quiser
manter contato com ela.
Tão doce, penso sobre Andrei. Meu melhor
amigo possui uma sensibilidade que falta a todos os
outros. Ele não julga, não limita as possibilidades,
aceita as falhas junto com os acertos.
— Ivan está planejando um encontro ainda
hoje — conto, fingindo uma aceitação que não
germina dentro de mim.
— O quê? Hoje? E você concordou com
isso? — Dou de ombros, ele inclina a cabeça e
esfrega os olhos. — Meu irmão é tão… tão idiota.
— Ele só está surpreso — justifico. Procuro
por motivos e o único que sobressai na minha
cabeça é o sentimento que os dois demonstravam
um pelo outro, a admiração que Ivan sempre
cultivou por ela.
— Doze gravetos! — Andrei se abaixa
perto da árvore atrás da qual nos escondemos do
olhar esperto de Tatiana. Ele junta alguns galhos
secos, quebra cada um ao meio e depois joga no
chão, relembrando uma das nossas brincadeiras
preferidas durante a infância. — Lembra disso?
— Uma pessoa coleta os doze gravetos
enquanto os outros correm para se esconder —
lembro.
— Não pode deixar ninguém bagunçar os
gravetos de novo, até encontrar todos os
participantes.
— Isso — Sorrio. — A gente brincava disso
na empresa, mas usávamos as canetas de Nicolai no
lugar dos galhos. Está nostálgico, por quê?
— Metáforas! Gosto delas, veja bem. A
vida é como uma brincadeira eterna, um doze
gravetos que nunca acaba, você não acha? Na
minha profissão, me deparo com todo o tipo de
situação. Mas aprendi que sempre aparece alguém
para bagunçar os nossos gravetos.
Profundo, mas Andrei está certo. De todo
modo, escolho o silêncio como resposta à reflexão.
Não duvido do amor de Ivan, mas temo que
Petrova bagunce os nossos gravetos.
— Lara. — Andrei me chama. — Antes de
você e Ivan se acertarem, eu disse que podia contar
comigo para se esconder, lembra? Vamos fazer isso
agora.
— Agora? — Divirto-me, ele só pode estar
brincando. — Não posso sair assim, seu irmão vai
ter um ataque.
— Um motivo a mais para fazermos.
Vamos? Confia em mim, você precisa de um
espaço para colocar a cabeça no lugar.
Estamos sussurrando como crianças
travessas. As roupas enlameadas da infância são
agora vestimentas maduras, nada confortáveis para
uma corrida, mas ainda parece tentador. Fugir…
não. Não é como se eu quisesse desistir de tudo,
apenas pensar. Refletir e me esconder.
— Você está falando sério? Andrei, da
última vez que eu saí sem avisar o seu irmão quase
atirou em uma pessoa. Onde está o seu bom senso?
— Lara, por que você foi sozinha na casa de
Mikhail? Onde estava o seu bom senso? — Meu
amigo coloca o braço por cima dos meus ombros e
começa a me guiar pelo jardim, afastando-nos do
pergolado.
— Ivan me perguntou a mesma coisa. —
Vou acompanhando o ritmo dos seus passos. — E
eu não tenho certeza, Andrei, acho que foi um lapso
de coragem. Liberdade. Pensei que eu podia
resolver os problemas sem envolver a sua família.
Isso soa estranho?
— Estranho não é bem a palavra que eu
utilizaria. Está mais para colapso. Por fora tudo
parece bem, mas por dentro a situação é outra.
Algumas vezes acontecem coisas com a gente que
afetam nosso discernimento entre o que é certo e o
que é errado. Eu lido com isso todos os dias nos
tribunais. Sei reconhecer quando uma pessoa
chegou no limite.
O carro de Andrei está estacionado perto da
saída. Olho para trás e admiro o grande casarão,
uma construção histórica que ganhou detalhes
contemporâneos com o passar dos anos. As janelas
de vidro refletem a claridade diurna e as pedras na
parede oeste conferem um aspecto medieval à
propriedade, como um castelo dos tempos antigos.
— Eu não sei, Andrei.
— Vai dizer que você quer ficar aqui? —
provoca, seu sorriso produzindo duas covinhas ao
lado dos lábios. — Tem pelo menos quatro
jornalistas acampados na frente da nossa casa, a
volta da sua irmã vai ser a mais nova sensação, bem
atrás da morte da sua mãe e a condenação do seu
pai.
Colocando as coisas assim, meu cérebro
começa a pulsar. Andrei está certo, eu não quero
ver a minha irmã agora e não sei como confrontar
Ivan a respeito dos seus sentimentos. Porque não
tenho certeza do que vai sobrar de mim.

• • •

— NÓS PODEMOS MESMO entrar? — pergunto


com receio, a casa conseguiu se tornar menos
convidativa do que antes.
— Tecnicamente, você é a dona dessa
mansão. A perícia já fez tudo o que tinha para ser
feito. Tomei a liberdade de lidar com os
funcionários, fiz acordos de pagamento,
contratei alguns para trabalharem em grupos da
empresa. É por isso que estou com as chaves.
São nesses pequenos detalhes que Andrei
destoa do mundo. Os funcionários da mansão
assistiam os episódios de Mikhail em silêncio,
sempre havia um ou outro olhar de condolência em
seus rostos, mas nenhum deles tentou impedir.
Eram trabalhadores, pais e mães de família
que só contavam com o emprego para viver.
Andrei, com seu olhar minucioso e senso de justiça,
consegue passar por cima dos detalhes e enxergar o
cenário completo de longe. Todos tinham medo e
seria injusto que saíssem prejudicados
independente de tudo.
A casa foi arrumada, não há sinal do sangue
e nem do confronto na escadaria frontal. Aqui foi o
último lugar que vi a minha mãe viva e, apesar de
ter armado para mim, ainda sinto o calor dos braços
dela segundos antes de arfar por causa do disparo.
A morte é uma criatura interessante, ela não
consome apenas a carne, mas enterra segredos que
jamais serão desvendados por aqueles que ficaram
para trás. Aleksandra levou para o túmulo uma
história de amor fracassado, um conjunto
interminável de escolhas ruins e a minha salvação.
Do lado de dentro, as cortinas fechadas
impedem que a claridade se propague pelos
corredores. Há uma coerência na escuridão, em não
corromper as lembranças ruins com a positividade
da luz.
Subimos as escadas, passamos na frente do
meu quarto ainda sem a porta. O escritório de
Mikhail fica dois cômodos depois, onde os
investigadores encontraram quase todas as provas
sobre ele e as crianças que foram traficadas.
Não havia pistas sobre Tasha.
— Quer mesmo entrar aí? — pergunta
Andrei, apoiando a mão no meu ombro.
Aquiesço.
— Toda a minha salvação esteve atrás dessa
porta. A verdade sobre a minha irmã, o projeto
fajuto da empresa. Tudo. Bastava um pouco de
coragem.
— Já parou para pensar que todos nós
fizemos escolhas ruins? Não foi só você. Se eu não
tivesse guardado aquele segredo, tudo seria
diferente hoje em dia.
— Você fez a coisa certa, manteve a sua
palavra.
Giro a maçaneta, a porta cede com um
clique grave. O escritório era um lugar sagrado, um
santuário exclusivo para Mikhail. Na parede atrás
da mesa, há uma prateleira com vinhos, vodcas e
uísques de marcas e tamanhos diferentes, uma
pequena fortuna líquida.
Fora o estoque ilimitado de álcool, o
escritório é como qualquer outro, com móveis
rústicos e estantes cheias de livros. O couro na
cadeira exala o odor característico de Mikhail,
charuto e vodca, fumaça e álcool.
Dou a volta na mesa, analiso os rótulos nas
garrafas e escolho um vinho italiano. O vidro verde
escuro resfria nas minhas mãos, é o tipo de produto
feito para ocasiões especiais, muito diferente de
agora. Giro o arame que lacra a rolha, o estopim ao
abrir preenche o silêncio.
Bebemos sem taças, sem a fineza, a
educação burguesa. Passo para Andrei me
acompanhar. É o sabor mais incrível que já
experimentei, o doce da uva misturado com notas
cítricas.
— Meu irmão não é o homem mais sensato
do mundo — diz Andrei assim que chegamos no
meio da garrafa. — O pior em termos de teimosia.
Demora para tomar uma decisão ou fazer escolhas,
mas quando faz é imediato, sem pensar nas
consequências.
— Ele me ama — digo. O problema não é a
nossa relação. — Mas você lembra como seu irmão
se transformou depois que minha irmã morreu.
Quando nos reencontramos no restaurante, assim
que voltou de Nova Iorque, ele ainda a amava.
— Amava? Não, ele amava a sensação de
preenchimento que a lembrança daquele amor
proporcionava. Ele amava ter amado, amava odiar.
— Se ele perceber que se enganou, que
ainda tem sentimentos por ela, o que vai sobrar de
mim? — pergunto pateticamente. Abaixo uma
fotografia de Mikhail ao lado de Aleksandra no dia
do casamento dos dois.
— E desde quando você precisa dele para
viver, Lara? — Andrei me passa a garrafa outra
vez. — Eu não consigo imaginar como deve ter
sido difícil crescer em uma família como a sua,
aguentar o que Mikhail fazia com você. Mas
aguentou, e sozinha. Se o meu irmão for burro o
suficiente para te perder, tenho certeza de que você
vai fazer o que sempre fez, seguir em frente com a
cabeça erguida, porque essa é a Lara. Não a Lara de
antigamente, não a Lara de hoje, ou a de amanhã. A
Lara de sempre, minha amiga.
Andrei acaricia o meu rosto. A criatura mais
dócil do mundo, um homem perfeito, sonho de
todas as jovens sonhadoras.
— Senti muito a sua falta. — Abraço
Andrei, ele beija a minha cabeça. É o irmão que
nunca tive, assim como Roman e Vladimir. Eu os
amo e desejo tê-los para sempre ao meu lado.
Almoçamos horas mais tarde, depois de
passar o efeito do álcool. O celular de Andrei
começa a tocar. Primeiro, ele apenas ignora, mas
Ivan não desiste tão fácil. Depois de algumas
reclamações o caçula envia mensagens para
confirmar que estamos juntos, vivos e bem.
Claro que isso só piora e, por fim, Andrei
cede.
— Sim? — atende. Os berros no outro lado
da linha são de Ivan e compreendo a pronuncia de
alguns palavrões. Andrei afasta o celular do rosto.
— Estamos juntos sim. Nada! Meu Deus, Ivan,
você tem problemas, é claro que eu não vou fazer
nada com ela. Não, céus!
— Exagerado — resmungo, mas se a
situação fosse ao contrário, eu não suportaria
também.
— Isso se configura como ameaça, eu posso
processar você. — Mais grunhidos saem do celular.
— Não vou enfiar o processo em lugar nenhum,
muito menos nesse lugar. Lara precisava de um
tempo para pensar, eu só estou ajudando. Você é
idiota? Tem problemas?
Saio de perto para não fraquejar. Vou até o
meu quarto e reviro as poucas roupas que deixei
para trás. Separo um conjunto para o dia seguinte.
Meu primeiro dia como secretária presidencial. Um
vestido social não chega perto do conjunto de terno
que Tatiana me deu, mas vai servir por agora.
Passeio pela casa, pensando no que fazer. É
minha herança, como disse Andrei. Não a odeio a
ponto de desejar sua ruína, por muitas noites essas
paredes foram as minhas únicas companheiras. Ivan
tentou me privar da mansão, mas Andrei
compreende que ela faz parte da minha história.
Por isso me trouxe aqui, para reencontrar a
velha Lara descobrir quem posso ser daqui em
diante.
Quero transformar esse lugar ruim em algo
bom. Trazer alguma luz para as trevas. Mostrar
para Mikhail e para mim mesma que coisas boas
podem surgir até nos lugares menos favoráveis.
A noite vem, jantamos pizza. Andrei
desligou celular pois Ivan não se contentou em
esperar. Dormimos na sala de vídeo, conversando e
brincando como dois amigos em um dia qualquer.
Meu amigo se vai para o mundo dos sonhos
antes de mim. Talvez tenha me usado como
pretexto para se privar dos próprios problemas.
Andrei entende muito sobre cuidar dos outros e
pouco sobre cuidar dele mesmo ou ser cuidado por
alguém.
— Chamei um carro para levar você para a
empresa — diz no dia seguinte, após um café
medíocre; a casa não dispunha de muitos
mantimentos.
— Você não vai comigo? — Foram quase
vinte e quatro horas longe de Ivan, colocando as
ideias no lugar.
Vou explicar o que sinto, os meus medos.
Se ele desistir de nós, não será o meu fim. Uma
parte de mim vai morrer para sempre, mas vou
suportar, pois já vivi o pior. Já perdi o amor dele
quando sequer me pertencia.
— Pode ter certeza de que pretendo fugir do
meu irmão por alguns dias. Além disso, não
costumo ficar na empresa no período da manhã.
— Obrigada por tudo, Andrei. — Abraço o
jovem advogado Volkiov, seu corpo perdeu peso,
mas continua robusto e muito mais alto do que eu.
— Como você está? — pergunto, mais invasiva.
— Bem — responde com o sorriso dos
mentirosos, o mesmo que uso para responder
quando me questionam o mesmo.
Como eu estou?
Bem.
Chego duas horas mais cedo na empresa.
Vladimir deve estar em sua sala, mas sigo para
onde estará Ivan. Andrei informou que viríamos
para o edifício e tenho certeza de que me aguarda.
Como previsto, encontro-o parado com os
braços cruzados no meio da recepção que fica no
centro dos quatro escritórios presidenciais. A
expressão enfurecida desperta em mim a vontade
de me rebelar, de jogar coisas e perguntar como
pode ser tão idiota, ridículo, egoísta, lindo e
gostoso para caralho!
— Lara, venha para a minha sala — ordena,
todo alinhado com o terno vermelho escuro sobre
uma camisa branca.
Acompanho o curto caminho, meus saltos
afundam no carpete e, sigo devagar para não me
desequilibrar. Assim que cruzo a soleira e fecho a
porta, tento me defender:
— Ivan, eu vou explicar tudo.
— Você quer me ver morto, só pode! —
protesta, passando as duas mãos sobre os cabelos
castanhos. — Precisa parar de desaparecer sem
avisar, de se esconder de mim!
Diante de Ivan, a insegurança triunfa. É
muito fácil fazer planos, ensaiar palavras; na hora
de efetivar ideias, a gente perde um pouco da
determinação.
— Eu te amo — começo, mas Ivan ergue o
indicador.
— Golpe baixo, Lara. Dizer que me ama
assim, no meio de uma briga. Você sabe que horas
são? Eu não dormi um minuto sequer. Não sei mais
dormir se você não estiver na porra da cama!
Eu amo esse homem demais.
Chego mais perto, devagar, bem devagar,
como um domador se aproximando do leão em
cativeiro. Ele estreita os olhos, respira cada vez
mais fundo. Eu vejo quando mira meu pescoço e
lambe todo o meu corpo com sua raiva e excitação
contrastantes.
— Não estou brigando, você está. —
Seguro seu rosto, a barba faz cócegas na palma das
minhas mãos. Devagar, nossas respirações entram
em sincronia, e encaro sua boca com a mesma
ganância que ele deseja a minha. — Eu te amo,
Ivan — reforço, respiro fundo duas vezes. Tem que
ser agora. — E não quero perder você. Estou com
medo do amor que você sentia pela minha irmã,
perdida por causa do amor que sente por mim.
Extremamente apavorada! Antes de você era
apenas eu. Sozinha. Você me ensinou a
dividir, você me ensinou a confiar, você me deu
esperanças. E por mais que eu acredite em nós dois,
por mais que eu ame de todo o meu coração, por
favor, por favor, me diga o que sente pela minha
irmã, ou então me ensine como viver sem você
depois de tudo.
Ivan me abraça, colocando as mãos ao redor
da minha cintura, mas elas vagueiam rápido para
outras partes, explorando minhas costas, os ombros
expostos por causa do vestido sem mangas, a região
da nuca. Conduzindo nossos corpos ele nos isola do
mundo, prende-me com força.
— Me deixe falar tudo — ofego,
anestesiada com a sua mão na minha pele. Os
dedos passeiam na curva abaixo dos meus seios e
marcam as costelas com impressões digitais do
despudor e do desejo.
— Você pode tentar, mas eu não vou parar
— sussurra no meu ouvido, submergimos no
universo sensorial em que a comunicação por meio
da oralidade não solidifica emoções concretas. —
Você é minha, Lara, porque eu sou seu. Eu te amo,
merda. Está ouvindo? Eu te amo demais.
— Petrova…
— Foda-se a Petrova — protesta, beijado
meu pescoço. Sou névoa quando se trata de Ivan,
uma fumaça branda que não tem forma e nem
controle, que se dissipa no ambiente e preenche os
olhos com a subjetividade do fascínio. — Eu só
quero acabar com isso, seguir em frente com você
ao meu lado. Acha que eu não tenho medo de
perder você? Eu não mereço você, Lara, e não o
contrário.
Toda a minha eloquência evapora e ele
prova com gestos que não preciso ter medo. Por
mais que seus instintos busquem por uma satisfação
mútua, o desejo dele sobressai e se apodera da
liderança que comanda nossos corpos. Ivan desliza
o zíper do meu vestido, deixando que o frio do ar-
condicionado acaricie a minha pele exposta, segura
meu pescoço com as duas mãos, faz movimentos
circulares com o polegar enquanto me empurra na
direção do único sofá.
— Eu não sei como fazer a coisa certa —
confessa e, assim como eu, encontra dificuldade
para conversar no meio da necessidade de satisfazer
a cobiça libertina. — É provável que nunca
aprenda. Por isso, você precisa me dizer com todas
as palavras o que estiver sentindo, Lara.
— Foi demais para mim, tudo acontecendo
tão depressa — explico, desabotoando os botões da
camisa dele. — Estou acostumada a perder as
pessoas, Ivan, não a ganhar.
— Então se costume a ser ganhada, meu
amor — diz com um delicioso timbre sacana. —
Porque eu quero ganhar você todos os dias, de
todas as formas… — Ele desce as mãos até a barra
do vestido, levanta-a devagar, roçando os dedos na
pele entre as minhas pernas, sussurrando: — Em
todas as posições.
CAPÍTULO 39
Última Peça

QUEM PODERIA IMAGINAR que os quatro


homens mais bem-sucedidos e ricos do país se
acomodariam tão rápido diante do trabalho
eficiente de uma única pessoa?
Nem nas minhas imaginações mais
longínquas eu suspeitaria que os líderes da empresa
Volkiov precisavam mesmo de uma secretária
oficial, tampouco que o rendimento profissional de
cada um alcançaria margens tão satisfatórias após
designarmos uma responsável por organizar nossos
compromissos.
Claro, as responsabilidades de Lara
envolvem muito mais do que agendar ou remarcar
reuniões. Não precisamos mais lidar com os
negociantes secundários e nem verificar
pessoalmente as variações financeiras das nossas
ações. Ela consegue enviar relatórios três vezes ao
dia com gráficos ilustrativos e margens de erro,
além de recepcionar potenciais clientes e organizar
os afazeres de cada chefe sempre com uma semana
de antecedência.
Até mesmo Vladimir começou a voltar mais
cedo para casa desde que Lara começou a trabalhar
conosco.
Bem…
O que eu acho de tudo isso?
Uma tortura fodida!
Lara anda de um lado para o outro na sala
de reuniões, movimenta os quadris de maneira
sensual toda vez que vira de costas para indicar
alguma coisa no telão. Se eu pelo menos tivesse
maturidade suficiente para prestar atenção no
assunto em pauta, teria o mínimo de dignidade para
me defender. Mas não. Desde o segundo em que
coloquei meus olhos no contorno perfeito das suas
curvas, metade dos meus neurônios sucumbiram ao
estado vegetativo.
O problema é esse vestido. Com certeza o
tecido maleável se fundindo ao corpo dela como
uma segunda pele é o pior dos pesadelos inventado
pelo ser humano. Aliás, de quem foi a mente
célebre responsável por inventar essa coisa de
roupas que aumentam a sensualidade do corpo ao
invés de deixar tudo menos atraente? Pior, por que
Lara tinha que ter nascido com essa coluna
vertebral tão sexy? É como um caminho tortuoso
que guia meus olhos direto para o pescoço mais
tentador que já existiu no planeta Terra.
— Ivan? — sussurra Roman, cutucando as
minhas costelas. — Ivan, você está ouvindo?
— Não consigo — murmuro de volta, meus
olhos nunca abandonam Lara, que comanda a
reunião. — Acho que não lembro nem como
assinar meu próprio nome.
— Ela nasceu para isso — analisa,
inclinando para mais perto de mim, evitando que os
outros participantes nos ouçam. — Mas precisamos
concordar que você não está nos seus melhores
dias.
— Pelo contrário, esse sou eu nos meus
melhores dias. Um idiota apaixonado. — Tão idiota
a ponto de me confessar para o único irmão que
pode usar isso para me provocar pelo resto da vida.
— Ela está preparada para hoje? —
pergunta, colocando a mão sobre a boca para
esconder nosso diálogo nada profissional.
— Sinceramente? Não tenho ideia. Depois
que percebi a insegurança dela, decidi esperar. Mas
os dias viraram semanas, as semanas viraram meses
e agora Petrova nos deu uma espécie de ultimato.
Ela quer rever Lara a qualquer custo. Não podemos
mais adiar.
— E como vai funcionar isso? Porque,
convenhamos, vocês não formam a família das
mais normais. Você está com a irmã da sua ex-
noiva pseudofalecida, que de morta não tem nada e
que mantém um relacionamento com o homem que
há poucos meses poderia ter se casado com
a sua atual noiva.
Acomodo-me melhor na cadeira. Colocando
dessa forma, sinto-me ainda mais idiota por ter
cogitado a possibilidade de marcar o reencontro das
duas na época em que Lara estava lidando com
tantos problemas; a morte da mãe, a adoção de
Iago, a perda de Tasha, a tentativa de homicídio de
Mikhail, o medo de me perder. Graças a Andrei, ela
conseguiu passar pelas minhas investidas sem
entrar em colapso.
Petrova escolheu morar na mansão de
Mikhail por enquanto. A notícia da invalidez pegou
a todos de surpresa, mas nem isso foi suficiente
para encorajar minha querida mulher.
Concordamos mutualmente com o adiamento do
reencontro, mas o tempo se mostrou insuficiente
para criar a sensação de conformismo, de aceitação.
No fim das contas, isso é sobre elas. Sobre a
traição de Petrova que culminou em todas as
desventuras subsequentes. Sobre duas irmãs que já
não são quem eram antes, duas estranhas que
precisavam encontrar a si mesmas antes de reverem
uma à outra.
— Nossa mãe fez questão que o jantar fosse
em casa. — Suspiro. — Quer ter certeza de que
Lara estará à vontade. Eu acho que ela quer mesmo
é me vigiar. Nos últimos dias dona Tatiana tem me
olhado como se estivesse esperando eu cometer
algum erro.
— É compreensível, você erra com muita
frequência — provoca, como se tivesse alguma
moral para falar dos meus erros. Roman é uma
fábrica de erros ambulante.
Volto a prestar atenção na reunião. Ou
melhor, na locutora. Minha sorte é que os demais
participantes são idosos com índoles indefectíveis e
meus irmãos — que transformaram Lara em um
tipo de irmã mais nova. Já é complicado o bastante
presenciar o desfile diário de Lara pelos corredores
da empresa sem demitir cada par de olhos que gira
quando ela passa.
Duas horas mais tarde, encerramos a
reunião com dois contratos assinados sobre
negociações cujos fins desconheço completamente.
Lara busca meu olhar enquanto Vladimir conversa
com os clientes. Ela é esse tipo de mulher, sempre
foi. Não busca a minha aprovação, não precisa.
Tudo o que espera é apoio, a segurança dos meus
sentimentos e da nossa união.
Roman vai embora primeiro, oferece um
aceno cortês aos senhores e segue para o elevador.
Andrei não chegou a tempo, o caçula tem dormido
fora de casa e não julgo seu comportamento. O
problema é que existem indícios de que não esteja
dormindo com a namorada. De que não esteja
dormindo sempre com ela, aliás.
Aproximo-me do grupo que conversa cheio
de ânimo na ponta norte da mesa. Conheço
Vladimir para perceber a infelicidade com o teor do
assunto.
— Com certeza, senhor Kokorin, sua neta
vai ser muito bem recebida na nossa empresa. —
Escuto meu irmão dizer.
— Sabe como é, os jovens de hoje
entendem muito pouco sobre responsabilidades.
Elena é a minha única herdeira, já tentamos colocá-
la para trabalhar na nossa empresa, mas não deu
muito certo. A senhorita Ihascova foi brilhante, será
um grande exemplo para ela.
— Nos envie um relatório com os dados e
habilidades dela. Lara vai encaminhar o perfil da
sua neta para o setor de estagiários.
Não é a primeira vez que recebemos
herdeiros como estagiários na empresa. Existem
muitas famílias ricas que não preparam os filhos
para o complexo trabalho no mundo financeiro;
quando crescem, tornam-se pessoas superficiais e
irresponsáveis.
Inserir esses jovens no mercado de trabalho
dentro de grandes corporações é uma estratégia que
funciona na maioria dos casos, mas Vladimir não
disfarça o desconforto. Sem sorrisos, sem apertos
de mão ou planos favoráveis. Ele só concordou
para garantir a clientela.
— Será um prazer orientar sua neta, senhor
Kokorin — diz Lara com mais amabilidade, curva
os lábios em um lindo sorriso carmim.
Essa boca vermelha é a minha perdição.
Como eu disse, é uma tortura trabalhar com esse
filhote de tentação. Mal percebo quando nossos
clientes deixam a sala acompanhados de Vladimir.
Toda a atenção, toda a minha existência, tudo em
mim é como uma bússola que aponta para o norte.
E Lara é o meu norte.
— Você e Roman não paravam de
cochichar — diz, andando devagar sobre os saltos
altos e negros. A não ser por um sutil par de
brincos, sua beleza é o único adorno que realça a
conjunto.
— Discutíamos detalhes da negociação —
minto, afrouxando a gravata, e estico o braço,
convidando Lara para saciar a necessidade do meu
corpo de sentir o calor do dela.
— Mesmo? — Arqueia a sobrancelha,
cruzando os braços na frente do corpo. Sempre
difícil. — E qual foi o número de funcionários
contratados para as obras do clube?
— Obras? Clube? — Do que ela está
falando? Merda, ainda bem que o presidente já se
retirou.
— Você não prestou atenção em uma
palavra do que eu disse — reclama, mordendo o
lábio para impedir que um sorriso a traia.
— Prestei atenção em você, isso é mais do
que suficiente — digo. Desisto de esperar e vou até
ela. Minhas mãos são as primeiras a se satisfazer da
vontade sobrenatural de tatear cada pequena
saliência da sua coluna. São nossos lábios que
selam a confissão muda de que os nossos desejos
compactuam.
— Não podemos fazer isso — ofega, mas
seu corpo não acompanha o próprio raciocínio e
procura saciar do meu, encaixando-se em todos os
pontos corretos. — Não na sala de reuniões —
insiste.
Empurro seu corpo para o lado, guiando-nos
para a longa mesa de madeira vermelha. Nunca fui
do tipo que tem fantasias com secretárias, mulheres
nuas em cima da mesa de trabalho, mas com Lara
fico sempre no limite da sanidade sexual. Começo a
deslizar a barra do vestido para cima, premeditado
um deleite intenso e selvagem.
— Vocês sabem que temos câmeras
audiovisuais na sala de reuniões, certo? — diz a
voz familiar de Vladimir, vinda de algum lugar do
além para me infernizar.
Puta merda. Se eu esqueci? Claro que sim.
Mas com uma mulher dessas na minha frente, com
um corpo desse e ainda com todo esse
temperamento de quem tem o poder, fica difícil
resistir ou pensar em detalhes como câmeras de
segurança.
Lara esconde o rosto na curva do meu
pescoço.
— Desculpa, Vlad! — resmunga alto o
suficiente para que ele ouça.
Ficamos parados. Apesar do choque, meu
corpo ainda não entendeu que os planos mudaram e
a situação já é constrangedora o suficiente sem
enaltecer o nível da minha luxúria nas partes
baixas. Tortura? Com certeza, mas nem se compara
com a minha frustração ao lembrar que só
poderemos terminar com o planejado depois do
jantar. Daqui muitas e muitas horas.
— É presidente, para vocês — diz
Vladimir, irritado. Procuro pela pequena câmera no
canto da sala e mostro o dedo do meio.
Lara se afasta, os pigmentos da sua pele
tingidos de rubro intensificam a minha vontade de
vislumbrar o tremor que se apodera dela toda vez
que alcançamos o limite do regozijo.
— É melhor a gente ir — sussurra,
passando as mãos sobre a roupa, verificando se
tudo está no lugar.
— Depois a gente continua — brinco.
— Ivan! — adverte, olha para a câmera e
vira de costas, recolhendo seu material sobre a
mesa. — Tenho muito trabalho hoje. Sua mãe já me
ligou vinte vezes para perguntar o que a minha irmã
gosta de comer, o que ela gosta de beber, qual a
sobremesa favorita dela. Você pode ajudar com
essas coisas.
Sim, eu ainda tenho guardado na memória
todas as preferências de Petrova. Frango à Kiev,
com muita manteiga de alho. Para beber, mopc
caseiro com limão e mel. E sobremesa? Bem, ela
sempre pedia Vatrushka, com pouca farinha e uma
porção maior de leite condensado.
São lembranças, fazem parte da minha
história e do romance que vivi junto com Petrova.
Mas esse passado se transformou em uma
assombração, aparece nas entrelinhas do meu amor
por Lara e desestabilizam a sua confiança em nós.
— Nesse caso vou enviar uma mensagem à
minha mãe para que mande prepararem uma grande
panela de borscht.
— Essa não é a comida favorita dela —
gargalha, virando com o nariz avermelhado pelo
divertimento. — É a minha.
— Exato.
Acaricio seu rosto, desenho as linhas da
maxila com o dedo, depois o contorno do nariz e a
curva nas sobrancelhas. Perfeita.
— Eu agradeço, mas borscht não é refeição
para um jantar como esse. — Sorri. — Eu amo
você — murmura com os olhos fechados.
Como resposta, inclino o rosto e acomodo
um beijo sublime no topo da sua testa. Envolvo o
corpo que me faz perder o controle e os pudores,
amo com gestos, com carinho e dedicação.
Para garantir o mínimo de discrição na
empresa, procuro manter distância de Lara pelo
maior período possível. Toda vez que nossos
caminhos se cruzam, somos atraídos por esse forte
sentimento que só faz crescer.
— Agora sim, é melhor nos separamos. —
Aproximo-me do seu ouvido. — Não queremos dar
um espetáculo gratuito para os seguranças.
— Definitivamente! — concorda, revira os
olhos e me empurra. Organiza um monte de livros e
folhas nos braços e vai andando na direção da
saída, presenteando-me com a imagem das belas
pernas delineadas no vestido justo. Antes de sair,
porém, ela vira e me diz com o rosto enrubescido e
um sorriso sacana: — O espetáculo vai ser só para
você.
Filhote de tentação!
Isso é tortura das mais cruéis. Nem me
prontifico a recolher meus arquivos, apenas olho
intensamente para a câmera pela qual Vladimir e
não sei mais quem assiste.
— Quero todas as cópias dessa gravação em
cima da minha mesa. Agora.
Não vou aceitar que outros funcionários
tenham acesso ao belo rosto ofegante de Lara
quando está possuída pela entrega. Nem fodendo.
Já é perturbador que alguns tenham nos assistido ao
vivo e não posso sair demitindo as pessoas por um
erro que é meu. Infelizmente!
Antes de fechar a porta da sala de reuniões,
escuto Vladimir rindo através dos alto-falantes.
— Entendido — diz.
Nove horas mais tarde, volto para casa
depois do expediente. Se tem uma coisa que
aprendemos ao longo da vida, foi a não interferir
nos eventos que Tatiana organiza. Não existem
termos simples no dicionário da minha mãe, ela não
se contenta com pouco e isso fica ainda mais
evidente assim que entro na mansão.
Os móveis foram afastados do centro do
salão principal, uma grande mesa com petiscos e
iguarias foi disposta no lado direito, perto das
escadas, e candelabros com velas acesas completam
a decoração. Tatiana anda de um lado para o outro,
mudando pratarias e taças de lugar, como se
fôssemos receber uma multidão.
— Está atrasado! — reclama chocada com
meu retorno. Ainda tenho meia hora até que os
convidados cheguem, tempo o suficiente para me
arrumar.
— Onde estão Lara e Iago? — desconverso.
Retiro a gravata e coloco no encosto do sofá de
propósito. Ela arregala os olhos e corre para
recolher a peça, abanando o tecido enquanto
explica.
— Foram caminhar pelo jardim. Lara queria
explicar para ele sobre a irmã, a história completa
sobre vocês dois, a suposta morte e tudo mais —
desdenha abanando as mãos. — Besteira, meu neto
é inteligente o suficiente para não se abalar com
esse tipo de coisa.
Não tenho tanta certeza. Mesmo com o
passar dos dias, Iago continua nos chamando pelos
nomes. Apenas Vladimir conquistou sua confiança
o suficiente para ser chamado de tio e nós sequer
entendemos de que forma isso aconteceu. É como
se uma parte dele ainda não acreditasse que somos
uma família.
— E meus irmãos? — pergunto enquanto
subo os primeiros degraus da escada.
— Vladimir continua na empresa, disse que
não deve chegar a tempo. Está obcecado com esse
bendito clube. Roman já chegou e já saiu,
aproveitou enquanto eu estava na cozinha
organizando a ordem das refeições para sair
escondido. Andrei, bem, não tenho notícias dele
desde ontem.
Então seremos apenas nós. Isso é bom, mais
íntimo para que Lara não se sinta pressionada. Vou
até nosso quarto, agora reorganizado com a
personalidade singular de um casal que compartilha
as noites e os dias com muito amor.
Meia hora depois, quando desço novamente
já vestido com uma roupa menos formal, chego no
momento em que a campainha toca. Lara se levanta
calmamente e segura a mãozinha de Iago como se
sua vida dependesse daquilo. Tatiana abre a porta
para receber Petrova e Dimitrio.
O sentimento de perder alguém é único,
uma mistura de todas as emoções ruins. Quando a
gente perde um grande amor, uma parte de quem
fomos ao lado daquela pessoa se desfaz para
sempre. Poucos são os que podem experimentar a
sensação reversa, de reconquistar uma parte perdida
de nós mesmos.
Olhando para Petrova — seus cabelos
longos e retilíneos, a curva sutil da mandíbula, os
dedos perfeitos para o encontro com as teclas de
um piano —, enxergo mais do que uma fração de
mim. Eu vejo o homem que não quero voltar a ser.
É surreal voltar a ver uma pessoa que esteve
enterrada, que recebeu uma cova e uma cripta. Que
cavou um buraco de rancor dentro da mim.
Dimitrio empurra a cadeira de rodas e faz
um cumprimento geral, acenando a cabeça. Está
vestido com uma roupa formal, o terno escuro
contrasta com o vestido branco utilizado por
minha… cunhada. Seu desconforto espelha o meu
e Iago nos salva do constrangimento quando solta
Lara e para diante de Petrova.
— Bem legal você não ter morrido —
comemora, segurando as duas mãos de Petrova e
analisando-a, como se precisasse constatar que ela
é real. — O Grande Jordan parece bem feliz agora,
não é por nada não, mas será que você pode não
levar a felicidade dele outra vez?
— Você deve ser o Iago — diz Petrova. Sua
voz melodiosa paira no ambiente como as notas
musicais de um instrumento antigo, há uma
dificuldade de pronúncia que não existia antes, uma
falha ao transitar entre as sílabas tônicas. Só pode
ser alguma sequela do acidente, um lembrete
fantasmagórico e difícil de crer. Permaneço parado
com os olhos atônitos na cena que se desenrola. —
Ouvi muito sobre você, que é um menino muito
inteligente.
— Também ouvi muito sobre você —
comenta com uma formalidade ensaiada, ele gosta
de diálogos complexos. — Sobre você ter morrido
e depois não ter morrido mais, e sobre ter
namorado com o namorado da Lara, que é a sua
irmã.
Ótimo, péssimo momento para meu filho
decidir listar o perfil de Petrova. Ao invés de
recuar, ela começa a rir baixinho.
— Isso faz de mim a sua tia, não?
Iago dá de ombros.
— Pode ser.
— Iago, por que não senta aqui perto de
mim enquanto a gente conversa com a minha irmã,
pode ser? — Lara chama, tem cautela em sua voz.
Estamos todos reclusos e temerosos. Ela usa um
conjunto de saia longa e sapatilhas baixas, dentro
de casa sempre prefere roupas confortáveis.
— Gostaria de falar antes que sirvam o
jantar — pede Petrova. Sua voz continua melódica,
mas há uma autenticidade inédita para mim, uma
aspereza que não existia nas minhas lembranças. —
Assim, poderão nos dispensar caso se faça
necessário.
— Muito nobre da sua parte, mas essa casa
continua de portas abertas para você, especialmente
agora que meu filho encontrou um novo amor —
diz Tatiana e sua sinceridade esclarecedora, não
perde tempo em demarcar território sem deixar a
educação de lado.
— Mãe! — advirto.
— Está tudo bem, Ivan, sua mãe não disse
nenhuma mentira — defende Petrova com seus
trejeitos cordiais, sem olhar para mim. — Eu estou
realmente feliz por vocês dois.
— Como eu disse, essa casa sempre estará
aberta para você. Além disso, tenho um assunto
importante para tratar com o seu… — Tatiana
gesticula com as mãos, balançando o dedo
indicador na direção de Dimitrio. — Seja lá o que
vocês são agora.
— Noivos — explica Dimitrio, estreitando
os olhos na minha direção. Petrova sorri e abaixa a
cabaça disfarçando para que ninguém veja. Mas eu
vejo, pois conheço seus gestos, o que os sorrisos
significam, isso ainda existe em mim. — Nós
vamos nos mudar em breve, por isso Petrova
insistiu nesse encontro.
— Mudar? Vão sair da casa de Mikhail? —
pergunto para Dimitrio.
— Vamos para uma cidade no sul —
responde.
Lara se apoia em mim, seus olhos já
inundados com lágrimas estáticas. Vejo que uma
parte dela quer fazer o mesmo que eu, dar um longo
abraço em Petrova e demonstrar a felicidade que
sua volta merece. Mas o sofrimento que envolve a
noite daquele acidente impede que se entregue de
verdade. Não é aversão, mas mágoa.
— Por que ele fez isso com você Petrova?
Mikhail te amava. — A voz de Lara vacila alguns
tons, seus dedos se entrelaçam com força nos meus.
Capto o tremor, a manifestação dolorosa de
memórias ordinárias.
— Sempre direta, minha irmã. — Petrova
empurra as rodas da cadeira, mas Dimitrio ajuda na
locomoção, estacionando-a na frente de Lara. —
Exatamente, ele amava a filha perfeita que eu
costumava ser. A filha legítima, educada, bonita,
elegante e inteligente. Ele amava uma mentira, a
personificação da pessoa que você, Lara, jamais
seria. E que eu já não podia mais ser.
Diferente de Lara, Petrova não permite que
as lágrimas alcancem os lábios. Toda vez que uma
gota insiste em cair, ela limpa prontamente com o
dorso da mão.
Pensando bem, não me lembro de alguma
vez tê-la visto chorar.
Foram cinco anos da mais profunda
escuridão, cinco anos acreditando que somente a
morte daria fim ao meu sofrimento. Cinco anos que
consumiram aos poucos o amor que eu sentia por
Petrova e substituiu por rancor, amargura e raiva.
Sim, amei Petrova, posso ver que um
pedaço da minha mente se alegra na presença dela.
Não tenho como mentir com relação a isso, mas
não é um sentimento que se compara com a
importância que Lara tem na minha vida.
Ela me salvou, me perdoou e me amou.
Sempre.
A campainha da mansão reverbera através
dos corredores, calando todos os assuntos paralelos.
Olhamos uns para os outros, esperando que alguém
se prontifique a anunciar um novo participante do
jantar.
— Estamos esperando mais alguém? —
pergunto para minha mãe. Lara olha para a porta
com curiosidade, indicando que também
desconhece o novo visitante.
— Na verdade — diz Petrova, erguendo os
olhos para encarar os meus pela primeira vez —, eu
também fiquei com medo desse encontro. Medo de
sofrer, medo de odiar você, Ivan. Eu temia que os
anos tivessem levado embora a nossa amizade
também. Antes do acidente, nunca quis trair a sua
confiança. Eu sabia que vocês se amavam, mas seu
coração era bondoso demais para aceitar que já não
gostava de mim romanticamente.
Petrova foi criada para lidar com todos os
tipos de pessoas, para se tornar a sucessora de
Mikhail. Recebeu a melhor educação, foi preparada
para ser uma líder sem perder a delicadeza
feminina. O olhar que me oferece é o mesmo que
assumia durante as reuniões na empresa, quando
precisava lidar com negociantes egocêntricos e
mentirosos.
Delicada como uma rosa que esconde os
espinhos.
— Quem você chamou, Petrova? —
questiona Lara, captando no semblante da irmã um
vestígio de perigo.
— Eu tentei buscar você, Ivan, para salvar a
minha irmã do destino horrível que eu a havia
condenado. Mas a culpa não é completamente
minha. Tem mais um detalhe nessa história que
estamos esquecendo. Uma pessoa que esteve
sempre à espreita, sorridente, solícita. Solícita
demais. — Dimitrio coloca a mão nos ombros dela
e Petrova se dirige para Lara quando diz: — No dia
do acidente, eu nunca contei para Mikhail sobre o
seu pai. Contei para uma pessoa apenas, estava em
busca de conselhos. Contei para a minha melhor
amiga.
A campainha volta a tocar. Tatiana caminha
com passos vacilantes até a porta. Lara segura a
minha mão, aproxima-se buscando conforto e
confiança. Viramos ao mesmo tempo em que
minha mãe abre a porta, revelando Svetlana com
um sorriso exagerado no rosto.
— Boa noite — vibra. — Espero não ter
chegado muito atrasada.
Sem olhar para a melhor amiga, Petrova
encosta a cabeça na mão que Dimitrio mantém em
seu ombro, como se uma maldição deixasse seu
corpo naquele instante, e responde baixinho:
— Você chegou bem na hora.
CAPÍTULO 40
Pontos Finais

A GENTE SABE que esteve fazendo todas as


escolhas erradas quando as pessoas nos olham com
a mesma expressão de zelo que demonstrariam por
uma borboleta cujas asas foram danificadas em
uma tempestade. Como se esperassem o nosso
desmoronamento pelo simples fato de já termos nos
despedaçado mais do que a maioria dos seres
humanos.
Mas as pequenas frações de nós que se
desfazem diante das tribulações não são essenciais
à vida. Elas se desprendem da nossa alma para que
possamos preencher esses espaços com novas
experiências, com novos fragmentos de alguém que
se transforma e é transformado o tempo todo.
Conquistar tantas vitórias pessoais e
profissionais me fez enxergar que não precisamos
nos contentar com o pouco e nem nos submetermos
à subordinação. A gente pode depender de alguém
que nos impulsione para dar o primeiro passo, mas
percorrer o caminho depende de uma força de
vontade singular.
Ivan foi o meu primeiro passo — e será para
sempre, em cada nova estrada —, mas é minha a
escolha de continuar andando. As tragédias são
assim tão fascinantes por se concretizarem em uma
máxima deteriorável que tem início sempre na
certeza de que findam em algum momento, por
espelharem os infortúnios da vida real, e,
sobretudo, por conectarem os seres humanos nos
momentos em que mais precisam ser fortes.
Os olhares de condolência são
emocionantes, comprovam o amor que sentem por
mim, mas não deixam de ser vãos.
Não preciso de piedade, não mais.
Em resposta ao questionamento silencioso
sobre minha situação emocional, ofereço o sorriso
mais verdadeiro à minha família. Svetlana entra na
mansão com a fisionomia intacta, sequer tem a
decência de perceber a densidade no ambiente. O
cheiro do seu perfume de mel e jasmim se mistura
com os odores aromáticos que Tatiana distribui
pela casa e a confusão olfativa é quase cômica se
comparada à convicção com que seus saltos violeta
assaltam o chão.
Minha sogra abre passagem para a
convidada, troca três beijos no rosto, exultante
como se pretendesse servir Svetlana no prato
principal. A mulher nem suspeita em que tipo de
vespeiro se meteu.
Observo atentamente para quem dirige o
primeiro olhar. O vestido de cetim preto sobe um
pouco quando ela ergue os braços para abraçar
Ivan, sem disfarçar o exibicionismo baixo.
— Obrigada pelo convite — exclama
enquanto meu homem se esquiva e agarra uma de
suas mãos para um cumprimento formal. A
compostura de Svetlana vacila, o semblante morre.
— Agradeça à Petrova — diz com o queixo
travado, solta sua mão e volta para perto de mim.
Ele procura meu olhar, faz um milhão de perguntas,
as quais tranquilizo negando com a cabeça.
— Amiga querida! — Corre para perto da
minha irmã. Dimitrio solta uma risada debochada e
Svetlana ergue a sobrancelha esquerda, percebendo
que alguma coisa não vai bem. Não para ela, pelo
menos. — Mal acreditei quando soube — mente,
nada do que vem dessa megera é digno de crença.
— Eu teria te procurado antes, mas fiquei sabendo
da sua… situação.
As duas se estudam. Minha irmã não é mais
a jovem abalável de cinco anos atrás, não existem
correntes invisíveis limitando suas ações.
Não encontrar Petrova durante seus
primeiros meses de readaptação foi uma escolha
egoísta, especialmente acrescido do medo infantil
de perder Ivan, mas fui privada de pensar em mim
mesma durante tempo demais para me apegar a
altruísmos forçados. É bom saber que eu não era a
única temendo nosso reencontro.
Porém, melhor ainda é descobrir que ela
continua sendo minha irmã e que eu a amo demais
para permitir que outro ser humano cruel destrua
nossa relação.
— Tenho certeza que sim — responde
Petrova com seu timbre doce. Estica o braço e
segura as mãos de Svetlana entre as suas. —
Estávamos justamente falando sobre você.
Se não estivesse vendo com meus próprios
olhos, jamais acreditaria que minha perfeita e
amável irmã orquestrou esse encontro para
enfrentar a melhor amiga, a verdadeira culpada pela
nossa briga depois de Mikhail. O ódio originado
por Svetlana corrompeu o meu coração, o de Ivan,
o de Dimitrio e ocasionou anos de reclusão para
Petrova.
Nossa vida desde o acidente é uma mentira,
um aglomerado disforme e pútrido que criou vida
própria e nos exauriu.
— Falando de mim? — A empolgação
retorna para suas palavras. — Bem, eu espero.
— Na verdade… — digo, pronta para
colocar essa mulher porta afora, mas Tatiana
interrompe.
— Na verdade, vamos servir o jantar! —
cantarola, quase dançando. Essa mulher gosta
mesmo é da confusão. Eu a amo tanto. — Estamos
famintos!
— E o que a ilustre Tatiana Volkiova vai
servir para nós? — questiona Svetlana, tentando
soar íntima.
— Cobra! — responde, agitando suas
pulseiras com os braços esticados para o alto.
— Credo! — exclama Iago, faz uma careta
de nojo. — Eu não gosto de cobra não.
— Ninguém gosta de cobras,
principalmente as peçonhentas — provoco, posso
ficar boa nisso também.
— Cobra? — Svetlana desconfia, passa os
olhos por mim, ignora a minha existência e foca na
anfitriã.
— Eu disse cobra? — Tatiana coloca a mão
sobre o peito, fingindo-se de desentendida. — Eu
quis dizer borscht. É a comida preferida…
— Da Lara — completa Petrova, os ombros
cabisbaixos. Gostaria de saber se compartilhamos
do mesmo alívio, dessa liberdade inédita e bem-
vinda.
Batendo palmas, Tatiana guia o peculiar
grupo rumo à sala de jantar. Assim que viramos um
corredor, Ivan segura meu pulso e diminui nosso
ritmo. Ficamos para trás enquanto os outros
seguem caminho ao som da melodia que minha
sogra resmunga alegremente.
— Tudo bem? — pergunta. Inclina a cabeça
para o lado, seus olhos fixos na minha boca. — O
que Petrova disse faz sentido para você?
— Ela não está mentindo — digo. Encosto a
cabeça em seu peito, aspiro o odor único do homem
que me acalma. — Quando brigamos, Petrova
tentou conversar comigo, mas eu estava tão
machucada, tão magoada que não quis escutar.
Petrova pode ter errado por confiar meu segredo à
Svetlana, mas eu também errei por não deixar que
se defendesse.
— Você não teve culpa — sussurra. Segura
meu rosto com a mão e une seus lábios aos meus.
Esse é o problema, não existem culpados.
Mikhail foi como a explosão de uma bomba cujos
estilhaços viajaram milhas e milhas, destruindo
pessoas e extinguindo esperanças.
Para provar que não precisa se preocupar,
abro os lábios e exijo mais do nosso beijo. Ivan
inspira antes de explorar minha boca com mais
ferocidade, suas mãos aprisionam meu corpo,
impelem uma aproximação certeira nas curvas em
que a gente se encaixa melhor.
É assim que o nosso amor se torna sólido,
no contato da pele, no calor dos desejos e na
entrega absoluta ao prazer do outro. Ivan assume a
liderança, pois sou líquido em seus braços, fluída e
instável, do tipo que se molda às formas que ele
exige.
As duas mãos de Ivan abrem na parte de
trás das minhas coxas, sobem pressionando os
quadris, evidenciam toda a glória dos seus desejos.
Ao abrir os olhos, sou impactada por suas íris
dilatadas de satisfação, que espelham minha própria
vontade de esquecer esse jantar tão carregado de
coisas que não nos importam mais para desfrutar
desse homem que faz tudo valer a pena.
— Ivan — suspiro seu nome, uma prece que
foge de mim e exterioriza o ápice da minha ânsia.
— Puta merda — ruge com os dentes
trincados e os braços tensos. — Se não formos
agora eu juro que vou te arrastar para o nosso
quarto antes que alguém apareça para atrapalhar.
Ótima ideia, penso. Essa opção parece bem
melhor do que sentar naquela mesa com cada
lembrança que não me define. Mas não é assim que
as coisas funcionam, se não colocarmos pedras
pesadas em cima desse assunto, ele pode voltar
para nos atormentar.
— Vamos — decido, levemente frustrada.
— Vamos acabar logo com isso.
A mesa de jantar foi montada como se
fôssemos receber umas cinquenta pessoas.
Castiçais de bronze ornamentam a decoração em
intervalos simétricos de espaço e os pratos brancos
estão emoldurados com círculos de rosas selvagens.
Minha irmã está em sua cadeira de rodas ao
lado de Dimitrio, cuja feição é de alguém que
preferia estar em qualquer outro lugar. Ao lado
dele, Iago conversa com Tatiana, e Svetlana presta
atenção mesmo sem participar.
Claro que ocupo o assento vazio ao lado
dela, assim Ivan se acomoda ao meu lado, perto da
mãe e de frente para nosso filho.
O jantar começa a ser servido por uma
pequena equipe de cinco pessoas. Não conheço
todos os funcionários da mansão, mas já percebi
que os Volkiov preferem não se envolver
emocionalmente com nenhum deles. A relação
entre patrões e empregados é mantida no limite da
linha profissional e todas as partes cumprem com
esse acordo velado da melhor maneira.
Ninguém sabe muito bem como abordar o
assunto, então vamos comendo a deliciosa sopa de
coloração vermelha e textura gelatinosa. Ivan puxa
conversa com a minha irmã, questiona sobre a
empresa agora que Mikhail está preso.
— Preciso acertar isso com a Lara —
responde. — Acho que devíamos vender.
— Não quero nada, Mikhail não é meu pai
verdadeiro — decido. — Não quero nada que
venha dele, nem o sobrenome e nem o dinheiro.
— Sabe o que eu acho? — Dimitrio diz,
conversando comigo como se fôssemos grandes
amigos, e talvez tenhamos nos tornado isso mesmo.
Amigos tortos e estranhos que suportam pouco um
ao outro. — Que Mikhail nunca foi bom para
ninguém, nunca usou o contrapeso do bem para
balancear com sua maldade. Esse dinheiro pode se
transformar em algo bom, por mais que a origem
não seja.
— Não quero esse dinheiro sujo — insisto.
— Todo o dinheiro vinculado àqueles
crimes foi recolhido Lara, o que restou pertence a
vocês duas. Vai mesmo dar à Mikhail essa vitória?
Tirar o sobrenome, recusar sua herança, isso não
seria um ponto a mais na lista dele?
— Você fala umas coisas bem legais,
Grande Jordan — diz Iago todo orgulhoso. Ele não
faz ideia do que estamos falando, mas a admiração
por Dimitrio é inusitada, um pouco engraçada
também.
— Eu soube de tudo o que passaram. — É a
vez de Petrova falar. — E lamento que não tenham
se acertado mais depressa. Muito antes de conhecer
Dimitrio, já tinha percebido que tinham um
sentimento especial. — Dimitrio faz um carinho em
sua mão com o polegar. — Afinal, quando
começaram a perceber?
Quando foi? Essa é uma pergunta
interessante. Eu sempre soube do meu amor, mas
em que momento Ivan se deu conta do dele?
— No dia em que descobrimos sobre o
contrato que você e Dimitrio assinaram antes do
acidente. — Ivan se remexe na cadeira, tenso e
envergonhado. Se abrir para tantas pessoas não é
simples, Ivan é recluso sobre si e o esforço que faz
é como carga para minha paixão. — Foi quando
percebi como fui injusto com Lara.
— Estou curiosa. — Petrova rodeia a borda
da taça de vinho com o dedo indicador. — Como
conseguiram aquele documento? Pelo que eu me
lembre, Dimitrio e Mikhail tinham uma cópia cada,
mas estava guardada em um cofre.
— Mesmo? — Ivan limpa a boca com um
dos guardanapos de pano. — Interessante, tenho
certeza de que meus irmãos conseguiram o
documento com você, Svetlana. — Olha para ela,
cuja face perdeu muitos tons.
— Eu? Bem — gagueja —, na verdade…
— Você roubou. — Petrova acusa sem
alterar o tom. Ela parece uma rainha dando a
sentença a um condenado. — Era a única pessoa
que tinha minha senha. Você roubou aquele
documento. Mas o que eu não entendo é por que
esperou tantos anos.
— Petrova, você está me ofendendo —
reclama, soltando os talheres rudemente dentro do
prato vazio.
— Entendi! — exclama Tatiana, seus olhos
frenéticos e o sorriso excitado cala os demais.
Coloca os cotovelos sobre a mesa, cruzando os
dedos sob o queixo. — Homem. Você traiu a sua
melhor amiga por causa de pau. Tudo bem, eu
entendo, meus filhos devem ter paus maravilhosos
mesmo.
— Mãe, seu neto está na mesa. — Ivan
revira os olhos, vira para Iago e cochicha alguma
ordem em seu ouvido. Meu menino bufa e faz o
mesmo revirar de olhos do pai antes de levantar e
sair da mesa.
Tatiana também revira os olhos. Meu Deus!
— Pau, pênis, pinto, grande coisa, Ivan, o
menino também tem! Como você acha que vou
conseguir os meus bisnetos um dia?
Ainda bem que não criei expectativas de
que esse fosse um jantar comum. Algo do tipo tinha
que acontecer ou não estaríamos na casa dos
Volkiov. O som dos passos de Iago vai se tornando
cada vez menos audível até se extinguir na
imensidão desse pequeno palácio.
— Então você não usou isso antes porque
Ivan estava em Nova Iorque — digo, menos
delicada do que a minha irmã ou qualquer outro
presente na mesa. — Você se desesperou quando
viu aquela foto de nós dois no restaurante, queria o
meu homem.
— Embaraçoso — resmunga Ivan, que
estica o braço no encosto da minha cadeira e
balança a cabeça negativamente.
— Muito — concorda Dimitrio.
— Isso é um ultraje. Depois de tudo o que
eu fiz por vocês na adoção daquela criança! — grita
com a voz estrangulada.
— E tudo o que fez por mim no passado?
— exclamo. Fico de pé, com as mãos espalmadas
na superfície da mesa. — Aquilo também foi por
Ivan? Me diz, estou realmente interessada. É só por
causa de pau mesmo, como Tatiana disse, ou seu
objetivo era mais ordinário? Dinheiro, talvez a
inigualável fortuna da família Volkiov?
— Não vou ser julgada por fazer o mesmo
que metade da população feminina da Rússia tem
vontade! — rosna, erguendo-se da cadeira, e joga
os longos cabelos escuros para trás. — Petrova ia
deixar você para ficar com outro. Vamos, você
merecia mais!
— Sim — interrompo; não vou deixar que
Ivan se sujeite a responder. — Ele merecia mais, e
encontrou. Nós sabemos de tudo, Svetlana, foi você
o tempo todo. Você contou para Mikhail sobre o
meu pai, por sua culpa minha irmã se envolveu
naquele acidente!
Svetlana gargalha cheia de histeria, faz sua
melhor expressão de tédio enquanto analisa as
unhas.
— Nunca desejei que Petrova se acidentasse
— justifica. — Foi uma fatalidade.
— Mas desejou que Mikhail me agredisse.
— Dou a volta na mesa, quero olhar em seus olhos
e ver o momento em que a queda assolar sua alma.
— Ele me bateu tanto naquele dia que eu só
consegui chegar até a casa de férias por causa do
choque. Depois que a adrenalina passou, até mesmo
as minhas pálpebras doíam quando eu piscava.
— O quê? — gagueja, um resquício de
humanidade permite que sinta alguma empatia. E
vergonha. — Eu não… não imaginei…
— Não imaginou que Mikhail fosse capaz
de ir tão longe? — Ivan desdenha. — Entra para a
fila.
— Vai me agredir agora? — Svetlana me
olha de cima abaixo com os braços cruzados na
frente do corpo.
— Sabe por que não vou bater em você,
Svetlana? Porque eu estou vendo nos seus olhos
como está arrependida do que fez e tenho certeza
que o seu maior desejo nesse momento é que eu
bata em você para amenizar esse arrependimento,
para você se iludir com a satisfação de eu ter me
vingado. Mas não vou fazer isso. Você vai embora
dessa casa e vai levar esse pecado. Ele vai te
consumir, te machucar de dentro para fora, e vai
causar tanta dor como nenhum tapa, soco ou chute
seria capaz de causar.
Dou as costas, volto para o meu lugar e tão
logo busco as mãos de Ivan. Se eram pontos finais
que buscávamos, esse enterramos para sempre.
— Queridinha! — Tatiana chama, estrala os
dedos e abana a mão para o lado da saída. — Essa é
a sua deixa para sair de fininho. Vamos, já fez a sua
grande entrada, aproveita e faz uma grande saída
para ninguém lembrar que você existe.
Svetlana enche os pulmões para responder,
mas pensa melhor e desiste. Com o rosto vermelho
e as mãos fechadas em punho, ela gira sobre os
calcanhares e corre para longe da sala. O último
som que emite é da porta da entrada sendo fechada
com força.
— Até que enfim o protótipo de víbora foi
embora, a mulher é tão peçonhenta que nem com
plano maligno conseguiu fisgar um marido. É por
isso que continuo com três filhos solteiros.
— Dois, mãe — Ivan lembra, mas é inútil.
— Temos que conversar, senhor Livannov
— demanda e não espera por resposta já que não
fez convite. Tatiana não é o tipo de mulher que
aceita ser contrariada em suas escolhas, apenas
passeia entre os assuntos como melhor lhe convém.
— É sobre Tasha — Ivan segreda no meu
ouvido. Isso sim machuca, e vai machucar ao longo
da eternidade. O ponto final entre nós e Tasha não
existe, é uma reticência, a promessa de um
reencontro que pode não acontecer.
Sem indagar, Dimitrio levanta e fecha os
botões do paletó. Beija o alto da cabeça de Petrova
e segue Tatiana na direção dos escritórios.
Ficamos apenas nós e o silêncio
constrangedor. O pior é que o mais estranho não é
termos que superar o retorno de Petrova, o choque
da morte que nunca aconteceu, nem mesmo a
questão de já termos nos entregado para o mesmo
homem ou o amor tresloucado que Ivan nutria por
ela. O mais estranho de verdade é reconhecer todas
essas pendências com uma completa estranha.
Somos irmãs, eu a amo infinitamente, mas
nunca fomos nós mesmas.
— Então, por onde começar — divaga,
testando as palavras. Tudo em Petrova continua
perfeito, sua plenitude não se encontra apenas no
corpo, mas em algum lugar entre a alma e o
paraíso. — Acho que preciso me desculpar com
você, Lara. Eu posso nunca ter contado diretamente
para o meu pai sobre seus planos, mas não acreditei
em você quando mais precisou.
Olhando assim, mais de perto, minha irmã
se parece muito com Aleksandra, a fragilidade e o
aspecto de alguém que foi castigado pela vida.
Naquela noite, ela saiu de casa dizendo que tudo
ficaria bem. Depois de cinco longos anos, começo a
acreditar.
— Nossa mãe sabia sobre você? —
pergunto ao invés de dar continuidade à conversa.
Tudo o que precisava ser revelado veio à tona,
revirar a bagunça só serve para tornar a abrir
feridas desnecessárias e ninguém precisa mais
sofrer agora que podemos arrumar tudo e viver
nossas vidas.
— Eu… não tenho certeza. Prefiro acreditar
que não. Bem, nós nunca saberemos de qualquer
forma.
Assim como nunca saberei o que motivou
seu sacrifício. Aleksandra foi enterrada no antigo
túmulo que pertencia ao caixão vazio de Petrova.
Muitos segredos foram revelados, mas os da minha
mãe se foram para sempre.
Alguns segredos merecem ser esquecidos,
no fim das contas.
— Por que, Petrova? — Ivan vai direto ao
ponto. — Por que você assinou aquele contrato
com Dimitrio?
— Você é muito bom, Ivan. O seu coração é
bom e foi por essa bondade que me apaixonei, eu
amava o seu coração. Mas quando não estava
comigo, você era outro Ivan, uma pessoa
totalmente diferente. Que ria alto, que perdia a
paciência, que se preocupava e que gritava se fosse
preciso. — Ela olha para a janela, admira as
estrelas que pintalgam o céu noturno. — O que nós
tínhamos, era um tipo diferente de amor. Não
aquele amor forte que une duas pessoas para
sempre. Você amava a minha irmã, mas a gente se
esforçava tanto para amar um ao outro que não
percebíamos como aquilo era desgastante. Foi
assim que eu me aproximei de Dimitrio. Quando
estamos ao lado de alguém que nos ama de todo o
coração, nos tornamos capazes de descobrir quem
somos de verdade.
— Quero que saiba que sempre fui
verdadeiro, apesar de tudo. Perder você me deixou
cego. Eu amei você, Petrova.
Procuro o ciúme dentro de mim, mas ele
não vem. Amo essas duas pessoas, amo com cada
fragmento do meu corpo. Se um dia tive dúvidas
sobre os sentimentos remanescentes entre os dois,
agora só sinto um carinho e respeito sem fim.
Petrova foi a primeira a perceber algo que nem Ivan
e nem eu havíamos notado, e ela mesma me fez
prometer um dia que sempre confiaria nela. Que
confiaríamos e apoiaríamos uma à outra em nossas
escolhas.
Era disso que estava falando, sobre seu
amor por Dimitrio e o meu por Ivan.
— Você não sabe viver pela metade, Ivan
— diz minha irmã. — Sempre quer tudo ao mesmo
tempo. Isso é bom, Lara merece alguém completo,
vocês se balanceiam.
— Nisso eu tenho que concordar — brinco,
meu sorriso se transforma sozinho. — Vocês vão
mesmo embora?
— Encontramos uma cirurgiã que pode me
ajudar, uma famosa ortopedista que veio dos
Estados Unidos por uma temporada, a quem
chamam de doutora Torres. Está em busca de
voluntários para testar um novo método de
reconstrução óssea. Quero tentar, quero… tentar.
A última palavra soa mais baixa, como uma
oração. Petrova quer uma nova chance.
— Podemos ir? — Dimitrio surge outra vez.
Sua máscara facial é impossível de ler, exceto
quando olha para minha irmã. Só existe ela em seu
mundo.
Eu e Ivan nos levantamos, ele abraça
Petrova primeiro. Faz uma carícia em seus cabelos,
um hábito que pertence aos dois e a mais ninguém.
Não deixo a fagulha do ciúme se alastrar. Minha
irmã faz parte de Ivan da mesma forma como Ivan
faz parte de mim, a única diferença é que a nossa
história é amante do futuro, enquanto a deles se
findou em um passado longínquo e inalcançável.
— Pense a respeito da herança. — Sorrio
sem discordar, curvo-me sobre a cadeira baixa e
abraço o pequeno corpo de Petrova, tão magro que
parece prestes a quebrar. — E obrigada por se
encontrar comigo. Me desculpe, Lara, me desculpe
de verdade.
A voz dela embarga, meus olhos se enchem
de lágrimas e as emoções são libertas. Fomos
injustiçadas pelo universo, mas não somos
exclusivas ao infortúnio. O ser humano tem essa
tendência às catástrofes, é tão natural como as
folhas caírem no outono.
Os vinte minutos seguintes são um
amontoado de despedidas e planos para encontros
futuros. Na próxima vez que nos vermos, será para
uma experiência aprazível e familiar, sem
problemas a serem esclarecidos e nem superados.
Enquanto Ivan acompanha os dois até a
saída, subo para o segundo andar, passo na frente
do nosso quarto e continuo rumo ao quarto
entreaberto de Iago. Espio pela fresta na porta, a luz
do abajur projeta estrelas rodopiantes na parede.
Tatiana está ali, conversando com meu filho sobre
algum filme de fantasia.
A companhia do neto se tornou o refúgio da
matriarca. Em algum momento entre agora e os
próximos anos talvez ela tenha que aceitar a volta
de Tasha como uma possibilidade exígua. A
conversa com Dimitrio não deve ter concedido as
respostas que ela queria, caso contrário estaria
movimentando uma pequena equipe para buscá-la
agora mesmo.
Tatiana pode ser excêntrica e potente, mas
onde se escondem os corajosos nos momentos de
derrota?
Sigo para o quarto e, enquanto Ivan não
vem ao meu encontro, aproveito para tomar banho
e vestir um pijama confortável, curto e sugestivo.
Saio do banheiro e encontro meu noivo
sentado na poltrona ao lado da cama, tem os olhos
fixos na nossa cama, mas duvido que a mente esteja
presente. Encosto no arco da porta, admirando meu
homem em silêncio. Ele é lindo, sensual, uma
infinidade de adjetivos que viajam entre qualidades
e defeitos, mas que não deixam de me atrair.
Todos os irmãos Volkiov são lindos, ícones
em termos de masculinidade e sedução, mas Ivan se
destaca dos outros por conta dos cabelos mais
claros, a atmosfera misteriosa e reclusa que nos
instiga a desejar mais da sua verdadeira
personalidade.
Nossas noites são assim, descobertas que se
refazem todos os dias, de todas as formas,
exatamente como prometido. Em cada instância da
minha vida eu assumi o controle. Como mãe,
invisto todas as gotas do meu amor para que Iago
nunca duvide de que faz parte de mim; como
esposa, aprendi a colocar limites e priorizar
diálogos; como secretária presidencial, não aceito
menos do que a perfeição. Mas no tocante à nossas
experiências sexuais, o controle capaz de rejubilar
as minhas necessidades pertence a Ivan.
Admiro suas pernas já despidas, a sombra
que se projeta no contorno dos músculos, a
coloração dourada dos pelos. Sua cueca preta sofre
para esconder a sobressaliência no centro, finda
abaixo do abdômen desenhado com vários vincos.
A camisa aberta pende de cada lado do corpo,
elevam a minha vontade de acariciar seus braços,
de sentir o torso cálido se encaixando com o meu.
Isso sim é melhor; chega de fantasmas,
pessoas mortas e mentiras. Eu tenho o homem mais
lindo do mundo todo para mim!
— Gosta? — diz, rouco e com os olhos
cerrados.
— Muito — confesso, mordendo o lábio.
Só uma idiota para não gostar, convenhamos. —
Gosto mais ainda agora que tudo acabou.
— Isso é música para os ouvidos. — Ele se
levanta, gira o pescoço de um lado para o outro. A
respiração descompassada abala as minhas
estruturas e meu pulmão traidor corre para
acompanhar seu ritmo ofegante. É esse o poder que
exerce sobre mim quando estamos a sós, nada
aconteceu ainda e já estou no limite. — Acabou,
acabou de verdade. — Retira a camisa, joga no
outro lado do quarto, satisfeito com minha estática,
um efeito colateral recorrente que me causa. —
Toda a merda vai ficar no passado, agora a história
é nossa e isso mexe comigo em um nível que não
consigo descrever.
— Sinto o mesmo — consinto, andando
mecanicamente para ele, atraída pelo mesmo
magnetismo que me fez apaixonar quando sequer
compreendia o amor. — Que reviravolta bizarra,
quem poderia imaginar uma coisa dessas? Depois
de tudo o que passamos, é surreal que tudo fique
apenas assim, bem.
Uma risada rouquenha evade dos lábios de
Ivan. Ele realiza seu ritual preferido, fecha as mãos
ao redor do meu pescoço e massageia a parte de
trás das minhas orelhas com o polegar.
— Vamos comemorar — sugere, volteando
minha pele com os dedos, descendo ao longo dos
ombros até a extensão dos braços, sem permitir que
o toque se concretize. Meu corpo arrepia com o
prenúncio do seu domínio.
— Comemora comigo — imploro, gemo,
sussurro, é difícil ter certeza. Talvez minhas
palavras soem desconexas nessa altura.
Ivan me ergue nos braços, sinto a pressão da
sua força quando nos gira e me joga sobre a cama.
O colchão agita e esse simples gesto amplia o
desejo fugaz que se retorce no âmago da minha
intimidade. Parado sobre mim, contempla o próprio
arbítrio. Somos livres agora, mas nos possuímos
mutualmente. Livres dos problemas e do
sofrimento, presos na luxúria e no amor.
Ele sobe na cama, dedilha minhas pernas ao
mesmo tempo que se posiciona entre elas. Os
tecidos ainda nos separam, mas a pressa é — e
sempre foi — nossa inimiga. Não precisamos trocar
nossas horas de prazer pelos minutos do desespero.
Com os cotovelos apoiados no colchão, Ivan
inclina acima de mim, leva os lábios até o meu
ouvido e perco a última nota de sanidade enquanto
ele sussurra:
— Eu vou comemorar em você, Lara. Meu
filhote de tentação.
CAPÍTULO 41
Entre Perdas e Ganhos

É HOJE O grande dia. Se não sou o cretino mais


sortudo desse mundo, homem nenhum pode ser.
Apoio-me sobre os cotovelos para admirar o sono
tenro de Lara, seu rosto moldado pela paz da
dormência e o corpo despido.
Ela nem desconfia do que vai acontecer.
Os cabelos curtos esparramam sobre o
travesseiro branco, distribuem-se como as raízes de
uma planta. Não bastasse ser a mulher mais sensual
com quem já dividi uma cama, ela agora resolveu
que não precisa mais das roupas para dormir,
afinal, introduzimos nossas noites sempre com
muita fome um do outro.
O problema é quando o dia amanhece e
meus olhos são cativados com a bela imagem dessa
pequena tentação completamente nua ao meu lado.
Fico dividido entre ignorar o descanso e despertá-la
com a minha excitação evidente pairando acima das
suas curvas, ou controlar meus próprios instintos
até que seus olhos se abram daquela maneira
sedutora que nos conduz para o mesmo destino.
Agora, o passado soa como uma realidade
alternativa, uma ficção dramática que nunca existiu
de verdade, a não ser nas páginas de um livro
esparso ou nos negativos de um filme antigo.
Talvez seja esse o sentimento chamado por muitos
de superação. Se existiu uma vida antes de Lara,
significa muito pouco.
Toco a sinuosa linha que se estende ao
longo do pescoço até desenhar a ponta do seu
ombro esquerdo, absorvo a maciez da pele
cristalina e a reação súbita no arrepiar dos pelos
raros. Nunca vou me cansar disso, vasculhar com o
tato aquilo que me pertence. Lara é minha, não no
sentido antiquado de propriedade, mas por fazer
parte de quem eu sou. De mim.
Não resisto, deslizo a ponta dos dedos ao
longo do braço, desvio para a cintura curvilínea que
me guia para o arco dos quadris. Isso não colabora
em nada para o meu controle. Vamos querida,
penso na esperança de não precisar agir como um
selvagem, acorda para mim.
— Bom dia — sussurra com a voz rouca e
os olhos fechados.
Obrigado!
— Ótimo dia. — Não espero que conclua o
esvair do sono, impulsiono e giro nossos corpos até
me acomodar sobre ela, com nossas pernas
entrelaçadas e seus seios friccionados no meu torso
igualmente desnudo.
Lara sorri segundos antes de me enternecer
com suas órbitas castanhas. As pálpebras levantam
com moleza e essa vulnerabilidade manda para o
espaço a porcaria da contenção. Sem a recusa,
experimento o sabor do seu pescoço, seguro a parte
de trás da sua cabeça e controlo os movimentos de
ambos a favor dos meus desejos.
— Ivan — chama entre um suspiro e uma
risada suave. — Vamos fazer isso no banho, eu
nem escovei os dentes.
Queria ter eloquência o bastante para refutar
esse argumento. Poucas coisas são mais prazerosas
do que sexo matinal, seja ele com hálito adverso ou
não. Acontece que é difícil demais controlar a
mente, as emoções, o desejo e a oralidade ao
mesmo tempo, sobretudo se os pensamentos estão
todos localizados na parte inferior do corpo.
— Vamos fazer isso agora — determino.
— E no banheiro também.
Começamos com braços e pernas em
movimento, carícias infindáveis que vão se
tornando cada vez mais agressivas. A personalidade
de Lara transborda com a confiança que aprendeu a
ter em si mesma e no nosso amor, ela se oferece de
corpo e alma e permite que me sacie da sua
essência.
Segurando os travesseiros com as mãos
esticadas para trás, Lara inclina a cabeça e encaixa
os quadris no mesmo ângulo que os meus. A
ganância me impede de elaborar preliminares
envolventes, mas quando a minha pele se funde
com a dela, os gemidos que nos escapam
comprovam a prontidão inegável. Ela está sempre
pronta, sempre essa tentação.
Somos selvagens e rápidos no quarto,
calmos e amorosos no banheiro. É assim com a
gente, instável, mutável e deliciosamente
imprevisível. Mesmo depois de me esparramar
dentro dela, de sentir o limite do seu prazer ao se
contorcer nos meus braços, eu daria qualquer coisa
para continuar nosso ritual da manhã até ele se
tornar noturno.
Quase duas horas depois, finalmente
consigo ficar apresentável para sair do quarto.
Arrumo a gravata vermelha no espelho enquanto
Lara corre de um lado para o outro.
— Tenho uma reunião com o seu irmão
daqui uma hora — reclama enquanto vira as costas
para eu fechar o zíper do seu vestido. Não entende
nada, absolutamente nada sobre os limites de um
homem. — E você sugou todas as minhas energias.
— Eu já disse que amo a sua coluna
vertebral? — murmuro, encostando os lábios na
linha da sua orelha. Coloco as duas mãos de cada
lado do corpo, Lara relaxa e inclina o pescoço. Puta
merda, ela nunca resiste, é cem por cento minha.
Distribuo alguns beijos na sua nuca, ciente
de que vai me recriminar assim que meu poder
sobre seus sentidos for interrompido. Subo o zíper
devagar, o tecido vai se moldando ao corpo e fico
tentado a descer outra vez. Ela suspira, abre os
olhos e vira com o semblante irritado.
— Quem ama colunas vertebrais, Ivan? Seu
irmão vai me matar! — Corre para calçar um par de
sandálias de salto. Penteia o cabelo com os dedos e
passa um creme de aspecto duvidoso nos fios, deixa
tudo bagunçado e sexy. Bagunçado e sexy é bom,
muito bom. Quão irada ela ficaria se eu a impedisse
de chegar a tempo nessa reunião com Vladimir? —
Nem pense nisso!
— Nisso o quê? — Faço-me de
desentendido — Não estou pensando nada.
— Eu conheço essa cara de quem não se
deu por satisfeito e está tramando me levar de volta
para a cama. — Lara inclina sobre a penteadeira
para colocar um par de brincos, presenteando-me
com a visão das suas pernas arqueadas. Que droga
de vestido curto, justo. Delicioso.
— Você já se olhou no espelho? Eu nunca
vou ficar satisfeito de você — resmungo mais para
mim do que para ela.
Lara solta uma risadinha, abre gavetas e
joga um monte de objetos dentro da bolsa. Ela não
para, meu pequeno furacão particular. Nos últimos
quatro meses, desde a partida de Petrova e Dimitrio
para o sul, conquistamos a liberdade que por tanto
tempo almejamos.
É tão diferente não sentir mais raiva o
tempo todo. Até Bóris limitou nossas consultas
para um encontro apenas ao mês. Desconfio que
tenha ficado feliz, não me enquadro como o melhor
dos clientes e sua paciência é muito limitada.
Mesmo aposentado e com métodos irregulares e
antiquados, visitar aquele psicólogo foi uma das
melhores decisões que já tomei.
Graças a ele, continuo aprendendo mais
sobre mim e a família que estou formando. Em
nossas últimas duas consultas a discussão girou ao
redor da última peça que faltava para ficarmos
definitivamente livres do passado.
— Vou almoçar com Dema no café — diz
Lara de repente, trazendo-me para a realidade. —
Ela ligou mais cedo e está um pouco surtada por
causa da barriga. Parece que Aleksander disse
qualquer coisa sobre ela estar mais atraente do que
nunca e agora ela colocou na cabeça que ele tem
fetiche por mulheres acima do peso. — Lara faz
uma careta, enrugando o nariz. Esse casal de
amigos supera a gente na esquisitice. — O que
faz zero sentido.
— Como ela está? E o bebê?
— Bem! Disse que vão descobrir o sexo na
semana que vem, isso se fizerem as pazes de novo
até lá.
— Tenho pena de Aleksander — brinco.
— Eu também — Lara responde mais séria.
— Dema já é naturalmente pirada, com a gravidez
virou uma bomba! Mas o amor dos dois é tão
bonito, não é? Um amor louco, não nego, mas
bonito.
Os olhos de Lara desfocam, seus
pensamentos refletem no semblante todo carinho
que sente pela amiga. Ainda não conversamos
sobre outros filhos, mas eu morreria em uma
overdose de amor assim que avistasse a imagem
dela carregando um filho meu.
Merda, isso deveria ser tão sexy assim?
Como os casais planejam essas coisas?
Calma, preciso ser cauteloso.
Ultimamente tenho conversado comigo
mesmo, repenso cada ação antes de executar, assim
as chances de agir impulsivamente diminuem. Não
posso mais tomar decisões antes de pensar, pois
tenho a tendência de pensar errado ou demorar para
entender o pensamento. Por Lara e Iago, preciso me
esforçar.
— Conseguiu falar com a sua irmã? —
investigo. Quero saber se existe a possibilidade de
alguém ter contado para ela que os papéis ficarão
prontos hoje.
— Falei com Dimitrio e Petrova ontem. Ela
me ligou e decidimos manter a mansão por
enquanto. Mikhail vai ser julgado em breve, mas o
que restou dos seus bens já está sendo confiscado.
Minha irmã está negociando o desmembramento da
empresa, grande parte vai se fundir com a empresa
de Dimitrio depois que se casarem, o restante
vamos manter em uma poupança até que o
investimento ideal apareça.
Ótimo, ninguém deixou escapar nada ainda.
Deixo um beijo casto na testa dela antes que use
seus poderes para ler a minha mente. Lara merece
mais do que um apaixonado que só pensa em enfiar
uma trupe de crianças na sua barriga maravilhosa.
A gente nem se casou ainda!
Minha família diz que sou lerdo e
impulsivo, tenho que concordar. Cometi muitos
erros, alguns imperdoáveis. O mínimo seria passar
o resto dos meus dias buscando redenção,
garantindo que seus sonhos se realizem. Hoje é a
primeira realização de muitas.
Somos tão felizes agora que Mikhail está
preso. Eu mesmo me certifiquei que seu nome fosse
aniquilado do mundo empresarial. O que tenho para
oferecer à Lara além do meu amor incondicional?
O que ela deseja mais do que a própria vida?
A resposta é mais clara que a luz do sol.
No primeiro andar da mansão, escuto a
risada maquiavélica da minha mãe, ela tem esse
hábito de parecer um pouco assustadora quando
está feliz demais. Desde que Iago chegou, a rotina
de dona Tatiana passou a incluir meu filho em cada
segundo do dia. Não acho que ela seria capaz de
continuar vivendo sem ele agora que aprendeu o
verdadeiro significado de ter um neto.
Na sala de refeições, a mesa está posta com
o exagero alimentício de Tatiana. Ela deve achar
que a quantidade de comida vai atrair mais netos ou
que o número de cadeiras vai ser preenchido
contanto que estejam disponíveis para começo de
conversa.
Minha mãe negocia com Iago, os dois
fazem planos para o restante da manhã durante a
visita da assistente e do juiz. Ela já sabe o que vai
acontecer e pela primeira vez conseguiu guardar
segredo. Como não realizamos o procedimento
apropriado de adoção, uma analista nos visita duas
vezes ao mês para se certificar das condições de
adaptação com a nova família.
Essa será a última vistoria e vai ser
acompanhada por um juiz competente. Depois
precisaremos apenas que Vladimir abra mão da
tutela provisória para que possamos registrar Iago
com o sobrenome da família, o que Andrei já
providenciou com antecedência.
— Ivan, querido — diz minha mãe
sugestivamente —, acordou tarde. Onde está Lara?
Se sentindo bem?
— Eu estava um pouco cansado —
desconverso, sei bem em que tópico pretende
chegar. — E vocês, o que estão tramando?
— Tatiana quer visitar a empresa — explica
Iago.
— A vovó quer visitar a empresa! —
corrige. Iago concorda com a cabeça. O medo de se
entregar é subjetivo, não intencional. Ele não
percebe que está usando nossos nomes, por mais
que a gente explique. É uma contenção profunda
que se infiltrou no pequeno coração. — Bom dia,
tio! — exclama Iago. Olho para trás e Vladimir está
entrando com uma pasta nas mãos.
Tatiana bufa com um ciúme evidente.
— Em casa ainda? — pergunto. — O que
eu perdi?
— Acabei de chegar, saí cedo para visitar o
terreno do clube. As obras estão rápidas, mas o
terreno me preocupa.
— Vocês estão construindo um prédio? —
questiona interessado. Deixa o garfo fincado na
torta de limão e se concentra em nós dois.
— Roman está construindo o prédio, um
clube familiar. Eu e seu pai cuidamos das
negociações com potenciais investidores, toda a
parte burocrática. — Vladimir acha que Iago
compreende esses termos.
— Também quero construir prédios algum
dia. O maior de todos, bem grande mesmo.
— E o que você quer fazer com esse prédio,
Iago? — Vladimir se interessa. Não acredito que
vai debater sobre negócios e investimentos com
uma criança.
Meu filho coça a cabeça dourada, revira os
olhos e mantém um contato visual com Vladimir
que muitos homens de terno e gravata evitam.
— Não quero o prédio, só construir o
prédio. É diferente. Igual ao Roman, ele só
constrói, não é?
— Pragmático demais, você precisa de um
objetivo. Um motivo. Seu tio Roman estudou para
ser o nosso engenheiro, ele constrói prédios porque
gosta de ver o projeto saindo do papel, mas também
porque não consegue ficar preso dentro do
escritório por mais que duas horas.
É para rir.
Iago concorda com a cabeça, mas não
responde. Ele absorve a informação e guarda, em
algum momento vai voltar com esse assunto, pois é
assim todas as vezes. A cabeça de Iago está sempre
trabalhando, fazendo conexões que demoramos
para acompanhar algumas vezes.
Outro dia, escutei Iago falando sozinho no
quarto. Estava dando boa noite para Tasha e
descobri que faz isso todos os dias antes de dormir.
Minha mãe movimentou uma equipe de
investigadores para encontrá-la, mas Dimitrio
confidenciou que a própria Interpol desistiu de
encontrar as crianças que foram vendidas por
Mikhail.
Ela não vai desistir — nós não vamos —,
mas vai doer todas as vezes. Talvez, no futuro, Iago
se dê conta da perda, e pensar na sua dor faz algo
dentro de mim se partir. A ideia de adotar aquela
pequena fadinha foi tão intensa, como se ela
estivesse destinada a nós.
O universo costuma nos tirar o que há de
mais precioso, mas algum dia, não importa quando
tempo demore, Tasha vai voltar para nós.
O silêncio dura apenas alguns minutos,
Tatiana muda o rumo do assunto.
— Vou levar Iago para a empresa no
horário combinado
— Ivan, os papéis estão prontos, vai dar
tudo certo — diz meu irmão mais velho, deixando
um tapinha leve no meu ombro. — O escritório vai
estar vazio depois do primeiro turno. Andrei vai
deixar tudo pronto. Se quiser, posso levar Lara.
Temos uma reunião daqui a pouco, você pode ir
primeiro.
Deixo para tomar café no trabalho. Depois
de passar uma série de orientações para minha mãe
não espantar a assistente, dirijo até a empresa.
Encontro Andrei sentado atrás da mesa de
vidro que compreende boa parte do seu escritório
imaculado. As cortinas abertas permitem que a luz
do sol invada o ambiente, atribuindo a cada móvel
branco a impressão de brilharem. Meu irmão mais
novo é apenas uma sombra à frente da iluminação,
seus contornos denunciam os ombros cansados e os
cabelos despenteados.
— Ivan — cumprimenta, soltando os papéis
que tem em mãos, e encosta na cadeira de couro
branco. — Algum problema?
— Queria saber como anda os papéis
definitivos da adoção de Iago. —Aproximo-me
devagar. Andrei balança a cabeça e coça os olhos,
suspirando profundamente. — Você está bem?
Parece exausto — questiono.
Puxo uma cadeira e sento de frente para ele.
Meu irmão mais novo nega com a cabeça, suspira
como se esse gesto simplório causasse uma
sofreguidão física.
— Só um pouco sobrecarregado. Eu e
Evgenia… — Não conclui a frase, suspira e abana
a mão. — Não vamos falar sobre isso. Do que
precisa?
— Você sabe que pode contar comigo se
estiver com problemas — insisto. É óbvio que
Andrei está enfrentando alguma coisa difícil.
— Não dessa vez — explica todo recluso.
Assume o tom profissional de advogado chefe: —
Você veio buscar os documentos do Iago? Estão
aqui. — Estende uma pasta que apanho como se
contivesse a essência da vida.
— Sim, Tatiana vai trazer Iago na hora do
almoço. Lara vai estar no café com Dema, deve
demorar.
— É tempo suficiente para tudo ficar
pronto. Hoje é a última visita, o juiz que vai
entrevistar Iago pode liberar a emissão do registro
imediatamente após sua decisão final. Ansioso?
— Não quero forçar essa ideia na cabeça
dele, entende? Mas estamos esperando há tanto
tempo. Pode ser loucura da minha cabeça, mas
acho que só falta isso para ele se sentir parte da
nossa família de verdade.
Lara me contou que, uma vez, Iago a
chamou de mãe sem querer, em um dia cheio de
dores e demônios. Eles precisam um do outro, os
meus amores que foram privados da entrega. Posso
fazer isso, devolver o tempo que perderam, as
experiências que foram roubadas, inclusive por
mim.
Iago não entende figura de linguagem,
metáforas; não interpreta os acontecimentos ao seu
redor com a mesma ludicidade que as outras
crianças. Ele precisa de sustentação, que as
sentenças sejam concretas e as verdades ditas com
precisão. Iago precisa que demonstremos sua
permanência definitiva nas nossas vidas assim
como Lara uma vez exigiu que eu comprovasse o
meu amor para curar sua insegurança.
Palavras não são suficientes para uma
criança que sempre viveu à beira da solidão.
Por algum motivo, Vladimir conseguiu
conquistá-lo antes que todos nós, é o único que
Iago se sente à vontade para chamar de tio. O irmão
que fez uma coisa que nós não conseguimos fazer.
Ele tirou Iago daquele orfanato, ele abraçou o meu
filho, olhou em seus olhos e garantiu que sairiam
de lá.
Jamais vou permitir que alguém tire Iago e
Lara de mim. No meu futuro, os dois são como as
correntezas do tempo, os mares pelos quais
navegarei.
— Parabéns, Ivan — Andrei me diz. Passo
os olhos nos espaços destinados a mim e Lara —
Está tudo pronto. Assim que o juiz der sua palavra
final, vocês podem assinar. Obrigado por fazer isso,
Lara é como uma irmãzinha, quero que sejam
felizes.
— Nós seremos — afirmo sem dúvida
nenhuma.
As horas passam lentamente. Lara fica presa
com Vladimir durante toda a manhã. Nesse meio
tempo, Tatiana me envia mensagens detalhadas
sobre a visita do juiz, suas falas e a aparência
enfadonha do homem.
A última mensagem com a decisão chega ao
mesmo tempo que meu irmão advogado entra na
sala.
Deu certo.
— Só falta vocês assinarem. Mamãe já está
a caminho com Iago e Lara ainda não voltou do
almoço. Boa sorte!
Abraçamo-nos e Andrei sai da minha sala
rumo aos elevadores. O andar dos quatro escritórios
presidenciais está vazio, exceto por mim e a euforia
que me cerca. Começo a andar em círculos,
olhando o relógio a cada segundo. Uma eternidade
depois, o elevador apita anunciando a chegada de
alguém.
Vejo Lara primeiro, com seu vestido
sensual — as lembranças do nosso amor pela
manhã me inundam, tornam esse momento mais
especial. Tatiana tenta ser sutil, solta a mão de Iago
e tenta sair despercebida para nos dar privacidade.
— Mãe, a senhora poderia esperar um
momento?
Tatiana fica sem entender, mas quero que
ela esteja presente. Ela merece, afinal é parte do
sonho dela se concretizando também. Para nós, não
muda nada de verdade. O que guardamos no
coração é maior e infinitamente melhor do que um
processo jurídico, mecânico e frio. Iago ser meu
filho é tão certo quanto a lua girando ao redor do
nosso planeta.
Mas a vida é feita de conclusões, de etapas
vencidas e recomeços. Essa é a prova de que a
esperança deve ser mantida mesmo pelos
desafortunados.
— O que está acontecendo? — Lara
pergunta um pouco desconfiada. Aceno para que
sigam até o escritório que me pertence dentre os
quatro daquele andar. Assim que entramos, Tatiana
senta em uma das cadeiras de espera com a coluna
ereta e o olhar cheio de orgulho.
Entrego a folha para meu filho.
— Ivan, isso é… — Lara começa a dizer,
mas um soluço rouba suas palavras. Ela já
entendeu.
Iago olha para o papel e franze as
sobrancelhas enquanto vai lendo as palavras
devagar, sussurrando algumas sem perceber. Foco a
atenção em suas emoções, quero me lembrar desse
momento, ter certeza de que minha memória
entalhe cada pequeno detalhe nas paredes da alma.
Ele inclina a cabeça na hora que começa a
compreender do que se trata o documento, a ponta
do nariz adquire uma coloração rosada e a folha
emite o ruído do seu tremor contido. É
emocionante, lindo. Essa criança é um verdadeiro
Volkiov, sem mais e nem menos.
— Iago Ivanovich Volkiov — murmura, a
voz fina embargada pela vontade de chorar. É
surreal, me destrói e reconstrói. — Ivanovich —
repete meu patronímico. — De Ivan.
Era uma surpresa para Lara, mas me sinto
contemplado. Algo tão simples como um pedaço de
papel fez toda a diferença para Iago. Nós
deveríamos ter imaginado, palavras são apenas
palavras para uma criança de oito anos que já
recebeu todo tipo de promessa; que se alimentou da
esperança de pertencer à Lara, mas não podia
chamá-la de mãe.
— Sim, meu filho. — Controlo a vontade
de chorar, ainda não acabou. — E bem aqui, está o
nome dos seus avós maternos e paternos. —
Aponto para o local no documento em que estão
registrados os nossos nomes. Andrei conseguiu
deixar o nome de Mikhail fora do registro, o que
exigiu alguns dias a mais de estudos e negociações,
mas valeu a pena.
— Tatiana Pavlovna Volkiova — lê. Sorri
para minha mãe e mostra o papel, apontando para a
linha que compreende seu nome. — Você é mesmo
uma avó, quem diria!
— Eu disse que sim! Sou sua avó.
— Vó Tatiana — Iago testa pela primeira
vez; esse menino não nasceu com tato. Minha mãe
coloca a mão sobre o peito, sem nada da sua
atuação dramática. Dessa vez é de verdade.
— Vovó Tatiana — testa outra vez. — Vovó.
— Vamos com calma, menino! Assim eu
caio morta no chão.
— Iago — chamo enquanto minha mãe se
recupera —, você pode perguntar para Lara se ela
aceita ser a mulher das nossas vidas? — Pego uma
caneta e assino no lugar indicado pelo meu nome.
Depois entrego tudo para o menino que foi o mais
forte diante das perdas, que nos ganhou com seu
amor inocente e que manteve a esperança dentro
da mulher que habita o meu coração.
Amor.
Nós, como seres humanos falhos,
desconhecemos a imensidão desse sentimento, mas
nas horas mais necessárias ele se manifesta,
preenche-nos e elimina qualquer dúvida.
— Você disse que não me pediria em
casamento — brinca Lara com as mãos sobre a
boca e os olhos brilhantes em decorrências das
lágrimas de felicidade.
— Eu disse que não faria tantas coisas, meu
amor. — Seu sorriso está congelado no rosto e eu
vou fazer de tudo para que nunca mais saia. — Eu
disse que não faria tantas coisas que desejo fazer a
todo instante e fiz outras tantas das quais me
arrependerei para sempre. Realmente, esse não é
um pedido, mas uma certeza. Lara, nós vamos nos
casar e agora o mundo todo pode ficar sabendo,
porque é real como deveria ter sido desde o
começo.
Daqui dez ou vinte anos, eu não saberei
dizer qual de nós estava chorando mais, mas eu vou
me lembrar da emoção que corre dentro de mim.
Um organismo vivo e benevolente, completo.
— Mãe — chama, tímido e determinado ao
mesmo tempo. O filho de duas criaturas
contraditórias como Lara e eu só poderia ser assim.
Entrega os objetos nas mãos trêmulas de Lara —
Você aceita?
Lara permite que o choro se desfaça pelo
rosto, puxa Iago para um abraço e soluça. Junto-me
a eles e logo somos um amontoado disforme de
abraços, beijos e lágrimas.
— Sim, meu amor, eu aceito. Sempre
aceitei, desde o começo. Você sempre foi meu,
Iago. Sempre! Eu viveria essa história outras mil
vezes se fosse preciso, porque eu amo vocês e esse
amor supera, cura e se multiplica.
— Eu ouvi um amém? — Roman grita
entrando no escritório; sequer ouvimos o elevador.
— Vamos, não me julguem, é o que todos estão
pensando. Aliás, a ideia de escutar atrás da porta,
apesar de genial, não foi minha!
Uma salva de palmas procede a declaração.
Estão todos aqui, meus irmãos, minha família. Já
devia suspeitar que viriam. Somente agradeço em
silêncio enquanto capturo Lara com um beijo
profundo e carregado de mais revelações que
apenas nós conseguimos interpretar em um idioma
particular.
Entre perdas e ganhos, Lara me ajudou a
entender que o amor é capaz de resistir mesmo
quando não sabemos da sua existência, que não
importa o tempo ou as adversidades, a gente
sempre pode se arrepender, se transformar e nos
doarmos para aquilo que realmente importa. E Lara
é o que mais me importa hoje, amanhã e para
sempre.
EPÍLOGO
Sempre e Sempre e Sempre

O PROBLEMA COM os casamentos é que são


eventos feitos únicos e exclusivamente para as
noivas. O homem se torna um simples coadjuvante
que finge estar ocupado durante os preparativos;
porque, convenhamos, não existe nenhuma função
essencial a ser executada pelo noivo além de levar
as alianças e dizer sim quando o padre perguntar.
Minha preocupação real é com a lua de mel.
Deus abençoe as luas de mel! Uma semana inteira
com aquele filhote de tentação todinho para mim.
Se o paraíso existe, com toda certeza se chama lua
de mel.
Enquanto a casa se transforma em uma
dimensão completamente diferente, com pessoas e
mais pessoas trabalhando e redecorando cada
centímetro da área externa, aproveito para me
esconder de Vladimir.
Meu irmão já nos arrastou para uma reunião
que durou mais de duas horas, tudo por causa
daquele clube e a proprietária da casa. Que tipo de
pessoa convoca um noivo para participar de uma
reunião de negócios no dia do próprio casamento?
Alguém precisa avisar o presidente que escravidão
é crime!
Caminho pelos corredores mais ermos da
mansão pensando na minha mulher, em como
descobri a capacidade de me apaixonar todas as
manhãs um pouco mais, de sempre encontrar um
novo detalhe em seu corpo que faz aumentar o meu
desejo.
Em como me tornei um viciado no amor.
Passo na frente do quarto de Iago e resolvo
entrar. Fica ao lado do novo aposento que eu e Lara
escolhemos, embora ele tenha adquirido o hábito de
vaguear pelo quarto dos tios quando acorda no
meio da noite — por algum motivo, meu filho
nunca escolhe nosso quarto nesses casos e
desconfio que Tatiana tenha alguma coisa a ver
com isso.
Ele mesmo escolheu a decoração, desde os
tons de azul nas paredes até as estrelas no teto. Há
uma coleção de pequenas fadas em uma prateleira
ao lado da cama, a maioria com os cabelos ruivos.
Pego a menor delas, uma escultura com asas curtas
feitas com cristais verdes, o mesmo tom dos olhos
de Tasha.
Nossa fadinha desaparecida.
Se estivesse aqui hoje, se juntaria à nossa
família na primeira fila de convidados e seria uma
das primeiras a nos abençoar. Posso imaginá-la
atravessando o longo jardim junto com Iago, cada
um com sua iluminação própria, como dois astros
coexistente em uma galáxia cheia de grandes
estrelas.
Já fazem nove meses e tudo que
encontramos é sua poeira espacial. Vestígios que
nos enchem de esperanças e becos sem saída. Mas
o pior nessa situação toda é escutar Iago se
despedindo dela todas as noites antes de dormir.
Boa noite, Tasha…
Coloco o objeto de volta e saio rumo ao
primeiro andar. O pandemônio na cozinha da
mansão pode ser ouvido desde a escadaria até a
porta de entrada, por onde funcionárias entram e
saem com os pratos que comporão nossa mesa de
festas.
Tenho medo de encontrar com Tatiana em
um dos corredores. Ela transformou esse casamento
em uma missão e só no dia de hoje já quase me
causou três ou quatro paradas cardíacas com seus
ataques de ansiedade.
Paro na frente do espelho que foi realocado
da sala de jogos para o Hall — por algum motivo
ainda desconhecido por mim — e confiro meu
reflexo. Do outro lado, o homem que me encara
com seu terno escuro e gravata borboleta vermelha
está sorrindo, extremamente feliz.
Eu diria que há muito de Tatiana na minha
aparência; assim como em Roman, o principal
atributo vinculado a ela é o cabelo vários tons mais
claros de marrom — sua cor natural antes de se
entregar às intervenções capilares. Embora não
tenha os mesmos olhos claros e azulados que a
matriarca, o contorno das minhas pálpebras e o
desenho arqueado nas sobrancelhas me permitem
reconhecer sua herança genética.
Apenas Andrei e Vladimir possuem várias
características de Nicolai — principalmente os fios
pretos e a estrutura facial robusta.
Meu pai.
Não costumo pensar muito na morte de
Nicolai. Se estivesse aqui, ele provavelmente teria
um conselho muito altruístico preparado, faria o
brinde mais longo de todos durante a festa e
dançaria com minha mãe na maior parte do tempo
para garantir que todos vissem a mulher magnífica
com quem havia se casado.
Ele venerava Tatiana como uma rainha.
E ela de fato é.
— Eu juro pelos ossos do seu pai que se
você não estiver no altar daqui dois minutos eu
serei obrigada a te arrastar na frente de todas
aquelas pessoas — esbraveja minha mãe,
aparecendo de algum lugar desconhecido como se
meus pensamentos a tivessem atraído. — Que tipo
de noivo é você, Ivan? Não está preocupado com a
lua de mel? Quanto antes você casar, mais rápido
vai transar. Sabe o que acontece quando as pessoas
transam? Crianças nascem!
Uma rainha malvada, concluo.
Se ela soubesse como estou ansioso para o
fim dessa cerimônia não diria esse tipo de coisa.
— Mãe — chamo, abrindo os braços. —
Vou me casar! Sabe como me sinto nesse
momento? Um filho da puta sortudo!
— Puta era sua avó, meu anjo! Minha sogra
querida!
Gargalho alto. Coitada da falecida, mesmo
que nunca tenhamos conhecido a pobre mulher.
Revirando os olhos, completamente sem
paciência para sentimentalismos, Tatiana coloca as
mãos na cintura. Mas não posso fazer nada, estou
sentimental, sou a porcaria de um apaixonado que
enxerga o mundo em tons de rosa e imagina
unicórnios voando no céu. Ergo uma sobrancelha,
esperando que retribua meu gesto.
Desistindo da ideia de me repreender, ela
levanta as barras do vestido longo e se aconchega
em meus braços. Embora tenha resolvido manter os
cabelos platinados, não parece nem um ano mais
velha — pelo contrário. É linda, sempre foi a mãe
por quem meus colegas da escola costumavam se
apaixonar.
— Parabéns, meu filho, estou muito
orgulhosa de você — diz baixinho afagando as
minhas costas. — Hoje é um dos dias mais felizes
da minha vida. Depois de parir quatro filhos e
ganhar um neto, poucas coisas são capazes de
trazer felicidade ao coração de uma idosa.
Não deixo de sorrir quando ela puxa meu
rosto para baixo e beija a minha testa, como se eu
fosse um garotinho recebendo uma estrela de bom
comportamento. Minha mãe pode ser dramática,
mas é isso que a torna um ser humano tão precioso
e único.
— Acho que nunca cheguei a agradecer
você, mãe. Ou me desculpar por ter ido embora,
não de verdade — digo, afastando-me. — Aqueles
anos foram os piores da minha vida, eu nunca
deveria ter partido.
De mãos dadas, ela sorrateiramente começa
a me puxar na direção da saída enquanto
conversamos.
— Realmente, Ivan, você agiu como um
cretino egoísta, mas sou sua mãe e preciso
continuar te amando mesmo quando se comporta
como um idiota.
Não sei se devo agradecer ou não, então
permito que me encaminhe até a região do jardim
onde cadeiras e mais cadeiras estão dispostas para o
início das comemorações.
É tudo muito… branco e florido.
A primavera trouxe algumas decorações
naturais que nenhuma empresa especializada em
grandes eventos conseguiria reproduzir. Um grande
tapete vermelho se estende por todo o caminho de
pedras, passando sobre a pequena ponte no lago de
carpas japonesas até chegar ao altar montado sob
uma redoma de rosas silvestres.
Há muitas pessoas e várias delas nos
cumprimentam enquanto minha mãe praticamente
me arrasta sem chance de paradas até o lugar
reservado ao noivo, à frente do púlpito. Na primeira
fileira estão sentados meus irmãos, Vladimir e
Roman, ambos com semblantes tediosos de quem
aguarda o início do casamento há quase uma hora.
Meu filho não se encontra à vista. Pela
manhã, Lara levou Iago até sua antiga moradia para
contar a verdade completa sobre todo o sofrimento
que viveu dentro daquelas paredes. Não queremos
mais segredos na nossa família, nada que possa se
virar contra nós no futuro.
A última vez que o avistei foi de relance,
enquanto ele seguia Vladimir pela casa com um
amontoado de papéis em mãos. O que os dois
estavam tramando só Deus para saber.
— Amo você — diz minha mãe arrumando
o nó da minha gravata. — Não estrague tudo outra
vez.
— Fico lisonjeado com a confiança.
Ela solta uma gargalhada, mas percebo de
relance seus olhos cheios de lágrimas antes de me
deixar sozinho na frente de todas as pessoas
convidadas que assistem desconfortavelmente
enquanto espero a orquestra dar início à marcha.
Não optamos por um casamento tradicional,
com as brincadeiras entre as famílias e todos os
rituais antiquados. Por mim e Lara, nem mesmo a
festa seria necessária, mas Tatiana morreria antes
que nós pudéssemos sugerir um evento menos
espalhafatoso.
Nossa sorte é a extensão da propriedade,
grande o suficiente para conter um evento desse
tamanho. Alguns poucos repórteres foram
permitidos desde que se mantenham no espaço
reservado e se retirarem antes do início da festa. As
tendas destinadas às comemorações despontam na
direção do céu no outro lado do labirinto, grandes
estruturas de ferro e lonas brancas. Há muitas
tulipas e samambaias completando a decoração,
cascatas de amarelo, vermelho e lilás, como um
arco-íris incompleto confeccionado com flores.
Eu vou mesmo me casar com Lara, a
mulher que jurei odiar para sempre e tão
injustamente magoei das formas mais
imperdoáveis.
Sem aviso, o som estridente de uma nota
musical entoada por um violino solitário dá início a
uma comoção geral. A maioria das mulheres solta
suspiros e olha para trás e os homens acompanham
com sorrisos empáticos. Eu a vejo chegando ao
longe, um ponto branco no meio das cores, um anjo
em um céu esverdeado.
Há qualquer coisa de retrô no corte do seu
vestido, uma coisinha justa na cintura que abre para
os lados na região dos quadris. Ela usa o cabelo
solto com uma coroa de flores no alto da cabeça e
simplesmente sinto que essa é a sua homenagem à
nossa fadinha.
Ao seu lado, Andrei é o responsável por
guiar a mulher da minha vida. Meu irmão sofreu
em silêncio por anos e anos, guardando um segredo
que comia a sua carne e transformava seu sangue
em ácido.
Eles são como a sombra do outro, almas
gêmeas destinadas desde o nascimento. Andrei
esteve lá por Lara quando eu não quis estar.
Estendeu a mão quando eu não o fiz, e a amou —
fraternalmente e incondicionalmente — quando
tudo em mim era raiva.
Meu irmão era o único que tinha o direito
de trazer Lara por esse caminho sem volta, o
homem cuja fidelidade jamais poderá ser
questionada. É a primeira família verdadeira da
minha mulher.
Pena que não sabe andar depressa!
Os dois caminham devagar.
Muito, muito devagar.
Tanto que eu quase corro de encontro a eles
para tomá-la em meus braços e completar o restante
do percurso mais depressa. Uma vida parece passar
até finalmente alcançarem o ponto mais alto no
meio da ponte. Vejo os lábios de Andrei se
movimentando, sorrindo, os dois trocam
confidências que o vento não segreda em meus
ouvidos.
Começo a ficar inquieto, ansioso. Não do
tipo ruim que me faz temer pelo pior. Ansioso pelo
futuro, pela certeza de que será uma Volkiova.
Lara Volkiova.
Meu furacão.
Minha tempestade.
Meu ar, céu e mar.
Meu pôr do sol.
Minha vida.

— Eu acho que vou vomitar — sussurro para


Andrei, mas recebo um riso debochado como
resposta. — Vou vomitar no terno lindo e caríssimo
do meu marido.
Andrei me apoia com mais firmeza,
elevando o braço para me proporcionar maior
sustentação. Ele é meu irmão, meu amigo, minha
pessoa. Aquele a quem pedirei socorro quando o
mundo desabar.
Sim, não sou tão inocente ou sonhadora
para crer em contos de fadas. Coisas ruins
acontecem e isso é um fato imutável, mas tenho a
certeza de que estou em casa, pois aqui se
encontram todas as pessoas que mais amo.
— Se for mesmo vomitar, por favor, faça
isso antes que seu noivo venha arrancar a minha
cabeça. Olhe para ele, parece que vai explodir a
qualquer momento.
Dou uma boa conferida no meu homem e,
minha nossa! Ele está lindo, maravilhosamente e
estupidamente gostoso. O terno fica magnífico em
seu corpo malhado, sobretudo na região dos
músculos do antebraço, um lugar perfeito para
cravar as minhas unhas e…
— Eu me tornei uma depravada.
— Você não disse isso em voz alta —
comenta meu acompanhante fechando os olhos.
Merda, eu disse!
— É para isso que servem os amigos —
brinco, nervosa demais para disfarçar a apreensão.
— Ouvir as besteiras que o outro diz nos momentos
de desespero.
— Então seu casamento é um desespero? —
debocha baixinho.
— Desespero é casar com medo de jogar
todo o meu almoço em cima do púlpito.
Começamos a subir na ponte de madeira
sobre o pequeno lago de jardim, mas quando olho
para baixo sinto como se fosse morrer. Que merda
está acontecendo comigo?
Andrei, percebendo que estou falando a
verdade, interrompe nossa caminhada por um
momento e tenho certeza de escutar Ivan rugindo.
Meu amigo está lindo, seus cabelos penteados para
trás são negros como uma noite isenta de suas
estrelas. Os olhos azuis me investigam, disfarçando
a situação.
— Quer fugir? — pergunta, arrancando-me
um sorriso.
— Só preciso de um momento — peço de
costas para Ivan.
Andrei olha sobre meus ombros e murmura:
— Todo momento do mundo, Lara, só não
garanto que seu noivo vá aguentar muito tempo.
Ah, merda, minha cabeça está rodando.
Forço um sorriso para que ninguém perceba o meu
pânico. Há pessoas murmurando nas laterais e
cliques incessantes de câmeras fotográficas.
— Me conte alguma coisa que me ajude a
ficar calma — peço.
— Lara, pelo amor de Deus, estamos no
meio do caminho. — Ele parece apavorado, mas
não posso fazer nada, preciso ocupar a minha
mente. — Tudo bem, vejamos… — Andrei coloca
a mão no queixo, pensativo. — Minha mãe
assediou três funcionárias contratadas para
trabalhar no casamento. Cheguei a tempo de
impedir que fizesse o mesmo com uma quarta e,
sinceramente, a menina parecia uma versão mais
nova da minha mãe. Disse que os Volkiov têm
problemas para, em seguida, dizer que somos quase
perfeitos.
Não entendo como minha sogra não
sequestrou a menina ou coisa parecida.
— Coitadinha — resmungo, pois conheço
bem os defeitos de cada um. — Acho que ela não
conheceu o Roman ainda.
Conversar me ajuda a esquecer do enjoo.
Respiro uma, duas, três vezes. Tudo bem. Confirmo
com a cabeça para Andrei. Ele me sorri e
continuamos o restante do caminho como se nada
tivesse acontecido.
Ivan tem os olhos arregalados, troca o peso
das pernas de uma para a outra sem parar. Quando
prendo minha atenção em seus lábios, na veneração
pulsante em seu olhar, tudo volta a ficar bem.
Andrei me deixa no final da ponte, faz um
cumprimento másculo e impessoal para meu noivo,
como um pai de verdade faria. Depois que
entrelaço meus dedos nos de Ivan, meu melhor
amigo segue para sua cadeira junto da família. Meu
filho está ao lado de Vladimir, sussurrando alguma
coisa.
Dema e Aleksander também se encontram
por ali, com o pequeno Yuri nos braços. Bóris se
recusou a comparecer, mas enviou de presente um
belo quadro que jurou ter ganhado de Nicolai em
um passado muito longínquo.
— Eu juro que morri três vezes enquanto
esperava você — sussurra o amor da minha vida,
um exagerado incorrigível. — Eu amo você! — diz
alto o suficiente para que todos possam ouvir. —
Vamos pular para a parte em que dizemos sim?
Sim, senhor padre! — grita para o pobre senhor que
nos aguarda com ares de reprovação.
— Ivan! — repreendo sem conseguir não
dar risada. — Vamos nos casar conforme manda o
protocolo ou sua mãe vai nos matar.
Dou um passo para trás. Experimento a
mistura genuína de amor, fulgor, constrangimento e
excitação. Considero com brevidade a possibilidade
de estar ainda absorta por um sonho que pode
acabar a qualquer momento. Mas não… É real, eu
sinto.
Apenas dois passos largos trazem Ivan para
mais perto. O olhar que me alcança é de alguém
que deseja ver além, muito mais além. No fundo da
minha mente um resquício de razão grita que
precisamos passar por essa experiência antes de
pensarmos no que vem depois.
— Ela nunca faria isso — comenta
enquanto nos ajoelhamos diante do orador. — Pelo
menos não até essa sua barriguinha maravilhosa
gerar mais três ou quatro bebês Volkiov.
— Estamos diante do padre, sabe disso, não
é? — pergunto um pouco envergonhada.
— Sim, eu aceito! — grita outra vez.
Ah, Deus…
— Desculpe, senhor padre. Eu juro que ele
é normal na maior parte do tempo.
Abaixamos nossas cabeças enquanto o
pobre homem começa a preparar suas palavras
bonitas e cerimoniais, mas a verdade é que minha
realização se encontra na certeza de que o homem
que amo não precisa de palavras ou votos para
firmar um acordo.
Toda nossa história sempre girou ao redor
de acordos, negócios e documentos. Eu me lembro
do reencontro naquele restaurante tantos meses
antes, de quando Ivan contradisse tudo o que
acreditava e determinou que nos casaríamos.
Parece que aconteceu em outra vida.
— Estamos aqui reunidos… — Começa,
mas é interrompido por Ivan.
— Isso vai demorar demais — reclama.
Fingindo que não ouviu, ele dá continuidade
e passamos pelo rito do matrimônio com muitas
interrupções até chegarmos à parte das promessas.
— Repitam comigo. — Tenta. — Prometo
ser-te fiel…
— Eu prometo tudo o que ela quiser.
Dito isso, o condutor idoso do nosso
casamento olha para os céus como se buscasse uma
intervenção divina. Solta os papéis com todas as
suas falas e se rende, dizendo um simples:
— Você aceita essa mulher como sua
esposa?
— Olhe para ela, é maravilhosa, meu filhote
de tentação. Eu aceito tudo, tudinho.
Ah, Ivan.
Não preciso dizer sim para provar o meu
amor. Eu sempre direi sim para ele, independente
de cerimônias, questionamentos e ritos. É meu
coração que diz sim quando salto e coloco as mãos
ao redor de seus ombros e sinto seus lábios
devorando os meus.
Digo sim com meu corpo e a minha alma.
Digo sim hoje e para sempre e sempre e sempre.

FIM.
Gostaria de agradecer primeiramente à
Deus.
Ao longo do processo de elaboração desse
livro, aprendi e reaprendi muitas coisas com
relação à escrita e o que ela representa para mim.
Conheci pessoas que me influenciaram, pessoas
que me inspiraram e pessoas que me apoiaram
profundamente, e todas elas têm a minha gratidão.
Por esse motivo, agradeço meu marido,
principalmente, por me apoiar mesmo durante as
intermináveis horas de ausência. Esse livro foi uma
provação e tanto!
Clara e Luiz Felipe, as razões pelas quais eu
tento e continuarei tentando ao longo da vida,
minhas motivações.
Ao grupo Romances D. Nacionais que me
acolheu, me apoiou e ajudou nos momentos de
desespero.
A todas as autoras amigas e companheiras
que me ajudaram e continuam ajudando ao longo
dessa longa estrada literária. Não citarei todos os
nomes para não correr o risco de esquecer alguém
injustamente, mas sintam-se incluídas em meus
agradecimentos e também no meu coração.
À Sara Fidelis (S. G. Fidelis) que leu a
versão final em tempo recorde, me aconselhando
sobre alguns pontos que haviam passado
despercebido.
E PRINCIPALMENTE às minhas
FLORZINHAS, leitoras cheirosas e lindas que me
ajudaram e continuam ajudando. Vocês fazem parte
desse livro, dessa família, e serão para sempre
frações da minha felicidade.

OBRIGADA.

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